Contos de Natal Seleção e Organização
Iba Mendes
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“Projeto Livro Livre” Livro 273
Poeteiro Editor Digital São Paulo - 2014 www.poeteiro.com
Projeto Livro Livre O “Projeto Livro Livre” é uma iniciativa que propõe o compartilhamento, de forma livre e gratuita, de obras literárias já em domnio p!blico ou que tenham a sua divulga"#o devidamente autori$ada, especialmente o livro em seu formato %igital& 'o (rasil, segundo a Lei n) *&+-, no seu artigo ., os direitos patrimoniais do autor perduram por setenta anos contados de / de janeiro do ano subsequente ao de seu falecimento& O mesmo se observa em Portugal& 0egundo o 12digo dos %ireitos de 3utor e dos %ireitos 1one4os, em seu captulo 56 e artigo 7), o direito de autor caduca, na falta de disposi"#o especial, 8- anos ap2s a morte do criador intelectual, mesmo que a obra s2 tenha sido publicada ou divulgada postumamente& O nosso Projeto, que tem por !nico e e4clusivo objetivo colaborar em prol da divulga"#o do bom conhecimento na 5nternet, busca assim n#o violar nenhum direito autoral& 9odavia, caso seja encontrado algum livro que, por alguma ra$#o, esteja ferindo os direitos do autor, pedimos a gentile$a que nos informe, a fim de que seja devidamente suprimido de nosso acervo& :speramos um dia, quem sabe, que as leis que regem os direitos do autor sejam repensadas e reformuladas, tornando a prote"#o da propriedade intelectual uma ferramenta para promover o conhecimento, em ve$ de um temvel inibidor ao livre acesso aos bens culturais& 3ssim esperamos; 3té lá, daremos nossa pequena contribui"#o para o desenvolvimento da educa"#o e da cultura, mediante o compartilhamento livre e gratuito de obras sob domnio p!blico, como esta colet
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ÍNDICE ASSIS......................................................... ........... MISSA DO GALO: MACHADO DE ASSIS..............................................
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O SUAVE MILAGRE: EÇA DE QUEIRÓS..........................................................
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CÂMARA............................................................... O PRESÉPIO: D. JOÃO DA CÂMARA...............................................................
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AS ESTRELAS DO CEGO: D. JOÃO DA CÂMARA.............................................
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ORTIGÃO................................................... ...... O NATAL MINHOTO: RAMALHO ORTIGÃO.............................................
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BOTELHO...................................................................... .................. A CONSOADA: ABEL BOTELHO....................................................
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A NOITE DO NATAL: JOSÉ MARIA DE ANDRADE FERREIRA...........................
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A PRENDA DE NATAL: CARLOS MALHEIRO DIAS...........................................
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ALMEIDA................................................. CONTO DE NATAL: DE FIALHO DE ALMEIDA.................................................
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CAMACHO.................................................................... AS JANEIRAS: BRITO CAMACHO....................................................................
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MORAIS.................................................................... O PAI NATAL: PINA DE MORAIS....................................................................
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VÁREA............................................................. .............................. NATAL NO MAR: VURGÍLIO VÁREA...............................
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O “MENININHO” DO PRESÉPIO: JOÃO SIM!ES LOPES NETO.......................
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S ILVEIRA......................................................................... .............................................. REIS: VALDOMIRO SILVEIRA.............................
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MISSA DO GALO MACHADO DE ASSIS Nunca pude entender a conversação que tive com uma senhora, há muitos anos, contava eu dezessete, ela trinta. Era noite de Natal. Havendo ajustado com um vizinho irmos à missa do galo, preferi não dormir com!inei que eu iria acordá"lo à meia"noite. # casa em que eu estava hospedado era a do escrivão $eneses, que fora casado, em primeiras n%pcias, com uma de minhas primas. # segunda mulher, &onceição, e a mãe desta acolheram"me !em, quando vim de $angarati!a para o 'io de (aneiro, meses antes, a estudar preparat)rios. *ivia tranq+ilo, naquela casa asso!radada da 'ua do enado, com os meus livros, poucas relaç-es, alguns passeios. # famlia era pequena, o escrivão, a mulher, a sogra e duas escravas. &ostumes velhos. /s dez horas da noite toda a gente estava nos quartos às dez e meia a casa dormia. Nunca tinha ido ao teatro, e mais de uma vez, ouvindo dizer ao $eneses que ia ao teatro, pedi"lhe que me levasse consigo. Nessas ocasi-es, a sogra fazia uma careta, e as escravas riam à socapa ele não respondia, vestia"se, saa e s) tornava na manhã seguinte. $ais tarde 0 que eu sou!e que o teatro era um eufemismo em ação. $eneses trazia amores com uma senhora, separada do marido, e dormia fora de casa uma vez por semana. &onceição padecera, a princpio, com a e1ist2ncia da com!orça mas afinal, resignara"se, acostumara"se, e aca!ou achando que era muito direito. 3oa &onceição4 &hamavam"lhe 5a santa5, e fazia jus ao ttulo, tão facilmente suportava os esquecimentos do marido. Em verdade, era um temperamento moderado, sem e1tremos, nem grandes lágrimas, nem grandes risos. No captulo de que trato, dava para maometana aceitaria um har0m, com as apar2ncias salvas. 6eus me perdoe, se a julgo mal. 7udo nela era atenuado e passivo. 8 pr)prio rosto era mediano, nem !onito nem feio. Era o que chamamos uma pessoa simpática. Não dizia mal de ningu0m, perdoava tudo. Não sa!ia odiar pode ser at0 que não sou!esse amar. Naquela noite de Natal foi o escrivão ao teatro. Era pelos anos de 9:;9 ou 9:;<. Eu já devia dev ia estar em $angarati!a, em e m f0rias mas fiquei fiq uei at0 o Natal para ver 5a missa do galo na &orte5. # famlia recolheu"se à hora do costume eu meti"me na sala da frente, vestido e pronto. 6ali passaria ao corredor da entrada e sairia sem acordar ningu0m. 7inha tr2s chaves a porta uma estava com o escrivão, eu levaria outra, a terceira ficava em casa.
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= $as, r. Nogueira, que fará voc2 todo esse tempo> perguntou"me a mãe de &onceição. = ?eio, 6. @nácia. 7inha comigo um romance, Os Três Mosqueteiros, Mosqueteiros , velha tradução creio do Jornal do Jornal do Comércio. Comércio. entei"me à mesa que havia no centro da sala, e à luz de um candeeiro de querosene, enquanto a casa dormia, trepei ainda uma vez ao cavalo magro de 6A#rtagnan e fui"me às aventuras. 6entro em pouco estava completamente 0!rio de 6umas. 8s minutos voavam, ao contrário do que costumam fazer, quando são de espera ouvi !ater onze horas, mas quase sem dar por elas, um acaso. Entretanto, um pequeno rumor que ouvi dentro veio acordar" me da leitura. Eram uns passos no corredor que ia da sala de visitas à de jantar levantei a ca!eça logo depois vi assomar à porta da sala o vulto de &onceição. = #inda não foi> perguntou ela. = Não fui, parece que ainda não 0 meia"noite. = Bue paci2ncia4 &onceição entrou na sala, arrastando as chinelinhas da alcova. *estia um roupão !ranco, mal apanhado na cintura. endo magra, tinha um ar de visão romCntica, não disparatada com o meu livro de aventuras. Dechei o livro ela foi sentar"se na cadeira que ficava defronte de mim, perto do canap0. &omo eu lhe perguntasse se a havia acordado, sem querer, fazendo !arulho, respondeu com presteza = Não4 qual4 #cordei por acordar. Ditei"a um pouco e duvidei da afirmativa. 8s olhos não eram de pessoa que aca!asse de dormir pareciam não ter ainda pegado no sono. Essa o!servação, por0m, que valeria alguma coisa em outro esprito, depressa a !otei fora, sem advertir que talvez não dormisse justamente por minha causa, e mentisse para me não afligir ou a!orrecer. (á disse que ela era !oa, muito !oa. = $as a hora já há de estar pr)1ima, disse eu.
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= Bue paci2ncia a sua de esperar acordado, enquanto o vizinho dorme4 E esperar sozinho4 Não tem medo de almas do outro mundo> Eu cuidei que se assustasse quando me viu. = Buando ouvi os passos estranhei mas a senhora apareceu logo. = Bue 0 que estava lendo> Não diga, já sei, 0 o romance dos Mosqueteiros. Mosqueteiros. = (ustamente 0 muito !onito. = Fosta de romances> = Fosto. = (á leu a Moreninha> Moreninha> = 6o 6r. $acedo> 7enho lá em $angarati!a. = Eu gosto muito de romances, mas leio pouco, por falta de tempo. Bue romances 0 que voc2 tem lido> &omecei a dizer"lhe os nomes de alguns. &onceição ouvia"me com a ca!eça reclinada no espaldar, enfiando os olhos por entre as pálpe!ras meio"cerradas, sem os tirar de mim. 6e vez em quando passava a lngua pelos !eiços, para umedec2"los. Buando aca!ei de falar, não me disse nada ficamos assim alguns segundos. Em seguida, vi"a endireitar a ca!eça, cruzar os dedos e so!re eles pousar o quei1o, tendo os cotovelos nos !raços da cadeira, tudo sem desviar de mim os grandes olhos espertos. 57alvez esteja a!orrecida5, pensei eu. E logo alto = 6. &onceição, creio que vão sendo horas, e eu... = Não, não, ainda 0 cedo. *i agora mesmo o rel)gio, são onze e meia. 7em tempo. *oc2, perdendo a noite, 0 capaz de não dormir de dia> = (á tenho feito isso.
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= Eu, não perdendo uma noite, no outro dia estou que não posso, e, meia hora que seja, hei de passar pelo sono. $as tam!0m estou ficando velha. = Bue velha o que, 6. &onceição> 7al foi o calor da minha palavra que a fez sorrir. 6e costume tinha os gestos demorados e as atitudes tranq+ilas agora, por0m, ergueu"se rapidamente, passou para o outro lado da sala e deu alguns passos, entre a janela da rua e a porta do ga!inete do marido. #ssim, com o desalinho honesto que trazia, dava"me uma impressão singular. $agra em!ora, tinha não sei que !alanço no andar, como quem lhe custa levar o corpo essa feição nunca me pareceu tão distinta como naquela noite. Garava algumas vezes, e1aminando um trecho de cortina ou concertando a posição de algum o!jeto no aparador afinal deteve"se, ante mim, com a mesa de permeio. Estreito era o crculo das suas id0ias tornou ao espanto de me ver esperar acordado eu repeti"lhe o que ela sa!ia, isto 0, que nunca ouvira missa do galo na &orte, e não queria perd2"la. = a mesma missa da roça todas as missas se parecem. = #credito mas aqui há de haver mais lu1o e mais gente tam!0m. 8lhe, a semana santa na &orte 0 mais !onita que na roça. . (oão não digo, nem anto #ntInio... Gouco a pouco, tinha"se reclinado fincara os cotovelos no mármore da mesa e metera o rosto entre as mãos espalmadas. Não estando a!otoadas as mangas, caram naturalmente, e eu vi"lhe metade dos !raços, muito claros, e menos magros do que se poderiam supor. # vista não era nova para mim, posto tam!0m não fosse comum naquele momento, por0m, a impressão que tive foi grande. #s veias eram tão azuis, que apesar da pouca claridade, podia contá"las do meu lugar. # presença de &onceição espertara"me ainda mais que o livro. &ontinuei a dizer o que pensava das festas da roça e da cidade, e de outras coisas que me iam vindo à !oca. Dalava emendando os assuntos, sem sa!er por que, variando deles ou tornando aos primeiros, e rindo para faz2"la sorrir e ver"lhe os dentes que luziam de !rancos, todos iguaizinhos. 8s olhos dela não eram !em negros, mas escuros o nariz, seco e longo, um tantinho curvo, dava"lhe ao rosto um ar interrogativo. Buando eu alteava um pouco a voz, ela reprimia"me = $ais !ai1o4 mamãe pode acordar.
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E não saa daquela posição, que me enchia de gosto, tão perto ficavam as nossas caras. 'ealmente, não era preciso falar alto para ser ouvido cochichávamos os dois, eu mais que ela, porque falava mais ela, às vezes, ficava s0ria, muito s0ria, com a testa um pouco franzida. #final, cansou trocou de atitude e de lugar. 6eu volta à mesa e veio sentar"se do meu lado, no canap0. *oltei"me e pude ver, a furto, o !ico das chinelas mas foi s) o tempo que ela gastou em sentar"se, o roupão era comprido e co!riu"as logo. 'ecordo"me que eram pretas. &onceição disse !ai1inho
= $amãe está longe, mas tem o sono muito leve se acordasse agora, coitada, tão cedo não pegava no sono. = Eu tam!0m sou assim. = 8 qu2> perguntou ela inclinando o corpo, para ouvir melhor. Dui sentar"me na cadeira que ficava ao lado do canap0 e repeti"lhe a palavra. 'iu"se da coincid2ncia tam!0m ela tinha o sono leve 0ramos tr2s sonos leves. = Há ocasi-es em que sou como mamãe acordando, custa"me dormir outra vez, rolo na cama, à toa, levanto"me, acendo vela, passeio, torno a deitar"me e nada. = Doi o que lhe aconteceu hoje. = Não, não, atalhou ela. Não entendi a negativa ela pode ser que tam!0m não a entendesse. Gegou das pontas do cinto e !ateu com elas so!re os joelhos, isto 0, o joelho direito, porque aca!ava de cruzar as pernas. 6epois referiu uma hist)ria de sonhos, e afirmou"me que s) tivera um pesadelo, em criança. Buis sa!er se eu os tinha. # conversa reatou"se assim lentamente, longamente, sem que eu desse pela hora nem pela missa. Buando eu aca!ava uma narração ou uma e1plicação, ela inventava outra pergunta ou outra mat0ria, e eu pegava novamente na palavra. 6e quando em quando, reprimia"me = $ais !ai1o, mais !ai1o... Havia tam!0m umas pausas. 6uas outras vezes, pareceu"me que a via dormir mas os olhos, cerrados por um instante, a!riam"se logo sem sono nem fadiga, como se
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ela os houvesse fechado para ver melhor. Jma dessas vezes creio que deu por mim em!e!ido na sua pessoa, e lem!ra"me que os tornou a fechar, não sei se apressada ou vagarosamente. Há impress-es dessa noite, que me aparecem truncadas ou confusas. &ontradigo"me, atrapalho"me. Jma das que ainda tenho frescas 0 que, em certa ocasião, ela, que era apenas simpática, ficou linda, ficou lindssima. Estava de p0, os !raços cruzados eu, em respeito a ela, quis levantar"me não consentiu, pIs uma das mãos no meu om!ro, e o!rigou"me a estar sentado. &uidei que ia dizer alguma coisa mas estremeceu, como se tivesse um arrepio de frio, voltou as costas e foi sentar"se na cadeira, onde me achara lendo. 6ali relanceou a vista pelo espelho, que ficava por cima do canap0, falou de duas gravuras que pendiam da parede. = Estes quadros estão ficando velhos. (á pedi a &hiquinho para comprar outros. &hiquinho era o marido. 8s quadros falavam do principal neg)cio deste homem. Jm representava 5&le)patra5 não me recordo o assunto do outro, mas eram mulheres. *ulgares am!os naquele tempo não me pareciam feios. = ão !onitos, disse eu. = 3onitos são mas estão manchados. E depois francamente, eu preferia duas imagens, duas santas. Estas são mais pr)prias para sala de rapaz ou de !ar!eiro. = 6e !ar!eiro> # senhora nunca foi a casa de !ar!eiro. = $as imagino que os fregueses, enquanto esperam, falam de moças e namoros, e naturalmente o dono da casa alegra a vista deles com figuras !onitas. Em casa de famlia 0 que não acho pr)prio. o que eu penso mas eu penso muita coisa assim esquisita. eja o que for, não gosto dos quadros. Eu tenho uma Nossa enhora da &onceição, minha madrinha, muito !onita mas 0 de escultura, não se pode pIr na parede, nem eu quero. Está no meu orat)rio. # id0ia do orat)rio trou1e"me a da missa, lem!rou"me que podia ser tarde e quis diz2"lo. Genso que cheguei a a!rir a !oca, mas logo a fechei para ouvir o que ela contava, com doçura, com graça, com tal moleza que trazia preguiça à minha alma e fazia esquecer a missa e a igreja. Dalava das suas devoç-es de menina e moça. Em seguida referia umas anedotas de !aile, uns casos de passeio, reminisc2ncias de Gaquetá, tudo de mistura, quase sem interrupção. Buando cansou do passado, falou do presente, dos neg)cios da casa, das canseiras de famlia, que lhe diziam
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ser muitas, antes de casar, mas não eram nada. Não me contou, mas eu sa!ia que casara aos vinte e sete anos. (á agora não trocava de lugar, como a princpio, e quase não sara da mesma atitude. Não tinha os grandes olhos compridos, e entrou a olhar à toa para as paredes. = Grecisamos mudar o papel da sala, disse da a pouco, como se falasse consigo. &oncordei, para dizer alguma coisa, para sair da esp0cie de sono magn0tico, ou o que quer que era que me tolhia a lngua e os sentidos. Bueria e não queria aca!ar a conversação fazia esforço para arredar os olhos dela, e arredava"os por um sentimento de respeito mas a id0ia de parecer que era a!orrecimento, quando não era, levava"me os olhos outra vez para &onceição. # conversa ia morrendo. Na rua, o sil2ncio era completo. &hegamos a ficar por algum tempo, = não posso dizer quanto, = inteiramente calados. 8 rumor %nico e escasso, era um roer de camundongo no ga!inete, que me acordou daquela esp0cie de sonol2ncia quis falar dele, mas não achei modo. &onceição parecia estar devaneando. u!itamente, ouvi uma pancada na janela, do lado de fora, e uma voz que !radava 5$issa do galo4 missa do galo45 = # está o companheiro, disse ela levantando"se. 7em graça voc2 0 que ficou de ir acordá"lo, ele 0 que vem acordar voc2. *á, que hão de ser horas adeus. = (á serão horas> perguntei. = Naturalmente = $issa do galo4 = repetiram de fora, !atendo. = *á, vá, não se faça esperar. # culpa foi minha. #deus, at0 amanhã. E com o mesmo !alanço do corpo, &onceição enfiou pelo corredor dentro, pisando mansinho. a à rua e achei o vizinho que esperava. Fuiamos dali para a igreja. 6urante a missa, a figura de &onceição interpIs"se mais de uma vez, entre mim e o padre fique isto à conta dos meus dezessete anos. Na manhã seguinte, ao almoço, falei da missa do galo e da gente que estava na igreja sem e1citar a curiosidade de &onceição. 6urante o dia, achei"a como sempre, natural, !enigna, sem nada que fizesse lem!rar a conversação da v0spera. Gelo #no"3om fui para $angarati!a.
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Buando tornei ao 'io de (aneiro em março, o escrivão tinha morrido de apople1ia. &onceição morava no Engenho Novo, mas nem a visitei nem a encontrei. 8uvi mais tarde que casara com o escrevente juramentado do marido.
O SUAVE MILAGRE EÇA DE QUEIRÓS Nesse tempo (esus ainda se não afastara da Falileia e das doces, luminosas margens do lago de 7i!erade = mas a notcia dos seus milagres penetrara já at0 Enganim, cidade rica, de muralhas fortes, entre olivais e vinhedos, no pas de @ssacar. Jma tarde um homem de olhos ardentes e deslum!rados passou no fresco vale, e anunciou que um novo profeta, um ra!i formoso, percorria os campos e as aldeias da Falileia, predizendo a chegada do 'eino de 6eus, curando todos os males humanos. E, enquanto descansava, sentado à !eira da Donte dos *erg0is, contou ainda que esse ra!i, na estrada de $agdala, sarara da lepra o servo de um decurião romano, s) com estender so!re ele a som!ra das suas mãos e que noutra manhã, atravessando numa !arca para a terra dos Ferasenos, onde começava a colheita do !álsamo, ressuscitara a filha de (airo, homem considerável e douto que comentava os livros na sinagoga. E como em redor, assom!rados, seareiros, pastores, e as mulheres trigueiras com a !ilha no om!ro, lhe perguntassem se esse era, em verdade, o $essias da (udeia, e se diante dele refulgia a espada de fogo, e se o ladeavam, caminhando como as som!ras de duas torres, as som!ras de Fog e de $agog = o homem, sem mesmo !e!er daquela água tão fria de que !e!era (osu0, apanhou o cajado, sacudiu os ca!elos, e meteu pensativamente por so! o aqueduto, logo sumido na espessura das amendoeiras em flor. $as uma esperança, deliciosa como o orvalho nos meses em que canta a cigarra, refrescou as almas simples logo, por toda a campina que verdeja at0 Kscalon, o arado pareceu mais !rando de enterrar, mais leve de mover a pedra do lagar as crianças, colhendo ramos de an2monas, espreitavam pelos caminhos se al0m da esquina do muro, ou de so! o sicImoro, não surgiria uma claridade, e nos !ancos de pedra, às portas da cidade, os velhos, correndo os dedos pelos fios das !ar!as, já não desenrolavam, com tão sapiente certeza, os ditames antigos. 8ra então vivia em Enganim um velho, por nome 8!ed, de uma famlia pontifical de amaria, que sacrificara nas aras do monte E!al, senhor de fartos re!anhos e de fartas vinhas = e com o coração tão cheio de orgulho como seu celeiro de trigo. $as um vento árido e a!rasado, esse vento de desolação que ao mando do enhor
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sopra das torvas terras de #ssur, matara as reses mais gordas das suas manadas, e pelas encostas onde as suas vinhas se enroscavam ao olmo, e se estiravam na latada airosa, s) dei1ara, em torno dos olmos e pilares despidos, sarmentos de cepas mirradas, e a parra roda de crespa ferrugem. E 8!ed, agachado à soleira da sua porta, com a ponta do manto so!re a face, palpava a poeira, lamentava a velhice, ruminava quei1umes contra 6eus cruel. #penas ouvira por0m desse novo ra!i da Falileia que alimentava as multid-es, amedrontava os demInios, emendava todas as desventuras = 8!ed, homem lido, que viajara na Dencia, logo pensou que (esus seria um desses feiticeiros, tão costumados na Galestina, como #polInio, ou ra!i 3en"6ossa, ou imão, Lo u!tilM. Esses, mesmo nas noites tene!rosas, conversam com as estrelas, para eles sempre claras e fáceis nos seus segredos com uma vara afugentam de so!re as searas os moscardos gerados nos lodos do Egito e agarram entre os dedos as som!ras das árvores, que conduzem, como toldos !en0ficos, para cima das eiras, à hora da sesta. (esus da Falileia, mais novo, com magias mais viçosas decerto, se ele largamente o pagasse, sustaria a mortandade dos seus gados, reverdeceria os seus vinhedos. Então 8!ed ordenou aos seus servos que partissem, procurassem por toda a Falileia o ra!i novo, e com promessa de dinheiros ou alfaias o trou1essem a Enganim, no pas de @ssacar. 8s servos apertaram os cintur-es de couro = e largaram pela estrada das caravanas, que, costeando o lago, se estende at0 6amasco. Jma tarde, avistaram so!re o poente, vermelho como uma romã muito madura, as neves finas do monte H0rmon. 6epois, na frescura de uma manhã macia, o lago de 7i!erade resplandeceu diante deles, transparente, co!erto de sil2ncio, mais azul que o c0u, todo orlado de prados floridos, de densos verg0is, de rochas de p)rfiro, e de alvos terraços por entre os palmares, so! o voo das rolas. Jm pescador que desamarrava preguiçosamente a sua !arca de uma ponta de relva, assom!reada de aloendros, escutou, sorrindo, os servos. 8 ra!i de Nazar0> 8h4 6esde o m2s de @jar, o ra!i descera, com os seus discpulos, para os lados para onde o (ordão leva as águas. 8s servos correndo, seguiram pelas margens do rio, at0 adiante do vau, onde ele se estira num largo remanso, e descansa, e um instante dorme, im)vel e verde, à som!ra dos tamarindos. Jm homem da tri!o dos Ess2nios, todo vestido de linho !ranco, apanhava lentamente ervas salutares, nela !eira da água, com um cordeirinho !ranco ao colo. 8s servos humildemente saudaram"no, porque o povo ama aqueles homens de coração tão limpo, e claro, e cCndido como as suas vestes cada manhã levadas em tanques purificados. E sa!ia ele da passagem do novo ra!i da Falileia que, como os Ess0nios, ensinava a doçura, e curava as gentes e os gados> 8 Ess0nio murmurou que o ra!i atravessara o oásis de Engaddi, depois se adiantara para al0m... = $as onde, al0m> = $ovendo um ramo de flores ro1as 9
que colhera, o Ess2nio mostrou as terras de al0m"(ordão, a plancie de $oa!. 8s servos vadearam o rio = e de!alde procuravam (esus, arquejando pelos rudes trilhos, at0 às fragas onde se ergue a cidadela sinistra de $aaur... No Goço de (aco! repousava uma larga caravana, que conduzia para o Egito mirra, especiarias e !álsamos de Filead, e os cameleiros, tirando a água com os !aldes de couro, contaram aos servos de 8!ed que em Fadara, pela lua nova, um ra!i maravilhoso, maior que 6avid ou @saas, arrancara sete demInios do peito de uma tecedeira, e que, à sua voz, um homem degolado pelo salteador 3arra!ás se erguera da sua sepultura e recolhera ao seu horto. 8s servos, esperançados, su!iram logo açodadamente pelo caminho dos peregrinos at0 Fadara, cidade de altas torres, e ainda mais longe at0 às nascentes de #malha... $as (esus, nessa madrugada, seguido por um povo que cantava e sacudia ramos de mimosa, em!arcara no lago, num !atel de pesca, e à vela navegara para $agdala. E os servos de 8!ed, descoroçoados, de novo passavam o (ordão na Gonte das Dilhas de (aco!. Jm dia, já com as sandálias rotas dos longos caminhos, pisando já as terras da (udeia 'omana, cruzaram um fariseu som!rio, que recolhia a Efraim, montado na sua mula. &om devota rever2ncia detiveram o homem da ?ei. Encontrara ele, por acaso, esse profeta novo da Falileia que, como um deus passeando na 7erra, semeava milagres> # adunca face do fariseu escureceu enrugada = e a sua c)lera retum!ou como um tam!or orgulhoso = 8h escravos pagãos4 8h !lasfemos4 8nde ouvistes que e1istissem profetas ou milagres fora de (erusal0m> ) (eová tem força no seu 7emplo. 6e Falileia surdem os parvos e os impostores... E como os servos recuavam perante o seu punho erguido, todo enrodilhado de dsticos sagrados = o furioso doutor saltou da mula e, com as pedras da estrada, apedrejou os servos de 8!ed, uivando L 'acca4 'acca4M e todos os anátemas rituais. 8s servos fugiram para Enganim. E grande foi a desconsolação de 8!ed, porque os seus gados morriam, as suas vinhas secavam = e todavia, radiantemente, como uma alvorada por detrás de serras, crescia, consoladora e cheia de promessas divinas, a fama de (esus da Falileia. Gor esse tempo, um centurião romano, G%!lio 0timo, comandava o forte que domina o vale de &esareia, at0 à cidade e ao mar. G%!lio, homem áspero, veterano da campanha de 7i!0rio contra os Gartos, enriquecera durante a revolta de amaria com presas e saques, possua minas na Ktica e gozava, como favor supremo dos deuses, a amizade de Dlaco, legado imperial da ria. $as uma dor roia a sua prosperidade muito poderosa como um verme r)i um fruto muito suculento. # sua filha %nica, para ele mais amada que vida ou !ens,
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definhava com um mal su!til e lento, estranho mesmo ao sa!er dos esculápios e mágicos que ele mandara consultar a don e a 7iro. 3ranca e triste como a lua num cemit0rio, sem um quei1ume, sorrindo palidamente ao seu pai definhava, sentada na alta esplanada do forte, so! um velário, alongando saudosamente os negros olhos tristes pelo azul do mar de 7iro, por onde ela navegara de @tália, numa galera enfestoada. #o seu lado, por vezes, um legionário, entre as ameias, apontava vagarosamente ao alto a flecha, e varava uma grande águia, voando de asa serena, no c0u rutilante. # filha de 0timo seguia um momento a ave torneando at0 !ater morta so!re as rochas = depois, mais triste, com um suspiro, e mais pálida, recomeçava a olhar para o mar. Então 0timo, ouvindo contar, á mercadores de &horazim, deste ra!i admirável, tão potente so!re os espritos, que sarava os males tene!rosos da alma, destacou tr2s dec%rias de soldados para que o procurassem por Falileia, e por todas as cidades da 6ecápole, at0 à costa e at0 Kscalon. 8s soldados enfiaram os escudos nos sacos de lona, espetaram nos elmos ramos de oliveira = e as suas sandálias ferradas apressadamente se afastaram, ressoando so!re as lajes de !asalto da estrada romana que desde &esareia at0 ao lago com toda a tetrarquia de Herodes. #s suas armas de noite, !rilhavam no topo das colinas, por entre a chama ondeante dos archotes erguidos. 6e dia invadiam os casais, re!uscavam a espessura dos pomares, esfuracavam com a ponta das lanças a palha das medas e as mulheres, assustadas, para os amansar, logo acudiam com !olos de mel, figos novos, e malgas cheias de vinho, que eles !e!iam de um trago, sentados à som!ra dos sicImoros. #ssim correram a 3ai1a Falileia = e, do ra!i, s) encontraram o sulco luminoso nos coraç-es. Enfastiados com as in%teis marchas, desconfiando que os (udeus sonegassem o seu feiticeiro para que os 'omanos não aproveitassem do superior feitiço, derramavam com tumulto a sua c)lera, atrav0s da piedosa terra su!missa. / entrada das aldeias po!res detinham os peregrinos, gritando o nome do ra!i, rasgando os v0us às virgens e, à hora em que os cCntaros se enchem nas cisternas, invadiam as ruas estreitas dos !urgos, penetravam nas sinagogas, e !atiam sacrilegamente com os punhos das espadas nas 7he!ahs, os santos armários de cedro que continham os ?ivros agrados. Nas cercanias de H0!ron arrastaram os solitários pelas !ar!as para fora das grutas, para lhes arrancar o nome do deserto ou do palmar em que se ocultava o ra!i = e dois mercadores fencios que vinham de (ope com uma carga de mal)!atro, e a quem nunca chegara o nome de (esus, pagaram por esse delito cem dracmas a cada decurião. (á a gente dos campos, mesmos os !ravios pastores de @dumeia, que levam as reses !rancas para o 7emplo, fugiam espavoridos para as serranias, apenas luziam, nalguma volta do caminho, as armas do !ando violento. E da !eira dos eirados, as velhas sacudiam como taleigos a ponta dos ca!elos 11
desgrenhados, e arrogavam so!re eles as $ás ortes, invocando a vingança de Elias. #ssim tumultuosamente erraram at0 Kscalon não encontraram (esus e retrocederam ao longo da costa enterrando as sandálias nas areias ardentes. Jma madrugada, perto de &esareia, marchando num vale, avistaram so!re um outeiro um verde"negro !osque de loureiros, onde alvejava, recolhidamente, o fino e claro p)rtico de um templo. Jm velho, de compridas !ar!as !rancas, coroado de folhas de louro, vestido com uma t%nica cor de açafrão, segurando uma curta lira de tr2s cordas, esperava gravemente, so!re os degraus de mármore, a aparição do ol. 6e!ai1o, agitando um ramo de oliveira, os soldados !radaram pelo sacerdote. &onhecia ele um novo profeta que surgira na Falileia, e tão destro em milagres que ressuscitava os mortos e mudava a água em vinho> erenamente, alargando os !raços, o sereno velho e1clamou por so!re a rociada verdura do vale = 8h romanos4 Gois acreditais que em Falileia ou (udeia apareçam profetas consumando milagres> &omo pode um !ár!aro alterar a ordem instituda por Oeus>... $ágicos e feiticeiros são vendilh-es, que murmuram palavras ocas, para arre!atar a esp)rtula dos simples... em a permissão dos imortais nem um galho seco pode tom!ar da árvore, nem seca folha pode ser sacudida na árvore. Não há profetas, não há milagres... ) #polo 60lfico conhece o segredo das coisas4 Então, devagar, com a ca!eça derru!ada, como numa tarde de derrota, os soldados recolheram à fortaleza de &esareia. E grande foi o desespero de 0timo, porque sua filha morria, sem um quei1ume, olhando o mar de 7iro = e todavia a fama de (esus, curador dos lCnguidos males, crescia, sempre mais consoladora e fresca, como a aragem da tarde que sopra do H0rmon e, atrav0s dos hortos reanima e levanta as açucenas pendidas. 8ra entre Enganim e &esareia, num case!re desgarrado, sumido na prega de um cerro, vivia a esse tempo uma vi%va, mais desgraçada mulher que todas mulheres de @srael. 8 seu filhinho %nico, todo aleijado, passara do magro peito a que ela o criara para os farrapos de en1erga apodrecida, onde jazera, sete anos passados, mirrando e gemendo. 7am!0m a ela a doença a engelhara dentro dos trapos nunca mudados, mais escura e torcida que uma cepa arrancada. E, so!re am!os espessamente a mis0ria cresceu como o !olor so!re cacos perdidos num ermo. #t0 na lCmpada de !arro vermelho secara há muito o azeite. 6entro da arca pintada não restava grão ou cIdea. No Estio, sem pasto, a ca!ra morrera. 6epois, no quinteiro, secara a figueira. 7ão longe do povoado, nunca esmola de pão ou mel entrava o portal. E s) ervas apanhadas nas fendas das rochas, cozidas sem sal, nutriam aquelas criaturas de 6eus na 7erra Escolhida, onde at0 às aves mal0ficas so!rava o sustento4 Jm dia um mendigo entrou no case!re, repartiu do seu farnel
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com a mãe amargurada, e um momento sentado na pedra da lareira, coçando as feridas das pernas, contou dessa grande esperança dos tristes, esse ra!i que aparecera na Falileia, e de um pão no mesmo cesto fazia sete, e amava todas as criancinhas, e en1ugava todas as lágrimas, e prometia aos po!res um grande e luminoso reino, de a!undCncia maior que a corte de alomão. # mulher escutava, com olhos famintos. E esse doce ra!i, esperança dos tristes, onde se encontrava> 8 mendigo suspirou. #h esse doce ra!i4 Buantos o desejavam, que se desesperançavam4 # sua fama andava por so!re toda a (udeia, como o sol que at0 por qualquer velho muro se estende e se goza mas para en1ergar a claridade do seu rosto, s) aqueles ditosos que o seu desejo escolhia. 8!ed, tão rico, mandara os seus servos por toda a Falileia para que procurassem (esus, o chamassem com promessas a Enganim 0timo, tão so!erano, destacara os seus soldados at0 à costa do mar, para que !uscassem (esus o conduzissem, pelo seu mando a &esareia. Errando esmolando por tantas estradas, ele topara os servos de 8!ed, depois os legionários de 0timo. E todos voltavam, como derrotados, com as sandálias rotas sem ter desco!erto em que mata ou cidade, em que toca ou palácio, se escondia (esus. # tarde caa. 8 mendigo apanhou o seu !ordão, desceu pelo duro trilho, entre a urze e a rocha. # mãe retomou o seu canto mais vergada, mais a!andonada. E então o filhinho, num murm%rio mais d0!il que o roçar de uma asa, pediu à mãe que lhe trou1esse esse ra!i que amava as criancinhas, ainda as mais po!res, sarava os males ainda os mais antigos. # mãe apertou a ca!eça esguedelhada = 8h filho e como queres que te dei1e, e me meta aos caminhos à procura do ra!i da Falileia> 8!ed 0 rico e tem servos, e de!alde !uscaram (esus, por areais e colinas, desde &orazim at0 ao pas de $oa!. 0timo 0 forte e tem soldados, e de!alde correram por (esus, desde o H0!ron at0 ao mar4 &omo queres que te dei1e4 (esus anda por muito longe e a nossa dor mora conosco, dentro destas paredes, e dentro delas nos prende. E mesmo que o encontrasse, como convenceria eu o ra!i tão desejado, por quem ricos e fortes suspiram, a que descesse atrav0s das cidades at0 este ermo, para sarar um entrevadinho tão po!re, so!re en1erga tão rota> # criança, com duas longas lágrimas na face magrinha, murmurou = 8h mãe4 (esus ama todos os pequenos. E eu ainda tão pequeno, e com um mal tão pesado, e que tanto queria sarar4 E a mãe, em soluços = 8h meu filho, como te posso dei1ar> ?ongas são as estradas da Falileia, e curta a piedade dos homens. 7ão rota, tão trIpega, tão 13
triste, at0 os cães me ladrariam da porta dos casais. Ningu0m atenderia o meu recado, e me apontaria a morada do doce ra!i. 8h filho4 7alvez (esus morresse... Nem mesmo os ricos e os fortes o encontram. 8 &0u o trou1e, o &0u o levou. E com ele para sempre morreu a esperança dos tristes. 6e entre os negros trapos, erguendo as suas po!res mãozinhas que tremiam, a criança murmurou = $ãe, eu queria ver (esus... E logo, a!rindo devagar a porta e sorrindo, (esus disse à criança = #qui estou.
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O PRESÉPIO D. JOÃO DA CÂMARA Havia quase um ano que estava na loja, mercearia num !airro escuro, em que mal entrava de esguelha, como espreitando a medo, um raio de sol, entre as casarias muito altas da rua tortuosa. &om doze anos, que saudades tinha da aldeia, da famlia, dos antigos companheiros de escola, dos cães amigos que ladravam de noite a vigiar a casa4 7udo lá tão longe4 #h4 e ele sou!esse4... Gois nem uma lágrima lhe viera anuviar o %ltimo adeus, quando a dilig2ncia dera volta na estrada e ele vira sumirem"se os choupos da ri!eira e o lenço que mão saudosa sacudia no alto do ca!eço. que o deslum!rava a ideia de ?is!oa, de que tantas maravilhas grandes lhe contavam. #inda agora partia, e já se via de volta na aldeia, de rel)gio e cadeia de ouro, a falar de alto, a pu1ar o !igode, a dar enchente, como o (anuário, que lhe arranjara o lugar. &om o seu e1amezinho de instrução primária, marçano de uma tenda... Não, que os pais não o queriam para cavador. 7inham sido consultados o mestre"escola, o prior, o senhor Dreitas, lavrador muito importante que arrastava tudo nas eleiç-es, o &ust)dio, velhote de muito !om conselho, e todos se tinham mostrado de acordo não havia como ?is!oa para fazer um homem. Era ver o (anuário que tinha casado com a vi%va do patrão. # loja era de um cunhado dele, !om homem, áspero mas !om homem. 8s olhos !ai1os do $anuelzito, fitos no chão, viam no tijolo resplandecer aur0olas, que giravam como o fogo de vistas pelas festas. #h estava, havia quase um ano e no desvão da escada, onde às dez horas o mandavam deitar, a morrer de calor no *erão, no @nverno a morrer de frio, punha" se a rever os campos e a casa dei1ados sem as lágrimas, que lhe corriam agora em grossos fios pelas faces. 8s primeiros dias tinham passado muito lentos. # conselho do (anuário, um !iscoito ou outro da mão papuda e oleosa do merceeiro tinham"no ajudado na tarefa. #ssim 0 que ele havia de ser homem, um
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dia. $as o patrão mostrava maior pressa. Gai, mãe e mestre"escola nunca lhe tinham !atido. #treveu"se uma vez a declará" lo. Doi pior. &hegou o *erão. #s festas de ão (oão e ão Gedro aumentaram"lhe a tristeza. 'eviu nesses dias mais intensamente a alegria da aldeia, os !ailes à noite em volta da fogueira, a ida à fonte pela manhã, o sino a tocar à missa, e ele a pensar que, quando fosse crescido, havia de ter uma namorada por quem queimasse uma alcachofra, a quem cantasse umas quadras falando de estrelas e de flores. # !ulha nas ruas, nessas noites, não o dei1ara dormir. &ada !om!a era uma pancada no coração. Jm sol"e"d) que passou tocando arrancou"lhe lágrimas de imensa saudade. Gelos antos, com a melancolia do tempo, ainda foi pior. 6epois veio o @nverno, começaram os dias de chuva. 8 mau tempo irritava o patrão, porque lhe afugentava fregueses. Na loja, com recantos muito negros, acendiam"se muito cedo os candeeiros, e o $anuelzito tinha pena da som!ra em que se acolhia com maior amor. Gasmava os olhos, fugia com o pensamento para muito longe. = #corda, ralaço4 = gritava"lhe o patrão. Estava a chegar o Natal. Bue lindo era o Natal lá na aldeia4 #ndavam na rua a a!rir um cano quase ningu0m ali passava os passeios eram cheios de lama. 8 patrão andava furioso. Então o pequeno teve uma ideia. PPP ?em!rou"se de fazer muito misteriosamente um pres0pio. 8 segredo em que havia de tra!alhar mais o animava na tarefa. 7odos os dias, muito a medo, enquanto o patrão almoçava ou saa da loja algum instante, vinha à porta, se não havia fregu2s a servir, espreitava, corria, apanhava um nadinha de !arro nas escavaç-es do cano. Escondia"o, e de!ai1o do !alcão, quase às apalpadelas, ia fazendo as figurinhas.
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#ssim modelou o menino (esus, que deitou num !erço de cai1a de f)sforos, Nossa enhora de mãos postas, ão (os0 de grandes !ar!as, os tr2s 'eis $agos a cavalo, e os pastores, um a tocar gaita de foles, outro com um cordeirinho às costas, e uma mulher com uma !ilha. Não se pareceriam lá muito mas ele deu provas de que sa!ia pu1ar pela imaginação. empre lhe faltava alguma coisa. Havia pro!lemas difceis de resolver. Jm dia, engra1ando as !otas do patrão, lem!rou"se de engra1ar um dos reis, e pIs"lhe depois umas !olinhas !rancas, de papel a fingir os olhos. #os anjos fez asas com as penas de uma galinha que depenou para um jantar de festa que não comeu. $oeu vidro para fingir as águas do rio, e no papel de em!rulho recortou um moinho que s) havia de armar à %ltima hora. ?evou nisso parte de Novem!ro e 6ezem!ro todo, at0 ao Natal. Escondia os materiais de!ai1o da en1erga e, de vez em quando, revia"se na o!ra. 8 que mais o encantava era o menino (esus, com a ca!eça do tamanho de um grão de milho, com !uraquinhos a fingirem olhos, ouvidos, nariz e !oca. 7inha mãos com cinco dedos riscados a canivete e dois pezinhos que ele achava um encanto. &om tiras de papel azul havia de fazer o c0u e, como o não tinha dourado onde recortasse a estrela, fez em papel !ranco uma meia ?ua vinha quase a dar na mesma #quele m2s passou correndo. Era a v0spera do Natal. #s dez e meia, o patrão mandou"o deitar e saiu. Bue alegria estar s)4 Não lhe dei1avam luz mas que importava> /s escuras armaria o pres0pio. E logo começou. Enrolou o moinho, pIs"lhe as velas esticou o papel azul que fingia o c0u e pregou nele com um alfinete a meia ?ua espalhou o vidro modo, num em volta das palhas dispIs as figurinhas, suspendeu os anjos. 6epois fez uma carreira de f)sforos de cera, que todos se tinham de acender ao mesmo tempo, num deslum!ramento, quando desse meia noite. 6eram onze e tr2s quartos. #joelhou.
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3atia"lhe o coração, que lhe parecia que deviam de ser milagrosas as figurinhas, que delas lhe viria algum !em, consolação da sua vida triste. Bue seria quando ele iluminasse o desvão da escada e os santinhos se pusessem todos a luzir quase tanto como os verdadeiros> 'ezava"lhes... 'ezava"lhes... /quela hora, lá na aldeia, tocavam os sinos alegres e iam ranchos contentes a caminho da igreja. ?á dentro reluzia o trono, e o sacristão muito atarefado ia, vinha... $eia noite4 #cendeu os f)sforos e ficou em!as!acado4 Nunca assim vira coisa tão perfeita. 8s anjos voavam deveras, os cavalos dos reis galopavam, o rio corria, as velas giravam no moinho e os pontinhos do $enino (esus sorriam"lhe no rosto a ão (os0 e a Nossa enhora4 GIs"se a cantar, como lá na aldeia Andava nessas campinas, Esta noite, um querubim. 7ão enlevado cantava, que nem ouviu o patrão a!rir a porta, entrar na loja, chegar ao desvão. #cordou"o do 21tase um pontap0. = @sso... #gora larga"me fogo à escada4... *arre"me já esse li1o4 E ele, a chorar, levantou"se, foi !uscar a vassoura. 8 !ruto continuava aos pontap0s. = *á>... *á4 $as quando se deitou, encontrou na en1erga uma figurinha. #palpou"a, conheceu" a logo era a do $enino (esus. 3eijou"a muito. Gior vida levara do que ele... entiu de repente um d) muito grande do patrão, que não vira nada, nem que era tão !onito aquele $enino, com um olhar tão meigo nos seus olhinhos picados.
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AS ESTRELAS DO CEGO D. JOÃO DA CÂMARA Noite de Natal. 7erminara a missa. 'epicavam sinos e o povo descia alegre os degraus em runa da larga escadaria. # noite era cheia de estrelas, luzes do altar imenso so! o imenso dossel de veludo azul, 8 c0u muito frio parecia rir"se, a piscar os olhinhos alegres. #inda nos ecos da alta a!)!ada em !erço ressoavam os %ltimos cheios do )rgão do convento. Gela porta a!erta de par em par, onde a multidão se acotovelava à sada, vinha de dentro da igreja um perfume religioso de flores, de fumo de incenso, de cera queimada. 8 altar reluzia ao fundo, e as luzes inquietas enchiam de ziguezagues r%tilos as lentejoulas e os fios de seda nos mantos !ordados da anta Damlia e na colcha de damasco do !erço pequenino, em que o $enino (esus dormia. 7ocavam sinos, e os repiques, como foguetes, su!iam pelo ar denso da noite fria, entre a algazarra do povo, massa escura caminhando pela noite escura. # larga frontaria da igreja, comida pelo tempo, a!afada num velho tapete de musgo, so!ressaa no c0u em mancha muito negra, donde jorravam fei1es luminosos, ondas de harmonias, luz e cCnticos de triunfo. Jm pequeno desceu a escada levando um cego pela mão. @am fechar"se as portas. aam os %ltimos devotos. 8 cego era um velho corcovado, tr2mulo, com a face cheia de rugas cruzadas, como um pedaço de papel amachucado. 8s olhos sem luz voltava"os para o c0u, meneando a ca!eça constantemente, como se procurasse... o qu2> E sorria. 6ava a mão ao petizinho e descia os degraus tateando"os com o p0. = #inda mais um, avI... E outro... E outro. Dechou"se a igreja, o candeeiro da esquina mal alumiava o adro. E o cego sorria e afagava a mão do pequeno. 19
8 povo espalhou"se pelas ruas. Eram como estilhaços de alegria por toda a cidade. *inha a gente descendo pelos !ecos angulosos, pelas travessas em declive rápido. E parecia que todos levavam nQalma um pedaço de luz daquela noite em 3el0m cantada nos evangelhos, da alegria daquela m%sica ouvida no templo, quando os sinos repicaram e o coro entoou o Gloria in ecelsis4 ecelsis4 7odos falavam, todos riam, muitos cantavam. Era a ceia pronta em casa, era o dia seguinte todo ele inteirinho de descanso4 Noite de Natal4 Noite de Natal4 E eu fui por ali a!ai1o tam!0m, atrás do cego. 8 pequenito teria oito anos. ?oiro. 6e olhos azuis. 8lhava para as estrelas a rirem lá em cima. 8s olhos tinham a cor do c0u, e o que neles !rilhava tanto podia ser o refle1o das estrelas como a luz plácida da sua almazinha. &aminhavam os dois por ali a!ai1o e conversavam. # voz tr2mula do velho replicava compassadamente o pequenino. pequenino. E o que ele dizia com a sua vozita infantil, linda como um trinado, devia de soar aos ouvidos do avI ainda como um cCntico, como se um anjo daqueles, que haviam aos pastores anunciado a vinda do enhor, houvesse ficado na terra porque o cego continuava sorrindo e, ao descer pelos !ecos escuros e tortuosos, afagando a mão do netinho, fitava os olhos condenados às trevas lá em cima, lá muito em cima, donde vinha aquela luz toda, que alegrava os olhos da criança. &onversavam os dois contentes. Eu ouvia !ocadinhos do que diziam, palavras soltas, por onde, mais ou menos, reconstitua a conversação. Esperava"os em casa a mãe do pequeno, filha do cego. 8s dois levavam fome. # mulher ficara em casa fazendo a ceia. E ao velho ouvi dizer, uma ou duas vezes, gulosamente = # canja. E o pequeno
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= 6egrau, avozinho. E o cego, muito atento, vagarosamente, tateava o degrau com o p0, afagando a mão do neto, cantarolando. Gelos !ecos, pelas travessas, so! os arcos dos pátios irregulares, cheios de som!ras, disseminara"se a gente. Ramos agora s)s, n)s tr2s, naquele caminho. 8uviam"se ainda passos ao longe, ecos de vozes, uma ou outra guitarra em lojas fechadas, onde !rilhavam as frinchas das portas de quando em quando, um !ater de palmas ao guarda"noturno, passos correndo, um tinir de chaves. Jm galo cantou numa trapeira. = E tarde disse o velho. &aminhavam mais depressa agora. E eu ia andando atrás deles, sem sa!er por que, atrado talvez pela doçura do quadro, pelo encanto do grupo, pela meiguice das vozes, por ver tanta alegria onde tanta mis0ria se cuidava, tanta paz nas almas, onde tanta dor devia de supor"se. Gassei"lhes adiante. Esperei junto de um candeeiro. Bueria ver"lhes ainda uma vez os rostos. 8 cego continuava a olhar para o c0u, meneando a ca!eça. 8 pequenito ao lado, agora que na rua tinham aca!ado os tropeços, olhava para onde olhava o cego. # ca!eleira loira, toda em an0is, não lhe ca!ia dentro do chap0u e caa"lhe, revolta, pela testa, ao longo das faces pelas costas. Era lindo, lindo4 E o cego, que o não via, continuava a sorrir4 6ei1ei"os passar adiante. # rua alargava"se entre casarias irregulares. &aminhavam mais à vontade agora, mas tinham"se calado. &ulpa talvez da minha indiscrição. Daziam eco no sil2ncio da noite os nossos passos so!re a calçada, na rua deserta.
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Gararam. 8 velho !ateu cinco argoladas à porta de uma casa esguia, com grades de madeira nas janelas cheias de vasos. Gassados poucos segundos, ouviu"se a pancada violenta do trinco pu1ado com força desde lá de cima. 8 cego e o pequeno desapareceram na escuridão da escada. # porta !ateu com estrondo. 8uvi ainda o velho cantarolando, enquanto su!ia. Gouco a pouco a voz sumiu"se. Encostei o ouvido à fechadura uma !ulha de passos apagando"se, mais e mais, a cada volta da escada uma voz muito alegre = devia de ser a da mãe do pequeno rece!endo"os = palavras que não perce!i... E fechou"se lá em cima uma porta. PPP Então passei para o outro lado da rua e fiquei"me a olhar para aquela casa. Era noite de Natal, noite de festa, noite cantada pelos poetas. 7alvez as cordas da minhQalma vi!rassem ainda em unssono com os cantos daquelas vozes tão devotas, singelamente entoados por detrás das grades do coro, hinos muito simples ao 6eus $enino nascido. No c0u de imaculada pureza as estrelas vi!ravam raios de luz intensssima. Dazia frio. E eu quedava"me a olhar para aquela casa, tão po!rezinha, tão velha, tão escura, tão cheia de flores de alto a !ai1o4 Jma janela no telhado iluminou"se. &omeçava a ceia do velho. Eu reconstitua o grupo dos tr2s a mesa encostada à parede na trapeira muito !ai1a, o velho aspirando os perfumes da sopa, a terrina so!re a toalha muito !ranca, o pequeno defronte do avI, e a mulher a sorrir"lhes, ouvindo"lhes as hist)rias, o trono, o pres0pio, a missa, o canto das freiras, a vinda por ali a!ai1o a horas mortas, a minha perseguição. E o pai do pequeno> #h4 sim, esse tam!0m lá estava... Gois quem tra!alha para sustentar a alegria naquelas almas>... anta famlia4 Bue deliciosa ceia4 Bue paz tranq+ila4 Bue !oa noite de Natal4
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7anto falava o cego na canja, rua afora, pela mão do pequeno4 Buem não tem olhos, tem melhor paladar. E o pequeno como devora4 E que 0 tarde e não costuma estar de vela àquelas horas4 &omprida manhã terá na cama. (á os olhitos se lhe começam a fechar. E o pai e a mãe a rirem, contentes de os verem assim4 Bue !oa noite de Natal4 Ditara os olhos na janela, já não sa!ia dali apartá"los. 7am!0m eu agora olhava para cima, como ainda agora o pequeno para as estrelas, o cego não sei para onde. Gor que olhava o cego para o c0u> 7ornou o galo a cantar. 8uvi"o, ao longe, mais alegre, como quem já adivinha a madrugada. Há quanto tempo estava eu ali> Gor que olhava para aquela trapeira> Encaminhei"me vagarosamente para casa. Havia tantas estrelas no c0u4 &omo era linda a noite de Natal4 &omo tinha razão o pequenito dos ca!elos loiros de olhar para as estrelas4 Bue quantidade de luz4 7antas4 7antas4... 7alvez o pequeno se lhe metesse em ca!eça de contá"las4 Houve uma, quando vnhamos pela travessa a!ai1o, que passou correndo, dei1ando um rastro muito longo... Era como a estrela dos 'eis $agos. Bue luz não tinham os olhos do pequenito4 E o cego sorrindo ao p0 dele, com os olhos tene!rosos postos no c0u4 Gor qu2> E que se lhe voltavam para lá os olhos dQalma, 0 que na alma tinha ele mais luz do que o pequeno nos olhos. E vejo"os ainda a descerem pelos !ecos, o velho meneando a ca!eça, o pequenito a dar"lhe a mão = L6egrau, avozinhoM = am!os com os olhos no c0u, a estrela a correr... Bue lindas estrelas v2 o cego4
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O NATAL MINHOTO RAMALHO ORTIGÃO dia de Natal. # cidade amanheceu alegre no c0u fresco e azul. 8s carrilh-es das igrejas repicam festivamente. #s salsicharias, os restaurantes, as pastelarias, ostentam em e1posição os seus produtos mais apetitosos os grandes porcos, de couro nitidamente !ar!eado, suspensos do teto com a ca!eça para !ai1o as salsichas e os chouriços de sangue pendentes em !am!olim as ca!eças de vitela, de uma palidez linfática, rodeadas de agri-es os perus gordos como ventres de cInegos, com o papo recheado pela respectiva ca!idela as galantines marmoreadas as louras perdizes postas em pirCmide as costeletas as geleias de refle1os cor de topázio as verduras de salsa picada os grossos molhos opulentos dos espargos os !olos do Natal os fartes, os sonhos, os morgados, as filh)s, as queijadas, os christmas!"ac"s, christmas!"ac"s, os puddin#s os puddin#s,, os !om!ons glac2s. E a profusão destas e1posiç-es dá às ruas o aspeto culinário da a!undCncia, da plenitude. 8s ramalhetes de violetas, com o seu colarinho feito de duas malvas, estendem"se de todos os lados para as casas dos palet)s, e perfumam o am!iente com uma frescura orvalhada. 8s ca!azes das cam0lias cintilam como grandes esmaltes. #s lojas de !ijuterias armaram o grande pinheiro do Natal, cujas hastes desa!rocham em cartuchos de am2ndoas, em cartonagens douradas, em animais de quase todas as esp0cies recolhidas na #rca, em cabriolets cabriolets de lata, em cavalos de cartão, em palhaços vermelhos que tocam pratos, e em lindas !onecas vestidas de cetim com os seus pii$s seus pii$s,, os seus chi#noiis e chi#noiis e os seus regalos. ?is!oa inteira passeia na vasta alegria do sol. 8s homens trazem os seus em!rulhos, as mulheres levam os seus filhos pela mão. #s meninas, vestidas de novo, em grande toilette, toilette, frescas como lilases, com os seus narizinhos rosados pelo nordeste, dirigem"se ao !aile infantil, organizado no salão de um teatro por uma associação de senhoras, em favor de um esta!elecimento de !enefic2ncia. 8 piano, em alegres esfuziadas, chama à quadrilha as jovens damas de quatro anos e os pequenos cavalheiros seus pares. # árvore de Natal !raceja as dádivas encantadoras so!re o grande !aile em miniatura...
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@de, queridos amiguinhos, ide divertir"vos4 #quele que vos fala já foi em tempo = há !om tempo4 = aquilo que v)s hoje sois, e teve tam!0m a sua festa inteiramente desanuviada, a!solutamente feliz como a vossa. # %nica diferença 0 que, nessa remota idade e no o!scuro canto da provncia em que ele nasceu, a árvore do Natal era ainda uma instituição desconhecida. Era uma terra !ár!ara aquela em que este pai"avI veio à luz e que tantas vezes ele percorreu, já periclitante na imperial de tr2mulas e arrastadas dilig2ncias, já a cavalo de!ai1o de um amplo capote de ca!eç-es, já a p0, s), com um !ordão4 Ele conhecia"a nesse tempo como o seu pr)prio quarto, a essa terra tinha de cor o n%mero das covas no macadame das estradas, os !uracos dos velhos muros por onde rompiam os musgos e as madressilvas, os !rancos campanários das igrejas situadas no fundo dos vales, entre as nogueiras e os carvalhos, ao ca!o dos longos tapetes formados pela superfcie variegada dos campos de trevo. a!ia em que casais se !e!ia o melhor leite nas manhãs de *erão, e em que rios se pescavam à linha os salm-es mais sa!orosos e as mais volumosas trutas. &onstava"lhe cada manhã em que outeiros co!ertos de urze, de cardos, de ásperas moitas de tojo e de espessos fetos tinha ficado de v0spera a revoada das perdizes. &onhecia os diferentes vinhos selvagens, que se vendiam na som!ria frescura interior das ta!ernas recolhidas nos cotovelos das !rancas estradas co!ertas de sol, nos recostas das empinadas ladeiras tortuosas, e nas desem!ocaduras das longas pontes de madeira de pinho. a!ia os nomes dos a!ades. E ainda agora, depois de uma aus2ncia de !astantes anos, pensando nisso e fechando os olhos, torna em esprito a ver as viçosas várzeas, as frescas matas das terras fundas, sonoras dos murm%rios da água corrente na rega ou caindo nas levadas e nas azenhas a forte vegetação dos milhos e dos castanheiros e, acompanhados de um pequeno pastor imundo, a cavalo numa velha 0gua lãzuda, alguns poucos !ois magros de tra!alho e de fadiga atravessando lentamente o ri!eiro, mugindo com saudosa melancolia, ou a!e!erando"se inclinados e humildes na frescura da corrente. 6epois, nos terrenos altos, os pinhais, as encruzilhadas das estradas com os seus cruzeiros de granito, as cai1as das esmolas para as almas, o tosco nicho na forma de um armário de cozinha, talhado em arco, tendo em frente a sua lanterna enfumada, encanastrada num a rede de ferro e chum!ada ao alto do nicho por um gancho e, disseminados pelos caminhos recurvos e acidentados, os pequenos eirados seguros em esteios de pedra com os parapeitos pintados de vermelhão os alpendres dos ferradores, onde os pardais de!icam nos !eirais do telhado as choças co!ertas de colmo, eternamente envoltas em fumo, ao p0 das eiras em que se erguem as medas como altas ca!anas pontiagudas. 8 o!jeto do culto, da admiração, do entusiasmo, do enlevo dos pequenos do meu tempo era o velho pres0pio, tão ing2nuo, tão profundamente infantil, tão cheio de 25
coisas risonhas, pitorescas, festivas, inesperadas. Era uma grande montanha de musgo, salpicada de fontes, de cascatas, de pequenos lagos, serpenteada de estradas em ziguezagues e de ri!eiros atravessados de pontes r%sticas. Em !ai1o, num pequeno ta!ernáculo, cercado de luzes, estava o divino !am!ino, louro, papudinho, rosado como um morango, sorrindo nas palhas do seu r%stico !erço, ao !afo quente da !enigna natureza representada pela vaca tra!alhadora e pacfica e pela mulinha de olhar suave e terno. # anta Damlia contemplava em 21tase de amor o delicioso rec0m"nascido, enquanto os pastores, de joelhos, lhe ofereciam os seus presentes, as frutas, os frCng-es, o mel, os queijos frescos. # grande estrela de papel dourado, suspensa do teto por um retr)s invisvel, guiava os tr2s magos, que vinham a cavalo descendo a encosta com as suas p%rpuras nos om!ros e as suas coroas na ca!eça. $elchior trazia o ouro, 3altasar a mirra, e Faspar vinha muito !em com o seu incenso dentro de um grande perfumador de famlia, dos de queimar pelas casas a alfazema com aç%car ou as cascas secas das maçãs camoesas. #trás deles seguia a cristandade em peso, que se afigurava descendo do mais alto do monte em direção ao ta!ernáculo. Nessa imensa romagem do mais encantador anacronismo, que variedade de efeitos e de contrastes4 Bue contentamento4 Bue alegria4 Bue paz de alma4 Bue inoc2ncia4 Bue !ondade4 7udo !ailava em chulas populares, em velhas danças mouriscas, em !ailados à la moda ou à meia volta, em ing2nuas gaivotas, em finos minuetes de anquinhas e de !ico de p0 afiam!rado. 7udo ria, tudo cantava nesses deliciosos magotes de festivais romeiros de todas as idades, de todas as profiss-es, de todos os pases, de todos os tempos4 8s cegos tocando as suas sanfonas os pretos pulando uma sara!anda os galegos com a sua gaite"de"fole dançando a munem a saloia de carapuça de !ico e de saiote encarnado, trazendo o cesto com ovos o saloio com o peru, com o vitelo ou com o !acorinho às costas o aguadeiro com o seu !arril novo o ceifeiro com a sua foice e o seu fei1e de trigo o lenheiro carregando o cepo sagrado para a fogueira da $issa do Falo o pequeno sa!oiano com a sua marmota o tocador de realejo dando à manivela do seu instrumento o pastor com um !orrego ou um chi!o de!ai1o do !raço o passarinheiro com as suas esparrelas e o seu alçapão com um melro dentro a manola com o seu leque e a sua mantilha sevilhana traçada na cinta o maioral tocando a guitarra sentado no garrido al!ardão da sua mula os gitanos entoando a seguidilha numerosos re!anhos, de perus, de patos, de anhos, de 26
porcos e de ca!ritos e muitas personagens, de variegados trajos e1)ticos, tangendo pandeiros, adufes e castanhetas, como nos autos pastoris, nos col)quios e nos vilancicos, antigamente representados diante das lapinhas nas catedrais da @dade $0dia. #lguns = os mais ricos pres0pios = tinham corda interior fazendo piar passarinhos que voavam de um lado para o outro, me1iam as asas e davam !icadas nas fontes de vidros, em que caa uma água tam!0m de vidro, fingida com um cilindro que andava à roda por efeito de misterioso maquinismo. 7odas essas figuras do antigo pres0pio da minha infCncia tinham uma ing2nua alegria primitiva, patriarcal, como devia ser a de 6avid dançando na presença de aul. 6essas !oas caras de páscoas, algumas modeladas por inspirados artistas o!scuros, cuja tradição se perdeu, e1alava"se um j%!ilo comunicativo como de uma grande aleluia. Jm outro menino = não o do ta!ernáculo, que esse estava seguro ao !erço com um parafuso =, um menino maior, so!re uma toalha !ordada, era trazido em roda e rece!ia so!re os seus diminutos p0s polpudos, saudáveis, ru!enescos, a enfiada de !eijos de todas as pequenas !ocas inocentes, vermelhas, afiladas em !ico, gulosas dos refeguinhos daquele pequenino 6eus tão louro, tão manso, tão lindo4 6epois cele!rava"se a ceia, o mais solene !anquete da famlia minhota. 7inham vindo os filhos, as noras, os genros, os netos. #crescentava"se a mesa. Gunha"se a toalha grande, os talheres de cerimInia, os copos de p0, as velhas garrafas douradas. #cendiam mil luzes nos castiçais de prata. #s criadas, de roupinhas novas, iam e vinham ativamente com as rimas de pratos, contando os talheres, partindo o pão, colocando a fruta, desrolhando as garrafas. 8s que tinham chegado de longe nessa mesma noite davam a!raços, rece!iam !eijos, pediam novidades, contavam hist)rias, acidentes da viagem os caminhos estavam uns !arrocais medonhos e falavam da saraivada, da neve, do frio da noite, esfregando as mãos de satisfação por se acharem en1utos, agasalhados, confortados, quentes, na e1pectativa de uma !oa ceia, sentados no velho canap0 da famlia. E o nordeste asso!iava pelas fisgas das janelas ouvia"se ao longe !ramir o mar ou zoar a carvalheira, enquanto da cozinha, onde ardia no lar a grande fogueira, chegava num respiro t0pido o aroma do vinho quente fervido com mel, com passas de #licante e com canela. Dinalmente o !acalhau guisado, como a !randade da Grovença, dava a %ltima
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fervura, as frituras de a!)!ora"menina, as ra!anadas, as orelhas"de"a!ade tinham sado da frigideira e aca!avam de ser empilhadas em pirCmide nas travessas grandes. Jma voz dizia = Gara a mesa4 Gara a mesa4 Havia o arrastar das cadeiras, o tinir dos copos e dos talheres, o desdo!rar dos guardanapos, o fumegar da terrina. 7omava"se o caldo, !e!ia"se o primeiro copo de vinho, estava"se om!ro com om!ro, os p0s dos de um lado tocavam nos p0s do que estavam em frente. 3om aconchego4 3elo agasalho4 #s fisionomias tomavam uma e1pressão de contentamento, de plenitude. Bue dia!o4 E1igir mais seria pedir muito. 7udo o que há de mais profundo no coração do homem, o amor, a religião, a pátria, a famlia, estava tudo a reunido numa doce paz, não opulenta, mas risonhamente remediada e satisfeita. Não 0 tudo> Não 0. 8 primeiro dos convivas que tinha o sentimento dessa imperfeição era a velhinha sentada ao centro da mesa. Ela, que para n)s representava apenas a av), tinha sido tam!0m a filha, tinha sido a irmã, tinha sido a esposa, tinha sido a mãe ... No seu po!re coração, quantos lutos so!repostos, quantas saudades acumuladas4 Gor isso, enquanto os outros riam e conversavam alegremente, a mão dela emagrecida e enrugada tremia de comoção ao tocar no copo, e dos seus olhos cansados despegavam"se silenciosamente duas lágrimas, que ela em!e!ia no guardanapo enquanto a sua !oca procurava sorrir e titu!ear palavras de resignação, de conforto, de felicidade. Essas lágrimas eram como a evocação do esprito dos ausentes e do esprito dos mortos para aquele !anquete. # festa era então interrompida por sil2ncios graves, pensativos, durante os quais cada um se recolhia em si mesmo e olhava um pouco ao passado e um pouco ao futuro. 6os que se tinham sentado àquela mesa, em id2ntica noite, quantos tinham partido para não voltarem mais4 Buantas lacunas dentro dos %ltimos anos4 6entro de alguns anos mais, quantas outras4 e havia, como quase sempre sucede, um filho, um neto, um irmão ausente, era em volta da recordação dele que se agrupavam e fi1avam esses vagos cuidados dispersos. # mágoa do passado, a incerteza do futuro, aca!ava por aparecer a cada um so! a figura aventurosa do viajante intr0pido ou do tra!alhador vigoroso que cele!rava aquela noite num pas longnquo ou nas águas do mar. E esse amado ausente era o conviva que cada um sentia mais perto, a essa mesa, junto do seu coração.
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) n)s, as crianças, 0 que gozávamos nesta festa uma alegria impertur!ável e perfeita, porque não tnhamos a compreensão amarga da saudade nem as preocupaç-es incertas do futuro. Gara n)s tudo na vida tinha o caráter imutável e eterno. 8 destino aparecia"nos ridentemente fi1ado, como no musgo as alegres figuras do pres0pio. up%nhamos que seriam eternamente lisas as faces da nossa mãe, eternamente negro o !igode do nosso pai, eternamente resignada e compadecida a decr0pita figura da nossa av), toucada nas suas rendas pretas, no fundo da grande poltrona. Não tnhamos compreendido ainda todo o sentido do Natal. Não nos tinham e1plicado suficientemente que o louro $enino (esus que nos sorria no seu !erçinho, tão descuidado, tão alegre, no meio do esplendor dos crios e do perfume das violetas, era o mesmo 6eus descarnado e lvido, coroado de espinhos, alanceado no coração, pregado na cruz e e1posto no altar. 'epugnar"nos"ia acreditar, se então no"lo dissessem, que o tenro e suave !am!ino do pres0pio, cercado de amores, de cCnticos, de festas, de dádivas, de !onitos, cheio de carcias e de !eijos, teria um dia de ser um mártir, um her)i, um 6eus, mas que para isso haveriam de o perseguir como um re!elde, de o torturar como um criminoso, de o justiçar como um !andido, que ele teria de ser es!ofeteado, azorragado, trado, que rece!eria o !eijo de (udas, que seria preso entre os seus discpulos no (ardim das 8liveiras, que mandaria em!ainhar a espada de Gedro para !e!er o cálice da amargura, que seria levado de &aifás para Gilatos, que seria condenado, que lhe poriam a coroa de espinhos, que o fariam su!ir o &alvário so! o peso da cruz, que finalmente o crucificariam entre os dois ladr-es aos olhos da sua pr)pria mãe. Não, a vida não 0 uma festa permanente e im)vel, 0 uma evolução constante e rude. 8 Natal 0 a festa das lágrimas para todos aqueles para quem ele não 0 a festa da ine1peri2ncia. E, todavia, pensavam alguns que era %til não dei1ar de a cele!rar. Bue importa que o n%mero ou que o nome dos convivas varie em cada ano> Bue importa que alguns amados velhos faltem ao !anquete> Bue importa que n)s mesmos faltemos para o ano que vem na festa dos mais novos> Esta noite de alegria para as crianças será sempre de alguma saudade para os adultos. #ssim teremos a esperança terna de so!reviver, por algum tempo, na lem!rança dos que amamos = uma !oa vez ao menos, de ano a ano.
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A CONSOADA ABEL BOTELHO
7inham chegado, havia um instante, da igreja. No sil2ncio álgido da noite retinia ainda alegre o !im!alhar dos sinos. # mesa estava posta = velhos candela!ros de co!re, acesos so!re a alva toalha imaculada, e em volta de cogulo fumegando as iguarias. Na cal fendilhada da parede resplandecia, esta noite carinhosamente festoada de flores, uma grande oleografia, em retá!ulo dourado, de uma das cele!radas *irgens de $urillo, fresca, menineira, a alma toda nos olhos, e em volta pelas nuvens sua graciosa farCndola de amorinhos cor"de"rosa. 8 ar estava t0pido, em!alsamado. E no retCngulo negro das vidraças a opaca radiação da noite, !asto rasgada pelos farrapos da neve que caa, realizava visualizaç-es fantásticas, luarentos contrastes de diorama. 7oca de arrimar na cozinha, ao canto da chamin0, os guarda"chuvas pingando, largam"se as capas, descalçam"se as galochas, ruidosamente sacodem"se os vestidos enquanto de rodilhão invade a sala a tropeada cantante das crianças e erguendo"se de salto do esca!elo, a esfregar os olhos, a velha serva ?eonor, perdida de sono, resmoneia num alvio = 8ra louvado seja 6eus4 E já à mesa o !om do imeão se dirigia, direito à grande poltrona de couro. 7oma" lhe a direita sua mulher = irrepreensvel companheira de cinquenta anos =, uma pequenina e interessante nonagenária, de vagos olhos espirituais e longas mãos de cera e à esquerda senta"se"lhe a sua !oa e paciente Eug2nia, a filha mais nova, de preto, fisionomia macerada e longa, repassada toda desta austera diafanidade tranquila que 0 feita de castidade e a!stenção, de isolamento e saudade. eguia a variegada profusão de toda a mais parentela = os filhos que vieram de longe, empregados no com0rcio, na magistratura, no Foverno &ivil em *iseu um cunhado, capitão do 9S as respectivas esposas, tias, so!rinhas, primas = ao todo trinta e tantos comensais, afora a galhofeira e tur!ulenta assist2ncia das crianças, que redonditas e chilreantes se aninhavam so!re almofadas postas nas cadeiras, avançando o quei1o, cotovelos na toalha, e a!rindo para as travessas com os doces uns grandes olhos ávidos. Nos primeiros minutos, um guloso sil2ncio se intervalou, cortado apenas do discreto tinir de louças e metais. ) o velho patriarca de carinho insinuou à filha
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= Eug2nia, então4 *á de pesares hoje... E ela, com infinita tristeza = Eu não lhe dizia, pai>... E esmorecida arredava de diante de si o prato, para melhor apoiar na mesa o cotovelo, de ante!raço ao alto, e de peso o rosto afogado no lenço, a !reve trecho empapado de lágrimas. Era casada à quase sete anos. &asada com o (os0 *entura, um honrado e perfeito rapaz, vizinho seu na cidade, cuja gar!osa imagem logo os seus olhos infantes se tinham acostumado a ver inseparável dos !rinquedos. 6epois, na adolesc2ncia, a mesma comunicativa e franca li!erdade afeiçoara"lhes os coraç-es, irmanando"lhes os destinos. Dalado o casamento o rapaz era s0rio, honesto, tra!alhador, tinha !ens !astantes =, os pais da Eug2nia consentiram. Em !oa hora, merc2 de 6eus4 #o ca!o de tr2s anos de inalterável !onança conjugal, tr2s inocentes eram o vivo penhor do seu afeto. $as as coisas da vida iam mal... Gegara !rava a mol0stia nas oliveiras e nos castanheiros, o LmldioM aca!ava de lhe devastar a vinha, já os estrangeiros lhe não visitavam a adega, o LpulgãoM comia"lhe as searas. # continuarem as coisas por aquele pendor, era uma fatalidade4 = 7inha ali assim tr2s anjinhos... E o mais que viria... 7inha o!rigação de lhes dei1ar que comer4 6epois de muita hesitação, muita tormentosa luta interior, muita lágrima represada = não havia rem0dio... 6olorosamente concertou com a mulher e partiu para ?ourenço $arques. E ela, a po!re, ficou"se em casa dos pais, paralelamente morta para o e1terior, para a luz, para a alegria, arrastando, como um !urel, a sua resignada saudade, paresiada na mansidão de uma irremediável tristeza. &om uma resignaçãoA de freira, alheia por completo ao mundo, vivendo na perp0tua lem!rança do marido, na e1clusiva preocupação dos filhos, passou anos Eug2nia sem sair de casa, levando uma vida toda crepuscular, na inteira a!dicação do seu querer, colada ao dever como a lapa ao rochedo, iluminada e forte sempre a alma do alimento ázimo do Gassado, o seu fino rosto austero idealizado por uma transcendente, uma ina!alável e1pressão de confiança e de doçura... em um quei1ume, sem uma revolta, sem uma indignada ap)strofe ao 6estino, ela sofria mas esperava, esperava sempre... Dorte dessa po0tica su!missão, dessa fidelidade sem termo, essa irredutvel e santa conformidade de que a nossa provncia ainda conserva o segredo. Em!alde vinham as amigas desafiá"la Lque estava dando ca!o
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de si... Não tinha jeito nenhum... Bue faria se fosse vi%va4M Esquivava"se invariável às mais inocentes divers-es. 8uvia, ouvia tudo, num desdenhoso sil2ncio, e ao ca!o a!anava negativamente a ca!eça, cerrando as pálpe!ras. Escrevia ami%de o marido. empre cartas consoladoras, ainda era o que valia4 Gassados os dois primeiros anos, estava fazendo rapidamente fortuna. 7ivera uma hospedaria agora era já senhor de pr0dios, tomava empreitadas de construç-es, era grande acionista de uma companhia mineira. 8 imeão esfregava as mãos, contente, e e1clamava, descendo aos netos os olhos %midos = #!ençoada resolução4 Eug2nia, por0m, nas suas cartas, e1tensos e adoráveis !reviários de coisas de famlia = a sa%de dos pais, a saudade que a ralava, os progressos, as graças, as doenças dos filhinhos =, passava sempre de alto, num leve roçagar de desd0m, pela questão de interesses, e invariavelmente terminava com esta frase = Buando te tornarei eu a ver>... Jltimamente anunciara ele uma pr)1ima vinda à metr)pole = para matar saudades, para revigorar a sa%de. 6izia o paquete em que vinha, designava o dia da partida. Doi então na modesta casa do rossio de Ginhel uma alegria doida... Não se falava noutra coisa aos quatro ventos da cidade se confiou a consoladora notcia. 6ia por dia com alvoroço se contava o tempo de viagem do vapor. ?iam"se com avidez no 0culo os telegramas martimos, a ver quando davam conta das sucessivas estaç-es da sua rota. em entender nada de geografia, arranjou no entanto Eug2nia um mapa, e a, de olhos %midos, como de instinto ia seguindo o progressivo e moroso avançar do dolo da sua alma. Dez roupitas novas aos pequenos, para aparecerem ao pai. 6ava repetidas aç-es de graças ao &0u o seu entusiasmo, a sua f0, o seu amor não conheciam limites. Gela mais feliz das coincid2ncias, acontecia que o seu (os0 devia ter desem!arcado na v0spera em ?is!oa, e chegaria a casa portanto e1atamente naquela mesma noite de Natal4 Eug2nia queria de força ir, com os filhos, esperá"lo a!ai1o, à estação, a *ila Dranca das Naves. Entretanto, frustrou"lhe a resolução a inclem2ncia do tempo. # famlia opIs"se. = empre eram 9: quilImetros de mau caminho, desa!rigado, nvio... E a chuva, o vento, a neve... Jma imprud2ncia4 eria o mesmo (os0 o primeiro a censurar... = 'esignou"se portanto a ficar. $andaram"lhe à estação a melhor alimária de cavalaria que havia na terra, a mula do senhor a!ade, cedida com a mais pronta decisão e para o esprito inquieto, para a alma ansiosa
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de Eug2nia se foram então fechando interminavelmente as horas. 'epercutia"lhe doloroso o !ater da p2ndula no pulsar do coração, e o seu adorado marido não vinha4 Gor fim, perdera já por completo a esperança. E agora à mesa perante a ing2nua e comunicativa alegria do momento, a dolorida tristeza da sua alma cerrava"se cada vez mais intensa e mais profunda. PPP Entretanto, continuava meigamente o pai a querer animá"la = que o vapor não entraria a !arra ontem, filha... @sso que admira, com o mau tempo que faz>... = ei lá o que foi4 = isto. Não podia ser outra coisa... e tivesse entrado, !em v2s... 8 com!oio passa em *ila Dranca às :... 6epois, pra cima, a mula do senhor a!ade desunha !em... ão tr2s horas da estação aqui. = 8ra4 Nem que viesse a p0... = corro!orou o capitão = já estava farto de cá estar4 = 7udo isto 0 assim, tudo muito !elo... = redarguiu, apreensiva, Eug2nia = mas 0 que eu não faço senão pensar... = E de repente, depois de uma hesitação, com ar aflito = #i, 6eus do &0u4 'eceio muito que lhe tenha sucedido alguma coisa... = Então porqu2>... = interrogou mansamente, com uma !ondosa doçura incr0dula, do outro lado do imeão, a espiritual velhinha. = 8ra, a mãezinha !em sa!e... #s mulas diz que são amaldiçoadas. #ntes queria que lhe tivessem mandado outro animal4 Gorque não pediram ao m0dico> = Está sempre a precisar... = aclarou o pai. = @sso são hist)rias4 = Não são tal4 = insistiu Eug2nia com vigor. = No Gres0pio a vaca chegava palhinhas ao $enino, para o agasalhar, e vai a mula comia"as. Gor isso a enhora a amaldiçoou. = verdade4 verdade4 #ssim diz a mestra... = aqui acudiu com interesse o filho mais velho, o (osezito, a!rindo em claras convicç-es os olhos. 33
= Gois sim, filha... = insistia com amor o velho a derivar = mas come... = Não tenho vontade... Estes !olos de !acalhau.., estão )timos4 = # mim amargavam"me como piorno4 E o !om do pai, largando a travessa, desistia. = *alha"te 6eus4 = E, sempre no empenho de espertar a animação, arredando daquela festa as som!ras, agora interrogava o neto = Então que hist)rias foram essas que te ensinou a mestra> = im senhor4 = acudiu pronta a criança, com o mesmo tom de convicção escampe. = ei essa hist)ria toda da fugida pr) Egito. #inda há mais coisas... #o atravessar a !urrinha um tremoçal, quase seco, as ervas faziam muito !arulho, dando sinal aos perseguidores... E vai a enhora amaldiçoou"as tam!0m. = $eu anjinho4 = e1clamou com ternura a av) desvanecida. = E tam!0m está amaldiçoada a perdiz = continuou muito s0rio o rapaz. = ) a pena... = &onta lá... = disse"lhe a mãe, momentaneamente distrada. = Doi assim... Buando Nossa enhora fugia, um !ando de perdizes, levantando"se" lhe na frente, assustadas, espantou"lhe a !urrinha e deu sinal ao inimigo. *ai a enhora e1clamou L$alditas sejais4M ão (os0 perguntou LGor inteiro, carne e tudo>M E a *irgem respondeu LNão, coitadas4 # carne, não... ) as penas.M #plaudiram todos, encantados, o pequenino narrador, cujos lá!ios de cereja a mãe comia de !eijos. 6e s%!ito = que estranho estrupido 0 este>4 = no pleno sossego daquela hora alta, áspero e vi!rante ressoou no pátio um significativo tropear de ferraduras. ?ogo um trinado silvo familiar, num segundo, quando, à instantCnea impulsão do espanto, mal tinham tido ainda os convivas tempo de se erguer da mesa, já o (os0 *entura invadia de rompão a sala e estrangulava a mulher de comoção nos !raços, !al!uciando entre soluços de escachoante amor = # Feneta4 # minha querida Feneta4 Enquanto, pequeninos e do!rados, todos em lágrimas, dele se apro1imavam os 34
pais, tr2mulos na ansiosa suplicação de uma carcia e aturdida, !oquia!erta, a velha ?eonor e1clamava, limpando os olhos à serguilha do avental = Garece mentira4 = $entira me parece a mim mas 0 eu estar de volta outra vez4 = !radava na veem2ncia da sua ardente emoção o rapaz. = #qui assim na nossa casa... (unto da minha mulher, dos meus filhos, dos meus velhos, dos amigos4... E ia e vinha, a um e outro lado, irrequieto, gárrulo, feliz... 6ava a!raços, palmadas, !eijos, entregava"se, dispersava"se... Num tras!ordar suave de efusão prodigalizava o melhor e o mais ntimo do seu ser, irreprimivelmente e1pandia a sua sentimentalidade represa de tantos anos. = $as que horas são estas de aparecer>... = &om efeito4 = (á ningu0m fazia conta de ti4 = Bue ralaç-es aqui iam4... = Daço ideia... 3em me lem!rou4 = disse o (os0 *entura, olhando com amor a mulher. = $as que querem>... 8 com!oio vinha atrasado, os caminhos estão p0ssimos4 = ?ouvado seja 6eus Nosso enhor4 = murmurou de mãos postas a santa velhinha, considerando o filho. = &omo tudo isto me parece !em4 = e1clamou num mpeto o rec0m"chegado, sentando"se, com todos os mais, à mesa. = Bue !ela compensação a todas as minhas penas e tra!alhos4 Bue sa%de ao corpo, que refrig0rio à alma4 = &omes> = perguntou"lhe o pai. = #i, não4 7rago uma fome de pedras... *ou já começar aqui por estes ovos verdes. = #gora tam!0m eu como4 = rompeu, sentando"se junto dele, a mulher. E reatando conversa, patriarcalmente, como se de princpio tam!0m ali estivesse, como se nada de anormal, desde o começo da ceia, se houvera ali passado, disse ainda, todo natural, o (os0
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= $as que conversa era essa então com que estavam, de maldiç-es>... Eu ainda ouvi... = Dalava"se de quando foi da fuga da nossa enhora, com ão (os0 e o $enino. 6iz que ela amaldiçoara então a mulinha do Gres0pio, os tremoços, as perdizes... = E então dos noiti!)s e das cotovias, não sa!em>... 6isse o (os0, sorrindo. = 8 qu24> = #inda me lem!ro4 = a!es mais do que n)s... = Gois então4 &ontava"me aquela nossa criadita velha, a Emlia... 8ra espera, como era>... #h4 Buando Nossa enhora ia a caminho, os !is!ilhoteiros dos noiti!)s iam na frente, a gritar LEla aqui vai4 Ela aqui vai4M E atrás as cotovias, apagando as pegadas da !urra com as patitas, diziam L$entira4 $entira4M Gor isso Nossa enhora a!ençoou estas e amaldiçoou aqueles. = verdade, mamã> = perguntou com interesse o (osezito. = 8 papa nunca mente. E a cada instante o papá, radiante, cheio de si, na amorosa incid2ncia da atenção de todos, e com os filhos pendurados em cacho dos om!ros, do colo, do pescoço, demandava a mulher com os olhos rasos de água, numa e1pressão fundente de ternura = # minha Feneta4
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A NOITE DO NATAL JOSÉ MARIA DE ANDRADE FERREIRA &orria a noite de vinte e quatro de 6ezem!ro, e dez horas aca!avam de soar na freguesia de uma aldeia da provncia do $inho. Era uma destas noites como as produz 6ezem!ro nas provncias do Norte de Gortugal serena, mas fria de regelar a geada caa a flocos em a!undCncia. 6e al0m das cumeadas da serrania, so!ranceira à aldeia, lá começa a aparecer uma claridade alvacenta, como v0u diáfano que se dilata, e que pouco a pouco envolve o !aço fulgor das estrelas. a ?ua que vai nascer. # pálida e melanc)lica rainha da noite ergue a custo a cara, anuviada pelos g0lidos vapores que o @nverno depositara nos cumes da serra. como um esprito a0reo de 8ssian, percorrendo em nveas vestes as montanhas de $orven. Buão su!lime 0 o nascer da ?ua, quando a noite já vai adiantada4 nessa hora de tranquilidade profunda e meditação solene, que a alma, animada por essa centelha que ao mundo desferiu a 6ivindade = a poesia, solta voos temerários, sendo"lhe estreita a imensidade do espaço para dar largas aos pensamentos que inspira o astro melanc)lico da noite. ereno e modesto planeta, quanto simpatizo contigo4 s o meu enlevo nas !elas noites estivas, em que !rilhas no nosso tão po0tico hemisf0rio, desferindo um olhar cheio de mist0rios. em o querer, pelo teu aspeto acho"me em!evecido, sem de ti desfitar. 8lhando"te, minha alma parece desprender"se das suas ligaç-es terrenas e voar pelo espaço, engolfando"se na deslum!rante c)pia de maravilhas, que o sil2ncio impertur!ável da noite nos patenteia, e que tu, como um facho ine1tinguvel que luz entre o homem e 6eus, iluminas e esclareces4 7u 0s como um fanal misterioso, que, nas horas em que tudo jaz adormecido, fazes resplandecer as páginas do livro da sa!edoria eterna = a natureza4... 8 nordeste começara de soprar rijo, varrendo com as suas asas da amplidão do espaço os t2nues nevoeiros que a noite acumulara e açoitando em rajadas a encosta da montanha, envergava os pinheirais, que, erguidos na lom!ada das colinas, se projetavam no horizonte como fantasmas negros que, ao som do vento, que, geme!undo, percorria pelos vales, dançassem danças grotescas e !ár!aras.
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# noite foi alimpando, pondo"se !ela e clara com a sada da lua, que, já desassom!rada de vapores no seio da atmosfera, pura e serena, fulgurava como !roche de ouro no meio de um vasto manto de cetim. / sua claridade os o!jetos confusos e indistintos, pelas som!ras da noite, tinham"se estremado e tornado perceptveis. No pendor da serra, quase a dependurar"se por entre os ramais verde"negro dos arvoredos frondosos, começara a surgir, alvejando ao luar, a aldeia, cujo campanário, ainda havia pouco, fizera soar dez horas. Entre n)s, gente da corte, dez horas 0 apenas o começo da noite 0 a hora de dar entrada num !aile 0 a hora em que um peralta vai para o teatro 0 a hora em que se faz a a!ertura de um sarau, segundo as prescriç-es do c)digo do !om"tom 0, enfim, a hora destinada, nos ritos da tafularia, para se começar tudo o que respeita ao mundo elegante, depois que o ol dei1a de nos iluminar. $as, no campo, dez horas 0 uma hora adiantada 0 a hora em que um honrado e positivo lavrador tem já dormido o seu sono, e muito !em estirado porque os ha!itantes do campo, como lapInios e pouco ilustrados que são = coitados4 = preferem a luz de um !elo sol, que os ilumine e lhes d2 vigor e energia, à luz artificial de alguns resplandecentes lustres de gás e por isso se deitam ao anoitecer, e erguem"se com a aurora, gozando do ine1plicável espetáculo do acordar da natureza. ão gostos. Gois fique cada qual com o seu, que eu, apesar das pinturas dos poetas e das descriç-es lisonjeiras da gente da provncia, nunca morri de amores por madrugar. Grefiro antes que o sol me veja erguer a mim, do que eu o veja erguer a ele. Há nisto talvez at0 descortesia para com o rei dos astros mas que querem> Jma madrugada, acompanhada do seu cortejo de gelos e calafrios, foi sempre para mim mais assunto de muito !ocejo e espreguiçamento, do que de encantadoras e atrativas seduç-es. 8 mau gosto 0 de certo da minha parte mas antes assim. uporte"se ainda mesmo a reputação de sensa!orão, contanto que não se troque uma cama, fofa e quente, por uma madrugada fria e áspera. No campo, como amos dizendo, dez horas, que são horas de tudo jazer já adormecido, nesta noite, por0m, parecia ter e1ceção, a atentar !em na nossa aldeia, por cujas fisgas das portas e janelas de algumas ha!itaç-es, !ru1uleavam luzes, como pirilampos fulgurando num !rejo, ouvindo"se, interrompido e intermitente de vez em quando, o rudo confuso de um vozear alegre, como cantares, ao que parece, de gente que festejava. E alegrava"se, sim porque esta era uma das noites de e1ceção por e1cel2ncia para aquelas !oas gentes esta era a noite de
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pela duod0cima !adalada do sino da freguesia, para envergarem capotes e gi!-es, e porem"se a caminho para a igreja. 6e repente o sussurro de vozes, que era trazido ou levado pelas esfuziadas do vento que asso!iava pelos estevais, do!rando as piteiras dos valados, foi cortado pelos latidos agudos de um cão, o qual parecia estar dentro de uma casa de melhor apar2ncia, que ficava afastada da aldeia, para a !ai1a da serra. 8s latidos do cão vinham com efeito do interior desta casa e o motivo parecia a apro1imação de um vulto negro, como de homem em!uçado, que sara detrás de um grupo de choupos, e se acercara da porta da casa, como pondo"se à escuta. 8 ladrar do cão ao princpio não atraiu o reparo da gente que lá dentro andava acesa em festas mas tanto que este avançou à porta, raspando nela, como que entrevendo o vulto que estava de fora, que uma voz de homem !radou de dentro = T Drancisco, v2 porque ladra aquele cão. #o soar da voz, o em!uçado desaferrou da porta, e correu a esconder"se com os choupos. # porta a!riu"se e um homem, tendo mão num formidável rafeiro, que, sacudindo a cauda, tudo era querer partir para o lado onde o faro lhe denunciava o estranho, apareceu, deitando a ca!eça de fora. = 8ra o que há de ser4 = diz o rapaz = não 0 nada 0 o 6iamante, que sentiu !ulir a porta com o vento, e por isso ladrou. = Bual carapuça4 = e1clamou o outro homem de dentro. = e ele ladra, 0 porque anda por a gente. 8 6iamante não se engana assim. #nda gente, e gente a quem ele tem gana essa tam!0m eu te juro. = Eu cá não en1ergo vivalma, tio (erInimo = replicou Drancisco. = 8uço o vento que asso!ia nos valados, e mais nada. Gois olhe que a noite está clara como de dia. = verdade que !ela noite4 = e1clamou uma voz feminina, sonora e meiga. = Garece uma noite de Estio ora que nem de prop)sito se pIs assim. # esta fala, o cão soltou"se das mãos do rapaz, e voltou"se para a rec0m"chegada, que era uma camponesa, jovem e gentil, segundo da parte de fora se podia ver, e se pIs a lam!2"la e a afagá"la.
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= #comoda"te, 6iamante tens andado hoje tão inquieto4 7erá fome, talvez. *ai dar"lhe de comer, Drancisco, anda = disse ela desenvencilhando"se do cão, e indo para dentro. Neste comenos, os choupos tremeram, e 6iamante, pilhando Drancisco desaperce!ido, avançou ladrando com a f%ria de um leão. Nisto as árvores !uliram mais, e uma pancada surda, como de arma que erra fogo, fez"se ouvir. = Bue 0 isso>... Doge, 6iamante, que te matam4 = grita o jovem, correndo a desviar o cão. # esta e1clamação do criado, toda a gente da casa chegou à porta, alvoroçada. = Buem 0 que me quer matar o cão> = !radou um homem que vinha à frente, adiantando"se, e !randindo um varapau com uma choupa numa das pontas. # resposta foi o lampejo de escorva que ardeu, sem disparar a arma, entre os choupos. = 7ira"te, #ntInio, que foi espingarda que dispararam dali = grita a camponesa, que já tinha aparecido, empecendo ao homem do varapau de prosseguir na direção das árvores mas este, desem!araçando"se dela, replicou"lhe com !randura = Não tenhas medo, Emlia. empre quero ver quem 0 o gatuno, que assim me quer matar o cão hei de lhe arrancar as !ar!as, uma por uma4 8 homem que assim falava era um rapaz de vinte e oito anos para trinta alto, ro!usto e !em posto. #inda que não fosse !elo, o seu todo era simpático, e tinha umas maneiras em que se revelava a franqueza aldeã, espontCnea e incuidosa, mas acompanhada da resolução do homem decidido. &om ele tinham sado mais alguns rapazes camponeses, uns poucos de lapInios, que eram os jovens da aldeia, e um homem já de idade avançada. = Bue fazes> = gritou este, dirigindo"se a #ntInio. = Não te arrisques assim. a!e"se lá o que será4 = 8ra o que há de ser> = retrucou o jovem aldeão. = #lgum ratonei.ro, que está à espreita que vamos para a freguesia, para nos entrar em casa. = 6izes !em, nem 0 outra coisa = acrescenta o velho, dando alguns passos para o meio da viela. = im, mas dei1em"se estar = insistiu Emlia, segurando pelo !raço #ntInio. 40
= Bual4 Hei de ver"lhe a cara = ateimou este, adiantando"se para os choupos e mais alguns alde-es. $as ainda não tinha chegado pr)1imo, quando uma som!ra se escoou por detrás das árvores, e se viu distintamente o vulto de um homem de capote escuro saltar o valado com a ligeireza de um gamo, e desaparecer s%!ito. = # ele, 6iamante, vai"te a ele4 = !rada #ntInio, arremessando o cajado ao vulto que fugia, e correndo ap)s ele com a impetuosidade de um tigre. 8 cão, enraivado à voz do dono, correu com a velocidade do raio, galgando o valado de um pulo. Buase todos os homens avançaram para o lado por onde fora #ntInio, e em !reve desapareceram tam!0m. = *ão"me !uscar a minha caçadeira4 = !radou o velho para os jovens, que estavam espavoridos e estupefatos, enquanto que as mulheres rompiam em alaridos. = *oc2s não ouvem, gente do dia!o> *ão"me !uscar a minha espingarda, ou não> = disse o velho agastado. = #onde queres tu ir, (erInimo> 7u enlouqueceste>... 7u perdeste a ca!eça>... = grita uma velha, de voz rouquenha e gritadeira, e1cessivamente gorda, mas desem!araçada e resoluta, saindo da mesma casa, e travando com o !raço o tio (erInimo, a quem o risco da aventura estimulava ainda os !rios de rapaz. 8 empu1ão da velha, forte como a a!alroação de uma charrua dinamarquesa, deteve nos seus mpetos o tio (erInimo. = #onde quero eu ir> = replica ele. = Buero sa!er quem 0 o patife que, escondido naquelas moitas, teve a fraqueza de desfechar à queima"roupa so!re o !om do nosso #ntInio. = 8lhe, minha mãe, indo o pai armado, não tem d%vida... = ia dizendo Emlia, quando a velha, arregalando os olhos, com as faces acesas em ira e as palavras atropelando"se pela c)lera, lhe !radou num tom atroador = Bue dizes tu, tola>... 7ens medo que te !ulam no machacaz, e por isso queres meter tam!0m o pai na alhada> *ai tu. 7u não me fazes falta ele sim. Bue me dizem à rapariga4 Buer que lhe guardem o !onifrate4 Bue se defenda ele. (á tem idade para isso. E que me importa a mim o cão do #ntInio>... o que faltam são cães. E, para al0m do mais, o cão não 0 nosso. = $as 0 como se o fora, porque 0 de #ntInio, e 0 muito seu estimado = respondeu Emlia com interesse. 41
= E que tenho eu que ele o estime, ou não> = continua a velha, cada vez mais incendiada, e dispondo"se a arremeter para Emlia. = 8 caso 0 outro = atalhou (erInimo, metendo"se de permeio. = #gora não se trata de cães, nem meios cães o caso 0 mais s0rio. 7rata"se de sa!er quem foi o melro que estava posto à capa detrás dos choupos, e que depois se esgueirou lá para a que!rada da serra. Não era para matar um cão que ele ali estava. Este 0 que 0 o caso. = E verdade este 0 que 0 o caso = acudiu Emlia, fazendo coro com o pai. = erá esse o caso, senhora espevitada mas se o cão não estivesse a farejar e a arranhar na porta, já não era nada disto = retorquiu a velha, que era uma esp0cie de deputado de oposição sistemática. = Eles lá v2m4 Eles lá v2m4 = disseram os jovens que tinham ficado. Efetivamente assim era. #ntInio chegou, e os mais camponeses e criados que o tinham seguido, todos cansados e es!aforidos. = Então que era> = foi a pergunta que saiu da !oca de todos. = 8 que era>... Era um homem = respondeu #ntInio com ar taciturno = mas agora quem4... # 0 que está o !uslis. *ão lá perguntar"lho. = *ão lá perguntar"lho44... 8ra essa4 Gois não viram, indo"lhe quase na peugada>4... = e1clamou &atarina pasmada. = Bual4 = disse #ntInio com um sorriso sardInico. = Garece que ia montado no dia!o4 Gois 6iamante galga terreno, mas não foi para o seu dente pod2"lo apanhar. = E que direção tomou> = pergunta o tio (erInimo, tomado de pasmo. = #travessou as terras do moinho galgou a lom!ada da serra, e depois meteu"se na vinha do #ndr0 da &harneca. 6a por diante ningu0m mais lhe pIs a vista cm cima. @sto respondeu um campon2s, porque #ntInio estava entregue a pensamentos profundos, como que alheio do que se passava. = Está !om como não aconteceu desgraça, 6eus louvado, ainda o caso foi !em. 8ra andem, agora vamos para dentro = diz &atarina. = Garece que querem ficar 42
aqui... Não pensem mais nisso. @sso era algum larápio, ou, agora me lem!ra, talvez fosse o a!egão em que nos falou a (osefa da Horta porque, !em pensado, estarem"lhe aqui quase com as mãos em cima, e ningu0m lhe poder ser !om, manda o!ra do demo. Eu te arrenego, atanás4 = e1clamou a velha fazendo o sinal da cruz. = Então isto já 0 de mais vamos para dentro, ou não>... Garece que ficaram todos apegados ao chão. E assim era. # estranheza da aventura tinha infundido o espanto em todos. #ntInio, com os olhos pregados no chão, encostado ao varapau, e verrumando a terra com ele, parecia entregue a um pensar penoso ou, para melhor dizer, lidava para com!inar fatos que a mem)ria lhe esquivava. Jm pressentimento indecifrável lhe escurecia as ideias, povoando"lhe de imagens tristes todo o seu imaginar. 8 aparecimento do estranho acordava"lhe pensamentos confusos, mas atrav0s dos quais lhe parecia ver despontar lem!ranças, que !em amargamente lhe tinham dilacerado a alma noutra 0poca. Emlia chegara"se para ele, e mostrava que as mesmas sensaç-es a atenuavam estava triste e pensativa como ele. 8 tio (erInimo tam!0m pensava, mas o seu pensamento era outro. 'efle1-es nascidas das circunstCncias singulares do acontecimento, e infludas pela superstição, feição proeminente do caráter campon2s, lhe faziam encarar o ocorrido pelo lado maravilhoso. Jm lo!isomem não se atrevia a afirmar que fosse o desconhecido, porque a configuração era humana, e não assentava as quatro patas no chão mas coisa !oa não a reputava ele de certo. #ssim estavam todos, quando um sonoro repique de sinos, travando os ares e repercutindo"se em todos os montes e vales vizinhos, acordou os ecos da serrania, e arrancou os vales desta esp0cie de letargo. = #i4 Bue já toca à missa, e n)s aqui4 = e1clamou &atarina, saltando como tocada da pilha voltaica. = verdade = dizem todos em chusma. = 7oca para a missa, rapaziada = !radou (erInimo. = 6ei1emos os maus pensamentos. Não nos lem!remos mais disto. 8 que for soará. #nda, #ntInio pareces uma estátua. = Eu cá não vou à missa = resmungou #ntInio.
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= Bu2>4... 7u não vais à missa>... 8ra essa tinha que ver. (á para a freguesia, meu pachola4 = !rada &atarina dando"lhe uma palmada nas costas, capaz de fazer aluir uma torre. = 8ra era o que faltava, se tu não ias à missa do Falo4 *ai"te da, tolo, que estás a parafusar> Gareces"me um piegas. (á a ningu0m lem!ra tal coisa, e ainda tu estás com os olhos cravados no chão, que pareces um estafermo. #nda, vamos da. = #nda, #ntInio, disse Emlia em tom meigo. Então não queres ir conosco à missa do galo> = Gois vamos lá = respondeu enfim ele, que a esta voz pareceu desagarrar"se do seu ruminar. = 7oca a aprontar tudo, rapazes, para irmos para a missa4 = grita o tio (erInimo o que foi respondido pela frase geral = *amos para a missa. 7oda a famlia entrou para dentro da casa, e depois de alguns momentos saram todos, mas já amantalhados e encapotados, e tomaram o caminho da freguesia. = Decha !em a porta = disse &atarina a um dos jovens que dava volta à chave, visto que temos quem nos ronde a casa. 8 rancho alongou"se. #s vozes, em práticas festivas, por entre as quais surdiam as gargalhadas esganiçadas e estridentes das raparigas, foram ressoando ao longe por algum tempo, dei1ando de se distinguir, e formando por %ltimo um alarido confuso, que se perdia ou multiplicava à proporção das anfractuosidades da encosta que iam correndo. Em !reve não se ouviu já senão o som surdo e compassado dos tamancos dos jovens nas calçadas das quelhas q uelhas da aldeia este mesmo rudo e1tinguiu"se pouco a pouco mas foi su!stitudo por outro, semelhante à restolhada que fazem as folhas secas pisadas. Eram passos de algu0m que se apro1imava cauteloso. 8 vulto negro do em!uçado apareceu de novo mas desta vez vinha da traseira da casa e cosendo"se com a parede dela, tomou tam!0m o caminho da freguesia, por0m sempre esquivando"se, retraindo"se ou cosendo"se com a som!ra, at0 que
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desapareceu de todo. PPP # missa do Falo 0 uma das !oas instituiç-es religiosas do catolicismo, !em como todas as instituiç-es que são propriamente nacionais, e em que o povo pode tomar o seu quinhão de alegria, sem sair do seu verdadeiro caráter. ão estas festividades o relevo, ou esmalte da mon)tona vida das classes la!oriosas 0 por elas que o homem do povo mede os horizontes da sua e1ist2ncia, que marca os captulos de ventura da sua hist)ria ntima, os quais firma e consagra com as afeiç-es sinceras da sua alma, tomando estas 0pocas como !alizas ou marcos miliários que avultam no caminho dos anos decorridos ou por decorrer, fazendo"lhes ane1ar, aos já passados, a lem!rança penosa das suas afeiç-es, ou das saudades que o coração desflorara so!re a mem)ria de um ente querido aos futuros um desejo de !em ou uma esperança que poucas vezes a sorte enflora. Estas e outras festividades, umas originais da religião, outras derivadas de usanças e tradiç-es imemoriais, são as verdadeiras flores do mundo ideal de qualquer povo são as circunstCncias que concorrem para lhe dar um caráter pr)prio, uma fisionomia particular, e um aspeto distinto são as origens que lhe suscitam as crenças, as usanças e tradiç-es de que matiza, de que inspira e anima o seu viver ntimo e as suas convicç-es morais e religiosas. 6elas nascem formosas lendas, em que a poesia da superstição popular engrandece o culto religioso, firmando"o com a f0, na mem)ria dos velhos, e com o mist0rio, na imaginação juvenil. 8s há!itos e crenças do povo rece!em destes fatos, consagrados pela igreja, ou solenizados pela tradição, um distintivo, que importa conservar e perpetuar, porque nisso 0 que residem as suas feiç-es nacionais. # literatura, a verdadeira e1pressão da sociedade, na concisa frase de 3onald, !e!e nestas fontes as suas mais nativas c puras inspiraç-es. # unidade e conservação do caráter moral de um povo su!sistem nas suas convicç-es religiosas e populares. 7irai a qualquer nação as suas crenças e superstiç-es, seus usos c costumes, e vereis o que fica. Jm conjunto de homens de um viver e1c2ntrico, positivo, e !isonho, sem mundo ideal, que !rilhe e ria à fantasia, sem perspectivas de atrativo encanto que inspirem a alma e a convidem a largos voos por horizontes sem fim. eria a aridez moral, sem uma saudade, mas tam!0m sem uma esperança que, vicejante e virente, reflorisse perpetuamente voltada para o futuro dos nossos desejos.
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por estas raz-es que, se despirdes os anos das suas galas c louçanias, as 0pocas festivas se arraigardes estas das suas práticas e costumes e se, enfim, lançardes tudo no olvido, e desprezardes tais práticas e costumes, fica a e1ist2ncia social reduzida a uma s0rie de dias, insuportavelmente uniformes, inspidos, mon)tonos, estirados, apenas preenchidos de fadigas e tra!alhos, e distintos por um terremoto, por um aguaceiro ou por um eclipse. *oltemos agora à nossa aldeia. 8 repique dos sinos, que fora como toque de re!ate para a famlia do !om do nosso tio (erInimo, tivera a virtude da voz do anjo, !radando das alturas aos adormecidos pastores de 3el0m Erguei"vos, que nasceu o Dilho de 6eus. 7odos os ha!itantes da aldeia se puseram em movimento. Gor toda a parte começaram a aparecer e desaparecer luzinhas, e o rudo de fechar e a!rir portas fez"se ouvir em todas as ha!itaç-es. Em !reve os alde-es, entre risadas e festas, com a alegria e a esperança no ntimo, o sorriso nos lá!ios e o fervor no coração, se dirigiram à freguesia. Gud0ramos agora narrar mil epis)dios ocorridos, e peculiares a estas tão almejadas noites de Natal mas não o faremos. # discrição cerra"nos a !oca e a pena, mais discreta que a pr)pria discrição, pára, recusando"se à tarefa de perscrutar amores, e analisar muitas cenas de picante sainete cImico. &ontinue o mist0rio a envolver todas essas anedotas, historietas e lances, em que todos, mais ou menos, temos figurado de her)is. &alemos por interesse pr)prio. #gora tomemos o fio da narração de mais alto, para !oa intelig2ncia dela, começando por dizer quem era o tio (erInimo, e a sua famlia. 8 nosso tio (erInimo era o que se pode chamar um verdadeiro tipo dos nossos alde-es de provncia. Era um homem que tinha o peito franco e a !olsa descerrada para todos que s) via caras e não coraç-es que acreditava nas palavras sem descortinar interiores. $as sentido com ele em não lhe pregar a primeira, que então ia tudo em vaza"!arris, e não lhe pregavam a segunda porque ainda que lhe fossem depois pregar evangelhos, era malhar em ferro frio, pois que ele seguia o adágio cesteiro que faz um cesto, faz um cento. Na sua juventude, o tio (erInimo fora moleiro, porque a perda dos seus pais, sendo ainda pequeno, o o!rigou a tomar este rumo por0m, pela morte do padrinho, que era o lar que ele no presente possua e com quem ha!itava, ficaram"lhe umas vinhas e umas terras de pão, que se estendiam por toda a serra do lado, que entestava o nascente. (á se v2 que senhor de tão rica propriedade, o nosso tio (erInimo tratou de se esta!elecer e de tomar estado. Efetivamente fez"se lavrador, e chegou em pouco a ser o mais a!astado do stio. Buanto a estado, (erInimo já 46
andava de amores, havia tempo, com &atarina, filha de um carpinteiro de carros da aldeia o que não era !em olhado pelo pai da rapariga, que não queria que a sua &atarina casasse com um rapaz de mulas, como ele chamava a (erInimo. 7odavia tanto que este, por morte do padrinho, tomou posse dos !ens, o neg)cio mudou de face, e o rapaz de mulas começou a ser tratado com ur!anidade pelo futuro sogro. Em fim, o casamento efetuou"se e depois de dois anos, o amor e esperanças dos dois esposos foram coroados pelo nascimento de uma filha, a quem puseram o nome de Emlia, por ser o da mãe de &atarina, sendo padrinho de !atismo o padre da aldeia. Emlia logo desde criança foi o enlevo do seu pai e conquanto sua mãe, na apar2ncia, a tratasse de rompante, ela fazia o que queria de &atarina porque &atarina tinha o terrvel defeito de estar em oposição com todos de pIr tudo a ferro e fogo na fazendo encanzinar de não suportar contrariedade de esp0cie alguma sem romper em !erreiros atroadores, realçados por um gesticular petulante e ameaçador mas ao ca!o de tudo, a po!re mulher era uma pom!a sem fel, e afadigava"se por fazer !em a todos, não querendo mal a ningu0m. 8s tempos correram, e Emlia foi crescendo em gentileza e formosura. 7odos na aldeia simpatizavam com ela os velhos viam nela um anjo de paz a indig2ncia contemplava"a como o seu esteio e a juventude adorava"a vendo nela a sua esperança enfim chegou a tanto o entusiasmo dos jovens alde-es, que lhe puseram o nome de Dlor da erra. Emlia, por0m, pagava com gratidão estas demonstraç-es ternas, mas seu peito ainda não palpitava de amor. Entre os jovens da terra, que a requestavam, havia um chamado Gedro, filho do cirurgião da aldeia, o qual mais se fazia notar pela insist2ncia dos seus e1tremos e declaraç-es e que lhe parecia impossvel que a indiferença de Emlia o compreendesse, porque se julgava com direito ao seu amor em consequ2ncia de ser filho de uma das nota!ilidades da terra. Este Gedro era um rapaz de caráter impetuoso e vingativo de um temperamento ardente e irascvel. Ele calava no fundo da alma o desprezo com que Emlia o tratava mas quem nele atentasse perce!eria, pelo torvo do seu aspeto e maneiras retradas, que naquele coração, a par de muito amor, e1istia outro sentimento, não menos forte, que não era a resignação sentimento que, à medida que o seu amor lhe era repulsado pela indiferença constante da filha de (erInimo, recrescia e se ateava de dia para dia. 8 peito de Gedro era comparável a um vulcão aguardava s) pela !oca predestinada para re!entar em e1plosão.
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Jm acontecimento veio livrar Emlia deste amante, que ela mais temia que prezava. # o!rigação em que estava a aldeia de dar um homem para o recrutamento, fez com que Gedro fosse sorteado, e que nele casse a sorte sendo por conseguinte o!rigado a ausentar"se da terra, e ir para o regimento que lhe foi destinado. Gassados dois anos, apareceu de novo na aldeia, já feito segundo sargento e sem consultar Emlia, atreveu"se a pedi"la aos seus pais. &atarina, deslum!rada pelo posto do jovem militar, esteve quase tentada a dar o seu assentimento mas (erInimo quis que a sua filha fosse ouvida, visto que o neg)cio lhe dizia diretamente respeito esta recusou imediatamente. 8 novo militar, respirando mais raiva do que amor, despediu"se da famlia e apertando a mão de Emlia, disse"lhe com um acento terrvel estas palavras, que sempre lhe ficaram gravadas na mem)ria Emlia, pensa !em quanto pode um amor desprezado e fica certa que Gedro, assim como te sou!e amar, tam!0m sa!erá vingar"se. #ssim iam as coisas, quando aconteceu morrer um irmão a (erInimo na provncia da 3eira. Este irmão era um lavrador a!astado e solteiro, mas que tinha um rapaz na sua companhia, que criara de pequeno, e a quem queria como a um filho. #s más"lnguas asseveravam que ele verdadeiramente o era, o que n)s não sa!emos ao certo o que sa!emos 0 que o !om velho o chamou à hora da sua morte, e lhe disse = #ntInio = que assim se chamava o rapaz =, tanto que eu feche os olhos, trata de pIr tudo que me pertence em arranjo e depois irás procurar meu irmão (erInimo, que tu aqui já viste por várias vezes, e lhe entregarás um maço de pap0is, que está dentro daquele !ufete, e esta carta. 8 meu irmão 0 um homem honrado tu tens sido sempre !om rapaz creio que não hás de ficar mal com ele. No dia seguinte o !om do homem morreu e #ntInio, depois de chorar sinceramente a sua morte, fez as suas disposiç-es, e pIs"se a caminho para a aldeia do tio (erInimo, ao qual se apresentou. Este rece!eu #ntInio como o seu !om natural lho pedia e tendo mutuamente lamentado, um a perda de um irmão, outro a de um homem de quem rece!era os e1tremos de pai, (erInimo leu a carta e os restantes pap0is, dizendo depois = E a ideia que ele sempre teve ela não 0 má o caso está que não fique s) em desejos4 = E porque há de ficar s) em desejos, tio (erInimo> = pergunta #ntInio, sem sa!er de que se tratava = se 0 uma ideia !oa, e 0, para al0m do mais, do seu irmão, que nos há de empecer de a levar avante> 48
= 8 tempo te dará a resposta, meu #ntInio =, volveu (erInimo. = Gor enquanto contenta"te de sa!er que ficas na nossa companhia, que não podes ficar melhor, porque neste particular não hás de sentir a falta do meu irmão. #ntInio, que efetivamente era um !om rapaz, esteve por tudo e em !reve, pelas suas qualidades estimáveis, granjeou a estima de toda a famlia. 7odavia, #ntInio, decorrido tempo, começou a andar de modo preocupado e ca!is!ai1o. 7odos o estranhavam ele que era tão jovial e alegre que sempre fora o primeiro nas danças da aldeia, e o mais afamado improvisador ao desafio4 E para que lhe havia de dar> Gara andar desviado da mais gente, como ovelha tresmalhada ou para se ir sentar ao p0 do poço que estava junto do moinho do tio (erInimo, e a levar horas esquecidas a pensar, de olhos fitos num rosal, para onde Emlia, ao pIr"do"sol, costumava ir refocilar da lida do dia. Jma tarde, em que #ntInio estava no seu posto do costume, mais em!evecido do que nunca no seu pensamento profundo, foi despertado de s%!ito por uma pequena pancada no om!ro virou"se, e deu com Emlia, que com um papel na mão, entre sorrindo"se, lhe disse = Estás sempre tão pensativo, #ntInio. # modo que dantes não eras tão triste. @sso são por certo saudades da tua terra, não 0 assim> = audades> = retorquiu #ntInio, olhando"a com prazer. = 6e quem as hei de eu ter, a não ser daquele que me tratou sempre como pai> = Não essas saudades, que te trazem tão pesaroso, não são de gente morta = disse Emlia com malignidade. = Gois de outrem não as tenho = respondeu #ntInio com decisão. = Então 0 outro sentimento que te consome porque, se fosse saudade do meu tio, devia diminuir com o tempo, que tudo gasta, e não aumentar salvo se cá em casa te quisessem mal mas tu 0s tão !em tratado como eu não 0 assim> = 8h4 Gor certo. = Então 0 outro motivo. = E !em diverso. = 3em diverso>... = replica Emlia com curiosidade. = Então porque te não a!res conosco, #ntInio> Não seremos n)s capazes de te guardar um segredo, e de te 49
minorar qualquer mal, quando esteja na nossa mão> #ntInio pareceu lutar consigo mesmo entrea!riu os lá!ios, como para articular uma resposta, mas depois ficou silencioso. Emlia quase que entreviu o que nele se passava e com um tom meigo e gesto afável, lhe disse = 8ra diz, #ntInio, diz o que tens. = 8 que 0, sa!2"lo tu melhor que ningu0m = disse ele por fim, como arrancando a si uma confissão, que lhe enleava a alma. = Eu>4 = e1clama a ing2nua camponesa maravilhada. = e nunca ningu0m mo disse tu tam!0m nunca mo disseste, como o hei de eu sa!er> = 6iz"to a minha pertur!ação dizem"to os meus olhos diz"to esse pr)prio papel, que tens na mão e tenho"to eu dito muitas vezes, pelas minhas maneiras e palavras tu 0 que não me queres entender = clamou #ntInio com energia, por fim, erguendo"se. = Gois foste tu que escreveste este papel> = perguntou Emlia, sorrindo. = Dui sim = respondeu o jovem entusiasmado. = E que diz ele = atalhou uma voz, dentre o arvoredo pr)1imo, que se conheceu logo ser a do tio (erInimo, o qual apareceu de s%!ito entre os dois jovens camponeses, lançando mão do papel, e lendo o que se segue %e entre as rosas do rosal &s Em'lia, a mais $ormosa( )espiras o seu per$ume, &s como elas vi*osa. +uem dera poder colher!te J que o meu peito $erido %e tua ne#ra esquivan*a A ti - est rendido. = &áspite4 $ais claro s) água =, acrescentou (erInimo, depois de haver lido, olhando para os dois com uma e1pressão galhofeira. = Jma declaração de amor, e em verso magnfico4... Então onde achaste tu este papel, Emlia> = pergunta"lhe ele com um sorriso sardInico. 50
#ntInio e Emlia, conquanto sou!essem que (erInimo não era pessoa capaz de supor mal deles, porque a fundo conhecia a pro!idade de um e a virtude da outra, no primeiro instante ficaram estupefatos e corridos de se verem apanhados num lance inteiramente novo para eles. = Então não me respondes, Emlia> = repetiu o velho. = Estás com os olhos cravados no chão, e vermelha como uma romã. #char um papel não 0 crime. Em que lugar o achaste, diz> = Naquele rosal, onde me costumo sentar às tardes = respondeu por fim a !ela camponesa, sem erguer a vista. = E foste tu que o escreveste, #ntInio> = continuou (erInimo. = Dui, tio (erInimo = acudiu o jovem com resolução. 8 velho, a esta afirmativa, rompe numa gargalhada estrondosa os dois ficaram cheios de pasmo mas ele os tirou deste em!araço, falando assim a #ntInio = Não te disse eu, que a ideia do meu irmão havia de ser o tempo que ta revelasse, hein> = #ssim 0, tio (erInimo = respondeu aquele, quase adivinhando já. = Gois a está o tempo, que ta revelou. 8s meus filhos = continuou o !om do aldeão, estendendo"lhes a mão = voc2s estimam"se, e não hei de ser eu, nem tão" pouco &atarina, que levemos a mal isso. 8 meu irmão, que para ti foi pai = prosseguiu ele virando"se para #ntInio que o ouvia a!sorto =, assim o desejava. Ele não quis prejudicar a amizade, nem o parentesco porque, fazendo"te seu herdeiro, era eu lesado não dispondo as coisas ao teu favor, mal terminava a sua amizade para contigo, pois te dei1ava ao deus"dará assim com!inou tudo, desejando que voc2s se unissem, porque era a %nica maneira de tudo ficar em casa. Eu, por0m, 0 que não quis que isso se fizesse à virga"f0rrea porque, ainda que se diz, que o casamento e a mortalha no c0u se talha, eu cá digo que 0 uma coisa que deve ser muito da livre vontade de cada um e por isso quis espreitar primeiro a sua inclinação. #gora já sei qual 0. &onfesso que fiz um papel avesso ao meu g2nio, e feio, em estar à escuta por detrás daquelas árvores mas como foi para !om fim, não me arrependo. 8ra, pois, meus filhos, alegrem"se que !revemente serão um do outro. Emlia e #ntInio saltaram ao pescoço do velho aos a!raços, na maior efusão de ternura, a que ele correspondeu com afeto, aca!ando assim este col)quio. Em seguida foram todos dali dar parte do acontecido a &atarina, que, desta vez, não
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tez oposição. $as eis que os alde-es já v2m saindo da freguesia. Gois qu24 #ca!aria já a missa do Falo> Garece impossvel. 8u o padre a disse muito depressa, ou n)s nos demoramos e1cessivamente a esmiuçar os particulares da famlia do nosso tio (erInimo. Há de ser uma das coisas, porque efetivamente os camponeses já enchem as quelhas da aldeia, e clareiras da serra, em demanda das suas casas, ledos e ansiosos por se irem lançar à consoada que os aguarda. PPP Estamos numa vasta quadra, co!erta de telha vã, a que o pai de Emlia tem concedido a honra cumulativa de sala, antessala, cCmara, casa de jantar e saleta de espera. # um lado v2"se uma ampla lareira, com um !om fogo, onde arde, crepitando em estalidos intermitentes, o cepo"do"natal. 8 cepo"do"natal 0 uma antiga e devota usança adotada pelos povos de algumas das nossas provncias e não 0 s) nossa, porque &hristien, no seu estudo crtico so!re os costumes dos caledInios, diz que os antigos escoceses queimavam, em todas as suas festas, um grande carvalho, a que chamavam o tronco"da"festa. Em Gortugal, esta usança pratica"se da maneira seguinte. Gelas v0speras do Natal, os lavradores a!astados e devotos mandam cortar do pinheiro mais virente e ro!usto, que avulta nos seus pinheirais, um tronco, que 0 solene e festivamente trazido à sua morada, e depositado so!re a lareira. Na noite do Natal acende"se e arde at0 pela manhã, guardando"se devotamente o que escapa das chamas pois, segundo creem os !ons camponeses, tem o condão de afugentar os raios e preservar deles, e muitas outras mirficas propriedades e virtudes, como a palma !enta, as campainhas de 'oma e os crios das Endoenças. 8 cepo"do"natal, que ardia so!re a lareira do tio (erInimo, havia"o cortado #ntInio, na v0spera, de um ingente e frondoso pinheiro, que altivo campeava na assomada da serra, à som!ra do qual muitas vezes o mesmo #ntInio se sentara com a sua querida Emlia. 7inha sido o confidente dos seus amores era !em que assistisse às suas !odas. # rapaziada da aldeia havia"o ajudado a trazer at0 ali, o que para ela fora grande contentamento e a !oa tia &atarina já se achava a!ar!ada de pedidos, feitos pelas aldeãs, que queriam que o ramo milagroso se repartisse por elas, à laia de santo"lenho, porque estavam quase certas de que o tronco misterioso, que fora guarida de amores, sacrário de segredos de ternura, e agora cepo"do"natal, teria mais virtude ainda de atrair coraç-es, do que de afugentar raios.
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$as ponhamos de !anda os desejos femininos da aldeia, e continuemos o es!oço da casa do velho (erInimo. Em roda da lareira está o !om do velho, alegre em tecer apoteoses aos passados tempos, com o padre da aldeia, ancião respeitável, querido de todos pelos dotes do seu caráter verdadeiramente apost)lico, e o !oticário da terra, a quem o dono da casa havia convidado para fazerem a meia"noite com ele, como pessoas muito da sua particular estima. (unto deles v2"se 6iamante estirado, aquecendo"se ao calor da lareira, seguindo com os olhos os menores gestos dos tr2s e ora espetando as orelhas, ora açoitando as ancas com a cauda, resmoneia, olhando de lado o !oticário, criatura com quem em!irra figadalmente. 6o teto pende um lampião de ferro, projetando uma claridade vacilante e !aça em todo o recinto, que está apinhado de raparigas da aldeia, muito guapas e garridas, com as suas galas e donaires estreados de novo e da flor dos jovens alde-es, amigos de #ntInio, com quem travam práticas festivas, !rincam, chacoteiam e riem, formando diversos grupos, os quais, e1agerados pelos lampejos intermitentes da lareira, que, ora aclarando a casa toda, os diminui como pigmeus, ora, quase e1tinguindo"se os aumenta, tomam formas rasgadas, descomunais, grotescas e fantásticas. # alegria transuda nos rostos de todos mas uma alegria franca e sincera, sem retração nem em!aimentos. &ada !oca 0 um int0rprete de alma cada olhar um refle1o de sensaç-es ntimas cada palavra a manifestação singela de um pensamento puro e essas e1press-es, conquanto en0rgicas, veementes e at0 mesmo rudes, são, contudo, ing2nuas e chãs, como a e1ist2ncia simples e la!oriosa daquelas po!res gentes. Gode"se dizer que a cena que se passa em casa do tio (erInimo 0 um verdadeiro epis)dio da alegre e honrada vida campestre, com toda a sua apar2ncia tosca, simples, lhana, e primitiva, mas com o verdadeiro fundo que distingue um entretenimento desta ordem = a sinceridade, de um sarau hip)crita de gente palaciana. Enfim, 0 um quadro como nunca o produzira o pincel flamengo nas suas inspiraç-es mais naturais e animadas da vida patriarcal dos campos. 7eniers enriquecera ali a fantasia de epis)dios, que s) a e1ist2ncia, compreendida nos seus acidentes, pode revelar e Hogarth alegrara"se por poder reproduzir com a mesma vida e colorido o conjunto que lhe se oferecia à vista. Este contentamento, por0m, já de si tão !uliçoso e e1pansivo, era ainda mais atiçado pela su!stanciosa consoada, que fumegava em cima de uma grande !anca, a um canto da casa, para a qual olhava de vez em quando, com vistas ávidas, o !oticário, mais forte na gastromania do que na farmácia, e que, ao ca!o de muito pensar, tinha decidido para si que o primeiro e mais ca!al princpio higi2nico era comer !em, e so!retudo à custa alheia. &atarina, pelo seu lado, não ca!ia em si de
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contente o que ela demonstrava pela maneira, nada equvoca, de variados e infindos !erreiros, dirigidos em todos os tons, desde o mais roufenho at0 ao mais gritadeiro e espevitado, contra os maloios dos criados, que a faziam levar da !reca por desazados e !roncos. #ntInio, já esquecido da aparição do desconhecido, estava tam!0m entregue à geral festa s) Emlia lidava por simular rosto prazenteiro mas conhecia"se que dentro a ralava pesar, que ela mal podia reprimir. Emlia efetivamente tinha sado mais satisfeita do que viera da missa do Falo e o motivo parecia ser um pequeno !ilhete, que ela já por mais vezes lera furtivamente à claridade da lareira. $as isto, na confusão, não era notado, nem at0 o seria por #ntInio, a não so!revir um acidente. $ais por comprazer com as aldeãs, suas amigas, do que por !oa vontade, Emlia entretinha"se a !ailar com algumas delas no conflito do !rinquedo saltou"lhe do seio o misterioso papel, que tão preocupada a trazia as camponesas julgando ser alguma carta de #ntInio, lançaram"se so!re ele de roldão querendo"o tomar nas mãos por0m Emlia com presteza o apanhou mas não tão rápido, que não fosse vista por #ntInio, que, chegando"se a ela, lhe disse = Garece"me que saste mais alegre do que entraste. 7erás acaso algum feitiço que te dessem nesse papel> = Deitiço>4 8ra tens coisas, #ntInio4 @sto 0... ... = E Emlia !al!uciou algumas palavras, sem que atinasse com resposta. = 8lha, #ntInio = continuou ela, pu1ando"o de parte = eu devo estar certa de que confias no meu amor, não 0 assim> = E quem o duvida> = acudiu #ntInio, agastado pela estranheza da pergunta. = Gois então asseguro"te que este papel em nada pode alterar a nossa estima mas peço"te s) que o não queiras ver antes de nos rece!ermos... = #ntes de nos rece!ermos4... E porque mo não dei1as ver hoje, agora mesmo> = porfiou #ntInio, levado da singularidade da e1ig2ncia. = E dizes tu que não duvide eu de que me estimas>4 e assim fosse, não teimarias em ver o papel. E que desconfias de mim = continuou Emlia, tomando um ar pesaroso, e pregando os olhos no chão. = Não, minha Emlia não 0 desconfiança, 0 s) curiosidade, mas nem essa já tenho = acrescentou com ternura o campon2s, lançando"lhe um !raço em torno da cintura = já at0 nem quero ver esse maldito papel que foi a causa de tu te agastares comigo.
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= #gastar"me contigo> Estás a !rincar = replicou"lhe Emlia, dando"lhe a mão que apertou com afeto. = *amos para a mesa, rapazes = grita a velha &atarina, com voz de estentor = toca a consoar. #qui não há guisados, mas o que há 0 de !oa vontade. / padre" / padre" cura... 8 (erInimo4, conduz o s/ padre"cura. s/ padre"cura. #os gritos de &atarina, 6iamante empinou"se, e todos se dirigem para a mesa. (erInimo conduziu o padre e o !oticário, os quais tomaram assento e os restantes, ao seu e1emplo, fizeram o mesmo. # mesa vergava com o peso de uma taleiga ingente, atolada de chispes de porco e na!iças, que estavam que os anjos os podiam comer, segundo a frase da !oa da dona da casa ao lado campeavam dois avultados canjir-es de vinho da lavra do tio (erInimo, que ami%de se foram despejando nos canecos parciais, que giravam em contradança sucessiva pelas mãos dos convivas. Jma ampla escudela, cheia de !olos de festa, completava a guarnição e atiçava os olhares do !oticário, que já se fazia com terra de engolir a sua meia d%zia, e sepultar outra meia nas amplas algi!eiras do so!retudo. = &á os !olos de festa são o!ra de Emlia, padre"cura = disse (erInimo, oferecendo"os ao padre, e revendo"se na filha. = 6eus a a!ençoe, e faça tão feliz com #ntInio, como t2m sido seus pais, já que t2m as !oas qualidades deles = respondeu o padre, afagando a jovem camponesa, que lhe retri!uiu, !eijando"lhe a mão. #ntInio, durante a ceia, não tirara os olhos dela, mal podendo dei1ar de lhe dar reparo da sua visvel tristeza. Emlia !em o tinha perce!ido, e por isso lutava consigo por aparentar de distrada e satisfeita mas de!alde porque o pesar oculto, que lhe confrangia o peito, transpirava manifestamente no seu rosto. #ntInio conhecia a fundo a pureza daquela alma, e amava"a como se pode amar uma mulher todavia, não lhe querer ela mostrar aquele sinistro papel, estar triste e preocupada na v0spera do seu noivado, quando importava estar mais alegre do que nunca, era uma coisa cuja e1plicação ele não achava, por mais que ruminasse e ainda estaria a pensar nisto, se não fosse um !erro estrondoso da tia &atarina, que se dirigia aos alde-es nestes termos = Então, rapazes, parece que estão mais para dormir do que para comer. Dortes piscos, não !olem com os quei1os senão para dar à taramela. Eu !em sei o que voc2s querem... Não estejam a olhar para mim de !oca a!erta, que eu !em os
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entendo... #posto que querem ir na !rincadeira>4 Hein> = verdade, tia &atarina queremos, queremos = romperam todos os alde-es, erguendo"se, como maioria de cCmaras legislativas ao aceno ministerial. = Gois dancem e !rinquem com a !reca mas olhem que eu ainda quero um resto da noite para dormir, ouviram> = disse o tio (erInimo, erguendo"se da mesa, depois de ter dado graças, e haver rece!ido a !2nção, que o padre deitou a todos. 8s alde-es, acesos em alegria, saltaram para o meio da casa, e dispuseram"se a formar danças !uscando os seus pares válidos. #ntInio travou do !raço de Emlia, dizendo"lhe = @sso 0 mentira. = 8 qu2, #ntInio> = 8 que estás a pensar. = #ssim 6eus o quisesse = e1clamou ela, volvendo um olhar a #ntInio, onde se pintava a ang%stia. = $as que tens tu, Emlia> 8lha que me preocupas, ainda que eu o não queira = replica"lhe o jovem aflito. = Gois não falemos mais nisto. a!es que mais, vamos dançar = diz ela desviando adrede o fio da conversa e nisto lhe enfiou o !raço, esforçando"se por se mostrar contente e incitando"o a dançar. #ntInio quase que compelido por Emlia chegou"se com ela para junto dos alde-es, que formavam rodas, ou coreias, !ailando em crculo, de mãos dadas, as quais soltavam, tomando o !raço aos pares, e andando assim em volta, quando em chusma respondiam, cantando, a quadra, que um, a solo, havia entoado. / chegada dos noivos, uma aldeã mocetona, gentil e morena, que tentara seus reque!ros a respeito do amante de Emlia, rompeu nesta cantiga Janelas avarandadas 0on#e deitam as biqueiras1 23o h vida mais $eli4 +ue a das rapari#as solteiras. 8s camponeses andando em roda, responderam em chusma
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5 #iralda, #iraldinha, Toca, toca o #iraldar, Meia volta, uma volta Outra volta eu quero dar. # primeira quadra era uma luva lançada a terreiro Emlia logo perce!eu onde ia !ater a pedrada, e por isso respondeu O que pinheiro t3o alto, O que pinhas t3o douradas( 23o h vida mais $eli4 +ue a das mulheres casadas. # resposta foi acolhida com aplausos porque quase todos perce!iam a alusão e #ntInio, que a perce!ia melhor do que ningu0m, olhando Emlia, entoou a seguinte copla A laran-a, quando nasce, 0o#o nasce redondinha1 Também tu, quando nasceste, 0o#o $oi para ser minha... Jm uivo agudssimo, l%gu!re e prolongado, cortou a toada. Dora 6iamante que o soltara, erguendo"se de um salto de ao p0 da lareira, fitando a porta, com o p2lo hirto, os olhos em fogo, e açoitando as espáduas com a cauda, como que preparando"se a arremeter um inimigo invisvel. No mesmo instante uma voz rouca e cava, mais infernal do que humana, entoou, da parte de fora da casa, esta quadra, que parecia responder à de #ntInio O lim3o tira o $astio1 A laran-a o bem!querer Tira tu dela o sentido, +ue tua n3o pode ser. = @sto 0 demais4 = !rada #ntInio, aceso em c)lera, arremetendo ao canto da casa, onde estava o seu varapau. = (esus4 anto nome de (esus = e1clamaram as mulheres. # porta foi a!erta, e todos os homens, menos o padre e o !oticário, saram armados do que acharam à mão. #ntInio os precedia, levando"lhes grande 57
dianteira e 6iamante, espumando de sanha, pulava"lhes na frente. &atarina, enfiada, agarrou"se ao padre gritando"lhe = Em nome do !ento (esus, s/ s/ padre"cura detenha o meu (erInimo = mas o padre, desem!araçando"se dela, correu para Emlia, que !aqueava no chão, sem sentidos. = #lgum esprito para esta pequena cheirar = !rada o !oticário, dirigindo"se às aldeãs, que aterradas cercavam Emlia. = #i4 # minha filha, que está morta4 = e1clamou a tia &atarina, lançando"se so!re ela. = 8lhe que a sufoca, tia &atarina = diz"lhe o padre, separando"as. = Está s) desmaiada. 8 melhor 0 desapertá"la. = 6esapertem"lhe as roupinhas, que eu não sei de mim = diz &atarina às raparigas, que esfregavam os pulsos e as fontes a Emlia com vinagre sete"ladr-es, e lhe faziam respirar mostarda. Bue papel 0 esse> = continuou ela, pegando no misterioso !ilhete, que saltara do seio de Emlia ao desapertarem"na. = *eja lá, s/ padre"cura, que eu disso nada entendo. 8 padre tirou os )culos, e dispunha"se a l2"lo, quando um clamor de vozes, vindo da parte de fora, distraiu a atenção a todos. = Bue desgraça4 Bue desgraça4 = e1clamou o tio (erInimo entrando, e atirando consigo para cima de um !anco, e depois desatando a chorar, como uma criança. = Bue foi> = pergunta &atarina, toda cheia de espanto = que foi que aconteceu, (erInimo> = #ssassinaram o nosso #ntInio4 Jm grito de terror saiu da !oca de todos. = #ssassinaram #ntInio>4... E quem foi o assassino>4... = pergunta o padre, tomado da mais viva aflição = 8nde está> Não o prenderam> = Bual prender4 @sso 0 !om de dizer = respondeu um dos rapazes da aldeia. = *á lá prend2"lo à corrente onde ele se atirou da que!rada da serra. = $as como foi isso> = interroga o !oticário.
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= 8ra como foi> = continua o mesmo rapaz. = #ntInio saiu daqui, e adiantou"se de n)s lá em !ai1o ao voltar, quase ao p0 da encruzilhada, a 0 que me parece que foi que o meliante o assaltou, pois foi a que o encontramos estirado com a ca!eça a!erta, e o corpo feito num crivo de facadas. = anto nome de (esus4 = gritaram todos. = Bue fatalidade4 = disse o padre, erguendo as mãos ao c0u. = E como sou!eram que o malfeitor se despenhou na corrente> = continuou o padre. = Gorque 6iamante se lançou a ele com unhas e dentes = prosseguiu o aldeão. = N)s ainda o vimos, na su!ida da encosta a lutar com o matador de #ntInio mas não pudemos ser !ons para aquele patife porque, assim que nos acercamos mais, vimos cair o po!re do cão, e o homem a seguir para o lado da que!rada. 6iamante estava cosido a facadas. N)s, quando vimos tanta maldade, seguimos todos aquela alma danada dispostos a arrancar"lhe as entranhas pela !oca, ainda que fosse o demo em pessoa mas ele tirou"nos este tra!alho porque, ao chegar à que!rada, lançou"se à corrente... Jma risada esganiçada, estridente, nervosa e aguda, interrompeu o aldeão. Era Emlia que, voltando a si, entreouvira a narração da morte de #ntInio e que, desvairada pelos terrveis acontecimentos daquela noite, soltara aquela gargalhada. 7odos espavoridos e pasmados a rodearam. = Doste tu4 = clama ela, pálida, convulsa, e enviesando os olhos. = Doste tu, malvado, que o mataste> E porqu2>4... Gorque sempre te tive )dio... Tdio4 im, )dio, e muito )dio4... 8 meu coração já o adivinhava... $as porque não avisei eu #ntInio>4... 7u já me tinhas dito neste papel que o havias de matar... 8h4 Neste papel, que tu me entregaste, por entre o tumulto, ao sair da freguesia4... E eu aceitei"o4... (ulgando que era #ntInio, que me apertava a mão4... $as ele ali está4... Está ali a devorar"me com os olhos4... = continuou ela com um tom de indizvel raiva, apontando para o velho (erInimo, que a soluçar a olhava, de!ulhado em lágrimas depois contorcendo"se, como possessa de esprito mau, caiu em novo desmaio. = $inha filha4 $inha querida filha4 = clamou &atarina de joelhos, junto dela. = $as que papel 0 esse, de que fala ela> = diz (erInimo. = 7alvez seja o que o padre tem na mão, que foi achado no seio de Emlia = 59
responde uma aldeã. = #i4 Nem de tal me lem!rava já = diz o padre. = Estou como fora de mim. *amos a ver se o papel e1plica alguma coisa. 8 padre leu o seguinte 6Em'lia, pensa bem quanto pode um amor despre4ado( e $ica certa de que 7edro, assim como te soube amar, também saber vin#ar!se.8 Eram as terrveis palavras que Gedro, o militar, proferiu ao despedir"se de Emlia, quando a fora pedir para esposa aos seus pais, e ela o recusara. 8 seu infernal protesto de vingança fora cumprido. PPP 7inham decorrido dois anos, o aspeto da aldeia tinha mudado era triste e árido. # famlia de (erInimo, que fora o centro da alegria, em torno da qual gravitavam os po!res camponeses, estava curtida de pesares e ang%stias. Era uma tarde ao pIr"do"sol o tio (erInimo, encanecido e curvado, estava sentado à porta da sua ha!itação, olhando fito o horizonte, onde ele contemplava o astro do dia findando a sua carreira, como para ele já tinha findado a sua ventura. Era a imagem da sua sorte4 6uas lágrimas deslizavam pelas faces do po!re velho. &atarina, magra, do!rada, e como demente, rezava ao p0 do seu marido. No meio da estrada, junto de uma encruzilhada, via"se uma camponesa de poucos anos, sentadinha num valado, pr)1imo de uma cruz tosca de madeira, que se erguia de entre as piteiras. Jma palidez mortal, como v0u mortuário, co!ria"lhe o rosto. 8s seus olhos, posto que formosos, divagavam errantes e sem intenção. 8s olhos são os n%ncios da intelig2ncia neles não havia e1pressão, porque na msera aldeã não havia entendimento. Era a louca da aldeia a mal"aventurada Emlia aquela que dantes fora chamada Dlor da erra e o stio onde ela estava, o lugar em que tinham assassinado #ntInio, o esposo do seu coração. eis horas soaram no campanário da freguesia. 8 som triste e pesado do sino pareceu arrancar dolorosas recordaç-es à po!re doida levantou a ca!eça e ergueu"se, olhou a aldeia, e depois tomou pela estrada, para o lado da freguesia, e desapareceu. 6eram sete horas, deram oito, e Emlia ainda não aparecia em casa deram oito e meia deram em fim nove, e ela sem aparecer.
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= *ão"me procurar a minha filha4 # minha querida Emlia4 = grita (erInimo, cheio de inquietação. = Ela aqui está = lhe respondem uns alde-es que traziam Emlia em !raços, pálida e fria. = Doi encontrada no cemit0rio, so!re uma sepultura semeada de flores. Era a sepultura de #ntInio. Emlia tinha voado para ele.
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A PRENDA DE NATAL CARLOS MALHEIRO DIAS = #s argolas, mãe> = perguntou, do catrezinho de !ancos, a voz estremunhada da criança, que acordara ao rangido da porta. = 6orme rapariga... Não ficas sem a consoada... 8 teu pai ainda não chegou da feira. # criança voltou"se no catre, ficou com os olhos a!ertos, encolhida e emudecida, fitando o fogo da caruma, quase e1tinto no lar, onde requentava a ceia do Natal, #cocorada na soleira da porta, a mãe, em!rulhada num 1ale, está à espreita, atenta ao menor rumor que vem da estrada. (á por duas vezes, com o ramalhar das carvalhas ao vento, ela pensou ouvir tropear ao longe a carruagem. Não se en1erga um palmo na escuridão da noite de lua nova. Jm mar de nuvens co!rira os c0us, ao fim da tarde. Nem um luzeiro de estrela trespassa agora aquele negrume denso que enche os espaços e por onde o vento anda à solta, varejando as carvalheiras das !ouças e asso!iando nas agulhas dos pinhais como uma orquestra de flautas. = *alha"me 6eus4 8 que ret2m lá por fora aquele homem, a estas horas da noite4 = murmura a mulher, sucum!ida. = T mãe, não haveria argolas na feira e terá o pai ido por elas à vila... = 6orme, rapariga4 #manhã já tens as argolas nas orelhas... Gor Qmor delas desandou o teu pai, sozinho na 0gua, por essa serra, que mete medo4 Eram a consoada da filha. # colheita em pão e vinho fora de dar graças a 6eus. Não havia a pequena de ficar sem as argolas por mais tempo. ?ogo ao clarear da manhã, o $anuel da Eira selara a 0gua, entalara o varapau de!ai1o da co1a, lem!rado da quadrilha de 'edemoinhos, e pusera"se a caminho para a feira de ?anhoso, prometendo estar de volta ao amortecer do sol, para consoar.
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#inda a mulher advertira, receosa = $ete"te a caminho cedo. 7oma tento com a ladroagem de 'edemoinhos4 E o $anuel da Eira, destemido, voltara"se no selim = Hoje 0 o dia em que nasceu o alvador. 8s ladr-es tam!0m são gente cristã4 E picando a 0gua com a espora, a!alara, afoito, pela estrada. (á ao longe, na igreja da freguesia, os sinos tinham tocado para a missa do galo. 'ajadas mais fortes de vento enchiam os c0us de um !ur!urinho si!ilante e agitavam no alpendre os sarmentos das vides ainda por podar. %!ito, a criança e a mãe erguem"se no catre e no poial da porta. Jma voz chama, de entre o negrume da noite = T $aria da Eira4 o!re as traves, o vento parece que arrasta as telhas. Na corte, os porcos grunhem. Jma nuvem de cinzas ergue"se e rodopia no lar, so!re a caruma. em pinga de sangue, a mulher grita, numa ansiedade aflita, empurrando a cancela = Buem me chama> E entre o rumor do vento distingue a tropeada da 0gua, os passos vagarosos de dois homens. = 7raga a candeia... = diz a voz, na estrada. # criança está já fora do catre, à espera das argolas, esfregando nas costas da mão os olhos piscos de sono. 7ropeçando na saia, a mulher desengancha a candeia da parede, e à luz mortiça, saindo ao terreiro, v2 o seu homem, trazido a !raços, como morto. #trás do grupo f%ne!re avança a 0gua trIpega. 8s homens param. 8 da frente, encarando com o desatino da mulher, resmoneia, es!aforido = 7ome conta na luz4 Não vamos agora aqui ficar neste negrume4 8 seu homem vem vivo. 63
) então ela parece acordar do seu doloroso espanto e soluça, erguendo para o c0u ventoso os !raços, dei1ando fugir o 1ale. = Nossa enhora4 6ivino amor de 6eus, que estou desgraçada4 = &ale"se, mulher4 6erreados vimos n)s com este peso4 6emos com ele numa vala, cado ao p0 da 0gua. Doi pancada que lhe atiraram à falsa f0 para o rou!ar. Em altos gritos, ela empurra a porta, ajuda a deitar o seu homem no catre. # criança soluça, refugiada a um canto, sufocada pelo medo, e enquanto a mulher rasga, com a viol2ncia do terror, uma camisa de linho para ligaduras, os dois homens lavam as mãos ensanguentadas num alguidar e atiçam o lume da lareira com um graveto de tojo. 6e!alde a mulher agora esparge de vinagre o rosto desfigurado do ferido. &om o !raço pendente e as unhas cravadas na palma da mão direita, enlameado e lvido, o $anuel da Eira parece morto, estendido no catre. = Ele já não tem vida4 = clama, num alarido de lágrimas, a vi%va, desanimando de a!rir aquela mão crispada de defunto. 8s homens dei1am de atiçar o !raseiro, amparam"na e erguem"na do chão, onde ela se dei1ou cair desanimada, arrancando os ca!elos, com um escarc0u de gritos e soluços. = 8s mortos não fecham as mãos. @sto 0 coisa que ele tem escondida. Então, novamente, reconfortada por uma %ltima esperança, ela se esforça, mais do que em estancar o sangue das feridas, em a!rir o punho o!stinadamente fechado do seu homem. $as desfalece depressa e de novo a!ate, com a voz estrangulada de soluços maiores. Gor sua vez, os dois homens tentam, inutilmente, desunir da palma sangrenta os dedos infle1veis. = Gai, a!re a mão4 = geme tam!0m a criança, aterrada e aflita. #s suas mãozinhas molhadas de lágrimas imaginam ter a força, que aos outros falta, para despegar aquela garra. = #!re a mão, pai4
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E de repente, o!edecendo à vozita implorante, a mão a!re"se e duas argolas de ouro, pequeninas, aparecem, reluzem e tilintam no soalho.
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CONTO DE NATAL DE FIALHO DE ALMEIDA Há de passar talvez das onze horas. # noite afinal pIs"se serena, não !ole vento, as solid-es escutam... = 0 como se a 7erra inteira estivesse à espreita de ouvir tocar o sino para a missa. Gela estrada que passa entre *ila de Drades e *idigueira vem descendo uma velha arrumada ao seu !ordão de po!rezinha. 8 rastejo dos passos dir"me"ia porventura a idade dela o luaceiro entanto, nuverinhado em c0u de !ruma, apenas dei1a aperce!er a silhueta curvada para a terra, com um pedaço de manta so!re os om!ros, o saco às costas, e as canelas sem meias, entrapadas em ligaduras repelentes. #o p0 da ponte, a mulher pára. Gor detrás daqueles choupos, lá em !ai1o, à !eira"rio, havia noutro tempo um forno de tijolo, agora pelo @nverno a!andonado. Ela adianta"se, procura... E a estrada passa de alto, ladeada de acácias e eucaliptos. E derredor, nos plainos !ai1os, as escavaç-es do !arro espapam"se nas águas da cheia, em l%gu!res lameiros, cujo ervançum dá resid2ncia a uma colInia rouca de sapos. # velha estende o !ordão para a !arreira, procurando vereda num chão firme, em cujo !arro os seus po!res sapatos rotos não mergulhem. $algrado o em!rutecimento da idade, o frio, a fome e o desejo de amesendar para ali, no forno de tijolo, longe das apupadas dos cães e dos rapazes, uma nostalgia po0tica ergue"lhe a vista, e então recorda"se, e quer circunvagar os seus cansados olhos para o largo. E uma esquel0tica paisagem de 6ezem!ro, nua e cansada, quando já a natureza se alque!ra toda em desalentos e os troncos das árvores parece que estre!ucham, como os famintos de ?ondres, numa !e!edeira de )dio, truculenta. No primeiro plano há terras de vinha, olivais muito negros e colinas redondas com moinhos. Gara as !andas da *idigueira risca a ne!lina um traço negro, que deve ser a torre do rel)gio = depois, à direita, uma mancha de cal, o cemit0rio. ?entamente, ã medida que o raio de visão se prolonga no horizonte, os outeiros complicam"se, as formas perdem a sua delineação traço por traço, e toda a cordilheira dir"se"ia pintada numa sucessão de panos de teatro, a cinza"claro, e gradaç-es mais e mais desvanecidas. 8h, que sossego4 Jma divina ess2ncia, a!strata, et0rea, vem oscular as urzes e as levadas. 6oseio das negrid-es de vez em quando, !rotam suspeitas de formas vaga!undas, a !ranco"cinza es!oços de sonhos, almas erráticas que de!andam, noiti!)s que se acolhem, friorentos na noite, às pedras das runas... *em um
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acorde triste dos cardos secos da margem dos alqueives, dos pilriteiros sem folhas e dos zam!ujos frugais das ri!anceiras. E as águas do ri!eiro troam nas pedras, por entre as canas e os choupos, cujas varas se esfarripam nos ares, tsicas e !rancas, com um ou outro corvo por folhagem. 6o outro lado são semicrculos de terras e valados, com frei1os altos em silhueta no tom madrep0rola da ?ua, e alternativas de negro e zonas claras, que dir"se"iam feitas num desenho a carvão, com lápis prateado. 7odas aquelas !rancuras v2m do e1tremo horizonte aos olhos da mendiga, por suspeitas, desagregadas das formas, a!stradas do resto da paisagem, e todas poderiam interpretar"se como efeitos de neve, de luar, de água dormente, tanto a ne!lina enche de fantasmagorias a noite e presta uma alma incoerente àquela cenografia de !alada. Há por0m no sop0 daqueles montes um ponto que a velha ansiosamente procura. o pequenino convento de capuchos que alveja da !anda de *ila de Drades, derrocado, entre oliveiras. ?á corre o muro da cerca, at0 se perder num grupo de ciprestes. Naquela cerca, já depois de profanado o conventinho, era antigamente o cemit0rio um cemiteriozinho de aldeia, com malmequeres e figueiras !ravas, crCnios à solta, e nenhuma cruz ou mausol0u comemorando a jazida de qualquer. #li repousam os parentes e amigos da pedinte, pais e irmãos, filhos e netos s) ela, errante de povo em povo, sem um afeto que a proteja, sem uma !oca amiga que a console, vai pelo mundo a mendigar de porta em porta4 *inte e dois anos passaram depois que ela a!alou da sua terra, e quatro ou cinco vezes lhe sucedeu passar ali como estrangeira, com os olhos no chão, corrida de vergonha, vendo a igreja a!erta e tendo medo de entrar, passando ao resv0s das casas ricas, e arreceando"se d2 pedir esmola à criadagem e depois, ao toque das trindades, noite fechada, detendo"se a escutar de longe os conhecidos rumores do lugarejo. 8h, essa chafranafra da volta do tra!alho, com guizadas de mulas tintinando, estrupidas de carros desferrados, e as !oas"noites trocadas, os cavadores cantando em coro pelos caminhos, a crepitação da lenha nas lareiras = e depois, no !ocal das fontes, o mulherio que pousa os cCntaros e entre risotas comenta as picarescas hist)rias da semana4 E quando numa melancolia doce o dia morre e grandes nuvens esmagam no poente as vermelhid-es crepusculares. E quando uma e1alação envolve as c%pulas das árvores, e das terras molhadas claridades ef0meras fosforejam, e uma voz corre e suspira à flor das ervas. Gois aca!ou"se, aca!ou"se4 E a triste da mulher desce a !arreira, agredida por tudo, 67
as recordaç-es, a noite, o frio, a fome... Não, não repousará entre os outros, no po!re cemit0rio da sua aldeia, em que a voejam corujas e francelhos a casa onde nasceu foi demolida arrancaram a vinha que o mando plantara, há cinquenta anos, com solicitudes de !om cultivador e ningu0m na vila já se recorda da (osefa, da vi%va do Gratas, mãe de uma filha !onita que anda agora nas feiras, de cigarro, e passa o @nverno em !raços de soldados, numa viela infame de Estremoz. #o cercar" se do forno, uma claridade viva a surpreende. 8 alpendre ficava do outro lado, numa descada !rusca do montculo, e ali está gente, há falas de homem... = ai po!re velha4, aonde há de ela ir passar a noite àquela hora> Gor um momento ainda ela faz um passo para costear o forno e ir pedir agasalho à fogueira de quem quer se acoite no telheiro. $as logo em seguida reflete, Bue qualidade de gente será> 'ece!2"la"ão com caridade> Jm vago terror se apossa dos seus mem!ros p0 ante p0 !usca afastar"se... $as como tem as pernas e os !raços regelados4 Jm torpor lhe paralisa os movimentos, anestesia"lhe os dedos e pesa"lhe nas pálpe!ras com sonol2ncias de chum!o. Nos campos paira um sossego terrvel e perverso, em cuja a!)!ada s) respondem os latidos dos cães, pelas malhadas. # geada !ranqueia o alqueive das courelas, queima os favais. E a claridade no alpendre 0 cada vez mais confortante, milhares de fa%lhas so!em pelos ares, na fumarada da lenha %mida de oliveira, que estala e arde em flamazinhas rápidas e alegres. Ela então cede, resolvida a entrar na zona iluminada e a pedir agasalho aos forasteiros que a anteciparam. &hegara quase à !oca do telheiro, oculta ainda por trás de um grupo de árvores, perto do rio = quando de repente estruge um grito largo, começado em surdina e sacudido depois em fren0ticas uivadas, com uma e1pressão de sofrer dilacerante. PPP #o primeiro !erro, um homem que estava acocorado por diante da fogueira salta de golpe e fica um instante secado, a escuta da noite, !e!endo os rumores do largo, enquanto desenrola a cinta da cintura. #quele !erro, a velha conhece"o, 0 horrvel e terno, angustioso e deliciado, e toda a mulher que o solte começa esposa e aca!a mãe. Havia pois no alpendre uma parturiente a reclamar os seus cuidados. 8 desejo da velha era correr, mas do seu canto de som!ra a po!re hesita, vendo homem girar pelo telheiro a passos furiosos, ir, voltar, acachapar"se instantes so!re o vulto que !ole lá no fundo do alpendre, em estremeç-es aflitos e enfim, jurar, !ramar, ordenar"lhe sil2ncio, prometer"lhe pancada, e1asperado cada vez mais, por aquela algazarra que pode deitar tudo a perder.
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Há um momento em que eles julgam ouvir um murm%rio de rodas, afastado, talvez uma sege que passa, levando algu0m à missa de Natal. #qui a raiva do homem não conhece limites, e ei"lo corre à mulher de punho armado, prestes a dar"lhe, caso prossiga o !erreiro escandaloso. *em com efeito na estrada uma !erlinda, com guinadas nas mulas e vermelhid-es de lanternas entre as árvores. E o homem precipita"se, enclavinha os polegares assassinos so!re a garganta da mulher. = &alas"te ou morres4 E a sua voz surda, pequena, sacudida, humilde quase, vem e1plodindo e crescendo, at0 !ravejar num rouquejo de c)lera e1austinada. = &ala"te, dia!o4 &ala"te, estafermo4 # mãe, coitada, mal pode estrangular os urros que a e1pulsão lhe arranca, em dores medonhas, como se trinta mãos !rutais lhe estivessem arrancando as vsceras, ligamento a ligamento. (á a !erlinda passa, ao trote rápido das suas quatro mulas espanholas... Jm ou outro corvo solta nas faias o seu grasnido estremunhado, e outra vez a paisagem fica muda, entre as !rumas e as som!ras, o fragor da ri!eira e a uivada dos cães pelos currais. esse o instante de a mendiga fazer um passo, a!andonando o crculo da som!ra, prestes a dar"se, toda cheia de celestes compai1-es por essa msera mulher que a desgraça forçou a vir parir numa runa, sem ao menos ter a aquentá"la, como a *irgem, o hálito da vaca e da jumenta e as solicitudes ideais do carpinteiro. carpin teiro. $as tudo aquilo 0 rápido e fugace. 8s gritos da mulher tinham cessado lento e sinistro, o homem voltara a acocorar"se perto da fogueira, com uma e1pressão de campInio perverso, meio animal, meio humana, onde o !rilho dos olhos punha uma sagacidade e1traordinária. Ele despira a jaqueta, tem as mangas da camisola arregaçadas, as mãos sujas de sangue. = rapariga ou rapaz> = disse a mulher. Ele estivera algum tempo a ligar"lhe coa cinta o ventre dolorido não retrucou. 6era na torre da *idigueira a meia"noite, e em *ila de Drades logo começou a tocar para a $issa do Falo. 8 cerraceiro morrera pelos campos e as cumeadas do c0u, azuis e vastas, refulgiam de estrelas e luar. $as nem por isso a paisagem tinha ficado cristalina. &oisas opacas !rotavam dos terrenos, formas dormentes, que pareciam vaguear nas ouvielas moles dos farrejais. Gerto, nos choupos, havia gestos de ang%stia e imploração saiam vozes da água, preguiçosas e msticas como trenos, e certas troncagens tinham e1press-es
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humanas na noite, que pertur!avam de morte o arregaçado. 8utra vez então aquele homem se ergueu com modos lentos, veio escutar. 8s sapos tinham"se afinal calado nos algares, pairavam no sossego as asas áfonas dos mochos dando espirais de roda ao forno de tijolo. E, malgrado o frio, aquela noite de Natal vinha suave, com poucas cores mas delicadas, e cam!iantes de c0u, que o vento uma ap)s outra transmutava. = 6á"me a criança = disse a mulher. = Buero"lhe dar mama, não me morra de frio a po!rezinha4 Ele tinha nas mãos o pequeno ensanguentado, que vagia de frio, conjugando os !eicitos numa sucção de instinto, que devera ter feito sorrir de enternecido um outro pai. E saiu do telheiro, o pequeno pendente da manápula, o cento torvo, o ar facinoroso. # velha, vendo"o, estendera"lhe os !raços do seu canto e ele vagueou assim por aqui, por al0m, entre os troncos das faias e os silvados, atascado na lama, mas sem poder estar quieto em parte alguma, e como se pela marcha desse vazante ao frenesi mental que o devorava. Havia à !eira de água um pedregulho. Ele deteve"se. @nstantaneamente a sua cara envelhecera, leques de rugas radiavam"lhe os cantos das pálpe!ras, so!re a pele da testa e da faceira, e a lvida !oca, agora seca, s%plice quase, tinha som!ras de ang%stia às comissuras e convulsivos tremores nos !eiços des!otados. $ais uma vez lançou a vista ao derredor, numa suspeita atroz de o estarem vendo, e ergueu o !raço, com o pequeno seguro pelos p0s, como um coelho... Gor0m, a luz do luar incomodava"o. 7ornara para trás, desalentado, furi!undo consigo e resmungando alto imprecaç-es. $as veio"lhe de repente uma veneta e !ruscamente, com um resfolgar de !ezerro, escavacou o pequeno contra a rocha. # pancada dera na pedra um som de melancia podre, es!orrachada em surdina, !aça e turgente. Doi um momento, aquilo, e todas as coisas voltaram ao 21tase hi!ernal de instantes antes. 8 homem ainda esteve curvado um pouco de tempo so!re os atasqueiros glácidos do rio = uma solenidade pairava ao fundo do espaço =, at0 que afinal saiu das ervas, com o cadáver suspenso pelos p0s, todo sangrento, um cadaverzinho de infante rec0m"nado, roliço e ro1o, cuja !oquinha ria de inoc2ncia e cuja alma devera estar"se incorporando àquela hora no cortejo de eleitos que todos os anos
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vem, com o $enino 6eus, refazer na crença dos simples a suavssima lenda do Natal.
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AS JANEIRAS BRITO CAMACHO
#s (aneiras4 e já restava pouco do madeiro do Natal, quando os ganh-es chegavam do tra!alho, arrumada a copa e a apeiragem, iam !uscar um madeiro que o meu pai tinha escolhido no monturo da lenha grossa, e colocavam"no na chamin0, arrumado à parede. Este frete era geralmente pago com um copo de vinho, e !em o mereciam os desgraçados, porque alom!avam com um madeiro pesando umas poucas de arro!as. &ozia"se sempre neste dia, e a %ltima fornada de pão tirava"se já noite escura, às vezes com a ganharia à mesa para a ceia. # cada janeireiro, homem ou mulher, dava"se um pão aos jovens dava"se metade ou um quarto, conforme o seu tamanho, e às vezes, já no clarear da madrugada, havia necessidade de reduzir a esmola, pois não chegava para tanta gente o pão cozido. 7al havia que apanhava duas, tr2s ou quatro esmolas, incorporando"se cm diferentes ranchos, e o mesmo rancho chegava a cantar duas vezes, mudando as vozes. = ão os mesmos que cantaram há !ocadinho. Buem ia levar a esmola, geralmente era uma criança, não se dispensava de dizer, mesmo que lhe não encomendassem o sermão = *ossemec2s ainda não há nada de tempo que aqui estiveram. e cá voltarem, não levam esmola. Bue não vossemec2 está enganada, a gente chegou agora mesmo da vila, e ainda não cantamos em mais monte nenhum. e quer ver o que trazemos... Nenhum rancho denunciava outro rancho, em!ora nem todos fizessem a mesma coisa, a muitos repugnando uma tão descarada fraude, tanto mais que nela se envolvia 6eus Nosso Gai, invocado a cada instante 0 vai uma, l v3o duas 7or cima do seu telhado. %eus lhe dê muita $ortuna Ao p3o que tiver semeado.
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e a noite estava escura, não se distinguiam as caras, e se havia um luar discreto, os homens escondiam a ca!eça na manta, as mulheres no 1aile ou na mantilha, e assim realizavam a mistificação. Buando o criado que distri!ua as esmolas avisava de que o pão, em menos de nada, estaria aca!ado, meu pai ordenava que dois ganh-es dessem uma volta à roda do $onte, fiscalizando os ranchos, e era como se aparecessem guardas fiscais num campo onde mano!rassem contra!andistas. ?em!ro"me como se fosse ontem, e vão passadas umas poucas de d%zias de anos... 8 compadre &ara"'ota, que era o a!egão da casa, dei1ara"se ficar no $onte, para cantar as janeiras, e como aparecessem, já noite cerrada, os vizinhos da 3ispa, o compadre (oão &atarino, o primo Drancisco $anuel, que era um grande tocador de viola, e o lavrador da Franja, que era um grande tocador... 6e garrafa, armou"se uma mesa de jogo, à pedida, perdendo"se, nominalmente, as melhores herdades do concelho. # certa altura o maricas do Narciso, que andava no serviço das esmolas, declara que estavam cantando uns homens que já tinham cantado duas vezes, e como ele lhes dissesse que escusavam de cantar porque não apanhavam mais nada, eles ameaçaram"no de lhe !ater, chegando um deles a atirar"lhe um sopapo, que por sorte o não apanhou. = Estão !2!edos, com certeza. 6isse meu pai ao compadre &ara"'ota = 7enha paci2ncia, compadre, d2 uma voltinha lá por fora, a ver o que há. 8 compadre &ara"'ota saiu, levando na mão um fueiro, e quando chegou à porta do $onte ainda os homens cantavam. Eram quatro, um já entrado em anos. = Gor os modos voc2s tomaram as janeiras de empreitada, hem> 8s homens ouviram, mas não fizeram caso, e continuaram a cantar. 8 compadre &ara"'ota foi"se apro1imando, e como vissem que ele não estava com as mãos a!anando, calcularam que podia armar"se sarilho se continuassem a cantar, e que, em todo o caso, mais esmola não apanhavam. Jm deles, o mais pimpão, desenrolando"se da manta, e pondo ao om!ro o !ordão, disse para os companheiros = 8 melhor 0 a gente ir"se em!ora. # esmola que nos tinham dar, que a metam...
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(á fora da calçada do $onte, virando"se para trás, disse ao compadre &ara"'ota, desafiando"o com insol2ncia = 8 amigo não canta, mas pode ser que tenha as goelas secas. e as quiser molhar, venha com a gente at0 ali à estrada, que ningu0m lhe faz mal. = *ão lá andando que eu já os apanho. Entrou na casa dos ganh-es, trocou o fueiro pelo cacete mais forte que lá encontrou, e ainda os janeireiros não tinham chegado à estrada, já ele lhes falava desta sorte = Bual de voc2s 0 que tem a !orracha> = omos n)s todos = respondeu o que o desafiara. Galavras não eram ditas, cai"lhe na ca!eça uma !ordoada que o fez ir a terra. Entraram todos na refrega, está !em de ver, mas o compadre &ara"'ota, ágil como um palhaço, não se dei1ava tocar, e das cacetadas que despedia nenhuma caa no chão. 6urou a luta poucos minutos, saindo dela um dos janeireiros com a ca!eça rachada, outro com !raço partido, e os outros muito !em zurzidos, mas sem nada que!rado. = Então os homens, compadre Drancisco> = Dui"lhes levar a esmola ali à estrada, e lá se foram na paz do enhor. PPP Era uma figura original, o compadre &ara"'ota, meu compadre de verdade, compadre de águas"!entas. Ningu0m era mais desem!araçado do que ele no seu ofcio = nem mais desem!araçado nem mais perfeito. Gor este motivo tinha uma grande freguesia, chamado para todos os $ontes, e na *ila, tra!alhando na sua casa ou na casa dos outros, nunca se lhe aca!ava que fazer. Era alto, desempenado, forte como as armas, multiplicando a força pela agilidade, de uma rara agilidade, o que lhe permitia !rincar numa praça, com os touros, que eram quase sempre vacas, por forma a entusiasmar a famlia. 7ourada em que ele tra!alhasse e o Es!andalha, era tourada de sucesso = como quando tra!alhavam em ?is!oa, na Graça de antQ#na, os manos 'o!ertos. #s vacas eram corridas desem!oladas, e !andarilhas não se usavam no toureio da Grovncia. # sorte mestra, aquela em que o compadre &ara"'ota era e1mio, na opinião de
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muitos ine1cedvel, era a do emplastro, que consistia em pegar à testa da r2s, com mel, um quarto de papel, como se fosse um escrito num vidro. &orria como um gamo, e dava saltos como um ginasta de circo. Fostava da pCndega, mas não era homem de !e!edeiras, sempre lem!rado de que tinha lá em casa uma filharada de que era o amparo e sustento. # sua grande pai1ão, dominante, avassaladora, era a caça. 6izia o meu pai = Homem inviccionado na caça como o compadre &ara"'ota, não quero que haja outro. Era muito rara a tarde em que ele não largava cedo o tra!alho para ir matar um coelho, à espera, e pelo dia adiante, se ouvia tiros no &a!eço ou via passarem os caçadores, não se importava mais com o que estava fazendo metia as ferramentas na alcofa, e às escondidas, se podia ser, tirava de casa a espingarda, e polvarinho, a patrona, e pernas para que vos quero, at0 se meter na linha. = 8ra compadre Drancisco, tudo o que 0 de mais não presta. Então vossemec2 v2 que tenho a uma parelha à !oa vida, e a!ala prá caça dei1ando o tra!alho em meio>... = Não se apoquente o r. &ompadre que tudo se há de fazer a tempo e horas. E fazia. Jm !ocadinho de serão, um !ocadinho de madrugada e o compadre &ara" 'ota tinha o serviço feito como se tivesse tra!alhado sem descontinuidade. PPP Buer fosse às perdizes, no ar, quer fosse às le!res, na terra limpa, quer fosse aos coelhos, na charneca, poucos se e1plicavam como ele = peça visada era peça morta. Fostava muito de caçar nas pontas, e ordinariamente, em jolda, as pontas eram feitas pelos melhores atiradores, sempre um !ocadinho adiantadas, quase à espera da caça que se safava. 6e uma vez, caçando na 6aroeira, ia ele numa ponta e eu na so!reponta respectiva, pouco distante da orla do mato. Jm mitra, empurrado pela linha, sai do mato, sorrateiramente, enfia para a terra limpa, correndo como um danado. 8 compadre &ara"'ota desfecha"lhe um tiro, e o coelho, se muito corria, muito mais passou a correr, mudando de rumo, enfiando por uma vereda, que marginava o mato. ?o!rigo o figurão lá muito longe, e largo"lhe um. 7iro, sem grande confiança em que o chum!o lá chegasse. 8uviu"se o tiro, e viu"se o coelho, ao mesmo tempo, enrolar as patinhas, morto no meio da vereda. Dui !uscar o coelho, muito 75
satisfeito, tanto mais que destas me aconteciam poucas. = 3em feita, r. &ompadre4... e eu tivesse vergonha não voltava a pegar numa espingarda. Estava eu a empiolar o mitra quando o compadre &ara"'ota, como se lhe desse uma veneta, avança para mim, e diz com o ar de quem procura responder a uma interrogação interior, ao mesmo tempo dolorosa e ve1at)ria = T r. &ompadre, faça favor, dei1e"me ver uma coisa. Gegou no coelho, olhou"o, voltou a olhá"lo, apalpando"o muito !em apalpado, quase polegada por polegada, e com ele suspenso pelas orelhas, e espingarda encostada a uma carrasqueira, disse"me pausadamente, como se estivesse a desenvolver um raciocnio complicado = 8 r. &ompadre atirou ao coelho um pouco de ra!o, mas do lado esquerdo eu atirei"lhe de atravessado, pelo lado direito, ia ele correndo, fora do mato, nesta direção... ) um podão que nunca tivesse pegado numa arma, erraria num caso destes. # verdade 0 que ele não ficou no meu tiro meteu"se na vereda, e s) quando o r. &ompadre desfechou com ele, 0 que enrolou a copa e nunca mais se me1eu. $as faça o r. &ompadre favor de ver = o coelho não tem um !ago de chum!o do seu lado e do meu lado tem uns poucos. Era verdade. 8 coelho fora morto pelo compadre &ara"'ota e perante a evid2ncia irrecusável eu dei sinais de mágoa em!ora não desa!afasse em lamentaç-es. = @sto na caça, sucedem coisas que s) vendo se acreditam. 6e uma vez, naquelas chapadas do $onte Frande que vão !ater em *ale de ?eitão, os cães ergueram uma le!re, muito adiante da linha de caçadores. &orria que parecia que tiniu asas nas patas, o !icho do dia!o. &ada vez os cães lhe ficavam mais para trás, e quando ia chegando ao fim da ladeira, o (oão da 3aroa larga"lhe um tiro, e a le!re fica estendida como uma pescada. 8 primeiro cão que lhe chega ao p0 foi um podengo, atravessado de galgo, que tinha o #ntInio (oaquim, do correio, e que era um !arra para trazer à mão. = Doi um !ago de chum!o desgarrado, que lhe deu num stio mortal. Gassou"se vistoria ao !icho, e qual chum!o nem qual carapuça. = 7inha morrido de susto> = Não, senhor tinha morrido de esfalfamento, com os !ofes arre!entados.
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PPP # %ltima vez que vi o compadre &ara"'ota já ele deitara os oitenta para trás das costas mas andava com desem!araço, aprumado como um rapaz. 'ecordei, mentalmente, os afastados tempos em que ele ia tra!alhar ás $esas, ainda novo e eu criança, e pareceu"me v2"lo de machado nas unhas, falquejando à esquina do $onte, largando tudo, a inch) ou o machado, se ouvia tiros no &a!eço. Era muito alegre, muito divertido, sempre de !om humor, como se a vida lhe corresse em todos os momentos fácil e vantajosa. Não era desordeiro, mas gostava de dar a sua castanha quando se lhe oferecia a ocasião. 6e uma vez, logo no dia seguinte à feira de anto #ntInio, apareceu no $onte um malt2s, homem forte, de meia"idade, surdo"mudo de nascença. Gara estes desgraçados a esmola era sempre mais avultada, por e1pressa ordem da minha mãe. 6ava"se"lhes umas sopas, se as pediam, e levavam sempre um pão e conduto, geralmente um queijinho ou azeitonas. = uma grande infelicidade não ver, mas não ouvir nem falar 0 infelicidade ainda maior. Buando a criada dava a esmola ao po!rezinho, o compadre &ara"'ota apareceu, em mangas de camisa, porque era assim que ele, mesmo no inverno, tra!alhava no ofcio. *iu o malt2s, estacou, e como ele se dispusesse, rece!ida a esmola, a ir"se em!ora, desfechou"lhe esta pergunta = Há quanto tempo 0 que voc2 0 mudo> 8 homem não se deu por achado, e a criada, rindo, comenta a pergunta. = 8 r. Drancisco sempre tem cada uma4 e o homem ouvisse, e fosse capaz de responder não era surdo"mudo... 8 compadre &ara"'ota, não se importando com as filosofias da rapariga, repetiu a pergunta = Há quanto tempo 0 que voc2 0 mudo> 8uvindo altercação à porta do $onte, acudiu minha mãe, a inquirir do que se passava. = Não 0 nada, senhora comadre. Este desgraçado perdeu a fala, e eu vou"lha restituir com uma untura de marmelo no lom!o.
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Galavras não eram ditas, deita a mão a uma vara que estava ali peito, menos grossa que um !ordão, e vá de zurzir o malt2s, como se !atesse em centeio verde. # minha mãe, espavorida, queria acudir ao infeliz, mas o compadre &ara"'ota, não atendia os seus rogos, e o malt2s levava e encolhia"se, quei1ando"se por gestos e por guinchos. = #h ele 0 isso4 Não queres falar>... Espera que eu já te arranjo. acou da algi!eira uma navalha, que a!riu dando tr2s estalinhos, e como fizesse aceno de avançar para o homem, disposto a cravar"lha no fole das migas, o malt2s caiu de joelhos, a pedir miseric)rdia. = Não me mate, pelo amor de 6eus, que eu não fiz mal a ningu0m. = 8ra esta4 = dizia minha mãe, mal acreditando no que ouvia. = Buem havia de dizer... = 6izia eu, senhora comadre, porque ainda ontem à noite vi este pardal numa !arraca da feira, muito !2!ado, ameaçando toda a gente, e desenrolando um palavreado que at0 envergonhava as pessoas. PPP Nos maus anos cerealferos, todos os que eram capazes de perder uma noite, homens e mulheres, em romaria pelos $ontes, saam a cantar as janeiras, fazendo" se acompanhar dos mi%dos pequenos, os que os tinham, para maior colheita. 8u porque chovesse muito e as terras se encharcassem, afogando as sementes, ou porque chovesse pouco e as sementes murchassem, apenas salpicando a terra de manchas verdes punctiformes, quando o ano agrcola se mostrava assim, nada prometedor, dizia meu pai, nas v0speras do #no 3om = 7emos ano de (aneiras, a não ser que chova a cCntaros. $esmo chovendo, e às vezes com um frio de !ater o quei1o, nos anos que se anunciavam maus, o gado a morrer de fome, a famlia sem tra!alho, porque nem sequer havia erva nas searas, tornando necessária a monda, em anos tais, a concorr2ncia de janeireiros era enorme, so!retudo não havendo !arrancos a passar, que fossem cheios. 8s criados eram os primeiros a cantar as janeiras, à porta do $onte, e para eles a esmola era especial = pão alvo, chouriço para assar no espeto ou carne para uma friginada e vinho numa garrafa ou numa !orracha, segundo o n%mero.
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Era quase certo que de!utavam por esta cantiga Esta casa est caiada %o telhado até ao ch3o( Os senhores que nela moram %eus lhes dê a salva*3o. 7am!0m n)s, eu e os meus irmãos, cantávamos as janeiras, e a minha mãe mandava"nos dar a esmola pelo postigo, como aos outros janeireiros, o que muito nos lisonjeava. &onsistia a esmola em guloseimas, já divididas em porç-es, para evitar lutas fratricidas. # gente de $essejana era a que chegava mais cedo, em ranchos, os homens enrolados nas suas mantas, as mulheres nas suas mantilhas, havendo geralmente em cada rancho uma cantadeira de fama, a ofia, que era a mais pimpona de todas, a 3ár!ara 3onita, que por sinal era muito feia, mas trinava como um rou1inol... Bue apitasse como os com!oios. # ofia, que era poetisa a valer, repentista como o 3ocage, não garganteava as ha!ituais quadrinhas, de uma tão charra !analidade, a maior parte, que dificilmente se encontraria na grosseira urdidura de qualquer delas uma centelha de inspiração. @mprovisava à porta dos $ontes, de modo que cantava s), e isso fazia com que a esmola do seu rancho fosse mais avultada. No despique ningu0m lhe ganhava, a cantar uma noite inteira, nos arraiais, às vezes tendo de !ater"se ao mesmo tempo com dois e tr2s cantadores de reputação concelhia, mestres na desgarrada. 7enho pena de não ter escrito algumas das quadras e decimais que a ofia arquitetava so!re mote, dizendo"as sem hesitação, como se as tirasse da mem)ria. @nstruda e educada, a ofia de $essejana estou que marcaria na literatura feminina do nosso Gas um lugar de relevo e distinção. PPP # $usa popular alentejana 0 pouco imaginosa falta"lhe geralmente elevação de pensamento falta"lhe elegCncia na e1pressão falta"lhe correção na forma. # inspirar os janeireiros, pelo menos os que iam cantar às $ezas, nunca entalhava na m%sica arrastada dos seus cantares uma quadrinha que tivesse o recorte simples mas elegante do junquilho, a fragrCncia quase doce do mantrasto, a leveza pouco menos de imponderável da papoila. ver por estas amostras 5 senhor lavrador
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9estido de sara#o*a( Mande!me dar a esmola 7ela sua $ilha mais mo*a. +uando eu aqui che#uei %ei um tope num corti*o1 0o#o o cora*3o me disse +ue me dariam um chouri*o. 9enho!lhe dar os bons anos +ue as boas $estas n3o pude( 9enho a $im de saber 2ovas da sua sa:de. O r. Manuel de ;rito Cord3o de ouro no chapéu( +uando vai para a i#re-a 7arece um an-o do céu. Era pequeno o rol das cantigas janeireiras, de modo que o rancho que chegava, às vezes sem lhe alterar a ordem, repetia as do rancho que imediatamente o antecedera. Esta monotonia s) era que!rada pela variedade das vozes, cada rancho formando um coro desafinado, em que seria difcil, senão impossvel, uma classificação. e o frio era dos que enregelam, chegava"nos à chamin0, onde havia um lume que enchia de calor a casa toda, a tremura das cantadeiras, mal enroupadas, parecendo que o seu delgado fio de voz coalharia no ar, se não se calassem depressa. #cudia minha mãe = *ão levar a esmola, e digam que não cantem mais. 8!tinha sempre um grande sucesso o rancho que cantava os tr2s do oriente = os tr2s desorientes = diziam os janeireiros, lengalenga que eu sa!ia de cor, e que se me varreu, quase por completo, da mem)ria. &omeçava assim +uem s3o os três cavaleiros +ue $a4em sombra no mar< 3o os três desorientes 80
+ue a Jesus vêm buscar. 23o procuram por pousada 2em onde o ir3o achar( 7rocuram o %eus menino +ue nasceu para nos salvar. =oram!no achar em )oma )evestido no altar( Missa nova quer di4er, Missa nova quer cantar, . 7edro a-uda > missa, . Jo3o muda o missal. 8 tio 'osa e1plicava que os tr2s cavaleiros eram os tr2s reis do 8riente, uma terra lá para os fins do mundo, os quais tendo notcia de que nascera (esus, se puseram a caminho, para o adorarem. &omo eram muito grandes, e montavam cavalos do tamanho de torres, faziam som!ra no mar. &hegados à arramada onde Nossa enhora dera à luz, a sou!eram que o menino fora levado para 'oma, porque Herodes era um grande malvado, e tinha dado ordens para o matarem. . Gedro e . (oão acompanhavam (esus, e uma vez chegados a 'oma perguntou"lhes o Gapa o que desejavam. *ai então (esus respondeu que desejava dizer missa na @greja matriz, ao que o Gapa anuiu, e como o sacristão tinha ido fazer um recado, . Gedro e . (oão ajudaram ao oficio divino. *eio Herodes a sa!er onde (esus estava, e mandou lá !uscá"lo, entregando"o aos judeus, que o levaram à presença de Gilatos, pedindo a sua morte. Gilatos disse"lhes que não havia motivo nem razão para semelhante feito, mas que se o quisessem matar, o matassem, que ele lavava da as suas mãos. Doi o enhor pregado numa cruz, entre dois ladr-es, e ressuscitou ao terceiro dia depois da morte, para nos remir e salvar. ucesso ainda maior alcançava o rancho que cantava a chamada oração das almas, lam%ria f%ne!re que era entoa tia muito lentamente, nenhuma voz e1cedendo o regime m0dio, e no coro predominando o !ai1o profundo, dando a impressão de vir a cantoria do interior das sepulturas, a coar"se por entre t%mulos. ) me recordo do começo desta oração Acordai, ? acordai, %esse sono t3o pro$undo( +ue vos est3o batendo > porta As almas do outro mundo. Esta oração era sempre ouvida em religioso sil2ncio, e dizia meu pai que uns
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homens de Ervidel a cantavam tão !em e com tanto sentimento, que não era fácil ouvi"los sem chorar. #s (aneiras4 #t0 à meia"noite ainda estava tudo a p0, no $onte, para ouvir os janeireiros, contrariando o velho há!ito, raramente interrompido, de ir tudo para a sossega, mal engolida a ceia, e engolia"se a ceia ao acender as luzes. 8 meu pai, nalgum dos filhos ca!eceando, ordenava"lhe que se fosse deitar = na cama 0 que se dorme = o que punha logo o dorminhoco gazil como um furão. 6e vez em quando vinha uma roda de caf0, um copinho de aguardente, um cálice de vinho a!afado, para espertar, sendo estas !e!idas acompanhadas de alguma trincadeira = !olos feitos naquele dia, nozes e figos comprados na feira de &astro, !olotas que tinham avelado numa alcofa, ao canto da chamin0, escolhidas umas no Goço eco pelo compadre 'a!ino, escolhidas outras no a!ugueiro pelo compadre 3ugado. #mos e criados, destes os mais antigos na casa, os compadres, os afilhados, fraternizavam naquelas noites de festa emparceiravam no jogo comiam do mesmo prato quase !e!iam pelo mesmo copo fumavam na mesma onça de ta!aco. E não havia uma desatenção, uma falta de respeito, todos juntos e cada um. No seu lugar, a mesma alegria ing2nua e franca iluminando todos os olhares, a mesma paz interior refletindo"se em todas as palavras e gestos. Dicavam sempre dois criados de vela, at0 pela manhã, para darem as esmolas, e eu ficava com eles, re!elde ao sono, como se fosse atacado de espertina. Gela minha conta e risco = o risco era nenhum = cortava"se um chouriço já curado, e toca de o assar no espeto. #!ria"se um pão alvo, pelo re!ordo, e o pingo do chouriço ia em!e!endo o miolo, dando"lhe um gosto muito apreciável. # minha mãe, num descuido propositado, dei1ava algumas garrafas de vinho no armário a!erto, e eu nenhuma hesitação tinha em ir !uscar uma ou duas para que o pão e o chouriço não arranhassem as goelas dos meus convivas. ?a chamar alguns criados de quem era mais amigo, e durava o !r)dio enquanto havia de comer. = # minha mãe 0 capaz de me ralhar... = 8ra4 8 r. &ompadre diz que foram os ratos que !e!eram o vinho enquanto a gente estava a escutar os janeireiros... 8s dias que medeiam entre as (aneiras e os 'eis passava"os eu num alvoroto, que me valia alguns pu1-es cie orelhas, pois nada ouvia do que me diziam, e nada fazia
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do que me mandavam fazer. Nunca o!tive licença para ir cantar as (aneiras ou os 'eis à 3ispa ou às 'efr)ias. $ontes pr)1imos e de gente amiga, nem mesmo oferecendo"se o compadre 'osa, para ir à minha companhia, garantindo que muito antes da meia"noite estaramos de volta. = Diquem os senhores compadres descansados que não há de haver novidade. $orro com este desgosto, dos maiores da minha vida... 6e menino4 PPP #s (aneiras4 8s 'eis4 Goucos, muito poucos são os $ontes em que ainda hoje se dá esmola aos janeireiros, e por isso mesmo, m esmo, al0m de várias raz-es de d e outra ordem, são cada c ada vez menos os janeireiros que passam uma noite de $onte em $onte, cantando aquelas tradicionais quadrinhas que o leitor já conhece, e outras de igual valor po0tico, que se me varreram da mem)ria. 8s tempos andam tão mudados do que foram4 Eu sinto"me tão diferente do que fui4 Estou a evocar estas recordaç-es numa noite de janeiras, de vento fustigante e frio alpino, e precisamente quando suspendo a pena e fecho os olhos para que seja mais perfeita a evocação, a 8tlia, minha so!rinha, grita"me da porta do quarto, aos saltinhos, como uma rola na eira = 7io4 8 chá está na mesa. 8 chá, que naquelas eras, entre rurais po!res e a!astados, s) era tomado como rem0dio, para suar, e era de flores de sa!ugueiro4
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O PAI NATAL PINA DE MORAIS 8 Gai Natal andava atarefadssimo. E compreendia"se muito !em. 7ratava"se da viagem à 7erra e da distri!uição de !ili-es de presentes a todos os mortais deste heroico planeta. 8 suor caa"lhe às !agadas e o lenço de #lco!aça que levara da visita do ano anterior, estava todo molhado das contnuas limpezas à sua respeitável calva. 8 $enino (esus tolhia"lhe os movimentos, constantemente a me1ericar nos !rinquedos mais vistosos, que o po!re $enino (esus tam!0m quereria para si. (á lhe tinha dado algumas sapatadas nas mãozinhas, mas isso nenhum resultado deu em !enefcio da ordem. Fostava de ser pontual era uma das suas gl)rias, essa, de em milhares de anos chegar à 7erra à meia"noite, ouvir os si nos de todo o planeta tocar festivos e os salmos elevarem se das som!ras das catedrais. &ontinuadamente arredava as !ar!as imensas com a mão de fortes cordoveias, e pela a!ertura do gi!ão vermelho, orlado de !ranco, procurava o grande rel)gio de ouro que consultava numa justificada inquietação. #s impertin2ncias infantis e adoráveis do $enino não eram nada, não o incomodavam. Havia outros em!araços e, estes sim, de certa importCncia. que o Gai Natal era assediado com incrveis pedidos, de uma insist2ncia que lhe fazia perder a !onomia. @mensa gente queria ir com ele. . Drancisco de #ssis lamentava"se profundamente, com humildade enternecedora, servindo"se da sua voz mais comovente. &om suavidade, pousando a mão de longos dedos descarnados so!re a manga farta do gi!ão vermelho do Gai Natal, ia dizendo a!es lá que saudades eu tenho da 7erra4 #qui, !em v2s, a minha alma não tem viol2ncias a com!ater, nem )dios a aplacar. Bue queres que eu faça no infinito da !em"aventurança> Não tenho feras a quem arranque os a!rolhos, não posso continuar a minha sina de fazer os coraç-es tão puros que se pudessem irmanar todos, como um s) coração, para o mundo. 3em sei que não tenho irmão lo!o para afagar = ai de mim4 7am!0m não tenho a gratidão infinita dos homens, dos animais e das coisas. # medo, vagamente esperançado que as suas palavras lhe tivessem tocado na alma, insistiu ciciando = 7u podias dei1ar"me ir4 3em sa!es que quero a minha po!reza, quero v2"la com 84
a mesma alegria do avarento pelo seu ouro. 3em sei que a ordem 0 terminante, mas a minha graça e a tua podem !em com um pequeno contra!ando. 6ei1a"me ir no fundo do saco, o . Gedro de ti não desconfia = acrescentou inclinando"se ao ouvido do 3ar!aças, convidando"o à cumplicidade. # palavras loucas, orelhas moucas, isso 0 o que se diz lá na minha terra, lá em Gortugal = respondeu o !ar!a !ranca, impassvel, enchendo, apressado, de !rinquedos o saco infinito. = 8lha, não sejas impiedoso, !em v2s, que houve uma grande injustiça que felizmente não creio irremediável, mas isto de não dei1ar vir os animais para aqui, 0 imperdoável. E, com ar desolado, a!rindo os !raços. = Nem sequer as avezinhas4 6ei1a"me ir ver a minha rica !icharada... = Não há filosofia que me faça sair dos meus deveres = volveu o Gai Natal, um pouco agastado. E suspendendo um momento a sua fala para tomar o ar concentrado de quem espevita a mem)ria = (á aqui há pouco tempo, coisa de uns mil anos, gastaste uma cera enorme sem resultado aliás, com aquela tua ideia de que no c0u a !em"aventurança era um pr2mio e1cessivo para tão pequeno sacrifcio feito lá em !ai1o quase que me ias convencendo, mas desta vez não há pão quente. Está dito, está dito = rematou o Gai Natal terminante. . Drancisco lança mão de mais um apelo, como quem queima o %ltimo cartucho. E como se não tivesse ouvido a ordem terminante do Gai Natal, largou com insist2ncia e energia = 8s homens não me chegaram a entender. Entenderam"me, sim, na sua !ondade amada, a irmã ?ua, a irmã Kgua e o irmão Dogo, mas os homens nunca se me entregaram totalmente. E contudo o meu misticismo era mais doce e forte que a mais s)lida razão, e a!arcava tudo at0 o pr)prio infinito. &hegava at0 aqui onde nos encontramos porque 0 feito de almas e consci2ncias. 8 Gai Natal pIs as !ar!as em riste, o que era sinal da maior impaci2ncia. Gor0m . Drancisco, sem se dar por achado, continuou = Gensas que quero ir fazer milagres> @sso não me interessa, acredita meu amigo. 8 milagre não chega para resolver o meu pro!lema. 8 que eu quero, !ondoso amigo, 0 espalhar a minha mstica e a minha alegria por todo o mundo. 8h4 Era por 85
isso que eu tanto falava às aves como aos homens, às fragas como aos deuses. 7udo tem alma, a alma imensa que dá a luz universal e liga os mundos. 8 3ar!açanas suspendeu o serviço e, com surpresa do santo, atirou"lhe à queima" roupa = Então tu estiveste outro dia ao serão a contar os sofrimentos que te magoaram quando te deu, com o delrio deam!ulat)rio, para meteres a eito e s), por umas serranias fora, onde ias dei1ando a pele... E tam!0m encareceste as dores que te afligiram na tua doença e ainda querias voltar para tal peste... Hã >4 . Drancisco ia a falar, mas o 3ar!açanas, rematou em voz mais alta = (á sei o que me vais dizer. *ais dizer que a carne 0 um em!araço terrvel, que nos diminui e perde, vais dizer que agora desprezarias totalmente a carne... $as para cá vens de carrinho4 ão Drancisco tem o ar mais doloroso que se pode imaginar. Nos seus olhos cintilam lágrimas amargas e numa voz som!ria e ardente, magoada de soluços, disse ainda = Geço"te que me acudas, porque de contrário aca!a para mim a !em" aventurança. Gorque o que me aflige = 0 esta consci2ncia a clamar dentro de mim, sem se fatigar como um oceano, a clamar imperiosa e irrespondvel contra esta quietação, contra esta minha dolorosa inutilidade, contra a minha trágica, condenada e desprezvel in0rcia. 8 Gai Natal comoveu"se por momentos mas... Nada disse. Em face desta teimosia, quem teria o ousio de insistir> &alado, ali se ficou o . Drancisco, as mãos que as feras não podiam mais lam!er carinhosamente, metidas nas largas mangas do há!ito som!rio, com que o vestiu El Freco, assistindo triste aos preparativos da viagem. Gor0m, a !ondade infinita com que conseguia meter as mãos nos colmilhos indefesos das feras perdurava no seu coração e, lançando recurso da sua %ltima possi!ilidade, com uma voz de rosas, foi dizendo, como se fora a monologar. = para sofrer ainda que quero ir4 #s chagas de &risto que se a!riram no meu corpo já me não doem e quero v2"las sangrar de novo4 8 Gai Natal suspendeu o seu tra!alho visivelmente comovido. $as, de repente, como quem tem uma ideia inesperada, !ate na testa com força e e1clama
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= E se queres ficar lá em !ai1o> Hem> Buem 0 que te arranca outra vez para o c0u> Nada4 @sso são responsa!ilidades de mais. #qui não se pode mentir, como tu sa!es, isso seria um c%mulo nestes santos lugares, pensa nisto por amor de 6eus4 E rematou infle1vel = Não me comprometas4 Buando ia a meter no saco um com!oio, a que nada faltava, locomotiva a tra!alhar, passageiros, gares, sinaleiros, etc., ouve"se o Gai Natal resmungar. = ?á vem outro4 E então aquele que 0 todo efes"e"erres. Era . (orge armadura reluzente, lança primorosa. = 6ei1a"me ir contigo4 7enho saudades dos dias de !atalha. Esta lança 0 que disse as minhas melhores oraç-es. a!es lá a alegria de esquartejar drag-es e, na noite silente, cavalgar no pr)prio campo de !atalha onde o inimigo jaz destroçado para sempre4 # 3em"aventurança = disse"lhe !ai1inho, curvando"se para o ouvido, receoso de que algu0m ouvisse não 0 nada ao lado do triunfo deslum!rante com que a multidão me rece!ia quando regressava vitorioso no meu ginete de sangue ardente, galopando... Gara que quero eu este elmo !rilhante, esta viseira in%til e este peitoral recamado de gl)ria e alegorias, onde resvalaram milhares de lanças> = disse o santo, !atendo com o guante nas a!as do volante, que tocou como um sino. Gara qu2 a minha espada de aço de ?ivorno> = 8 . Drancisco tem mais vagar que eu para te responder, v2s ainda o que tenho para meter no saco> = e apontou com o !raço ilimitados quilImetros de !rinquedos, que às !raçadas ia engolfando no saco sem fim. . (orge manteve"se a!sorto, envolvido na luz dourada, onde a sua armadura !rilhava como fogo. Garecia pensar. u!itamente, como quem toma uma decisão, pu1a o !raço do Gai Natal e diz"lhe à orelha = (á que me não dei1as ir, queria pedir"te um grande favor. = /s tuas ordens4 = e1clamou o Gai Natal desem!araçado. = Godias trazer o meu retrato que 7iciano fez de uma maneira assom!rosa. Não há cores mais ricas, nem sonho mais profundo. #valias a alegria que me daria ao ver o meu cavalo de guerra, no!re como se lhe girasse nas veias sangue azul. Este teu criado cavalgando, nim!ado de luz, jovem e amado4 Bue !em ficava aqui tamanha o!ra de arte4 Dicaria a ser o teu escravo para sempre4
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8 Gai Natal passou a mão pela !ar!a !ranca e, em seguida, cruzando os !raços como quem tira satisfaç-es = 8ra o menino4 Gensas que nasci ontem> Buerias meter"me em !oa4 Buerias que eu rou!asse> Essa nem parece tua, a pequenada à espera dos !rinquedos e eu pela tua causa às voltas com a polcia4 E rematou, com desd0m = (uzo, meu amigo, juzo4 = e !atia com o indicador na cara, liquidando en0rgico = # lei 0 a lei4 (á sa!es que não vais4 8 Gai Natal vendo muitos santos da &orte &elestial assistindo impassveis ao seu tra!alho, irritou"se e e1clamou, censurando com ironia = $ãos à o!ra, amigos4 #judem"me4 e eu mandasse, voc2s tinham de sa!er quanto custa o suor que se perde a ganhar o pão de cada dia4 8s santos começaram logo afanosamente a encher o saco milagroso, e a montanha de !rinquedos diminua a olhos vistos. 8 . 'oque com aquela solenidade que toda a gente lhe conhecia, apro1imou se do Gai Natal e ciciou = Estás arranjado4 *em ali a linda $aria $adalena4 = 6eus me acuda4 @sto com mulheres 0 mil vezes pior o ano passado tive que me zangar a valer. $aria $adalena apro1imava"se naquele seu passo divino, tão leve, tão leve, que nem roçava nas tapeçarias, o ca!elo negro como a noite, solto em onda que se dispersava nos om!ros e depois em catadupa caa descendo das espáduas, vestiu do a cintura e rodando os quadris. 8 vestido de luar tecido, revelava desde o galho da perna à !eleza do seio. 6e mãos cruzadas e de olhar imenso, !elo da ternura humana com que chorou as dores de (esus, parou junto do homem do gi!ão, com os lá!ios finos emudecidos num !eijo eterno. 8 do gi!ão fez de conta que não era nada com ele e continuou a engolfar a sua preciosa mercadoria, deitando o ra!o do olho suspicaz a espiar a visita. #t0 que, numa voz onde à doçura da vida eterna se misturava ainda o flu1o ardente da pai1ão terrena, fluiu = &aridade sem amor ofende. 8s mártires morrem hoje sem compai1ão e sem gl)ria. 8s crucificados não t2m lágrimas ardentes, nem !eijos sagrados para lhe
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carem como joias so!re os p0s doloridos e chagados. $orrem no seio da multidão como num deserto. Não chega nenhum soluçar ao seu ouvido a dizer"lhe amor, nem sequer os em!alam como a crianças, as palavras magoadas e e1angues que a dor vai esmagando nos meus lá!ios feridos. Não há linho mais fino que o das minhas tranças, o linho 0 inerte e nas minhas tranças corre impetuosa a vida da minha alma, que faz esquecer todos os sofrimentos. # cruz do Nazareno era tão alta e os meus pecados levaram"me para tão fundo, que não havia milagre que me dei1asse apro1imar das chagas das mãos e do rosto divino e sentir o travor do fel que os fariseus lhe tinham dei1ado nos lá!ios. $as foi melhor assim, pois foi a derradeira das humildades para uma pecadora, en1ugar de rojo aos p0s da cruz o sangue divino com as minhas tranças e !eijar os seus santssimos p0s. = Buero ir, ouviste4 = disse a santa inesperadamente e com energia. 8 Gai Natal, delicadamente, tirou da ca!eça o !arrete pontiagudo de lã vermelha, gentileza rarssima no 3ar!açana e, confuso, desculpou"se. Bue não podia ser, que seria um desgosto inconsolável ter naquela idade de ser repreendido, que pensasse !em e que lhe perdoasse. Na imensidade re!oavam moldando"se pelo infinito os acordes da UV infonia de 3eethoven, desdo!rando o clamar angustioso do homem no c0u imenso, angustioso e trágico, mas ao mesmo tempo heroico na sua afirmação de vida = viver4 8h4 *iver mesmo no mist0rio. 6á vontade de fechar os ouvidos para não sofrer com aquela interrogação mortificada a que ningu0m responde e que penso ser um protesto contra a limitação que 6eus impIs ao homem. &ertas voltas de som parecem erguer o calvário de #poio... 8nde a !eleza fosse crucificada... E o som foi"se pouco a pouco perdendo... anta $aria $adalena retirou"se suavemente como tinha chegado, mas com os olhos cheios de lágrimas. 8 Gai Natal encolhia os om!ros com pena, mas ia resmungando = Jma trag0dia4 empre estes incImodos4 E, depois, a!orrecido, olhando em redor com receio de ser ouvido, e1clamou = $as que grandssimo canudo4 6epois, ao longe, um vulto solene, mitrado, as longas vestes do seu há!ito caindo majestosas, as longas !ar!as alvssimas, o olhar de uma profundidade sem limites, como se a!andonasse por momentos o quadro de *ieira Gortuense, vem caminhando nim!ado de luz, em direção ao !ur!urinho que cerca o Gai Natal. 89
Este, que o declina ainda longe, e1clama sentencioso = 'espeito meus amigos, muito respeito4 'eparem s) quem ali vem = Aurelianus Au#ustinus = Au#ustinus = disse com ar superior dos seus conhecimentos de latim. 7odos olharam e emudeceram. anto #gostinho aproveitou este sil2ncio e disse ao Gai Natal, que tirara o !arrete pontiagudo com humildade e interrompera o serviço = #ndo muito triste = disse o maior doutor da cristandade =, ando muito triste porque o mundo se desligou das virtudes platInicas que criam a vida moral que são a pr)pria vida. 8s Estados transformaram"se em máquinas ferozes e atuam como monstros esmagando tudo, triturando tudo implacavelmente, no desprezo total das ideias vivas e eternas que dão alma ao mundo. &om o desprezo da razão, perde"se a lei e a moral, que servem de %nica estrutura à 'ep%!lica das gentes. = E depois, num desa!afo = # consci2ncia e o Estado s) podem viver felizes so! a mesma lei moral. &ompreendes agora como o vasto mundo 0 triste4 #s mãos do santo estremeciam e o seu olhar profundo tomou uma amargura tão impressionante, que o 3ar!aças se comoveu, em!ora não entendesse o que o santo lhe queria dizer. &om respeito, continuou a ouvir = &onvidei Glatão e 6escartes para virem comigo, para nos levares, mas estão descrentes da cruzada que procuro empreender... 6isseram"me que não valia a pena, o que me magoou. 3em lhes disse que o idealismo e o espiritualismo rolam na tempestade !rutal que 0 a vida de cada um e de milh-es, que as almas endurecem e se perdem ine1oravelmente, num mar de agrores ilimitado. Glatão ainda me disse 8s homens aca!arão por me entender e amar = resposta dolorosa como v2s. 8 resgate das almas mal começa. preciso resgatar as almas para que o Estado as não devore. Entretanto devora"lhes a vida. Nesta altura 0 que o Gai Natal atingiu onde queriam chegar as filosofias e sem perder o respeito, continuando de ca!eça desco!erta, audacioso, mas sem ocultar de todo a sua re!entina, foi dizendo = 6ivino santo perdoai"me4 $as a viagem 0 arriscada e a vossa idade merece todos os cuidados. &omo v)s sa!eis, santo e sá!io, logo se daria conta da vossa aus2ncia e que havia de ser de mim, meu augusto santo> 90
8 Gai Natal convencido de que estava a ganhar a partida, pediu licença para dizer = e me permitis, meu senhor, um conselho de ignorante, rogava de joelhos, que espereis um momento, coisa de mil anos e se então = o que não creio = ainda não tiver aparecido a tal lei ou razão, ireis comigo, dar"me"eis essa honra. 8 santo pareceu aquiescer e o 3ar!a 3ranca recomeçou de gi!ão arremangado a encher a sacaria. Buando . #gostinho já ia longe disse para . 7omás que estava ao lado e ouvira parte da conversa = 6eus me perdoe, mas não há nada mais simples do que intrujar um sá!io. E era com estas que ele queria ir> Estava !em arranjado, !em se v2 que não sa!e onde se ia meter... #quilo s) por a chamin0 como eu4 &ontinuou a encher os sacos e resmungou = Estou mas 0 para aqui a encher"me de pecados por causa destes senhores... #rranjo"a fresca4 (á tinha tudo pronto e passava a %ltima inspeção com o olhar, quando . Drancisco de #ssis chegou correndo, com um grande saco. = Bue temos = disse o Gai Natal, intrigado = hã> = (á que me dão dei1as ir, queria pedir"te para levares esta encomendinha. 8 Gai Natal relanceou os olhos pelo saco e cofiando a !ar!a = Encomendinha lhe chamas tu a essa !izarma4 = 7oma"lhe o peso = disse o santo confundido com o receio de não lhe fazerem a vontade. 8 Gai Natal deu o chão ao saco e verificou que pesava tanto como uma pluma. = e1traordinário, . Drancisco, estou admirado para a minha vida, não pesa nada4 8lha, . Drancisco, já agora desculpa, mas diz"me o que leva o saco, gostava de sa!er. . Drancisco, compungido, e1plicou = muito grande, pois 0 para deitares à terra inteira essas sementes que levas. Não tens nada que te enganar, porque eu escrevi aqui o que o saco guarda.
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E apontou com o dedo longo e marfinado para os grandes caracteres da palavra L3ondadeM. = 3oa ideia, o1alá germine = disse o 3ar!açana. &omo não havia tempo a perder, pegou na mão do $enino (esus e meteu"se a caminho com grande inveja da &orte &elestial, que viera em peso ao !ota"fora. #cenavam com os lenços enquanto se avistou o Gai Natal, com o $enino a re!oque, at0 do!rar o ramo da pará!ola no espaço sem fim. ?ogo as estrelas se afastaram com donaire e a *ia ?áctea, como passadeira sideral, começou a desdo!rar"se diante dos passos do Gai Natal, ajoujado de !rinquedos e sorridente de ilimitada felicidade. 8 $enino (esus tinha de correr a !om correr pela galá1ia fora, para acompanhar o Gai Natal que, finalmente, dei1ara de responder à infinidade de perguntas que o $enino lhe ia formulando sem descanso. 8 espetáculo era assom!roso. Em!ora o visse todos os anos, o Gai Natal estacava sempre dominado por este prodgio sem nome. # 7erra rolava com uma velocidade incalculável e as grandes cidades com mirades de luzes voltejavam num en1ame loiro de endoidecer. # água dos oceanos refletia o c0u estrelado, lucilando milh-es e milh-es de s)is em superfcies imensas que, já de si, eram !rilhantes. 8s rios arqueavam de prata fundida os continentes como !elas cinturas. Jm ol maior, o nosso, de todos os dias, envolvia meia 7erra lanceolando"lhe um meridiano fantástico de golpes de luz que se perdiam no infinito. 8 $enino (esus espetou o dedinho e perguntou que !ola era aquela. 8 3ar!aças, visivelmente arreliado com a dificuldade da resposta, disse"lhe = Bue há de ser> Jm girassol cá do jardim, tu não v2s> 7udo isto se passava num sil2ncio verdadeiramente infinito, irreal. $undos que se moviam nas trajet)rias mais fantásticas, sem contudo perderem o sincronismo no espaço inacreditável e com velocidades astronImicas. ) as sapatorras do Gai Natal faziam, no pasmoso sil2ncio astral, um !arulho dos dia!os, que ele não podia remediar. = Esta chiadeira dos !orzeguins 0 que me pode comprometer4 8 $enino (esus não deu conta da o!servação. Gestanejava quando mais cerca, no sil2ncio eterno, algum cometa passava inundando tudo de uma luz ardente e tão veloz que a vista não o podia acompanhar. # lua !ranca e serena era a %nica nota de ternura calma naquela fantasmagoria sem nome. 8 sil2ncio transformava"se numa ang%stia, como se fora a alma inacessvel da misteriosa imensidade. 92
Buando chegaram, caam as doze !adaladas na torre dos &l0rigos. Buem se afirmasse !em, veria pelos telhados da cidade passar o gi!ão vermelho do Gai Natal, apressado, levando a re!oque o $enino (esus. 6e longe o gi!ão era uma nuvem rosada, que a !risa fosse rolando, como vela de !arco, no mar ondulado dos telhados. # alegria do Gai Natal4 Ele sa!ia que os seus presentes realizavam o sonho = o sonho que s) a divindade podia milagrosamente tocar = de tantos coraç-es4 Gara os pequeninos, ao menos, naquele dia dava"lhes a certeza de que não havia sonhos vãos e que a e1ist2ncia 0 plena quando a um sonho se segue outro sonho, e das cinzas de um se erguem as asas para outro e sempre assim. = tão !arato, afinal = verificava o santo com os seus !ot-es. 8 saco tinha de tudo glo!os !rilhantes, !onecos de mil formas, o mais vasto e fantástico jardim zool)gico feito de peluches, peluches, tecidos e cartolina com!oios e aeroplanos, gramofones e rel)gios, lanternas mágicas e guizos prateados pontes e viadutos, m)veis de meio palmo e flores de papel chocolates e cai1as de m%sica polichinelos sempre gentis de cara de alvaiade e pierrots de pierrots de alma apai1onada e face dolorida joias de !elo ouro, pulseiras e ocarinas livros com as mais !elas hist)rias do mundo e !ailarinas leves como !or!oletas. E tão !arato afinal4 8 $enino (esus ajudava como podia, acumulando os sapatos mais pequeninos que eram os da forma do seu p0. Buando chegaram ao 3arredo, desceram por uma chamin0 a prumo e com dificuldade. 8 Gai Natal pIs"se a coçar a !ar!a, intrigado, pois não via sapatos, nem pres0pio, nem árvore do Natal. 8 fogão, apagado, de tijolos desconjuntados, era como uma chaga. Há muito não queimara lenha. Em pregos, pendurada, roupa po!re e rota e as paredes escorrendo negra umidade. 8 Gai Natal ficou angustiado, de mãos cheias de !rinquedos rutilantes e as longas !ar!as tr2mulas de comoção, com tanta mis0ria. 'elanceou os olhos pela po!re quadra, para os a!rir desmesuradamente ao dar com um !erço feito de duas tá!uas em meia lua, onde a roupa desenhava o pequenino volume de um corpo de criança. 8 $enino (esus ia a correr para o !erço, mas o Gai Natal, pondo o indicador so!re o nariz, disse"lhe !ai1inho = &hiu4 Não o acordes4 E foi ele, aliviado dos !rinquedos, p0 ante p0, at0 junto do !erço. 6esviou 93
carinhosamente, com mil cuidados, o co!ertor velhssimo que co!ria a criança. E apareceu"lhe, linda como os anjos, a figurinha doce de um menino de an0is loiros, profusos em toda a ca!eça, invadindo as fontes at0 se espalharem um pouco pelo rosto, as pálpe!ras descidas so!re olheiras fundas e a !oquinha e1angue e impassvel. Gassa a sua larga mão a afastar o ca!elo dourado do pequeno, para se afirmar melhor, e esta encontra a algidez do mármore nas !reves feiç-es. # luz amanhecente desenha já os quadros da vidraça, são mais que horas de regresso. $as o Gai Natal não cessa de soluçar, a alma alanceada por tanta desgraça, cado de rodo so!re o chão. 8uve"se uma vozinha suave mas decidida. = Dico eu e leva esse menino para o c0u4 E dizendo isto o $enino (esus !ateu as mãozinhas de alegria e deitou"se no !erço. = ?eva"o para o c0u, eu fico na 7erra de onde nunca devia ter sado. Buando o Gai Natal chegou ao c0u, ao a!rir o saco, saiu um lindo queru!im, !atendo as asas !rancas, hesitantes como as das aves quando ensaiam voo ao a!andonar o ninho.
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NATAL NO MAR VURGÍLIO VÁRZEA A Eliseu Guilherme 8 capitão tinha dito na v0spera que se o tempo se aguentasse e o vento fosse favorável, por aquela semana, e Nossa enhora os não desamparasse, iriam passar o Natal na sua freguesia, no descanso da viagem. 8s marinheiros, ocupados, ao momento, em remendar as velas, à proa, so!re o castelo a!aulado, sorriram, por instantes, na doçura daquelas palavras, que lhes alegrava a alma, como um pren%ncio suave. E um rapaz moreno, de vinte anos mais ou menos, que estava sentado à gai%ta, as pernas cruzadas, a fronte pendida so! o !on0 de pala larga, afagado pelas densas madei1as escuras do seu ca!elo anelado, tendo so!re os joelhos uma lousa, onde fazia o cálculo da %ltima singradura andada, ergueu docemente os grandes olhos negros, cheios de um !rilho nostálgico, fi1ou rápido o capitão, o timoneiro ro!usto, pousando"os longamente, em seguida, so!re o mar azulado. 6epois, inclinando outra vez a ca!eça, prosseguiu mudamente no cálculo, em!ranquecendo a pedra de n%meros, que o lápis a!ria em !ordados. #!sorvido na tarefa, s) se interrompia algumas vezes para folhear as tá!uas náuticas. uspirava então, de leve, como numa a!afada saudade. ?evou assim muito tempo, at0 que o capitão, voltando da popa, onde estivera a deitar a !arquinha, perguntou"lhe com a sua voz grossa e áspera W Então, quantas milhas andou o patacho> W Noventa, fez ele de pronto, erguendo o rosto queimado, onde os olhos fulgiam, acesos ainda num clarão de saudade. # face carregada do velho marujo iluminou"se então duma e1pansão de !ondade, e sua !oca alentada, de finos lá!ios en0rgicos, descerrou"se num sorriso de j%!ilo, so!re os !elos dentes alvos. #chegando"se da gai%ta, onde o rapaz, já de p0, pegava as 7á!uas e a pedra para descer para a cCmara, pousou"lhe a mão so!re o om!ro, e, fitando"o muito com os seus olhos claros, raiados de sangue nos cantos pela idade e pela refração do sol no mar, disse"lhe, enternecido, num vago ar paternal
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W #ssim, meu rapaz4 pu1ar pelo casco, 0 pu1ar pelo casco4 E dei1a"te lá de cas)rios, que tu não tens idade4 # ?uza que espere. Daz"te homem, primeiro... # tua mãe, coitada, precisa de ti... 3ota pra fora as tristezas4 E alegra"te, que vais ainda passar com dia o Natal4... Enleado de repente por aquelas palavras, a ca!eça !ai1a, os olhos fisgados na tolda, o *enCncio, colhido assim no seu segredo ntimo, nem sa!ia o que dizer. $as como o velho oeiro, que ele tanto respeitava e temia pela sua severidade e rigor em viagem, lhe falasse desta vez com tanta !onomia, ousou responder vagamente, todo ru!ro, numa titu!eação de palavras W Não, senhor... não, senhor... eu não penso em casar... E desceu para a cCmara, carregando os o!jetos, numa pressa de se li!ertar do LapertoM em que o pusera o velho náutico. Entrou no camarote, e so! o j%!ilo que o tomava, naquela doce esperança de ir passar o Natal no seu arraial, a!riu a cai1a da roupa, sacou de dentro um pequeno registro colorido do enhor do 3onfim, que era o padroeiro do lugar, e !eijou"o longamente, pensando na mãe o na amada... $as um pampeiro do sul caiu inopinadamente, uma tarde, na antev0spera do dia almejado. E o navio, com o litoral já à vista, pela proa, foi o!rigado a fazer"se ao mar. 6esde essa hora at0 ao dia seguinte, ningu0m a !ordo parara, numa faina contnua, quando o vento começou a amainar e o patacho meteu de novo na !ordada de terra. #t0 à tarde, por0m, não se avistou a costa e a tripulação, agastada com aquele demInio de tempo, praguejava rudemente, perdida agora a esperança de ir passar o Natal em seus lares. 8 pr)prio capitão, de p0 ao cata"vento, junto ao homem do leme, mostrava, nesse instante, o rosto carregado como numa contrariedade. No entanto, durante o vendaval, a sua larga fisionomia de leão do oceano se conservara plácida e animada, nessa serenidade incomparável de esprito e de alma, que 0 a superioridade do marujo ante esse temvel adversário = o mar. que o velho oeiro tinha tam!0m esposa e filhos a quem idolatrava, e mais do que todos, a !ordo, sentia o desejo insaciável de mergulhar o coração sequioso de afetos nas carcias e !2nçãos do lar, onde todos os que vogam nas ondas encontram sempre um asilo remansoso e sagrado. Num recanto da popa, entretanto, o *enCncio, a quem o velho afagara nas v0speras, junto à gai%ta alta, satisfeito e feliz por encontrar nele um discpulo digno e que não temia !ater"se com as vagas, prometendo dar de si um marinheiro que o
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sa!eria honrar num recanto da popa, o rapaz não cessava de olhar, um momento, o horizonte al0m, onde lhe parecia ainda ir surgir de repente, so! a n0voa dourada do poente, a curva !ranca e saudosa do seu golfo natal. #li ficou muito tempo, at0 que a sineta de !ordo o despertou para o quarto. (á então, para leste, uma cinza sutilssima se alastrava nas águas. 6escia a noite lentamente na !arra verde do ocaso, onde !rilhos vagos morriam, na gl)ria do sol que findava, um ponto fulvo pequenino, *0sper, a estrela da tarde, numa cintilação tremulante e faustosa, que convidava a amar, rolava no cIncavo azul do firmamento, como uma camCndula dourada. Nas amuradas, à proa, e so!re o castelo arqueado, os marinheiros em grupo, esquecidos já do pampeiro, numa resignação invejável de almas sãs e amoráveis, que não dão nunca a!rigo e guarida a )dios mas a amores e mágoas, cantavam saudosamente e em coro essas !elas cantigas do sul, que sonorizam as estradas e praias alvas dos stios pelo tempo do Natal. Em!ai1o, na cCmara, o capitão, vendo que não chegariam à !arra senão ao outro dia, pela tarde, pois estavam ainda a mais de dois graus ao mar, a!rira os mapas so!re a mesa para traçar os rumos andados e pIr o ponto na carta. $as a saudade da famlia tra!alhava"lhe a alma. E, às vezes, quando o canto da maruja estalava mais forte, à proa, so! o ranger surdo dos mastros, ele, su!itamente enternecido, os olhos arrasados de lágrimas, erguia a ca!eça leonina, !ranqueada pelos anos, e punha"se a olhar tristemente a luz amarela e saudosa do farolim, pendendo osciladoramente do teto, na sua manga de vidro cercada de um gradil de metal. Em cima, ao p0 do leme, sentado em frente à !%ssola, na gai%ta fechada, o *enCncio enlevava"se tam!0m longamente naquelas cantigas nostálgicas. &onhecia"as !em, pois a sua infCncia dourada havia deslizado entre elas, num em!alamento de j%!ilo, na sua aldeia adorada. E quantas vezes as cantara, em menino, no !ando alegre dos amigos, em noites assim de festa, seguindo, com a lua no c0u, de presepe em presepe, os ranchos palreiros das raparigas amadas4 #ssim cismava tristemente, quando o coro dos marinheiros, avante, cessou de s%!ito, num profundo stacato. Dez"se um momento de sil2ncio, em que s) se ouvia o murm%rio saudoso das ondas !atendo nas amuradas. Era meia noite, uma dessas meias noites soturnas e quase trágicas do mar. Então, so! os quadrados alvos das velas nevando o espaço no alto, vozes roucas e másculas gritaram, à uma, do castelo
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W 7ocar a Natal4 7ocar a Natal4 E logo a sineta de !ordo, em repiques vi!rantssimos, de uma consoladora alegria de alvorada de calma, cantou o nascimento divino do $enino (esus, que docemente ecoou pelas águas, rolando ali, marchetadas de estrias de luz, so! a rede de ouro dos astros. 8 capitão, num enlevo, su!iu à pressa ao tom!adilho, chamando os marujos à r0. E todos, num forte unssono festivo, que arre!atava a alma, entoaram vigorosamente, na tolda, entre aquelas velas felizes dominando o oceano, este estri!ilho devoto de um velho hino cristão 6alve@ ? divino Jesus@ 0u4 do nosso cora*3o, +ue vieste ho-e ao mundo 7ara nossa salva*3o@8 )io BD
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O MENININHO! DO PRESÉPIO JOÃO SIM"ES LOPES NETO = 8lhe4 # está uni peão do major *ieira jogo o pescoço se ele não traz invite pra ir lá, hoje, festejar o Natal, na estCncia4... Eu sei4... #quele 0 gauchão !uenaço4 Eu, se fosse o patrãozinho, ia. @a, s) pra ver o que 0 uma gente de devoção. E 0 que o seu major *ieira não era assim, não pro caso que ele, em moço, at0 que era um virado, da gente se !enzer tr2s vezes4 8 major *ieira quando era cadete haraganeava muito pela rancheria dos postos. # estCncia era grande, e entre agregados e posteiros havia um povar0u o patrão velho, pai dele, era mui esmoleiro e não gostava de, perto dele, ver ningu0m com cara de fome. $as o diacho era que o que o velho fazia com as mãos o cadete desmanchava coos p0s... 8 mocito era a!usador, e mais duma feita saiu ventando de certos ranchos daqueles pagos... im, que um pai cria uma filha não 0 pra carniça de gaud0rio4.. Gor isso 0 que já os antigos inventaram o casamento. # divisa da estCncia, no fundo, faz uma que!rada forte, assim como o cotovelo do meu !raço nesta ponta aqui, onde está a minha mão, fica o ?agoão das ?ontras, e mais pra cá passa a estrada real. Em certos tempos a gadaria pegava a costear o lagoão e andando, andando, entrava na estrada eX adeus4 #ssim perdeu"se numa primavera uma ponta de novilhos que se evaporaram como sereno,., Doi um estafar0u, na estCncia, por causa disto o patrão velho ficou !uzina com o capataz, que rela1ou os repontes, e quase mandou lonquear um certo $iguelão, 99
que passava todo o santo dia lagarteando na reserva do rancho, e de noite nunca parava em casa... Garece que eu estou lhe enredando o rastro, mas não Ytou, não vanc2 escuite. que este $iguelão não era trigo limpo e tinha uma filha que era uma criatura !oa como uma santa, morocha linda como uma princesa. E vai, o desgraçado o!rigou a menina a casar"se com um sujeito sem eira nem !eira, e que diziam à !oca pequena que era parceiro nas velhacadas do $iguelão. Era um mais que mouro, e meio corcunda, e tinha um lanho grande entre a orelha e a nuca e mal encarado, era. #migo4 # quincha dos ranchos esconde tanta cousa como os telhados dos ricos4... $arido e mulher davam assim uma id0ia esquisita vanc2 já reparou quando a!re um cacho de flor num jerivá velho, de casca es!ranquiçada, cheio de talos secos pendurados e um que outro pendão esfiapado, que já deu coquinhos>... 8 jerivá 0 uma árvQe tristonha, mas quando !ota um cacho de flor fica alegre, de enfeitada, #quele pendão amarelo, lá em cima, chama os olhos da gente, parece um favo de cera, de tão limpo e dourado chama as mandaçaias, os passarinhos, os mangangás, as joaninhas dá cheiro que 0 doce 0 uma !oniteza pra todos os viventes. #ssim era aquele casal ele como o jerivá velho, ela como um cacho de flor, Ela chamava"se nhã *elinda e chorava muito, às vezes. Gor qu2> Buem sa!e láX 6epois daquele sumiço dos novilhos, o cadete *ieira passou a recorrer o campo por aquelas !andas a !olear avestruzes por aquelas várzeas a correr veados por aqueles meios a caçar mulitas naquela costa e at0 numa noite de !reu arranjou uma perdida =. Ymagine4 mais vaqueano que sono4 = mas perdida foi que sou!e rum!ear so!re o rancho do $iguelão... &ousas de rapaz que a nhã *elinda, essa, era de confiança.
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?á porque era moça, quase uma criança perto do marido, lá por isso não era motivo pra qualquer um chegar"se de !uçalete em mão, como se faz pra uma redomona, pra amanusear"lhe desde a tá!ua do pescoço at0 as ancas... $as o cadete gostava da moça numa pai1ão de verdade, diferente de quantas cavaleiradas estava avezado a fazer. Era uma adoração, quase um medo de ofender a querida do seu coração perdia a voz pra falar com ela, enredava"se nas esporas, perdia o entono de todo o seu jeito, e todo ele vivia s) nos olhos quando atentava at entava na formosura do seu rosto. ro sto. Entrementes foi aca!ando o ano e já era so!re o Natal. E vai a famlia do patrão velho armou um pres0pio na sala grande da estCncia e ele mesmo mandou avisar o vizindário todo que a sia"dona convidava para se cantar um terço de festa, na noite santa. E veio tudo, velhada e crianças, moçada, namorados, e at0 alguns andantes, que estavam de pouso, ficaram, todos, pra louvar a 6eus na noite mais pequena do ano. 8 cadete andava no meio do povo caçosta, dançarino e pisa"flores, mas no que chegou a gente do $iguelão, já se foi pondo como um c0u amontoado, em!urrado, de dar nas vistas. Houve jantarola e doçaria, na som!ra das figueiras. Escureceu a sala grande estava fechada, e as moças da estCncia lá dentro, preparando as luminárias enquanto o velho e a sia"dona pauteavam com a gente sisuda, em!ai1o da ramada grande, em frente da casa, a gurizada corria na pega dos vaga"lumes, rodando por cima dos cachorros ou fazendo provas de !urlantins, nos ca!eçalhos das canetas do galpão vinha o zunzum da peonada na som!ra do campo não se via nada, mas de lá vinham relinchos e mugidos, cracrás das corujas e uais4.. dos gra1ains. E no ar, como uma cerração que não se via, andava o fartum dos churrascos. Gor um segredo do destino a sia"dona mandou o cadete ver se as luminárias estavam ou não prendidas e vai, o moço, no entrar a porta, topou de cara a cara
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com a nhã *elinda que saia, justamente para vir chamar os donos da casa toparam"se as criaturas e miraram"se, num clarão que s) elas viram... #s mãos se encontraram... e num de repente, num sil2ncio, num tirão das suas almas, na pressa e no lusco"fusco, perto da gentama, numa relancina de corisco, as duas !ocas famintas se encontraramXe um !eijo, um !eijo que jurou pelos dois, para toda a vida, um !eijo s) derru!ou todas as negaças, como uma represa de açude aluda 0 derru!ada por uma muita descida de águas... *2 vanc2, a gente sa!e falar, dizer muitas enredices adocicadas, mas às vezes a palavra nem dá pra partirX e caladito no mais, um simples !eijo, largado de tronco, chega ao laço, folheirito, de re!enque alçado4 Go!res4 Nesse passo cruzou na mesma porta o $iguelão e !ispou o caso, e decerto já lo foi 1eretear ao genro, e atossicá"lo, suscitando"lhe susc itando"lhe maldades... $as logo escancararam as janelas e a claridade da sala alumiou o terreiro foi um alarido de contentamento, todos se ajuntaram e a sia"dona, pu1ando a ponta, entrou, para principiar o rosário. E aquele !andão de gente entrou e foi"se acomodando, olhando com ar de riso pasmado, toda s) dizendo o pres0pio4 o pres0pio4 o pres0pio4 Dazia a modo uma ramada no alto de uns cerritos, e fingindo grotas e sang-es e umas re!oleiras havia esparramados uns LalimaisM entre !oizinhos e ovelhas de !rinquedo e outros enfeites e mais uns figur-es mui calamistrados, de coroa, que pareciam reis, e, pro caso, um, que era negro retinto, era o mais empacholado. E perto destes, so!re a ponta do pres0pio, estava então a enhora *irgem e o enhor ão (os0, e entre eles, acamado numas palhinhas de milhã e uns musgos e umas penugens, estava o $enininho (esus, ruivito e rosado, nuzinho em p2lo, pro caso como uma criancinha que não tem pecado por mostrar as vergonhinhas do seu corpinho de inocente. 7odos se ajoelharam de roda, mas foi nessa ponta do pres0pio que a nhã *elinda ajoelhou"se e no costado dela, como um precipcio ou um encorrentado, a amoitou"se o cadete *ieira, talvez at0 para dar o seu peito em resguardo dalgum perigo... Não lhe conto nada4. . Buando pegou a cantoria do rosário e no cantante da reza a gente se foi enquartelando e emparelhando as vozes, que era uma !oniteza de ouvir, por a os olhos dela estavam como amarrotados no pres0pio, mas os olhos
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dele estavam no rosto dela, como se ai estivesse o pr)prio pres0pio, com as suas velinhas e prateados e !ichinhos mimosos... era at0 um pecado do inferno, aquela maneira de adorar gente, ali assim, nas !ar!as dos santos e da enhora *irgem e do seu $enino4... $as por0m, lá da porta, outro olhar, raiado de sangue, estava vendo tudo por certo que alguma loucura de ca!eça atacou aquele cristão velho, porque, num soflagrante, sem um deus"te"salve4 = o aflito aquele meneou os passos, derru!ando gente, e logo o facão relampeou na direitura do coração de nhã *elinda4... Houve um grito dQespanto pro mode o desaforo do desatinado. = (esus4... foi o grito de todas as !ocas. #h4 patrãozinho4... 8lhe que às vezes, na luz das velas !entas, se passam cousas de dei1ar um golpeado qualquer mais, mais aplastado que mancarão rei%no em mão de recruta... Buando a ponta do ferro matador estava a uma mão atravessadaX a quatro dedos s) da carne macia, a = credo4 louvado seja 6eus4 = a rolou da sua caminha de milhã... rolou e caiu no !oleado do seio da moça, na canhadita dos dois, caiu no regaço de nhã *elinda o $enininho (esus, como uma defesaX e a no regaço delicado ficou, como um dono na sua casa. . E o facão matador sentou, tironeado... depois recuando, LminuindoM, caiu mermado, mal seguro na mão sem força, do !raço sem vontade, e o cuerudo aquele deu costas e se !otou porta fora e o $iguelão com ele, !oquejando. 7empos depois se sou!e que o mataram, num entrevero, numa !ochinchada de carreiras. (erivá torto não dá ripa4... 8s velhos lá ouviram do cadete e de nhã *elinda o que havia, e lá arrumaram as cousas. 8 que le conto 0 que o seu major *ieira, ainda em cadete, se casou com a nhã *elinda, e que
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aquele tal $enininho (esus ainda hoje 0 o figurão do orat)rio e 0 o mesmssimo do pres0pio que, há mais de cinq+enta anos, se arma sempre na estCncia, no festo do Natal. = Não lhe parece que houve um milagre> &laro4 Doi por causa do $enininho que... e o dia!inho 0 tão milagroso4...
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REIS VALDOMIRO SILVEIRA 8 melhor pres0pio que se fez, esse ano, em ?orena, foi com certeza o da casa do (oão do anto, um home que não era rico mas arremediado, e tinha uma filha de mão !oa de mais pra um serviço fino assim, chamada Finerosa. (á de longe, reparando no jeito em que estavam postas as flores, armada a arve de !acupari, cheinha de frutas doiradas, e arranjados os tr2s reis e o enhor $enino Zque por sinal era gordo e corado, muito alegre[ e nossa senhora e . (os0 e a jumentinha e o !urrico, todos diziam W Bual4 Gra estes perparos não há mesmo outra que nem a Finerosa4 Ela então andava numa do!adoura, vai pra aqui, vai pra ali, atendendo às visitas, rece!endo os presentes, dando as lem!ranças que cada um queria do natal, e rindo, rindo, que era s) aquela alegria4 Buando foi sendo meia"noite, o (oão do anto repontou o povo todo pra missa do galo algum piá que estava meio morrinhento de sono, saa um tanto atropelado, que ele asso!iava no ouvido do tal, e não havia como o piá não levantasse a nhá 'ita, mulher do dito (oão do anto, redonda de gra1a, a coitada, via"se num tipiti, pra caminhar a par de tamanha gentarada, e Zcom perdão da palavra4[ ia !ufando que nem um redomão que aca!ou de tomar um galope decidido. # Finerosa, com sua saia de !alão entusiasmada, estava de matar. #ssistiram à missa, que aca!ou ali por volta de uma hora da madrugada, porque seo padre vigário, um velhinho já cata"cego e rouco, mal podia en1ergar as letras do livro santo e falava numa voz !ai1ica mesmo. E já iam indo de volta pra casa na virada de uma esquina... ... quando re!entou de uma outra o !ando dos cantadores de reis, pedindo esmolas pra %ltima festa do nascimento de Nosso enhor. E que !ando destorcido4 Não contando o povar0u do acompanhamento, que estava duro deste feitio, lá se via !em à frente, todo concho cQa sua viola marchetada, em cuja cravelheira tremia uma fita vermelha comprida, o #ntoninho &a!o *erde, pisando em lã e em ovos, e o &hico Gintassilvo, cQo machetinho na mão, olhando por cima de tudo, serenando de contente. enão quando o machetinho picou e a viola foi s) rasgando, ao passo que aquele mundão de ca!oclada cantava num coro alto 105
65 de casa nobre #ente, escutai e ouvireis1 l da parte do oriente s3o che#ados os três reis.8 E verso e mais verso, um em ri!a de outro, numa cantoria tão !onita que, depois que o !arulho tinha aca!ado, muito tempo, a gente inda cuidava estar cQos ouvidos encantados de tão linda toada4 #ssim que o !ando fronteou a casa do (oão do anto, o &hico Gintassilvo, que vivia numa pai1a desapoderada pela Finerosa, percurou apro1imar"se dela e, com todo o respeito, a !em dizer at0 um pouco enleado da lngua, pediu"lhe qualquer cousa pra festa de reis. # Finerosa, &risto 6eus W \cou atada dos p0s e das mãos, naquele instante mas sossegou, mal e malzinho, foi pra dentro, voltou pra fora, trou1e uma moeda de ouro, das de meia do!ra ainda, e disse"lhe estas palavras W 8lhe, nhI &hico a %nica coisa que eu pissuo de meu 0 esta moedinha, que vai dada de coração. Ele agardeceu, afastou"se cada vez mais atrapalhado, deu adeus, foi"se em!ora. E o !ando dos cantadores ia pintando o caneco pelas ruas, fazendo um rumor desesperado. &omeçava a arruivar"se um ladinho do c0u, que depois ficou vermelho, e depois amarelo, pQr am)r de o sol. # rapaziada, que estava tonta de sono, sumiu como por acaso a ?orena caiu logo num sossego, num sono tam!0m que, mal comparando, parecia de ares de çumit0rio. 8 pedit)rio ia desde o Natal at0 os 'eis, todo dia. Dormou"se aquele ano um terno que então sa!ia folgar direiro, com cada peito limpo que não tinha corage de negar uma dávida qualquer. $as não podiam rece!er dinheiro em nota, porque, segundo a voz geral nunca houve notas lá por 3el0m outra quem não tinha de seu um vint0m, um quarenta, um co!re paraguaia, entregava frangos, leitoas, frutas, !o!ages que servissem pra se venderem no dia %ltimo das festas. #manheceu o legtimo dia dos 'eis. Govo estava assim no largo da igreja. Nem !em foi ouvida a missa, já todos se esparramaram por ali fora, pra verem o !ando uçu de cantadores. eo padre vigário, o po!re4 " assim que passou entre eles, arcado por via da idade, murcho do rosto, fraco dos olhos, não teve mão em si que não dei1asse duas lágrimas correrrem"lhe pelo rosto a!ai1o. 6ecerto seo vigário, no
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tempo de moço, tam!0m foi do chifre urado com argolinha na ponta, decerto gostava !em de suas patuscadas e folias agora, acarcanhado e preso por aquele vestido preto, o %nico rem0dio que lhe so!ejava era mesmo chorar, o po!re4 8 machetinho gritou s) no fundo do largo, e da a um !aque a viola repinicou !uliçosa e sirigaita, acompanhando, e a moçada reuniu"se perto do #ntonio &a!o *erde e do &hico Gintassilvo. E lá foi o povão, cantando. 7inha umas moças que apareciam, de vez em vez, e pediam festas por este modo, enjoadas de mais 6Mo*o $ormoso e cortês, eu quero o meu )eis.8 Buando o sol estava querendo morrer lá pra umas serras grandes que pareciam espetar o c0u, de tão finas na ponta, a moçada foi pras casas onde tinha pres0pios, porque era a hora de leil-es de tudo quanto havia. *endia"se tudo as folhages, as flores, as frutas, os animais s) a anta Damlia, os 'eis, a jumentinha e o !urrico não se vendiam, ficavam pro pres0pio do ano que vinha. #pareciam uns ovos da ascenção, enfeitados de fitas, e o leiloeiro gritava, a m)Q que es!aforido at0 W #fronta faço que mais não acho4 Jm ovo da ascenção, ovo que não apodrece, que dá felicidade, que traz fortuna4 6ou"lhe uma, dou"lhe duas4 E lá vai o ovo da ascenção por vinte mil r0is4 E ia às vezes por mais, cada ovo4 7am!0m, quem arrematava um daqueles, guardava"o !em, com todo o carinho, porque 0 certo que faz ventura e tem o cheiro perfeito do !enjoim com que a pecadora !anhou os p0s de nosso senhor, quando ele já era home e ela era morena muito fermosa, conforme dizem aqueles livros que t2m a vida de Nosso enhor. &hegou a hora da casa do (oão do anto pra lá se dirigiu a rapaziada, que levava um cesto macota de dinheiro e quanta criação e coisa de mesa se pode imaginar. Doi o pres0pio arrematado, pedaço por pedaço e a Finerosa, que já se acostumara com ele e !eijava toda hora o $enino 6eus Zporque contam que quem tem f0 cQo $enino 6eus consegue tudo quanto quer[ viu ir saindo tudo os carneiros, a graminha da manjadoura, os jasmins de um lado, os cajus de outro, e os anjinhos pendurados das folhas de caet0 com flor que ali faziam figura, tão engraçados com suas asas de cor4
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Gor derradeiro, assim que tudo se entregou aos lançadores, no leilão, o capataz do !ando que era o #ntonio &a!o *erde, foi mandar fazer a ceia coQaquela dinheirama, e aprontar quanto pato e marreco e veado e paca tinham ganhado. 8 &hico Gintassilvo, esse não quis sa!er de mais nada folgar por folgar, antes ali perto da Finerosa, seu tanto escondido, confessando tudo que sentia por ela, tal e qual um que está aos p0s do padre, em segredo. E a Finerosa, que lhe perce!eu o jogo, logo"logo achou talho de conversar com ele, junto da arvinha arv inha de !acupari que inda !alançava a um canto. Buanta coisa não conversaram, quanta4 E foi depois de muitas horas, quando já estava roncando na sala dum vizinho o realejo do !aile pra depois da ceia, que o &hico, assim cQa voz quase presa, receoso, contou pra Finerosa W Finerosa, amanhã, se vanc2 me der licença e 6eus me ajudar, eu vou falar pra seu pai no casamento. W Dale, nhI &hico W ela respondeu fale, e fique na certeza que a melhor festa que vanc2 me podia dar 0 esta mesmo. 6epois, assim que não se via mais vivQalma na sala do (oão do anto, al0m do &hico, e o !aile inda não tinha principiado, a Finerosa foi pro quarto, pu1ou o $enino 6eus da cai1a dos vestidos, a!raçou"o, uniu"o !em aos peitos, e pegou a murmurar como se fosse às orelhinhas dele W 3em se diz, meu a!ençoado $enino 6eus , que quem se apega com v)s consegue o que deseja. 3em se diz4 E como já a tinham chamado umas par de vezes, saiu do quarto cantando. 8 realejo roncava na casa do vizinho. 6a a pouco principiaram a dançar o !aile, cQum estr0pito danado. E o &hico Gintassilvo, distrado na sala do (oão do anto, fazia que estava olhando as flores doiradas do !acupari, mas o que estava o que estava era olhando a porta da varanda pra não perder nem um pouco de tempo de contemplar a Finerosa. Ela apareceu, da a !ocado, e tanto que entraram no !aile Zisso 0 que foi a gana das moças e dos moços4[ deram logo nas vistas, de tão jeitosos que iam. eo padre vigário, que se sentara um momento ali na sala, por comprazer aos donos da casa, foi logo pra perto deles e com a mão a!erta, e1plicando não se sa!e o que, aos dois, parecia estar já a!ençoando"os... www.poeteiro.com 108
O LIVRO DIGITAL – ADVERTÊNCIA
O Livro Digital é – certamente - uma das maiores revoluções no âmbito
editorial em todos os tempos. Hoje qualquer pessoa pode editar sua prpria obra e disponibili!"-la livremente na #nternet$ sem aquela imperiosa necessidade de editoras. %raças &s novas tecnologias$ o livro impresso em papel pode ser escaneado e compartil'ado nos mais variados (ormatos digitais )*D+$ ,,$ ,+$ entre outros/. ,odavia$ trata-se de um processo demorado$ principalmente no âmbito da reali!aç0o pessoal$ implicando ainda em (al'as aps o processo de digitali!aç0o$ por e1emplo$ erros e distorções na parte ortogr"(ica da obra$ o que pode tornar inintelig2veis palavras e até (rases inteiras. 3mbora todos os livros do 4*rojeto Livro Livre5 sejam criteriosamente revisados$ ainda assim é poss2vel que alguns desses erros passem despercebidos. Desta (orma$ se o distinto leitor puder contribuir para o esclarecimento de algumas dessas incorreções$ por gentile!a entrar em contato conosco$ no e-mail6
[email protected] 7ugestões também ser0o muito bem-vindas8
#ba 9endes São Paulo, 2014