Filosofia Dialética Moderna UNIVERSIDADE FEOER.á.L DO PARA BI BLIOTECA CENTRAL
WOLFGANG RÕD
Tradução de Maria Ceci1ia Maringoni de Carvalho e Estevão de Rezende Martins
CADERNOS
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BE::J Editam Universidade de Brasílz"a
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livro ou parte dele po e ser reproduzido por qual sem autorização escrita do Edi Impresso no Brasil
Editora Universidade de Brasília Campus Universitário - Asa Norte 70.91 O Brasília Distrito Federal ~'
C. H. Beck'sche Verlagsbuchhandlung München 1974 Título original: Dialektische Philosophie der Neuzeit - Wólfgang Erster Band: Von Kant bis Hegel; Zweiter Band: Von Marx bü Traduzido da primeira edição original em língua alemã de Prefácio e Capítulo IV da Segunda Parte revisados pelo p exclusivamente para a edição brasileira. Direitos exclusivos para esta edição: Editora Universidade de Brasília, 1984 Copyright
Capa: Arnaldo Machado Camargo Filho Equipe Técnica
Editores: Manuel Montenegro da Cruz, Maria Riza Baptista Dutra Supervisor Gráfico: Elmano Rodrigues Pinheiro Controladores de Texto: Alfredo Henrique Pacheco Henning, Antonio Carlos Ayres Maranhão, C1arice Coutinho dos Santos, Patrícia Maria Silva de Assis, Veralúcia Pimenta Moura, Wilma Gonçalves Rosas S~ltarelli. Lúcio
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Ficha Catalográfica e laborada pela Biblioteca Central da Universidade de Brasília .\\
Rod, Wolfgang ~ R685d Filosofia dialética moderna. Trad. de Maria Cec11ia Maringoni de Carvalho e Estevão de Rezende Martins. Brasl1ia Editora Universidade de Brasl1ia, 1984, © 1974. 402 p. (Cadernos da UnB) Título original: Dialektische Philosophie der Neuzeit. 162.6 série
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SUMÁRIO Prefácio à: Edição Brasileira . . . . . . . . . .. ... .... ~ ·~. . . . . . . . . . . . . . . . .
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Introdução . • . . . . . . ... .. .... -~~:- ~/: . .. , . , -;· .· .. . . . . . .. . . . . : . . . . .
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PRIMEIRA PARTE: De Kànt a Hegel Capítulo I : Raízes do Método- ·álético na Filosofià Vré-Kantiana .. ..· ... .. . .. . . . . Capítulo H: Temas Dialéticos-na Filosofia Traçs<;en~tal~ ~- .. . .''.··.. .. . .. · Capítulo 111: Tendências Dialéticas no idealisitio Pós::Kaiúiano ·, _ ~· . . . .... .. . Capítulo-IV: Os Fundamentos da Dialética Hegeliana ... . .. . .. .. . . . ... .
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SEGUNDA PARTE : De Marx a Nossos Dias Considerações Preliminares . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. Capítulo 1: A Dialética em Marx, Engels e no Materialismo Dialético Posterior Capítulo 11: A Dialética dos Neo-Hegeliànos ... . . .... . . . . .. .. ... .. . Capítulo III: Elementos para a Reconstrução da Dialética Marxista . . . . . . . Capítulo IV: Resumo e Perspectivas . . .... .. ... . . . . . . .. .... . . : . .
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PREFÁCIO À EDIÇÃO BRASILEIRA O presente livro foi publicado pela primeira vez em 1974, em versão alemã. Em 1977 veio a lume uma edição espanhola, estando em preparo uma japonesa. Que ele seja, hoje, publicado também em língua portuguesa, graças ao auxílio de amigos e colegas brasileiros, especialmente daqueles que se submeteram ao grande esforço da tradução, significa :Dara o autor não somente a conquista de um novo público, mas igualmente · uma nova responsabilidade. O leitor tem, com efeito, direito a uma exposição que corresponda ao estágio atual do debate filosófico. Por esta razão o autor teria preferido reescrever inteiramente este livro. Como tal não lhe foi possível, por diferentes motivos, ·teve ele que se contentar com uma série de com!)lementações que se encontram em diversos pontos do livro, sem estarem. contudo, indicadas como tais. O principal complemento é o novo capítulo final, que substitui o da primeira edição, bem mais sumário. · Permanece inalterada a posição básica do livro, na qual se reage contra a tendência de se enfraquecer o sentido do termo dialética. Não se procede a uma análise sistemática direta de certas teses da filosofia dialética. Mas, pela tentativa de reconstrução da ênese do conceitQ_(je_dialética e dos termos c~ais ~a_filosofia .dialética., busca·· se. deiXar tr~~~r_ a significª-çã..Q fºndàmental destes conceitos. ·-0 autor do presente livro estava convencido, e o está cada vez mais, de que o debate com a dial 'tka eve ser travado no _tino dos pressupostos fundamentais. Diante do enfraquecimento d9 uso- terminológico da d!alética,--atualmente constatado, só subsiste possibilidade dee sclarecer os problemas, na medida em que se atenta àqueles pressupostos da filosofia dialética que não são explicitados, de forma al-
.2. guma oa .de, :modo insuficientemente claro, pelos iepresentantes da dialética; e na medida em que se analisam aqueles conceitos que, embora essenciais para a dialética, não foram precisados, ou ao menos não o bastante, pelos filósofos dialéticos. O resultado desta tentativa ·crítica consiste na intuição de ~ue os princípios da dialética de modo algum possuem a ..evidência
3 O autor deve um agradecimento especial aos tradutores deste livro, Maria Cecília Maringoni de Carvalho e Estevão de Rezende Martins. Ele deseja, ademais, agradecer a todos os que, além dos citados, se empenharam na preparação desta edição, particularmente a Nelson Gonçalves Gomes, à Editora Universidade de Brasília e a seu Presidente, &o qual agradece a aceitação de incluir este livro no programa editorial. Wolfgang Rb'd
Innsbruck, fevereiro de 1980.
INTRODUÇÃO Dificilmente uma questão da filosofia contemporânea divide os espíritos de modo tão radical como a questão da justificativa das pre· tensões da filosofia dialética. Este problema continua existindo mesmo · se se deixar de lado o papel ideológico-político desempenhado pelá dialética e nos restringirmos somente ao seu alcance teórico. As pretensões dos filósofos dialéticos das diferentes correntes, d~ terem desenvolvido ou pelo menos de poderem desenvolver um método, uma lógica, uma ontologia ou uma teoria da práxis dialética. em concorrêJ.'!cia com a lógica tradicional, com os métodos científicos tradicionais e com a ontologia tradicional, são conhecidas mas de forma alguma aceitas. Se não nos quisermos alinhar nem ao lado dos partidários da dialética - mais exatamente: de uma das suas formas (pois a dialética não existe) - nem ao lado de seus oponentes, que não vêem na dialética senão confusão, quando não fraude, seria então mais adequado, sem preconceito .algum, não só com relação a certas soluções, como também com relação à possibilidade de resolução do enigma da dialética (Trendelenburg) , que se conheçam, em primeiro lugar, com exatidão, estas pretensões e a fundamentação trazida em 8poio deles e que se investiguem como ~stas foram elaboradas. É recomendável, por conseguinte, que se parta da origem da idéia de uma filosofia dialética, isto é: que se examine o enigma da dialética no sentido da análise genética. Como em nenhuma outra disciplina, os pontos de vista sistemático e histórico estão relacionados entre si na filosofia. Decerto não existe, propriamente, uma história da filosofia sem pressupostos sistemáticos, sob cuja luz os contextos históricos são interpretados e
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julgados, como inversamente parece pouco possível abordar problemas filosóficos, de forma sistemática adequada, sem levar em consideração também os contextos históricos respectivos, pois uma compreensão plena dos problemas pressupõe o conhecimento de sua gênese. Isto vale em geral e também, em particular, para a abordagem dos problemas da dialética. Quem quiser discutir o conceito dialética e os problemas com ele conexos, não poderá evitar dedicar-se à história da dialética e reconstituir a origem dos problemas desta, como é feito no presente livro. O objetivo desta investigação consiste em reconhecer que a filosofia dialética é uma decorrência da filosofia moderna clássica (como o é também, num sentido amplo, mas aqui não estudado, da filosofia das épocas anteriores). * A filosofia dialética foi preparada, especificamente, pelas_ uestões da relação entre o ente finito e o infinito ou absoluto, da relação -___,____ entre fenômeno e essência da relação entre consciência de si e consciência do objeto, entre liberdade e necessC.f d..Ua.usaL" Embora estes problemas .tenham sido levantados ainda bem antes do nascimento da dialética, na passagem do século 18 para o 19, não se buscou, de início, resolvê-los empregando os meios da filosofia dialética. Nós os encontramos em Descartes como em Spinoza, em Leibniz como em Kant, sem que se justificasse falar de elementos dialéticos em suas filosofias, quanto o termo dialético é utilizad'J no sentido ha1Ditual. Se, eventualmente, se buscar elementos dialéticos em filósofos dos séculos 17 e 18 e mesmo se se pensar tê-los encontrado, tratar-se-á de interpretações equivocadas, como pode ser demonstrado em cada caso particular. Somente uma determinada interpretação destes e e outros .J]Lohie as da filosofia os sécu os r e 18 levQ]Lao surgimento da filosofia dialética, que se pode mostrar ter nascido do espí:ill.Q:]ta_ metafísica racio a_ista moderna, devendo-se perguntar se se tratou de um nascimento legítimo ou, antes, ilegítimo. Na presente investi1 gação d~fende-se a posição de que a filosofia dialética deve ser enten\ dida como conseq~cía de U!!!_ er_ro filosófico.
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Este erro, que, efetivamente, não gerou sozinho a dialética, mas sem o qual esta não se teria produzido, consiste em hi]2ostasiar, inju:;tifica_ elmente relã lógicaseYn---etoaorõgzca , isto é, a relação ló-_ gica entre o todo e a parte e a relação l!letodológica entre princípios -
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7 de ruma- teoria e- as consegYên..cias.._dcla. No primeiro caso, surge a -~parente dialética da totalidade; no segundo, a aparente dialética 4a essência e do fenômeno. Em ambos os casos, idéias - o pensamento de um todo, sobretudo do todo absoluto ou o da totalidade dos prinCípios de teorias, sobretudo de teorias metafísicas especulativas são transforniadas em algo de substa·ncial. Assim aparece, no lugar -da i@ia de um todo absoluto, o absoluto e, no lu ar da idéia a totalidade dos princípios de uma teoria da realidade experimental, q essêff cia- da realidade. De modo análogo para o que se refere às t<:>talidades 'e e~sências ma·s especiais. Conseqüentemente à hipóstase, a situação não mais se apresenta só como se o pensamento da totalidade e o pensamento da parte, ou o pensamento de um conjunto de premissas e o pensamento de um conjunto de ilações, se condicionassem mutuamente, mas como se existisse entre a totalidade e seus momentos, ou entre a essência e o fenômeno, uma relação de ser de tipo especial, justamente a dialética. O papel desempenhado pelo pecado original da hipóstase na filosofia dialética ficará patente em muitas passagens do presente livro. Não se discute, com efeito, que a indicação da hipóstase errônea de idéias atinge apenas um aspecto do pensamento dialético; trata-se, porém, se a base deste livro está correta, de um r!specto essencial, ao qual os demais aspectos devem ser subordinados, inclusive o teológico, não negligenciável, consistindo na influência do motivo místico na superação dos limites da subjetividade finita, assim como o aspecto histórico-filosófico da escatologia, o qual se encontra nos representantes, tanto idealistas quanto materialistas, da dialética. A investigação genética da dialética fornece elementos importantes sobre os fundamentos dos quais partiram a construção de prin\ , cípios centrais e a concepção de conceitos fundamentais da filosofia dialética; ela, porém, não basta para efetuar a necessária crítica da dialética. Uma crítica fundamentada exige reflexão sobre os pressupostos implícitos da dialética. Esta reflexão crítica dev~ ser feita a partir de um po~vista_ filo~ófico~iso. 1
I O ponto de vista a partir do qual se desenvolverá, a seguir, a crí- ' tica da dialética, é o de uma filosofia crítica que, na seqüela de Kant e do criticismo pós-kantiano, é entendida, essencialmente, como um pensar analítico- Deste ponto de vista, a evolução filosófica, de Kant
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até o idealismo especulativo, se apresenta como equivocada, uma vez que os idealistas pós-kantianos, relacionados de diferentes maneiras a Kant, ignoraram o aspecto crítico-analítico do pensamento kantiano, cujo eiemento mais vulnerável, o especulativo-idealista, foi por eles tomado e desenvolvido. O componente crítico está presente, nesta exposição das diversas direções da filosofia dialética, a todo momento, mesmo se de forma implícita, isto é, em relação com a análise histórico-genética. A importância da posição crítica diante da dialética não precisa ser demonstrada àquele que já tomou consciência de quão arbitrariamente são utilizados os conceitos e princípios centrais da dialética. O próprio termo dialética é manipulado de tal forma que dificilmente se lhe node atribuir um significad~ unitário. Fala-se, a~sim, de um método dialético sem que seiam formuladas regras de inferência, às quais se recorreria para passar de certas premissas a certas conclusões. Ou faz-se referência a uma dialética da teoria e da práxis, sem se dizer, com precisã.o, de que tipo de relação se trata e se se trata, efetivamente. de uma rela<;ão não passível de exame por meio de uma filosofia não- · dialética. Ou, ainda, chama-se de dialética a concepção de que toda manifestação social seja resultado de uma evolução, sem que seja deixado claro em que consistiria a diferença entre esta e a concepção histórico-genética em geral. Especialmente criticável é o mau uso de termos centrais como "alienação", "contradição dialética" ou "totalidade concreta", tão vagos que podem ser utilizados com total arbitrariedade dentro de um vasto setor e demonstrando, destarte, sua inutilidade sob as condições de uma linguagem exata. Como a voz da crítica, todavia, não pode ser completamente ignorada a longo prazo, não é de se admirar que, dentro da corrente do pensamento dialético, já se manifeste, por vezes, a tendência a justificar a posição dialética pela indicação de· elementos dialéticos nas diferentes disciplinas fora da fi!osofia dialética. O que Engels tentou, de forma crassamente primitiva, com relação à Matemática, à Física e à Química, é tentado hoje com métodos muito mais diferenciados. Vários representantes da dialética se esforçam por descobrir, na lógica, na teoria da ciência, na teoria do conhecimento, estruturas que possam ser caracterizadas como dialéticas. Em tais tentativas, o conceito de dialética é estendido, de modo que seu significado se afasta sempre mais e mais do tradicional. Dialética, corre o risco de se tor-
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nar um termo vazio, ao poder ser aplicado tanto às relações entre as classes sociais como à relação entre compreensão e extensão de um conceito, tanto à transição da ordem social feuctal para a burç.:uesa como à transição do conceito de número natural para o de número racional, tanto à relação do homem para com Deus corno à relacão entre os homens e os produtos do seu trabalho. Entre as relações aparentemente dialéticas nestes (e em outros) setores existe, na me1hor das hi9óteses. uma analo~!ia superficial, mas nenhum ponto essencial em comum. Já não se pode mais falar, dada a violenta ampliacão do âmbito de aplicação, de um significado. unitário do termo dialética. Dialética se torna uma etiqueta lingüística. -euio emore~o não repousa sobre um fundamento nas coisas, mas revela urna determinada intenção por parte de quem fala. Ao buscarmos recordar a finalidade para a qual a etiqueta dia 1ética é principalmente utilizada, veremos também uma das razões do fascínio que emana do discurso dialético. Quem chamar urna concep-. çijo de dialética quer exprimir, q~, que pensa total e co~ \ eretamente (e não apenas analítica e abstratamente); que vê a realiâade dinamicamente e sob a pers ectiva do rocrresso (e não de forma estática, consyrvadora, reacjonária) ; que está consciente do primado da práxis (não cultivando a teoria por puro amor dela mesma). Mesmo se permanece obscuro como se deve caracterizar, positiva e essencialmente, o pensamento concreto-dinâmico-prático da dialética, fica claro o que se recusa, com o emprego do termo dialética: todo tipo de pensamento que I!_ão se dirija à intuição, ma~ _à construção; que não formule a pretensão de podú Hâpreender a essência da _re'!!!- ~ -~' mas que se__s..ill:isfaçg~. em resolvei, ao rn~n_?s par_c iaLe_provisoriamente, o enigma .da realidade ou da ex eriência da realidade; oue não que preveja cóntenha um p;ogra~a utópico de mudança.s soêiãfS, programas de reformas vinculados às possibilidades reais; que não deseje ser, ele próprio, práxis - isto é, mero instrumento da práxiS, especialmente da práxis política --~ que reflita sobre as condições ) d~_~da e de uma ráxis racional.
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Ninguém há de contestar que os motivos arrolados, que podem ser supostos como subjacentes à adesão à dialética - o ideal de um modo sintético de pensar, a meta do progresso social, a crença no primado da práxis, o pensamento do condicionamento histórico de todos os fatos s
lO positivamente. Deve ser, porém, posto em dúvida, que a dialética, em qu1lquer de suas variàntes, dê expressão satisfatória a um pensamento ':lecorrente destes motivos. Não obstante o ceticismo cabível diante das pretensões da dialética, busca-se analisar, a seguir, do modo mais imparcial possível, embora não sem um ponto de vista próprio (o que seria impossível), o pensamento de diversos representantes da dialética, a fim de distinguir, neles, o que é aceitável e o que é insustentável. Deve-se, pois, tentar entender a dialética, ao se querer criticá-la, e deve-se mesmo entendê-la melhor do que os próprios dialéticos. Esta exigência parece paradoxal, mas a impressão do paradoxo desaparece quando se vê, com clareza, que a compreensão de uma filosofia - por conseguinte, também da filosofia dialética ·- - exige a explicitaçãc dos pressupostos que estão à base desta filosofia, aceitos tacitamente e com freqüência também irrefletidamente pelos seus representantes, e que devem ser igualmente submetidos à análise crítica. Na filosofia, pois, não vàle que tout comprendre c'est tout pardonner. -Pelo contrário, quanto mais claramente forem explicitados os pressupostos tacitamente introduzidos em uma filosofia, tanto mais se atenua a impressão de evidência, à qual costumam vincular-se certas posições filosóficas, ao menos na consciência de seus representantes. 1.
Dialética como ontologia.
A dialética, como a onto!ogia em geral, pergunta também enquanto quer ser entendida como teoria do ser - pelas determinações do ente como tal. Podemos caracterizar a posição dialética sobre o ente · com a tese de que este é (a) contraditório e (b) está essencialmente em movimento. (a) A contraditoriedade do ser, defendida pelos representantes da ontologia dialética, significa, de uma parte, · o caráter antagônico que o ente concreto deve ter, na medida em que forças ou tendências opostas agem nele. Para os defensores conseqüentes desta posição, contraditoridade significa, de outra parte, que o ente possui determinações opostas, ao mesmo tempo e no mesmo sentido. Segundo esta posição, somente o intelecto abstrativo apreende, sem contradições, a realidade, ao levar em consideração apenas um aspecto desta. A afirmação da contraditoriedade da realidade tem por base, na fi!osofia
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idealista moderna, o postulado de que os conceitos só poderiam ser formados se seu conteúdo for colocado em relação com tudo aquilo que não pertença ao conceito e dele se distinga: omnis determinatio est negatio. Além disso, os representantes desta posição postulam que existe uma concordância, isto é, uma relação de correspondência unívoca, entre nosso pensar e a realidade, entre os conceitos e a essência das coisas. Para o conceito é, pois, essencial que, com sua afirmação, tudo o que é diferente dele seja contradito, o que vale também para a realidade concebida. Na filosofia materialista, a argumentação apontada é substituída por uma outra: a própria realidade seria, essencialmente, movimento. Onde existe movimento, porém, existe igual e necessariamente a con· vergência de determinações contraditór."as, razão pela qual um pensamento que deva espelhar a realidade não necessita seguir obrigatoriamente o princípio de exclusão da contradição. (b) A tese do caráter dinâmico da realidade toma a forma de uma afirmação ontológica universal na ontologia dialética: o movimento é a essência da realidade. Esta tese se opõe, evidentemente, à tese aristotélico-escolástica da imutabilidade das essências. Seus representantes partem do pressuposto de que Aristóteles e seus seguidores afirmam uma dependência recíproca entre a postulação da imutabilidade das essências e a da imutabilidade dos conceitos, assim como a impossibilidade de contradição no nível dos juízos sobre a realidade. A isto eles opõem a. afirmação de que a realidade não é imutável neste sentido, mas essencialmente dinâmica, concluindo que também os conceitos devem ser fluidos e que o princípio de não-contradição deve ser abandonado. Eles concordam, efetivamente, com Aristóteles, ao postular que só há concordância entre a realidade e os conceitos na medida em que, a uma realidade concebida como estática, deve corresponder um apa· rato conceitual estático e que, a uma realidade pensada como essencialmente dinâmica, somente deve corresponder um pensar por conceitos móveis (ou que se movimentam a si próprios).
2.
Dialética como método e como lógica.
Além desta posição, fala-se tambem de método dialético e de lógica dialética.
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(a) Na medida em que não se entenda aqui, por lógica (como para Hegel), um termo que designe uma ontologia no sentido exposto no parágrafo 1, diz-se que a dialética se constitui numa lógica concorrente à lógica formal ou que a deve gerar. A pretensão de certos representantes da dialética de esboçar, ao menos, os traços fundamentais de uma tal lógica concorrente à lógica formal ainda não pode ser demonstrada como legítima e digna de crédito. Se deixamos de lado as tentativas de exprimir as relações dialéticas como auxílio de lógicas plurivalentes (o que não parece ir ao encontro dos dialéticos ortodoxos), não sobra nada que possa concorrer com a lógica comum. O arrolamento das exigências, como por exemplo de que um lógica dialética, diferentemente da formal, deve· ria pensar de forma concreta e não abstrata, de que não se pode deixar de considerar a relação dos conceitos com a realidade e de que os juízos devem ser formulados de tal modo que o sujeito seja determinado em relação não só a um, mas a todos os predicados possíveis, não engana sobre o fato de que um processo original de dedução de sentença a p"rtir de outras sentenças supostas não é definido. (b) O mesmo ocorre com relação à idéia de um método dialético. Partindo-se do fato de que método é um caminho estabelecido por determinadas regras para se chegar à obtenção de conhecimentos, é necessário constatar, então, que a dialética, se é que se trata de um método, não passa de um método muito vago. Regras como a que reza que se deve pensar em contradições e que a superação destas deva ser procurada numa síntese, ou que o caráter dinâmico da realidade deva ser respeitado na fluidez dos conceitos ou ainda que pensamentos t:oncretos devam ser postos no lugar dos conceitos abstratos da lógica formal dificilmente servirão para justificar o postulado de um método dialético próprio (autônomo), como alternativa para os métodos da ciência. Tanto a pretensão de ter desenvolvido ou ao menos de poder desenvolver uma lógica dialética específica no quadro da filosofia dialética, como a de se ter desenvolvido um método dialético podem ser reduzidas, no fundo, à exigência de que uma lógica e um método adequados deveriam corresponder à ontologia dialética suposta. Não há, porém, razão "lguma para que a postulação de uma ontologia dinâmica decida já em favor de uma lógica ou de um método dialéticos, a não ser que esta decisão se torne necessária mediante determi-
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nadas suposições metafísicas que não mais poderiam ser postas e:n questão. 3.
Dia:lética como estrutura da experiência.
A filosofia dialética moderna não fo.i, porém, em primeira linha, ontologia ou lógica, mas defrontou-se, primeiramente, no · call_!Qo da teoria da experiência. com relacões oue oodem ser chamadaSde dlãlé· ticas. Supondo-se que a e~ri"incia devi-ser caracterizada como uma re!ação entre sujeito e objeto, na qual não se odefalar nem de umobj_eto incl~pendente d~ um sujeito, nem- ao contrário, de um sujeito independente de sua relação com o objeto, a relação sujeito-objeto se apresenta COlllO aAe___Qo~moDJentos que, dentro do todo a que pertencem, se ondicionam mutuamente e que constituem este todo, do qual são momentos. As análises subseqüentes - querem mostrar que esta interpretação da dialética é orjginal _Q_ara a filosofia dialética moderna e que a i~pretação da dialética como ontologia ou lógicª, - · pqrém, é ap_enas_indir.e)a. Como dialética é chamada, daqui por diante, a relação existente entre dois momentos_de um todo que se condicionam mutuamente, em que o todo é_ determinado pela relação entre os dois mornento.s. ê _estes, ao mesmo pelo t odo. Trata-se, por conseguinte, de dois tipos de condicionamento mútuo: de um lado entre os momentos e, de outro, entre os momentos e o todo a que pertencem. Embora o modelo de uma ta re açao, como o supõem os representantes da filosofia dialética, seja originário de uma teoria da experiência bem determinada, ele foi utilizado secundariamente também para a interpretação de relações lógicas e ontológicas.
tempo,
Nas páginas que se seguem, o termo dialética só será empreq;ado no sentido acima exposto, seja no campo da teoria da experiência, seja no lógico ou ontológico. Tal implica uma certa restrição do tema, mas evita-se, assim, praticamente, o perigo de ambigüidades.
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1.a PARTE DE KANT A HEGEL
CAPíTULO I I I
I I
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I
RAíZES DO MÉTODO DIALÉTICO NA FILOSOFIA PRÉ-KANTIANA. Embora a dialética de Hegel e seus seguidores tenha surgido com a pretensão de introduzir uma revolução na filosofia , suas raíze:; já estão contidas na metodologia clássica e n1 metafísica modernas, principalmente na metafísica moderna do conhecimento. Mesmo que, à primeira vista~ seja grande a distância entre Descartes. Spinoza e Leibníz. de um lado, e os representantes da dialética moderna de outro, são igualmente importantes certas idéias do racionalismo pré-kantiano como precursoras da filosofia dialética. É fato que os filósofos racionalistas não pensaram dialeticamente ao interpretar o conhecimento como uma reprodução de essências eternas e imutáveis, comoreendendo a verdade, desta forma, como estática. Assim como, p~rém, esta posição é contrária à exigência dialética da fluidez dos conceitos e de historização do conhecimento, assim tam~ bém ela foi duplamente preparatória da posição dialética: mediante a afirmação de que o estabelecimento dos primeiros princípios da filosofia deve ocorrer independentemente das leis da lógica formal e mediante a tese de que os conceitos de entes finitos ~ão formados por uma determinação limitadora da idéia do absoluto.
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O primeiro princípio e a lógica formal.
(a) Segundo Descartes, pode-se distinguir entre dois princípios superiores do pensamento filosófico : o princípio de .não-contradição e a sentença penso, logo existo. O princípio de não-contradição, que determina que duas sentenças contraditórias não podem ser verd2deíras ou falsas ao mesmo
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teinpo~ é ele-mesmo urna ·sente.qça oom ·campo de -aplicaçikl ilimitadO, do qual não- se exclUi: nenhurtui. possível interpretação de éouteúd~ não transmitínoo, por C()nseguinte, informaçâ9·sobre. tdJúelÍdó algum; Esta sentença nãe· declara; cOmo ás · sentenças da. Jógtça· fortflal ·em
geral, absolutamente nada'. sobre. fat~ razão-· ~Ía _,qual Deacartes.::a~ considera · estér.tl~- assiq1 €omo a lógica formàl oomo um todo. Natural~· mente, Pes€.artes nãO pensa;va e~il.· dectamr '·lnvãfido o j)tincípio d6 não-contradição:: ele ronsideravá,·. ·sem dú.vldá ~algu,~a.,. -excluída=~ possibilidade de um sistema consistente de senténças ·incluir uma sen~ tença que pudesse' ser, ao mesmo tempo, ver®deíra ou falsa ou uma sentença da qual fosse possível deduzir uma c·ontradição. Sua objeção-contra n lógica formal é de· àu,tro.ti_!)O: · tne.sm{} quando. se..eonce~a '!\lC . o princípio. de ~ontraárção - que tom.anws aqui como ··representativo-- de todos os · princípios da lógica formal - se-ja uma condiçãonecessária do conhecimento -científico. ele não basta para fund'lmen tar o conhe~imefttt> tanto científico. quaa:tQ filosófico. A filosofia precisa basear-se em principias que enunciam algo. sobre a realidade não de forma hipotética~ mas sim categórica e apodft~ar . ~.
Descartes, foi ainda mais longe: a lógica formal é estéril també1n por não a!)resentar método- al~um - para se obter nov-os conhecimentos: ek pode ter uma função explicativa e. demonstrativa, mas não serv~ · para a descoberta de novos. conhecimentos. Com outras palavras, ela não é uma lógica inventiva, e somente uma tal lógica merece ser considerada fecunda. Poder-se-ia perguntar se n exigência de elaborar uma lógica de invenção não seria irrealizável; e quando se examina o raciocínio de Descartes, vê-se que ele precisou recorrer à intuição e a uma espécie de tato do pesquisador para explicar o modo pe~o qual se obtêm novos conhecimentos. Mesmo assim, Descartes cria possuir exemplos de um método inventivo no processo da matemática de seu tempo e da ciência natural matemática. Quanto à matemática, pode-se falar em malentendido, pois logo após Descartes ficou demonstrado que deduções matemáticas caem, sem dúvida alguma, sob as leis da lógica formal. No método das ciências naturais, tal como existia no tempo de Descartes, sobretudo na física galileana, o caráter inventiva, querido por Descartes, estava claramente desenvolvido; decerto o méto:lo inventivo se refere às hipóteses, com cujo auxílio se busca explicar fenôme-
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nos, isto é, refere-se .a frases que não possuem a forma da universali· dade e da necessidade, su;~ostas por Descartes como os princípios supremos não só da filo~ofia, mas também da física. (b) O método da ciência natural (galileana ) era analítico, ou feja - segundo Galileu -- resolutivo-compositivo. Ele consistia em formular hipóteses a partir das descíições dos fenômenos a serem explicados e em exprimi-las, na medida do possível, de fo rma matemática, nas quais se supõem relações entre os conceitos implícitos ou explícitos na descrição (o explicandum) que serve de ponto de partida. A existência destas relações pode ser constatada experimentalmente, na medida em que, a partir da premissa hipotética e de forma legal, se deduzem conseqüências passíveis de verificação ou de falseamento. A primeira fr:se desse processo, isto é, a análise do explicandum a fim de isolar os conceitos, que devem ser relacionados hipoteticarr..ente, é chamada por Galileu de reso.'ução; a formulação das hipóteses e a dedução das conseqüências a partir delas chamou ele de r:omposicão (do que provém a denominação de "método resolutivocompositivo") . Descartes utilizou, no campo científico, o mesmo método que Galileu, mas refletiu igualmente sobre a sua forma própria, obtendo assim, para o seu tempo, resultados apreciáveis sobre o caráter das explicações científicas. Ele reconheceu que as premissas de forma legal das explicações científicas possuem um caráter de hipóteses e destacou que, com o auxílio delas, as sentenças sobre os fatos a serem explicados (o explicandum) na medida em que são deduzidas, não tão provadas, mas explicadas, e que, no caso contrário, a verificação empírica d:::s conseqüências poderia ser tomada como prova das hipóteses universais das quais foram tiradas. A formulacão de Descartes é ainda imprecisa, quando fala de uma prova das hipóteses mediante a verificação de suas conseqüências, ou quando chama as premissas de forma legal de causas, das quais os efeitos decorrem (enquanto são apenas sentenças sobre os fatos a sere.::n explicados que decorrem das premissas da explicação) . A passagem mais importante do filósofo sobre o método da explicação científica consta da 6. a pc:rte do Discurso sobre o método, na qual Descartes considera injustificada a crítica de que as explicações científicas (tais como constam de seus "Ensaios") sejam circulares, "pois
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como a experiência torna seguras a maior parte destes efeitos ( observados); as causas, das quais eu os deduzo servem, pois, não tanto a prová-los, mas para explicá-los, e antes pelo contrário, são as causas que ficam demonstradas pelos efeitos". 1 Não se trata aqui de dizer que Descartes tenha desvalorizado seu resultado em oarte ao considerar que as leis, formuladas inicialmente · como hipótese com função de premissas de explicações científicas. pudessem no final ser deduzidas a priori a partir de princípios metafísicos; trata-se, em primeiro lugar, de que Descartes acreditava poder aplicar o método esboçado igualmente à fundamentação da Metafísica (da filosofia primeira), na medida em que procurava construí-la como teoria da experiência. É este ponto que procuraremos aprofundar. (c) No início da filosofia existia a perplexidade. Também a fundamentação da filosofia por uma teoria da experiência começa com a perplexidade de que existam fenômenos, pura e simplesmente: o mais maravilhoso dos fenômenos é, segundo Hobbes, o próprio manifestar-se.3 Como é possível que objetos se manifestem a nós? Como se pode conceber que algo diferente de nós mesmos nos seja presente, que tal se torne nosso objeto? Para responder a esta questão, é preciso, em primeiro lugar, uma descrição- mesmo provisória- do que deve ser explicado, ou seja: da experiência ou do conhecimento em geraL As descrições da experiência em si mesma ou do conhecimento em si mesmo, a partir das quais a teoria da experiência se constrói, estiveram, como o demonstra a história da filosofia, sobrecarregadas por uma série de pressupostos em parte extraordinariamente abrangentes que, no. maioria inverificados, exerceram influência sobre a teoria de forma até impercebida! O primeiro passo da fundamentação filosófica exigida pela abstenção de pressupostos já estava saturado de teoria, pois a pura descrição da "experiência em si mesma" estava mesclada com pressupostos teóricos quanto à realidade objetiva, sobre a qual se debruça a experiência ou o conhecimento. No que se refere às suposições iniciais foram formuladas sentenças sobre as condições da sua própria possibilidade, em geral não reconhecidas como hipóteses metafísicas, embora se se tratasse de tais. Os princípios máximos da experiência ou do conhecimento possuíam. de qudquer forma, o caráter de suposições destinadas a explicar a possibilidade da experiência e do conhecimento.
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É patente que aqui se deveria transpor a forma das explicações
científicas, a partir de premissas hipotéticas, à explicação da experiência em si mesma, o que não é possível de verificação empírica no rampa da teoria da experiência. A escolha entre várias explicações possíveis parece só poder ser feita, neste contexto, com base no princípio da economia, ou seja, que se prefira às demais aquela que forneça, com um mínimo de pressupostos, a explicação mais satisfatória do fenômeno a ser esclarecido. Infelizmente, no quadro de uma teoria da experiência, mal ~e pode dizer sob que condições uma teoria seria mais eficaz do que uma outra. No final de contas, como a história da filosofia o demonstra, a escolha é feita sempre sob a forma de uma decisão, a qual depende da disposição do filósofo em aceitar certas dificuldades a fim de chegar a uma meta explicativa determinada, enquanto que a aceitação de tais dificuldades pareceria a um outro um preço desproporcionalmente elevado. Lembremos, por exemplo, o pressuposto platônico d.:s idéias que, decerto, é perfeitamente adequado para explicar o fato do conhecimento a priori. mas que, por aceitar uma realidade verdadeira por detrás da empiricamente constatável exige um preço que parece a muitos demasiado elevado. Assim, por exemplo, formulou-se, na teoria da experiência, o pressuposto de que só nos é imediatamente presente o conteúdo das representações, enquanto que os objetos independentes do !"'ensamento só poderiam ser conhecidos de forma mediata, "atrás" das representações. Este pressuposto possibilita uma concepção bastante satisfatória da relação entre o sujeito e seus objetos imediatos, pois estes -não f-ão imaginados como algo de transcendente, cuja experiência sería misteriosa, mas como algo de imanente à consciência, cuja presenç3 na experiência, por conseguinte, não constitui problema algum. Esta solução acarreta, porém, grandes dificu:dades em outras questões <11 teoria da experiência e do conhecimento. Assim, a relação entre a representação e os objetos independentes do pensamento se transfo;·;na num problema insolúvel dentro dos pressupostos da posição aqui esb:Jçada, como também a intersubjetividade de determinados conhecimentos objetivos só pode ser concebível se se introduzem novas hipóteses metafísicas de grande peso. Como se pode ver, a solução de determinadas dificuldades só é possibilitada pela aceitação de outras dificuldades. Dado que não existe nenhum processo objetivo de compensação de um tipo de dificul-
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dade com relação ao outro, de modo que se possa tomar uma decisão segundo o princípio da economia diante das diferentes teorias alternativas que se delineiam, é necessário supor que a decisão em cada caso é condicionada pessoalmente, como Fichte o dizia: "A filosofia que se escolhe depende do tipo de homem que se é". ( d) Dentro do que acabamos de dizer, a metafísica cartesiana deve ser compreendida como uma teoria da experiência em si. Seu ponto de partida é o fato indubitável de que existem, para nós, conteúdos objetivos em geral, isto é, que algo nos é presente, independentemente de qualquer pressuposto sobre as formas de ser destes conteúdos (como objetos independentes do pensamento ou como meras representações do sujeito, etc.). Descartes caracteriza estes conteúdos, no entanto, como modificações da consciência. Na medida em que utiliza o axioma de que qualquer modificação é sempre modificação de uma substância, pode ele chegar ao resultado, de que a experiência de conteúdos objetivos implica a certeza de que existe um su!eito da experiência substancial: "Eu penso (algo), logo sou (corno sujeito substancial da experiência)". Embora Descartes considerasse o resultado acima indicado como absolutamente certo e evidente, não 5:e pode passar por cima do fato de que tal repousa sobre pressupostos que nada têm de evidentes. Mesmo quando se admite que as experiências em geral possuem a estrutura de uma relação intencional entre o sujeito e o objeto, a aplicação do esquema substância-modo para exprimir esta relação do dado fenomenal (aqui admitido) não está de forma alguma incluída. Desc~utes formula, pois, uma hipótese, que implica uma interpretação determinada da realidade experimental. Em particular, a concepção do eu como uma substância pensante e dos conteúdos objetivos como modos desta implica a conseqüência de que, de início, apenas as foruas modais de ser da realidade objetiva podem ser levadas em consideração. Os ob.ietos imediatos da experiência são conteúdos representativos, dos quais inicialmente nada 5:e sabe, nem mesmo se eles reproduzem realmente alguma coisa; ou se existe uma realidade independente do pensamento, que seria representada pelas idéias das coisas, não pode 5:er decidido somente com base na consciência imediata do objeto. Ê sabido que Descartes, de forma didaticamente feliz, revestiu o raciocínio aqui indicado com uma forma de reflexão sobre os pres-
UNIVERSIDADE FEOER.'..L DO PARA 8 113LIOTECA CENTRAL
Filosofia Dialétiea- ModefDa; supostos· da ·dúvida, a qnul, mesmo no cast> de se duvidar de tude, não pode ser posta em dúvid:r enquanto fato. Assim' é- que Descartes,. Do~eu diálogo "A in"Yestigação da vetdatle atra'Yês da luz natural", faz dizer oo interlocutor: "€.omo-:·vooê·.. ; nãe ~· ~que· você duvida e que,. pel9- ~ttário. é. c~rto ~ V()(ê.- duvida e tão cento- que _ você não pode duvidar dtsso, assim ·ê igualmente veroadeiro que você, que do vida,. é, e-iMo- t_ambém. ·~Qflh uma ee~Ur tal:·q~ v~.ê d~ não. pode-duvidar"'- a_ _Descarte& diz eJtpr~te que.-esta argumentação é feita Hsem lógiea, sem regra-,. sem uma fórmula. a~ntativa, exclusivamente por força da luz da razão e do Ífltelecto saudável- do ser humano, o qual, quando age por si só, está menos exposto a~ erros de que · -quando se.esforça temetosrunente im observ~. mil difeJentes regras,.. · que a arte e a preguiça. dos homeas ames inveata~am para perdê-lo,. do que para fazê-lo mais perfeito"4 • .Ce:;cartes estava pois convicto de que a análise da experiência,
que levou ao cogito ergo sum como primeiro princípio da filosofia, tem por base uma lógica diferente da formal, uma lógica que é a da invenção, fecunda em oposição à lógica forma.b. estéril, !)OÍS é a lógica que fundamenta a verdadeira filosofia. Esta convicção repousava sobre um erro, pois tanto na teoria da experiência como nas teorias em ciências naturais se formulam hipóteses, que possibilitam a interpretação dos fenômenos, de modo que se pode acrescentar que a formulação de hipóteses não se faz pelos meios da lógica formal; isto não quer dizer, porém, que esta formulação se subordine a uma outra lógicu autônoma, mas apenas que a formulação de hipóteses não corre de forma alguma segundo os métodos da lógica dedutiva. Na filosofia teorico-experimental, no entanto, até os fundadores da dialéticu, a concepção de que, no campo da análise da experiência prevalece uma lógica diferente da formal. Assim é que J . B . Fichte veio a declarar: "Eu excluo ... inteiramente a lógica pura do campo da filosofia" 5 • Esta convicção é o pressuposto da tentativa de desenvolver sistematicamente esta lógica não-formal postulada. As tentativas respectivas, sobretudo de Hegel, não seriam pensáveis sem os pres· supostos introduzidos por Descartes. Neste contexto é importante sublinhar que os representantes da metdísica clássica analítica da experiência não perceberam - ou o
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perceberam, no máximo, de forma imperfeita - o caráter hipotético da teoria da experiência. Se tivesse ficado claro que a fundamentação teórico-experimental da filosofia decorre, mais ou menos conscientemente, do paradigma do método analítico das ciências naturais, a comparação com a formulação das hipóteses no setor científico teria evitado que se postulasse uma lógica própria, "superior", para a obtenção dos princípios primeiros da filosofia. O caráter unalítico da fundamentação da filosofia por uma teoria da experiência gerou, mesmo assim, corno ficou patente mais tarde, também em Fichte, Hegel e em outros representantes do método dialético, o aparentamento deste com o método analítico das ciências naturais clássicas e da filosofia, o que, inicialmente ao menos, não pode ser negado. E mesmo Marx o caracterizan, na introdução à Crítica da economia política, de urna forma tal que não se distinguia essencialmente da concepção dos clássicos do método analítico (resolutivo-com positivo). (e) Além de admitir uma lógica diferente da formal, a teoria clássica da experiência contém igualmente um outro pressuposto importante da filosofia dialética posterior, ao relacionar o "eu" e o "objeto da experiência" de tal forma que a certeza do eu aparece corno mediada pela certeza do objeto dependente do eu e posto por este como pensado. Esta relação "dialética" entre o eu e o objeto surge com clarezr. em Leibniz, para o qual não é a certeza do puro "eu penso" que vem em primeiro lugar, mas a relação existente entre o eu e seus múltiplos conteúdos, cujos momentos são o "eu" e o "objeto". Leibniz fala decerto por vezes como se supusesse o sujeito como um dado isolável 6 ; no entanto, ele passa logo à intuição de que a certeza do eu nã~ é imediata, mas mediada pela certeza da realidade dos objetos. Na relação da experiência, os momentos da multiplicidade e da unidade ou da unidade da regularidade legal estão relacionados; na teoria da experiência eles são pensados isoladamente corno condições da possibilidade da experiência, em que o momento da unidade é inter· pretado em sentido subjetivo e o da multiplicidade em sentido objetivo. O eu empresta ao objeto da experiência a forma da unidade, na medida em que este significa um agregado. A percepção é definida, conseqüentemente, como "expressão da multiplicidade na unidade"7 , em que "unidade" vale como condição do caráter de realidade dos conteúdos objetivos. 8
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Inversamente, porém, a unidade interpretada por Leibniz como unidade do eu substancial não é independente do contexto dos conteúdos objetivos percebidos : "O contexto das percepções produz a unidade do perceptor", como diz Leibniz com relação à unidade do eu no tempo e como certamente se poderia também dizer da unidade em um momento preciso. 9 Pode-se abstrair aqui do fato de que a metafísica da experiência de Leibniz só alcança seu arremate na relação de todas as relações, do pensar ou das coisas com Deus, de modo que todo pensamento se transforma em reflexo mais ou menos claro do pensamento divino no eu finito e toda coisa se transforma em uma "manifestação de Deus". Basta destacar aqui que, segundo Leibniz, a unidade dos objetos da experiência é condicionada pelo eu, enquanto que a unidade do eu se mostra condicionada pelo contexto das coisas percebidas. A dependência do eu do que é por ele condicionado é uma relação que se pode perfeitamente chamar de dialética no sentido de Hegel. 10 2.
A idéia do infinito.
a) Como a interpretação da filosofia de Descartes não pode dar bom resultado sem que se leve em conta o pano-de-fundo platônico sobre o qual ela será construída, não é tampouco de se admirar que ele tenha assumido o dogma platônico do primado do infinito, perfeito, absoluto sobre o finito, imperfeito, relativo. 11 Decerto, segundo a ordem do conhecimento, a expenencia do finito é primeira, mas segundo a ordem do ser, tem de prevalecer que o finito não poderia existir e, por conseguinte, não poderia ser experimentado se o infinito não existisse e não fosse pensado. Isto vale especificamente para a experiência do eu como de um ser finito: nós só o podemos conhecer porque dispomos da idéia de uma natureza espiritual infinita, da qual a nossa própria natureza é uma limitacão. A experiência de nós mesmos só é possível porque, antes de qualquer experiência, j á possuímos a idéia do infinito absoluto. Este pensamento, que a formação de todos conceitos precisos só pode ocorrer pela determinação restritiva do absoluto, implica a conseqüência de que, em todo conceito preciso, está incluído um momento negativo, mesmo se sua precisão consiste em não ser o absoluto. Spinoza, que retomou este pensamento, atribui-lhe a formulação tor-
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nâda clássica: Omnis determinatio est negatio viria a ser assumida por Hegel.
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,
uma fórmula que
Todo conceito está em relação com o absoluto através das determinações que negam este absoluto, e não somente de forma genérica, mas essencialmente através da mediação de outros conceitos precisos: ele pertence a um complexo de conceítos através do qual se determina enquanto tal. Reconhece-se aqui, sem dificuldades, a idéia platônica de symploké tôn eidón. b) A conseqüência de que todo conceito do finito permaneça incompleto, enquanto não incluir todas as relações compreendidas na amplitude global do conceito, não foi tirada por Descartes. Esta conseqüência é ao menos sugerida por Spinoza, ao escrever: " . . . ao afirmarmos algo de uma coisa, que não esteja incluído no conceito que fazemos desta, demonstramos uma deficiência da nossa peícepção. ou seja, que nós possuímos pensamentos ou imagens confusas cu incompletas." 13 Pensemos, por exemplo, um semi-círculo que gire em torno de seu diâmetro, sem pensar na esfera que possa surgir deste movimento: temos assim uma idéia incompleta e, neste sentido, •·não-ve.·ch::eira". A idéia mais completa e mais determinada é, pois, diante da incom· pleta ou menos determinada, a mais verdadeira. No final de contas, deve prevalecer a fórmula de Hegel: a verdade é o todo. Se a maior parte das nossas idéias é, como o demonstra a experiência, inadequada (incompleta, incompletamente determinada), tal só pode provir de que o nosso espírito não apreende em si o todo da realidade. O todo só é adequ~do, presentemente, no espírito divino, cujas idéias constituem parcialmente o nosso espírito, dado sermos uma parte do absoluto mas não o absoluto inteiro 14 • Spinoza destaca que nós sempre formamos idéias inadequad~s ao pensarmos abstratamente, pois um conceito abstrato não pode incluir a plenitude da realidade concreta correspondente. Por esta razão, uma filosofia que empregue axiomas abstratos como premissas é insuficiente. Não se deve partir, por conseguinte, de conceitos e princípios abstratos, mas da idéia da origem da natureza em sua totalidade, isto é, da idéia de Deus ou da substância infinita. A origem da natureza ou a substância não podem ser pensadas de forma alguma abstratamente,
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pois e umca, infinita e onicompreensiva. Spinoza pensava evidentemente que os conceitos universais abstratos são constituídos pela comparação de diversas coisas da mesma espécie ou gênero, conservandose o que lhes é comum, abandonando-se as diferenças. Ao lidarmos, no entanto, com um ente que deve ser necessariamente pensado como único, a abstração não pode ser empregada enquanto tal; a idéia do ser necessário não é um conceito universal abstrato, mas um pensa- . mento concreto. A expressão de que o nosso espírito é apenas uma parte do infinito é menos adequada, pois "parte" indica uma relação quantitativa, da qual se diferencia de forma essencial u relação entre o espírito infinito e o finito. Neste ponto é Leibniz que indica o caminho de uma solução mais satisfatória. Enquanto, segundo Leibniz, somente Deus forma idéias adequadas, o espírito finito possui apenas uma parte das idéias adequadas, sendo as demais inadequadas, senão confusas e obscuras. Como a parte de idéias obscuras e confusas nos espíritos finitos varia, de forma que não existem dois espíritos ( mônadas) que se identifiquem integralmente, pode Leibniz formular a imagem de que as mônadas individuais refletem o intelecto infinito de Deus e, desta forma, o universo, de diferentes pontos determinados. Esta compuração, como se pode ver, é buscada também no setor espacial, como a imagem spinozana. Leibniz indicou porém a direção em que a solução da metáfora deve seguir para sair das determinações espaciais. A conseqüência, de que cada conceito finito só pode ser determinado por sua relação com a idéia do todo absoluto, foi formulada com toda clareza por Kant: cada coisa deve ser pensada como inteiramente determinada, isto é, seu conceito deve ser determinado com relação a todos predicados possíveis p 1, p2, p3 etc., na medida em que ele é ou Pi ou não-J>i. Desta exigência da determinação última da idéia de Kant deduz que deve existir a noção de todos os predicados possíveis. Esta noção desempenha um papel importante na Dialética Transcendental, como se mostrará mais adiante. c) Com referência à relação esboçada entre o conceito finito e a idéia infinita, surgiu já com Descartes uma dificuldade que indica uma relação dialética. Trata-se da problemática do assim chamado círculo cartesiano, surgida inicialmente no contexto da filosofia de Descartes, mas de forma alguma restrita a ela.
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Descartes havia exigido que se tn:tasse como falso tudo o que deixasse a menor margem de dúvida. Ora, segundo Descartes, nenhum conhecimento da verdade é imune à dúvida, enquanto não se alcançar o conhecimento de Deus como infinitamente perfeito e garantia da clareza e da distinção das idéias do sujeito finito. O conhecimento de Deus deve começar porém com premissas indubitavelmente verdadeiras, se deve ser conhecimento no sentido estrito da palavra. Os pressupostos do conhecimento de Deus devem, pois, estar dotados daquela verdade garantida que Descartes só admite depois de ter sido obtido o conhecimento de Deus. O próprio Descartes negava permanentemente esta circularidade de suas provas de Deus, decerto porque considera evidente a pressuposição de que a idéia de Deus resida em nós e que pode ser apreendida na reflexão sobre o próprio eu, não necessitando pois de uma fundamentação. A dificuldade não está, porém, sistematicamente resolvida com isso. A pressuposição de que o infinito seja condição do ser e, com isto, da cognoscibilidade do finito, podendo ser, por isso, apreendido r') finito, necessita de uma fundamentação. Esta fundamentação só pode constituir-se no fato de que o pressuposto epistemológico sobre o qual ela se baseia esteja fundamentado, isto é, deverse-ia demonstrar que, de fato, a idéia de todo absoluto sempre esteve presente, ao formar-se a idéia de um ente finito (como o do ser). Com Kant objeta-se, no entanto, que a noção de todos os predicados possíveis jamais pode ser um conceito constitutivo. Trata-se antes de uma idéia no sentido técnico da filosofia kantiana (ou seja: de um ideal), isto é, de um pensamento que tem, para o conhecimento, uma função regulativa. O pensamento de uma noção infinita de todos os predicados possíveis dos entes indica a direção da determinação completa dos conceitos, sem que esta tenha sido afirmada como alcançável. Entre conceitos finitos e a idéia da complementação permanente existe, de fato, uma relação que pode ser chamada de dialética; como, porém, idéias não são constitutivas para o conhecimento dos entes, não se pode deduzir a existência de um ser que corresponda à noção de todos os predicados e que possa garantir o conhecimento do sujeito finito.
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d) Já para Descartes, o infinito aparece, por assim dizer, no finito. A idéia de Deus é, como Descartes o diz numa de suas imagens tão profundas como difíceis, o selo que Deus imprimiu à sua criatura, a alma humana. Sem imagem: se o espírito finito é condicionado pelo infinito no que se refere ao seu ser e à sua cognoscibilidade, então é necessário que esta relação condicional seja constitutiva de seu ser e de seu conhecimento; ele se manifesta no infinito, isto é, o finito é a manif~stação parcial do infinito. Novamente, foi Spinoza que aprofundou e radicalizou este pensamento: em cada ente finito- seja uma coisa material ou um pensamento - manifesta-se a substância infinita, que condiciona o finito. Spinoza interpretou os entes finitos não como uma expressão imediata da substância como tal e independentes da totalidade de suas expressões (da facies totius universi) . Antes, são os entes finitos condicionados pela substância, enquanto esta já alcançou a determinação fi-nita em suas afecções, os modos: Deus determina a existência e o ser de cada ente finito, mas mediante as relações causais entre este e outros seres finitos, que, por sua parte, só estão determinados pela subs·· tância na medida em que esta está afetada em sentido modal, etc., ao infinito: "Cada indivíduo ou cada coisa, que é finita e possui um ser determinado. não pode ser nem é determinado a agir sem ser determinado a existir e a agir por uma outra causa, que também é finita e que também possui um ser. E esta causa também não pode ser nem é determinada a agir sem ser determinada por uma outra que também é finita e possui um ser determinado, a ser e a agir. e assim por diante ao infinito"... -Esta frase vale em conjunto com a outra: ''Uma coisa, que está determinada a produzir um efeito, está determinada necessariamente por Deus desta forma, e o que não está determinado por Deus não pode determinar-se por si só a agir" 15 • O indivíduo, determinado no seu ser e no seu agir. decorre pois de Deus ou de um de seus atributos, "na medida em que este é modifi· cado por uma modificação finita e determinada" 16 • A significação dos pensamentos aqui tratados para os temc:s dialéticos posteriores será posta em destaque ao longo desta exposição de modo gradativo e Je maneira cada vez mais clara. Ficará igualmente demonstrado que eles não bastam, sozinhos, para constituir uma filo
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sofia dialética. Que outros pressupostos metafísicos ou epistêmicometafísicos seriam necessários, para tanto será exposto nas considerações que se seguem sobre as concepções dialéticas modernas. Notas - Capítulo I Na medida em que a obra de um autor esteja disponível numa edição completa. é desta que se fazem as citações. As notas se referem às edições respectivas. 1 2 3 4 5 6
7 8 9 1O 11 12 13 14 15 16
Descartes : Discours de la méthode. Oeuvres (éd. Adam et Tannery), VL 76. Hobbes: De corpore IV, cap. 25, § ]9. Descartes: Oeuvres X, 515. Descartes: Oeuvres X , 521. J.G. Fichte na Allgemeine Zeitung (Stuttgart, 1801), n9 24, Suplem~nto n9 1, pp. 1-4 (sem título). Aqui deve-se lembrar a exigêncla de M. Heidegger de se abandonar a idéia de lógica Cf. Leibniz: Nouveaux Essais sur l'Entendement Humain. 11, cp. XXIV, 1; Escritos filosóficos (éd. Gerhardt) V, 210. Por exe'mplo: Escritos filosóficos lll, 69. Cf. Fragments et opuscules ( éd Couturat), 528. Escritos filosóficos li, 372. Os elementos dialéticos em Leibniz foram lembrados por A. Simonovits: D:aliektisches Denken in der Philosophie von G. W. Leibniz. Budapest e Berlin, 1968. Cf. Descartes: Oeuvres V, 356. Spinoza : Episíufa 50. Spinoza : De intellectus emendatione, § 73. Obid. Spinoza: Ethica I, prop. 26. lbid. prop. 28, demonstratio.
CAP1TULOII
TEMAS DIALÉTICOS NA FILOSOFIA TRANSCENDENTAL DE KANT. 1.
O Método da filosofia transcendental.
Embora a teoria da experiência de Kant não possua caráter dialético, ela contém pressupostos históricos essenciais da filosofia idealista e dialética posterior. Daí decorre que é indispensável, no quadro de uma apresentação genética. levar em consideração a teoria kantiana da experiência, antes de se entrar nas partes da filosofia kantiana reunidas sob o título de Dialética. Em todo caso, observe-se aqui, pre· vi2mente, que é justamente a Dialética Transcendental de Kant que teve menos importância no desenvolvimento da filosofia dialética em todo caso, importância menor do que a da teoria da experiência. A teoria kantiana da experiência continua a tradição da filosofia analítico-experiencial exposta acima em termos gerais. Também Kant tinha em vista uma fundamentação da filosofia mediante a descoberta de seus princípios supremos; também ele queria servir-se, aqui, do método analítico (11, 289. 4-5; cf. 308, 20-21 ) 1 tal corno o via utilizado nas ciências exatas da natureza (li, 286. 8 ss.) No prefácio à segunda edição da Crítica da Razão Pura, Kant relacionou expressamente o método da filosofia crítica com os processos das ciências naturais (III, 14. 26 ss.). Embora Kant tenha, nos Pro!egômenos, chamado o método empregado na Critica da Razão Pura de sintético (IV, 263. 28-29; 274. 27-28), ao procurar, nesta obra, detectar na própria razão os elementos e os princípios de seu uso (IV, 27 4 . 27·31), nos próprios Prolegômenos prevaleceria o método analítico (IV, 279. 15-16); esta contraposição dos métodos de ambas as obras, no entanto, é duvidosa, pois o aspecto analítico não pode deixar de ser notado também na própria Crítica da Razão Pura.
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Como o método analítico tem por objetivo a explicação de fenômenos dados com o auxílio de leis hipotéticas, valerá também para a análise transcendental-filosófica da experiência que seus princípios superiores possuem caráter de hipótese. Kant exprimiu-se assim por vezes, como se quisesse considerar os princípios universais da teoria da experiência apenas como suposições que são introduzidas para apoiar a fundamentação teórica de um determinado tipo de conhecimento. Em todo caso, ele logo acrescenta, aquilo que é provisoriamente introduzido como hipótese deve ser demonstrado mais tarde apoditicamente (Ill, 15. 32-37). É possível que Kant tenha admitido que a transição de hipóteses para sentenças válidas apoditicamente ocorra mediante a evidência de que um.: hipótese se demonstre ser a única possível para sustentar a explicação buscada. Em favor desta suposição fala a seguinte reflexão de Kant (UI, 11.37-14. 14): a teoria transcendental da experiência contém a suposição de que não é o conhecimento que deve orientar-se pelos objetos, mas estes por nosso conhecimento, isto é, por regras do entendimento válidas a priori. Kant fala repetidamente da transformação do modo de pensar, aqui efetuado, como de uma hipótese. Esta hipótese é, segundo Kant, a única que torna possível a explicação da possibilidade de conhecimentos a priori ou que permite "dotar de provas satisfatórias" (III. 13:8-13) as leis a priori da natureza.
Os princípios em questão se aplicam, como se pode mostrar de forma convincente em Kant. não às coisas em si, mas sempre somente a fenômenos. A hipótese contrária falha porque é possível deduzir-se dela contradições, especificamente quanto à idéia do incondicional, que a razão exige para a realização da série de condicionantes e condic-ionados. A revolução copernicana no modo de pensar, segundo a qual os objetos (como fenômenos) se orientam "pelo conhecimento", é, segundo Kant, não só um, mas o único meio oara evitar a contradição indicada. Kant considerou esta modificação, tomada inicialmente apenas como hipotética, do modo de pensar (III, 15. 33) como necessariamente verdadeira porque, a seus olhos, ela era não somente a condição suficiente, mas também neces.~ária tanto da explicação da possibilidade da experiência em geral, como da elaboração sem contradições de uma teoria da experiência. Uma hipótese não se torna verdade necessária apenas porque não haja nenhuma outra que possibilite a
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explic-ação buscada. Neste ponto, no entanto, Kant poderia lançar mão da concordância do seu ponto de vista como o de Newton, contido na seguinte passagem da ótica: "Mesmo se os resultados obtidos por indução a partir dos experimentos e observações não podem valer como provas de conclusões universajs, este é o melhor caminho para hegar a conclusões ... Se nenhuma exceção ocorre em meio aos fenômenos, a conclusão pode ser generalizada" 2 • Se a revolução copernicana repousa sobre uma hipótese, ·então também os princípios da teoria da experiência caracterizadá por est;:revolução devem ser hipóteses, formuladas com relação a uma JJ.1Ct<.! explicativa precisa. Elas estão submetidas assim às mesmas condições que valem, em geral, para as hipóteses, quando estas são introduzidas com pretensão à cientificidade. Trata-se, segundo Kant, de duas condições: hipóteses científicas, isto é, não-especulativas, precisam ser empiricamente significativas e 2dmissíveis com relação à meta explicativa. De interesse é a primeira destas condições, que aparece, por exemplo, na constatação de Kant de que a hipótese é uma suposição "que, . . . para não ser sem fundamento, deve ser relacionada com o que realmente se dá e, conseqüentemente, é certo, como fundamento explicativo. " (lU, 502. 17-20) . Esta outra formulacão é ainda mais clara: "Para a explicação de fenômen os d ad0~ nenhuma outra coisa ou fundamento explicativo pode ser indicado senão os já relacionados com os dados pelas leis conhecidas do fenômeno'' (III, 503. 33-36). "As hipóteses transcendentais de uso especulativo" ( IIL 504 . 19), supJafísícas , não são destarte admitidas, pois somente hipóteses "físicas'·.. que servem à explicação "de fundamentos naturais, segundo leis natun:is", podem ser formuladas sobre o terreno próprio da razão, ou seja, da experiência (IH, 504. 6-9). A suposição de que Kant tenha tratado igualmente do problema dos conceitos teóricos não se sustenta, mesmo se algumas passagens do filósofo o tenham tocado de leve. Na medida em que, nos exemplos de Kant, aparecem conceitos que podemos designar como teóricos, por exemplo, o conceito de "campo magnético" ( Kant: "matéria magnética") , temos conceitos de tipo experiencial, mesmo se o objeto espaço-temporal que designarem não seja observável por causa da constituição do nosso sistema sensitivo (III, 190. 8-12). Kant parece porém caracterizar o conceito de TragheiJ como teórico, ao dizer que a Trdgheit é uma força suposta (li,
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20. 13-20), que serve para a dedução de leis especiais. Na medida em que conceitos deste tipo, no quadro de sistematizações científicas, possuem uma funcão relevante, são admissíveis. No entanto, Kant mantém, também aqui, a posição de que a constatabilidade das entidades é suposta em função da sistematização da experiência. Em todo caso, pode-se admitir que também Kant tomou estas hipóteses como "físicas", contendo termos cujo conteúdo não é observado de fato. Quando os princípios da teoria da experiência, contra a posição expressa de Kant, são interpretados como hipóteses, então vale também para eles o que Kant exige Jas hipóteses em geral. Mesmo não deduzidas de experiências, elas devem poder ser relacionadas "a uma experiência possível", a fim de poder ter sentido, como exporemos mais adiante. Vê-se que se pode obter um elemento importante da filosofia transcendental kantiana através de reflexões metodológicas, pois Kant chamou expressamente a Critica da Razão Pura de tratado do método (III, 15.5) . Mesmo independentemente disto, a teoria kantiana da experiência é um caso clássico de aplicação do método analítico: Kant partiu da suposição de que existem juízos sintéticos a priori, ou mais geralmente: de que existe um conhecimento da realidade rigorosamente universal e necessário. Para provar a possibilidade de um tal conhecimento, ele elaborou uma teoria da experiência, segundo a qual não é o conhecimento que se deve orientar pelos objetos, mas estes pelo conhecimento. Esta teoria tem a função de um meio e não é, pois, fim de si mesma, como Kant declarou inconfundivelmente (IV, 377. 24-26). . Kant descreveu seu método com elementos que eram usuais desde Euclides para caracterizar o método analítico, ao consüttar, por exemplo, que, no método analítico, "parte-se do que se busca, como se já fosse dado, e passa-se às condições sob as quais somente é possível" (IV, 276 . 30-32) , Kant chama assim os princípios, a que se chega com o auxílio da análise, de condições de possibilidade. Tal merece atenção, pois deixa reconhecer que a expressão "condições de possibilidade", termo técnico importante em Kant, provém da terminologia do método analítico tradicional. :J A teoria da experiência era considerada por Kant, expressamente, como um caso especial do método analítico, como mostra, por
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exemplo, a afirmação seguinte: "Nós deveremos, por conseguinte, dissecar a experiência, para poder ver o que está contido neste produto dos sentidos e do intelecto, e como o próprio juízo da experiência é ossível" (IV, 300 . 2-4). Para se poder compreender o que significa "análise da experiência", para Kant e que fins ele quer alcançar com a análise da experiência. deve-se colocar agora a questão do que significa, neste contexto, experiência. Experiência e análise da experiência. Experiência é empregado por Kant num sentido amplo e num entido restrito. No sentido amplo, experiência significa a percepção, observação, contemplação de um conteúdo qualquer no espaço e no empo. Juízos sobre experiências, neste sentido subJetivo, se reterem também, segundo Kant, aos estados subjetivos da consciência que experimenta e a seu contexto subjetivo-casual. Elas constituem a base de generalizações empíricas, não porém de conhecimentos necessários "' universais. Mas se existem juízos - e Kant está convencido de que ais juízos existem - objetiva e necessariamente universais, sua posibilidade não seria explicada se dispuséssemos apenas de experiências no sentido subjetivo (dito em termos modernos : de dados sensoriais) e estivéssemos impossibilitados de distinguir entre os estados perceptivos e seu contexto e os objetos percebidos e o contexto objetivo destes. Experiência, no sentido restrito e rico, dá-se, segundo Kant, quando objetos são apreendidos no tempo e no espaço, e num contexto egido por leis. Experiência neste sentido é expressa em juízos da experiência (diferentes dos juízos da percepção ) , nos quais a relação das determinações é dirmada como objetiva, isto é, subsistente no bjeto. Trata-se de "juízos empíricos, na medida em que têm validez ·e iva" (IV, 298. 1).
Deve-se reconhecer que os exemplos de juízos de percepção dados por Kant não mostram adequadamente a oposição entre os juízos perceptivos e os da experiência que ele tenciona demonstrar. Tal não é de se admirar, se se pensar que é extremamente difícil formular juízos perceptivos adequados pelo acréscimo da correlação çonceitual, transformando-os em juízos da experiência. Por esta razão, os exemplos de
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Kant se referem, de uma parte, a juízos que não podem se tornar juízos da experiência (IV, 299.22 ss.) e, de outra pc:rte, juízos que não são meros juízos perceptivos no sentido exposto acima, como "se o sol bate na pedra, ela se esquenta" (IV, 301 . 29). Na "Dedução transcendental" da segunda edição da Crítica da Razão Pura, Kant definiu genericamente juízo como "uma relação que é objetivamente válida". O conceito de juízo é restringido, aqui, a um sentido que originalmente correspondia ao conceito de "juízo da experiência". O abandono da distinção entre juízos da percepção e juízos da experiência, constatada neste contexto por J. Bennett 4 pode ser interpretado, em se tratando efetivamente de um abandono, como a conseqüência tirada por Kant da dificuldade indicada. Seja dito de passagem que seria possível traduzir a expressão "necessário e universal", no sentido de um hen dia dioin, pela expressão preferida por Kant, evidenciada no último tópico abordado, "universalidade necessária", a qual pode ser mais satisfatoriamente interpretada, em oposição à primeira expressão, como oposta à universalidade não-necessária da generalização empírica. Experiência, no sentido restrito, supõe que nós tenhamos não só consciência de estados de sensação e de percepção, e de seu contexto (temporal), mas também que possamos relacionar os estados de consciência a objetos, os quais são julgados como diversos e independentes dos conteúdos · subjetivos. Admitindo-se, com Kant, que nos é dada apenas uma multiplicidade racionalmente des01denada de conteúdos precisos, ou até apenas uma "massa de percepções", a objetividade da experiência se torna um problema. Não estando em condições de fundamentar, por uma intuição da essência das coisas tal como estas são, a correlação das determinações, afirmada nos juízos da experiência - para uma tal intuição seria necessário que nos fosse dado mais do que meros dados sensíveis desordenados, sem correlação - Kant se decidiu por uma interpretação da objetividade, na qual esta possui seu fundamento na constituiçãc dos objetos segundo princípios a priori. Por não orientar-se nossa conhecimento pelos objetos, mas por orientar-se o objeto segunda nosso conhecimento, o qual é regido por princípios universais, todos os juízos verdadeiros concordam com o objeto e entre si. Por estar nossa experiência submetida a certos princípios, que ordenam o dado de
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uma forma constante determinada e igual para todos os sujeitos da experiência, os conteúdos ordenados dentro deste quadro geral apare· cem como algo independente com relação ao Eu empírico, isto é, como objetos. Neste sentido, Kant declara: "se descobrimos a causa de considerarmos um juízo como universal e necessário ... , devemos considerá-lo igualmente como objetivo" (IV, 298 . 17-20). Inversamente, a universalidade dos juízos está condicionada pela sua concordância com o objeto, como Kant declarou expressamente: "Se um juízo concorda com um objeto, todos os juízos sobre o mesmo objeto devem concordar entre si" (IV, 298. 13-14). · A explicação esboçada da objetividade dos juízos serve, destarte, a justificar a pretensão do ideal racionalista do conhecimento, ao qual Kant .permanece vinculado: "Ciência no sentido próprio só pode ser aquela cuja certeza é apodítica" (IV, 468.17-18). Juízos apodíticos, isto é, necessários e universais, só podem ser juízos que concordem com os objetos e que são assim verdadeiros. Concordância de juízos com seus objetos pressupõe, porém, que haja não somente consciência de estados subjetivos, mas também que nós podemos relacionar estes estados algo diferente deles. A distinção entre nível subjetivo e objetivo é, segundo Kant, possível somente na hipótese da constituição do objeto mediante alguns princípios constitutivos do sujeito, sendo este já não mais o empírico, mas o sujeito transcendental. Estas reflexões deixam patente que, para a teoria da experiência de Kant, é característica a introdução da hipótese, resultante da dissecação da experiência de que, na consciência do objeto, estão contidos dois momentos, um material e um formal. "A experiência é, sem dúvida, o primeiro produto gerado pelo nosso intelecto, no qual a matéria bruta das percepções sensoriais é por ele elaborada" (IV, 17 .4-6) . Kant considerava a posição de que o objeto àa experiência é gerado por nós e que possui o caráter de um mero fenômeno como a única forma de se conceber a possibilidade da necessidade de experiências, dado que a alternativa, que pode ser pensada abstratamente, não é aceitável, ou seja: a hipótese da experienciabilidade de coisas em si. Mesmo se esta fosse admissível, as sentenças sobre coisas em si seriam para Kant apenas sentenças de fato, e as generalizações empíricas por eles possibilitadas não teriam o caráter de sentenças universais. Como, para Kant, tais sentenças não só devem existir, se o ideal racionalista do conhecimento deva ser re] 'izado, mas porque, segundo sua posição, efetivamente existem, e1e considera inevitável
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a "revolução do modo de pensar" (III, 11 . 34) no sentido da hipótese de que objetos, com utilização de um material experiencial dado, são Rerados por nós mediante recurso a certos princípios gerais. Apenas ela leva ao conhecimento dos elementos a priori da experiência, que precisam ser pressupostos para a solução do problema central da teoria kantiana da experiência. A hipótese de que os objetos da experiência são gerados por nós implica o reconhecimento de uma atividade generativa do sujeito, de uma síntese, que Kant porém não só postula, mas sobretudo afirma poder ser consciente (III, 11 O. 32-33). O conhecimento da experiência supõe um dado, um múltiplo, que é apreendido sinoticamente pela sensibilidade, e cuja síntese é operada pela faculdade imaginativa (Einbildungskraft). A unidade desta síntese na apercepção original é pensada pelo entendimento (Verstand). Sensibilidade e entendimento precisam estar correlacionados mediante a função transcendental da faculdade imaginativa, a fim de que a experiência seja possível. Destarte, a forma da experiência está determinada pela sín· tese do múltiplo segundo os conceitos do entendimento: "A unidade contínua e sintética das percepções constitui justamente a forma da experiência, e não é nada mais do que a unidade sintética dos fenômenos segundo conceitos" (IV, 83.29-32). 3.
A estrutura da teoria kantiana da experiência e sua interpretação dialética.
O esboço apresentado aqui (obviamente limitado à rápida indicação das correlações) é necessário para podermos passar à análise da questão de que elementos da teoria da experiência de Kant estão contidos nas concepções dialéticas desenvolvidas pelo idealismo póskantiano. Tratemos, pois, de esquematizar estes elementos.
Se chamarmos a globalidade dos objetos de eXperiência, com Kant, de natureza, então a idéia-mestra de Kant quanto à natureza pode igualmente ser formulada. Segundo ele, é "nêcessário, em função dos objetos da experiência, tudo aquilo sem o que a experiência destes mesmos objetos seria impossível" (III, 182.21-23). Destarte, natureza deve ser determinaóa, aqui, no sentido de uma "regularidade dos fenômenos no tempo e no espaço" ( III, 12 7. 22) ou de um "contexto dos fenômenos segundo sua essência, de acordo çom re· gras necessárias, isto é, com leis" (III, 184.12-14). A correlação
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entre os objetos da experiência e a experiência aqui constatada, única em que eles podem ser conhecidos, torna possível formular a tarefa da filosofia transcendental de duas formas: ou como pergunta pela possibilidade da regularidade necessária das coisas enquanto objetos da experiência, ou como pergunta pela cognoscibilidade a priori da regularidade necessária da própria experiência em função de seus objetos. O problema, colocado aqui sob a forma de duas questões diferentes, é, no entanto, um só, na medida em que experiência subjetiva e natureza experimentada são meros momentos da relação experiencial. Os sucessores de Kant não hesitavam em caracterizar esta relação como dialética, enquanto Kant não levava em consideração esta dialética implícita, ao constat.:r: "A ordem e a regularidade. . . dos fenômenos que chan1amos de natureza, é introduzida JX>r nós mesmos, e nós não os encontraríamos se já não os tivéssemos introduzido. Pois a unidade da natureza deve ser uma unidade necessária da correlação dos fenômenos, isto é, certa a priori. Como é que chegaríamos, no entanto, a montar uma unidade sintética a priori, se os fundamentos subjetivos de uma tal unidade já não existissem nas fontes originais de conhecimento do nosso espírito, e se estas condições subjetivas não fossem, ao mesmo tempo, objetivamente válidas, na medida em que elas constituem o fundamento da possibilidade, pura e simples, de se conhecer um objeto da experiência" (IV, 92.14-24 ). Experiência no sentido próprio (isto é, juízos sintéticos a priori), e de um modo geral qualquer experiência, só é possível se a "natueza" experimentada é concebida como "supra-sumo" (lnbegriff) dos objetos, que são ordenados por regras a priori. Estas regras não podem ser entendidas como relações "legais" no âmbito das coisas em si, nem podem se~ interpretadas como fontes de uma indução resultante de observações isoladas, pois toda observação já supõe estas mesmas regras. Por conseguinte, estas regras são impostas por nós mesmos aos objetos da experiência. Destarte, a análise da realidade da experiência leva à distinção entre dois momentos heterogêneos. Kant formula, agora, os dois pressupostos seguintes: primeiramente, a matéria da experiência é uma multiplicidade de sensações (dados sensíveis) desordenadas e desarticuladas, dadas por parte das coisas através da "afeição" do sujeito. Em segundo lugar, as relações que possibilitam a ordenação dos dados e, especificamente, os princípios ordenadores a priori do
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tipo de leis, que são constatados na realidade d
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não pode ser pensado sem sua relação para com o eu e para com a unidade do "eu penso", dado que o conceito do objeto transcendensó se refere à unidade "que deve ser constatada na multiplicidade conhecimento, na medida em que está em relação com um objeo" (IV, 83. 3-5). Trata-se, aqui, de uma correlação que os idealistas 's-kantianos não deveriam hesitar em caracterizar co::no "dialética", ' mesmo como correlação dialética básica. Destarte, é indispensáel levar em consideração a teoria kantiana da experiência ao se expor a filosofia dialética moderna. Utilizando os pressupostos de Kant, a relação entre o eu e o objeto deve ser definida da seguinte forma: o eu não pode ser obserado no sentido da experiência de um objeto, mas só pode ser conebido como cqndição de possibilidade desta experiência ; assim, ele é igualmente condicionado pela experiência de objetos, ou seja, por ;isão, por uma contemplação exterior, como diz Kant expressamente UI, 1Y 1 . 22-192. 2). De outra parte, o eu-penso, ou seja, a unidade da apercepção, é condição da experiência de objetos. como foi demonstrado ·acima. O eu-penso aparece, desta forma. como condicio·· nado por algo que deveria ser condicionado por ele. Dito com termos egelianos: o eu-penso é mediado pela experiência da unidade do objeto e pela relação para com o objeto transcendental nela contida, conforme a unidade da apercepção transcendental. O pensamento de um eu que se automedia através de experiência dos objetos é central na dialética idealista pós-kantiana e em todas as filosofias dialéticas posteriores, dela dependendo. Assim é que Fichte entende a relação dialética fundamental como estrutura de movimento do eu que se põe a si mesmo, que se opõe a um não-eu e que se determina através deste; para Hegel, a relação entre o eu puro e o objeto imediato inclui, contém, os elementos dialéticos, primeiro da certeza sensível, e então da mediação de ambos; Marx partiu da eflexão sobre a relação entre o eu e o objeto, mesmo se a definia, quanto ao conteúdo, de modo diverso dos dialéticos idealistas; e assim, por exemplo, a polêmica de Gentile contra uma "dialética do pensado" e em favor de uma "dialética do pensar" não é nada mais do que um retorno à origem da filosofia dialética moderna. Terá Kant, então, ao abordar a questão da relação entre o eu e o objeto, não sob o título Dialética, mas dentro da Analítica Transcendental, deixado de reconhecer o caráter dialético de sua teoria de
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experiência? Era necessário que os idealistas pôs-kantianos o conhecessem melhor do que ele mesmo se entendia? A resposta só pode ser negativa. Kant tinha uma boa razão para não falar em dialética neste ponto, onde a filosofia dialética posterior pensou poder encontrar o fundamento de toda dialética. Relembramos, em primeiro lugar, que, segundo Kant, a filosofia transcendental não é uma disciplina cujo objetivo seria a experiência e o conhecimento de objetos. À filosofia transcendent~l cabe, antes de mais nada, indicar as condições sob as quais a experiência e o conhecimento de objetos podem ser pensados como possíveis. Transcendental significa, pois, um conhecimento "que se ocupa não somente dos objetos, mas igualmente da nossa maneira de os conhecer, na medida em que esta deva ser possível a priori" (III, 43. 17-19). Kant estava, por conseguinte, plenamente consciente do caráter metateórico da teoria da experiência. A questão das "condições de possibilidade d<: experiência" deve ser entendida como a questão de que pressupostos podem explicar o fato de que exista experiência (primeiramente no sentido próprio, e então de uma maneira geral). A solução desta questão deve passar por duas etapas : ( 1) Partindo do fato da experiência, Kant busca as premissas de sua explicação. Como premissas, ele considerava os princípios estruturais de tempo e espaço, da natureza do dado e da faculdade cognitiva, assim como os princípios do entendimento puro, citados expressamente na Analítica Transcendental como princípios. ( 2) Com o recurso a essas premissas, <: experiência e o conhecimento da "natureza'' devem ser concebidos como possíveis. Como os princípios da constituição do objeto devem coincidir com os princípios do conhecimento do objeto, é possível existir juízos universais e necessários objetivament'e válidos ("juízos da experiência"), isto é, ciência no sentido estrito. Nas etapas ( 1) e ( 2), reconhece-se, sem dificuldades, as etapas do método analítico conhecidas como "resolução" e "composição". Como base no que foi exposto no 1. 0 parágrafo deste capítulo, dever-se-ia supor que tudo o que vale, de modo geral, para o método analítico, e que Kant conhecia suficientemente, pode ser aplicado
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método empregado na Critica da Razão Pura. Em favor desta sição tem-se que Kant considerava a idéia por ele chamada de evolução do modo de pensar", ·- isto é, a assim chamada revolu-o copernicana - inicialmente como hipótese e que pensava poder er na resolução das antinomias, um "experimento da razão pura'' ill 14. 26), o qual confirmava aquela hipótese, constituindo uma ~ie de sub-rogado da verificação empírica. Não se pode deixar de er, no entanto, que Kant não escapou ao mal-entendido generalizado método analítico, que leva à hipostasiação de conceitos que estão ntidos nos pressupostos formulados para a explicação. Esta infração ao "espírito" do método analítico pesa mais do que o psicologismo da filosofia transcendental kantiana, tão freqüentemente criticado, pois ele é mais propriamente de princípio e é ele que torna po sível a interpretação psicológica das condições de possibilidade a experiência. Se é correto que, ao menos o "eu transcendental" 5 e o "obJeto anscendental" - deixando de lado as categorias 6 - são conceitos eóricos, possuindo significado apenas no quadro da teoria da experiência, para cuja corroboração são introduzidos 7 , então está errado relacioná-los a algo de real como seu objeto. Que ~s coisas se pas· ·am assim. segundo Kant, se confirma por sua exigência de uma Dedução Transcendental (III, 99 . 30-100. 5), na qual busca fundamentar a aplicabilidade dos conceitos em questão demonstrando-os como condições de possibilidade de experiência em si, isto é, como indispensáveis dentro da teoria da experiência, No entanto, Kant não oube evitar, de forma conseqüente, o erro de atribuir coisas reais aos conceitos teóricos em questão. Assim, ele entendeu o eu transcendental como algo de real, atribuindo-lhe espontaneidade, atividade pois, e dotando-o de faculdade psíquicas, que devem agir em conjunto quando da constituição do objeto da experiência. Com o conceito do objeto transcendental passa-se algo de análogo, na medida em que, na teoria da afeição, atribui-se causalidade, com relação ao sujeito cognoscente, à coisa em si. A confusão entre os conceitos introduzidos para a corroboração da exp.1cação da expe· riência e os do tipo de conceitos de objeto está relacionado com a interpretação dos princípios da filosofia transcendental enquanto sentenças sobre as condições reais da constituição do objeto. A correlação da multiplicidade, momento original da .experiência do objeto, está ligada a um "ato de espontaneidade da faculdade imagina-
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tiva", caracterizado corno "ação do intelecto''. Toda correlação só pode ''ser estabelecida pelo próprio objeto''. Conseqüentemente, a função lógica do a_juizar, assim como as categorias, são interpretadas como "ação do intelecto, pela qual a multiplicidade das representações dadas ( ... ) é posta sob uma a percepção" ( Ill, 115 . 8-1 O). Tem-se, assim, a impressão de que a explicação da possibilidade da experiência se transformaria em explicação do aparecimento ou da produção dos objetos da experiência (como fenômenos). Na medida em que os princípios explicativos são entendidos corno princípios generativos, dá-se um passo na direção da interpretação dialéitca da relação entre o sujeito da experiência e objeto: o objeto é considerado como produzido pelo eu; este só existe na medida em que há objetos. O "eu penso" e as categorias, sem uma relação a uma multiplicidade de conteúdo, são completamente vazios; uma multiplicidade de conteúdo só pode existir, porém, sob a forma de objetos, o que exige, por conseguinte, como unidade das representações, a unidade do eu e a síntese na unidade da consciência ( III, 111 . 18-21). Os idealistas pós-kantianos puderam apoiar-se neste ponto e explicar a realidade dos objetos como produzida pelo eu, e este como condicionado pela realidade dos objetos. O eu "se põe a si mesmo", é "mediado por si mesmo", expressões que variam segundo sua utilização pelos representantes da dialética idealista ao tratar este tema. Kant, porém, apesar do seu mal-entendido parcial, conservava, ao contrário, uma consciência suficientemente clara do método analítico e das conseqüências de sua aplicação, de forma que não transpôs o último limiar em direção da interpretação dialética das correlações próprias à teoria da experiência. Os princípios sobre os quais se baseia a teoria da experiência, são enunciados, aos olhos de Kant, "para a corroboração da explicação buscada, e mesmo se não ten· ciona atribuir entidades aos conceitos teóricos, ele sabia, ao mesmo tempo, "que aquilo que devo supor para criar a possibilidade de conhecer um objeto não pode ser conhecido por mim como objeto" (IV, 250.34-36). Tratar o eu e a unidade de apercepção corno um objeto é um erro que Kant chama de "deslise da consciência hipostasiada" (IV, 251 .4-5). A aparência dialética (IV, 251.2) daqui decorrente (segundo Kant, em certo sentido, "natural") é a aparência que iludiu os representantes da dialética idealista. Além disso, no prefácio à 1. 3 edição da Crítica da Razão Pura, Kant deixou ex-
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es:samente de lado a interpretação causal das correlações de teoria experiência quanto à sua relevância para o objetivo explicativo. distinguia dois aspectos da dedução transcendental: o primeiro refere aos objetos do intelecto puro, devendo tornar concebíveis conceitos a f11iiori e exprimir sua validez obietiva" (IV. 11. 30-32); segundo se refere ao próprio intelecto e às suas faculdades cogniti. Este último não pertence essencialmente, segundo Kant, à finalie principal da Crítica da Razão Pura (IV, 11. 35-37) , pois esta refere a algo semelhante a uma hipótese causal; hipóteses, no ento, não têm lugar entre considerações tais como são tecidas na C ' tica da Razão Pura. O fundamento desta asserção, aqui apenas ada, de que se trataria somente de uma hipótese, apesar das parências, é prometido por Kant para uma outra ocasião. Deve-se, entanto, manter - contra Kant - que a teoria da experiência, medida em que ela empreende explicar o surgimento de realide da experiência, procede no sentido de uma explicação causal. A oposição de Kant ao reconhecimento do caráter hipotético da expli-ação tentada mostra, uma vez mais, o quanto ele era dependente o ideal racionalista do conhecimento. Elementos dialéticos na tábua das categorias.
Kant descobriu, mesmo se relativamente tarde (as primeiras reflexões se encontram apenas na 2.a edição da Crítica da Razão Pura) relações na tábua das categorias, às quais ele atribui uma interpretaç~o claramente antecipada da posição idealista da filosofia ialética posterior. No § 11 da CRPu, Kant constatava, quanto à ábua das categorias, que se poderiam fazer reflexões interessante:; obre elas (III, 95.12-13), dentre as quais as seguintes:
1. Cada uma das quatro classes da tábua das categorias compreende três categorias, enquanto que as divisões lógicas, de modo geral (como, por exemplo, na assim chamada Árvore de Porfírio), são dicotômicas. Que, no caso das categorias, se opere uma divisão tricotômica, é uma circunstância que, segundo Kant, "dá o que pensar" (III, 96. 3-5). Os seguidores idealistas de Kant levaram este convite a sério. Na opinião deles, a rápida referência de Kant (cujo valor sistemático pode ser posto em dúvida) 8 deve ser compreendida da seguinte maneira: as divisões dicotômicas são efetuadas por força dos princípios
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do terceiro excluído e da não-contradição. equiva1entes na 1óg;ica tradicional. Se a divisão dentro da classe das categorias não ocorre de forma dicotômica, é porque ele não obedece ao princípio de nãocontradição. Deste ponto em diante basta dar um pequeno passo para chegar-se à conseqüência de que, no setor em questão, é uma lógica não baseada no princípio de não-contradição, isto é, uma lógica dialética, que prevalece. Criticamente, deve-se observ2r, aquL que a tricotomia não se apresenta, de forma alguma, com naturalidade, mas é construída por Kant de modo claramente artificial, um pacto arbitrário. Pense-se apenas na categoria da limitação, da qual já se pode supor que foi inventada ad hoc, dado que nenhum esquema lhe é atribuído. Na classe das categorias de relação, as categorias de inerência e subsistência, causalidade e dependência, assim como de comunidade (da interação) introduzem conceitos que correspondem aos princípios de conservação 9, causalidade e atração das massas e não, como decorre do "fio condutor da descoberta de todos os conceitos puros de entendimento", à divisão dos juízos sob o ponto de vista da relação. No que se refere a esta divisão, que, segundo Kant, distingue os tipos de juízo em categóricos, hipotéticos e disjuntivos, observe-se que, corretamente, ela deveria ser entre juízos simples (não-compostos, categóricos) e compostos, sendo estes ainda subdivisíveis; o inventário dos juízos hipotéticos e disjuntivos ou vai longe demais (pois os juízos hipotéticos podem ser transcritos em forma disjuntiva e vice-versa ou, como Sheffer demonstrou, todas as sentenças moleculares formadas, mediante conectivos, a partir de duas sentenças atômicas, podem ser transcritas de forma que, além da negacão, só se pode empregar um único conectivo, denominado pelo nome de seu inventor, Sheffer) ou é insuficiente (porque, por exemplo. a cÓ!)ula conjuntiva de sentenças não é levada em consideração). Trata-se, destarte, de não atribuir nenhuma importância sistemática à divisão tricotômica operada na tábua das categorias. 2. Dentro de cada uma das classes, segundo Kant, a terceira categoria decorre da relação da segunda com a primeira (III, 96.6-7). Assim, Kant interpreta a totalidade como "multiplicidade considerada enquanto unidade" (III, 96. 8-9), a limitação como "realidade ligada com negação" (III, 96. 9-1 O) etc. Quando Kant diz que a terceira categoria decorre da relação entre a primeira e a segunda da mesma classe, a expressão decorrer é ainda de tal forma indeter-
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ada, que admite a interpretação de ser a terceira categoria defipelo recurso à primeira e à segunda. A seguir, no entanto, Kant ui esta possível interpretação, ao afirmar: "Não se pense, porém, que, apenas por causa disto, a terceira ~oria seja um mero conceito deduzido e não original do entenento puro. Pois a relação entre a primeira e a segunda, a fim de uzir o terceiro conceito, exige um ato especial do entendimento, não coincide com o que foi operado no caso do primeiro e do e ndo" (III, 96. 13-17). O ato do intelecto, pelo qual é p-roduzida erceira de uma classe de categorias é, destarte, um ato oróprio, força do qual o conteúdo pensado é algo de autônomo; isto não clui, porém, que ele deixe de estar condicionado, de alguma forma, os atos em que foram pensadas as duas primeiras categorias, ou se·a: a terceira categoria tem de ser, de algum modo, dependente das as primeiras, mesmo sem dever ser definida com auxílio delas. Se - existisse nenhumc: relação de dependência, o pensar da terceira -o seria de forma alguma condicionado pe~o pensar das duas prieiras, de sorte que não se poderia falar em decorrência de terceira partir da primeira e da segunda cc:tegoria. A fundamentação de ant não é convincente. Se Kant julga que o conceito de número como pertencente à categoria da totalidade) não se forma sempre lo pensamento de unidade e multiplicidade, como demonstraria a epresentação Jo infinito (interpretado aqui, certamente, como uni· dade da multiplicidade infinita), tal repousa sobre a suposição de ue números infinitos ( transfinitos) não existem. E se Kant afirma ue a influência causal de uma substância :;obre outra não se explica pela relação entre os conceitos de substância e causa (nem poderia ser definida mediante utilização destes conceitos), ele supõe tacitamente a interpretação de relação cau~al nv .~: entido de uma influência real da causa sobre o efeito. Abstraindo-se dos exemplos de Kant, deve se observar que a indedutibilidade de terceira categoria da nnmeir3. e se7.unda não pode er mantida de modo geral, como já o demonstra a reflexão de que as sentenças universais podem ser formuladas como sentenças existenciais duplamente negadas, ou seja: "A soma dos ângulos internos de qualquer triângulo é igual à soma de dms ângulos retos" pode ser transcrita pela sentença: "Não existe nenhum triângulo, cuja ·soma dos ângulos internos não seja igual à soma de dois ângulos retos". E "alguns homens são mortais" pode ser transcrito por "nem todos os
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homens são mortais". De modo semelhante, a lógica modal permite a transcrição de sentenças com caráter modal de necessidade em sentenças com caráter modal de possibilidade e vice-versa, de modo que se precisa de um único operador modal (tanto para a possibilidade quanto para a necessidade). Assim, também a categoria kantiana de necessidade parece não ser definível com o auxílio das demais categorias da mesma classe. Embora não tenha caracterizado positivamente o modo pelo qual a terceira categoria decorre da primeira e da segunda, é compreensível que os representantes da filosofia dialética pós-kantiana tenham visto, na relação das duas primeiras categorias, da qual decorre, sem ser deduzida, a terceira categoria de cada clas~e. uma relação lógica específica e a tenham chamado de dialética. Ao relacionar o que os posteriores viriam a chamar de síntese a um ato de pensamento pró prio, Kant ofereceu um ponto de referência à uma concepção do tipo fichteano, segundo a qual diz-se do terceiro princípio da Teoria da Ciência, que surge como síntese dos dois precedentes, "que a tarefa da ação que é posta por e1e e determinada pelos dois princípios antecedentes, mas não a sua solução"10• Na medida, porém, em que, para Kant, não se trata das relações entre duas sentenças, mas entre conceitos, suas "reflexões interessantes" antecipam a concepção da dialética, não tanto fichteana, mas hegeliana. Embora oossa ter-se tratado, inicialmente, para estas "reflexões interessantes",- de uma idéia secundária, Kant tendia a atribuir-lhe uma certa relevância sistemática, con~::> se pode ver em suas considerações no final da introdução à Crítica do Juizo (V, 197 . 18-27). De modo semelhante, na Lógica, Kant declara que a tricotomia é característica de todas as divisões a partir do princípio de síntese a priori, na medida em que se deve distinguir, neste particular, entre ( 1 ) ·o conceito como condição, ( 2) o condicionado e ( 3) a dedução deste último do primeiro ( lX, 147 . 21-148 . 2). Não é de se admirar . que o idealismo pós-kantiano tenha pensado encontrar aqui a confirmação de sua concepção da dialética.
5.
A dialética transcendental como lógica da aparência.
Se a analítica transcendental (como teoria analítica de experiência) tinta de mostrar que o conhecimento de experiência não é possível sem a relação dos conceitos às intuições e que, por causa
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~ não poderiam transcender o campo da experiência possível sob dições de tempo e espaço, a tarefa da Dialética transcendental · te na demonstração de que todas as tentativas de se obter o ecimento da realidade só de conceitos, isto é, independentemente condições empíricas de sua aplicabilidade, estão condenadas ao em parte, pode ser visto nas suas conseqüências
O pensamento do paralelismo entre lógica formal e transcental é mantido por Kant também na Dialética transcendental, em-
a isto seja tão pouco proveitoso para sua exposição quanto na lítica transcendental. Isto poderia ser plausível para a determição geral do conceito dialética. Kant insiste, com razão, em que a ca tormal não é o órganon de um conhecimento material, mas nas o cânon de apreciação da correção formal do conhecimento. Se se crê, erradamente, poder obter só com esta regra sentenças toco lares, o pensamento se tornaria "dialético". O argumento e também para a lógica transcendental que determina as condiformais da possibilidade da experiência e que, destarte, deve denominada igualmente "cânon". Se se pensa noder obter o conhe. ento dos obietos recorrendo aos princípios qÜe exprimem as con·çôes de possibilidade da experiência, passa-se ao campo da dialé·ca (III, 82, 3-23). Em sua tentativa de efetuar uma espécie de dedução metafísica conceitos da razão ou das idéias, semelhante à dedução meta. ica das categorias, Kant se b'"seou em um paralelismo, suposto por e e entre lógica formal e lógica transcendental. Voltaremos ainda a ta duvidosa empresa. Aqui, trata-se, primeiramente, da crítica da entativa de se utilizar materialmente os princípios puramente for. do entendimento puro" (III, 82. 14-15), a fim de, deste modo. hegar-se a uma ampliação do campo cognitivo p::ra além dos limites do campo da experiência possível. Po1 cz.usa dos resultados gerais da Analítica Transcendental, Kant tinha de recus<:r, como errônea, uma tentativa do gênero, porque ele tinha de negar ~istematicamente a possibilidade de juízos ampliadores independentes da intuição. Juízos que ampliam nosso saber nunca são, como ficou demonstrado na Analítica Transcendental, juízos com base em relações conceituais (juízos logicamente verdadeiros), mas sempre ou juízos da experiência (em cujo caso trata-se de juízos a posteriori) ou senten-
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ças sobre as condições formais da possibilidade de experiência (em cujo caso trata-se de juízos a priori). Juízos ampliadores a partir apenas de conceitos (da Razão Pura ) são, destarte, impossíveis, e se uma sentença qualquer for formulada com a pretensão de constituir um tal juízo ampliador, esta pretensão é injustificada; ele é a aparência dialética, cuja demonstração é buscada pela dialética transcendental. "Dialético" significa, pois, para Kant, de uma parte, o "ofuscamento" (I li, 235. 27 ) de uma ampliação do campo cognitivo mediante a razão pura (no lugar da qual Kant emprega também a expressão "entendimento puro"); de outra parte, "Dialética" denomina a análise que deve conduzir a desvelar a aparência transcendental e suas razões. No primeiro sentido, é dialética a tentativa "de ajui· zar sinteticamente sobre os objetos . . . só com o entendimento puro" (III, 82. 20-21 ). No segundo sentido, o termo dialética é empregado para designar a crítica da aparência dialética, e, neste caso, Kant fala em dialética transcendental (UI, 82.23-25). O que foi dito até aqui pode ser entendido no sentido de que nós sempre pensamos dialeticamente, se esquecermos que sentenças referentes à realidade se aplicam aos objetos exclusivamente como fenômenos e as tomarmos como sentencas sobre coisas em si. Neste ponto, no entanto, Kant não pensava em quaisquer sentenças, mas nos princípios transcendentais. A interpretação da frase, por exemplo, "o sol esquenta a pedra", como uma afirmação sobre coisas em si, seria vista por Kant, de fato, como errônea, mas .não como "dialética''. Se, no entanto, o princípio de causalidade, suposto por aquela sentença, for interpretado como válido no campo das coisas em si, isto é, como uma sentença sobre a determinação causal de uma realidade independente das condições da intuição e do entendimento, dar-se-ia ensejo a uma ilusão dialética. Além disso, a aparência dialética não deriva de um erro, que seria evitável, mas deve surgir com caráter de inevitabilidade. Segundo Kant, todavia, a suposição de que o sol, que nós dizemos esquentar a pedra, sej a uma coisa em si, repousa sobre uma ilusão; estarse-ia, porém, em contradição com a tendência fundamental da crítica kantiana de razão se se quisesse afirmar que esta ilusão é inevitável. Para que uma aparência seia inevitável, são necessárias cir-
Filosofia Dialética Moderna tâncias especiais.. Como causa da indissolubilidade de aparência - ética, Kant in
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tudo na relação entre a conclusão e as oremissas dos rr:ciocmtos. Como as premissas dos argumentos podem,- por sua vez, ~er deduzidas de princípios superiores e como este processo pode ser iterado à formação de orosilogismos, resultam séries de frases oue estão na relação razão~decorrência, sendo aplicado o "princípio de razão em seu uso lógico". Este princípio exige que se "encontre o incondicionado no conhecimento condicionado do entendirr..en:o, de sorte que se efetue a unidade do mesmo" (lU, 242. 34-55). Partindo da convicção de que :e pode distinguir, do oonto de vista de relacão, entre juízos categóricos, hi9otéticos e disjuntivos, Kant considerava que a àivisão dos argumentos em categorias, hipotéticos e disjuntivos estava completa e era necessária n:1 medida em que resulta da tábua de juízos em que, segundo Kant, a estrutura do nosso entendimento se resumiria. No sentiuo do p<:ralelisrr:o entre lógica formal e transcendental, ao qual sempre se refere, Kant declarou as formas das relações lógicas condicionais, que resultam das três modalidades de argumento clt[;dos, modelos de tc:la e qualquer relação condicional, o que revela o impasse de sua tendência a efetuar toda classificação por esquemas lógicos. Lembre-se, primeiramente, que a classificação dos juízos sob a rubrica relação é insatisfatória, razão pela qual a respectiva classificação dos argumentos deve ser considerada igualmente insatisfatória. Daí constatar-se que não fica clara a maneira pela qual Kant terá pensado as séries condicionais lógicas em pormenor. Quanto ao:; polissilogismos dos argumentos categóricos, por exemplo, Kant pensa que se deva admitir, para a série de prossilogismos uma única pre:nissa caracterizada pelo fato de que seu conceito-sujeito não mais çoder-ia ser conceito-predicado. É de se perguntar por que deve ser r:ssim, pois em toda sentença o conceito-sujeito pode, por conversão, ou ao menos por contraposição, ser transformado em conceito-predicado. Efetivamente, Kant constatou, por vezes, que nenhum conceito de um juízo predicativo se caracteriza, do ponto de vista lógico, inequivocamente como conceito-sujeito; tal ocorre apenas pelo acréscimo da categoria de substância (III, I 06. 21-28). A interpretação é difícil também quanto aos argumentos disjuntivos. Kant pensava, provavelmente, na especificação contínua de um dado conceito, tal como é costumeiramente apresentada, sob a forma de uma Árvore de Porfírio (mesmo se ele não pensava numa especificacão exclusivamente dicotômica) 5:endo .que o procesw intentado se dirigia à essên-·
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- de todas as determinações. As mais convincentes das reflexões de nt são r:s relativas aos argumentos hipotéticos, de modo que pareacertada a observação de Schopenhauer, de que os exemplos de t só funcionam, em geral, quando ~ão tomados do âmbito das .3lações causais. Se a condição de uma sentença hipotética é transada em conditionatum e relacionada a uma nova conditio, te:nentão, efetivamente, uma verdadeira série condicional. Tomando por base tais séries condicionais, pode-se argumentar, - gundo Kant, que o condicionado, a conclusio, só pode ser · pe;-tsada mo dada sob a mposição de que a série de condições seja d=1da. o e quer dizer: integralmente dada. O pensamento do condicionado plica, segundo Kant. o pensamento da totalidade na série das presas (III, 256.21-25). "Destarte, our-ndo um conhecime11~0 é nsiderado como condicionado, a razão é levad:t a ver a série re=-ressiva das condições corno completa e sua totalidade como dada".
nr,
256.29-31).
Kant não tencionou estender à razão em si mesma o oue foi ito QU[;nto à Ió~ica. Segundo ele, "o conceito trancendental- d1 razão não é outro do que o da totalidade das rondiçõe.r nara um condi·onado determinado. Como só o incondicional possibilita a totalidade das condições e, inversamente, a totalidade das condições é ela mesm2 sempre mcondicional: só assim um conceito ouro de razão pode ser explicado pelo conceito do incondicional, na medida em que este contém um tundamento de síntese do condicionado" (III, _5} .16-22). Segundo Kant, pois, o recurso de um condicionado logícame:lte à série de suas condições pode ser feito tão somente sob a forma de fundamentação polissilogística, mas a totalidade das condições ceve ser pensada também como dada com o condicionado. O pensame:1to do condicionado implica, por conseguinte, a idéia do condicionado. Daí ter Kant podido afirmar que a idéia do incondicionado se diferencia, segundo as relações condicionais respectivas, nos três tipo:; de argumentos, isto é, no sentido do incondicionado da síntese categórica em um sujeito, no sentido do incondicionado da sín:ese hipotética dos componentes de urna série e no sentido do incondicionado da síntese disjuntiva das partes de um sistema (III, 251 . 25-28). Estes três modos de pensar o incondicionado foram . vistos por Kant, igualmente, nas idéias centrais da psicologia, cosmologia e teologia
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racionais, ou seja: Alma, Mundo e Deus. Com isto se desvela a inteira ambigüidade da orientação pelos esquemas lógico-formais: toda a dedução articulada das idéias transcendentais~ a partir dos ti9os de argumentos racionais, esboçada aqui, serve apenas à fundamentação sistemática da hipótese de que nós teríamos que pensar o incondicionado exatamente da maneira em que ele foi pensado nas três partes da metaphysica specialis tradicional. Tal vale igualmente para as considerações finais do capítulo sobre os paralogismos da 1.a edição da CRPu (IV, 247.26-248. 9), onde a totalidade de síntese das condições de um condicionado é descrita ( 1. 0 ) como síntese das co~dições de um pensamento qualquer, (2.0 ) como síntese das condições do pensamento puro. A primeira destas não se refere, no entanto, a série alguma de condições, único caso em que se poderia falar em síntese, mas aqui se trata da "única condição, que acompanha todo pe:1sar", ou seja: o eu no "eu penso", no único texto de psicologia racional (IV, 217 .12), e é por isto que a razão tem a ver com esta condição, na medida em que ela mesma é incondicionada" (IV, 248.21-23). No caso de idéia de alma, a síntese ("das condições de um pensamento"), ao contrário da afirmação de Kant, não é uma síntese de condições, mas a relação dos pensamentos a uma única condição, "uma mera relação do pensamento a um sujeito" (IV, 248.13-14), como o próprio Kant diz. Deve-se perguntar para que servem as considerações que Kant faz sobre a série de prossilogismos do argumento categórico. O contacto entre estes e a idéia de alma permanece obscuro. Em outro lugar, Kant diz, bem mais adequadamente, que as argumentações da psicologia racional concluem, "a partir do conceito transcendental do sujeito, que nada contém de múltiplo, em direção à unidade deste mesmo sujeito, do qual eu não possuo, desta maneira, concei!o algum" (IV, 215. 6-9). Enfim, um o1har sobre a divisão sistemática das idéias, que Kant tenta fazer com base na consideração das representações (1) como relacionadas ao sujeito e ( 2) como relacionadas ao objeto, e, neste caso, (a) a esse objeto como fenômeno e (b) a um objeto como o objeto próprio do pensar (III, 257.31-258-1 ), e na consideração de que, dentre as respectivas classes de idéias, isto é, da unidade ab~oluta do sujeito pensante, da unidade absoluta da série de condições no fenômeno e de unidade absoluta de todos os objetos do pensamento, revela que apenas a segunda classe tem algo a ver com as séries condicionais. 11 Pode-~e supor, pois, que Kant tomou como ponto de partida uma crítica das partes principais da metafísica especial, ou seja: da
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·cologia racional, da cosmologia racional c da teologia racional, jos princípios centrais ele pensa poder qu:::lificar de ilusão ou de parências, sem colocá-las, porém, no mesmo nível que a experiência _ Tada por um erro de pensamento desapercebido. Como, indepentemente de sua convicção quanto à correção de ma crítica, de - se liberar da influência dos esquemas de pensr:mento da Meta.ca, veio a afirmar que a aparência descoberta é natural e inevitáel. Pode-se ainda supor que Kant, pelo fato de considerar n aparência dialética como fundada na natureza da razão, estava convencido que uma dedução apriorística dc::s idéias de razão podia ·ser feita a partir da essência da razão, de modo que resultasse uma sistemática da aparência transcendental, submetida anteriormente à crítica. Em suma, a posição de Kant pode ser caracterizada por um pen · sarnento do condicionado que implica não apenas o pens2mento do ondicionado, mas toda a série das condições, e, destarte, o pensa· mento do incondicional - tanto como totalidade incondicionada das condições, qmmto como elemento incondicionado desta série. A distinção entre três maneiras de pensar a "totalidade da síntese das condições para um dado condicionado" (IV, 247.27-28) não é conincente sistematicamente e pode ser explicada pela referência da subdivisão tradicional da metafísica especial. A idéia de uma totalidade das condições para um dado condicionado não é propriamente dialética, como, para Kant, as idéias jamais são dialéticc::s em si (III, 442.11-12), mas ocasiona, numa interpretação determinada, uma ilusão dialética, especificamente quando se aborda a concepção global dos elementos de uma série (sobretudo infinita) como algo de dado ou quando a idéi2 é tratada como conceito de um obieto. Os conceitos racionais puros da totalidade, na síntese das condições, segundo Kant, põem o pensamento diante da tarefa de levar adümte a unidade do entendimento, na medida do possível, até o incondicional (III, 251. 34-37), isto é, eles não constituem um obieto, mas rel!ulam o pensamento objetivo. Desta forma eles "não têm outra utilidade . . . do que a de levar o ente:1dimento na direção em que o uso deste, ampliado ao máximo, fique concorde consigo mesmo" (III, 252. 3-5). Na medida em que os conceitos de totalidade devam ser enten· didos como pensamento de uma tarefa e não de um dado, fica claro como eles possam ter uma função positiva, mesmo 5:e, de princípio,
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nenhum objeto corresponda a eles. Se Kant afirma, todavia, que as representações de um[: alma substancial, imortal e de um Deus como um "ser de todos os seres ' sejam necessánas no sentido de uma tal tarefa ( cf. III, 443. 23-28). isto é tão pouco justificado como a tese sobre elas, sustentada por Kant, de que a ilusão é ineludível, mesmo após a demonstração do erro dos experimentos, no:; quais se ceduz a existência d~ alma e a existência de Deus. No que se segue buscar-se-á expor as idéias básicas da dialética transcendental kantiana no contexto de sua teoria da experiência, porque é desta maneira que se poderá mostrc.r melhor ~eu conteúdo positivo. 6.
Dialética transcendental e Teoria da Experiência.
bem sabido que Kant abriu a CRPu com a constatação de que nosso conhecimento, embora começando com a experiência, não decorre inteiramente dela. O conhecimento experimental é, por conseguinte, composto de dados sensoriais, como elemento material, e do princípio de correlação do entendimento, como Kant logo exprimia como suposição (III, 27-16-19), logo afirmava, como na seguinte passagem: "A experiência é, f:em dúvidn, o primeiro produto que o nosso entendimento gera, na medida em que este elabora a matéria bruta das sensações" (IV, 17 . 4-6). É
A posição tomada na Analítica Transcendentd, de que a explicação da possibilidade do conhecimento experimental exige que se leve em consideração dois momentos, um dado pelos sentidos e outro gerado pelo entendimento, é superada por Kant na Dialética Transcendental, na medida em que, em relação direta com o pensamento exposto no início de introdução à 2.a edição da CRPu afirma: "Todo o nosso conhecimento se inicia nos sentidos, de onde passa ao entendimento e terminn na razão, acima da qual nada de superior existe em nós, processando o material das representações e inserindo-o na unidade mais elevada do pensar" (III, 237.21 -24; cfr. IV, 460.31-32). Pela suposição de que a matéria sensível é informada pelo re· curso ao espaço, ao tempo e às c~tegorias (assim como aos conceitos, deduzidos destas), no que uma ordem objetiva concreta é contraposta à experiência subjetiva, o conhecimento experimental não pode ser integralmente explicado no Eentido do conhecimento científico.
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ciência consiste. com efeito, num sistema de sentenças e 9ressupõe -o apenas a unidade da multiplicidade numa experiência, mas tam, a unidade sistemática das experiências dentro de u:n determi o campo cognitivo. Enquanto que a unidade, no primeiro Ee:rltido, ' relacionada a um desempenho do entendimento, Kant explica a 'ckde, no segundo sentido, por um desem:venho da razão, que não refere a percepções dadas de objetos, mas a conhecimentos de 'etos, mais exatamente, a leis conhecidas pelo entendimento, às · estão submetida aós objetos da experiência (III, 239. 27-53). A 'dade da razão é de õutro tipo do que a unidade do entendimento, is sua referência aos objetos nunca é direta, mas se.:npre indireta, avés de mediação das leis de experiência, conhecidas pelo enten. ento, do qual são o objeto próprio de aplicação. De modo dife· rente do que para as regras do entendimento, Kant fala, para a razão, em "princípios", com cujo auxílio a unidade de razão deve ser gerada orno unidade sistemática dos conhecimentos do entendimento (lll, 27. 21; 439. 29-30; 448. 22-30). As regras do entendimento, postas em ordem sistemática, segun- · do os princípios da razão, não são, para Kant, decerto, os prin::ípios sintéticos (como, por exemplo, o princípio da causalidade), mas os -múltiplos conhecimentos" do entendimento (lll, 239. 31), que supomos ser leis, conforme a maneira de falar em "regras do entendi:;:nen· to" - nas quais são expressas os contextos dos fenômenos. Não se pode omitir que Kant, por vezes, se tenha referido à razão como se esta não possuísse nenhum conceito próprio, apenas liberasse os conceitos do entendimento das limitações a que estão sujeitos por causa de sua vinculação às condições empíricas de sua utilização (III, 283 . 9-13). A razão pura "deixa tudo ao entendimento", como fica dito noutra passagem; ela "se reserva apenas a totalidade a~soluta da utilização dos conceitos do entendimento e busca levar a unidade sintética, que é pensada nas categorias até o incondicional puro" (III, · 253. 17-23). Kant hesita, neste particular, entre diversas posições. A razão gera, por conseguinte, a unidade do pensar no sentido de ordenação sistemática de leis da experiência mâis específicas, as quais, por sua vez, estão determin~das para gerar a unidade do pensamento na experiência de fenômenos particulares. Kant destaca com clareza o aspecto da sistematização mediante leis empíricas, ao afirma: "Sistematizar a unidade de todas as ac:ões empíricas possíveis do entendimento é tarefa da razão, tanto como o entedimento co~·-
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relaciona a multiplicidade dos fenômeno::. através de cor..ceitos e o submete a leis empíricas (III, 439. 30-33). Embora os princípios, que devem ~er entendidos como exigência de maior unidade sistemática possível das leis (da experiência) , não possam ~er interpretados como leis dos pró:>rios objetos nem exprimam condições de possibilidade do conhecimento obietivo (Ill, 241 . 31-34), dado que de forma alguma podem ser constitutivos do:; objetos (III, 243.15-18 et pass.), tais princípios nossuem, todavia, indiretamente, uma certa redidade objetiva, na medida em que "indicam o processo, segundo o qual os usos empírico e determinado do entendimento podem ser permanentemente mantidos em acvrdo, de wrte que esse processo é harmonizado, tanto quanto possível, com o princípio de unidade permanente e é deduzido deste" (III, 440.18-22). O princípio racional da unidade sistemática é, por conseguinte, objetivo enquanto levar, através da regulação do uso do entendimento, à abertura de novos caminhos para o conhecimento. Com isto, a função da razão não fica ainda inteiramente caracterizada. Além da função de sistematização sucessiva d<::s Jeis mais especiais da experiência, no quadro de teorias [empre mais gerais, Kant atribui à razão também a tendência a uma especificação sempre maior do particular, e à produção de transições contínuas entre os fenômenos e as classes de fenômenos. Basta atentar, aqui, ao r:specto sistemático, que é, indubitavelmente, o mais importante. Kant não ~e satisfaz com a mera constatação de que a tendência à sistem&tização sempre mais abrangente seja adequada ao ponto de vista científico, mas acha que deve relacionar esta tendência a idéias ou conceitos de razão de um todo absoluto, com relac:ão ao qual se efetua o processo de sistematização sucessiva. A unidade sistemática supõe sempre, segundo ele, a idéia "da forma de um todo do conhecimento, de que procede o conhecimento determinado das partes e que encerra as condições para a determinacão a priori do lugar de cada parte e de sua relação para com as demais (111, 241 . 29-30). Kant vai mesmo mais longe: também no âmbito da razão deve ~er possível construir um contexto, no qual as idéias de razão: alma, mundo e Deus possam ser relacionadas sistematicamente. Kant achava o progresso do conhecimento de si (da alma), pelo conhecimento do mundo ao conhecimento de Deus como "ser originário" tão natural, que busca entendê-lo em analo_gia com a passagem das premissas à condu-
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- o de um silogismo (IH, 260. 1-7) , o que significa, mesmo com cerreservas, o recurso ao paralelismo pressuposto entre lógica formal lógica transcendental.
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Kant definiu não somente a idéia de unidade sistemática como essuposto de função regulativa de razão, mas esoecificamente as éias de alma. mundo e Deus, e é este um dos pontos em que é espe. lrnente difícil segui-lo. Ele declarou expressamente que a razão só e pensar a unidade sistemática na medida em que ela atribui, às as idéias, um objeto (mesmo inexperimentável) . Procedendo-se como se existissem objetos correspondentes à idéia, a n~zão não os orna por coisas reais, pois em princípio ela não pode conhecer a natureza destes. 1\tiesmo assim, ela relaciona as idéias a uma "coisa anscendental", isto é, ela trata as idéias como se fossem conceitos de tipo objetivo (III, 449. 4-27). Embora seja possível imaginar que idéias como a do universo (da totalidade absoluta de todos os fenômenos) tem sua função regulativa no impedir o pesquisador de ficar bloqueado por um resultr:do obtido como se fosse a conclusão definitiva da pesquisa, é difícil reconhecer em que consistia a função regulativa de uma alma substancial imaterial, o mesmo nodendo ser dito quanto à idéia de Deus como um ser originário. No caso da dma, após a supressão da psicolor.ia racional , resta, para Kant, apenas esperança frustrada" (UI, 276 .1), de modo aue, embora se fale de um "interesse da razão pura", não se pode falar de uma re!!ulação do pensamento científico mediante tal idéia: e no caso da idéia de Deus, a função regulativa parece consistir sobretudo na possibilidade de uma concepção teleológica . do mundo. Tudo isso leva a supor que, na Dialética transcendental de Kant, duas linhas diferentes de pensamento se superpõem: de um lado a discussão de metafísica especial e de suas três partes, sendo as teses principais desta consideradas como aparência, mesmo se natural e inevitável; de outro lado, a abordagem do aspecto sistemático do conhecimento (científico) de experiência, considerado por Kant co:no essencial. Em ambos os casos vai-se além do "condicionado", mesmo se de duas maneiras diversas. Na metafísica especial busca-se liberar os conceitos do entedimento das limitações dadas com a dependência das condições empíricas do uso objetivo. Tal ocorre, segundo Kant, porque se procede do condicionr:do dado à totalidade absoluta das condições (III, 238.12-17). No caso de transcender o condicionado no sentido da unidade da razão, os conhecimentos especiais (de tipo
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lei) são subordinados a regras mais gerais e, destarte, relacionados a outros, submetidos à mesma regra. Enquanto que, no primeiro caso, por exemplo, partindo de pensamentos múltiplos, se chega, na unidade do "eu penso", a uma base substancial do próprio pensan:ento, no segundo caso, partindo da divisão dos fenômenos psíquicos em classes dete;minadr:s (sensação, imaginação, memória, fantasia, ... ) seria atribuída a cada uma destas classes uma faculdade psíquica e buscar-se-ia, para além da multiplicidade destas faculdades, uma faculdade básica a todas elas. A busca de uma identidade oculta de duas faculdades psíquicas sempre supõe, para Kênt, a idéia de uma faculdade básica, mesmo se introduzida de forma apenas hipotética, para poder formular o problema de uma unidade sistemátice: da multiplicidade das faculdades especiais (III, 430. 25-426. 6). "Não se afirme que uma tal faculdade- deva ser efetivamente encontrada, m2s que se deve buscá-la, sempre que for possível em benefício da razão, para a instituição de certos princípios, para certas regras que a experiência fornece, de sorte que se obtenha, desta maneira, a unidade sistemática do conhecimento" (III, 431 . 6-11).
Embora Kant tenha procurado identificar a alma substancial com a faculdade psíquica básica, trata-se aqui de conceitos diversos, pois o modo pelo qual são formados é diferente por princípios. Em um dos casos trata-se da hipostasiação de uma condição de possibilidêde de experiência, no outro, da formulação de uma hipótese a fim de criticar sistematicamente uma multiplicidade de faculdades ou de sentenças relativas a faculdades psíquicas. A razão, destarte, só possui função regulativa na medida em que, r: fim de garantir a unificação sistemática do conhecimento, projeta uma unidade ao operar hipoteticamente com esta idéia. Se a razão for interpretada, poré:n, no sentido da metafísica especul&tiva, como faculdade dos princíoios absolutos que levam à constituição das idéias de alma, mundo eDeus, torna-se difícil compreender em que consistiria a função regulativa afirmada por Kant. Kant não desistiu. no entanto, de tent2r fundir, em uma só. ambas concepções da razão. E1e supôs aue a unidade sistemática é produzida pelo progredir de todo condicionado em direção ao incondicionado. O princípio geral da razão, ao qual aludimos 2cima, diz aue o conceito de condiciom~do implica semp-re o de incondicionado. pe1o que a razão passa do condicionado ao incondicionado, transcendendo com esta conclusão o âmbito do condicionado. Chama a atenção, to
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davia, que os próprios exemplos de Kant, relativos à função racional de unificação sistemática dos conhecimentos que tem o en:endimento, não falem das idéias como formas de pensar um incondicionado. Para relacionar todas as faculdades psíquicas a uma faculdade básica ou pr:ra unificar sistematicamente as leis do movimento dos planetas e:n uma teoria da gravitação ( cf. III, 438. 18-31), por exemplo, não se necessita a idéia de um absoluto. Distinguindo-se da dialética metafísica a dialética da teoria da experiêncin, é possível uma concepção de razão que nada mais tem a ver com os conceitos alma, mundo e Deus, mas que, enquanto "faculdade dos princípios", corresporíde ao aspecto sistemático do conhecimento experimental. A unidade da razão, neste segundo sentido, não é necessariamente unidade de totalidade absoluta, e ainda menos unidade da alma, do mundo e de Deus, m<:s "unidade projetada" de uma multiplicidade de leis de experiência, com cujo auxílio o entendimento "de~ermina" obie~os (ou seja: explica cientificamente). A unidade da razão, neste, sentido, é a unidade de uma teoria. A unidade projetada da razão é transcendente, na medida em que não é unidade de objetos, mas de leis. Por conseguinte, ela não pode ser unidade de ob etos empiricamente reais nem transcendentes num sentido "hiper-físico". dado que os nceitos teóricos, mediante os quais se opera a unidade sistemática leis especiais (por exemplo: "gravitadas") , possuem uma relação experimental indireta, como foi dito acima, em certo sentido. A uni-· dade de razão é também necessária com relação à estrutura da ciência, entendida como conjunto sistemático. A unidade da razão é, por fim, incondicionada, na medida em que postula uma unid:::de irrealizável em nível agora inatingível pela unificação sistemática. As características que Kant atribui, na metafísic<: especial, às idéias de razão, no sentido de conceitos puros, de forma alguma comp~etos em cada uma das classes de idéias transcendentais, correspondem sem dúvida à idéia de razão no segundo sentido, mesmo com signifíc::do modificado. A ordem sistemática é um aspecto da experiência ( c:entífica e, em certo sentido, implicitan:ente também da natural) que pode ser isolado analiticamente, tal como o momento da unid~de do entendimento. A teoria da experiência, por conseguinte, deverá ace.itar entre suas premissas, também os princípios da unidade d1 razão, enqU3.nto unidade sistemáticn da experiência, se deve ser teoria co:np:eta. Com relação à idéia da razão da unidade sistemática d:1. experiência, pode~e constatar a mesma relação "dialética" que Ee indicar, acima, f!U<:!nto
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:::o conhecimento do entendimento. Só nodemos exnlicar o conhe~i mento (científico) da experiência s-e supomos a vali dez a priori do momento da unidade sistemática. Por outro lado, só sabe.:nos deste momento a pr iori através de análise da exreriência a ~er explicada. Tomando-~e ~ decisão de falar, neste caso, em "dialéticq", ni'ío se deve confundi-la com o modo de pensar comumente chamado de "dialética". Efetivamente , a "unidade" é "mediada" r ela estrutura sistemática do conhecimento de experiência, e este é.· nor su1 vez, "mediado" pelo momento de unidade sistemática, m::s -não ~e trata de falar, aqui, em uma "reflexão em si": a ordem sistemática dos conhecimentos no âmbito de teorias é um fato que deve ser apenas explicado, e não provado, pela hipótese da idéia de unidade da razão. Inversamente, o fato da estrutura sistemática do conhecimento científico apóia a hipótese de unidade da razão. A unidade sistemática é "empiricamente real" no conhecimento científico da experiência de fato existente e se dá no processo de desenvolvimento deste; ela possui, no entanto, uma "idealidade transcendental", com a qual opera a teoria da experiência. 7.
A antitética da razão pura.
A antitética da razão pura é uma das raízes da filosofia dialética pós-kantiana, enquanto que a crítica de Kant à psicologia racional não tem nenhuma importância para a ~volução ulterior da Dialética, de modo que não será levada em consideração aqui. A passagem do condicionado (dos fenômenos observáveis) à "soma das condições, inclusive ao incondicionado" (III, 283.22-24) leva, no âmbito da cosmologia racional, às questões seguintes: (i)
se há um início do mundo no tempo e no espaço;
(2)
~e
(3)
se se deve aceitar, além da causalidade da natureza, também uma causalidade de liberdade;
( 4)
se se pode concluir pela existência de um ser necessário como fundamento do universo.
existem elementos simples nos fenômenos compostos;
Em todas estas questões, segundo Kant, os meios teórico~ não permitem tomar nenhuma decisão em favor de uma resposta posi-
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tiva ou negativa, mas dá-se a situação em que, amb:1s formuláveis sob a forma de tese e antítese ( thesis c um antithesi), independentemente de sua oposição, parecem de igual validez ao observ<1dor imparcial. Abordemos, a seguir, o primeiro dos complexos de problemas enunciados, o qual não só constitui um exemplo bem adequado da antitética da razão, como também de interesse histórico todo especial, diret~mente relacionado com a polêmica entre Leibniz e Clarke. Enquanto não se pode provar inequivocamente que o "grande esta-· lo" de 1769, de que falou Kant, esteja relacionado com o problema cosmológico e sua solução mediante o idealismo transcendental, é irrefutável a suposição de que as antinomi~s desempenhavam um papel importante no caminho de Kant para a filosofia transcendental, sobretudo a primeira dentre elas, na qual a função dialétic2 de idéia de uma totalidade absoluta pode ser apreendida com a maior clareza.1!l Pouco importando como se pode responder à questão histórica~ n significação sistemática da antitética está acima de qualquer dúvida. Se, de fato, como Kant estava convencido, era impossível resolver de forma não contraditória certos problemas da cosmologia racional, tal circunstância tinha de ser sentida como um desafio filosófico. O interesse de Kant pela .:ntinomia é, por conseguinte, compreensíveL Como o objeto da cosmologia racional transcende a experiência e como as questões a ele referentes não são empíricas, mas solucionáveis apenas mediante a razão pura, Kant concluiu, a partir do caráter antinômico das soluções tentadas pela metafísica tradicional, que a intenção racionalista de obter conhecimentos tnmscendentes à experiência através dos conceitos puros da razão, estava fadada ao erro, por princípio. Como as antinomias desaparecem logo que a tese do idealismo transcendental é aceita, Kant a considerou como indiretamente corroborada. A primeira antinomia da idéia tram:cendental tem a ver com a totalidade absoluta da síntese regressiva. Se a totalidade das condições espaço-temporais de um dado fenômeno condicionado é compreendida como conceito de tipo objetivo, resulta a seguinte alterna· tiva: ou a série regressiva não possui um último elemento, e é, então, infinita e incondicionada, ou ela possui um último elemento, e este é algo incondicionado. Neste caso, o incondicionado é o início do
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mundo, na série de seus estados sucessivos no tempo e, na série das partes sucessivas do mundo no espaço, o seu limite. Para provar a tese: "O mundo tem um início no tempo", Kant argumenta da t'eguinte forma: Suponhamos que o mundo não tivesse começo: a série temporal a parte ante seria infinita, isto é: no momento presente, teria "fluído" uma série infinita de instantes (de estados sucessivos no tempo). (1)
"Uma série infinita de instantes fluiu" é compreendida por Kant também no sentido de que "a série infinita de instantes está completa". Daí prosseguir Kant da seguinte maneira: ( 2) A infinitude de uma série consiste em nunca ser compleisto é, a infinitude de uma série de instantes no temoo deve ser pensada como infinita ·em sentido indefinido. t~,
( 3) Lo~o, a imposição de uma infinitude completa de instantes é insustentável e a sua negação verdadeira: o mundo possui um início, como afirma a tese. A idéia-mestra deste raciocínio é expressa por Kant da seguinte forma, na nota à tese: "O verdadeiro conceito (transcendental) da infinitude é: que a síntese sucessiva da unidade na mensuração de um quantum jam-ais pode ser completa. Daqui se segue, com certeza, que uma eternidade de estados reais sucessivos até um momento dado (o atual) não pode ter fluído e que o mundo há de ter um início" (III, 298.12-17).Como, segundo K
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Para demonstrar a antítese, de que "o mundo não tem início no tempo, Kant supõe que "início do mundo" implica a representação de um tempo vazio, anterior ao início. ( 1)
Num tempo vazio, nenhuma parte de tempo pode distinguir-se materialmente de outras partes do tempo.
(2)
Tal vale também com relação às condições do surgimento, de modo que não se pode entender, como, num tempo vazio, algo possa surgir nesta e não naquela parte do tempo.
(3)
Logo, coisa alguma pode surgir num tempo vazio.
Não se pode deixar de ver que a argumentação de Kant depende de uma série de pressupostos, dos quais dificilmente se poderia pensar terem sido todos aceitos. É até mesmo certo que o próprio Kant não 2ceita um destes pressupostos, o da infinitude co:npleta da série temporal, empregado na explicação da tese. Na prova indireta da tese falou-se de "ausência de início" não somente no sentido de impossibilidade de se constatar um início, mas também no da afirmação positiva de que não existe nenhum primeiro elemento na série regressiva dos estados do mundo. Pelos pressupostos de Kant, "ausência de início" não pode ter esta significação, mas deve ser interpretada como a infinitudc temporal indefinida do mundo a parte ante. "O mundo não tem início no tempo", significaria, assim, "não existe estado algum, na série de estados do mund-o, que não venha após um outro". É certamente este o ponto 9ara o qual se dirige a "resolução da idéia cosmológica". Compreendendo-se a infinitude temporal do mundo neste sentido - kantiano - , a própria tese já não pode mais ser fundamentada do modo como o faz Knnt. Me:-mo assim, Kant reafirma não ter buscado ofuscamento nenhum na fundamentação da autonomia. Bolzano mostrou que Kant entende o conceito de tempo como uma série infinita de instantes. Admitindo-~e que a série dos instantes seja exemp1ificada pela dos números inteiros, torna-se claro que ela é infinita em ambas direções ( ... , -5, -4, - 3, -2, - 1, O, 1, 2, 3, 4, 5, ... ) Y Concebendo-se, pois, a infinitude da série ter..1poral a parte ante como infinitude indefinida, não há antinomia alguma e tampouco as conseqüências que Kant tira, para o idealismo transcendental, da antitética da razão.
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Do lado da antítese é necessário formular, além do pres:uposto já indicado, uma outra hipótese: o que não pode ser concebido não é possível. Na premissa (2) afirma-se exclusivamente que um início do mundo num tempo vazio é inconcebível porque não tem fundamento. No mais, o n:ciocínio feito para fundamentar a antítese aparece mais claramente na nota a ela do que na própria demonstração. Na nota, é dito que o conceito de um tempo vazio é o de um "nãoente". A suposição de um início do mundo implica, no entanto, a suposição deste "não-ente" (III, 291. 15-18). Por conseqüência, a . suposição de um início do mundo num tempo vazio é insustentável. K
cionado. Na conclusão, "o conceito do condicionado implica o conceito do incondicionado; existem, experimentalmente, condicionados; por conseguinte, o incondicionado existe". Kant vê um sofisma, porque a premissa maior fala do conceito de condicionado ou de uma relação conceitual, enquanto que, na premissa menor, é questão do condicionado como de um dado empírico, de modo que não há termo médio comum (UI, 343.37-344 . 5). A premissa maior não se refere a condições temporais, enquanto que a premissa menor sim. Daí que o condicionado de que trata a premissa menor pertence a uma série de condições cuja totalidade só pode - se o pode - ser produzida por um regresso sucessivo. Kant estava convencido de ter diante dos olhos, na conclusão do condicionado ao incondicionado, tanto como na conclusão da unidade da consciência à substância pensante, um sofisma figura dictionis, o que é compreensível se nos recordarmos que, segundo Kant, deve-se distinguir, nos conceitos puros do ente:1dimento, entre um significado fixado por definição e um significado empírico, com relação ao esquema de cada uma das categorias. Assim, por exemplo, a categoria de "substância' é definida como "algo que só pode ser sujeito e nunca predicado"; no sentido objetivo, porém, "substância" é definida como o "que persiste nas mudc,nças dos fenômenos". Aqui importam condições temporais, regundo o esquema de substância, que se referem "à continuidade do real no tempo, isto é, à representação do mesmo como substrato da determinação temporal empírica" (UI, 137. 30-32). O princípio da causalidade, enunciando que todo evento tem uma causa, só pode ser formulado, sob os pressupostos de Kant, com bases na categoria esquematizada da causalidade, is~;' é, só levando em consideração as condições temporais e não apenas por causa do significado da cater.oria não esquematizada. Justamente por isso, este princípio é sintético. De forma semelhante, forAmla-se na premissa maior da conclusão do condicionado ao incondicionado, uma correlatividade de ambos conceitos, estabelecida pela definição de "condicionado"; na premissa menor, no entanto, trata-se de um condicionado empírico, isto é, dado no tempo. O argumento dialético principal é, por conseguinte, logicamente errôneo. Kant tira daqui a conseqüência de que, nas antinomias, nem a tese nem a antítese precedem seus princípios reJpectivos no campo teórico (não se trata, aqui, de interesses prático-morais), dado que ambas se baseiam na conclusão dialética errônea do condicionado ao incondicionado e apenas determinam de forma diversa o conteúdo deste incondicionado, seja como o primeiro elemento de
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uma série de condições pensadas, neste caso, como finitas, seia como a totalidade infinita das próprias condições sucessivas. Ambas consideram o regresso do condicionndo ao incon.Jicionado como dado, enquanto que ele não passa de uma construção da razão. Suponhamos, por exemplo, que o mundo, como totalidade de fenômenos, seia algo dado, um objeto. Neste caso, a que:,tão de sua finitude ou infinitude não pode ser evitada, pois o princípio do terceiro excluído se aplica a quaisquer objetos. Como vale, para qualquer obieto, que ele possui a característica P ou o contrário desta, não-P, deve valer igualmente, para o mundo considerado como objeto, que ele seja finito ou infinito no espaço e no tempo. Ficando estabe:ecido, todavia, que "mundo" não é o conceito de um objeto, mas uma idéia, através da qual se lança a construção de um regresso inconcludível na série das condições de fenômenos finitos, desapareceu a necessidade, até mesmo a possibi1idade, de se aplicar o princípio do terceiro excluído ao "mundo". Tal se dá, não por causa d~ uma eventual "contraditoriedade" da realidade, afirmada pela filosofia dialética posterior, mas por causa da circunstância de o "mundo" não ser o conceito de um objeto dado numa experiência possível. A esta solução geral de aparência dialética dos prob~emas cosmológicos corresponde, em especial, a solução da primeira antinomia: assim como "mundo" não designa um objeto em geral, tampouco designa um objeto determinado espaço-temporalmente. Por conseguinte, as sentenças "o mundo é finito" e "o mundo é infinito" são ambas falsas, pois a sentença "o mundo não é de forma alg:uma determinado espaço-temporalmente" é verdadeira. A relação entre ambas deve ser chamada, com Kant, de "oposição dialética" e distinguida da oposição contraditória14 • Esta existe entre r:s sentenças "o mundo é infinito" e "o mundo é não-infinito", sendo que a segunda sentença não significa a mesma coisa que a sentença "o mundo é finito"; a significação daquela é mais abrangente, na medida em que admite igualmente a formulação "o mundo é não-determinado espaço-temporalmente". (De maneira similar, a sentença "o mundo é nãofinito" admite a fórmula "o mundo é infinito ou ·o mundo é não-determinado espaço-temporalmente"). No entanto, se a ooosição dialé tica existente entre a tese e a antítese não é contraditóriã, então a relação aqui presente de thesis cum antithesi não é, de forma alguma, antinômica: "Destarte,a antinomia da razão pura nas idéia~; cosmológicas é superada, uma vez que se mostra ser meramente dialética e uma oposição aparente" (UI, 347. 26-28).
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Na Preisschrift sobre a questão "Quais são os progressos efetivos da metafísica na Alemanha desde os tempos de Leibniz e de Wolff" ( 1971), Kant enunciou, express~mente , que tese e antítese, nas antinomias, não estão em oposição contraditória, mas (no caso das "antinomias" matemáticas) contrária ou (no caso das "antinomias" dinâmicas) subcontrária (XX, 291 . 8-292. 2). Somente com a suposição de que o mundo seja pensado como um objeto espaço-temporal é que aparece a "oposição das idéias transcendentais", abordada aqui no exemplo da primeira r:ntinomia. Deve-se, por conseguinte, atentar à suposição da determinação espaço-temporal de um objeí:o imaginado "mundo" na superação da antinomia. Se resultarem desta suposição conseqüências contraditórias, deve-se abandoná-la e substituí-la por sua negação, isto é, considerese como demonstrado que "mundo" não designa um objeto (no espaço e no tempo). A cosmologia racional procedia como se nós pudéssemos conhecer como objetos de experiência algo que, por princípio, não pode ser dado à experiência. A análise das antínomir:s cosmoló· gicas mostra, como Kant acredita, que a tentativa da cosmo~ogia racional, de conhecer objetivamente a coisn em si "mundo", está condenada, por razão de princípio, ao fracasso. Este raciocínio possui o caráter de uma prova indireta, uma vez que se pode deduzir, da contraditoriedade dns conseqüências de base dogmática. a correção do idealismo transcendental, que re::tringe a cognoscibilidade ao setor dos fenômenos objetivos no espaço e no tempo. A interpretação mais ampla da "oposição" entre tese e antítese nas assim chamadas antinomias ou a concepção da relação entre elas como dialética ainda não constitui o ápice da linha de pensamento crítico, pois mesmo se ele suprime a suposição de que "mundo" designa um objeto espaço-temporal, não leva em conta que "mundo" não tem correspondente objetivo algum. Esta intuição foi expressa por Kant na formulação de que o termo "mundo" corresponde exclusivamente a uma síntese a ser buscada. Se, porém, "mundo" não designa absolutamente objeto nenhum, isto é, nem mesmo um simples objeto concebível como coisa-em-si, então tanto a tese como a antítese serão não só ambas falsas, como na última fase da análise crítica, mas sem sentido, uma vez que "finito" e "infinito" de algo meramente "buscado" não podem, por princípios, ser predicados. Fique claro que 'mundo" não é um conceito do tipo dos conceitos objetivos, nois então não teria sentido perguntar se "o mundo" é finito ou infinito es-
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paço-temporalmente, ou se tem ou não um começo no tempo e um limite no espaço. A cosmologia racional é assim criticada em seus próprios princípios; ficam sem sentido não somente as soluções nela tentadas mas as próprias questões subjacentes a estas soluções. Em suma, as etapas sucessivas e cada vez mais radicais de análise crítica das antinomias podem ser caracterizadas da seguinte forma: 1 . Se "mundo" for utilizado como conceito de um obieto no tempo e no espaço, wrgem então antinomias legítimas. Da existência de antinomias pode-se concluir a falsidade de ao menos um dos pressupostos do raciocínio inteiro. Segundo Kant, trata-se aqui do pressuposto de que "mundo" designe um objeto espaço-temporal. 2. Se ''mundo" não é empregado na acepção ( 1), mas na de um objeto qua;quer, desaparecem então as antinomia:, dado que, pela supressão da determinação espaço-temporal, tese e antítese não são mais contraditórias, mas apenas opostas dialeticamente. 3 . Se, enfim, "mundo" não é o mais empregado como conceito do tipo objetivo, então não se oode afirmar nem mesmo uma oposição dialética entre tese e antítese~ A questão da finitude ou infinitude do universo fica sem sentido, dado aue com a idéia "mundo" como totalid2cde infinita de todos os fenôme-nos, não se pensa nada de dado, nem mesmo de possível, com relação ao qual se pudesse formular com sentido a alternativa em questão. As considerações dos tópicos (1) e (2) são feitas não do ponto de vista exclusivo de Kant, mas com suposições "metafísicas': cuja inutilidade é demonstrada pela crítica da razão. Estas considerações têm, oor este motivo, uma função polêmica, enquanto que a concepção positiva de Kant só está pre~ente no tópico ( 3). A "polêmica cosmológica da razão" não é resolvida !)Or decisão em favor de uma ou de outra posição, mas pela demonstra cão de sua ftlta de objetividade (no sentido próprio do termo). Este modo de superar a oposição entre tese e antítese é essencialmente distinto do modo pelo qual os representantes da filosofia dialética posterior, especificamente Hegel, a tentavam ' supe~;ar. Se, de acordo co.::n as considerações feitas no tópico ( 2), Kant ;considerr,sse característico da oposição dialética que tese e antítese não sejam verdadeiras, con-
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cordaria ao menos verbalmente com as afirmações de Hegel, mesmo ~e este entendia por "inverdade" da tese e <:.ntítese apenas a intelectualidade ou abstratividade delas com relação à verdade mais p~ena da síntese. Kant e Hegel divergem tão grandemente quanto à concepção de oposição dialética que se constat2, na prática, um equívoco no emprego do termo "dialética" na linguagem dos dois pensadores. A divergência não deve ser vista num Kant que sentisse, como He~el o pensou, demasiada ternura pelas. coisas, a ponto de não reconhecer a contraditoriedc:de destas 15 • Segundo Hegel, Kant não conseguiu uperar a contradição, que bem reconheceu como necessária, ma·s apenas livrou o mundo dela e a entrincheirou na autoconsciência. Esta é, aliás, uma interpretação errônea, como deve ter ficado claro no que foi dito aqui. A diferença decisiva entre Kant e Hegel, nesta questão, reside antes na concepção da função dos conceito::; da razão, que, para Kant, de forma essencidmente diversa da posição de Hegel, não possuem correspondente algum na estrutura da realidade. Segundo Kant, não pode haver, "nos sentidos, nenhum objeto mais congruente" (lll, 254. 2) aos conceitos da razão, pois esta se refere exclusivamente ao entendimento, "a fim de prescrever-lhe 2 dire~ão para uma unidade determinada, da qual o entendimento não possui nenhum conceito, e que visa a reunir todos os atos do entendimento em função de cada objeto num todo absoluto" ( Ill, 253. 29-32). Admitindo-se que a função dos conceitos da razão só pode ser rebtiva, a antitética da razão no campo da cosmologia fica superada de princípio, embora Kant, me~mo aqui, mantenha a posicão que a ruzão cai nesta "antitética natural" (III, 282. 1O) "por si só e inevitavelmente" 011, 282. 12). De forma semelhante, embora considerasse a conclusão do condicionado ao incondicionc:do como uma fraude dialética, Kant repele a suspeita de que esta fraude seja "forjada"; ele insiste em que se trata de um "engano inteiramente natural da razão comum" (III, 344. 5-6). Com tudo isto está relacionadu a tendência natural" da razão humana a ultrapassar os limites de experiência possível; as idéias são tão naturais à razão como as categorias :::o enendimento, "embora com a diferença de que, como estas últimas vam à verdade. isto é, à concordância dos nossos conceitos com o objeto, as primeiras originam uma mera r,parência, mas ineludível, cujo engano dificilmente se oode evitar, mesmo com a crítica mais acurad2." (III, 426.29-427. 2). Obviamente Kant deu demasiada importância à influência da aparência dialética sobre o pensar e pouca à ela crítica. Pois, assim
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como . segundo Kant, todos os problemas dB. filosofia transcendental devem ter solução, pois o obieto do prob~ema existe só no pen"amento, assim também a aparência transcendental deve ser superável, pois diferentemente da aparência própria às ilusões de ótica, cuia origem se situa em certas funções fisiológicas dOJ sentidos e aue não desaparece após a explicação de suas causas, a aparência dialética existe só no pensamento- mais exatamente: por causa de um modo determinado de pensar. Se este modo de pen:1ar, como procura demonstrar a crítica kantiana, é errôneo, então é incompreensível que esta forma de pensamento não seja eliminável. Tom::ndo-se ao pé da letra a óltima citação de Kant feita aqui vê-se que, ao final de contas, ele era apenas da opinião de que superar a ilusão é muito difícil, mas não impossível. Tal estaria de acordo com sua afirmação de que as "idéias. só se tornam dialética por mal-entendido e engano" (III, 448. 21-22). Se Kant viu as coisas desta maneira, ao menos durante um certo tempo, então parece ainda mais estranho que, apesar de tudo, ele tenha mantido em outras passagens a afirmação da naturalidade e inevitabilidade da aparência dialética.
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A dilética da totalidade da posS'ibilidade.
A crítica de Kant à teologia racional só é levada em consideração na presente investigação na medida em que élborda o tema dialético de relação entre os conceito::-. e a idéia geral de totalidade da "realidade" (ou da "possibilidade"). Esta idéia serve de base a todos os esforços da teologia racional para provar a existência de Deus. Ela não se forma arbitrariamente, segundo Kant, mas decorre naturalmente, como todas as idéias de razão, quando o pensar procede de forma con:·eqüente na busca de condições raciom:is do conhecimento. Partindo do fato da determinação contínua de todos os obietos da experiência, pode-se mostrar, com Kant, que a representação de cada um dos objetos supõe a priori a idéia da totalidade de realidade (isto é, da totalidade das determinações simples e positivas das coisas). Na medida em que nós, por conseguinte, conhecemos os objetos como continuamente determinados, o que não pode ser posto em dúvida, a idéia da totalidade da realidade é pensada simultaneamente, de sorte que a conclusão de razão poderia ser expressa pela seguinte fórmula concisa: como existem objetos determinados, deve-se supor a existência de um ser corre::;pondente à totalidade da realidade.
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O princípio da determinação contínua não deve ser confundido com o princípio de determinalidade contínua. Este último é um princípio lógico que afirma que não pode haver nenhum conteúdo conceitual ao qual pertençam uma qualidade qualquer Pi e, ao mesmo tempo, a negação desta, não-Pi. Trata-se de uma sentenca formal sobre conceitos, baseada no princípio da contradição excluída (III, 385. 18-24). O princípio da determinação contínua das coisas afirma, todavia, que de todos os predicados !JOssíveis, a cad:: coisa corresponde ou um predicado Pi ou sua negac:ão não-Pi. Como, nesta oposição, fala-se em todos os predicados possíveis, decorre, Ee.!mndô Kant, que a totalidade dos predicados possíveis deve ser pensad~, iá que uma coisa deve ser pensada como continuamente determinada. Isto não significa que a de~erminação contínua reja representável concretamente, mas apenas pensável; na medida em aue uma coisa é pensada como continuamente determinada, ela é relacionada, segundo Kant, à totalidade dos predicados possíveis como condição a priori de possibilidade. "É o princípio de síntese de todos os predicados que deve substituir a totalidade de uma coisa ... e aue contém U!Il pressuposto transcendental, o da matéria de toda possibilidade, ~ue deve incluir a priori os dados de possibilidade especial de cada uma das coisas" (lli, 386. 3-8).
O conteúdo das determinações, cujr. totalidade deve ser condição de possibilidade do pensamento de coisas continuamente de::erminadas, não pode ser buscado na razão, mas tem de nos ser dado pela sensação. Sem dados empíricos nada pode ~ er conhecido, e a totalidude de todas as determinações,· como condições de possibili· dade. é a de toda realidade empírica (III, 391. 30). Nós só pode;.n os pensar os objetos reais empíricos como continuamente determinados por causa da idéia da totalidade de todas as determim:.ções como condições de possibilidade; da:; determinações nós sabemos, porém, w mente porque "realidades", determinações materiais das coisas, nos são dadas sensorialmente.
No princípio da determinação contínua, uma coisa é comparad1 com a totalidade de todos os predicados posr,íveis, pois "!Jara conhecer inteiramente uma coisa, é preciso conhecer todo o possível e, por isso mesmo determiná-lo, seja afirmando, seja negando" (III, 386.14-16). Kant aborda com isto um pensamento cuia formulacão
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clássica é a frase de Spinoza: omnis determinatio est negatio. No sentido exato desta frase, Kant afirma: "a de~erminação contínua de cada coisa repousa sobre a limitação desta totalidr:de da realidade, na medida em que algo dela é atribuído à coisa, e o resto excluído" (III, 388. 32-34). Na medida em oue eu distingo uma coisa da totalidade du realidade, as determinações negadas na distincão são pressupostas como elementos desta totalidade, uma vez oue nenhuma negação determinada é possível sem a suposição da determinação po, sitiva correspondente. Se uma coisa determinada só !!Ode ser pensad<: mediante limitação da totalidade da realidade é um conceito claramente definido, cujo conteúdo é composto de predicados simples, isto é, não deduzidos, positivos e compossíveis. Por causa da de~er minação unívoca deste conceito é ele "o conceito de um único objeto" e se chama, enquanto tal, "ideal" (III, 387. 1-4; cf. 388. 7-12). Enquanto dirige sua abordagem do ideal, sobretudo com vistac; demonstrar que nenhum objeto co~noscível corresponde ao ideal de razão pura ao qual nada pode ser hipostasiado, Kant não parese ter duvidado que o ideal seja o conceito racional de um obieto (pensado, obviamente não experimentado nem experimentável), como se pode ver na última citacão. Este "objeto m.. idéia" é caracteri7ado como "ente": segundo Kant, "o obieto do ideal da razão, e'
Kant dest.:ca que não se trata aqui de uma re1 acão ob;etiv::~ entre um objeto real e as demais coisas, mas da relação entre idéia c conceitos, motivo pelo qual não está implicada suposi<;ão alguma wbre a existência de um ser correspondente ao ideal, não parece possível pôr em dúvida, no ent2nto, que ele tenha concebido a idéia de totalidade da realidade como um conceito de tipo objetivo. Sua advertência quanto à realização do ideal, <:té mesmo hipotética, refere-se à interpretação desta como algo empírico, excluída porque o princípio da determinação contínua, decisivo na constituição do ideal, só é aplicável aos objetos da experiência e não às coisas diretamente (III, 391, 31-3 7). A redização do ideal no sentido de relação deste para com um objeto não parece ter apresentado dificuldades para Kant.
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N!'/ERSIOAOE ftOtR~l 00 P~Rl IYialétistBrMo~~ENTRAt
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Três passos levam à ilusão dialética de que o ente originário ou Deus seja objeto de um conhecimento racional possível: "Este ideal do mais real dos seres ... embora seja uma mer& representação, é de início realizado, isto é, feito ob_ieto, em seguida hipostasfado, e enfim, através da progressão natural da razão para a efetivnção da unidade, até mesmo personificado" (111, 392, 392. 26-29). Perfeitamente justificada com base nos resultados produzidos pela Analítica Trr.::Iscendental, esta crítica tem seu ponto principal na rejeição de uma interpretação do princípio da determinação contínua independente de experiência, mas parece ter sido enfn:quecida pelo próprio Kant. É impossível não entender, como abandono da posição que acabamos de indicar, a afirmação de Kant, numa passagem posterior, que nós somos "não somente capazes dela, m<::s levados . . . a realizar esta idéia (se. da unidade sistemática completa), isto é, a atribuir um objeto real, mas apenas um "algo", que não conheço, de forma alguma, em si" (III, 447. 11-14). A capacidade de realização das idéias reside, segundo Kant, no "uso relativo" delas, isto é, para garantir a maior unidade possível de experiência. Neste caso não se afirma a existência de um ser correspondente à idéia, por exemplo, Deus, mas leva-se em consider<::ção a realidade da experiência como se um tal ser existisse. Kant pensa que a idéia teológica só se presta ao fim da maior unidade possível do conhecimento em um sis.tema abnmgente quando lhe é atribuído um objeto para além da experiência, o qual embora não podendo ser dito diretamente como real, deve ser suposto como problemático ( III, 449. 7-10), entendendo-se a realização como relação a um objeto em geral, e não a um objeto da experiência possível. Uma idéia nunca significa uma coisa real, mas uma "coisa transcendental", tendo a função de "esquema" do princípio regulativo da maior unidade sistemática possível do conhecimento (III, 449. 25-27). Segundo toda probabilidade, a conces~.ão de Kant quanto à realização do ideal da razão pura serve aos interesses de uma visão teleológica do mundo e da ética, que sempre estiveram presentes num segundo plano. Nos pontos culminantes do movimento crítico, a idéia da unidade sistemática aparece memmente "pro;etada" para o uso rcgulativo. Não se pode ver Eenão como enfraquecimento desta posição crítica, que Kant admita a relação da idéia de uma unidade amola a um ser pensado (Deus), concebido como fundamento da unidade,
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mesmo ~e apenas no sentido de um "como se". Disto decorre que a idéia racional da unidade, como as categoíias, parece só poder ser realizada mediante a atribuição de um "esquema", uma suposição que, por sua obscuridade, deixa entrever o caráter problemático da realização exigida também ex consequentíis. Perguntando-se o que terá levado Kant a admitir a realização da idéia racional da uniaade do real que, como todas as idéh:s, não se refere a nada dado, mas apenas a um "programa", tem-~e resposta na linha te:eológica que Kant tomou, afinal, para determinar o princípio regulativo da razão. "A unidade formr..l suprema, que repousa exclusivamente sobre os conceitos de razão, é a unidade teleológica das coisas, e o interes~-~ especu!ativo da razão faz necessário considerar toda a ordenação do mundo como se ela resultasse da vontade de uma rr.zão suprema" (III, 452. 17-21). A teleologia pressuposta do mundo só é compreensível, para Kant, enquanto produto do agir de uni ser sumamente sábio e poderoso, de um objeto puro e simples, pois, para poder pensar um tal ser, é necessário apTesentar a idéia de unidade como realizável, além do motivo teleológico, a motivação ética, indubitavelmente, também é importante para a tese de realizabilidade. A experiência de Deus sequer poderia ser postulada, como ocorre na ética de Kant, se a idéia racional da unidade não pudesse ser realizada. A tese da realizabilidade da idéia racional pareceu necessária 2 Kant, provavelmente porque, doutra forma, a moral dos postulados seria impossível. A conjunção das reflexões sobre o ideal da razão com o tema dialético . fundamental do incondicionado se faz na impossibil.idade de se representar in concreto o conceito racional de totalidade da determinação contínua de tudo o que exista (III, 386.16-18). Diversamente da cosmologia, onde se abordou a questão de saber se um incondicionado pode ser pensado como o primeiro elemento àa série dos sucessiv03 estudos do mundo ou como a totalidade dos elementos desta série, trata-se, quanto à idéia de teologia racional, da auestão de um incondicionado como totalidade de infinitos ;;~ementas disjuntivos, c:>rrespondentes à totalidade das determinai$Ões possíveis dos objetos. A idéia do incondicionado é, também r.qui, ocasião para interpretar a relação condicionado-incondicionado no sentido da dialética pós-kan · tiana. O pensamento de Hegel, de que todo objeto deve ser pensad') como limitado por uma infinita multiplicidade de relaçõe::, terá sido seu exemplo próximo nas reflexões de Kr·nt aqui expostas, e:nbora provenha de uma tradição ainda muito antigâ, como 1á foi dito. Assim, poderia parecer que, também para K:::tnt, a idéia da totalidade
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da redidade está caracterizada por uma dialética própria, da oual se diria. com a terminologia de HegeL que e"ta idéia é fundamento dJ. realidade objetiva determinada, e está fundamentada ao mesmo tempo por esta, sendo a relação entre r,mbas mediatizada dialeticamente. Uma tal interpretação não corresponderia. todavia. à concepção de Kant. Nunca se deve supor a idéia de totalidc:de da realidade como condição de possibilidade, por causa da de'erminação contínua dos objetos de exceriência, e que toda "possibilidade" de objetos repous1 sobre esta idéia (IIJ. 390.4-5; cfr. 389.19-21), ela não deve ser tida por "razão" da multiplicidade dos objetos possíveis; que dela "decor· re" (IH, 390. 10-13). Para Kant, não há, aqui, nenhum condicionamento dialético mútuo, porque r. idéia de totalidade representa uma uposição que é feita, no contexto da teoria de experiência, para garantir a explicação da determinação contínua aos objetos d1 experiência. A determinação contínua, a omnimo da determinatio, equivalente, na ontologia de Wolff, à existência, só pode ser concebida através da hipótese de idéia a priori de totalidade da realidade, dado que, segundo K~nt, um objeto empírico só pode ser determinado pela comparação a todos os predicados do fenômeno e é afirmado ou negado com relação a estes. Mas as hipóteses, feitas para garantir a explicação, são condicionadas pelo fim explicr.tivo de modo diferente dJ que o explanandum por aquelas: o explanandum é deduzido logic:1mente das hipóte~es como de premissas de um argumento explicativo, mas as hipóteses não podem ser deduzidas do explanandum. Já Des- . cartes havia visto isto com toda clareza, e já Kant o sabia, razão por que não caiu na tentação de afirmar uma relacão dia 'ética entre fundamento e fundamentado, entre "totalidade de qualidade" e "determinação contínua dos objetos". ~otas
- Capítulo II
1.
As referências são das obras completas d:: Kant, editadas pela A::ademia Prussiana de Ciências, BerLm, 1902 ss. As citações indicam volum::, página e linha. Sem poder indicar nem rr:.esmo os trabalhos mais importantes sobre a filosofia de Kant em geral , destaco as seg:.Iintes investigações sobre a Dialética Transcendental de Kant: G. Santinel:o : Metafísica e crítica in Kant. Bolonha, 1965; e S. Veca: Fondazi~ne e modalitá in Kant. Milão, 1969.
2.
I. Newton: Optik (1704). Tradução alemã d:! W. Abendroth. Leipzig, 1898 (Ostewalds Klassiker der Naturwiss), pág. 146.
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3.
Também Newton escolheu este método; dr. o. cit. pág. 146; "Como na Matemática, também nas c'ências naturais, o méto:io analítico deve preceder o sintét:co, na investigação de coi~as difL::eis".
4.
J. Bennett: Kant's Analytic. Cambridge, 1966, pág. 133.
5.
Cfr. III, 265. 16- 17; "Eu" designa uma representação de coateúdo vazio que sequer pode ser chamada de conceito, Cfr. III, 276. 34-35 e III, 123. 6.
6.
Cf. III, 126. 19-26: "As categorias são conceitos que prescrevem leis ( ... ) a pr:ori ~os fenômenos, e à natureza como totalidade de todo~ o:; fenômenos; deve-se perguntar agora, uma vez que elas não sã0 deduz:da:; da natureza, mas orientam-se por ela como um modelo (pois do contrário ser;am meramente empíricas), como é possível conceber que a natureza se deva orientar por elas, isto é, como é que elas podem determinar a relação da multiplicidade da natureza sem a extrair desta" .
7.
Cfr. III, 278-5: "Eu me penso a mim mesmo para garantir uma exper'ê:1cia possível. .. ".
8.
Neste mesmo sent:do já E . Adickes : Kants Kritík der reinen Verntmft. Berlin, 187, pág. 127. n 1, considerava o oer.samento em questão como "brincadeiras sistemáticas sem valor científico".
9.
Cf. C. F r. von Weizsacker : Kants, Erste Analogie der Enfahrung und die Erhal!ungsc. atze der Ph.ysik. In: Argumentrt:ions. Fcstschrift fürl. Konig (ed. H. Delius e G. Patzig). Gottingen, 1964, págs. 256-275.
1O.
J. G. Fichte, Grundlag ~ der gesamten Wissenschaftslehre ( 1794). Obra:; (I. H. Ficht) I, 105-106.
11.
Mesmo aqui são feitas restrições. Com relacã::> à 3~ antinomia, Kant declara que, neste caso, poder-se-ia abstrair da extensão da série das condições, uma vez que somente a relação dinâmica entre condição e con::Lc;onado interessa ( cf. lll, 364. 36-365. I).
12.
Cf. Carta a Garv, 21-9-1798; XII, 255: "Não foi a investigação da existência de Deus, da imortalidade etc., o ponto de que parti, mas a antinomia da r(azão) p(ura)".
13.
B. Bolzano: Wissenschajts/
14. _ Cf. H. Wagner: Philosophie und Reflexion. Munique e Basiléia. 15.
G. W. F . Hegel, Vorlesungcn über Gq:;chichte der Philosaph:e, III; Obras ( ed. Glockner) XIX, 582 .
CAPíTULO 111
TEND:E:NCIAS DIALÉTICAS NO IDEALISMO PóS-KANTIANO 1.
J. G. Fichte.
A teoria da ciência de Fichte é, como tentativa de uma elaboração conseqüente da filosofia tn:nscendental, um tipo de aplicação do método analítico da explicação científica, tal como ele se estruturou nas ciências naturais e em parte nas ciências sociais modernas. Ambos os aspectos estão intimamente ligados, pois 2. filosofia transce:.1dental kantiana é também, por sua parte, uma teoria analítica de experiência. A intenção de Fichte, de obter os princípios de filosofia, ou seja, os da teoria da ciência através da análise da experiência, está clara em todas as etapas da evolução de seu pensame:.1to; a interdependência dos métodos filosófico e científico nem se:n~re é tão clara como nas introduções à Teoria da Ciência de 1797, n::s quais ambas aparecem tão paralelas que Fichte chega a tansrer po;· ve-=:es a idéia do caráter hipotético dos princípios d:: explicação, sem a reter, no entanto 1• Ao final de contas, predomina também nele a concepcão de que uma fundamentação da filosofia por uma análise da experiência poderia e deveria fornecer os princípios incondicionalmente válidos, estrit.:mente universais e baseados em evidência, necessários para se alcançar os objetivos da teoria da ciência. O método dialético deve ser compreendido, em ~eral, como um1 variante do método analítico-experimental da metafísic:1 modeffiã, ~á em Fichte. Para concebê-lo desta forma, é necessário, sobretudo, ver com clareza o caráter metateórico da teoria da ciência de Fichte. O próprio Fíchte não deixou dúvida nenhuma sobre a diferei1ça entre o tipo do conhecimento da teoria da ciência e o do conhecimento científico. Na Teoria da Ciência, o próprio saber (inclusive o
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conhecimento científico) é objeto da reflexão. Fichte declarou expressamente que a Teoria da Ciência só "pode ter por objeto o saber", e~c seria a "ciência do saber" (X, 4) 2 • Mas mesmo se todo saber pode ser transformado em sabido, isto é, em um objeto do s::.ber, deve-se no entanto admitir, mesmo num regresso infinito da reflexão, uma consciência que, por rinci io, não pode ser objetivada. Se esta consciên · cia, na qua se ongina a eorza a êiêiícbiãe" áconsciênci::. última, absoluta, incluindo e objetivando todo o mais saber, ela mesma não pode ser objetivada e conscientizada; deveria pois haver fora dela um saber e uma consciência superiores e subjetivos; a consciência da Teoria da Ciência não ~eria, deste modo, a última e mais elevada, como afirmávêmos" (X, 4-5).
O caráter analítico-experimental da Teoria da Ciência aparece na formulação da tarefa essencial de~te: indicar o fundamento da experiência ( 1,423) . A fundamentação deve ~e r feita, segundo Fichte, através da divisão da experiência a ser fundamentada e da "reunião" dos conceitos resultantes da divisão. A divisão (a resolução) do fato de que existe experiência é chamada por Fichte, por vezes, de abstração, sem que esta expressão seia tomada em seu sentido tradicional. Portanto, da descrição da experiência como relação entre eu e objeto, a resolução pode ser operada tanto como "abstração" do eu, quanto como "abstração" do objeto. No primeiro caso, deve-se buscar tornar compreensível a experiência através da dedução de sentenças sobre a realidade objetiva; no segundo, através da dedução a partir de sen· tenças sobre o eu. O primeiro caminho é o do dogmatismo (isto é, do realismo gnoseológico); ele se demonstra impraticável por causa da impossibilidade de se chegar, por intermédio dele, à compreensão da· possibilidade da liberdade, razão pela qual a decisão em favor do caminho oposto, ou seja, idealista, é inevitável. Não se deve afastar a interpretação do método fichteano como analítico pelo fato de Fichte o ter caracterizado de r.enético; o que Fichte chama de " ênese" não é outra coi:.a do que a elaboração de u ma teonã dà' experíênêlã, êirtro a qúa a exp rc::.;;àõ~ 7ié~êscrpõSSíveLONesre'··sentido a compreensão dá possibilidade do próprio saber, ou seja, da unificação orgânica do entendimento com o conteúdo entendido, é uma intuição do processo de reálização desta unificação, isto é, do saber.
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O fenômeno a partir do qual se elabora a Teoria da Ciência, cujo objetivo é explicá-lo, é o "saber corriqueiro e dado" (X, 7) ou o "saber real" (X, 9). O saber é determinado como unidade sintética de eu e objeto, de entendimento e objeto. A explicação se faz segundo os dois aspectos do método analítico, costumeiramente designados como resolução e, composição, por análise do fenômeno a ser explicado e pela subseqüente dedução do explanandum a partir de ~enten ças formuladas com os conceitos simples obtidos através da análise. Estes dois aspectos do método analítico em sua aolic~ção à teoria de experiência são sucintamente expressos por Fichte: "O caráter cia T. da C. fica bem explicitado na seguinte fórmula: o que está unificado no âmbito do saber factual é separado nela; a fim de se deixar · fazer o. unificação" (X, 9) . Fichte considera incompleta a expncação que não chegue até às últimas condições do fato a ser explicado. Se nós não nos satisfazem03 com a descoberta das condições mais próximas, mas buscamos as condições das condições e assim por diante, chegamos, na teoria da experiência, a princípios que, segundo Fichte, não possuem o cará~er de hipóteses meramente formuladas para a explicação gen ~rica da experiência, mas que devem ser vistos como válidos em si mesmos coill evidência absoluta. Na medida em que a Teoria da Ciência persegue o fim "de nada admitir de inconcebível e de não deixar nada de inconcebido" (X, 104), ela não pode basear-se em evidência factual, como o fazem as ciências. Ela exige uma evidência autoprodutora e autofundamentadora, que suplanta o conceber mediato que se produz de:lro de uma construção teórica (o conceito) e suprime, por conseguinte, a construção como construção. A inconceituabilidade dos últios princípios decorre de sua incondicionalidade, o que não p;:,d~ r deduzido de condições também não pode ser concebido. Fichte nsava na transição de uma construção puramente teórica para a tuição da verdade incondicional ao dizer, recapitulando seu raciocínio de base: "nós construímos livremente os conceitos e premissas de que partimos, articulamo-los também livremente e, nessa articulação, somos tomados da convicção de que eles efetivamente dependem do outro, constituindo uma unidade indissolúver' (X, 120). Ao articularmos as hipóteses de uma maneira precisa, a intuição produz por si só, "como um relâmpago": "Nós não fizemos a ve:·dade; . . . é ele que se faz, por força própria" (X, 124). Não wmos nós que construímos a intuição fundamental; nós produzimos apenas
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as condições sob GS quais a intuição se autoproduz (X, 90-91). A exigência de construir o saber de dentro significa que o saber deve construir-~e a si mesmo. A Teoria da Ciência é o saber que se expõe a si mesmo numa unidade essencial" (X, 110). Como se trata de dar um fundamento à possibilidade da experiência que dependa daquilo que há de ser fundamentado, Fichte concluiu que o fundamento, como condição de possibilidade de experiência e do saber, não poderia ser experimentável ou cognoscível. No sentido da exigência idealista básica, de não se conhecer nenhum se1· independente do saber, o filósofo não podia reconhecer um ser qualquer como princípio supremo, tampouco um agente qualquer; o princípio deveria ser uma atividade pum. Esta atividade não possui o caráter de um ato da consciência, ela "não é um pensar, um intuir, um sentir, um anseio, etc., mas a totalidade do agir do espírito humano, que não tem nome, que jamais aflora à consciênci~, que é incon:ebível, pois ele é tudo o que pode ser determinado pe1os atos particulares do espírito (somente enquanto constitutivos de uma consciência) mas não é, em si mesma, algo de determinado" 3 • Apesar de afirmar a transcendência do primeiro princípio quanto à consciência, Fichte se sentiu obrigado a afirmar que o eu, como princípio do idealismo - diferentemente da coisa-em-si, tomada como princípio pelo dogmatismo - , está dado na consciência. Entre a afirmação da inexperimentabilidade do eu enquanto fundamento de experiência e a afirmação de sua ocorrência na consciência não existe nenhuma contradição, apesar da primeira impressão, pois Fichte declara que o eu se dá "pura e simplesmente" na consciência, mas não enquanto fundamento da experiência. De forma semelhante ele caracteriza a intuição intelectual logo como consciência imediata do eu agente, logo como percebida. Tem-se de admitir que Fichte, sempre que insistia sobre a inexperimentabilidade do princípio de experiência, levava em consideração que o momento da autoconsciência, do saber puro, isto é, de um saber sem objeto conhecido, não se poderia dar em si, enquanto que, nas expressões em que designava o princípio de experiência como dado na consciência, tinha-o em mente como um momento dependente da experiência e do saber real, contido em toda experiência ou saber determinado. Deve-se prestar atenção ao caráter do método que está à base da teoria fichteana da experiência, se se tenciona extrair da Te oria
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da Ciência os elementos, nela contidos, de uma dialética da experiência. A dialética de Fichte é elaborada no contexto da explicação de experiência em geral buscada através. do ref?resso da consciência empírica ao seu fundamento ou da dedução da consciência empírica do seu fundamento. Fichte não começou, aqui, diretamente com o conceito àe experiência ou de saber. Na Fundamenta da teoria geral da Ciência ( 1794) ele procedeu muito mais paradigmaticamente, ao tomar como ponto de partida uma sentença precisa e geralmente admitida, a tautologia "A=A", reconhecida como verdadeira já pela simples relação entre os conceitos. A relação entre sujeito e predicado, como, depois de Kant, também Fichte estava convencido, só é pensável como relação dentro da unidade do eu. Toda sentença "A= A" supõe, por conseguinte, "eu= eu", o que implica "eu sou". Como "A = A" representa aqui as sentenças necessariamente verdadeiras, vale para todas as sentenças acompanhadas pelo sentimento de necessidade (cujo sistema se chama "experiência" no sentido pleno), estarem elas condicionadas pela posição do eu como unidade, no interior do qual a multiplicidade pode ser relacionada; todas as relações, e não apenas as necessárias, somente são possíveis, segundo Fichte, na medida em que a unidade do eu, como fundamento explicativo incO'Ildicional, é pressuposto em toda "consciência concreta".
"Destarte, o fundamento explicativo de todos os fatos da consciência empírica consiste em que a posição do próprio eu precede toda posição no eu" (I, 95). Por relação é julgar, ou seja, uma atividade do espírito; o próprio eu, como fundamento absoluto da possibilidade de toda atividade do espírito, deve possuir, portanto, o caráter de atividade. "A posição do eu por si mesmo é, por conseguinte, a atividade pura dele mesmo" (I, 96). A análise leva, assim, não a um ser, mas a uma atividade pura como princípio. Não somente o ser dos objetos, mas também o ser do eu deve rer deduzido da atividade pura como princípio: "O eu é e põe seu ser, por força do seu puro ser" (1, 96). O primeiro princípio que se obtém na análise de experiência exprime uma ação e pode ser formulado como segue: "O eu põe originariamente seu próprio ser" (1, 98). Fichte estava consciente de retornar, com este princípio, ao da unidade sintética da apercepção de Kant, como princípio supremo do uso do entendimento (1, 99). Kant, porém, o colocava no ápice do
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sistema dos princípios transcendentais e das categorias, com cuja apli~ cação se ordena os dados e se gera a experiência. Fichte rejeita <:~. suposição de dados independentes do eu e está obrigado a deduzir do eu ou da atividade pura do sujeito o aspecto material da experiência. Ele se via, assim, obrigado a afirmar que o objeto (o "não-eu") é oposto ao eu pelo próprio eu num ato originário, o que é a segunda ação originária do eu, expressa no segundo princípio da teoria da experiência. O contexto teórico da experiência pode ser lido com clareza nas frases seguintes: "Se eu devo representar alguma coisa, preciso opô-la àquele que se a representa a si. Ora, no objeto de representação pode haver um X, pelo qual ele se desvele como representável. mas não como representante; todavia, não posso aprender por nenhum objeto que tudo em que haja este X não seja o representante, mas o representável; para pôr algum objeto, preciso já conhecê-lo; ele precisa estar em mim originariamente, antes de toda e qualquer experiência" (I, 104-105). O momento da objetividade, isto é, o da diferença entre conteúdo representado e eu representante, possui o caráter de uma negação. Este momento não pode ser obtido nem por abstração das experiências objetivas - toda experiência deste tipo já o supõe - , nem pode estar contido na primeira ação. O segundo princípio da teoria da experiência, "ao eu é oposto um não-eu" não é, pois, dedutível do primeiro, dado que este não inclui a negação contida no se· gundo. Como na formulação do primeiro princ1p1o, Fichte buscava alcançar, também aqui, o resultado desejado por via indireta, através de considerações lógico-formais. Segundo Fichte, deve valer como fato da consciência empírica que "não-A não é igual a A" possa ser reconhecido como indubitavelmente verdadeiro. De "A igual a A" não se pode deduzir aquela sentença, pois, segundo os pressupostos, não há outras premissas disponíveis. Assim como a relação entre sujeito e predicado, também este caso só é possível com o pressuposto da identidade da consciência, em que a oposição, fundamento da dupla negação, decorre de uma ação originária do eu: "Todo contrário, enquanto tal, é simplesmente, por força ::le uma ação do eu, e por nenhuma outra razão. O puro ser oposto é posto exclusivamente pelo eu" (1, 103).
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A negação lógica aparece, em Fichte, como dependente da oposição originária, pela qual o eu opõe a si um não-eu. Se, porém, entre os fatos da consciência surge a certeza inequívoca quanto a sentenças do tipo "não-A não é igual a A", este fato deve ser reduzido à oposição originária do não-eu pelo eu (I, 102) . Pela justaposição dos dois primeiros princípios, dos quais um é simplesmente incondicional e o outro apenas em sua forma (de oposição) , determina-se a tarefa que a teoria da experiência tem de resolver mediante a formulação de um terceiro princípio, definindo a lação entre os dois primeiros. Esta tarefa é posta pelos dois primeis princípios e pode, por conseguinte, ser deduzida deles, mas não solução. Esta, segundo Fichte, deve ocorrer "por uma decisão sobeana da razão" (I, 106). O segundo princípio constatou que o eu opõe a si um não-eu, no óprio eu (dado que a oposição supõe a unidade do eu). Disto corre: Na medida em que o não-eu está posto (no eu), o eu não está posto (no eu); Um não-eu só pode estar posto (no eu), na medida em que o eu está posto (no eu), dado que a posição do não-eu supõe um eu, ao qual o não-eu é oposto; Dado que as sentenças ( 1 ) e ( 2) decorrem do segundo princípio e se contradizem, o segundo princípio é contraditório, anulando-se desta maneira. O segundo princípio se anula, porém, por si mesmo, isto é, ele não se anula. Deste modo, o segundo princípio se anula e não se anula ao mesmo tempo. O mesmo raciocínio pode ser feito, mutatis mutantis, quanto ao eiro princípio, de cujo pressuposto se pode igualmente deduzir nseqüências contraditórias, o que leva Fichte a constatar que ele anula e não se anula ao mesmo tempo. O resultado indicado tem, obviamente, caráter dialético, na mea em que é tanto afirmado como negado. O raciocínio que leva a e curioso resultado, conforme Fichte garante expressamente. é
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"deduzido segundo as leis da reflexão supostas como válidas" (I, 107). Para Fichte, pois, não existe uma lógica dialética em concorrência com a lógica formal tradicional, baseada no princípio de não-contradição. E, porém, extremamente estranho que Fichte afirme tanto a verdade da8 premissas como a correção da dedução, da qual resultam as conseqüências contraditórias, assim como a impossibilidade de as aceitar. Se a contradição fosse aceita, a identidade da consciência, isto é, o fundamento absoluto do nosso saber, seria supresso. Desta forma fica delimitada a tarefa da formulação de um terceiro princípio da teoria da experiência: "deve-se descobrir um X qualquer, mediante o qual todas aquelas conseqüências possam estar corretas, sem que a identidade da consciência seja supressa" (I, 107). A solução, que Fichte pensa só poder alcançar mediante uma "decisão soberana da razão", não é obtida na forma preconizada, isto é, não resulta nenhuma solução no sentido de evitar as conseqüências contraditórias, mantendo-se as premissas; Fichte evita a contradição pelo abandono das premissas originais e pela introdução de premissas modificadas. Enquanto que os dois primeiros princípios da teoria da experiência falam de uma posição ilimitada do eu e do não-eu, as premissas modificadas falam de uma autoposição limitada pela posição do não-eu e se uma posição do não-eu limitada pela posição do eu. A solução consiste, por conseguinte, na relativização da posição do eu e do não-eu, em que o conceito da limitação não é obtido pela análise do conteúdo dos dois primeiros princípios, mas deve ser produzido de modo original por força de uma lei específica do nosso espírito (I, 107). O terceiro princípio da teoria da experiênci~ exprime, desta maneira, igualmente uma ação do eu. Segundo Fichte, ele afirma: "Eu oponho, no eu, um não-eu divisível a um eu divisível" (1, 110). Neste contexto, Fichte introduziu a terminologia que veio a ser consagrada para formular a relação dialética: o terceiro princípio exprime uma síntese, entre o eu e o não-eu opo~:tos. Toda síntese supõe uma antítese e ambas supõem uma tese, dado que sem uma posição, oposição e composição são impossíveis: "Assim como é impossível uma antítese sem síntese ou uma síntese sem antítese, ambas são igualmente impossíveis sem tese'' (1, 115). A relação entre tese, antítese e síntese obedece, segundo Fichte, a certas regras, dedutíveis do terceiro princípio. A ação originária é aqui primária, enquanto que
UNIVERSIDADE FEOER.t..L 00
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a forma que aparece nas regras lógicas é secundária, assim como as ategorias não são pressupostas para a formulação dos princípios, mas inversamente delas isoladas. Neste sentido, pois, "a legitimidade de oda antítese e de toda síntese é deduzida dele" ( scil. do terceiro princípio) (I, 113). Não se deve nunca, por conseguinte, perder de vista o fato de que a dialética fichteana só se refere superficialmente a sentenças; no fundo, ela é uma dialética dos momentos da experiência, roduzida no contexto de uma teoria da experiência precisa. Só com o terceiro princípio é que Fichte chega ao nível da consciência empírica: os dois primeiros princípios exprimem apenas o resultado da resolução da relação de experiência, isto é, a idéia, obtida por "abstração", de uma autoconsciência isolada e de uma consciência isolada do objeto. As reflexões feitas acima, que levaram a concluir pela conaditoriedade dos dois primeiros princípios, se baseavam no presposto tácito de que eu e não-eu sejam independentes entre si, enquanto que a síntese, expressa pelo terceiro princípio, leva em consiração sua dependência mútua como momentos de experiência, evido assim a contradição decorrente do pressuposto anterior insusntável. O raciocínio complicado de Fichte constitui uma tentativa explicar a intuição de que uma consciência do objeto é tão impensável sem uma autoconsciência, como esta é impensável sem aquela. Eu" e "não-eu" não significam a mesma coisa nos dois. primeiros e no terceiro princípio; só no terceiro princípio é que são algo. Nos dois primeiros princípios, todavia, convém-lhes o caráter de puras abstracta. Pelo recurso à abordagem de sentenças logicamente verdadeiras, la qual são introduzidos os princípios supremos da teoria da expe'ência, Fichte não explicitou os pontos essenciais da teoria da exriência, antes tornou-os mais obscuros. Mesmo assim, o fundamenteórico-experimental da dialética dos princípios supremos pode ser ficientemente identificado na exposição de 1794. Com relação ao imeiro princípio, Fichte diz: "Nós partimos da sentença A = A; não como se a sentença: eu sou" pudesse ser demonstrada a partir daquela, mas porque nós recisamos partir de uma certeza qualquer dada na consciência empí'ca. Na nossa própria abordagem ficou porém demonstrado que não ' a sentença A = A que fundamenta a sentença "eu sou", mas é esta tima que fundamenta a primeira" (I, 98) .
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De forma semelhante, o exame da sentença ''não-A não é igual a A" se apresenta como mero instrumento da reflexão própria à análise da experiência:
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A" "Desta maneira, tão certo como a sentença "não-A não aparece entre os fatos da consciência empírica, aparece entre as ações do eu uma oposição; e esta oposição é - em sua simples forma diretamente possível, não estando sob condição nenhuma, nem fundamentada por nenhuma razão superior" (I, 102). O processo esboçado aqui domina totalmente a estrutura da Teoria da Ciência: as oposições a serem conciliadas são formuladas antitetícamente. Todas as sínteses devem estar contidas na síntese suprema expressa pelo terceiro princípio e devem poder ser elaboradas a partir dela (I, 114). O caráter dialético do pensamento de Fichte é claramente reconhecível na seguinte caracterização do método antitético-sintético: "Nós devemos buscar elementos opostos restantes no eu e não-eu reunidos nela (scil. na síntese suprema), na medida em que nela estão reunidos, o estão por um novo fundamento relacional, o qual, por sua vez, tem de estar contido no mais elevado de todos os fundamentos relacionais: pelo que devemos buscar novamente novos opostos nos opostos reunidos pela primeira síntese, fazendo-o por um novo fundamento contido no primeiro e dela deduzido, e assim por diante, tanto quanto pudermos ... " (I, 114-115). O caráter dialético do método indicado aqui consiste em i~olar . os momentos de uma relação com o fim de desvendar o caráter mera· mente provisório deste isolamento. Eles devem ser concebidos como momentos interdependentes das relações fundament,üs. 4 Os dois primeiros princípios não podem pois, ser mantidos, na medida em que sejam compreendidos como sentenças sobre um eu independente do não-eu ou sobre um não-eu independente do eu; nem existe um eu sem o não-eu, nem um não-eu sem o eu, razão por que só a síntese do eu e do não-eu, ou mais exatamente, seu fundamento é absoluto. Sem que se possa reconstituir aqui o desenvolvimento do pensamento básico e a subdivisão da Teoria da Ciência em teoria e prática da ciência, considerando a primeira o eu determinado pelo não··eu e
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a segunda o não-eu pelo eu e sem que seja possível examinar mais detidamente a função da imaginação5 no âmbito do método sintético ou o problema do "impulso", atentemos somente para o elemento de uma dialética da experiência que permaneceu sempre também nas reformulações ulteriores da Teoria da Ciência. Assim como, na Fundamentação da Teoria Global da Ciência, havia transposto a relação entre o eu empírico ("divisível") e o não-eu empírico ("divisível") para a unidade da consciência, na qual está posto o eu absoluto (I, 110), na Teoria da Ciência de 1804, Fichte não designou como o absoluto nem o ser nem a consciência, mas o liame entre ambos (X, 1O1). O fenômeno ou o saber empírico estão caracterizados pela dependência mútua entre ser e pensar. A Teoria da Ciência, cuja tarefa é a explicação do fenômeno, não pode parar ~na simples constatação da relação característica do saber empírico; ela precisa ir além do âmbito do fenômeno e perceber que o absoluto não é nem o ser nem o pensar, mas a união de ambos (X, 101-102). O princípio da unidade absoluta é chamado, na Teoria da Ciência de 1804, de "saber puro", não no sentido corriqueiro da palavra, mas no de um ·saber de objeto nenhum" (X, 96). Na medida em que reduzia tanto o conceito como o ser ao princípio supremo de "pura luz", Fichte acreditava ter superado a oposição entre idealismo (subjetivo) e realismo. A posição da Teoria da Ciência não é nem o eu (como momento de unidade da experiência) nem o não-eu (como momento de multiplicidade), mas o ponto de união entre unidade e multiplicidade. Como a Teoria da Ciência tem por tarefa deduzir a pos~ibili dade de experiência como união dos momentos da unidade (da subjetividade) e da multiplicidade (da objetividade) , ela não pode, segundo Fichte, tomar por seu princípio último nem a unidade nem a multiplicidade: ". . . dado que a Teoria da Ciência , como toda filosofia, tem por tarefa reduzir toda multiplicidade à unidade absoluta, ou, o que é o mesmo, deduzi-la da unidade: está claro que ela não situa seu ponto de vista nem na unidade, nem na multiplicidade, mas persevera entre ambas" (X, 131 ) . Faz-se necessário, para Fichte, transcender o fenômeno caracterizado pela relação mútua entre unidade e multiplicidade em função da tarefa de explicar a experiência em si me5:.ma: estando a experiência determinada como relação entre eu e obieto, entre unidade e mul-
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tiplicidade, a possibilidade do relacionamento destes dois momentos na experiência concreta só pode ser compreendida se se pressupõe uma unidade originária dos momentos. Enquanto unidade do momento da experiência, esta unidade "correta" ou "verdadeira" não é abstrata, mas concreta, na medida em que é o princípio tanto da unidade como da multiplicidade da experiência, não podendo, de forma . alguma, ser um sem ser o outro. A unidade originária fica caracterizada, desta maneira, como princípio dialético. Fichte definiu com clareza a relação dialética entre os momentos da unidade e da separação no princípio supremo: "Dado que a verdadeira unidade é, ao mesmo tempo, princípio da unidade (aparente) e da disjunção, sem que uma possa ser sem a outra, trata-se de uma mesma coisa, se considerarmos aquilo que, ao longo do nosso discurso, formulamos sucessivamente como princípio supremo, como princípio da unidade ou da disjunção. Ambos são unilaterais, mas não verdadeiros em si; em si, o princípio não é de um nem do outro, mas de ambos, como princípio orgânico" (X, 133). Que a redução da relação eu-objeto constitua uma tentativa de explicação da experiência em geral pela imposição de uma unidade absoluta, fica ainda mais patente na Te oria da Ciência de 1813, inacabada: Fichte define a tarefa da Teoria da Ciência como compreensão do saber por seu princípio, e o método a ser empregado para isto como "análise do saber com a demonstração de onde provém tal ou tal coisa, presente na unidade do saber" (X, 6). O saber real, enquanto fenômeno a ser explicado, inclui o entendimento e o objeto deste como momentos entrelaçados, fundidos numa unidade orgânica. A Teoria da Ciência é análise; o que aparece unido no saber concreto "é decomposto por ela, diretamente, em suas partes constitutivas" (X, 8), elementos "dos quais se compõe o valor a ser deduzido por nós" (X, 7)· A explicação da possibilidade do saber ou da aparência em geral é feita através da construção (ou reconstrução) conceitual da unidade orgânica do saber concreto. A tarefa da teoria da ciência consiste, em suma, na produção analítica do conceito de saber. Os aspectos ou fases do método analítico, usualmente chamados de "resolução" e "composição': aparecem aqui com clareza. Quando Fichte afirma, por exemplo, que a teoria da ciência deixa o saber fazer-se, tal significa, como ele mesmo explica: "Ela distingue ... o que no saber concreto nunca é distinto, para vê-lo novamente reunido"
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(X, 9); e: "o que está unido no interior do saber factual é separado nela, para deixar surgir a união" (X, 9). Como já anteriormente, Fichte pensava, também no projeto da Teoria da Ciência de 1813, poder obter a meta explicativa com a simples suposição de que o saber real seria "imagem" do Uno, do Absoluto. O saber, como unidade absoluta, é dialético em si, na medida em que o conhecido é, ao mesmo tempo, unidade e multiplicididade e que a imagem toma diversas formas (X, 9). O que se desenvolve, na filosofia tardia de Fichte, como dialética da unidade e multiplicidade, havia sido caracteriado, na Fundamentação da Teoria Global da Ciência, primeiro como dialética do subjetivo e do objetivo, como dizia Fichte: "A atividade, como unidade dialética, é descrita de forma mais sucinta como reunião e manutenção absoluta de opostos, de um subjetivo e de um objetivo ... " (I, 205); sem dúvida, porém, Fichte identificou desde o início o ubjetivo com o momento da unidade da experiência e o objetivo com o momento da multiplicidade experimentada. No decurso de sua evolução filosófica, ele liberou estes dois momentos de relação para com o eu e o não-eu, assim como não mais reduzia a síntese de ambos à atividade do espírito. Independentemente destas modificações da Teoria da Ciência, o caráter dialético da fundamentação fichteana sempre se manteve. Que Fichte tenha empregado muito raramente o termo "dialética" (e seus derivados) não altera em nada o caráter dialético da fundamentação, nem a correlação entre caráter dialético e método analí~ ·co. Fichte falou algumas vezes de "dialética" na Lógica Transcendental ( 1812), como, por exemplo, ao afirmar que procedia de modo genético e se servia da "arte dialética da elaboração" (IX, 184) ou ao constatar que a arte dialética seria "não a Dialética do cogitar e elaborar, mas o pensar que se manifesta a nós, a evidência que nos captura". Segundo Fichte, a "verdadeira dialética ... é o método rigoroso de chegar a esta evidência" (IX, 18 8 ) . Os esforços de Fichte se dirigiam não tanto à classificação do método, mas à precisão do estatuto e~.peculativo ao qual se deveria hegar na fundamentação. Os princípios deste método só podem ser nhecidos, por conseguinte, em sua aplicação concreta à tarefa da ndamentação filosófica; a reflexão sobre o método enquanto tal
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não foi o tema predominante da Teoria da Ciência. Neste ponto podese ver a razão. porque, de fato, o desenvolvimento ulterior da dialética partiu, não de Fichte, ·mas praticamente só de Hegel.
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De forma semelhante à de Fichte, a fundamentação da dialética de Schelling é feita também no contexto de uma teoria da experiência. Schelling jamais considerou a dialética como um proce~1so esquemático ou mesmo apenas esquematizável, no qual só podia entrever o "pedantismo" que constatava, com grande desconfiança, em certos de seus contemporâneos (VI E, 53) 6• No que segue, ao falarmos de "dialética" em Schelling, a expressão terá o sentido de certas relações no âmbito de teoria da experiência, isto é, referindo-se à relação de sujeito e realidade objetiva ou de subjetividade e objetividade em geral, ou designará uma relação determinada entre as "partes" da filosofia - ou melhor: entre os aspectos essenciais da filosofia, que Schelling, ao longo da evolução de seu pensamento, foi concebendo de forma sempre mais abrangente. Em ambos os casos, a dialética consiste não num movimento de uma posição para a negação desta e enfim para a superação de ambas num nível superior, mas na inclusão da posição original e de uma outra complementar num contexto abrangente, mantida a relação de oposição, sem que este processo seja pensado como conceitualmente necessário. Antes, ele descreve uma evolução que, efetivamente, obedece a tendências objetivas, mas de forma tal que, por parte do sujeito, não há nenhuma necessitação, mas apenas um "anseio" correspondente a estas tendências. a) Dialética da experiência. Pode-se distinguir, em Schelling, duas concepções da relação entre filosofia e ciências setoriais; de um lado há a filosofia como teoria ou ciência de toda ciência e, como tal, "ciência originária" (I, 52). Por outro lado, ela deve ser a ciência básica, condicionante de todas as demais, sendo seu conteúdo "fundamento do conteúdo de toda e qualquer ciência" (I, 51). Na primeira acepção, ela é filosofia transcendental; na segunda, aquela parte da ciência racional unitária que abrange os princípios de todas as demais partes subordinadas, "pois ela deve, ao me:nno tempo, condicionar todas as demais" (I, 52). Nesta segunda acepção, Schelling assume indiscutivelmente a concepção da função da filosofia própria
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ao ideal racionalista da ciência e, neste sentido, comparado à "revolução copern~na" de Kant, é perfeitamente conservador. Na primeira acepção, porém, a filosofia é a ciência das ciências e possui, assim, caráter de metadisciplina, correspondendo à concepção moderna, introduzida pela revolução de Kant. Abstraindo da heterogeneidade das duas concepções, Schelling acreditava na possibilidade de uma síntese: segundo sua convicção, os princípios supremos de todo conhecimento científico-racional não só podem como devem ser obtidos mediante a análise da experiência; a teoria do saber é uma filosofia primeira e inclui os princípios de todo conhecimento racional. Com esta, Schelling continua a idéia básica de uma filosofia primeira que seja análise da experiência, reconstituída, mais acima, até Descartes. De acordo com o ideal racionalista da ciência, todo conhecimento está condicionado por um princípio supremo incondicional, isto é, como argumenta Schelling, por um princípio incondicional tanto em sua forma como em seu conteúdo. Este princípio é visto por ele na sentença que exprime a autoposição absoluta do eu. Com o pressuposto do eu como princípio absoluto, a objetividade, enquanto momento da experiência, aparece necessariamente condicionada pelo eu; pois se o não-eu estivesse posto incondicionalmente, a primeira posição - ou seja: a autoposição de eu - perderia seu caráter absoluto. Todo não-eu está, por conseguinte, condicionado pelo eu. Na teoria da experiência, tal como Schelling a concebe sob a influência de Fichte, o papel do ponto de partida absoluto cabe à autoposição do eu; no âmbito da experiência contrasta em torno de subjetividade como conceito prioritário, porém, o eu e o não-eu não se encontram numa relação "dialética", na medida em que o eu não se pode pôr a si mesmo, sem opor a si um não-eu, enquanto que o não-eu não pode ser pensado de outra forma a não ser como posto pelo eu. Schelling formulou este pensamento bem sucinta e claramente: "O eu é posto por si mesmo. Um não-eu é posto, no entanto, pelo mesmo eu, pois o eu se auto-anularia se não pudesse um não-eu, pelo que ele se autopõe" (I, 59). O eu deve estar posto, pois, originariamente por si mesmo, e não pela posição de um outro. Ambos devem
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estar ligados, por conseguinte, por um terceiro, "o qual surge exatamente no movimento em que o eu, pondo um não-eu, põe-se a si mesmo, no que o eu e o não-eu são postos ao se excluir reciprocamente" (1, 59). Este terceiro, que deve ser a síntese dos momentos de experiência designados como "eu" e "não-eu", não é outra coisa do que a estrutura da experiência em geral, e os princípios em que são formuladas a autoposição do eu e a posição do não-eu, como já se verificou na abordagem da dialética da experiência de Fichte, aparecem como premissas enunciadas a fim de se construir uma teoria de experiência em geral. Já em um de seus primeiros escritos, "sobre a possibilidade de uma forma de filosofia em geral", Schelling via com clareza este estado de coisas. Os "atos" sobre os quais ele procura basear a consciência e a estrutura elementar desta não são, em si mesmos, atos da própria consciência, mas são considerados como algo à base da consciência, como condição de possibilidade desta ( cf. I, 3 72-373). Qm:ndo Schelling declara, a propósito da relação entre o eu e o não-eu, que "um exclui diretamente o outro" (I, 111, nota), tal significa o reconhecimento de correlatividade dos dois momentos da experiência. A afirmação de que o fato de o eu opor a si um não-eu, não se dá por nenhuma outra razão do que a se pôr também a si mesmo (ibid.), pode ser entendida como constatação de indedutibilidade daqueles momentos; não obstante, ao atribuir o primado transcendental-filosófico à autoposição do eu, Schelling se decide, no contexto da tentativa de explicação pela teoria da experiência, por alcançar a meta €Xplicativa pelo lado da subjetividade. A passagem do primeiro princípio, que exprime a autoposição do eu, para os princípios subseqüentes não é feita por dedução lógicoformal, mas deve ser compreendida como processo dialético. Schelling assegura que o segundo princípio não é dedutível analiticamente do primeiro. Antes, dá-se aqui "um progressus de tese à antítese e de ambas à síntese" (I, 112, nota). É patente que Schelling se inspira em Fichte, também quanto a esta questão específica da relação entre os três primeiros princípios; no fundo, porém, estão ainda as "observações especiais" de Kant sobre a relação entre as três categorias no interior de cada classe de categorias, às quais se aludiu acima.
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A tarefa que Schelling se dá no "Sistema do idealismo transcendental", ainda sob a influência de questões fichteanas, consiste na "dedução" da autoconsciência como ato unitário, no qual "eu" e "objeto" estão postos como momentos dele. O ponto de partida é a relnção sujeito-objeto8 , que - segundo Schelling - deve ser compreendida pela subdivisão analítica do ato absoluto pressuposto em vários atos -isolados, para que surja, destes, aquilo que fica posto uma vez por todas através da síntese absoluta que os abrange (li, 388). A unidade do ideal e do real, cuja "oposição" é chamada de experiência, faz necessária, segundo Schelling, a suposição de um eu transcendental tanto real como ideal que limita sua própria atividade ideal, originariamente ilimitada, tornando-se assim real. A dupla atividade do eu transcendental, isto é, limitativa e limitada, que não é experimentada, mas suposta (a fim de se explicar a possibilidade de expe· riência em geral) serviu a Schelling, como se demonstrará, de modelo da sua dialética da natureza. As relações entre esta dialética e o método analítico não podem deixar de ser vistas. Com toda evidência, trata-se de uma construção teórica a fim de explicar a possibilidade da experiência em geral, o que Schelling também reconheceu, sem porém admitir que esta construção tenha um caráter problemático qualquer. Segundo ele, são os princípios sobre os quais se baseia que devem ser considerados algo de real, como atividades do eu, o que levou Schelling a falar em um ·mecanismo do espírito", no qual se inserem as relações dialéticas em questão (li, 394). A dialética do eu, do não-eu e da autoconsciência que se esboça deve ser interpretada, segundo Schelling, como relação dialética entre a realidade absoluta (tese), a negação absoluta (antítese) e a divisão da realidade entre ambas por uma atividade mediadora (síntese), isto é, como relação entre momentos que devem ser reduzidos às atividades do eu (II, 394). Segundo Schelling não ocorre aqui, no entanto, a "superação" pela síntese da "contradição na essência do eu", dado que esta, por pertencer à essência do eu, por princípio, não pode ser superada. Como porém esta contradição não pode subsistir em e para si, a síntese deve produzir uma unidade dos opostos, mantendo simultaneamente a oposição; isto significa: no eu real, a oposição entre realidade e negação continua, não mais como oposição entre realidade absoluta e negação absoluta, mas como oposição de realidade e nega-
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ção mutuamente limitadoras. A síntese não se realiza tampouco de uma vez por todas, mas deve ser considerada como meta de uma série infinita de atos sucessivos, na qual a autoconsciência se desenvolve historicamente. Esta dialética, observada nos primeiros escritos de Schelling, sob influência imediata de Fichte, é essencialmente de sujeito-objeto. Schelling estava convencido de que a dialética se refere sempre à relação eu-objeto e ao fundamento da unidade de ambos. Se deve existir uma dialética de natureza com este pressuposto, ela só pode ser a dialética de uma natureza concebida à moda do eu. Efetivamente, Schelling elaborou c: natureza da dialética, em cuja concepção ele vai além de Fichte, partindo da dialética da experiência, orientando-se pela convicção de que a natureza é produtiva de forma análoga a do eu, possuidora, pois, do mesmo caráter que este, e segundo o modelo de: dialética do eu absoluto, do eu empírico e do objeto empírico. A extrapolação da estrutura dialética da experiência para a estrutura elementar da natureza pareceu-lhe aconselhável pelo paralelismo aparente entre o espírito e a natureza ( cf. li, 332). Schelling pensou, assim, que o fato de se dever distinguir, na primeira época da história da autoconsciência, três atos e, na construção da matéria, três forças e três dimensões correspondentes à extensão desta, leva naturalmente à idéia "de que é sempre a mesma triplicidade que volta sob estas diferentes formas" ( II, 450). Assim como o eu transcendental opõe a si um não-eu e se limita por ele na dialética de experiência, para a filosofia da natureza, a natureza, vista como identidade de natura naturans e natura naturata, de produto e de atividade produtiva . (II, 284), ramifica-se em princípio produtivo e princípio restritivo da produção (II, 287). Schelling não acreditava poder explicar de outra forma o fato da transformação, da mudança, da evolução. Assim como o fato da experiência dos objetos só pode ser explicado pelo recurso a uma ação do eu que limite sua atividade originária, assim, para Schelling, o fato da mudança só é explicável pela suposição de uma força limitadora da produtividade originária da natureza. Sem um princípio restritivo, resultaria do princípio produtivo uma transformação infinitamente rápida, isto é, o resultado final da evolução surgiria num piscar de olhos, enquanto que nós constatamos. de forma patente, uma evolução de velocidade limitada. Para esclarecê-la, é necessário supor uma "restrição originária da produtividade" (li,
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287), cujo fundamento tem de ser situado na natureza, assim como
o idealismo transcendental tinha de interpretar o limite da atividade do eu transcendental como a própria autolimitação deste. A natureza deixa de ser, pois, pura produtividade, pura identidade, põe-se nela uma distinção, ela é duplieidade (li, 288). O paralelismo entre estas reflexões e as da filosofia transcendental vai ainda mais longe: assim como a autolimitação do eu puro devia ser suposta como condição de possibilidade da autoconsciência, assim a duplicidade da identidade da natureza é pensada pela filosofia da natureza como condição necessária para que a própria natureza se torne objeto, -para que o sujeito puro se transforme num sujeito-objeto (li, 288). As tendências realmente opostas na produtividade original - a tendência produtiva e a limitadora desta se encontram i-lo produto. Dado que não há nenhuma razão para se admitir que elas sejam equivalentes (mesmo se agem de forma oposta), caso em que, ao contrário da suposição anterior, devem anular-se mutuamente. A contradição que se constitui assim só pode ser superada, segundo Schelling, pela suposição de que o produto só subsiste na medida em que é reproduzido permanentemente. Nesta solução não se pode deixar de reconhecer a analogia com as considerações transcendental-idealistas sobre a contradição contínua das duas atividades opostas do eu puro e sobre a unificação simultânea de ambos na autoconsciência. Como o redemoinho que se reconstitui continuamente na corrente oor causa da resistência de um corpo, assim se deve pensar o produto como &niquilado e reproduzido em todo e a cada momento. Na medida em que for considerado como algo de fixo e permanente, o produto não passará de mero "produto aparente".
O produto é, segundo Schelling, finito e infinito ao mesmo tempo, o que implica ser também dialético-contraditório. Ele é finito porque a produtivid&de infinita da natureza não se esgota nele, e é ao mesmo tempo infinito, porque a força integral da natureza age nele. A 'superação" da contradição resulta, para Schelling, da compreensão de que o produto é apenas aparentemente finito. Poder-se-ia dizer que, segundo Schelling, este produto parece finito quando considerado num momento dado; de um ponto de vista genético, ele aparece como resultado de uma produtividade infinita da natureza. O produto natural é, desta forma, uma "representação empírica de uma infinitude ideal" (li, 290).
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Não podemos abordar aqui as demais reflexões de Schelling relativas à quantidade ilimitada de produtos restritivos e à atomística dinâmica, segundo as quais se deveria supor "enteléquias" como meras intensidades para fins de aplicação da realidade da natureza, determinada qualitativamente. Basta a indicação do caráter dialético básico das idéias dominantes da filosofia da natureza de Schelling. Trata-se aqui da relação entre identidade originária, diferença entre opostos e indiferença "como algo mediatizado pela oposição e na qual a própria oposição é mediatizada" (li, 308). Deve-se supor uma busca de identidade na oposição, pois esta é a superação da identidade, enquanto que a natureza é, originariamente, identidade (li, 309). Se não houvesse oposição alguma, existiria apenas identidade, repouso absoluto; se não houvesse identidade já na oposição, a própria oposição não poderia existir. O terceiro elemento, mediador entre identidades e diferença e a "busca da indiferença' 1 e "indiferença" é "identidade proveniente da diferença" (li, 309), condicionada pela diferença e condicionando-a ao mesmo tempo. A busca da indiferença gera, no entanto, apenas pontos de indiferença relativos, nunca absolutos. Toda indiferença constituída deixa de incluir uma oposição não-superada, que busca, por sua vez, passar a indiferença e assim por diante. Todas as oposições intermediárias estão incluídas na oposição absoluta, mas o produto em que todas as oposições são absolutamente superadas não é nunca, ele apenas se torna sempre. A síntese nunca será completa, ela prossegue ilimitadamente (li, 310-311). As reflexões mais pormenorizadas de Schelling se tornam cada vez mais difíceis à medida em que se afastam das idéias básicas. Logo," não se poderá falar em "dedução" dialética, mas em novas interpretaçõés forçadas, extraídas desastradamente do esquema original (por exemplo, a interpretação da indiferença como gravitação), a fim de se "deduzir", dos conceitos básicos universais e especulativos, certo::; conceitos que pertencem ao âmbito da Física. A idéia de indiferença da oposição se transforma, pura Schelling, na idéia de um sujeito-objeto, nem subjetivo nem objetivo, de uma "razão", definida como segue: "Eu chamo razão a razão absoluta, ou seja, a razão na medida em que é concebida como indiferença total do subjetivo e do objetivo" ( 111, 1O). A questão de como a razão chega a se autopensar é respondida por Schelling com a declaração
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de que ela "reflete sobre o que há entre subjetivo e objetivo, o que obviamente tem de ser algo que se rel"cione de modo indiferente tanto quanto a um como quanto ao outro" ( ibid.). Para tal é necessário abstrair do pensar, de forma que a razão não é mais concebida como algo subjetivo, - por causa da correlatividade entre subjetividade e objetividade - nem tampouco como algo objetivo. A essência da razão é, para Schelling, a unidade ou a identidade desta, claramente, como "unidade da upercepção transcendental" não-subjetiva. A identidade absoluta, fora da qual nada é nem pode ser, cuja forma ou atributo é o conhecer originário como autoconhecimento da identidade em sua identidade e que se põe infinitamente como sujeito e objeto em seu autoconhecimento infinito, parece ter sido concebida não tanto sob inspiração da substância de Spinoza, mas do uno de Platina, que se polariza em sujeito e objeto no pensar do pensar. Ao mesmo tempo, a identidade de mostra como extrapoIação do eu transcendental, na medida em que ela deve ser, como este, fundamento pré-empírico da relação de subjetividade e objetívi- · A (111, 12) não é mais do que o dade. A lei da identidade A eu = eu objetivado da filosofia transcendental (de Fichte e de Schelling).
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Nos fenômenos isolados não se pode, como conclui Schelling, admitir nenhuma oposição qualitativa entre sujeito e objeto com relação à identidade absoluta, dado que é a própria razão absoluta que se polariza tanto no subjetivo como no objetivo; a diferença sujeitoobjeto só pode ser do tipo qualitativo, isto é, só pode tratar da supremacia da subjetividade sobre a objetividade ou desta sobre aquela, subsistindo sempre um equilíbrio qualitativo perfeito na totalidade das relações particulares entre subjetividade e objetividade. E isto, mesmo se, nos casos particulares, o peso maior se situe numa ou noutra parte. As fases do processo dialético em geral constituem, por conseguinte, a identidade relativa inicial, a duplicidade relativa e a totalidade relativa abrangente (111, 36). Como, no âmbito da filosofia da natureza as coisas concretas foram concebidas como meras manifestações, todos os entes, reais ou ideais, valem agora como meras manifestações da identidade "bsoluta enquanto totalidade absoluta. Segundo esta concepção, não há nenhum indivíduo que possa ser real em si. A diferença quantitativa pertence, decerto, ao âmbito dos fenômenos, e a dialética se move, do sujeito-objeto pré-
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empmco de todas as manifestações, através do universo dos entes que se manifestam, caracterizado pela diferença quantitativa entre subjetivo e objetivo, em direção ao conceito supra-empírico de todo ente, no qual subjetivo e objetivo, ideal e real voltam a relacionar-se indiferentemente. A consciência e a matéria que se manifestam são concebidas como diferenciação da identidade absoluta, do sujeitoobjeto. Assim como o eu transcendental põe taüto a si mesmo, como o não-eu e a relação entre ambos, a consciência e a realidade material surgem da identidade absoluta. No universo, como identidade absoluta entre real e ideal, na totalidade de suas formas evolutivas, reina um equilíbrio perfeito de ambos momentos. O sujeito-objeto original ·ainda não é real; ele -se realiza na posição da diferença quantitativa entre subjetividade e objetividade. Schelling necessitava pressupor uma indiferença original entre real e ideal, a fim de poder sustentar a concepção de um mundo, em que nada fosse exclusivamente material ou exclusivamente imaterial, e no qual materialidade e espiritualidade permanecessem unidos na totalidade do universo. O universo é uma coincidentia oppositorum mediatizada por todas as diferenças determinadas dos entes concretos. A síntese abrangente do real e do ideal no universo é percebida por nós, geneticamente, como encontro de duas séries evolutivas, uma real e outra ideal, sendo que o momento ideal aparece mais fortemente no interior do real e o momento real no ideal, sucessivamente, até que os estágios máximos das duas séries coincidam, como organismo e obra de arte, num universo concebido como o organismo mais artístico e a obra de arte mais orgânica. O esquema dialético desenvolvido na teoria da experiência domjna também a teoria da liberdade de Schelling, na qual a criação é apresentada como um desdobramento dialético de Deus, contexto no qual se procura interpretar o mal. Como na filosofia da indiferença, o ponto em que o real e o ideal estão em relação de indiferença é apresentado, no escrito A essência da liberdade humana ( 1809), como absoluto. Assim como, na filosofia, no eu se distingue entre posição do eu e oposição do não-eu e, na filosofia da natureza, entre atividade e inibição da atividade, também aqui faz-se a distinção entre dois princípios, os quais são apresentados, ocasionalmente - sob inspiração inequívoca de termos de J. Bohme - como trevas e luz, cujo ponto de indiferença Schelling chama de fundamento primeiro (Vrgrund) ou ausência de fundamento ( Ungrund). A ausência de
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fundamento precede todo fundamento e toda existência, toda dualidade; ela não é identidade, mas indiferença absoluta dos opostos, ou · o absoluto considerado em si mesmo" (IV, 300). Pode-se constatar, novamente, que Schelling buscava ainda em 1809 - mesmo sem a clareza de objetivos própria a alguns de seus primeiros escritos - uma explicação do fenômeno da evolução da realidade observável, sendo que, todavia, os princípios explicativos ssuem agora um caráter teológico indiscutível. A meta é descrita r Schelling da seguinte forma: "Nós reconhecemos ... que o conceito do devir é o único adequado à natureza das coisas. Mas elé:s não podem evoluir em Deus, visto absolutamente, dado que elas . . . são infinitamente diferentes dele. Para separar-se de Deus, elas precisam transformar-se num fundamento diferente dele. Como porém n<::da pode ser fora de Deus, esta contradição só é superável se as coisas tivessem seu fundamento no que, no próprio Deus, não é ele mesmo, isto é, no fundamento da ua própria existência" (IV, 250-251). Como já para a dialética na teoria da experiência, t«mbém aqui evidencia a impossibilidade de se alcançar a meta explicativa com o recurso a um princípio unitário absoluto: é preciso r.dmitir-se um rincípio diferente da unidade conceitual, dado "o anseio _ue o Uno eterno sente de se autogerar" (IV, 251). Através deste "anseio", da ontade que precede todo entendimento, do fundamento obscuro em us, surge uma representação refletiva, na qual Deus se autocontemla, c::utorealizando-se assim. Esta representação, na qual se pode reconhecer sem dificuldades a nóesis noéseos aristotélica, é "o próprio Deus gerado em Deus", o intelecto divino ou a "palavra" que estava em Deus desde o início (IV, 253). Intelecto e anseio, juntos, tornama vontade livre criadora, que age na natureza, separando forças e desenvolvendo, ao mesmo tempo, a unidade interna da natureza, assim como, de início, a separação ordenadora dos pensamentos indiiduais faz aparecer o fundamento do pensar. Aqui, em que se trata apenas da idéia dialética básica, não se de percorrer as trilhas freqüentemente confusas e difíceis da esculação de Schelling; basta constatar que - seja em função da exolicnção buscada para o universo, seja quanto à buscada para o
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mal - a unidade ou o todo valem sempre como positivos, enquanto que a dissolução do todo em seus elementos é vista como antitética, desarmônica (IV, 262), sem que uma coisa possa existir sem a outra, subsistindo a relação recíproca com o oposto : "Pois toda essência só pode ser manifesta no seu oposto, amor só no ódio, unidade na dissenção" (IV, 265). Onde Hegel teria falado em "síntese", Schelling fala em apresentar como necessário o "vínculo dos princípios". Como Fichte, para quem a síntese dos princípios que exprimem a posição do eu e a oposição do não-eu, deve ser obtida por uma decisão livre, também Schelling considera a relação entre os princípios opostos como resultado de um ato livre. Sem a "ausência de fundamento" indiferente não pode haver dualidade de princípios, pois a relação entre estes só poderia ser determinnda dentro de uma unidade fundamental, que não é nem um nem outro. Inversamente, não se deve admitir que a duplicidade dos princípios decorra necessariamente da "ausência" indiferente. Basta, todavia, convir que, nesta, nada existe que impeça a posição da dualidade (IV, 299). · A dialética da natureza de Schelling, como decorre do que fica dito, tem apenas o nome em comum com as concepções materialistas posteriores de uma "dialética da natureza". A especificidade da dialética da natureza em Schelling deve ser vista sobretudo em que esta só pode ser interpret"da dialeticamente na medida em que é muitíssim.o mais natureza do que na sua concepção pelo mecanicismo materialista. Apenas enquanto a realidade da natureza exprime um fundamento t<:nto objetivo como subjetivo é que ela pode ser concebida como contexto dialético. Somente por ser a natureza, em seu fundamento, imaterial é que se pode transpor para ela as relações dialéticas obtidas pela análise do espírito subjetivo cognoscente. Somente porque naturez~ e consciência, matéria e espírito, objeto e sujeito, no fundo, não são diferentes - eles são diferentes apenas enquanto se destacam do fundamento como manifestações - é que podem estar submetidos às mesmas formas dialéticas. Originalmente, os contextos dialéticos são relações dentro da teoria da experiência; elas podem ser aplicadas, por extrapolação, para além deste âmbito, porque,
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segundo Schelling, a realidade total está no fundamento da natureza do espírito, que se opõe em outro para se descobrir a si mesmo neste. A posição elaborada em 1809 continua, mesmo mais tarde, determinante para o pensamento de Schelling. Desta forma, o absoluto aparece, nas "Idades do Universo" como o ser vivo originário, oposto ao qual surge um segundo princípio, no qual aquela pode "autocontemplar-se, auto-representar-se e autocompreender-se". O ser originário é um uno indistinto que só pode tomar consciência de si mesmo através de um outro 10, como diz Schelling, em pleno espírito de especulação neoplatônica. Assim como ao ser originário se opõe um outro, assim também o sujeito cognoscente se duplica, no qual o ser originário, como protótipo de todas as coisas, dorme "obscuro e esquecido", de forma que surge uma relação entre um ser questionante e respondente, ciente e insciente ou aspirando a saber, uma relação que é, para Schelling, o modelo da dialética no ~entido retórico: ". . . esta arte interior de entretenimento é o segredo mesmo do filó· sofo, da qual a exterior, chamada de dialética, é apenas cópia". 11 A dialética do fundamento da realidade se <:presenta, nas "Idades do Universo", como relação entre uma vontade original, que nada quer, que não é nem sujeito nem objeto, e urna primeira vontade gerada de existir. De ambas se "compõe" a vontade-agente, a qual, contrariamente às anteriores, é algo de real. 12 Na filosofia "positiva" da revelação, na qual a experirnentabilidade do ser original ou de Deus, em sua realidade pró!,)ria, é em·inada pelas religiões ou pela história das religiões, Schelling empreendeu afinal a tentativa de demonstrar a duplicidade dialética das "potências", que se comportam como -A, +A e + A, isto é, como negatividade, possibilidade e indiferença, mesmo nas religiões positivas interpretadas como revelação divina. A estrutura dialética desenvolvida na teoria da experiência sofre, por conseguinte, independentemente de sua constância formal, diversas interpretações de conteúdo, devendo-se observar a tendência a afirmar, sempre mais fortemente, a objetividade desta estrutura. Além disso, a dialética da negatividade, positividade e indiferença predo-
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mina também na concepção de Schelling do sistema filosófico, como será mostrado a seguir: b) A dialética do contexto sistemático. Logo que Schelling .passou da filosofia do eu, no sentido da primeira Teoria da Ciência fichteana, à filosofia da natureza, a relação entre ambas tinha de tornar-se problemática para ele. Embora "eu" como "totalidade de tudo o que é puramente subjetivo" e ''natureza" como "totalidade de todo objetivo" sejam conceitos opostos e se reh:cionem como consciência e inconsciência, representante e repre:entado ou representável, o eu cognoscente e o objeto conhecido estão unificados na experiência, o consciente e o inconsciente se encontram na experiência (li, 399). Por conseguinte, é necessário ir além
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algo daquela atividade que gera, por produção inconsciente, o objeto como limite da consciência nela mesma. Schelling não se deteve na concepção de que a filosofia transe a da natureza .se completam, mas elaborou uma concepção de seu relacionamento, segundo a qual uma se desenvolve em função d:: outra. Assim ele via a filosofia da natureza caracterizada pela tendência à espiritualização de todas as leis da natureza e a filosofia transcendental pela tendência a fazer decorrer o objetivo do .subjetivo, a patureza do espírito. A partir daqui, faltava apenas um passo para o pensamento de uma síntese entre filosofia transcendental e da natureza, correspondente à concepção de que su~eito e objeto se referem a um ponto de indiferença, devendo ser concebidos,, no fundo, como idênticos. A filosofia da indiferença contém, por conseguinte, a filosofia do sujeito e a filosofia do objeto (da natureza) como partes nas quais se consideram apenas aspectos de uma mesma e única realidade. Esta concepção da relação dialética de ambas as partes da filosofia foi alcançada por Schelling em 1801, segundo seu próprio testemunho.
~endental
"Eu sempre apresentei o que chamei de filosofia da natureza e filosofia transcendental como pólos opostos do filosofar; com a apresentação atual, encontro-me no ponto de indiferença, no qual se pode instalar segura e certamente apenas aquele que construiu o precedente a partir de direções completamente opostas" (UI, 4). Cabe notar que, também aqui, a questão principal é relativa à teoria da experiência, ou seja: como se chega a pensar a razão como "indiferença total do subjetivo e do objetivo"? Schelling respondeu: "pela reflexão sobre o que se põe, na filosofia, entre o subjetivo e o objetivo e que obviamente só pode estar indiferente a &mbos" (III, 19). Abstraindo-se do pensador, a razão pode ser concebida tanto como não-subjetiva quanto como não-objetiva ( 111, 10-11 ) , certamente porque algo só pode ser chamado de objetivo por relação a algo subjetivo. · A evolução posterior do pensamento de Schelling se caracteriza pela superação também desta posição sintética. A tarefa da filosofia consiste, até o presente, em explicar o inter-relacionamento entre sujeito e objeto na experiência e no conhecimento (no saber, como Schelling diz habitualmente) e, em termos objetivos, em explicar a uni-
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dade entre espírito e natureza, isto é, em tentar compreender "a essência das ~isas". Mesmo se se admitir que a filosofia tenha cumprido esta tarefa ( como Schelling estava decerto convencido no qUe se referia à filosofia da indiferença), o conhecimento das relações essenciais em questão só pode ser expresso em forma de sentenças hipotéticas: "Se existe uma realidade do tipo pressuposto, então vale dela que . . . ". Que exista algo, pura e simplesmente, não pode ser compreendido de forma alguma, com os recursos do conhecimento concei· tual. Segundo Schelling, porém, ambas são necessárias se a filosofia deve chegar à sua plenitude: uma filosofia que compreenda a essência da realidade e que a explique enquanto tal (VI, E, 95). A primeira é a tarefa da filosofia agora chamada de "negativa", pela qual Schelling entende filosofia transcendental e da natureza, mesmo sob forma elaborada por ele; a última é tarefa da filosofia "positiva", que Schelling pensav~ poder alcançar em sua filosofia tardia, baseado nos elementos constatáveis na filosofia de até então. Com os pressupostos de Schelling, a relação entre filosofia positiva e negativa é dialética, mesmo se não no sentido da dialética de Hegel. Para Schelling, uma posição - a d~ filosofia negativa - precisa de ser completada por aquela que lhe é oposta, sem que esta venha a ser supressa. A filosofia positiva, de cujo ponto de vista se deve considerar o ente não mais segundo seu conceito, mas quanto ao s·e u ser e, por conseguinte, nem como subjetivo (ideal) nem como obietivo (real) nem mesmo como sujeito-objeto ( cf. VI, E , 79), não deve substituir a filosofia neg2tiva (VI, E , 81). Segundo Schelling, a filosofia positiva e negativa tampouco se relacionam como tese e antítese; nenhuma das duas deverá ser supressa numa síntese supra-ordenada. A filosofia negativa tamp
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VI, E , 151). Tal também não úgnifica que a filosofia positiva resulte de uma ampliação arbitrária do âmbito de filosofia: untes, na forma bem característica da concepção da dialética em Schelling, exposta acima, ela decorre de uma necessidade (Bedürfnis) de a superar (VI, E, 92), despertada por uma filosofia negativa pensada coerentemente até às últimas conseqüências, uma necessidade correspondente a uma tendência objetiva. A transição da filosofia negativa para a positiva e~tá, assim, "fundamentada" de certo modo pela filosofia negativa, não no sentido da fundamentação lógica, ffi q S porque, através da limitação da filosofia negativa, mais exatamente: através das questões deixadas necessariamente sem resposta pela filosofia negativa, é gerada a necessidade de se passar à filosofia positiva pela filosofia negativa, dado que o objeto daquela é justamente o que não pode ser conhecido do ponto de vista desta. A filosofia positiva não deve ser considerada como antítese da filosofia negativa, pois só o empirismo místico pode valer como tal, embora ele seja "positivo" - i:.to é, vinculado à realidade - com relação ao racionalismo "negativo" e, comparado ao ideal de uma ciência a priori, à qual sucede a filosofia negativa, acientífico. A filosofia positiva parece poder ser vista, destarte, como síntese de racionalismo e empirismo místico, na medida em que ela é positiva, como este último, e "científica" (orientada pelo ideal do conhecimento a priori) como o primeiro. Não se pode falar em "síntese", com relação a Schelling, da mesma maneira que quanto a Hegel. O racionalis. mo da filosofia negativa, de um lado, e o empirismo da experiência mística da realidade, de outro, contêm apenas a exigência de uma filosofia positiv~ livre da negatividade de uma e da acientificidade da outra, sem conter as posições precedentes como momentos superados. Neste ponto fica clara a diferença entre as construções dialéticas de Schelling e de Hegel. Para Schelling, a tensão entre filo~.ofia positiva e negativa não desaparece numa síntese que as supere como momentos subordinados, embora ele as veja como as duas faces da filosofia ; segundo sua posição, elas são "a filosofia composta de duas ciências diferentes, mas necessariamente ligadas" (VI E , 84). Como esta oposição não pode ser anulada pela superação na síntese, Schelling preconiza que se volte a uma posição. ainda livre desta opos:ição: a da filosofia pura e simples (VI E, 147) , a partir da qual a aparência de
108 duas filosofias diferentes rece (VI E, 151-152).
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desapa-
Com a transição para. a filosofia, o âmbito do pensamento dialético é ultrapassado, pois mesmo se toda "ciência" tem de passar pela dialética, a meta é sempre uma observação da realidade não mais dialética, pois de forma alguma discursiva, mas "histórica". Como o historiador que, no final de suas pesquisas sobre os elementos mais variados, obtém enfim uma imagem global dos tempos, também o filósofo deve "voltar à simplicidade da história". 13 Esta meta ainda não pode ser atingida: "a ciência ainda precisa ser acompanhada e levada pela dialética, como o discurso pelo ritmo". 14 A realidade do pensamento dialético prova, segundo Schelling, que a filo::.ofia, na medida em que procede dialeticamente, ainda não é "ciência~' no sentido pleno do termo, pois a dialética é uma busca do desenvolvimento do saber e, por conseguinte, estranha ao saber inteiramente desenvolvido. Desta forma, é errôneo pensar que a filosofia possa ser transformada em "ciência" pela dialética. Também Platão, homenageado por Schelling como um dos grandes pensadores dialéticos, teria, segundo ele, no ápice de sua filosofia, ido além do pensamento dialético. 15 O juízo de Schelling sobre Platão não é incondicionalmente positivo, pois ele constatou, quanto ao Timeu, ao invés de uma transição para o modo "histórico" de observação, como o próprio Schelling preconizava, apenas uma ruptura do raciocínio dialético. O fato de que o desenvolvimento da concepção sistemática leve, afinal, a transcender o âmbito do pensamento dialético, parece digno de nota, mas está plenamente de acordo com as convicções genéricas de Schelling quanto à natureza do pensamento filosófico. Na medida em que o objeto da filosofia consiste em relações conceituais, as quais devem operar-se de forma discursiva, a dialética está sem lugar como método da evolução conceitual; logo que se passa, porém, da "filosofia negativa" para a contemplação pura da realidade enquanto tal, o pensamento se torna "histórico", isto é, deixa de ser discursivo, razão pela qual não pode continuar a proceder dialeticamente. Schelling exprimiu-se, por vezes, como se entendesse a "filosofia negativa" como uma "metaciência". Segundo sua intenção, ela é a "ciência de todas as ciências" e pressupõe, enquanto tal, o conhecimento científico (no sentido objetivo) como diverso do conhecimento filosófico.
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Embora o conhecimento da ciência valha, para ele, como verdadeiro, admite-o como fora da filosofia. É justamente por isso que esta aparece como filosofia negativa ( cf. VI E, 150). Pensa-se aqui, decerto, na filosofia crítica, cujo caráter metateórico é constatado _!)Or Schelling perfeitamente bem. Está correto que a filosofia crítica não é uma ciência de objetos (ou de setores de objetos) e, falando-se apenas do "saber real" no caso de uma ciência de objetos, pode-se efetivamente dizer, com Schelling, que a filosofia negativa põe o saber real não na filosofia, mas nas ciências, das quais é metaciência. Deve-se perguntar, porém, se há um caminho que vá além deste ponto de vista negativo e ~,e a filosofia caracterizada de "positiva" por Schelling representa um progresso e não um regresso com relação à posição crítica. A decisão depende, aqui, da resposta à questão quanto à possibilidade de uma intuição intelectual, negada por Kant com a mesma determinação que Schelling usa para afirmar. Somente se se admitir uma experiência diferente da observação no sentido corrente, cujo objeto é a "realidade verdadeira", é que o empirismo metafísico da filosofia pos.itiva pode aparecer como possível. Agora é possível, com Schelling, contrapor à primeira ciência, que supõe todas as ciências setoriais, na medida em que contém as condições de possibilidade do conhecimento científico em si mesmo, uma ciência suprema, cujo objeto não é mais, como no caso da filosofia negativa, o primum cogitabile, mas o summum cogitabile (VI E, 151) . Apenas então será possível contrapor à filosofia negativa, como philosophia ascendens, que se eleva até a idéia, ·mas só até a idéia de Deus ou da realidade absoluta, uma filosofia positiva como philosophia descendens, que regrida do ser supremo até a realidade finita. A idéia do sistema filosófico se desenvolve, em Schelling, de uma forma que, - embora esta formulação não corresponda à terminologia de Schelling - pode ser chamada de dialética. O desdobramento do sistema obedece à tendência a superar toda concepção limi, tada e unilateral da filosofia, sob a orientação da idéia de um sistema abrangente do saber em si e leva, enfim, à suplantação do âmbito em ·que a dialética é aplicável. A filosofia, enquanto experiência metafísica, simplesmente se subtrai a qualquer método discursivo e, por conseguinte, também ao dialético. Schelling inverte os parâmetros da dialética, com a ajuda dos quais ele adviera à filosofia no sentido
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supremo, que transcende a oposição entre filosofia positiva e filosofia negativa. Kant havia buscado as condições de possibilidade da ciência no sentido estrito do termo e respondido a esta questão com a formulação de princípios sem os quais os juízos da experiência seriam incompreensíveis. Também Schelling partiu da questão das condições de possibilidade da experiência, mas foi logo catapultado além dos limites da filosofia transcendental no sentido kantiano, dado que ele, apoiado numa intuição intelectual aparente como "princípio" do saber, julgav<: poder e dever atingir o incondicional. Com toda razão foi dito que a filosofia transcendental no sentido de Schelling foi, desde o início e não apenas na fase tardia de sua evolur.ão intelectual, uma mística 16 voltada para a <::preensão do absoluto como origem da consciência e da natureza. Não é necessário insistir sobre a distância em que se encontra uma teoria da experiência deste tipo, com sua dialéticc:: própria, da teoria da experiência kantiana e crítica em geral.
3.
Fr. D. E. Schleiermacher.
A inclusão da dialética de Schleierrnacher - abstraindo-se da parte técnica - na presente exposição parece justificada, na medida em que ele se referia à idéia socrático-platônica da dialética como uma "arte da troca de pensamentos. . . a partir de uma diferença do pensar. . . até urna concordância" ( 17), tendo trabalhado também, como o demonstrou Fr. Kaulbach 17 , com elementos aristotélicos e escolás· ticos. Mesmo se não costuma ser incluído na tradição que vem de Kant, Fichte, Schelling e Hegel até o presente, Schleiermacher está amplamente vinculado à dialética metódica da analítica da experiência. O objetivo imediato dado por Schleiermacher à dialética consiste em pôr fim à situação de concepções divergentes, isto é, substituir opiniões hesitantes pelo saber ( 3 84 sqq.) 18 • O objetivo remoto da dialética era visto por Schleiermacher "na construção de organi~mos do saber" (19-20), razão pela qual ele a queria conceber como "Teoria da Ciência" em sentido diverso do fichteano. A dialética deve ser entendida como "ôrganon do saber, isto é, como sede de todas as formas da sua construção" (22). Em segundo lugar, ela corresponde
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a um instrumento de orientação quanto ao saber resultante· da subordinação aos princípios explícitos de todo saber ( 22). O ponto de partida da dialética é o saber quotidiano, sob cujo processo simples se deve refletir ( 24). A dialética tem por tarefa demonstrar que os acontecimentos costumeiros, sem uma consciência reguladora, são casos de aplicação de regras e princípios gerais. Não pode existir, por conseguinte, nenhuma rela~ão de disparidade entre o saber quotidiano e o saber filosófico, sob p~na de se suprimir a unidade da consciência, que é condição de todo saber (27) . A divergência entre as representações, entendida por Schleiermncher, em primeira linha, como divergência de representa\'Ões em vários indivíduos. Dado ela se revelar como tal na língua, o meio para superá-la é o diálogo. Supõe-se aqui que os interlocutores do diálogo não somente aceitam certas regras gerais, mas que possuem igualmente um saber original comum ( 18). Mas ~ relação entre vários indivíduos não é mediatizada pela língua só no caso de divergência; o caso da divergência do pensamento isolado consigo mesmo também se dá por meio da língua ( 492), pois: "O falar é o existir do pensa· mento" ( 492). O saber é um modo de pensar e pensar é "a atividade do espírito que se efetua n1 identidade com o discurso e que se refere a uma lei exterior à Pl"Ópria atividade" ( 384). O saber é o pensamento que se c~racteriza pela "concordância . . . com o ser" ( 484) . Serundo Schleiermacher, o aspecto da validez objetiva está relacionado com o de universalidade intersnbjetiva, isto é, o saber deve ser determinado, ao mesmo tempo, como concordância entre os interlocutores, a qual supera o estado de divergência .. Ambos os aspectos ~ão levados em consideração na seguinte definição: "É saber aquele pensamento que (a) é representado com a necessidade de ser produzido da mesma maneira por todos os seres capazes de pensar e que ( b) é repreJentado como correspondente ao ser que é pensado nele" ( 43 ). Schleiermacher perguntava pela possibilidade de se inter-relacionar os dois aspectos do saber, aparentemente dissociados. A respo~ta resulta, para ele, com base numa análise do saber que leva à intuição de que a concordância intersubietiva, a qual termina com a divergência, pressupõe uma identidade, diferente do pensar, isto é, o ser. A este o pensar corresponde enquanto saber ( cf. 485-486, nota ).
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Inversamente, um pensamento, embora referido ao ser, mas não posto como intersubjetivamente universal, não se torna saber, mas fantasia ou similar (50). Para caracterizar um pensamento como saber é necessário não apenas "correspondência entre ser e pensar intersubjetivamente necessária, mas também a consciência desta correspondência (50, nota). As características expostas só constituem o saber, porém, conjuntamente, mesmo se subsiste entre elas uma hierarquia lógica: a identidade entre ser e pensar vale, para Schleiermacher, como determinação básica do saber e a universalidade intersubjetiva romo conseqüente. A objeção de que a correspondência entre pensar e ser é impossível, por causa da incomensurabilidade de ambas, deve-se replicar que esta correspondência nos é dada na.-autoconsciência, dado que nós, imposta a multiplicidade dos indivíduos, somos ambos: pensar e pensado (53). A diferença entre pensar e ser é dada também na autoconsciência (53-54). A tarefa primordial exigida da dialética consiste, para Schleiermacher, em tornar concebível a pos~;ibilidade de um saber caracterizado desta forma, isto é, "clarificar . . . a própria razão da explicação (isto é, aqui: descrição) formulada para o saber, e que o pensar é idêntico aô ser" ( 486, nota). Esta tarefa, assim delimitada, é transcendentalfilosófica: partindo da determinação do saber como uma relação de correspondência entre pensar e ~er, deve-se recorrer a pressupostos sobre o fundamento desta relação. Esta taref:: ficaria resolvida com a fundamentação do saber em geral: "A plenitude do mber consistiria, propriamente, que ficasse claro para todos que todo saber é não só resultado, mas também fundamento" ( 4 7). Schleiermacher entende por saber, com relação ao qual é formulada a tarefa transcendental, não um saber puro e simples, para o qual toda individualidade seria causal, mas o saber como fato em nós, enquanto su 1eitos individuais". Isto não quer dizer que ele negasse os elementos universais do saber, mas apenas que, segundo sua concepção, em todo o snber real o universal e o individual estão reunidos, tanto como cada homem exprime o ser humano universal e é, ao mesmo tempo, algo de específico ( 71, nota). Mais concretamente, Schleiermacher formula assim a tarefa: "Se o saber é um pensar correspondente ao ser, e como o ser só é fora do
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pensar, põe-se a questão: Como passa o pensar ao pensado (nota à margem: igualmente ao interior, à percepção interna e à autoconsciência) e como ficam um exterior ao outro? (387). A resposta é: "Pela abertura da vida espiritual para o exterior = organização, o pensar chega ao objeto ou à sua matéria, por uma atividade sempre igual, malgrado toda a diversidade do objeto = razão, o pensar chega à sua forma, graças à qual ele permanece sendo pensar" ( 387). Isto vale, segundo Schleiermacher, em geraí, não apenas para a percepção: dado que todo pensar real tem de possuir um conteúdo, e não pode ser mera forma de pensar. Não é difícil reconhecer aqui a concepção kantiana da relação entre a sensibilidade e o entendimento na experiência. Como Kant, Schleiermacher também está convencido de que o saber deve ser explicado pelo "relacionamento mútuo dos lados orgânico e intelectual" ( 460), isto é, pela ordenação racional do caos da afecção orgânica ( cf. 51-52). Como em Kant, a relação dos momentos da experiência para com a unidade da experiência é virtualmente dialética, como pode ser visto, por exemplo, através das seguintes formulações de Schleiermacher. "O saber, e aqui primeiramente o real, é pois aquele pensar que é posto não com a diferença, mas na e pela identidade das duas fun-
ções e logo relacionado ao que é posto fora dele, como ser" (53) . A propósito desta relação dialética, Schleiermacher fala da "duplicidade do primado oposto" dos dois momentos ( 454) e refere ambos ao ser ideal e real, mais exatamente: aos modos ideal e real do ser como condição da realidade do saber (77). Quando Schleiermacher caracteriza a dedução do saber ao ser como "transcendental", fica claro que este termo é empregado num outro sentido do de Kant, que jamais concebeu o ser como condição de possibilidade da experiência. Além da posição da unidade do ser, Schleiermacher considera a posição da multiplicidade absoluta do fenômeno como raiz transcendental de todo saber ( 92). Abstraindo-se do orgânico, Deus é pensado como representante do fundamento último da nossa ação intelectual e, abstraindo-se da intelectualidade, a mntéria é pensada como representante do fundamento último das nossas afecções orgânicas ( 120-121 ) . Fica assim indicada, sumariamente, a direção que toma a linha do pensamento transcendental-dialético de Schleiermacher: da questão relativa às condições de possibilidade do saber ele passa diretamente à metafísica especulativa.
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Schleiermacher via a relação entre razão e impressões r\ensoriais caracterizada por uma oposição nunca perfeitamente superável. A unidade do especulativo e do empírico só seria possível no saber puro do todo; um tal saber, porém, é-nos inatingível, embora necessário a uma idéia a ser posta (13 2, cf. 69). "Ao invés de uma penetração do espe· culativo e do empírico, só nos é pos.sível um rel«cionamento paralelo de um ao outro, ou seja, uma crítica científica ( 144) - não no sentido de uma crítica da razão pura, mas de uma "crítica de sua autorepresentação no saber real" ( 144) . Obviamente, « oposição à concepção kantiana da relação entre entendimento e sensibilidade repousa sobre a concepção da razão por Schleiermacher como sede da síntese do pensamento reprodutivo e representativo, essencialmente diversa da de Kant. Schleiermacher vai, já de princípio, além de Kant, na medida em que vê a ordem intelectual do material da ~ensibilidade estabelecida não por um sujeito transcendental, mas pelo indivíduo ligado a outros pela língua, e ao chamar a atenção para o momento de agir na gênese do saber ( cf. 9). Schleiermacher não se contenta, por conseguinte, com a análise da relação entre o sujeito isolado e o objeto deste, mas estende a tarefa à análise da relação entre sujeitos cognoscentes, ao "pen·· sar posto comunitariamente" ( 460), que ele caracteriza tanto como passivo quanto ativo, sintetizável como analisável e, neste sentido, como pensamento "vivo" ( 460). A existência de outros indivíduos, que se tornou problema para Fichte. por exemplo, está dada, pard Schleiermacher, com o fato da comunicação lingüística. "Nós nos referimos ... ao que subjaz ao pressuposto do falar, que existam seres humanos além do indivíduo" ( 489-490). A convicção, de que o pensamento dialético se produz necessariamente por meio da língua, levou Schleiermacher à noção de que a dialética seja permanentemente relativa a um círculo lingüístico ( 577). É dentro deste quadro que se devem ver as tentativas de Schleier-
macher para descobrir a solução da tarefa transcedental, isto é, reduzir ao seu fundamento a unidade dialética dos momentos 09ostos do !)ensar e do ser na relação do conhecimento, da "identidade do ideal e do real na oposição" ( 461 ) . A unidade de ~,er e pensar está imediatamente dada na autoconsciência. "Nós somos pensando e pensamos sendo" ( 488, nota). Ela não pode, de forma alguma, estar dada como unidade
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do real e do ideal, possuindo, oorém, o caráter de uma "construção" indemonstrável: "6 pressupostÔ básico da interdependência dos dois pólos e da relação de algo, em um, a algo, no outro, não é suscetível de prova" ( 457), como declara Schleiermacher. Se se trata, no entanto, de uma hipótese, Schleiermacher mantém sua posição, sobretudo com relação a que é necessária para explicar a possibilidade do saber: "Quem quiser constatá-Ia terá de abandonar o pensar, pois ele parte dela em todo pensar. Ela é ... a interdependênciá do mundo e. da atividade de pensar do espírito humano" ( 457). Neste sentido, a idéia do mundo tem de ser con~iderada, segundo Schleiermacher, também como hipótese: "Totalidade do finito não só como unidade, mas também como multiplicidade, nem dada pela função orgânica, nem construída pela função intelectual" ( 162, nota). Neste ponto aparece com clareza o caráter analítico do modo de proceder de Schleiermacher: a teoria do saber se baseia em premissas formub_das com relação à meta explicativa. Schleiermacher não tinha, de modo algum, clareza sobre o caráter hipotético da teoria do saber; pelo contrário, ao manter o ideal do saber perfeito (da episteme platônica), desvaloriza, em função deste, não ró o método da explicação de fatos por recurso a hipóteses, mas também o conhecimento contingente, incompletamente fundamentado ( orthé do xá). Schleiermacher não descreveu explicitamente seu método de construção de uma teoria do saber, razão por que este só pode ser reconstituído a partir de seus procedimentos efetivos. Chamou-se a atenção, acima, sobre o fato de que E·e trata, aqui, de um método de fundamentação transcendental-filosófico e analítico, que introduz as "condições de possibilidade" dos fatos a serem explicados sob forma de hipóteses, interpretando-as, no sentido do realismo conceituaL que Schleiermacher adota explicitamente, como sentenças sobre a essência da realidade, como ocorre em todos os representantes da dialética moderna. Também o caráter dinâmico, que os teóricos da dialética costumam afirmar, é levado em consideração por Schleiermacher, ao conceber a realidade, perfeitamente no sentido de Platão, tanto como estática quanto como ativa. Schleiermacher está próximo de Hegel pelo modo de operar com os momentos isolados de um contexto, relativizando-os, afinal, em benefício deste mesmo contexto. Este proce-
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der não é, de forma alguma, exclusivamente próprio a Schleiermacher, mas corresponde bastante exatamente à maneira pela qual caracterizam o método dialético seus partidários mais significativos. Isto deverá sei mostrado na análise das concepções do método dialético de Hegel, de Marx e de outros. Notas - Capítulo III
I.
Cf. W. Rõd: Die Idec. der transzendentalphi 1osophischen GrundlegrmR i11 der Metaphysik des 17 F. und 18. J ahrhunderts. In: Phil. J ahrbuch 79 /I (1972), pp. 57-76, especialmente pp. 71-75.
2.
Cf. li, 9-1 O: A Teoria da Ciência como "saber do saber" se refere à "forma do saber de todos os objetos possíveis". As citacões indicam o volum~ e as páginas de J. G. Fichte: Obras (ed. I. H. Fichte). Berlim. 1971 (reimpressão das Obras Completas. 1845-46 e das Obras Póstumas, 1834-35). Além dos capítulos sobre Fichte em N. Hartmann : A Filosoüa do Idealismo Alemão. Berlim, 2~ ed., 1960, e em R. Kroner: Von Kant bis Hegel. Tübingen, 21!- ed. 1961, veja-se M. Guéroult: L'évolution et la structure de la doctrine de la Science, Paris, 1930; D. Henrich: Fichtes ursprüngliche Einsicht. Frankfurt/Meno 1967 (Wissenschaft und Gegenwart 34) . H. Radermacher: Fichtes Begriff des Absoluten. Frankfurt/ Meno, 1970 (Philos. Abh., 34).
3.
Cartas de Fichte (Ed. Schulz), I, p. 478.
4.
Quando H. Radermacher ( op. cit., p. 34), afirma: "O terceiro princípio . . . tem exatamente o sentido que deve ser evitado, ao caracterizar o processo dialético como método", deve estar-se baseando sobre uma outra significação da "dialética', diferente da utilizada na presente investigação.
5. Cf. P. Salvucci.
Dialettica e immaginazione in Fichte. Urbino, 1963.
6.
As referências são das obras de Schelling ( ed. M. S::hroter) . Munique, 1958-62. Os volumes do suplemento são indicados pela letra "E". Como introdução à filosofia de Schelling, veja-se K. J aspers: Scheliing. Gréisse und Verhangnis. Munique, 1955. Os "conceitos forjados ror uma dialética vazia e sem entusiasmo" são rejeitados por Schelling nas Idades d:J Mundo (ed. M. Schroter), Munique, 1946, p. 6.
7.
No sentido deste ideal da ciência, Schelling pensava "que. . . uma única ciência deva proceder de todas as diferentes ciên<::ias" (I, 82).
8.
Cf. Chr. Wild : Reflexion und Erfahrung. Friburgo e Munique ,1968, p. 145.
9.
As Idades do Mundo, p.
4
Filosofia Dialética Moderna 10.
id.
' pp. 4-5
11.
id.
' p. 5; cf. 115
12.
id.
' p. 22
13.
id.
'p.
9
14.
id.
'p.
9
15.
id.
'p.
8
16.
17.
117
R. Halblützel: DÍalektik und EinbildungsKrajt. Schellings Lehre von der menschlichen Erkenntnis. Basiléia, 1954, p. 34. Sobre a filosofia tardia de Schelling, cf. W. Schulz: Die V ollendung des deutschen I dealismus in der Spéitphi!osophie Schellings. Stuttgart, 1955.
Fr. Kaulbach: Schleiermachers Idee der Dialektik, In: Neue Zeitschr.
f. system. Théologie und Religionsphilos. X ( 1968), pp. 225-260. 18.
As referência são das Obras Completas de Schleiermacher, S~cção III, vol. 4, parte 2 ( = Dialektik, ed. L. Jonas), Berlim, 1839. Sobre a evolução da concepção de dialética em Schleiermacher, aparente nos diferentes projetos e textos de aulas cf. G. Wehrung: Die Dialektik Schleiermachers. Tübingen, 1920.
CAPíTULO IV
OS FUNDAMENTOS DA DIALÉTICA HEGELIANA. Para um conhecedor da matéria, não resta dúvida o_ue a possibilidade de uma exposição abrangente da dialética de Hegel em pouco espaço está totalmente excluída. O presente capítulo deve ter, por conseguinte, um escopo restrito, ou seja, o de examinar as idéias básicas da dialética hegeliana. Como se continuará a utilizar os pontos de vista adotados até aqui também quarito a Hegel, devendo, pois, estar no centro da reflexão a relação entre a dialética hegeliana e a teoria racionalista da experiência, não se pode fazer outra coisa do que renunciar à análise de certos aspectos da lógica de Hegel. É somente a este preço que a tentativa de elaborar a idéia-mestra do presente trabalho t2mbém quanto a Hegel poderá ter sucesso. A raiz teórico-experimental da dialética hegeliana não é única; por isso buscar-se-á primeiramente ao menos alinhar uma ~érie de outras raízes, das quais a filosofia de Hegel, e especificamente sua dialética, mesmo se de forma diversa, tomaram sua força, embora sem poder fornecer mais do que uma visão esquemática e sem dúvida também incompleta. Pois a filosofia dialética de Hegel não surgiu de algumas poucas raízes, mas de um conjunto de raízes muitíssimo ramificado e entrelaçado de tradições filosóficas, a cujas idéias Hegel se sentia vinculado com rara intimidade. A dialética hegeliana se mostra - do ponto de vista metodológico - como continuação da filosofia analítica moderna da experiência, cujos pioneiros maiores foram Descartes e Hobbes e cujo ápice foi alcançado na filosofia transcendental de Kant, a qual se torna ponto de referência essencial para a metafísica pós-kantiana e, por conseguinte, também da hegeliana. Ficou exposto, acima, que a filosofia trans-
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cendental kantiana, tanto como a filosofia racionalista pré-kantiana,. era essencialmente uma ciência da experiência. No sentido desta tradição, Hegel via também a idéia de uma "ciência da experiência da cons~ ciência" ao projetar sua primeira grande obra, a Fenomenologia do Espírito. A inter-relação entre Hegel e a tradição da fundamentação analítico-experimental da filosofia moderna pode ser reconhecida com toda clareza quanto ao método. Hegel não elaborou absolutamente nenhum método novo, mas levou adiante o método analítico da explicação científica tal como fora utilizado pela metafísica racionalista precedente. Sua obra demonstra, a cada passo,que ela dominava o método analítico da explicação científica, mêsmo sê o entendia de uma forma menos satisfatória para o leitor de hoje. Na exposição que se seguirá, ficará claro que o método analítico da explicação, elaborado como dialético, deve ser pressuposto para aquela "ciência da experiência da consciência", que é considerado, daqui para a frente, como o núcleo não só da Fenomenologia do Espírito, mas de toda a metafísica hegeliana, sem que se vincule a isso uma tese histórica quanto à gênese da "Fenomenologia"1. A posição sistemática central da "ciência da experiência", pretendida tanto na filosofia primeira racionalista,como na hegeliana, poderia, não obstante, valer como indício para a aceitação de uma prioridade genética da mesma. Se Ee tenta reconstruir a dialética hegeliana no sentido indicado, deve-se contar desde o início com a acusação de unilateralidade. A uma crítica deste tipo poder·se-ía retrucar que, em primeiro lugar, a unilateralidade de interpretação é intencional e que, em segundo lugar, ela é baseada na própria realidade, na medida em que deve valer como parte destacada da filosofia de Hegel, se não como essencial. Deve-se esperar críticas também à tentativa de transpor a terminologia hegeliana para termos mais correntes hoje. Tal não é sem problemas, mas o risco decorrente de uma tentativa deste tipo é ineludível, caso se queira evitar uma rendição, pela terminologia de Hegel, às premissas postas por ela. Ao mesmo tempo, lembre-se em benefício da reconstrução intentada, que ela r.bre uma possibilidade de um terceiro caminho entre a aceitação e a negação de Hegel, o da análise crítica, livre de posições pré-concebidas. Sem dúvida, quem escolher ~ste caminho terá de contar com os anátemas dos dogmáticos de um como do outro lado. Desta
ÚNlVERSIDADE FEDERAL 00 PARA 6U3LJOTECA CENTRAL
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forma, a intergretação proposta pode parecer errônea a alguns, porque ela levaria demasiado a sério uma filosofia aparentemente sem sentido; a outros, no entanto, porque sua posição questiona criticamente uma filosofia aparentemente im.uperável. Mesmo se a interpretação que se tenta a seguir, todavia, venha a ser uma tolice para os positivistas e uma irritação para os hegelianos, tal não lhe é próprio, mas decorreria, antes, do modo de seus críticos verem as coisas. De qualquer maneira; dever-se-á levar em consideração que a presente interpretação, como qualquer outra, possui o caráter de uma proposição, que pretende ser aceita apenas enquanto aquilo que ela ajuda a entender não puder ser interpretado de forma ainda mais convincente. 1.
Raízes da dialética hegeliana na tradição filosófica.
Como a filosofia de Hegel em seu conjunto, o método dialético, que está à sua base proveio também de diferentes raízes, dentre as quais pode-se considerar como mais importantes as que seguem: ( 1 ) Os elementos dialéticos em Kant e em Fichte. A "antitética" da razão pura de Kant pareceu a Hegel possuir algo de justificado em seu princípio, embora insatisfatória no desenvolvimento. Se a aparência dialética da natureza deve ser "naturd", ineludível, Hegel considera inconseqüente recusar à natureza a capacidade de superar as antíteses que surjam necessariamente. Além disso, Kant restringia a antitétiCJ. a um setor limitado. Embora Fichte tenha transposto o procedimento antitético para a teoria da experiência em geral, Hegel tinha de considerar in~.atisfc;tório que a síntese da tríade dialética fundamental tenha sido introduzida no Fundamento da Teoria Geral da Ciência como "reivindicação de poder da razão'', conservando assim um resquício de arbítrio subjetivo, ao invés de surgir como conseqüência objetiva e conceitual. (2) A raiz platônica: o Parmênides de Platão, considerado por Hegel corpo a maior obra de arte da antiga dialética (li, 64-65) 2, deveria ter demonstrado que nenhuma idéia pode ser pensac a por si mesma, mas que cada idéia deve ser pensada em conjunto com outras e no conjunto delas, de modo que a verdade é "o todo". A idéia do bem, como "sol das idéias" é condição de inteligibilidade das entidades em geral; na medida em que é o ser, esta idéia do ser domina também ainda o racionalismo moderno, que depende visceralmente da meta-
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física platônica do conhecimento. Assim a idéia do ser ( l' être ou c e qui est) era, para Descartes, anterior às idéias das coisas determinadas, as quais são formadas por limitação da idéia do ser (Descartes diz mais: do ser perfeito). A mesma suposição, platônica no fundo, está à base da fórmula de Spinoza, assumida por Hegel: omnis determinatio est negatio. Ademais, Platão influiu sobre a dialética de Hegel também através do estilo do pensamento dos diálogos, do estilo socrático de conversação. Enfim, deve-se reconhecer a significação da dialética platônica da identidade e da diversidade, tal como foi elaborada no Sofista, para o pensamento de Hegel. 3 ( 3) Os paradoxos do infinito (notadamente do contínuo): já os e1eatas se haviam confrontado com estes paradoxos, mais tarde Aristóteles. Eles aparecem na Idade Moderna, sobretudc no quadro de fundamentação da matemática do infinito, em Cavalieri, que elaborou o método dos "indivisíveis", e principalmente também em Leibniz, o primeiro a obter clareza metodológica quanto aos pressupostos do cálculo infinitesimal. Enquanto o infinito foi compreendido exclusivamente no sentido do infinito enumerável, toda tentativa de construir uma teoria não-contraditória do contínuo esteve voltada. ao fracasso. (As L!ntinomias da teoria dos conjuntos. mostram que a introdução do infinito inenumerável, por Cantor, não bastava sem mais para fundamentar uma teoria do contínuo livre de contradições) . Dadas as condições no início do século 19, Hegel tinha razão em fazer a suposição de que a mudança contínua, o devir contínuo não podia ser expresso sem contradições por meio do pensamento conceitual. Ele tirava, pois, a conseqüência de que a realidade que se transforma seja CGntraditória em si mesma, pelo que não poderia ser pensada adequadamente, se o pensar está submetido ao princípio de não-contradição. Daí a argumentação seguinte: como é incontestável que ocorram mudanças, e como, segundo Hegel, uma teoria de mudança não pode ser construída com os meios da lógica tradicional, baseada no princípio de não contradição, faz-se necessária uma nova lógica, não mais repousando sobre o princípio de não-contradição. Com os pressupostos de Hegel, esta conseqüência é plausível, por ele, como ficou dito, não ver possibilidade alguma de exprimir concei· tualmente o contínuo. Sua exigência de dissociar a lógica do princípio de não-contradição não deixa, porém, entrever como a nova lógica
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deveri~
relacionar-se com a tradicional formal, dado que a primeira não poderia estar para esta como uma lógica de outro tipo, nem ser entendida como generalização des.ta última. Embora pareça atraente considerar a relação da lógica dialética para com a tradicional como o tipo de relação entre as geometrias euclidiana e não-euclidiana - · o axioma das paralelas de Euclides teria seu correspondente, nesta comparação, no postulado da bivalência na lógica tradicional - deve-se partir da afirmação de que Hegel não buscava uma generalização de uma lógica formal bivalente, mas pensava poder fundar uma lógica de tipo novo. ( 4) Uma outra raiz do método dialético reside na expenencia histórica que parece demonstrar que o conflito entre posições opostas não se resolve pela vitória de uma ou de outra parte, mas é "superado", freqüentemente, por uma terceira posição, mediadora. Desta forma, por exemplo, no 5. 0 século a.C., a concepção de que a mudança e o devir sejam aparências e a realidade, porém, imutável (defendida pelos eleatas) e a concepção de Heráclito, de que, inversamente, a realidade é ~.empre móvel e o repouso apenas aparente, se contrapunham como contrárias (não, porém, como contraditórias ) . As concepções cosmológicas de Empédocles, Anaxágoras, dos atomistas e, enfim, de Platão, apresentam síntests mediadoras. Estas sínteses são possíveis e necessárias sob o pressuposto da não-contradição, pois a oposição contrária (diferentemente da contraditória) não exclui um termo médio entre os extremos: é possível, divergindo das concepções dos eleatas e dos heracliteus, que algo seja imóvel e ahro móvel. Efetivamente, as filosofias intermédias citadas seguem esta linha: os atomistas, por exemplo, admitiam que os átomos possuiriam a imobilidade que os eleatas tinham atribuído à realidade, mas que a combinação destes átomos se modifica constantemente, razão por ·que os heracliteus teriam razão. em certo sentido, com a tese da realidade do devir. Hegel descreveu o aparecimento de tais posições intermediárias (e a história da filosofia ou a história cultural em geral fornece uma grande quantidade de exemplos) recorrendo ao esquema dialético de tese, antítese e síntese, atenuando esta a autonomia das posicões antitéticas, mas devendo conservar seus conteúdos positivos. Se ele houvesse, todavia, pensado poder obter este esquema por generalização a partir dos desenvolvimentos históricos, teria encontrado rapidamente casos
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em que seu esquema não era mais aplicável. De fato, porém, ele não supôs de forma alguma que a lei da evolução dialética da história (especificamente da história do pensamento filosófico) tivesse sido obtida por generalização empírica; ele considerava as relações dialéticas como relações do conceito em si mesmo e via na evolução his· tórica apenas um desdobramento, no tempo, da regularidade dialética. Não se deve excluir, no entanto, que as observações históricas também fomentaram suas convicções de ordem sistemática, mesmo sem ter servido para a fundamentação da dialética na filosofia elaborada por Hegel. ( 5) Possivelmente, certas idéias neoplatônicas e gnósticas sobre a origem do universo a partir de um fundamento primitivo e seu retorno a este. também terão desempenhado um papel na constituição do método dialético de Hegel4 • O papel de uma tal idéia deve ser restrito, no entanto, à relação entre a lógica (que representa as idéias, por assim dizer, tais como existiram na mente de Deus antes da criação), à filosofia da natureza (que tem por objeto as idéias após sua "saída" de Deus) e à filosofia do espírito (cujo conteúdo é a idéia que retoma a si e. enfim a Deus). ( 6) Além disso, foram consid~radas as relações entre a dialética de Hegel e o pensamento de Herder. O modo orgânico de pensar de Herder foi caracterizado, em seu projeto, como dialético, sendo feitas referências a pas<;agens como a seguinte5 : " A fantasia e a razão são npenas determinações de urna única força, em que as oposições se superam mutuamente" 6 • Ou fez-se alusão à influência exercida sobre Hegel por Schiller, sobretudo pela sua "Educação estética do homem"7 • G. Lukács busca a origem da dialética hegeliana não em quaisquer dependências de outros representantes do pensamento dinlético, mas primeiramente na polêmica do jovem Hegel com a sociedade burguesa. Na época de Frankfurt, segundo a opinião de Lukács, Hegel perguntava "como o indivíduo se deve comportar com relação à sociedade burguesa, como os postulados e humunísticos do desenvolvimento da personalidade podem entrar em contradição com a natureza e a legalidade da sociedade burguesa, como ambas as coisas podem enfim ser conciliadas" 8 • É nesta fase da evolução do pensamento de Hegel que se encontra, pela primeira vez, a expressão "superar". A conciliação
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buscada por Hegel ainda é entendida aqui, como demonstra Lukács, de forma subjetivista; mesmo porém se o conceito ''vida'', central para as reflexões sistemáticas de Hegel então, ainda é concebido de maneira inteiramente mística, sendo vista a religião como a realização máxima da "vida", Lukács considera que, a partir das estruturas de pensamento elaboradas aqui, desenvolver-se-á mais tarde a idéia de dialética no sentido objetivo.9 (7) Elementos do pensamento dialético já se encontram nos escritos teológicos de juventude de Hegel (citados, no que segue, segundo G. W. F. Hegel: Theologische Jugendschriften , edit. por H. Nohl. Tübingen, 1907; Reimpressão Frankfurt/ Meno, 1966 ), especificamente no contexto do problema da relação homem-Deus, finito-infinito. Hegel recusava conceber o bem agente no homem como divino, na medida em que o humano e o divino são pensados como contrapostos; tampouco basta pensar o finito e o infinito como reunidos em um indivíduo, Jesus, na medida em que a ol)osição entre finito e infi· nito se mantém por princípio; é, antes, necessário conceber a relação entre finito e infinito ou, como diz o jovem teólogo Hegel, entre o homem ou o mundo em geral e Deus, como contex to vivo. Esta unidade viva foi, segundo Hegel, a pens~da por Jesus quando se considerava como "filho de Deus". Com esta formulação, ele queria exprimir que sua relação com Deus não seria pensada por conceitos abstratos, "mas como relação viva entre vivos, a própria vida; apenas modificações da mesma vida, não oposição da essência, não uma maioria de substantividades absolutas; filho de Deus, pois, o mesmo ser que é o pai, mas específico para cada ato da reflexão, mesmo para um único" (Theol. Jugendschr., 308). A unidade do humano e do divino, que está no centro da doutrina cristã, segundo a concepção de Hegel, é o absolutamente verdadeiro, - aquele verdadeiro que será chamado, na Fenomenologia do Espírito, de totalidade. ( Cf. li, 24) . É evidente que aparecem, aqui, elementos essenciais do pensa-
mento dialético. A unidade a que aqui se alude não deve ser o resultado de um resumo, pelo sujeito pensante, de partes, originariamente independentes, mas uma totalidade viva, cujos momentos interdependentes seriam o finito e o infinito. Uma tal unidade é - com as palavras do fragmento de 1800 do System, redigido por Hegel aos 30 anos de idade - "relação da relação e da não-relação", "relação da
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síntese e da antítese" (Theol. Jugendschr., 348) ou "identidade da identidade e da não-identidade", como Hegel diz no e~crito de 1800 sobre a "Diferença en.tre os Sistemas da Filosofia de Fichte e de Schelling" (I, 124). Estas formulações são, tomadas ao pé da letra, naturalmente contrasensos. Elas evidenciam a tentativa de exprimir a concepção de que o pensamento de uma totalidade absoluta só é possível se o sujeito pensante se conceber como pertencente a esta totalidade absoluta. Pois, como absoluta, a totalidade tem de abranger tudo e, por conseguinte, deve abranger também o sujeito. Ao mesmo tempo, porém, a totalidade absoluta deve ser igualmente objeto do pensar e diferente do pensante. A captação da unidade do pensante e da totalidade absoluta pensada é a tarefa atribuída ao pensar dialético. Para o entendimento só é pensável ou a identidade ou a não-identidade. Se, no entanto, a unidade de ambas deva ser pensada, tal não pode ser considerado como fruto do entendimento, mas deve ser relacionado a uma faculdade cognitiva diversa do entendimento, que Hegel chamou, na seqüela de uma tradição multissecular, de razão, distinpuindo-a do "entendimento" (correspondente à distinção entre intellectus e ratio ). No que se refere à gênese da filosofia hegeliana, deve-se lembrar que o pensamento do caráter dialético da unidade do finito e do infinito surgiu, inicialmente, como pensamento religioso da unidade do homem e de Deus e foi interpretado por Hegel como central na doutrina de Jesus. Nos escritos teológicos da juventude de Hegel, porém, já é visível, também, a dimensão histórica do pensamento dialético. A doutrina de Jesus é, em primeiro lugar, apenas um pensamento genérico, que embora ·~negue" as relações presentes, não está ainda realizado historica.mente e, por conseguinte, tampouco plenamente determinado em seu conteúdo. A realização e a determinação do conteúdo da doutrina cristã ocorrem apenas na comunidade cristã. Embora a realização perfeita da doutrina de Jesus como reino de Deus só pode valer como fim último da história, o reino de Deus já se tornou real, em certo sentido, com Jesus: o fim da história foi antecipado em Jesus. O geral está no início, mas necessita determinação, sendo determinado pela sua vivência, primeiro por Jesus, e em seguida pela comunidade cristã. A evolução é, pois, um movimento do meramente geral (como pensamento) para a atualização do geral. Fica assim explici-
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tado um pensamento fundamental da filosofia hegeliana da história, que está à base da dialética de evolução histórica, não exposta aqui.
2.
A crítica de Hegel à teoria tradicional do conhecimento
Antes de esboçar a teoria da experiência de Hegel em suas linhas gerais, é aconselhável abordar as razões que levaram Hegel a rejeitar a teoria tradicional do conhecimento. Neste particular, sua crítica se voltava principalmente contra a posição kantiana; ficará claro, ·todavia, que ele não soube apreciá-la devidamente. Deve-se constatar, ao mesmo tempo, que Hegel atingiu efetivamente uma fraqueza de princípio da metafísica antiga do conhecimento, ao chamar a atencão sobre a dependência desta com relação a determinadas premissas não discutidas e forçosamente indemonstradas. Trata-se, naturalmente, de uma outra questão, se o próprio Hegel soube explicitar todas as premissas de sua teoria da experiência ou se ele se teria apoiado igualmente sobre certas pressuposições de tipo metafísico, introduzidas explicitamente, que de form:-t alguma podem ser consideradas como certas sem prova. A teoria tradicional do conhecimento, de Descartes a Kant. e Fichte admitia,como evidente,oue o obieto imediato da experiência seja o conteúdo da representação. ~Das duas possibilidades aventadas pela filosofia medieval, de que a representação possua o caráter de um signum quo (cognoscitur) ou de um signum quod (cognoscitur), a filosofia moderna levou em consideração apenas a serunda, como se pode ver na afirmação de Descartes, de que a assim chamada realidade objetiva nos é presente apenas mediatamente; ou na tese de Kant, de que os objetos são apenas fenômenos, o que significa, para ele: re· presentações - com as palavras de Schopenhauer: "O universo é representação minha". A suposição do conteúdo representativo, aos quais o ato de representar se refere intencionalmente, não pode ser debatida aqui. 10 No presente contexto, basta chamar a atenção para a concepção do conhecimento por ela condicionada: "conhecer" significa, para a teoria tradicional do conhecimento, por causa da suposição referida sobre o objeto imediato da experiência, "representação correta de uma coisa independente do pensar". A "representação correta de uma coisa" ocorre, segundo esta concepção, quando os elementos essenciais de
128 representação são claramente correspondentes aos elementos da essência da coisa representada. À suposição do caráter representativo do objeto imediato da experiência corresponde, aqui, a suposição de coisas independentes do pensar. Amb<}s suposições são necessárias, a fim de se poder determinar o "conhecer" no sentido citado de representação correta. Hegel viu isto claramente, aludindo a que, segundo a teoria tradicional do conhecimento, a relação cognoscitiva é interpretada como relação mediadora entre a própria realidade (o "absoluto") e o sujeito cognoscente, sendo o "conhecer" (entendido por Hegel, decerto, no sentido da representação da realidade pela imaginação) compreendido em sentido logo instrumental, logo mediai (II, 69). Com esta caracterização da teoria tradicional do conhecimento, Hegel não só tinha razão, mas distinguiu com completo acerto as conseqüências decorrentes das suposições referidas. Efetivamente, quando "conhecer" é caracterizado como "representação correta de uma coisa pela imaginação" e a imaginação representativa como instrumento ou meio do conhecer, surge a questão quanto à maneira de funcionamento deste instrumento aparente ou quanto ao grau de refração do meio (em sentido metafísico). Enquanto esta questão não tiver sido resolvida satisfatoriamente, nenhuma representação de uma coisa pode ser declarada correta, isto é, conhecimento no sentido pressuposto. A exigência de examinar a natureza do instrumento ou meio de conhecer. :::ntes de se obter conhecimento por intermédio dele, não pode ser, no entanto, por princípio, satisfeita, pois, para tal, seria necessário (!Ue a realidade ,!)Udesse ser apreendida sem influência do processo cognitivo. Tal é, porém, impossível, pois: (a) se o conhecimento for entendido em sentido instrumental, isto é, aceitando-se que o objeto do conhecimento é primeiramente informado pela função cognitiva, então a própria realidade só poderia ser apreendida sob a condicão de se abstrair desta informação. Neste ca:;o sobraria apenas a realidade não informada pelo conhecimento (o "absoluto"), a qual, por causa da concepção instrumentalista do conhecer, não pode ser conhecida, dado que, segundo ele, "conhecer" significa, por definição, "apreender por força da informação".
UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARl Bli:3LIOTECA CENl'i
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Mesmo no caso da interpretação mediai do conhecer é impossível chegar-se à apreensão da realidade abstraindo-se da influência pelo processo cognitivo, pois (b) se "o conhecer é entendido como apreensão da própria realidade num meio refringente, então a própria realidade não pode ser conhecida por abstração da refração do meio, dado que "conhecer", aqui, significa, por definição, "apreender através de um meio refringente". Resumindo, Hegel afirma, a propósito da teoria tradicional do conhecimento: "Ao invés de se debater com tais representações e discursos inúteis sobre o conhecimento como instrumento para se tornar senhor do absoluto, ou como meio, através do qual se vislumbra a verdade, e assim por diante ... elas poderiam ser rejeitadas como representações casuais e arbitrárias, assim como se poderia até considerar como fraude o uso conexo de termos como absoluto, conhecer, objetivo, subjetivo e muitíssimos outros, cujo significado é geralmente suposto como conhecido" (li, 69-70). Deve-se notar, no entanto, com relação à crítica referida em (a), que Kant não é atingido por ela, dado que ele de forma alguma definiu "conhecer" como "apreender o absoluto". A informação do material "dado" ao conhecimento, ou seja: o material caótico da sensibilidade, isto é, os dados sensíveis ou das representações, · por intermédio de princípios subjetivos de ordenação não é, segundo Kant, conhecimento, mas condições de possibilidade do conhecimento (necessariamente universal). "Conhecer" significa, para Kant, "julgar de forma objetivamente válida", e a vali dez objetiva dos juízos (especificamente dos juízos sintéticos a priori) só pode ser explicada se se admitir que os objetos, com relação aos quais os juízos são válidos, são "informados" pelo sujeito. Embora a crítica de Hegel não atinja Kant em sentido estrito, resta a reserva genérica, de que Kant, como a teoria do conhecimento anterior a ele em geral, utilizou certos pressupostos metafísicos do conhecimento sem os fundamentar. Tal vale especificamente para a suposição de que o objeto da experiência possua o caráter de representação, mesmo se Kant não defendia a posição de que as coisas em s1 fossem corretamente representadas no conhecimento.
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A outra variunte da teoria tradicional do conhecimento, segundo a qual o conhecer é concebido como apreensão num meio refringente, é de difícil localização histórica. Talvez a concep0ão leibniziana do espaço, como forma de manifestação das relações ideais não-espaciais entre as mônadas, fosse um exemplo adequado. Seja como for, parece que as reservas de Hegel, quanto à possibilidade do conhecimento da redidade, mesmo levando em conta um efeito de refração, não se justificam. Se se vê, por exemplo, uma vareta aparecer torta na água e se se conhece a lei da refração em ótica, assim como o índice de refração e as condições antecedentes, pode-se concluir que a vareta aparentemente torta, na realidade, é reta. Com efeito, pode-se eliminar, no resultado, a refração dos raios, o que Hegel considerava impossível no caso da concepção da representução como meio refringente ( 11, 68). Pede-se replicar, de acordo com Hegel, à tentativa de se refutar suas objeções, que a passagem da vareta. aparentemente torta, para a vareta, "na realidade", reta, só é possível porque nós podemos observá-la também fora das condições próprias uo exemplo citado, em condições "normais", sob as quais a vareta não aparece torta, porque, além disso, a podemos tocar, etc. No caso do conhecer, porém, nós "vemos" os objetos exclusivamente sob as condições do meio refringente, por exemplo, da espacialidade, de forma que jamais podemos conhecer nem a "lei da refração" nem o "índice de refração" respectivos.
A crítica de Hegel pode-se, no entanto, replicar também que ele negligencia uma outra posição possível da teoria tradicional do conhecimento: é concebível que a representação seja efetivamente pensada como meio, no qual apreendemos a própria realidade, sem que este meio seja caracterizado pela refração, mas afirmando que as representâções (ou certas representações) reproduzem corretamente as coisas independentes do pensar, como o racionalismo admitia quanto às idéias claras e distintas e o empirismo de Locke quanto às idéias simples. Com relação a esta posição, a crítica de Hegel fica sem efeito; ela deveria ser substituída pela objeção formal de que, dentro da teoria tradicional do conhecimento, a afirmação de concordância entre representação e coisa em si está não só indemonstrada como é indemonstrável, dado que, por definição, o conhecimento da realidade independente do pensar só pode ser obtido por meio de representação (única imediat<:
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Hegel não chegou a formular esta objeção, pois criticava exclusivamente uma posição da teoria do conhecimento, de acordo com a qual a representação não reproduz a realidade tal como esta é em si; isto é: ~ crítica de Hegel se dirigia, em primeira linha, contra o criticismo (ou contra urna posição que ele identificava à filosofia crítica de Kant). Ele caracterizou esta posição, em geral, no quadro da concepção de que "nós pomos o pensamento entre nós e as coisas como meio, no sentido de que este meio nos separa mais das coisas do que nos une a elas" (IV, 27). Ele afirma, contra ela, "que estas mesmas coisas, que e::tão além de nós e dos pensamentos que se referem a elas, devem si-; tuar-se no outro extremo, são coisas-pensamento - a ~ssim chamada coisa em si da abstração vazia" (ibid.). Este pensamento pode ser completado da seguinte forma: se a coisa em si, que aparece na representação, é pensada como um algo = X completamente indeterminado, então a afirmação de que a representação possui caráter intermediário entre a própria realidade e o sujeito é vazia. Se aquilo a que a representação se deve referir é um X materialmente indeterminado, não se pode mais dizer que a representação reproduza este X, d~do que não é mais possível urna correlação entre a estrutura da representação e a do representado. Note-se, aqui, que Kant teria podido aceitar, o que Hegel considera corno objeção contra a concepção criticista, como caracterização adequada do seu próprio pensamento, ou seja: que "coisa em si" designe urna coisa-pensamento, quanto à qual não se pode supor que ela seja reproduzida pela representação (no sentido do fenômeno). Devese, porém, ressalvar que o argumento de Kant, de que o conhecimento da coisa em si seja necessário, dado que não pode existir fenômeno sem ser manifestação, ofereceu o flanco às críticas de tipo hegeliano. A crítica à concepção instrumentalista do conhecimento é complementada pela reflexão de Hegel, de que a exigência atribuída ao criticisrno, de que a facu ldade de conhecer deva ser examinada antes de se poder abordar o conhecimento de Deus, da essência da!) coisas, etc., porque o conhecimento do instrumento é condição de seu uso correto, não pode ser satisfeita. É igualmente insensato exigir que se necessite conhecer a.ptes de se conhecer, corno é insensata a exigência de nadar antes de entrar na água. A investigação do instrumento "conhecimento"
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só pode ser feita no próprio processo de conhecer. Esta consideração leva à demonstração de que a filosofia crítica não só repousa sobre pressupostos não provados, como apresenta um programa irrealizável. A crítica de Hegel não significa negar a necessidade do exame da faculdade de conhecer, mas realça apenas que este exame só pode ser efetuado no próprio conhecer, na medida em que se trata de conhecimento de objetos, e nunca previamente11 • Neste sentido, Hegel escreve: "De fato, as formas de pensar não devem ser utilizadas sem exame, mas esta investigação já é um conhecer. É necessário, pois, que a atividade das formas de pensar e da crítica destas estejam unidas no conhecer"
(VIII, 125). Tampouco se pode reconhecer aqui que Hegel tenha reproduzido adequadamente a concepção própria à filosofia crítica. Kant e a filosofia transcendental em geral não querem conhecer o conhecer em si mesmo, mas arrolar as condições sob as quais o conhecimento objetivo é possível, isto é, conhecer as condições de juízos necessariamente universais e objetivamente válidos. Se a filosofia transcendental, porém, não enuncia sentença alguma que exprima juízos sobre objeto, mas sim sentenças sobre as condições de possibilidade de tais juízos, desaparece, por conseguinte, a contradição assinalada por Hegel: não é "o conhecimento'' que deve ser objeto do "conhecimento'', mas as condições de possibilidade do conhecimento dos objetos devem ser apreendidas por um tipo de conhecimento não-objetivo. Isto quer dizer: como as condições sob as quais os objetos podem ser conhecidos ( cientificamente) não são, elas mesmas, objetos, uma teoria que tenha a ver com estas condições é de outro tipo do que teorias para a explicação de fenômenos objetivos. As conseqüências tiradas por Hegel da crítica aqui esboçada podem ser resumidas como segue: se - e Hegel parece ter refletido nesta direção - a teoria tradicional do conhecimento, ao partir da separação entre realidade "absoluta" e sujeito cognoscente e de subseqüente mediação entre ambos no conhecimento, visto como int.ermediário entre a realidade e o su.ieito, leva a resultados contraditórios, então ao menos um pressuposto desta teoria é falso e precisa ser modificado. Hegel pensava ter encontrado o erro decisivo na caracterização do conhecimento como uma mediação subseqüente entre a realidade e o sujeito cognoscente, separado dela desde o início. Esta convicção levou-o a
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conceber uma metafísica do conhecimento baseada numa unidade original entre o sujeito cognoscente e a realidade conhecida. O conhecer entendido como "apreensão da própria realidade" ("do absoluto") não poderia ser concebido como possível, como Hegel estava convencido, se o absoluto já não "estivesse e quisesse estar entre nós" ( II, 68). Continuando a imagem do meio refringente , Hegel diz que o conhecimento "não é a refração do raio, mas o próprio raio, pelo qual a verdade nos toca" ( ibid), admitindo que "só o ::bsoluto é verdadeiro, ou que só o verdadeiro é absoluto" (Il, 69). Toda teoria da experiência ou part~ de uma descrição da estrutura da experiência ou a supõe implicitamente. As considerações de Hegel sobre a diferença entre saber e verdade devem ser entendidas como descrição da estrutura da experiência. A consciência, segundo Hegel, distingue algo de si mesma, com o que se relaciona. A relação ao objeto é chamada de "saber", enquanto que a essência, à qual se refere a consciência, é chamada de "verdade". "Saber" e "verdade" designam, por conseguinte, aspectos da experiência em si mesma. A filosofia toma o próprio saber por objeto, ao perguntar o que ele é em si. Na medida, porém, em que o saber é feito objeto da reflexão filosófica, ele é algo para nós. A distinção entre saber e verdade não é supressa deste modo, mas fica demonstrado que ela depende da própria consciência, no caso do saber (II, 76-77). O em-si (a "verdade") se torna consciente e tal é possível porque, neste caso, o em-si é o próprio saber, isto é, porque se trata, como Hegel o diz, de uma comparação da consciência consigo mesma ( II, 7 6). O saber e o objeto ou o conceito (subjetivo) e o em-si (ou inversamente, o conceito objetivo, isto é, a essência e o objeto, tal como aparece a um sujeito) coincidem no saber. A questão relativa ao critério de verdade deve ser resolvida, por conseguinte, no sentido de não se sair do âmbito da consciência. É a própria consciência que sempre detém a medida da verdade. 12 Consciência do objeto (do verdadeiro) e consciência do S(lber do objeto são duas fases da mesma consciência, a qual é, ao mesmo tempo, "a comparação de ambas" (li, 77). Alcança-se, desta forma, o ponto do qual parte a lógica de Hegel: "A ciência pura supõe . . . a liberação da antinomia da consciência. Ela contém o pensamento, na medida em que é a coisa em si mesma, ou a coisa ein si mesma, na medida em que êla é o próprio pensamento
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puro" (IV, 45). A transição da superação da antinomia entre saber e verdade na autoconsciência para a superação desta antinomia em si mesma só pode ser efetuada se se puder demonstrar que, não só para o saber, como para quais objetos, que a consciência sempre só apreende, neles, a si mesma. Para demonstrá-lo, Hegel exigiu que se seguisse o "automovimento do espírito" (li, 64) , o qual, como movimento dialético da consciência com relação ao saber e ao sabido, matiza os conceitos destes dois aspectos da experiência: o primeiro a ter sido determinado como em-si aparece como algo para o qual existe a consciência, com o aue também o saber se modifica, dado que depende do objeto sabido (li, 77-78). Pode-se abstrair, aqui, de que o sistema da verdade é apresentado, na Fenomenologia, como séries de formas conscienciais, que são momentos deste sistema (li, 80); para o contexto atud, basta lembrar, por antecipação, a meta do "movimento de consciência" ( li , 603) : o saber absoluto, no qual a superação da autonomia do objeto da consciência ocorre no reconhecimento de sua qualidade de expressão de autoconsciência. Vista assim, a consciência nos objetos continua em si mesma (li, 611 ).
Fica fixada , destarte, a meta de fazer aparecer o conhecimento de quaisquer objetos como autoconhecimento, de modo que "saber" e "verdade" coincidam não só na autoconsciência, como foi mostrado, mas em si mesmos. Tudo depende, pois, do modo pelo qual se chega à meta fixada : se se trata de uma dedução argumentativa, a pretensão hegeliana, de ter superado a teoria tradicional do conhecimento com uma metafísica da experiência livre das deficiências daquela, foi realizada; caso contrário, dever-se-ia constatar que Hegel, apesar de certas intu}ções quanto às deficiências da teoria tradicional do conhecimento, não conseguiu operar uma superação positiva dela. A suposicão de que seja este segundo o caso, pode ser desde já reforçada pela seguinte reflexão: o espírito que se autoconhece no saber absoluto é, segundo He· ge1, a verdade. Este resultado, do qual depende a tese da coincidência de saber e verdade, só pode ser obtido porque se operou, desde o princípio, com o pressuposto de que o conteúdo e o saber do conteúdo são momentos de um mesmo espírito. "A autoconsciência é ... o exemplo mais próximo da presença da ínfinitude" (IV, 185). Somente com este pressuposto se pode alcançar o resultado de que a substância, objeto da consciência, também seja sujeito; a substância é o espírito, ela se torna o que já é em si, ou seja, sujeito (II, 613).
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O próprio Hegel se refere com clareza suficiente à estrutura deste raciocínio fundamental, ao falar do movimento da experiência: "Ela é o círculo que se fecha sobre si mesmo, que pressU!JÕe seu começo e que só o atinge no final" ( II, 613). Aqui é feita alusão, decerto, à circularidade do raciocínio feito na Fenomenologia: seu resultado não poderia ser obtido, se não tivesse sido suposto implicitamente desde o início, e o início supõe, por sua vez, o resultado: que a consciência seja, em todas as suas formas, manifestação do mesmo espírito, a "verdade na qual nós - como já dizia Spinoza,de modo seme;ha,nte - temos sempre de ter sido, se o conhecimento determinado deve ser possível". Enquc:nto a circularidade de um raciocínio, vale, porém, em geral, como sinal de sua falsidade, Hegel a vê como característica específica da evolução dialética do pensamento e, assim, como positiva. Isto é extremamente inabitual, pois se um pensamento, que não pode ser fundado empiricãmente em lugar algum, se move em círculos, então nenhuma sentença deste raciocínio pode ser tida por válida. Obviamente, num raciocínio circular não há nenhum "primeiro princíoio" contra o qual se possa formular a objeção do início dogmático. A recusa hegeliana de uma construção sistemática na qual as sentenças sejam dedutíveis a partir de premissas (axiomáticas ou hipotéticas) teria exigido a explicitação de determinados pressupostos, como por exeml)lo, da suposição de que a substância seja sujeito. Com isto, Her:el não mais terin podido pretender que seu sistema fosse livre de pressupostos. Com base na afirmação de que seu sistema ~e desenvolve na forma de um círculo ou de um círculo de círculos, ele conseguiu manter sua pretensão, mas a que preço! Ele teve de aceitar o que se considera habitualmente como a maior objeção contra uma .:rgumentação, isto é, a circularidade do raciocínio; e, a fim de não criar a impressão de que a aceitava forçado, transformou em vant"gem o que vale comumente como deficiência fatal. A filosofia tem sempre de "supor" algo. Trata-se do pressuposto "mais natural" que se pode pensar, ao se "pressupor" o ser-dado, a c:tualidade dos conteúdos. Também Hegel entreviu a possibilidade de começar assim, mas ao invés de ver quão longe iria na análise da suposição citada, fez logo uma suposição metafísica essencialmente mais forte, da qual falamos, sem a introduzir, todavia, como tal. Com isto, ele
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cometeu o mesmo erro que criticara, sem razão, na teoria tradicional do conhecimento.
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Método analítico e dialético
Hegel ocupou-se de diferentes modos com a relação entre o método analítico e o dialético, buscando concretizar sua concepção através de exemplos tirados do setor da Matemática e, mais raramente, da Física. A caracterização mais sumária de ambos os métodos se encontra na Enciclopédia (2.a edição), onde se pode ler, quanto ao conhecimento analítlco: "o objeto tem, _para ele, a forma de individuação e a atividade do conhecimento analítico está orientada a reduzir o individual, que lhe é presente, a algo de geral. O pensar possui aqui apenas o significado da abstração ou de identidade formal'' (VIII, 43 7). E, sobre a síntese, diz Hegel: "O movimento. do método sintético é oposto ao do método analítico. Enquanto este parte do individual para o geral, no segundo, o geral (como definição) constitui o ponto de partida para se chegar ao individual (o teorema) através da especificação · (a divisão). O método sintético aparece aqui, pois, como evolução, no objeto, dos momentos do conceito" (VIII, 438). No método analítico trata-se de "decompor o dado concreto, isolar suas diferenças e dar-lhes a forma de universalidade abstrata" (VIII, 436); inversamente, no método sintético busca-se a c:.tbsunção do objeto nas formas do conceito determinado do entendimento (VIII, 4 73). · Estas caracterizações foram mantidas tão genéricas intencionalmente, de forma que parecem ser utilizáveis em todos os setores de aplicação dos métodos · analítico e dialético. Fica em aberto, porém, se os "objetos" com os quais o método lida são coisas ou procedimentos, conceitos ou sentenças. As declarações de Hegel 2presentam elementos em favor de cada uma destas possibilidades: ( 1 ) Hegel declara que, na análise, "começa-se com um objeto concreto, individual, pressuposto" (V, 279). De modo semelhante, a passagem citada acima (VIII, 437) falava de objetos sob a forma de individuação como objeto de análise. Para caracterizar uma análise entendida desta maneira, Hegel utilizou a comparação com a análise química de uma substância ou com o descascar uma cebola. Tudo isto lembra a concepção de que os "objetos" com que lidam os métodos analítico e sintético são coisas concretas.
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Enquanto que o método analítico era caracterizado, tradicionalmente, como processo de explicação de fr..tos ou ocorrências pelo recurso a hipóteses do tipo legal, formuladas especificamente para o fim da explicação, Hegel não parece tê-lo entendido neste sentido. Tal é demonstrado pelas suas considerações polêmicas, na tese de habilitação, contra a "filosofia" experimental de Newton e inglesa em geral. O elemento analítico de Física consiste, segundo Hegel, no emprego de métodos matemáticos. A análise e a explicação matemáticas (1, 4) são imperfeitas em comparação com a natureza, porque a Geometria abstrai do tempo e a Aritmética do espaço, enquanto que os processos da natureza esrao determinados, espaço-temporalmente, em permanência. Esta deficiência existe também , na sua opinião, na Geometria. As relações matemáticas empregadas na análise de fenômenos físicos não podem ser interpretadas, todavia, como relações físicas, ou seja, reais, corno o faz Newton, na opinião de Hegel. A análise ( resolutio) de forças dá em forças simples, cuia resultante é a força original. O aue aparece aqui como decomposição de uma força em forças originais é, porém, na realidade, apenas uma interpretação equivocada de relações geométricas, as quais não podem ser entendidas em sentido real. Se Newton tivesse tomado, efetivamente, o método geométrico como modelo, não teria sido vítima de um mal-entendido, pois a Geometria não constrói suas figuras com elementos simples, mas as pressupõe como dados, a fim de deduzir delas as relações entre as partes (1, 10-11 ) . Hegel considerou o método hipotético-dedutivo de Newton também como um proceder inadequado, não somente porque, segundo sua convicção, o material empírico utilizado pela filosofia experimental seja insuficiente (esta deficiência pode, obvir..mente, ser superada ) mas pela razão de princípio de que as explicações fornecidas por ela possuiriam caráter apenas casual e não necessário (como Hegel exige ) (I, 10). ( 2) Ademais, os textos de Hegel fornecem numerosos pontos de referência para a concepção da análise como análise conceitual (e não de representação). "A análise, tendo o conceito por fundamento, possui essencialmente as determinações conceituais, com relação aos seus produtos, especificamente as que estão contidas imediatamente no objeto (V, 280). Correlativamente, Hegel caracterizou o método sintético como conexão de conceitos : "O conhecer sintético decorre do conceber p que é, ou seja: apreender a multiplicidade das determinações em sua unidade" (V, 288) . Nesta síntese "refere-se o múltiplo
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enquanto tal" (ibid.). Como a unidade das múltiplas determinações é o conceito, Hegel podia dizer: "A subsunção do objeto à forma domesmo (isto é: do conceito determinado) é ó método sintético (VIII, 437). Em favor da concepção da análise e da síntese como análise e síntese conceituais pode-se acrescentar também que o "elemento" da dialética, em que devem ser "superados" os métodos sintético e dialético, é o conceito puro (li, 60). Neste contexto deve-se fazer algumas observações sobre a tentativa de Hegel de atribuir o conhecimento analítico à orimeira premissa do raciocínio e o sintético à segunda. Deve-se partir da concepc:ão hege· liana do silogismo como conceito integralmente posto (V, 1 18). Tanto como o conceito, segundo Hegel, se determina como "relação entre suas determinações autônomas'' na "oposição de suas determinações" (V, 65), assim o silogismo é "'juízo com fundamento'' ou ·'o ser integralmente posto" (V, 118). A dedução da conclusão a partir das premissas não é, segundo esta concepção, o essencial do raciocínio - o que , segundo Hegel, fica claramente demonstrado pela possibilidade de formalização ou mecanização do processo dedutivo, na medida em que este deve ser visto apenas como "inteligível" e não como processo racional (V, 146-147); no raciocínio, é muito mais essencial a mediação entre o individual e o geral através do particular. Desta forma, partindo-se do conhecimento de que o individual é particular e de que o particular é geral, progride-se, no raciocínio, para o resultado de 'que o individual é geral. Em um juízo de formaS é P. sejaS algo de individual ( p. ex. Caio) e P designa um conceito geral abstrato. Deve-se acrescentar, então, com Hegel, que S é individual e P geral apenas na medida em que são tomados isoladamente, sem se levar em consideração a relação entre ambos. Levando-se esta em consideração, reconhece-se então que S corresponde, no juízo em questão, a um dos seres que estão compreendidos no conceito P e que P é uma determinação de seres tais como S. O individual é, por conseguinte, um particular e o geral se particulariza em um individual. O pano de fundo metafísico desta concepção do raciocínio não pode deixar de ser visto: ele aparece com clareza quando Hegel caracteriza o "raciocínio" como a forma da realidade racional em si mesma. Segundo Hegel, "só o raciocínio é ... racional" (V, 120) e "tudo o que é n:cional é raciocínio" (V, 119). Como no raciocínio a primeira premissa serve para determinar o individual através do predicado geral-abstrato e como, no conheci-
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mente analítico, se atribui ao sujeito um dos predicados gerais nele contidos, pode-se ver nesta analogia a razão do paralelo traçado por Hegel entre a análise e a primeira premissa do raciocínio. Na segunda premissa do raciocínio, o múltiplo é concebido como particularização do geral e, analogamente, o conhecimento sintético produz a unidade conceitual do particular, razão por que Hegel acreditava, corretamente, poder identificar a síntese à segunda premissa do "raciocínio", o qual, segundo ele, é a forma de conceber racionalmente a realidade. 13 ( 3) Por fim, Hegel fala, ocasionalmente, dos métodos sintético e ::nalítico de tal maneira que se pode supor que ele os compreendia como métodos de fundamentação dedutiva de sentenças. Tal vale espe· cificamnte para aqueles contextos em que Hegel se refere ao método da Matemática. Hegel tinhn certamente presente a concepção do método analítico elaborada pela matemática clássica e assumida pelos fundadores da álgebra moderna, segundo a qual uma sentença qualquer deve ser reduzida a sentenças ou já demonstradas ou possuidoras do caráter de axiomas, sendo as primeiras dedutíveis das últimas. He!!el propôs que as sentenças matemáticas a serem fundamentadas analiticamente fossem chamadas não de "enunciados", ou "teoremas", mas de "tarefas" (V, 284-286), dado que só se pode falar de "enunciados", adequadamente, com relação ao método demonstrativo sintético ( axiomático). Em favor da concepção de análise e síntese, como métodos de fundamentação de sentenças,pode-se aludir a que a dialética, que contém ambos "superados", inclui igualmente, segundo Hegel, "sentenças sobre suas partes ou elementos" (li, 60). Efetivamente, na sentença especulativa de que se trata aqui, a forma da sentença no sentido corrente - caracterizada pela distinção entre os conceitos de sujeito e pn~dicado- está superada, mas justamente quando se leva em consideração que o método dialético absoluto contém;'superados'', os métodos do conhecimento fínito e intelectivo, pode-se argumentar que, se o movimento dialético inclui sentenças sobre seus elementos, análise e síntese devem ser referidos a sentenças. As sentenças, cuja fundamentação provém da análise e da síntese, devem ser distintas daquelas em que se. articula o pensamento dialético, como se distinguem o conhecimento do entendimento e o da razão.
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A síntese é entendida, indubitavelmente, no sentido do método axiomático, quando Hegel introduz, como fases dela, a formulação de definições, o estabelecimento de classificações e a dedução de teoremas (enunciados). Se as definições são caracterizadas corno gerais e se a função de particularização é atribuída à classificação, tudo é compreensível; porque Hegel refere os teoremas ao individual, no entanto, é dificilmente admissível (VIII, 438). Quanto ao mais, é insuficiente o papel dos princípios (axiomas), çlos quais são deduzidos os teoremas. Possivelmente Hegel terá entendido por "definição" também o que se chama comumente "princípio", pois as definições são, segundo sua terminologia, definições essenciais e de forma alguma meras convenções de vocabulário. Daí se explica também o primado do método analítico afirmado por ele: "Pela natureza do conceito, o analisar vem primeiro, na medida em que deve apreender anteriormente a matéria empírico-concreta dada na forma de abstrnções universais, as quais podem então ser postas como definições prévias do método sintético" (VIII, 441). As "definições", tais como Hegel as entende, exprimem, pois, intuições da essência do objeto do conhecimento obtidas analiticamente. O verdadeiro método da filosofia deve distinguir-se, tanto do método analítico quanto do sintético, por não partir de pressupostos: quando tal ocorre, trata-se, independentemente de qualquer resultado obtido no âmbito do conhecimento do entendimento, de um proceder inadequado à especulação (VIII, 441). O verdadeiro método filosófico não se move, como o método do conhecimento finito , o qual abstrai (analiticamente) de certas determinações genéricas do objeto concreto para enfim, novamente , referi-las (sinteticamente) ao mesmo objeto, no âmbito da reflexão exterior, mas encontra o geral no seu próprio objeto~ sendo. destarte, o próprio princípio imanente deste (V, 335). O verdadeiro método da filosofia não apenas se distingue dos métodos analítico e sintético, mas contém também os elementos positivos destes enquanto "superados" (VIII, 449); segundo Hegel, ele é tanto analítico como sintético. Analítico enquanto encontra, no geral que toma por início. as determinações deste e. ao mesmo tempo, sintético, na medida em que o geral tomado por ponto de partida deve ser .simples. pelo que as determinações deduzidas a partir de!e não estão contidas nele. Elas estão, "em si'', contidas no início, mas "para
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si", não: com esta distinção resolve-se o paradoxo do " nem analítico - nem sintético" e "tanto analítico - como sintético" . O método filosófico é analítico na medida em que todas as dem ais determinações, de acordo com .o automovimento do conceito, procedem do início. sendo que o pensar apenas as contempla; ele é sintético na medida em que o pensar é a atividade do próprio conceito (VIII. 449). Analogamente vale para a transição: analítica enquanto o conteúdo do geral é elaborado pela dialética imanente e sintética enquanto os "momentos" desenvolvidos a partir do geral ainda não estavam "postos" ne:e (VIII, 449-450). Na medida em que estes são postos apenas no desen· volvimento do movimento conceitual~ não existe entre eles e o início nenhuma relação de identidade, sendo pois a relação sintética. Como o método analítico deve ser simultaneamente analítico e sintético, o início não pode mais ser tido por algo de imediato, devendo ser reconhecido, por sua vez, como mediatizado (VIII, 450; cf. V, 347) e superado na totalidade da idéia absoluta (VIII, 451). Não se pode negligenciar o fato de que, na maneira hegeliana de caracterizar o método· do conhecimento especulativo, não só está superada a distinção entre análise e síntese, mas a significação das expressões "analítico" e "sintético" se encontra modificada. Se o método absoluto deve conter um elemento analítico, porque o pensamento vê aqui passivamente o automovimento do conceito e um elemento sintético, porque o pensamento é a própria atividade do conceito, trata-se, então, obviamente, não mais de uma distinção entre dois mé~o dos, mas de dois pontos de vista . internos a uma mesma concepção metafísica determinada. "Pensar" s1gnifica, <:qui, de um lado, o pensar empírico, ao qual se contrapõem, como conteúdos objetivos, os conceitos em movimento e, de outro lado, a nóesis noéseos (VIII, 446). Sempre que as reflexões de Hegel se referem ao método no sentido corrente do termo, a distinção entre análise e síntese se mantém; quando esta distinção parece "superada", as expressões "análise'' e "síntese" não designam mais métodos. O "método" absoluto é a consciência do geral corno conceito puro e simples. Daí consistir a natureza do "método" absoluto em não ser distinta de seu conteúdo e em determinar por si própria seu ritmo. Conseqüentemente, Hegel rechaçou todo form alismo .metodológico, inclusive a triplicidade dialética (li, 46 sqq. ; II, 53; V, 344) .
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Um método de conhecimento idêntico ao objeto do conhecimento não pode ter, decerto, nada em comum com o que se entende habitualmente por "método". Não se pode tratar, pois, do significado corrente de "método", quando este termo é definido como "o que se auto· conhece, o conceito, absoluto, tanto objetivo corno subjetivo, que se tem por objeto, pura coincidência entre si mesmo e a realidade, existência que é ele próprio" (V, 330). Se se entende por "método", na <:cepção habitual, a suma das instruções pelas quais se regula a descoberta e a fundamentação de sentenças verdadeiras até agora desconhecidas ou não fundamentadas, então deve-se constatar que o que Hegel chama de "método" em passagens como :::s citadas não é método, mas concepção metafísica do saber absoluto. O próprio Hegel estava consciente desta diferença, ao declarar, quanto ao aspecto sintético do método absoluto, que não se trata mais, neste caso, do que se chama "síntese" no conhecimento finito. Já por coincidirem os momentos sintético e analítico, distingue-se a síntese, no novo sentido, do método sintético no sentido tradicional. Hegel podia, pois, dizer: "O método é o conceito puro, que se relaciona apenas consigo mesmo" (V, 352). Inversamente, onde Hegel ainda entende "dialética" co::no método no sentido tradicional (eventualmente amplh:do, sem, porém, romper radicalmente), a relação entre método analítico e dialético pode ser facilmente delineado. Constate-se, em particular, que Hegel, ao proceder de fato dialeticamente - por exemplo, a partir da opinião de que a certeza do objeto constitui a essência da experiência sensível, através da opinião de que esta essência é encontrável na certeza de si, até a intuição do condicionamento recíproco de ambas - emprega sempre um método que pode ser interpretado indubitavelmente corno variante do método analítico. O "método absoluto" só pode ser concebido como "método da verdade" (V, 350) após a plenitude do "sistema da totalidade" (V, 348). O "método absoluto" de Hegel não determina as etapas que levam à construção do sistema; ele exprime uma interpretação de conjunto do sistema constitutivo. Este não é o método da filosofia · especulativa, mas a própria filosofia especulativa. Como para esta, em geral, vale também para o método absoluto o que Hegel constata no prefácio à Fenomenologia do Espírito: "O começo da filosofia
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põe o requisito ou a exigência de que a consciência se encontra neste elemento (ou seja: no autoconhecimento puro) . .. É a pura espiritualidade que possui, enquanto geral, a forma da imediatidade pura ... " (li, 28). Deve-se começar com o absoluto, na medida em que este ainda não é em si, ou seja: absoluto, ao mesmo tempo geral e particular ou sujeito (V, 334). Para se poder conceber, no entanto. o início como "momento absttato, unilateral" (ibid.) do absoluto atualizado, o qual "se mostra, visto em si mesmo, como o outro de si mesmo" (V, 340), é necessário pressupor, de certa maneira, o que só seria dado no resultado. Em termos de Hegel: o início é, em si, totaliaade concreta (V, 352), o resultado é "a totalidade voltada para si e idêntica a si" (V, 345); a ciência especulativa se apresenta como um círculo, ou melhor: como círculo de círculos (V, 351) . Somente com este pressuposto pode·se falar de superação dos métodos analítico e sintético no método absoluto. Enquanto o regresso analítico e o progresso sintético são, em princípio, intermináveis, o método absoluto leva ao início de ambos, ou, mais exatamente: em princípio, nenhum ponto do percurso de ambos está claramente determinado como início. A pretensão da filosofia especulativa, de não fazer pressuposição alguma, aqui aparentemente fundamentada, não pode ser, porém, mantida. De fato, tanto como a filosofia especulativa em geral, o método dialético tem sua origem na teoria analítica da experiência elaborada na Fenomenologia do Espírito. Na medida em que são determinados como "fundamento e base da ciência" o "saber em geral" (li, 28), e como meta da reflexão fenomenológica sobre a evolução da ciência "a intuição pelo espírito, daquilo que é o saber" (li, 31), o início da filosofia é situado no elemento consciencial. A progressão se efetua de forma que a consciência se "exprime" em seus momentos, os quais se opõem enquanto momentos e aparecem como formas da consciência (li, 36). "A ciência desta via é a ciência da experiência feita pela consciência" (li, 36), afirma Hegel expressamente. O caráter de teoria da experiência da dialética elaborada na Fenomenologia será examinado no próximo parágrafo; aqui interessa apenas destacar como o próprio Hegel relacionou o procedimento utilizado na Fenomenologia com o método analítico. Analisar uma representação, distinguir seus elementos ongmais, significa superar a forma do seu ser-conhecida, passando-se aos seus
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momentos. Hegel não se identifica de forma alguma com este método, na medida em que este é aplicável tradicionalmente; ele vê nele, porém, um elemento que admite ser essencial para o método filosófico: os momentos de uma representação conhecida, obtidos por análise, não são, eles mesmos, conhecidos, dados ou dáveis, mas algo de pensado, irreal mesmo, na medida em que não se trata de representações de objetos (li. 33) . De outro lado, tais momentos isolados por análise são decerto reais, na medida em que constituem "propriedade imediata do eu" (li, 33) . A faculdade de distinguir do entendimento independentiza momentos que só são reais enquanto dependentes entre si, mas que representam, em suas relações de oposição, a "força do negativo" (li, 34), o qual é o princípio -do movimento conceitual, do progresso do pensamento. Hegel resume aqui a concepção tradicional dos conceitos nãoobjetivos ("teóricos) emergentes no método analítico como "ficções", segundo a qual estas não são conceitos de objetos, mas só possuem sentido dentro de uma teoria construída com a finalidade de explicar ·os objetos. Não é certo que estes conceitos tenham sido obtidos por análise de um conceito ou representação dado, mas a insistência sobre a "irrealidade" destes elementos conceituais chama a atenção para um componente importante do método analítico: na medida e.:n que se formulam, na "análise", hipóteses em que aparecem conceitos teóricos, aquela se apresenta como construção intelectual. Os conceitos "irreais" da mesma valem, para Hegel, como móveis, no sentido de automovimento do conceito. Nisto reside a diferença decisiva entre os métodos dialético e analítico tradicional, para o qual o resultado da análise deveria consistir em conceitos estáticos. As determinações "irreais" obtidas pela análise são, por isso mesmo, "móveis", por não serem conceitos de objetos. Se o fossem, elas estariam determinadas de uma vez por todas. Na medida, porém, em que possuem o caráter de conceitos teóricos, elas só podem ter sentido no contexto da respectiva teoria. Logo que se altere este contexto teórico, altera-se seu sentido. Trata-se, nas palavras de Hegel, do "vinculado", real apenas em seu contexto e junto com um outro", que "ganha uma liberdade especial" (li, 34). A relação que aparece aqui é dialética, mas primeiramente o positivo é superado, reduzido a momentos meramente pensados, os quais são então, por sua vez, negados, na medida em que são "superados" em seu isolamento.
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No presente contexto, Hegel não buscava uma exposição da estrutura de teorias, mas delinear a relação entre o eu e o objeto, a qual pode ser apreendida por intermédio das relações estabelecidas pela análise. Já se aludiu, acima, a que os momentos "irreais" resultantes de análise devem ser propriedade do eu. A negatividade dos momentos pensados diante do positivo, de que parte a análise, parece, a Hegel, ser energia do eu puro, demonstrando-se, enfim, que ''o representado se torna propriedade da autoconsciência pura'' na qual deve consistir a "elevação à universalidade" (II, 34) . Hegel não analisa reláções resultantes da aplicação do método analítico para as aplicar então à experiência, mas a experiência é, para ele, o lugar em que as relações em questão se mostram originariamente.
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Análise da experiência e dialética
Uma vez que está claro como Hegel caracteriza o método analítico, pas.saremos a mostrar que ele, como a filosofia sistemática moderna em geral, também tomou o éaminho da análise da experiência para a fundamentação. Neste contexto reforçaremos a tese de que a dialética hegeliana decorreu de uma interpretação determinada das relações estabelecidas na teoria da experiência, o que não quer dizer que ela tenha decorrido exclusivamente daquela, pois já se aludiu, acima, ao fato de que a dialética de Hegel cresceu de várias raízes; não se deve . deixar, no entanto, de destacar que ela depende essencialmente da idéia de uma fundamentação analítica da experiência. '
Como para todos os representantes da teoria analítica da experiência, também para Hegel o fato de que haja experiência, pura e simplesmente, é o ponto de partida da fundamentação filosófica: "A . . . emergência da filosofia tem a experiência, consciência imediata e raciocinante, por ponto de partida" (VIII, 56). "Experiência" é entendida aqui no mais amplo sentido, como "o presente enquanto tal", como o ser presente de coisas, tais como estas se apresentam na atitude quotidiana diante da realidade. Que a fundamentação deva ser operada através da análise da experiência em si, é afirmado com clareza por Hegel: "O inkio é tomado no sentido do ser imediato da intuição e percepção, - o início do método analítico do conhecimento finito" (VIII, 448-449) . O método sintético deve ser empregado como complemento do analítico, isto é, o procedimento analítico-experimen-
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tal consiste apenas em um lado do método filosófico, que só não é unilateral, segundo Hegel, quando reúne em si os aspectos analítico e sintético sob a forma de uma interdependência íntima e não apenas de modo superficial. O procedimento sintético caracteriza, em termos gerais, a ciência da lógica, e o analítico a fenomenologia do espírito. Enquanto a lógica tem por tema o automovimento do espírito, a fenomenologia trata da evolução dialética da experiência, da certeza sensorial até o saber absoluto. Isto deve ser caracterizado quanto às etapas essenciais do processo da Fenomenologia do Espírito, primeiramente quanto à dialética da experiência revelada na certeza sensocia1. 14 a)
Cei'teza sensorial
( 1 ) Na certeza sensorial há um objeto presente como imediata· mente simples. O objeto, como algo imediatamente dado, é concebido como essência da certeza sensorial, como a "verdade" desta. O eu experimentante é apreendido, no entanto, apenas de modo mediato na certeza do objeto observado, isto é, a certeza do eu é "mediatizada" pela certeza do objeto. A análise da certeza empírica do objeto se subordina à tarefa de decidir se o objeto da certeza sensorial é o essencial, tal como é pensado. (Note-se que Hegel não busca uma análise psicológica, relativa aos atos do pensar, nem uma reflexão sobre o que seja o objeto "verdadeiramente"; trata-se exclusivamente de uma forma de manifestação da experiência sensorial e de sua estrutura). O que foi pensado como essencial na certeza sensorial, ou seja, o objéto concreto na plenitude de suas determinações m<::teriais, se demonstra, segundO'Hegel, como inessencial, logo que a análise tenha mostrado com clareza que este objeto, enquanto determinado, é inexprimível. A certeza sensorial não é, como inicialmente suposto, o conhecimento mais rico, mas o mais pobre: ele contém apenas a verdade de que algo existe (li, 81). Jsto quer dizer: a massa das determinações do objeto dadas visivelmente não é o "verdadeiro" - ela não é articulável em línguas racionais - , mas algo de universal, exprimível racionalmente: o ser (do objeto). "Ser" aparece, assim, como um momento racional da certeza sensorial. Enquanto universal, o "ser puro" é a negação do ser da certeza sensorial e, por conseguinte, não mais imediato.
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A análise de ( 1) leva, partindo da suposição de que o ser d0 objeto é imediatamente "verdadeiro" ou essencial, à superação desta suposição. Trata-se, decerto, da mesma forma de argumentação que a utilizada por Kant na discussão da tese e antítese das antinomias. (2) O objeto pensado é meu objeto, ele é porque se sabe dele. Suas determinações são determinacões vistas, ouvidas, etc. O ver, ouvir, etc. ou seja, o meu eu, na medida em que é um eu que vê, ouve, etc . o objeto, em questão, é pensado como "verdadeiro", isto é, como a essência da certeza sensorial. Na análise de ( 2) fica demonstrado que não é o eu individual, mas o "eu em si" que constitui a essência da certeza sensorial, dado que o eu individual é logo um eu-que-vê-uma-casa, logo um eu-quevê-uma-árvore, um superando o outro, enquanto que o eu em si permanece eu independentemente da determinação concreta do eu como este ou aquele que vê, ouve, etc. Paralelé!mente à reflexão de ( 1) poder-se-ia argumentar que, "este eu" é tão pouco exprimível quanto "este objeto determinado". Sempre que se diz "eu" no falar racional, o "eu" é algo de universal, isto é, o "eu em si'. Quando Hegel destaca que a língua é a "mais veraz" com relação à opinião, não se trata de uma antecipação da concepção preconizada pela ordinary fanguage analysis, de que a linguagem corriqueirr. fornece os critérios para a decisão de problemas filosóficos, mas a "veracidade'' da língua consiste, para Hegel, no fato de que o conceito, e, com isso, a essência universal, nela se reflete. A concepção hegeliana da verdade lingüística depende diretamente de sua posição realista quanto aos conceitos. 15 Como o "eu em si" não é apreendido como universal, de modo i.nt:diato, mas apenas como essência deste ou daquele eu concreto (do eu-que-vê-uma-casa, etc.), ele é "mediatizado" pelo objeto da certeza, na medida em que este é sabido pelo eu. ( 3) Nem (I) nem ( 2) como negnção da posição ( 1) podem ser mantidos, como demonstram as respectivas análises. Tanto a suposição de que a essência da certeza sensorial consiste em seu objeto como a suposição de que ela consiste no eu correspondente à certeza sensorial foram superadas na análise. "A certeza sensorial constata, pois, que sua essência não consiste nem no objeto nem no eu e que a imediatidade não é nem de um nem de outro"
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(li, 86). "Eu" e "objeto" devem ser concebidos, antes, como momentos interdependentes da certeza sensorial (como forma da experiência). A essência da certeza sensorial não pode, evidentemente, ser encontrada em um de seus momentos, mas nela mesma enquanto todo (Il, 87) . Também aqui vale: "O verdadeiro é o todo" (Il, 24). A certeza sensorial é a interdependência de seus momentos, não no sentido estático, mas "móvel". A fenomenologia descreve a história deste "movimento", devendo entender-se "movimento" como a transição lógica de seus momentos conceituais. O movimento enquanto desdobramento e distinção dos momentos da certeza sensorial é, segundo Hegel, a percepção, com a qual o âmbito de certeza sensorial é superado pelo "movimento" que a habita. Antes de examinarmos este ponto, devemos completar esta consideração sobre a dialética da certeza sensorial com a análise da dialética ct'o aqui e agora, que possui a mesma estrutura da dialética do eu e objeto a que acabamos de aludir. O ob.ieto da certeza sensorial está permnnentemente num lugar determinado e em um tempo preciso. Enquanto objeto determinado espacial e temporalmente, ele não pode ser expresso nem conhecido conceitualmente, mas apenas indicado. N ::t tentativa de mostrar um "aqui" e um "agora", surge um movimento dialético destes momentos, o qual concretiza a dialética universal da certeza sensorial. A dialética do "agora'' se apresenta, segundo Hegel, da seguinte maneira: (a) algo é mostrado como existente agora; na medida em que é mostrado como tal, todavia, (b) este algo já não é mais presente, mas ~ dado que o mostrar transcorre no tempo - passado. "Agora passado" é a negação do agora. Como, porém, (c) o "agora passado" deve ser negado também por causa da contradição patente nos termos - algo passado não é mais - , e, enquanto negação da negação, ( b) possui o caráter de dupla negação, restabelecendo a posicão do agora. embora não como imediato e demonstrável, mas como uma determinação universal. Quando Hegel formula o resultado do movimento dialético como "afirmação ... de que o agora é" (li, 88) ou explica "que o agora é univer~al" (II, 89), entende-se que cada obieto da certeza sensorial está dado imediatamente num agora determinado, enquanto que o resultado do movimento dialético esboçado diz que os objetos empíricos sempre estão presentes em um "agora" qualquer:
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estar dado no presente respectivo é a determinação universal da certeza sensorial dos objetos. Tal vale analogamente para o "aqu·t"· Na indicação do "aqui" e do "agora" surge, pois, um movimento entre os diferentes momentos: "isto é posto, mas é um outro que é posto, ou o isto é superado: e este ser outro ou superação do primeiro e, por sua vez, superado, voltando-se, assim, ao primeiro" (Il, 88). O resultado do movimento dialético do mostrar é o pensamento da essência do agora (ou do aqui), "uma multiplicidade de a goras resumida" (li, 89). Com isto aparece uma vez mais, como resultado da dialética do "aqui" e "agora'', a intuição de que a certeza sensorial do dado aparentemente imediato contém sempre determinações universais, isto é, de que não existe nenhum dado imediato aconceitual. Neste ponto constata-se uma noção importante para o idealismo alemão, comp&rada com a qual a teoria posterior dos dados sensíveis parece como regresso a uma posição gnoseológica já superada por princípio. Hegel reconheceu que, para se poder dizer "este objeto aqui e wwra", tem-se necessidade das determinações gerais do ser, da temporalidade e da espacialidade e que, desta forma, a "sensibilidade" jamais é pura, isto é, independente de conceitos. A dialética da certeza sensorial se apresenta, enfim, também como dialética do ser sensorialmente certo, do ser puro e do devir: ( 1) a "verdade" (isto é, o essencial) da certeza sensorial é concebido inicialmente como o ser da coisa, sendo que "ser da coisa" significa: "a coisa é, e é só porque é"(II, 82). (2) Na medida em que, abstraindo-se de todo conteúdo observado no caso concreto, se diz do objeto que ele é, o "é" se evidencia como algo geral, isto é, como "puro ser", que é abstrato e, por conseguinte, negação do ser pensado enquanto ser do objeto na plenitude de suas determinações concretas . Pela negação deste último, o puro ser é relacionado, é "mediatizado", segundo a terminologia de Hegel (li, 85), sendo, com isto, ( 3) ser com uma determinação. Esta mediação, analogamente ao que foi dito quanto aos exemplos introduzidos anteriormente, é interpretada como "movimento'' dos momentos superados em ( 3) : o mediatizar é uma imediatidade em devir, isto é, o movimento dialético sempre leva, através da ramificação, de volta à imediatidade, ao ser. Aparece, assim, na análise da
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experiência uma estrutura conceitual que deverá ser considerada, na Lógica, puramente como tal. b)
Percepção
A análise da certeza sensorial levou ao resultado de que em toda experiência de objeto está contido algo de universal ou de que nenhum juízo sobre objetos da experiência é possível sem determinações universais. Por esta razão, um objeto dado sensorialmente só pode ser pensado como este objeto concreto, ele só pode ser representado como dado aqui e ag:ora; a localização de um aqui e agora pressupõe, porém, uma ordem espacial e temporal, um quadro espaço-temporal universal, dentro do qual se pode atribuir a cada indivíduo um lugar próprio. O mesmo vale para outras determinações do objeto: a predicação de propriedades supõe a existência de um quadro conceitual. Não se pode L:izer de uma coisa, por exemplo, que ela seja vermelha, se as relações de "vermelho" para com as demais cores do prisma e o conceito "cor" não são conhecidas. A consciência dos objetos no contexto das determinações universais se chama, segundo Hegel, "percepção", excluindo-se a significação psicológica desta expressão. Trata-se, antes, de uma redefinição deste termo, segundo a qual ele significa "experiência de um objeto determinado por propriedades universais". Como, para Hegel, o universal é o verdadeiro, surge a impressão de que esta definição recorre à etimologia do termo *. A "percepção", enquanto apreensão das determinac;ões universais, é negação da imediatidade sensível do objeto (do "isto"), no sentido da negação determinada. O momento da imediatidade sensorial é "superado" nela no duplo sentido que Hegel atribui ao termo: na "percepção", (a) a imediatidade sensorial é negada, na medida em que o objeto da percepção é determinado e, por conseguinte, "mediatizado" por relações universais; nela, (b) as propriedades imediatamente presentes são mantidas, isto é, a coisa continua aparecendo como esta coisa vermelha, triangular, etc., mas elas são retidas pela
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NOTA DO TRADUTOR: O termo alemão original "Wahrnehmung", traduzido aqui por percepção, se decompõe, etimologicamente, em "Wahr-Nehmung": apreensão do verdadeiro; daí a relação estabelecida pelo autor.
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"percepção" como casos do universal. A coisa é vermelha na medida em que participa da "vermelhidão", etc. É sobre o fundo desta concepção realista do conceito que se deve entender a dialética da coisa individual e das propriedades universais, da unidade (do objeto) e da multiplicidade (de suas propriedades), afirmada por Hegel. Esta dialética do uno e do múltiplo só pode ser compreendida com a suposição do realismo dos universais, segundo o qual o universal é o "verdadeiro", como diz Hegel. Se um universal subsistente corresponde às determinações das coisas, aparece· então, de fato, o problema da individuação, isto é, deve-se explicar como se pode "compor" uma coisa individual a partir de puros universais. Inversãmente deve-se perguntar como é possível que um objeto possa sê-lo justamente por participar da multiplicidade de universais logicamente independentes entre si.
Por ter assumido o ponto de vista do realismo dos universais sob forma própria, como se mostrará - Hegel tinha de problematizar. frases do tipo "este ~rão de sal é branco, tem um gosto forte e forma cristais cúbicos", etc. São independentes entre si mas determinações de uma mesma coisa, isto é, elas existem ao mesmo tempo no mesmo setor do espaço (na mesma "coisidade"). Mas não só isso: se o objeto da percepção deve ser pensado adequadamente, então as determinações (o múltiplo) não só estão ligadas. exteriormente, a um aaui e agora determinndo, isto é: a coisa não deve ser entendida apenas como um complexo de determinações relativamente constante, o qual pode ser designado pelo mesmo nome, justamente por causa da constância das relações entre as propriedades (como pensava Locke); mas tnmbém se chama de "coisa" uma unidade conceitual e não apenas uma relação visível de determinações variadas. Em uma palavra, "coisa" não exprime uma concepção nem um conteúdo sensorialmente certo, mas um conceito. Hegel pode seguir aqui Kant diretamente, o qual havia oposto, ~o empirismo contemporâneo, que algo só pode ser objeto para nós enquanto determinado conceitualmente (por exemplo, como causa ou efeito, como substância, etc.). À concepção do objeto como mero complexo de propriedades (co~? o "coisidade", diz Hegel), corresponde a concepção de que as propriedades são determinações independentes entre si, unidas somen-
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te de maneira espaço-temporal. Esta concepção é tão incontestável quanto a concepção correspondente de coisa. Toda determinação exclui outra, segundo o princípio omnis detorminatio est negatio, pelo que é vão o pressuposto de que as determinações não estão em relação entre si. Correspondentemente, a unidade da coisa se apresenta como unidade da exclusão do outro (da mesma forma como a ontologia escolástica tinha visto o unum e o distinctum como determinações transcendentais do ser). Esta unidade negativa da coisa, no entanto, é ainda insuficiente para chegar ao conceito pleno e adequado de coisa: deve-se passar à unidade positiva do múltiplo, ou seja, devemos captar a coisa como unidade conceitual de propriedades. A coisa, no sentido pleno da palavra, não é una pelo fato de ser distinta de outra, mas pelo fato de ser una para si mesma, em virtude de sua essência. A "coisa como o verdadeiro de percepção" (li, 95-96) não é apenas conjunto externo de determinações múltiplas, nem meramente o "também de muitas propriedades ou, melhor, matérias" (li, 96) (pois só se pode falar adequadamente de "propriedade" por relação ao conceito adequado da coisa) ; mas é, sobretudo, unidade essencial, conceitual, de determinações. Enquanto o . conceito adequado da coisa se caracterizar, por um lado, como conjunto de determinações no sentido de "coisidade", e, por outro lado, como unidade conceitual enquanto aspecto negativo do conceito de coisa - segundo se mostrou - tal conceito se manifesta como síntese dialética de "coisidade" e "unidade negativa". (Devemos observar aqui que Hegel fixa a oposição entre "coisa" e "coisidade" por definição e que decreta dever chamar-se "coisa", no sentido próprio da palavra, não apenas o conjunto espaço-temporal, mas também o conjunto conceitual das determinações, simultaneamente mediante a exclusão de outras e mediante a relação para com um fundamento pensado da unidade). Na percepção, a consciência não está exclusivamente presa ao objeto, como na certeza sensível; junto à consciência do objeto se destaca a consciência da captação do objeto, de uma maneira mais clara do que na certeza sensível: o momento da autoconsciência, presente ao menos obscuramente em toda consciência de objetos, começa a tornar-se autônomo. Hegel faz com que este momento se desenvolva em círculo desde a certeza sensível até a percepção, e inversamente: começo com algo diretamente observado, designo-o e digo: "isto
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UNIVERSIDADE FEOERüL DO PARA BlBLIOTEC A CE N TRAL
Filosofia Dialética Moderna aqui". Tudo aquilo de que eu posso dizer "isto" é determinado, e as determinações são algo universal. Na medida em que considero a coisa como individuação de determinações universais, ela é objeto de percepção. Mas as propriedades universais são sempre propriedades determinadas, concretizadas como propriedades desta coisa individual e, enquanto tais, como conteúdo da certeza sensível. Nem a certeza sensível nem a consciência perceptiva podem ser fixadas: a consciência passa do grau da certeza sensível ao grau da percepção e se vê, de novo, retrocedida ao primeiro grau, porque o objeto da certeza $ensível; como o da percepção, são, como tais, abstracta. Assim que eu entendo isto, conheço, simultaneamente, que toda abstração pressupõe uma consciência abstrativa, tomo consciência de mim mesmo corno consciência r:bstrativa. Hegel fala de um "retorno da consciência a si mesma, o qual se mescla, de modo imediato, na pura apreensão" (II, 98). O perceber não é, pois, pura consciência de objetos, mas, ao mesmo tempo, consciência reflexiva; com palavras de Hegel : "a consciência, em sua apreensão. se reflete dentro de .~·f, ao mesmo tempo, partindo do verdadeiro" (li, 98). Com isto se modifica a apreensão da essência do objeto, do "verdadeiro", de um modo rico em conseqüências, como se verá adiante. Na "percepção", a universalidade do eu corresponde à universalidade das determinações do objeto, ou seja, objeto e eu, constatados primeiramente como momentos da certeza sensível, apresentamagora, como momentos universais da experiência e ~ão, como tais, resultados da análise da experiência. Tanto por referência ao objeto como por referência ao sujeito, vale dizer que a universalidade surgiu como "princípio" da percepção (II, 92) . O perceber e o percebido são igualmente essenciais. Se confrontarmos, porém, um ao outro como o essencial e o inessencial, resultará então urna concepção abstrata e unilateral da percepção, que exige ser superada ( cf. II, 93).
se
De modo semelhante ao que ocorreu na análise da certeza sensível, faz-se patente, na análise da "percepção", que o objeto não pode ser tratado, unilateralmente, como o essencial e o sujeito como o inessencial. N9 caso da percepção, a suposta contradição entre unidade (da coisa) e pluralidade (de determinações) exige encontrar uma ~olução que distinga um lado essencial e outro inessencial da experiência, na medida em que ou a pluralidade é reduzida ao ato de
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perceber, para que seja suprimida a contradição no objeto, como "verdadeiro" ou essencial, ou interpreta a unidade como resultado de. um(! síntese do sujeito, para poder afirmar, sem contradição, ao lado do obJeto, a multiplicidade das propriedades. No primeiro caso, acoisa se apresenta como una, sempre que se suponha que a pluralidade de suas determinações se dá no e pelo ato de perceber ( cf. II, 93). Um grão de sal, por exemplo, é branco enqmmto eu o vejo, é forte enquanto o provo, etc. Esta tentativa de superar a contraditoriedade suposta entre unidade e pluralidade não conduz, decerto, ao fim, pois temos que reconhecer que as propriedades são sempre propriedades de uma coisa determinada, a qual se distingue, como tal, da~~ demais coisas, justamente não enquanto una, mas enquanto determinada por propriedades. As propriedades têm que valer, pois, come propriedades da própria coisa; mais: a coisa consiste na multiplicidade de propriedades - pelo que parece impossível reduzir a pluralidade de determinações ao modo pelo qual a coisa é percebida. Ora, se, por haver fn:cassado esta tentativa, pretendemos que a dificuldade seja suprimida no sentido da possibilidade anteriormente apontada, atribuindo ao sujeito percipiente a função de produzir a unidade das determinações múltiplas, tal como, em Kant, o sujeito deve produzir a unidade objetiva no ato da síntese do múltiplo, então resulta que, como pensa Hegel, a coisa deixa de ser verdadeiramente una; ela só pode ser concebida, pois, como "reunião de matérias", como "mera superfície açambarcadora" (li, 101). Assim, pois, que se atribua a unidade à coisa e a pluralidade ao ato perceptivo, ou que, inversamente, a pluralidade à coisa e a unidade ao sujeito percipiente, fica sem solução o problema que levou· à separação dos momentos de uni· dade e pluralidade do objeto. A coisa não é pura unidade sem pluralidade, nem tampouco pura pluralidade; ela deve ser pensada como unidade na pluralidade ou como unidade determinada multiplamente. Com isto se mostra, de dupla maneira, como "ela contém, em si mesma, uma verdade oposta" (II, 1O1). A atribuição dos momentos de unidade e pluralidade à coisa e à consciência já não é mais necessária, uma vez que a contradição no conceito de coisa já não é chocante. Por conseguinte, não é preciso tentar a eliminação da pretensa contradição, distinguindo pontos de vista a partir dos quais ela apareça ora como una, ora como múltipla. Esta tentativa de resolver o problema mediante a relativização (mediante o "na medida em que" ou
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enquanto que") é, segundo Hegel, um "sofisma" do perceber (Il, 103, cf. 105). )
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Assim como os momentos "contraditórios" não podem ser atri.buídàs à coisa e ao objeto, tampouco podem ser atribuídos a coisas distintas, posto que a essência da coisa, na qual se fundamentam suas relações com as demais, se constitui por meio de relações com outra; por isto, é impossível separar da essêp .~iq as relações de diferenciação. Em terminologia hegeliana: o ser-para-si da coisa não pode determinar-se independentemente do ser-para-outro, e inversamente. 'Poderia justamente parecer que a coisa é um para-si apenas na medida em que não está determinada por uma relação a outra; é, porém, óbvio que uma coisa, enquanto determinada (por seu "caráter nbsoluto"), está em relação com outra e que "essencialmente não é mais do que este relacionar-se" (Il, 103). A negação da autonomia, do ser-para-si da coisa, é, pois, inevitável; a coisa - entenda-se: a coisa como pretensa perseidade de sua essência- desaparece, como diz Hegel. O que antes valia como inessencial, a saber, a relação para com outra na essênCia existente, se mostra como essencial, ou seja, o ser-para-si da coisa não pode ser determinado independentemente do seu ser-para-outro. "Esta determinabilidade, constitutiva do caráter essencial da coisa e que a distingue de todas as demais, se determina agora de tal maneira que a coisa está em contraposição às outras, devendo, porém, manterse para si" ( Il, 103).
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O objeto é, pois, "para-si" na medida eÍn que é "para-outro"; e é "para-outro" na medida em que é "para-si". A separação do serpara-si do ser-para-outro é supressa; já não é mais preciso distinguir vários aspectos, "o objeto é, antes, sob um mesmo e único aspecto, o contrário de si mesmo" ( Il, 104). Fica, assim, refutado o essencialismo que opera com o pressuposto de essências autônomas e autosubsistentes. A essência da coisa se mostra, em virtude de análise da percepção, como determinada por um tecido de relações conceituais, assim · como, no nível da certeza sensível, se manifestara como determinada por relações espaço-temporais. Assim como a necessidade de passar da certeza sensível à "percepção" se seguia ao compreender o caráter universal do referencial espaço-temporal, no qual se insere, intuitivamente, toda coisa dada, vê-se agora também a necessidade de passar da "percepção" ao conceber racional ou ao "entendimento".
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Na percepção, o objeto é captado como uma coisa com mlíltiplas determinações universais, as quais são, na percepção, determinações da coisa presente intuitivamente, percebidas como concretizadas, como universais sensíveis. Na medida em que as determinações universais devem ser pensadas, não apenas como elementos de uma essência autosubsistente da coisa, mas também como constituídas por relações com outras, chega-se a um novo nível de universalidade. A coisa, ou as propriedades da coisa, e, por conseguinte, a essência da coisa, estão determinadas dentro de um contexto de relações conceituais, as quais são universais de modo diferente de como o são as propriedades intuitivas das coisas. Hegel fala, pleonasticamente, de "universalidade incon· dicionalmente absoluta" (II, 205), ou seja, da universalidade de deter-· minações, prescindindo de sua concretização como propriedades de coisas individuais. c)
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A "contradição" no objeto da percepção repousava sobre a consideração isolada dos momentos da unidade (da coisa) e pluralidade (de suas determinações). "Singularidade" e "universalidade" são, no entanto, "abstrações vazias' (Il, 106). Conseqüência do modo abstrato de consideração é o "jogo" descrito anteriormente entre singular e universal. O que é primeiramente captado como essência se mostra como inessencial; o que é primeiramente captado como inessencial se mostra como essencial. O "jogo destas abstrações" (li, 106) se prolonga, enquanto se faz no âmbito do "senso comum são". O termo se dá na passagem à autoconsciência, que intervém na análise do conhecimento do entendimento ou de seu objeto, do universal-incondicionado (ou seja, das relações essenciais universais em sua pura conexão conceitual, independentemente da concretização do universal como propriedade das coisas). Segundo ~e mostrará, Hegel discute, sob o título de "entendimento", a explicação científica dos fatos da observação, no que parte de uma interpretação essencialista determinada dos "princípios" de explicação. Dado que a análise epístemológica da explicação ou fundamentação científica desperta interesse especial na atualidade, é natural que se busque interpretar as explicações hegelianas sobre o tema do "entendimento" relacionando-as com as explicações paralelas da teoria moderna da ciência ou epistemologia.
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Segundo Hegel, o universal-incondicionado, enquanto objeto do entendimento, é concebido como algo contraposto à consciência, como algo estranho. a ela; ou seja, nele, o eu não conhece a si mesmo, o universal-incondicionado ainda não é conhecido como aquilo que é em si, a saber, o "conceito". Na medida em que é considerado como forma essencial do objeto, o universal se apresenta como fundamento das determinações da coisa, como "força", da qual brotam, como exteriorização, as determinações materiais. A essência não deve ser pensada, aqui, como algo autônomo, algo estático que repouse sobre si (lt, 108), mas como constituída por relação dentro de um contexto conceitual abrangente, de sorte que a essência só provisoriamente possa set captada como isolada das relações que a constituem. Se a essência é designada como "força", podemos então dizer que a força pode ser considerada como autônoma, somente no sentido de uma abstração provi·· sória, com relação a seus efeitos, nos quais se exteriorize. A tentativa de pensar a força, prescindido de suas exteriorizações (como força "própria" ou como força "refletida em si") e distinguindo-a da força que se exterioriza, a qual nada mais é sem suas exteriorizações, desencadeia aquela dialética que, também nos outros casos de consideração isolada de momentos não autônomos, leva ao restabelecimento da conexão a que pertencem os momentos. A dialética da força pode ser exposta da seguinte maneira (II, 112-115) : A. Diante da força como "força própria", as exteriorizações são como algo diferente, como algo que advém externamente. A força se manifesta como determinada exclusivamente por sua própria essência. B . Dado que, não obstante, a força se exterioriza necessariamente, não se pode manter a concepção A, ou seja, a exteriorização da força não pode ser separada da própria força. A unidade da força é a unidade das suas exteriorizações. ·
Enquanto determinada por exteriorizações que, por sua parte, estão determinadas por relações com outras forças que desencadeiam a exteriorização da força, esta não está determinada por sua própria essência, como se supunha em A, mas por algo diferente. ·C. A força só pode ser pensada adequadamente quando são consideradas as relações de ação recíproca, nas quais ela existe como
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"força real"; toda "força real" é induzida a operar por outras forças, cuj2s ações, por sua vez, são desencadeadas pe~a primeira força. A assim chamada "força própria", pelo contrário, nada é de real, mas apenas um momento (não real, portanto) da força no sentido pleno da palavra. O "jogo de forças", no condicionamento recíproco de suas exteriorizações, determina o fenômeno, forma sobre a qual se apresenta o objeto observado; inversamente, a força, como fundamento do fenômeno, como a essência que está à base do fenômeno, não é, imediatamente, objeto da experiência (no sentido da certeza sensível ou da percepção) mas apenas deduzida; por conseguinte, ela é conhecida apenas mediatamente e é,por fim, objeto do entendimento. Hegel atribui, claramente1 ao entendimento, a função de explicar os fatos da observação por recurso à pressuposição de forças já não observáveis enquanto "essências" dos fenômenos. As forças da essência devem representar, aqui, o em-si, ao qual se hão de reduzir, na explicação, os fatos observados como fenômenos. O entendimento pensa, pois, algo "supra-sensível",ou seja, não diretamente observável, como "mundo verdadeiro" por detrás dos fenômenos ou como permanente "mais além", por cima do mundo mutável dos fenômenos. Não deveria restar dúvida acerca do que Hegel, l!a medida em que determinou a reali-· dade verdadeira como "reino tranqüilo das leis" ou definiu o "interior" das coisas como lei da troca recíproca do fenômeno, tinha em vista o essencialismo da ciência natural moderna e da filosofia da natureza, como, por exemplo, o de um Galileu, segundo o qual as leis devem ser interpretadas como princípios inamovíveis tanto da realidade como do conhecimento. Hegel não se identifica, em absoluto, com este existencialismo, não porque recuse o essenci.:tlismo globalmente, mas porque o via como estático, pelo que o rejeitou. Com o "reino tranqüilo das leis" se logrou, segundo Hegel, algo de verdadeiro, mas não a verdade plena: "não esgota o fenômeno" (II, 122) . Isto significa que somente uma parte do fenômeno pode ser entendida como exteriorização do "interior", do "reino das 1eis", mas nenhuma outra parte deste. Em virtude de podermos falar apenas estritamente de "fenômeno", na medida em que o interior s~ "exterioriza", o que chamamos inicialmente de fenômeno não é, absolutamente, fenômeno no sentido pleno da palavra. Hegel via, nesta circunstância, a
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expressão de uma deficiência da lei, a qual não pode ser superada nem mesmo pela introdução de uma pluralid2.de de leis, mediante as quais se pudesse conceber as demais partes do fenômeno como exteriorizações do interior. Pois, com a instituição de uma pluralidade de leis, se problematiza a unidade do "interior" do fenômeno, a qual, segundo Hegel, não deve ser sacrificada. É, pois, necessário conceber a pluralidade das leis especiais como resultado da especificacão de uma lei universal. (Assim, a lei da gravidade e as leis do movimento dos planetas devem ser subsumidas à lei de atn:::ção das massas: II, 122.). Mas também a supressão da nova "deficiência" da pluralidade das leis por subsunção a uma lei mais geral só gera, flOr sua vez, uma nova deficiência: a "deficiência" de uma abstração maior de uma lei mais geral. Obviamente, Hegel tinha em vista, aqui, a estrutura das fundamentações ou explicações científicas, embora ele mesmo utilize a expressão "explicação" em outro sentido, como se exporá mais adiante. De qualquer maneira, é impreciso ~firmar que o objeto das explicações científicas é formado pelos fenômenos 16 • De fato, não se explica um fenômeno na plenitude de suas determinações, mas apenas um ou outro dentre os fatos referentes a tal fenômeno, este ou aquele estado de coisas. Em outros termos: a explicação científica fornece uma resposta à questão: "Por que este fenômeno é tal qual?" Dado que, portanto, não se espera que as explicações científicas se refiram aos fenômenos em sua globalidade, não convém, como Hegel o fez, designar, como uma deficiência da explicação científica enquanto tal ou das premissas legais que são empregadas nela, a circunstância de que só podem ser explicados os "fatos" (ou estados de coisa) que valem unicamente com relação a fenômenos. Está claro que a deficiência presumida, que existe aqui, jamais poderá ser completamente supressa pelo fato de que se faça sempre uma nova explicação dos fatos concernentes ao fenômeno em questão por adjunção interior de leis especiais. Dado que há uma pluralidade infinita de fatos que concernem um fenômeno, a "deficiência" a que se alude existirá sempre, por princípio. Não deve ser visto, ademais, como deficiência, que a lei mais geral, à qual se subsume uma série de leis especiais, ·seja "uma lei que elimina sua determinabilidade" (li, 122) ; ou seja, as leis mais especiais não podem ser derivadas de leis apenas mais universais (li, 122-123), mas unicamente mediante certas condições concretizadoras, assim como a explicação científica de fato não se dá somente mediante
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proposições legais, mas também medinnte proposições sobre as condições antecedentes ou concomitantes. Hegel acreditou que, pelo caminho da subsunção progressiva de leis mais especiais a leis mais universais, chega-se finalmente a mais universal de todas as leis, a mais vazia de conteúdo, que nada mais exprime do que a forma da legalidade em geral. Ele identificou esta lei, que é a mais universal e vazia, à lei da atração das massas (gravitação universal), pela qual o entendimento pode exprimir apenas que "toda realidade ( ... ) é, em si mesma, conforme a lei" (li, 123). Toda lei exprime, segundo Hegel, uma diferença, isto é, nela se afirmam estados distintos que se encontram em relac:ão invariável entre si. Na medida em que exprime um conjunto de estados, a lei contém o aspecto da unidade e corresponde, assim considerada, ao conceito de força, o qual deve fund<:lmentar, corno base unitária, suas diferentes exteriorizações. Na medida em que põe os referidos estados, enquanto distintos e relacionfidOs entre si, a lei contém também o aspecto da diferença. Segundo Ilegel, pode-se distinguir dois lados da lei: o lado da unidade e o lado da pluralidade. Com palavras de Hegel: "A lei existe ( ... ) de modo duplo" (li, 124). O momento da pluralidade não pode ser derivado do momento da unidade (a lei como força simples), isto é, por exemplo, do conceito de eletricidade como forc;a não se segue que existam cargas elétricas negativas ou positivas, nem que exista, entre el:.:s, uma relação conforme a lei. Do conceito de força de gravidade não se segue a lei da gravitação, a qual exprime uma relação entre tempo de queda e velocidade. Os momentos, cuja relação é o movimento, são "indiferentes entre si", assim como se pode dizer, em geral, que a força é sempre "indiferente" com respeito à lei (li, 125). Isto é suscetível de ser interpretado no sentido de que, a partir do conceito de forç a da gravidade, ao qual deve-se poder reduzir b movimento de gravitação, não se pode obter a lei da gravitação; ou melhor, deve ser formulada e examinada empiricamente como relação hipotética entre os "momentos" obtidos pela análise do conceito de "movimento de gravitação". Hegel tem razão, pois, quando constata que, dq conceito de uma forc;a não pode seguir-se a distinção dos momentos de sua exteriorização; dos conceitos dos momentos tampouco pode seguir-se, porém, sua relação conforme a lei. As relações expressas na lei não estão "postas na própria coisa", mas existem apenas no entendimento ( II, 126); este é um resultado que, aos olhos de Hegel, é apenas pro-
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visório, uma vez que a interpretação tentada aqui tampouco atinge o ponto de vista definitivo de Hegel. Hegel fala de "explicar" de modo diferente do que se utiliza na interpretação esboçada acima. "Explicar" significa, para ele, "reduzir uma lei a uma força que se exprime na lei". A lei é concebida como uma conseqüência da força; e esta é o fundamento da lei. Tal redução é, para Hegel, um mero "movimento do entendimento", cujo resultado só pode ser expresso de maneira tautológica; pois, de uma parte, a força se dá como fundamento da lei e, por outra parte, afirma-se que o fundamento opera tal como a lei o exprime. O entendimento procederia da mesma forma que aquela famosa "explicação", segundo a qual o ópio faz dormir porque tem força para fazer dormir. A diferença entre força e lei não é, por conseguinte, uma diferença real, devendo, pois, ser superada. A diferença entre força e lei nâo é, decerto, superada absolutamente, mas apenas enquanto diferença na própria coisa; ela continua existindo como diferença no entendimento: "Nossa consciência passou do interior como objeto ao outro lado, ao entendimento e encontra, aqui, a mudança recípt;oca" (li, 128). Parece que Hegel pretende indicar que depende do ponto de vista tomado atribuir a mudança recíproca à essência da coisa ou ao entendimento. Como a mudança recíproca dos momentos, tal como está expressa na lei, é neutra com respeito à sua interpretação como movimento na própria coisa ou como movimento do entendimento, pode-se prescindir da interpretação e então resta a pura mudança recíproca: "Esta mudança ( ... ) se apresenta como mudança pura, porque o conteúdo dos momentos da mudança continua sendo o mesmo" (II, 128). "É a própria mudança que se apresenta como jogo de forças", diz Hegel, dando uma indicação para que se entenda esta frase difícil: assim como a força e o momento desencadeador da ação da força se distinguem, continuando a ser uma mesma força real, assim se distinguem a força e a lei de sua ação, continuando a ser um mesmo interior da coisa. A distinção pode ser interpretada como movimento do entendimento, mas dado que o interior da coisa é pensado pelo entendimento, a mudança h:::vida no entendimento é, simultaneamente, uma mudança no interior da coisa. A mudança, a modificação é, por isso, lei do interior da coisa ( cf. li, 128).
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Hegel se dispõe, com isso, a superar a última deficiência - decerto não qualificada expressamente como tal - da concepção do "reino das leis": seu caráter estático. O fenômeno mutável não pode ser explicado satisfatoriamente com a ajuda de leis invariáveis, pois o momento de modificação da realidade fenomênica permanece incompreendido. Segundo Hegel, pois, o interior das coisas não pode ser determinado como reino de leis estáticas: o ou e se via, tradicionalmente, como em repouso, deve ser reconhecido êomo móvel; o que valia como igual (a lei como diferença que permanece igual a si mesma ou, dito de outro modo, como forma idêntica da relação de estados diferentes) se mostra como "desigual". Com isto chega-se a uma nova concepção da lei, segundo a qual ela exprime "o converter-se do igual em desigual e o converter-se do desigual em igual". A única constante é a modificação, a "constância da inconstância" (11, 129). · O supra-sensível, do qual se falava inicialmente ("o primeiro mundo supra-sensível': II, 129), era pensado como um reino de leis imutáveis; como tal, sofria da "deficiência" de que o fenômeno variável não podia ser explicado perfeitamente por essas leis. Ora, na medida em que, a um mundo de leis estáticas se opõe um mundo "invertido", pensa-se um segundo supra-sensível que leva em conta o momento de modificação no fenômeno. Somente agora "o interior se aperfeiçoa ( . .. ) como fenômeno" (II, 129), ou seja, já não subsiste nenhum aspecto essencial do fenômeno que não deva ser concebido como expressão do interior. 17 Somente se visto superficialmente, o "mundo invertido" se apresenta como o contrário do primeiro mundo supra-sensível, do mundo tranqüilo das leis (assim, por conseguinte, o que seria doce segundo a lei de um, seria amargo segundo a lei do outro, o que seria o pólo norte magnético em um, no outro seria o pólo sul, etc.) ; na verdade, não há diferença entre duas realidade3, mas "há de se pensar a mudança pura ou contraposição em .~i mesma, a contradição" .18 A obscura teoria acerca do mundo invertido deve fundamentar a idéia de uma "inversão" do essencialismo dominante desde a Antigüidade. Para poder explicar isto, temos de recordar primeiramente que "lei" significa sempre, no modo de pensar de Hegel, "lei da essência". Também as leis da ciência natural são interpretadas essencialistica-
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mente neste sentido, ou seia, como algo pertencente à essência da reali· dade, constitutivo desta. Não devemos esquecer que a ciência natural moderna pensou de modo amplamente essencialista, ao compreender as leis naturais corno princípios formais da realidade. Isto se exprime claramente na filosofia de Kant, ao falar da possibilidade de uma teoria racional da natureza, a qual se contrapõe à ciência propriamente empírica, e ao afirmar que suas leis fundamentais podem ser conhecidas a priori, nao sendo, portanto, meras leis da experiência. As leis, neste entido não-empírico, constituem, em geral, prirnariarnente,a natu~eza , pois uma coisa pertence à natureza somente quando está submetida a leis a priori. Portanto, a essência, a natureza das coisas, é constituída não por leis aceitas hipoteticamente para servir à explicação, mas por leis necessárias.19 A lei, no sentido pleno, exprime assim - dito de uma maneira não-kantiana - a forma essencial das coisas naturais; obviamente, estas últimas não são coisas em si, mas fenômenos , e as leis, a priori possuem realidade apenas no sentido de realidade empírica, realitas phaenomenon. Assim como rejeitou a concepção das essências enquanto princípios formais das coisas, princípios autônamos, independentes de toda relação com o restQ, Hegel corrige também a concepção estática da essência, introduzindo a represent?.ção do mundo invertido. Só se compreenderá adequadamente a estranha teoria do mundo invertido quando se vir este como roupagem metafórica do essencialismo dinâmico pelo qual Hegel substituiu o essencialismo estático tradicional. Para exprimir o caráter dinâmico do reino das leis, Hegel apresentou o mundo supra-sensível como contraditório. Na medida em que exprime, de uma maneira essencial para o mundo invertido, a conversão do igual em desigual e a do desigual em igual, a lei exprime também implicitamente a coincidência de ser e de não-ser; destarte, o devir na Lógica hegeliana é determinado. Pensar algo como autocontraditório (ao mesmo tempo doce e amargo, positivo e negativo, etc.) e como variável significa a mesma coisa para Hegel. Com isto, "todos os momentos do fenômeno", ou seja, também o momento da variabiJidade, podem ser reduzidos ao "interior" da coisa. A lei é determinada como "infinitude".
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Não devemos, decerto, perder de vista que, em Hegel, as considerações sobre o caráter do "interior" das coisas ou sobre o "mundo supra-sensível" não são um diagnóstico fenomenológico, mas, aberta· mente, especulações metafísicas. Devemos observar, sirimltaneamente, que sob o título "entendimento" se considera não só uma espécie determinada de experiência de objetos, mas também uma noção histórica do conceber racional (ou da explicação científica), especialmente no âmbito da Física. Insinua-se r:qui, com isto, a tendência que já se manifestara no capítulo dedicado à "razão", a saber, a tendência a passar da análise sistemática à consideração dos graus de desdobramento objetivo da consciência (como estoicismo, ceticismo e ilustração). d)
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Hegel formulou o resultado das análises realizadas sob o título "entendimento" dizendo que, na explicação dos fenômenos, o entendimento dialoga consigo mesmo ( Il, 136), pois é ele próprio este "interior d2s coisas" que ele pensa. O entendimento, pois, na explicação científica, tem apenas experiência de si mesmo; a consciência do "interior" das coisas é "consciência de si mesmo em seu ser-outro" (II, 137) e. portanto, autoconsciência. Isto é exato na medida em que o "interior" das coisas, e "mundo supra-sensível", não passa do complexo hipostasü:do das suposições construídas para servir à finalidade da explicação dos fatos observáveis (do fenômeno). Neste sentido, Hegel tem integralmente razão ao afirmar que se trata de uma "visão do interior no interior" (li, 13 7); aqui, o primeiro interior é o entendimento, o segundo interior é a essência da coisa. Decerto, para Hegel, tanto o "interior da coisa" como o objeto em geral (cuja "essência" é o interior) se faz posição do eu: "a consciência de um outro, de um obieto em geral, é ( ... ) , ela própria, necessariamente autoconsciência" (II, 137). A suposição de Fichte, segundo a qual o objeto (o não-eu) é posto pelo eu, está expressa em Hegel da seguinte maneira "Eu me distingo de mim mesmo e sei, imediatamente, que este eu distinto não o é de fato" (II, 137). Isto significa que o eu uno se divide, no sentido da relação sujeitoobjeto ("eu me choco comigo mesmo") sem que o objeto distinto do sujeito deixe de ser no eu ("este diferenciado, posto como algo desigual.
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não constitui, imediatamente, enquanto diferenciado, nenhuma diferença para mim" (li, 13 7). Como o interior das coisas e o entendimento que !1ensa o interior coincidem, coincidem também aqui certeza e verdade. Embora o objeto pare~a opor-se ao su~eito como algo distinto dele, não se distingue, ecerto,da consciência; por conseguinte, a certeza do objeto não é certeza de algo outro, mas da própria consciência (li, 139 ). A consciência se experimenta no conhecimento do próprio ob_ieto, o eu é o conteúdo da relação de experiência e do próprio ato de relacionar. Na autoconsciência se manifestam a singularidade do pensar, a universalidade da percepção e o interior que o entendimento pensa: "superados" como "meros momentos", como "abstrações , ou seja, deixam de valer como algo que existe autonomnmente. A autoconsciência apresenta a superação da oposição entre consciência do objeto c consciência do sujeito; não é, pois, consciência reflexiva de um eu observável isoladamente (tal consciêhcia não existe), mas consciência de igualdade do eu tanto na consciência dirigida objetivamente como na consciência reflexiva. A autoconsciência não é, pois, cons.ciência imediata do eu, mas está mediada pela consciência do ob~eto, na medi· da em que o objeto é, por uma parte, posto, e, por outra parte, negado como dgo alheio à consciência. "A autoconsciência . . . só está certa de si pela supressão deste outro, que se contrapõe a ela como autônomo" (II, 145-146). A tendência da autoconsciência em sw_Jerar a oposição entre fenômeno (da aparente autonomia do objeto) e verdade (da suoressão da autonomi& do objeto na autoconsciência) chama-se, em Hegel, "instinto". O objeto, autônomo para a experiência imediata, apresenta-se no contexto da teoria hegeliana da experiência, como algo de nulo, cuja "aniquih:ção" é baseada pela autoconsciência, sem poder alcançar esta meta, pois, com a satisfação do instinto, esta perderia o seu objeto, com o que a autoconsciência ~essaria de ser caracterizada no sentido do instinto. Como isto é, segundo Hegel, impossível, o objeto não pode ser, punl e simplesmente, suprimido em sua autonomia: a autoconsciência experimenta a relativa autonomia do objeto. .
O objeto é, assim, chamado de dependente, por um lado,e de autônomo, por outro lado, neste caso porque a autoconsciência não o pode suprimir definitivamente, uma vez que a experiência está permanentemente suposta como relação sujeito-objeto. Da insuprimibilidade do
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objeto Hegel tira a conseqüência de que este, no fundo, não pode ser posto pelo eu finito, pois ,se assim fosse, deveria poder ser suprimido também em sua autonomia. Aqui já aparece, com clareza, a concepção de que o caráter de objeto deve ser entendido como posição não do sujeito finito, m«s do sujeito absoluto. O instinto vai no sentido da supressão do objeto enquanto autônomo, alcançando sua meta na medida em que se mostra que o eu só experimenta a si mesmo no objeto. Como o objeto, porém, não pode ser supresso pura e simplesmente, na medida em que experiência é sempre experiência de algo, aparecendo de certo modo, como autônomo, Hegel pensou poder interpretar a supressão (relativa) do objeto como sua própria auto-supressão. Do que pareceu-lhe decorrer que o objeto dev2 possuir, no fundo, o caráter de consci&ncia, pois somente por tal suposição sua autonegação seria concebível. Sem dúvida, por causa da equivocidade da expressão "autônomo", este resultado é dúbio mesmo do ponto de vista formal. Um objeto é "autônomo" erp. primeiro lugar, na m~dida em que seja insuprimível na experiência imediata e, em segundo lugar, na medida em que se apresenta como independente da consciência no âmbito da teoria da experiência. Segundo Hegel, o objeto é autônomo apenas no primeiro sentido, sem o ser no segundo. A afirmação da dependência do objeto depende da teoria da experiência precisa desen· volvida por Hegel, enquanto que a autonomia do objeto, no primeiro sentido, é constatada de forma descritiva. Apenar. se o objeto pudesse ser caracterizado, num mesmo sentido (o que é impossível), tanto como dependente quanto como autônomo, é que se poderia tentar interpretar a negação do objeto, isto é, a supressão de sua autonomia . .como autonegação. Hegel desejava, decerto, caracterizar como ded~a a idéia pressuposta, de que "eu" e "objeto" designam apenas momentos da consciência em si ou do espírito, entabulando, assim, a transição para o nível da .razão. O conceito do espírito se caracteriza, ainda, não somente pela unidade de autoconsciência e consciência do objeto, mas também pela unidade de todos os eus finitos. "Ao ser uma autoconsciência objeto, este é tanto eu quanto objeto. - Já dispomos aqui do conceito de espírito. Dar-se-á ainda
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para a consciência a experiência de que o espírito é esta substância absoluta, que, na liberdade perfeita e na nutonomia da oposição de autoconsciências diferentes existentes para si, é destas a unidade: o eu que é nós e o nós que é eu" (li, 147). A transição da autoconsciência individual, inicialmente pensada teoria da experiência, para a consciência em si, como unidade de todas as autoconsciências, não oode valer como resultado da análise fenomenológica, mas constitui um pressuposto indemonstrad~, necessário para as considerações que se seguirão, de início, sob o título de "Senhor e Escravo". Por importantes que estas considerações possam ser e por interessante que se~a a dialética concreta nelas elaborada, não podemos deter-nos nela, dado que a presente exposição leva em conta a estrutura fundamental da dialética e não seus desdobramentos. 2° Com outras palavrns: a presente exposição extrai da Fenomenologia · do Espírito as linhas de pensamento que podem valer como elemento de uma metafísica descritiva da experiência. nr~
Tampouco é possível determo-nos nas demais considerações sobre o tema "r:utoconsciência", nas quais a liberdade do eu pensante, que não desaparece em um outro, mas que, constituindo uma unidade com seu objeto, permanece em si e reconhece o movimento de seus conceitos como movimento em si (Il, 159) e que formam o ponto de partida para a análise do estoicismo, do ceticismo e da "consciência infeliz". Ainda menos poderemos examinar como a duplicação da autoconsciência na "consciência infeliz", essencial para o conceito de espírito, ainda não intui sua própria unidade (Il, 166) e como se dá ~ transição para r: razão pela mperação da oposic;ão entre consciência mutável inessencial e essência imutável, em que surge mediação entre ambas através de um "abrandamento" da consciência em sua unicidade~1. A consciência individual "sacrifica" sem querer e agir, seu trabalho e a propriedade por este adquirida, seu gozo da propriedade (II, 179) e preserva assim, pela ação, a renúncia ao seu próprio eu, a qual não -nr:ssaria, senão, de um -processo meramente interno (II, 180). Assim como, na renúncia à própria vontade, estão contidos os aspectos tanto negativo do próprio processo quanto positivo da posição da vontade como algo de genérico, assim também a autoconsciência se torna algo de genérico r:través do "holocausto" de sua autonomia individual, pelo que o nível da razão deve ser alcançado
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como "a certeza da consciência de ser, em sua unicidade, absolutamente em si" (11, 181). Desta forma, algo só vale como em si, n:1 medida em que é para a consciência é em si. Com o nível da razão alcançou-se o saber absoluto. e)
Razão
"Razão" designa, em Hegel, a síntese de consciência (do objeto) e autoconsciência. Na r..utoconsciência, o eu se reconhece em seus objetos, sem apreender ainda, porém, sua unidade com a consciência em si enquanto espírito, que é, ao mesmo tempo, substância absoluta e sujeito absoluto. Ao dizer que "a autoconsciência é razão" (li, 183), Hegel diz que .aquela está "supressa", como momento, na razão. O mesmo vale !Jara a consciência (do objeto) : ela está "supressa"', co:no momentc, na considera~ão racional da realidade. Tanto a autoconsciência como a consciência do objeto são, r..qui,modificadas: a autoconsciência deixa de buscar autonomia e liberdade à maneira dos seres finitos, dado que ela se reconhece como a realidade pura, não mais podendo afirmar, contra esta, sua autonomia; a consciência do objeto deixa de ser consciência de uma realidade independente do eu. Para o idealismo {II, 183 sqq.) alcançado no nível da consideração racional da realidade surge um novo mundo, não no sentido de que realidade experiencial receba eventuais novas determinações, mas no de uma reinterprelação da teoria da experiência de "sujeito" e "ob.ieto", reinterpretação esta que, segundo Hegel, resulta do raciocínio analítico sobre a percepção, o entendimento e a autoconsciência (aqui no movimento através da autonomia é dependência da consciência em domínio e servidão, através da concepção estóica da liberdade, a liberação cética e a liberação absoluta da consciência dividida em si). O princípio da unidade da autoconsciência e da consciência do objeto só escapr.. do perigo de dogmatismo, segundo Hegel, enquanto resultado da análise da experiência. É , sem dúvida, correto, que a análise fenomenológica de Hegel não comeca com um pressuposto expressamente dogmático; está, no entanto, igualmente claro que ela não se pode, de forma alguma, formular como o orocesso esboçado, independentemente dr. suposição tácita da unidade sujeito-objeto no saber absoluto. Hegel exprimiu-o com clareza toda especial no prefácio à Fenomenologia:
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"O puro reconhecer-se-a-si-mesmo no absoluto ser-outro, este éter como tal, é o fundamento e o terreno da ciência ou o saber em geral. O começo da filosofia pressupõe ou exige que a consciência se encontre neste elemento. Este elemento, porém, alcança sua plenitude e transparência somente através do movimento de seu devi r" (li, 28). A tese, de que a razão se caracteriza pela certeza de ser toda a realidade, refere-se primeiramente à realidade in abstracto e necessita, pois, segundo Hegel, do desenvolvimento dialético no sentido da supração da abstração. A consciência deve progredir da categoria pura de unidade entre autoconsciência e ser, através da especificação d::t mesma numa multiplicidade de tipos, até a individualização em objetos concretos e tanto distinguir-se deste movimento como unidade em repouso como com ele identificar-se. Na superação do idealismo abstrato desenvolve-se o conceito da mzão como de "razão real", que tem um interesse pelo mundo - corno natural, moral e religioso porque sabe "nada possuir nele senão a si mesma:" ( Il, 190). A razão, que concebera a rnultitude dos conteúdos obietivos como exteriorização da autoconsciência, alcança o nível do saber absoluto, último do pensamento fenomenológico, na intuição de que o espírito absoluto é não apenas conteúdo do pensar, mas também seu sujeito. Interpretando-se o objeto em geral corno "exteriorização" da autoconsciência, a objetividade é "superada"nesta, no que, como HC;gel o sublinha, se deve pensar numa relação não meramente negativa, mas também positiva. A consciência se exterioriza em objeto, mas esta exteriorização se dá na consciência, de forma que a consciência é como obieto (li, 602-603). O objeto como ser imediato, tal como é apreendido pela consciência sensorial, tanto como objeto determinado, constituindo o objeto de "apreensão", ou enfim como exteriori· zação da essência e conteúdo do conhecimento intelectual, se coloca no nível mais. elevado da consideração fenomenológica, como o modo pelo qual a consciência sabe do objetivo, como de si mesma. Na filosofia, pois, trata-se de conceber "saber em peral" como possível. "A meta é a intuição do espírito do que o saber é" (li, 31), declara Hegel expressamente. A solução desta tarefa básica da filosofia analítica da experiência é obtida com o absoluto do "saber conceitual" (li, 610): o saber, em si, é possível porque "o conteúdo recebeu a forma de si", porque ele foi determinado como "o espírito
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que se conhece sob a forma de espírito" (li, 610). Como o eu continua em si ao ser-outro (isto é, como objeto), o conteúdo é concebido ( II, 611). Deste modo, o saber se eleva à ciência, isto é, o espírito se autoconhece como espírito desenvolvido (li, 611). No espírito, a oposição entre o eu específico e geral é superada igualmente como a oposição entre substância e sujeito, entre o todo enquanto objeto da consciência e o todo enquanto objeto da autoconsciência, entre a exteriorização do si e o tornar-a-si do si. Neste nível de reflexão fenomenológica, a perfeição da autoconsciência é alcançada no pensamento do si como ob_ieto absoluto. O sujeito absoluto não significa um absoluto do tipo da substância de Spinoza, na qual as determinações essenciais desc:parecem, mas é, segundo Hegel, espírito, isto é, 'l:llD, si móvel, que se exterioriza como substância, voltando dela a d transformando este movimento em seu objeto próprio. Correspondentemente, as formas da consciência se apresentam, na "ciência", como conceitos determinados em movimento orgânico autofundamentado. Nc: medida em que o espírito autocognoscente se autoconhece imediatamente, ele é uma certeza de algo imediatamente presente, e, neste sentido, do mesmo tipo que a consciência sensível pela qual a análise fenomenológica começou. O fim coincide, assim, com o início, tendo a fenomenologia a forma de um círculo, como Hegel afirma do sistem~ . Cada círculo não deve ser visto como mera repetição, mas como um repassar dos mesmos momentos numa forma superior, enriquecida pelo resultado do círculo anterior. A certeza do espírito absoluto é essencialmente diferente, segundo Hegel, a visão intelectual no sentido de Schelling, dado que ela não possui caráter imediato, mas deve ser obtida como resultado da análisé fenomenológica. Não obstante esta aparente diferença, deve-se constatar que o que é exposto logo como certeza imedü:ta, logo como resultado da análise da experiência, tem o caráter de hipótese metafísica, servindo à construção de uma teoria determinada da expe· riência. O pensamento do absoluto foi concebido por Hegel a fim de poder tornar concebível o s<:ber (a experiência, o conhecimento) como identificação entre sujeito e objeto. Neste sentido, o saber parece ser impossível, se sujeito e objeto são essencialmente diversos entre si, se permanecem s-e parados um do outro por um abismo insu-
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perável (como, por exemplo, entre a res cogitans e a res extensa de Descartes). Somente se se pressupõe, desde o início, que sujeito e objeto são, no fundo, idênticos, é que se pode caracterizar "saber" como "tornar-se iguais" entre sujeito e objeto. Ao falar, desde o início, de "saber" neste sentido, Hegel pressupunha implicitamente, no fundo, um~ unidade ~empre existente. Não é, pois, de se admirar que esta unidade, ao final da análise fenomenológica, na qual são explicitados os pressupostos implícitos, apareça como resultado, isto é, que fim e início coincidam (decerto, porém, um sentido diferente ao pensado inicialmente por Hegel). O idealismo preconizado por Hegel, que não deve ser apenas afirmado, mas t2mbém desenvolvido (li, 184), não resulta de uma mera análise fenomenológica da experiência, só podendo ser fundamentado porque estava pressuposto (implicitamente) desde o início. A reflexão fenomenológica de Hegel Jeve ser concebida, também com 2s restrições formuladas no presente trabalho quanto às passagens de análise da experiência na Fenomenologia, como construção de uma teoria da experiência que, como toda teoria, repousa sobre premissas hipotéticas, as quais contêm conceitos não-empíricos, analogamente aos conceitos teóricos nas teorias científicas.
5.
Teoria da experiência e lógica dialética
Hegel expôs a teoria da experiência como resultado da análi~e do saber, na qual o "saber" é determinado como uma relação entre o sujeito cognoscente e o obieto conhecido, no Eentido da "concordância" entre pensar e ser e interpretado, desde o início, tacitamente, como rela0ão do espírito ~ara consigo mesmo. Isto porque, para Hegel, o es!_)Írito faz-se ob.ieto e, por conseguinte, em cada forma do saber ob!_eti~o conhece apen<:s a si mesmo. Toda tentativa de preferir e isolar um dos momentos da relação sujeito-objeto, chamada de "saber", ~m detrimento do outro, é impraticável, pois o contexto da experiência, inicialmente deixado de lado, deve ser considerado se a exposição tem de ser adequada. Dentro do contexto da experiência, tanto o momento considerado isoladamente como o negligenciado inicialmente (como "negação" do primeiro) se destacam de tal forma ql!e logo perdem sua aparente autonomia e são modificados essencialmente na maneira pela qual o contexto dos momentos é considerado
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Na Fenomenologia, Hegel parte sempre do objeto, de início, como dado sensorialmente, diante do aual o suieito se "autonomiza" provisoriamente e que, com os meio~ da anáÜse fenomenológica, é mostrado como dependente do su_ieito no contexto chamado de "saber". Subsidiariamente, Hegel busca mostrar que o processo partindo da consideração isolada do sujeito cognoscente leva a um resultado semelhante. Neste sentido, Hegel escreve, a propósito do "lado científico" da exposição fenomenológica: "A consciência sabe algo, este objeto é a essência ou o em-si; também para a consciência e~e é o em-si, com isto surge uma ambigüidade deste verdadeiro" (Il, 78). O "verdadeiro" é o ser do objeto para o eu, com o que a significação de "objeto" é modificada ou dá-se um novo objeto, como Hegel o diz, que contém a "nulidade do primeiro" (11, 78). O primeiro momento é pois, neg.:do de certa forma, na medida em que "o resultado respectivo, decorrente de um saber não verdadeiro", ... tem "de E:er entendido como o nada daquilo de que é resultado" ( 11, 79). O objeto modificado, isto é, o objeto que já não é mais considerado como autônomo diante do sujeito cognoscente, mas expressamente corno objeto conhecido, é objeto enquanto pensado dentro do sentido de "saber" pressuposto, sendo que o objeto originário fora considerado independentemente da relação designad2 por "saber", abstraindo-se do "meio" do saber. Com outras palavras: Hegel abstrai, inicialmente, de que "objeto", segundo seus pressupostos, significa sempre "objeto para um sujeito"; apenas com o destaque dado, ulteriormente, .: este pressuposto, é que "objeto" ganha o significado adequado. Como se trata de uma reinterpretação de "objeto" (igualmente da superação de um equívoco, introduzido na exposição como uma interpretação possível), Hegel pode falar de uma "conversão da consciência", na qual surge uma nova "forma de consciência" (11, 79). Como o que foi dito deve valer para todas as etapas da análise fenomenológica, e como os momentos do "reino da verdade do espítito" inteiro, segundo Hegel, surgem na "experiência que a consciência tem de si mesm
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na qual os momentos do movimento do espírito surgem "não mais como formas precisas da consciência ... , mas ... como conceitos determinados e como movimento orgânico autofundamentado da mesma" (li, 617). Hegel destaca o pensamento do paralelismo entre os momentos (lógicos) da "ciência" e as formas da consciência ao dizer: "O momento aparece (scil. na "ciência") não como o movimento de ir d1 consciência ou reoresentacão à autoconsciência e desta voltar, mas sua forma pura, Überta d~ manifestação na consciência, o conéelto puro e seu movimento dependem exclusivcmente de sua determinação pura. Inversamente, a cada momento abstrato da ciência corresponde uma forma do espírito que se manifesta" (Il, 617-618). E, no "prefácio" (escrito posteriormente) à Fenomenologia, Hegel concebe a relação entre fenomenologia e lógica da seguinte forma: "Nela (::: fenomenologia) o espírito prepara para si o elemento do saber. No elemento do saber, os momentos do espírito se expandem na forma da simplicidade, que sabe seu obieto como a si mesma. Estes momentos não se dissociam mais na O.!_)osição entre ser e saber . . . O movimento dos momentos que se organiza como um todo no elemento do saber é a lógica ou a filosofia especu!ativa" (Il, 37-38). Não se exporá, aqui, novamente, que aquilo que o "espírito se prepara", no decurso da análise fenomenológica, ~egundo Hegel, não passa do processo hipostasiado de explicação dos pressupostos gerais, próprios a urna teoria dn experiência. Esta ganha forma através daquela de maneira que não é o objeto, cujo desenvolvimento se dá na fenomenologia, "que se dá à consciência, sem saber o que lhe ocorre" ou nem que o desenvolvimento fenomenológico se dê "pelas costas" da consciência ( Il, 79). Na realidade, o que Hegel interpreta como um acontecimento por detrás da consciência, é o processo du explicação sucessiva de uma concepção teórica, cujos pressupostos são efi:azes inicialmente apenas de modo implícito. Aqui tampoucv se trata da questão de saber se o paralelismo entre as formas da consciência e os Il).Omentos lógicos, dirmada por Hegel, possa ser provada d~ fato, mas da questão genérica da própria formulação de um tal parale·
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lismo, isto é, como se pode obter uma lógica dialética a partir de uma teoria da experiência. Na introducão à Ciência da Lógica, Hegel declara que dera, na Fenomenologia do Espírito, um exemolo do método da lógica esp eculativ~ (que nada mais é do que "a consciência da forma do automovimento interior do conteúdo") num objeto concreto, na consciência (IV, 51). A rela~ão entre a lóqica e a fenomenologia pode ter-se apresentado a ele, de fato, retrospectivamente, assim; vista do ponto de vista da Fenomenologia, a dialética da teoria da experiência não pode valer como um caso de aplicação da dialética como lógica a título de exemplificação. Pois mesmo se Hegel tenha tido diante dos olhos uma lógica precisa ao elaborar a Fenomenologia e mesmo se esta lógica tenha influenciado a composicão de obras, as análises fenomenológicas não pressupõem esta lógica, mas servem, no máximo, para justificá-la por uma analíticG da experiência. A lógica que permeia a Fenomenologia é a forma de teoria da experiência cuja construcão é a finalidade essencial desta obra. O próprio Hegel limitou 2 lógica fundamentada nas anilises fenomenológicas à relação entre as formas da consciência que se (dissolvem) na negação e e·;o:uem para uma forma superior, ao dizer: "Existem aqui (scil. na Fenomenologia) formas da consciência, cada uma das quais se autosuprime em sua própria realização, tem sua negação por resultado - , · com o que passa a uma forma superior" (IV, 51). Segundo Hegel, a intuicão d2 positividade da negação é o resultado es:: enc:ial da reflexão fenomenológica quanto à lógica. "Na medida em que o resultante, a negc:;ão, é negação determinada, ele tem um conteúdo. Ela é um novo conceito, mas superior ao precedente e mais rico do que clé, pois por sua negação e por seu oposto e:e se tornou mais rico; ele o contém, pois, mas também mais·· do que ele, sendo a unidade entre ele e seu oposto" (IV, 51) . Com certeza é, pois, a intuição do processo dialético como tal que Hegel pensa ter obtido pela análise fenomenológica, e não categorias lógicas precisas, embora também a divisão da lógica em doutrina do ser, da essência e do conceito pareça poder ter relacionada à teoria da experiência, se for interpretada como doutrina do pensamento ( 1 ) em sua imediatidade, ( 2) em sua reflexão e ( 3) em sua conversão sobre si mesmo ( cf. VIII, 199). ( 1) pode ser entendido
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como o ser-em-si do conceito na consciência (do objeto), ( 2) como o ser-para-si do conceito na autoconsciência e (3) como o ser-em-epara-si do conceito na razão. A questão do caráter introdutório à Ciência da Lógica da Fenomenologia não pode ser resolvida sem dificuldades, dados os próprios termos de Hegel. O filósofo afirma, com efeito, de um lado, Cl_Ue a lógica, como disciplina sem pressupostos, não deveria su~or sequer o próprio conceito de ciência, pois este pertencerá ::o seu conteúdo e se daria como seu próprio resultado (IV, 36). Doutra parte,· porém, Hegel declara (mesmo com recurso expresso à constatação anterior), que o conceito da ciência não precisaria de ser justificado na lógica, pois ele o teria sido na Fenomenologia e não poderia ser justificado · de outra forma do que pelo "suscitamento . . . pela consciência" (IV, 44). A produção deste conceito, chamada por Hegel também de "dedução" (IV, 45), é suposta neste sentido pela Ciência da Lógica, como Hegel indica ext_Jressamente (ibid.). A ciência da lógic:1 tem por conteúdo pensrmentos puros, isto é, pensamentos livres da oposição entre sub:etividade e obJetividade. Ela "supõe, assim, a libertação da oposição da consciência" (ibid.), isto é, ela supõe o resultado da análise da experiência na Fenomeno.'ogia. A interpretac:-ão do método analítico da experiência na Ferwmeno.'ogia como um exemplo do método dialético em geral decorre dos pressupostos metafísicos do conhecimento de Hegel, que determinam o caráter da teoria hegeliana da experiência. Como, Eegundo Hegel, a consciência é "o espírito enquanto saber concreto prisioneiro da exterioi-id<:de" (IV, 18), o filósofo pode interpretar o "movimento'' fenomenológico como automovimento progressivo desde o objeto (sei/. a consciência) tem por único fundamento ... a natureza das essências puras, que constituem o conteúdo da lógica .. . Elas são os pensamentos puros, o espírito que pensa sua essência. Seu automovimento é sua vida espiritual e ::quilo pelo que se constitui a ciência e do qual ela é a exposição" (IV, 18). O método utilizado na Fenomenologia não é, pois, segundo a convicção de Hegel, um método imposto de fora ao seu conteúdo, mas "é apenas a natureza do conteúdo aue se move no conhecimento científico~ na medida em que é esta mes~a refle xão que põe e produz
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sua própria determinação" (IV, 17). Ao caracterizar o processo do pensamento que segue este método, através dos passos da determinação intelectual, da superação racional-negativa (ou dialética) das determinações fixas e da produção racional-positiva de um universal contendo o particular, Hegel pensava ter de::crito, com este "caminho que se constrói a si mesmo" (IV, 17), também o caminho da análise fenomenológica . No entanto, se a idéia de urna fenomenologia analítica da experiência parece perfeitamente aceitável, é difícil simpatizar, hoje, com o proieto de uma fenomenologia como caso de aplicação de uma lógica do automovimento "do espírito". A relação entre fenomenologia e lógica é, segundo Hegel, tal que as relações lógicas puras se revelam a nós graças à análise fenomenológica, o que, porém, só é possível porque a consciência, "como espírito que se manifesta ... e se liberta de sua imediatez a concretude exterior" (IV, 18), e,como qualquer conteúdo, deve ser concebida como caso da aplicação da lógica dialética. A dialética da experiência, embora seja em si posterior, é, para nós, anterior. Estes contextos devem ser levados em conta ao designar-se a "ciência do espírito que se manifesta" corno pressuposto da lógica (IV, 71) . O início da lógica deve ser buscado no saber puro, qu~ é "a verdade última e absoluta da consciência" ( ibid.). obtida como resultado da Fenomenologia. O início da lógica é, neste sentido, "mediado" pela análise fenomenológica. Nem por isso este início pode ser dito só "mediado", pois até certo ponto ele é algo de imediato, mesmo se não no sentido do saber imedi&to constituinte do início da reflexão fenomenológica. A imediatidade simples, que deve caracterizar o início da lógica, está determinada como negação da mediação c é, pois, como diversa da imediatidade da certeza sensível, uma determinação relativa (determinação da reflexão) . A "mediação", que deve ser negada aqui, é a que caracteriza os graus da consciência, subordinados ao saber absoluto como relacões entre o eu e o obieto que lhe é estranho; a imediatidade requerida para o início da lógica é, por conseguinte, a unidade do saber puro, na qual a diferença entre subjetividade e objetividade, entre certeza e verdade é superada. "O SLber puro, enquanto inserido nesta unidade, superou toda relação para com um outro ou para com a mediação, é o indiferenciado; esta indiferenciação se auto-supera ao ser saber; somente existe a imediatidade simples" (IV, 72) .
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Quando Hegel diz -poder facilmente mostrar aue o início da filo-· sofia não pode ser nem medi<:to nem imediato (IV, 69), deve-se entender "algo media to ou imediato exclusivamente", ~ois o resultado esboçado das considerações sobre o início indica que este é tanto media to como imediato (em sentidos diferentes). A "imediatidade simples" é equiparada, por Hegel, ao " puro ser", isto é, "ser. . . sem nenhuma determinação ou conteúdo" (IV, 73) , de modo <: valer como início da lógica. Parece que Hegel teria pensado da seguinte maneira: todas as relações de momentos diferentes são negadas no conceito do saber puro,- assim como toda determinação, que é sempre diferenciação; o que eu posso dizer de algo, ao abstrair de todas as rel<:.ções e, forço~amente, de todas as determinações é meramente que ele é; desta forma, "imediatidade simples" significa a mesma cois<:. que "ser". Se tal se aplica à argumentação de Hegel, a transição esboçada é, então, extremamente incerta e seria melhor deixar de lado a tentativa de construir uma interrelação entre o resultado da Fenomenologia e o início de Ciência da Lógica. Resta a exigência de se começar "com o puro simples, igualmente o mais geral e vazio" (IV, 32), afirmando a ligação entre lógica e fenomenologia apenas com relação à estrutura didética, como se fez acima.
6.
A dialética do ser, do nada e do devir
Embora Hegel tenha prevenido que não se limitasse o debate sobre a lógica aos primeiros conceitos desta, pensando, ao mesmo tempo, ter criticado o todo já no início (IV, 33), cabe dedicar atenção especial à dialética do ser, do nada e do devir, não apenas porque ela constitua o início da Ciência da Lógica, mas porque ela foi amplamente desenvolvida por Hegel, porque nela se pode ler, com clareza partícula, o tipo de raciocínio dialético, e, enfim, porque ela teve um lugar de destaque na filosofia dialética posterior, sobretudo materialista. Hegel afirmou, com efeito, de forma abstrata, que se poderia começar, em princípio, em qualquer ponto do sistema, por causa de SUQ forma circular. Em concreto, porém, ele não deixou dúvida alguma de que o ser seja o verdadeiro início da lógica. Apenas outras duas tentativas de início concorrem com este: o início com o eu e o
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com o próprio conceito de "início". A primeira destas tentativas não leva à meta, porque "eu" significa algo de concreto, do qual se deverá primeiramente abstrair, se "eu" deve tornar-se um princípio universal. Isto acontece pela elevação ao ponto de vista do saber puro, tal como o próprio Hegel procede, na Fenomenologia, mas não como o fazem os filósofos que começam com o eu. Eles apenas o postulam, o que implica que seu ponto de partida parece arbitrário (IV, 81). A segunda destas tentativas é atrativa por não começar com uma categoria, mas com uma reflexão sobre o próprio conceito de "início". Um exame mais detido mostra, todavia, que "início" é uma representr:ção que pode ser analisada mesmo não sendo simples. "Início" designa um tipo de devir, na medida em que esta expressão diz que algo ainda não é. "Início" contém, pois, tanto como "devir", os conceitos "ser" e "nada", elementares com relação ao primeiro e, por comeguinte, mais adequados ao início (IV, 77-79). 23 IniCIO
Não teria sentido exigir uma definição da expressão "ser", pois. ela deve designar algo absolutamente simples e imediato, não podendo, destarte, ser caracterizada pela indicação de propriedades. Quando Hegel diz que "o ser é o imediato indeterminado" (IV, 87), não se trata, decerto, da tentativa de uma definição, mas apenüs da tentativa de uma delimitação quanto a todos os conceitos determinados contendo relações; é justamente isto que é pensado ao se definir o ser como indeterminado, imediato, irreflexo e sem qualidades. Ao ser não cr:be sequer a diferenciação quanto a algo de outro. "Ser" não deve ser entendido no sentido do "ente enquanto tal", o qual costuma ser caracterizado pelas determinações transcendentais de unidade e diferença de outro. "Ser" não deve ser pensado, [egundo Hegel, co:no determinado nem por relações internas nem por relacões externas, sendo, assim,inteiramen~e "vazio". Não se trata mais, por conseguin:e, de um conceito no sentido tradicional da palavra, mas de uma expressão incompleta, correspondendo ao simples "que" das constataçõe3 de que algo é. Com n expressão "ser" não se designa, portanto, ne31 o conteúdo da intuição nem o do pensamen~o. Quando He?el diz que "ser" significa o intuir vazio ou o próprio pensar vazio, esta informação não ajuda em nada a compreensão, pois todo intuir é intuir alguma coisa, todo pensar é pensar algo. Hegel terá sido desviado para esta afirmação, possivelmente, pela suposição de que a toda expressão; portanto também a expressão "ser", correspende um ato de represen·
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tação ou pensamento e que se se deve abstrair de toda determinação de conteúdo, como no caso do "ser", corresponde à expressão um representar ou um pensar vazio. Uma expressão sem conteúdo não significa nada, como Hegel deduz, ao dizer que "nada há nela (scil. no ser) para ser intuído .. . O ser ... é, em concreto, nada . .. " (IV, 88). O caráter duvidoso desta transição fica claro se se substitui o primeiro "nada" por "ne· nhurn conteúdo". Do fato de que 2 expressão "ser" não designe conteúdo algum,não se pode deduzir que ela tenha o nada por conteúdo, como pensa Hegel: "Intuir ou pensar o nada tem, pois, uma significação" (IV, 88). Dado que "nada" ou o mero "não", a negação enquanto tal, a "negação sem relc:ção" (IV 89), é, segundo Hegel, tão vazia, indeterminada e sem relações como "ser" e assim como esta última expressão deve corresponder ao intuir ou pensar vazio, a análise parece resultar em que ser e nada sejam a mesma coisa. Com isto está alcançada a síntese entre "ser" e "nada", na medida em que ambas as expre~sõe:; se mostram não apenas idênticas abstrat2mente, mas "superadas" em um terceiro: "A verdade não é nem o ser nem o nada, mas a superação do ser no nada e do nada no ser" (IV, 88-8 9) . Esta asserção não parece suficien:emente motivada, uma vez que Hegel argumentava, inicialmente, apenas no sentido da i?.ualdade de significado de "ser" e "nada". Agora a prova (aparente) da igualdade de significado deve justificar a afirm<;1ção da "transição" de um para o outro e inversamente, apresentando-se ser e nada como iguais e desiguais, mas indissociáveis, "desaparecendo" um no outro. Trata-se, segundo Hegel, de um movimento (conceitual) (IV, 99) , pelo que a síntese deve possuir o sentido do devir. Nada de se admirar que os intérpretes de Hegel tenham eventualmente tentado diminuir a importância dn tríade dialética de ser, nada e devir para a lógica hegeliana, pois a argumentação de Hegel, aqui onde é particularmente clara, é tudo, menos convincente. Não se trata d~ ver nela uma c:plicação da lei lógica da reciprocidade entre compreensão e extensão do conceito, de forma que ~e pudesse dizer que
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"ser", como conceito de maior extensão, teria a menor co:npreensão, igual a zero, demonstrando-se como idêntico a "nada". "Ser" tem, pois, segundo Hegel, nenhuma extensão, pois não significa o mesmo que "ente enquanto tal". A tríade de ser, nada e devir também se presta pouco n s:er pensada como visualização do progresso dialético. Este, partindo da posição de um conceito preciso, deve ser condicion1do pelo fato de que toda posição determinada é limitação e de que toda limitação, porém, já envolve o pensamento daquilo que está além do limite; o pensar supera, concomitantemente, o limite com a posição deste, de forma que a posição original se funde com a negação~surgin do·, assim, a sínte~e de ambas. No caso presente~ tal não pode ser afirmado porque "ser", como admitido, não põe conceito determinado nenhum, não se constituindo, pois, limitação nenhuma no sentido de uma definição. Daí ser mais satisfe1tória a suposição de que Hegel, como no caso acima, de reflexão sobre o significado de "início", começou com a análise de "devir" e pensou ter achado "ser" e "nadP." como mome::Itos deste conceito. Como momentos dependentes, não se podem manter por si, necessitando ser pensados sempre na unidade contraditória do devir. No conceito de devi r (ou da modificação) Hegel en:ontrou uma dialética diferente da dialética da experiência, independente e acessível a um tratamento puramente "lógico". Como toda uma série de filósofos antes dele, até os e~eatas, Hegel pensava reconhecer a contraditoriedade do conceito de devir, isto é, como diferença e indiferenciação entre ~er e nada (IV, 101 et pass.), uma relação da qual Hegel estava. convicto que, como todos conteúdos especulativos, não adequc.damente exprimível pelo juízo da lógica tradicional, uma ye: que o juízo da forma S é P afirma unilateralmente a identidade do sujeito e do predicado, desprezando sua não-identidade (o que afirma apenas que, ao se dizer de um S que ele é P 1 , P2 etc. o juízo "S é P1" não exprime que S é também P:.: e assim por diante).
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~ A r:firmação da contraditoriedade do devir (cf. IV, 119), isto é, da relação dialética entre "ser" e "nada" pode s:er compreendida his· toricamente ao ser lembrado que Hegel, como já os e~eatas, não via outra possibilidade ~enão atribuir a série dos números racionais aos estados sucessivos infinitos no devi r, que, divers.:mente dos estados
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no tempo, não constitui um contínuo. Apoiado sobre o conceito de infinito, no ~entido do infinito enumerável, o contínuo, portanto, também as modificações contínuas no tempo tinham de aparecer co:-~10 incompreensível e tentativa de exprimi-los racionalmente como contraditória.Z4 Como Hegel não dispunha do conceito do . inumerávelinfinito, sua afirmação da contrz,ditoriedade do devir ou sua tentativa de aprender o conceito do devir com os meios da dialética eram perfeitamente compreensíveis. Somente com o pressuposto de que "ser" e "nada'' se relacionam dialeticamente da forma indicada, existe, segundo Hegel, perspectiva de se conceber o devir. "Mesmo com o pressuposto da separação absoluta entre o ~er e o nada . . . o início ou o devir são inconcebíveis; pois faz-se uma suposição que supera o início ou o devir, mas que se admite de novo, e esta contradição, posta diretamente, e cuja solução é impossível, é dita inconcebível' (IV, 117). Hegel não hesitou em aplicar o dito ao infinitamente pequeno da análi5:e superior, que ele chamava de "estágio intermediário entre o ser e o nada" (ibid.), A sunosicão de que o início .próprio da lógica hegeliana de·ia busce:do no conceito de devir pode ter apoiado não apenas em referência às afirmações do filósof(), nas quais ele caracteriza "ser" c "nada" como meros objetos intelectuais ou abstratos, na medida e:n ue são ensados separadamente (IV, 92, 95 et pass. ), mas tambem _levando-se em conta as oassagens em que Hegel declara oue ser e nada não existem em si, mas somente no de\jr (IV, 103). No entanto, opõese a uma tal interpretação o que Hegel dissera, introdutoriamente, sobre a tentativa de começar com a reflexão sobre o conceito "início", ao invés de ser. Poder-se-ia buscar ajuda com a suposição de que Hegel partira da aparente dialética do devir e de que, por causa da necessidade de começar com o mais simples, transferira este ponto de partida para o "conceito" ser. Ele continuou, porém, defeadendo a concepção de "que nem o ser nem o nada sejam verdadeiros, mas sua verdade é a enas o devir" (IV, 103). ~er
Não compete a esta apresentação introdutória reconstituir em pormenor a evolução das categorias de lógica, uma vez que a presente investig~ção não busca expor sistemas filosóficos, mas um método filosófico. Como, porém, um método, sem exemplo de sua aplicação,
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não pode ser exposto adequadamente, deve-se atentar igualmente ao conteúdo da filosofia dialética, como acabou-~e de fazer e como se fará, no que segue, na análise da dialética de ser, essência e conceito e do contexto dialético do sistema de Hegel.
7.
A Dialética de Ser, Essência e Conceito.
Na lógica hegeliana, o sistema das categorias lógicas é exposto como sistema de determinação do absoluto, e seus distintos graus são "considerados como uma série de definições do absoluto" (VIII, 354). O absoluto é determinado,primeiramente,como ser, em seguida,co:no essência (IV, 481 ) e, enfim, como conceito (VIII, 354), as definiçõe:; anteríores devem estar contidas, aoui, nas últimas. Na esfera do ser, o absoluto é captado sob o ponto de vista de sua imediatez; na do ser, sob a perspectiva da sua mediação, ou seja, da relação do fenô· meno com seu fundamento; na do conceito, finalmente, pela ótica da unidade dialética de ser e essência; alcancn-se aqui, na idéia enquanto "unidade absoluta de conceito e de objetividade" (VIII, 423), a determinação adequada do absoluto, a última pedra, pois, do sistema lógico. O ser é negado, como imediato, na essência; e esta negação é negada, por sua vez, no conceito, de sorte que as esferas em que se articula a lógica, ou os graus em que se apresenta o lagos, se comportam como posição, negação e negação da negação. Estas · três esferas se diferenciam _çela forma em que se desdobra, categorialmente, o absoluto: n·a esfera do ser, é a passagem; na da essência, o aparecer em outro; e, na do conceito, a evolução (VIII, 355). Isto se passa assim, na medida em que, no ~er, uma determinação exige, em sua abstração, uma de~erminação complementar e é superada, juntamente com esta, numa determinação concreta; na essência, as determinações são distintas e, como tais, são postas em relac:ão entre si. No conceito, o ser é captado como conceito que existe para si em seu automovimento considerado, anteriormente, como conceito existente (IV, 61). A "evolução" característica do nível do conceito é uma espécie de progresso, no qual são referidos entre si, não somente, como na esfera da essência, os momentos distintos de uma conexão captados em su:t
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unidade, como também referidos respectivamente à totalidade e identific~dos com ela (VIII, 355). A totalidade, o logos, é o conteúdo da lógica e o começo pelo conceito mais vazio e pobre, o do s:er, tem lugar por referência ao conceito mais pleno, conforme ao caráter antecipatório da "ciência" em geral. Segundo Hegel:
"Um conceito é, antes de tudo, o conceito em si mesmo, e este é um só, e constitui o fundamento substancial; mas, frente a outro, é um conceito determinado, e o que se apresenta nela como de:erminação é o que ap<:rece como conteúdo. Mas a determinação do conceito é uma determinação formal desta unidade substancial, um momento da forma como- totalidade, do próprio conceito, que é o fundamento dos conceitos determinados" (IV, 31). Hegel determina o logos como "a razão do que é, a verdade do que leva o nome das cois2s", enquanto "coisas que existem em si e para si" (IV, 31 ) . Quando ele chama o conceito de "objeto, produto e conteúdo do pensar" ( ibid.), desaparece o mal-entendido de que "pensar" tem que ser interpretado aqui no sentido de pensar subjetivo. O Jogos é o absoluto que se pensa a si mesmo, e a ciência da lógica é a reflexão sobre este pensar. A "pressuposição" da totalidade, que é "a verdade", tem que ser vista como um momento ess:encial da lógica hegeliana: co:no autodesdobramento do logos nbsoluto. Em virtude de que somente a totalidade deve ser a verdade, não pode ser verdadeiro, em sentido pleno, um conceito que não seja conceito desta totalidade, ou seja, que não seja a idéia Z:bsoluta. Justamente por isso tem ele que ser superado no movimento dialético. Mas porque toda categoria lógica, na medida em que não é determinação da plenitude25, é uma determinação do absoluto e, ao mesmo tempo, "verdadeira" em certo sentido, pois corresponde a uma face da verdade absoluta. O progresso da lógic.:, segundo isto, deve ser compreendido como o caminho da ve:·dade imperfeita à perfeita; somente nesta a evolução pode chegar ao repouso, enquanto que toda determinação imperfeita do absoluto, como tal, busca ir além de si mesma, desencadeando o movimento dialético. Neste sentido falou-se, rntes, do pressuposto da apriorda1e da totalidade como momento importante do pensar dialético. Embora este momento já estivesse presente em Descartes, Spinoza e em outros filósofos racionalistas e possa ser reconhecido com certa clareza tam-
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bém em Kant, dcança sua plena vigência wmente com Hegel, posto que, na Metafísica hegeliana, este momento deve ser, como idéia absoluta, não exatamente a "idéia" no sentido kantiano, ou seja, 1.1ão algo dado como tarefa ::o pensamento, mas justamente "a ve:-dade", o complexo de toào o real. A totalidade absoluta, pensada ~or Hegel, não somente como substância absoluta, mas também como sujeito absoluto, é o "pensar", dentro do qual se executa o nutomovimento dialético do conceito, de wrte que a Lógica não trata de como se desdobram as relações em nossa experiência, mas de como o próprio conceito se desdobra. a) A esfera do ser.
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A esfera do ser26 , segundo Hegel, se can::.cteriza pela indiferen-;a, ou seja, pela abstração das diferenças de essência e de aparência, de fundamento e de fundamentado . O ser puro, pelo qual começa a lógi· ca, se carr.cteriza como indiferença abstrata, ou seja, como ausêncí;t de determinação. Cabe dizer do ser o que se afirma de toda posição, a saber, que "em seu isolamento está fixado para si e, portanto, tem de ser considerado, ao mesmo tempo, como não-verdadeiro" (VIII , 199), devendo, pois, ser superado dir.!eticamente. O ser é, como Hegel enfatiza repetidamente, não somente uma determinação unilateral e abstrata, mas a determinação mais vazia e pobre do ab:::oluto e.:n geral e, com isto, também 2: mais carente de verdade. Desde o ponto de vista do conhecimento subietivo, ainda não captamos, de fato, nada da essência ( dn verdade) do real, quando dizemos somente que é. Na medida em que o fim se baseia na captação do real, temos que ir além da determinação do ser. Hegel, que não considerr. a lógica sob · o ponto de vista do conhecimento subjetivo, pensava, sem dúvida, ter que expor a "mperação" do começo, ou ~eja, da categoria de ser, como automovimento do conceito, ao qual somente o suieito se refe:-e. Aqui foi utilizado um recurso impressionantemente sofisticado, co:n a argumentaÇão de oue sua determinabilidade consiste justamente na suposta au~ência de -determinação do ser, de sorte que a passagem do indeterminado ao determinado parece poder dar-se por meio da análise do "ser". "Indeterminado" é, de fato, a negacão de "determinado"; por conseguinte, logo que algo seja julgado indeterminado, já se supõe uma relação e, conseqüentemente, uma de~erminação. Por isso, não podemos designar nnda como absolutamente indetermindo,
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mas sempre como relativamente indeterminado; "supera-se", destarte, o começo propo~to por Hegel, a saber, o pensamento do ser abso1utamente indeterminado, sem dúvida num sentido diferen:e do estabelecido basicamente oor ele; como o absolutamente indeterminado não pode ser pensado de mc:neira alguma, o "começo" da lógica hegeliana não apresenta nenhum ponto de partida para uma evolução dos pensamentos! Ser determinado significa, . na terminologia hegeliana, "se~·-aí" . ou "ex-sistência" e é definido como a "unidade de ser e nada que se con· verteu em tranqüila simplicidade" (IV, 119-1 20). Segundo Hegel, a determinabilidade,como tal, tem que ser expres:a sempre por meio de uma relação de diferenciação com outro e contém, neste sentido, o "não-ser". A determinabilidade, enquanto imediata, é qualidade. A qualidade é, por um lado, distinta do "E:er-aí' da ex.-sistência, posto ~ue é determinação do ~er-aí ;- por outro lado, é idêntica a ele, posto que é determinação do ser-aí. A "distinção" e a "identidade" correspendem, claramente, a pontos de vista difere11tes: considerada co::no determinacão. a qualidc:de é distinta daouilo de que ela é determinação; considerada sob o ponto de vista do ser-aí determinado, é qualidade deste ser-aí. Hegel ignora, -porém, esta diferença de pontos de vista e declara que a distinção de ser-aí ou ex-sistência e qualidade está tanto posta como superada. O núc~eo da marcha do pensarne:1to reside em que as qualidades só podem ser distinguidas do ~e r-aí provisoriamente; não E:endo, portanto, ~:utônomas, elas recebem E:eu ser do ser-aí, o qual significa "algo" qualitativamente de~.~rminado. O algo qualitativamente determinado, enquanto determinado, está referido a outro, segundo o princípio "omnis determinatio est neg
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"má" porque o finito fica cristalizado como finito, no propresso infinito. Na infinitude verdadeira ou afirmativa, ao contrário, o finito é "superado" no infinito. Segundo Hegel, a finitude contém a infinitude, porque "a finitude é somente ir além de si" (tal como se mostra no progresso indefinido) (IV, 169). A finitude é negada, não precisr:mente no sentido de que o contelido determinado, o "algo", a "realidade", ~eja superada, mas no sentido de que é negada a autonomia do finito, sua independência com relação ao infinito. Todo o finito, o real, possui, por conseguinte, o ce:ráter de idealidade: "o ideal é o finito, tal como existe no infinito verdadeiro" (IV, 17 4). O finito, em sua idealidade, é ser-para-si, n1 medida em que, nele, "a diferença entre o Eer e a de:erminacão, ou negacão, Ee faz posta e igualada" (IV, 183). Ele está caacterizado pela relação de diferenciação do outro e por sua superaçãc dmultânea; é, portanto, unidade de algo e de outro; para compreender isto, o eu, em sua relação COj11 o objeto, serve de modelo. No ser-para-si está contida a relação do uno ~om o rnúltiolo; isto não deve ser entendido no sentido da relação de umr. coisa com muitas coisas; trata-se zntes, de oue o conceito do uno, em virtude de estar determinado pela negacão da pluralidade, é um conceito relaciona!, a partir do qual se pode obter, por análise, o conceito de pluralidade, mais exatamente: de muitos unos. A relação do uno com os muitos unos.. é a de quantidade. A quantidade, diversamente da qualidade, é exterior ao ser; assim, uma casa é sempre uma casa. seia grande ou pequena, alta ou baixa. Hegel pensou que, no presente contexto, hc:via indicado ::1 "passagem da qualidade à quantidade" (VIII, 233) como, mais z~diante, pretendeu ter derivado .a passagem da quantidade à qualidade. A quantidade é "qualidade superada", resultado de: "dialética" da qualidade" ( ibid.). A quantidade, como ser indiferente frente à determinabilidade (qualitativa), é a superação do ser-para-si ou da qualidade~ 7 • Dentro do nível da qualidade podem distinguir-se os conceitos de quantidade purc:, de quantum (das quantidades limitadas, exprimíveis numericamente, das magnitudes extensivas) e de grau (das magnitudes intensivas) e podem referir-se entre si dialeticamente. De fato, jamais existem magnitudes meramente extensivas ou meramente intensivas (e. com maior razão, tamoouco existem "magnitudes" enquanto tais ), mas toda magnitude extensiva é, ao mesmo tempo,
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intensiva e vice-versa. Por isso, Hegel rechaça as tentativas da Física de reduzir todas as magnitudes às extensivc:s. A magnitude intensiva é determinabilidade por meio de outra magnitude; nisto deve consistir a qualidade da determinação quantitativa; ela é, pois, <10 mesmo tempo, quantidade e qualidade, exterioridz.de e ser-para-si. Assim que esta relação é pensada já não como relação de duas determinações independentes, mas em sua "verdade", e que "qu::ntidade" e "qualidade" aparecem como meros momentos de um terceiro, resulta o conceito da medida como o terceiro nível do ser, além dos de qualidade e quantidade (VIII, 202). · Na medida em que os conceitos explicados tratam de determinações dentro da esfen:: do ser, está sempre im!)lícita, como Hegel observa, a relação entre as determinações e seu substrato indife~ente . Simultaneamente, a determinação (entendida como determinação de medida) é superada enquanto meramente exterior, contraposta à indiferença c:~soluta do substrato. I?ela redução das relações de medida, válidas inicialmente como autônomas, a relações dependentes, fun· damenta-se um substrato para elas, o qual e~tá todo presente em suas diferenças (IV, 467). O substrato é: "em si, o todo das determinações do ser aue - se dissolveram neste: unidade ( ... ) e aue - é totalidade d2 realização posta, na qual os próprios momentos, a própria to~alidc::ie da indiferença, existente em si, são sustentados por aquela como por sua unidade" (IV, 468). A indiferença absoluta do substrato corresponde claramente àquela unidade de determinações que foi designada na Fenomeno:ogia como "coisidade". Como esta, ela é indiferente diante das determinações de conteúdo; e, igualmente como esta, não pode valer co:no expressão adequ:::da da unidade das determinações, posto que " unidade" e "totalidade" não podem ser puros nomes vazios - do que Hegel está convicto (IV, 470) - , mas que têm que ser o resultado de uma mediação de momentos, os quais ~e superam mutuamente na unidade (IV, 469). Se, em lugar da unidade verdadeira das determinações, como meros momentos d::: mesma, se põe a inseparabilidc:d~ de "matérias" autônomas, renuncia-se completamente a conceber a unidade; assim, segundo Hegel, a relação entre força centrífuga e for·ça ce11trípeta, no movimento dos planetas ao redor do sol, fica sem explicação, por princípio, na teoria de Newton. Fica igualmente
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~em explicac;ão a unidade do universo quando nos referimos, como Spinoza, L! uma substância caracterizada como indiferença abso:uta, posto que esta não foi obtida como resultado da mediação dialética, mas posta imediatamente, enquanto que todas as de:erminac:-ões e:;peciais são apenas descobertas empiricamente.
b)
A esfera da essência
A tentativa de determinar a unidade como indiferença absoluta de um substrato é, ~egundo Hegel, contraditória, pois as de:erminações, na medida em que valem como autônomas, não podem ser negad&s verdadeiramente. Esta contradição tem que ser superada, superan· do-se inclusive a ~i mesma, como pensa Hegel. O resultado desta auto-superação é o conceito da unidade como essência (IV, 471). Na medida em que Hegel atribui ao "devir da essência'.' um lugar Ja no primeiro livro da Ciência da Lógica, ficr: patente que a passagem à essência deve ocorrer ainda dentro da esfera do E:er e, por conseguinte, não deve ser um produto da nossa reflexão, mas do automov~mento do conceito. A essência possui caráter reh:cional, dado que é "o ser que se media a si mesmo por meio da negatividade de si mesmo" (VIII, 261). Segupdo Hegel, trata-se, assim, não de uma determinação estabelecida no pensar reflexivo, mas de uma determinação própria da essência. Emborr, Hegel tenha podido ver o movimento do ser para a essênci :1, não só como um caminho do saber ou como uma atividade do conhecer, mas como "o movimento do próprio ser" (IV, 481 ) , não resta dúvida que, do ponto de vista que rejeita a suprema suposição hegeliana da totalidade absoluta, pode-se compreender a passagem para a essêncic: apenas através do pressuposto de que todas as determinações baseadas na observação imediata são e;
"O ser é imediato. Posto que o saber quer conhecer o verdadeiro, o que o ser é em si e por si, ele não se detém no imediato e em was determinações, mas o penetra, supondo que, por trás deste ser há algo
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mais que o próprio ser, e que este fundo constitui a verdade do ser" (IV, 481) . O conhecimento da essência se apresenta como "saber imediato" (ibid.) ou ~eja, como deduzido. Par<. chegar à consciência de uma essência para além do ser imediato, a qual está por detrás de3te, por assim dizer, como por detrás de uma cortina ou como debaixo de uma cortina (VIII, 262), não basta o mero "passar de uma qualidade à outra" ou o mero "progredir do qualitativo ao quantitativo e viceversa" (VIII, 263), mas a esfera da imediatez tem de ser sobrepujada. Enquanto, porém, o intérprete que se confronta criticamente co:n Hegel concebe este processo como instituir:-~
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na unidade e determin:::cão recíproca de interior e e;
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derivado deste", ou seja, nas explicações científicas, ~egundo Hegel, "o autenticamente fundamentado (a saber: o fato que necessita de explicação) te mostra como derivado" (IV, 573). A relacão e:1tre os princípios do argumento de explicação e de sua conclusão ~e apresenta, pois, como "dialética" (IV, 57 5). A circularidade censurada aqui por Hegel existe, sem dúvida, apenas aparentemente, posto que os pressupostos que funcionam como princípios de explicação não são "derivados" do exp!anandum da mesma maneira como C!ue este de:-iva daque~es. Chamamos a atenção, sobretudo, para Descartes, que já havia considerado injustificada a mspeita - expressa depois por Hegel - dé circularidade das explicações científicas, sendo injustificada também a "dialética" do fundamento. A crítica hegeliana do modo de explicação científica cai no vazio; ela exprime apenas a repulsa hegeliana de to.da forma de consideração científiç a enquanto tal. O mal-entendido hegeliano quanto à estrutura das explicações científicas poderia ser o responsável, ao menos em parte, por Hegel não ver suas próprias teses metafísicas como resultado de explicações que, em sua forma, correspondem às explicações no âmbito das ciências. A desvalorização das fundamentações formais induziu Hegel a estabelecer a exigência de que se pare na descrição (que deve ~er possível com conceitos quantitativos) dos fatos. Assim, deciarou a propósito do movimento dos planetas: "O aspecto quantitativo deste fato foi determinado, com exatidão, mediante a diligência infatigável da observação, sendo logo reduzida a sua lei e fórmula dmples, de modo que se proporcionou tudo o que se há de exigir da verdade na teoria" (IV, 4 72). Isto significa que, com a instituição das leis de Kepler, a astronomia do sistema solar alcançou, no essencial, seus fins e que o intento de derivar esta::. leis no âmbito da teoria de Newton (a qual, prescindindo do enfoque hegeliano, é a primeira que merece o nome de "teoriE") tem de ser rejeitado como errôneo. A reticência hegeliana quanto ao estabelecimento de teorias científicas, no ~e:1tido próprio da palavra, é compreensível se pensamos que Hegel criticava, no:; teóricos em sentido moderno, terem confundido os conceitos teóricas e os empíricos; na medida em que esta crítica é justific:::da, a rejeição hegeliana das teorias científicas prejudicadas pelos defeitos enumera-
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dos aparece como perfeitamente compreensível. Hegel criticava "que as determinações meramente hipotéticas se confundissem com as determinações imediatas do próprio fenômeno" e indicou, como exemplos das primeiras, os conceitos de molécula, de vazio, de força centrífuga, de éter, de raio de luz, de matéria elétrica e magnética (IV, 573-574). "Servem como prirr.eiros princípios para dgo, estão enunciadas como realidades e aplicadas em conseqüência; e deixa-se, de boa~fé, que valham como tais, antes que se tome consciência de que são, antes, determinações extraídas d.::quilo que nelas se de·;eria fundar, isto é, são hipóteses e ficções deduzidas por uma reflexão que carece de sentido crítico" (IV, 574). A conseaüência hegeliana de que as teorias, em geral, têm de ser reieitadas: não é, n::t verdade, justificada; teria sido conveniente re~eit<:r apenas a confu:.ão criticada entre os elementos heterogêneos constitutivos das teorias científicas, a que acresce a exigência de explicar o caráter e o papel dessas "ficções".
Já se observou, anteriormente, a propósito da explicação da Fenomeno.'ogia, que Hegel aceitou ou suoô::: erroneamente que a expli-
cação científica se refere a fenômenos (e não a fatos relacionados com fenômenos). Disto decorre que o fenômeno, captado como algo fundado, revela duas faces, uma das quais derivada no âmbito de uma determinada fundamentação, c a outra não. O fenômeno captado como fundamentado se apresenta, se,Q"undo isto, como "unidc:de de um duplo conteúdo" (IV, 575), já não existindo, entre fundamento e fundamentação, concordância de conteúdos como no caso do fundamento formal. O fundamento, caracterizado por uma diferença de conteúdo com relação ao fundamentado, chc:.ma-se, em Hegel, "real". N2. relação fundamental existe, entre o fundamento c uma parte do fenômeno, a concordância de conteúdo caracterí~tica de uma relação formal fund amental; ::.: outra parte do fenômeno se apresenta como a face inessencial do fenômeno, posto que "está livre de fundame:Jto". Hegel afirmou, ademais, que se pode indicar, para uma "coisa" (ou seja, um estado de coisas) uma multiplicidade de fundamentos; a decisão acerca do que deve rer, respectivamente, o fundamento c o fundamentado é, aqui, contingente. A assim chamada relação fundamental ~e mostra como contingente n:: medida em que é unilateral, não referente a todo o âmbito da coisa. Esta crítica vale para todo tipo de argumentação que parte de fundamentos "reais", isto é, para
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o raciocm10 em geral, o qual é identific<::.do, por Hegel, ao sofisma (IV, 581). Nenhum fundamento "real" é razão suficiente para caracterizar a filosofia- que busca a fundamentação suficiente e que não pode ser raciocínio. Suficiente é, somente, o fundamento "perfeito'', ou seja, ao find de contas, "a essência posta como totalidade" (VIII, 281), ou o conceito (IV, 581). c)
A esfera do conceito.
O fundamento perfeito ou completo é alcançado com o conceito, ou seja, mai5 além da esfera da essência, de tal forma, porém, que o característico do conceito deva ser obtido mediante a .:náli~e da essência. Conforme a concepção de que ser e essência, fixados e:n seu isolamento, são "não-verdades" (VIII, 199) e, por co:1seguin~e, têm de ser "superados" no conceito, Hegel determinou o conceito como manifestacão da essência, "manifestação que ~e deu completamente livre" c 25) e, portanto, como "a forma do absoluto, a qual é mais elevada que o ser e a essência" (V, 25) .
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O conceito, como "unidade de ser e essência" (V, 31 ) , é dado que a ciência vale como negr:ção do ser (imediato) - negação da negação, e é, por conseguinte, um ser restabe:ecido, embora não em sua imediatez, mas como "a mediação infinita e a negatividade deste em si mesmo" (V, 31). A essência é um aspecto da totalidade, a qual nela se exterioriz.:; dentro da totalidade, a essência está dete:·· minada por relações infinitamente múltiplas. O conceito "é to.alidadc, na medida em que cada um dos momentos é o todo que é o conceito, e é posto com ele como unidade im:eparável'' (VIII, 353). "Ser' ' e "essência" são unicamente expressõe3 para aspectos distintos do tcjo; e, por conseguinte, fixr:dos como tais, são "não verdadeiros"; o ccmceito é, ao contrário, como unidade idt:dl das esferas do ser e da essência, o concreto com relacão a estes (VIII, 354). A Ciência da L ógica, pois, na doutrina do conceito, não se ocupa de algo meramente fo;.·mal: mais propriamente, ele deve car2cterizar-se como ciência da forma absoluta, o qual é, em si, totalidade e está de ~erminad o em d quanto ao conteúdo (V, 27). A realidade não se opõe, então, ao conceito, no sentido de Hegel, mas é o pJ"óprio conceito que produz a realidade a p<::rtir de si mesmo (V, 27). N a L ógica, considera-se, sem dúvida, somen:e o momento da realidade como tal, c não determina-
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dos setores da realidade, que são objeto da Filosofia da Natureza c da Filosofia do Espírito; mas o momento do conteúdo é e~sencial para a Lógica, e não oode, pois, caracterizar-se pela abstrac:-ão de todo conteúdo, segundo o que foi dito na lógica formal tradicional. Hegel se refere aqui ao fato de que as proposições d<: lógica têm de ser verdadeiras e que, portanto, em razão da definição da verdade que ela pressupõe (como concordância com um conteúdo), têm de ser pensadas como determinadas com relação ao conteúdo. Posto que a Lógica não po:.su i o caráter de uma ciência da experiência, esse conteúdo não pode ser obtido empiricamente, mas deve ser produzido pelo próprio "conceito", segundo o que Hegel acreditava poder concluir. Obviamente, a argumentação introduzida apresenta uma petitio principii, devido ao critério de verdade aceito pela Lógica, a saber, r~ concordância entre conceito c coisa, ou entre proposição c estado de coisas. Se o conceito é o verdadeiro, e se, pelo contrário, ser e essência, tomados isoladamente, são "não-verdadeiros", irnpce-se, então, a pergunta por que não r.e começa com o conceito. De modo semeihante, Hegel tivera de defrontar-se com a possibilidade de começar, não com o "ser", mas com o conceito de devir. A resposta, em ambos os casos, é a seguinte: "o verdudeiro" não deve ser pressuposto dogmaticamente, · mas deve desdobrar-se ou confirmar-se. "Esta confirmação, aqui, dentro do lógico, estriba em que o conceito se mostra corno mediado por si mesmo e consigo mesmo, e, portanto, igualmente, como o imediato verdadeiro" (VIII, 199, cf. V, 25). O conceito é, em Hegel, por um lado, o fundamento do ser c da essênci ae, por outro lado, deve ser desenvolvido a partir do ser como começo (ou sej2, a partir do fundamento, no sentido de base da teoria) (VIII, 349). O progresso que o pensamento realiza, na Lógica, desde o ser, pa~.sando pela essência, até o conceito, é, por con· seguinte, caracterizado por Hegel como "um aprofundamento do sei· em si mesmo", "cujo interior é desvelado por meio deste progresso" (VIII, 347) . É justamente sobre esta concepção que se há de concentrar uma crític::: de princípios, ou seja, uma crítica que não se limita ~os pormenores (freqüentemente reconhecidos tarr. bém pelos hegeliano:;
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como íninteligíveis) do desenvolvimento. Na Lógica hege1iana, ur.1 conteúdo velado no início não ~e desdobra numa evolução homogênea de pensamento; antes, a formulação de uma teoria especulativa, cuja tarefa consiste num;:: interpretação determinada da realidade objetiva em sua estrutura universal, é essencialmente diversa da análise categoria! realizada na doutrina do ser. He~el tentou fazer d~ esfera do ser. Na
resultar o conceito de esfera da essência dentro medida em que concebeu a essência c o fe~ô meno, o interior e o exterior, como momentos da realidade,que é sua unidade, e na medida em que interpretou esta unidade como substância no sentido do complexo total das manifestações da essência, Hegel dispôs da possibilidade de determinar o "conceito" como "verdade da substâncir." (VIII, 348). Ao mesmo tempo, ele interpre~ou o poder ou a força, cuja expressão é a totalidade das manifestações da essência, no sentido da causalidade absoluta, abrindo-se, destarte, a possibilidade de caracterizar o conceito como a "verdade da necessidade" e de definir esta (de modo similar a Spinoza) como "liberdade" (no sentido de incondicionalidade). O conceito hegeliano é unidade absoluta de mbjetividade e objetividade (aqui, dentro da teoria do conceito subJetivo, são tratados os temas centrais d:: lógica tradicional, a saber, "conceito'', "juízo" e "silogismo") 28 ; ele é também a possibilidade que contém sua realidade ou unidade do ideal e do real, unidade de sujeito e objeto (VIII, 426), unidade que, certamente, não tem o sentido de unificação ou conciliação de entes estáticos, mas de unidade dialética de momentos. Finalmente, o conceito deve mostrar-se como Idéia, ou seja, como unidade do teórico e do prático. O conceito se apresenta assim, segundo Hegel, como a definição perfeita do absoluto, comparadas com a qual todas as definições deste (como ser, como essência) podem valer unicamente como definições parciais (VIII, 423). Como as essências, também os conceitos, enouanto essências hipostasiadas, devem ser pensados como determinado.s dentro do sistema de todos os conceitos, ou seja, estão determinados dentro da totalidade por relações infinitamente múltipla~.. Todo conceito apresenta, assim, uma fuce da totalidade absoluta e é, em certo sentido, esta própria totalidade, posto que está constituído, dentro óesta, pelo complexo total das relações conceituais. Neste sentido, Hegel fala da
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"totalidade da forma" como "sistema das determinações de conteúdo" (VIII, 44 7). Mas a Idéia absoluta de Hegel não deve ser concebida somente como resultado da objetivação e hipostasiação do ideal kantiano da razão pura, mas também como "a Idéia que se pensa a si mesma" (VIII, 446), forma que intui seu próprio conteúdo (VIII, 44 7). A teoria hegeliana do conceito serve para interpretar, de uma maneira determinada, as relações dn. essência, as quais, por sua vez, são pressupostas para interpretar os fenômenos; é, pois, uma teoria de grau superior. Nela, também o método dialético encontra sua justificação especulativa últimn, na medida em que a Idéia ab::oluta se identifica diretamente com a dialética: enquanto que, como razão, ela separa o auto-idêntico do diferente, a idéia do real, o subjetivo do objetivo, o finito do infinito, e se traduz, assim, no entendimento abstrato, reduzindo, no mesmo tempo, o abstratamente distinto à unidade; não no sentido de um processo temporal, mas de uma autointuição eterna da Idéia absoluta no outro, no seu conteúdo produzido por ela mesma (VIII, 427). A Idéia é, fundamentalmente, processo; mas não processo em um sentido temporal oualauer cuc ~eia este (VIII, 428). ' • . Enquanto que, na teoria hegeliana do ~er, pode ~e ver a tentativa de proietar uma metafísica descritiva, dentro da qual se exponha o âmbito conceitual da experiência objetiva, as teorias da essência e do conceito possuem o caráter de teoria especulativa, servindo para interpretar de uma maneira determinada os rasgos mais universais da realidade obietiva. Na teoria do conceito, como ultimação da teori a metafí~ica essencialista de Hegel, não só são hipostasü:dos os pressupostos concernentes à essência, mas também ~eu complexo total é interpretado como conteúdo do pens.:mento do absoluto, o qual é determinado . mediante referência expre~sa à nóesis noéseos aristotélica, como sujeito absol uto e, por conseguinte, como substância . absoluta. Do ápice da Lógica, aqui alcançado, deve-se olhar novamente par:: a teoria hegeliana da explicação científica. A "verdadeira" explicação ou fundamentação consiste, segundo Hegel, na inclusão no sistema de categorias lógicas que se reduz à Idéia absoluta, diante
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do que as usualmente chamadas explicações ou fundamentações das ciências particulares ficam inteiramente ~em valor. Explicação, no sentido de concepção hegeliana, ou ~eja, no sentido daquilo que Hegel chama "ciênci<:", no significado pleno do termo, é interpretação especulativa no âmbito do sistema metafísico, cuia arcabouço categoria} é expresso pela Lógica; ela deve oferecer a "verdadeira" explicação, posto que não possui caráter hipotético, como as explicações das ciêncir:s particulares, e deve ~er abstrata, já que se apóia sobre o conhecimento do absoluto. A desvalorização hegeliana das explicações das ciências particulares, especialmente das ciências naturais, tem sua razão de ser na circunstância de que o filósofo viu, e não tinha outro jeito E:enão de ver que o modo próprio de explicar das ciências naturais concorria com o seu próprio modo de explicar, especulativo, dado que, diferentemente de Kant, não atribuiu à filosofia o papel de uma metadisciplina diante d.:s ciências particulares e, especial·· mente, dian~e da mecânica, mas tentou repristinar a metafísica co:no "ciência" do objeto. Destarte, ignorando a revolucão kantiana, memorável no sentido pleno do termo, Hegel volta à idéia r.:cionalista de uma ciência da unidade, cujos princí!)ios, formuláveis n1 metafísica, deviam fundamentar todas as disciplinas especiais. Toda contradição existente entre proposições das ciências particuh:res e proposições da metafísica tem de·_derrubar a idéia de uma ciência da unidade; se, com Hegel, e apesar da discrepância entre proposições metafísicas c proposições científicas, ~e quer manter cstn idéia, resta, então, enfim, a saída de estigmatizar estas últimas como errad a~,. É o que fez Hegel. ao declarar que o modo de consideracão das ciências particulares como tais era "não-verdndeiro"', desvalorizando assim, ao mesmo tempo. os resultados obtidos por seu intermédio. . Contra a pretensão hegeliana há de 1:e notar que a Lógica de Hegel possui o caráter de uma teoria especulativa, e repousa, como tal, sobre pressupostos hipotéticos; neste aspecto, ela é comparável às teori~:s científicas, embora, diversamente destas últimas, [.Írva somente para reinterpretar especulativamente o mundo dos fatos. Ao tentar dar explicações especulativas, Hegel ou bem recorre a resultados das ciências, sem porém declará-los como tais, ou bem, no fundo, não explica nada. Tal se evidencü:, com in:.istência, nas partes que ~eguem a Lógica, ·a que recorreremos aqui somente na medida em o_ue a caracterização da estrutura dialética do sistema hegeliano o exige.
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A estrutura dialética do sistema hegeliano.
Até aqui foi explicado como a estrutura da dialética sujeitoobjeto, que fora desenvolvida na Fenomenologia do Espírito, foi interpretada na Ciência da Lógica no ~entido ontológico. Se a dialética, porém, não é um método independente dos conteúdos submetidos a ele, nem suscetível de ser previ<:mente estabelecido, mas a forma de autodesdobramento do conteúdo da "ciência", então este desdobramento da "ciência", em seus momentos capitais, há de ser captado também dialeticamente. O con:.eúdo da "ciência" é o absoluto que se move a si mesmo, o qual é não só substância, mas t~mb~m sujeito, ou seja, da índole do eu, e os momentos de [.eu automovimento são logos, natureza e espírito. Correspondentemente, as partes principais da "ciência" são Lógica, Filosofia da Natureza e Filosofia do Espírito. Os momentos do autodesdobramento do suieito absoluto corre:;pondem aos momentos. do autodesdobrarr..ento do su~eito finito, os quais foram expostos na Fenomenologia, de sorte que as relações da dialética da experiência podem ~ervir como modelo das relações havidas dentro do sistema. Mostn:-se assim, uma Yez mais, oue a teorb da experiência é a chave para se compreender a dialética em [\".la forma objetivada. O saber, segundo a Fenomenologia de Hegel, é, de um lado, saber objetivo e, por outro lado, s<:ber reflexivo; o momento da objetividade é interpretado, aqui, como "alienação" (ou "estranhamente" do espírito) , consistindo a finalidade da análise ·fenomenológica 11:1 intelecção deste caráter da objetividade. O saber se torna absoluto na medida em que capta o objeto e o sujeito empírico como momentoJ do espírito absoluto, superando, destarte, especulativamente, a alienação do eu no objeto. A natureza, o complexo total dos objetos na experiêncü: (do saber) se apresenta, assim, como "estranhamente" ou "alienação" do espírito, e este como elemento comum ao lógico (das categorias) e à natureza. Lagos, natureza e espírito são momentos da conexão fistemática da "ciência", conexão esta que se caracteriza comó relação dialética entre lógica, filosofia da natureza c filosofia do espírito. A relação entre "saber", natureza e espírito é caracterizada, na Fenomenologia, da seguinte maneira:
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"O saber conhece não só a si, mas também o negativo de si mesmo ou seu limite. Sc:ber seu limite quer dizer saber sacrificar-se. Este sacrifício é a alienação em que o espírito revela s.e u devir até o espírito, sob a forma do livre ocorrer contingente, intuindo seu próprio eu puro como o tempo fora dele e, concomitantemente, seu ser como espaço. Este último devir do espírito, a natureza, é o seu devir vivo e imediato; a natureza, o espírito alienado, não passn, em sua ex-sistência, desta eterna alienação da sua subsistência e do movimento que instaura o sujeito" (li, 618). A passagem do Jogos, enquanto complexo total das essencialidades puras, à natureza, enquânto complexo total dos entes de~er minados pelas essencialidades; e a da lógica, enquanto "exposição de Deus ( . . . ) , tal como ele existe em sua essência eterna, como anterioridade à criação da naturezâ e de um espírito finito" (IV, 46), à filosofia da natureza, podem tornar-se inteligíveis somente pela suposição de que a passagem do saber à natureza, na medida em que esta é o momento da objetividâde do saber, é inteligível em si mesmo. Mas este não é o caso. A grande dificuldade, que impede a compreensão de ambas passagens, decorre da inversão característica da exposição hegeliana, das relações teórico-experimentais. Enqu~nto
que a experiência do objeto ou o conhecimento da natureza é originário, sendo a pressuposição de um si-mesmo que se aliena na objetividade, ou a pressuposição de categorias que se objetivam na natureza, ~o contrário, $ecundária, r.ervindo somente para explicar ( especulativamente) o constatado inicialmente, Hegel converteu em primário o si-mesmo cognoscente ou a idéia; a procedência do objetivo a partir do subietivo se converte, assim, em um processo que já não pode $er compreendido com os meios especulativos (X, 25). :É natural, por com:eguinte, buscar um~ motivação externa para a concepção hegeliana do "estranhamento" ou da alienação do logo:; na natureza e da superacão desta alienação no espírito absoluto. Tal fez, por exemplo, Topitsch, que vê, na relação entre logos, natureza e espírito, um resultado tardio das especulações neoplatônico-gnósticas acerca da relacão do Uno com a realidade dele imanente e acerca do retorno ao Uno 29 • Este modo de explicação é plausível na medida em que as passagens entre os momentos do logos, da natureza e do espírito apare·
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cem como sumamente insatisfatórias, mesmo sob os próprios pressupostos da exposição hegeliana, embora o pensamento geral, resumido na articulr.:ção do sistema, esteja em completa consonância com as suposições fundamentais da filosofia de Hegel. Isto é visto, claramente, a partir da interpretação de J. Hyppolite, o qual põe em evidência que não ~e pode falar de "logos e natureza" no sentido de uma mera .iust~posição. Dado que o absoluto (como si-mesmo universal) é indivisível, tem de estar inteiro na natureza e no logos, pelo que só se pode falar de um logos que é natureza e de uma natureza que é logos: Jogos e natureza não são nada mais do que momentos de um absoluto, o qual não pode existir sem os três momentos dialéticos, nos quais o espírito corresponde ao momento da mediação entre logos e natureza.30 Se, pelas suposições hegelianas, é correta a tese de que o absoluto não é um ser imediato, mas "mediado em si", ou seja, que é unidade dos momentos em que se desdobra, é pouco clara, pelo contrário, a dialética do logos, da natureza e, especialmente, do espírito. Pensava-se poder esperar que a tese (segundo a qual o absoluto se nega como logos e [e converte em natureza, ou o absoluto se nega como natureza e se converte em logos - pois nem o logos é anterior à natureza, nem a natureza é anterior ao logos), se concretizaria mediante o estabelecimento específico das passagens dialéticas respectivas; mas · não é este o caso, como tampouco o era, na tese em que o e::pírito é negação da chamada negação. A exposição hegeliana da passagem da lógica à filosofia natural ou da filosofia natural à filosofia do espírito carece, pois, daquele grau de transpnrência que pode ser produzido pela aplicação conseqüente do método dialético. Assim, a prQpósito da passagem do logos à natureza é dito apenas que: "A liberdade absoluta da idéia ( ... ) estriba em que ela não passa meramente à vida, nem pode aparecer em si como conhecimento finito desta, mas que, na verdade absoluta de si mesma, se decide a pôr em liberdade, fora de si, o momento de sua singularidade ou o momento da primeira determinação a ser-outro, a idéia imediata como seu reflexo, ela me3ma como natureza" (VIII, 451-452). Quanto à passagem da natureza ao espírito, Hegel se contenta em dizer: "O vivente é justamente o modo supremo de existência do conceito na natureza; mas o conceito é, aqui também, apenas em-si, porque a idéia existe na natureza tão-somente como singular. No
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movimento local, o animal se desliga inteiramente da gravidade, na sensação, se ~ente a si mesmo, na voz, se ouve; a espécie existe no processo reprodutivo, mesmo se apenas como singular. Dado, porém, que a existência ainda é inadequada à universalidade da idéia, esta tem de romper este círculo e oxigenar-se pela superação desta inadequação" (IX, 720). Considerando o caráter abrupto inerente à passagem do logos à natureza, na filosofia hegeliana, é compreensível que Th. Litt atribua o papel de um deus ex machina à decisão da idéia pura de determinar-se como exterior:n. Devemos acrescentar, ademais, que a passagem da lógica à filosofia da natureza não somente está justificada ( dialetic~mente) em sua forma, mas que, também quanto ao conteúdo, não está estruturada na filosofia da natureza como nas demais parte3 do sistema. Na filosofia da natureza, aparece apenas em lugar ou, r.o menos, ao lado da dialética das oposições, que impera na lógica, uma · didética dos graus, a qual não representa um abuso de Croce, mas que vige já no próprio Hegel, na medida em que este interpretou a natureza como um "sistema de graus" ou "de níveis" e fez que a evolução de um nível a outro fosse orientada pelo conceito dialético, ou seja, pelo espírito como interior da natureza. Onde Hegel atribui à natureza caráter didético, no sentido da dialética das oposições, trata-se da dialética do devir, da qual falamos antes; como sua concretização, há de ver-se a dialética especial dos processos naturais determinados. Neste sentido, tudo o que nos rodeia pode ser trr.tado como exemplo da dialética, posto que todo finito é variável. Trata-se da "dialética do finito, pela qual este, enquanto o outro de si-mesmo, vai mais além do que ele mesmo é imediatamente e se transforma em ~eu oposto" (VIII, 192-193). Assim, a propósito do movimento dos planetas, Hegel pensou que "um planeta está agora neste lugar, mas, em si, poderia estar também em outro lugar; este ser-outro chegar a existir em virtude de ele se mover". Não se supõe, aqui, a coincidência de ~er e não-ser para explicar a possibilidade do movimento, mas se conclui o movimento do ente partindo da pressuposição do caráter "contraditório" da realidade. De modo semelhante, também o materialismo dialético uniu a tese da compenetração dos opostos na realidade com a tese do movimento
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como essência da matéria; e pode-se dizer, em geral, que sobretudo a filosofia da natureza de Hegel ofereceu os pontos de referência do materialismo dialético. A filosofia da natureza de Hegel, como o ma~ terialismo dialético, se caracteriza pela tendência a suprimir a dife~ rença entre "oposição" e "contradição"; tal se mostra, por exemplo, quando Hegel passa, da tese da oposição entre o animal e seu meio ambiente, à tese de uma contradição, a qual deve encontrar uma superação incompleta no metabolismo e sua superação verdadeira na relação sexual. Uma relação de cunho propriamente dialético, no âm~ bito da natureza viva, é a "contradição" entre indivíduo e espécie, ba&e, segundo Hegel, da morte do ser individual. Não é este o lugar para reconstituir a estrutura da filosofia da natureza em particular, desde a matemática, passando pela física do anorgânico, até chegar à física do orgânico; tampouco para analisar as divisões e subdivisões triádicas que se dão nestas partes principais; por exemplo, no âmbito do orgânico, a divisão em "organismo geológico" (ou veja, a terra como "organismo", como "cristal da vida"), natureza vegetal e natureza animal. Ainda menos, a tarefa de uma exposição orientada metodologicamente, de modo primário, poderia consistir numa crítica dos pormenores de uma ciência ou filosofia da natureza. Es~encial é, unicamente, o pensamento que domina . a filosofia da natureza de Hegel, a saber: que a natureza é "uma queda da idéia de si mesma" e, por conseguinte, é, no fundo, racional, divina e exposição da idéia (X, 21). A filosofia do espírito considera a evolução do espírito, começando com o surgimento do espírito subjetivo a partir da natureza orgâniCa e terminando com o espírito absoluto como auto-realização do conceito do espírito. O espírito pressupõe, precisamente, a natureza (e, por conseguinte, a filosofia do espírito e da natureza); embora não se trate que a natureza seja o originário e o espírito o condicionado. O espírito é, mais propriamente, o prius que põe como natureza e se libera na natureza em direção a si mesmo. "O espírito em si e para E:i não é o mero resultado da natureza, mas, em verdade, seu próprio resultado; produz-se a si mesmo a partir dos requisitos que ele mesmo se põe - a idéia lógica e a natureza externa- e é verdade tanto de uma como de outra" (X, 29) .
UNIVERSIOADf. FEDERAl DO PA~ BlBLlOT EC A CENTR Al:.
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O conhecimento já está potencialmente contido na idéia lógica; para que o espírito conheça, realmente, a idéia - como o requisito mais remoto do conhecer - tem que ter-se "dijado" ou "alienado" na natureza - como seu requisito próximo. A filosofia da natureza tem, pois, que desembocar na prova da necessidade do espírito; e, inversamente, a filosofia do espírito, como ciência da evolução do espírito, tem que confirmar o conceito deste (X, 20). No espírito, está superada
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espírito teórico, prático e "livre". À idéia em sua manifestação como espírito subietivo, ~e opõe a idéia em sua manifestação como espírito objetivo (X, 3 82). As esferas do direito, da moralidade e da eticidade oferecem elementos essenciais para uma investigação do conteúdo da dialétic.: hegeliana, que, porém, pelas razões já indicadas, não podem ~er examinadas aqui. O espírito objetivo representa, tanto como o subjetivo, u~a etapa do caminho pelo qual o espírito configura a efígie de sua realidade; é ele, na identidade de sua redidade com seu conceito, espírito absoluto, saber da idéia absoluta (X, 446) e, por isto, arre:nate do edifício sistemático. O espírito é somente e~pírito na medida em que existe para o espírito (X, 453), ou seja, enquanto conhece a si mesmo como espírito absoluto, não só - como na ate - sob a forma de obras intuitivas, como signos da idéia, e não só - como na religião - como totalidade que se diferencia na representação e ~e restabelece como unidade da diferença, mas também - como na filosofia, n:1 medid.: em que esta é unidade de arte e religião (X, 45 8) - como ''a idéia que se pensa a si mesma, a verdade sapiente"· (X, 474). Recordemos que a estrutura dialética da filosofia deve caracteri · zar-se, segundo Hegel, pelo fato de que o automovimento do conceito volta r:o seu ponto de partida, de modo que come<;o e fim da filosofia se encerram em um círculo ou em um círculo de círculos. Isto vale também para a relacão entre lógica, natureza e espírito, ou entre lógica, filosofia da natureza e filosofia do espírito; cada uma das quais . pode funcionar como começo, fim ou meio do movimento que volta ao seu comeco. As relações correspondentes são chamadas por Hegel de "silogismos"; no primeiro deles, o ponto de partida é o lógico, o meio é a natureza e o resultado, o espírito; no segundo, o ponto de partida é a natureza, o meio é o espírito e o resultado, o lógico; no terceiro, o ponto de partida é o espírito (como processo da atividade da idéia), o meio é a razão e o resultado é a natureza (co:no manifestação da idéia que é em si, do logos) (X, 474-475). Lagos, natureza e espírito constituem apenas em sua unidade "o verdadeiro"; cad.: um destes momentos pensado para si, mesmo não com abstrações finitas, exige a consideração dos outros dois na totalidade de sua conexão. Sem dúvida, não devemos passar por cima de que os três "silogismos" indicados não possuem o mesmo valor, posto que só o terceiro tem de valer como adequado, no sentido de Hegel, porque
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os "silogismos''. dos quais o primeiro é o Jogos e a natureza, são operados inclusive na idéia. A realidade do lógico é a idéia que pensa a si mesma: não obstante, a natureza é, em si, idéia e tem que de~errninar se como negativa, n;:: medida em que é ponto de passagem do lagos para esta (X, 474). Por isso, a exposição adequada da relação de idéia, natureza e Jogos é aquela em que aparecem os dois últimos como manifestações ou fenômenos dn idéia absoluta, segundo o que diz Hegel, no final da Enciclopédia: "O nuto-juízo da idéia nas duas manifestações ( ... ) determin9. a estas como manifestações suas ( manifestacões d:::. razão que sabe a si mesma) e ~e unifica nela, de sorte que é a natureza da coisa o conceito - que se move e se desenvolve, e este movimento é, por isso mesmo, a atividade do conhecer - a idéia eterna em si e _para si, atualizando-se, produzindo-se e gozando a si mesma como espírito absoluto'' (X, 475).
Notas - Capítulo I V 1.
Cfr. O. Pêiggeler: Hegels ldee einer Phá'nomeno!ogie des G'!ist~s. Freíburg u. München, 1973, que rejeita, como filosoficamí::nte sem fundamento, a tese defendida per L. Hoering, de que a fenomenolog:a do espírito d: Hegel era primariamente a ciência da experiência que se desenvolve como consciência, autoconsciência e razão.
2.
As citações são feitas segundo o volume e a página da 3'~- ed~ção da edição jubilar das obras Ç.e Hegel, ed. H. Glockner, Stuttgart, 1949, sqq.
3.
Sobre a relação entre a dialética platônica e a hegeliana, cf. H. G. Gadamer: Hegels Dia!ektik, Freiburg, 1971.
4.
Sobre este problema concentrou-se E. Topitsch: Marxismus und Gnosis, in: Sozialphlosophie zwischen Philosophie und Wissenschaft. Neuwied, 1961, pp. 235 sqq.
5.
W. Armann: Zur Frage nach dem Ursprung des dialektischen Dmk:ns bei Hegel. Würzburg, 1939, pp. 9/10.
6.
Herder: Werke (ed. Suphan) V, p. 31.
7.
G. "Ralfs: Regeis Dialektische Methode, p. 311 , 1964 (Kant-Studien, Erg. Heft 86).
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8.
G. Lukács: Der junge Hegel. Berlim, 1954, p. 130.
9.
G. Lukács : op. cit., pp. 129-131.
10.
Cf. Wolfgang Rod. Die ldee der transzendentalphilosophischen Grundl::gung in der Metaphysik des 17, und 18. Jahrhunderts. In: Phil. Janrbuch 79/I (1972), pp. 57-76.
11.
Cf. I. SQU: An lntroduction to Hegel's Metaphvsics. Chicago-Vmdon, 1969, pp. 76-77.
12.
Esta posição foi preparada pelas considerações correspondentes em Spinoza (De intellectus emendatione, §§ 36, 44) e Fichte.
13.
Uma análise pormenorizada da teoria hegeEana do argumento está em W. Kohn: Die forma!e Logik in Hegels "Wissenschaft der Log."k". M:.inchen, 1972.
14.
Sobre a análise da experiência na "fenomenologia" cf. W. Becker: Hegels "Ph~nomenologie des Geistes". Stuttgart etc. 1971. E ainda: P. J. Labarriere: Structures et mouve nent dialetique dans la "Phénoménologie de l'Esprit" de Hegel, Paris, 1969, assim wmo L. B. Puntel: Darsteliung, Methode und Struktur. Bonn, 1973 (Hegel-S:udien, Beiheft I O) . Da literatura mais antiga, lembre-se sobretudo a expmic;ão da fenomenologia da consciência de N. Hartmann em sua Fi:'osofia d.? Idealismo Alemão, trad. port. Lisboa, 1976, pp. 389 sqq.; pode-se ind:car também a coletânea Materialen zur Hegels "Phá'nomenologie der Geistes'' (Frankfurt a.M., 1973).
15.
Cfr. J. Hyppolite: Logique et existence. Essai sur la logiqu? de Hegd. Paris, 1953, pp. 13 sqq. et pass.
16.
Cfr. W. Stegmüller: Prob!-::mr: und Resultate der Wissenscha!tsthc:;rie und analytischer Philosopnie I, Heidelberg etc., 1969, PP- 248 s~
17
Cfr. H. G. Gadamer: Hegels D:'alektik. Tüblngen, 1971, pp. 31 sqq. ("Hegel - O Mundo Invertido").
18.
II, 132. Cf. li, 133: O mundo supra-sensível "é ele mesmo e seu oposto numa unidade".
19.
Cf. Metaphysische Anfangsgründe der N aturwissenschaften. Obras IV, 468.17-37.
20.
Sobre o conceito da estrutura fundamental cfr. L. B. Puntel: Darstellung, Methode und Struktur. Bonn, 1973 (Hegel-Studien, Beiheft 10), pp. 270-284 - A propósito da organizac_:ãc prevista i!licialmente por Hegel para a "Fenomenologia", cfr. H. F. Fulda: Zur Logik der Phanomer.a!.'>gi,; von 1807, in: Materialien zur Hegels Phdnomer.olog;e das Geistes (1973), pp. 391-425.
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21 .
Cfr. II, 184, onde se encontra uma exposição .desta v:a in nuce.
22.
Cfr. H . F. Fulda, op. cit., p. 398.
23.
Sobre a dialética de iníc:o, Cfr. B. Lakebrink: Hegels Dialetische On:.?logie. Colônia, 1955, pp. 53 sqq. Uma re·:onstruc_:ão do iní:io da lóg:c:1 do ponto de vis,ta materialista é tentada por L. Erdei: Der An!ang der Erkenntnis. Kritische Ara'yse des r::rs:en Kapizels der Hegelschen Logik. Budapeste, 1964. H. F. Fulda : Unzu!angliche Bemerkungem sur Dialektik. In: Hegel-Bilanz (ed. R. Heede & J. Ritter), Frankfurt a. M. 1973,, tenta interpretar o início e a evolução da lógica por recurso a categorias semâ:lticas.
24.
Cfr. H. N. Lee: Are Zeno's Paradoxes Based on a Mis:ake? ln: Mind 74 1965), 563-570. Quanto ao problema da contradic_:ão dialét:ca, cfr. E. Coreth: Das d'a!ektische sens in Heg::ls Logik. Vi::na, 1952, pp 28 sqq., onde a contradição dialética da concepção hegeliana de relação é explicada. Cf., quanto à contradic_:ão dialética, A. Sarlemijn: H egelsch2 Dialcktik, Berlim e New York, 1971, pp. 82 sqq.
25.
Cfr. VIII, 201: As determinações Ióg:cas são definir.ões do ab3oluto 0:.1 definições de Deus e sempre a primeira e a terceira determinação d~ uma esfera; inversamente, cada segunda indica, dentro da edera, uma dibrença que pertence ao âmbito do finito.
26.
Cfr. H. Rademaker : Hegels Objektive Logik, Bonn, 1969. Cf. WolÍg,-zng Marx: Hegels Thi!.orie logischer Vermittlung. Kritik d~r dialek:ischen Begriffskon>truktionen in der Wissenschaft der Logik, Stuttgart-Bad Canstatt, 1972.
27.
Sobre a crítica, cf. H. Lenk: Kritik der logischen Konstanten, Berlim, 1968, pp. 290 ss.
28.
Cfr. W. Krohn: Die formate Logik in Hegels Wissenschaft d::r Lagik, München, 1972.
29.
Cfr. E. Topitsch: Marxismus und Gnosi~. Di.? Sozialphilosophie zwisch.?.'t. Ideologie und Wissenscha/i. Neuwied, 1961, pp. 235 ~s.
30.
J. Hyppolite: Log:que
31.
Th. Litt: Hegel. Versuch einer kritischen Erncterung. H~idelberg, 2~ ed., 1961, p. 242. Inversamente, esta doutrina é julgada positivamente por K. H. Vo:kmann-Schluck: Die En.tiíus"erung der Ide2 zur Natur, em "Hegel-Studien", 1. (1964) pp. 37-44. Contra a concepção defendida por Litt está também L. B. Puntel: Darstellung, Methade und Struktur, Bonn, 1973, pp. 61-63.
tt
existence, Paris, 1961, pp. 127-130.
2.a PARTE DE MARX A NOSSOS DIAS
. CONSlDERAÇõES PRELIMINARES Quando se passa a considerar a dialétic~ materialista de Marx e de seus sucessores, uma vez tendo sido considerada a filosofia póskantiana, especialmente a dialética hegeliana, tem-se inevitavelmente a impressão de se haver atr<:vessado a fronteira que separa duas épocas. Com respeito a esta fronteira passa-se, todavia, o mesmo que com relação a todas as cesuras na evolução do pensamento filosófico: ela não anula o nexo da evolução; inclusive só se pode conceb~-la como cesura se, ao mesmo tempo, se leva em conta o aspecto da continuidade. Pode-se ver assim que o ponto de partida dialético do jovem Marx depende claramente de alguns pressupostos fundamentais da dialética hegeliana; ainda que, naturalmente, não de todos os pressupostos daquela filosofia. Marx se distancia cada vez mais daqueles pressupostos no decorrer da evolução de seu pensamento; e com mais razão se pode dizer de Enge~s e de Lenin que suas concepções da dialética, malgrado suas repetidas afirmações de haverem racionalizado a concepção de Hegel unicamente através de su:. 'inversão" materialista, não têm mais muito a ver com a deste último. A cesura estabelecida por Marx e Engels não constitui portanto o limite absoluto de uma época, mesmo porque ela só teve efeito num setor limitado. Ao lado da materialista, existi;: também e:n fins do século XIX e princípios do século XX uma tradição idealista da dialética, que alcançou sua maior influência no primeiro quartel do nosso século, perdendo contudo rapidamente terreno. O rem:: cimento hege-
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liano das últimas décadas não levou contudo a uma renovação da dialética idealista em sentido próprio. Para o materialismo dialético ortodoxo, desde Lenin, a dialética é tida como elemento de uma cosmovisão militante, que pe:-de seu significado; Ee desprendida dos objetivos revolucionários do comunismo. No âmbito desta cosmovisão não pode existir um interesse puramente teórico pela dialética. Isso tem como conseqüência o fato de que a teoria da didética não conheceu nenhum desenvolvimento essencial na filosofia russa após Lenin, tanto mais que com a canonização das doutrinas de Lenin (e temporariamente de Stalin) tornou-se impossível a discussão filosófica abert<:. Tentativas de uma reconstrução não ortodoxa da dialética marxista (em sentido amplo) eram possíveis, portanto, só fora do terreno comunista, onde um ambiente filosófico diferenciado não apenas admitia tais tent<:tivas, como também as exigia, se a dialética queria ser tomada a sério. Em todas aquelas tentativas de reconstrução da dialética marxista chama atenção o fato de que elas foram inspiradas respectivamente pelas idéias filosóficas de maior influência, a saber: no princípio do século, pelo criticismo kantiano e, mais tarde, pela fenomenologia e filosofia existencial ou pelo hegelianismo renovado. A tendência de atualizar a dialética marxista, relacionando-a com concepções filosóficas contemporâneas, parece estar na base dos intentos atuais de interpretar o maxismo no sentido de um estruturalismo e parece mesmo valer com respeito às tentativas ocasionais de interpretar· a dialética materialista como uma espécie d.e Teorh da. Ciênci~, onde, por exemplo, a dialética da natureza de Enr:els apareceu como uma tentativa, da qual ele não se deu conta, de uma penetração científico-teórica da estrutura das ciências da natureza. Na maioria das formas da filosofia dialética, não pode ser ignorada a procedência da dialética sujeito-objeto, tal como a esboçamos na primeira parte desta obra, mesmo onde ela é reprimida - como se dá na dialética da natureza de Engels e Lenin. Ela não se deixa reprimir por completo e o fato de ela se manifestar permanentemente também na dialética materialista mostra, indiretamente, Eer ela o núcleo do pensamento dialético na époc~ moderna. A decisão de considerar as concepções dialéticas da teoria da experiência e dos prin-
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cípios metódicos que lhe são pertinentes, a exemplo do que foi feito na primeira parte tem sua razão de ~er na própria estrutura do pensamento dialético. Como na primeira parte, que tratou da dialética de Kant e Hegel, também na segunda p<:rte o estudo ~e limitará ao campo da dialétic:1 como filosofia. Isto quer dizer que abstrairemos não só de todas as (aparentes) dialéticas de ciências particulares (por exemplo, das ciências sociais), como também da dimensão política de certas posições dialéticas. Da mesma forma não entraremos em considerações sobre o aspecto histórico-filosófico da dialética. Por fim, permanecem igualmente fora de consideração todas :::quelas concepções vagamente denominadas como "dialéticas", para que nossa exposição não se estenda ilimitadamente. A tarefa de exposição da dialética como filosofia é já suficientemente vasta, tanto mais quando empreendida com vistas à possibilidade de uma crítica.
CAPíTULO I
..--·
...-~~--·----···-··
A DIALÉTICA EM MARX, ENGELS E NO MATERIALISMO DIALÉTICO POSTERIOR. A dialética materialista foi sempre entendida pelos seus represe.ntantes como Q_resultado_çle umª-..!!2Ya interpretação ·da dialética hegeliana; todavia, aparecia em primeiro plano ora- a dialética de sujeitoobjeto da Fenomenologia do Espírito - como nos Manuscritos Econômicos -Filosóficos de 1844 de Marx (a seguir os chamaremos de manuscritos de Paris) - ora a dialética da Lógica hegeliana assim, sobretudo no Capital - , ora a dialética de~envolvida na filosofia da natureza de Hegel, como na Dialética da Natureza de Engels. A pergunt~ inferida que se deve fazer frente à dialética materialista em todas as suas variantes é a seguinte: que conseqüências tem a interpretação materialista da dialética hegeliana? I
Com respeito à dialética idealista, sobretudo na forma assumida pela filosofia de Hegel foi mostrado em parte que ela repousa sobre uma série de pressupostos epistemológico-me:afísicos. A discu::são da dialética idealista é dirigida, por conseguinte, não às suas concretiza~ yões particulares, mas aos pressupostos da justificação das pre~ensõe3 fund
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renunciou, por princípio, justificar sua pretensão e se converteu em dogmatismo. O primeirÓ caso se pode constatar na "dialética" de M x em "O Capital", o segundo na Dialética da natureza de Engels.__ 1.
A evolução do método dialético em Karl Marx
a) ficos".1
A dialética da práxis nos "Manuscritos econômico-filosó-
Nos manuscritos econômico-filosóficos de 1844, afirmou Marx que a dialética tem sua raiz na Fenomenologia de Espírito de Hegel. Por conseqüência, deve-se começ&r por esta e não pela Ciência da Lógica". Sob a influência de Feuerbach empreende o jovem Marx uma interpretação das relações analisadas na "Fe:10menologia" c!e modo tal que elas já não aparecem como relações do ser humnno conhecidp de modo espiritualista,mas como relações que derivam de circunstâncias sociais e sobretudo práticas, determinantes da natureza do homem. Com Feuerbach, quer Marx fazer com que a "reh:cão social do homem para com o homem. . . seja o princípio fundamental de sua teoria" (XXXIV a, 570) 2• A dialética da praxts desenvolvida por Marx nos manuscritos de Paris inclui ainda .: dialética sujeito-obje~o da filosofia idealista, porém não mais como uma relação entre um sujeito puramente espiritual e suas posições objetivas, mas como relação de um sujeito que . é material enqu.:nto se determina como elaborador de um mundo circundante, que encontra e do qual depende: Marx não critica a concepção segundo a qual o sujeito alienado na objetividade se libera pela e~iminação da alienação, mas somente n acepção idealista que aquela concepção havia recebido na Fenomenologia de Hegel, sobretudo em sua última parte ("o saber absoluto"). Em 1844 Marx estava convencigo de que era possível empreender esta interpretas:ão ~em prejuízo do caráter di<:lético das relações analisadas; convencido significa que acreditava ~er possível desenvolver a dialética como dtaléttca do alheamento ( Entausserung) ou da alienação do su.ieito na r~alidade objetiva, com a recusa simultânea da mesma como uma lógica do concerto (cf. IV, 129-130). Marx se opõe expressamente a que se entende a Entausserung do sujeito na objetividade como processo ide::tl e salienta que _se t~ata
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de uma relação material ( ob?etiva), ou seja, de uma relarão cu i o fundamento é o homem como ~er de carne e osw, com nece:sidades c e;ergias que se gastam no trabalho para . satisfazer as necessi:lades, quando se produzem transformações no mundo circundante, i. é, produtos nos quais se infunde · a força-trabàlho emitida. Contudo, não se pode desconhecer que nesta concepção da relação prática entre o eu . e o obJeto estão contidos ainda certos elementos "ideais". A alienação, que consiste no fato de· a força de trabalho humr:na se defrontar ao . eu no produto do trabalho, em que está objetivada como algo alheio, só pode ser concebida se não separa a praxis, o trabalho, da · relação teórica sujeito-objeto do saber. Um robot serve para a produção de coisas, mas ele não "põe" nenhum "objeto" corno algo alienado, estranho a si mesmo. r Entre as r._elª5;Q~~ de sujeito, objeto posto pelo sujeito e ~upera ção espeClJlativa do ser-outro objetivo, aceitas por Hegel e as relações de .sujeito, obieto posto pelo trabalho do suieito e <: superação da alienação resultante, corno Marx a interpretou, existe urna correspondência formal. Em ambos os casos, a superac:ão não é U!I1ª__tp._2diflcação de conteúdo do lado_ohjeto, mas uma nova interpretação da relação entre sujeito e objeto, decerto uma interpretação com · meios respectivamente diferentes. A diferença entre Hegel e Marx se manifesta na determinação do conteúdo dos conceitos "sujeito", "objeto", "pôr" (ou produzir) e "superar". (a) Marx define o suJeito não como espiritual, mas "como ser objetivo sensorial" (XXXIV:::, 579), i. é, como ser que tem objetos fora de si mesmo e que é objeto para outros. Só um ser de tal ordem é considerado "natural", em oposição ao sujeito da filosofia de Hegel que é tido como "irreal'. "Ser ob 'etivo" significa para Marx ser material, ou sei a, ser cuja naturezu não é o espírito. A identlficaçao e o Jeto" e ''matenal" se expressa de forma clara quando Marx declara ser o homem "um ser equipado e dotado de forças objetivas, isto é, materiais" (XXXIV a, 577). Analogamente significa "inobjetivo" tanto quanto "imaterial" ou "espiritual". Como Marx admitia o pressuposto de que tudo a uilo que· não tem o caráter de um ser matena nao e rea, po e e e dizer:
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" um ser material inobjetivo é um ser irreal, não sensorial, i. é, só imaginado, sem ser produzido por abstn:cão. Sxr "sensorial" i. é, ser real, significa ser objeto dos ~entidos, objeto sensorial, possuir, porta to, fora de si ob;etos sensoriais ter ob ·e~os de sua sensibilidade (XXXIV a, 579). Pr:ralelamente à crítica ao cspmtua 1smo fiegehzno, Marx critica o "misticismo" de Hegel, entendido como a concepção de que o su!eito da dialética desenvolvida na Fenomenologia não é, no fundo, o infinito, mas Deus, o espírito absoluto (XXXIV a, 584). (b) O objeto para Marx, de outra forma que para Hegel, não apresent.: como correlativo à consciência (XXXIV a, 576), mas como independente, em seu ser, do sujeito e externo a ele, não só como "aparência de um objeto", mas também como algo que tem "objetividade fora do saber" (XXXIV a, 5 80). "Objeto" significa para Marx, em suma "ob'eto inde endente do ensar'', de modo que o objeto, idealisticamente interpret.::do, só pode ser es1gna o como aparencia de um. objeto. Ê evidente que um teórico ideal_1sta, !JOr sua vez, cqnsidera como ficção a "objetividade fora do saber" afirmada por Marx. A diferença consiste obviamente no emprego _do termo "objeto", que uma vez significa "coisa independente de pensar" , outra vez, "conteúdo objetivo d<: relação do saber". s~
(c) A relação do sujeito para com o objeto não é, segundo Marx, a relação puramente real de uma posição própria do pensamento, e sim de ordem "objetiva": "Se o homem real, corpóreo, colocado sobre a sólida terra redonda, que inspira c expira todas ::s forças da natureza, põe suas forças e~senciais reais e objetivas, por alheamento de si como objetos estranhos, então o "pôr" não é su;elto; é a subjetividade de forças essenciais "objetivas", cuja ação deve ser, pois, ''objetiva" (XXXIV a, 577) . Aqui Marx caracteriza, portanto, a relação sujeito-obieto como uma relação no âmbito da natureza mate:-ial. O sujeito "põe somente objetivos, porque é posto por objetos, porque é natureza por sua orige'm . No ato de pôr, ele não cai portanto fora de sua "atividade pura", não cai em uma criação do ob!eto. Seu produto objetivo confirma somente sua atividade objetiva, sua atividade como a de um ser objetivo natural" (XXXIV a, 577). A relação do eu com a coisa deve ser entendida, segundo esta afirmação, como relação causal entre o homem como portador de propriedades materiais, forças, etc. e o produto material do efeito daquelas propriedades, da atuação daquelas forças.
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Não há necessidade de se demonstrar explicitamente que a relação sujeito-objeto, por ser caracterizada pelo momento da intencionalidade, não pode,portélnto,ser entendida seriamente como relação causal. Nem mesmo Marx a concebeu desta maneira, como esclarece o próprio contexto. De um modo geral, pode-se considerar como seguro o · fato de que frases ou passagens soltas dos manuscritos de Paris devem ser interpretados com certa reserva, pois se trata de um esboço não acabado, no qual seriam feitas modificações antes de uma publicação. A relacão do homem, como ser material, com a realidade material, está intimamente ligada à _§ua estrutura instintiva. O homem como "ser natural ativo" é determinado por instintos ou por necessida. des dirigidas para objetivos que lhe são independentes, externos e imprescindíveis para a satisfação do instinto; por exemplo, a fome é "a necessidade objetiva que meu corpo sente de um obieto eXíS'iêíite fora de si, imprescindível para sua integração e para a expressão de seu ser" (XXXIV a, 578) · A relação do homem com os objetos materiais é essencialmente trabalho, tal como o havia já reconhecido Hegel, ainda no contexto de sua concepção idealista de homem, ao falar da autoprodução do homem no processo da objetivacão e da desobjetivação, · do alheamento (Entiiusserung) e da superação do alheamento. Segundo Marx, Hegel teria com isto aprendido em que consiste a e:sêncb do trabalho e, ao mesmo tempo, sua im!Jortância par2 o "home:n verdadeiro, porque real", que é o ·~resultado de seu próprio trabalho" (XXXIV, a, 574).
Marx concebe o trabalho como ação das forcas materiais do ser, entendida também como objetiva, ou seja, como atividade de um sujeito dotado de forças materiais e, nesse sentido. de um sujeito material, -oara o qual é natural ''que seu auto-alheamento ,seia a posição . . de um mundo real. sob a forma, porém, de exterioridade, não pertencente à sua essência, superpotente. objetivo" (XXXIV, a, 577). Dado que o homem está condicionado, ao mesmo tempo, pelos resultados
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de seu trabalho. pode Marx entender o trabalho como ato de autoprodução do homem (XXXIV , a, 584). ( d) A posição do objeto pelo sujeito é a objetivação do sujeito que se determina a si mesmo na posição do obieto e, precisamente, na forma de uma atividade "objetiva" no sentido acima mencionada. O trabalho, "como atividade substancial, viva, concreta, da autoobjetivação" (XXXIV, a, 585) é criação do objeto, que, como produto de uma atividade "objetiva", deve, por sua vez, ser "objetivo" (XXXIV, a, 577. Este argumento merece atenção. Marx deduz da materialidade do trabalho, entendida corno atuação de forças materiais, a materialidade do objeto como produto do trabalho, assim como Hegel procurava deduzir do fato de ser o objeto algo de conhecido, ser e1e no fundo, em si mesmo, consciência. O pensamento de Marx repousa evidentemente no pressuposto de que, pertencente ao mundo materiaL o homem dispõe de forças materiais, ou seja, forças que podem provocar transformações em coisas materiais. Tudo o aue pode ser transformado é, tal corno supõe Marx, implicitamente de natureza puramente material. Na medida em que o homem gasta no trabalho uma parte de suas forças materiais, passa - corno já havia professado Locke - algo de seu ou urna parte de si mesmo para a realidade exterior. O trabalho é auto-alienação. (e) A relação sujeito-objeto não se deixa descrever perfeitamente como relação entre um sujeito material, que trabalha e gasta energia física, e as coisas do mundo material. A posição do objeto, a alienação da força humana, a auto-produção do homem no trabalho só pode ser afirmada se, ao lado do comportamento material destacado por Marx, também se reconhece o componente ideal (não negado por ele) da experiência do objeto. Marx insistiu no caráter dialético da relação sujeito-objeto, considerando nem o ob;eto nem o sujeito como al!!o simplesmente existente. De certo modo o sujeito existe somente através de sua relação com os objetos produzidos por ele, da mesma forma que uma coisa, por sua vez, só é ob~eto, se "posta" pelo sujeito. Sujeito e objeto têm sua origem, segundo Marx, não pura e simplesmente• na "posição"; existem enquanto seres naturais independentemente um do outro. Entretanto, como tais, não interessam à teoria da alienação. Sujeito e objeto, nesta teoria, nascem, de fato,
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somente com sua relação, se caracterizada, por Marx, como "objetiva"~ sem contudo serem constituídos por ela. Ainda que a relação sujeito-objeto seja essencialmente uma rel&ção da práxis, deve-se considerar que "praxis'' aqui não pode significar somente "alienação de energia física", mas deve incluir aquele momento que Hegel havia designado pelo de termo "saber". Sendo assim, pôde Marx valorizar positivamente e em grande medida a dialética hegeliana, assim como foi desenvolvida na Fenomenologia do Espírito, sem com isto interpretar a dialética como movimento da "razão", que dá uma ~evira volta e se põe a si mesma, se opõe e se compõe. A dialética de tese, antítese e síntese pareceu suspeita aos olhos de Marx ( cf. IV, 127). De modo algum Marx ignorou o momento do "saber", como demonstra uma passagem, posteriormente cortada dos manuscritos de Paris, na qual ele salienta que o homem não pode ser simplesmente entendido como ser natural, mas concebido sempre como ser natural humano, como ser existente "para si mesmo". "Como tal, ele tem que se confirmar · e atuar tanto no seu ser como no seu saber" (XXXIV, a, 579). O caráter dialético da relação sujeito-objeto se expressa claramente na forma aludida: "Nem os objetos humanos são objetos naturais, tal como se oferecem imediatamente, nem o sentido humano, tal como é imediatamente e objetivo, é sensibilidade humana, objetividade humana. Nem objetiva nem subjetivamente está a natureza presente imediata e adequadamente ao ser humano (XXXIV, a, 579).
Dentro desta relação, nem o objeto nem o suJeito são algo de imediatamente existente. O homem como suieito é um ser ue existe para si mesmo, é possível que arx ainda tenha presente, a ui, o s~o deste termo, que envolve a idéia de "mediação". Se Marx criticava a unilateridade idealista de He!!el, ou seja, a concepção de qu~ o saber seria o único ato do sujeito (XXXIV, a, 580), conservou contudo, em sua teoria de alienação e de sua superacão, um res-
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quício idealista, que é suficiente para se interpretar dialeticamente a relação suieito-ob.ieto com a eliminação deste resto de uma teoria idealista da experiência3 • A dialética ficou, porém, despojada de sua base, como mostram os Manuscritos de Paris . . Pode-se ver que a dialética de Marx, em suas obras da maturidade, é diferente da esboçada em 1844. A concepcão de Marx pode ser resumida da se~uinte maneira: O homem, como ser que nã.o somente conhece os obietos, mas que também os deseia, tem necessidade deles, os ex!Zerimenta sensorialmente e os trabalha, não se defronta com estes obJetos corno se estivessem desligados ou fossem desligáveis da relação com o sujeito. Ele concebe os objetos corno objetos-para-ohomem em sua determinação concreta; por outro lado, o homem não pode ser concebido independentemente de suas relações concretas com os objetos. Marx escreve: " ... a Natureza, tomada abstratamente, en:t si, fixada na separação do homem, não é nada para o homem" (XXXIV, a, 587). Para uma consideração abstrata existia. "somente o ser de razão da natureza" · (ibid.). Do mesmo modo é váiido afirmar que o homem só pode ser concebido corno sujeito definido pelo saber em uma unilateralidade abstrata. Eliminando o componente "idealista" da dialética sujeito-objeto, como se pode observar no pensamento de Marx, a relação do sujeito para com o objeto fica reduzida a uma relação de natureza causal: o homem fez uma parte da natureza extra-humana e está determinado, por sua vez. pelos objetos feitos. A descrição desta conexão, mediante o uso de uma terminologia dialética, encobriria õ fato de que se trata de relações causais, eventualmente de relações recíprocas, não mais pÓrém, de relações dialéticas em sentido próprio. b) Filosofia e Práxis A filosofia de Marx não pode ser compreendida adequadamente se não se tem conta que ela foi mais do que uma filosofia no sentido tradicional. A importância de Marx para a evolução do pensamento filosófico repousa justamente no fato de ele haver submetido a filosofia a um novo modo de consideração, a saber, o sociológico. Com isto, o seu questionamento recebeu uma nova direção. É verdade que Marx teve, nesse aspecto, precursores. Mesmo assim, ele foi, sem_dúvida, o primeiro que conseguiu fazer com que seu modo de consideração se impusesse. Marx não considera a filosofia como sendo rimeiramente
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e a se - es e res ectivas un a entações que riam ter vdida i d penc.1e temente do tempo e as condi ões sob as quais oram estabe,ecid s, as. como um co j to de convic ões de fiomens r azs, ou se a existentes so o ições históncas ue re !e~ ~xjs{§.-ncia, essencialmente matenais. empreender um SIStematilosõfico não signi ica, em primeiro lugar, de acordo com os pressupostos de Marx, compreender o significado de determinadas asserções ou reconstruir 6 raciocínio que as fundamenta, reconhecendo-o ·como logicamente correto, mas concluir de que modo este sistema está condicionado oelas circunstâncias concretas dos· indivíduos que filosofam. É evidente que os dois modos de consideração, sociológico e sistemático, não se excluem reciprocamente, isto é, um não é "refutado" pelo outro, uma vez que as perguntas das quais eles se originam estão situadas em diferentes planos epistemológicos. Na consideração imanente -- filosófica - são examinadas a pretensão de verdade das teses filosóficas, a correção lógica de seus argumentos, a coerência das teorias, etc.; na consideração sociológica, a pretensão de verdade é secundária, uma vez que aqui se trata, em primeiro lugar, de pôr em relação (causal) filosofem as como "fatos" do âmbito da ideologia e fatos do âmbito social. :i_ suposição de que os elementos do âmbito ideológico - i.é. , além das idéias filosóficas, também as i_déias religiosas, estéticas, jurídicas, etc. -- dependem essencialmente de fatos do âmbito social ou especificamente econômico, é o pressu~ osto fundamental do materialismo histórico. Todavia, na medida em que Marx, apesar de afirmnr a epen encia da ideologia com respeito às relações sócio-econômicas (dependência da consciência do ser), aceitou ao mesmo tempo uma reação da ideologia sobre a base sócioeconômica, produz-se então uma relação de condicionamento recíproco entre a ideologia e suas condições materiais. Assim declara Marx que " ... as circunstâncias fazem o homem, assim como o homem faz as circunstâncias" (III, 38). Esta relação de reação, designada freqüentemente como dialética, une, contudo, segundo Marx, dois fatores de desigual valor: enquanto os fatos do campo sócio-eçanômico se desenvolvem. o transcurso dos fatos do campo ideológico carece de desenvolvimento autônomo, pois estes são meramente reflexos de processos evolutivos nutônomos dentro da base (lll, 26-27). No fundo, as idéias não movem o mundo. como admitia ainda a esquerda hege- . liana, e sim, as relações materiais do "mundo" se desenvolvem segundo leis próprias, cujos reflexos são as relações no campo da ideol~gia. =~.7-<.?CT"'v'"'-'--.;;:./
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A expressão "ideologia'' tem em Marx (como em Engels, co-autor da Ideologia Alemã, especialmente no capítulo sobre Feuerbach, ao qual nos referimos aqui) duas acepções. "Ideologia" significa, em primeiro lugar, o conjunto de idéias que refletem as relações econômicas ou sociais, ou seja o conceito de ideologia pode ser utilizado sem uma conotação de valor. Em segundo lugar, Marx chama "ideologia" o conjunto de representações falsas da realidade histórica, i. é., coloca nesta expressão um acento negativo. Neste último sentido, declararam os autores em um parágrafo dos manuscritos,que depois foi suprimido, que "quase toda a ideologia se reduz ou a uma concepção invertida da história ou a uma completa abstração desta (lll, 18, nota). Na ideologia, no segundo sentido, os homens e suas relações aparecem "como numa câmara escura, de cabeça para baixo" (lll, 26). De fato, a consciência depende da atividade material e da relação riíãterial entre os homens e · de sua conduta matenal. As idéias sãó pro uzidas por homens reais, i. é, atuantes, que estão condicionados pela evolução das forças produtivas e das relações correspondentes. Marx resumiu sua concepção de forma pregnante nesta expressão: "A consciência não pode jamais ser outra coisa senão o ser consciente, e o ser do homem é seu processo vital efetivo" (111, 26). Na medida em que se propõe a corrigir a imagem da realidade deformada pela ideologia, Marx atua como crítico da ideologia. Como . um dos precursores da crítica da ideologia - ele não foi o primeiro nem o único - Marx deu uma contribuição decisiva para o desenvolvimento de uma das direções da investigação filosófica do nosso tempo. Deve-se, porém, acentuar que o aspecto positivo da crítica à ideologia é independente dos pressupostos dogmáticos e metafísicos do m·aterialismo histórico. Para levar a cabo, de modo eficaz, sua crítica à ideologia, é suficiente postular, em forma de pressuposto heurístico, que o âmbito da ideologia depende dos fatos sociais, que essa dependência existe sem exceções, sem excluir dogmaticamente a possibilidade de evolução no âmbito da ideologia. Na medida em que Marx introduziu como dogma a idéia básica do pensamento do materialismo histórico, fez uma suposição não suscetível de ser testada e, nesse sentido, metafísica. Não se pode deixar-se enganar por sua afirmação de não fazer nenhuma suposição que tivesse o caráter de . dogma. Ao declc:rar que os pressupostos sobre os quais se apóia não são dogmas, mas "pressupostos reais", a saber, "os indivíduos reais",
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suas ações e suas condições materiais de vida, tanto naturalmente encontradas como produzidas pela "ação" (lll, 20; lU, 27), ele joga aí com a palavra "pressuposto". Tomados em sentido estrito, os indivíduos reais não podem, naturalmente, ser pressupostos. ~e 12ftrtida da teoria são asserções sobre indivíduos, às quais se acresceo-. tam determ~Q.as suposiçõe§_sobre a relação entre a sua consciência e o seu ser. Estas suposições têm, evidentemente, caráter de pressuposos h1poteticos, que não se deixam constatar empiricament~, como pretende Marx para seus "pressupostos" ( 111, 20). Entre as condições materiais, pelas quais os indivíduos estão condicionados na sua consciência e na sua atividade, e a atividade dos indivíduos existe uma relação de condicionamento recíproco, a qual exclui, segundo Marx, a suposição de que existe um dado imediato. Por isso, pode Marx criticar Feuerbach, por ter este ignorado o fato de gue o meio em gue !2Y-.e D homem ( Umgebung) não se constituÍde coisas imediatamente ~2S, mas qUe ele é O produto 00 trabalho humano OU das relações sociãis (III, 43). A idéia de que todos os fatos são "mediados" pela fãxis humana e, portanto, não são imediatos, está unida, em Marx, !_idéia e q~~h~e-~-1!_ natur~za f_Q~ma~ade tJ aimente não de ordem ideal como em Hegel, mas uma unidade fundada na práxis e ncreta~I:â~I. Neste sentido afirma Marx que a célebre "unidade do homem com a natureza" n:1 indústria existiu sempre e se deu em cada época de modo diferente conforme o maior desenvolvimento da indústria (III, 43). Indústria e ÇQJDércio estão.) por sua vez, com respeito à ordem social, em relação de condicionamento recíproco. Em virtude da suposta unidade entre mundo e atividade humana, pÕcle Marx conceber o mundo como sensível,exatamente como "a totalidade sensível e viven~e dos indivíduos que o integram" (III, 45). Um caso especial de condicionamento recíproco .universal entre ntividade e realidade deve ~er visto, segundo Marx, na relação da atividade revolucionária nas condições sócio-econômicas. O comunismo, assim como o materialismo prático, procuram, para além de uma pura reinterpretação, transformar a realidade, como consta da muito citada décima primeira tese sobre Feuerbach: "Os filósofos apenas interpretaram o mundo de diversas maneiras, o que im· porta é transformá-lo" (III, 7). É preciso ter em conta que a ação revolucionária não ode ser · de en ente as condi ões sociais. ~ que não correspon e às tendências reats é
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Marx procura, portanto, supen:r de dois modos a filosofia especulativa: através da ciência positiva do homem como ser prático condicionado pelas relações sociais e pela práxis revolucionária. Entre a superação científica e a superação prátic~ da filosofia especulativa existe uma relação de condicionamento recíproco; assim como a práxis revolucionária só é possível na base de uma teoria revolucionária, assim também uma teoria revolucionária só é possível como aspecto não autônomo oa pr~xis revolucionária (uma vez que, segundo Marx, toda teoria, mesmo a do pensador pretensamente solitário, é condicion::Jd<:: pelas respectivas relações sociais). A conexão entre teoria revolucionária e oráxis revolucionária se torna patente quando se leva em conta o fim ao qual elas se dirigem: a superação da alienação. No contexto da teoria da alienação, Marx reconheceu a importância do trabalho preparatório de Feuerbach, que todavia se limitou à análise das relações teóricas, o qual, junto com outros representantes da esquerda hegeliana, empreendeu a crítica à religião como uma forma de auto-alienação do homem de seu próprio ser. Marx radicalizou a crítica da religião de Feuerbach, na medida em que procurou conceber a religião não como teoria de uma consciência invertida do mundo, mas como expressão dos estados sociais. Estes são de tal sorte que os indivíduos submetidos a eles necessitam de um apoio espiritual para suportá-los. Situações que só parecem suportáveis com a ujuda de ilusões}precisam ser superadas e sua superação não pode ser levada a cabo somente na forma de uma crítica à religião. A filosofia tem a tarefa de analisar toda forma de auto-alienação, não apenas para fazê-la consciente, como para tornar possível uma superação prática da auto-alienação. Assim como cada forma de consciência apenas reflete relações no campo do ser (social) do homem, e pode ser modificada através de uma transformação dessas relações, assim também a consciência da alienação só pode ser superada pela eliminação de suas condições materiais. A análise filosófica (ou crítica ideológica) tem que mostrar as condições sob as quais se chega à alienação do homem de si mesmo; superar estas condições é o objetivo da ação revolucionária. Marx segue a idéia central do materialismo histórico ao declarar, não só com respeito à auto-alienação interpretada religiosamente, como nos trabalhos com relação à auto-alienação em geral, ser ela concebível
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penas no conjunto das relações sociais do homem, o que envolve a tarefa de um<1 "anatomia da sociedade burguesa". Isso significa a aná.:.ise dos fundamentos econômicos da sociedade burguesa. É portanto nseqüente que o Marx posterior conceba como tarefa essencial crítica política (propriamente em referência ao capitalismo). Não - pode porém, em nenhum momento, esquecer que Marx jamais se eixou absorver por interesse científico particular como tal, sempre perseguiu em certo sentido um interesse filosófico, o qual ficou suborinado ao interesse prático da superação da alienação do homem pelo ornem mediante a superação das condições da alienação. Marx não caracterizou como dialético o condicionamento recíproco entre base sócio-econômica e superestrutura "ideológica", entre teoria e práxis correspondente e, de fato, pode-se compreender as relações de retroação como relacões causais, sem retornar às relações dialéticas como relações de índole especial, ou seja, não de ordem causal. Também o fato de que a rede de conexões causais no âmbito social seja freqüentemente tão complexa que o conhecimento só possa captar alguns fios, nada altera a possibilidade originária de explicar essas conexões de modo científico-causal. É discutível se Marx e Engels na ldeoloRia Alemã ou na Sagrada Família tiveram a intenção de esboçar os elementos de uma dialética materialista, como supõe a interpretação marxista ortodoxa. Devemos ter presente que só com ~ ajuda de uma definição muito ampla do conceito de "dialética" podem ser designados como "dialéticas" as referidas relações de condicionamento recíproco onde sua subsunção sob este conceito parece aceitável, como por exemplo ocorre com relação à afirmação anterior, segundo a qual as circunstâncias fazem o homem, assim como o homem faz as circunstâncias; aí surge a dialética (materialisticamente interpretada) do sujeito-objeto, como foi tratada nos Manuscritos de 1844. Com relação às circunstâncias materiais, sobretudo no que diz respeito a "forças produtivas" e "forma comercial" (como afirmam Marx e Engels na Ideologia Alemã), falase em possíveis "contradições" e não em "dialética" (111, 7 4). Na Ideologia Alemã encontram-se expressões como "colisões de classes diferentes", "totalidade de colisões" ou "contradicão da consciência"; não se fala porém em dialética histórica ou econômica. A "superação" das contradições sócio-econômicas, condicionadas pela divisão do trabalho ou pela propriedade privada, se realiza através da superação
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dessas condições na mudança revolucionária das relações sociais. Marx e Engels estavam convencidos de gue é a revolução a forca propuTsõrã da história e não a crítica. Uma superação desta ordem carece, certamente, de caráter dialético.
Assim tnrnbém a idéia expressa na Ideologia Alemã e repetida insisténtemente no Mam1esto dÔ Partido Comunista, de que o fliildã ewlução histórica é a superação das oposições de classee:-com ela, estabelecimento de uma sociedade sem classes (por exernploiir,-70-; Iv;-482), não está caracterizada expressamente corno dialética, ainda que indubitavelii1"ente conexa com a dialética hegeliãiía da liistóriã. 'Marx segue a Hegel m interpretação do processo histórico como realiznção da liberdade, - certamente não de uma liberdade espiritual, mas da liberdade da atuação humana, corno restabelecimento da relação original com a natureza. O comunismo é, nesse sentido, "humanismo real", como afirmam Marx e Engels na Ideologia Alemã. A história da luta de classe, embora já estivesse preparada na filosofia social francesa, apóia-se claramente na dialética do senhor e do escravo, desenvolvida por Hegel, mas não é denominada dialética neste período da evolução do pensamento marxista. Assim como em Hegel o senhor mesmo supera as condições de seu domínio, assim também, segundo Marx, é: evolução do sistema capitalista leva inevitavelmente à sua destruição: a burguesia capitalista produz necessariamente seus próprios coveiros. Assim corno em Hegel, a realização da liberdade é também em Marx superação da alienação do homem pelo homem, evidentemente, porém, no âmbito da reinterpretação materialista da idéia de alienação, originariamente idealista.
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Parece que Marx não considerou apropriada a expressão dialética, nos trabalhos que seguem aos Manuscritos de 1844, para caracterizar as relações por ele analisadas. Assim como ele não caracterizou
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mo dialéticas as relações sócio-econômicas e a relação da base à pra-estrutura, também não define seu método como dialético. Já nos nuscritos Econômicos e Filosóficos caracterizava ele seu procedinto como dialético - uma concepção que, como veremos mais 'ante~ serâ mantida nos.' trabalhos econômicos posteriores. , Nos Manuscritos de 1844, a análise tem um papel importante . . -sim afirma Marx, no contexto da teoria do trabalho alienado: "nós alisamos este conceito, andisamos, portanto, somente um fato de onomia política" (XXXIV, a, 518). Quando Marx, ao ·relacionar conceito de trabalho alienado com as condições reais, mostra que, sob as condições da alienação do trabalho, tem origem a propriedade rivada, acredita ter obtido o conceito . de propriedade privada me'ante a análise do conceito· de trabalho alienado ou do homem aliena-do (XXXIX, a, 520). Não se trata, como está claro, de observação secundária, incluída de passagem, pois Marx repete: "como a partir do conceito de trabalho alienado ou "estranhado" obtivemos por meio da análise o conceito de propriedade privada, assim também, com a ajuda destes dois fatores podem ser desenvolvidas todas as categorias da economia política" (XXXIX, a, 521) . A "análise" do conceito de propriedade privada oferece, sobretudo, o importante resultado de que parentemente é a propriedade privada a causa da alienação do trabalho, posto que, na realidade, é seu efeito" (XXXIX, a, 520). A dedução, pretensamente analítica, da propriedade privada é menos satisfatória, pois repousa num equívoco. Segundo Marx, o trabalho apan~ce frente ao trabalhador, no produto, como algo estranho e, ·neste sentido, tfão lhe "pertence" mais. Se o produto não lhe "pertence", entãó deve "pertencer" a outro, que dispõe do produto e, com iss·o~ dol:'Jlina o ~'ttabalho ' e o tta,balhador-. Vê~se que a. palavra "pertencer" é empregada uma véz no sentido de "fazer parte de", outra vez, no sentido de "ser propriedade de". Como o primeiro destes conceitos é descrito· e o segundo, pelo contrário, só tem sentido sob determinados pressupostos normativos, então "pertencer" não se apresenta como uma expressão de significação unívoca. Na medida em que a expressão "algo faz parte de mim" é interpretada no sentido de "algo me pertence", "é minha propriedade", o conceito de propriedade entra nas premissas do argumento e pode portanto ser obtido a partir delas por meio da análise, explicando-se naturalmente aquilo que estava implicitamente pressuposto. 1
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Se a doutrina marxista da alienação nasceu da reinterpretação da doutrina hegeliana e esta, por sua vez, é dialética, pergunta-se então por que Marx nii.o caracterizou sua concepção também como dialética, depois de 1844, uma vez que, nos Manuscritos Econômicos e Filosóficos, havia encontrado "a grandeza da Fenomenologia hegeliana e seu resultado final: a dialética da negatividade como princípio motor e gerador na doutrina da auto-geração do homem no trabalho, ou seja, na doutrina da objetivação ou do estranhamento e sua superação" (XXXIX, a, 574). Provavelmente, para Marx, estava a dialética tão estreitamente unida ao idealismo ( hegeliano) que seu distanciamento do idealismo fez com que repelisse a expressão "Dialética". Ao mesmo tempo, o méto@ utilizado por ~1arx como científico.:;S.Qcial,~ a ITieiitêllo âmbito da economia política, era o método analítico da élêíi'"cia em g~l. 6 uso freqüente da expressão "analítico" para caracterizar seu IJlétodo, deixa entrever que Marx estava consciente de não utilizar outro método que não o científico no sentido corrente. Isto será justificado a seguir,de modo preciso, sem que se veja, nas teorias econômicas marxistas, algo de negativo. ~ questão (objeção) de que, mostrando-se o caráter analítico de seu método, se estana atnbuindo a Marx um conceito os1tivista de ciencta só pode rovir da ignorância das conexões históricas, pois o método analítico, no senti o c asstco, nao"ãepende, de forma nenhuma~Qressu ostos positivistas ou em~fu~.
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O método da economia política.
( 1~
A metodologia na Introdt..!;ão à Critica da Economia Política.
Com o abandono dos pressupostos idealistas, implícitos na doutrina da alienação dos Manuscritos Parisiense:;, a dialética, em sua forma aludida acima, passa para o segundo plano. É sumamente significativo que Marx não tenha em absoluto falado de dialética no lugar em que mais exatamente tomou posição sobre questões metodológicas, a saber, no parágrafo dedicado ao método da Economia Política, na introdução à Crítica da Economia Política. Em toda a introdução, o termo "dialética" aparece só ocasionalmente. Por outro lado, Marx se pronuncia detalhadamente sobre a relação entre o método analítico e o sintético, onde se pode ver não somente que ele se ocupa da meto-
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dologia científica clássica, como também tinha presentes as afirmações de Hegel na Critica da Lógica ou na Enciclopédia, onde se discute a relação entre análise e síntese, como vimos na primeira parte deste livro. Ainda que Marx se oriente agora pela J,ógica de Hegel e não mais pela Fenomenologia do Espírito, era-lhe impossível, contudo, como conseqüência da recusa da dialética especulativa de Hegel, con· ceber o método dialético como superação da análise e síntese. Importante se torna então esclarecer a relação entre o método analítico, sintético e dialético no pensamento marxista entre 1858-59. Marx começa, na terceira parte da introdução, recusando a exigência "de começar com o real e o concreto" (XIII, 631) . A análise que parte do concreto começa com a representação crítica de um todo e chega a conceitos simples, que, como tais, são abstratos. A partir destas determinações abstratas deve-se "recompor" conceitualmente o todo originário, de modo que as mesmas determinações e relações que a caracterizam se destaquem claramente. O procedimento que Marx descreve como ascensão até o conceito de um todo (por exemplo do estado, de relações econômicas internacionais ou do mercado mundial) mediante momentos abstratos simples (XIII, 632), se designa como método adequado científico-social. Marx tem em vista o aspecto compositivo do método analítico, e não a chamada síntese em sentido próprio, isto é, o método axiomático. A composição pressupõe, porém, a resolução, chamada por Marx "análise", como primeira fase do método analítico,motivo pelo qual não se pode entender por que ela a recusou no começo do capítulo em questão, a menos que tenha querido recusar uma resolução errônea e não a resolução em geral. Em favor desta última suposição, fala o exemplo escolhido por Marx, de que a falha da análise tradicional na Economia política vigente até então se torna patente. ~ antiga economia política começou com a 2bstração "população" como um todo, sem se dar conta de que a população em concreto se compõe de classes, que por sua vez são caracterizadas através de uma série de momen, tos, como: "salário", "capital'; etc. (XIII, 631 ) . Isto -parece significar que a análise tradicional tomou erroneamente um abstrato por um todo concreto e por isso não atinge seu objetivo. Marx não recusou, portanto, o aspecto resolutivo do método dialético, mas apenas uma aplicação defeituosa do mesmo. Totalmente de acordo com o método
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analítico, exige Marx que se comece não por conceitos abstratos, mas pelo concreto (i. é, pela descrição de fatos concretos) : "O concreto é concreto, porque é concreto, porque é a conjunção de muitas determinações, portanto, unidade do múltiplo. No pensamento ele aparece, por isso, como processo de conjunçã.o como resultado, não como ponto de partida, apesar de que é o ponto de partida real e,portanto,também o ponto de partida da intuição e da representação (XIII, 632; sublinhado pelo autor). Os dois caminhos distinguidos por Marx correspondem exatamente aos aspectos de método analítico caracterizados pelas expressões "Resolução" e "Re-composição", tal como serviram de base na ciência e na filosofia, pelo menos a partir de Galilei. A Marx não interessa, porém, primeiramente a caructerização formal do procedimento analítico, mas a recusa da interpretação idealista, a saber hegeliana do mesmo. Neste sentido, acentua ele que o método (com positivo) , "o de ascender do abstrato ao concreto" (XIII, 632), é somente a reprodução do concreto no pensamento com o fim de apropriar-se do concreto conceitualmente e não corresponde à evolução real do concreto, tal como pensou Hegel. Trata-se, em outras palavras, da maneira de como conceber o concreto e não da origem do concreto no auto·movimento do "concreto". A totalídade concreta não é produto do "concreto" que ~e origina a si mesmo, mas da elaboração conceitual de representações intuitivas. O todo concebido é como tal apena~ um todo pensac1o, e a realidade correspondente ao pensamento não é afetada na sua independência do pensamento e auto-suficiência ( capítulo XIII, 632-633 ) . Com isso se levanta o problema da relação entre a ordem dos · conceitos e a ordem real, isto é, das relações que admitimos para fins explicativos e as relações da própria realidade. A pergunta de Marx, se a prioridade lógica das categorias simples, com as quais opera a economia política, dotadas de uma prioridade histórica com relação às menos simples - diz respeito ao paralelismo da revolução sistemática e histórica afirmado por Hegel. Marx declara - ao que parece contra Hegel - que de fato existem casos nos quais o processo histórico corresponde ao proceder do pensamento abstrato (XIII, 633), mas esta correspondência não é necessária, porque (como se pode mostrar sobretudo mediante o exemplo do conceito abstrato de tra· balho) as correspondências reais são produtos de relações contingentes (XIII, 636) .
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"Seria falso e inadmissível deixar as categorias econômicas na seqüência em que elas foram determinantes historicamente. Sua ordem é determinada muito mais pela relação que têm entre si na sociedade rguesa moderna, e que é precisamente o contrário do que aparece mo relação natural ou que corresponde à ordem do desenvolvinto histórico" (XIII, 638). Embora Marx, no presente contexto, mencione Hegel somente m intenções polêmicas, não se pode desconhecer o quanto. ele permanece dependente de Hegel, quando caracteriza o método científicoia! como isolamento analítico de determinações abstratas simples "' como reprodução da representação da totalidade originária mediante aquelas determinações. O método analítico, como processo de análise e combinação de conceitos, corresponde evidentemente à concepção geliana que, .como a de Marx, se caracteriza 9elo elemenio hipotético do método analítico. Marx, assim como Hegel, desconhecia o papel da hipótese na explicação científica, ou na formulação de teorias, enquanto, como cientista, operava constantemente com hipóteses. Segundo sua concepção, a ciência procede da seguinte maneira: acendo aspectos unilaterais de uma totalidade concreta e buscando rar sucessivamente a unilateralidade produzida por ela. Nisto onsiste o caráter dialético do procedimento, embora esta expressão ainda não apareça aí. Neste sentido declarou Marx: "Como ocorre de modo geral em todas as ciências históricas, deve-se levar em conta, no momento de se considerar as categorias econômicas, que tanto na realidade como no pensamento, o sujeito, neste caso, a moderna sociedade burguesa, está dado; e que as cate· gorias expressam, portanto, formas de existência, determinações existenciais e freqüentemente só facetas isoladas desta determinada sociedade, deste sujeito". . . (XIII, 637). Assim, por exemplo, a categoria econômica de "valor de troca" é urna "relação abstrata, unilateral, de uma totalidade concreta, viva, já dada" (XIII, 63 2), enquanto é construída abstraindo-se as circunstâncias so~iais, dentro .das quais se realiza a troca. Ela exige, portanto, uma incorporação em um contexto, que é dado pelas relações de produção em certas circunstâncias sociais. De modo semelhante, a categoria de propriedade deve ser posta em relação com situações concretas familiares, de domínio ou de servidão. O substrato concreto,
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cuja relação é a propriedade, é sempre dado de antemão. (XIII, 633). Entre os conceitos econômicos, nem todos igualmente aptos para servir de ponto de partida da explicação, deve-se preferir os simples aos complexos, as categorias independentes às dependentes. Por esta razão não se pode considerar, por exemplo, "rendimento" como ponto de partida, uma vez que só se pode falar dele com relação ao capital; do contrário pode-se falar em capital sem relacioná-lo com rendimento. Deve-se começar, portanto, pelo conceito de "capital'', procedendo à su2. inclusão em ..:::ontextos cada vez mais concretos; posteriormente será examinada também a relação entre capital e rendimento. As categorias econômicas se comportam de modo semelhante às categorias da lógica ( hegeliana), enquanto determinações mais abstratas e "mediadas" dentro de um contexto, ao qual corresponde um conceito menos abstrato; com isso se leva o pensamento ao nível "mais alto" de uma consideração mais concreta. A forma relativamente concreta alcançada em cada caso contém então as determinações anteriores como momentos superados, como Marx observa, com . respeito às etapas do desenvolvimento social. Cada uma das quais contendo as precedentes como "superadas". Contudo,isto é válido para a sociedade burguesa só com uma restrição: ela contém as formas sociais anteriores de modo "atrofiado". Isto se explica pelo fato de que ~la "representa uma forma oposta da evolução" (XIII, 636), i. é, corresponde ao momento da antítese no esquema dialético. Ela é caracterizada por "condições" imanentes e portanto está determinada a ser "superada" em uma forma social futura, da qual se poderá dizer que contém todas as formas sociais precedentes como momentos superados. O procedimento, aqui esboçado, da incorporação de conceitós isolados em um contexto global, dentro do qual se encontram interrelacionados, foi caracterizado acima como "dialética", porque assim o foi concebido por Marx e Hegel. Não se pode,porém,omitir o fato de que esta característica tão geral pode servir sem mais para uma caracterização vaga do método empregado pelo cientista para explicar fatos . A concordância com a concepção hegeliana do método analítico, o qual, como foi dito acima, deve ser "superado" no método dialético, não significa que Marx dependa exclusivamente de Hegel, metodologicamente falando. Não há dúvida que Marx tinha diante de si
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método (V erfahren) da ciêmúa, precisamente da ciência social ntemporânea, ou a sua interpretação na metodologia tradicional, - qual se pode já mostrar o descuido do momento hipotético da ' ·se, como referido acima. Na terceira parte da introdução à Cría da Economia Política queria Marx certamente caracterizar o -étodo científico areito por ele e não pretendia esboçar os fundamen- de um::: dialética das ciências sociais, segundo o método da Lógica "geliana. Se alguns traços de seu método, sobretudo enquanto sur· ::em nos exemplos escolhidos por Marx, mostram o parentesco entre concepç.ã o de Marx e a de Hegel, isto não estava, muito provavelente, na intenção de Marx, sendo, porém, o resultado da depenencia do autor da Crítica da Economia Política para com o autor a Ciência da Lógica e da Enciclopédia.
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O método de O Capital
É pena que o propósito de Marx, manifestado em 1858 (XXIX,
_60) e manti<.lo ainda dez anos depois (XXXII, 547), de escrever um tratado sobre o método dialético não tenha sido realizado. Por · so, somos obrigados a definir a relação entre o método analítico e · alético, tal como Marx a entendia em fins dos anos cinqüenta, à ase de observações feitas de passagem. A expressão "dialética" se encontra no quarto parágrafo da introdução à Crítica da Economia Política (XIII, 640) com o seguinte significado: "delimitação de conceitos inter-relacionados e, ao mesmo tempo, realmente distintos". Também em outros lugares se falou de relações dialéticas, sem ter sido empregado este termo. O que permanece sem ser definido é a relação entre o método dialético e o analítico. Embora Marx estivesse convencido de que o método de que ele se serve, não tenha sido antes aplicado a problemas econômicos (XXXIII, 434 ), não se pode excluir que ele tenha sempre visto o método dialético como idêntico, no fundo, ao analítico. Nas observações feitas à margem do Manual de Economia Política de Adolph Wagner, ele usava a expressão: "meu método analitico" a fim de distinguir o seu método "germano-professora! de ligar conceitos" (XIX, 371). No prólogo à primeira edição de O Capital se encontram formulações como "análise de mercadoria", "análise da substância do valor" (XXIII, 11), com as quais Marx caracterizava o conteúdo do primeiro capítulo da obra, no qual, a cada passo, se t.r:ata da análise. De fato, o método analítico na economia política de Marx foi expressamente comparado com o . método analítico do
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cientista da natureza. À decomposição ótica de objetos através do microscópio ou à decomposição química de mbstâncias em seus elementos correspo,nde, na análise d~s ciências sociais, a "abstração",. onde habitualmente se emprega "resolução"; não resta dúvida, por conseguinte, ·qtlanto ao;métedo que Marx tinha em vista~.
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um trecho importante, Marx fala novamente da consideração "abstrata", cujos objetos são os "momentos" de uma totalidade dada: "Consideramos . . . a acumulação abstrata, isto é, como simples momento do pro.,esso imediato de produção" (XXIII, 590). A "pura análise" do processo de acumula~ão exige "prescindir provisoriamente de todos os fenômenos que ocultam o funcionamento intemo de seu mecanismo" (XXIII, 590). Quando Marx, em 1873, no epílogo da segunda edição de O Capital, declara: "A investigação deve apropriar-se da n.atéria em pormenor, analisar suas diferentes formas de evolução e averiguar sua vinculação anterior", e acrescenta que só depois de haver levado a cabo esta tarefa se pode descrever o "verdadeiro movimento" (XXIII, 2 7), então ele tem em mente resolução e recomposição como as duas fases da análise. Merece destaque o fato de que Marx, imediatamente ap~s estas • duas alusões acerca de seu método inequivocamente analítico, faJa de seu método dialético (XXIII, 27). Parece, portanto, que ele quer identificar sem mais o método analítico ao dialético, contanto que o último ·não esteja "de cabeça para baixo", como em Hegel 1 màs que seja interpretado ("invertido") · em sentido materialista. Sendo assim, então, ~st~da, em, princípio, respondida a questão deixada em abe~to por Althusser quanto ·à origem do método de investigação dé Marxs-. O método mediante o qual se chega às explicações das relações da forma econômica e social capitalista é o método analítico da ciência moderna6 , que por certo se interpreta em Marx de um modo metafísico que se orienta por Hegel. Bem longe de ter destruído completamente o método da eco· nomia política burguesa, como pensa M. M. Rosental, Marx se serve sem escrúpulos deste método e o reconheceu nos parágrafos meneio-
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os da introdução à Crítica da Economia Política e em muitas rvações posteriores, ainda que nem sempre claramente. Deve-se levar em conta que aqui se trata primeiramente do mée não da interpretação metafísica dos princípios. O caráter ético, repetid2s vezes afirmado por Marx, tem muito a ver com teoria econômica - como deverá ser mostrado. Se se leva em ta a diferença entre o método e sua interpretação metafísica, comnde-se, então, como Marx pode afirmar ter seguido e não .seguido -onselho de Engels no sentido de respeitar uma linha dialétid::t XXXI, 306) . O que é düllético é o contexto metafísico de interpreção e não o método como tal. Os intérpretes que consideram o me· o empregado no Capital como completamente dialético estavam preensivelmente contrariados com a afirmacão de Marx de ter ertado" com a terminologia de Hegel na apresent&ção de sua teoria saber. É uma afirmação que poderia abalar a tese do caráter dialéo do Capital, tanto mais que Marx decl&rou qu e sua confissão de "' sido ele discípulo de Hegel se deveu a um motivo externo: sua 'gnação em ver Hegel tratado como um cachorro morto, o havia -ado a declarar-se abertamente como seu discípulo (XXIII, 27) . e fato, Marx formula teorias para explicar por meio de hipóteses equadas certas circunstâncias econômicas. Levando-se em conta a rma da explicação, o uso de termos hegelianos só pode ser vistemo coqueteria. Entretanto Marx interpretou o método científico quadro de uma metafísica que coincide com a de Hegel em uma _' rie de pontos; a este respeito suas declarações de haver-se baseado em Hegel e de ter apreendido o núcleo racional da Dialética hege. na, após abandonar seu envoltório místico, podem ser absolutaente levadas a sério. Ademais é pr€ciso reconhecer que, com a ado:ão da teoria da alienação no Capital adquire validez a dialética que e é própria: o Qapital é o resultado da alienação extrema do homem de si mesmo. "O capital, produto do homem, produz por sua vez o ornem", como formulou J. Hyppolite."7 (J. Hyppolite: Études sur .\ 1arx et Hegel. Paris, 1955, pág. 143) . Com respeito ao método, é válido, decerto, que Marx se ateve, no Capital, aos princípios do método esboçado na introdução à Crítica da Economia Política. De acordo com a concepção da relação enre a análise e a síntese apresentada ali, esclarece ele, no epílogo à
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segunda edição de sua obra principal, que seria preciso distinguir entre o modo de exposição e o modo de investigação, na medida em que, no primeiro, se pressupõe a investigação analítica das circunstâncias e se descreve o "movimento real" (ou seja, a relação dedutivn sintética). De modo semelhante, já Hobbes tinha declarado imprescindível o aspecto resolutivo do método analítico para a investigação, inadequado porém para a exposição com fins didáticos. Neste sentido, Marx começa a exposição, no Capital, com o conceito relativamente simples de "mercadoria", como resultado da resolução do modo de produção capitalista que, 8e não entra na exposição, permanece contudo pressuposto. Sem dúvida, Marx estava consciente da primc:zia do contexto total, frente ao qual se isolam, por "abstração", os elementos. 8 O conceito de mercadoria é a "forma elementar" (XXIII, 49) da riqueza das sociedades com produção capitalista. Ele é, com respeito aos elementos conceituais mais simples que resultam da análise das "mercadorias", conceito do "fato econômico concreto mais simples". Nesta ordem de idéias declara Marx, nos comentários feitos à margem do Manual de Economia Política de A. Wagner: "Eu parto da forma social mais simples, sob a qual se apresenta o produto do trabalho na sociedade atual, e ~ esta é a "mercadoria" (XIX, 369). No mesmo contexto Marx protestou contra a concepção de que o ponto_de partida do Capital fosse constituído por conceitos (sobretudo pelo conceito de valor). N aturalrnente seria errôneo supor que Marx tivesse querido negar que, na formulação da teoria econômica, ~e operasse com conceitos; ao que parece, recusou somente a interpretação dos conceitos como se fossem "a verdadeira realidade" e sublinhou seu caráter empírico. Às formas sociais reais cabe prioridade sobre os conceitos que somente a representam. Por isto deve-se começar não com o termo abstrato "valor", e sim com a forma concreta social do produto do trabalho, com a mercadoria. E não é o valor que se divide em valor de uso e valor de troca. mas a mercadoria é, é:O mesmo tempo, valor de uso e de troca. Há de se entender Marx da seguinte forma: a descrição de fatos observáveis constitui o ponto de partida e não "conceitos" no sentido hege-
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da palavra. É evidente que Marx, corno todo cientista, constrói eoria com o nuxílio de conceitos~ as observações citadas devem _esrnente tornar claro que os conceitos em questão são obtidos ante resolução de sentenças descritivas e não são dados indeenternente delas. Para se dar a pretendida explicação das rela· essenciais dentro da forma econômica capitalista, é necessário o conceitos elementares sejam relacionados entre si e as relações formuladas sob forma de leis; a lei do valor deve ser fundarnen- ~ela se baseia a teoria da mais-valia, segundo a qual a produção ais-valia está relacionada com a explorção do trabalhador pelo "talista. Não vamos entrar aqui em detdhes sobre o conteúdo da ria, urna vez que o propósito de nossa investigação se dirige antes mais nada à análise da forma das relações dialéticas. O conteúdo ~..á examinado enquanto for necessário para esclarecer o contexto rmal. (a) A unidade dos contrários. A tese, segundo a qual a reali-ade é constituída de oposições internas ou contradição é considerada :: murnente corno parte integrante da filosofia dialética. Assim, por ""Xernplo, Engels considerava a "lei da. interpenetração dos contrários" mo parte integrante das leis fundamentais da dialética materialista. r isso deve-se examinar primeiro se, ou então, em que sentido Marx ·otou essa tes ~Segundo Marx, a evolução das contradições de urna forma de produção histórica é o único caminho histórico de sua dissolução. Considerava sobretudo a forma de produção capitalista co;no contraditória em si, o que, segundo sua opinião, se manifesta nas crises econômicas. A Ge>ntradição interna do capitalismo se mostra, segundo Marx, r:naliticamente já no conceito de sua form a elementar, a mercadoria, enquanto esta é determinada corno unidade das determinações opostas ''valor de uso" e "valor de troca", e essa oposição se manifesta na relação de forma relativa de valor e forma equivalente da mercadoria: "A oposição interna entre valor de uso e valor de troca, oculta na mercadoria ( ... ) , é representada por urna oposição externa, ou seja, pela relação entre duas mercadorias, das quais urna, cujo valor se quer expressar, só é imediatamente válida corno valor de uso. Sem embargo, a outra mercadoria, na qual se expressa o valor, só é imediatamente válida como valor de troca" (XXIII, 75-76) 9 •
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A oposição entre vdor de uso e de troca se apresenta, segundo Marx, no transcurso da evolução, marcadamente mediante a relação entre mercadoria e dinheiro (XXIII, 101-102; cf. 118). Nos Fun· damentos da Crítica da Economia Política, Marx havia perguntado se a existência do dinheiro, ao lado das mercadorias, não "oculta" contradições, dadas com esta mesma relação, e afirma: "O simples fatJ de que a mercadoria existe duplamente, por um lado, como produto determinado, que contém de um modo ideal (latente) seu valor de troca em sua forma de ser natural, e por outro lado como valor de troca manifesto (dinheiro), desprovido de toda relação com a forma de ser natural do produto: esta existência duplamente distante tem que se transformar em diferença, a diferença em oposição e contradição".10 Com a introdução do dinheiro, começa uma nova fase da evolução, posto que o dinheiro não somente serve como meio de troca como também pode chegar a ser capital, com o qual se abandona o nível da simples produção e circulação de mercadorias. A forma de produção capitalista se caracteriza pela produção da mais-valia,i. é, pela exploração da força de trabalho dos assalariados que, como classe. se enfrentam e confrontam à classe dos empresário capitalistas. As c )ntradic;ões contidas na mercadoria se convertem, assim, nas con· tradições de ordem econômica e social capitalista geral.U Estas contradições não são formuláveis em termos de tese e antítese que se conciliariam numa síntese; no entanto, eles tornam necessária a superação do capitalismo mediante a eliminação das condições sob as quais nascem as contradições, i. é, a substituição do modo de produ.ção capitalista pelo socialista. W. Becker viu o motivo decisivo para a decisão marxista de desenvolver a teoria do valor com o auxílio do método dialético na contradição afirmada por Marx no conceito de mercadoria. 12 Segundo Becker, a dialética se apresentava para Marx como meio para que sua afirmação da unidade de determinações contrárias no conceito de mercadoria pudesse ser defendida da acusação de ser inconsistente e portanto irracional. 13 Prer;isamos indagar, entretanto, se a afirmação da contraditoriedade do conceito de mercadoria é ,iustificada. É. evidente que "valor de uso" significa algo distinto de "valor de troca"; o estabelecimento desta distinção não é contudo suficiente para a
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tatação de uma contradição. Examinando-se mais exatamente rença entre os conceitos mencionados, desc\Jbre-se que se trata onceitos distihtos e até heterogêneos, uma vez que Marx emprega, ue parece, "valor de uso" como conceito descritivo, e "valor de , como conceito teórico. "Valor", no sentido de "valor de troca", efine dentro da teoria do valor do trabalho, segündo a qual deve. tinguir entre o trabalho que cria valor de uso e o trabalho que valor de troca. Este último deve ser entendido como "trabalho ano em geral" ou como "trabalho r.bstrato". "V alo r de uso" e or de troca" pertencem a níveis diferentes; na terminologia de : no nível da aparência e no da essência. Por isso não se entende o pode haver uma contradição na mercadoria mesma, se se atém ente ao fato de que - como é o caso de Marx - a descrição em ·o contexto aparece o "valor de uso" é correta,e a troca, mediante qual o "valor troca" é explicado, é exata. A relação entre o valor de e valor de troca é um caso de aplicação de distinção de aparêne essência e, por isso, sumamente dialética, enquanto se declara : a distinção como dialética. (b) A transformação da quantidade em qualidade. Desde gels os representantes de uma interpretação dialética do método tilizado no Capital assinalam que Marx teria adotado a lei hegeliana transformação de modificações quantitativas em qualitativas. Isto onteceu a propósito da constatação de que não era transformável capital qualquer importância de dinheiro ou de valor, mas que ra isso era necessário um certo mínimo de dinheiro ou valor de oca na mão do proprietário particular de dinheiro ou de mercadoria. _ Iarx observou a este respeito: "Aqui, como nas ciências naturais, :e confirma a exatidão da lei descoberta por Hegel em sua Lógica, :egundo a qual modificações puramente quantitativas em certo ponto se transformam em diferenças qualitativas" (XXIII, 327) . Como eremos no próximo capítulo, Engels fez referências insistentes a esta assagem. Com efeito, esta afirmacão de Marx acerca de uma lei ialética igualmente válida para a lógica, a economia política e as iências naturais, deveria parecer-lhe muito importante com respeito sua idéia de um materialismo dialético. A referência a Hegel está muito clara neste contexto, dado que, na Ciência da Lógica, exatamente no capítulo sobre "o entroncamento
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das relações de medida" se diz que ns modificações quantitativas não tocam a qualidade somente dentro de certos limites; havia1 contudo~ um ponto no qual a relação quantitativa modificada se transformava em quantidade.14 O paralelo acentuado por Marx se refere todavia a uma questão especial, de modo que só é possível deduzir o caráter completamente dialético do Capital, pelo fato de mencionar a lei da transformação de quantidade em qualidade, se se pode comprovar que esta lei é empregada por Marx não somente no caso particular mencionado, mas,em geral, como meio de interpretação de transformações. Nesta ordem de idéias, M. M. Rosental acreditou poder interpretar a transição da forma de valor simples à desenvolvida e, mais ainda, à geral; do mesmo modo interpreta as transições da cooperação simples à manufatura e à indústria maquinária, mediante a lei da transformação das modificações quantitativas em qualitativas. 15 Tal extrapolação carece naturalmente de base no texto. Inclusive quando Marx expõe que, dentro da forma de produção capitalista, se criariam os elementos de sua anulação no socialismo, a saber, a socialização da produção com uma concentração simultânea. Pode surgir a tentação de interpretar a transição do capitalismo ao socialismo no sentido de uma transformação da quantidade em qualidade; contudo, tal interpretação pecaria por falta de provas. Marx constatou tão-somente: "a centralização dos meios de produção e a socialização do trabalho alcançaram um ponto, onde se fazem incompatíveis com sua envoltura capitalista" (XXIII, 791). A destruição desta envoltura, a expropriação dos expropriadores, só se pode explicar, violentamente, mediante a lei dialética em questão. Ademais parece que esta "lei" só foi chamada de "dialética" sobretudo porque aparece na lógica de Hegel. Pelo menos no caso que nos ocupa, pode estar certa a suposição de Althusser de que Marx, sentindo sua solidão, queria apoiar-se num aliado e que como tal se ofereceria, em primeiro lugar, Hegel. 16 (c) Essência e aparência. Também passa por elemento tico na teoria econômica de Marx a definição da relação entre cia e aparência, de "realidade verdadeira" e de "aparência de fície''. Apesar de, ao que parece, a diferença estabelecida entre
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e aparência não ser suficiente para caracterizar o pensamento espondente como dialético, comprovar-se-á, contudo, que perce necessariamente à dialética de Marx, a qual vem ser um tipo terminado de essencialismo. Neste particular, pretendemos mosaqui, a diferença específica do essencialismo marxista. A distinção entre essência e aparência domina o modo de aprentação do Capital. Assim, segundo Marx, no valor está presente trabalho abstrato; o valor vem a ser, para ele, "argamassa" do tra· alho humano em geral (XXIII, 77); o valor da mercadoria aparece o dinheiro como medida de valor (XXIII, 109), enquanto se pres. de de todas as condições acidentais, como a influência da concorencia ou do custo de produção; e no lucro aparece a mais-valia em a forma mistificada (XXV, 46). Sobre os trabalhos específicos e qualitativamente diferentes, Iara Marx que são formas de aparência do trabalho humano em =eral (XXIII, 78); por esta razão é possível a comparacão de trabahos distintos e, portanto, a , formulação de equações de valor (por exemplo: 20 varas de tela igual a um vestido). Somente através de ua "redução ao caráter comum que possuem como . . . trabalho humano abstrato" (XXIII, 87-88), os valores ~e podem identificar na forma de uma equação, dado que o valor - a saber, trabalho feito objeto em geral - não pode ser conhecido somente pela observação; o que é o valor não lhe está - segundo as palavras de Marx - "escrito na testa" (XXIII, 88). E preciso decifrar "o sentido do hieróglifo" para se entender em que consiste a essência do valor. Em outras palavras, é preciso possuir uma teoria para poder explicar o fato de que os produtos se intercambiam em determinadas circunstâncias. O conceito "valor" não é um conceito descrito, porém pertence ao vocabulário de uma teoria econômica, a qual implica, como pressuposto fundamental, que as relações do valor de troca, no fundo, segundo sua "essência", são relações entre "quantos'' de trabalho, os quais se encontram materializados nos bens permutados. Os produtores, equiparando seus produtos '• valores no intercâmbio, equiparam, segundo esta suposição, seu trabalho, sob a perspectiva do trabalho humano em geral, sem entretanto dar-se conta desta relação, na maioria dos casos. Só a teoria do valor de trabalho possibilita compreender o sen-
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tido de seu agir, sem que desapareça por isto a "aparência" das circunstâncias observáveis: "O tardio descobrimento científico de que os produtos do trabalho, enquanto valores, são mera expressão objetiva do trabalho humano empregado em sua produção, marca uma época na história da evolução da humanidade, porém,de nenhuma maneira faz desaparecer a aparência material do caráter social do trabalho". (XXIII, 88). Os fatos que se podem observar não mudam de conteúdo só por encontrar uma explicação no âmbito da teoria, se bem que a incorporação a uma teoria provoque uma interpretação metafísica modificada: apresentam-se como "aparência" ou como "ilusão", ou seja, como exteriorização das relações do ser pretensamente concebidas nos princípios da teoria. Com isso Marx se revela como expoente da posição essencialista, representada desde Platão até Hegel e, mais do que isso, de uma posição fundamental na metafísica ocidental. Não é preciso insistir em que não se deve conceber o ser em Marx como uma idéia separada das coisas concretas, mas como um aspecto da realidade, cujo outro aspecto é a aparência. Por isso, pode-se utilizar, tal como propõe Althusser, em vez do termo "ser" ou "essência", o termo moderno "estrutura" para exprimir que a "essência" ou "ser" não pode ser pensada separadamente dos fenômenos. 17 Todavia, cabe perguntar aqui se a posição essencialista fica mais clara se empregamos a palavra "estrutura", tanto mais que a "causalidade metonímica" da estrutura -. - suposta por Althusser - em relação para com os elementos que se declaram como efeitos da estrutura, não é fácil de ser éoncebicta. Para se fazer .iustiça à concepção que Marx tem da essência, assim como da relação entre essência e aparência, é necessário levar-se em oonta seu conceito de lei. "Lei" significa, segundo Marx, uma "relação interna e necessária" entre aparências (XXV, 235), que se supõe hipoteticamente para a explicação das aparências, e é conhecida,com segurança, como relação da própria realidade. A concepção marxista da função da formulação de leis em explicações científicas e, sobre· tudo, econômicas, pode ser caracterizada, portanto, da seguinte maneira: os fatos aparentemente casuais têm como base leis necessárias da realidade não diretamente observáveis, mas que se podem averi-
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na análise científica. Assim declara Marx: "Nas relações de càsuds e continuamente oscilantes, o tempo de trabalho se -·~-""'' com violência, como lei natural reguladora, como por exema lei da gravidade, quando cai a casa sobre a cabeça de uma a'' (XXIII, 89). E prossegue: "A determinc:ção da grandeza alor pelo tempo de trabalho é, portanto, um mistério oculto sob ovimentos aparentes dos valores relativos das mercadorias. Seu obrimento elimina a aparência das determinações meramente ~is da grandeza do valor dos produtos de trabalho; de nenhum o, porém, sua forma objetiva" (XXIII, 89). Portanto, são "essen., as relações objetivas que se podem formular em forma de leis, exemplo, a relação entre o trabalho abstrato e o valor, declarado lei do vdor. Todas as demais relações, todavia, são "casuais" ou ernas, como, por exemplo, a relação entre agricultura, como forma ereta de trabalho, e maís-valia segundo a idéia fisiocrática de don de la nature. A explicação de fatos observáveis no terreno nômico se realiza subsumindo-os, como casos, às relações de leis enciais" que dominam o âmbito econômico-social. Assim, por emplo, se explica a mercadoria, com seu caráter de fetiche, mosdo que possui uma natureza de trabalho alienado e aue as leis - quais está submetida parecem ser independentes do homêm e quase ecânicas, mas que, na realidade, estão condicionadas socialmente. Marx argumentou que o fetiche "merc1doria" somente tem ori="'m dentro de condições muito específicas, as capitalistas, posto que
las, mais do que sob condições de produção primitivas ou socialis- , se dissimulam as relações "verdadeiras" (isto é, essenciais) por parências enganosas. As relações essenciais que se exteriorizam na -parência podem permanecer desconhecidas e então a aparência se .. onverte em ilusão enganosa; ou podem revelar-se na análise, e, então, aparênoia se pode explicar corretamente como o que é ( 18). Aqui não se trata de introduzir leis hipoteticamente, a título explicativo, mas de descobrir - segundo Marx - relações de leis obieivas e com isto a essência da realidade mesma. Uma tal concepção ~ univocamente essencialista; contudo, com respeito a um conceito e lei não essencialista, as leis só podem ser suposições que se estabelecem com vistas à explicação de fatos observáveis. A afirmação de Marx, de que existem relações de leis essenciais e objetivas, se
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revela, do ponto de vista não essencialista, como expressão de uma de relações supostas com fins explicativos; isto é, às hipóteses de leis são ordenadas relações reais que se designam como "essência". As suposições, cuja função é possibilitar explicações dentro de teorias, se convertem em mistérios dissimulados por detrás das aparências (XXIII, 89). Sobretudo a "essência" do valor é o resultado de uma tal substancialização de suposições mediante as quais se pretende explicar as relações de troca de mercadorias (mais adian· te voltaremos a esse assunto). "Valor , considerado por si mesmo, é uma palavra sem significado19 , que, à maneira dos conceitos teóricos, só pode adquirir significado no contexto da teoria em questão e que também não designa uma "interioridade", de algum modo concebível, das coisas. mbstancializ~ção
A observacão de Althusser, segundo a gual a interioridade não é outra coisa que o "conceito", não a interioridade real de fenômeno, mas seu "conhecimento"20, parece estar na linha da concepção aqui exposta. No presente contexto não se pode deixar de reconhecer o fato de que Marx deu, indiscutivelmente, explicações mediante hipóteses, em casos particulares, como por exemplo em me: carta de 7 de janeiro de 1851, dirigida a Engels, onde diz, com respeito à explicação da renda: "Em todo o caso trata-se aqui somente da possibilidade econômica desta hipótese" (XXVII, 161). É provável, ctmtudo, que Marx, tal como o vê H. Korch, apoiando-se em Lenin, ficara convencido da possibilidade de. poder eliminar, por verificação, o caráter hipotético das suposições originárias, sobretudo quando as suposições em questão se revelaram como as ·únicas mediante as quais se pode alcançar o propósito explicativo respectivd·1, Esta concepção, que Marx comp2rtilhou com muitos metodólogos anteriores e contemporâneos a ele, se baseia na suposição errônea de que seria possível verificnr, de modo concludente, leis introduzidas hipoteticamente e convertê-las, com isso, em verdades definitivamente asseguradas. ·
A "dialética" da essêncin e da aparência pertence, portanto, às características permanentes da teoria econômica marxista de O Capi-
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; é preciso advertir, porém, que ela não é de natureza metodológica e sim, metafísica. ( d) O essencialísmo dinâmico. Quando critica a "metafísica", _ Iarx tem em vista sempre um determinado tipo de metafísica, a sa· r: aquela variante do essencialismo que se carncteriza pela suposi ~-o de essências invariáveis e eternas e as correspondentes verdades. a crític:t se refere, contudo, somente ao componente estáticv e não índole essencialista daquela posição que chama "metafísica". Como ·imos, Marx também foi um representante do essencialismo, mas de a variante que se caracteriza pela suposição de que a essência das - isas evolui necessariamente e que as leis correspondentes são variáeis~ Trata-se em MarJt, em uma palavra, não do essencizJismo aristoélico-platônico, mas do hegeliano, que chamaremos, no que segue, :implesmente, "essencialismo dinâmico". Assim, segundo Marx, não "'XÍste uma essência, do homem ou da sociedade, extra-temporal e, ortanto, invaiável, mas somente uma essência do homem na socieade escra·;agista, que é diferente da essência do homem na sociedade eudal, burguesa, socialista ou comunista. Como conseqüência do essen-ialismo dinâmico de Marx, existem essências formais, respectivamente,. de cada ordem social e econômica, mas estas essências formais :ãc variáveis; portanto, não se pode estabelecer uma forma de produ:;ão para todos os tempos. É preciso considerar, antes de mais nada, _ue nem as leis dos modos de producão burgueses, nem muito menos lei do valor, são leis "eternas", mas condicionadas por uma forma .:ocial e econômica bem de:erminada. Por conseguinte, a teoria do vaor, dentro da qud Marx interpreta a situação econômica do capitalis· mo, só pode estabe~ecer-se depois de que a evolução econômica alcan~ou o nível que se caracteriza pelo domínio da produção de mercadorias, dado que somente em circunstâncias de produção devidamente esenvolvidas se pode conceber o trabalho em abstrato, isto é, como indiferente frente a qur..lquer trabalho específico, urna vez que o deci-ivo não é propriamente o trabalho determinado, mas o trabalho em ~eral, com respeito à sua quantidade, prescindindo de suas diferenças qualitativas. 22 A economia política é, neste sentido, urna disciplina histórica. Isto fica claro quando Marx explica, criticamente, aos melhores reprc-
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sentantes da economia política clássica, como A. Smith e D. Ricardo: "A forma de valor do produto do trabalho é a forma mais abstrata, mas também mais comum, do modo de produção burguês, que se caracteriza,com isso,como uma espécie particular de produção social e, portanto, ao mesmo tempo, como histórica. Considerando-a como forma natural eterna da produção social, necessariamente se deixa de considerar o específico da forma de valor, portanto da forma de mercadoria, e de modo mais desenvolvido, da forma de dinheiro" (XXIII, 95, nota 32). Apesar da relatividade das leis econômicas, com respeito às formas de produção, a evolução da forma de produção feudal para a burguesa e da burguesa para a socialista é dominada por uma lei absolutamente necessária. Marx fala de "tendências que atuam e se realizam com uma necessidade férrea" (XXIII, 12) e declara o conhecimento da "lei natural" do movimento da sociedade como meta final de sua obn:, segundo a qual a evolução irremediável na sucessão de suas fa~es transcorreria em tempo mais breve e suavizaria, portanto, seus e:eitos (XXIII, 15-16). A sociedade atual "não é um cristal sólido, mas um organismo transformável, concebido num processo permane:1te de transformação" (XXIII, 16). A transformação deste organismo obedece a uma lei inquebrantável, segundo a qual cada uma de suas fases é superada pela seguinte. Marx atribuiu este movimento da sociedade à forma racional da dialética que "inclui na compreensão positiva do existente ao mesmo tempo a compreensão de sua negação, de sua necessári<:. destruicão; que concebe cada forma nova na corrente do movimento, portanto a concebe também em :eu aspecto efêmero, não pe~· mite que se lhe imponha nada e é crítica e revolucionária por natureza" "(XXIII, 28). Com isso, também, se salienta a importância prática do desenvolvirr:ento dialético, sobretudo com respeito à práxis revoludonária. É evidente que a convicção de conhecer r, lei e a meta da evolução social e de estar de acordo com elas deve supor urna força de motivação poderosa. Resumindo o que foi dito nos itens (a) até ( d), podemos constatar que a concepção marxista do método da economia,em Eeu aspecto forrn<:l,não se diferencia,em princípio,da concepção do método das ciências naturais modernas desde Galileu. Todavia, em Marx, ela se desenvolve dentro de um contexto metafísico que se distingue clara-
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ente do de Galileu, Descartes ou Newton. Marx estava convencido e que deveria ordenar às hipóteses de leis - mediante &s quais deve.arn ser explicados cientificamente os fatos - regularidades da realide mesma, como sua "essência", e que deveriam ser pensadas como ansformáveis e submetidas & uma evolução nec:~ssária.~ 3 Ao mesmo empo, esta posição se caracteriza pela suposição de que também os onceitos e as leis, como reflexos da realidade na consciência, não são variáveis, mas flutuantes e em evolução necessária. Não é suficiente reduzir o caráter dialético da teoria econômica arxista à concepção dos fatos partioulares ou eventos no contexto e uma totalidade que, por sua vez, somente se concebe como totaliade âe fatos e eventos. Tampouco é suficiente declarar O Capital ~orno dialético somente porque, nesta obra, as explicações genéticas esempenham um papel importante. Ambos os aspectos, ainda que eivindicados às vezes em favor da concepção de O Capital como reexo de idéias dialéticas, não são específicos para a dialética. A teoria onômica marxista só pode ser chamada de dialética se o termo dialética" for empregado no sentido do "essencialismo dinâmico". Em suma: a dialética de O Capital não é, em primeiro lugar, método, as ontologia. 24 Desejamos concretizá-lo terminando com exemplos. Na formula· da teoria do valor, o primeiro passo é a descrição do que deve ser .,.xplicado, a saber: o fato de que as mercadorias se intercambiam em ~ifcunstâncias determinadas. A mercadoria é, primeiro, "uma coisa ue, por suas qualidades, satisfaz de dguma maneira necessidades umanas" (XXIII, 49). A causa de ~ua utilidade tem valor de uso. Depois é preciso descrever a mercadoria como algo que está destiado a ser intercambiado, pois uma cois& que se produz somente para .:atisfazer necessidades pessoais para o consumo próprio, não se chaa mercadoria. A troca de uma mercadoria por outra se realiza em :ircunstâncias determinadas, que não são constantes, mas que se odificam com o tempo e o lugar (XXIII, 50). ~ão
Este último fato é o que se pretende explicar mediante a teoria "'conômic::l. Enquanto se realiza a descrição, se passa à explicação: o fato que se deve explicar é tirado por abstração do contexto da aparencia "mercadoria", pois se abstrai do valor de uso e somente se
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considera a relação de troca (XXIII, 51-52). "Como valores de uso, as mercadorias têm sobretudo qualidades diferentes, como valores de troca, só podem ter quantidades diferentes, não contêm, portanto, nenhum átomo de valor de uso". (XXIII,52). O fato de que as mercadorias tf;!ll valor de uso não exige explicação, mas apenas o fato de que elas podem ser trocadas em determinadas circunstânr:;ias, isto é, que representam um valor de troca: uma certa quantidade da mercadoria A vale uma certa quantidade da mercadoria B. Para poder dar a explicação proposta, Marx se serve de uma teoria: da teoria do valor de trabalho. Segundo esta teoria, as mer· cadorias, depois de abstraído seu valor de uso, isto é, das formas concretas do trabalho humano, são "uma mera gelatina de trabalho humano indiferenciado." "Estas coisas somente representam o fato de que, em sua produção, se empregou trabalho humano, que nela se acumulou trabalho humano. Como cristais daquela substância social. que lhes é comum, são valores-valores de mercadoria" (XXIII, 52). Se a mercadoria somente tem valor enquanto nela se objetiviza ou se materializa o trabalho humano, então a dimensão de valor terá que ser medida pela quantidade de trabalho necessário para sua produção; mais precisamente, pelo tempo de trabalho, não individual, mas socialmente necessário (XXIII, 53). Não há dúvida que a passagem que acabamos de expor consiste, não em uma mera abstração ou explicação de conceitos, mas na formulação de uma teoria. O axioma de que o valor de troca é "tempo de trabalho corrido" (XXIII, 54), é uma suposição formulada para explicar o fato descrito acima. A prova de que é assim surge da própria exposição de Marx, quando distingue n:1 mercadoria um momento "sensorial" e outro "supra-sensorial" (XXIII, 85). O primeiro é aquele que se concebe na descrição feita a princípio; o último corresponde à interpretação teórica do fato descrito. A relação entre as premissas da teoria (suposição acerca da "substância" do valor de troca ou de preço) e as afirmações que se derivam dela •acerca das
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ções de intercâmbio de mercadorias observáveis em princtpto, gora interpretada mediante o esquema da essência. Supõe-se que premissas da teoria expressam a "essência" das re~ações a serem licadas e que se estas são "aparências" da essência. O fato de que aparência não manifesta de forma pura a essência, isto é, que nã:> comporta da mesma maneira como deveda. segundo a teoria, se lica indicando-se que, na teoria, são <:bstraídos certos condicionae tos acidentais. Algo semelhante ooorre também na explicação de ros fatos econômicos, por exemplo, na explicação do .benefício ediante a teoria da mais-valia, isto é, pela suposição da exploração trabalhador assalariado pelos empresários ou pela concepção do alho assalarü:do como uma mercadoria que está submetida à lei valor. Também aqui Marx exprime o fato de que a criação de efícios se explica mediante a teoria da mais-valia, dizendo ser neles ~ e ela ~parecia. As premissas da teoria em questão se interpretam, rtanto, como afirmações acerca da essência dos benefícios capi. tas. Outra vez nos referimos a Althusser que, em sua terminologia, exe o que foi tratado. afirmando que Marx teria "transmitido à rea.dade a diferenciação científico-teórica entre o conhecimento da -~alidade e a própria realidade" (25). Também Althusser chega conclusão de que Marx, crü:ndo um novo conceito do econômico e r- mpendo neste sentido com a tradição, não realizou uma ruptura -om. a práxis científica real. 26 Ele vê o novo do pensamento de Marx e:n uma modificação da base teórica, em revolução teórica,~7 ou seja: p<:rentemente no que Kuhn chama "mudança de paradigma". 23 Alusser se baseia, sobretudo, nas explicações de Engels no prólogo ao - gundo tomo de O Capital. onde se compara a revolução científica ealizada por Marx com a de Lavoisier na química (XIV, 22, 23). 'ale a pena observar que a superação da teoria do flogístico, escolhia como exemplo por Engels, também é tomada por Kuhn para ilusrar sua interpretação. 29 A tentariva de representar a passagem efetuada por Marx, superando a economi ~ política clássica, como mudan~a de paradigma merece, sem d·úvida, nosso intere3se. Todavia, dado que ela só pode ser discutida sob a forma de um estudo históricoientífico, não cabe aqui uma tom.:da de posição a respeito. Se Althusser tem razão, então sua concepção apóia a tese, sustentada no presente trabalho, de que Marx ou criou uma teoria absolutamente
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nova, ou de~envolveu a teoria da economia política clássica. Todavia, não criou nenhum método, diferente em princípio dos procedimentos empregados nesta última, que mereça ser chamado "dialética".
2.
Os fundamentos do materialismo dialético em Friedrich Engels.
Com o materialismo dialéticJ elaborado por Engels começa uma nova fase na história da dialética. Baseando-se em alguns resultados da dialética de Hegel e de Marx, Engels twta de apresentar a dialética como uma espécie de ontologia em que se desenvolvem as leis mais gerais da realidade. Embora Engels sustentasse, às vezes, a tese de que a dialética teria o objetivo de ser uma doutrina das categorias como a Filosofia Primeira de Aristóteles ou a Lógica de Hegel (507) 30, não considerava a dialética em geral como uma metafísica descritiva, mns como uma disciplina indutiva, que deveria formular leis como as das ciências naturais, se bem que de universalidade mais elevada Com isto, em vez de fundamentar a dialética pela análise da experiência, como na Fenomeno!ogia de Espírito de Hegel, ou pela ~riálise da práxis, como nos Manuscritos de Paris de Marx, Engels pretende construir a dialética como uma ciência em analogia às ciências naturais indutivas. Para tanto ele se baseia em uma série de pressupostos, os quais não foram por ele fundamentados, nem dados a conhecer como pressupostos. Temos, por isso, que qualificar sua dialética como dogmática,31 tal como está constituída em seu escrito polêmico Herrn Eugen Dührings Umwiilzung der Wissenschaft (1877-1878). (A Revolução da Ciência do Sr. Eugen Dühring e nos esboços reunidos sob o título A dialética da natureza ( 1873-1883 e parcialmente 1885-1886). Tentativas ocasionais de uma concepção da dialética como disciplina metateórica não têm importância, em compamção com isto. O centro da dialética de Engels está formado pelo estabelecimento de três leis fundamentais que são válid~s par-a a natureza e para a realidade social. Engels abandonou a idéia de articular siste· maticamente estas leis ( 349) . Permanece aberta a questão se Engels considen:va possível uma tal interrelação, ou se ela é possível, dados seus pressupostos. A exigência de sistema acabado, tal como o fez Hegel, foi expressamente recusada. 24
Filosofia Dialética Moderna leis fundamentais da dialética são as
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~eguintes:
A lei da transformação da quantidade em qualidade e viceersa. A lei da compenetração dos contrários; e A lei da negação da negação ( 348). Com o estabelecimento destas leis, Engels pensou haver apreeno conteúdo essencial da dialética hegeliana. Repetidas vezes ou a convicção de que Marx e ele haviam sido os únicos a ~e ear no lado revolucionário da filosofia hegeliana, a saber: na ética; que a haviam porém concebido, não no sentido do auto·imento do o::mceito, mas do movimento do mundo real, portanto ~entido da interpr~tação materialista da natureza e da história : cf. 235; cf. XXI, 291-293). Engels deu à sua concepção (e à de ) o caráter de uma síntese m::terialista - no sentido de Feuerh - , semelhante ao modo de Hegel conceber sua atitude como ese das posições essenciais da história da filosofia. Engels indicou que sua meta era demonstrar "que, na natureza, - mesmas leis dialéticas do movimento que se impõem no emaraado de inúmeras transformações, dominam a aparente casualidade - acontecimentos históricos" ( 11). A dialétio.1 é,portanto, essencialnte objetiva e, como movimento do pensamento (a chamada dialé· · a subjetiva) é somente reflexo do movimento que se estende por a a natureza em opostos, os quais, por sua contraposição perma""nte e sua integração final ou transformação em formas mais eleva, condicionam a vida da natureza" ( 481). Seria errôneo tratar a ureza e o pensamento como opostos qt.ç se excluem mutuamente, ~ relação é dialética também, enquanto que a natureza não pode "' irracional e a razão não pode ser contrária à natureza ( 490). É preciso, sobretudo, considerar que a natureza com a qual tem ver o homem atuando e conhecendo não é "a natureza como tal", as a natureza condicionada pela práxis humana. Por isso é certo, r um lado, que o homem está condicionado pela natureza, mas omente enquanto a natureza, por sua parte, aparece condicionada ela práxis humana ( 498). Nesta afirmação, que tem certa semelhan-
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ça com o pensamento dialético de Marx, Engels leva em conta a tica do sujeito-objeto que é claramente distante da idéia da di da m:tureza que predomina,em geral,em sua obra. Contudo, somente de um detalhe particular (Einsprengsel) que se destacou massa amplamente homogênea das reflexões de Engels acerca dialética da natureza. Hegel havia interpretado as estruturas cas, encontradas pela análise da experiência, como formas do movimento do conceito ou do movimento da realidade mente constituída. Engels tinha que recusar uma tal interpre posto que esta era idealista, ou (em sua terminologia) mística. vez que Engels, como Marx, se propunha desligar a dialética de "forma mistificada", em que fora desenvolvida por Hegel ( 11), de buscar outra espécie de justificação para as leis dialéticas. Engels estava convencido de que o estabelecimento das leis ticas fundamentais se faria da mesma maneira, falando-se form mente, que o estabelecimento das leis das ciências naturais em Em ambos os casos, deve-se partir de fatos (o que significa, ao q parece: da descrição dos fatos); depois, formulam-se leis gerais finalmente, deve-se procurar confirmá-las empiricamente. Assim clara Engels no antigo prólogo ao Anti-Dühring: "Nisto estamos dos de acordo: em qualquer terreno científico, tanto na como na história, temos que partir de fatos dados; nas ciências rais, por conseqüência das diferentes formas de movimento o da matéria; também nas ciências naturais teóricas não é pÓssível, tantc, construir relações nos fatos, mas sim temos que desco a partir deles, e, uma vez descobertos, temos que demonstrá-los camente, na medida do possível". (334). As leis fundamentais da dialética exigem verificação: assim o deixa ent"',.~ver Engels ao escrever que "não nos propomos construir um manual de dialética, mas somente demonstrar que as leis dialé· ticas são válidas como verdadeiras leis da evolução e, portanto, também para a investigação teórica da natureza" ·( 349). Segundo isto, a relação entre a filosofia dialética e a ciência da natureza teórica é, para Engels, muito estreita, dado que a tarefa da dialétic;;:t é de formular ~s leis mais ~erais da natureza. Estas leis teriam, portanto, o caráter de princípios de uma teoria que regiria todas as teorias científicas mais especiais, sendo necessário conceber estas últimas como especializações das primeiras. Se assim é, então fica claro que não se podem
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explicações de fatos específicos mediante as leis fundamentais 'ticas, como Engels sublinhava expressamente. "É evidente que não digo nada sobre o processo específico da
ução, pelo qual, por exemplo, o grão de cevada vai desde a ger· ação até a morte da planta frutífera. quando digo que é negação egação ( ... ) . Quando digo que t0dos estes processos são nega- da negação, reúno-os todos sob esta única lei de movimento e, esta razão, deixo de considerar todas as particularidades de .cada dos processos específicos" ( 131). Em virtude da relação entre as ciências naturais teóricas e da étio:: concebida assim, Engels pode expressar sua esperança de que, .o progresso das primeiras, um dia seus esforços dialéticos seriam 'rfluos. "Pois a revolução imposta às ciências naturais teóricas, devido mera necessidade de ordenar os descobrimentos puramente empíri- que se acumulam em grande número, é de tal índole que deve ·ar à consciência - até mesmo do empírico mais resistente a isso - o caráter dialético dos eventos naturais". (13). Engels era, pois, de opinião que "somente a dialética das ciên.as naturais poderia solucionar os problemas teóricos", dado que o J.Iáter dialético dos eventos da natureza já não pode ser negado ""'32, cf. 475-476). Quando as ciências da natureza se abstêm da cessidade de proceder dialeticamente, não podem, por conseguinte, ar conta de explicar o verdadeiro caráter dos fenômenos que têm .ue explicar se, por outro lado, a ciência se faz dialética) desaparece metafísica da ciência positiva ( 480) . Apesar desta estreita relação, existe, segundo Engels, uma difeença essencial entre ciências naturais e dialética: as leis das ciências aturais têm o caráter de hipóteses, enquanto que as leis fundamenais da dialética não o têm. Engels descreve o processo de estabeleciente e de correlação de hipóteses que servem para a explicação nas ciências naturais, constatando que as hipóteses, com as quais se comea nas ciências naturais, ou seriam abandonadas ou então, modifica· das, desde qu~ fossem encontrados fatos que não se poderiam explicar com as hipótesP.5 em questão ( 507). O desejo de uma explicação nova, .
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que surge neste caso,não pode, todavia, ser satisfeito, enquanto se permanece no terreno das explicações hipotéticas -· assim sustenta Engels, em oposição às concepções científico-teóricas modernas. Por certo, não se pode suspender a investigação até que se encontrem leis "puras" (isto é, não hipotéticas); nem por isso as explicações científicas hipotéticas são por princípio provisórias e destinadas a ser substituídas por explicações não hipotéticas. Embora Engels criticasse a concepção de "leis naturais eternas", indicando o condicionamento histórico de sua validez (505) - o que se pode considerar, sem mais, como outra forma de dizer que as leis da natureza são hipóteses - , considerou possível, inclusive necessário, com vistas ao objetivo de uma ciência no sentido estrito da palavra, explicar os fatos naturais (e os sociais) mediante leis "puras", ou seja, não hipotéticas. Ao que parece, Engels estava sob a influência do ideal científico socialista, segundo o qual "ciência", em sentido estrito, só pode ser um sistema de proposições cujas premissas não possuem caráter de hipótese, e sim de axiomas absolutamente verdadeiros. 32 Ao se perguntar como se dá a passagem de explicações hipotéticas a não hipotéticas, de leis de caráter hipotéticos a leis "puras", não se pode argumentar com a afirmação de que a lei verificada é "pura", uma vez que Engels leva em c-onta a possibilidade de que novos fatos venham a ser descobertos, motivo pelo qual é impossível uma verificação definitiva de leis naturais. Segundo Engels, uma lei "pura" se distingue da impura muito mais pelo fato de que é um reflexo da essência dos fenômenos aos quais ela se refere. Nesta ordem de idéias, Engels refutou a afirmação de que, do fato de uma hipótese poder ser substituída por outra, se pudes~e deduzir a impossibilidade de se conhecer a essência das coisas ( 507). Também salientou que, para ele, não se tratava de "inserir as leis dialéticas na natureza, mas de descobri-las nela e desenvolvê-las a partir dela" ( 12). O emprego de hipóteses encontra uma relativa justificação através da demonstração de sua utilidade no momento de explicar os fatos que se apresentam; porém, os princípios da explicação não hipotética são aceitos, não porque apropriados para explicações científicas, mas porque refletem a essência de um deter· minado âmbito da realidade. Com isto se mostra o primeiro pressuposto sobre o qual repousa a dialética da natureza de Engels: as leis fundamentais da dialética
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dem ser apresentadas como resultados não hipotéticos de uma stração" feita em observações efetuadas no terreno da história da eza e da sociedade (348), porque se interpretam como expressão essência da própria realidade, refletida no conhecimento. Engels encontrou, ao que parece, num dilema com respeito à definição do níter destas leis: as leis fundamentais da dialética deveriam ter, um lado, caráter de leis "científicas", e foram concebidas, portanpor ele, no sentido da metodologia contemporânea, como o resulo de uma generalização empírica; mas, por outro lado, n~o deveser hipóteses, nem poderiam então ser apresentadas como resulde uma generalização empírica.33 Para poder interpretá-las como ·- da natureza não hipotética, Engels teve que recorrer à teoria do exo do conhecimento, segundo a qual o sujeito se comporta no nhecimento de modo essencialmente receptivo: o pensamento (os ceitos e juízos) reproduz, corretamente por princípio, as estruas da realidade. Como as idéias e os conceitos devem ser reflexos coisas reais e de suas relações, assim, segundo Engels, as ciências em ser "reflexos" totais das relacões entre formas de movimento 515). A esta premissa se une, como segunda, a suposição de que todo real é material e, como terceira, a tese de que a essência da realidade e o movimento. As coisas, observadas durante um espaço de tempo lativamente curto, parecem iguais e também podem ser observadas · - para uso doméstico. Na realidade, porém, não existe nada e não esteja em permanente mudança. O princípio de identidade, rmulado por Engels "a = a", concebido não como princípio lógico, as metafísico, que domina a constância das coisas e das espécies 4 falso, por princípio. "Este princípio está refutado pela investigação natureza em cada caso e peça por peça". ( 484). A metafísica tradicional, a cujos princípios mais elevados perence o princípio de identidade (ou de permanência) foi designada _ m mais por Engels (e seus sucessores), como metafísica, dissimudo através disso o caráter metafísico de sua própria posição. Esta sição deve ser caracterizada como essencialismo dinâmico, que se opõe ao essencialismo estático da tradição (aristotélica), só de modo ontrário, isto é, ao nível comum da metafísica essencialista. Em última análise,o essenoialismo de Engels, como qualquer outro, se apóia
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em suposições de natureza metafísico-epistemológica: postula-se uma "essência"~ da realidade acessível ao conhecimento, até certo grau, para tornar concebível o conhecimento postulado no sentido do ideal de um saber perfeito. Conforme este saber se situar no âmbito das relações constantes ou no âmbito das relações dialeticamente fluentes, a essência da realidade se concebe como estática ou dinâmica. Com a ajuda das premissas mencionadas, torna-se concebível que o conhecimento da realidade começa com a observação de fatos particulares e chega à formulação de leis referentes a estes fatos, as quais não têm o caráter de hipóteses, mas exprimem a "essência" dos fatos. Da mesma maneira, Aristóteles já havia afirmado a relação entre observações e compreensão geral de relações essenciais. É signifiaativo que Engels. da mesma maneira que Aristóteles, designe o caminho que Jeva às leis mais elevadas como "abstração". A suposição de que é possível conhecer a "essência" da realidade levou Engels, de modo semelhante a Hegel, a rejeitar o conceito kantiano da coisa em si é a aderir também à crítica hegeliana do postulado (atribuído a Kant) de que ao conhecimento deveria preceder um estudo do instrumento do conheoimento ( 506-507). Segundo Engels, deve-se rejeitar a afirmação de que "por trás" das coisas há uma coisa em si não inteligível, porque ela não acrescenta nada a nosso conhecimento científico (de modo semelhante se argumentou, como se sabe, mais tarde entre os positivistas). Falar das coisas não inteligíveis é, portanto, pura fraseo~ogia. 34 Na ciência se conhecem as formas de movimento da matéria; uma vez alcançado este c;:mhecimento, "conhecemos a matéria mesma e com isto o conhecimento está acabado". Engels (como Hegel) concebe a realidade (ou seja, a realidade material) como ação recíproca universal. Relações causais particulares são o resultado da consideração que procede por abstração, na qual, de certo modo, se seguem fios isolados do entrelaçamento de ações recíprocas numa só direção. "Não podemos ir mais adiante no conhecimento destas ações recíprocas, dado que não há nada cognoscível por detrás delas" ( 499). Se a realidade deve ser concebida como uma totalidade dinâmica de relações de ação recíproc.a, então também o sistema de nossos conceitos é, segundo a teoria da cópia ou do reflexo, uma totalidade
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--......u.·ca. Portanto, deve ser rejeitada a concepção estática da realie da ciência da "metafísica". "Para o metafísico, as coisas e seus reflexos mentais, os conceiestão isolados e devem ser considerados um depois do outro e um o outro. Como ob;etos de análise,eles são sólidos, rígidos, postos uma vez para sempre. O metafísico pensa, sim, sim, não, não; o vai além disso é mau" (20-21). "Para a dialética, entretanto, as coisas e suas cópias ou reflexos ceituais se concebem essencialmente em suas relações, em sua ncaten~cão, em seu movimento, em sua origem e em seu desapareciente; são ncontecimentos como os descritos acima (a saber, a evolu-o do embrião, a. morte, o metabolismo, as relações causais em ral) assim como confirmações do seu próprio procedimento" ( 22).
Deixando de lado a afirmação discutível de que a metafísica dicional ter-se-ia concentrado na consideração de conceitos isola' permanece então, como núcleo da caracterização citada, a tese que a realidade é uma totalidade de elementos naturais, essencialente movidos e relacionados entre si por ação recíproca. Uma vez e cada ciência persegue o objetivo de copiar ou refletir corretaente a estrutura da realidade ou de um setor da realidade, resulta ' sem mais a seguinte definição da dialética: "A dialética não é tra coisa que a ciência das leis do movimento e da evolução gerais natureza, da sociedade humana e do pensamento" (131-132; XXI, 293). Como Engels queria ser tudo, menos um apriorista ou aparec~r mo tal, dedicou a maior atenção à confirmação empírica das leis damentais estabelecidas por ele, convencido de que a natureza era monstração da dialética ( 22). Engels se empenhou em reunir para uelas leis a maior quantidade de exemplos e os mais impressionanes. Uma vez que estes exemplos, na maioria dos casos, foram escolhis de um modo muito pouco feliz, e em raras ocasiões podem servir e modo aceitável para as demonstrações a que ele se propunha dar, só s ocuparemos rapidamente com e1es, pois, no presente estudo, só se busca esclarecer a idéia fundamental da dialética de Engels, não demonstração da fraqueza da base indutiva sobre a qual se apóia.
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1 . A lei da transformação da quantidade em qualidade e viceversa. Este princípio, proveniente de Hegel e aplicado por Marx ao campo da economia política, é formulado por Engels como lei fundamental da dialética e repousa sobre o pressuposto de que "na natureza, de modo geral e em cada caso particular, as modificações qualitativas só podem acontecer através do aumento quantitativo ou de matérb ou movimento (a chamada energia) (349). Enquanto Engels considera o presente princípio na formulação hegeliana como "misterioso", crê tê-lo feito racional na seguinte formulação: "Todas as diferenças qualitativas na natureza são conseqüência ou de uma composicão química diferente ou de quantidades ou formas diferentes de movimento (energia) ou, o que quase sempre ocorre. de ambos ao mesmo tempo. É portanto impossível mudar a qualidade de um determinado corpo sem que haja acréscimo ou supre-: são de matéria ou de movimento, isto é, sem modificações quantitativas" (349). Segundo Engels, as constantes da física (como o ponto de congelação e o de ebulição) designam os "entroncamentos" - cf. as linhas de Knotenlinien das relações de medida de Hegel - , nos quais a modificação quantitativa provoca uma transformação qualitativa, onde portanto a quantidade se transforma em qualidade ( 351 ) . Os exemplos preferidos de Engels são tirados da química, onde, por exemplo, partindo-se do metano ( CH ) a cadeia de metano se forma por acréscimo sucessivo de CH , passando por etano (C H ) , propano (C H ) etc. Embora a diferença nos elementos da cadeia possa ~er indicada de maneira puramente quantitativa, as combinações que se dão nela se distinguem claramente do ponto de vista qualitativo. A cadeia comera com combinações gaseiformes e termina com sólidas; ao mesmo tempo, com a complexidade das combinações,aumenta o número de isômeros. A idéia de que a relac:ão descrita de quantidade e qualidade, no caso mencionado ou em outros exemplos da química seria uma lei geral, é confirmada, segundo Engels, de um modo impressionante pelo sistema periódico dos elementos de Mendeleiev (cf. 117-119; 351-353). Embora ainda fosse possível aumentar a nlausibilidade destas reflexões, recorrendo-se a mais fatos, como os "saltos de quantos" ou
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'mutações", mesmo assim é discutível se esses dados, sozinhos, rmitem uma interpretação dialética. Ademais, ao que parece,não portava tanto a Engels a lei da transformação da quantidade em ualidade enquanto tal, mas a interpretação desta relação no sentido materialista. Parece que a lei da transformação da quantidade em qualide (para a transformação de qualidt::de em quantidade não se encenam exemplos em Engels, embora tivesse sido afirmada a transforação em -ambas as direções, quando da formulc:.ção da primeira lei damental da dialética) é incluída entre as leis fundamentais da · ética somente porque ela se encontra em Hegel e foi acéita por
Ainda que, em Hegel, ela tivesse caráter dialético, não se pode ncluir que ela tenha conservado o seu caráter dialético depois da ·ersão materialista. Parece que uma inversão no modo de explica-o científica está na base da doutrina de Engels sobre a passagem transformações quantitativas em qualitativas, a química. explica diferenças qualitativas, por exemplo, das parafinas em forma de adeia,mediante a suposição de que elas repousam sobre determinadas · erenças quantitativas. Engels, todavia, já sabe que as relações entre combinações da série de carbohidratos podem ser representadas
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2 . A lei da compenetração dos contrários. Também esta lei fundamental da dialética é tida por Engels como uma lei adquirida por generalização indutiva; para isso, ele amplia tanto o campo da experiência, da qual são tirados os dados para a generalização, que até as sentenças matemáticas são incluídas nesse campo. A tentativa de apresentar conceitos como "V - 1" 'e princípios como "A 1/z = VÃ'"como contraditórios, foi evidentemente tão infe1iz que dispensa qualquer comentário. Engels se refere ao fato de que, dentro do cál· culo diferencial, em determinadas circunstâncias, reto e curvo são tratados como iguais de modo contraditório ( 111 ) ; da mesma maneira considerou como contraditório o quociente diferencial. É uma "relação entre duas quantidades desaparecidas, o momento fixado de sua desaparição, uma contradição" ( 128). Do ponto de vista da matemática elementar, o cálculo infinitesimal é para Engels, num certo sentido, falso. Provavelmente Engels procurou os exemplos da matemática somente depois, para poder afirmar a validade universal do princípio em questão. A idéia originária deverá ser vista na suposição de que a realidade, sendo mutável ou movida, é contraditória. Engels não diz que o conceito de movimento é contraditório, porém afirma expressamente: "O movimento mesmo é uma contradição" ( 112). Esta contradição é, segundo ele, objetiva, isto é, está nas coisas mesmas. "Enquanto consideramos as coisas como estando em ·repouso e sem vida, cada uma isoladamente, uma ao lado da outra, ou depois da outra, não deparamos cnm nenhuma contradicão nelas. . . De outra forma, porém, logo que passamos a considerar as coisas em seu movimento, em sua transformação, em sua vida, em sua atuação recíproca, logo nos defrontamos com contradições" (112). Engels adere aqui à concepção de Hegel, cuja origem remonta aos eleatas, o que prova que partia do mesmo pressuposto que Hegel, a saber: oue o movimento como série contínua de circunstâncias sucessivas, infinitamente numerosas, da coisa movida, não pode ser expresso socialmente, uma vez que a representação em uma série infinita dos números racionais é irrealizável. Esta série seria, contudo, a única possibilidade de se aprender conceitualmente uma série infinita. Enquanto não era possível considerar a representação do contínuo
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série dos números reais, o movimento devia aparecer como algo ional, "contraditório" e, portanto, só dialeticamente concebível. o o eleata Zeno, Engels era de opinião, também. que um corpo movimento estava no mesmo momento em um lugar e ao mesmo po em outro, no mesmo lugar e não nele. E a posição permanente - lução simultânea desta contradição é precisamente o movimento 2). Especialmente evidente é a convicção de Engels no âmbito orgânico, cujas propriedades essenciais são a evolução, a transforção, o que significa, em suma, o movimento. Contra Engels se deve observar que "a contradição do movito" e, portanto, a "compenetração dos contrário" inerente a ela -o é um fato de observação, mas o resultado de uma análise do con'to de "movimento". Esta análise repousa sobre pressupostos muito ncretos, porém nada óbvios, ainda que imprescindível. A tese da ntradição objetiva da realidade, que se uniu à necessidade de se perar a lógica formal em direcão a uma lógica dialética, colocou _ andes dificuldades ao materialismo dialético, tal como mostram as · aussões surgidas acerca deste problema até a atualidade. Aludireos a esse problema na última parte do presente capítulo. A esta - tura, basta indicar que a segunda lei fundamental da dialética de Engels é um princípio metafísico, que define a "essência" da realidade orno dinâmica. Finalmente, deve-se observar que "oposto", na fórmula de "comnetração dos contrários", não é empregado de modo unívoco. O rmo significa ora "relação de forças antagônicas", ora "contradição existente". Somente na segunda acepção tem algo a ver com a dialéica em sentido próprio; na primeira acepção, contudo, se refere à relação de ação ou de ação e reação, que não podem ser designadas propriamente como dialéticas. 3. A lei da Negação da Negação. Esta lei é formulada com base na concepção hegeliana da relação do momento intelectual, negativo-racional ou dialético e positivo-racional, isto é, da relação de posição, negação e negação da negação. Contudo, ela é formulada sem o "envólucro" idealista com o qual a apresentou Hegel. Isto tem conseqüências decisivas. Enquanto que, segundo Hegel, o momento dialético é "a própria auto-superação" das determinações finitas, na base da dialética, materialisticamente compreendida, não se pode
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aceitar umà tal interpretação do momento negativo.35 De fato, em Engels, negação se revela como termo equívoco e, por conseguinte, a formulação "negação da negação" carece de significado unívoco. Assim, por exemplo, a planta é negação da semente, e os muitos grão3 de semente que a planta produz são, como negação da planta, a negação da negação (126). Contudo o grão de semente também pode ser "negado" quando moído, da mesma forma que segundo Engels, de fato, no campo da geologia, a trituração de pedras constitui sua negação (127). Os exemplos tirados do campo biológico revelam inclusive relações (a procriação ou o cultivo) que se podem caracterizar como "superação" - na plurissignificação da expressão adotada por Hegel: o grão de semente é superado no processo da germinação, tanto no sentido de tollere como no de conservare; e, no caso do cultivo, o produto - a negação da negação - se pode caracterizar como "superação em um nível mais elevadc·". No entanto, esta correspondência verbal com Hegel não pode fazer esquecer as diferenças profundas que surgem mesmo quando se consideram exemplos paralelos. Quando Hegel caracteriza, por exemplo, a relação entre botão, flor e fruto como dialética, então designa - como nota Schmidt - não uma relação puramente natural (como Engels), mas conceituaJ.35 Também na discussão em torno da tercei.r a lei da dialética, as reflexões com respeito às matemáticas constituem a partie honteuse. A negação de um número a se indica por - a; a negação da negação por + a3• Mas a2 também é o resultado de a. a; mas isto não invalida, segundo Engels, o princtípio da negação da negação, "pois a negação negada se fixa tão firmemente ao a3 que, seja como for, tem duas r.aízes quadradas, a saber: a e - a" (127). Por isso,não seria possível se desfazer da negação negada. A inconveniência do exemplo mencionado pode ser captada no fato de que, como primeira negação, é válida a multiplicação por -1; como segunda negação, todavia, a multiplicação por a. É evidente que aqui, unic:tmente, se joga com números. O mesmo se faz com conceitos, afirmando que a diferença seria a negação da negação. Contudo, o esquema de posição, negação e negação da negação pode ser utilizado dentro de certos limites na interpretação de contextos históricos ou sociais, como se pode ver nos exemplos dados por Engels. A evolução das relações de propriedade é descrita como passagem das fases determinadas pela propriedade comum, propriedade privada e propriedade social. A segunda e ter-
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fases se caracterizam Q'Jmo negação da r.nterior, de modo que opriedade comum desenvolvida aparece como negação da nega- e, portanto, como síntese que contém como "superados" os elemenpositivos das fases de evolução negadas como independentes. De o semelhante, o materialismo moderno se carr.cteriza como ne· -o do idealismo, e assim como este é a negação do m&terialismo · antigo - caracteriza-se como negação da negação. Não é, sedo Engels, "a mera reabilitação do materialismo antigo, porém, acrescenta aos fundamentos permanentes do mesmo a idéia de a evolução de dois milênios da filosofia e das ciências naturais, im como desta mesma história de dois anos. Já não é,em absoluto, osofia, mas uma simples cosmovisão" (129). A objeção decisiva contra a terceíra lei de Engels se apóia no equívoco da expressão "negação". Engels viu claramente que "negaão"tinha significados diferentes nos exemplos que escolheu. Assim clarou expressamente: "Não somente devo negar, mas também ular.outra vez,a negação. Portanto, devo ajustar a primeira negação tal modo que a segunda permaneça ou se faça possível. Como? gundo a natureza de cada caso particular" (13 2) . É estranho que Engels tenha-se- concentrado tanto na discussão de exemplos especíos, descuidando da concepção da "dialética como ciência da cone- o total" ( 3G7), que não lhe era desconhecida. Como já vimos no · eiro capítulo da primeira parte, um dos pressupostos essenciais dialética é a idéia da primazia da "totalidade" frente ao particular e precisamente, de uma totalidade de natureza espiritual (do eu, da "dade de apercepção transcendental). Na definição da dialética orno "ciência da conexão total" poderia estar contida a idéia de uma tal totalidade, enquanto parece que à conexão total deve pertencer mbém a relação entre o sujeito que experimenta e a realidade experimentada, a relação entre o sujeito ativo e a realidade como objeto de sua práxis. Engels se limitou, todavia, à observação da conexão objetiva da natureza, que supunha assegurada pelas leis da dialética discutidas. Nisto ele quase não levou em consideração a conexão mesma, embora considere detalhadamente as leis dialéticas, ainda que tendo em vista, antes de mais nada, os casos especiais de sua pretensa aplicação. Estas leis foram, ao que parece, concebidas por Engels como leis da realidade, isto é, como leis de mesmo tipo que as leis das C
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de Engels, pontos que sugerem uma concepção da mesma como metadisciplina; ao que parece, no entanto, as observações de Engels não oferecem base suficiente oara tal. Engels declarou, de modo que não dá margem a dúvidas, que a dialétioa seria "ciência das leis gerais do movimento e da evolução da natureza da sociedade humana e do pensamento" ( 131-132), e se resguardou da idéia de ver no materialismo dialético uma ciência da ciência. Este é, muito mais, cosmovisão "que tem que se comprovar e confirmar não em uma ciência da ciência à parte, mas nas ciências de verdade" ( 129). Engels vê claramente que as leis fundamentais da dialética não servem para explicar fatos específicos, como também não podem ser entendidas como preceitos para a práxis (132) . Elas têm, antes de mais nada, a função - como deixa entrever a afirmação sobre o caráter de "cosmovisão" do materialismo dialético - de relacionar entre si teorias tiradas da nature · za e da soc(!edade dentro do contexto de uma visão do mundo dinâmicomaterialista. Se as leis da dialética (juntamente com os pressupostos metafísicos da dialética materialista mencionados mais acima) fossem concebidas como hipóteses, poderiam ser submetidas a tentativas de falsificação e, por outro lado, poderiam ~er confrontadas com hipóteses concorrentes e ser, eventualmente, preferidas. Ainda que não se temesse o primeiro, por causa do caráter metafísico dos pressupostos e das leis, poder-se-ia considerar o último. Em v1sta da exigência de verdade levantada por Engels, seria fatal .que a aceitação ou a refutação do materialismo dialético dependesse da decisão em favor de certas hipóteses especulativas ou contra elas. O caráter dogmático da dialétka da natureza de Engels se mostra, com toda a clareza, no momento em que se tem em conta a lei da compenetração dos opostos. Somente sob a condição de que partes da realidade se concebem como unidade de opostos ou de contradições, se pode falar em "dialética" no sentido próprio da palavra. Uma tal unidade não pode, contudo, ser concebida, se se fala da "matéria" em sua significação habitual, no âmbito dé:s ciências naturais, dado que a unidade de algo oposto somente é possível no eu ou em algo que seja de natureza semelhante a do eu (como a natureza em Schelling ou o SUJeito absoluto em Hegel) . Por isso,devemos conee>rdar com Schmidt, quando afirma a propósito de Engels: "não pode apreender estes resultados (das ciências naturais) com o "conceito" dialético, porque isto implicaria, em última análise, reduzi-las a um logo.• divino". 37
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A natureza, de que fala Engels, é o conjunto dos objetos a que _ referem os princípios científicos e não uma natureza que, no fundo ., ·o se uma espécie de eu. Por outro lado, o sujeito também pertence, - gundo a concepção do materialismo dialético, ao âmbito da natureza. que se caracteriza por relações causais ou de ação recíproca e no ual, se há antagonismos de forças, não há uma unidade estrita dos postos. A observação ocasional de Engels sobre a unidade de natureza e espírito, de que falamos anteriormente, não tem grande importância entro da Dialética da Natureza. Devido à dificuldade fundamental a que está submetida a dialética invertida materialisticamente, seus epresentantes se viram diante da alternativa: ou r: dotar o método da explicação científica e se contentar com a conservação de certos eleentos dialéticos em particular, ou dogmatizar a dialética, concebê-la -orno ontologia e renunciar igualmente a um método dialético indendente. Marx, que optou pela primeira parte da alternativa, conser·ou, por certo, algun-s traços da filosofia dialética, dos quais havh artido; seu método, porém, na economia política, é o método da ciên-ia contemporânea. Engels, decidindo-~e pela segunda parte da alte
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O materialismo dialético de Lenin e de seus sucessores.
Na Rússia, o ma~~rialismo dialético tomou impulso,em primeiro ugar,devido a Lenin (1870-1924). que defendeu com êxito a concepção dialéti<;:l desenvolvida por Marx e Engels contra tendências criticas e positivistas, sobretudo na obra Materialismo e Empiríocrí· ticísmo de 1908. Desde seus primeiros trabalhos, Lenin se declarou partidário da dialética materialista, sem caracterizar,porém, de modo preciso, o que entendia por dü:lética. Somente pouco a pouco e sobretudo com o estudo mais aprofundado de Hegel durante a primeira guerra . mundial, Lenin elaborou uma concepção global da dialética materialista. Em Materialismo e Empiriocriticismo, o termo "dialé-
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tica" é empregado, no fundo, como expressão de sua concepção ontológica e epistemológica em geraV8 que se pode caracterizar pelos seguintes pontos: a) O materialismo dialético é uma ontologia segundo u qual a realidade é identificada com a matéria. A realid(lde material se define como essenc.ialmente dinâmica ; isto é, neg<:-se que possa haver e:ementos imóveis e imutáveis. Os elementos da realidade, segundo Lenin, têm caráter de processo; "processo" não é entendido como movimento mecânico, mas como evolução descontínua, que se caracteriza por "saltos", até formas mais elevadas da realidade. Todos os elementos da realidade se encontram, segundo o materialismo dialético, em uma relação de ação recíproca universal. As coisas são o que são por sua essênda, que é concebida, no sentido do essencialismo dinâmico, como necessariamente móvel, isto é, em evolução interna. "Essência" e "aparência" pertencem, com "quantidade" e "qualidade , "necessidélde" e "casualidade]' etc., às categorias materialistas fundamentais. b) O materialismo dialético se caracteriza, como teoria do conhecimento, pela suposição realista de que o conhecimento consiste em refletir ou copiar, na consciência, as coisas (ou eventos) que são independentes do pensamento. A consciência é considerada somente como uma propried&de particular desta matéria altamente organizada que é o sistema nervoso central. Como critério do reflexo, ou seja, da cópia correta de fatos reais no pensamento, a teoria do conhecimento dialético materialista considera a confirmação de conhecimentos na prátic&; contudo, acrescenta-se que cada verdade alcançada tem ·sempre caráter relativo. Com isto, não se pretende defender um relativismo subjetivjsta, posto que, segundo Lenin, em cada conhecimento relativamente verdadeiro se apreende um aspeei:o da verdade absoluta. O materialismo dialético considera que o progresso do conhecimento é uma aproximação assintética da verdade absoluta. Com o progresso do conhecimento se alcançam, em outros termos, camadas mais profundas da realidade. c) A dialética materialista pretende, além disso, possuir uma lógica dialética distinta da lógica formal tradicional, a qual, segundo se pôde mostrar, coincide amplamente com a metodologia dialética.
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d) Os setores mencionados sob a) até c) não podem ser separaos, segundo os representantes do materialismo dialético, pois formam conjunto inseparável que estaria fundamentado pelo fato de a nsciência, com a qual tem que ver a teoria do conhecimento e a lógia pertencer à realidade e, portanto, estar sujeita às categorias e leis ialéticas. e) A dialética materidista é considerr:da como instrumento da ráxis revolucionária, enquanto motiva a esta pela idéia da invenciilidade da classe revolucionária. O progresso em direção ao socialiso deve ser representado, com os meios da dialética materialista, mo algo que não se pode deter, e os indivíduos ou a classe que se entifica com as tendências progressistas são apresentados como encíveis. Lenin e os representantes posteriores do materialismo dialético senvolveram, portanto, uma filosofia que se ch<:ma "dialética" em a totalidade, embora de nenhum modo sejam dialéticas todas as as partes - no sentido em que a palavra "dialética" foi empregada é agora. Para Lenin, de fato, era a dialética, tal como a concebeu Eng€ls,que tinha, em primeiro lugar, caráter de modelo. Além disso, · uenciaram-no os Pequenos escritos filosóficos de J. Dietzgen 1903), onde encontrou, por exemplo, a idéia "dialética" de que espírito e matéria, apesar de serem duas coisas, contudo são uma só" 460) 39 - porém não adotou a enumeração esquemática das leis ·aléticas fundamentais. Também manifestou sempre certo receio iante da redução do dialético à forma triádica de afirmação, negação e negação da negação (221; cf. I, 156 ss.) . Para Lenin, a tese central a dialética consistia em que a realidade era uma totalidade dinâmica m desenvolvimento, uma unidade de opostos, por assim dizer, um rganismo em evolução permanente e que somente conceitos ou juízos concretos" poderiam ser válidos como conhecimentos da realidade. sim como a realidade é uma (JJnexão universal, também segundo e e se deve, no esforço para se conhecer, ser levado em conta o con-exto infinitamente variado de todos os conceitos em sua evolução, se ele deve ser dialético. Aspectos específicos da realidade só podem ser isolados do conjunto provisoriamente, uma vez que é arbitrário e dogmático insistir em determinações isoladas, que remetem a outras e em última instância, ao conjunto total das determinações. Uma atide que se caracteriza pela tendência em dissolver a unidade das 3
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determinações opostas dos obietos ou da realidade global e por limitarse à justaposição e à ordenaÇão sucessiva d2s determinações, se chama, segundo Lenin, "ecletismo". Os conceitos com os quais opera o pensamento dialético,assim definido, se caracterizam pela propriedade de "elasticidade", isto é, não estão fixados para sempre; admitem, porém, n possibilidade de determinações opostas, como afirma Lenin en lisant Hegel: "Conceitos que passam por mortos são analisados por Hegel, que nos mostra que neles há movimento . . . A elasticidade geral e universal dos conceitos, elasticidade que che?a até a identidade dos contrários, isto é o essencial. Esta elasticidade, aplicada sub;etivamcnte,é igual a ecletismo e sofística. Elasticidade aplicada objetiva· mente, quer dizer, de modo que reflita a generalidade do processo material e sua unidade, é dialética, é o reflexo correto da eterna evolução domundo'' (100). Lenin estabelece a significação ampla de "dialética", fixando-se na· concepção de Hegel e de Marx, da seguinte maneira: "A dialética, na concepção de Marx e de Hegel, inclui ... o que se chama hoje em dia teoria do conhecimento, gnoseologia, que deve considerar seu objeto também historicamente, investigando e generalizando a origem e a evolução do conhecimento, a passagem da ignorância ao conhecimento" (XXI, 42}. Nos anos 1914-1915 ele examinou muito mais profundamente a "grande dialética hegeliana, que o marxismo adotou depois de havêla posto de pé", como dissera, já em 1904 (VII, 416), provavelmenté porque tinha a intenção de escrever um tratado sobre a dialética. Nas anotações feitas naqueles i:mos se encontra, c-om base na Ciência da Lógica de Hegel, um esboço de enumeração dos momentos da dialética (212-214), no qual são considerados simultaneamente aspectos · metodológicos, epistemológicos e ontológicos. Primeiro acentuou Lenin que o caráter de objetividade é próprio da dialética, td como a enten· deu em continuação a Hegel: a concentração na coisa mesma é característica da dialética (ponto 1). Metodologicamente fah:ndo, tal como aconteceu com Hegel, a dialética pode ser concebida também, segundo Lenin, como "união de análise e síntese": a decomposição em parte3 individuais e a totalidade, a "soma destas partes" (ponto 7). Ontologicamente, a dialética se caracteriza pela relação entre a totalidade e o particular, ou seja, como unidade nessa multiplicidade "contraditória"
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e, ao mesmo tempo, forma uma conexão universal (pontos 2, 5 e ) . Além disso, devem ser incluídos no campo da ontologia aqueles e ementas que se referem ao aspecto dinâmico da realidade: Lenin a do movimento da coisa como de um automovimento (ponto 3), ~s tendências que se "contradizem" mutuamente na coisa (ponto 5), a luta destas tendências (ponto 6), da passagem de cada determiação a outras (ponto 9) como passagem da quantidade à qualidade ponto 16) e da aparente volta ao antigo; tal como se apresenta a evolução (ponto 14), enquanto que, na realidade, a repetiçã9 das eterminações que transcorrem na evolução se efetua num nível mais e evado (ponto 13). Trata-se, pois, de um progresso em forma de espiral e não de um movimento cíclico estéril. O movimento do progresso se revela também no nível da teoria do conhecimento, quando caracteriza o conhecimento como "eterno processo de investigação e novos aspectos, de novas relações, etc." da realidade (ponto 1O), orno processo infinito·de aprofundamento do conhecimento da coisa, os fenômenos, dos processos,etc. pelo homem; e também dos fenômeos à essência, da essência menos profunda à mais profunda" (ponto 1). O próprio progresso se revela também pelo fato de que, em lugar da constatação da mera justaposição, entra a afirmação da relação ausal dos fenômenos (ponto 12), somente pel~ qual são possíveis explicações científicas. Entre os "elementos" da dialética se podem estabelecer, ao que parece, relações de superioridade e inferioridade. Para Lenin, a dourina da unidade dos opostos é superior aos dem<:is "elementos" dialéticos, segundo declarou após a enumeração dos dezesseis elementos a dialética. "A dialética pode ser definida, brevemente, como dou· rina da unidade dos opostos. Com isso é apreendido o núcleo da dialética" (214). De modo semelhante, Lenin havia já anotado em a passagem anterior da Ciência da Lógica: "Dialética é a doutrina de o:::>mo podem ser idênticos os opostos e de como o são (de como ~ tornam) - sob que condições são idênticos em se tr<:nsformando ns nos outros - , porque o entendimento humano não deve conceber estes opostos como mortos, e sim como vivos, condicionados, móveis, transformando-se uns nos outros". ( 99).40 .Este "elemento" da dialética é importante, porque com ele se pode conceber a doutrina do automovimento de todas as coisas de
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grande relevância para o materialismo dialético, porque torna supérfluo e até impossível o recurso a c:msas transcendentais do movimento na natureza. Lenin acentuou expressamente a relação entre a tese do automovimento das coisas e a tese de que a evolução é a luta dos contrários, quando chamou esta última de chave para entender o automovimento de todo o existente, os saltos, a descontinuidade da evolução} assim como a passagem das determinações a seu contrário (339). Lenin, assim como Engels., fala em favor da concepção de que a coisa deveria ser definida "como soma e unidade dos contrários" ( 213), uma série de exemplos, como a relação de "+" e "-" na álgebra, a relação entre diferencial e integral no cálcu1o infinitesimal, a relação entre ação e reação, entre eletricidade positiva e negativa, entre associação e dissociação de átomos. Finalmente se oferece no terreno social, como exemplo, a luta de classes. Lenin se deu conta, neste contexto, de que o princípio de identidade dos contrários não pode ser deduzido a partir de um certo número de exemplos, ainda que, ao que pareça, Engels tenha tentado obtê-lo desta forma indutiva. Lenin supunha que Engels adotara a explicação indutiva somente em vista de conseguir maior clareza. Na realidade se trata, segundo Lenin, de uma lei tanto do conhecimento como do mundo objetivo (e assim deve ser completado o pensamento de Lenin - uma lei no sentido estrito da palavra não pode ser resultado de uma generalização de casos particulares). Lenin pensava, portanto, em uma lei nãoindutiva do ser e do pensamento, quando del~~arou (em um dos poucos lugares onde fala de leis dialéticas): "A divisão do unitário e o conhecimento de suas partes contraditórias ( . . . ) é a essência (uma· das "essencialidades", uma das particulares ou facetas fundamentais, se não a fundamental) da dialética". ( 3 3 8). Sem discutir aqui o que se pode entender por identidade de contrários- o próprio Lenin pensou empregar, em vez de "identidade", o termo "unidade" de contrários como possivelmente melhor e interpretou a "unidade" ou a "identidade" de contrários como "reconhecimento (descobrimento) de tendências opostas que se contradizem e se excluem mutuamente em todos os fenômenos e eventos da natureza" ( 338-339), o que torna o termo "identidade" muito menos perigoso. Tampouco abordamos a muito discutida questão sobre o que se deve entender por "contradição" no presente contexto: se é uma contradição no sentido pleno da palavra ou somente uma relação de
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ridade, um conflito de tendências, uma oposição de tendências. queremos assinalar o problema, filosoficamente fundamental, da _ibilidade de se conceber a lei dialética da unidade dos contrários. aceitação de leis que não são o resultado de uma generalização em. a e que não têm caráter hipotético se baseia em duas suposições: um lado, na suposição de que há leis essenciais da realidade em e. por outro, na suposição de que o sujeito cop:noscente copie, refliestas leis essenciais no pensamento, ou algo parecido. A concepção leis dialéticas de Lenin depende, em outros termos, essencialmente sua metafísica e de sua teoria do conhecimento realista. A posição essencialista de Lenin se revela também em outro texto, qmmdo diz, em uma observação às Lições sobre a história filosofia de Hegel, que a dialética seria: "O estudo da contradição essência das coisas mesmas : não somente os fenômenos são transi·os, móveis, flutuantes, separados por limites relativos, como tamas essências das coisas" ( 240). O essencialismo de Lenin enconsua mais clara expressão nas observações sobre a lei. Resumindo ncepção de lei em Hegel, Lenin escreveu que a lei e a essência conceitos iguais, conceitos da mesma ordem ou da mesma ncia, e anotou: "a lei é o reflexo do essencial no movimento do · ·erso". ( 142). Na definição do reino das leis, dada por Hegel, corno sendo pia sossegada" do mundo dos fenômenos, Lenin encontrou "urna ição materialista por excelência e admiravelmente acertada, em palavrn, "sossegada" ( 141). Ao mesmo tempo salientou o caráincompleto e aproximativo de cada lei (142), que deve ser enten' naturalmente, no sentido da conc~pção de Hegel e não como ressão da compreensão do caráter hipotético das leis. Deixando considerar, todavia, a questão da legitimação de urna td interpre-o materialista, não se pode deixar de constatar que Lenin conda com Hegel num ponto decisivo: como Hegel, supunha que sepossível apreender a estrutura essencial da realidade mesma de o verdadeiro (se bem que não necessariamente de modo adequa), em urna espécie de intuição da essência. O caráter altamente especulativo deste contexto argurnentativo ecia sugerir que se devesse buscar outro caminho para o conhecito da contradição interna da natureza. Um caminho possível
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parecia ser, para Lenin, como para seus antecessores, a análise do conceito de movimento. A propósito das observações de Hegel sobre os paradoxos do movimento de Zeno, Lenin escreveu: "O movimento é a essência do tempo e do espaço. Dois conceitos fundamentais expressam esta essência: a continuidade (infinita) e a "pontualidade" (= negação da continuidade, descontinuidade). O movimento é a unidade d~ continuidade (do tempo e do espaço) e da descontinuidade (do tempo e do espaço). O movimento é contradição, é unidade de contradição" ( 244). A pretensa contradição no conceito de movimento (ou no movimento mesmo, tal como viu Lenin) é afirmada aqui, como em Zen o e também em Hegel ou Engels, porque se supõe que o movimento contínuo no tempo deve ser concebido representando-se a série dos momentos segundo a série dos números racionais (e não reais). Posto que a série dos números racionais não apresenta continuidade, parece que se deve representar o movimento como contínuo e, ao mesmo tempo, que não se pode concebê-lo como tal: ele aparece, portanto, como sendo contraditório. As seguintes afirmações demonstram que a argumentação de Lenin tendia para esta direção: "Não podemos representar, expressar, medir, reproduzir o movimento sem interromper o contínuo, sem simplificar, a não ser grosseimmente, mutilando-se e matando-se o vivo. A representação do movimento pelo pensamento sempre é rudimentar, uma mutilacão e não somente a representação pe~o pensamento, mas também pelá sensação, e não somente a representação do movimento, mas também de cada aonceito" ( 246) . A suposição de que a própria realidade está em movimento, se relaciona - mediante a teoria do reflexo do conhecimento - com a suposição de que também os conceitos deveriam ser móveis, elásticos. Este relacionamento se expressa claramente na seguinte observação de Lenin sobre a "idéia básica genial" de Hegel, a saber: "Da relação universal, sem resíduos, viva, de tudo para com tudo e o reflexo desta dependêncü: - Hegel materialisticamente posto de cabeça para baixo - nos conceitos do homem, que têm igualmente de ser afinados, preparados, elásticos, móveis, relativos, unidos mutuamente, unidos nos contrários para poder abranger o mundo" (136-137).
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A diferença com respeito a Hegel não é comparável à existente entre duas representações simetricamente invertidas, mas uma difeença fundamental, que modifica a posição de cada disciplina filosó·ca particular. Lenin estava consciente deste fato. Sobre a afirmação e Hegel, de que o movimento da consciência e a evolução de toda a vida natural e espiritual repousaria na natureza das essências puras o conteúdo da lógica, observou: "Inverter: lógica e teoria do conhecimento devem ser deduzid2s da "evolução de toda vida natu· ral e espiritual" ( 80). Lenin considerou sua concepção com9 a contrapartida materialista da doutrina idealista ("mística") hegeliana do "puro movimento do pensamento dos conceitos". Segundo o materialismo dialético, como segundo a concepção de Hegel, seguida por Lenin em seu aspecto formal, os conceitos têm que ser móveis, têm que se interpretar, ser fluentes, porém não devido ao seu pretenso automovimento, e sim porque são reflexos da realidade, que é essencialmente móvel ( 239). Se a afirmação de que tudo está em movimento é universalmente válida, então deve ~er aplicada também aos onceitos e sobretudo c:os mais gerais, às categorias. Se não fosse assim, o pensamento se contraporia dualisticamente ao ser, coisa que e exclui pela teoria da cópia ou do reflexo. A razão decisiva da uniersalidade das idéias da evolução com respeito às categorias deve ser vista, como o fez Lenin, no princípio da unidade do ser. Segundo ele, "o princípio geral da evolução deve ser unido, ligado, relacionado ao princípio geral da unidade do mundo, da natureza, da matéria, etc." ( 242). A dependência de Lenin com respeito a Engels é clara; e assim os Cadernos Filosóficos (Philosophische Hefte) revelam o esforço para produzir a impressão de que a dialética materialista é o resultado de uma reinterpretação da de Hegel. 42 Nesta ordem de idéias, Lenin salientou: "Empenho-me, em geral, por ler Hegel materialisticamente: Hegel é materialismo posto de cabeça para baixo (segundo Engels) -- eu deixo de lado Deus, o absoluto, a idéia pura etc." ( 94). Esta atitude fundamental tem como conseqüência que Lenin, sempre que possível, procura interpretar as teses de Hegel no sentido materialista; Segundo sua opinião, não somente o mnterialismo histórico é uma aplicação e um desenvolvimento das "idéias geniais, dos grãos de semente presentes em Hegel" ( 180), mas também o mesmo é váli· do para teses específicas de Hegel. 43 Lenin era de opinião que a inter-
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pretação hegeliana da atividade do homem (ordenada a um fim) como a de uma "conclusão" não seria totalmente arbitrária: há aqui um conteúdo muito profundo, puramente materialista. É preciso inverter a coisa: A atividade prática do homem teve que lev~r a consciência humana milhões de vezes à repetição das diversas figuras lógicas para que estas figuras adquirissem a significação de axiomas" (181).
Pelo visto, Lenin não acreditava que a filosofia de Hegel fosse, em seu conteúdo, completamente "mística" (ou seja, idealista). Distinguia nela, porém, elementos idealistas (por exemplo, o disparate sobre o absoluto) e materiali~tas. De modo especial pensou poder isolar um aspecto, independente da interpretação do conteúdo, na forma da filosofia hegeliana, ou seja, no método dialético, que poderia unir-se a uma concepção materialista quanto ao conteúdo. Com respeito ao final da Ciência da Lógica observou ele: "É notável que em todo o capítulo sobre a "Idéia absoluta" não
se mencione Deus em nenhum lugar (quando muito escapa casualmente o conceito "divino"), e ademais- note-se bem isto- o capítulo quase não trata especificamente do idealismo, seu assunto principal é o método dialético. Conclusão e resumo, a última palavra e o núcleo da lógica hegeliana é o método dialético. . . Na obra mais idealista de Hegel o que menos existe é idealismo, o que mais há é materialismo" ( 226) . Não há necessidade de mostrarmos aqui como é errônea a separação de forma metódica e conteúdo especulativo na filosofi<: de Hegel, uma vez que, como foi mostrada na 1. a parte, Hegel conc·~beu a dialética como forma de desenvolvimento do sistema, que não pode ser definida independentemente dele. O materialismo de Lenin é um materialismo militante t<:nto no sentido teórico como na prática. Lenin exigia que se reconhecesse "que, sem um fundamento filosófico sólido, não se poderia sustentar uma ciência da natureza, um materialismo na luta contra a afluência das idéias burguesas e contra a reaparição da cosmovisão burguesa". (XXXIIL 219).
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A dilética é um instrumento da luta tanto ideológica como polía. Por esta razão se deve, segundo Lenin, subordinar, em geral, a osofia ao postulado da parcialidade. A dialética é, portanto, um umento imprescindível das provas revolucionárias, porque ela ostra a necessidade de desenvolvimento revolucionário. "A verdadeidialética não justifica erros pessoais, porém estuda as transforma- s inevitáveis e demonstra sua inevitabilidade atr~vés de uma inves·gação muito detalhada da evolução em toda sua concreção" (VII, 6-417), dizia Lenin já em 1904. Vários anos depois da revolução, · se serviu da dialética para a polêmicu interna do partido contra rotsky e Bucharin, criticando neles o "ecletismo" (XXXII, 73-92). lógica dialética exige, segundo Lenin, não somente a consideração _ obal de todos os aspectos e relações, como também a investigação de as as "mediações" de um objeto; exige não somente sua considera· -o genética, a apresentação de seu "automovimento", mas requer, retudo, para satisfazer o postulado da "correção", o recurso à áxis humana, tanto como critério de verdade quanto como determite prática da relação de um objeto com aquilo de que o homem essita" (XXXII, 85). Bucharin afirmou que os sindicatos seriam, um lado, uma escola do comunismo e, por outro, uma parte do arato econômico ou estatal. Neste "por um lado - por outro lado" exprime, segundo Lenin, um "ecletismo morto e vazio" (XXXII, 6), que se baseia na lógica "formal ou escolástica", mas não na dialética ou marxista" (XXXII, 84). Segundo Lenin, os sindicatos ão são uma escola de comunismo e um aparato para a direção da odução, como havia explicado Bucharin, unindo as concepções Trotsky e de Zinoviev; são uma escola enquanto são um aparato. O que importa a Lenin, no fundo, é a relação entre a administração tatal, central e local, a economia naciond e a massa dos trabalhadores; isto é, importa a e1e o papel diretivo do partido ou do comitê entrai, especialmente o direito de levar a cabo no âmbito sindical omeações, transferências e destituições. Lenin não deixou lugar a úvida de que, nesta discussão sobre os sindicatos, se tratava da questão política da manutenção do poder soviético e da ditadura do protariado. A dialética funciona como meio de refutação de respostas a esta pergunta que, segundo a convicção de Lenin, tem efeitos polí·cos negativos. De resto, em Lenin, o acento principal não se encona tanto no aspecto dialétic;) mas no aspecto materialista do maerialismo dialético. 43
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Além de Lenin, é preciso menciOnar sobretudo Plekhanov no presente contexto. Lenin admirou extraordinariamente os trabalhos de Plekhanov. Na polêmica com seguidores russos do empiriocriticismo, sobretudo com Bogdanov, Lenin se declarou claramente a favor de Plelchanov. Sua própria polêmica contra os adeptos de Mach foi considerada por Lenin como concretização dos argumentos de .Plekhanov: "Frente a eles (os adeptos de Ma.ch) Plekhanov tem toda a razão quanto aos princípios, mas não sabe ou não quer ou é demasiado preguiçoso para expô-Ia de modo concreto, detalhadamente, sem assustar o público sem necessidade, com sutilezas filosóficas. E eu direi isto à minha memória, custe o que custar" (XXXIV, 377). Apesar de Plekhanov ter aderido ao menschevismo, Lenin escreveu, vários anos depois da morte de Plekhanov ( 1918), "que não se pode chegar a ser um comunista convincente, verdadeiro, sem ter estudado - eu saliento estudado - tudo o quePlekhanov esc:-eveu sobre filosofia, pois é o melhor em toda a literatura internacional marxista" (XXXII, 85). Todavia Lenin criticou o fato de que Plekhanov conduzira sua polêmica contra a filosofia de Mach, menos como uma luta contra Mach, mas mais contra os bolcheviques (XIV, 360, nota). Em seu trabalho Problemas Fundamentais do Marxismo ( 1908) Plekhanov descreveu o materialismo dialético como resultado de uma evolução filosófica, em cujo conjunto enfatiza, na filosofia anterior a Marx, sobretudo o trabalho de Feuerbach, que, a seu modo de ver, é falho só na medida em que lhe falta o método dialético. Segundo P1ekhanov, Feuerbach determinou bem o ponto de partida, porém não o seu método. Esta lacuna na filosofia materialista só foi preenchi~ da por Marx e Engels. 44 Plekhanov, porém, estava convencido de que só seria capaz de "pôr de pé" a dialética de Hegel e, com isso, a doutrina do caráter descontínuo da evolução, aquele que partisse, como Marx, da tese fundamental de Feuerbach sobre a dependência do pensamento (lJm relação de ser. 45 Assim como os reprer:entante:; do materialismo dialético em geral, também Plekhanov via na aparente contradição do movimento um motivo decisivo em favor da dialética e, com isso, contra uma lógica não dialética, que exige o princípio de exclusão da contradição. Todavia, Plekhanov ·não pretendeu que fosse excluído, sem mais, o princípio de contradição I
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(assim como o princípio de identidade e o do tercdro excluiJo); os princípios da lógica tradicional são incontestáveis em certo sentido. Plekhanov acreditava poder evitar a alternativa: reconhecimento dos princípios da lógica tradicional ou reconhe.cimento do movimento, aceitando a validez do princípio de contn;dição para a consideração de coisas invariáveis ainda que com certas restrições, e negando-a para objetos que se transformam, nascem, morrem, etc. Entendemos por "coisas" complexos relativamente constantes de partículas ma· teriais que se modificam em cada momento, dado que o único eterno é o movimento mesmoY Todavia, dentro de espaços de tempo relativamente curtos pode-se deixar fora de consideração a transformação destes complexos, isto é, ~ coisa pode ser considerada como invariável. Somente neste caso se aplica o princípio de exclusão da contradição, não,contudo, no caso da concepção dinâmica da realidade. Plekhano'; resume sua proposta de solução da seguinte manein:: "Assim como o descanso é um caso específico do movimento, também o pensamento, segundo as regras da lógica formal (em correspondência com as "leis fundamentais" do pensamento), é um caso específico do pensamento dialético". 47 Se aqui não se pretendesse exprimir mais do que a evidência de o princípio de exclusão da contradição não se aplicar a predicados que se atribuem a uma coisa em diferentes momentos, então esta proposta de solução seria trivial. Desde Aristóteles o princípio de contradição se limita à consideração da relação de determinações simultâneas da coisa, e já Leibniz caracterizou o tempo como condição de possibilidade da união de determinações inconsistentes. Plekhanov se engana, portanto, quando afirma "que a dialética não suprime a lógica formal, e que somente retira às suas leis a validade absoluta, que é atribuída pelos metafísicos". 48 Uma "validade absoluta" destas leis, no sentido em que o interpreta Plekhanov, não foi <:firmada por ninguém. Para Plekhanov, a dialética não somente é independente de sua concepção idealista e conciliável com sua concepção materialista, mas também "está indissoluvelmente ligada a esta concepção".49 No centro da concepção da natureza de Plekhanov se encontra o conceito de movimento, como se depreende das ~eguintes observações: "segundo nossa .doutrina materialista, as contradições contidas nos conceitos representnm somente a tradução de outras contradições na linguagem
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do pensamento, - o reflexo das contradições que estão contidas nos fenômenos: graças à natureza contraditória dos fundamentos gerais destes fenômenos, isto é, do movimento". 50 Deborin estudou detalhadamente a dialética anterior a Marx. 51 Ele interpretou o materialismo dialético como síntese do método dialético de Hegel e da concepção materialista da natureza e da história, tal como a representou sobretudo Feuerbach na filosofia pós-hegeliana. As discussões sistemáticas da dialética materü:lista de Deborin foram criticadas por parte da ortodoxia marxista-leninista que as considerou imbuídas de formalismo e idealismo (devido à acentuação do aspecto metodológico e à reparação entre teoria e práxis); nelas não foi considerado o fato - assim ~e alegou - que Lenin havia elevado a filosofia dialética a um nível mais alto de sua evolução. 5'} Esta última acusação se dirigiu também ao "mecanicista" Bucharin. 53 Com o escrito sobre o materialismo dialético e histórico de Stalin (1938) se fez valer e se canonizou uma concepção mris grosseira e esquemática do materialismo dialético. O escrito de Stalin é importante na medida em que se tornou, na União Soviéticn e em todos os países do bloco oriental, doutrina oficial, substraída a toda correção. 54 Segundo Stalin, a didética se caracteriza pe1o fato de que, em primeiro lugar, considera os fenômenos no âmbito da sociedade e da natureza como "um todo coerente e unitário"; em segundo lugar, considera a natureza como essencialmente em movimento e em trans· formação; em terceiro lugar, caracteriza a evolução por transições qe transformações quantitativas em qualitativas e, em quarto lugar, reconhece a contradição da realidade e encontn: na luta dos opostos a razão da evolução na natureza e sociedade. Por todos estes traços, a dialétic<: se distingue da "metafísica". Stalin designa por este termo uma concepção segundo a qual a realidade é uma acumulação contingente de coisas ou de fenômenos, essencialmente invariável, incapaz de transições bruscas e livre de contradições intern<:s. Por certo Stalin não pensou na metafísica em geral, mas em uma forma muito precisa de pensamento metafísico, o qual dificilmente se pode constatar historicamente. Em continuação aos princípios mencionados, que formam uma ontologia in nuce, se-
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guem postulados do método dialético. À afirmação da coesão univeral de todas as coisas Stalin acrescenta a exigência de se conceber todos os fenômenos no contexto daquilo que os circunda; à constatação do movimento essencial da realidade, acrescenta a exigência do méodo dialético de explicação genética para todos os fenômenos; à dourina dos saltos qualitativos da evolução, Stalin uniu a conhecida máxima de que se deve proceder sempre do simples ao complicado, do inferior ao mais desenvolvido. A tese da contradição dos fenômenos fundamenta, conforme Stalin, a exigência de se representar toda. evoução como luta de tendências opostas. A lei da negação da negação de Engels falta em Stalin, que acentuou mais o aspecto da coerência de todos os fenômenos; também aqui, como em sua política, seguiu uma tendência para a consolidaão.55 Em Stalin destaca-se claramente o aspecto prático da dialética materialista: a filosofia materialista pretende ser a ciência de: nature· za e da sociedade no mesmo sentido que, por exemplo, a biologia é ma ciência. Por conseguinte, a política de um partido que se apóia os princípios da dialética materialista se ajusta a conhecimentos ientíficos e não está sujeita nem a conhecimentos de personalidade3 e destaque, nem a nenhuma casualidade. Embora, após a morte de Stalin, se tenha recorrido mais à conepção dialética de Lenin e acusado Stalin de haver sobretudo desuidado a lei da negação da negação, a substância do sistema do maerialismo dialético e histórico, tal como o concebeu Stalin, ficou tacta, como constatou Fetscher. 56
4. Lógica formal e lógica dialética A pretensão do materialismo dialético, em vigor até nos últimos empos. de poder desenvolver uma lógica dialética diferente da formal u de tê-lo feito, merece uma consideração à parte, posto que, neste ontexto, se pode não somente discutir a tese central da contradição e movimento, como também caracterizar paradigmaticamente o está_· o da discussão no materialismo dialético das últimas décadas. Se se define a lógica como o estudo dos princípios dr: argumenção correta, então é difícil considerar justificada a pretensão acim1 encionada, dado que até o momento não se desenvolveu nunca um
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método dialético próprio para se verificar a correção das r:rgume:J.tações. Se se define a lógica num sentido lato, de forma a incluir também a metodologia e a epistemologia, talvez fosse possível falar, co:n razão, de uma "lógica dialética". Para saber se, com efeito, isto é assim, temos que. analisar o que se designa por lógica dialética na literatura. De um modo geral, podemos assinalar com Huber, que na maioril dos casos, lógica dialética se emprega simplesmente como sinônimo de método-dialético, quando a existência de uma lógica dialética não é diretamente negada dentro do materialismo dialético. 58 Mesmo entre os representantes da idéia de uma lógic~ dialética propriamente dita, em concorrência com a lógica formal, não existe, no entanto, consenso no que diz respeito ao objeto da lógica dialética e à relação da mesma com a lógica formal. Segundo Lefebvre, a Iógic:1 dialética é uma lógica de conteúdo em oposição à lógica formal que, segundo e:e, faz abstração de quase todo conteúdo. "A lógica formal é ... , como lógica da forma, uma lógica da abstração. Quando nosso pensamento, depois desta redução provisória, regressa ao conteúdo, a fim de aprendê-lo de novo, então a lógica formal se mostra insuficiente. Há que substituí-la por uma lógica concreta, por uma lógica do conteúdo, da qual a lógica formal é somente um elemento, um princípio, válido em nível do formal, mas aproximativo e incompleto."58 Lefebvre parte de uma concepção da lógica formal, segundo a qual os princípios lógicos são resultado de uma abstração. Somente sob esse pressuposto tem sentido dizer que, na lógica formal, se faz . abstração de ~uase todo conteúdo. Se nos baseamos na concepção moderna da lógica formal, segundo a qual as proposições logicamente verdadeiras são compatíveis com qualquer conteúdo - embora não possuam conteúdo factual --, então fie~ anulada a argumentação em favor da tese de Lefebvre, segundo a qual as proposições da lógica formal deveriam ter um conteúdo mínimo, pois: "se a independêncil de conteúdo com relação à forma fosse atingida, então esta indepeadência não permitiria a aplicação da forma a qualquer conteúdo" .!09 Com respeito à dependência da forma com relação a um conteúdo, ainda que mínimo, a lógica formal está em concordância com a dialética, segundo Lefebvre. É, contudo, inferior a esta, a seu modo de ver, no aspecto em questão, pelo fato de que esse conteúdo permanece
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erior a ela e, portanto, o real escapa à forma. Se se tem em conta, I como exige a lógica dialética, a dependência da forma do pensa· ento com respeito ao conteúdo e, como é inevitável, segundo Leebvre, se reconhece que o real é móvel e contraditório, então ~e tornJ bém inevitável o reconhecimento do movimento do pensamento, e é uma conseqüência da síntese da forma e do conteúdo - realia primeiro por Hegel. 60 Como em todos os representantes do materialismo dialético, a da contradição do movimento assume papel decisivo também Lefebvre: "se a realidade é móvel, então também nosso. pemaento deveria ser móvel e ser o pensamento deste movimento. Se real é contraditório, então o pensamento também deveria ser pensaente consciente da contradição".G1 A contradição do movimento e, portanto, da realidade essencialente móvel são um fato para Lefebvre; assim mesmo, ele considera ecessário ter em conta, ao lado do momento da contradição, tamb~m da unidade da realidade, posto que a contradição absoluta deveria var à anulação de cada fato e de cada pensamento sobre os fatos. 6:} - lógica formnl, que se baseia nos princípios de identidade e de con:adição excluída, é incapaz, segundo acredita Lefebvre juntamente m todos os dialéticos, de expressar o aspecto dinâmico da realidade. e nenhum modo, porém, os princípios da lógica formal perdem sua alidez para Lefebvre. São válidos, contudo exclusivamente no âmbito abstração, não no da realidade, concreta, móvel e variável. A conadição da realidade, definida por Lefebvre como coincidência do ser ... do nada em cada coisa, se mostra em primeiro lugar no vir-a-ser, tal mo já havia ensinado a "lógicn concreta" do idealismo. Lefebvre vê, a lei da unidade ou da identidade concreta das contradições, uma lei damental da natureza e da vida; ao mesmo tempo, todavia,defende e a '\1Jntradição em si é insuportável". O vir-a-~er que tem como - iz mais profunda a contradição e que essencialmente é tender, tende _ ecisamente a sair da contradição e a restabelecer a unidade". 63 Quando se trata de dar exemplos para a suposta contradição da alidade, vê-se,claramente, em Lefebvre como em outros representan""S do materialismo dialético, que somente no conceito do movimento fala de contradição no sentido próprio. Enquanto que em todos 03 emais casos se faz apenas apelo a "forças, lutas, co;noções"e4 ou nlo
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se trata nem de contradição nem de oposição. 65 Esta última ocorre sempre quando <: pretensa oposição de duas afirmações se apresent::t como resultado de uma modificação de ponto de vista, como no seguin· te exemplo: segundo Lefebvre, é válido abstratamente "A = A', porém uma árvore é uma árvore somente enquanto cresce, traz frutos dos quais se originam novas árvores, etc., o que não se pode exprimir com tautologia "uma árvore é uma árvore". 66 Parece francamente sofístico que Lefebvre declare ser o eu, ao mesmo tempo, único e geral, posto que cada ser humano pode dizer "eu". 67 Aqui se trata, certamente, de uma confusão entre o emprego de uma palâvra na linguagem-objeto e na metalinguagem: eu sou individual, porém a palavra "eu" pode ser empregada por cada um para falar de si mesmo. Em outros casos o próprio Lefebvre indica que a oposição não é outra coisa senão diferença de ponto de vist<:, como por exemplo quando afirma ser o cartesianismo "em certo sentido e sob certo aspecto, a saber, na física e na fisiologia, um materialismo sob outro aspecto, contudo, um idealismo". 68 (Se examinamos este aspecto detalhadamente, foi porque a concepção da "contradição" que surge nos exemplos mencionados é característica para a maioria dm representantes do materialismo dialétioo). Lefebvre admite, como Engels, leis dialéticas, que diz ser universais, porém não abstratas, posto que permitem .:nalisar cada objeto, cada realidade ; são, nesse sentido, "concretas" .c9 Como se isso j,á não fosse suficientemente estranho, mais desconcertante é a declaração de Lefebvre de que as leis, embora devessem possibilitar a análise da realidade, não permitem nenhuma explicação ou previsão de fatos, mas somente a conclusão trivial: cada ser é vir-a-ser; A é um ser, portanto é um vir-a-ser. 7° Concretamente, trata-se das seguintes leis: a)
lei da ação recíproca universal;
b)
a lei do movimento universal;
c)
a lei da unidade dos contrários;
d)
a lei da passagem da qualidade em qu:::ntidade e vice-versa;
e)
a lei da evolução, como volta das formas superadas a um nível mais elevado.
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Lefebvre declara expressamente que estas leis são obtidas através da análise do movimento. "O movimento real contém, de fato, estas diversas determinações: continuidade e descontinuidade, aparição e coincidência das contradições, saltos qualitativos e superação". 71 Dado que se trata aqui de momentos do movimento, a idéia do movimento fundamenta o conjunto das leis dialéticas. Lefebvre viu muito bem a relação entre a lógica tradicional ( aristotélica) e a ontologia essencialista estática. Está bem confo-rme à. linha de seu pensamento admitir umn relação análoga entre a lógica dialética e o essencialismo dinâmico, ao qual ele está vinculado. Dentro da ontologia dialética seria preciso, por comeguinte, atribuir às leis dialéticas o mesmo caráter transcendental que possui, dentro da ontologia tradicional, um princípio como ens et bonum convertuntur. Enquanto lógica" do ser, a lógica dialética, tal como a concebe Lefebvre, está aparentada, portanto, à lógica aristotélica em um aspecto essencial; distingue-se desta,não de modo genérico, mas apenas específico, como por assim dizer, a variante dinâmica da estática na onto~ogia e na lógica que se fundamenta nesta. A lógica dialética, porém, não se caracteriza suficientemente pela referência aos aspectos aludidos, segundo Lefebvre; além do mais, ela e define como metodologia. Assim realça Lefebvre: "A lógica dialética é, ao mesmo tempo, um método de análise e uma encarnnção do movimento do real mediante um movimento do çensamento, capaz de seguir o vir-a-ser criativo em sua tortuosidade, mas casualidades e ua estrutura interna.m2 O aspecto analítico do método não pode ser isolado do sintético, pois a análise conduz à separação dos momentos de um todo. Este todo deve ser reconstruído, porém, a partir dos momentos que não podem ·er mantidos isolados. 73 Digno de nota é o reconhecimento da relação entre o método dialético e o analítico. É preciso reconhecer que Leebvre tem razão, quando afirma: "A analítica hegelic.na e a materialisa dialética renov-aram a análise clássica (cartesiana). " 74 Segundo Lefebvre,ela conseguiu isto pelo fato de haver introduzido neste método espírito concreto, racionc.l e sintético - declaração que vai além da primeira, de certo modo, porém, problemática. Não se pode ignorar a objeção, segundo a qual Lefebvre ontologiza de forma pouco aceitá-
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vel os princípios metódicos, pensando - levado pelo seu paralelismo dogmático do pensamento e do f:er - que a síntese só tem sentido porque o concreto tem natureza sintética; isto é, reúne em si os momentos distintos, até mesmo contraditórios. Por outro bdo, podemos proceder analiticamente, segundo sua opinião, porque a própria realidade tende, em seu movimento, a analisar-se. Os e!ementos aos quais a anáiise conduz devem Eer reais, isto é, condições, antecedentes ou graus de desenvolvimento de um todo concreto. Aqui não é lugar para se criticar a concepcão de Lefebvre; é suficiente que chamemos a atenção sobre um ponto decisivo, notadamente · sobre a relação entre o método clássico de explicação científica e o da lógiqJ. dialética entendida como método. Tanto naquele como nesta existe o perigo de se ignorar o caráter de princípios de explicação, relacionando-os com uma essência que aparece nos fatos da experiência. Nesta ordem de idéias, também Lefebvre foi de opinião de que "essência" e "lei" são conceitos pertencentes ao mesmo nível} 5
A idéia representa, segundo Lefebvre, o término do esforço de conhecimento; ele a define como "o saber completo da coisa considerada ou da classe de coisas considerada". 76 Ele não se inibe em empregar neste contexto a expressão "saber r.bsoluto", porém acentua, ao mesmo tempo, que não se trata aqui da "idéia" no sentido idealista metafísico. Na "idéia" estão implicadas todas as relações entre o objeto e a totalidade da realidade; ela é, de acordo com a formulação hegeliana, tanto unidade de conceito e realidade, expressão da unidade de sujeito e objeto, isto é, segundo Lefebvre, expressão do homem concreto vivente e da natureza material, como expre~são da unidade de teoria e práxis. Na idéia se atinge finalmente a unidade de análise e síntese, do geral e do concreto. 77 A Lógica Dialética de Fogarasi mostra o pouco que tem em comum a lógica dialética com uma lógica no sentido tradicional. Embora F ogan:si caracterize a lógica dialética como "ciência das leis e formas do pensamento, elaborada mediante o método dialético", 73 oferece, contudo, onde se trata da doutrina da definição, do conceito, do juízo e da argumentação, apenas uma lógica tradicional interpretr.da ontologicamente. Quando estabelece teses dialéticas no sentido próprio como o da contradição da realidade em geral e da necessidr.de de limi-
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~ar o campo de aplicação do princípio de contradição trata de ontologia, não de lógica. Na lógica dialética de Fogar:::si, as reflexões epistemológicas e psicológicas ocupam grande espaço; por exemplo: as reflexões sobre a relação de sensação, imaginação e conceito ou obre a relação entre teoria e práxis, de modo que u expressão "lógica" erve aqui para designar um conjunto bem heterogêneo de e:ementos ógíc"Js formais, epistemológicos, psicológicos, onto~ógicos e me:odológicos. Não se pode falar seriamente de uma lógica dialética, em Fogarasi, que estivesse em concorrência com a lógica formal-tr:::dicional ou moderna. Por isso é compreensível que, com respeito a esse "primeiro grande intento" de elaborar uma lógica dialética, se tenhrr constatado que também Fogarasi não conseguiu esclarecer o que signific::: " lógica dialética". 79
No centro das discussões sobre a relação entre lógica formal (ou melhor: não dialética) e dialética se encontra o problema da contradição objetiva. 80 Baseando-se,sobretudo,na suposição de que o conceito de movimento é contraditório, afirmou· se, em geral, a contradição da realidade (essencialmente móvel) e se declarou ser a lógica tradicional inadequada para a ontologia baseada na tese da contradição; era,poranto, preciso substituí-la por uma lógica dialética que pudesse, evc:1· tualmente, conter a formal como caso específico. Dado que a lógica dialética deveria ser c.:racterizada, em oposição à tradicional, pela -uperação do princípio de contradição, os representantes da lógica não dialéticu se sentiram, como é compreen~ível , desafiados a uma discussão. Assim Ajdukiewicz mostrou, partindo de uma discussão de ossíveis definições de "repouso" e "movimento", que a argumentação ue leva às antinomias de Zeno é deficiente. Além disso, o recurso ao princípio da constância não permite emonstrar a tese da contradição. 81 Schaff sustentou, ao mesmo tempo, ma concepção semelhante; anteriormente, ele f:::zia parte dos defenores da tese da contradição.82 Também Schaff considera intangível o rincípio de que uma afirmação e sua negação não podem ser verdade:ras e falsas ao mesmo tempo, mas distingue entre ::: significarão lógic::t o termo "contradição" e a significação característica dentro da !iterara marxista, segundo a qual "contradição" significa ora poluridade ou antagonismo, ora uma diferença de vários aspectos, ora a tensão ue prejudica ou impossibilita o funcionamento normal de um sis!ema por exemplo, na ordem social capitalista). É preciso admitir contradi-
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ções desta natureza, mas elas não têm nada a ver com o princípio lógico da contradição excluída. A análise de Schaff tende a ser uma restrição do significado da "dialética" no âmbito ontológico e, portanto, implicitamente um& renúncia à pretensão de uma lógica dialética. Outro caminho para a justificativa do princípio ontológico de contradição ("nenhum objeto pode, ao mesmo tempo, t~r e não ter uma determinada qualidade") com o reconhecimento simultâneo da tese de que um objeto em transformação tem e não tem ao mesmo tempo uma determinada qualidade, foi proposto por Zinoviev, supondo por sua vez que a expressão "ao mesmo tempo" tivesse significações diferentes no princípio de contradição e no princípio sobre as propriedades dos objetos em transformação. No primeiro caso "ao mesmo tempo" referir-se-á a intervalos de tempo e, no segundo, a momentos como limites não observáveis de intervalos. É evidente que, nestas circunstâncias, não pode haver relação de contradição entre o princípio de contradição e o princípio de movimento. 83 Com respeito ao reconhecimento do princípio de contn:dição também como pressuposto da dialética, Kolman segue esta linha, recorrendo às teorias modernas das ciênciz.s naturais, como a teoria dos quantas, sobretudo no que se refere à complementariedade, para apoiar a tese da contradição. À luta dos contrários na realidade, isto é, à dialética objetiva, corresponde, do lado do sujeito cognoscente, a lógim dialética que reproduz, a seu ver, adequadamente a realidade, enquanto que a lógica formal é vista por ele como repro· dução unilateral da redidade. De modo semelhante, R . Havemann encontra, no âmbito das ciências naturais, reflexos das contradições que devem caracterizar a realidade. "O cientista deveria estar sempre consciente da contradição, precisz.mente daqueles conhecimentos científicos resumidos em forma abstrata. Esta é a transição para a dialética consciente, que não descobre somente posteriormente, mas para qual se está preparado de antemão, e que é buscada a dialética em nossa consciência é o reflexo da dialética objetiva .. . ". 84 Entre os defensores do princípio de contradição encontra-se também I. S. Narskij, 85 que não apenas não vê afetado o princípio da contradição excluída pela presença de untinomias problemáticas, como também declara a existência deste princípio como condição para a formulação de antinomias problemáticas. Assim, por exemplo, no caso da tese de Marx: "O capital não pode. . . cair de circulação e menos ainda pode não sair da circulação''.
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A formulação de um problema deve, portanto, segundo Narskij, de acordo com as circunstâncias, efetuar-se em forma de uma antinomia, porque os fatos revelam aspectos contrários (no exemplo de Marx, a esfera da produção pura e a esfera da circulacão pura). É preciso, porém, superar o caráter antinômico da formulação inicial, encontrando-se um fator que permita unir os aspectos contrários (no exemplo considerado, a mão-de-obra, que em certo aspecto está na circulação). Parece possível reproduzir a concepção de Narskij, afir· mando-se que a contradição surge quando alguma coisa que é somente aspecto ou momento de um todo é considerada isoladamente. A superação da contradição poderia ser concebida então como síntese dialética em grande consonância, ao que parece, com a doutrina de Hegel. Contudo, segundo a concepção concordante dos representa n~es de materialismo dialético, é, não somente lógica, mas, ao mesmo tempo, teoria de conhecimento, tal como já havia dito Lenin: "Dialética", "Lógica" e "Teoria do conhecimento" designam a mesma coisa. Segundo B. Kedrov, Lenin não quis afirmar a identidade de Dialética, LógicJ. e Teoria de Conhecimento, mas sua unidade. Kedrov reforça esta definição falando de "unidade inseparável" e a considera baseada na unidade inseparável do próprio processo de conhecimento, a saber "pela coincidência do sujeito e do obje:o no ponto extremo do conhecimento, quando se verifica e se confirma a correção dos resultados de conhecimento pela práxis". 83 Ademais, n teoria do oJnhecimento tem a tarefa de definir a relação entre dialética objetiva (leis dialéticas do mundo exterior) e da dialética subjetiva (leis dialéticas do pensamento, com as quais tem a ver a Lógica dialética). A própria relação entre Dialé-tica, Lógica e Teoria de Conhecimento, enquanto aspectos diferentes da filosofia materialista, é dialética. É notável ver como surge aqui, novamente, dentro da dialética m<2terialista - que se compreendia desde Engels como doutrina das eis da evolução da natureza e da sociedade- a dialética sujeito-objero como dialética fundamental. A teoria do conhecimento tem como objeto a relação de sujeito e objeto, e esta relação é dialética enquanto uas duas facetas se referem uma à outra, não são separáveis e, contudo, diferentes, ao mesmo tempo. Uma vez que o reflexo cognitivo é um processo unitário, não se podem isolar suas facetas : nem uma da utra, nem frente à totalidade do processo; ambas devem ser vistas em ma correlação interna, em seu condicionamento mútuo. 87
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L S. Narskij limita o termo "lógica dialética" ao campo do conhecimento quando opõe a dialética do processo de conhecimento (da dialética subjetiva) por um lado, à dialética objetiva pelo outro, e define a "dedução dialética" como "unidade da análise dialética ( .. . ) e da síntese dialética". 88 Aquilo que aqui se designa por "forma intelectual fundamental da lógica dialética" não parece ser outra coisa senão uma teoria da explicação científica formulada mediante as ca!egorias dialéticas (como "ser" e "fenômeno"), de modo que a dialética aparece como uma espécie determinada da teoria da ciênci::. Por outro lado, N arskij não reconhece uma lógica dialética particular no sentido da doutrina do juízo e do silogismo. Aqui devemos chamar a atenção, brevemente, para a doutrina materialista das categorias. Segundo M. M. Ro5ental, 89 ela tem algo a ver com categorias lógicas que, ao mesmo iempo devem ser válidas como categorü:s ontológicas, devido a um paralelismo de conceito e realidade comparável ao de Aristóteles. Segundo Rosental, nenhum pensamento é possível sem as categorias lógicas. "Em cada proposiçãr , inclusive no juízo mais simples, aplicamos as categorias". As categorias correspondem à essência das coisas. Rm:ental salientav a que a essência ou o geral não existe separado das coisas, mas "dentro delas". Por isso declara: "O geral é o que existe no individual; portanto, qualquer c Jnfrontação metafísica de conceitos que expres:em alr:o geral e de objetos individu&is é inadmissível" .90 Além disso, as categorias são consideradas como "categorias do método de conhecimento, do método de pesquisa do mundo objetivo". 91 Evidentemente é-lhes atribuído aqui o caráter de pressuposto do estabelecimento e da solução de problemas científicos. Permitem, segundo Rosental, compreender ·quais são os princípios metodológicos da investigação e explicação no âmbito da filosofia natural e social. Todavia, são citados em particular, como categorias, somente pares de conceitos conhecidos: essência e aparência, cz,usa e efeito, concreto e abstrato e ocasionalmente também o concreto e o geral, o tempo e o espaço, coisa e qualidade, contradição e salto evolutivo. Não ' se ver como podem elas ter a função mencionada de um "instrumento da investigação e do conhecimento dos processos concretos, da situação concreta", ainda menos como deveria ser condicionada por elas a relação entre teoria e práxis. Também não altera nada o fato de que as categorias sejam chamadas, ocasionalmente, de leis. 9 ~
UNIVERSIDADE FE.Df ,_t.. ~ 00 P:..RÃ BiB LI OT E C A CE NT RAL
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Apesar do caráter metafísico, no sentido mais amplo du palavra, do materialismo dialético, seus representantes parecem empenhar-se. atualmente,cada vez mais.em aproximar a dialética du teoria da ciência ou em mostrar elementos dialéticvs no método das ciências tanto naturais como sociais. É possível que, com isso, se tenha introduzido uma metamorfose da dialética.
Notas -Capítulo I
1 Repetidas vezes se chamou a atenção sobre o significado da abordagem dialética no jovem Marx, assim por N BOBEIO: La dialettica di Marx. Em: "Studi sulla dialettica" (Rivista di Filosofia, 49, 1958, especialmente págs. 341-346). Bobbio rejeita a concepção de H. Lefebvre, segundo a qual Marx teria adotado a dialética só tardiamente. Com respeito à relação do jovem Marx para com Hegel, cf. G. Hyppolite: Études sur Marx (Paris, 1955), assim como D. Henrich: Karl Marx als Schüler Hegels. Em: Hegel im Kontext. Frankfurt a. M. 1971 (Edição Suhrkamp, 51 O págs. 187 ss). 2
As indicações se referem a K. Marx- Fr. Engels: Werke (ed. por lnstitut für Marxisruus-Leninismus beim ZK der SED), Berlim 1956 ss. O volume I do suplemento é designado por ")L""{XIV a".
3
Com isso deve estar relacionada a caracterização da atividade objetiva como "rendimento transcendental" feita por G. Habermas: Erkenntnis und Interesse (Frankfurt a.M. 1971. pág. 38).
4
Ocasionalmente Marx estabeleceu uma distinção entre a análise e a abstração dos metafísicos, recusada por ele: cf. IV, 127.
5
L. Althusser e E. Balibar: Das Kapitallesen. (Reinbeck 1972, págs. 65-66). Quando L. Goldmann, em "Dialektische Untersuchungen" (Neuwied und
Berlin 1966, pp. 24-25) afirma uma oposição entre a análise cartesiana e a dialética, verifica-se aí um mal-entendido do método de Descarte. 6 Neste sentido Lênin constatou: "Como método dialético, Marx e Engels - em oposição ao metafísico - não designam outra coisa do que o método científico da sociologia, que consiste em considerar a sociedade como organismo vivo e permanentemente em evolução ( ... ) , e cujo es-
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tudo exige a análise objetiva das relações de produção que constituem a formação social dada, a investigação das leis segundo as quais ela fun. ciona e se desenvolve" (Werke I, pág. 158). Aqui se deve lembrar também a concepção de M. Merleau-Ponty, o qual, em Die Abenteuer der Dialektik (Frankfurt a.M. 1968, páj!s. 76-77), sustenta que Marx (como Engels), na medida em que decidiu "deixar de lado a filosofia", não entendeu a "dialética" como um modo paradoxal de pensar, ou uma relação sujeito-objeto, porém a constatação de certas relações observáveis seja na história, seja na natureza. 7
J. Hyppolite: Etudes sur Marx et Hegel. Paris 1955, p. 143.
8
De modo semelhante se deve complementar a consideração isolada do processo de produção tendo-se em conta o processo de circulação, porque · ambos na realidade não estão separados. Segundo Marx "o processo de produção capitalista, considerado em sua totalidade, é unidade do processo de produção e de circulação" (XXV, 33). Com respeito à relação dialética das três partes de "O Capital" cf. J. Hyppolite, op. cit. págs. 142-168.
9
Cf. XXIII, 63: "A forma relativa de valor e a forma de equivalência são momentos inseparáveis que se pertencem um ao outro e se condicionam reciprocamente, porém, ao mesmo tempo são ............. .
10
Grundrisse der politischen Vkonomie. Frankfurt/Maio e Viena, s.d. (Reprod. da edição: Moscou -939 e 1941), p. 45.
11
Por exemplo: segundo Marx, existe contradição em que "a capacidade de trabalhar se transforme em mercadoria e que o valor de uso desta mercadoria específica, que, pois, nada tem a ver com seu valor de troca, seja energia geradora de valor de troca" (XXVI/1, 59).
12
W. BECKER: Kritik der Marxschen Wertlehre. Hamburgo 1972, esp. pp. 65 ss.
13
Com efeito, segundo Marx, "uma contradição que se supere" não pode ser expressa como lei (XXIII, 558) .
14
Hegel: Wissenschaft der Logik, I; ub.-Ausg., vol. IV, 457.
15
M. M. Rosental (Rozental): Die Dialektik in Marx'-Kapital. Berlim, 1957.
------------------------~
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16 Althusser e Balibar, op. cit., p. 261.
17
Op. cit., p. 254.
18
Aqui deve ser lembrado que a ciência seria supérflua segundo Marx, "se a forma fenomênica e a essência das coisas coincidissem" (XXV, 825).
19
Cf. J. Robinson: Economic Philosophy (Penguin Book A 653; 1966, pág. 29).
20
Althusser e Balibar, op. cit., pág. 258.
21
H. KORCH: Die wissenschaftliche Hypothese. Berlim, 1972, págs. 319-321.
22
Cf. W. Berker: Kritik der Marxschen Wertlehre (Hamburg 1972, págs. 44-45), onde se discutem os problemas relacionados com o modo de consideração quantificante.
23
Com respeito à concepção de Marx sobre a essencm, cf. J. Zeleny: Die W issenschaftslogik hei Marx und "Das Kapitaf' (Frankfurt a. M. und Wien 1970).
24
Também Z. Zeleny, op. cit., fala de passagem da ·"Teoria da estrutura ontológica da realidade" de Marx.
25
Althusser e Balibar, op. cit. pág. 25?.
26
Op. cit., pág. 248.
27
Op. cit., pág. 204.
28
Cf. Th. J. Kuhn: Die Struktur wissenschajtlicher Revolutionen (Frankfurt a.M. 1967).
29
Th. J. Kuhn, op. cit., págs. 80 ss.
30
A indicação de página, sem menção do volume, se refere a: Karl Marx J Friedrich Engels: W erke, vol. XX ( = A nti-Dühring e Dialektik der N atur). Em outras obras se indica o número do volume e página de MEW.
31
Cf. A. Schmidt: Der Begriff der Natur in der Lehre von Marx (Frankfurt a.M. 2. A. 1971, pág. 46).
32
Engels acredita encontrar, na concepção de que todas as leis da natureza são hipóteses, a "insipidez do pensamento" ( 499).
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294 33
R. Netzsch: "Dialektik und Naturwissenschaft". Em: Debatte um Engels, I ( Reinbeck 1973), explicou a atitude discrepante de Engels fazendo valer que ele queria lutar, por um lado, contra o "misticismo" hegeliano, e, por outro, contra o indutivismo do velho materialismo ( cf. especialmente p. 54).
34
Os exemplos de Engels (507-508) são completamente errôneos; permite entrever que Engels entendia muito pouco de Kant.
35
Cf. R. Netzsch, op. cit., p. 62.
36
Cf. A. Schmidt, op. cit., p. 194.
37
Cf. A. Schmidt, op. cit., p. 195.
38
Uma crítica da mesma do ponto de vista marxista dá A. Pannekoeck: Lenin als Philosoph (ed. A. Schmidt, Frankfurt a.M. und Wien 1969).
39
Lênin é citado segundo a edição alemã de suas obras (ed. do Institut für Marxismus-Leninismus beim ZK der SED, Berlim 1967 ss). A indicação de página sem indicação de volume se refere ao volume XXXVIII ( = Philosophische Hefte). - Uma descrição exaustiva do pensamento de Lênin oferece P . V. Kopnin: "Dialek[ik-Logik-Erkenntnistheorie". Lenins philosophische.~ Denken (Berlin 1970, em russo, 1969).
40
T. I. Oisermann: "W. L. Lenin über die Dialektik Hegels". Em Deutsche Zeitschrift für Philosophie VI ( 1958) 273-286. indicou a importância deste princípio em Hegel e Lênin.
41
Cf. Th. Meyer: Einleitung zu Lenin : "Hefte zu Hegels Diaíektik" (München 1969, pág. 67) .
42
M. Merleau-Ponty, em: Die Abenteuer der Dialektik (Frankfurt a.M. 1968, pág. 75), defende a tese de qve a orientação de Lênin para Hegel teria conseqüentemente conduzido a uma modificação do dogmatismo da teoria do conhecimento, que cunhara o "Materialismo e empiriócriticismo".
43
Sobre isto e sobre a resistência a esta concepção feita por Gramsci, Lukács e Marcuse cfr. O. Negt, Enleitung zu Deborin-Buchasin; (Con.tróvérsias sobre o materialismo dialético e mecanicista). Frankfurt a.M. 1969).
44
Grundprobleme des Marxismus, Berlim 1958, pág. 39!
45
Op. cit., p. 40.
46
Op. cit., p. 122.
47
Op. cit., p. 124 (grüado no original).
295
Filosofia Dialética Moderna 48
Op. cit., pp. 126-127.
49
Op. cit., p. 127.
50
Op. cit., p. 127.
51
A. M. Deborin: 'Studien zur Geschichte der Dialektik. Em. 'Marx-Engels Archiv", vols. I e li. Cf. M. Mitin: "Ober die Ergebnisse der philosophischen Diskussion" . .Em: Deborin-Buchasin (cf. nota 43).
52 53
M. Mitin: op. cit., 341-343.
54
J. W. Stalin: Ober dialektischen und historischen Materialismus (texto com~ pleto e comentário crítico de I. Fetscher) . Frankfurt a . M. etc. 1956) .
55
Ci. A. Wetter: Der dialektische Materialismus. (Wien und Freiburg, 5ª' ed. 1960, pág. 396, cfr. pág. 435).
56
I. Fetscher: Von Marx zur Sowietideologie (Frankfurt a. M., etc. 17ª' ed. 1972, pág. 154).
57
E. Huber: Um eine dialektische Logik (München u. Salzburg, 1966, págs. 78-79). H. Lefebvre: Logique formelle, logique dialectique, Paris, 2ª' edição, 1964, pág. 52. Para uma avaliação de Lefebvre cf. I. Fetscher: Der Marxismus im Spiegel der franzosischen Philosophie Marxismusstudien I (Tübingeo 1954, págs. 173-213, especialmente sobre Lefebvre págs. 176-182).
58
H. Lefebvre: Der dialektische Materialismus. Frankfurt a. M., 1971 (1 ~ edição francesa 1940). 60 Logique jormelle, pp. 147-148.
59
5~
edição
61
Logique formelle, p. 151 (tradução do autor).
62
Der dialektische Materialismus, p. 27, cf. Logique formelle, pp. 162-163.
63
Logique formelle, p. 173 (trad. do autor).
64
Logique formelle, p. 174.
65
G. Stichler: Der dialektische Widerspruch. Formen und Funktionen. Berlim 1966, dá uma visão global sobre os possíveis significados de "contradição". Com respeito à crítica da doutrina da contradição no materialismo dialético, cfr. H. Ogiermann: Materialistische Dialektik (München 1958).
66
H. Lefêbvre: Der dwlektische Materialismus, p. 30.
õ7
Logique formelle, pags. XXIV ss.
<:..!
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68 69
Logique formelle, p. 63. Logique formelle, p. 220.
70
Logique formelle, págs. 220-221.
71
Logique formelle, p. 224.
72
Der dialektische Materialismus, p. 29.
73
Logique formelle, págs. 89-92.
74
Logique formelle, p. 93. Logique formelle, p. 202.
75
76 Logique formelle, p. 216. 77 Logique formelle, págs. 216-217. B. Fogara&i: Dialektische Logik (s'Gravenhage 1971, H ed. Berlim 1954). H. Baumann: "über Fragen der Logik", em: Deutsche Zeitschrift für Philosophie, IV (1956, pág. 218). 80 Assim também A. Schaff: '"über Fragen der Logik". Em: Deutsche Zeitschrift für Philosophie, IV (1956), p. 338. - A propósito da crítica.à teoria materialista da contradição, cf. H. Ogiermann.: Materialistische Dialektik. München etc 1958. 81 K. Ajdukiewicz: "über Fragen der Logik". Em: Deut~che Zeitchrift · für · Philosophie, IV (1956), págs. 318-338. 82 Cf. N. Lobkowicz: introdução a Das Widerspruchsprinzip in der neueren sowjetischen Philosophie. Dordrecht. 1959, p. 6. 83 A. A. Zinowjew: Vber rlie logische Widerspruchsfreiheit der wahren Urteile · über Vcranderurgen usw. Em. N. Lobkowicz, (ed.): op cit., págs. 65-76. 78 79
- 84
R. Havemann: Dialektik ohne Dogma? Reinbeck 1964, p. 165.
85 L. S. Narskij: Dialektischer Widerspruch und Erkenntnislogik. Berlim 1973. 86 B. Kedrov: Dialectique, logique, gnoséologie, Moscou 1970 (em russo primeiro 1963); ( trad. do autor). 87 Op. cit., pág. 393. 88 L. S. Narskij, op. oit., p. 77. 89 M. M. Rosental und G. M. Straks: Ka-tegorien der Materialistischen Dialektik (Berlim 1960, pág. 17). 90 Op. cit., pág. 41. 91 Op. cit., pág. 16. 92 Op. cit., págs. 60-61; cfr. pág. 70.
..........._ _
Capítulo II
A DIALÉTICA DOS NEO-HEGELIANOS. 1.
Benedetto Croce.
Preparado pelo renascimento de Hegel nos anos cinqüenta do século XIX (A. Vera, B. Spaventa), o pensamento dialético na Itália tomou um impulso extraordinário no princípio do nosso século. O Neohegelianismo de Croce e Gentile pôs em re!evo a dialética idealista e:n um clima espiritual caracterizado pela recusa tanto do positivismo como do materialismo histórico. E isto num momento em que a dialética na Alemanha havia sido abandonada tanto pela filosofia universitária como pela opinião pública em geral. Os representantes do neohegelianismo italiano que, por certo, não utilizaram exclusivan:ente motivos ideolósicos hegelianos - e isto deve ser levado em conta - , e principalmente Gentile, se alimentaram de outras fontes do pensamento idealista, pretendendo desenvolver uma filosofia dialética própria com base na dialética hegeliana ou em geral na dialética do idealismo pós-kantiano, para depois demarcá-la. critic
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campos: Estética, Lógica, Étic~ e Economia. De Hegel, Croce tomou a concepção do conceito ("verdadeiro"), como universal concreto, que possui caráter de unidade estruturada em si, de determinações concretas que estão em relação de oposição entre si. É preciso distinguir o conceito neste sentido do conceito científico e dos conceitos vulgares, que Croce interpreta,de certo modo como abstrações arbitrárias, porque são efetuadas sob pontos de vista pragmáticos; por conseguinte, no sentido da teoria nominalista do conceito. O conceito "verdadeiro" ou ''filosófico" corresponde, por outro lado, a um aspecto do espírito (absoluto). Como unidade de determinações múltiplas, não tem seus opostos frente a si, mas em si. É um conceito objetivo, posto que a própria realidade é concebida como unid&de de contrários ou como unidade diferenciada por contrários, de modo que uma realidade sem contrários não é possível ( 19). O real não é a unidade, nem a multiplicidade de opostos, nem a soma de momentos abstratos; é o conceito concreto que supera a diferença de um e do outro, de fenômeno e de "em si" (54). A evolução das determinações em forma de tríades dialéticas é algo extrínseco com respeito a relações conceituais, tal como já havia observado Hegel ocasionalmente. Segundo Croce, as tríades dialéticas de Hegel, de tese, antítese e síntese, não expressam a relação de três conceitos, mas sempre um só conceito, cujos momentos abstratos se formulam em tese e antítese. Assim, "ser" e "nada" são, na tríade de "ser", "nada" e "devir", considerada por Croce como fundamental na dinlética dos contrários, meros momentos abstratos de único conceito de "devi r": não são conceitos independentes dos qu&is nunca poderá originar-se o conceito concreto mais elevado ( 25). "Ser" e "nada" são determinações opostas, cuja luta é o próprio devir. Só são pensáveis como idênticas (tal como em Hegel), se "mal" pensados, isto é: se pensados como independentes, caso em que sua relação não se expressa por "a = a", mas por "O= 0". O conceito de "devir", ou de movimento, não é, em suma, o c:mceito de uma realidade determinada, mas da forma ideal da realidade em geral. Por isso, a "intuição'~ na qual o "movimento" é dado, é diferente da intuição de uma coisa individual e contingente. Os conceitos especulativos, na sua totalidade, são "intuitivos" em certo sentido e não "lógicos" como os conceitos formados por abstração, como por exemplo, os conceitos da matemática. (Com isto, C roce pensa com certeza ter refutado a crítica de Trendelenburg contra· a dialética. Em sua opinião, a pre::ença de um elemento intuitivo pode ser reconhecida na idéia do movimento, se::n
Filosofia Dialética Moderna
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que seja necessário, como pensou Trendelenburg, concluir daí a dependência do pensamento dialético com relação à intuição empírica.) Croce está convencido de que Hegel obteve êxito em mostrar, apoiando-se na doutrina do conceito concreto - que a oposição é essencial par& a realidade em geral e,com isso,que o momento da negatividade é constitutivo tanto para o ser como para o conhecimento. Com isto fundamentou, segundo Croce, uma lógica filosófica autônoma e possibilitou a superação do dilema entre monismo ou dualismo, que havia sobrecarregado a filosofia anterior. Antes de Hegel, parecia ser somente possível, diante da alternativa entre monismo e dualismo, uma deqisão a favor da conservação de uma das alternativas e o conse· qüente abandono da outra. Contudo, considerando-se que a unidade não pode ser puramente conservada sem qu_e se reconheça a multiplicidade oposta, da mesma forma que a multiplicidade não pode ~er mantida sem o reconhecimento da unidade, todos aqueles intentos estavam condenados ao fracasso. Somente a dialética de Hegel abriu a possibilidade (segundo Croce) de escapar, de forma definitiva, ao dilema em questão, ensinando a se reconhecer a "concordia discors" da realidade, que o pensamento primitivo sempre conheceu, através de meios filosóficos. Apesar destes importc:ntes aspectos positivos da dialética hegeliana, é preciso chamar a atenção, segundo Croce, para a pre:::ença de erros no pensamento de Hegel. A base destes erros é o erro fundamental da ausênc:a de diferenciação clara entre a dialética dos contrários, desenvolvida por Hegel em forma de relação entre tese, ~ntítese e síntese, e a dialética dos graus diferenciados da realidade espiritual, que deve ser uma lógica de implicação. Croce se propôs distinguir entre a teoria degli oppositi e atearia dei distinti - ambas podem ser denominadas "dialética", ainda que não de modo unívoco - e atribuir a cada uma um campo de aplicação particular. Hegel descuidou d2 d1stmçao, imprescindível no parecer de Croce, entre a dialética dos opostos e a dialética de graus - assim a chamaremos a ~eguir - e tratou a última segundo os critérios válidos para a primeira, isto é, submeteu-a externamente à forma triádica, criando assim a causa para uma série de erros conseqüentes. O erro fundamen~al, porém, não consiste, segundo Croce, no haver estendido a forma triádica a um campo que lhe é impróprio; é mais profundo, isto é, consiste na degra··
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dação de níveis do espírito, que são concretos e reais, a meros momentos da realidade concreta, ou seja, a abstratos, segundo a correlação na dialética dos opostos. As graves con::eqüências do erro fund(:mental se revelam, segundo Croce, com toda clareza na concepção hegeliana da relação entre arte, religião e filosofia. Em vez de concebê-la no sentido de um nexo de formas do espírito, distintas e relativamente independentes, Hegel as àefine como relação de tese, antítese e síntese. Isto implica ::: afirmação errônea de que é preciso entender a religião como negação da arte ou que a arte e a religião são meros abstratos que encontrariam sua verdade unicamente na filosofia como "superação". Algo parecido ocorre com família, sociedade burguesa e esíado ou com direito, moral e ética. Em nenhum caso a pretensa tese é negada por sua respectiva antítese; a moral não é a negação do direito, e a sociedade burguesa não é a negação do princípio de família ( 95). O conjunto dos graus não pode ser representado, portanto, na forma da relação de tese, antítese e síntese, mas na forma da relação de configurações distint&s da atividade espiritual, que C)nstituem em sua totalidade esta última e somente se podem distinguir dentro dela ( 81-82). Assim a intuição, como uma das formas da atividade espiritual, é constitutiva para um espírito como o humano, porém a ativi· dade espiritual não se esgota na intuição, mas é também entendimento, etc. Assim, "intuição' implica "ser-espírito", a recíproca porém não é verdadeira, uma vez que existem atividades espirituais que não são intuição. "Intuir" e "conceber" não são opostos que se negariam mutuamente e que seriam superados na unidade do espírito. Principalmente, não se trata de momentos abstratos do conceito "r:tividade espiritual", são, antes de mais nada, concretos e independentes um do outro, de modo que, na passagem da intuição ao conc:~ito , feita pelo espírito, como também na passagem da arte ou da históric: à filosofia, um nível anterior é abandonado, mas não negado. Além disso, esta passagem não é irreversível, pois o espírito pode voltar novamente da filosofia à arte. Na dialética de opostos, contudo, a tese e a antítese se "superam" igualmente. isto é, se suprimem e se conservam, se bem que somente em sentido impróprio, posto que, como momentos abstratos, não têm existência independente (89). Em outros termos: cada relação, dentro da dialética dos opostos, segue o esquema da tríade dialética de ser, nada e vir-a-ser. Este esauema não oode ser :::plicado, assim afirma
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Croce contra Hegel, à relação O espírito indivi- dos níveis do espírito. dual vai da arte à filosofia e desta volta à arte, não oor serem arte e filosofia em si contraditórias, e sim, porque a orópria realid:::de é essencialmente vir-a-ser e movimento. O esoírito absoluto é arte e filosofia, é teoria e práxis e por isso procede, ~m sua evolucão, essenâalmente necessária, da consideração estética à conceitual, da moral à econômica: não para alcançar uma vez para sempre um ponto de descanso, mas para repetir o progresso a um grau mais elevado, uma vez que possui maior conteúdo. A concepção de Croce não admite a idéia de uma meta da história, na qual ela atingiria a sua perfeição e, portanto. sua paralisação; é, antes, a afirmação radical da evolução interminável da realidade, historicamente absoluta. O transcurso da história não está submetido a nenhuma lei extra-histórica, não node ser medida por normas ideais e eternas, mas sim. produzir ele próprio, de modo estritamente imanente, os universais que fundamentam cada juízo objetivamente válido. A confusão entre os princtptos da dialética de opostos e os da de graus, tem por conseqüência: a) que os erros filosóficos aparecem como verdades parciais; e b) que certos conceitos que se referem a outros ç::mceitos no ~entido da dialética de graus apareçam como erros. a) Os erros filosóficos se revelnm como verdades parciais quando concebidos como dois graus autônomos do espírito e não como abstrações falsamente tomadas como independentes. Isto Eeria o caso, segundo Croce, na lógica de Hegel, dos momentos do "ser" e do "nada" tomados para si, que se comportam frente ao vir-a-ser como os graus inferiores frente aos mais elevados ( 89). Abstração feita da determinação tão estreita de "erro" que é pressuposta aqui e que permite designar como "erro" somente a hipostasiação de abstn:ções, é preciso questionar seriamente a interpretação que Croce dá a Hegel. É difíc:I crer que Hegel tenha concebido o "ser" e o "nada" como dois graus do espírito - comparáveis, de certo modo, aos níveis do espírito subjetivo e objetivo. No sentido de Hegel, é preciso recusar também a interpretação de que o começo da lógica tem o caráter de um estabele::imento, como a suposição de axiomas em vista da dedução de teoremas ( 109). Levando.-se em conta as bases fixadas na Fenomenologia de Espírito, torna-se iniustificável a acusação de arbitrariedade que Croce faz contra o começo da lógica.
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Pelo contrário, será difícil refutar a afirmação de que o desenvolvimento das idéias presentes no começo da lógica contenham tráços arbitrários. O método da Lógica, com efeito, não permanece sem modificações no transcurso de seu desenvolvimento. Todavia, é mais questionável ainda poder-se conseguir uma emenda da Lógica sem seu conteúdo concreto, proveniente da filosofia da história e do espírito e desvinculada da maneira como Hegel acreditava tê-la começado e da forma de sua elaboração. A Lógica é válida ou não em sua totalidade, abstraídos os aspectos acidentais. b) Mais convincente que a tese da transformação de "erros'' em verdades pc:rciais é a afirmação de Croce de que a confusão das duas dialéticas, separadas por ele, levaria em Hegel a uma metamorfo::e de verdades parciais em erros filosóficos. Esta metamorfose se revela, segundo Croce, na concepção hegeliana da arte, que se apresenta para ele como forma provisória e contraditória do espírito. Como tal, é preciso superá-la na filosofia. Croce está convencido, por outro lado, de que à intuição (artística ou histórica) cabe uma função que não pode ser negada e que, por princípio, independe das relações racionais. Não se faia justiça a ela ao se procurar seguir uma relação conceitual. Ê errô_neo, por princípio, submeter a arte a um juízo segundo categorias lógicas ou morais ou aplicar a ela critérios de utilidade, porque neste caso se sr:crificaria sua independência, como forma do espírito, em favor de formas que possuem outro caráter e de seus respectivos traços essenciais. Em geral, as formas do espírito, segundo Croce, devem ser irredutíveis. Por isso, ele se m~ga a julgar as configurações de uma determinada forma do espírito meaiante categorias que têm sua origem em outra forma do espírito. Hoje é difícil aceitar tal postulado de pureza, isto é, excluir, por exemplo, da consideração estética todc:s as perguntas que dizem respeito à relevância moral ou social. A incapacidade de Hegel em fazer jus às particularidades do momento estético se mostra com especial clareza - acentua Croce -em sua concepção da linguagt?m, que pode ser designada como logicista. Segundo esta concepção, a linguagem consta de signos, cujo único fim é expressar conceitos. Por isto, Hegel teve que admitir a conclusão de que a linguagem pretende, por um lado, expressar a individual, mas
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por outro lado, por princípio, não o pode. Para Croce, em oposição a Hegel, não é válido o princípio: Individuum est ineffabile, porém, ao contrário solum individuum est effabile. A linguagem é, segundo Croce, primariamente poesia, arte, expressão da intuição, que sempre é intuição da realidade individual ( 119-120). Como a arte, ainda menos a história pode ser dissolvida em uma ciência conceitual: depende, como aquela, originariamente da intuição. Submeter a história ao método da lógica significa destruí-la, o que ocorre qu.::tndo, com Hegel, a história do historiador é confrontada com a "verdadeira" história de filosofia, de sorte que a primeira aparece como parciàlmente errônea. A história ideal não tolera, a seu lado, uma história no sentido usual; só é aceita uma história como consideração pensante, mas não como intuição da realidade em transformação. Finalmente, também as ciências naturais aparecem em Hegel como algo que deve ser superado na filosofia. Devem ser concebidas como princípios não desenvolvidos, que se dirigem pam a fisolofia,, enquanto que, inversamente, a filosofia se converte em ciência "verdadeira" (148). C roce, contudo, quer assegurar às ciências naturais um modo autônomo de observação da realidade, ao lado da filosofia, com a qual não entram em concorrência. Além disso, constata na filosofia da natureza um segundo erro da dialética hegeliana, que sobrecarrega também, a filosofia da história de Hegel. A seu ver, este erro ponsiste em considerar também o individual à maneira dos conceitos gerais e submetê-lo ao método dialético. ( 170). Do erro fundamental de Hegel resulta o panlogismo, isto é, o descuido de todos os demais fenômenos do espírito em favor do único considerado devidamente, isto é, o pensamento conceitual. Não obstan· te, Hegel não respeitou de forma conseqüente o monismo dado com o panlogismo, posto que, com a passagem da idéia à natureza, se dá a do panlogismo monista ao dualismo, que, apesar de diversos intentos em dele se desfazer interpretativamente, não se pode negar, segundo C roce. Com respeito ao intento de "superar" a opos1çao de espírito e natureza no lagos, Croce acredita poder constatar tanto um fracasso como uma inversão das verdadeiras relações lógicas. Novamente é a aplicação injustificada da forma triádica que favorece o erro, uma vez
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que obriga a considerar o espírito e a natureza como momentos abstratos, enquanto são, também para Hegel, realidades concretas ( 192). Na verdade, porém, o lagos não é a síntese de espírito e natureZa como aparece no sistema de Hegel - , corresponde à tese, portanto, ao ponto de partida ·do movimento triádico, cujas fases são o lagos, a natureza e o espírito. Com efeito, o fogos contém, em Hegel, como observa Croce, somente determinações que procedem do campo da natureza e do espírito, entendido este como espírito subjetivo, objetivo e absoluto (193). Enquanto se faz abstração destes conteúdos, o lagos se revela como sujeito puro, como razão indefinida da realidade, como o deus da metafísica antiga. Por isso, o pensamento de Hegel é, no fundo, religioso, dado que nele se procura satisfazer a necessidade religiosa com meios racionais. Isto pode ser afirmado apesar do fato de a filosofia de Hegel ser considerada também como irreligiosa; sob pressupostos distintos, na medida em que, submetendo a dialética · de graus aos princípios da dialética dos opostos, dissolve a religião na filosofia ou a substitui pela filosofia ( 64). Porém, a filosofia nbsoluta, que absorve a religião,é a "superação" da religião também no sentido de sua conservação. Chama atenção o fato de que Croce se interesse de modo especial, em sua discussão com a dialética hegeliana, pela relação entre arte, religião e filosofia. Como filósofo teórico da arte e da história interessou-lhe, como é compreensível, em primeiro lugar, a relação da arte ou da história e da filosofia, que tratou de representar em sentido positivo. Seu interesse pela religião era, decerto, de outra índole, pois procede do liberalismo do século XIX: dirigiu-se, sobretudo. para o problema de como deveria definir a religião - à qual, em oposição à arte e à filosofia, não corresponde uma categoria do espírito - , em sua relação com ·as configurações espirituais de caráter independente. Sua resposta foi que a religiosidade não poderia existir "ao lado" ou "em cima", em outros termos: fora das quatro formas fundamentais do espírito, mas em todas elas. A religiosidade, no sentido croceano, é uma atitude de caráter estritamente imanentista, que se chamou, com razão, de panteísmo histórico, ou naturalista. 3 De outra parte, qualquer forma de religiosidade transcendental, e neste sentido metafísic-a, é recusada. A dialética dos graus de Croce, ao acentuar a independência dos quatro graus do espírito, tem por conseqüência que o lado prático
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do espírito, ou os graus da moral e da economia, sejam tratados com maior independência do que em Hegel. Este tratou da moral e da economia sob o título "espírito objetivo", onde a eo:momia aparece sobretudo relacionada com a discussão sobre a sociedade burguesa. Isto é muito mais complicado e também metodicamente menos claro, dado que em Hegel se entrecruzam, com freqüência, problemas descritivos e normativos, enquanto que a separação croce2na de graus teóricos e práticos do espírito permite uma distinção clara daqueles problemas. Croce tinha razão ao denunciar em Hegel a extensão excessiva do princípio da dialética dos contrários. Isto deve conceder-lhe também os discípulos não dogmáticos da filosofia hegeliana. Croce, porém, não foi além da distinção entre o vivo e o morto, o aceitável e o errôneo na dialética de Hegel, para atingir um progresso criativo da dialética. Uma vez que não lhe foi possível encontrar aspectos novos, é preciso chamar sua filosofia di
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"Dialética do pensante" frente à "dialética
Diferentemente de Croce, Gentile recorreu às origens teóricoexperimentais da dialética moderna, em seu intento de reforma da dü:lética hegeliana, esboçado no trabalho La riforma della dialettica hegeliana. Isto se revela também claramente nas obras maiores, Teoria Generale del/o Spirito come Atto Puro e Sistema di logica onde viu corretamente que a dialética moderna, no fundo, não era uma didética de conteúdos objetivos, mas, também em seus princípios, uma dialética do pensamento, mais exatamente: da rebção pensamento-objeto. Em termos de Gentile, é dialettica del pensante e não dialettica del pensato, e portanto, quanto à sua tendência, uma lógica dinâmica da síntese da consciêncü:, e não uma lógica de relações estáticas que tivessem sido dadas ao sujeito. Gentile viu na dialética antiga sobretudo na platônica - uma pura dialética do pensado. Pensou inclusive que, na dialética moderna, se encontrc:vam ainda resídúos da antiga maneira de pensar, de modo que a dialética moderna ainda não teria alcançado a dialética pura do ato de pensar. Só com ele próprio a dialética atualista teria superado todas as influências da antiga dialética do ser. A dialética do pensado trata das relações entre conteúdos objetivos ("idéias", "essências" ou ooisas parécidas), que existem eternamente tal como são, de modo que o princípio do movimento deve ser estranho à dialética objetiva. No campo deste pensamento dialético, a evolução existe, em suma, de modo secundário, desde que as relações invariáveis do ser sejam entendidas, por parte do sujeito inte~ec tivo, de modo discursivo. Segundo Gentile, somente Kant rompeu com esta forma de dialética, reconhecendo, na síntese pura, uma condição de possibilidade da objetividade em geral, portanto também das relações no âmbito do pensado. A condição de possibilidade da objetividade, não obstante, não pode ser objeto dela mesma. Aparecendo os conceitos pensados no sentido objetivo) como dependentes de conceitos que, por prinCÍI-;·io, são de índole diversa, isto é, de con· ceitos transcendentais, a dialética do pensado perde sua independência. Logo, a dialética, em sentido originário, só pode ser dialética no sentido filosófico-transcendental. Gentile queria dizer, ao que pare:J2. com a distinção dos conceitos transcendentais e do pensado,., que os conceitos e os princípios da filosofia transcendental não são pensados
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da mesma maneira que as coisas, cuja experimentabilidade se quer explicar mediante eles. (Sobre Kant, ver Parte I, Cap. III). É arriscada, porém, a formulação de que n dialética do ato de pensar nada tenha a ver com algo pensado e, contudo, se baseie no conceito "verdadeiro" dentro da forma do ato de conceber. Segundo Gentile, Hegel deu um passo importante para além de Kant, reconhecendo que a realidade é a própria idéia ou que o verdadeiro, o único conceito real,é o conceber. Hegel não somente dissolveu todo o saber no saber absoluto, na idéia, como descobriu também a ciência da idéia como ciência da atividade sintética do espírito. É preciso fazer, contudo, com Gentile, a observ~ção limitativa, de que Hegel não se livra de todos os elementos da lógica do pensado. Isto se mostra já no fato de que Hegel opera com um número limitado de categorias, enquanto que a concepção atualista conhece somente uma única categoria infinita: a do pensamento em sua atualidade. Ademais, a dedução hegeliana do vir-a-ser wntém traços da dialética estática, enquanto a dedução do vir-a-ser a partir do "ser" e do "nãoser" leva a uma neutralização do vir-a-ser no sido. Com isso já se impõe ao princípio da lógica hegeliana um momento antidialético. Quando Hegel declara que a dedução da unidade de "ser" e "nada" é analítica, submete esse pensamento ao princípio de identidade pressuposto em todos os juízos analíticos, enquanto que, na síntese a priori, como fundamento da dialética do pensar, não se relaciona o idêntico entre si, mas o diverso. Na 2nálise explica-se sempre somente algo que se sabe implicitamente, isto é, observam-se relações entre conceitos objetivos (tal ~Jmo supostos no platonismo), algo, portanto, que se encontra além do ato atual do pensar (R 18). Com isto, Hegel não encontra o ponto decisivo, segundo opina Gentile, no qual se tivesse podido superar o caráter estático da dialética do ser. Gentíle reconhece que Hegel havia tratado de compreender a dialética como lei arquétipa do pensamento em sua atualidade. Constata, porém, ao mesmo tempo, um fracasso deste intento, pois Hegel teria tratado, em sua opinião, de levar a cabo a dialética mediante c onceitos abstratos e imóveis, anulando com isso, sem querer, o movimento dialético (T 54-55). O movimento é estranho às idéias no sentido hegeliano, da mesma forma como já constatamos que as idéias platônicas não contêm nenhum princípio de movimento ou de transfor-
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mação (T 46). Por conseguinte, a dialética de Gentile não deveria ser uma dialética das idéias, uma vez que, como tal, deveria ser sempre uma dialétio:t do pensado. Resulta, portanto, daí uma atitude que foi chamada, de modo paradoxalmente acertado, de "idealismo sem idéias". 5 A dependência de Hegel com respeito à dialética do passado, se revela claramente, segundo Gentile, em sua concepção do Jogos como conjunto das formas independentes da consciência, do qual se deduz, passando pela natureza, o Espírito. Este caminho só é viável se a dialética, em geral,é idêntica à dialética da natureza, e como esta última é univocamente uma dialética do pensado - além disso, .sendo para Gentile uma empresa absurda- resulta que a dialética de Hegel, em geral, tem o caráter de uma dialettica del pensiero pensato por causa da igualdade da estrutura dialética de todas as partes do sistema que deve ser pressuposto. Em oposição a Hegel e aos antigos hegelianos, a dialética, tal como a entende Gentile, não tem a ver com o movimento ou transformação de um ser fora da atualidade do pensar, uma vez que o idealismo atualista reconhece um ser que transcende a atudidade do pensamento como pensar. Segundo a concepção atualista, o pensado está realmente no pensamento que o pensa; em troca, o pensado, considerado abstratamente, não possui verdade (R 12). O pensar mesmo é dialético; é uno e múltiplo, enquanto se supera a multiplicidade do pensado na unidade de pensar. O próprio sujeito pensante é vir-a-ser, é processo e portanto, não é ser. Em sentido estrito, o sujeito não é, "ser" e "espírito pensante" são termos contraditórios (T 24). Por outro lado, o espírito não pode afirmar seu não-ser sem que seja; portanto, há que defini-lo como unidade de ser e não-ser e, ao mesmo tempo, nem como ser nem como não ser (LI, 96 ss.). Gentile recorre aqui, ao que parece, a Fichte, que havia constatado também que "não há ser em absoluto fora de uma consciência necessária". 6 Gentile se apóia na idéia da não-objetividade por princípio do sujeito. 7 Eu posso fazer-me objeto, para mim, na reflexão; o que experimento, porém, como objetivo,não é o sujeito pura e simplesmente, uma vez que o sujeito do ato reflexivo não é objetivado.
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Se procuro objetivá-lo em um novo ato de reflexão, então este tem novamente um sUjeito que, como condiçãu da objetivação mesma, não pode ser objeto. Gentile estava vinculado a Fichte, pelo menos tanto como .: Hegel e acreditava ter encontrado a solução para o problema levantado na Teoria da Ciência (T 244). F ichte mencionara, como momentos dé! experiência, a autoposição do eu e a posição do não-eu pelo eu 3 • De forma semelhante, Gentile definiu o eu como processo construtivo, no qual o sujeito é criado pelo fato de se produzir pondo-se como objeto (T 22). Nisto se nega não somente a suposição de uma realidade objetiva independente da consciência, ' como também a suposição de um pensar como realidade existente para si. O pensar é sempre pensar de objetos, e os objetos sempre são objetos no pensar e para o pensar, indusive enquanto se apresentam como externos ao pensamento: "Esta exterioridade sempre está dentro" (T 32) . A fundamentação se estabelece em forma de uma argumentação muito divulgada no idealismo: uma realidade independente da consciência (no sentido de uma coisa em si) é impensável, pois, pensada, ela se relaciona com a consciência e depende desta (T 88) . Uma coisa positiva, real, que devesse ser para o sujeito sem ser posta por ele é, portanto, segundo Gentile, uma contradição ( T 8 7) . A realidade objetiva, posta pelo sujeito, deve ser pensada necessariamente como multiplicidade, uma vez que um objeto único não seria cognoscível. Conhecer consiste, segundo Gentile, em relacionar algo com outra coisa; por isso pressupõe a diferença de várias coisas, segundo o princípio Omnis determinatio est negatio. Todavia, a pura multiplicidade é não apenas incognoscível, mas absolutamente impensável ( T 11 O). Se a pluralidade e a Lnidade são pensadas abstratamente - isto é, pluralidade sem a unidade e a unidade sem pluralidade - , então a relação de ambas ~e torna in
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Com isso, a dialética, no sentido de Gentíle, já ap:::rece em seus contornos: a) primeiramente, "dialétie1" significa a relação de sujeito e objeto, nem "sujeito não pode ser imaginado sem a relação com um "objeto" e objeto, sem a relação com um sujeito (T 89). Gentile se exprime ocasionalmente como se este condicionamento recíproco se explicasse pela correlação dos termos "sujeito" e "objeto"; indubitavelmente, porém, pensa não somente em uma relação de linguagem, mas também atual. Uma vez que estava convencido, no sentido das reflexões cartesianas que levam ao ''cogito", de que a relação sujeitoobjeto está fundada no sujeito, resultou como estrutura fundamental desta relação a conhecida relação "dialética". O eu se põe a si mesmo pondo o objeto, e põe o objeto pondo-se a si mesmo. Neste sentido, Gentile faz a pergunta retórica: "Penso realmente a mim mesmo, quando não penso algo diferente de mim mesmo?" (T 107). (Apenas de passagem seja lembrado que Kant não havia pensado de outra forma). Os juízos sobre objetos (por exemplo, "César subjugou a Gália") são portanto elípticos; é preciso completá-los considerando a dependência subjetiva de objeto (portanto, no exemplo escolhido: "Penso que César subjugou a Gália") Além disso, a relação entre unidade e pluralidade é dialética. Assim como o objeto não pode ser, nem mesmo pensado, sem o sujeito e vice-versa, tampouc:J a unidade sem a pluralidade e viceversa. O sujeito não é unidade para si, mas somente pelo fato de que produz a unidade da multiplic'idade posta por ele. Como a pluralidade não é concebível, por sua parte, sem unidade, o eu encontra sua unidade na mediação dialética pela pluralidade objetiva posta por ele. A unidade de espírito exclui somente a plurdidade abstrata; é, porém, em si mesma, multiplicidade em concreto. O conceito dialético do espírito, tal como Gentile o concebe, postula a pluralidade espiritual como traço essencial do conceito de sua unidade. União do múltiplo e multiplicação do um não são dois processos diferentes, mas duas facetas do. mesmo processo. Por isso Gentile acentuava que o espírito não tem um outro diante de si no qual se tornaria estranho, pois isto significaria destruir a unidade do espírito pela posição de outro como pura multiplicidade. O outro não é outro diferente do eu (como eu transcendental). O oonceito do movimento dialético pertence, portanto, ao eu transcendental, do qual se trata sempre quando se fala do pensamento em b)
UtiiVERSIOAOE Ff:Dr_RI>.... DO PARA SIB LIOTECA. CENTRAl
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sua atualidade. O sujeito empírico, porém, não desaparece no eu transcendental: ele está diante do objeto, como momento, na experiência, e não pode ser suprimido. Caso contrário, o idealismo absoluto seria uma espécie de misticismo. c) A dialética do espírito é, finalmente, uma dialética do geral e do partioular. O eu (transcendental) é único e, portanto, concreto; ao mesmo tempo, como pensar, tem a maior universalidade possível, · pois é o pensamento de qualquer objeto ( T 99-100). Parece que estas idéias também podem ser expressas da seguinte maneira: a cónsciência em geral, como forma de cada experiência objetiva, é uma, inclusive, no sentido estrito, única; enquanto forma de cada eXperiência objetiva, é, ao mesmo tempo, geral. A isto Gentile une outra idéia: o que a consciência conhece como verdadeiro, o conhece como universalmente verdadeiro. Por isto, a consciência também é, ao adquirir o eu cons~ ciência de mim mesmo, uma consciência geral, apesar de o eu ( transcendental) ser único. Posto oue um indivíduo se caracteriza pela unidade do universal e do particular, do ideal e do positivo, da forma e do conteúdo, o eu que é a unidade (dialética) dos momentos mencionados se apresenta como o verdadeiro indivíduo. No eu se identificam ambos os momentos, não como se fossem originariamente distintos e se unissem só posteriormente, mas de tal maneira que o idêntico é pensado, no sentido destes momentos, como diferençado. Estritamente falando, segundo Gentile, o geral não existe, só existe o ato de generalização, o vir-a· ser do geral (T 104-105). O eu transcendental só põe o geral como "noema" enquanto é "autonoema" (L li, 85 ss.). A síntese das determinações de unidade e pluralidade, do geral e do particular, é possível porque o objeto não é nada que dependa do sujeito, nada antecipado, mas que está já no próprio sujeito: "Tudo em nós; quer dizer, tudo nós." (T 122). Para o idealismo atualista não há, portanto, um mundo que existisse para além do ronhecimento e que pudesse ser possuído pelo conhecimento. Antes, porém, tudo o que é, o é unicamente pelo pensamento. O pensamento é a verdadeira cosmogonia (R 6-7). O eu transcendental se divide e cria a relação dos eus ("se"), um que é o eu (empírico) e outro que é o objeto, e cada qual se reflete no outro (T 245; L II, 39-40). O eu (transcendental) é o absoluto, é enquanto se põe, causa de si mesmo, causa sui
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(T 249). Cria-se a si mesmo e, em si, o mundo. É autocriação, assim como é auto-união (auto-síntese) (L H, 79 ss.). Aqui é o lugar para se discutir a relação entre arte, religião e filosofia, à qual Gentile não deu menos atenção do que Croce. Devemos mostrar que Gentile definiu esta relação de outra forma, . aderindo claramente a Hegel, no sentido de uma tríade dialética. A arte expressa, como a filosofia, um mundo; diferentemente . desta, porém, um mundo na forma da subjetividade. Gentile está de acordo com Croce (e De Sanctis), quando este define a arte, essencialmente, como expressão do individual. Todavia a arte é, em seu parecer, impessoal em certo sentido, pois cada obra de arte se eleva, como tal, acima do indivíduo empírico e alcança validez universal. Enquanto a arte é potenciação de consciência de si mesmo, a religião é elevação do objeto, considerado independentemente do sujeito e oposto a ele de maneira abstrata. Nesta oposição ao sujeito, contudo, a realidade objetiva não é cognoscível; o mistério é a essência da religião. A arte e a religião são posições do espírito diante da realidade, dentro da evolução dialética do espírito; a filosofia é sua síntese, enquanto ensina a conhecer a realidade obJetiva c::>mo espírito. Dado que a posição do sujeito e a posição do objeto são somente momentos, abstratamente diferenciáveis, de sua síntese originária, não podem ser fixadas. A arte, a religião, a filosofia não são formas independentes do espírito, tal como pensava Croce, mas momentos da atividade espiritual única. A realidr,de é o sujeito que se concebe concebendo tudo. O conceito verdadeiro é o conceito de si mesmo (autoconceito, conceptus sui). A pluralidade dos conceitos é apenas aparente; no fundo, ·há somente um conceito: o conceito do sujeito como centro de todas as coisas. A realidade é idéia, e a idéia coincide com o ato que a conhece. A filosofia dialética de Gentile deixa transparecer, ainda bem claramente, o ponto de partida teórico-experimental. Para a explicação da experiência em geral, ou seja, da relacão entre o cognoscente e o conhecido, que semore apresenta uma unidade de determinações múltiplas. Gentile supôs que o suieito transcendental produz não
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somente a forma da realidade da experiência (o momento da unidade ou o momento da relação em geral), mas também a multiplicidade objetiva. O objeto é, para Gentile, o limite (termo) da atividade de sujeito. A pluralidade pertence ao objeto, porém, somente enquanto é objeto de um eu, dentro da unidade da consciência. Por isso, a unidade do eu não subsiste ao lado da multiplicidade, mas é superior a ela. Gentile trata de tornar inteligível a relação entre o sujeito empírico e o obieto, concebendo-a como produto de um eu transcendental. Desta maneira, é-lhe possível interpretar o conhecimento do . sujeito pelo sujeito empírico como conscientização do eu absoluto no eu empírico, na medida em que tanto o sujeito empírico e o objeto, como a relação entre os dois devem ser produzidos pelo sujeito transcendental. O eu absoluto se conhece, segundo isto, no objeto enquanto se faz consciente dele como eu empíriao. No sentido dos princípios interpretativos aplicados no presente trabalho, é preciso constatar que Gentile, por um lado, buscou com razão a origem da dialética na teoria da experiência, mas que, por outro lado, incorreu no erro já referido anteriormente: o da sub-repção transcendental, isto é, interpretando erroneamente os pressupostos que considerou necessários !Jara a explicação da possibilidade da experiência como declarações sobre algo real. Para poder conceber como possível a experiência, acreditava dever entender o sujeito empírico e o objeto como resultado da "dualização" do eu transcendental, · posto que, segundo sua opinião, seriam inadequadas todas as demais suposições para alcançar o propósito das explicações. Sobretudo, a suposição da coisa em si como algo dado independentemente do sujeito (positivo estrasoggettivo) torna insolúvel o problema com o qual se defronta a teoria da experiência. De forma semelhante, o problema se torna insolúvel devido à contraposição exclusiva de unidade e pluralidade, do geral e do particular. Por isso, Gentile acredita que deve supor uma relação "dialética" entre sujeito e objeto, unidade e pluralidade, geral e particular. Isto, porém, o levou a supor uma unidade global e absoluta como condição da possibilidade da relação dialética mencionada. Hipostasiou esta unidade, suposta para a explicação da possibilidade da experiência em geral, definindo-a cnmo "ato absoluto" ou como "espírito absoluto". A seguir, surgiu para ele a questão se não poderíamos conhecer de modo direto o "pensamento pensante", posto que, ao que parece, se deu conta, ainda que talvez somente
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de modo impreciso, que, de outra forma, não poderia deixar de admitir o caráter hipotético das proposições de seu sistema. As declarações nas quais Gentile salientou que o espírito poderia ser apreendido por intuição, desde que consiga livrar-se das abstrações do pensamento vulgar e científico ( cf. T 29), podem ser consideradas como tentativas de relacionar os princípios do sistema, que se apresentam ao observador crítico como hipóteses, com a base de uma experiência imediata. Gentile viu que as proposições da filosofia transcendental, como metateoria, não estão no mesmo nível que as proposições sobre ob~e tos; por isto dizia ocasionalmente: "Encontramo-nos em um mundo novo, que não é matéria de experiência, posto que não é pensado, mas fundamento e princípio do que se pensa" ( T 45) . Contudo, em vez de conceber "princípio" romo "princípio de explicação", Centile entendeu este "novo mundo" da consideração da fislofia transcendental como mundo do espírito absoluto, que é uma espécie de realidade empírica, tal como se express~. com particular clareza, na observação feita acima sobre o pensar (do eu transcendental) C'.Jmo a verdadeira cosmogonia. Outra vez surge em Gentile a relação, essencial para a filosofia dialética, da dialética com a teoria da experiência; ao mesmo tempo, porém, se destaca a substancialização, característica de relações teórico-experimentais, que se pode OJmprovar também em representantes anteriores da filosofia dialética, como condição decisiva da interpretação dialética de relações analítico-experimentais. 3.
Francis Herbert Bradley. A dialética como reintegração
Mais ou menos ao mesmo tempo que na Itália, começou também na Inglaterra a recepção de Hegel com o livro de J ames Hutchison Sterling The secret of Hegel (1865). O neo-idealismo inglês, em fins do século XIX e princípios do século XX, favorecido principalmente por Thomas Hill Green William Wallace (o tradutor de Hegel) e outros,não evitou a discussão da dialética (hegeliana) da mesma forma que o italiano. Neste contexto é preciso mencionar os estudos sobre a dialética hegeliana de J . Me Taggart sobretudo o intento de F. H . Bradley em livrar a OJncepção da dialética dos erros (supostos e reais) que possui na versão hegeliana. Bradley ( 1846-:1924) pro-
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jetou, de modo similar a Bernard Bosanquet, a quem está unido por um parentesco espiritual, uma lógica que era, da mesma forma que a de Hegel, ao mesmo tempo uma metafísica (ou uma metafísica de conhecimento). D Apresentamos a dialética de Bradley, a seguir, como exemplo representativo do neo--hegelianismo inglês. Embora Bradley se tenha negado expreais verbis a ser designado como sucessor de um determinado filósofo, sobretudo de Hegel, negando até a existência de um hegelianismo inglês (L X), sua filosofia se acha inequivocamente sob a influência de Hegel. Bradlev está obviamente de acordo com Hegel a respeito dos elementos essenciais da filosofia dialética, sobretudo quanto aos pressupostos de que a verdade é a totalidade, que todo o finito se define por relações dentro do absoluto ( d<.: realidade absoluta) que portanto omnis determinatio est nega tio, que o princípio de contradição (excluída) tem importância limitada somente no âmbito da lógica formal e que o absoluto é o divino. Pelo contrário, as diferenças, sobretudo também em relação ao método dialético, se referem somente a pontos de importância secundária.n A idéia fundamental da metafísica de Bradley pode ser expressa brevemente com as seguintes proposições: "Há somente uma realidade e seu ser consiste na experiência. Nesta única totalidade se reúnem todos os fenômenos e, em sua união, perdem sua natureza diferenciadora em graus. A essência da realidade se constitui em sua unidade e na correspondência de ser e conteúdo. Por outro lado, o fenômeno se constitui na discrepância entre estes dois aspectos" (A. R. 455-456). O mundo que conhecemos pela observação e que tratamos de explicar conceitualmente se apresenta como contraditório; dado que a realidade mesma não pode ser inconsistente, o mundo deve ser considerado como fenômeno (AR. 11) . Todos os intentos de se chegar a uma representação consistente da realidade da experiência, mediante os passes de conceitos "qualidades primárias e secundárias", "coisa e propriedade", "causa e efeito", "coisa (não cognoscível) em si e fenômeno" estão condenados ao fracasso, segundo Bradley. O mesmo ocorre com o intento de superar as contradições contidas na compreensão comum de tempo e espaço. Neste contexto,Bradley recorreu à dialética da unidade e multiplicidade ou de coisa e propriedade, que havia sido tratada na lógica de Hegel. Também recorreu a argumentos que não podem negar sua afinidade com as antinomias matemáticas de Kant. A _conclusão de que um campo caracterizado por sua
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inconsistência interior deveria ser fenomênico, recorda a idéia central de Herbart, se bem que Bradley tenha refutado uma solução monadológica tal como Herbart a tinha presente. Existe a tendência a ver, em Bradley, uma filosofia eclética. De fato, parece que ele mesmo se considerou eclético até certo ponto, ao dizer que seu único feito fora apresentar coisas já conhe~ldas de maneira que ·levasse a um~ nova discussão. A tese de Bradley sobre a "contradição" do fenômeno pode ser melhor apresentada por meio da dialética da relação e da qualidade: a ordenação de fatos mediante a distinção de conteúdos qualitativos e su2s relacões pode ser útil praticamente, imprescindível até. Não obstante, sepundo Bradley, é inconcebível, uma vez que está carregada de contradições insuperáveis. No presente caso a contradição consiste no seguinte: Os fenômenos se explicam mediante relações que devem existir entre qualidades. As relações, porém, pressupõem sempre qualidades, dado que uma relação é impossível sem termos definidos relacionalmente; em troca, as qualidades pressupõem relações, uma vez que um conteúdo sem relações é igualmente impossível (A.R. 25-26). Se o momento da inconsistência, pelo qual seria caracterizado o âmbito de fenômeno, é "dialétiel;:," então, a dialética parece restringir· se a este âmbito e relacionar-se com o asoecto de sua "falsidade". A passagem do fenômeno para a "verdadeira" realidade se efetua de um modo não-dialético: baseia-se no princípio (que funciona como critério absoluto da "verdade", ou ~ej a, da realidade), de que nada que seja contraditório possa ser real, em ~entido próprio (A. R. 136). A verdadeira realidade deve ser pensada, segundo Bradley, como única ( A.R. 519-520). Não deve ser imaginada como unidade de uma pluralidade de seres mutuamente dependentes, posto que com isso surgiria, em seguida, a contradição contida na relac;ão de unidade e pluralidade (A.R. 114). Como o absoluto, porém, deve ser ao menos tão rico como o mundo do fenômeno, é preciw reconhecer nele o momento da diferença. O absoluto é harmonia de diferenças, individual e essencialmente "experiência", isto é, sentir, pensar, querer, em outros termos: espírito (A.R. 144). A unidade, segundo a qual definimos o absoluto, deve ser representada como semelhante à unidade, segundo a qual sentimos nosso
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estado psíquico respectivo, isto é, como unidade que se situa acima ou abaixo do pensamento relaciona! (A.R. 520-521 ). Bradley considerou como provisória a diferenciação entre realidade verdadeira e fenômeno. Acentuou com ênfase que a realidade absoluta, apesar de não consistir nos fatos perceptíveis sensorialmente, não pode ser concebida como algo além deles (por assim dizer, como a coisa em si kantiana). No absoluto se supera a diferenciação entre realidade e fenômeno. O absoluto é realidade que se manifesta . (fenomenicamente). O fenômeno é o real enquanto aparece. No contexto desta concepção metafísica é preciso delinear a atitude' de Bradley sobre a dialética. O pensamento,em geral,consiste, segundo Bradley, na separação dos aspectos da existência e da essência, que estão unidos na realidade, ou seja, da existência e do conceito. O conceber se limita ao momento do conteúdo, não é capaz de efetuar, por análise de conteúdos conceituais, a transição até o momento da existência. Todavia, quando o pensamento separa o conceito e a existência, procura indiretamente superar sua separação e reconstruir a totalidade da realidade (A.R. 360; cf. 165). O pensamento que tende deste modo à sua própria superação é essencialmente dialético. Aspirando à "verdade", isto é, tentando alcançar uma realidade na qual encontra sossego, tem que transcender o dado em cada momento e estender indefinidamente seu âmbito objetivo. "Verdade" designa, nesta ordem de idéias, um caráter da realidade que está presente no conhecimento, porém, como momento ideal, isto é, como momento distante da existência. A meta da aspiração à verdade é conceber a realidade absoluta como indivíduo omnicompreensivo, independente de tudo e não mediado por nada. Ao alcançar esta meta, o pensamento deixaria de ser o que é, a saber, intelecção de relações. Neste sentido, Bradley pode declarar que o pensamento aspira a sua anulação. Pensar é essencialmente julgar, ou seja, distinção de uma totalidade em seu earáter relaciona!. A dirmação que se expressa por ele é necessariamente incompleta, necessitando complementos. Isto se nota no fato de que, estritamente fálando, todos os juízos deveriam expressr:r-se em proposições condicionais. Não se pode, porém, conhecer adequadamente o elemento que haveria de completar cada juízo para que .fosse plenamente verdadeiro. Por. isto, é preciso chamar todos os juízos não somente _de condicionais, tendo em conta seu condiciona-
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mento por um complemento conhecido no máximo parcialmente, mas também como fdsos em certo sentido. Verdade e erro não formam uma oposição incondicional: "Não haverá verdade que seia completamente verdadeira, assim como não haverá erro que seja completamente falso" (A.R. 362). Naturalmente isto não significa que careça de sentido designar certos juízos como falsos ou verd::ideiros na significação tradicional destes termos e sob determinados pressupostos. A tese da diferença meramente gradual da verdade e da falsidade se baseia na aplicação de um critério &bsoluto, que não tem validez em juízos comuns. A afirmação da relatividade do verdadeiro e do falso se baseia na suposição de que os juízos representam a realidade. Fazem-no, porém, sempre em maior ou menor medida e, portanto, possuem sempre somente um determinado grau de validez. Nunca podem expressar o próprio absoluto. A tese da relatividade do verdadeiro e do falso pertence à discutida teoria da coerência da verdade, que não se pode levar em conta apoiando-se na convenção da verdade de Tarski. Para Bradley, "verdade" não significa, de nenhuma maneira, aquela "correspondência com os fatos" indicada pela afirmação de que a frase "p" é verdadeira exatamente qu~ndo acontece (que, por exemplo, "chove" é verdadeiro quando chove). "Verdadeiro" é, segundo Bradley, uma determinação que só corresponde a juízos enquanto estes pertencem a um sistema de juízos que servem para a ordenação de experiências. Podendo-se alcançar uma melhor ordenação da experiência por modificação do sistema de .iuízos, os que forem afetados pelas modificações devem ser considerados como falsos, e os que os substituem, como verdadeiros, sem que estes últimos se caracterizem, por isso, como verdadeiros ' de uma forma definitiva. Empregando "verdade" somente no sentido da convenção da verdade de Tarski, a teoria da coerência de Bradley poderia ser definida, mesmo assim, como teoria do conhecimento.13 Embora convicto de que não poderia haver conhecimento independente da experiência sensorial ou da sensação e de que o material do conhecimento nunca pode ser antecipado, mas sim aceito como algo irracional que é dado, Bradley recusou uma teoria do conhecimento que partisse de dados sensoriais como algo dado independentemente e que admitisse, sobre eles, como base empírica, uma superestrutura conceitual (E 202 ss.).
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As sensações, contudo, não produzem fatos. Já ao se designar algo como existente "aqui" ou "agora", como "isto" ou "meu", se ultrapassa o âmbito da experiência, no qual não há falsidade nem tampouco verdade, e se define o particular como momento dentro de um sistema. Assim como só há dados sensoriais independentes como abstratos, um JUízo de percepção só pode ter um caráter de probabilidade. Não há juízos de percepção infalíveis por princípio, se se nega que haja "fatos absolutos". Isto não significa, segundo Bradley, que algo existente para mim, sob determinadas condições, possa .revelar-se como inexistente em outro contexto sistemático. Brad1ey está convencido de que há uma realidade absoluta, pelo que se deve postular a possibilidade de um conhecimento absoluto. Este conhecimento absoluto não pode ser conhecimento de fatos. Diante da realidade absoluta, em sua plenitude (cuja concepção em pormenor será sempre inadequada), todos os fatos se revelam como deficientes, da mesma forma que todos os juízos são, diante da verdade absoluta, carentes de complementação. Cada conhecimento de objetos finitos está acompanhado de um sentimento indefinido em direção a algo além, que se reflete na exigência de complementação de cada verdade limitada (E 225). "Parece que todos tocamos, de um modo ou de outro, algo, e vivemos em comunhão com algo que está além do mundo visível. . . E, em certos homens, o esforço intele~tual para compreender o universo é uma caminho excelente paru ter experiência da divindade" ( A.R. 5-6). Bradley não queria insistir em que o processo de complementação de cada verdade limitada.- tendo em conta o comolemento indeterminado da mesma, se designasse como "dialética". Em todo o caso é preciso manter, segundo ele, que, com o objeto, está presente algo que transcende o ob_ieto (E 225) . O decisivo se encontra na suposição de que o es9írito intelectivo possui uma idéia da totalidade, da verdadeira realidade, que é essencialmente espírito. É neste pres· suposto supremo de toda dialética idealista que se deve ver o motivo decisivo também da dialética de Bradley, como se pode entender na seguinte observação: "Diante do espírito se encontra um conceito particular; o espírito inteiro que, porém, não aparece, está comprometido no processo, ~labora o dado e produz o resultado. A oposição entre o real, no caráter fragmentário em que o espírito o possui e a verdadeira reali-
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dade que se sente no espírito, é a causa do movimento daquele desassossego que provoca o processo dialético" (L 409). Bradley !Jrocurou mostrar que a dialética representa um caminho de conhecimento próprio, diferente das demais operações do pensamento. Como todo conhecimento, o movimento dialético do pensar também começa com determinados dados. Diferentemente, porém, de outros caminhos de conhecimento, não necessita nem de !_)remissas suplementares empíricas, nem consiste numa mera análise dos conceitos iniciais. Baseia-se numa func:~ão espiritual singular que Bradley caracterizou como capacidade de ampliação de dados por síntese ideal. Segundo ele, a dialética consiste em um processo de reintegração que, diferentemente do conhecimento empírico, não deve ser concebido (pelo menos, não apenas) como reprodução de percepções passadas, mas como baseado numa certeza singular, a saber, uma certeza do todo sentida abaixo do nível das determinações relacionais. 14 O processo da reintegração dialética pode ser interpretado de diversas maneiras (L 409-411): a) Pode ser concebido como progresso mediante a negação, pass::mdo por contraditório o conceito que forma o ponto de partida, de modo que cada afirmação que se refere a ele é negação de uma afirmação oposta e ao mesmo tem!_)o depende dela; portanto, implica seu próprio oposto (contrário). Nisto se expressa a idéia de que a totalidade implicitnmente presente no princípio obriga à superação de cada afirmação unilateral. Bradley atribuiu este conceito de dialética a Hegel. b) Contudo, também se pode pensar da seguinte maneira: o ponto de partida do proces~o dialético é um d<::do isolado que se considera como incompleto e que, como tal, se nega. Nesta negação, se faz valer o elemento que completa o fato inicial isolado. Segundo esta concepção, a negação não depende da pretensa contradição de cadn posição finita, mas é expressão do sentimento de incompletude de cada fato finito. Assim, não se podem confrontar posição e contraposição como lado positivo e negativo, como no ponto a) , porque tanto a verdade inicial, carente de com!Jlemento, como seu complemento possuem uma positividade relativa. Em cada verdade, por incompletn que seja, está contido um saber do completo, que dá a
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medida de sua imperfeição e com a qual se indica o objetivo do movimento dialético (L 489). Se este objetivo fosse alcançável, isto é, se a totalidade da realidade fosse pensável como um sistema de diferenças que estivessem contidas imanentemente em cada uma de suas particularidades, então seria possível representar (como postulado por Hegel) a origem da totalidade como automovimento de qualquer de seus elementos. Embora Bradley tenha duvidado que se pudesse alcançar este objetivo, não o considerou, todr:via, como um sonho enganoso por completo, mas como uma visão da perfeição absoluta, que é verdadeira apesar de sua imnossibilidade. Como Hegel e outros filósofos dialéticos, também Bradley relativizou os princípios fundamentais da lógica. Segundo ele, o princípio de identidade não pode ser formulado r~cionalmente como "A é A", dado que ninguém poderá querer ~eriamente exprimir uma tautologia. Só pode ter a significac:-ão de que uma proposição é originariamente verdadeira se, afirmada sob de~erminadas circunstâncias verdadeiras, não pode tornar-se falsa por nenhuma mudança das circunstâncias, O princípio significa portanto: "O que é verdadeiro em um contexto, também é verd~deiro em outro contexto" (L 143). Se todos os juízos devem ser formulados como proposições condicionais, a verdade do princípio é evidente. A relação de implicação afirmada na proposição condicional é independente das transformações reais. Uma vez que o princípio de identidade não exprime nada sobre a relação de juízos sobre realidade e posto que a dialética tem justamente a ver com esta relação, ele pode ser mantido sem detrimento da aplicabilidade da dialética. De modo semelh~nte argumentou Bradley com respeito ao problema da relação do princípio de contradição face à dialética. Posto que, segundo Bradley, o princípio de contradição (excluída) significa apenas que elementos opostos são inconciliáveis se estão realmente separados e fixados nesta separação, sua dirmação é tão pouco incisiva que se faz c:Jmpletamente neutra, com respeito às exigências da dialética (L 149-151). De outro lado, se é encontrado algo que existe como unidade de determinações contrárias, - como ocorre, segundo Brr·dley, no contínuo - então não se aplica o princípio de contradição, que só se refere a contrários realmente distintos. Segundo
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Bradley, o erro dos filómfos, que afirmam a incompatibilidade da dialética com o princípio de contradição, consiste em que, primeiro, apresentam certos elementos como contrários e incompatíveis, negando o princípio de contradição excluída logo que aqueles elementos se encontrem realmente unidos. A questão não é, se determinações como b e não b são ou não incompatíveis como determinações contraditórias, mas se estas determinações, enquanto juntas em um A, existem como determinações contraditórias em sentido pleno. Bradley negou esta segunda pergunta e acreditou ver nisto uma possibilidade de afirmar a compatibilidade do princípio de contradição com a dialética: A questão da validez da dialética é, segundo ele, uma questão de fato, que não pode ser contestada recorrendo-se ao princípio de contradição. É decisiva a constatação de que (tal era a convicção de Bradley) muitas coisas existem como unidade de "opostos"; é preciso perguntnr exclusivamente dentro de que limites se podem fazer observações semelhantes. Finalmente é preciso apreciar, de modo semelhante, também, o princípio do terceiro excluído, dado que se interpreta como expressão do pressuposto de que cada elemento da realidade só pode ser ou b ou não b. O princípio do terceiro excluído, interpretado assim, é inconciliável com a tese de Bradley, de que nenhuma verdade é completamente verdadeira e nenhum erro completamente falso. É preciso reduzi-lo, portanto, ao âmbito do pensamento abstrato. O objetivo próprio do conhecimento, contudo, não consiste na formulação de disjunções abstratas, mas no descobrimento da conexão dos elementos da realidade em suas particularidades concretas (L 165-166, nota 12). Cada elemento da realidade se define por relações de negação dentro da totalid~de, de modo que exclui todos os demais elementos desta. Ao mesmo tempo, cada elemento é, em certo sentido, a totalidade: enquanto que actualiter é o finito, idealiter é a totalidade. Por sua posição, transcende a si mesmo, produz a outro e se define com respeito a ele. Cada ser tem, portanto (e neste ponto Bradley concorda com Hegel), seu outro (its discrepant) em si, e é, portanto, em certo sentido, a outro de si mesmo (its own discrepancy) (L 121). Por isto, também para Bradley, é válido o princípio omnis determinatio est negatio, um princípio que deve ser válido como com:eqüência da suposic:-ão da primazia da idéia de totdidade frente
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a cada ser determinado e finito, ou da primazia do sistema de todas as verdades frente a cada juízo particular. Pela ampla correspondência das idéias fundamentais de Bradley sobre a filosofia dialética com a dialética iderJista, sobretudo de Hegel, não se faz necessária uma discussão à parte destas idéias, já tratadas em outro contexto16• Somente quanto à questão se a modificação da dialétic~ proposta por Bradley, através da qual ele se distingue da de Hegel, representa uma melhora, é preciso observar que a diferença,com respeito a Hegel (se é que existe tal diferença, ·de que duvidou finalmente o próprio Bradley diante da interpretação de Hegel por McTaggart), não atinge nada de essencial. Inclusive, com os pressupostos de Bradley, uma determinada posição, se fixada abstratamente e declarada independente diante da realidade absoluta, deveria ser chamada de contraditória e não somente como necessitada de complemento, dado que, neste caso, se afirmaria como independente, o que na realidade é dependente. A proposta de Bradley, de modificar a dialética hegeliana, parece, portanto, tender a ter em conta, desde o início, a dependência de cada ser finito com respeito ao absoluto, ou de cada verdade limitada com respeito à verdade absoluta e a prescindir da ficção de sua independência. Parece que sua proposta está favorecida pelo fato de que Hegel intro· duziu, com efeito, a independência do finito, do limitado, no sentido de uma suposição fingida, com o que a dialética recebeu, em parte a função de uma correção daquela ficção. A crítica de Bradley equivaleria, com isto, à afirmação de que ela era prescindível. Considerando-se os representantes mais importantes da dialética neo-hegeliana, vê-se que nenhum conseguiu desenvolver uma concepção de dialética independente da de Hegel. Portanto, não é de se admirar que nenhum deles tenha formado escola ou marcado époq:1. A filosofia idealista da primeira metade do século XX pode prescindir, portanto, em seus esforços para uma reabilitação de Hegel, do trabalho dos neo-hegelianos dos finais do século XIX e princípios do século XX, para começar com o próprio Hegel. Por certo, o hegelianismo renovado é muito mais reservado, quanto ao método dialético, do que Croce, Gentile, Bradley e seus contemporâneos. A impres· são que deixou o fracasso de seus intentos e de intentos parecidos, como o de J. Cohn ou Liebert17, é possivelmente um dos motivos desta reserva. ...,.
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324 Notas - Capítulo 11
1 Cf. E. Cione: Benedetto Croce (Milão; 2ll- edição, 1953). 2
A seguir será citado de acordo com a primeira edição em Laterza (Bari, 1907).
3
E. P. Lamanna e V. Mathieu: Storia della filosofia italiana, VII/1 (Flo. rença 1971), p. 333.
4
La riforma del!a dialettica hegeliana (1913) (a partir de agora "R"). Opere, vol. XkVII (Florença, 1954) - Teoria generale del/o spirito come alto puro (1916) (a seguir: "T") . Opere, voi. III (Florença 1944). Sistema di logica come teoria del conoscere, I-II (1917; Edição em 2 volumes 192223) (A seguir: "L I" e "L li"). Opere, vol. V e VI (Florença 1955 e
1959). Todas as traduções feitas pelo autor. 5
E. P. Lamanna e V. Matieu, op. cit., p. 336.
6 J. G. Fichte: System der Sittlichkeit, werke (ed. L. H. Ficb.te) I, 17. 7
Com respeito às dificuldades deste pensamento cf. C. Vigna: "La dialettica gentiliana". Em: Giornale critico della filosofia italiana, 3:~ série, vol. XVIII ( 1964), págs. 362-392.
8
Semelhante em L li, 139: "o pensamento pensante, com o que temos identificado a categoria como ato categorizante do pensamento em sua experiência, se distingue, pensando-se a si mesmo, como eu = não-eu. O não eu é (em sua unidade mortal com o seu) cada idéia".
9
Semelhante já em Fichte, Werke /, 526.
1O A seguir são considerados: The Principies of Logic. London, 2~ ed., 1922, (abreviado "L"); Appearance and Reality. London, 2ll- ed., 1847, 7~ impr. 1920 (abreviado "AR"); Essays on Truth and Reality. Oxford 1914 (abreviado "E").
~
11
Com respeito à situação filosófica na Inglaterra em fins do século 19 cóm relação a Bradley cf. M. T. Antonelli: La Metafísica di F. H. Bradley. Milão 1953, págs. 7 ss.
12
Cf. S. K. Saxena: Studies in the Metaphysics of Bradley (Londres e Nova Iorque 1967, págs. 112 ss.).
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13
De acordo com B. Russel: Human Knawledge (Londres 1961, p. 173), a teoria da coerência é insustentável como teoria da verdade. Pode ser defendida, porém, comô teoria do conhecimento cf. N. Rescher, The Coherence Theory o f Truth ( Oxford 1973), onde a coerência é considerada como critério, não porém como nota definitória da verdade.
14
Cf. R. D. Mack: The Appeal to Immediate Experience. Freeport 1968, pp. 9-26.
15
Sobre o problema da contradição cf. R . Wollheim : F. H. Braqley. Harmondswortr 1959 (Penguin Book A 332), págs. 143 ss.
• 16
A crítica feita à dialética de Bradley (C. B. Campell, G. E . Moore, B. Russell, C. R. G. Moore) é tratada detalhadamente por H. G . Schüring: Studíe zur Philosophie von F. H. Bradley (Maisenheim 1963, Monogr. z. phios. Forchung, 30).
17
J. Cohn: Theorie der Dialektik. Leipzig 1923. A. Liebert: Geist und Welt der Dialektik. Breslau 1929. Traços dialéticos no neokantianismo e em tendências afins são abordados por S. Marck: Die Dialektik in der Philosophie der Gegenwart. Tübingen 1929 e 1931. Traços dialéticos na filo sofia francesa recente discute G . Kopper. " Die Dialektik im franzosischen Denken der Gegenwart". Em: Zeitschrift für philosophische Forschung, n9 11 (1957) págs. 80-91.
CAPíTULO III
ELEMENTOS PARA A RECONSTRUÇÃO DA DIALÉTICA MARXISTA Como em alguns dos capítulos anteriores, também aqui se pretende proceder paradigmaticamente, isto é, a exposição se limitará a alguns representantes de destaque da corrente dialética focalizada cqui. A seleção, porém, se revela particularmente difícil quando se trata do presente no sentido largo da palavra e qm:mdo os autores em questão são, em parte, contemporâneos. Se por conseguinte, neste capítulo, escolhemos G. Lukács e J.-P. Sartre como representantes de uma tendência da filosofia dialética que se caracteriza pelo esforço de atur.:lizar a dialética marxista, isto se faz com clara consciência da subjetividade de tal seleção. Não queremos justificá-la aqui de nenhum modo, apelando para o fato de que Lukács e Sartre tenham desper- . tado mais do que outros o interesse de um grande público. Para atenuar um pouco a crítica de subjetivismo, queremos primeiro tratar de modo panorâmico alguns intentos, em nosso século, de uma dialética que segue Marx. Para evitar mal-entendidos, queremos salientar, desde o início, que o objetivo deste capítulo não é descrever filosofias designadas como dialéticas, ou mesmo "dialógicas", em um sentido muito amplo; também não teremos em conta os elementos dialéticos, por exemplo, da filosofia hermenêutica. 1.
Dialética marxista não-ortodoxa .
a)
Max Adler. / Max Adler (1873-1937) fez valer com ênfase, depois da desvalorização do método dialético por E. Bernstein e outros, que o marxismo seria im!Jossível sem a dialética. Em uma é~oca caracterizada pela influência preponderante do neo-kantianismo, não somente no âmbito da cultura demã, como também em toda a cultura do ocidente euro-
.1.
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peu, a filosofia transcendental kantiana foi considerada por ele e por outros teóricos do marxismo como um desafio, que deu lugar ao fato de que ~eus esforços para uma renovação da dialética me:rxista se transformassem simultaneamente em uma polêmiGa com Kant. Há uma idéia característica de Adler que, ao mesmo tempo, permite entrever a imens(: distância entre o marxismo ocidental e o leninismo; Ad1er a publicou no momento em que a!Jareceu Materialismo e Empiriocriticismo e se refere ao problema da experiência, particularmente da experiência articulada na ciência e, sobretudo, nas ciências socinis: "A experiência não é outra coisa que uma contínua formação e configuração das percepções, segundo conceitos próprios, uma concentração de e~e mentos naturais que se unem somente no espírito, ou uma decomposição de complexos de fenômenos que se separam somente no espírito ao final de contas, isto já deveria ter-se tornado lugar comum". 1 Pode-se entrever a influência do neo-kantianismo no pensamento de Adler, quando este declara que a experiência que fundamenta a ciência ~empre é, ao mesmo tempo, intuição e construção do espírito. Isto já sabia o próprio Marx, segundo ele, que, num ponto decisivo da teoria do conhecimento, no que diz respeito ao probiema do conceito da coisa, assume uma posição não fundamentalmente distinta da criticista. Como a .filosofia transcendental, que ensina que a realidade da coisa se baseia nas regras do pensamento, também Marx teria visto que os fenômenos econômicos deveriam ser ordenados conceitualmente para se poder conhecer suas relações regulares. Também Marx tinha perguntado pelo a priori da teoria social em suas análises econômicas, motivo pelo qual O Capital valeria como "crítica da eco!lomia política" no sentido kantiano de "crítica". Nos termos kantianos, Marx teria, por assim dizer, "discutido metafisicamente" os conceitos fundamentais da teoria econômica. Embora tenha ele parado di, não prosseguindo a discussão transcendental, como constata Adler, _9arece que é inerente à orientação desta interpretação tender a uma complementação filosófico-transcendental da teoria de Marx, tal como o fez mais tarde Sartre. Adler parece querer desculpar a Marx pela falta de uma discussão com as idéias de Kant, quando assinala que Marx teria amadurecido sob a influência do hegelianismo e que por isso não lhe interessariam os problemas da teoria do conhecimento. Disto se seg:ue, segundo ele,
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que os problemas da teoria do conhecimento aparecem em Marx sempre como problemas de metodologia científiCa e se discutem como tais. No contexto desta interpretação de Marx, é c-onseqüente a nega· ção de uma dialética da natureza. Adler contestou que se tivesse que entender o materialismo marxista como ontológico; em sua opinião é exclusivamente um materialismo econômico. Isto também é válido para Engels, cuja idéia dialética fundamental é idêntica segundo Adler, à concepção do mundo da ciência moderna, segundo á qual "o mundo ( ... ) é uma unidade de evolução só de suas próprias forças". 2 Adler interpreta a tese de Engels, segundo a qual "corpo" e "movimento" são conceitos indissociáveis e por isso não se poderia falar de corpos ~em determinações de movimento, de forma tal que o conceito de corpo aparece como -conceito de relação -e não mais como . conceito de substância; a concepção de Engels se apresenta como um exemplo da consideração funcionalista da realidade (em oposição à substancialista) .3 Ainda que os esforços de Ad~er no ~entido de minimizar as diferenças entre marxismo e filosofia transcendental cheguem muito longe em detalhes, contudo não carecem de fundamento na coisa: seu fundamento é o método analítico, comum a Kant e a Marx. Embora tenha sido aplicado de diversos modos, dentro do marxismo e do knntismo, sua tendência anti-dogmática imanente foi suficientemente forte em Marx como para produzir concepções sobre a relação entre sujeito intelectivo e realidade conhecida que poderiam ~ervir como fundamentum in re para a interpretação de Adler. b)
Karl Korsch
Karl Korsch (1886-1961) proJetou, nos anos vinte, o esboço de uma reconstrução da dialética marxista, notável oelo fato de fazer valer os direitos da dialética sujeito-objeto, problema . fundamental da filosofia dialética moderna. O problema primordial para Korsch era se, tal como afirmavam vários marxistas, a filosofia · havia sido superada pelo marxismo e acabada definitivamente. A discussão desta questão levou Korsch ao problema da relac;ão de sujeito intelectivo e objeto conhecido ou de teorias e realidade explicada mediante estas teorir:s. Resolveu a pergunta acusando de dualistas tanto o realismo
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ingênuo como a teoria dogmática do reflexo e tratando de provar que Marx,no fundo,não estava muito longe da concepção crítica ou transcendental quando definiu como dialética a relação entre sujeito inte~ec tivo e realidade conhecida. Korsch se pronunciou contra a concepção de que a realidade daquilo que se chamou simplesmente de "ideologia" (não completamente de acordo com a terminologia de Marx), isto é, o conjunto das idéias econômico-sociais, jurídicas, estéticas, religiosas e filosóficas de uma época, seja somente aparente. no sentido de que não lhe corresponderia nenhuma realidade. Por outro lado, Korsch salienta que, na dialética de Marx, estaria superada a oposição entre consciência e objeto, motivo pelo qual Marx e Engels teriam recusado sempre a concepção metafísico-dualista da relação entre consciência e realidade, independentemente das modificações de suas posições no decorrer da evolução de seu pensamento. Em seu escrito Marxismo e Filosofia ( 1923), Korsch declarou: "Que sem esta coincidência da consciência com a realidade, camcterística de cada dialética, mesmo da marxista materialista, que faz com que também as relações materiais de produção da época capitalista sejam o que são, em união com às formas de consciência t~nto a pré-científica como a científica (burguesa), nas quais refletem e sem as quais não poderiam existir na realidade, uma crítica da economia política nunca teria podido chegar a ser a parte mais importante de uma teoria da revolução sccial". 4 Segundo Korsch, é errôneo acentuar unilateralmente a prax1s, pois a solução do problema fundamental da relação de teoria e práxis, por um lado, e de consciência e realidade, por outro, não se ·encontra, para o Marx dialético (segundo a interpretação de Korsch), na práxis humana irrefletida, mas somente no conceito desta práxis. Não há que buscar o ponto de união da teoria e da práxis em um sujeito absoluto, mas em um sujeito histórico supra··individual, a saber, como ensina ao mesmo tempo G. Lukács -no proletariado. O postulado de "superar" a filosofia não pode ser entendido, portanto, de modo que esta devesse ser tratada como uma fantasmagoria ociosa. A recusa de Marx era dirigida somente àquelas formas de filosofia que não são, ao mesmo tempo, práticas, tal como o é a teoria marxista. O fato de "a" filosofia não ser teoria de um mundo de objetos, independente não pode ser interpretado como defi-
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ciente, posto que nenhuma teoria, portc:nto tampouco a teoria econômica, representa uma realidade independente que existe sem relação com ela. A teoria econômica, assim como a filosofia (e, analogamente os âmbitos da arte e da religião), formam, juntamente com a realidade que explicam, partes de uma totalidade, a saber, da sociedade em sua configuração histórica respectiva (op. cit. págs. 134-135). É notável que Korsch oponha à concepção didética do conhecimento a concepção de que o objeto do conhecimento (científico) seja algo independentemente do sujeito intelectivo. Com efeito, não ~e pode sustentar a concepção positivista; é o que viu claramente, já o neokantismo, seguindo a Kant. Constatam-no também os representante:; da filosofia analítica contemporâne:: (o presente estudo mostra que a filosofia moderna, em grande parte, procedeu já analiticamente): a descrição do "dado" é impossível sem teoria. Em cada descrição que serve como ponto de partida para a formação de uma teoria entram pressupostos teóricos. Ao mesmo tempo, as reflexões de Korsch oferecem bases para a interpretação da dialética no sentido do método de ensaio e erro, que K. R. Popper considerou como o núcleo racional da dialética5 • Enquanto que Korsch considera, em seu estudo Marxismo e Filosofia, a dialética como parte integrante da teoria marxista e tentou atribuir sua recusa por E. Bernstein, por exemplo, à eliminação do aspecto revolucionário daquela teoria, julgou-a cada vez mais criticamente no decorrer da evolução de seu pensamento. A recusa da exigência de desenvolver um sistema de categorias dialéticas atinge primeiramente só um aspecto especial da lógica dialética6 • Sua crítica adquiriu logo caráter fundamental e Korsch não se inibe em inc1uir o próprio Mnrx em sua crítica. Toda perseverança em posições históricas lhe pareceu dogmático, uma vez que a conseqüência do princípio do movimento essencial de todos os fenômenos obriga também a reconhecer que a filosofia marxista está submetida à evolução (op. cit., p. 99). Segundo esta concepção, Korsch pode falar de Marx, em uma carta, como de um "fenômeno tn::nsitório"7 • Esta atitude crítica leva também a um juízo negativo sobre a dialética de Marx. Em 1937, Korsch escreve8 : "A dialética tem certos traços, não só na forma hegeliana mistificada, mas também na transformação racional marxista, que não são completamente conformes à tendência principal, revolucionário-progressiva, antimetafísica e estritamente científico-experimental da investigação de Marx". A desvalorização da dialética em favor do aspecto científico-experimental da teoria dt:
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·Marx, que se expressa aqui, prevalecia também no livro Karl Marx ( 1936) de Korsch. Korsch viu a importância das doutrinas de Marx em sua função regulativa para o pensamento marxista. Revelou-se, com isto; um dos marxistas menos ortodoxos. c)
Herbert Marcuse
Herbert Marcuse vê na dialética, primeiramente, não um método ou uma doutrina do conhecimento, mas uma ontologia. ComQ tal, ela -é caracterizada pela distinção entre essência e fenômeno e pela convicção da historicidade, tanto da realidade em geral, como de certos setores parciais da realidade, sobretudo, como salientou Marcuse, do homem e do mundo trabalhado, cunhado e utilizado pelo homem. Só em segundo lugar é a dialética uma lóp.ica. Como lógica de concreto em sua contradição (de essência e fenômeno) e oposição (de tendências antagônicas), 4l dialética segue o movimento fundamental da realidade. A dialética é, segundo Marcuse, "designação de um modo de ser do próprio ser. Somente porque e na medida em que um modo de ser do ser é dialético é que a investigação orientada para este modo de ser - e somente esta - pode ser didética" .10 Em seu livro O homem unidimensional (1946) 11 , Marcuse interpreta a bidimensionalidade de ser e fenômeno, ao mesmo tempo, no sentido de uma tensão entre ser e dever. A acentuação do componente normativo da dialética é acompanhada de uma nova interpretação da transcendência da realidade verdadeira frente à anarente. A "realidade verdadeira", que Pktão havia concebido como reino das idéias, transcende a realidade empírica, não como um além metafísico, mas como realização de conteúdos de um projeto que se caracteriza1 frente à situação existente, por sua maior racionalidade. A transcendência pensada por Marcuse não é uma transgressão do ~mbito histórico-social. Dentro deste marco de interpretação, :Marcuse pretende dar uma nova significação aos conceitos da negação dialética, da superação e do salto qualitativo. O projeto das relações sociais, por cuja realização se superaria a ordem estabelecida é, em certo sentido, uma negação desta última. Uma vez que uma ordem é superior em racionalidade quando oferece maior possibilidade de satisfação pelo desenvolvimento livre das necessidades e capacidades humanas e contém, ao mesmo
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tempo, os elementos positivos desta ordem, não se trata, nesta negação, de uma supressão sem mais, mas de uma superação no conhecido duplo sentido da palavra. Por outro lado, é preciso supor também que, segundo Marcuse, a tendência para a superação das relações estabelecidas é atuante nelas de tal forma que, em certo ponto, o crescimento quantitativo se torna ruptura qualitativa. Assim, segundo a convicção de Marcuse, a evolução conseqüente das tendências predominantes da sociedade industrial levaria à sua superação. essencial para a concepção da dialética de Marcuse a acentuação do papel do sujeito histórico, inte:ectivo e livre. A dialética histórica da negação de estados concretos pela projeção de uma ordem, caracterizada por um grau mais alto de racionalidade e da evolução, no sentido de transformações quantitativas, contém essencialmente os momentos da consciência e da liberdade, porque devem ser conhecidas as possibilidades de decidir-~e por determinadas possibilidades entre as conhecidas ( cf. 234-235). Isto significa, tal como declara Marcuse em claro paralelo às idéias de Lukács, que não há dialética sem sujeitos capazes de negar as relações estabelecidas com vista a relações mais racionais. Para isto é preciso, segundo Marcuse, a imaginação criadora; isto é, o modo de pensar científico, sem valores e "positivo", não pode fundamentar a dialética. Por outro lado, o pensamento dialético deve parecer não científico do ponto de vista positivista, segundo a concepção de Marcuse. Tendo em conta a acentuação do elemento subjetivo no processo histórico, poder-se-ia falar de um caráter idealista da dialética de Marcuse. Em outro aspecto esta é, todavia, materialista, como declara o próprio Marcuse, dado que não relaciona a evolução histórica como "valores" mas com necessidades. A "tradução" de valores em necessidades ( 245), exigida por Mascuse, deve assegurar o caráter materialista da dialética. Contudo, Marcuse não considera como definitiva a antítese de materialista e idealista, porém, em última análise, como superável. A dialética, para Marcuse, não é lógica nem metodológica, mas um esquema para a interpretação de evoluções sociais. Enquanto predomina ne:e o ponto de vista do materialismo histórico, o pensamento de M:ucuse permanece devedor da tradição materialista; enquanto reconhece a liberdade do sujeito como momento essencial dos processos históricos, Marcuse não só se distancia das concepções do materialismo dialético, como' também entra em evidente oposição com elas. É
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Wolfgang Rod Theodor W. Adorno
(1903-1969)
Adorno empreendeu, em sua Dialética Negativa (1966), o intento de esboçar uma forma de dialética (mais do que um esboço ele não oferece), que superaria tanto r. interpretação materialista da dialética como a idealista. A última, porque não mais parte do pressuposto da identidade do ser e do conceito (no sentido hegeliano da palavra); a primeira, porque não subordina univocamente, como fez aquela, a teoria à práxis, liquidando assim o momento teórico por dogmatização ( 144). 12 A dialética negativa segue a Marx e a Lenin na exigência de adaptar-se às estruturas da realidade. Adorno submete a dialética ao upostulado de ater-se às coisas, no sentido em que outros dialéticos rhaviam falado da exigência de concreção. Pensa que a dialética negativa satisfaz a exigência levantada pela fenomenologia de Husserl porém não cumprida por ela- "às coisas." Adorno, entretanto, não esclareceu suficientemente o modo como isto deveria ser levado a cabo. Assim como Marcuse, tampouco ele entendeu a dialética como método e, por conseguinte, não ofereceu nenhuma característica de um procedimento dialético metodicamente regulado. Nele predomina a demarcação com respeito a outros pontos de vista dialéticos e não dialéticos. A dialética de Adorno também é negativa neste sentido. No centro da discussão crítica se encontra, em Adorno, o pensamento "identificado" - seja do idealismo (hegeliano), seja da ontologia fundamental (heideggeriana) - para o qual o ser coincide com a essência; de outro lado, a dialética negativa deve destacar aquele aspecto do ser que não se dissolve no conceito. Adorno recusa também todas aquelas teorias do ser, segundo as quais as coisas são necessariamente idênticas à essência, porque as coisas são constituídas pelo sujeito. O pensamento deve "se abandonar" r. o objeto (51), segundo Adorno, isto é, aceitar o determinado tanto qualitativa como quantitativamente. O reconhecimento do primado do objeto sobre o sujeito cognoscente assegura à dialética negativa seu ce:ráter materialista ( 191 ) . Adorno não é, contudo, materialista no sentido de negar a espontaneidade da consciência. Em uma matéria não diferençada, homogênea, não h<::veria nenhuma dialética, na qual a realidade se refletiria. Com isso Adorno não pensa, todavia, num reflexo no sen,tido da teoria da representação ou imagem do materialismo dialético ( 203). Recusando a tese da identidade ou através do reconhecimento
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do "não-idêntico", isto é, do aspecto não conceitual do objeto, pensa fazer valer aquela "força do negativo" que, segundo a Fenomeno!ogia do Espírito de Hegel, é característica do pensamento dialético. Contudo, a dialética negativa também tem um ponto de pr:rtida que se caracteriza pelo reconhecimento do estilo do pensamento da identidade; e pode somente procurar superar sucessivamente a "falsidade" de seu ponto de partida. A dialétic" de Adorno se caracteriza também como negativa pelo fato de que sua essência se define sobretudo por delimitação frente a outras posições que, ou não são dialéticas, ·ou não são negativas, Assim, Adorno viu a dialética negativa em oposição à philosophia prima, enquanto esta se caracteriza pela pretensão de poder explicar a realidade partindo de um princípio supremo. Além disso, ele a distinguiu nitidamente de todas aquelas formas dialéticas que permitem a superação, em uma síntese final, de todos os contrários dialéticos. Isto vale t.:mbém para a idéia de um objeto-sujeito. Existe uma dialética entre o objeto, concebido no Eentido da "nãoidentidade", e o sujeito1 que não conclui com uma superação da oposição sujeito-objeto. Como todos os representantes da filosofia dialética, dorno negou a existência de essências constantes. A realidade é essencblmente histórica. Um pensamento estático através de conceitos imutáveis, sob os quais são subsumidos os objetos mutáveis, é inadequado, segundo ele. Conseqüentemente, Adorno sustenta a te~e de que o p !nsamento dialético não está submetido às leis da lógica formal. Ali, onde o objeto não obedece às regras do pensamento, o pensamento dialético tampouco o faz ( 142). Isto ocorre, segundo Adorno, quando o objeto em si é contraditório, entendendo-se por contrndição não somente o antagonismo de tendências opostas, mas também a relação entre o particular e o conceito, enquanto o conceito, como ideal, é "mais" que o particular, o qual, por sua vez, é "mais", na plenitude de suas determinações, que o conceito (152). Adernai~, Adorno designa como "contraditória" a relnção entre a autocompreensão do particular e o papel social que lhe é imposto, como também a discrepância entre o aumento da produtividade e a ameaça da orâem social atrnvés do mesmo princípio (153). A contradição não é, segundo Adorno, uma objeção contra a dialética, mas contra a lógica. A suposição de que a negação da negação é igual à posição não é dialética, uma vez que é resultado do pensamento lógico, m.:temático, A negatividade do particular se mantém sempre, para a dialética negativa.
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A relação entre o método dialético e o analítico é reconhecido também por Adorno, que chama a exip:ência de fundamentar "o posterior" (com isso é preciso entender, evidentemente, os fatos) à base do "anterior" (ao que parece, os princípios como leis) de "norma cartesiana" (142). De acordo com esta norma, u dialética seria contraditória, pois, no método dialético, ~egundo Adorno, não wmente se funda o posterior no anterior, como também o anterior no posterior. Também a dialética negativa opera com os conceitos de essência e fenômeno. A essência não designa, segundo Adorno, um em-si espiritual, mas é o oculto "atrás" dos fenômenos que os converte nq que são ( 167). A essência "não é conceitualmente imediata" ( 167), isto é, as relações entre essência não podem ~er conhecidas isoladamente. Segundo Adorno, a essência também não está meramente posta; proposições sobre a essência não são mems suposições - uma concepção que representa a característica da posição essencialista. Para Adorno, a essência é "lei geral oculta" ( 170), tal como no essencialismo em geral. Adorno não considera como origind a dialética sujeito-objeto. É, segundo ele, o resultado de um "desdobramento" cujo modelo é a
participação do trabalho sob as condições de produção de mercadorias (1 75). Adorno salientou que o sujeito sempre está "mediado" (o que já havia reconhecido Kant, injustamente criticado por Adorno, como mostramos) . Adorno declara, contr~ Kant, que mesmo não sendo possível prescindir do momento do ob~etivo no sujeito, o objeto é pensável sem o sujeito (182). Em sua recusa da idéia de um objeto-sujeito idêntico revela-se a distância que toma Adorno quanto ao postulado totalitário da dialética positiva. Cada exigência de um saber absoluto · é injustificada partindo-se de uma dialética negativa ( 396). Se a dialética negativa se caracteriza essencialmente pelo reconhecimento daquele aspecto da realidade que se subtrai ao conceito, então surge a pergunta: como é possível captar este aspecto? Como isto não é possível através do pensamento que obedeça à lógica (à qual se subtrai o metalógico), é preciso buscar outro acesso à realidade. Um -tal acesso é oferecido pela retórica, segundo Adorno. A dialética negativa não aspira a uma definição do objet ~ela classificação de seu conceito em uma hierarquia de categorias, mas trata de exprimir seu co.nceito em uma hierarquia de categorias, mas trata de exprimir a realidade por "constelações lingüísticas" ( 162-163). Ainda que a
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arte não seja o órganon para a dialética negativa, esta se aparenta à arte em seu momento mimético. "Como constelação, o pensamento teórico circunda o conceito, que quer abrir, esperando que salte, como as fechaduras de caixasfortes bem trancadas: não somente por uma única chave ou um só número, mas por uma combinação de números" ( 164). e)
Mihailo Markovié
Mihailo Markovié apresentou, em sua Dialética da Práxis ( 1968),13 a dialética como uma forma de pensamento crítico ou autocrítico a igual distância de um realismo não-crítico (que pressupõe objetos existentes em si, que podem ser encontrados pelo sujeito) e de um subjetivismo não-crítico (no qual o sujeito é considerado como o princípio constitutivo imediato e certo do objeto). Markovié reconhece como ubstratos tanto o suieito puro como o ob!eto puro. O sujeito real se refere sempre a objetos, não se trata de um eu solitário, mas determinado socialmente. A relação entre objeto e sujeito é essencialmente de natureza prática. Segundo Markovié, a práxias não é apenas o campo de comprovação posterior de suposições teóric.:s; "práxis" designa a encarnação das relações originárias e fundamentais entre sujeito e objeto. Tanto os princípios gnoseológicos como a fundamentação da verdade,no sentido do reflexo,devem ser encontrados, segundo Markovié, em relações práticas de sujeito-objeto (23-25). Mar.kovié está convencido de ter encontrado o ponto de partida da práxis como atividade consciente, wcial e metódica (com o conceito inferior de "trabalho" como atividade social, vinculada ao esforço e orientada para a superação de obstáculos). Nisto ele está de acordo com as idéias de Marx, em cujos escritos anteriores, Markovié se baseia para esboçar um esquema de solução dos problemas fundamentais da teoria do conhecimento. As relações práticas são algo imediatamente dado, segundo deIara Mtrkovié ( 30). Este algo não é um dado da sensação, mas um ocesso de índole essencialmente física (porém não exclusivamente). A filosofia de práxis se baseia, nortanto, em algo dado, que é de ' dole distinta do dado no empirismo, a saber, um fato intersubjetivaente inteligível. Apesar desta delimitação frente .:o positivismo,
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parece que, com a suposição de um fato imediato em Markovié, entra um momento não-dialético dentro da fundamentação da dialética, uma vez que o pensamento dialético, em ger~l, se camcteriza pela tendência à superação de qualquer imediatez. Não é só com o prob~ema do dado que Markovié estuda um prob!ema da teoria tradicional (isto é, não-dialética) do conhecimento para buscar uma solução no terreno da filosofia da práxis. O mesmo vale para o problema do conhecimento do mundo circund.:nte, problema que, segundo Markovié, só pode ser solucionado sob os pressupostos da filosofia da práxis, e para o problema da verdade, que, segundo ele, só pode ser tratado adequadamente com base na filosofia da práxis. As observações de M~rkovié sobre a dialética de sujeito-objeto são particularmente importantes. Segundo e:e, a relação sujeito-objeto é originariamente prática. "Objeto" como "sujeito" designam um momento da relação, aquele para o qual se dirige a atividade e o que a modifica. Contudo, M.:rkovié não vai tão longe a ponto de considerar o objeto como simples momento da relação prática sujeitoobjeto. Salienta, porém, que o objeto em si é um prius lógico e temporal da práxis (34) , e que somen ~e como objeto conhecido é ele condicionado pela práxis. Por outro lado, a experiência, sempre condicionada pela prática, pressupõe um sujeito .:tivo, que projeta conexões e as interpreta, que antecipa conseqüências e como tal é 3.Utoconsciente, não no sentido de um eu transcendental, mas no de um indivíduo que existe socialmente, que cria a natureza (como meio ambiente humano) na práxis social, objetivando-se em sua atividade. A dialética de Markovié limita suas pretensões de validez pelo fato de não supor relaçõ~s dialéticas entre o sujeito e o objeto em si, atribuindo ao objeto uma realidade independente de sujeito. Somente existe relação dialética entre o sujeito e o objeto constituído na práxis. Sujeito e objeto são consider.:dos como momentos dependentes desta relação. Esta relação é dialética enquanto não somente o objeto está condicionado pelo suJeito (prático), mas, ao contrário, também o sujeito está condicionado pelo objeto da práxis e se condiciona, neste sentido, a si mesmo. O sujeito - não um eu ate.:nporal e transcendental, mas o homem histórico que atua sob condições variáveis na sociedade - produz não somente o mundo dos objetos, que forma o mundo dos homens, como também, ao mesmo tempo, a si próprio.
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evidente que "ob}eto" (e, analogamente, "sujeito") tem dois significados: por um lado, significa a coisa tal como é em si, !JOr outro, a coisa enquanto está confrontada a um sujeito como objeto de experiência. Somente dos objetos como objetos de experiência se pode dizer que se constituem pela práxis. É
Com respeito à realidade como encarnação dos objetos constituídos pela práxis, pode-se desenvolver uma ontologia "como teoria das determinações mais gerais e leis do mundo humano, transfor~ado pela práxis" ( 38). Por ontologia se entende aqui, claramente; a doutrina das categorias da realidade condicionada pela práxis. A dialética da práxis tem essencialmente o objetivo de realizar uma fundamentação da teoria do conhecimento, recorrendo às condições de possibili· dade da experiêncin. Neste nível - que em certo sentido pode ser designado como transcendental - carece de importância a tese da existência das coisas em si. "Sob o ponto de vista do conhecimento (antropologicamente falando ,sob o ponto de vista da práxis humana ou, axiologicamente falando, sob o ponto de vista do valor) a coisa em sié um conceito vazio, uma abstração sem conteúdo e sem sentido, nada" ( 37). A diferença com relação a K~nt se encontra exclusivamente na caracterização do conteúdo da relação sujeito-objeto, não em sua estrutura (dialética). Parece que Markovié somente considera como crítica uma dialética desta natureza, enquanto recusa uma dialética de natureza "não-crítica", que se caracteriza pela suposição de leis dialéticas da realidade em si, isto é, independentemente de sua relação com um sujeito. Semelhante didética nega o momento subjetivo da experiência da realidade e ignora, com isso, a evolução da filosofia a partir de Kant; ela permanece, como constata Markovié, ao nível da metafísica pré-k~ntiana ( 43). Contudo, é possível uma dialética "crítica" da natureza contra todas as teorias que querem limitar a dialética ao campo da práxis ou da sociedade. Markovié considera legítima a extrapolação de relações dialéticas para o campo da natureza. Pêra uma dialética da natureza, assim entendida, seria vá1ido o que Markovié constata sobre a ontologia como teoria dos postulados mais gerais referentes à realidade em geral: que se trata de hipótese~ mais ou menos prováveis. Uma dialética da natureza, em sentido próprio, somente pode ser a dialética de uma natureza humanizada, me-
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diada no trabalho industrial e na investigr~ção científica com o homem. É, portanto, um ideal, do qual se pede aproximar, mas que não e:;tá realizado. Por outro lado, a suposição de uma dialética da natureza em si se baseia em urna extrapÕlação para explicar a estrutura dialética do conhecimento e d~ atuação: "Esta estrutura dialética do pensamento e da atuação humana pressupõe a existência de uma estrutu;a isomorfa da essência material (da nu tu reza, da vida social objetiva, de nosso próprio corpo)" (52). Neste contexto, o mais interessante não é a forma com que Markovié carac:eriza a estrutura dialética (a saber, como unidade sistemática das partes de um sistema dinâmico e autônomo, no qud há conflitos de forças que levam à transformação, dirigida para a conexão dos elementos e, com isto, à formação de algo novo), mas o modo pelo qual fundamenta a suposição de tal estrutura. A didética da práxis seria inconcebível, segundo ele, se só a práxis tivesse uma estrutura dialética. Porém, se a natureza, de que se trata aqui, é condicionada peb práxis, então deve estar estruturada também dialeticamente, assim corno em Kant a "natureza" (no sentido determinado pela revolução copernicana) deve estar estruturada causalmente. Contudo, se "natureza" no contexto presente, deve significar o conjunto das coisas, então seria anuh:da a afirmacão anterior de aue a coisa em si, so) o ponto de vista do conhecimento condicionado pela práxis, é nada. Em outros termos, é preciso perguntar se a natureza em si possui urna estrutura dialética, ou se está estruturada dialeticamente, porque a constituímos corno dialética. Em diversos lugares, Markovié se exprime como se defendesse essa última concepção, contudo, a primeira não lhe é totalmente alheia. Parece que Markovié considera ocasionalmente a concepc:ão da dialética como urna espécie de teoria da ciência. Por exemplo, quando atribui à dialética, como teoria mais geral do conhecimento e da ação, a tarefa de explicar as regras universais que devem regular nosso conhecimento e nossa ação comciente, para superar assim aquela alienação particular que consiste em sua aplicação inconsciente. Com isso, Markovié se aproxima de urna concepção da dialética que tem caráter de metateoria. Neste contexto de idéias é preciso ver a declaração de Markovic· de que o conceito "dialética" "designa sobretudo a estrutura de princípios metodológicos de todas as análi~es teóricas e da ação prática" (52).
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A concepção de Markovié (e do marxismo iugoslavo tal como se publica na revista Práxis), se caracteriza pelo fato de que a dialética não é somente filosofia da praxis, m~s também filosofia prática, para a qual o centro de interesse é constituído por questões éticas no sentido mais amplo da palavra (no sentido de uma moral cuia meta é a humaniz~ção do mundo), até a questão da auto-administração política, cuja recusa leva a uma forma de alienação, freqüentement~ desapercebida: a alienação política. A filosofia de Markovíé se apresenta como intento, digno de considen:ção, de uma reconstrução da dialética marxista, que deve sua modernidade ao fato de ter em conta os problemas atuais científicos, filosóficos, técnicos e sociais de nosso tempo, que devem ser entendidos e considerados como questões den· tro do horizonte da práxis. 2.
Georg Lukács.
Georg Lukács (1885-1971), exerceu influência na evolução d:1 dialétic2, sobretudo por sua coleção de ensaios História eConsCiência de Classe ( 1923). A interpretação da dialética marxista elaborada por Lukács/4 comunista convicto, por um tempo esquerdista radical, profundamente influenciado pela filosofia neo-kantianu e neo-hegeliana alemã de princípios do século XX, desencadeou, nos círculos marxistas, uma viva polêmica. Posteriormente se distancia de suas concepções "idealistas" que,de fato, equivaliam <: uma reconstrução hegelianizante da dialética de Marx, por entender a· dialética, como Hegel, ' essencialmente como relação <;ujeito-objeto, sem interpretar, contudo, sujeito-objeto no sentido do absoluto hegeliano. Apoiando-se em Marx, Lukács definiu as relações dialéticas como histórico-sociais e interpretou conseqüentemente a teoria dialética da história como expressão do processo histórico, que ela deve; principalmente, não apenas refletir, mas também promover. Recapitulando, Lukács escreveu, em 1967, sobre História e Consciência de Classe que este livro "significava o intento mais radical de atualizar o que há de revolucionário em Marx através da renovação e do desenvolvimento da dialética hegeliana" (23) .15 Em 1923, Lukács não pretendia de modo algum criar uma nova forma de dialética, e sim, dar uma contribuição para o entendimento da dialética de Marx. Estando convicto de que Marx se encontrava
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numa relação mais imediata com Hegel do que ele próprio parece ter suspeitado, e do que dguns intérpretes de Marx (que, como Plekhanov e outros, davam ênfase demasiada do papel medidor de Feuerbach), a elaboracão das categorias hegelianas na dialética social e materiali-"· ta pode se apresentar para ele como meio para entender a dialética de Marx, e não como intento de corrigi-la. Por isso, Lukács pode sustentar que, sem a fundamentação da dialética feita por He!!el (e Marx), seria impossível tratàr dos problemas da dialética (165). Lukács se mostrou partidário da ortodoxia marxista em um sentido que não implica o ater-se dogmaticamente às proposições de Marx. Para ele o decisivo é a aplicação do método de Marx, o qual é inde· pendente do conteúdo das teses de Marx. De modo semelhante, também é preciso adotar o que há de fértil, metodicamente falando, em Hegel, mas não o sistema em sua totalidade, fato histórico que deve ser destruído para que as tendências positivCls contidas nele possam ser atualizadas (cf. 167). Embora Lukács fale constantemente em um método dialético, não se node encontrar na História e Consciência de Classe nenhuma metodologia dialética no sentido de um conjunto de regras de investigação e argumentação: a dialética já é aqui o que entendeu primeiro Lukács por ela: ontologia. É essencial para a dialética, no sentido lukácsiano, a relação dos mon:entos de uma totalidade entre si com esta, e é decisivo que estes momentos não possam ser nada imediato; eles são o que são no contexto da estrutur<: da totalidade, na qual são "superados". Como totalidade ~e considera ~empre um todo concreto, histórico-social, e nesta medida a dialética é pensamento concreto e histórico. Uma totalidade dialética só pode ser uma totalidade e isto é essencial sob o ponto de vista da História e Consciência de Classe, na qual um sujeito entra como momento constitutivo. A totalidade é um todo que se desenvolve historicamente, em cuio pro~ cesso "a consciência ( ... ) é uma parte necessária, imprescindível, constitutiva" (393). A consciência que se tem em mente aqui não é individual, mas consciência de classe, concretamente a consciência do proletariado que se tornou prática. O proletariado consCiente de si mesmo assume o papel do sujeito-objeto de Hegel. Esta posição de destaque do pro· letariado se explica, segundo Lukács, pelo fato de que, para o proletariado, o conhecimento da situação socid em aue se encontra é a
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condição de sua auto-afirmação. Ao mesmo tempo, os interesses do proletariado são objetivamente idênticos aos intere~ses de toda a sociedade, enquanto que os interesses da burguesia permanecem particulares. Ademds, a autoconsciência do proletariado se insere diretamente no processo de transformação da sociedade e, portanto, é teórica e prática. Esta idéia se exprime claramente através da observação: "Somente com a aparição do proletariado ~e aperfeiçoa o conhecimento da realidade social. E se aperfeiçoa exatamente porque, n:) ponto de vista de classe do proletariado, se encontrou o ponto a partir do qual é visível o todo da sociedade ( ... ) . A unidade de teDria e práxis é ( ... ) somente o outro lado da situação histórico-social do proletariado. Sob seu ponto de vista coincidem autoconhecimento e conhecimento da totalidade, ao mesmo tempo que é sujeito e objeto do próprio conhecimento" ( 193). Lukács se baseia claramente na idéia hegeliann do sujeito-objeto e a interpreta à luz do materialismo histórico. Esta idéia conserva o caráter de uma construção teórica para a explicação de certas estruturas da experiência. A idéia se revela como construção pelo fato de que o proletariado não é atualmente, porém só potencialmente, su:eitoobjeto da evolução social. Como figura da realidade, a consciência proletária está levada pelo partido ( 214), o qual oferece igualmente como portador da consciência geral do proletariado, assim como o estado de Hegel devia ser encarnação do espírito universal. Em Lukács ~ construção do suieito serve, em primeira linha, para a explicação do fenômeno da alienação ou, de um modo mais geral, da coisificação da consciência. Assim como, para Hegel, o objeto da experiência deixa de ser algo estranho frente à autoconsciência, enquanto a ~utoconsciência se reencontra no objeto, também para Lukács a alienação está superada, por princípio, no momento em que o proletariado se concebe como sujeito-objeto da história. Naturalmente, a superação da alienação não é um acontecimento único e global, mas se processa gradativamente. A construção de um sujeito-objeto histórico-social serve, além disso, para fundamentar a teoria da verdade. Lukács se volve energicamente tanto contra a teoria da verdade materialista como contra a idealis~a, porque, segundo ele, ambas definem a verdade no sentido de uma adequação entre o ser e a consciência confrontada com ele,
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e ficam obrigados àquele dualismo que resulta da coisificação da estrutura .da eo:nsciência ( 388). Se o problema da verdade se formula pressupondo este dualismo, então é insolúvel. Somente se chega a uma solução quandEt ·se supera. a coisificação,' põrque onde não há coisas como algo qué está diante da consciência não pode haver adequação du consciência com as coisas. A verdade não é, mas vem a ser, como diz Lukács (391 ). A doutrina dialética do caráter dinâmico da realidade serve a Lukács, portanto, de modo distinto que aos representantes do materialismo dialético, para refutar a teoria do reflexo ou cópia. Sua argumentação, que une a teoria do reflexo ou cópia a uma determinada concepção da "coisa", não pode escapar completamente de ser acusada: de sofística. Assim como outros teóricos da dialética postulavam a "mobilidade',. do pensamento, que reproduz ou copia a realidade móvel, Lukács queria superar o dualismo de pensamento e ser por um pensamento que é "momento do processo total" e que assume, com isso, "um caráter de vir-a-ver" ( 392). É preciso entender aqui, por "processo total", a totalidade social. A totalidade se caracteriza sempre, segund~ Lukács, como concreta (222): de modo mais preciso, como classe, cuja consciência expressa a reação, racionalmente adequada, como se atribui a uma determinada situação típica no processo de produção (223-224), por assim dizer, como elemento de uma construção tíoica ideal. A totalidade não é nunca, como salientava Lukács, dgo dado estático, mas essencial· mente processo, no qual o movimento• e o fim formam uma unidade dialética ( 169) .
A totalidade, segundo Lukács, só pode ser concebida sob a condição de que o sujeito que "põe" a totalidade seja totalidade ele mesmo (200). "A realidade só ( .. . ) pode ser concebida e penetrada como totalidade e esta penetração só pode ser levada a cabo por um sujeito que é totalidade ele mesmo" (211-213). Para Lukács, este sujeito é, como iá mencionamos, o proletariado, que possui entre seus pressupostos, como o da autoconsciência, de fato o caráter de uma totalidade, de um sujeito-objeto. O proletariado se põe, assim, no lugar do absoluto hegeliano, que não somente é substância, como também sujeito. Também em Marx é preciso reconhecer, segundo Lukács, como predominante,a categoria de totalidade. E. nesta e não na predominância do ponto de vista econômico que se há de ver, segundo
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ele, a diferença distintiva entre o pensamento de Marx e o burguês (199). No ponto de vista da totálidade é preciso ver, além disso, o momento revolucionário da dialética, e não primariamente em seu caráter material, posto que cada indivíduo, como momento da totalidade do processo histórico, perde sua aparente estabilidade. Isto é válido também para a consciência de classe do proletariado, do qual Lukács declara que é "nada menos que estavelmente uniforme ou progredindo segundo "leis" mecânicas" ( 213). Sob o ponto de vista da totalidade concreta, também se exclui um modo de consideração, para o qual os fatos se apresentam como algo dado, sem interpretação, como algo "imediato" (tal como ocorre, segundo Lukács, na ciência "burguesa" - ao que parece, no positivismo do século XIX e de princípios do século XX). Quando Lukács assegura que a suposição de fatos "puros" pertence à essência do capitalismo, o qual produziria o fenômeno correspondente, então é preciso perguntar como foi possível superar, no ocidente capitalista, a ficção de algo dado imediatamente em favor da idéia da carga teórica de todas as descrições de fatos. O próprio caráter histórico, pelo qual, segundo Lukács, se destaca a dialética, não é uma particularidade exclusiva desta. Lukács é de opinião que a dialética, aparentemente menos científica - frente à ciência que procede de modo não histórico - se deve à menor imprecisão, ao considerar os fatos, não em sua pretensa pureza, mas como produtos de uma evolução histórica, como fenômenos de uma época histórica determinada, sobretudo em sua objetividade, como resultados do capitalismo (178). A recusa em se aceitar a existência de algo imediato deve ser estendida também à totalidade, a qual é dada imediatamente, como seus momentos ( 180). Somente quando se concebem os fatos como condicionados pela totalidade (social), e esta condicionada pelos fatos, é possível um conhecimento da realidade. Neste sentido, Lukács oonsidera a totalidade concreta como "a própria categoria da realidade" ( 181 ) . Fica pouco clara, porém, a maneira de se definir a diferença entre uma explicação de fenômenos sociais mediante leis abstratas e uma explicação por sua relação com a totalidade concreta (cf. 181) ~m particular, posto que, evidentemente, cada explicação deve empregar leis "abstratas" como premissas. Lukács pensa, prova-
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velmente, no ideal de uma explicação na qual se levam em conta todas as leis relevantes. Neste caso, a expressão "totalidade concreta" seria uma idéia regulativa, mesmo se Lukács acentuava que a totalidade concreta não tinha o caráter de uma simples idéia. Não faríamos justica a Lukács se limitássemos a função da cate· geria de totalidade ao conhecimento de relações sociais e desentendêssemos seu papel prático, que Lukács tem presente quando afirma, por exemplo: "Quando a teoria, corno conhecimento da totalidade, mostra um caminho paa vencer estas contradições (inerentes à sociedade capitalista), para sua superação, o faz revelando as tendências reais do processo evolutivo social, as quais estão chamadas a superá-las realmente no tr.:nscurso da evolução social" (18 2). A não aceitacão da concepção da verdade que se apóia na suposição de algo imediato, também deve ser vista à luz da categoria da totalidade concreta. É preciso conceber a correspondência entre pensamento e ser como correspondência entre a consciência proletária e a realidade social. A consciência do proletariado não reproduz imediatamente coisas dadas, mas a novidade que emana das contradições do capitalismo e que deve realiz.:r-se só pelo proletariado (393). Em História e Consciência de Classe, Lukács não somente pro· jetou uma teoria dialética dos ac'-ntecimentos sociais, procurando interpretar as categorias (econômicas) como expressão conceptual de níveis sociais evolutivos, em seu mútuo condicionamento e seu movimen~o sistemático, produzidos peb atividade humana e pelas forças dialético-dinâmicas que se baseiam nas relações inter-humanas ( cf. 187), mas também desenvolveu, ao mesmo tempo, uma teoria da justificação, cujo tema é a sociedade socialista sob a liderança do partido comunista. Para alcançar o objetivo da justificação, Lukács identificou o proletariado com o sujeito-objeto da tradição dialética c representou o partido como encarnação da consciência de classe do proletariado - uma afirmação que não é melhor que a concepção hegeliana do estado como encanação do espírito universal. Entre o objetivo político que deve ser justificado, e os histórico-sociais, cuja teoria dialética Lukács quis proietar, há um abismo que ele só podia remediar, como observa J. Meszáros, atribuindo à ética o papel da
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mediação; com isso, ficava obrigado a manter a oposição entre o ser e o dever. 16 No estudo Moses Hess e os problemas da dialética idealista diz-se, neste sentido, que a recusa do dever, por parte de Hegel, convertera em reacionário seu realismo, por descuidar as tendências orien· tadas paru o futuro no respectivo presente ( 65 3). a)
Correções posteriores
Em História e Consciência de Classe Lukács distinguira dois tipos de dialética: a dialética objetiva do movimento e a dialética sccial (396) e se declarou a favor destu última. A dialética da natureza, tal como a havia conhecido Enr.els, padece, segundo ele, do defeito de que "a relação dialética do suieito e do obieto no processo histórico ( ... ) nem [equer é mencionada, menos ainda é colocada no centro da considerrrção metódica que o convém" ( 173). Deixa de ser, com isso, segundo Lukács, um método revolucionário. Lukács designa expressamente o intento de Enge s, de estender o método dialético ao conhecimento da natureza, como um mal-entendido: "posto que as determinações decisivas da dialética: ação recíproca de sujeito e objeto, unidade de teoria e práxis, modificação histórica do wbstrato das categorias como fundamento de sua transformação no pensamento, etc., não se encontram no conhecimento da natureza" ( 175, nota). Lukács viu, portanto, que o âmbito dentro do qual se podem supor circunstâncü:s dialéticas era o da relação sujeito-objeto. O programa de uma dialética da natureza se revela irrealizável simplesmente pelo fato de que não é possível uma dialética c;em sujeito ( 396). No prólogo à nova edição de História e Consciência de Classe, Lukács considerou errônea a limitrrção da dialética ao âmbito social. Continua afirmando que a concepção da práxis de Engels é incomp~eta, e que, além disso, não é possível solucionar o problema da coisa em si (kantiana) com as categorias de Engels; porém, à diferença de 1923, Lukács em 1967 já não sustenta que "somente o conhecimento da sociedade e dos homens que vivem nela é filosoficamente relevante" ( 19). Com isto se relaciona a revogação da crítica que Lukács havia dirigido contra a teoria da reprodução ou cópia do· conh·ecimento, crítica que declarou em 1967 como errônea, porque: est2.va convencido de que o reflexo ou cópi~ da realidade no conheci-
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mento é o pressuposto do agir orientado para um fim. "A práxis só pode ser plenitude e critério da teoria porque se fundamenta ontologicamente, como pressuposto real de cada posição real teleológica, em uma reprodução ou cópia da realidade considerada como correta" ( 27). A correção de sua avaliação da teoria do reflexo ou cópia do conhecimento se originou, para Lukács, de uma concepção modificada da práxis, cuj2. "forma arquetípica" era vista no trabalho. Convertendo a "práxis real" em base da teoria, evitou o que chamou "exaltação do conceito de práxis", reconsiderando suas idéias de 1923 ( 20) : o !Jerigo de uma transformr:ção da teoria em idealismo só poderia ser evitado, segundo ele, pelo abandono da "concepção abstrata-idealista da práxis" (21). Neste contexto de idéias sé situa também a retratação que Lukács faz da concepção que defendeu em 1923, de que não era a explicação histórica sob pontos de vista econômicos que distinguia essencialmente o marxismo da ciência burguesa, mas o ponto de vista da totalidade. O último Lukács considerou r,s categorias econômicas como centrais; de modo diferente das considerações de 1923, é preciso tratar o trabalho em seu papel mediador entre sociedade e natureza. A convicção da primazia do aspecto econômico encontrou sua expressão na obra O jovem Hegel ( 193 8). As retratações de 1967, porém, se referem sobretudo à doutrina da dienação. O intento de a superar pela suposição daquele sujeitoobjeto idêntico da história, tal como se representa o proletariado em sua consciência de classe, parece questionável a Lukács sob o ponto de vista de sua filosofia posterior: agora considera que o sujeito-objeto · idêntico é uma construção metafísica ( cf. 25) : "O proletariado, como sujeito-objeto idêntico da verdadeira história da humanidade, não é uma realização materialista que supera as construções ideológicas idealistas, m:::s, antes, uma operação de "super-hegelianizar" Hegel, uma construção que pretende, em sua ousada elevação ideológica sobre toda e qualquer realidade, superar objetivamente o próprio mestre". ( 25) . O hegelianismo implícito de História e Consciência de Classe mostra claramente na identificacão de alienação e objetivação, enquanto que Lukács salientou, em 1967, que a alienação superável era só um caso especial da objetivr.ção insuperável. Com a concepção ~e
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mcdificada da alienação, que para Lukács resultou do estudo dos Manuscritos Econômico-Políticos de Marx, caíram os fundamentos teóricos da dialética de 1923. b)
Dialética como ontologia
Já em História e Consciência de Classe ficara ocasionalmente patente o caráter ontológico da teoria dialética, particularmente claro na formulação do programa para estabelecer um sistema de categorias que deveria estar ordenado hierarquicamente ~egundo as relações de dependência que existem entre elas (395). Lukács parece haver se referido, em 1967, a intentos do tipo mencionado, quando declarou que História e Consciência de Classe já dava uma orientação para uma ontologia marxista do ser social (28-29). A elaboração. destes intentos era a tarefa que Lukács se havia proposto em sua obra de velhice. A idéia fundamental da ontologia de Lukács é, em suma, a de que ns categorias da ciência social, e particularmente da economia política, são primeiramente categorias da realidade social. O conhecimento das relações sociais se define, portanto, como descoberta das categorias wciais reais. O termo "ontológico" é empregado neste contexto amiúde por Lukács como sinônimo de "realista". Assim, o "aspecto ontológico" da consideração de Marx, seguido por Lukács, consiste, segundo ele, no fato "de que todas ( ... ) as categorias são formas de existência, determinação da existência que, como tais, formam uma totalidade e somente seus elementos existentes, como momentos existentes, podem ser concebidos cientificamente" (1972: 70) .17 As categorias em Marx - c o mesmo vale para a própria concepção de Lukács - não são conceitos atemporais, mas têm caráter essencialmente histórico. Na obra Ontologia do Ser Social, Lukács se orientava pelo método esboçado na Introdução de Marx à crítica da economia política ( cf. cap. I, 1 ) . Não se cansa de salientar o papel predominante da categoria da totalidade neste método. Diferentemente de sua posição em História e Consciência de Classe, declara em Ontologia do Ser Social que "a totalidade na sociedade já é dada de modo imediato" ( 1972 : 34). Lukács parece inclusive querer revogar uma crítica dialética anterior à suposição de algo dado imediatamente, qu~ndo supõe um :onhecimento orientado em direção à realidade imediatamente dada" ( 1972 : 34), o qual forma o ponto de partida do procedimento analí-
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tico que conduz até os elementos da representação total e voltando a partir- daí para a apreensão da. totalidade. O caráter da mediação só é próprio da realidade concebida e não d<: realidade dada à observação ( cf. 1973 : 5). Lukács, assim como os representantes do método dialético anteriormente tratados, não levam em conta o momento hipotético do método analítico, razão pela qual ele podia acreditar que o caminho do conhecimento an::Jítico é prescrito pela totalidade respectiva. Lukács não desconheceu de modo algum que os elementos da totalidade isolados na análise não são simples, mas, por sua vez, totalidades subordinadas. Nem por isso estava ele convencido de que, na explicacão dialética, se destâc.:m certos elementos, não por razões subjetivas (por exemplo por motivos pragmáticos de explicação), mas por sua situação central objetiva. Lukács faz referência ao procedin:ento de Marx em O Capital, onde·"valor" representa o ponto de partida destacado: "Este lug[r central da categoria de valor é um fato", sustenta Lukács ( 1972 : 46). Todavia, este exemplo mostra concretamente que a tese do condicionamento objetivo da estrutura explicativa e, sobretudo, a relação do ponto de partida são questionáveis: o conceito de valm é certamente o resultado da análise da economia mcrc<:ntil como totalidade, e por sua vez analisável, com o qual resulta sobretudo o conceito de trabalho socialmente necessário. Não se pode falar de uma prioridade ontológica de "valor" com rel&ção à "mercadoria" ou "trabalho", o ponto de partida escolhido por Marx podia ser recomendado por razões pragmáticas. Por outro lado, Lukács declarou, em outro lugar da Ontologia, que se deveria começar "pela análise do trabalho" na descrição das categorias do ~er social e de suas relações (1973 : 5; cf. 9). A interpretação realista dos conceitos e as relações que são empregadas no contexto de explicações científicas, in~erpretação designada por Lukács como "ontológica", o levou à concepção de que o conceito abstrato do trabalho socialmente necessário exerce um efeito sobre r2 realidade social (1972: 48), e salientou, inclusive, que "esta abstração tem a mesma dureza ontológica de facticidade, que um carro que nos atropela" ( 1972: 49). A interpretação realista de "circunstâncias e relações" é tudo menos evidente, uma vez que, em muitos casos, se su9õem re1ações somente para explic::1r certos fatos. A teoria econômica de Marx oferece
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exemplos !)ara isto. Se Lukács se decide, portanto, em favor da concepção "ontológica" das relações form:uladas na teoria econômica, trata-se então de um elemento dogmático de seu pensamento, que distingue a filosofia posterior do ponto de partida dialético de sua obra anterior. Lukács adotou expressamente o "método dos dois caminhos" de Marx, que é idêntico, obviamente, ao método analítico ou resolutivocompositivo das ciências naturais clássicas modernas; concre~arp.ente, a sua interpret2ção teórico-científica tradicional, caracterizada por atenção insuficiente ao momento hipotético. Lukács declarou: "É preciso decompor primeiro o novo complexo do ser de maneira analítica e abstrata para poder, mediante o fundamento assim adquirido, retroceder (ou progredir) até o complexo do ser social como dgo não somente representado, mas também concebido em sua totalidade real (1973: 5). Com Marx, Lukács estava consciente de que começava com uma categoria isolada por "abstração" frente à totdidade do econômicosocial (1973: 9). A categoria de "trabalho", porém, apesar de ser resultado de uma "abstração, é,ao mesmo tempo, complexa; contém uma série de categori2s desenvolvidas por análise sucessiva, e Lukács estava convencido de que eram categorias centrais do ser social. Assim, partindo do conceito de trabalho como realização de uma posição teleológica" ( 1973 : 13), mais precisamente, do trabalho no sentido estrito de produção de valores de uso, desenvolveu a estrutura geral do ser social; um desenvolvimento que não deveria efetuar-se nem lógica (como relação que se seguisse de conceitos gerais), nem mecânica, mas dialeticamente. Lukács elabora de modo penetrante o caráter teleológico da práxis humana. Na práxis se unem, em forma de posição do fim e determinação dos meios, o ponto de vista causal e intencional, que se contrapõem, abstratamente falando: segundo isto, no trabalho, meio e fim, teoria e praxis, legalidade causal que se reflete no conhecimento e posição ativa de fim, que são para si momentos heterogêneos, resulta algo homogêneo em sua unidade dialética ( 1973: 24). Na mediação de fins conscientes, baseados em uma decisão frente a alternativas, a consciência se revela como algo mais que um mero epifenômeno de
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processos materiais. No caráter alternativo da práxis é preciso ver, segundo Lukács, o "germe da liberdade" (1973: 53; cf. 133 ss.). Um objeto, no sentido pleno da palavm, se opõe ao sujeito apenas n:::t práxis, posto que somente o trabalho leva àquele distanciamento frente aos conteúdos da experiência que faz com que estes sejam objetos opostos a um sujeito. Somente com este distanciamento, surge também, objetivamente, a possibilidade da linguagem, a qual pressupõe o distanciamente efetuado pelo trabalho (1973: 120-121). Se, no trabalho, o homem se constitui propriamente como sujeito que se opõe à natureza com a intenção de dominá-la e que é capaz de controlar-se a si mesmo, a saber, seus instintos, seus afetos, seus costumes, ou está constrangido a fazê-lo, se quer conseguir a realização dos objetivos, então é evidente que, no trabalho, o homem não somente domina a natureza até certo ponto, supera seus obstáculos, mas cria a si mesmo. Com isso se alcançou, sobre a base da práxis humana, o esquema fundamental da dialética da experiência: o sujeito está condicionado pela realidade objetiva, que ao mesmo tempo está condicionada pelo sujeito. O suieito se condiciona ou se "cria" mediante si mesmo, a atividade do sujeito, na qual ocorre isto,não é, em Lukács, de índole puramente espiritual. Trabalho ( essencidmente social) é, neste sentido, "material", enouanto acontece no trabalho um "metabolismo" entre sujeito e natur~za. A tese da autocriação do sujeito não se refere ao sujeito no sentido da pessoa psicofísica, mas ao sujeito no sentido pleno da palavra, que se experimenta em sua relação com objetos e outros su.ieitos. O sujeito, assim entendido, não é um fato da natureza como a consciência animal, mas se distingue dela por um salto qualitativo. "Autocriação" do sujeito significa, para Lukács, "encarm:ção mediante o trabalho", isto é, o desenvolvimento que parte da consciência animal e que é próprio do sujeito autoconsciente, que transforma a natureza obedecendo a um plano, isto é, em decisão livre baseada no conhecimento das leis naturais e em relação social cem outros sujeitos. Com isto se efetuou, com respeito à dialética sujeito-objeto, o que Lukács exigiu para a dialética em geral (e o que não encontrou satisfatoriamente resolvido em Engels) : "Estudar cada combinação dialética, relativa aos fatos existentes que a fundamentam, com uma crítica ontológica imparcial'' (1973: 147) . A idéia hegeliana de um sujeito-objeto idêntico, que havia desempenhado um papel importante em História e Consciência de Classe, se bem que em forma modificada, é recusada, na Ontologia, como "mito filosófico" ( cf. 1971 : 34).
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A superação idealista da alienação do sujeito no objeto corresponde, em Lukács, à transformação do acontecer natural, independente da consciência, em um acontecer "posto", isto é, determinado pelo ~ujeito, segundo seus objetivos baseados no conhecimento da natureza. Lukács salientou, insistentemente, que isto é válido não somente para a natureza, que é objeto das ciências naturais, porém igualmente para aquela "segunda natureza" que produzimos, nós mesmos, provocando processos que vão além de nossas intenções ( 1973: 152). A práxis humana experimenta, com isso, em sua relac:ão dialética de determinação e liberdade, uma modificação quantitativa, uma vez que as alternativas a que se refere são igualmente resultado da práxis ( social). A evolução da práxis humana tende para uma sociabilidade cada vez mais intensa. Segundo Lukács, o trabalho, como fenômeno arquetípico "do ser social" ( 1973: 9), é "em sua essência uma relação recíproca entre homem (sociedade) e natureza" (1973: 8); por isso é imprescindível cm.ceber uma ontologia que envolva também uma ontologia da natureza como disciplina parcial ( 1972: 13). Lukács encontra uma tal ontologia da natureza- que trata das categorias da historicidade, do caráter de processo, da contradição dialética da natureza - implicitamente, na filosofia de Marx ( 1972: 15). Até que !)Onto Lukács desenvolveu, ele mesmo, uma ontologia exaustiva (como a dialética da natureza, tão intensamente discutida) não pode ser decidido antes da publicação das partes não impressas de sua obra de velhice. É preciso, enfim, formular um iuízo final sobre a dialética do trabalho e, especialmente sobre a de sujeito-objeto, só após a aparição dos estudos sobre o tema da "alienação" na Ontologia do Ser Social.
3.
Jean Paul Sartre
a)
O intento dialético em O Ser e o Nada
Sartre seguiu, no transcurso da evolução de seu pensamento, o caminho de Hegel <:té Marx, naturalmente sob as condições do século XX, o que significa, entre outras coisas: influenciado pelos movimentos filosóficos mais importantes da primeira metade deste século. Um primeiro ponto crucial na evolução da filosofia dialética de Sartre representa a obra O Ser e o Nada (1943), 18 em que Sartre desenvolve, apro-
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veitando e continuando idéias de Hegel (sobretudo da Fenomenologia do Espírito), de Fichte, de Husserl e do existencialismo/9 uma forma de dialética construída sobre a tradição da filosofia transcendental (no sentido mr.:is amplo da palavra) a partir de Descartes. Depois da publicação da segunda grande obra de Sartre, Crítica da Razão Dialética, aquela dialética anterior se revela como uma etapa do caminho, do qual não se pode dizer, definitivamente, se o filósofo o percorreu até o final. O problema da teoria da experiência: explicar como a experiência em gemi é possível, é também o problema de Sartre; tal problema é formulado em sua obra O Ser e o Nada, através de duas perguntas ligadas essencialmente: "1. Qual é a conexão sintética que chamamos ser-no-mundo? 2. "Que devem ser o homem e o mundo para que seja possível esta conexão entre os dois?" ( S N 54/38). Com "ser-no-mundo" se designa, segundo Sartre, uma totalidade concreta sintética cujos momentos são a consciência e o fenômeno (objetivo) (S N 53/38). A possibilidade do ~er-no-mundo ou do caráter intencional da consciência (isto é: da experiência como tal) só é concebível, segundo salienta Sartre, se não se parte de pressupostos abstratos (como o fizeram, segundo ele, Kant e Husserl, mas se se regride de fato do ser-no-mundo até seus pressupostos ou condições.) Sartre procede, não apenas, de fato, de acordo com o modo do método analítico (resolutivo-compositivo), mas também se confessa expressamente partidário dele e o denomina "método progressivo" (ME 70 ss./CRD 60 ss.).20 A segmr,deverá, antes de mais nada, ser mostrado que Sartre empreendeu a tarefa de fazer concebível o ser-nomundo em princípio (isto, fazendo-se abstração de seu modo pessoal de constituir determinados comportamentos humanos no ponto de partida da análise) e não de um modo distinto de Kant. De modo algum Kant tomara, como sustenta Sartre, princípios abstratos como ponto de partida da explicação teórico-experimental, mas, da mesma forma que Sartre, o fato da experiência objetiva como totalidade de momentos. A decomposição da experiência, definida com relação sujeitoobjeto, mostra, segundo Sartre, que o fenômeno, como o primeiramente dado, sempre é objeto para um sujeito, ainda que não seja somente
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objeto para um sujeito. O fenômeno, para Sartre, não é fenômeno de uma coisa em si incognoscível, não é expressão de uma essência, etc., mas se mostra a si mesmo absolutamente ( SN 22/12). Não obstante, o fenômeno se refere a um fundo transfenomenal. Se o fenômeno é uma "coordenação articulada de propriedades", então seu ser não pode ser entendido como uma destas propriedades, mas deve, a rigor, ser o "pressuposto de cada descoberta" (SN 26/ 15). Da mesma forma, o eu tem uma dimensão ôntica de ser transfeno~enal, o que não significa que - haja um eu transcendental, o qual deveria, como qualquer objeto, ser submetido à epoché fenomenológica (Ego 17) .21 O eu que aparece é um fenômeno situado, ontologicamente, no mesmo nível dos assim chamados fenômenos do mundo exterior ( cf. Ego 42). A relação de experiência deve ser concebida, portanto, como relação entre um eu e um objeto fenomênico, tendo ambos uma dimensão tn:msfenomênica. Nem o objeto nem o eu são meros fenômenos. A questão que se levanta aqui é sobretudo esta: o que levou Sartre a admitir o transfenomênico? No caso do objeto, declara ele sem dar margem a dúvidas - que este postulado serve para fundamentar o fenômeno. O fenômeno "exige ( ... ) uma fundamentação que deve ser transfenomênica. O fenômeno do ser exige a transfenomenalidade do ser. Isto não quer dizer que o ser se encontre oculto "por detrás" dos fenômenos ( ... ) , ou que o fenômeno seja uma manifestação que indicaria a existência de um ser determinado ( ... ) ". Propriamente falando, deve-se notar "que o ser do fenômeno ( . .. ) vâi mais além do conhecimento que se obtém dele e o torna possível" ( SN 27-16) . Com respeito à dimensão transfenomênica do eu, declara Sartre que o ser-percebido do fenômeno seria uma p~rcepção, na qual o esse, como percipi, pressuporia um percipere, cujo ser não poderia, por sua vez, ser percebido. Por isso, a percepção deve se referir a um "fundamento" transfenomênico. Pelo que tudo indica, a dimensão trr:nsfenomenal é admitida para que a relação de experiência entre o eu e o fenômeno possa ser concebida. Trata-se do primeiro passo em direção a uma teoria da experiência, a qual deve tornar possível a explicação do ser-no-mundo.
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A dimensão transfenomênica do ser, própria do sujeito, é a consciência transcendental, que não é um tipo específico de conhecimento, nem um "sentido interno", nem "autoconsciência", nem tampouco a estrutura do sujeito, mas o fundamento do sujeito e da intencionalidade que o caracteriza. Com isso, o ponto de vista do cogito cartesiano é abandonado: segundo Sartre, o primeiro princípio de Descartes assevera demais. A certeza originária não é "eu tenho consciência desta cadeira", porém "esta cadeira é consciente" (Ego 17). A autoconsciência é sempre consciência do eu, enquanto é consciência de objetos. Com a volta à consciência transcendental, Sartre julgara ter evitado a alternativa entre idealismo e realismo: o eu não se opõe ao mundo à maneira de uma dualidade fundamental de sujeito-objeto (Ego 42), mas eu e mundo são apenas momentos do ser-no-mundo. que está fundamentado pela consciência transcendental. Não pode haver ação recíproca entre o ser do fenômeno e da consciência (SN 46/31). A consciência transcendental mesma não está fundamentada por n:::da exterior a ela, mas existe por si mesma (SN 35/ 22) .. Como autocriação, como creatio ex nihilo (Ego 39), como espontaneidade originária, é um absoluto transcendentaL Sartre protesta contra a interpretação segundo a qual o ser transfenomênico do fenômeno estaria constituído pelo ser transfenomênico da consciêncü:; a rigor, o que ocorre é que a consciência de algo se caracteriza pela transcendência: ela se dirige para um ser que não ela mesma ( SN 43/ 28). Em oposição ao ser, a consciência é "nada". Na medida, porém, em que está presente a si mesma (présence à sai), é ser p&ra-si. Ela não pode, todavia, estar presente a si mesma sem dirigir-se primeiro intencionalmente a um em-si. O para-si é, portanto, as duas coisas ao mesmo tempo: relação com um em-si e relação da consciência para consigo mesma. A tarefa central da teoria da experiência de Sartre consiste em indicar os pressupostos sob os quais é concebível a relação de intencionalidade e, com isso, a experiência do objeto enquanto taL Se o eu estivesse determinado pela identidade consigo próprio (no sentido "eu = eu"), então não poderia haver nem consciência do objeto, nem r.utoconsciência. A pura identidade que caracteriza o ser em-si exclui a possibilidade da consciência. Também não pode, todavia, ser pura dualidade sem o momento da unidade, porque neste caso o ser-para-si
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como pxésence à soi seria completamente inconcebível. Segundo Sartre, é preciso admitir, portanto, que o eu, na imanência da consciência, se distingue de si mesmo, tendo porém, os diferentes "eus" o caráter de momentos de um todo. A idéia fundamental de Sartre é articulada claramente, quando ele diz: "O ser da consciência, como consciência, consiste no fato de existir em distância de si mesmo como autopresença, e esta distância nula, que o ser leva em seu ser, é o nada. Assim, para que exi~ta um eu, é preciso que a unidade deste ser admita seu próprio nada como nulidade do idêntico" (EN 120). Impõem-se aqui algumas comparações históricas: ocorre-nos espontaneamente o princípio de Fichte, segundo o qual o eu se opõe a um não-eu no eu; lembramo-nos também da relação de pensamento pensado e pensante, que é discutida na filosofia de Gentile. Em Sartre, a dialética da experiência se apresenta como dialética do ser para-si e do ser em-si; o ser para-si é condicionado pelo ser em-si, ao mesmo tempo que é negação de ser em-si; ele se caracteriza, portanto, pela determinação de "carência". Toda carência remete, porém, a uma totalidade, assim como, segundo Descartes, os conceitos de coisas finitas surgem por delimitação da idéia de ser perfeito ou, segundo Kant, por delimitação da totalidade da realidade. A idéia de totalidade, como condição para <: experiência da carência do ser para-si, é a unidade do ser como coincidência do em-si e do para-si. Esta totalidade vem a ser eliminada, na medida em que a consciência entra em uma distância ideal com res:9eito a si mesma, produzindo-se uma "fissura" na consciência (une físsure intra-conscientielle), e, por outro lado, é conservada porque é condição da relação dialética do para-si e do em-si. Trata-se, em Sartre, da dialética do Uno (do absoluto), que se divide em si conserv<:ndo sua unidade. Como unidade do múltiplo, ela é a condição de possibilidade de todas as relações dentro desta multiplicidade e, portanto, também condição da concepção de relações. Esta dialética é o resultado de certos pressupostos no contexto da teoria da experiência que, partindo da experiência de fenômenos objetivos, põe em evidência o caráter intencional da consciência e postula, para torná-lo concebível, a existência de uma consciência transcendental, a qual adquire <:s funções de um absoluto que se divide dentro de
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si mesmo e une os elementos divididos. Trata-se de "uma unidade na qual o um E:e relaciona com o outro de tal forma que é este mesmo", como formulou K. Hartmann.22 b)
A abordagem dialética na "Critica da Razão Dialética"
Na segunda grande obra de Sartre, a Crítica da Razão Dialética, a dialética passa u ser o método de explicação da sociabilidade, isto é, da relação de indivíduos para com configurações sociais unitárias: a "totalização" através da qual os indivíduos se associam em uma, formando uma totalidade social, deve ser reduzida às suas condições de possibilidade. Concebendo uma dialética da totalização que se baseia, quanto ao conteúdo, em uma antropologia estrutural, Sartre pretende fundamentar o materialismo histórico de um modo novo e, com isso, torná-lo inteligível. Pam Sartre, o conteúdo do materialismo histórico não está em questão; é uma fértil hipótese de trabalho, como já havia concedido em sua obra sobre A transcendência do ego; considerou, porém, problemático sobrecarregá-la com um "absurdo" como o do materialismo metafísico (Ego, 42) . Na Crítica da Razão Dialética, Sartre procurou, portanto, fundamentar o materialismo histórico independentemente do materialismo dialético. A crítica decisiva que Sartre faz à didética materialista diz que esta seria incapaz de definir a relação entre a dialética do pensamento e a dialética do ser e, portanto, sacrificaria u primeira em favor da última: "No materialismo dialético não há conhecimento no sentido próprio; o ser não se manifesta de maneira alguma: ele evolui segundo leis próprias. A dialética da natureza é a natureza sem o homem" (CRD 25/123-124). Uma dialética da natureza (como totalidade dos fatos) não pode ser justificada, segundo Sartre: suas leis representam afirmações dogmáticas. O defeito decisivo da dialética da natureza (do tipo da de Engels) , a saber, seu objetivismo, obriga seus defensores a tentar interpretar o conhecimento como mero reflexo de relações objetivas - um empreendimento necessariamente condenado ao fracasso, uma vez que o sujeito meramente passivo, cuju atividade consistiria em espelhar, seria incapaz de uma síntese. Sartre não vai tão longe a ponto de considerar a dialética da natureza como simplesmente impossível, somente decl<:ra que, sob as condições dadas, ela não r,ode ser comprovada e, portanto, só pode
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ser objeto de crença. "Em todo caso, a afirmação da dialética no campo dos fat(i)s da natureza ::::norgânica é uma afirmação extra-científica" ( CRD 3 3 I 129). Sendo assim, a tese de que há uma dialética da natureza só pode ser caracterizada como hipótese metafísica. Sartre supõe que a idéia da dialética da natureza é o resultado de uma hipostasiação . das relações dialéticas no âmbito da práxis social humana. Se é assim, então, o intento de deduzir estas últimas, a partir de pretensas relações dialéticas da n::::tureza, deve ser considerado completamente errôneo. As relações dialéticas da práxis só podem ser concebidas por um ser que, como o homem, não é um sujeito puramente contemplativo, mas um indivíduo que atua em situações históricas e, mais exatamente, um indivíduo que se encontra em relação com os outros em condições de carência. A dialética não é um esquema a priori mediante o qual se podem ordenar os fatos, nem é o automovimento de uma razão detrás das coisas; ela atua nas coisas enauanto est::::s estão "humanizadas" como objetos da práxis humana, as~im como no trabalho se coisifica a atividade prática. Estamos submetidos às leis dialéticas enquanto as criamos; somos dependentes e autônomos ao mesmo tempo, porque a práxis humana é práxis social. Como ator da dialética, o indivíduo vivencia a si próprio como independente e as reh:ções dialéticas como racionalmente transparentes; enquanto os demais são considerados autores das relações dialéticas, o indivíduo se sente submetido à necessidade dialética. Sartre contrapõe à idéia de um<: dialética da natureza sua concepção de uma dialética humana, para a qual são fundamentais, não as relações externas que se dão t::::nto entre indivíduos como entre indivíduos e natureza, por inegáveis que sejam, mas as relações de interioridade entre homem e homem ou como homem e coisa, ainda que não raro de maneira velada (CRD 381132). É preciso partir dos indivíduos, dado que, segundo Sc:rtre, a dialética só pode ser a "totalização das totalizações conscientes", as quais, por sua vez, são criadas pelos indivíduos ( CRD 39 I 132). O conhecimento de relações dialéticas supõe que o cognoscente pertença à totalidade dialética que está por conhecer. Considerando que a totaliz::::ção tem essencialmente caráter prático, isto significa: "A dialética, pela lógica viva da ação, não pode ser descoberta pela razão contemplativa" (CRD 391133). A questão que Sartre se põe é a de "descobrir o jogo complexo de práxis e totalização" ( CRD 41 I 134). O esquema da solucão foi estabelecido já pela idéia de Hegel, segundo a qual a consciência se concebe no outro e concebe o outro como a si mesma. Sartre, que se confessa clara-
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mente materialista, quer livrar este esquema da interpretação idealista, dada por Hegel, para poder demonstrar "que a práxis de todos tem que [e revelar como movimento dialético a cada um e como necessidade de sua própri<: práxis; tem que ser redescoberta em todos, para revelar· lhes uma dialética que se cria e que os cria, na medida em que ela própria é criada" (CRD 39/133). O esquema de relações dialéticas, no sentido da totalização, pode ser feito racionalmente tr"nsparente pela reconstrução de nossa experiência e de suas condições materiais ( CRD 41 I 134). A teoria da totalização que Sartre procura d~senvolver é, portanto, ao mesmo tempo, teoria da experiência na práxis social. Para Sartre tr
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Aqui reaparece, sob as condições modificadas da nova problemática, a relação de em-si e para-si, característica da dialética das posições anteriores de Sartre; o em-si se revela agora como totalidade "inerte" e o para-si como :::ção totalizante. A inteligibilidade das relações dialéticas reside no fato de que o sujeito toma parte, não somente praticamente em sua criação pela ação, como também cognitivamente. O conhecimento totalizante não se acrescenta secundariamente à totaliz::!ção ontológica, mas é um momento da totalização como tal ( CRD 48/139). A quintessência do pensamento sartriano parece estar contida nas frases seguintes: "Assim, a dialética é atividade totalizante. Não tem outras leis que não sejam as regras produzidas pela totalização que se processa, e estas dizem respeito naturalmente às relações da unificação com o unificado, isto é, às espécies de presença efetiva de vir-a-ser totalizante nas partes totalizadas. E o conhecimento, que é totdizante, é a totalização mesmo, tal como está presente em determinadas estruturas parciais. Em outras palavras, ~e existe um estar-em-si-mesmo, consciente da totalização, só é possível enquanto est::: é atividade ainda formal e sem configuração, que unifica sinteticamente" (CRD 48-50/140). A dialética da totalização, esboçada por Sartre, se distingue essencialmente da dialética de Hegel pelo fato de que parte de indivíduos que não se encontram em meras relações externas, mas que são capazes de interiorizar estas relações e de refletir sobre elas. Estas conexões sociais, que se caracterizam por relações de exterioridade e de interioridade, não são uma totalidade, mas o resultado da totalização "na qual somos e que somos" (CRD 58/147 ). Por isso, as relações dialéticas são inteligíveis uma vez que podem ser apreendidas na realidade e, ao mesmo tempo, podem ser entendidas como produzidas na totalização, na qual cada um de nós cria aquelas relações e as padece ao criá-las (CRD 59/147). A razão dialética, segundo Sartre, não é uma faculdade receptiva de constatação de refações dialéticas, mas uma faculdade constitutiva. Também não é uma faculdade extra ou supratemporal, porém completamente histórica; assim, pois, não pode haver, segundo Sartre, uma dialética que não seja histórica. Para Sartre, a práxis é, em primeiro lugar, sempre práxis do indivíduo que se encontra sob condições materiais, mas que age com base em um projeto livre. A admissão de uma independência originária do
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indivíduo forma a base do "nominalismo dialético" de Sartre ( CRD 39I 132), segundo o qual o real em sentido próprio não são os universais dialéticos que se produzem na totalização, mas os indivíduos em sua atividade totalizante; enquanto o marxismo procura explicar as rel<1ções sociais partindo das ·leis que dominam as estruturas básicas econômicas. Sartre quer ir mais a fundo e explicar que a possibilidade de sua dialética não consiste propriamente no fato de que tenha sido desenvolvida com a intenção de possibilitar uma fundamentação crítica do marxismo cujas teses principais, em seu conteúdo, são aceitas por Sartre.23 É preciso reconhecer que o intento de Sartre de fundamentar dialeticamente o marxismo leva a modificações decisivas na teoria marxista. Para tirar da dialética marxista da sociedade o caráter das relações objetivas, só constatáveis, mas não evidentemente inteligíveis, Sartre vai das relações objetivas para a práxis, na qual estão baseadas, e desta ao suieito da práxis, ao homem. Por isso pôde caracterizar sua meta também como formulação de "Prolegômenos a toda antropologia futura" (CRD 68/153), nos quais devem ser mostradas as condições de possibilidade da totalização.
Segundo Sartre, a natureza se caracteriza como historicamente cunhada pela necessidade de ser ativamente sob condições de carência. A necessidade condicionada pela carência e a estrutura das comunidades que possibilitam a satisfação das necessidades, no âmbito unitário da prixis, são imanentemente dialéticas em Sartre. Cada práxis está submetida à alienação porque, quando realizada, se transforma em . outro. Este tipo originário de alienação dá origem, segundo Sartre, a todas as demais formas de alienação. À finalidade da práxis humana corresponde uma anti-finalidade, à práxis uma anti-práxis ( CRD 132/202). A matéria trabalhada é, a bem dizer, práxis individual e coletiva alienada. Com isto, por um lado, na matéria trabalhada se unem as ações dos indivíduos, por outro lado, elas lhes escapam até certo ponto. O decisivo é que a alienação, tal como a entende Sartre, não é superável. A matéria trabalhada pelo homem forma (junto com os homens, enquanto objetos) o campo prático inerte, com o qual se depara a práxis livre e pelo qual ela é inexoravelmente influenciada. O prático-inerte, a cujo âmbito pertencem as "séries': pode ser transcendido pela ação do "grupo", segundo ele. O grupo, definido pela
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tendênciG à integração completa e à práxis pura independentemente do inerte, constitui uma tentativa de superacão ativa da ~erialidade como "atualização prático-inerte de uma relação com outra" (CRD 283/316). O grupo é caracterizado pela tendência à negac.ão da alienação, da dependência com respeito ao prático-inerte, pela tendência, pois, à reconstrução da liberdade do indivíduo. A dialética do grupo é o segundo tipo próprio de uma dialética, ao lado da dialética da práxis individual, enquanto que o campo prático-inerte se define como anti-dialético ( CRD 341/359). Os dois tipos de dialética se. distinguem pelo fato de que a dialética da práxis individual é constituinte e a didética do grupo é constituída. No grupo existe, segundo Sartre, um conflito entre o individual e o comum, na medida em que os dois momentos ~e opõem entre si e, ao mesmo tempo, se determinam mutuamente (CRD 617/567). A atividade comum do grupo opera de uma maneira integrante no campo prático-inerte, mas não escapa à alienação, seja no sentido da objetivação, seja no do endurecimento de suas estruturas, que ela deixa se degradar, de novo, ao nível de coletivos inertes. Com a dialética desenvolvida na obra de 1960, não parece ter sido simplesmente mantida a dialética de 1943, mas "superada" no duplo sentido hegeliano da palavra. A dialética da práxis, tal como Sartre a caracteriza na Critica da Razão Dialética, pode Eer aproximada da dialética de Marx nos Manuscritos Econômico-Filo~· 5ficos de 1844, e seu componente "idealista" (valorizado ora positiva, ora negativr:mente) pode ser interpretado como a dialética "superada" da consciência. Estas poucas observações sobre as relações de conteúdo da filosofia social sartriana servem somente para concretizar a discussão do método dialético que Sartre apresentou detalhadamente em Marxismo e Existencialismo (Question de méthode) e em digressões esporádicas dicas na Crítica da Razão Dialética. c)
Dialética e método analítico
O método dialético de Sartre pode ser caracterizado como :::. união do método analítico da explicação e do método hermenêutico da compreensão. O fato de que, além disso, ele pode ser relacionado com o método da filosofia transcendentd não contradiz o afirmado, uma vez
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que, como explicado anteriormente, é preciso entender a filosofia transcendental como intento de desenvolver uma teoria da experiência com os meios do método analítico. Em Marxismo e Existencialismo (Question de méthode), Sartre descreveu o método tendo em vista um determinado setor de aplicação, ou seja, como meio de interpretac:ão de obras literárias. Para poder entender fatos de âmbito cultural, sobretudo obras literárias, é preciso proceder regressivamente, isto é, é preciso remontar-se às suas condições, por exemplo, à estrutura psíquica do autor. É preciso mostrar como deve ter sido a estrutum da personalidade do autor, para que sua obra possa ser interpretada desta maneira determinada, como sua objetivação ou sua alienação. Segundo Sartre, o regresso se efetua "em forma de um "descemo" a partir do absoluto concreto" em direção às suas "condições mais abstratas" (ME 116/CRD 92). Para se alcançar a meta explicativa, é preciso que se.ia realizada uma "totalização" das condições abstratas, isto é, é preciso incorporá-las ao contexto geral (cultural, político, social, econômico) da época em questão; depois se procede à explicação do fato do qual se partiu, à luz do conhecimento daquele contexto geral. Com este "progre:;so", a tentativa de explicação encontra seu fim (próximo). Sartre depara aí com uma dialética que corresponde, em grandes linhas, ao que comumente é chamado de "círculo hermenêutica". As expressões "regresso" e "progresso" indicam - assim como a caracterização do método a análise em sua significação tradicional, com os aspectos da "re:;olução" e da "composição". É preciso relacionar a "totalização" sartreana com o momento da formação da hipótese, essencial para o método analítico de explicação. De acordo com a tendência geral de sua filosofia, Sartre não concebeu as relações metodológicas como puramente teóricas, mas estabeleceu uma relação com a práxis, entendendo por "regresso" o projeto de um campo de possibilidade. Ele interpreta a totalização como o ato de ultrapassar o âmbito individual !'>Or referência às condições sócio-econômicas, e concebe o progresso como explicação de atos individuais bnseados no conhecimento da estrutura da totalidade social. Dentro desta interpretação, a dialética se apresenta como relação recíproca entre indivíduo e totalidade social, enquanto os indivíduos produzem a totalidade social e determinam sua estrutura pela ação, estando, ao mesmo tempo, determinados em sua ação por esta estrutura.
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A relação dialética referida pode ser concebida, também em Sartre, como resultado de uma determinada concepção da explicação. Entre as premissas gerais de explicações (regressivo-progressivas) e as proposições que se deduzem, sobre o fato que reclama uma explicação (o explanandum), existe, em certo sentido, uma relac;ão dupla de condição: as premissas são condicionadas pelo explanandum enquanto são estabelecidas para deduzi-lo, e o explanandum é condicionado pelas premissas enquanto é deduzido delas (e de certos dados iniciais). Ordenando-se ao explanandum uma matéria particular e às premissas uma matéria geral (uma essência ou algo parecido), então resulta, de acordo com as relações dos enunciados no argumento de explicação, uma relnção recíproca entre ambas as espécies de matéria, que se caracteriza como dialética. No sentido desta conce!_Jção metafísica, Sartre não parte, por exemplo, do fato de que nosso conhecimento sobre a personalidade de um poeta se enriquece, se esclarece, se corrige, etc. Através do conhecimento de su aobra, porém, declara: "a vida (do autor) é esclarecida pela obra" (ME 114/CRD 90). De modo semelhante, Sartre considera a situação de uma classe como algo geral, através do qual são formadas as experiências concretas dos indivídu03 que pertencem a esta classe. Na Crítica da Razão Dialética, Sartre fez valer este método, acentuando especialmente sua dimensão prática. Segundo Sartre, o método dialético é tanto regressivo como progressivo. É regressivo "porque parte da experiência para reencontrar, pouco a pouco, todas as estruturas da práxis" ( CRD 40-41 I 134). Como método regressivo, revela todavia só as condições de possibilidade das totalizações. Por isso, é necessário fazer valer o aspecto progressivo do método dialético como complemento do aspecto regressivo, isto é, "reconstruir" a realidade histórica com base nas relações (variáveis, contraditórias), o que certamente significa mediante proposições sobre relações histórico-sociais globais ( CRD 7/155). Assim como os filósofos, que a partir de Descartes procedem analiticamente, opõem, seinpre, o método analítico ao sintético, tomando como modelo os Elementos de Euclides como o método fecundo que serve à aquisição de conhecimentos e não somente à explicação, assim também Sartre entende seu método dialético em oposição ao método "sintético" do marxismo, que consiste, segundo ele, .na explicacão de estruturas sociais e eventualmente de comportamentos individuais por meio de suposições sobre as relações de pro-
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dução ( CRD 53/143). Sartre parte, todavia, "do imediato, isto é, do indivíduo ( ... ), do homem histórico" (CRD 54/143) , para poder tornar concebível a possibilidade da atividade totalizante. Na medida em que o método dialético na Crítica de Razão Dialé· tica deve tornar concebível a possibilidade da totalização a partir de suas condições, é natural compará-lo com o método da filosofia transcendental. Embor.: as coincidências se manifestem claramente, não se pode ignorar,contudo,uma diferença entre o método dialético de Sartre o último nretende desenvole o método da filosofia crítica: enauanto ver uma teoria da experiência, cujos princípios são introduzidos hipoteticamente, Sartre pretende poder experimentar apoditicamente as condições de possibilidade das totalizações, porque o experimentador, "que vive dentro de uma esfera de totalização, pode entender os entrelaçamentos internos que os unem ao movimento totalizante" ( CRD 52/142) . Aqui,a razão dialética- que é contraposta ao pensamento "analítico", "positivista" d.: ciência "burguesa" tem seus direitos. Contudo, não se pode suprimir a questão, se a crença na superioridade da razão sartreana frente ao entendimento da "ciência burguesa" não é talvez uma ilusão e a diferença entre método didético e método analítico-burguês uma aparência que desaparece assim que nos afastemos das pretensões e nos orientemos para as relações concretas. Um aspecto positivo da didética de Sartre é no fato de ela não estar comprometida com a suposição de leis fundamentais dialéticas ( cf. CRD 45 I 147) . A doutrina da contradicão dialética igualmente não desempenha papel algum. Quando fala da transformação da quantidade em qualidade ou da negação da negação entende com isso relações condicionadas pela prática. Também para S::::rtre é válido que omnis determinatio est negatio, porfm entende por "negação", no sentido de uma categoria elementar, "uma relação prática e unilateral de ínterioridade" (CRD 356/370-371). Dentro de uma totalidade social, a práxis realiza a formação de complexos parciais que entram em uma relação antagônica, desde que não contenham todos o mesmo grau de diferenciação social. Esta primeira "negação" é superada por uma segunda, se se estabelece uma compensação das diferenças, se os antagonismos desaparecem e a unidade originária da totalidade social é restabelecida, porém,
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agora, de forma mais diferençada (CRD 48/139: cf. 90-91/170-171). Tanto a afirmação, como negação da negacão, quanto a transformação da quantidade em qualidade só são possíveis - parél Sartre - se as relações entre a parte e o todo são de interioridade (CRD 49N/130-140 nota). Sartre queria dar ao materialismo histórico um fundamento dialético distinto do pretendido pelo materialismo didético. Uma tal fundamentação, porém, parece não ser possível sem uma modificação radical da posi~?ão marxista. Visto do ponto de vista metodológico, tratase, para Sartre, de procurar conceber a dialética a partir de suas origens teórico-experimentais. Por "experiência" não se entende somente uma relação teórica, mas uma relação que é, ao mesmo tempo, essencialmente prática. Apesar desta diferença com respeito à teoria clássica da experiência, a relação metodológica entre o método dialético de Sartre e o método analítico da teoria da experiência, tal como foi desenvolvida a partir do século XVII, é tão clara que os esforços de Sartre para reconstruir a dialética podem ser considerados como cc~l firmação da tese da unidade fundamental do método analítico e dialé· ticc. Se nos perguntamos por traços comuns entre os intentos não ortodoxos para se reconstruir a dialética em apoio a Marx é preciso, em primeiro lugar, lembrar um elemento das tentativas que a ortodoxia do materialismo dialético costuma considerar como suspeito de "idealismo''. Este pretenso idealismo aparece em alg:umas variantes, claramente distintas umas das outras, ora inclinando-se para a tradição idealista da dialética (precisamente para Hegel), ora assumindo o método transcendental. Em todos os casos, porém, reveh:-se como centro da atitude que se designa, de modo bastante inexato, como "idealista", a convicção de que a dialética se fundamenta em uma teoria analítica · da relação sujeito-objeto, entendendo-se esta relação como fundamentalmente prática, em oposição à dialética idealista em sentido próprio. Os represent<::ntes desta tendência do pensamento dialético, considera· dos como representantes do materialismo dialético, baseiam suas exigências sobretudo neste fato. Por importante que seja a concentração no aspecto prático da relação sujeito-objeto, mais característico ainda p::.rece ser, para a dialética não ortodoxa que segue a Marx, aque~c traço comum que consiste em rejeitar uma dialética objetivista do tipo
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da dialética da natureza de Engels. É preciso considerar, portanto, que a razão decisiva pela qual a ortodoxia maxista acusa de idealismo os autores tratados neste capítulo está na acentuação do momento subjetivo da dialética, o qual não pode ser abolido. Notas- Capítulo I I I
1 M. Adler: Marx und Engels als Denker. (lntrod. de Th. Meyer). Frankfurt a.M. 1972, p. 33. 2
M. Adler, op. cit., p. 204.
3 Com respeito a Adler cf. P. Heintel: System und ldeologie. Der Austromarxismus im Spiegel der Philosophie Marx Adlers. Münchem 1967. 4
K. Korsch: Marxismus und Philosophie (ed. E. Gerlach). Frankfurt a.M, und Wien 1966, p. 128.
5
Cf. K. R. Popper: "What is Dialectic?" Em: Conjectures and Refutations. Londres, 2~ ed. 1965, págs. 312-335.
6
K. Korsch; 1. c., p. 176.
7
Citado na introdução a K. Korsch de W. Gerlach, op. cit., pág. 21, nota.
8 Citado em E. Gerlach, 1. c. págs. 22-23. 9
K. Korsch: Karl Marx (Frankfurt a.M. e Wien 1967).
10
H. Marcuse: "Zum problem der Dialektik". Em: Die Gesellschaft, VIl (1930), p. 27. A historicidade, essencial ao modo de ser dialético segunMarcuse, também é a idéia diretriz de sua obra: Hegels Ontologie und die Grundlegung einer Theorie der Geschichtlichhe.ft (Frankfurt a.M. 1932).
11
A seguir citado segundo a edição especial da coleção Luchterhand, Neuwied e Berlim 1970. Com respeito a Marcuse e Adorno cf. G. Rohrmoser: Das Elend der Kritischen Theorie. Freiburg 1970.
12
Aqui e a seguir citado segundo a edição científica especial da edição Suhrkamp, Frankfurt a. M. 1970.
13
A seguir as indicações de páginas se referem a: M. Markovíc: Dialektik der Praxis. Frankfurt a. M. 1968 (edição Suhrkamp, 285).
14
Com respeito ao desenvolvimento filosófico e político de Lukács cf. G. H. R. Parkinson: "Introductidn" a: G. Lukács. The Man, His Work. His ldeas (ed. Parkinson). Londres, 1970.
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Além disso: V. Zitta: Georg Lukács' Marxism, Den Haag 1964, como também G. Lichtheim: Georg Lukács. München 1971 (dtv 748).
15
A seguir será citado indicando-se o volume e .a página de acordo com a edição das obras completas de Lukács, publicadas pela Editora Luchterhand. Os números sem indicação de volume se referem ao vol. II ( = Escritos da primeira Fase li) Nevwied e Berlim, 1968.
16
Cf. L. Mészáros: Lukács' Concept of Dialectic. Em: C. H. R. Parkinson (ed.): Georg Lukács. London 1970, p. 77.
17
A "Ontologia do ser social" é citada segundo as seguintes publicações par- . ciais da coleção Luchterhand, uma vez que ainda não foi publicada nas obras completas: Hegels falsche und echte Ontologie ( 1971) ; Ontologie Marx (1972); Ontologie- Arbeit (1973).
18
A seguir citado como "SN" com indicação da tradução alemã por J. Streller, Hamburg 1052 e, separado por traço oblíquo, a página do original. Traduções do autor são assinaladas com "EN".
19
Cf. G. Seel: Sartres Dialektik. Bonn 1971 (Ahh. z. Phil. Psych. u. Pad., 68) . Ademais K. Hartmann: Grundz.üge der Ontologie Sartres in Ihrem Verhaltnis zu Hegels Logik. Berlim 1963.
20
Com "ME" se remete a: Marxismus und Existenzialismus (Reinbeck 1964) a sigla CRD remete ao lugar correspondente de : Question de Méthode ( = Introdução à lá critique de la Raison dialectique) em sua tradução para o alemão por T . Konig (Reinbeck 1967).
21
A abreviação "Ego" se refere a: Die Transzendenz des Ego (Reinbeck 1964).
22
K, Hartmann: Sartres Sozialphilosophie. Berlim 1966, p. 15. Para a crítica cf. R. Aron: Die Heiligen Familien des Marxismus, Hamburgo 1970, págs. 105 ss. Com base numa concepção da dialética que foi elaborada primariamente em vista da sociologia, G. Gurvitch analisa Sartre: Dia/ectique et sociologie (Paris 1962).
23
A filiação de Sartre com respeito à tradição do pensamento filosófico transcendental - expressamente referido por K. Hartmann - levou os representantes do marxismo ortodoxo a atacar o subjetivismo e odealismo de Sartre. Assim, p. ex. Schwarz: J. P. Sartres Kritik der dialektischen Vernunft. Berlim, 1967.
CAPíTULO IV
RESUMO E PERSPECTIVAS* No pensamento científico e filosófico atuam sempre duas tendências complementares entre si: uma destas tendências se ordena à busca da maior unidade sistemática possível de conhecimentos múltiplos. Sua meta é a subsunção de constatações especiais e pressupostos sob alguns poucos princípios gerds, os quais devem tornar inteligível a conexão dos fatos de um determinado campo do saber. A outra tendência busca a especificação dos princípios gerais. Sua meta é o maior desdobramento possível de conseqüências a partir dos princípios. Embora ambas as tendências da investigação científica e filosófica sejam igualmente essenciais para o desenvolvimento da ciência ou da filosofia, em determinadas fases do trabalho intelectual uma ou outra irá se destacar com mais vigor. No presente livro houve uma predominância muito maior da primeira - dirigida a princípios gerais sobre a tendência oposta, voltada à especificação. Considerando a amplitude tomada pelas obscuridades, pelos mal-entendidos e erros que afetam com demasiada freqüência a avaliação da filosofia dialética não só entre seus adversários, mas também - e quase ainda mais - entre seus defensores, pareceu necessário dirigir a atenção aos pressupostos primários da filosofia didética, para possibilitar uma clara compreensão de sua peculiaridade e uma avaliação correta de suas pretensões. Para se alcançar este objetivo foi preciso que a investigação se limitasse à filosofia dialética ou a seus princípios, fazendo-se abstração de uma análise das pretensas relações dialéticas no âmbito das ciências particulares, como também da pretensa dialética da história. Com maior razão não pode ser levada em conta a chamada teologia
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Redigido expressamente para as edições espanhola e brasileira; não consta da edição alemã.
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dialética. Além disso, foi preciso renunciar a uma discussão das conseqüências políticas das concepções dialéticas. E, finalmente permaneceram fora de consideração todas .:quelas idéias que só em um sentido amplo e impreciso se chamam "dialéticas", as quais têm claramente pouco a ver - a não ser o mesmo nome - com a dialética no sentido próprio da palavra. A seguir, queremos apontar certos aspectos do pensamento dialé· tico, omitidos por boas razões na presente investigação, no âmbito da história, da sociedade e do conhecimento científico-social; nossa consi· deração terá que ser, contudo, muito sumária e esquemática. Antes de pr:ssarmos ao exame destes aspectos, convém fazer um resumo dos principais resultados das análises precedentes sobre a estrutura, pressupostos e implicações teóricas da abordagem dialética na filosofia. 1.
A teoria dialética da experiência. Dialética como lógica e como método.
a)
A teoria dialética da experiência.
Na filosofia moderna tentou-se, com insistência, obter os princípios supremos da filosofia (e os princípios mais gerais da ciência, pretensamente dependentes daqueies), com o auxílio de uma teoria da experiência. Como ponto de partida, serviu aqui o fato de que existe experiência em geral, ou seja, de que objetos nos são presentes ou de que algo se manifesta. O fato da aparição, que segundo Hobbes é a mais admirável de todas as aparições, deveria ser entendido conceitualmente, deduzido de pressupostos sobre a "essência" tanto do suieito .como do objeto. No sentido deste intento de explicação, a dialética idealista supôs que o sujeito "põe" o objeto, e este último, com isso, é fundamentalmente du mesma natureza que o sujeito; somente aparece a este como algo estranho, ainda que, em verdade, o mesmo seia da mesma natureza que o sujeito, a saber, espírito. De um modo formalmente semelhante, ainda que sob outros pressupostos materiais, os defensores du dialética materialista supuseram que as coisas com as quais o homem tem a ver estão constituídas pela práxis humana. E ainda que estas apareçam como algo independente ou mesmo estranho ao homem, fundamentalmente dependem da práxis. Tanto na teoria idealista como na materialista se aceita a unidade fundamental de sujeito e objeto para tornar compreensível como pode haver uma
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relação entre ambos, ainda que empiricamente esteiam opostos entre si. A relação de sujeito e objeto, quer na experiência quer na prática, está definida como unidade de opostos ou como contrariedade na unidade e, neste sentido, é "dialética". Esta relação é também o modelo daquelas relações dialéticas que, segundo a convicção dialética, constituem a história, a sociedade e (como aceita uma parte dos teóricos da dialética) eventualmente a natureza. A teoria da experiência é, destarte, uma teoria análoga às teorias científicas, na medida em que suas premissas são pressuposições, ou seja, contêm conceitos obtidos da experiência por r.bstração ou conceitos diretamente redutíveis a conteúdos da experiência. O sujeito que se põe a si mesmo e que põe os objetos não é, como já o formulou Fichte, um eu experimentável, e seu conceito, portanto, tampouco é um conceito empírico. A pressuposição de que tanto o objeto da experiência como o sujeito empírico são "posições" do Eu Absoluto, se faz, claramente, a fim de que essa relação entre sujeito e obieto, designada corno "experiêncir.': seja concebida corno possível. O conceito do Eu Absoluto só tem significação - analogamente à construção teórica no âmbito das teorias científicas - em concatenacão com a teoria em questão. Em conformidade com a metafísica essencialista que está na base da filosofia dialética, as premissas especulativo-hipotéticas da teoria dialética da experiência são interpretadas corno asserções sobre a essência da experiência e, portanto, os conceitos contidos nelas, corno por exemplo o conceito de "Eu Absoluto", são hipostasiados: a filosofia didética admite que o "Eu Absoluto" não é somente um conceito teórico introduzido para fins de explicação, corno também designa algo real, mais ainda, algo real que o eu empírico. Dentro dos pressupostos de urna tal interpretação ontológica de conceitos e relações, contidos na teoria da experiência, resulta aquela dialética do Eu Absoluto, eu empírico e objeto, a partir da qual este livro reconstruiu a filosofia dialética no sentido estrito, além disso essa dialética, como mais adiante veremos, oferece o modelo do pretenso movimento dialético da história. A dialética da experiência é, em primeiro lugar, urna dialética entre a consciência de objeto e a consciência de si: o suieito não tem experiência direta de si mesmo, mas só dos objetos. Nos objetos o sujeito se experimenta, urna vez que o obieto, na medida em que
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é posto pelo sujeito, contém um momento subjetivo que se apreende na experiência de objetos. A autoconsciência está, como o formulou Hegel, "medida" pela consciência de objetos, a qual depende por sua vez do eu, de sorte que a autoconsciência aparece como "medida em si mesma". Esta dialética se origina primeiramente no quadro da teoria idealista da experiência, porém nãc· permaneceu restrita a esta, pois foi reinterpretada parcialmente, de maneira materialista, pelo jovem Marx, tendo sido, neste ponto, seguido por diversos dialéticos neomarxistas. Não se deve, entretanto, ignorar que a dialética marxista da práxis não poderia negar completamente sua relação de dependência para com a teoria idealista da experiência. A dialética idealista da experiência é, em segundo lugar, uma dialética entre o Eu Absoluto e o eu empírico, o qual se caracteriza por sua referência intencional a objetos. A oposição de sujeito e obieto permanece relativizada em virtude de que o sujeito e o objeto empíricos são apreendidos como meros momentos de uma totalidade, que é posta frente a eles como algo absoluto ("Eu Absoluto"). O Eu Absoluto de teoria idealista da experiência, e também o sujeito-objeto da filosofia m:::rxista de práxis, é considerado, segundo esta concepção, como fundamento da diferença e ao mesmo tempo da unidade de sujeito e objeto. O Eu Absoluto deve "estranhar-se" ou "alienar-se" em outro como o oposto de si mesmo, para reencontrar-se finalmente nele, relativizando a oposição como relação polar de momentos não independentes. A relação de sujeito e objeto, peh: qual a concepção tradicional (moderna) havia definido a experiência, pode ser concebida como possível, porque sujeito e objeto são momentos de uma totalidade, na qual se concatenam de modo tão essencial que sua consideração iso· la da é "superada" por sua consideração conectiva (como simples momentos da totalidade). As relações apontadas dentro da teoria dialética da experiência oferecem o modelo de todas as formas especiais da dialética, especialmente da dialética da totalidade social. Em todos os casos resultam relações dialéticas somente sob a suposição de uma totalidade que se diferencia em momentos e simultaneamente fundamenta sua unidade. Totalidade, neste sentido, não é nunca um fato objetivo. Isto vale tam· bém para as totalidades sociais, das quais Sartre mostrou que somente
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podem ser concebidas sob a condição de que possam ser reduzidas aos utos de totalização. b)
A exigência de uma lógica dialética.
A dialética sujeito-objeto oferece o modelo, não só da dialética da natureza (não reconhecida por muitos representantes da dialética) e da dialética da sociedade, mas também fundamenta a idéia de uma lógica dialética distinta da tradicional. Já Descartes havia defendido a tese àe que a fundamentação do primeiro princípio da filosofia não se faz com os meios da lógica formal, pois o princípio "pen<:o, logo existo" não é deduzido de nenhum pressuposto uxiomático. De modo semelhante, os defensores da filosofia dialética pós-kantiana argumentaram que os princípios filosóficos não podem ser fundamentados com o auxílio da lógica, pois esta pressupõe categorias tais como "afirmação", "negação", "fundamento", "conseqüência:· etc.; estas categorias, todavia ,são produzidas originariamente na fundamentação filosófica. A relação de sujeito e objeto, que se caracteriza pelo fato de que o sujeito se realiza a si mesmo pela posição de um objeto como algo diferente, parecia, além disso, não poder ser exprimida no quadro de uma lógica que se baseasse no princípio de contradição. Os representantes da dialética acreditaram, portanto, que teriam que postular uma lógica que não se basec:sse no princípio de contradição. Também se tentou fundamentar a exigência de uma lógica dialética de outro modo, partindo da afirmação de que o conceito de movimento (ou transformação) é contraditório, conclui-se que a lógica formal tradicional, apoiada no princípio de contradição, forçosamente deixaria o fato do movimento inex~licado, como algo alógico, revelando-se como um instrumento inadequado para conhecer a realidade, que deveria ser substituído ou completado por uma lógica dialética; esta seria capaz de apreender a realidade essencialmente móvel e, portanto, contraditória. A lógicc: dialética se apresentava, pois, para seus representantes, como lógica realista, com conteúdo real efetivo, enquanto que a lógica formal se apresentava como pura construção mental a partir de abstrações desprovidc:s de conteúdo. Ainda que a última afirmação seja de certo modo procedente, uma vez que os princípio3 da lógica formal têm validez para toda a realidade, pois não contêm informação alguma de conteúdo sobre a realidade - é altamente
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questionável a afirmação de que uma lógica que supera o princípio de contradição seja uma lógica corrigida de conteúdo real. Sem que seja necessário discutir sistematicamente este problema, podemos constatar que uma lógica dialética, até hoje somente postulada, jamais foi desenvolvida e que, nesse ínterim, muitos dialéticos, mesmos seguidores do materialismo dialético, abandonaram a exigência de uma lógica dialética que concorresse com a formal. Aqueles que insistem na idéia de uma lógica dialética têm grandes dificuldades em definir a relação entre a lógica dialética (somente postulada) e a form
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conceito de "movimento", o qual tem sido sempre invocado para justific&r aquela exigência. c)
O programa de um método dialético.
Quando a exigência de uma lógica dialética como lógica da realidade, segundo os representantes da filosofia dialética já não pode ser, ao menos, mostrad<:, busca-se afirmar que a dialética seja um método próprio do conhecimento dâ -realidáde em sua plenitude concreta e mutabilidade. Neste ~entido, tentou-se e se continua reiteradáment~ tentando caracterizar a dialética como o método segundo o qual o pensamento tem que "se .:justar" à realidade. Isto deve acontecer especialmente em virtude de uma adaptação aos conteúdos experimentados feita através de correcões contínuas do aparato conceitual, tanto da filosofia como das ciências. 1 Se, com isto, fosse entendido somente que os conceitos e pressupostos~ que se torm~ram inúteis na ciência, sejam substituídos por outros que permitam uma explicação mais satisfatória dos fatos observados e de suas relacões, então seria difícil distinguir o método dialético dos métodos não-dialéticos. Todavia, ao que tudo indica, a metodologia didética pretende muito mais; esta pretensão se manifesta na medida em que se considera a exigência de que a dialética seja um método "concreto", ou seja, um método do conhecimento da re&lidade "in concreto". Enquanto a realidade é definida como móvel e como contraditória, o método dialético permanece implicitamente relacionado com uma determinada ontologia. No q_ue toca primeiramente à exigência de "concreção", deve ser lembrado que as explicações científicas, segundo & concepção moderna, nunca atingem os fenômenos na plenitude de suas determinações, mas somente fatos concernentes a um fenômeno. De sorte que seria errado exigir uma explicação da lua, ao p&sso que tem sentido procurar por uma explicação do fato de que a lua apresenta à Terra sempre o mesmo lado. Se, desde Hegel, os dialéticos acreditam ver na impossibilid2.de de uma explicação de fenômenos na plenitude de suas Jeterminações uma deficiência do modo de explicação analítico-cien· tífica, é preciso notar que esta prete!lsa deficiência tampouco pode ser superada com os meios do método dialético. Naturalmente, pode-se exigir que novos fatos concernentes a um determinado fenômeno fejam expliçados mediante a formulação de leis novas ou mais r.erais; a investigação científica seguiu sempre esta exigência. Não se pode, porém,
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supor que se consiga algum dia explicar todos os fatos concernentes u um determinado fenômeno, Ee possível, com os meios de uma única teoria abrangente. A exigência de "concreção" feita pelos defensores da dialética corresponde a um ideal do qual podemos nos aproximar no processo da evolução científica, mas que jamais pode ser realizado. Este ideal é visado, quando os representantes da dialética exigem que ~ explicação de fatos seja submetida à "categoria" da totalidade. Com respeito à exigência feita pelos dialéticos de que a explicação de fatos atenda à "mobilidade" da renlidade, é preciso observar que não se trata aqui da mutabilidade das coisas, dos seres vivos c espécies de seres vivos, mas da evolução da essência das coisas ou seres vivos, incluindo o homem. Em uma palavra, a tese da "mobilidade" da realidade não é uma generalização empírica, mas uma suposição metafísica. Os seguidores da dialética deduziram desta suposição a conclusão de que também a "mobilidade" (ou, como diz Hegel, o automovimento) dos conceitos deve ser reconhecida. Assim como no aristotelismo QS espécies e gêneros imutáveis do ser foram postos em paralelo aos conceitos invariáveis destas espécies e gêneros, assim os dialéticos estão convecidos de que, paralelamente à essência "móvel" da realidade, devem ser admitidos conceitos "móveis". Em ambos os casos, Q admissão do paralelismo de ser e conceito pressupõe a interpretação dos conceitos como "cópias" ou "reflexos" de essências em si. Assim, pois, a diferença específica do método dialético frente ao analítico se dá através de certas pressuposições ontológicas, com o 2uxílio das quais são interpretadas as relações características do método analítico de explicação. O complexo destas pressuposições pode· ria ser designado pela expressão "essencialismo dinâmico". A dialética como método é aquela variante do método analítico de explicação que w caracteriza por Qceitar que as premissas - que têm o caráter de lei - das explicações científicas "reflitam" a "essência" do âmbito da realidade que deve ser explicado, de sorte que essa "essência" não é uma natureza "imutável", mas concebida como em transformação ou evolução necessária. Além disso, é característico da dialética a exigência de explicação "total". A diferença é, pois, essencialmente de interpretação. Sempre que os representantes do método dialético formul<:m determinadas explicações para fatos, seu procedimento não
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se diferencia dos demais cientistas. Isto se manifesta claramente tanto em Hegel como em Marx. Só na interpretação ontológica aparece a diferença entre a concepção dialética e não-dialétic
2.
A interpretação dialética da história.
Um aspecto importante da dialética é, como se sabe, o histórico. As evoluções históricas devem estar submetidas a uma lei dialética e ser necessárias no sentido desta lei. Desde Hegel predomina, na teoria dialética da história, o esquema triádico de tese, antítese e síntese. Segundo este esquema, as evoluções dialéticas se processam em virtude de que cada posição tomada no campo da ordem social, jurídica, moral, científica, filosófica etc. dá lugar a uma contraposição. O conflito entre as posições concorrentes se termina - segundo a concepção dialética - não pela vitória de um dos respectivos opostos sobre o outro, nem tampouco por um compromisso ou equilíbrio superficial, mas pela produção de uma síntese das posições opostas. Por "síntese" se deve entender aqui a "superação" da contrariedade das posições, ou seja, a superação de sua unilateridade e a simultânea conservação do seu conteúdo positivo. (Recentemente tentou-se complementar o esquema triádico da evolução mediante outras leis evolutivas da natureza pretensamente dialética, · como deverá ser mostrado no próximo parágrafo. Aqui será apresentada, sobretudo, a concepção clássica da filosofia dialética).
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Só é preciso relembrar aqui, sumariamente, a idéia fundamental da dialética hegeliana: assim como há um c: relação dialética entre o sujeito e os conteúdos de experiência, do mesmo modo há uma relação dialética - segundo Hegel - entre o sujeito substancial absoluto como fundamento da realidade e a realidade como complexo de suas manifestações ou fenômenos. O espírito se desenvolve não apenas na natureza, mas também no mundo histórico, razão pela qual Hegel tem como possível e até necessário admitir na evolução dos fenômenos espirituais a mesma regularidade dialética que constitui o espírito como lagos.
•
As categorias sistemáticas, cuja soma é designada por lagos, se desenvolvem na realidade histórica de forma sucessiva. Por isso, a história da filosofia é u seqüência sucessiva desta forma, cuias relações dialéticas de sucessão são expressadas pela "Ciência da Lógica". Por conseguinte, é preciso que a seqüência das formas do pensamento seja também dialética. Assim como, por exemplo, a lógicc: exprime a seqüência das categorias de "ser", "não-ser" e "vir-a-ser", entendidas como automovimento "do conceito", da mesma forma a história da filosofia segue a evolução da metdísica desde a posição do ser como realidade verdadeira em Parmênides (tese) e a negação do não-ser (antítese) até a síntese, segundo a qual o ser é tanto como o nada, pois tudo é vir-a-ser. como ensina "o profundo Heráclito"2• Se a história fosse realmente "o espírito que se exterioriza no tempo"3 e se a "Ciência da Lógica" fosse realmente a representação sistemática da estrutura do espírito, então estaria justificada a pretensão hegeliana de reconstruir a evolução histórica do pensamento filosófico à luz da lógica - e isto significa da dialética. Não obstante, é demasiado otimista esperar que o processo histórico correspondc: às relações dialéticas de sucessão, como mostra o exemplo que se acaba de mencionar. Se o poema doutrinai de Parmênides deve ser incluído depois e não antes da obra de Heráclito, como crê a maioria dos historiadores de peso, então não se pode atribuir a Heráclito a síntese da posição unilateral do nada, atribuída a Parmênides. Ocorre algo semelhante com outros casos de reconstrução dialética das evoluções histórico-filosóficas, ainda que seja pl&usível o pensamento hegeliano de que as posições históricas, por serem unilaterais, ou seja, por serem meras verdades parciais, requeiram a contraposição e, em caso de estas estare:n comprometidas por uma unilateridr.de complementar, reclamem por
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uma síntese. Este pensamento é plausível como tal, ou seja, independentemente de sua interpretação metafísica. O fundamento da evolução dialética no âmbito da história da filosofia - e algo [:nálogo ocorre em outros âmbitos da realidade espiritual - é o princípio iiegundo o qual a verdade é a totalidade, portanto, um conhecimento parcial jam2is será verdadeiro. Poderia parecer natural que a dialética asseverada por Hegel, com respeito à evolução do pensamento filosófico, fosse também aceita com relação ao progresso do pensamento científico, de sorte que as teorias científicas se comportariam entre si como te~e e antítese, surgindo deste conflito, finalmente, uma teoria mais geral como síntese. Semelhante interpretação dialética da evolução do pensamento filosófico foi, contudo, recusada indubitavelmente por Hegel, uma vez que ele não estava disposto a reconhecer como científicas, no sentido estrito da palavra, as teorias das ciências naturais,devido ao seu cará· ter hipotético. Uma vez que, para Hegel, a dialética diz respeito àqueles conceitos que são elementos da "ciência" no sentido de sua metafísica especulativa, uma reconstrução dialética do progresso científico não podia entrar, para ele, em cogitação. Se se toma a resolução de - por exemplo - interpretar a relação entre teoria corpuscular e teoria ondulatória da luz como relação de tese e antítese e de ver sua síntese na mecânica ondulatória moderna, logo se lev~ntam ponderáveis objeções. K.R. Popper chamou a atenção4 para o fato de que o progresso,no âmbito das teorias científicas, poderia ser mais bem explicado recorrendo-se à teoria de ensaio e erro ( Trial and Erro r), segundo a qual, entre as várias teorias propostas, Ee impõe aquela que melhor resistir aos testes empíricos. A explicação dialética da evolução, no âmbito das teorias científicas, não pode fazer jus à circunstância de que ~ concorrência não se dá necessariamente entre duas, mas, eventualmente, entre várias teorias antitéticas. Antes de mais nada, os representantes da concepção dialética do progresso científico deveriam poder mostrar que somente os elementos positivos das teorias unilaterais e mais especiais ficam m~:mtidos na teoria mais geral. O fato é que as teorias mais gerais não são, via de regra, sínteses no sentido de conter resumidamente as partes aceitáveis das teorias especiais; ao contrário, contêm conceitos que não se encontram nas teorias mais especiais.
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Aquele que não compartilha os mesmos pressupostos metafísicos de Hegel estará prontamente disposto a estender a crítica feita por Popper à interpretação dialética da evolução do pensamento científico ao âmbito da evolução das teoriaf- filosóficas. Será preciso, porém, não perder de vista jamais que uma dialética das teorias científico-n~turais, segundo Hegel, não pode ser aceita de modo algum, pois, na ciência natural, não se exprime o espírito ~bsoluto, cujo desenvolvimento é a dialética, seja no âmbito da teoria da experiência (como na Fenome· nologia do Espírito), seja no das categorias (como na Ciência da Lógica), seja no da realidade e, especialmente, da realidade histórica. De acordo com os pressupostos de Hegel, não apenas a filosofia, a moral, o direito, mas também a política, a realidade social, ou, em geral, a história universal, são representações do Espírito Absoluto. A interpretação dialética é válida para Hegel não apenas para as teorias soci~ i s, para os sistemas jurídicos, constituições estatais, numa palavra: para o campo da ideologia, mas também para povos e Esta· dos, assim como para indivíduos, enquanto estes desempenham papel decisivo na história dos povos e Estados. Com base na suposição de que o Espírito do Povo é uma determinada forma de expressão do Espírito Universal, pôde Hegel ordenar determinados povos, enquanto portadores do progresso histórico universal, aos graus dialéticos da evolução do Espírito Universal, precisamente aos graus da independência natural, da liberdade substancial e subjetiva. No curso da história mundial, cujo objetivo é a realização da idéia de liberdade, se mostra não só a mencionada dialética de graus, em virtude da qual todo princípio histórico, cuja vitória está no tempo, se manifesta com direito, assim como perde seu direito com sua superação histórica. A evolução histórica teve também que ser interpretada no sentido daquela outra dialética que se dá entre o universal, que se realiza na história, e o particular ou individual, no qual e pelo qual se realiza o universal. O conceito ou a lei do espírito em si mesmo é só uma possibilidade, realizável apenas pela vontade, pela atividade do homem. A concepção filosófico-histórica de Hegel é teleológica, na medida em que a evolução histórico-universal se apre~enta dirigida para um fim, precisamente ao fim da realização da liberdade. Ela concede aos indivíduos historicamente relevantes um saber limitado dos fins do espírito universal. Através da "~stúcia da razão", 5 o Espírito Universal dirige o agir dos indivíduos para uma direção, da qual eles são
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(ao menos imperfeitamente) conscientes, fazendo com que eles, motivados por interesses particulares, ajam no tentido do interesse universal, racional. O universal se realiza, pois, por meios de fins particulares. 6 Ou ainda: nos fins particulares que dirigem o agir dos indivíduos históricos há pois um fim universaF. O que tem significação históricouniversal é o agir individual, porém só na medida em que nele se faz efetivo o universal, o racional, a liberdade, porque só esta é, - segundo o dito célebre de Hegel, freqüentemente md entendido - o real, assim como inversamente o real como tal é racional. 8 O real, no sentido desta asserção, não significa o empiricamente observável, mas, em última análise, o Espírito que se manifesta no individual. Por isso pôde Hegel dizer que importava "conhecer na apr:rência do temporal e efêmero a substância, que é imanente, e o eterno, que é presente". "O racional" é sinônimo de "Espírito" ou "Idéia" e, portanto, daquilo que constitui o objeto da metafísica especulativa. Por outro lado, as relações exteriores, como tais, são desprovidc::s de importância para a filosofia. Só o espírito e o processo de sua evolução são o substancial9 • Isto significa - com vistas à história - que particularidades históricas só podem ser relevantes na medida em que estão relacionadas com o universal, que nelas e com n ajuda delas se aproxima de sua plena realização. Com base na reconstrução dos fundamentos de filosofia hegeliana, - empreendida na primeira parte, capítulo IV - é possível estabelecer uma relação entre a dialética d<: história e a dialética d::t experiência, cabendo a esta última primariedade sobre Hegel - a dialética da experiência é o modelo das relações dialéticas fundamentais do logos, e se o Iogos é aquele que se desenvolve tanto na natureza como na história, então se pode ver, com efeito, a dialética da história como projeção da didética originária teórico-experimental sobre a história. Naturalmente, esta reconstrução sistemática não exclui o fato de que Hegel tenha - no campo histórico, independentemente da teoria dialética da experiência e da lógica dialética (como teoria das c<:tegorias) - deparado com traços suscetíveis de serem interpretados dialeticamente, os quais, por sua vez, foram, geneticamente, de importância para a evolução de toda a sua concepção dialética. A reconstrução sistemática, porém, permite constatar que a conseqüente interpretaç~o dialética, no quadro do sistema completo, resulta segundo o modelo da dialético teórico-experimental.
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Hegel, na Introdução às suas Lições de Filosofia da História, disse claramente que o modo de consideração histórico-universal se apoia em pressupostos filosóficos: "O único pensamento que a filosofia traz consigo é este pensamento simples dé2 razão: que a razão domina o mundo e que portanto, também na história universal, se processam racionalmente. Esta convicção e entendimento são, em geral, um pressuposto com respeito à história como taJ1°. É certo que He?el afirmou também, inversamente, que a racionalidade do curso histórico tem que se mostrar somente ~través da consideração histórica; 11 isto, porém, vale naturalmente para a consideração de conteúdo, enquanto que a forma dialética,como tal, é afirmada com base na suposição especulativa gerd, de que a razão se revela na história. Por isso pode Hegel declarar: "Aquele que vê o mundo racionalmente, a esse o mundo vê também racionalmente" .12 O próprio Hegel interpreta ocasionalmente a relação de sua concepção da ·história com a teoria da experiência, qué2ndo denomina como essência do espírito - o qual é considerado por ele como a substância Jas relações históricas - a liberdade no sentido do estar-consigo-mesmo e explica este como autoconsciência. Ele lembra que, em toda consciência de algo, devemos distinguir dois aspectos: o fato de que eu sei e aquilo que eu sei. Na autoconsciência sou eu que estou certo de saber e, simultaneamente, do sabido. A Fenomendogia do Espírito descreve esse movimento da consciência que passa pela autoconsciência até chegar ao saber absoluto como movimento no qual o espírito se conquista a si mesmo, ou seja, apreende o que é em si. Este "movimento" que é, no fundo, o processo da construção de uma teoria da experiência, serve para Hegel como modelo do movimento históricouniversal, razão pela qual ele pôde dizer da história universal que "ela é a representação do Espírito, do modo como ele chega a saber o que é em si", e isto significa: o saber de sua liberdade. 13 A concepção de um Espírito Universal que se manifesta na multiplicidade das configurações históricas e de sua evolução segundo as leis de sua esssência, de modo semelhante ao eu individual nos conteúdos da experiência, sem os quais nada seria e nada saberia de si mesmo, tem conseqüências de grande alcance não só para a consideração da história. na qual é reprimido o elemento causal em favor do teleológico, porém também para a práxis política e social: a concepção
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dialética da história pode servir, por uma parte, para justificar o existente como expressão necessária do Espírito Universal e, com isso, da idéia da reconciliação universal. Hegel chamou explicitamente a consideração histórico-universal de teodicéia, na qual todo o negativo aparece como algo subordinado e superado. 14 Por outro lado, a concepção dialética da história pode, contudo, servir também como legitimação da mudança de circunstâncias existentes, uma vez que o Espírito Universal não permanece fixado em nenhum nível de seu processo de realização, e sim, lança-se necessariamente por sobre cada uma de suas manifestações, convertendo aquilo que deixa para trás em irracional e, conseqüentemente, em superado. Hegel salientou claramente o aspecto dinâmico de sua concepção da história, escrevendo: "Atenhome a que o Espírito Universal do tempo deu ordem de avançar; esta ordem é obedecida: este ser avança como um batalhão blindado, bem fechado, de modo irresistível e como um movimento mais imperceptível que o caminhar do sol ... " 15• A consciência da necessidade da evolução histórica se associa na filosofia à pretensão de conhecer a lei dialética desta evolução, pois a determinação dos graus, nos quais o princípio da realidade histórica se desenvolve é, segundo Hegel, lógica em sua natureza geraL A forma mais universal desta lei está caracterizada pela relação dialética entre aquele que se exterioriza no outro , com isso, converge para a contrariedade, para chegar finalmente à unidade na contrariedade. 16 A história universal, como caminl\o dirigido pata a meta da reconciliação de todos os contrários, está submetido também à contrariedade. Tanto à vida dos indivíduos como à dos povos se pode aplicar o que vale para o E~pírito: "Sua atividade é a transcendência sobre a imediatez, a negação da mesma e o voltar para sí". 17 A meta do percurso do Espírito através dos níveis de sua realização é a elevação para a totalidade do Espírito único. 18 Se, no quadro de tal concepção dialética da história não somente são interpretadas evoluções passadas, como também preditas as futuras, então os prognósticos perdem o caráter de conjecturas e se apresentam com a pretensão de necessidade incondicionada. Aceita esta pretensão, então os prognósticos referentes às evoluções sociais e políticas recebem urna motivação essencialmente mais forte do que se fossem prognósticos hipotéticos.
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Os dois traços praticamente decisivos da dialética histórica, a saber, a tese da necessidade das evoluções históricas e a tese da mediação do universal e do particular voltam a ser encontrados na filosofia marxista da história, naturalmente sem o conceito de um fundamento espiritual da história. Enquanto Hegel acreditou haver encontrado o fundamento da necessidade da evolução histórica na lei dialética da realização do Espírito Universal, Marx o buscou na "lei natural" do movimento sociaP9 e, como sua meta era, antes de mais nada, a análise da sociedade capitalista, o buscou sobretudo nas "leis naturais" que imperam nesta última. Estas leis foram caracterizadas por Marx como tendências que atuam e se impõem com férrea necessidade.20 É impossível saltar as fases do processo social evolutivo - o conhecimento, todavia, de sua necessidade, é de uma significação prática tal que pode contribuir para reduzir o tempo requerido para o transcurso de algumas destas fases. 21 Nesse contexto carece de importância salientar como Marx, Engels e seus sucessores procuraram reconstruir o curso dialético da história; aqui, tem relevância filosófica somente a questão de saber onde acreditaram encontrar o fundamento do movimento dialético do processo histórico. A resposta mais breve a esta pergunta é dada por uma frase, que Marx inseriu no projeto da introdução à sua obra Elementos de Crítica da Economia Política: Dialética dos conceitos de força de produção (meios de produção) e relações de produção".22 Na contradição dialética entre meios de produção e relações de produção está o motor de evolução histórica. Nem em Hegel, nem em Marx a evolução histórica se apresenta COmo eXclUSÍV?.mente determinada a termo; pelo contrário, e apesar do fato de que deve ser impulsionada pelas relações (contraditórias) da sociedade, é simultaneamente evolução dirigida a um fim, porquanto intenta a superação da auto-alienação do homem e, com isso, sua liberação. Este fim da evolução histórica é alcançado, só de modo negativo, pelo comunismo, que se imporá com necessidade, segundo Marx, como negação da ordem (contraditória "em si" ) da sociedade burguesa capitalista. Contudo, esta deve, por sua vez, ser superada por aquele fim mais longínquo e último, chamado por Marx "socialismo". A idéia de um fim da história implica o reconhecimento de valores, cuja realização sucessiva é a evolução da humanidade. Este
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caráter da concepção dialética da história é o que Sidney Hook tem presente quando constata que os representantes da dialética consi~ deram, não tanto a investigação das rehlções entre determinados valores fáticos do homem em concreta ação recíproca com o mundo e com outros homens, mas somente o descobrimento do modo com que se realiza um valor imperante objetivo na evolução social ou histórica.23 A realização do fim da evolução histórica somente pode ser
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r~da, conforme os pressupostos marxistas, da ação revolucionária.
O proletariado, despojado das possibilidades de auto-realização humana, sob as condições do modo capitalista de produção, e excluído da ordem burguesa da sociedade, tem que constituir-se como uma classe de natureza especial, porém somente para suprimir as condições da sociedade de classes na ação revolucionária, ou seja, para chegar a uma sociedade sem classes. A relevância que a dialética tem na teoria marxista não se explica somente por apresentar como necessária a evolução revolucionária que conduz a sociedade capitalista à sociedade sem classes. Ela não é, pois, apenas um instrumento para a explicação de transformações sociais, mas também, e principalmente, um meio para predizer tais transfor~ mações, e predizê~las não com maior ou menor probabilidade - como ocorreria no quadro das teorias sociais empíricas - porém, predizêlos de maneira necessária. Um prognóstico apresentado com a preten~ são de ser necessariamente verdadeiro influirá no comportamento dos indivíduos, atingidos pela evolução prognosticada, de um modo dife· rente do que permitem as predições científicas com caráter probabilístico. O prognóstiço apolítico tem que conferir maior confiança e reso~ lução a todos aqueles que trabalham pela realização do fim prognosti~ cado, assim como, inversamente, paralisará a atividade de todos aque~ les que atuam contra este fim. A suposição de que as leis da evolução histórica no campo social são absolutamente necessárias e que as predições que sobre elas se apóiam são, portanto, absolutamente verdadeiras, tem conseqüências políticas de grande significação; por isso se compreende que os defensores desta suposição, ou seja, exatamente os seguidores da dialética materialista, não estejam dispostos a fazer valer estn suposição como mera suposição, nem a colocá-la em discus'são, como qualquer outra suposição científica ou filosófica.
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Esta tese da absoluta necessidade das leis da evolução social, formuladas no quadro da teoria marxista-leninista, não é primariamente assunto da filo11ofia, mas da política, no sentido preciso do postulado do partidarismo, tal como o estabeleceu Lenin. Por isso, todos os intentos em avaliar os pressupostos da dialética - do mesmo modo que os da filosofia transcendente - deparam com o mais forte repúdio por parte da ortodoxia dialética. Um meio favorito de fazer com que semelhantes intentos analíticos caiam em descrédito consiste em dirmar que eles não atingem a dimensão da práxis, essencial à dialética, ou que vão dar numa falsa interpretação de caráter revolucionário da fil~sofia dialética. Tal crítica se dirige só aparentemente a um aspecto teórico pois, na realid~de, vai desembocar numa recusa de toda discussão apolítica da dialética. É preciso que esteja claro o fato de que esta maneira - aí exigida - de considerar a dialética como instrumento da práxis revolucionária se subtrai por príncípio a uma discussão sobre sua verdade ou falsidade, para se submeter à perspectiva de sua utilidade com respeito aos fins revolucionários préestabelecidos. A "superação" - aqui exigida - da dialética como filosofia por uma dialética como práxis revolucionária significa o deslocamento da discussão para um nível que, naturalmente, nada tem a ver com o nível de discussão analítica em que se situam as reflexões do presente livro.
3.
A dialética da totalidade social.
A concepção da dialética defendida pelo materialismo dialético como "ciência" das leis de movimento - tanto no campo da natureza como no da sociedade- foi mantida por muitos teóricos da dialética para o campo social, mas rejeitada para o âmbito da natureza. "Dialética", como dialética real, deve, por conseguinte, corresponder ao "movimento", ou seja, à evolução de complexos sociais; "dialética", como método, deve corresponder ao conhecimento da evolução ou da necessidade da evolução a que estão submetidas os complexos sociais. 24 Com respeito a este aspecto, pode-se notar, em tempos recentes, uma tendência dirigida contra o dogmatismo gnoseológico-metafísico da teoria da cópia ou reflexo, conforme vimos na parte dedicada a Sartre. Da mesma forma, a afirmação dogmática de um paralelismo entre movimento dialético e método dialético de conhecimento foi também recusada por G. Gurvitch, o qual procurou apresentar a dialética não
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apenas como teoria da realidade social "móvel" ou como teoria do conhecimento desta realidade, mas também como um modo "móvel" de pensar que faz frente a toda petrificação em posições fixas, de uma vez por todas. Gurvitch viu que a limitação do conceito de dialética a uma teoria das "contradições" sociais era um perigo e procurou por isso mostrar- para além da pretensa "contraditoriedade" da realidade social - que há uma série de outros aspectos dialéticos. Em sua opinião, a dialética tem que ser caracterizada como hiperempirismo, porquanto seu fim consiste na interpretação de experiências infinitamente variáveis em um quadro teórico constantemente aberto à contestação. Como veremos a seguir, a ampliação do campo de aplicação da dialética - pretendida por Gurvitch - não consegue convencer nem em sentido ontológico, nem em sentido teórico-epistemológico; por isso, corno núcleo de significado desta expressão subsiste somente a concepção de uma realidade social que se desenvolve constantemente ou o postulado de um conhecimento "concreto", adequado, desta reali· dade. Em outras palavras: a dialética real vale essencialmente corno ontologia dinâmica dos complexos sociais; a dialética teórico-epistemológica, como método de captação do dinamismo social. A categoria fundamental da ontologia dinâmica da sociedade é, em Gurvitch, como em teóricos afins, a idéia da totalidade social, a qual é pressuposta quando se descreve o "movimento" social com auxílio dos conceitos de "totalização" e "destotalização". A concepção de complexos sociais como totalidades ou de evoluções sociais como origem ou dissolução de totalidades traz claramente implícita a nota distintiva que diferencia as teorias dialéticas e não dialéticas da dinâmica social; se se pergunta pelo significado de "totalidades", é difícil encontrar uma resposta satisfatória. Não obstante a insistência em nos garantir que, para a dialética, todo individual está "mediado" pela totalidade social objetiva25, permanece sem resposta satisfatória a pergunta sobre o que distingue a concepção de um complexo social como "totalidade" da concepção como sistema passível de ser discreto mediante proposições (científicas); ocasionalmente, chega-se até a afirmar explicitamente que é irrespondíveP6 Naturalmente não se poderá assegurar que "totalidade" designa algo no nível dos fatos empíricos concretos27 ; isto, porém, não é motivo para rejeitar a exigência de uma e:x:plicação deste conceito. Popper chamou a atenção para o fato de que existe uma diferença essencial entre uma concepção totalizante>
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como o da psicologia da forma, cujo objeto são estruturas, e uma concepção totalizante, como a pressuposta pelas teorias sociais dialéticas. A última se refere não somente à estrutura, ou seja, a um aspecto do que se chama "totalidade", mas à totalidade mesma como algo concreto, que, como é concedido, não pode ser conhecido, no sentido habitual de conhecer. Por isso, os representantes da dialética postulam um método próprio para o conhecimento das totalidades sociais; a caracterização deste método todavia - se é que se intenta fazê-la - é tão precária gue podemos constatar, com Popper, que aqui só se estabelece mero programa, cuja realização falta. As dificuldadeS.. que sobrecarregam o termo "totalidade" podem ser entendidas, se tivermos presente a história de seu significado desde Hegel (é possível fazê-lo através das passagens respectivas deste livro). Na metafísica hegeliana, "totalidade" significa a relação de mediação dentro do absoluto e de suas manifestações, sendo que o absoluto deve ser da natureza do sujeito - Hegel dizia: não só é substância como ao mesmo tempo sujeito. Na medida em que a idéia absoluta é caracterizada como sendo contexto de mediação absoluto, como complexo de suas manifestações, foi interpretada por analogia com o contexto de mediação do sujeito da experiência, como o complexo dos conteúdos da experiência: a dialética da teoria da experiência. A dialética da teoria da experiência funciona, pois, como modelo da dialética da realidade. No campo da realidade histórico-concreta, a totalidade é "totalidade moral"28 e isto significa: a "totalidade orgânica" de um povo cómo "forma vivente".29 Na medida em que a moralidade absoluta, no sentido em que se acaba de estabelecer - ou seja, enquanto estrutura da totalidade de um povo, concebido organicamente - se expres· sa no individual, que é também moral. Hegel não deixou margem de dúvida quanto a ter querido conceber a relação do individual e da totalidade moral "organologicamente", ou seja, concebê-la por analogia com a relação de um organismo para com suas partes.Neste sentido declarou, explicitamente, que o absolutamente moral tem seu corpo orgânico nos indivíduos e que seu movimento e vitalidade consistem no ser e no fazer de todos os indivíduos.30 A relação característica de totalidade e momentos da totalidade se
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manifesta com toda a clareza: assim como os momentos não podem ser concebidos independentemente da totalidade, do mesmo modo a totalidade não pode existir ou ser concebida independentemente dos momentos. A dialédca materialista manteve tanto as relações dialéticas formais como o conceito da totalidade, sem assumir a concepção hegeliana do absoluto. Com isso, foi suprimida a relação entre "totalidade" e "idéia absoluta", sem que, todavia, fosse eliminado completamente do conceito de totalidade o momento da· consciência. A "totalidade" é entendida, sem o fundamento da filosofia absoluta de Hegel, como complexo das exteriorizações de algo que é da natureza do sujeito. Esta concepção não é em geral defendida explicitamente, contudo, ainda que só atue implicitamente, não pode ser rejeitada sem mais, como mostra com especial clareza a evolução da filosofia social neomarxista, cujos representantes se inclinam freqüentemente para a concepção segundo a qual só se pode falar de totalidade onde entra em jogo um momento subjetivo. Por exemplo, segundo Sartre, só se pode falar de "totalidade" onde há atos de totalização. Isto significa: as totalidades reais que se desenvolvem contêm um momento psíquico, como salientara Gurvitch. "Totalidade" não designa uma conexão palpável, susceptível de ser descrita com os meios das ciências naturais. Tal conexão seria a de um sistema (que inclui a relação de ação rec.Í· proca e a relação de reação de caráter mecânico ou, em geral, causal): designa propriamente uma conexão que está condicionada por um momento subjetivo (que é geralmente não o sujeito individual, mas uma consciência coletiva, por exemplo, a "consciência de classe"), assim como ela condiciona este momento subjetivo. Na medida em que se torna clara esta diferença essencial entre totalidade e sistema causal, torna-se patente também a impossibilidade de uma teoria dialética da natureza (independente do sujeito). Uma dialética da natureza só poderia se manifestar, por princípio, onde a natureza fosse concebida como exteriorização ou alheamento do espírito (divino); uma dialética materialista da natureza acaba sendo forçosamente irrealizável - sob os pressupostos ora referidos. Vários neomarxistas, ao compreenderem a peculiaridade do conceito de totalidade ( peculiaridape que resulta de sua procedência históricoideal),· se viram compelidos a rejeitar todo intento de projetar as relações dialéticas na naturezi exterior.
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Aqui se torna patente a eficácia do modelo teórico-experimental das relações dialéticas. Assim corno a "experiência" é o "complexo da realidnde da experiência" no quadro daquela determinada teoria da experiência, raiz principal da filosofia dialética moderna, - por um lado se apresentando como condicionada pela "experiência", no sentido do "ato subjetivo de experimentar" e, por outro lado, os atos da experiência se apresentando como inversamente condicionados pelos conteúdos da experiência assim também as totalidades, no sentido das teorias sociais dialéticas, se ap:-csentam como dependentes dos atos totalizadores que, por sua parte, dependem da respectiva totalidade. O momento que "põe" as conexões objetivas "se põe a si mesmo" exatamente na medida em que "põe" aquela conexão. Sob a suposição - feita no presente ensaio e justificada historicar.1ente em sua possibilidade - de que a raiz principal da filosofia dialética moderna se encontra em urna determinada interpretação teórica da "experiência", é possível compreender por que razão os partidários da dialética insistem na peculiaridade do conceito de totalidade frente ao conceito de sistema ou frente ao conceito de soma. Ao mesmo tempo se entende por que razão esta peculiaridade não pode ser precisada nem pelos defensores nem pelos adversários da dialética, enquanto não levam em conta o fundamento teórico-experimental também com respeito à totalidade social. O acesso teórico-experimental à compreensão da dialética demonstra, com isso, mais uma vez, a sua adequação. Na medida em que a teoria dialética da sociedade pressupõe a de totalidade, ela passa da concepção da dialética como teoria do "movimento" social para a dialética da relação entre sujeito social e totalidade social. De acordo com a forte tendência teórico-científica de nosso tempo, não se podia deixar de procurar ver esta última relação à luz das relações que resultam no campo da averiguação científico-social como estudaremos no próximo item. i~éia
Antes, porém, é preciso falar sobre intento de libertar a dialética da realidade ou a dialética do conhecimento da realidade das algemas impostas pelo materialismo dialético. Tal intento, ainda que animado por uma intenção positiva, tem o inconveniente de que toda ampliação do significado de "dialética" torna essa expressão cada vez mais inde-
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terminada, pois se se pretende que as relações que habitualmente são analisadas com os meios da ciência não-dialética sejam objeto da dialética, então "dialética" se converte em uma palnvra que tudo abrange e, como tal, seu significado dificilmente pode ser processado. Isto se torna patente quando se observa um dos mais claros intentos, feitos recentemente, de caracterizar o método dialético do conhecimento científico-social, a saber, o de G. Gurvitch. Segundo Gurvitch, distinguem-se cinco aspectos da dialética: 1) a complementariedade; 2) a implicação mútua; 3) a ambivalência dialética; 4) a polarização e 5) a reciprocidade de perspectivas. Por meritório que seja o intento de super~r, na dialética, o "fetichismo da antinomia",31 a determinação do âmbito da dialética, no sentido dos cinco pontos de vista mencionados, não o consegue satisfa7er. Até mesmo para muitas teorias da dialética não poderia ser aceitável sem mais que, sob o ponto de vista da complementariedade, a relação entre base econômica e supraestrutura cultural fosse posta em conexão com a relação entre teoria ondulatória e teoria corpuscular da luz. Estende-se, enfim, o campo de aplicação da expressão "dialética" à implicação mútua (por exemplo, do psíquico e do social), à ambivalência de relações (por exemplo, no caso de amor-ódio), aos processos de polarização (nos quais os elementos que, sob certas condições atuam conjuntamente, sob outras condições entram en~ conflito entre si) e à reciprocidade de perspectivas, então, simultaneamente, se torna cada vez mais vago o significado de "dialética". A última relaçãoJcaracterizada por Gurvitch como dialética,mostra, com especial clareza, que setores - usualmente não são consideraáos como tais - são usurpados em campos de aplicação da dialé· tica. O fato de que um mesmo indivíduo possa desempenhar diferentes papéis sociais conforme sua filiação· a diversos grupos sociais e o fato de que estes papéis podem ser incompatíveis quando se dão conflitos entre os grupos correspondentes, é algo que nada tem a ver com a dialética no sentido próprio da palavra. Se, não obstante, s~ fala em dialética por referência a isto, expõe-se esta expressão ao perigo de tornar-se desprovida de conteúdo. O mesmo ocorre com a caracterização do método dialético que dev~ servir à apreen&ão da totalidade social, pois ele também é caracterizado de um modo tão vago que é difícil distingui-lo do método científico em sentido não-dialético. Se, por exemplo, a substituição de
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conceitos e hipóteses, que se tornaram inúteis, por outros meios apropriados para fins de uma melhor adequação à riqueza de determinações do real, é qualificada como "dialética", então torna-se difícil ver aí uma peculiaridade da dialética, pois o reconhecimento do papel que tem o momento intuitivo da experiência é inevitável para toda teoria do conhecimento. E se, com Gurvitch, o combate contra toda petrificação das totalidades sociais é apresentado como nota característica da atitude dialética, então o plano teórico é abandonado, para caracterizar a diêlética se recorre a uma atitude prática, a qual, por sua vez, não pode - segundo o uso normal da linguagem - valer como especificamente dialética, pois é a atitude do reformador social em geral.
4.
Dialética e Ciência Social.
Em toda explicação científica se procura subsumir os fatos que necessitam de explicação a leis gerais. Um fato está explicado quando pode ser concebido como caso de uma lei, ou seja, quando pode ser incorporado a uma relação nomológica. Uma vez que as leis são aceitas, a fim de explicar os fatos, pode-se dizer, em certo sentido, que os princípios das explicações científicas ou das teorias científicas depen· dem do estado em que se encontra nosso saber com respeito aos fatos, não se devendo, porém, pensar em dependência lógica. Inversamente, o conhecimento cieJJ.líf.i_c_o_çl~ fatos no Q,bl.adro g-ªs .teo.[ia_s está condiCiõíiado Eelos l?.!l!lcípio§ g~t_as, de_soxte_que J2QL.!:lm _lado, o conhecimento de fatos depende do conhecimento de princípios gerais nôiííõ1ô : gieos e, por outro lado, o conhecimento dos princípios nomológicos depende do conhecimento de fatos. Esta relação de dependência recíproCã'é freqüentemente interpretada como dialética pelos metodólogos dialéticos. 32 Eles não vêem aí que a expressão "dependência" é usada equivocamente, quando significa, uma vez, a dependência do conhecimento nomológico com respeito ao saber de fatos, e outra vez, a dependência do conhecimento de fatos com respeito ao conhecimento de leis adequadas. Uma vez que, com isso, a tese da estrutura dialética das explicações científicas de um modo geral é dificilmente dispensável nessa forma, pode-se notar atualmente a tendência para se interpretar, à luz da metodologia dialética, o fato de que parece não poder haver descrições de fatos absolutamente isentas de teoria. Se, de um lado, as teorias só podem ser examinadas comparando suas conseqüências com enunciados de observação e se, de outro lado, todo enunciado de obser-
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vação se apóia em uma interpretação dos fatos à luz de uma teoria, então parece existir uma relação dialética entre os princípios da teoria e as observações que devem ser explicadas com sua ajuda ou que servem para contestá-la. Exemplos desta "carga teórica" dos enunciados factuais podem ser encontrados com facilidade, sem que a tese correspondente tenha que ser necessariamente estabelecida de forma estritamente geral. Especialmente no campo filosófico-social ou científicosocial pode-se ver claramente a dependência de enunciados descritivos com respeito a teorias supostas. Assim, no caso da filosofia social de Hobbes, de Locke e de Kant a caracterização dos indivíduos - de cuja união teria resultado a sociedade - não era independente da teoria social que fora estabelecida a fim de explicar as relações entre indivíduos. Basta pensar nas qualidades de liberdade e igualdade, atribuídas aos indivíduos, e que não podem ser qualidades naturais, pois têm claramente o caráter de conceitos jurídicos, pertencendo, por isso, ao contexto de uma teoria. E se, inversamente, se procura fortalecer uma teoria social, que tem em vista a legitimação de um determinado sistema jurídico, fazendo valer que ela esclarece de modo satisfatório as qualidades de liberdade e igualdade atribuídas aos indivíduos, então se dá uma relação recíproca entre a teoria social e a descrição dos indivíduos. A caracterização desta relação,como dialética, pode parecer óbvio sob certos pressupostos, se aqui se introduz, por meio de definição, a expressão "dialética" somente para a relação aludida entre as premissas de teorias e a descrição de fatos, cuja "carga teórica" tem que ser fundamentada com ajuda dela; teríamos então uma nova convenção sobre o significado desta expressão. Com respeito a esta convenção, poderíamos em todo caso perguntar se é oportuna, considerando outros empregos usuais do termo "dialética", contra os quais, todavia, nada se poderia objetar, devido à liberdade que, por princípio, existe para definir os termos científicos. Seria outra coisa, certamente, se nas relações em questão se procurasse ver um caso de aplicação de um conceito de dialética que estivesse já fixo em sua significação. Então seria preciso indagar o que se deve entender por "dialética" em geral e como se relaciona a dialética pretendida, dentro das teorias, com a dialética em geral. Naturalmente seria preciso definir a "dialética" da maneira mais geral e indeterminada possível, no sentido de uma relação recíproca de condicionamento, se é que aqui se deve falai de um caso especial de dialética em geral. Com isso, "dialética" se converteria ainda em um conceito extremamente vago, sob o qual
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se podem subsumir tantas coisas que a caracterização de uma determinada conexão como "dialética" seria bastante trivial. O mesmo se deve dizer com respeito ao intento de interpretar o chamado "círculo da hermenêutica" como relação dialética. O círculo hermenêutica consiste em que o detalhe (de um texto, de uma obra de arte, de uma conexão histórica) tem que ser entendido a partir de um todo (do texto, da obra artística, da conexão histórica), enquanto o conhecimento de todo só pode ser obtido com ajuda do conhecimento de detalhe. Esta relação circular, estabelecida primeiramente na interpretação literária, seria também encontrável na deter· minação de relação de fatos sociais e estrutura social. Por exemplo, T. W. Adorno considera que, "sem antecipação daquele momento estrutural, da totalidade, que não se deixa traduzir em observações particulares, nenhuma observ<1ção particular encontraria seu lugar próprio". 33 Outros pensam da mesma forma. 34 Uma vez que a estrutura lógica do chamado círculo hermenêutica pode ser considerada, entrementes, como esclarecida, não há razão para considerá-la como caso particular de um tipo geral de relações dialéticas. 35 Não se trata certamente de acaso - mas de uma conseqüência da fraqueza dos intentos dialéticos de interpretação que acabamos de mencionar - o fato de que o interesse se tenha deslocado das conexões da investigação (científico-social), onde parece haver possibilidade de que as relações entre o processo científico-social de investigação e o objeto deste processo, a saber, as totalidades sociais, possam ser interpretados no sentido dialético. Aqui se parte do pressuposto de que o processo de investigação não transcorre no vazio, mas dentro de uma sociedade, articulada de um modo muito preciso, que influi por sua vez na investigação. O processo de investigação, cujo objeto é a sociedade ou certos traços ou partes da sociedade, está condicionado pelas relações sociais e influi, por sua vez, sobre as mesmas por meio da aplicação de seus resultados. Podemos conhecer sem dificuldade estas relações como caso especial da dialética geral sujeito-objeto, circunscrito à relação entre sujeito (investigador) e sociedade (como objeto investigável); para este caso, vale o que antes foi dito sobre a pretensa dialética da
... UNIVERSfDADf FE OER ~l 00 PA~A JIBLJOTI!CA C E.N n• At.
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relação sujeito-objeto. Neste caso, porém, a crítica terá que dar um passo adiante. corno mostraremos surnariaJ:l!ente a propósito de urna concepção dialética atual. J. Habermas, que se ocupou criticamente com a dialética, aqui posta em questão, declara ocasionalmente com respeito às teorias sociais de tipo· dialético : "Teorias deste tipo mais móvel acolhem também refletidamente, na organização subjetiva da engrenagem científica, o fato de que elas mesmas permanecem como momento da conexão objetiva, a qual elas, por sua vez, submetem a análise". 36 Neste sentido, Habermas exige "coerência" da abórdagern teórica com o processo social, "ao qual pertence também a investigação sociológica". 37 Segundo esta concepção, "o conceito dialético da sociedade corno totalidade exige que os instrumentos analíticos e as estruturas sociais se encaixem entre si corno os dentes de urna engrenagem".38
Tal concepção da dialética está seriamente comprometida por graves defeitos. Não devemos repetir aqui as objeções que H. Albert apresentou, em continuidade a E. Nagel.:;9 Só queremos lembrar a objeção de caráter geral, de que a dialética defendida por Haberrnas e outros, na melhor das hipóteses, só pode ser uma dialética entre a conexão social e o processo de formação de teorias, porém não entre conexão social e teoria. Os motivos que levam à formação de uma teoria podem ser influenciados pela situação social. Ao mesmo tempo, as conseqüências eventuais da aplicação da teoria podem influir sobre a situação social. Todavia, não deve- ser posto em dúvida o fato de que aqui se trata de relações que devem ser explicadas causalmente e que, portanto, não exigem que se recorra a uma interpretação dialé· tica. 40 A teoria, como tal, não é de modo algum "momento da conexão objetiva", corno acredita Haberrnas. Somente com respeito aos processos reais que levam a formar teorias corno complexos lógicos se pode dizer, com sentido, que estão em conexão com a totalidade social, "condicionados" por esta, a qual também "condicionam" sob certas circunstâncias. Ao que tudo indica, porém, a expressão "condicionar" deve ser entendida em sentido causal. Se estabelecermos uma distinção - corno se faz necessário em benefício da univocidade, entre teorias como complexos lógicos e processo de formação de teorias, desaparece então a ilusão de haver uma dialética própria no campo da investigação científico-social.
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5.
Wolfgang Rod Transformação ou fim da Dialética?
Como podemos constatar, alguns representantes atuais da filosofia dialética buscam caminhos que levem para além das velhas posições-idealistas ou materialistas - da dialética. A pergunta que se impõe é a de saber se aqui se trata somente de ampliar o campo de validez da dialética ou se a abertura de novos campos de problemas está ligada ao abandono dos primitivos. Se, por exemplo, se intenta apresentar como "dialéticos" certos aspectos das teorias em geral ou das teorias sociais em particular, então a dialética assim caracterizada deixa de ser uma teoria que serve para explicar certos fatos (precisamente os "fatos" da experiência); ela se converte em uma teoria de teonas, ou seja, adquire o caráter de uma !lletateoria. Como o desloca· mento da investigação de nível teórico para o metateórico é uma modificação radicnl do modo de consideração, a questão acima levantada deve ser respondida no Eentido de que, em tais intentos, não se trata somente de uma simples ampliação do campo de objetos da dialética. Assim, se muitos teóricos dialéticos decidem chamar de "dialéticas" aquelas conexões que antes fomm incluídas sob o título "carga teórica das descrições de fatos", então não se dá uma ampliação do significado, mas uma nova definição da expressão "dialética". As conseqüências desta transformação de "dialética" são inumeráveis. Atnwés da concepção metateorética de "dialética" podemos, em primeiro lugar, livrarnos das dificuldades que sobrecarregam a dialética no sentido tradicional. Os intentos de caracterizar a dialética como meta teoria· devem ser entendidos como sintomas da efetividade da crítica antiidealista. Em segundo lugar, a mencionada reinterpretação de dialética pode parecer apropriada para assegurar à filosofia dialética a conexão com a ·evolução filosófica moderna, na justa medida em que esta última é caracterizada pelo modo metateórico de consideração. A dialética se apresentnria, levando-se conseqüentemente até o fim a reinterpretação em questão, como uma espécie de teoria científica em concorrência com a teoria científica usual ("burguesa"). Certo é que semelhante reinterpretação não deixa de apresentar perigo para os representantes da dialética: pois se se estabelece que as diferenças supostas entre a concepção da teoria científica usual e a interpretacão "dialética" da estrutura das teorias repousam sobre mal-entendidos, então, por trás do abandono do campo originário de aplicação nada mais haveria em que se pudesse pretender que a filosofia dialética tenha vigência. A transformação da dialética levaria à sua dissolução.
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Como pode desenvolver-se no futuro a filosofia dialética? Agora é possível constatar-se o seguinte: na medida em que a concepção da dialética como metateoria inclui· o abandono da dialética como metafísica, tal concepção significa o fim da última ramificação da tradição racionalista, a qual se caracterizou essencialmente pela crença moderna na possibilidade de um conhecimento não-hipotético da realidade. O pressuposto moderno de que a essência da realidade seria exprimível sob forma de leis necessárias e estritamente gerais - suposição gravemente abalada pela crítica de Hume e reiteradamente combatida -· - foi mantido quase exclusivamente por aqueles defensores da dialética que persistiam em afirmar a necessidade absoluta das leis dialéticas da natureza e da sociedade. A filosofia dialética de cunho dogmático era, neste aspecto, anacrônica, ou seja, não havia participado da evolução filosófica geral. O intento de livrar a dialética do estigma de anacronismo, fazendo ver que já não é uma doutrina, mas metateoria de teorias científicas (sociais), poderia assinalar o fim definitivo da tradicão racionalistametafísica; especialmente também os mencionados i~tentos de compreender a dialética não mais como uma teoria da realidade, mas como um determinado método, parecem indicar para a mesma direção. Conforme a concepção por último menciom:da, a dialética deve ser essencialmente um método de crítica social, orientada para a superação das violências sociais. A tarefa da dialética, segundo isto, não estaria na predição :::bsolutamente segura das evoluções sociais, apoiada na intelecção das leis essenciais da sociedade; sua função consistiria, antes, em fazer com que as deficiências dos sistemas sociais vigentes sejam postas em relevo mediante a projeção de modelos sociais, com os quais podem ser comparadas as relações dadas, e em influir, com isso, na evolução do âmbito social. Ainda que esta função seja caracterizada com o auxílio de termos técnicos da dialética tradicional e, por exemplo, cada limitação da liberdade por determinadas razões sociais seja designada como "negação" e a superação de limitações como "negação da negação" não se trata certamente daquilo que Hegel, Engels ou Lenin pensavam com estas expressões. Tais termos são utilizados pelos transponentes primariamente para manter ao menos uma continuidade terminológica, ainda que na coisa mesma não se dê continuidade alguma.
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Aqui não é o lugar para analisar com mais precisão a transformação da dialética em seus diferentes aspectos, sobretudo tal como hoje existem; tampouco é tarefa desta investigação conjecturar sobre a evolução ulterior da dialética. Contudo, a cesura que aparece nas tendências transformistas referidas precisava ser constatada, pois marca claramente o final de uma determinada fase na evolução da filosofia dialética. Qual pode ser o destino ulterior da dialética? Com a dissolução de uma forma definida da filosofia dialética impõe-se, forçosamente, a pergunta por sua estrutura, seus pressupostos, suas funções e sua justificação. A presente investigação quis ser uma ajuda para responder a estas questões.
Notas - Capítulo IV
1.
G. Gurvitch: Dialectique et socio[og:·e. Paris, 1962, pág. 240.
2.
G. W. Fr. Hegel: Wissenschaft der Logik, I (Samtliche Werke, ed. Glockner, IV, 90).
3.
G. E. Fr. Hegel: Phánomenologie des Geistes Slímtliche. Werke, (ed. Glockner, II, 618-619).
4.
K. R. Popp::r: Was ist Dialektik? Em: E. Topitsch (ed.): Logik der Sozialwissenschaften. Koln e Berlim. 2~ ed., 1965, pág. 262 ss. Publicado originalmente em: Mind, N.S. 49, 1949; reimpresso em: Popper: Conjectures and Refutations.
5'.
G. W. Fr. Hegel: Vorlesungen über die Phi 1osophie der Geschichte. Einleitung. Samtliche Werke, ed. Glockner, X, 63.
6.
Op. cit., pág. 55.
7.
Op. cit., pág. 59.
8.
G. W. FT. Hegel: Grundlinien der Philosophie des Rechts. Vorrede. Sãmtliche Werke, ed. Glockner, VII, 33.
9.
G. W. Fr. Hegel: Vorlesungen über die Phi?osophie der Gerschichte. Einleitung Werke. Ed. Glockner, XI, 43.
10.
Op. cit.,págs. 34-35.
11.
Op. cit., pág. 36.
Filosofia Dialética Moderna 12.
Op. cit. pág. 37.
13.
Op. cit., pág. 45.
14.
Op. cit., pág. 42.
15.
Hegel an Niethammer am 5-7-1816.
16 .
A relação que há entre o esquema dialético fundamental e o esquema gnóstico-neoplatônico da evolução do universo como procedência da realidade a partir do Uno, relação que pode ser significativa na evolução do pensamento de Hegel, foi estudada por E. Topitsch: "Marxismus und Gnosis", em Sozialphilosophie Zwischen Ideolog!e und Wissmschaft (Neuwied, 1961; 2~ ed., 1967); também do mesmo autor: D;e Sozialphilo!'ophie Hegels als Heilslehre und Herrschaftsideolog!e (Neuwied e Berlim, 1967).
17 .
G. W. F r. Hegel: Vorlesungen über die Philosophie der Geschichte ( Samt. Werke, ed. Glockner, XI, 119).
18.
Obid.
19.
K. Marx: Das Kapital, I. Vorwort zur 1. Auflage, em: Karl Marx Friedrich Engels Werke, edit. por Institut für Marximus-Leninismus eim ZK der SED (Berlim, 1956, ss., vol. XXIII, pág. 15).
20.
Op. cit., pág. 12.
21.
Op. cit., pág. 16.
22.
K. Marx: Grundrisse der Kritik der politischen Okonomie, Frankfurt a.M. Wien (reimpressão da edição: Moscou, 1939-1941), pág. 29.
23.
Hook: Dialectic in Socie:y and History, em H . Feigl and M. Brodheck: Readings in the Philosophy of Science ( 1953, pág. 712).
24.
Neste sentido definiu G .Gurvitch a dialética como movimento social real e como método de conhecimento deste movimento: Dialec:ique et Sociologie (Paris, 1962, págs. 233 ss.).
25.
Cfr. por exemplo Th. W. Adorno na "Introdução" a: Der Positivísmusstreit in der deutschen Soziologie (Neuwied e Berlim, 1969, pág. 16); tamMm J. Habermas: Analytische Wissenschaftstheorie und Dia!ekti , na mesma obra, pág. 163.
26.
Neste sentido declarou J. Habermas ( Op. cit., pág. 156): "a diferença entre sistema e totaEdade ( ... ) não pode ser designada diretamente, pois, na linguagem da lógica formal, se dissolveria e, na linguagem da dialética, teria que ser superada." Cfr. a crítica acertada feita por H. Sebert a esta expressão pou::o clara.
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Wolfgang Rcid
402 27 .
:f: o qu-e faz Th. W. Adorno em: Positivismusstreit (pág. 17) para justi·· fic.ar a tese da não-explicitabilidade do conceito de "totalidade".
28 .
K.R. Popper: Das E!end des Historizismus (Tübingen, 1965, págs. 61-63)
29 .
G. W. Fr. Hegel: Ober die wissenschaftlichen Behandlungsarten des Naturrrechts (Samt. Werke, ed. Glockner, I, 505).
30 .
Ibid., pág. 514.
31.
G. Gurvitch: Dialectique et Sociologie (Paris, 1962, pág. 245).
32 .
G. Gurvitch : op. cit., pág. 241, diz em referência à relação de imed:ato e da construcão teórica: "toute expérience nous place devant les écheveaux inextricables de médiations de l'immédiat et d'immédiations du médiat', ce qui rend dialectique toute expér:ence".
33 .
Th. W. Adorno : Positivismusstreit, pág. 127.
34.
De modo semelhante J. Habermas: Posi:ivismusstreit, págs. 115 ss.
35 .
Cfr. aqui W. Stegmüller: "Der sogenannte zirkel des Verstehens", em: K. Hubner und A. Menne: Natur und Geschichte (X.Deutscher Kongress fur Philosophie, 1972, Hamburg, 1973, págs. 21-45). StegmüUer mostra que, ao modo de falar sobre a circularidade da compreensão, ·Subjaz o fato da inseparabilidade entre o saber acerca de fatos e as hipóteses interpretativas (saber de fundo). Daí podem resultar düiculdades, porém, não um círculo vicioso gue ~rruinasse tanto as ciências do espírito como toda ciência. Trata-se, pois, da intuição positiva, da filosofia dialética, por vezes mencionada, de ~ue algo imediatamente dado não pode ser aceito.
36 .
J. Habermas : Positivismusstreit, pág. 159.
37.
Ibid.
38 .
Ibid., págs. 160-161.
39 .
H. Albert: "Der Mythos der totalen Vernunft", em Positivi:;musstreit, págs. 197-199. Também do mesmo autor. Konstruktion und Kritit (Hamburg, 1972, págs. 265 ss.). Cfr. E. Nagel: The Structure of Science (London, 1961, págs. 380 ss.).
40.
Neste sentido se expressou S. Hook: D:alectic in Society and History (cit.--ºM._ 705>_. _ No Cham. 146.3/ R685F
Título FILOSOFIA DIALETICA MODERNA
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