Jornalismo investigativo: o caso dos skinhead neonazistas espanhóis
Isabelle Marie-Thérèse
Antonio Salas é o pseudônimo de um jornalista espanhol especializado em jornalismo investigativo. Salas se infiltrou, por quase um ano, no movimento skinhead neonazista espanhol. Ele já havia se infiltrado em diversos grupos, desde máfias até seitas satânicas, mas, segundo o próprio jornalista, nenhum dos seus trabalhos anteriores foi tão difícil quanto a imersão no grupo skinhead neonazista. Diário de um skinhead poderia ser um diário de um etnógrafo que decide viver durante um ano com o grupo que pretende estudar para observá-los e descrever a exaustão cada uma de suas práticas e costumes, mas o trabalho de Antonio Salas é muito mais arriscado. Para o jornalista investigativo não basta se afastar dos seus preconceitos e se aproximar do grupo investigado, ele precisa se tornar um membro desse grupo e ser aceito por todos como parte integrante. Salas também poderia ser um ator, que assume uma personagem e faz com que o público – no no caso, o grupo investigado – acredite acredite que ele é essa nova pessoa, construída para viver uma outra vida. Mas, ao contrário do ator, o investigador precisa manter uma outra identidade por dias inteiros, meses e até anos. A pena para o investigador que não for capaz de manter o seu público entretido pode ser a morte. Quando se infiltrou no movimento skinhead neonazista espanhol, Antonio Salas já havia realizado diversos trabalhos como jornalista investigativo, mas nada do que aprendeu em todos esses anos de trabalho pôde ajudá-lo na construção do seu personagem personagem skinhead. O mundo neonazista, que nas palavras do próprio autor é obscuro, sinistro, perigoso e profundamente desconhecido, se apresentou como o maior desafio da carreira de Salas. Durante todo o período em que conviveu com os neonazistas, o jornalista investigativo utilizou câmeras ocultas para captar a realidade do grupo. Todas as confissões mais íntimas que os jovens skinheads fizeram a ele foram gravadas. gravadas. Carregar a câmera oculta provocava em Salas um sentimento constante de tensão, mas o medo de ser descoberto o mantinha alerta e concentrado. A utilização da câmera oculta abre margem para uma discussão sobre o direito à privacidade, uma vez que o uso das imagens e dos diálogos gravados não foi autorizado pelos investigados. A favor de
Salas, devo argumentar que, na maioria dos casos, ele não divulgou a verdadeira identidade dos skinheads. Ao falar, por exemplo, de dois jovens skinheads com quem desenvolveu uma amizade s incera, o jornalista coloca: “Naturalmente, não posso revelar seus nomes pois sei que imediatamente seriam objeto da fúria de seus camaradas”
(SALAS, 2006: 94). O jornalista divulgou apenas os nomes de alguns líderes neonazistas quando foi necessário denunciá-los para as autoridades espanholas. Para se transmutar em um neonazista espanhol, Salas, que faz questão de reforçar que não compartilha com seus companheiros skinheads sentimentos racistas, diz que é preciso se desfazer da sua própria natureza. O jornalista espanhol conta que tentou encontrar dentro dele pontos em comum com o grupo neonazista, o amor pelos esportes, o gosto pela música e o interesse pelas religiões indo-europeias. Para introjetar um natureza racista, ele se lembrou da sua ex-noiva, que havia casado com um cubano. Em cada rosto de um negro ou imigrante, Salas passou a imaginar o cubano. O jornalista espanhol precisou estudar muito antes de fazer o seu primeiro contato com os skinheads neonazistas por meio de chats na internet. Salas transformou a decoração de seu apartamento, o transformando em um covil neonazista, onde lia todos os dias trechos do livro Minha Luta, de Adolf Hitler. Usando o apelido Tiger88, ele se infiltrou no mundo cibernético neonazista e fez contato com praticamente todos os grupos espanhóis. O investigador passou a frequentar as livrarias e lojas neonazistas que descobriu por intermédio de seus contatos, comprou botas, jaquetas de couro, suspensórios e pins. Terminada a sua transformação física, Salas estava pronto para fazer seu primeiro contato com um skinhead neonazista fora das salas de bate papo. Por meio dos chats, o repórter conheceu Rommel, um jovem skinhead neonazistas. Rommel foi a porta de entrada de Antonio Salas para o mundo neonazista. Os grupos neonazistas espanhóis estão estreitamente ligados ao mundo do futebol. O grupo em que Salas se infiltrou, a Ultrassur, é, antes de tudo, uma das torcidas organizadas do Real Madri, famoso time de futebol espanhol. Salas passou a frequentar os bares nas imediações do Estádio Santiago Bernabéu, onde conhecia os integrantes da Ultrassur e ganhava, cada vez mais, a confiança dos líderes do grupo. Ao longo do ano que passou com os skinheads, Salas presenciou alguns espancamentos promovidos por eles contra negros, imigrantes e judeus. A primeira vez que isso aconteceu foi nos arredores do Bernabéu. Os neonazistas da Ultrassur
avançaram contra um turista francês negro e o espancaram. Junto com ele, estavam outros dois turistas franceses, que também foram agredidos por serem “amigos do macaco”. Os ferimentos do turista negro foram suficientes para que ele tivesse que ser
levado para o hospital. O comprometimento de Salas com a investigação aprofundada faz com que ele anote a placa da ambulância que levou o jovem para o hospital para, mais tarde, localizá-lo e conseguir uma entrevista com ele. Durante o tempo com os skinheads, o jornalista também entrou em contato com a ala feminina do grupo neonazista, as skingirls ou chelseas. Mara e sua amiga Cristina, ambas skingirls, pedem a um amigo que as apresente a Tiger88 em um bar nos arredores de Madri. Mara está obviamente interessada no investigador e, ao final da noite, se oferece para levá-lo de volta a cidade em seu carro. Salas aceita a carona e aqui tem início um dos acontecimentos mais controversos da investigação. Durante a conversa, a skingirl mostra-se tão racista e xenófoba quanto os seus camaradas homens e consegue falar por horas sobre a superioridade da mulher branca. O jornalista admite que, a esta altura já não consiga mais controlar o seu consumo de álcool, talvez por isso tenha ficado sem reação quando Mara se jogou sobre ele e começou a beijá-lo. Salas e a skingirl fizeram amor, palavras do próprio autor. Embora o jornalista afirme ter se aproximado de Mara com motivações exclusivamente profissionais e justifique ter feito sexo com ela apenas para que ela não descobrisse sua verdadeira identidade, fica claro que ele se sentiu interessado pela neonazista assim que a viu. Salas faz muitos comentários a respeito da beleza de Mara e da sua inteligência. Ele tenta, até mesmo, encontrar justificativas para o racismo da skingirl. Nesse caso, fica claro um desvio moral do jornalista. Relações íntimas entre jornalistas e fontes são altamente reprováveis e, no caso de Salas e Mara, o desvio ético do jornalista é acentuado pelo fato de ela não saber a sua verdadeira identidade. Não foi dado a skingirl o direito de escolher se queria ou não ter relações sexuais com Antonio Salas. A relação sexual entre o jornalista investigativo e a fonte em questão não foi, de maneira alguma, decisiva para o êxito da investigação. Em um jogo entre Real Madri e Osasuna, Salas escapou por pouco de participar de um espancamento contra os torcedores do time rival. Ao fim do jogo, os neonazista da Ultrassur se organizaram e cercaram o estádio Bernabéu para dar início ao espancamento coletivo de qualquer torcedor do Futebol Clube Osasuna. O investigador precisou se separar do grupo, ou do contrário teria que participar da agressão. Sérgio e
seu irmão David foram os alvos dos torcedores da Ultrassur. Eles foram brutalmente agredidos pelos neonazistas enquanto Salas apenas observava a cena estarrecido, sem poder intervir. O jornalista espanhol não participou de nenhum ato violento naquele dia ou em qualquer outro dia que passou com os skinheads, manteve o seu disfarce sem sujar as mãos. Apesar disso, ele faz uma reflexão sobre as marcas que o ano em que viveu entre os neonazistas vai deixar em sua vida: “Agora sei que é impossível chafurdar na merda
sem se impregnar de seu cheiro. E por mais que você se esfregue sempre fica um resíduo longínquo do fedor. Suponho que agora também está em mim” (SALAS, 2006:
19). Depois de presenciar diversos espancamentos, rituais pagãos, disputas entre torcidas, shows de rock ariano e reuniões em bares e livrarias, Tiger88 abandonou o grupo skinhead neonazista Ultrassur. Ele chegou a ter contato com as maiores lideranças neonazistas da Espanha e mapeou toda a rede de ligação entre os skinheads e os times de futebol. Antonio Salas desenhou o perfil dos jovens que neonazistas espanhóis e chegou à conclusão de que eles são “apenas bonecos pendurados na ponta
de fios. Títeres de outros interesses políticos, econômicos ou pessoas que os manipulam habilmente graças a seu fervor nacionalista fanático e irracional” (SALAS, 2006: 242).
Com a repercussão do livro Diário de um skinhead e a transmissão da reportagem “Infiltrado na Ultrassur ”, no canal Tele5, o jornalista espanhol recebeu diversas cartas de seus ex-camaradas skinheads, mensagens de ódio, ameaças e até mensagens de agradecimento por tê-los feito abrir os olhos para a sua real condição. Algumas das respostas de Salas às cartas recebidas estão reproduzidas ao final do livro. É possível perceber que ele criou laços com alguns dos skinheads com que conviveu. Durante uma passagem do livro, o autor admite ter se envolvido emocionalmente com dois skinheads. Salas conta que os dois jovens partilharam com ele uma amizade sincera e que, por isso, se sentiu culpado por manipular seus sentimentos. Ele diz ter sentido um afeto sincero por esses dois neonazistas, mesmo que abomine suas crenças e ideologias. O autor explica que, apesar de parecer contraditório, esses são os riscos do trabalho de um jornalista infiltrado. Após cortar o contato com a Ultrassur, Antonio Salas denuncia todo o movimento skinhead neonazista para a polícia. No epílogo do livro, Salas descreve a
participação de cada líder do movimento e a sua situação atual e lista as diversas livrarias, lojas, revistas e bandas de música envolvidas com o neonazismo espanhol. Ele enumera os sites neonazistas existente e denuncia seus donos, revelando seus nomes verdadeiros e endereços. Cabe aqui fazer uma reflexão sobre o papel social do jornalismo investigativo. O papel dessa modalidade jornalística é trazer à tona fatos ocultos ou disfarçados que sejam de interesse da sociedade. O movimento neonazista espanhol nunca havia sido documentado de maneira tão detalhada. Por meio da sua investigação minuciosa, Salas expõe os segredos dos skinheads racistas e xenófobos, permitindo assim o engajamento da sociedade no assunto. Salas foi o primeiro, entre jornalistas e autoridades, a penetrar de maneira profunda no universo dos skinheads neonazistas espanhóis. Ele recolheu informações que, provavelmente, servirão como base para diversas pesquisas acerca dos skinheads. Seu trabalho também foi de grande importância para a polícia espanhola que, a partir das informações fornecidas pelo jornalista pôde efetuar prisões e iniciar uma investigação consistente sobre os neonazistas.
Ficha Técnica
Título: Diário de um skinhead: um infiltrado no movimento neonazista Autor: Antonio Salas Tradução: Magda Lopes Capa: Rudesindo de La Fuente Imagem da capa: Contacto Coordenação editorial: Marcelo Gomes Diagramação: Globaltec Editora: Editora Planeta do Brasil Local da edição: São Paulo Ano: 2006 Imagens do interior do livro cedidas pelo autor