Qual a condição de uma análise? De um lado a atenção flutuante e do outro a associação livre. Pelo que se pode observar no filme “Um Skinhead no Divã” (Tala! Det är så mörkt) (1993), essa condição se concretiza por haver, respectivamente, de um lado o psiquiatra judeu Jacob e do outro o neonazista sueco Sören. O que possibilita o decorrer do tratamento é sua ferramenta fundamental, a transferência, que se estrutura na relação dos dois ao longo do filme. Essa ferramenta orienta o analista e é a maior premissa para que o tratamento ocorra e, simultaneamente, pode ser a maior resistência possível ao tratamento. Essa resistência decorre do acesso ao conteúdo intolerável para se pensar e elaborar. O paciente pode não estar preparado para saber a causa de seu sofrimento no momento em que se encontra. As resistências retardam o progresso da análise. O paciente repete ao invés de recordar suas inibições, seus atos falhos, seus traços patológicos de caráter e seus sintomas por não ter uma representação simbólica dos mesmos. A transferência permite que o paciente se sinta confiante e queira falar para tentar descobrir e compreender o que está se passando com ele. Trata-se de uma s uposição de saber direcionada ao analista. O analisando vê o analista como depositário do saber sobre si próprio, um ideal-do-eu, sendo que as respostas que busca estão no próprio discurso do inconsciente, porém relacionadas ao não-saber. O analista é apenas o facilitador, e não o fornecedor da verdade do paciente. O tratamento terapêutico precisa de uma colaboração de ambas as partes: o terapeuta e o paciente. Para uma eficácia no processo, o analisando precisa confiar em seu analista como um profissional capaz de ajudá-lo. O terapeuta, por sua vez, tem como papel ser útil, paciente, compreensivo, comprometido e apto de auxiliar o paciente a refletir, elaborar suas resistências e encontrar nele mesmo o caminho para suas possíveis mudanças. Durante o filme, alguns mecanismos de defesa são facilmente perceptíveis. Os mecanismos de defesa são mobilizações psíquicas inconscientes que tem como finalidade reduzir qualquer manifestação capaz de colocar em perigo a integridade do eu, uma vez que o sujeito não consegue lidar com situações s ituações que ele considera ameaçadoras. As angústias ativam os mecanismos de defesa, pois elas s ão consequências da percepção do perigo. Sören é um rapaz muito hostil, grosso, aversivo e mergulhado mergulhado em ódio. Ele é muito patriota, ama a Suécia, e é defensor de uma i deologia que visa a conservação de uma “raça pura”, a qual não se incluem se incluem afrodescendentes, homossexuais, judeus, comunistas, liberais, estrangeiros e todos que fogem do padrão pré-estabelecido pelo grupo neonazista de “skinheads”. O rapaz possui a palavra “ódio” tatuada em sua cabeça raspada e se veste à caráter do grupo a qual pertence. Ele detém um inconsciente muito atordoado e monstruoso, o que hipoteticamente é consequência de sua relação pouca afetiva e conflituosa com as figuras paternas na infância.
Durante as sessões, Sören se movimenta pela sala, mexe em tudo que vê, se exercita, checa as portas, olha pelas janelas, o que demonstra uma dificuldade em manter concentração ou até mesmo uma resistência ao tratamento. Resistência essa que se dá através de acting-out, ou seja, ele representa ou manifesta, na sua co nduta ou expressão corporal, um conteúdo inconsciente para não verbalizar alguma lembrança. O recordar cede seu lugar à ação. O rapaz também muitas vezes se refere ao analista com palavras de baixo calão e manifesta atitudes ofensivas. Jacob, por sua vez, é capaz de sustentar a transferência negativa e não interfere o tratamento. Ao mesmo tempo em que Sören demonstra ojeriza perante homossexuais, se torna evidente para o analista que ele possui desejos inconscientes homossexuais. Em uma de suas aventuras com seus amigos, o garoto não consegue estuprar uma mulher e broxa. Ele também relata ter dificuldades em se relacionar com mulheres, inclusive sua mãe. Sem que o analista se quer toque no assunto de homossexualidade, o skinhead já infere que Jacob o julgue como homossexual e se surpreende ao saber que sua especulação se provou errônea. A relação de Sören com sua mãe era simbiótica durante a infância, eles eram grudados. Já na relação com seu pai é onde os “fantasmas” mais assustadores do skinhead habitam e é nesse ponto que o analista insiste em tocar sempre, pois as raízes de suas angústias estão fixadas nessa relação. O ser humano vive com investimento do outro. O investimento narcísico, o investimento do outro, o cuidado são essenciais. A partir dos relatos do rapaz, cuidado é algo que ele nunca obteve do pai. Quando Jacob o indaga se ele apanhava do pai, o neonazista surta e chega a ameaçá-lo de morte. A lei se mostrou presente em sua vida numa marca de muita agressividade. Ao falar do pai, Sören apresenta uma respiração ofegante consequente de um trauma infantil. Seu pai o jogava na água para que ele aprendesse a nadar, o que resultava em afogamentos. Após relatar o acontecido, ele chora e ri ao mesmo tempo. Sören critica constantemente os estrangeiros. Ele fala que eles são perigosos, que nunca andam sozinhos e que estão por toda parte. Ele também fala que se sente vigiado, que tem medo de ser machucado e que deve estar sempre preparado para o combate. O skinhead fica repetindo marcas de uma cultura neonazista para não lembrar de suas angústias. Por trás desses pensamentos, há um conflito resultante das brincadeiras violentas de seu pai para com ele. Uma dessas brincadeiras consistia no pai amarra-lo à sua própria camiseta, o que o deixava desesperado e sem ar, com a sensação de estar se afogando. Essas práticas do pai representavam uma situação de não cuidado; o filho não pode confiar nem em seu próprio pai, que é uma figura muito significativa. Toda essa violência afeta seu viver, pois o rapaz alega que deve estar sempre em grupo e agir coletivamente para que ele não seja alvo de ataques e se fira. Sören desloca sua raiva em relação ao pai para os estrangeiros.
Em uma das sessões, analista e analisando invertem papéis. Sören faz várias perguntas à Jacob referentes à sua relação com seu pai. Ele o questiona se também apanhava do pai quando criança e busca no psiquiatra uma pessoa que tenha também passado pelo mesmo sofrimento. Outro aspecto notório no filme é a mudança de roupas de Sören para ir até a análise. Depois de algumas sessões, passou a vestir roupas mais comportadas, leves, de “menininho da mamãe”, o que indica um regresso à uma posição infantilizada. A regressão é um retorno a formas de gratificação de fases anteriores. A libido pass a a funcionar como infantil. Quando estamos fragilizados, somos criticados ou julgados, somos flagrados em alguma falha ou não vamos bem, costumamos entrar em um estado infantil, nos fazemos de vítimas e ficamos chorosos, birrentos, inseguros, confusos e até agressivos. Ao se configurar um lugar de auto escuta no processo terapêutico, Sören passa a se escutar e começa a se distanciar de seu grupo. O rapaz deixa de agredir pessoas rotuladas como “impuras”, para de frequentar reuniões e deixa de participar de ataques coletivo s de cunho violento sem motivo plausível. Não há introjeção de lei na estrutura psíquica desse grupo. Há uma situação limite em que Jacob não dá conta do conteúdo abordado por Sören. A análise é um encontro de inconscientes e o psiquiatra se mobiliza ao entrar em um assunto que desperta sentimentos pessoais por tocar em alguma ferida ou algum conflito não elaborado. O psiquiatra possui lembranças traumáticas da Alemanha nazista e tem medo desse assunto. Não há como manter um campo transferencial. Essa divergência gera uma discussão e para que o tratamento não fosse prejudicado, Jacob propõe uma condição de análise, no qual a existência de Auschwitz é algo incontestável e verídico. Sören fala algumas vezes para Jacob “Você não é meu pai”. Ele nega um conflit o afirmando um desejo. Desejo esse de ter outro pai que possa dar amor à ele, que possibilite a construção de uma relação afetiva. Ele vê no analista essa figura de pai idealizada. O rapaz precisa de uma relação que sustente seu ódio.