FORMAÇÃO DO PENSAMENTO POLÍTICO BRASILEIRO
FRANCISCO C . WEFFORT
FORMAÇÃO DO PENSAMENTO POLÍTICO BRASILEIRO IDÉIAS E PERSONAGENS
© Francisco Francisco C. Weffort, 2011
Versão Impressa Diretor editorial editor ial adjunto ad junto Fernando Paixão Coordenadora editorial editorial Gabriela Dias Editores assistentes assisten tes Leandro Sarmatz e Baby Siqueira Abrão Preparaçã Prepa raçãoo de d e texto tex to Sérgio Alcides Revisão Ivany Picasso Batista (coord.), Ana Luiza Couto e Luicy Caetano de Oliveira Índice remissivo Verba Editorial Projeto gráfico gráfic o e capa cap a Paula Astiz Edição de arte Antonio Paulos Assistente Claudemir Camargo Editoração Editoraç ão eletrônica eletrô nica Paula Astiz Design e Divina Rocha Corte Pesquisa Pesqu isa ico nográfica nog ráfica Silvio Silvio Kligin (coord.) e An gelita Cardoso Mapa Maps World
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W421f | Weffort, Francisco Francisco C. (Francisco (Francisco Weffort). Weffort). Formação do d o pensamento pen samento p olítico olítico brasileiro: idéias e personagens/Francisco C. Weffort - São Paulo: Ática, 2011. Inclui bibliografia: 1. Ciência p olítica olítica - Brasil - História. 2. Ciência política - Brasil - Filosofia. Filosofia. 3. Brasil Política Política e governo . 4. Intelectuais - Brasil. 5. Brasil - Civilização Civilização.. 6. Cultura -Brasil. -Brasil. I. Título. 06-0325. | CDD 320.981 | CDU 32(81) 1ª Edição - Arquivo criado em 21/07/2011 e-ISBN e-ISBN 97885 08149193
AGRADECIMENTO
O autor agradece o apoio institucional do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), da Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (Faperj) e das Leis de Incentivo à Cultura Federal (n.º 8313, 23/12/1991) e do Estado do Rio de Janeiro (n.º 1954/RJ, 26/1/1992). Agradece também o patrocínio da Bradesco Seguros e do Instituto 21 Embratel, em etapas sucessivas da pesquisa que deu origem a Formação do pensamento político brasileiro.
Francisco C. Weffort
SUMÁRIO
Prefácio Parte I - As duas faces do Ocidente Capítulo 1 - As escritas de Deus e as profanas Capítulo 2 - Tempos dos descobrimentos Capítulo 3 - Conquistadores e índios Parte II - Brasil Colônia Capítulo 4 - Século XVI - Jesuítas e colonos: tempos de Manuel da Nóbrega Capítulo 5 - Século XVII - Antônio Vieira: a palavra e o fogo Capítulo 6 - Século XVIII - Verney e Pombal: Ilustração e despotismo Parte III - Brasil Império Capítulo 7 - Primeiro Reinado - José Bonifácio e Bernardo de Vasconcelos: liberalismo e conservadorismo Capítulo 8 - Segundo Reinado - José de Alencar: indianismo e conservadorismo Capítulo 9 - Segundo Reinado - Joaquim Nabuco: a escravidão e a "obra da escravidão" Parte IV - Primeira República Capítulo 10 - Euclides da Cunha: A República e o sertão Capítulo 11 - Oliveira Viana: Transição da Primeira à Segunda República Parte V - Segunda República Capítulo 12 - Gilberto Freyre: o povo mestiço Capítulo 13 - Desenvolvimento e democracia: Helio Jaguaribe e os primeiros anos do ISEB Posfácio - História das idéias e do pensamento político
Bibliografia Roteiro de imagens
PREFÁCIO
O leitor encontrará, neste livro, intelectuais e protagonistas históricos que contribuíram para formar o pensamento brasileiro, como Antônio Vieira, José Bonifácio, Joaquim Nabuco, Euclides da Cunha, Oliveira Viana e Gilberto Freyre, entre outros. Encontrará também, em meados do século XX, os jovens fundadores do Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB), entre os quais Helio Jaguaribe e Roland Corbisier, e, ao lado deles, os jovens economistas Celso Furtado e Roberto Campos. Junto dos intelectuais estarão, conforme as épocas, homens de ação como D. Henrique, o Marquês de Pombal, D. João VI, D. Pedro II e Getúlio Vargas, cujos nomes são emblemas de períodos inteiros da história luso-brasileira. Esses intelectuais e protagonistas, ao lado de outros cujas ações e obras serão suscitadas pela descrição histórica, expressam o pensamento brasileiro, formado desde o nascimento do país até meados do século XX, quando o Brasil começou a adquirir o perfil urbano e industrial que conhecemos hoje. Sigo aqui um método similar ao de um livro que organizei, com a participação de colegas da USP, como introdução ao pensamento político europeu, destinado a estudantes de história, economia, ciências sociais e direito.1 Espero que o livro que o leitor tem agora em mãos e que é de elaboração pessoal possa servir como uma introdução ao pensamento político brasileiro. Em ambos, a convicção central é de que as idéias se revelam não apenas nas palavras, mas também nas ações, com as quais têm uma relação de parentesco, em alguns casos de direta continuidade. Assim, elas serão mais bem compreendidas se as estudarmos na história da qual surgiram. Não obstante as semelhanças, não se pode passar por alto de algumas particularidades da história das idéias brasileiras quando comparada com a européia. A primeira dessas particularidades é que nossas elites pensaram o Brasil durante muito tempo como um "país sem povo". Essa é uma expressão do século XIX, mas seu significado social e político está comprometido com uma história que vem desde as mais remotas origens do Estado português. Como observou Raymundo Faoro, a tese da origem popular do poder não vingou no pensamento português, "não obstante seu auspicioso aparecimento na Revolução de Avis".2 Na colônia, os jesuítas reconheceram negros e índios como parte da humanidade, ponto de partida essencial do pensamento brasileiro. Mas, imersos no espírito
medieval da Contra-Reforma, não podiam reconhecê-los como povo. Quanto aos povoadores brancos, não tiveram número ou implantação suficientes, dispersos na imensidão do território, para permitir ao pensamento da época reconhecê-los como uma sociedade articulada. Depois de quase um século desde a proclamação da Independência, boa parte dos intelectuais e das elites não reconhecia como povo as gentes que tinha diante dos olhos. Entendia que havia que criá-lo como preliminar para a criação da Nação. A segunda peculiaridade da história das idéias no Brasil diz respeito à emergência tardia do Estado, como realidade e como objeto de pensamento. Enquanto a reflexão sobre o Estado moderno começou na Europa do Renascimento, em Portugal começou no século XVIII, na Ilustração pombalina. No Brasil, só começou no século XIX, com D. João VI, e na Independência, com José Bonifácio. A terceira diferença do pensamento político brasileiro vem de sua herança de uma concepção medieval da totalidade da vida social, com sua característica mistura de aspectos sociais, culturais, econômicos e políticos. O pensamento político configurou aqui um estilo próprio que o tornou durante muito tempo indistinguível do pensamento social. Só na Segunda República teremos um pensamento político em sentido específico. É que apenas na Segunda República, a partir dos anos 1920 e 1930, teremos resolvidas as velhas dúvidas sobre a existência do povo e da sociedade. Terminava a grande época da formação do Brasil: três séculos de colônia, um século de Império, quase meio século de República agrária. Começavam tempos de mudança do Estado nacional, criado no Império e consolidado na velha Republica oligárquica. Começavam também tempos de modernização, industrialização, urbanização, expansão da educação, criação de novas universidades. É preciso lembrar que até então as atividades universitárias no país eram restritas às grandes escolas profissionais, de Direito, Medicina e Engenharia, em geral formadas no Império. Para o entendimento da transformação do Brasil rural em país urbano e industrial foram decisivas as primeiras obras de Oliveira Viana, Caio Prado Jr., Gilberto Freyre e Sérgio Buarque de Holanda. Esses autores não foram - nem pretenderam ser - cientistas políticos. Foram sociólogos, eventualmente antropólogos, e se dedicaram a uma abordagem histórica e cultural da sociedade, da mestiçagem, do povo e das classes sociais. Foram, sobretudo, ensaístas. Alguns deles, com forte influência das idéias e sugestões de Joaquim Nabuco e Euclides da Cunha, comprometeram-se com o estudo da formação histórica e social brasileira, dando continuidade aos velhos temas que vinham da colônia e do Império - temas para cuja superação contribuíram. Em sutil dialética de continuidade e superação, substituíram os historiadores, romancistas e poetas no lugar de
preeminência intelectual que haviam ocupado no Império e na República agrária. Acertaram contas com antigas dúvidas sobre o passado brasileiro, tornando-se, por isso, pioneiros das ciências sociais. E assim estabeleceram as bases para o reconhecimento ulterior de uma dimensão política do pensamento social. Embora não esgotem a rica bibliografia do ensaísmo brasileiro, os primeiros livros desses autores foram formadores de nossa intelectualidade durante o século XX. Há que mencionar, em especial, Casa grande & senzala (Gilberto Freyre), Raízes do Brasil (Sérgio Buarque de Holanda) e Formação do Brasil contemporâneo - colônia (Caio Prado Jr.). E a essa pequena lista, consagrada em conhecida avaliação crítica de Antonio Candido, há que acrescentar Populações meridionais do Brasil (Oliveira Viana), resgatada do esquecimento por estudos mais recentes. 3 Grande parte do pensamento social e político da segunda metade do século XX, a começar pelos pensadores reunidos em torno do Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB), é devedor da influência desses autores e, em particular, dessas obras. Este livro nasceu, portanto, da convicção de que narrar a história das idéias de um país exige contar, mesmo que em traços largos, a história de sua formação política e social. Acredito que faz uma substancial diferença reconhecer, por exemplo, que o ponto de partida do pensamento brasileiro se acha no século XV, com o Infante D. Henrique, e não no XVI, com Maquiavel, ou no XVII, com John Locke. A menção à época do Infante evoca sinais do frágil Renascimento português e, sobretudo, ressonâncias de um medievalismo que ainda permanecem na cultura brasileira. Não por acaso, a primeira tradução portuguesa de O príncipe, de Maquiavel, é do século XVIII, a era de Pombal. Como sabemos, as influências modernizantes européias sempre chegaram a Portugal com atraso. E no Brasil, pelo menos até a Independência, essas influências chegaram com atraso ainda maior. Se as circunstâncias históricas permitiram que se formasse, entre nós, um pensamento original, isso não significa que este se coloque fora dos paradigmas ocidentais. Nascemos da última Idade Média européia, a mesma que abriu o mundo aos tempos modernos, dando origem a uma radical ambigüidade da cultura brasileira, que nunca pôde renegar os estilos da tradição nem evitar inteiramente as vicissitudes e os contenciosos da modernidade. A partir de fins do século XVIII herdamos tinturas liberais de uma cultura erudita francesa. No século XIX imitamos os ingleses na organização política do Império. Na passagem para o século XX imitamos os americanos na República. Mas tudo isso sempre se misturou a um iberismo cultural, mais antigo e mais profundo, ao qual voltamos sempre. Isso ocorreu, por exemplo, na segunda República, a de Vargas, já no século XX. Começando antes dos descobrimentos, nossa história esteve sempre acompanhada
de projetos, diagnósticos, às vezes meros devaneios que, por algum motivo, assumiram significação geral. Não há como esquecer que algo foi pensado sobre o Brasil antes mesmo que este existisse. Aqui, como em outros países iberoamericanos, "o ideal precedeu o material; o signo, as coisas; o traçado geométrico do plano, as nossas cidades e a vontade política de explorar, o sistema produtivo".4 Não é preciso, porém, recorrer a nenhum excesso de "construtivismo" para reconhecer, na história, idéias e projetos sobre o país. Se o Brasil foi sempre um país conduzido por idéias, também é verdade que estas estiveram sob a influência das circunstâncias sobre as quais deveriam atuar. Mais do que uma sucessão de argumentos conduzidos por sua própria lógica, as idéias que nos conduziram até aqui alimentaram-se da experiência, como aliás é próprio do espírito ibérico. Nesse sentido, estudar a história das idéias em nosso país é, quase obrigatoriamente, um modo de estudar o desenvolvimento de sua sociedade e da cultura. Partindo de uma descrição da cultura dos descobrimentos, este livro termina com uma apresentação do nacionalismo e do desenvolvimentismo dos governos de Getúlio Vargas e de Juscelino Kubitschek. E aqui convém lembrar que, na história das idéias, como em outras histórias, é sempre mais fácil decidir quando começam do que quando acabam. Em que momento do entardecer levanta vôo a célebre coruja de Minerva de que falava Hegel? Em que momento se encerra uma grande época da história? As épocas mais próximas de nós são sempre de limites incertos, passíveis de muita dúvida. Podemos concordar, por exemplo, que as idéias modernas européias começam com Maquiavel, iniciando um longo processo de secularização do Estado e da sociedade. Mas quando terminam? Com Marx e sua crítica do capitalismo ou com os críticos de Marx e o neoliberalismo? O ponto de partida tem algo de obrigatório; o de chegada, um tanto de arbitrário. A mesma dúvida pode ter sentido aqui. Se acreditamos saber quando começa a formação do pensamento social e político brasileiro, mais duvidoso é decidir quando essa formação se completa. Em todo caso, acompanharei as idéias que considero mais relevantes na formação do Brasil. Quero dizer a formação rural do Brasil, que vem do século XVI e se completa – e se exaure – em meados do século XX. Interessa, portanto, a este livro, a história que foi vivida e pensada por personagens e intelectuais como José Bonifácio e Joaquim Nabuco. Os personagens deste livro escreveram e atuaram fora dos muros universitários ou, no caso dos religiosos, fora dos muros das ordens a que pertenciam, como Manuel da Nóbrega e Antônio Vieira. Nesse sentido, tais nomes, que soam tão antigos, têm algo em comum com outros mais recentes, como os de Oliveira Viana, Caio Prado Jr. e Helio Jaguaribe. Para o período que me interessa aqui, eles atuaram como intelectuais, de preferência, fora das instituições nas quais
se formaram. Cabe lembrar, a propósito, que nessa época economistas e sociólogos ainda eram formados nas escolas de Direito ou, eventualmente, de Engenharia. Não podemos, portanto, tratar neste livro das idéias que vêm dos anos 1950 em diante, e que nos chegaram, em geral, das obras de professores e pesquisadores universitários. Servem de exemplos os nomes de Florestan Fernandes, Fernando Henrique Cardoso, Wanderley Guilherme dos Santos, Bolívar Lamounier e Fabio Wanderley Reis. Raymundo Faoro, que de profissão era procurador de Estado, é uma exceção nessa regra geral, tendo construído obra importante de historiador e ensaísta político. Vale acentuar que, restringindo meu estudo até meados dos anos 1950, limito-me também às obras de juventude de Gilberto Freyre, Caio Prado Jr., Sérgio Buarque de Holanda e Helio Jaguaribe. Não está no meu campo de observação, portanto, a parte mais madura de sua vasta produção intelectual pós-1950 e sua enorme influência universitária. Esse estudo exigiria uma análise da formação e desenvolvimento das universidades, sobretudo da pós-graduação, que vai além de minhas possibilidades neste livro.5 Para a escolha dos autores que apresento aqui, tomei em consideração a precedência e a influência na formulação de idéias relevantes para a formação do povo e do Estado. Quanto aos protagonistas, interessou-me a influência prática que exerceram sobre esses temas em sua época. Vieira e Nabuco, por exemplo, foram intelectuais e homens de ação. Gilberto Freyre e Sérgio Buarque adequam-se melhor à descrição da figura típica do intelectual. D. Henrique, Pombal e Getúlio Vargas pertencem mais à categoria do homem de ação do que à do intelectual. Portanto, é como homens de ação que me interessam aqui, mais do que por seus eventuais escritos. De um modo ou de outro, tanto pelas idéias como pelas ações, são figuras emblemáticas da história e da cultura. O ponto de partida mais distante deste livro foram os cursos básicos de História das Idéias e de Instituições Políticas Brasileiras, da velha cátedra de Política da Universidade de São Paulo (USP), onde me formei e trabalhei como professor, sob a direção de Lourival Gomes Machado e Paula Beiguelman.6 O primeiro desses cursos era dedicado à história das idéias européias; o segundo, a uma plêiade de pensadores brasileiros dos anos de 1920 a 1950. Também na universidade conheci a Contribuição à história das idéias no Brasil, de João Cruz Costa, e a Formação da literatura brasileira, de Antonio Candido, que me chamaram a atenção por suas sugestões para compreender a história e a cultura política. A essas obras juntou-se, mais recentemente, a influência de alguns ensaios e pesquisas de Raymundo Faoro, Wanderley Guilherme, José Murilo de Carvalho e Bolívar Lamounier. Antônio Paim, Alfredo Bosi, Luiz Jorge Werneck Vianna e Gildo Marçal Brandão são outros
dentre os nomes que gostaria de mencionar aqui, porque minha dívida para com eles é maior do que dão a perceber as notas de rodapé. Comecei o projeto para este livro na Universidade de Notre Dame (Indiana), onde estive, com apoio do CNPq, durante o primeiro semestre de 2003. No segundo semestre de 2003 e durante o ano de 2004 continuei a pesquisa no Instituto de Estudos Políticos e Sociais (IEPES), com o inestimável apoio do acesso ao Real Gabinete Português de Leitura. Contei ainda, para as primeiras partes do trabalho, com o apoio da Fundação Bradesco (lei estadual 1954/92) e, para as partes seguintes, do Instituto 21, da Embratel (lei federal 8313/91). Também me beneficiei das conversas semanais com meus alunos do Programa de Política Comparada, do IFCS/UFRJ, onde me encontro, com o apoio da FAPERJ. A todos eles, fica aqui meu agradecimento. Um muito obrigado que devo também aos professores Wanderley de Souza, Pedricto Rocha Filho, Francisco Carlos Teixeira da Silva, Neyde Theml e Conceição de Góes. Quero agradecer a Helio Jaguaribe, com quem tive o privilégio de conversar quase todo dia, no IEPES, sobre diferentes momentos da realização deste trabalho. Helena Severo, minha mulher, leu partes do texto e me fez valiosas sugestões. Gildo Brandão, José Álvaro Moisés, Jorio Dauster e Everardo Moreira Lima me ajudaram com a leitura paciente e minuciosa de alguns capítulos. Minha filha, Helena Freire Weffort, e minha secretária, Regina Cortes Lima, digitaram as notas de minhas leituras com enorme eficiência, sendo que Helena, ao final, me ajudou a corrigir as notas de rodapé. Como sempre acontece, o privilégio do apoio de tantos amigos não me desculpa pelos eventuais erros que, onde existirem, são apenas meus. Francisco C. Weffort, Rio de Janeiro, fevereiro de 2006.
1. W EFFORT, Francisco C. Os clássicos da política. São Paulo: Ática, 1989. 2 v. 2. F AORO, Raymundo. Existe um pensamento político brasileiro?. São Paulo: Ática, 1994. p. 27 e 48. 3. Além de Antonio Candido, em introdução a H OLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2004, é oportuno mencionar aqui coletânea organizada por SANTIAGO, Silviano. Intérpretes do Brasil. Rio de Janeiro: Aguilar, 2000. Silviano Santiago juntou em sua coletânea 11 livros que publicou na íntegra, dos quais fazem parte as quatro obras que menciono acima. 4. São palavras do ensaísta uruguaio Angel Rama (1926-1983), citado por V IANA, Luis Jorge Werneck. Americanistas e iberistas: a polêmica de Oliveira Viana com Tavares Bastos. In: B ASTOS, Elide Rugai; MORAES, João Quartim de (Org.). O pensamento de Oliveira Viana. Campinas: Editora da Unicamp, 1993. p. 352. Cf. RAMA , Angel. La ciudad letrada. Montevideo: Comission pro Fundacion Internacional Angel Rama, 1984. 5. Uma boa descrição da institucionalização universitária das ciências sociais no Brasil depois de 1950 pode ser encontrada em TRINDADE, Helgio. Social Sciences in Brazil in perspective foundation, consolidation and
diversification. Paris: Social Science in Latin America (1930-2003). Sage Publications, Maison des Sciences de l'homme, 2005. 6. Na época, Paula Beiguelman, assistente de Lourival Gomes Machado (os outros assistentes eram Oliveiros S. Ferreira e Célia Quirino), realizava pesquisas sobre o Império, de grande influência sobre seus alunos. Entre essas pesquisas cabe mencionar sua tese de doutorado sobre Joaquim Nabuco. Ver da autora Formação política do Brasil. São Paulo: Pioneira, 1967, e Joaquim Nabuco. São Paulo: Perspectiva, 1999.
PARTE I AS DUAS FACES DO OCIDENTE
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O grau zero da colonização: desembarque de Cabral em Porto Seguro.
CAPÍTULO 1
AS ESCRITAS DE DEUS E AS PROFANAS
A conquista do Novo Mundo (é) origem de um conhecimento terrível, o que nasce de estarmos presentes no próprio momento da nossa criação. CARLOS FUENTES
O Brasil é um país de origem católica. Um país novo, nascido no rastro dos grandes descobrimentos dos séculos XV e XVI, e dependente nos primeiros séculos das iniciativas colonizadoras de Portugal que abriram caminho para a época moderna, como os demais países ibéricos da América, dependentes da Espanha. Foi, portanto, formado pelas vicissitudes históricas da última Idade Média e do curto Renascimento vivido pelos países ibéricos, bem como pela Contra-Reforma e pela longa decadência dos séculos seguintes. Tendo aberto ao mundo a primeira face da modernidade, Portugal e Espanha apareceram, durante séculos, como fortalezas da tradição. A cultura brasileira traz até hoje os sinais dessas origens, como fruto de uma história dividida entre a sedução do passado e o anseio pelo novo. Em épocas mais recentes, preferimos simplificar a imagem desse passado, em obediência a um vezo econômico que se tornou traço dominante em nossa vida intelectual, corrente principal de um estilo de pensamento. Nossa memória, mesmo a do passado mais distante, acabou por se submeter à mesma lógica unidimensional do interesse econômico que, em geral, aplicamos às situações do presente.1 Colocando na sombra as paixões da cultura e da política, ficamos com uma parte da história, desprezando aspectos essenciais. Este capítulo e o seguinte deste livro buscam trazer alguma luz para essas verdades esquecidas.
As escritas de Deus Num belo livro sobre a formação cultural dos Estados Unidos, o historiador Daniel Boorstin diz que os norte-americanos sempre andaram pela história com a consciência de que estavam no caminho certo. Os "peregrinos" teriam a certeza de que implantavam na América um novo espaço para a liberdade humana. Como nestas palavras do sacerdote puritano Francis Higginson: "O nosso maior conforto
(...) é que temos aqui a verdadeira Religião e os santos Mandamentos de Deus Todo Poderoso, e se Deus está conosco, quem pode estar contra nós?". Nesse sentido, diz Boorstin, a Nova Inglaterra puritana "foi um nobre experimento em teologia aplicada".2 É evidente que o historiador norte-americano registrava nessas palavras a convicção interior de uma cultura, numa determinada época. Deixemos à parte a avaliação que nós, membros de outra cultura, poderíamos fazer sobre tal convicção. Importa assinalar que Boorstin registrava os ecos de uma visão do valor da fé para a salvação, no espírito da Reforma protestante, até hoje dominante na cultura norteamericana. Mas essas frases por ele recolhidas me surpreenderam quando as li, e, creio, surpreendem a qualquer leitor ibero-americano.3 Elas nos sugerem, quanto às origens dos Estados Unidos, uma compreensão muito diversa daquela a que estaríamos obrigados em relação a nós mesmos. Se eu tivesse que buscar, numa só frase, uma imagem da história e da cultura brasileiras, acompanharia o dito popular registrado por Oliveira Martins sobre a cultura lusa: "Deus escreve direito por linhas tortas". 4 Nas palavras do historiador português, o traço característico da cultura lusa – e, posso acrescentar, da brasileira – estaria em reconhecer que as ações dos homens obedecem a "leis idealmente sublimes", embora eventualmente "maculadas de defeitos e vícios". O exemplo maior seria o de Luís de Camões (1525-1580), que "sente e exprime a grandeza histórica do império das Índias, que na própria opinião particular do poeta são uma Babilônia, um poço de ignomínias".5 Esse traço cultural, mais do que ligado apenas à cultura lusa, talvez seja característico da cultura ibérica em geral. Também da Espanha se pode dizer que nela reside o sentimento de uma grandeza das ações históricas que convive com o da fragilidade dos homens e com a precariedade das circunstâncias em que estes devem atuar. Quem se lembra da grandeza do império português das Índias e de seu "poço de ignomínias" não poderia também se lembrar da grandeza histórica e das ignomínias da Nova Espanha de Hernán Cortés (1485-1547) ou do Peru de Francisco Pizarro (1475?-1541)? Diferente da tradição norte-americana, que desde a origem se acredita no caminho certo, a tradição ibérica é capaz de reconhecer-se como uma complexa mescla do bem e do mal, do certo e do errado. Pode-se dizer que é típico do sentimento ibérico o ser avesso à ortodoxia, mais propenso a condutas de permeabilidade e adaptabilidade às circunstâncias, como se a firmeza moral ibérica dispensasse a necessidade de uma certeza subjetiva quanto aos caminhos do mundo. Daí que o misticismo ibérico foi sempre, como diz Oliveira Martins, um misticismo terra a terra, de pessoas ignorantes da filosofia e da teoria, que descobriam seu próprio caminho para Deus. Suas ocorrências poderiam ser vistas
como casos extremos de exaltação da personalidade, talvez o mais alto valor de uma cultura que preza as pessoas mais do que as normas. Alguns ibéricos expressam com peculiar altivez essa disponibilidade diante das circunstâncias da vida. "Caminante, no hay camino, se hace camino al andar", disse o poeta Antonio Machado (18751939) em verso consagrado na Espanha pela canção popular. O desempenho dos ibéricos como aventureiros e como descobridores do mundo, em empreitadas que haveriam de consolidar um estilo cultural, deixou profundas raízes nas vicissitudes que acompanharam por séculos a história da América ibérica.6 Não há como desligar as diferenças culturais entre ibéricos e anglo-saxões das diferenças religiosas que os caracterizaram na crise da última Idade Média e, depois, nos grandes movimentos da Reforma e da Contra-Reforma. No princípio das colônias da Nova Inglaterra estava a idéia da predestinação e da solidão do homem diante de Deus. No princípio das colônias ibero-americanas estava a crença, mais antiga, no Filho de Deus que se fez homem. Uma crença cristã, como a dos protestantes e dos puritanos, mas com a diferença de que era entendida por espanhóis e portugueses como uma intimidade de Deus com a matéria e com o mundo. A cultura cristã da última Idade Média seguia os ensinamentos de Tomás de Aquino (1225-1274), para quem "Deus não é o Ato puro de pensamento, mas o Ato puro de existir que criou do nada o mundo cristão dos indivíduos realmente existentes".7 Diferente de Santo Agostinho (354-430), de influência platônica, Santo Tomás buscou a união de Deus e do mundo, estabelecendo, a partir do século XIII, uma tradição cultural que se tornou parte essencial das heranças culturais iberoamericanas, por intermédio do ativismo dos missionários. Convém advertir, desde logo, que este livro busca recolher, na história, imagens da cultura. Não se trata de colocar em questão - menos ainda, de julgar - as convicções religiosas de quem quer que seja. Mais ainda porque, como ficou dito antes, a história não pode ser descrita e menos ainda explicada como uma só dimensão. Assim como as da economia, as opções religiosas, por importantes que sejam, não o são o bastante para explicar a história ou a cultura de uma época. Menos ainda num momento em que o mundo se abriu para os tempos modernos, e no qual se juntaram aos motivos religiosos as mudanças de mentalidade, além de ambições de riqueza e poder, numa surpreendente mistura que alcançou força suficiente para explodir os limites medievais e abrir as portas do Novo Mundo. A dimensão da vida religiosa é um bom ponto de partida para a compreensão dessa abertura do mundo não porque se a considere a única possível, mas por se oferecer como a rota mais segura para a compreensão das idéias daqueles tempos. Como em todos os séculos medievais, também na última Idade Média a elaboração do pensamento era uma missão dos clérigos.
Opções da modernidade De um modo surpreendente para quem estava habituado a pensar os anglo-saxões como modernos e os ibéricos como atrasados, o historiador norte-americano Richard Morse disse, em seu O espelho de Próspero, que as colônias anglo-saxônicas e as ibéricas foram, em seu tempo, duas "opções" de entrada do mundo para a modernidade. Formadas num longo período que se estende do século XII ao XVII, essas duas tradições, a ibérica e a anglo-saxônica, teriam surgido "de uma matriz moral, intelectual e espiritual comum".8 Interessante observar que Morse acompanha as diferenças entre católicos e protestantes estabelecidas por Max Weber, mas se recusa a entender que tais diferenças possam ter significado um divórcio entre essas duas culturas. 9 Essas diferenças, ele as entende como momentos essenciais, constitutivos, da época moderna e da civilização ocidental. Segundo Max Weber, no mundo católico os atos humanos seriam julgados num "tribunal da consciência" em que o confessor é o juiz do "foro íntimo". Um "tribunal" que dependeria não apenas do reconhecimento da existência de Deus por parte do fiel, mas também da Igreja, uma instituição terrena, com sua hierarquia. No mundo puritano, desapareceu o "tribunal" e com ele o julgamento exterior da consciência, o que conduziu a mudanças radicais na imagem do indivíduo. Enquanto o católico falaria com Deus no âmbito da Igreja, o protestante se acharia só, sem intermediários, diante da divindade. Aí estaria o sentido fundamental do individualismo dos anglo-saxões, em particular dos calvinistas. Na angústia da solidão diante de Deus estaria a raiz de um poderoso impulso psicológico de homens que, na incerteza quanto à própria salvação, buscariam na ação sobre o mundo sinais de encontrar-se entre os eleitos. Aí estaria também o fundamento de uma ética que valorizaria o trabalho e que deixaria para trás a concepção tomista de que uma pessoa só deveria ter a riqueza que lhe assegurasse viver bem. Segundo Weber, essa ética do trabalho se acharia nas origens do capitalismo.
A investida ibérica Essa divergência entre protestantes e católicos no modo de conceber as relações com Deus não seria, porém, o bastante para significar um divórcio entre ibéricos e anglosaxões como iniciadores do mundo moderno.10 A propósito, se tivéssemos que pesquisar a ordem de entrada de ibéricos e anglo-saxões na época moderna, concluiríamos que aqueles tomaram a dianteira. Tiveram assim que enfrentar antes
dos anglo-saxões alguns dos temas relativos à diversidade do mundo, entre os quais o tema fundamental da existência de uma nova humanidade. Um tema para o qual se preparavam desde os séculos da Reconquista, quando enfrentaram os mouros, e que recriaram na época dos descobrimentos, em face da nova realidade dos negros e dos índios. Assim como Espanha e Portugal saíram para o Novo Mundo na dianteira da Holanda e da Inglaterra, também as colônias ibéricas começaram antes das inglesas. A história brasileira e a dos países hispano-americanos começaram no início do século XVI, dez ou vinte anos antes do protesto luterano. A história norte-americana nasceu dos peregrinos das colônias da Nova Inglaterra, fruto das turbulências religiosas de um século depois que Lutero (1483-1546) pregou sua mensagem na porta da Igreja de Wittenberg. Tendo nascido antes da Reforma, tomaria algum tempo até que chegassem aos países ibero-americanos os ideais da Contra-Reforma – no caso do Brasil, principalmente por intermédio da ação dos jesuítas. E estes, que se formaram como ordem pouco antes do Concílio de Trento, devotavam obediência às determinações conciliares, entre as quais a que considerava como uma heresia luterana a tese que negava que os índios fossem seres humanos. Segundo Morse, a vitalidade do tomismo na "escolástica tardia" nos países da península Ibérica dos séculos XV e XVI não responderia, portanto, a uma situação de atraso, mas de relativa modernidade da península Ibérica. Responderia a circunstâncias peculiares, entre as quais a guerra (e a convivência) com os mouros nas guerras da Reconquista, que tomaram sete séculos, criando também as possibilidades de uma antecipação ibérica na formação dos Estados nacionais. Foi assim que Portugal e Espanha, mais do que outros povos da Europa, anteciparam-se não apenas na formação dos Estados nacionais, mas também na reflexão sobre a necessidade de adaptar os requisitos da vida cristã à missão de "incorporar" povos não-cristãos à civilização européia. A Summa contra gentiles, de Santo Tomás, que cumpriu a função de guia à conversão dos mouros, expunha amplamente o caso de sociedades "pagãs" ordenadas pela filosofia natural, segundo uma visão para a qual os seres humanos podiam ser considerados dentro de uma perspectiva ao mesmo tempo cristã e "natural". Se a Igreja, para Santo Tomás, era um "corpo místico", o Estado era a mais perfeita das associações humanas, um "corpo político e moral". Pagãos e infiéis também eram capazes de associações políticas.11
Experimentalismo, navegação e comércio Como já assinalamos, nem tudo é religião nas origens dos países ibero-americanos.
Fundamentais como tenham sido, as convicções religiosas não tiveram influência exclusiva na abertura dos novos tempos e na formação das novas individualidades históricas nacionais da América ibérica. A esse respeito, são necessárias duas observações, das quais a primeira é uma distinção necessária entre religião e cultura. Se os países da península Ibérica mereceram ser considerados "países católicos" em razão de sua proximidade ao papado e ao clero do século XIII em diante, mereceram-no mais ainda por razões culturais. Não obstante os momentos de obscurantismo, que não são poucos, especialmente nos períodos de franca atividade da Inquisição, Espanha e Portugal nunca foram exclusivamente católicos, do ponto de vista religioso. Tradicionalmente, a Ibéria era uma região de cristãos, mouros e udeus.12 Mas, nela, a presença católica se expandiu, extravasando o campo de ação da Igreja, atingindo segmentos não-católicos e até mesmo atividades de caráter nãoreligioso da sociedade. Se Portugal e Espanha são considerados, ainda hoje, como países católicos, é porque a religião católica, não tendo sido a única em sua longa história, foi forte o bastante para deixar marcas indeléveis em ambas as culturas. A propósito, impõe-se uma segunda observação, que diz respeito a uma mudança de mentalidade que ocorreu ao longo do tempo tanto por razões teológicas quanto por razões práticas. Uma disposição cultural que, como tudo o que concernia ao pensamento na Idade Média, foi formulada inicialmente por religiosos. Trata-se de um experimentalismo que tinha origem no pensamento de Roger Bacon (ca. 12201292), cuja tradição foi recebida e transmitida por Nicolau de Cusa (1401-1464). Bacon foi um monge franciscano inglês do século XIII, para quem a experiência seria a fonte mais sólida da certeza: "A verdade é filha do tempo, e não da autoridade". 13 É certo que Bacon distinguia ainda como fontes do saber a autoridade e a razão; e, mais ainda, incluía no seu conceito de experiência a experiência mística. O que, porém, diante de uma tradição só apoiada na autoridade, não retirava a novidade do seu experimentalismo, nem o impedia de considerar as matemáticas "a porta e a chave para as ciências". Embora estivesse no século XIII ainda à margem do pensamento medieval, essa valorização da experiência deveria configurar-se, nos séculos seguintes, como uma tendência a uma mudança de mentalidade também devida a razões de ordem prática, derivadas das mudanças sociais e econômicas em curso na última Idade Média. Já a partir do século XII, assistia-se em geral na Europa a um ressurgimento das cidades e do comércio. Os ibéricos, fechada a saída ao Oriente pelo monopólio das cidades italianas sobre o Mediterrâneo, estavam obrigados a procurar outros caminhos. Desde meados do século XIII buscaram comércio com o norte da Europa – Flandres, Normandia, Inglaterra, Bretanha e até Noruega – por meio da navegação de cabotagem.14
Em Portugal, a partir do século XIV, o experimentalismo vinculou-se à arte de navegar, convivendo com a tradição e com os ensinamentos dos clássicos, numa espécie de "duplo pensamento" que caracterizou boa parte dos séculos das navegações. Na segunda metade do século XVI, o navegador Duarte Pacheco Pereira consagrou esse experimentalismo português no Esmeraldo de situ orbis, em palavras célebres: "A experiência, que é madre das cousas, nos desengana e de toda dúvida nos tira".15 Sabe-se que esse experimentalismo ibérico não foi forte o bastante para estabelecer, como na Inglaterra, as premissas de um desenvolvimento científico mais amplo. Mas houve exceções, e não foram irrelevantes na Geografia, na Astronomia, na Matemática e nas demais ciências ligadas à navegação. É assim que se pode reconhecer no século XV e nas primeiras décadas do XVI um Renascimento português nos campos da ciência e da técnica, sem o qual os próprios descobrimentos não seriam possíveis. Essa mudança de mentalidade misturou-se, na aventura dos descobrimentos, com a religiosidade e até mesmo com o misticismo, e transmitiu-se aos conquistadores dos séculos seguintes. De mistura com isso tudo, não há como ignorar, no alvorecer ibérico dos tempos modernos, uma cobiça por riqueza e poder, que há muito se reconhecia nas ações guerreiras da nobreza medieval que se espraiaram na península durante a Reconquista, assim como em toda a Europa das cruzadas. Esses motivos levaram ao comércio, no sentido que tomou essa atividade desde o século XIII, e que se distinguia disso que, depois, se chamaria de capitalismo comercial. Nas cruzadas, na Reconquista e nos descobrimentos, essas ambições de riqueza e poder misturavamse a uma antiga noção medieval de honra que incluía o botim e o saque como direitos legítimos do vencedor, tanto quanto a escravização do vencido na batalha. O capitalismo comercial, de início limitado a algumas das cidades italianas, viria depois, como uma das conseqüências das aventuras ibéricas, a partir da Holanda do século XVII. O Brasil nasceu dessa mistura histórica e cultural, a mesma que inspirou as lutas de séculos contra os mouros. O ano de 1492, do descobrimento da América, foi também o da retomada, com a ajuda portuguesa, de Granada, último baluarte dos mouros na península. O ano de 1498 foi o da viagem de Vasco da Gama (1460?1524) para as Índias, seguindo trilha aberta por Bartolomeu Dias (1450?-1500) em 1487 ao cruzar o cabo das Tormentas, ou da Boa Esperança, como queria o rei e como ficou na memória histórica. Décadas depois, já em pleno século XVI, começava a decadência, embora permanecessem alguns dos impulsos culturais da expansão. Passado o breve clarão humanista português e espanhol, permanecia a mesma mistura de misticismo e de
espírito aventureiro medieval, de pragmatismo e de centralização de poder, agora na submissão às regras do Concílio de Trento (1545-1463), que, no caso do Brasil e de Portugal, foram impulsionadas pela influência dos jesuítas, duradoura de dois séculos. Mais do que na literatura e nas artes, a opera magna do Renascimento português foi a de superar os limites do Mediterrâneo, conquistar o Atlântico e o Índico. Sua grande obra estava no mar e nas conquistas de além-mar. Confrontados com as grandes obras artísticas e culturais do Renascimento, os descobrimentos de portugueses e espanhóis ocupam a posição singularíssima e grandiosa de haver aberto as portas do mundo tal como o conhecemos hoje. Mas a grandeza ibérica dos séculos XV e XVI vinha acompanhada das distorções e dos excessos que haveriam de perdê-la.
Os germes da decadência Quaisquer que tenham sido as complexas combinações impostas pela marcha do tempo, os aspectos religiosos, econômicos e políticos estavam presentes como dimensões da explosiva e contraditória mistura de motivos que levou Portugal e Espanha a uma fase de ressonância universal na época dos descobrimentos. Foi uma mistura de cobiça, espírito guerreiro e misticismo, à qual juntaram-se ainda os vícios e os paroxismos que se associavam aos longos processos de centralização do poder. Na passagem do século XV para o XVI, são muitos os exemplos, a começar pelo "poço de ignomínias" que se revelou na tentativa, afinal frustrada, de Portugal nas Índias. Quanto à Espanha, já em inícios do século XVI, as mesmas ignomínias se revelariam nas violências dos conquistadores no Caribe, na Nova Espanha, e, depois, no Peru. É a primeira forma de expressão do problema, que acompanhará a história dos países ibero-americanos, do reconhecimento das populações conquistadas no Novo Mundo. Também na passagem do século XV para o XVI, as conveniências das famílias reais da Ibéria – conveniências religiosas, econômicas e políticas – obrigaram os udeus a sair da Espanha e a adotar à força, em Portugal, o catolicismo. Paradoxalmente, num dos momentos brilhantes de abertura da Idade Moderna, quando Colombo (1451-1506) negociava, com a Corte espanhola, os planos de viagem para a América, havia autos-de-fé queimando seres humanos em ruas e praças de Espanha. Quanto a Portugal, quase no mesmo momento, a Coroa aplicava contra os judeus a fórmula absurda do "crê ou morre" que os cristãos sempre criticaram nos mouros.
Foi assim que surgiu em Portugal a figura do "cristão-novo", como efeito de uma técnica de poder, por meio da qual a Coroa portuguesa visava manter os judeus e suas riquezas no país, ao mesmo tempo que lhes negava o direito de praticar sua religião. Conciliava seus interesses de poder e dinheiro enquanto tentava apaziguar o anti-semitismo da plebe nas ruas de Lisboa, tanto quanto os interesses e o antisemitismo dos reis da Espanha. Embora de graves conseqüências para a cultura (e a economia) de Portugal, a manobra não impediu a participação de capitalistas judeus nas incursões lusas ao mar. Os judeus estarão presentes na criação do Brasil, como financiadores de viagens, técnicos ou povoadores (degredados), do mesmo modo que, em época anterior, e sem que deles se exigisse uma falsa escolha religiosa, já haviam estado com D. Henrique em suas empreitadas navegadoras. Não serviu, porém, a farsa da criação dos "cristãos-novos" para impedir as perseguições, pois os judeus, depois de obrigados a renegar sua religião em público, foram acusados de praticá-la às escondidas. Numa trágica manhã de abril de 1506, foram chacinados mais de quinhentos judeus, nas praças e vielas de Lisboa. Foi essa uma das razões para que, em Portugal, a figura do empresário, sobre a qual podiam sempre pesar suspeitas de heresia, como "cristão-novo", acabasse enfraquecida e subordinada à Coroa, que detinha o controle dos descobrimentos. Além da intolerância religiosa, havia a ganância aventureira de riquezas e poder por parte da nobreza, e uma mentalidade medieval incapaz de entender a iniciativa que visa ao lucro. Desse modo, as atividades capitalistas e artesanais tendiam a ser monopolizadas por grupos relativamente fechados – além dos "cristãos-novos", os estrangeiros, sobretudo ingleses, franceses e holandeses – que legal ou ilegalmente faziam em Lisboa ou em Sevilha boa parte do comércio externo peninsular.16 Foram colocados sob suspeição os indivíduos e as atividades que em Portugal poderiam constituir o germe de uma burguesia comercial. Boa parte desses indivíduos, especialmente os judeus, transferiu-se para a Holanda, onde havia liberdade para que pudessem atuar. Nos séculos XVII e XVIII, já então em plena decadência, a Coroa portuguesa buscou atraí-los, primeiro por meio de iniciativas do padre Antônio Vieira (1608-1697) e depois do Marquês de Pombal (1699-1782). Embora Portugal e Espanha tenham descoberto e inaugurado o Novo Mundo, estavam condenados a permanecer à margem dos reais benefícios de suas conquistas, condenados a ser países menores, pouco mais do que entrepostos da nova etapa comercial do desenvolvimento capitalista europeu. Os efeitos dos vícios de origem permaneceriam por muito tempo como um entrave cultural para o desenvolvimento dos países ibero-americanos. Os momentos de glória dos séculos XV e XVI deveriam fechar-se, no caso de
Portugal, na "apagada e vil tristeza" de uma prolongada decadência que se iniciou bem antes do desaparecimento de D. Sebastião em Alcácer-Quibir, em 1578. Os lusíadas, publicados em 1572, e que ainda hoje nos comovem, são uma obra tardia do Renascimento português, que pôde ser lida, já em seu tempo, como o epitáfio de um século e meio de glórias. A Espanha viveria ainda seu siglo de oro, que, aliás, foi também um século de decadência, não obstante o excepcional brilho de sua literatura e de sua pintura. De Dom Quixote, publicado em 1605, diz o mexicano Carlos Fuentes que "é o livro exemplar da decadência espanhola. (...) A era épica da Espanha terminara. (...) O sonho da utopia havia fracassado no Novo Mundo. A ilusão da monarquia universal havia se dissipado. (...) depois de El Cid e Isabel a Católica, depois de Colombo e Cortés, de Santa Tereza e Loyola, de Lepanto e a Armada, a festa havia terminado".17 A entrada dos ibéricos na época moderna foi ainda mais complexa porque as orientações da Contra-Reforma que vieram a prevalecer foram também formas de resistência e de adaptação da Igreja aos tempos da Reforma. Embora inspirados numa ética medieval, os jesuítas atuaram também, em alguns casos, como o do Brasil, como agentes paradoxais de nossa primeira modernidade, na defesa dos índios, na educação e em algumas das propostas econômicas de Antônio Vieira. Em todo caso, a entrada no mundo dos países nascidos das aventuras ibéricas que abriram a época moderna deu-se a contrapelo daquilo que se veio a consagrar como a modernidade. Admitidas as distinções necessárias entre portugueses e espanhóis, a entrada dos países ibéricos nos tempos modernos não teve nem o rigor ortodoxo dos primeiros norte-americanos nem, depois deles, a clareza e a distinção que pedia a modernidade cartesiana dos franceses. Dir-se-ia que os ibero-americanos entraram no mundo por caminhos tortos? [<<2]
As Américas surgiram "de uma matriz moral, intelectual e espiritual comum".
Temas formadores da cultura Assim como na América anglo-saxônica, algo dessas peculiaridades de origem permanece até hoje na América ibérica. Vinculadas à crença – religiosa e, por extensão, cultural – da humanização de um Deus que permanece conosco nos caminhos do mundo, essas raízes geraram idéias e convicções que acompanham a história dos países ibero-americanos. Raízes religiosas poderosas, às quais, porém, sempre faltaram a segurança intrínseca e a rigidez de princípios das ortodoxias. Enquanto as colônias da Nova Inglaterra andaram por trilhas de um fundamentalismo até hoje perceptível na moderna sociedade norte-americana, as colônias ibéricas, que passaram por influências de momentos diversos e às vezes contraditórios, perderam, na diversidade e nos conflitos de origem, a possibilidade de um fundamentalismo, desde o início contestado. Os ibéricos chegaram ao Novo Mundo com uma mistura de visões religiosas e profanas, divididos entre o deslumbramento com as novas gentes e as novas terras e a preparação da conquista. Desde o primeiro momento, era um olhar dividido entre a conquista do mundo para Deus e a das terras e das gentes para o poder e para o enriquecimento rápido dos aventureiros e conquistadores. Destruíram populações, mas fizeram também alianças com chefes indígenas, ao mesmo tempo que, em meio às oscilações das decisões dos reis e das bulas do Vaticano, abriram espaços, maiores ou menores, de uma "incorporação social" que, em sentido lato, permanecerão, ao longo dos séculos vindouros, como base dos temas formadores da cultura ibero-americana. Não é surpreendente, portanto, que estivessem desde o início preocupados em compreender, bem ou mal, as sociedades que encontravam.18 Já que com esse olhar, religioso e profano, dividido e distante, não podiam reconhecer como tais os povos que encontravam pelo caminho, preocuparam-se também em criar povos. O Brasil é um exemplo dessa visão, desde os primeiros tempos da colônia, quando Antônio Vieira afirmou que neste país "cada família é uma república". Essa visão crítica que conotava a inexistência de um povo (ou de uma sociedade) reapareceria em formas diversas no correr dos tempos. 19 Em fins do século XIX, o francês Louis Couty definiu sua célebre frase sobre o Brasil como "um país sem povo" nos seguintes termos: nos 12 milhões de habitantes do Brasil de 1884, "em parte alguma se encontrarão, nem as massas fortemente organizadas dos livres produtores agrícolas ou industriais, que, nos povos civilizados, são a base da ordem e da riqueza, nem tampouco as massas dos eleitores conscientes, sabendo votar e
pensar, capazes de imporem aos governos uma direção definida". Algo da mesma imagem se estende pelas primeiras décadas do século XX. Guerreiro Ramos registra algo de parecido em Sílvio Romero, em 1907, bem como em Alberto Torres, que, em 1914, afirmava que no Brasil "a sociedade não chegou a constituir-se". Algo dessa mesma idéia permaneceu na teoria da "sociedade insolidária", de Oliveira Viana, que caberia ao Estado organizar ou, mesmo, criar.20 A conotação religiosa desses temas foi tão evidente na conquista e na colonização quanto o fora, em Portugal, no século dos descobrimentos. Mas, além das escritas de Deus, decididas pelas bulas dos papas, os temas originais, especialmente em torno do índio, dependerão sempre de alvarás e decisões dos reis, oscilando entre as pressões do Vaticano e dos jesuítas e os interesses profanos dos conquistadores. "Dilatar a fé e o império" – o projeto colonial, embora sempre suscetível de conflitos internos, era o mesmo para os jesuítas e os bandeirantes que se engajaram no grande debate sobre a questão indígena que, no Brasil, estendeu-se por dois séculos. Os dois grupos de combatentes dos primeiros séculos tinham algo em comum no ideal da conquista. Como os povoadores, embora de modo diverso, os esuítas "eram colonizadores; a obra que haviam empreendido tinha caráter temporal, e, nessa qualidade, somente com os meios temporais se poderia realizar".21 Esse olhar primordial, um olhar de fora, dividido entre o religioso e o profano, permaneceu nos países ibero-americanos como apanágio de uma obra que se pretendia civilizadora, mas que, em alguns países, ainda não se completou. Em 1936 dizia Sérgio Buarque de Holanda: "somos ainda hoje uns desterrados em nossa própria terra".22 E contudo, naquele momento, o historiador e ensaísta participava, como veremos, de um movimento de idéias que contribuiria para o enraizamento desses "desterrados".
Ambigüidades culturais Quase tão antiga quanto o debate português sobre a questão dos judeus, a questão indígena alinha-se entre os temas formadores da cultura do país. Tomou depois seu lugar, em termos de relevância, o tema do negro que atravessa o período colonial e se estende por todo o século XIX. De certo modo, como veremos, continua até os dias que correm. Foi em torno do judeu, do índio e do negro que surgiram, nos primeiros séculos, os conflitos maiores do país em formação. Para além das questões da Coroa quanto ao domínio do território, foi em torno das soluções encontradas pela história quanto à incorporação desses grupos humanos que surgiram alguns dos traços culturais duradouros da cultura brasileira. É, pois, a esse passado que
devemos recorrer para compreender a característica ambigüidade da cultura brasileira em torno da questão racial. Uma ambigüidade que se transferiu também para as relações sociais, tanto em sua real capacidade de abrangência e tolerância quanto em sua peculiar habilidade para mascarar conflitos e preconceitos. Essa ambigüidade cultural, com sua especial dialética de conflito e integração, tem precedentes ainda mais antigos na península Ibérica. Segundo Gilberto Freyre, as populações cristãs da Ibéria que viveram sob domínio muçulmano – os moçárabes, que sofreram forte influência cultural árabe – "se constituíram no fundo e no nervo da nacionalidade portuguesa".23 O sangue e as tradições árabes estiveram, assim, presentes na formação nacional portuguesa, por meio de uma miscigenação racial e cultural remanescente de séculos de conflitos e relações de integração. Quando os portugueses começaram a colonizar o Brasil, os velhos conflitos da Reconquista achavam-se já diluídos e muitos descendentes dos mouros encontravam-se amplamente integrados à nação portuguesa. É assim que, ao longo da história brasileira, a presença dos árabes, que vem desde a colônia, jamais alcançou um caráter conflituoso. Quanto aos árabes de imigração moderna, posterior à Independência, foram absorvidos por uma cultura brasileira de certo modo preparada por essa antiga miscigenação. Encontraram uma cultura brasileira dotada de uma permeabilidade devida às soluções (ou meias-soluções) criadas em torno dos conflitos de um passado mais distante. Aos temas dos índios, judeus e negros, acrescenta-se, na passagem do século XIX para o XX, o dos pobres. Refiro-me à tomada de consciência de uma realidade por parte das elites, pois a pobreza como tal existe desde as origens do país. Emergindo em fins do século XIX, esse tema, que mais modernamente se designa como "desigualdade social", tornou-se obrigatório neste país de extremas desigualdades. É, ao lado da questão da democracia, o mais importante de nossos temas atuais. O que significa que, para enfrentá-los, deveremos percorrer a longa história da formação cultural do país. Os temas dessa história não se confundem com os temas sociais, mas criaram, ao longo do tempo, os espaços e os repertórios culturais nos quais estes poderão vir a ser tratados.
1. Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda, Helio Jaguaribe e, mais recentemente, Raymundo Faoro são evidentes exceções a essa regra. 2. BOORSTIN , Daniel. The Americans: The Colonial Experience. New York: Vintage Books, Random House, 1958. p. 5. 3. Evidentemente, a referência aos "americanos" em Boorstin é cultural, não geográfica. Assim também neste ensaio, no qual as referências a "americanos", "angloamericanos" e "norte-americanos" são intercambiáveis. Para os povos habitualmente chamados "latino-americanos", prefiro usar a expressão "ibero-americano", o
que evidentemente inclui todos os americanos de origem lusa e espanhola. E, portanto, também o México, geograficamente norte-americano, assim como as populações "hispânicas" residindo nos Estados Unidos. A expressão "latinoamericano" seria demasiado abrangente para os fins deste trabalho, por incluir povos americanos de origem francesa que, contudo, não são aqui estudados. 4. MARTINS , Oliveira. História de Portugal. Lisboa: Guimarães, 1991. p. 9. 5. Ibidem, p. 9. 6. Veremos mais adiante outras descrições da cultura ibérica, entre as quais a de Miguel de Unamuno. El sentimiento trágico de la vida, e a de Sergio Buarque de Holanda em Raízes do Brasil. 7. GILSON, Étienne. La philosophie au Moyen Âge. Paris: Payot, 1952. p. 540. Há tradução brasileira: A filosofia na Idade Média. São Paulo: Martins Fontes, 2001. 8. MORSE, Richard M. O espelho de Próspero: cultura e idéias nas Américas, São Paulo: Companhia das Letras, 1988. p. 22 e seguintes. Esse livro, escrito originalmente em inglês, com o título de Prospero's Mirror. A Study in New World Dialectics, passou despercebido nos Estados Unidos, onde não chegou a ser publicado, mas tem tido no Brasil fecunda aplicação. Entre outros, cabe mencionar o ensaio de VIANNA, Luiz Jorge Werneck. Americanistas e iberistas: a polêmica de Oliveira Viana com Tavares Bastos. In: BASTOS, Élide Rugai; MORAES, João Quartim de (Org.). O pensamento de Oliveira Viana. Campinas: Editora da Unicamp, 1993. 9. WEBER, Max. The Protestant Ethic and the Spirit of Capitalism. 8. ed. London: Unwin University Books, 1967. 10. MORSE, op. cit. p.45. 11. Ibidem, p. 42. 12. Não obstante uma história de séculos de lutas, a Ibéria teve também seus momentos de convivência religiosa. Cruz Costa anota a respeito que em Toledo, num mesmo templo, a mesquita de Santa Maria a Branca, celebravamse os três cultos: o cristão, o mourisco e o mosaico. C OSTA, João Cruz. Contribuição à história das idéias no Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio, 1956. p. 29. 13. SARAIVA, António José. História da cultura em Portugal. Lisboa: Jornal do Foro, 1962. v. II, p. 372. 14. Ibidem, p. 391. 15. MARQUES, Oliveira. History of Portugal (v. I: From Lusitania to Empire). New York/London: Columbia University Press, 1972. p. 284. Original em português: História de Portugal (v. I: Das origens às revoluções liberais). Lisboa: Palas, 1975. Ver também: C OUTO, Jorge. A construção do Brasil. Lisboa: Cosmos, 1997. p. 151. 16. SARAIVA, op. cit., p. 11. 17. FUENTES, Carlos. El espejo enterrado. México: Fondo de Cultura Económica, 1992. p. 202. 18. A expressão "incorporação social" é usada por Richard Morse em sentido amplo, denotando, como é adequado àqueles tempos, o reconhecimento, fundado em razões religiosas, de uma nova humanidade, além do mundo europeu. É claro que essa expressão tende a adquirir, com o tempo, um sentido especificamente social, de reconhecimento de um povo, e, depois, político, de incorporação desse povo ao Estado. 19. Um ano a ntes da Independência, em 1821, saía pela Imprensa da Universidade de Coimbra a Memória de João Severiano Maciel da Costa, futuro Marquês de Queluz, "sobre a necessidade de abolir a introdução dos escravos africanos no Brasil": "No Brasil, por efeito do maldito sistema de trabalho por escravos, a população é composta de maneira que não há uma classe que constitua verdadeiramente o que se chama povo". Essa observação, assinala Wilson Martins, seria repetida "por Louis Couty sessenta anos depois, com a mesma verdade, mas sucesso consideravelmente maior entre os leitores brasileiros". Cf. M ARTINS, Wilson. História da inteligência brasileira. São Paulo: T. A. Queiroz, 1992. v. 2, p. 105. 20. Como veremos mais adiante, Guerreiro Ramos confirma esse diagnóstico sobre a perspectiva nacionaldesenvolvimentista dos anos 1950: "Não éramos uma nação, pois a nação não se configura historicamente sem a sua substancia que é o seu povo". RAMOS, Guerreiro. O problema nacional do Brasil. Rio de Janeiro: Saga, 1960. p. 21-22.
21. A frase é de João Lucio de Azevedo, que é confirmado pelo Pe. Serafim Leite: "Os jesuítas, pelas condições particulares da América, não puderam ser o que eram na Ásia, apenas missionários: foram também colonizadores". Apud CARVALHO, Laerte Ramos de. As reformas pombalinas da instrução pública. São Paulo: Edusp/Saraiva, 1978. p. 105. 22. HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. Cf. SANTIAGO, Silviano (Org.). Intérpretes do Brasil. v. 3. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2002. p. 945. 23. FREYRE, Gilberto. Casa-grande & senzala. Edição crítica coordenada por Guillermo Giucci, Enrique Rodríguez Larreta e Edson Nery da Fonseca. Madri / Barcelona / Havana / Lisboa / Paris / México / Buenos Aires / São Paulo / Lima / Guatemala / San José: ALLCA XX, 2002. p . 231.
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Auto-de-fé em Lisboa: misticismo e violência nas raízes da modernidade.
CAPÍTULO 2
TEMPOS DOS DESCOBRIMENTOS
O nosso objetivo é mais particular: definir historicamente a fisionomia cultural da Nação portuguesa, todas as marcas e rugas que lhe ficam a definir o caráter. ANTÓNIO JOSÉ SARAIVA
O conhecimento das diversas soluções teóricas para a velha questão da gênese das mudanças sociais não diminui as dificuldades da pesquisa das situações históricas reais. O político e filósofo marxista Antonio Gramsci afirmou, certa vez, que o sistema de livre-câmbio, ou de mercado, foi um programa político antes de ser uma realidade econômica, o que surpreendeu alguns marxistas habituados a pensar segundo uma teoria da determinação do econômico sobre o político. Max Weber, por sua vez, resolveu a questão das origens do capitalismo pela perspectiva que lhe ofereciam a história da religião e a da ética. Mas ele tendia a considerar um mistério a questão de saber por que o homem medieval, apegado às regras tradicionais da vida, decidiu abrir os olhos para o novo e o diverso. Outros pontos de vista seriam possíveis. Como dizia Weber, a busca da verdade deixa sempre à sua volta uma margem de sombra. O fato de que acreditamos saber explicar como as sociedades modernas funcionam não significa que possamos explicar como nasceram. É do mesmo gênero a questão de compreender a relação entre os descobrimentos e as sociedades a que deram origem. É que as sociedades medievais que geraram os descobrimentos e as conquistas tinham a capacidade de reunir num todo orgânico as dimensões econômicas, políticas, jurídicas e religiosas que as sociedades que se desenvolveram na época moderna levaram séculos para diferenciar. Como, portanto, pretender estabelecer na explicação da gênese dos descobrimentos uma relação de determinação entre dimensões da vida social que apareciam indiferenciadas na história? É certo que na última Idade Média surgiram germes dos fenômenos que, depois, a história passou a considerar como capitalistas e, nesse sentido, modernos. Limitavam-se, porém, a algumas ilhas de renovação que conviviam, em contradição e mistura, com o mundo de tradição que as rodeava.
Fé, ouro e poder O Brasil, como outros países ibero-americanos, tem origens mais antigas e profundas do que o capitalismo ao qual se incorporou. O fato de os descobrimentos terem aberto as portas do mundo para o capitalismo comercial não significa que tenham nascido dele. Assim como os descobrimentos, os países a que deram origem nasceram de uma época em que, na Europa, os motivos típicos da tradição medieval ainda moviam com muita força a ação dos homens. A tradição das cruzadas, as campanhas da Reconquista, a busca de novas regiões para o domínio, o saque e a cobiça de riquezas – eis o complexo de motivos que movia os homens nos séculos XV e XVI, até inícios do XVII, época dos descobrimentos e das conquistas. Como bem assinalam Arno e Maria José Wehling, o Novo Mundo "resultou de uma gestação multissecular, na qual tem início a história do Brasil". A última Idade Média, dizem, foi parteira de um mundo diferente, "do qual o 'Novo Mundo' era apenas uma das expressões". Não por acaso foram os historiadores obrigados "a recuar o reconhecimento dos inícios da modernidade para o século XIV". Esse século, que em Portugal foi o de D. Dinis e de D. João de Avis, teve presentes em diversos lugares da Europa os elementos fundamentais – econômicos, sociais, políticos e intelectuais – da transição para os tempos modernos: o progresso do comércio medieval, das vilas e cidades, embora de pequeno peso na economia agrária da época, e a centralização monárquica.1 Foi também o século de uma acentuada crítica filosófica e teológica ao cristianismo medieval e de uma notável penetração da filosofia na vida cultural, com a influência de Mestre Eckhart (12601327?), Guilherme de Ockham (1285-1349?) e Duns Scot (1266?-1308).2 Os descobrimentos são um fenômeno da Ibéria na mesma época em que o capitalismo comercial nascia nas cidades italianas e em Flandres, ao norte da Europa. São fenômenos da mesma época – não, porém, do mesmo lugar. Embora a última Idade Média tenha sido, em quase toda a Europa, uma época de crise e de grandes inovações, estas conviveram, em muitas partes, com as antigas tradições. E, mais do que em qualquer parte, em Portugal e Espanha, que permaneceram como fortalezas da tradição e do catolicismo. Mas no início do século XVII, mesmo na Holanda e na Inglaterra – que se preparavam para ingressar na época moderna –, um espírito tradicional ainda ecoava em meio aos conflitos entre protestantes e católicos. É o caso de Sir Walter Raleigh (1554?-1618), um inglês que era não apenas protestante, mas também calvinista. Sir Walter era, como alguns conquistadores ibéricos dos séculos XV e XVI, soldado, poeta, cortesão e aventureiro. Esteve na França, lutando ao lado dos huguenotes, e ao norte do Brasil, nas Guianas, buscando
caminho para o rio Orinoco. Mas nenhum conquistador ibérico teria algo de muito diferente das palavras com as quais ele buscou interpretar o sentido da vida: "to seek new worlds, for golde, for prayse, for glory" – procurar novos mundos em busca de ouro, louvor e glória.3 Eram motivos de antiga tradição que atravessaram o tempo e se estabeleceram como pressupostos da época moderna e que foram desde cedo criticados quando entraram em cena os descobrimentos e as conquistas espanholas e portuguesas. No auto de Nuevo mundo, Lope de Vega põe na boca do diabo estas palavras: "No los lleva cristandad/sino el oro y la codicia".4 A cobiça de riquezas, a expansão do poder, o alargamento da fé – essa tríade de motivos e de "marcas e rugas" que impulsionaram os descobrimentos – vêm dos séculos XIV e XV, misturados com um Renascimento ibérico que o tempo haveria de revelar demasiado frágil.5 Eram anteriores, portanto, à Reforma e à ContraReforma, as quais por sua vez haverão de acrescentar-lhes novas rugas e algumas cicatrizes. É certo, como vimos, que o capitalismo comercial se achava em seus inícios, nas cidades flamengas e em algumas cidades italianas, como Gênova, Florença e Veneza. 6 Mas não se pode passar por alto a significação desse fato: embora tenham dado contribuição aos descobrimentos, em especial com navegadores como Colombo e Caboto, não foi por decisão e empenho dessas cidades que os europeus descobriram a América, o Brasil e o caminho para as Índias. Nem tiveram a Inglaterra, a Holanda e a França maior êxito em suas tentativas, nos séculos seguintes, de se apossar das conquistas ibéricas na América.
"O tom da vida medieval" D. Henrique o Navegador (1394-1460), o mais notável líder dos descobrimentos portugueses, foi um guerreiro e um místico e, além disso, o homem mais rico de Portugal de sua época. Foi um homem do Renascimento num Portugal que se formou, como país, em lutas de vários séculos contra os mouros, o que haveria de lhe conferir, como à Espanha, uma particular ligação com o catolicismo e a Igreja. O Infante evidenciava um conjunto de qualidades que teriam sido, em seu tempo, freqüentes entre os nobres. Freqüentes também entre os homens do povo, ao menos no além-mar, onde, como diz Saraiva, os "cavaleirinhos da Índia" igualavam-se aos senhores perante os negros e os orientais. É também o caso do Brasil dos primeiros tempos, onde os portugueses, iguais entre si pela origem nacional, apareciam como superiores aos povos conquistados.7 Temos que nos preparar para extravagantes associações de valores e motivos humanos se quisermos entender a ação de homens como D. Henrique e a de outros
navegadores e descobridores de seu tempo. Como os demais povos da última Idade Média, portugueses e espanhóis diferiam dos povos modernos nisso que Johan Huizinga denominou o "tom da vida" em estudo sobre a vida medieval na Borgonha dos séculos XIV e XV. Com essa expressão, o historiador holandês referia-se à intensidade das formas e dos sentimentos que dão conteúdo e expressão às relações humanas. Considerava que o tom da vida era de cores e de intensidade muito mais fortes naquela época do que nos tempos atuais. Com efeito, diante de textos e histórias da última Idade Média, o leitor moderno se percebe dotado de uma frieza na expressão dos sentimentos desconhecida na mentalidade medieval. Do mesmo modo, surpreende-se com o espírito de "desenfreada extravagância" que animava tanto os povos quanto os príncipes daquela época. Huizinga fala, para a última Idade Média, de um espírito de "violenta paixão" que "se sobrepõe vez por outra à própria conveniência e ao cálculo". Um espírito que, quando se liga, como nos príncipes, ao sentimento do poder, opera com enorme veemência, identificando-se ao que Jacob Burckhardt chamou de "pathos da dominação". Segundo Huizinga, na vida medieval a política se projetava no espírito do povo encarnada em figuras individuais simples e fixas. "As idéias políticas (...) eram as da canção popular e as do livro de cavalaria". Os príncipes "buscam repetidamente nos negócios do Estado o conselho dos ascetas visionários e dos predicadores exaltados". E a alta política oferecia evidências de "um vivo elemento de exaltação religiosa".8 Embora centrando seu estudo na Borgonha, as referências mais gerais de Huizinga valem, com certeza, para a Espanha e Portugal da mesma época. Na política, mais do que em qualquer outra atividade humana, poder-se-iam reconhecer traços de semelhança mesmo com os ibero-americanos contemporâneos. Descontada a intensidade maior dos tempos medievais e atenuadas as cores, as descrições de Huizinga poderiam servir também para outros aspectos da vida ibero-americana, o que pode significar que algo ficou, em suas culturas, dessas origens tão distantes. Não obstante, algo dessas heranças nos escapa. Ao menos aos ibero-americanos de países mais industrializados e urbanizados, é de supor que os homens da Idade Média surpreendam por sua capacidade de combinar qualidades que, hoje, teríamos dificuldade de reconhecer juntas. Voltemos, pois, ao caso de D. Henrique. O Infante cultivava a matemática e a astronomia, era homem de hábitos ativos, caçador, tinha o gosto das coisas militares. Mas era também possuído de um misticismo que o obrigou a usar cilícios quase toda a vida e a jejuar com muita freqüência. "Quase a metade do ano passava com jejuns", afirma Gomes Eanes de Azurara (1410-1474?), um cronista da época. Era também um homem religioso de quem diz ainda Azurara que seu coração "nunca soube o que era medo senão de
pecar".9 Sua divisa era "Talant de Bien Faire" – vontade de bem fazer. Surpreendenos, assim, no mesmo personagem, a convivência de um forte misticismo com uma capacidade de ação e um pragmatismo que lhe permitiu juntar recursos, conhecimentos e iniciativas para descobrir novos mundos. Por extravagante que isso possa nos parecer, nada tinha de excepcional na Europa daqueles tempos esse traço típico do Infante, em quem uma intensa devoção religiosa convivia com uma enorme capacidade para a conquista, a guerra e o domínio. Que seria do Renascimento italiano não fosse o papel político e militar dos líderes da Igreja? Que seria do Humanismo não fosse a Igreja, onde nasceu de figuras como Erasmo (1469-1536) e Thomas Morus (1477-1535)?
Mudanças: a Igreja e as cidades Há muito de errôneo nas histórias que retratam a última Idade Média, do século XII ao XVI, com as características que acompanharam a longa decadência da Idade das Trevas, do século VII a inícios do XI. Ainda persistem alguns dos mitos que os ilustrados do XVII e do XVIII construíram sobre a Idade Média como uma escuridão, ignorando as diferenças desse longo período histórico. Embora tenham perdido força, com um maior conhecimento do passado e depois de todas as violências do mundo moderno, persiste em muitos a idéia da Idade Média como a época de uma sociedade fixa e imutável. Essa idéia sobrevive no pensamento moderno como um paradigma da Idade Média que se contrapõe ao do capitalismo, tipicamente uma sociedade de mudanças. Numa transfiguração de resíduos desses mitos, a sociologia, em inícios do século XX, distinguiu paradigmaticamente entre "comunidade" e "sociedade", como fez Ferdinand Tonnies, contemporâneo de Max Weber e Émile Durkheim. 10 Talvez por isso, o leitor, colocado diante dos textos sobre a última Idade Média, surpreenda-se precisamente com a mudança. Surpreende-se, para começar, com as mudanças que se dão no interior da Igreja. Uma instituição que se suporia a mais estável e tradicional de um mundo de instituições supostamente fixas e imutáveis, a Igreja foi nos séculos XII e XIII um cenário de renovação de idéias. Criou novos estímulos morais e uma nova visão do mundo, sem a qual o século dos descobrimentos se tornaria incompreensível. Como assinala Helio Jaguaribe, "os séculos XI e XII viram a emergência de uma nova modalidade de vida monástica, combinando funções religiosas com militares, sob a forma de ordens militares (...). A primeira dessas ordens foi a dos Cavaleiros Hospitaleiros, fundada em Jerusalém em 1050, com o objetivo inicial de ajudar o hospital dos cruzados, mas que no século XII se transformou numa ordem militar.
Da mesma forma, os Templários, fundados por Hughes de Payns em 1119, faziam o tríplice voto de pobreza, castidade e obediência, com o propósito de defender Jerusalém e ajudar os peregrinos que viajavam à Terra Santa".11 Ao mesmo tempo que surgiam ordens religiosas e militares, mudava o pensamento da Igreja. Tomás de Aquino, no século XIII, renovou o cristianismo, distanciando-se do neoplatonismo de influência agostiniana, que idealizava Deus como uma idéia fora do mundo. Os platonistas, de acordo com as Confissões, nas quais Agostinho descreveu seu percurso para o cristianismo, "viam a verdadeira realidade como espiritual ou inteligível, não física, e ofereciam uma visão de Deus – como incorpóreo, imutável, razão infinita – em acordo com o Deus do Velho e do Novo Testamento".12 Tomás de Aquino, buscando também unir a razão e a fé, ofereceu, séculos depois de Agostinho, uma visão diferente no curso de sua interpretação de Aristóteles. Tomás recuperou a vinculação de Deus com o homem e, portanto, com a matéria, que alguns comentadores consideram o mais desafiador de todos os dogmas.13 Pode-se admitir que as idéias de Tomás de Aquino tenham levado algum tempo para chegar aos príncipes e, mais ainda, às pessoas comuns. Foi assim que se tornaram, nos séculos XIV, XV e XVI, mais poderosas do que foram no século XIII, quando surgiram. Ensinando as pessoas a reconhecer a presença de Deus nas coisas do mundo, o tomismo convergiu com os grandes movimentos de renovação religiosa que se sucederam a partir de sua própria época e que surgiram quase ao mesmo tempo que entravam em curso outras mudanças da vida medieval. As ordens mendicantes que surgiram no século XIII expressavam uma atmosfera de mudanças, entre as quais se incluíam as novas condições urbanas surgidas com o desenvolvimento das cidades.14 Com o objetivo de imitar a renúncia radical de Cristo à propriedade, a grande novidade das ordens mendicantes, especialmente a dos franciscanos, foi levar os religiosos a sair dos mosteiros, buscando nas ruas e nas estradas, como os filósofos nos livros, novos caminhos da expressão humana. A Ordem dos Dominicanos, criada em 1215, e que teve entre seus principais nomes os de Tomás de Aquino e Alberto Magno, tinha como preocupação principal dar a seus frades o melhor treinamento intelectual e, com esse objetivo, manteve estreito contato com a Universidade de Paris e outros centros acadêmicos na Itália, na Espanha e na Inglaterra.15 Embora de maior presença nas ruas, os franciscanos tiveram, no plano do pensamento, Roger Bacon, cuja valorização da experiência, embora à margem do pensamento medieval de seu tempo, persistiria pelos séculos seguintes. Era, pois, uma época de renovação e de controvérsias. Também no século XII estão as preliminares da Inquisição, na França, onde "os progressos (das) heresias
dos Albigenses e outras seitas se haviam atalhado, organizando-se juntas de eclesiásticos que inquiriam quem eram os aliciadores, e os denunciavam à justiça. Chamavam-se, pois, inquisidores". Em 1204, foram reconhecidos por Inocêncio IV, e depois, ainda no século XIII, a Inquisição seria confirmada pelo papa Gregório IX, quando "exortou os bispos franceses" a designar inquisidores dominicanos em áreas "contaminadas pela heresia".16
Misticismo ibérico A qualidade peculiar do misticismo ibérico oferece uma resposta para a questão de como entender esses príncipes, navegadores e conquistadores, que foram, por excelência, homens práticos e, muitos deles, místicos até o paroxismo. Convergindo com os novos sentimentos e idéias do tempo, o misticismo ibérico "obrigou Deus a descer dentro da alma, em vez de ser a alma que, fugindo ao mundo e negando-o, se consumiu na labareda de um Deus ideal...". Assim como Santo Tomás e São Francisco, os místicos em geral expressavam uma busca da "humanização de Deus". O homem dessa época passou a distinguir-se "das coisas no belo privilégio que Deus lhe dá de determinar livremente o seu destino". 17 Em sua forma ibérica mais extrema, essa "humanização de Deus" conduziu a uma "divinização do homem" que se expressou nas figuras místicas e violentas de conquistadores como Hernán Cortés e Vasco da Gama, e que traria consigo sinais de uma degenerescência que empanaria o brilho e a grandeza de suas obras. Diferente do misticismo germânico, diz Oliveira Martins, o ibérico "não é metafísico, é moral". Os místicos da Ibéria "nascem do solo, individual e espontaneamente". Trágicos ou ingênuos davam sinais de uma candura natural e de uma capacidade para explosões violentas. Era um misticismo rústico, ignorante das pelejas filosóficas, propenso ao empirismo, que se combinou, e às vezes se confundiu, com o gênio aventureiro dos navegantes e dos conquistadores. Estes estavam, por sua vez, impregnados dos ideais da cavalaria, disseminados por uma vasta literatura que apresentava o nobre cavaleiro como campeão da cristandade, de que dão exemplo o Cantar de mio Cid, na Espanha, a Chanson de Roland, do século XI, as histórias do rei Artur e dos Doze Cavaleiros da Távola Redonda, o Perceval, de Chrétien de Troyes, do século XIII, e o Libre de l'Orde de Cavalleria, do místico catalão Raimundo Lúlio (1232?-1316?).18 É certo que na Ibéria os ideais do cavaleiro foram cristalizados como tipo literário, mas o foram também na história real dos descobrimentos, em figuras como D. Henrique e Vasco da Gama, Colombo e Cortés, Fernão de Magalhães (1480?1521) e Bartolomeu Dias. Qual o significado do gesto de Cortés no México, quando
ateou fogo às naus, senão o de um cavaleiro disposto a levar adiante suas conquistas mesmo diante das incertezas do mundo? Diz Oliveira Martins que, quando os marinheiros se revoltaram contra Vasco da Gama "na travessia do oceano Índico, entre Mombaça e Calicute", o grande navegador "convocou a conselho os pilotos da esquadra a bordo da sua nau, (...) tomou os instrumentos e papéis, arrojou-os ao mar, e, apontando a Índia encoberta, disse-lhes: 'O rumo é este, o piloto é Deus!'". Eis um exemplo disso que se chama de "divinização do homem", numa imagem típica da fé e da vontade que definiu, nos descobrimentos, o gênio peninsular. O holandês Johan Huizinga disse que os príncipes buscavam em seus empreendimentos "um vivo elemento de exaltação religiosa". O português Oliveira Martins diz, no mesmo sentido, que "a lenha com que o incêndio místico se alimentou na Idade Média (ibérica) foi a guerra contra os sarracenos, foi a literatura cavalheiresca e sagrada".19 Uma guerra prolongada de séculos, na qual "o misticismo começa por nos aparecer como uma transformação de cavalaria – caballeria a lo divino – em Santa Teresa, na biografia de Santo Inácio, e em São João da Cruz". Na projeção dos séculos vindouros, esse misticismo, misturado com a guerra e a cobiça, se encontrará também nas raízes da grande decadência, em figuras como as de Filipe II (1527-1598), de Espanha, e de D. João III (1502-1557), de Portugal, "temerários monarcas que reduziram seus reinos a cinzas, em holocausto à quimérica pureza da fé". Como entender de outro modo a figura trágica de D. Sebastião (1554-1578), o jovem rei enfermo que desapareceu na batalha de AlcácerQuibir, dando prosseguimento à longa noite, que já se iniciara, da decadência portuguesa?
Alargamento do mundo Tendo aprendido com o suíço Jacob Burckhardt que o Renascimento foi, na Itália, uma ruptura de tradições e costumes da Idade Média, somos por vezes levados a esquecer que, na Europa em geral, o Renascimento foi um processo que durou séculos.20 Michelet pensava que esse período se estendia, grosso modo, de 1400 até 1600, marcado pela descoberta do mundo e a descoberta do homem. E Burckhardt via no Renascimento italiano, em contraste com a Idade Média, a redescoberta do homem e do mundo empreendida por indivíduos em harmonia com sua realidade circundante. Foi um ressurgimento do individualismo, que tornou o homem o construtor de seu mundo, e transformou o Estado e a própria vida numa obra de arte.21 Mas, como bem lembra Saraiva, na Europa não houve um Renascimento, mas vários, conforme os países e as épocas. E, talvez, com uma amplitude maior no
tempo do que a pretendida por Michelet. "O Renascimento", diz Saraiva, "é o resultado de um processo histórico iniciado no seio do mundo feudal, (...) uma crise através da qual se transita de um tipo de civilização para outro".22 Entre inícios do século XV e meados do século XVII são vários os Renascimentos, "que atingem ou não a maturidade, mais ou menos frustrados, mais ou menos precursores". E têm todos "uma característica comum: correspondem à crise do mundo feudal, através da qual se gera o mundo capitalista".23 É nesse sentido que se pode reconhecer um Renascimento nos países da península Ibérica, em alguns aspectos anterior ao de diversos países europeus. Assim, já na última Idade Média, assistia-se, como dizíamos, a um movimento de transformação das idéias e de mudança dos sentimentos religiosos que tinha paralelo com o que ocorria também nas ciências. Mergulhada no misticismo, a última Idade Média foi também uma época em que as aberturas culturais, técnicas e econômicas se somaram à renovação religiosa. Antes de Galileu Galilei (1564-1642) houvera o franciscano Roger Bacon, no século XIII, preconizando o conhecimento baseado na experiência. Antes que se iniciasse o Renascimento, os portugueses já eram donos de uma antiga experiência no mar, dirigindo-se ao norte da Europa. Já no século XII, as cruzadas tinham trazido um sensível alargamento do mundo conhecido. Os Wehling constatam que "iniciada no século XI ou XII, a expansão comercial teve seu apogeu, conforme a região, no século XIII. Foi a época em que se desenvolveram o artesanato, organizado em corporações de ofícios, e o comércio de alguns produtos agrícolas europeus (cereais, por exemplo) ou importados do Oriente (as especiarias). Também datam desse período a primeira expansão monetária desde a queda do Império Romano e a multiplicação das rotas comerciais, que ligaram a península Ibérica ao Norte da Europa e à Itália e esta à Alemanha e à Inglaterra, com ramificações para a Europa oriental, do mar Báltico ao Mediterrâneo. Foi o momento áureo das ligas de cidades comerciais, como a Hanseática, a Lombarda e a Suábica, bem como das feiras e das bolsas de mercadorias".24 Segundo Jaguaribe, o comércio marítimo era cada vez mais usado, devido ao desenvolvimento da tecnologia náutica e à segurança crescente do Mediterrâneo, com a redução dos ataques dos árabes e dos piratas, tornando a navegação oceânica uma possibilidade prática. Alguns comerciantes mais importantes fixavam-se numa cidade determinada, credenciando representantes em outras cidades e usando agentes ou companhias especializadas para transportar suas mercadorias. A extensão da rede de representantes comerciais italianos no século XIII pode ser ilustrada pelo caso dos irmãos Niccolò e Matteo Polo. A viagem de Marco Polo (1254-1324), filho de Niccolò, foi iniciada no ano de 1271, com o objetivo de visitar os agentes comerciais da família na distante cidade de Sudak, na costa sul-oriental
da Criméia. Nesse quadro em que se enfatizam os precedentes medievais dos descobrimentos, vale frisar que nem mesmo a revolução religiosa de Lutero foi, em inícios do XVI, uma absoluta novidade. Seus precedentes estão no século XII, nos albigenses, nos valdenses, nos franciscanos heterodoxos, nos joaquimitas, em John Wycliffe (13301384) e Jan Hus (1370-1415) – correntes religiosas que pretendiam regressar ao Evangelho dispensando o magistério clerical. Buscavam tornar a religião uma relação individual e direta entre o crente e Deus, e pretendiam dispensar os sacramentos, que são a principal razão de ser do clero. Antes de Lutero, os valdenses e Wycliffe divulgavam o Novo Testamento traduzido em língua vulgar.25 Já se disse, com razão, que, para os padrões europeus, Portugal começou a cair muito cedo: quando a Europa ingressa no capitalismo, em meados do século XVII, Portugal está em plena decadência. Mas há que reconhecer que, para os mesmos padrões europeus, Portugal também começou a subir muito cedo. Portugal deve à última Idade Média tanto o que terá de inovador como um dos países que descobrem os caminhos para a África, para o Oriente e para o Novo Mundo, quanto o que terá de regressivo quando começou a decadência, a partir de meados do século XVI.
A nação e o mar Antes mesmo da Espanha, Portugal começou a se formar como nação a partir do século XIII, com Afonso III (1210-1279), da dinastia de Borgonha. Desenvolveu seu processo de formação nacional ao longo de um século, que inclui o reinado de D. Dinis (1261-1325), morto depois de ter definido os limites territoriais do país. Embora sem haver se constituído como Estado, no sentido moderno da palavra, Portugal antecipou-se aos demais reinos e feudos da Europa quando se colocou "sob o domínio do mesmo rei, com toda a sua população de cristãos, moçárabes e muçulmanos". A conquista do sul pelos guerreiros do norte foi fundamental no processo de centralização monárquica. Lisboa, na região sul, que pertencia mais ao rei e às ordens religiosas, tornou-se a pedra de toque da formação nacional, a capital do país e o mais importante porto da Europa da época.26 Portugal, como Castela, nasceu como uma nação de guerreiros, traço comum dos países da península. "Os oito séculos de constituição (da Ibéria) são ao mesmo tempo oito séculos de guerra".27 Ao longo da duradoura ocupação árabe não se pode, porém, esquecer uma convivência entre cristãos e mouros que haveria de deixar "marca profunda na emergente cultura ibérica", quer entre os moçárabes, cristãos que viviam sob o domínio islâmico, quer, em nível cultural mais elevado, na contribuição que a Ibéria haveria de oferecer ao pensamento europeu da época. "A
Espanha muçulmana, com sua civilização bem mais avançada e sofisticada do que a do Ocidente cristão, pelo menos até o século XIII, transmitiu aos europeus a maior parte do que eles vieram a conhecer da cultura grega antes de entrar em contato com os estudiosos bizantinos, no século XV". 28 Ao longo dos séculos, os vários reinos que emergiram na Ibéria dos quatro centros focais da Reconquista – o reino das Astúrias e os Condados de Aragão, Barcelona e Pamplona – "ficaram reduzidos a dois, a Espanha de Castela e Portugal". Castela havia se tornado um reino independente em 1035, e terminou por absorver os outros reinos peninsulares, com a exceção de Portugal. Em vez da incorporação dos lusos desejada por Castela, a revolução de Avis – um fruto da crise do século XIV, como as demais revoluções européias da época – acentuou ainda mais o caráter nacional e centralizador da Coroa portuguesa. A sucessão de D. Fernando I (1345-1383), disputada pelo rei João I de Castela (1358-1390) – inaceitável pelo povo e pela nobreza por ser castelhano – , encontrou pela frente a resistência de D. João (13571433), Mestre da Ordem de Avis, que foi aclamado rei pelas Cortes de Coimbra. O rei de Castela invadiu Portugal, mas foi derrotado em Aljubarrota, em 1385, pelos portugueses comandados por Nuno Álvares Pereira (1360-1431), preservando-se assim a independência do país.29 D. João I iniciou a dinastia de Avis mantendo o apoio dos feudais, sob a chefia de Nuno Álvares, e reforçou seu poder promovendo pessoas "inferiores". Reforçou-o ainda mais porque alguns de seus filhos foram feitos duques, uma posição até então inexistente na nobreza de Portugal, e dois deles tornaram-se mestres de ordens religiosas militares (as ordens de Santiago e de Avis). D. Henrique, em 1420, se tornaria Mestre da Ordem de Cristo, uma ordem religiosa e militar que era, ademais, rica herdeira dos bens dos Templários. Como D. Henrique dedicou toda a sua vida aos descobrimentos, pode-se supor que os recursos amealhados pelos templários para o resgate de Jerusalém passaram a ser destinados a suas empreitadas navegadoras.30 Desse modo, a Coroa portuguesa, que firmara suas bases de apoio no porto de Lisboa e se consolidara na revolução de Avis, se achava destinada às aventuras no mar e no além-mar, bem como à construção de um império que nos séculos XV e XVI se estenderia por três continentes. D. Manuel I (1469-1521), em fins do século XV, foi "aclamado como o monarca mais rico de toda a Cristandade", e acrescentou a seus títulos "uma nova e orgulhosa invocação: 'senhor da conquista, navegação e comércio da Etiópia, Arábia, Pérsia e Índia'".31 Pode haver, porém, alguma dúvida entre os historiadores quanto a saber quem era mais rico, se o rei de Portugal ou o de Espanha. Segundo Oliveira Martins, os reis de Espanha, "Fernando e Isabel, ainda antes de os seus súditos lhes descobrirem a América, (eram) já os monarcas mais ricos e poderosos da Europa".
Parece não haver dúvida, porém, quanto a um ponto essencial: os reis da Ibéria "eram os patriarcas da sociedade religiosa. Todas as forças da nação, morais, sociais, materiais, estavam em suas mãos".32 Nesse ponto essencial, o que se diz de Fernando (1452-1516) e Isabel (1451-1504) vale também para D. Manuel e D. João III. São esses os reis que oferecem a imagem do poder e da glória dos países ibéricos em sua fase de apogeu. A propósito, a descrição de Oliveira Martins é irretocável: "de pé, austera e esquálida, a figura do frade ocupando o trono ao lado do guerreiro bronco e audaz, mas humilde na fé". A Ibéria impregnada do catolicismo e do misticismo herdados das cruzadas e das guerras da Reconquista daria origem a Estados de guerreiros que seriam também Estados de sacerdotes.
Expansão marítima Entre as muitas "extravagâncias" que deve enfrentar quem se dedique a ler sobre a última Idade Média e a época dos descobrimentos, registre-se mais esta: como pôde um país agrícola tão pequeno como Portugal construir um poder marítimo tão vasto? Oliveira Marques estima que a construção do império luso foi obra de cerca de quarenta mil pessoas. "Do Brasil às Molucas, menos de quarenta mil Portugueses foram o bastante para garantir o controle econômico, proteger os portos, dominar as fortalezas; intimidar e punir os rebeldes contra a sua supremacia e colonizar quatro arquipélagos e uma longa faixa costeira num novo continente".33 [<<4]
Aventura no "mar tenebroso": o autor de Relação do naufrágio da nau Conceição, Manoel Rangel, sobreviveu à tragédia.
Lembremos que, ainda no século XV e em meados do XVI, estamos diante de um mundo medieval de vastos impérios ligados ao papado, mas de reinos ou estados pequenos, nascidos da fragmentação feudal, alguns dos quais eram apenas cidades. Florença, Veneza e Gênova, então repúblicas mercantis e já emancipadas do feudalismo, anteciparam-se a Portugal no século XIV em tentativas semelhantes no
Mediterrâneo, embora de menor escala. De qualquer modo, o que se diz do expansionismo de Portugal do século XIV ao XV e inícios do XVI vale para quase toda a Europa. Reinos pequenos e grandes participavam de aventuras expansionistas, "algo anárquicas quanto à organização e aos objetivos, muitas vezes distantes da mãe pátria". É nesse sentido que se pode falar de expansão, "como dão evidência os catalães, os franceses e os italianos na Grécia e no Oriente Médio, bem como pelas últimas cruzadas e pelo movimento das cruzadas em geral". Portugal não foi o único reino navegador da Europa, mas seus feitos só se equiparam aos de Castela, tendo tido, com certeza, mais êxito que todos os demais. Nessas épocas férteis em expedições aventureiras, as razões econômicas e políticas sempre existiram, mas são em geral insuficientes para uma profunda compreensão das empresas medievais. Temia-se o "mar Tenebroso", mas alguns reinos, como Portugal, viviam fascinados com as histórias e as lendas sobre o reino do Preste João, sobre a Índia desconhecida. As expedições aventureiras e temerárias exigiam, como tudo o mais na Idade Média, uma cobertura de convicções religiosas: "No caso da expansão do século XV, essa cobertura foi feita de uma dupla textura: a luta contra o infiel e a salvação das almas".34 Havia muitas razões para tal, e de um passado distante: no século XII, o ideal das cruzadas havia seduzido a península Ibérica e, gradualmente, as mentes de seus reis e guerreiros. Não por acaso, a decisão dos reis de Espanha de apoiar Colombo em sua viagem de 1492 veio no entusiasmo da vitória sobre os mouros em Granada. O último episódio da Reconquista serviria para datar o primeiro episódio do Novo Mundo. O ideal das cruzadas dirigiu os esforços portugueses por muito tempo. Segundo Oliveira Marques, "um plano para conquistar a África muçulmana com o objetivo final, embora distante, de resgatar Jerusalém, estava nas mentes dos líderes portugueses, incluindo os reis João I, Duarte e Afonso V, Infante D. Henrique, e vários outros. O ideal das cruzadas foi depois associado ao de alcançar a Ásia pelo mar, e fundiu-se na vasta empresa de descobrir o mundo para Cristo. Os cristãos nunca aceitaram a idéia de uma perda permanente da Terra Santa, que já estivera sob o 'ecumênico' Império Romano. A reconquista do Norte da África, em seguida à da península Ibérica, parecia um objetivo natural."35 Assim sendo, "a luta comum contra os almorávidas em inícios do século XIII e a empreitada conduzida por Afonso IV e pelas armas portuguesas no Salado, em 1340, tinham todas as aparências de uma cruzada, embora com uma cor e um sabor ibéricos". E, como se sabe, nos inícios do século XV, os portugueses pensavam em conquistar Granada, em poder dos mouros, decidindo-se, porém, a atacar Ceuta e Tânger. Registre-se a propósito dessa permanência dos ideais das cruzadas que a idéia de chegar a Jerusalém permaneceu com os portugueses até meados do século XV. Ainda em
1457, D. Afonso V preparava uma grande cruzada que nunca aconteceu.36 As razões e os motivos morais, religiosos, econômicos e políticos misturavam-se no caminho dos descobrimentos. Realizada por D. Henrique, a tomada de Ceuta, no Marrocos, em 1415, abriu a Portugal novos horizontes, maior proximidade das especiarias do Oriente, a pimenta e a canela, notícias sobre as terras do ouro no Timbuctu e do marfim na Guiné. Esse resultado econômico fora atingido por meio de objetivos criados numa atmosfera de idéias na qual misturavam-se também os sonhos dos franciscanos, que imaginavam algum dia trazer de volta para a cristandade a China de Confúcio. Os geógrafos medievais mencionavam a existência de ilhas no Atlântico, a perdida Atlântida, as Hespérides, as ilhas dos Bem-aventurados, a Ilha das Aves de São Brandão, as Afortunadas. Já em fins do século XIII os genoveses haviam alcançado a costa da África Ocidental, mas desapareceram no mar.37 Persistiam, porém, os esforços dirigidos àquelas ilhas imaginárias que pairaram durante séculos nos sonhos e nos pesadelos europeus, até que as Canárias, que estavam relativamente perto do continente, surgiram "da lenda para a luz", para se tornar objeto de permanente contenda entre os reinos de Castela e Portugal. Em 1344, o papa Clemente VI as concedeu a um príncipe castelhano, sob protestos de Portugal perante a Santa Sé. Numa época em que Veneza, mais próxima das portas do Levante, era o empório da Europa, o cabo Bojador, na costa ocidental da África, era visto como o termo do mundo medieval. Ir além do Bojador, como queria D. Henrique, de 1421 a 1433, significava, entre outras coisas, superar o controle das cidades italianas sobre o Mediterrâneo. Mas a navegação oceânica exigia dos marinheiros a revisão completa de sua ciência, então limitada à cabotagem, uma navegação com os olhos nos sinais das costas do continente, como era adequado a um mar interior como o Mediterrâneo.38
"Revolução da experiência" Foi nesse contexto que ocorreram os efeitos da "revolução da experiência", mutação cultural resultante de décadas de prática dos marinheiros portugueses. É também diante desse quadro que se deve admitir que, se a escola de Sagres não existiu como instituição desse nome, existiu como esforço criador. O Infante trouxe a seu lado a companhia cosmopolita de físicos e de cosmógrafos – a maior parte deles judeus, entre os quais o célebre Jaime de Maiorca e Jaime Ribes, ou Jafuda Cresques, filho do cartógrafo Abraão Cres. Os judeus estavam entre os mais distintos homens de ciência medievais, em geral médicos, quase sempre também astrônomos. Com eles
se formou, com apoio na experiência portuguesa no mar, uma nova ciência náutica e uma nova espécie de técnicos. Os pilotos portugueses tornaram-se, nos séculos XV e XVI, os mestres europeus na arte de navegar para o alto-mar, restabelecendo um saber que se perdera desde os fenícios. Em 1441, surgiu a caravela, contribuição puramente portuguesa, que resultava da adaptação e do aperfeiçoamento de um tipo de embarcação que os pescadores da costa portuguesa utilizavam desde tempos mouriscos. Embora, em seus inícios, a ciência da navegação tenha se desenvolvido na Ibéria a partir de herança romana e grega preservada por árabes, judeus e cristãos, ela também se beneficiou dos conhecimentos técnicos que se introduziram ou se generalizaram na Europa medieval. Como diz Saraiva, a caravela e o astrolábio se inscrevem entre tais descobrimentos técnicos, que começaram com "o moinho de água e de vento, a ferradura, um novo sistema de atrelagem, a charrua, o leme vertical fixo, a bússola". O quadrante e o sextante passaram a ser amplamente usados já desde 1480. Acrescenta Saraiva: "no século XV já se utiliza a pólvora na artilharia; a fiação com pedal e roda substitui antiqüíssima roca e fuso; produzem-se novas qualidades de tecidos, melhora-se consideravelmente a produção do vidro e da faiança; realizam-se progressos na técnica mineira e na fundição de ferro; fabricam-se relógios, não apenas de pesos, mas de mola de aço, portáteis; descobre-se a tipografia, isto é, a impressão com caracteres metálicos móveis. Estas invenções (...) são estimuladas por necessidades crescentes da agricultura intensiva e comercializada, da indústria têxtil, do transporte terrestre e marítimo, da cultura cada vez mais divulgada, etc."39 [<<5]
D. Henrique: guerreiro, místico e estudioso da ciência.
A "revolução da experiência" dos portugueses adquiriu um sentido mais amplo,
untando-se ao desenvolvimento da técnica para mudar a ciência da navegação e a da geografia. Quando Gil Eanes venceu o cabo Bojador, em 1434, rompendo a barreira do Atlântico Sul, foi como se tivesse decretado "a morte da geografia medieval", fazendo triunfar a experiência sobre a lenda.40 Gil Eanes era de Lagos, no Algarve, que no tempo do Infante não era apenas um porto para viagens longas, mas também um centro em volta do qual se reuniam os estudiosos da nova ciência náutica: genoveses, venezianos, castelhanos, bascos, catalães, ingleses, franceses, alemães, escandinavos, árabes e judeus. Além da matemática, da astronomia e da geometria, estudavam-se os roteiros de viagem que se encontravam nos livros de marinharia, incluindo métodos de navegação, registrando minuciosamente os sinais da costa.41 Embora as empreitadas portuguesas no mar tenham sido apoiadas pelo papado, é bem provável que o apoio que recebiam de fora tivesse muito a dever a suas novas atitudes diante do mundo. O papa confirmou os direitos do Infante em todas as terras que viessem a descobrir-se desde o cabo Bojador até a Índia. D. Afonso V (14321481) investiu, em 1454, a Ordem de Cristo de jurisdição espiritual sobre as terras da Guiné, da Núbia e da Etiópia. Tendo contribuído para o Renascimento nas ciências náuticas, na navegação, na astronomia, nas ciências naturais, nas matemáticas e na geografia, Portugal contribuiu também para uma renovação das mentalidades na Europa. O Esmeraldo de situ orbis, de Duarte Pacheco Pereira (1460?-1533), escrito entre 1505 e 1508, é a primeira obra portuguesa dotada de uma atitude científica visando a uma concepção nova da náutica. Dizia Pacheco Pereira: "a experiência nos faz viver sem engano das abusões e fábulas que alguns dos antigos cosmógrafos escreveram acerca da descrição da terra e do mar. Disseram que toda a terra que jaz debaixo do círculo da equinocial era inabitável pela grande quentura do sol. E isto achámos falso pelo contrário". Não era apenas obra de cronista, mas também de navegador, escrita com base na experiência acumulada durante mais de trinta anos de viagens, uma das quais ao norte do Brasil, antes de Pedro Álvares Cabral (1467?-1526?).42 Foi depois de muito tempo e trabalho que passou a valer, contra as heranças medievais e clássicas, o saber "de experiências feito", tão louvado por cronistas e poetas portugueses. Em suas primeiras entradas no mar, os portugueses trabalhavam com equipamento medieval e com uma perspectiva geral baseada na tradição e na autoridade dos antigos. Segundo Oliveira Marques, eles entendiam inicialmente que não podiam questionar o que os clássicos e seus comentadores tinham escrito pelos séculos: "se a observação real parecia provar o contrário, então a própria observação seria falsa". Continuaram a aceitar "os velhos mestres com os velhos erros, muito tempo depois que, do mais humilde marinheiro ao mais nobre vice-rei, tinham realmente observado e tocado uma realidade diferente. Por muito tempo, o ensino
oficial e a experiência prática aparentemente coexistiram sem fricção, embora contradizendo-se entre si". A mudança veio depois de muito tempo dessa estranha convivência entre o que se aprendia na cultura herdada, dos livros e das cartas geográficas, e as experiências reais.43 Esse experimentalismo português se desenvolveu em paralelo a uma influência humanista que, na passagem do século XV para o XVI, faria da vida cultural "partícipe do movimento geral do Renascimento".44 Desenvolveu-se em separado, sem poder chegar a uma síntese. A experiência, além de empírica, era pessoal, e se converteu "na única instância válida para a comprovação do legado científico e cultural transmitido pelos antigos". Embora projetando-se "no domínio mais vasto da relação do homem com a Natureza e o Cosmos" e envolvendo uma "rotunda afirmação da individualidade", uma mudança na concepção da pessoa, que confluía com o sentido de um "humanismo global", de uma "centralidade do homem", essa concepção da experiência era demolidora para a sabedoria consagrada. Separou-se, assim, tanto da tradição medieval quanto da corrente humanista que derivava da revalorização dos clássicos da Antigüidade. No confronto com as tradições, a medieval e a antiga, o experimentalismo português da época foi reduzido "à condição menor de expressão cultural subalterna". Dentro desses limites, porém, o experimentalismo português foi, como bem diz Oliveira Marques, definitivamente uma revolução subversiva. Minou "as bases (tradicionais) do pensamento e da ação", tanto na técnica quanto na experiência do mundo. Foi vista "como herética, absurda e imoral", combatida energicamente, "teve suas vítimas e seus holocaustos".45 A comparação entre os roteiros de espanhóis e portugueses buscando novos caminhos no mundo é muito sugestiva da vitalidade germinal desse experimentalismo português. Os primeiros buscaram o caminho das Índias navegando de este a oeste, a partir da convicção, digamos imaginária, se não teórica, de Colombo sobre a forma redonda da terra. Os portugueses fizeram empiricamente seu roteiro para as Índias, no sentido norte-sul. Conquistaram pedaço a pedaço, trecho a trecho, a costa da África, até que pudessem finalmente contornar o cabo da Boa Esperança.
Humanismo e descobrimentos O humanismo português começou depois do da Espanha, mas antes do de muitos países europeus. Como o da Espanha, tinha afinidades com a Itália, o papado e a tradição latina, e cresceu com a riqueza propiciada pelos descobrimentos. Nos fins do século XV e inícios do século XVI, a competição feudal e a proteção real criaram
um ambiente favorável para a cultura, numa atmosfera de certo modo já preparada pelos reinados de D. João I e D. Duarte. Mas "formas medievais tardias, embora permeáveis a influências humanísticas, floresceram em Portugal sob Afonso V, João II, Manuel I, e mesmo João III, uma contrapartida à grande expansão marítima e sua resultante riqueza".46 Embora se atribua ao período de D. João III um ponto alto da influência humanista, tendências à modernização da cultura portuguesa vêm de há mais tempo e não se limitam ao campo das concepções artísticas e ético-filosóficas. É de fins do reinado de D. Manuel I, por exemplo, a centralização do sistema de pesos e medidas e a publicação das Ordenações manuelinas (1512), incluindo a reforma dos princípios de centralização de Estado típicos do Renascimento.47 Nesse período, que vem das últimas décadas do século XV a meados do século XVI, aumentou a intensidade de contatos internacionais, peregrinações à Itália, Pádua (onde está Santo Antônio de Lisboa), a universidades de prestígio, como Bolonha, Siena e Florença, visitas de professores italianos às universidades portuguesas. Eram peregrinações e visitas portadoras de influências humanistas: "as realizações culturais e as novas correntes de pensamento que surgiam na Itália eram rapidamente conhecidas e introduzidas em Portugal".48 Um grande número de portugueses ligados às atividades comerciais vivia permanentemente no exterior. Além de Bruges e da Antuérpia, para onde migraram muitos judeus portugueses, havia portugueses também em Castela, e mais ainda em Sevilha, Londres, Bristol, Southampton, França, Gênova, Florença, Veneza.49 Muitos estrangeiros visitavam Lisboa e a riqueza portuguesa permitia aos jovens estudar fora e, além disso, importar professores. Muitos portugueses estudaram em Paris, Louvain, Salamanca e Oxford em meados e fins do século XV. Em Salamanca, na primeira metade do século XVI, cerca de oitocentos estudantes assistiam a aulas de Direito e Cânones. "Mas foi na França, Paris, mais do que em qualquer outro lugar, que foi preparado o que há de mais influente no humanismo português". 50 Quaisquer que tenham sido as fragilidades desse humanismo, há de ser por alguma razão que humanistas como Erasmo, em 1527, e o pedagogo espanhol Juan Luis Vives (1492-1540), em 1531, dedicassem obras a D. João III. O rei teria cogitado convidar Erasmo para dar aulas em Coimbra.51 A História, como disciplina de estudos, floresceu nas primeiras décadas do século XVI, estimulada pelas navegações e os descobrimentos e pelo interesse dos monarcas em fazer o registro de seus feitos. Gomes Eanes de Azurara narrou as navegações de D. Henrique; outros cronistas e historiadores, como João de Barros (1496-1570), Damião de Góes (1502-1574), Fernão Lopes de Castanheda (15001559) e André de Resende (1498-1573) narraram os eventos contemporâneos ou sobre estes misturam a narrativa e a imaginação, como Fernão Mendes Pinto, em
Peregrinação.52 Depois de 1520, sob influência italiana, Bernardim Ribeiro (1480?1545?) e Sá de Miranda (1487-1558) fizeram uma crítica humanista às sobrevivências culturais. Sob D. João III, desde os anos 20 até os anos 40 do século XVI, "o eixo da cultura portuguesa deslocou-se decisivamente para o campo do humanismo". Ou seja, para um humanismo erasmista que, por exemplo, influenciou a obra de João de Barros, Ropicapnefma (1532).53 O escritor, amigo do rei e feitor da Casa da Índia, analogicamente transplantou para o campo ético-filosófico o sentido da comercialização: "todas as qualidades de homens (...), quer sejam eclesiásticas, quer seculares, com quantas dignidades, estados e ofícios houver entre eles, nenhum vive sem comprar e vender". A obra de Gil Vicente (1465?- 1537), criador do teatro da última fase medieval, seria reunida em 1562, numa Compilaçam de todalas obras de Gil Vicente .54 Entre 1530 e 1540, mais de 20 colégios foram fundados em Portugal. Foram depois criados colégios reais. A cultura acompanhava a mudança na sociedade. O censo realizado em 15271532, sob D. João III, permitiu estimar que houvesse em Portugal entre um mínimo de um milhão e um máximo de um milhão e meio de pessoas. O crescimento das cidades manifestava o espírito da Renascença: ruas mais largas, praças maiores, casas mais ricas. Os escravos não iam além de 10%, concentrados em Lisboa. Os udeus eram poucos e, quando em cidades, organizavam-se em comunas designadas pelo rei; trabalhavam em geral em profissões urbanas, submetidos a pesados impostos. Na Lisboa dos séculos XIV e XV, havia as judiarias, quarteirões separados por portões, cercas e muros. Os mouros, na maioria camponeses e artesãos, em parte migraram, em parte foram assimilados, e, quando nas cidades, viviam nas mourarias. A agricultura dedicava-se ao trigo, à oliva, aos vinhedos, ao arroz, introduzindo-se depois o milho, vindo da América, em fins dos 1400 ou inícios dos 1500. Depois de D. Manuel I, abriu-se, com D. João III, a importação de grãos, estimulando o comércio. Adquiriu importância, sob controle da Coroa, a indústria naval, tendo em vista o caráter inovador dos portugueses, famosos pela qualidade dos barcos. Os dois países católicos, Portugal e Espanha, dentre os mais tradicionais da Europa, escreveram, nas primeiras décadas do século XVI, um capítulo fundamental da história moderna. Os grandes navegadores ibéricos tomaram, como sabemos, rumos diversos, Colombo para o Ocidente, e Vasco da Gama margeou a África para atingir o Oriente. Contudo, num dia do ano de 1521, Fernão de Magalhães, um navegador português que fora ao mar a mando da Espanha, transpôs a América pelo extremo sul. Em certo ponto da viagem, os portugueses, já navegando pelo Pacífico, viram com espanto tremular numa nau a bandeira castelhana. Partidos da península
Ibérica, espanhóis e portugueses, por vias diversas, iam encontrar-se de novo sobre a outra face do mundo.55
Inquisição à portuguesa Ciosos de sua autoridade, os dois impérios ibéricos não podiam curvar-se à autoridade do papado. "Não é que os reis protestem: ao contrário. A fé católica é a alma da sua alma, o entusiasmo religioso é a mola íntima do organismo nacional. Ainda como os reis-sacerdotes são verdadeiramente soberanos, porque nesta feição mais do que em nenhuma outra traduzem fielmente o querer do seu povo. São até mais católicos do que esse papado italiano semipagão; acusam-no de tibieza, e, na impossibilidade de o convencer, reclamam, como reis, a autoridade espiritual, criando com o povo, contra Roma, a Inquisição". 56 Embora os tribunais do Santo Ofício estivessem em decadência em fins do século XV, Fernando e Isabel, de Espanha, obtiveram do papa, em 1478, autorização para uma Inquisição contra mouros e judeus. Ressurgia assim o Tribunal do Santo Ofício, muito antes da rebelião luterana, embora depois venha a incluir os seguidores de Lutero entre os possíveis acusados. Em 1515, alguns anos antes da eclosão do movimento da Reforma, D. Manuel I pediu a instauração da Inquisição em Portugal, visando, como os reis de Espanha, aos mouros e aos judeus. Na insistência do rei português havia o evidente propósito, visto com desconfiança pelo papado, de imitar a Espanha, conseguindo mais um instrumento para o aumento do próprio poder. Diante da recusa, a Coroa portuguesa renovou o pedido em 1525, por intermédio de D. João III, insistindo, e nisso seguindo de novo o exemplo espanhol, na instauração de um tribunal que pudesse confiscar os bens dos acusados, realizar processos sigilosos, negando aos acusados informação sobre a identidade dos denunciantes. A Inquisição foi concedida a D. João III em 1536, embora com diversas restrições de ação, que a faziam mais fraca do que a de Espanha, que já funcionava há décadas. Mesmo com tais restrições, em 1539, D. Henrique, irmão de D. João III, passou a Inquisidor-Geral. Suspensas pelo papa as suas atividades em 1544, as restrições impostas por Roma caíram, finalmente, em 1547, e a partir de então a Inquisição portuguesa passou a se assemelhar à espanhola. Não faltavam, para a insistência portuguesa, motivos reais ou supostos – em todo caso sempre aumentados e manipulados em consonância com o catolicismo predominante no país. Depois do terremoto de 1531, os "cristãos-novos" tornaram-se alvo de várias acusações, entre as quais a "de esconder gêneros alimentícios com fins especulativos durante a grande fome provocada por um surto de peste ocorrido em 1530, pela seca de janeiro de 1531 e pelo terremoto do mesmo ano". A sucessão de tragédias foi
considerada como "um castigo divino pelas ofensas dos judaizantes". E, em resposta ao clima de medo, histeria e suspeita, no mesmo ano de 1531, alguns "cristãosnovos", tidos como hereges, foram queimados na praça de Olivença, após um ulgamento sumário. "Quem presidiu aquele auto-de-fé – o primeiro realizado em Portugal – foi frei Henrique de Coimbra, o mesmo que, 31 anos antes, acompanhara Pedro Álvares Cabral na viagem ao Brasil e rezara a primeira missa na Bahia".57 Observa Varnhagen, porém, que nunca houve uma Inquisição especial para o Brasil. A Inquisição, que aqui permaneceu sempre sujeita à de Lisboa, só chegaria depois de já bastante adiantada a colonização, em especial desde o século XVIII, "em que as riquezas começaram a seduzir os cobiçosos fiscais do chamado Santo Oficio".58
Ensaios de colonização O descobrimento do Brasil é parte de uma série de êxitos portugueses que começam com a conquista de Ceuta (1415) e a ocupação da Madeira (1419-20). Assim como expandiram seu domínio e seu conhecimento náutico no curso dessas conquistas, os portugueses iniciaram também as experiências por meio das quais o reino e a sociedade lusos se transformariam, acrescentando a sua condição de poder marítimo a de poder colonizador. Na Madeira buscaram, como os castelhanos, a resina vermelha usada na indústria têxtil, dando início a um projeto de colonização que depois se aplicará na América portuguesa. Doada pelo rei D. Duarte (1443-1438) a D. Henrique, este ali criou três capitanias, perpétuas e hereditárias, inspirando-se nas experiências das repúblicas italianas nos povoamentos mediterrâneos orientais de após as cruzadas, e também dos catalães e dos franceses na mesma área. Esse sistema começou a dar resultados em meados do século XV e, já em 1451, Funchal e Machico foram reconhecidas como vilas. Àquela altura do século XV, a Madeira começou a exportar açúcar e a importar escravos, provando que, como se dizia, escravos e açúcar eram mais lucrativos do que ouro. Diante da Europa daquele momento, a Madeira apareceu, como depois aparecerá o Novo Mundo, como um éden que produzia tudo quanto era necessário ao homem. Da ilha disse Luigi da Cadamosto (1432-1488), um cronista veneziano pertencente à corte de D. Henrique: "Toda ela é jardim, e tudo ali se dá!". Quase as mesmas palavras, em todo caso as mesmas idéias, que muitos cronistas usariam para descrever o Brasil, recém-descoberto. Uma versão dos mitos edênicos, tão bem descritos por Sérgio Buarque de Holanda em Visão do paraíso, que se misturaram aos sentimentos dos primeiros navegadores e conquistadores.59 Portugal crescia no mar e no além-mar, e, em conseqüência, mudava como país.
Iniciada a carreira como poder colonizador, já por volta de 1450, em Portugal, a economia e a população começaram a crescer de novo, uma "tendência (que) caracterizou todo o século XVI".60 Embora tal crescimento pudesse ser entendido como uma condição favorável a que aumentasse a escala dos descobrimentos, estes caíram de ritmo depois da morte de D. Henrique, em 1460. A empresa ultramarina portuguesa já havia, porém, definido seu perfil, inicialmente financiada pela grande instituição feudal que foi a Ordem de Cristo, e depois pelo próprio rei. "Só o rei se encontrava em condições de financiar as expedições marítimas, inicialmente arriscadas e de resultados incertos". É o rei, portanto, "que nos dois países da península Ibérica assume os encargos da exploração econômica do ultramar".61 Na ausência de uma burguesia comercial, que já existia na Holanda e nas cidades italianas, a expansão portuguesa tornava-se um empreendimento da Coroa, à qual "se untavam interesses e iniciativas privadas".62 O que significa que, inexistindo na península contradição entre a expansão comercial e a terra, na qual os nobres investiam, o problema maior da expansão passava a ser o custo do Império que, porém, não podia ser sustentado pelas empreitadas marítimas. Em sua época de maior êxito, Portugal esboçava as condições que haveriam de torná-lo um entreposto do capitalismo europeu que se iniciava. No século XV, Portugal era também um país de mudanças sociais e econômicas, embora limitadas ao enquadramento medieval. Durante seu reinado, D. Afonso V "concentrou a propriedade da terra em poucas famílias, e surgiram novos titulados (...) com um crescimento similar nas rendas da terra e nos privilégios. Terras e títulos, porém, haviam sido distribuídos a não mais de quinze grandes famílias, das quais a maior era dos Bragança".63 Além dos novos titulados, havia os "vassalos do rei", dois mil vassalos obrigados a cavalo e lanças. O estrato mais baixo era o dos fidalgos, mais numerosos, menos ricos e mais estáveis. Numa sociedade que, em fins do século XV, via fragmentar-se a tradicional divisão tripartite de clero, nobreza, e povo, ainda havia os cidadãos ("gente limpa"), a burguesia, os legistas, os artesãos e os escravos. Como era próprio a um Estado de sacerdotes e guerreiros, a grande maioria de arcebispos e bispos pertencia à nobreza. A introdução de uma grande variedade de mercadorias exóticas e caras, antes desconhecidas ou escassas em Portugal, trouxe um novo e decisivo elemento ao comércio medieval português. "Produtos como ouro, açúcar, especiarias, escravos, madeira, marfim e tinturas começaram a invadir o país em quantidades cada vez maiores, de meados do século XV em diante. Tais mercadorias não apenas se tornaram mais importantes para atender às demandas e necessidades do mercado, mas também superaram todas as formas de exportação em valor econômico". A mudança enorme no comércio de longa distância converteu Portugal num
intermediário entre a Europa e a África (ou as ilhas Atlânticas) e, depois, num intermediário entre a Ásia e a América Latina. 64 Tem origem nessas circunstâncias um caráter "parasitário" da economia portuguesa que persistiu durante muito tempo. Depois da descoberta da América em 1492, que reavivou em Lisboa o entusiasmo á um tanto adormecido pelas viagens, Colombo visitou Portugal. Ao recebê-lo, D. João II (1455-1495) lhe disse que as terras que ele descobrira eram portuguesas, segundo um tratado de 1479-80, pois estavam abaixo das Ilhas Canárias. Eram as velhas pendências entre Portugal e Castela, que haveriam de levar em 1494 ao Tratado de Tordesilhas, que durou até 1750, estabelecendo um meridiano a oeste de Cabo Verde como linha divisória do que deveria caber aos dois países nas novas terras conquistadas. Em 1497, Vasco da Gama partiu para as Índias. Em 1500, Cabral descobriu o Brasil. Ou melhor, realizou o "achamento oficial do Brasil", como dizem os historiadores portugueses.
1. WEHLING, Arno; W EHLING, Maria José C. M. Formação do Brasil colonial. 3. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999. p. 20-21. 2. L USCOMBE, David. Medieval Thought. New York / Oxford: Oxford University Press, 1997. p. 136. 3. Apud B RADING, D. A. The First America: The Spanish Monarchy, Creole Patriots, and the Liberal State, 1492-1867. Cambridge: Cambridge University Press, 1993. 4. Apud Oliveira Martins, que acrescenta: "A necessária expansão de uma vida mal contida nos limites nacionais da Europa, o fervor da propagação da fé e o movimento instintivo da cobiça são causas comuns das descobertas e conquistas espanholas e portuguesas". MARTINS, Oliveira. História da civilização ibérica. Lisboa: Europa-América, 1984. p. 183. 5. A mistura desses motivos – a cobiça e a expansão do poder e da fé – que impulsionaram os descobrimentos e as conquistas, com vistas ao caso do Brasil, está bem descrita em WEHLING; WEHLING, op. cit., p. 19 e seguintes. 6. Segundo Saraiva, desde o século XIV, Gênova, Florença e Veneza são repúblicas mercantis que se emanciparam do feudalismo. As cidades flamengas encontram-se também numa posição excepcional graças ao comércio de têxteis, uma das principais fontes do capitalismo europeu. SARAIVA, op. cit., p. 9. 7. Diz Saraiva, a propósito das Décadas, de João de Barros (1496-1570): "Estudando o travejamento ideológico das Décadas, não vamos definir a ideologia de um indivíduo, mas a de uma estrutura social cuja base são os 'Cavaleirinhos da Índia' que têm na guerra, na ocupação militar e na escravatura o seu modo de vida, e cujo vértice é o rei que dorme por cima do armazém da pimenta e que das suas janelas vê partir as armadas carregadas de guerreiros e regressar repletas de fardos". Ibidem, p. 278. João de Barros não teve tanta sorte no Brasil, pois naufragaram os navios que enviara para tomar posse da capitania que lhe fora doada por D. João III, em 1535, na Amazônia. Nova tentativa, em 1556, também fracassou. As Décadas, publicadas em 1552, foram escritas por sugestão de D. Manuel. 8. HUIZINGA, Johan. El otoño de la Edad Media. Estudios sobre las formas de la vida y del espíritu durante los siglos XlV y XV en Francia y los Países Bajos. Madrid: Revista de Occidente, 1952. p. 20, 22 e 26.
9. A ZURARA, Gomes Eanes de. Crônica do descobrimento e conquista da Guiné. Lisboa: Europa-América, 1989. p. 46. Ver também S ANCEAU, Elaine. D. Henrique o Navegador. Porto: Livraria Civilização, 1942. p. 31. 10. O livro clássico de Tönnies, Comunidade e sociedade, foi publicado em 1922, e analisava a transição da era préindustrial à era industrial. A "comunidade" se caracterizaria pelas relações pessoais de sangue, afeto, respeito e medo. A "sociedade" seria caracterizada por vínculos racionais fundados sobre o contrato e o interesse, uma sociedade economicamente eficaz, mas psicologicamente deprimente. 11. JAGUARIBE, Helio. Um estudo crítico da história. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2002. v. I, p. 412. 12. LUSCOMBE, op. cit., p. 10 13. CHESTERTON, G. K. São Tomás de Aquino. Rio de Janeiro: Ediouro, 2003 p. 211 e seguintes. 14. JAGUARIBE, op. cit., v. I, p. 411-412. A ressurgência das cidades começou no fim do século X, especialmente na Provença, no Languedoc, na Catalunha, na Itália setentrional e em Flandres, espalhandose por outras regiões da Europa. Esse processo continuou até a época da Peste Negra (1348-1350), que matou mais de um terço da população européia – cerca de 25 milhões de pessoas. No século XV, as cidades voltaram gradualmente a se expandir. 15. Ibidem, p. 415. 16. BUENO, Eduardo. Capitães do Brasil. Rio de Janeiro: Objetiva, 1999. p. 238. Cf. também J AGUARIBE, op. cit. p. 415, e V ARNHAGEN,João Adolfo de. História geral do Brasil. 2. ed. Rio de Janeiro: Laemmert, 1907, tomo I, p. 163. Acrescenta Bueno que, em fins do século XV, a Inquisição arrefecia na Europa, quando foi remodelada e se estabeleceu na Espanha em 1478. 17. MARTINS, História da civilização ibérica, cit., p. 161. 18. JAGUARIBE, op. cit., p. 410. 19. MARTINS, História da civilização ibérica, cit., p. 161. O parêntese para acentuar a palavra "ibérica" é meu. O texto de Oliveira Martins diz "Idade Média espanhola", adotando para os dois países da península a designação, mais antiga, de Espanha. 20. Segundo JAGUARIBE, op. cit., o termo "Renascimento" foi empregado pela primeira vez num romance de Balzac, de 1829, mas o conceito, como o entendemos hoje, foi apresentado por Jules Michelet (1798-1874) na segunda série da sua História da França (1855-1867), e desenvolvido plenamente por Jacob Burckhardt (1818-1897) no seu extraordinário livro A cultura do Renascimento na Itália, de 1860. 21. Ibidem, p. 431. 22. SARAIVA, op. cit., p. 17. 23. Ibidem, p. 161. 24. WEHLING, op. cit., p. 22. 25. SARAIVA, op. cit., p. 19. 26. MARQUES, op. cit., p. 118. 27. MARTINS, História da civilização ibérica, cit., p. 156. 28. JAGUARIBE, op. cit., p. 403-404. 29. Ibidem, p. 406. 30. Irmão do rei Afonso V de Portugal, e Geral da Ordem de Cristo, D. Henrique "redirecionou o impulso e os fundos da Ordem, desviando-os dos projetos de novas cruzadas para um grandioso programa de descobrimentos marítimos". JAGUARIBE, op. cit., p. 439. 31. MARQUES, op. cit., p. 214. 32. MARTINS, História da civilização ibérica, cit., p. 171. 33. MARQUES, op. cit., p. 264. 34. Ibidem, p. 140. 35. Ibidem, p. 161. 36. Ibidem, p. 140-141.
37. Ibidem, p. 145. 38. SANCEAU, op. cit., p. 169-170. 39. SARAIVA, op. cit., p. 20. 40. SANCEAU, op. cit., p. 178. 41. SARAIVA, op. cit., p. 20. 42. PEREIRA, Pacheco; CASTRO, João de. A revolução da experiência. Selecção, prefácio e notas de João de Castro Osório. Lisboa: Edições SNI, 1947. p. 85. Nos excertos de João de Castro (1500-1548), discípulo do matemático Pedro Nunes (1502-1578), recolho o seguinte diálogo entre "discípulo" e "mestre": "Pois quem pode arrancar do mundo esta opinião dos antigos?". Responde o "mestre": "A muita experiência dos modernos, e principalmente a muita navegação de Portugal (...) e dos outros Espanhóis" que, como os portugueses, "navegaram a redondeza do mundo" (p. 167). 43. MARQUES, op. cit., p. 204. 44. MENDES, António Rosa. A vida cultural. In: M ATTOSO, José (Org.). História de Portugal. Lisboa: Estampa, 1993. v. 3: No alvorecer da modernidade (1480-1620). Coordenação de Joaquim Romero Magalhães. p. 375 e seguintes. 45. MARQUES, op. cit., p. 204. 46. Ibidem, p. 198. 47. Ibidem, p. 174. 48.Ibidem, p. 191. 49. Ibidem, ver p. 173 e seguintes. 50. Ibidem, p. 191. 51. MENDES, op. cit., p. 383. 52. Publicação recente de Peregrinação, de Fernão Mendes Pinto, em dois volumes, pela editora Nova Fronteira (Rio de Janeiro, 2005), adota versão do texto para português atual de Maria Alberta Meneres. 53. De origem grega, o estranho título dessa obra de Barros significaria "mercadoria espiritual". 54. MENDES, op. cit., p. 381-382. 55. MARTINS, História da civilização ibérica, cit., p. 182. 56. Ibidem, p. 149-151. 57. BUENO, op. cit., p. 239. 58. VARNHAGEN, op. cit., p. 163. 59. HOLANDA, Sérgio Buarque de. Visão do paraíso. 5. ed. São Paulo: Brasiliense, 1992. 60. MARQUES, op. cit., p. 165. 61. SARAIVA, op. cit., p. 26. 62. MARQUES, op. cit., p. 265. 63. Ibidem, p. 178: "Em 1481, quando D. Afonso V morre, cresce o número de titulados, de apenas dois duques e seis condes que antes existiam a quatro duques, três marqueses, vinte e cinco condes, um visconde e um barão". Os Bragança passaram a ter doze títulos, dos quais dois duques, três marqueses e sete condes. 64. Ibidem, p. 170-171.
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O novo mundo e sua v elha população: Dança Tapuia, pintura do século XVII.
CAPÍTULO 3
CONQUISTADORES E ÍNDIOS
Ultra equinoxialem non peccavi. A frase tem origem na Europa, o continente digno: mesquinhas por natureza, pensava ela, seriam as outras partes do mundo. (...) Os negócios coloniais têm direito – é ainda moral européia de hoje – de ser louches, o direito de serem tortos. A.P., Cartas do Brasil, de MANUEL DA NÓBREGA 1
Uma corrente do pensamento brasileiro da Segunda República, reafirmando uma tendência centralista do Império, conduziu a uma imprecisão histórica, talvez algum exagero, quando estabeleceu entre alguns estudiosos a idéia de que o Brasil nasceu do Estado. Na verdade, seria difícil qualificar como Estado, no sentido moderno do termo, a Coroa portuguesa, carregada de ressonâncias medievais, que iniciou a conquista e a colonização do Brasil. E que, em meados do século XVI, pouco depois de iniciada a colonização, entraria em decadência, culminando, entre 1580 e 1640, na submissão aos Felipes de Espanha. No início do século XVII, a soberania da Coroa portuguesa achava-se enfraquecida sobre seu território na Europa e, mais ainda, sobre seu território na América, onde, de resto, a soberania da Coroa espanhola nunca fincou raízes. O Estado português – no sentido moderno – é um fenômeno de meados do século XVIII, da ilustração e do absolutismo, dos tempos de Pombal. Nessa época já havia no Brasil uma economia do açúcar em São Vicente, Pernambuco e Bahia, e achavase em andamento a exploração de metais preciosos em Minas Gerais, Goiás e Mato Grosso. Eram riquezas brasileiras que sustentavam Portugal nesse tempo. Mais certo do que dizer que o Brasil nasceu do Estado seria dizer que o Brasil nasceu com o Estado. Embora vinculados a pressupostos feudais e enfrentando dificuldades nas Índias, D. Manuel (1495-1521) e D. João III (1521-1557) tomaram iniciativas nas terras de Santa Cruz, sem as quais não haveria a conquista, nem a colonização se processaria. Nesse sentido, é certo que o Brasil construiu-se em resposta às iniciativas da Coroa portuguesa. Mas quando esta perdeu força, a colônia cresceu por seu próprio dinamismo, terminando por revelar-se fundamental na consolidação do Estado português.
A fé, o ouro e o poder: os mesmos motivos que levaram os portugueses aos descobrimentos empurraram-nos para a conquista do novo território, no qual escreveram, em que pese a obscuridade dos primeiros tempos, uma história grandiosa, de dimensões só comparáveis à Reconquista e aos descobrimentos. Em confronto com os antigos feitos ibéricos, mudou o cenário, que, em vez das terras peninsulares e dos mares e oceanos, passariam a ser as florestas do território imenso. Mudaram também os atores, substituídas as figuras do cruzado e do navegador por novos personagens. Mas nasceria da conquista um novo país, marcado em seus dois primeiros séculos por cicatrizes e combates, tropelias, dores e suores que caracterizariam a colônia brasileira. Como a conquista do território acabou por se confundir com a primeira etapa da colônia, esta se confundiu com a formação da nova sociedade, conferindo à história brasileira esse traço forte de continuidade que é uma de suas marcas mais peculiares. De algum modo imbricados entre si, esses processos – conquista, colonização e formação da sociedade – continuam até hoje. Mudaram, evidentemente, as condições históricas, sociais e econômicas, mas algo desses processos de origem continuam em andamento no Brasil. Seu imenso território se acha, na maior parte, sob controle administrativo de um Estado moderno, mas nem por isso inteiramente povoado. Em certas partes do país, a obra da conquista continua.
Conquistas: a espanhola e a portuguesa Diferenças de circunstância e de ritmo entre as duas conquistas ibéricas suscitaram persistentes equívocos de interpretação sobre as primeiras décadas da colonização da América. Alguns historiadores espanhóis sugerem que a conquista castelhana teria sido obra de particulares, e a portuguesa obra do Estado, acentuando diferenças entre os conquistadores dos dois países ibéricos que, na verdade, eram muito semelhantes. Frutos da mesma época, eram eles todos renascentistas e medievais, vassalos do rei e da Igreja, agressivos, violentos e, com freqüência, místicos fervorosos. As primeiras e fundamentais diferenças entre as conquistas ibéricas estão ligadas menos às possíveis diferenças entre esses personagens peninsulares do que às surpreendentes realidades que acharam pelo caminho. A Espanha encontrou sinais de ouro desde seus primeiros contatos com a América, suscitando, desde a segunda viagem de Colombo (1496), uma corrida de aventureiros e exploradores que a Coroa espanhola, mais preocupada com a política européia, tinha dificuldades para controlar. Os portugueses, por sua vez, a partir da viagem de Vasco da Gama, em 1498, estavam mais interessados nas Índias, onde se expandiam em violências no caminho dos metais preciosos, com a mesma fúria dos espanhóis na América.
Sem ouro à vista, a América portuguesa foi objeto de uma conquista mais lenta. Embora não se possa afirmar que tenham ficado esquecidas, a conquista e a expansão portuguesa da América têm algo da lentidão e do empirismo dos descobrimentos lusos. Os portugueses avançaram, pedaço a pedaço, às costas da África, ao passo que a Espanha buscou o caminho das Índias na direção este-oeste. As mesmas diferenças de perspectiva e de ritmo entre os ibéricos se observam na América recém-descoberta. A expansão espanhola iniciou-se logo após 1496, com a ocupação de São Domingos, Jamaica, Cuba, Porto Rico e Nicarágua. Continuou, nas primeiras décadas do século seguinte, na conquista do México e do Peru, numa seqüência rápida, violenta e trágica de episódios denunciados desde o primeiro momento pelo padre Bartolomeu de las Casas (1474-1566), com ecos até hoje presentes na memória dos países hispano-americanos. Diz o escritor mexicano Carlos Fuentes, num belo livro sobre a cultura hispanoamericana: "É com uma dor magnífica que se funda a relação da Ibéria com o Novo Mundo: um parto que se dá com o conhecimento de tudo aquilo que teve de morrer para que nós nascêssemos: o esplendor das antigas culturas indígenas". Para o escritor mexicano, a conquista espanhola teria sido um dos "diversos traumas" que "marcam a relação entre a Espanha e a América espanhola". 2 A magnífica interpretação de Fuentes sobre a conquista do México sugere um pathos de tragédia que não encontramos na memória da conquista portuguesa do Brasil. Dá-se o mesmo na interpretação de Octavio Paz, que veremos mais adiante. Os brasileiros dificilmente chegariam tão longe em suas avaliações do passado. Têm, por certo, alguma consciência de sua dívida com os índios. Pode-se afirmar que participam do sentimento de serem testemunhas de suas próprias origens, como sugere Fuentes para descrever um traço característico das culturas ibero-americanas. Mas estão distantes de compartilhar o sentimento de que teriam surgido, como os mexicanos, à custa da destruição de um grande império indígena. É certo que algo desse contraste de interpretação entre brasileiros e mexicanos se deve a diferenças culturais mais antigas dos ibéricos da península. Diz o espanhol Miguel de Unamuno que os dois "hermanos" da península eram ambos desconfiados da razão, mas que diferiam entre si porque os portugueses seriam propensos a uma "pedanteria sentimental". Os castelhanos teriam um "sentimiento trágico de la vida", que seria "a expressão de uma luta entre o que o mundo é, segundo nos mostram a razão e a ciência, e o que queremos que seja, segundo nos diz a fé de nossa religião". Daí também, diz Unamuno, que Quixote tenha sido um desesperado, como Pizarro e como Loyola. "É do desespero e só dele que nasce a esperança heróica, a esperança absurda, a esperança louca. 'Spero quia absurdum'".3 Qualquer que seja o valor dessa interpretação para a cultura hispânica, Unamuno
tem razão ao diferenciar espanhóis e lusos. Comparados aos espanhóis, os portugueses foram sempre mais sentimentais e mais realistas. Em vez da "esperança absurda", a que nasce do desespero, foram sempre mais propensos a apoiá-la na experiência. Em todo caso, que peso poderiam ter tido tais imagens da cultura pretérita da Ibéria nos fatos da conquista do Novo Mundo? Que peso poderia ter tido nos fatos da conquista essa alegada "pedanteria sentimental" portuguesa? Quaisquer que sejam as respostas para essas perguntas, seria difícil para um intelectual brasileiro compartilhar, na descrição da conquista portuguesa, as belas e trágicas imagens dos intelectuais mexicanos sobre a conquista espanhola. É difícil para um intelectual brasileiro dizer de Pedro Álvares Cabral o que o grande poeta e ensaísta Octavio Paz disse de Hernán Cortés: que o conquistador do México se converteu num mito "obscuro e negativo", "uma chaga aberta" do imaginário mexicano. Segundo Paz, Cortés tornou-se um "emblema da conquista", que se deu a perceber através de imagens "de uma penetração violenta e de uma usurpação astuta e bárbara".4 Algo semelhante se poderia dizer do "poço de ignomínias" dos portugueses nas Índias; não, porém, da conquista portuguesa na América. Embora a esta não tenham faltado a violência e a brutalidade costumeiras naqueles tempos, seria difícil encontrar alguém disposto a qualificar Cabral, Tomé de Souza (15031579) ou Mem de Sá (1500-1572) como "chagas abertas" do imaginário brasileiro. Em todo caso, cabe mencionar outras diferenças entre Espanha e Portugal quanto aos fatos da conquista. Se o Caribe e a América Central foram conquistados em poucos anos, e o México e o Peru em algumas décadas, a terra de Santa Cruz seria conquistada num longo processo de lutas e tropelias que haveria de arrastar-se por mais de século e meio. Em 1497-1498, obcecados pela visão do ouro que acreditavam próximo, os conquistadores espanhóis devastaram as populações indígenas de São Domingo, Cuba e outras ilhas do Caribe. As vitórias de Cortés na Nova Espanha (México), em 1519-1520, foram das mais rápidas e violentas de toda a colonização ibero-americana. Foram ainda mais violentas as conquistas de Francisco Pizarro, que, tendo começado sua aventura em 1525, retomou-a dez anos depois, para ver consolidado o domínio espanhol no Peru, em 1541, ano de sua morte. Do Peru ficou memória ainda mais terrível do que a do México: não apenas os excessos de violência contra os índios, mas também entre os partidários de Francisco Pizarro e Diego de Almagro (1475-1538). O descobrimento e a conquista do Brasil teve algo de uma discrição, de uma calculada obscuridade, que atendia às conveniências da Coroa portuguesa e tornou difícil, aos cronistas e historiadores, definir em pessoas os emblemas da conquista lusa na América. Diferente de Colombo, Cortés e Pizarro, o descobridor oficial do Brasil, Pedro Álvares Cabral, não acrescentou nenhum significado pessoal
apreciável à grandeza do descobrimento de um território que já havia sido descoberto por outros. E mesmo estes, entre os quais o português Duarte Pacheco Pereira, ficaram nas sombras por muito tempo. Mesmo a Carta de Pero Vaz de Caminha (1437-1500), o "escrivão da armada" de Cabral, ficou mais de século nos arquivos. Quanto à conquista do território, teve a participação, entre outros, de muitos capitães-donatários, alguns capitães-governadores, dezenas de bandeirantes. Em vez de personagens que se erguessem às alturas dos mitos, os nomes dos muitos conquistadores do Brasil valem, sobretudo, como exemplos de tipos sociais e políticos. A figura do conquistador da terra de Santa Cruz desdobrou-se em figuras diversas, que se confundiram na imagem genérica do povoador. Foi um fidalgo ou um membro da pequena nobreza, embora possa ter sido, e o foi com freqüência, um degredado, ou um judeu ("cristão-novo"), às vezes também gente comum do povo. Mais tarde foi também um mameluco, mistura de português e índio, da qual saíram vários bandeirantes, no mais das vezes um aventureiro ou um guerreiro. Havia também o jesuíta, representante da Contra-Reforma e crítico da escravização dos índios, mas que foi também um conquistador – de almas ou, como foram às vezes acusados, de terras. Os índios, evidentemente, entraram na empreitada a contragosto, como força de trabalho, mas também como combatentes, aliados ou adversários dos portugueses. Os negros, que muitos chamavam na época de "negros da Guiné", estiveram também desde o começo e, como os índios, acabariam por se firmar como condição da existência e da individualidade cultural do novo país.
Primeiras impressões dos conquistadores Além da conhecida circunstância de que os espanhóis encontraram sinais de ouro logo após a chegada ao Novo Mundo, ao passo que os portugueses levaram quase dois séculos para descobrir as minas, há uma outra diferença importante a mencionar. Os espanhóis tiveram que se enfrentar com os astecas e os incas, impérios indígenas que destruíram em guerras que, em alguns episódios, tomaram dimensões de genocídio. No caso do Brasil, em vez de impérios, os portugueses encontraram inúmeros grupos indígenas espalhados pela costa, assim como pelas terras interiores que ousaram atingir. As primeiras impressões do paraíso que os europeus haviam sonhado em algum recanto de suas mentes medievais podiam ser também sinais dos infernos que se vislumbravam na viagem cheia de riscos, de que está repleta a literatura dos naufrágios, tão comuns naqueles tempos. No caso da terra de Santa Cruz, os primeiros aventureiros – especialmente portugueses e franceses – concentraram-se
na costa atlântica, onde se dedicavam à extração do pau-brasil, já refeitos dos sustos da viagem, mas advertidos sobre os perigos de se afastar das pequenas e precárias povoações da praia. Um historiador disse que as florestas que as circundavam tinham para os portugueses algo de parecido com o mar-oceano: eram uma assustadora mas fascinante promessa de riquezas, exacerbadas nas mentes européias impregnadas de mitos. Vale lembrar, a propósito, algumas anotações célebres de Hernán Cortés antes da tomada de Tenochtitlán, hoje Cidade do México. Foram escritas cerca de vinte anos depois da chegada de Colombo a Santo Domingo e do desembarque de Pedro Álvares Cabral nas costas da Bahia. Em carta dirigida ao imperador Carlos V, Cortés se derramava em palavras de admiração sobre a cidade e suas "coisas estranhas e maravilhosas". "É uma cidade tão grande quanto Sevilha e Córdoba". Admirava-se Cortés "do senhorio e serviço deste Mutezuma (ou Montezuma), senhor dela, e dos ritos e costumes que tem esta gente". Admirava-se também de que fora recebido pelo imperador dos astecas acompanhado de "duzentos senhores, todos descalços e vestidos" com roupas "de aparência muito rica".5 As primeiras impressões do conquistador sugerem algo sobre a importância das populações indígenas, de um modo que se desconhece entre os conquistadores portugueses.6 Assim como Pizarro diante dos incas, Cortés viu nos astecas um império. Era um povo organizado hierarquicamente entre nobres e gente comum, apoiado num sistema de dominação sobre povos vizinhos. Diferentes dos índios brasileiros, os astecas se achavam entre as poucas culturas indígenas da América com escrita própria. Eram também dotados de uma enorme capacidade de violência, praticando sacrifícios humanos em cerimônias rituais que podiam atingir centenas, em alguns casos milhares de vítimas, e que ocorriam em especial em situações de guerra, algumas das quais provocadas com a finalidade, precisamente, de propiciar sacrifícios. Ressentidos contra a dominação dos astecas, que freqüentemente os escolhiam como vítimas para tais cerimônias, alguns dentre os povos vizinhos aliaram-se aos espanhóis para derrubá-los.7 Os astecas eram, além disso, uma cultura impregnada de mitos que explicavam a formação da humanidade por meio de ciclos de nascimento e morte. Esses mitos lhes permitiram interpretar a chegada dos espanhóis como algo de inevitável. Cortés relata que Montezuma (1466-1520?) lhe disse que "nem eu nem todos os que nesta terra habitamos somos naturais dela, mas estrangeiros"; e que os que tinham ido embora voltariam, "deveriam vir subjugar esta terra e a nós como seus vassalos". Eis aqui talvez a parte mais significativa das estranhas palavras do imperador asteca: "e segundo a parte que vós dizeis (...) desse grande senhor ou rei que para aqui vos enviou, acreditamos e temos por certo (que) ele seja o nosso senhor natural (...); e,
portanto, estejais certo de que o obedeceremos e o teremos por senhor. (...) Aquilo que o senhor mandar segundo vossa vontade (...) será obedecido e feito". Evidentemente, o encontro entre Cortés e Montezuma não ficou apenas nas palavras. A guerra do lado espanhol se iniciara já no caminho para Tenochtitlán. Antes de chegar à capital do império asteca, Cortés passou pela província de Tascaltecal (hoje Tiascala), onde relata que havia uma cidade "muito maior e mais forte que Granada". Aí deu combate ao que suspeitava ser uma conspiração dos índios: "Em duas horas matamos mais de três mil índios". 8 A guerra continuaria depois da chegada de Cortés a Tenochtitlán, e alcançaria as proporções de um verdadeiro genocídio. Como entender que algumas centenas de espanhóis tenham sido capazes de derrotar milhares e milhares de índios? A explicação de um fato tão surpreendente tem a ver com técnicas e estratégias militares, mas, sobretudo, com a cultura. Além da circunstância de que os espanhóis se serviam de armas de fogo e cavalos, que os índios não conheciam, agregue-se um elemento cultural decisivo: os astecas acreditavam que os espanhóis, mais do que figuras admiráveis e poderosas, seriam deuses que chegavam para o início de um novo ciclo da humanidade. Suas crenças preparavam-nos para a derrota e a submissão. Anunciavam seu próprio fim.
Fascínio e medo O exemplo do México sugere uma pergunta sobre o Brasil. Se os espanhóis foram tão rápidos na conquista, por que os portugueses foram tão lentos? Talvez a resposta a essa pergunta se torne mais clara se revisarmos outras impressões européias sobre o Novo Mundo. Na Carta de Pero Vaz de Caminha, que passou à história como uma espécie de "certidão de nascimento do Brasil", quase tudo o que diz o "escrivão da armada" é prenúncio do que haveria de vir. O anúncio de Caminha ao rei de Portugal de que não vira nem ouro nem prata no novo território era sem dúvida uma triste notícia, mas não desanimou o escrivão quanto às convicções cristãs que também inspiravam os objetivos da viagem de Cabral, como de praxe nas viagens daquele tempo. Embora não ofereça o escrivão traços do misticismo fervoroso de Cortés ou Colombo, menciona ao rei sua convicção no "acrescentamento da nossa fé". Os índios, agrega, parecem-lhe "de tal inocência que, se nós entendêssemos a sua fala e eles a nossa, seriam logo cristãos, visto que não têm nem entendem crença alguma". E depois de elogiar as bondades naturais da terra, suas matas, suas águas, diz: "contudo, o melhor fruto que dela se pode tirar parece-me que será salvar esta gente. E esta deve ser a principal semente que Vossa Alteza em ela deve lançar".
Nesse primeiro relato da conquista portuguesa há sinais de convivência e futura amizade, assim como das violências que deveriam vir entre portugueses e índios. Por exemplo, na missa à qual todos compareceram: "Ali estiveram conosco (...) perto de cinqüenta ou sessenta deles (índios), assentados todos de joelho assim como nós". Caminha menciona também a troca de presentes e bugigangas, e deixa escapar frases que denotam um olhar cobiçoso em face das belezas das índias. Uma dessas "era tão bem feita e tão redonda, e sua vergonha tão graciosa que a muitas mulheres de nossa terra, vendo-lhe tais feições envergonhara, por não terem as suas como ela". O escrivão nada omite, nem mesmo a possibilidade da violência. Esta não se concretizou na chegada, mas estava implícita na idéia de levarem alguns índios à força quando as naus voltassem a Portugal. E se confirmou no temor dos degredados, obrigados a ficar em terra quando Cabral decidiu prosseguir viagem. Os infelizes "começaram a chorar, e foram animados pelos naturais do país que mostravam ter piedade deles".9 No alvorecer do século XVI, as realidades encontradas por portugueses, espanhóis, italianos e europeus em geral podiam ser diferentes, mas suas maneiras de ver eram muito semelhantes. Assim como eram semelhantes entre si, os europeus pareciam tentados no primeiro instante de sua aproximação a ver como semelhantes também os índios. Parecia tamanha a dificuldade que sentiam em aceitar pacificamente as diferenças entre seres humanos que preferiam, num primeiro momento, iludir-se quanto às semelhanças. Algo desse sentimento, manifesto na visão inicial e superficial dos costumes religiosos dos índios "brasis", vinha das Índias, onde os portugueses acreditaram encontrar na semelhança de alguns rituais das gentes conquistadas um povo de religião cristã. Também foi assim no Brasil, até mesmo entre os jesuítas, que se apoiaram em distantes semelhanças de crenças para estimular práticas de sincretismo como forma de aproximação com os índios. Havia fascinação e medo nesse primeiro encontro da cultura européia com as culturas nativas. Os lusos, embora fascinados com a beleza das terras, das árvores, das águas e, sobretudo, das índias, temiam, por certo, os riscos da conquista que já se anunciavam. É assim que, relendo hoje a "Carta do Achamento do Brasil", cabe perguntar como seria a descrição do primeiro encontro se houvesse um "escrivão" do lado dos índios. Assim como os portugueses, alguns deles ainda hoje orgulhosos de uma li bido que lhes deu fama, admiraram a beleza morena das índias, é bem possível que tivéssemos, nas notas do imaginário "escrivão" indígena, sinais de um fascínio pela carne branca de futuras cerimônias antropofágicas. Nesse ponto, a diferença entre os índios "brasis" e os astecas estaria na quantidade de sacrifícios, lá muito maior e em
cenários mais impressionantes. Como no México dos astecas, também nas terras de Santa Cruz nem sempre era fácil distinguir entre a antropofagia ritual e o canibalismo. Américo Vespúcio (1454-1512) também se entusiasmou com os índios: "se fossem vestidos, seriam brancos como nós". A cor da pele pareceu ao florentino um sinal de igualdade, mas ele menciona diferenças que deixam pressentir o temor que sentia. "Eles são mui leves para caminhar e nadar, tanto os homens como as mulheres (...) e nisso eles têm grande vantagem sobre nós, cristãos". São diferenças que sugerem a possibilidade da violência: "Eles estão acostumados à guerra, que fazem a povos que não são de sua língua, mui cruelmente, sem garantir a vida a ninguém, exceto quando querem reservar (o prisioneiro) para maior sofrimento". 10 Jean de Lery observa que os índios que conheceu não demoraram a perder o medo dos arcabuzes. E que eles "diziam, aliás com razão, que atiravam mais depressa seis flechas do que nós um tiro de arcabuz"; por mais que se resguardassem com "cabeções, saias de malha e outras armaduras", os índios "nos transpassariam o corpo com as suas flechas tão bem como nós o faríamos com um tiro de arcabuz".11 Observações como estas, associando as "bondades" dos índios às semelhanças com os cristãos e as diferenças à possibilidade da violência, logo se tornariam comuns entre os europeus. Não é difícil perceber em meio a tais observações uma ilusão arrogante quanto à capacidade européia de persuasão e de domínio. Na primeira aproximação dos europeus com as culturas indígenas havia algo do fascínio que construiu as utopias européias do "bom selvagem", muitas delas vindas da influência dos textos de Vespúcio, de larga divulgação na Europa. E que, em meio à crendice européia, tão ironizada por Rabelais, beneficiavam-se de uma "visão do paraíso" exemplificada em mitos de herança antiga que percorriam a Idade Média e faziam parte da memória cultural dos navegadores e dos primeiros conquistadores.12 Cristóvão Colombo, Almirante do Mar-Oceano, já em 1498, antes de Cortés, Caminha e Vespúcio, relatava em carta ao rei de Espanha sua viagem às Antilhas. Dando mais um exemplo de como a cor da pele dos índios impressionara a todos, dizia que eles eram "de boa figura e não negros, senão mais brancos que os outros que eu vi nas Índias". Desde o início da conquista a idealização do índio americano pareceria ter algo a ver com uma repulsa dos brancos pela pele escura que haviam visto nas Índias e, mais ainda, pela pele do negro importado da África, que as cidades e portos de Portugal e Espanha conheciam desde o século XV. Colombo coincide também com Caminha ao ver os índios "de lindos gestos e formosos corpos, com os cabelos cortados como se usa em Castela". O calvinista Jean de Lery, que esteve em 1557 com Villegagnon, na Guanabara, e cujas anotações estão longe de idealizar os índios, observa que "quanto à sua cor natural, apesar da região quente
em que habitam, não são negros; são apenas morenos como os espanhóis e os provençais".13 É certo, porém, que o Almirante também estava de olho no ouro, e também temeroso da violência: "Quando viram que (eu) não atendia ao seu pedido (para que eu descesse à terra) vieram à nave em numerosas canoas e muitos traziam peças de ouro ao pescoço e algumas pérolas atadas aos braços. (...) Procurei com empenho saber onde as achavam; disseram-me que ali e na parte norte daquela terra". Uma vez mais, porém, a advertência sobre os riscos: os índios aconselharam Colombo a não ir a essa parte norte porque ali "se comiam homens". Colombo, diferente de Caminha, não aconselhava nessa carta ao rei a evangelização, mas pode-se perceber nas entrelinhas que ele era de uma religiosidade mais intensa do que a do português. Acreditava navegar "com a ajuda da Santíssima Trindade" e agradecia a Deus quando encontrava terra. É evidente que de convicções religiosas tão profundas algo haveria de sobrar para a salvação das pobres almas indígenas. Caminha tinha o bom senso português de reconhecer que chegara a um lugar muito bonito, mas não ia ao extremo de dizer que chegara ao paraíso. Colombo, um genovês talvez seduzido pelos entusiasmos do misticismo espanhol, estava certo de que chegara ao paraíso. Dizia haver encontrado um rio e um lago "tão grande que se pode chamar um mar", porque "desta maneira se chama o da Galiléia e o Morto". Mais adiante afirmava: "eu tenho bem firme em minha alma que ali no lugar que mencionei, na Terra da Graça, se acha o Paraíso Terrestre".
Índios: os amigos e os inimigos A última das injustiças que a história reservou aos índios no Brasil é ter deixado nos brasileiros a ilusão de que esses seus antepassados foram fáceis de enganar, corromper e dominar. Essa ilusão quanto à capacidade européia de persuasão e domínio se manifesta desde os primeiros encontros. Pero Vaz de Caminha estava convencido de que os índios não tinham nenhuma crença, e o padre Manuel da Nóbrega chegou a afirmar que os índios "em cousa nenhuma crêm e estão papel branco para neles escrever à vontade".14 Uma convicção que, bem cedo, levou o grande jesuíta a decepções. Algo dessa visão negativa dos índios ficou na memória brasileira, misturada com a imagem do "bom selvagem", com a qual tem, no fim das contas, alguns pontos de contato. É a visão do índio ingênuo, passivo, facilmente moldável. Ainda hoje são poucos os brasileiros que se dispõem a reconhecer que os índios não foram apenas vítimas, mas também protagonistas da colonização, na guerra como na miscigenação racial e cultural. Uma das razões que explicam que a conquista portuguesa na América tenha
tomado tanto tempo é de ordem militar. É que, diferentes dos astecas e dos incas, os índios "brasis" não tinham cidades. Viviam em tabas, ou seja, em pequenas aldeias, formadas por choças, cabanas construídas com troncos e galhos de árvores, cobertos com folhas, palhas e ramos de palmeiras e que abrigavam algumas dezenas de pessoas. Não tinham uma hierarquia social, e suas formas de liderança eram muito rudimentares. Viviam dispersos em pequenas tribos, muitas das quais mantinham contato entre si, entrando freqüentemente em disputas guerreiras, mas nenhuma delas com a possibilidade de criar um império. Alguns grupos do interior, ainda mais primitivos do que os da costa, viviam em buracos e cavernas nos morros, circulando nômades pelos sertões. Vivendo dispersos num vasto território, os índios obrigavam os portugueses, quando as circunstâncias os levavam à guerra, a combates na selva, que os nativos conheciam como a palma da mão. Américo Vespúcio já havia pressentido essa possibilidade nos seus comentários sobre a leveza dos índios, "no caminhar e nadar (...) que nisso levam vantagem sobre nós". Quando a circunstância se apresentava, eles impunham, tanto a portugueses quanto a franceses, uma guerra com armas leves, diferente das táticas de combate às quais os europeus estavam habituados. Quando guerreavam eram de uma ferocidade que Lery descreve com admiração: "esses americanos são tão ferozes e encarniçados em suas guerras que, enquanto podem mover braços e pernas, combatem sem recuar nem voltar as costas".15 De um modo ou de outro, o certo é que no Brasil – ao contrário das grandes batalhas que deram vitórias relativamente rápidas aos espanhóis do México e do Peru – os portugueses foram obrigados a muitas escaramuças e combates, na qual tiveram que submeter, um a um, ao longo de quase dois séculos, os diversos grupos hostis ou rebelados. 16 Também nesse sentido a conquista lusa da América tem algo de similar à Reconquista na Ibéria. Foi uma prolongada sucessão de combates entre povos de culturas diferentes que envolveu, em suas tréguas e intermitências, um processo complexo de miscigenação e adaptações culturais. Não se sabe ao certo qual o tamanho da população indígena do Brasil no século XVI. Alguns historiadores estimam que os portugueses encontraram aqui uma população de cerca de um milhão a cinco milhões de índios.17 O que se sabe com certeza é que muitos grupos que habitavam a costa tinham uma língua comum, o tupi-guarani. Com a contribuição dos jesuítas, o tupi-guarani veio a ser a "língua geral", um idioma de comunicação entre portugueses e índios, que, até o século XVIII, era ainda amplamente usado em alguns lugares – em São Paulo, por exemplo. Não obstante, mesmo os índios que podiam falar um idioma comum pertenciam a tribos diversas, que falavam idiomas diferentes, a maior parte espalhada pela costa,
desde o atual estado do Rio Grande do Norte até o litoral sul do atual estado de São Paulo, nos lugares onde se encontram hoje Cananéia e São Vicente. Em sua primeira tentativa de controle da costa, os portugueses os encontraram também ao norte, desde o litoral do Maranhão até a boca do Amazonas e, ao sul, até a entrada do rio da Prata. Como no México, onde Cortés fez alianças com alguns grupos indígenas para combater os astecas, também no Brasil os europeus aprenderam cedo a distinguir entre índios "amigos" e "inimigos". Um aprendizado que foi igualmente dos índios em relação aos europeus, entre os quais também distinguiam entre "amigos" e "inimigos". De modo geral, para os portugueses, os tupis eram amigos e os tapuias inimigos, ao passo que para os franceses ocorria o contrário. 18 Eram, porém, classificações genéricas que não esgotam a diversidade enorme dos grupos então existentes. Algumas dessas tribos eram recém-chegadas à costa, vindas de regiões do interior, num movimento migratório que resultou na expulsão de outros grupos. De qualquer modo, seja como "amigos" ou "inimigos", estariam todos destinados a tomar parte na história que começava. A distribuição dos lugares onde os portugueses se localizaram no litoral brasileiro do século XVI foi em grande parte uma expressão da distribuição geográfica de índios "amigos" e "inimigos". O historiador Jorge Couto afirma que, numa primeira fase, entre aqueles que permitiram o estabelecimento de núcleos lusos em seu território contaram-se os tupiniquins de São Vicente, de Ilhéus, de Porto Seguro, do Espírito Santo e de Piratininga, os potiguares de Itamaracá, os tupinambás da Bahia. Contrariamente, os caetés de Pernambuco e os tamoios da Guanabara opuseram-se, desde o início, à penetração portuguesa.19 Segundo Wehling, onde havia restos da dominação tapuia – sul da Bahia, Espírito Santo, interior do Rio de Janeiro, sul de São Vicente – o domínio português foi contido, ou estabelecido precariamente, "à custa de muito sangue". O mesmo ocorreu no Espírito Santo, com os goitacazes, e em Pernambuco, onde os cáceres hostilizavam os potiguares ao norte e os tupinambás ao sul. Daí para o sul, até São Vicente, dominavam os tupiniquins, que, na Bahia, entraram várias vezes em guerra com os tupinambás. Os portugueses não puderam ocupar regiões onde os franceses se aliavam a potiguares, caetés, tupinambás, tamoios.20 Os "naturais" eram muitos. Segundo uma idéia sinistra de Tomé de Souza, primeiro governador-geral do Brasil, eram tantos "que ainda que os cortassem em açougue nunca faltariam".21
A fixação no território
Se tudo foi lento na conquista da América portuguesa, à Coroa não faltou, porém, agilidade para reagir às circunstâncias. É significativo que, já em inícios de 1501, pouco depois da viagem de Cabral, D. Manuel tenha tomado decisões "para integrar funcionalmente os domínios do Novo Mundo no contexto do Império", propiciando viagens ao Brasil, entre a quais a de Gonçalo Coelho e a de Gaspar Lemos, de que participou Américo Vespúcio. 22 Das viagens portuguesas dos primeiros anos da colônia pode-se dizer o que se disse daquelas de descobrimento: "não se fizeram ao acaso", "foram precedidas de cuidada e prolongada preparação".23 Pode-se considerar que até mesmo a viagem de Cabral se inscreve nessa categoria. Visando consolidar a posse dos novos territórios, os planos da Coroa portuguesa levaram à fixação territorial no século XVI, ainda que limitada à "fixação litorânea", e no século XVII, à "expansão territorial".24 A viagem de Gonçalo Coelho era o começo de uma política de criação de feitorias e de pequenas povoações, quase sempre à beira do mar, "arranhando as terras ao longo do mar como caranguejos", na expressão sempre lembrada de frei Vicente do Salvador. Um historiador português registra a existência de portos e feitorias em Pernambuco (1502), Cabo Frio (1504), Porto Seguro (1503), São Vicente (1508) e Bahia (1509). Outros historiadores consideram que esses nomes ainda não seriam naqueles anos realidades definidas, mas sinais de pontos para ocupação futura. Os Wehling dizem que a expedição de Gaspar Lemos, logo depois da viagem de Cabral, aportou "no atual Rio Grande do Norte (...), navegou para o sul, dando nomes cristãos aos principais acidentes geográficos encontrados, de acordo com o calendário: cabos de São Roque e Santo Agostinho, rio São Francisco, baía de Todos os Santos, angra dos Reis, São Vicente. Foi ela também que descobriu o Rio de Janeiro, em 1° de janeiro de 1502. Provavelmente navegou ainda mais para o sul, até o rio da Prata".25 Parece não haver dúvidas, porém, de que em 1504 teve início o primeiro projeto de exploração da terra, em contrato concedido ao judeu Fernão de Noronha, que durou até 1512. Anote-se, en passant, que eventuais negócios da Coroa com judeus não impediam a fúria do anti-semitismo nessa esquina da história, encontrando-se ainda recémdefinida a condição dos "cristãos-novos". No mesmo ano desse contrato entre a Coroa e Fernão de Noronha, um ataque anti-semita nas ruas de Lisboa resultou na morte de centenas de judeus. A ambigüidade da Coroa diante dos judeus persistirá no século seguinte, não obstante as propostas em sentido contrário de Antonio Vieira. A posição da Coroa, resolvendo a ambigüidade criada por D. Manuel, só se resolverá no século XVIII, com Pombal, que decretará a igualdade de "cristãosnovos" e "cristãos velhos" e a liberdade dos índios. É certo, porém, que Portugal, assim como iniciou cedo a conquista, cedo se deu
conta da necessidade da colonização. Ainda pendentes das riquezas das Índias, os portugueses estavam obrigados a preservar as novas terras no Atlântico Sul como base de apoio para as naus que continuavam na busca dos caminhos do Oriente. Além disso, havia que fazer frente à constante ameaça de espanhóis e franceses visando tomar posse das terras que os lusos acreditavam ser suas. Como diz um historiador, "a crescente presença de franceses no Novo Mundo português e a penetração de castelhanos nos territórios austrais configuravam uma real ameaça para o domínio português do Brasil".26 Quanto aos franceses, basta mencionar que o rei Francisco I (1494-1547), da França, exigia ironicamente "que lhe mostrassem a cláusula do testamento de Adão que o excluía da partilha do Mundo", fazendo-a exclusividade de portugueses e espanhóis.27 Instalados na Guanabara em 1505 e logo depois expulsos, os franceses buscaram outras paragens, aportando em Pernambuco em 1531. Voltaram depois à Guanabara, em 1555, com Villegagnon, e fizeram ainda nova tentativa no Maranhão. Os ingleses ameaçavam ao norte, de olho na Amazônia. E os holandeses, já em fins do século XVI, atacavam na Bahia e em Pernambuco, que conquistarão na primeira metade do século seguinte. Desde os inícios do século XVI a política de ocupação do território espanhol haveria de estimular reações do lado português, que via sob ameaça seus próprios territórios. Em 1513, Vasco Núñez de Balboa (1475-1519) cruzou o istmo do Panamá por terra. Logo depois, em 1516, o português João Dias de Sólis, navegando sob bandeira de Castela, chegou ao Prata. Nesses mesmos anos, a Espanha acelerava a conquista, ocupando regiões do Caribe e depois o México e o Peru. A fundação de Buenos Aires é de 1536; a de Assunção, de 1537; Santiago do Chile e Lima foram fundadas em 1541; a descoberta da prata em Potosi é de 154546; criou-se o arcebispado em Lima em 1547; fundou-se Guairá em 1557, na região de Sete Quedas. A consolidação gradual dos espanhóis no rio da Prata, com a fundação de Assunção e Buenos Aires, prolongou a ameaça ao domínio português na região até o século XVIII. 28 Desde os primeiros anos do século XVI a Coroa portuguesa pôde perceber que a colonização se fazia obrigatória. O nome Brasil, em substituição a Santa Cruz, foi adotado em 1516, quando D. Manuel resolveu criar o sistema de "capitanias de mar e terra", o primeiro do gênero com o qual haveria de persistir no processo de colonização. (A mudança de nome provocou, em meados do século, protestos de João de Barros e Pero de Magalhães de Gândavo, que viam "obra do demônio" na substituição do símbolo da paixão e da redenção cristãs por um "pau que tinge panos".29 ) O rei enviou Cristóvão Jacques à Guanabara para "patrulhar a costa e fixar um núcleo de colonos", de onde se transferiu para Pernambuco, ali estabelecendo uma feitoria e, como era obrigatório, uma aliança com os índios, no
caso os tabajaras. Como também era obrigatório, dedicou-se ainda à procura dos metais preciosos, para o que recebeu, em 1521, apoio do rei para subir o rio Paraná em busca da prata nos Andes.30 D. João III, cujo reinado (1521-1557) coincide com o de Carlos V na Espanha (1516-1559), enviou em 1531 ao Brasil o capitão Martim Afonso de Souza (15001571). De origem nobre, amigo de infância do rei e primo do seu principal assessor, o capitão foi nomeado "governador da Terra do Brasil" com grandes objetivos e amplos poderes: "efetuar um aprofundado reconhecimento do litoral, do Amazonas ao Prata"; "proceder ao assentamento de padrões em locais estratégicos da 'Costa do Ouro e da Prata', apresar todos os navios franceses encontrados na 'Costa do PauBrasil'; procurar metais preciosos; efetuar experiências agronômicas e fundar povoações litorâneas".31 Tinha poderes "sobre todos os peões, índios ou escravos, (...) incluindo a aplicação de pena de morte e talhamento de membro". No caso de processos que envolvessem "pessoas de mor qualidade", limitar-se-ia a mandar prender os presumíveis culpados e a remetê-los para o reino. E tinha ainda poderes para "criar e prover tabeliães e oficiais de justiça, (...) nomear os oficiais necessários à 'governança da terra' (...) e distribuir terras em regime de sesmaria". [<<7]
Mapa do século XVI mostra as capitanias hereditárias.
Em sua curta permanência de dois anos na colônia, o jovem governador fundou São Vicente e depois Santo André, esta como ponta de lança para o interior. Fez mais: distribuiu cerca de cem sesmarias a personagens "entre os quais se contava um significativo número de nobres". Das experiências agronômicas realizadas, concluiu pela cana-de-açúcar em São Vicente, Bahia e Pernambuco, a exemplo do que já se havia feito na Madeira e em São Tomé. Além da cana-de-açúcar, começou a criação de gado vacum, eqüino e ovino.32
Um feudalismo colonial? Assim como as sesmarias concedidas por Martim Afonso beneficiaram figuras da pequena nobreza, também as capitanias, concedidas pelo monarca a partir do início do ano de 1530, tinham como beneficiários figuras pertencentes à nobreza de serviço, a maioria delas associada aos empreendimentos governamentais na Ásia. 33 Numa seqüência de ações e iniciativas em diversos momentos do século XVI, a persistência da Coroa na política de colonização por meio do sistema das capitanias se torna evidente na listagem das datas de doação – 1530: São Vicente; 1534: Porto Seguro, Rio Grande do Norte, Maranhão, Jurucuará, Ceará, Itamaracá, Santo Amaro, Pernambuco, Bahia; 1535: Ilhéus; 1557: Paraguassu; 1567: Rio de Janeiro; 1590: Sergipe.34 Em duas capitanias, São Vicente e Pernambuco, com "maior afluxo de investimentos conseguidos por seus donatários e o maior número de colonos (...) a colonização se consolidou desde os primeiros anos".35 Em outras cinco houve uma colonização apenas precária, entre as quais Itamaracá, Bahia e Porto Seguro. As capitanias eram concessões do poder público, buscando repetir sistema já utilizado na colonização da Madeira, em Porto Santo e nos Açores. Nas ilhas, como no Brasil, os donatários eram "homens do fim da Idade Média, ainda saturados das tradições aristocráticas".36 Segundo Oliveira Martins, "para a constituição política das colónias não havia nas idéias do tempo noções diversas das que no século anterior se tinham aplicado às ilhas atlânticas: isto é, o enfeudamento dos territórios". Ao fim da Idade Média, "a descoberta parecia atribuir um direito análogo ao direito da conquista nos tempos medievais".37 Segundo o historiador Vitorino Magalhães Godinho, as ilhas do Atlântico serviram "de verdadeiros laboratórios insulares" da colonização no Brasil.38 Sabe-se, porém, que o modelo era conhecido, de quase dois séculos antes, das ilhas do Atlântico, também no Alentejo e no Algarve, depois de essas regiões terem sido tomadas aos mouros.39 O mesmo método foi também experimentado em Cabo Verde e São Tomé. No caso do Brasil, porém, dado o alto grau de risco da empreitada, as concessões das capitanias envolviam "uma solução muito mais ampla de delegação de competências régias do que até então se havia verificado. Nem o Infante D. Henrique nem os seus herdeiros e sucessores, sendo membros da família real, beneficiaram, na qualidade de Grandes-Donatários dos arquipélagos da Madeira, dos Açores e de Cabo Verde, dos privilégios dispensados aos capitãesgovernadores do Brasil".40 Como observa Oliveira Marques, não obstante as modificações havidas ainda no período colonial, a distribuição de terras em capitanias sobreviveria até o presente "como base para os modernos estados litorâneos do Brasil". Embora tenha mudado
mais de uma vez nos séculos XVI e XVII, sob a pressão de interesses e circunstâncias da Coroa, dos donatários, dos ataques dos corsários e das relações, amistosas ou inamistosas, com os índios, o regime das capitanias permitiu ampliar e consolidar a presença portuguesa no Brasil. Na primeira metade do século XVI esta se estendeu de Itamaracá, no nordeste, a São Vicente, no sudeste, embora com importantes espaços desocupados, especialmente na Guanabara.
Colônia, índios e negros Assinala um historiador português que já na primeira metade do século XVI as capitanias criaram, considerada a presença dos índios, negros e europeus, o cenário no qual se esboçavam "os lineamentos da futura Nação".41 Em todo caso, o certo é que europeus, índios e negros, bem como a construção das vilas e cidades, a evangelização e a educação, eram temas que, além dos metais preciosos, apareciam por todos os ângulos de interesse da Coroa, da administração colonial e dos próprios colonos. Quanto aos índios, deve dizer algo das preocupações da Coroa o fato de que João III tenha enviado mensagem a Diogo Álvares, o Caramuru, para que assegurasse junto aos indígenas uma boa recepção ao primeiro Governador-Geral, Thomé de Souza.42 A mudança da administração colonial com a chegada, em 1549, de Tomé de Souza, introduzindo o sistema do governo-geral, foi uma resposta da Coroa a desordens, crimes, lutas a mão armada, dos capitães-donatários ou de seus lugarestenentes, "que no ultramar reproduziram, com uma cor nova, os fastos da história feudal européia". D. João III fora levado a pôr, ao lado dos capitães, um governador ou vice-rei, "do mesmo modo que também na Europa os monarcas tinham representado semelhante papel perante os seus barões". Aumentava assim a centralização do poder na colônia, que só no século XVIII alcançaria vitória sobre o particularismo feudal, pois só então "as idéias de soberania absoluta vingaram".43 A comitiva de Tomé de Souza, que entre suas funções incluía a inspeção das capitanias e o combate aos corsários, trazia muitos sinais de uma intenção duradoura de colonização: "elevado número de artífices (pedreiros, canteiros, carpinteiros, calafates, marceneiros, tanoeiros, serradores, ferreiros, fundidores, etc.), cerca de 600 colonos e homens de armas (...) e 400 degredados". 44 Tomé de Souza era incumbido ainda de dar apoio ao trabalho de evangelização a se iniciar: devia proibir que as aldeias de índios fossem "salteadas", evitar abusos contra os índios, fomentar a conversão dos nativos ao catolicismo, impedir a escravização dos conversos, favorecer os aliados (tupiniquins) e punir os que resistiam à colonização (tupinambás), criar feiras para trocas com os índios. Vinham também com o
governador criadores pecuaristas, entre os quais Garcia d'Ávila, que já no século XVI desempenhou importante papel na penetração territorial, recebendo críticas de Nóbrega, semelhante às que os jesuítas fariam aos bandeirantes.45 Também fazia parte da comitiva do governador um grupo de seis jesuítas, sob a chefia de Manuel da Nóbrega – que acompanhou, desde o início, a implantação da sede da colônia. Tomé de Souza começou seu governo criando uma nova estrutura administrativa e mudando o lugar em que se achava a cidade de Salvador, que devia servir-lhe de sede. Agora com maior preocupação defensiva, a nova cidade adquiria também "algumas inovações de cariz renascentista", por meio da "natureza geométrica de suas ruas e a criação de uma praça central em torno da qual se construíram os edifícios principais de planta retangular": edifícios para os órgãos oficiais, capela, cadeia, casernas, armazéns, ferrarias e habitações para os colonos.46 Nos primeiros tempos da colônia os índios eram necessários para quase tudo e por isso constituíam parte importante das preocupações da administração. Formavam a maior parcela da população colonial e deles dependia o trabalho da terra e a busca dos metais preciosos. Além disso, tanto participavam das entradas quanto podiam se colocar como obstáculos a elas. Desde os primeiros contatos, em São Vicente e na Bahia, os portugueses se valeram dos dois métodos possíveis para tratar os nativos: conviver com eles ou combatê-los. Mas mesmo em meio a muita violência não foram raros os gestos de boa amizade, com a ajuda de João Ramalho e Diogo Álvares. O irmão de Martim Afonso, Pero Lopes, levou consigo a Lisboa "quatro reis da terra do Brasil", que o rei de Portugal mandou "fossem bem tratados e vestidos de seda", e houve casos em que índios foram agraciados com títulos de nobreza. Esses gestos não impediam, porém, os "descimentos" de índios: desde Martim Afonso houve nos núcleos de São Vicente e Piratininga expedições ao interior para apresar índios, numa prática que se repetiu ao longo dos séculos XVI e XVII.47 Por outro lado, quando Martim Afonso mandou uma "bandeira" em busca dos rumos do império inca, seus homens foram trucidados pelos carijós.48 Tentativas semelhantes foram feitas por Tomé de Souza. Como poucos anos antes da instalação do governo-geral houvesse notícias da descoberta, pelos espanhóis, das minas de Potosi, o governador enviou expedições ao interior, nas áreas de Porto Seguro, Bahia e Sergipe, em busca de jazidas de ouro e prata.49 Além disso, a busca dos metais preciosos, o desbravamento de terras, a construção de fortificações e as acrescidas exigências de fornecimento de mantimentos de subsistência, a cultura da cana-de-açúcar etc. tornavam a utilização da mão-de-obra indígena ainda mais imprescindível. Tomé de Souza pôde contar com um apoio que faltou a Martim Afonso, o dos jesuítas, que, como já se disse, foram evangelizadores e, em muitos casos, críticos dos colonizadores, mas também, em muitos outros, seus parceiros.
Como a colonização dependia dos índios, eles se tornaram escravos dela. Inicialmente, portugueses e franceses obtinham escravos por meio do resgate dos chamados "índios de corda", capturados nos confrontos entre grupos rivais e que tradicionalmente se destinavam ao sacrifício em terreiro. Como a escravatura em larga escala para fins produtivos, embora praticada em comunidades indígenas sulamericanas, fosse desconhecida entre tupi-guaranis,50 recorria-se ao "salto", que consistia na armação de navios que percorriam a orla marítima para assaltar aldeias e capturar nativos, posteriormente vendidos como escravos. Os índios com freqüência reagiram a essas investidas destruindo fazendas e engenhos, atacando navios e povoações e produzindo surtos de resistência armada que afetaram a generalidade das capitanias. Esse quadro permaneceu praticamente o mesmo até o fim do século XVI. Além da escravidão dos indígenas, também a dos negros foi uma constante desde o início da colonização. Logo depois da instalação do governo-geral, Tomé de Souza estimulou a importação de africanos para trabalhar na capitania da Bahia, mantendo a utilização dos índios nas roças de mantimentos. 51 Em 1557 chegou à Bahia uma caravela oriunda de São Tomé, carregada de escravos. Em 1559 cada senhor de engenho foi autorizado a importar, mediante certidão passada pelo governador, até 120 escravos do Congo. Calcula-se que, por volta de 1570, alguns milhares de negros se encontrassem já integrados em atividades produtivas no Brasil.52 Segundo estimativas de um historiador francês, teriam desembarcado na colônia, nos últimos três decênios do século XVI, cerca de cinqüenta mil negros.53 Na Bahia, tornou-se regular a importação de escravos negros, gerando o aparecimento de negociantes especializados no tráfico.
Cidades, vilas e sertões Quando Mem de Sá chegou ao Brasil para assumir o governo-geral, em 1558, informou ao soberano de Portugal ter encontrado "toda a terra em guerra, sem os homens ousarem fazer suas fazendas senão ao redor da cidade".54 As poucas povoações e um número ainda menor de cidades eram pequenas ilhas num mar de florestas dominadas pelos índios. Os jesuítas participavam de ações conjuntas com a administração colonial, especialmente quando os interesses desta coincidissem com os da evangelização tridentina. No início do governo de Mem de Sá a maior preocupação era expulsar os franceses, sediados na Guanabara desde 1553. Mem de Sá derrotou-os em 1560, juntando portugueses e índios da Bahia e de Ilhéus, Porto Seguro, Espírito Santo e São Vicente, o que quase conduziu a uma ruptura nas relações entre Portugal e França. Não era, portanto, sem razão o temor do novo
governador ao chegar a uma terra "toda em guerra". Embora com a colonização aumentasse no século XVI o número das vilas e cidades, a agricultura, que era o principal da colônia, realizava-se, em geral, nas fazendas próximas dos pequenos agrupamentos urbanos da época. Em fins do século XVI existiam no Brasil apenas três cidades: Salvador (fundada em 1549), Rio de Janeiro (1565) e Filipéia (1584), hoje João Pessoa, na Paraíba. As principais vilas eram Conceição (Itamaracá), Olinda (Pernambuco), Espírito Santo, São Vicente e São Paulo de Piratininga. A vida rural predominava, poucas centenas de metros separavam as fazendas mais próximas dos núcleos urbanos, que, como resultado do impulso da Coroa para garantir a posse do território, surgiam de atos políticos mais do que da vontade social. Tanto quanto as vilas, para melhor defesa, as cidades deveriam ficar cercadas por muros, como ocorria na Idade Média.55 A colônia foi assim se construindo pedaço a pedaço, mas algumas cidades do século XVI se constituíram em pontos estratégicos de um projeto colonial mais amplo. Em 1553 já se exportava, de São Vicente, algodão e açúcar, além de paubrasil. A cidade do Rio de Janeiro tornou-se escala das frotas que voltavam para a Espanha, além de ponto de apoio para a defesa de Piratininga e São Vicente. Ali se trocava prata peruana por produtos locais, e mantinham contatos os comerciantes espanhóis que faziam do Rio de Janeiro seu principal ponto de intercâmbio. Além da rota para Buenos Aires, Assunção e Peru, o Rio de Janeiro se prestava também a servir como eixo do comércio com Angola. O comércio que cresceu nos anos seguintes também em Pernambuco e na Bahia "era partilhado pelos povoadores e pela Coroa", que "controlava o monopólio do pau-brasil, do tráfico de escravos, das especiarias, junto com um quinto de todos os metais e pedras preciosas", e fornecia "instrumentos, materiais, e suprimentos regulares", apoiando o estabelecimento dos engenhos de açúcar".56 Como diz Oliveira Marques, ao retirar dos povoadores as principais e mais fáceis fontes de lucro, a Coroa na prática os compelia a desenvolver a agricultura, caminho para a indústria do açúcar, considerado o melhor ponto de partida para uma ocupação lucrativa da terra.57 No primeiro século da vida colonial reproduzia-se, embora de modo "imperfeito", a sociedade de ordens típica da Idade Média. Dizem os historiadores que a mobilidade social era mais intensa na colônia do que no reino. Dizem também que a estratificação social mostrava-se mais diferenciada em Pernambuco e na Bahia, possibilitada pelas facilidades de acesso à terra e pela obtenção de escravos, africanos ou indígenas. Mas os grandes proprietários constituíam uma nobreza de fato.58 Não são poucos os nomes da nobreza entre os que receberam as sesmarias, instituição da tradição jurídica portuguesa sobre a qual se assentaria o regime da
propriedade da terra na colônia.59 Mas houve também, por meio da propriedade da terra, a mobilidade ascendente de muitos judeus e degredados, uma vez que se entendia que o Brasil seria terra adequada para "couto e homizio garantido a todos os criminosos que aí quisessem ir morar, com a exceção única dos réus de heresia, traição, sodomia e moeda falsa". 60 Mobilidade que pode ter alcançado também alguns eleitos entre a gente comum do povo, trazida às centenas pelos donatários, em diversas oportunidades, nos séculos XVI e XVII.
1. A frase em latim ("Não existe pecado abaixo do Equador") é atribuída ao escritor e poeta holandês Caspar van Baerle (Gaspar Barléus) (1584-1648). Barléus escreveu uma biografia de Maurício de Nassau. 2. F UENTES, op. cit., p. 16. 3. U NAMUNO, Miguel de. Del sentimiento tragico de la vida. Madrid: Akal Editor, 1983. p. 343, 348 e 350. 4. Convém lembrar que Octavio Paz, preocupado em tratar a ferida, recomenda restituir o conquistador "com toda a sua grandeza e todos os seus defeitos à História", para que se converta em personagem histórico, isto é, humano. É claro que o argumento de Paz diz respeito à identidade cultural nacional do México. Ele entende que, depois da crítica ao mito, "poderemos os mexicanos ver-nos com um olhar claro, generoso e sereno". PAZ, Octavio. Hernán Cortés: Exorcismo y Liberación. CEDECH, Santiago, 1985. 5. CORTÉS, Hernán. Segunda Carta. In: O fim de Montezuma; relatos da conquista do México. Porto Alegre: L&PM, 1997. p. 34 e seguintes. 6. Tenochtitlán (ou Temixtitlán) foi fundada em 1385. Tinha cerca de duzentos mil habitantes na passagem do século XV para o XVI. Segundo os historiadores, era na época maior que qualquer cidade européia. No Peru, a cidade dos incas estava no mesmo local onde está hoje Cuzco, a bela cidade colonial espanhola do altiplano. Francisco Pizarro a destruiu para substituí-la por Lima, na costa, "la ciudad de los reyes". 7. Ver: KANDELL, Jonathan. La capital, the biography of Mexico City. New York: Random House, 1988. 8. Cf. CORTÉS, op. cit., p. 21 e seguintes. 9. Cf. COUTO, op. cit., p. 95. 10. VESPÚCIO , Américo. Relato da primeira viagem, 1497. Carta a Piero Soderini, gonfaloneiro da República de Florença. (Publicado na Internet.) 11. LERY, Jean de. Viagem à terra do Brasil. São Paulo: Itatiaia/Edusp, 1980. p. 187. 12. Ver HOLANDA, op. cit. 13. LERY, op. cit., p. 112. 14. NÓBREGA, Manuel da. Cartas do Brasil. Belo Horizonte/São Paulo: Itatiaia/Edusp, 1988. p. 125. 15. LERY, op. cit., p. 189. 16. Uma boa d escrição das guerras indígenas pode ser encontrada em COUTO, op. cit., p. 98 e seguintes. 17. Ibidem, p. 62. 18. WEHLING, op. cit., p. 85-7. Gabriel Soares de Sousa, autor do Tratado descritivo do Brasil (1587), senhor de engenho e cronista da época, via nos tupiniquins amigos dos portugueses, considerava os goitacazes como bárbaros, cruéis e traiçoeiros, e os aimorés "tão selvagens que, dos outros bárbaros, são havidos por mais bárbaros". 19. COUTO, op. cit., p. 262. 20. Ibidem, p. 214. 21. A ZEVEDO, João Lucio de. Os jesuítas no Grão-Pará. Del sentimiento tragico de la vida. Madrid: Akal
Editor, 1983. Lisboa: Tavares Cardoso & Irmão, 1900, reedição da Secult, Governo do Pará, 1999. p. 129. 22. Cf. COUTO, op. cit., p. 186-195, e W EHLING, op. cit., p. 44-45. 23. Cf. ibidem, p. 147. 24. WEHLING, op. cit., p. 44-5. Segundo os Wehling, a "fixação territorial", no século XVI, é seguida da "expansão territorial", no século XVII, esta, sobretudo, como resultado das investidas dos bandeirantes, que viviam da caça e apresamento de índios e da busca dos caminhos dos metais preciosos, que os levou a atravessar mais de uma vez a incerta linha das Tordesilhas. 25. Ibidem, p. 44-45. 26. COUTO, op. cit., p. 200. 27. Ibidem, p. 209. 28. WEHLING, op. cit., p.73. 29. GÂNDAVO, Pero de Magalhães. História da Província Santa Cruz. Capítulo 1, De como se descobrio esta província, e a razam por que se deve chamar Santa Cruz e não Brasil. Lisboa: Assírio e Alvim, 2004. p. 44. 30. COUTO, op. cit., p. 195, 201, 210 e 217. 31. Ibidem, p. 210-211. 32. Ibidem, p. 216-217. 33. Ver W EHLING, op. cit., p. 66 e seguintes. Ver também M ARTINS, Oliveira. O Brasil e as colónias portuguesas. Lisboa: Guimarães & Cia, 1979. p. 21. 34. Ibidem. As datas acima referem-se ao ano da doação da mencionada capitania. Viriam outras capitanias no século XVII: 1615: Grão-Pará, Cabo Frio; 1620: São Pedro d'El Rei, Cuman; 1633: Camutá; 1637: Cabo do Norte; 1665: Marajó; 1674: Paraíba do Sul. 35. WEHLING, op. cit., p. 73. 36. MARTINS, O Brasil e as colónias portuguesas, cit., p. 15. 37. Ibidem, p. 15-16. 38. COUTO, op. cit., p. 284. 39. BUENO, op. cit., p. 10-11. 40. COUTO, op. cit., p. 222. 41. MARTINS, O Brasil e as colónias portuguesas, cit., p. 25. 42. Diogo Álvares, denominado o Caramuru, era um náufrago de navio que se aproximara da Bahia em 1510, tendo sido poupado pelos índios. De João Ramalho, o outro português dos primeiros anos da colônia, consta que já vivia entre os índios havia vinte anos quando Martin Afonso chegou a São Vicente. 43. MARTINS, O Brasil e as colónias portuguesas, cit., p. 21-2. 44. COUTO, op. cit., p. 232. 45. WEHLING, op. cit., p. 77. 46. COUTO, op. cit., p. 240. 47. Ibidem, p. 214. 48. Ibidem, p. 214. 49. Ibidem, p. 241. 50. Ibidem, p. 263. 51. Ibidem, p. 306. 52. Ibidem, p. 304. 53. Ibidem, p. 305. 54. WEHLING, op. cit., p. 80-81. 55. Ibidem, p. 80-81. 56. MARQUES, op. cit., p. 253-254. 57. Ibidem.
58. COUTO, op. cit., p. 97. Refere-se esse autor ao fenômeno da aristocratização dos proprietários da terra, da qual falarão Oliveira Viana, Gilberto Freyre e Caio Prado Jr., nas primeiras décadas do século XX. 59. WEHLING, op. cit., p. 80. 60. MARTINS, O Brasil e as colónias portuguesas, cit., p. 18-21.
PARTE II BRASIL COLÔNIA
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Vila de São Paulo: estratégica para a conquista bandeirante e para a evangelização jesuítica.
CAPÍTULO 4
SÉCULO XVI JESUÍTAS E COLONOS: TEMPOS DE MANUEL DA NÓBREGA
Nesta terra, todos ou a maior parte dos homens têm a consciência pesada por causa dos escravos que possuem contra a razão. MANUEL DA NÓBREGA
A colonização do Brasil começou quando o Império de Portugal nas Índias se desmantelava sob os ataques dos ingleses e dos holandeses, e na metrópole se iniciava um período de marasmo de quase dois séculos.1 Iniciada em circunstâncias difíceis, a colonização cresceu no período da União Ibérica (1580-1640), não obstante a submissão da Coroa portuguesa à Coroa espanhola e a intensidade dos ataques dos corsários ao território português da América. Apesar da decadência metropolitana, aumentaram as entradas e bandeiras rumo ao interior, ultrapassando os incertos limites do meridiano das Tordesilhas. Quando, em 1640, Portugal recuperou a independência, seus nacionais já haviam penetrado no rio Amazonas e alcançado o território do atual estado do Rio Grande do Sul. A colonização se implantara no litoral e a ocupação territorial se expandia em direção ao interior e ao litoral norte.2 Os jesuítas foram protagonistas desses séculos da decadência metropolitana lusa e da conquista colonial da América marcando a história brasileira em torno de uma questão central: o uso do trabalho dos índios.3 Presentes e atuantes no território recém-conquistado, suas memórias e crônicas dão testemunho dos primeiros tempos da formação da nova sociedade. Como já se disse, a história da Companhia de Jesus no Brasil se confunde com grande parte da história da colônia, pretendendo haver deixado testemunhos "essenciais à ética brasileira". Diz um membro da Companhia que seus companheiros se bateram por "três ideais que são o fundamento mesmo da nacionalidade, que nos desejaram e ajudaram a fundar, no que puderam: boa imigração européia, liberdade dos naturais, identidade moral de todos".4 De suas figuras representativas, encontram-se, entre as de maior expressão, o padre Manuel da Nóbrega, no século XVI, e o padre Antônio Vieira, no século XVII. Na história dos jesuítas, Manuel da Nóbrega é, por todos os títulos, a figura do
pioneiro. Um dos seus feitos, logo ao chegar com Tomé de Souza, foi a construção do "primeiro templo da Companhia de Jesus no continente americano".5 Diz o padre Serafim Leite: "Enquanto os Portugueses edificavam as outras obras da nova capital do Brasil, ergueu Nóbrega a Igreja de Nossa Senhora da Ajuda, construindo-a os esuítas por suas mãos, indo ao mato buscar a madeira e fazendo as taipas, e não tardaram as cerimônias públicas. A 20 de junho já se celebra o Corpo de Deus. Festas de igreja e de arraial, procissão solene, salvas de artilharia, ruas enramadas e danças e invenções à maneira de Portugal". Um mês depois, outra festa, a do Anjo Custódio: missa solene celebrada por Nóbrega, canto coral e procissão "com grande música a que respondiam as trombetas".6 Até sua expulsão, no século XVIII, os jesuítas foram aliados diretos do poder real e a maior influência cultural do reino e de sua colônia americana. A partir do surgimento da Companhia eles se anteciparam às mudanças que deveriam conferir ao Portugal pós-União Ibérica as feições de um reino teocrático. Desde D. João III até D. José I, atuaram, sobretudo, na evangelização e no plano educacional, sempre "na linha de uma empresa renovada de sobrevivência medieval".7 Foram, porém, mais que missionários da Contra-Reforma; eram "colonos, caçadores de escravos, lavradores, artífices, mestres, historiadores, geógrafos, negociantes, estadistas e generais. Criaram as reduções e as fazendas. (...) Erguiam templos e edificavam povoações".8 Como já se observou, foram evangelizadores e colonizadores.
Os "companheiros de Jesus" É ressaltada a relevância dos jesuítas no Brasil, quando comparado com o México e o Peru. Eles chegaram ao Brasil dez anos depois de formada a Companhia de Jesus e apenas após três anos depois do início do Concílio de Trento (que durou de 1545 até 1563). Outros países ibero-americanos receberam, muito antes disso, a presença de outras ordens católicas, como os franciscanos e os dominicanos. No México, os esuítas chegaram em 1572, cinqüenta anos após os franciscanos. No Peru, chegaram em 1568, alguns anos depois da morte do grande dominicano Bartolomeu de las Casas, em 1566. Quanto ao Brasil, as atividades da Companhia se desenvolveram num longo e acidentado período, recortado por freqüentes conflitos com os povoadores e os bandeirantes. No século XVII, foram expulsos de São Vicente e do Maranhão, mas encontraram novas oportunidades no norte, no Amazonas. Voltarão ainda uma vez ao Maranhão, entrando, no século XVIII, numa fase de declínio que se concluiu com a sua expulsão do país. Como as demais ordens religiosas, os jesuítas buscaram realizar atividades na
colônia seguindo as orientações do Concílio de Trento e a obra de Tomás de Aquino. Seguiam, em especial, as digressões do filósofo sobre a "unidade do corpo", base de sua concepção sobre a sociedade. Para Tomás de Aquino, o corpo é uma "ordem" que integra a pluralidade dos seus membros e a diversidade das suas funções; é uma integração harmônica de membros e funções e, como tal, um instrumento para o princípio superior que o rege, a alma. Como os missionários em geral, os jesuítas visavam, na parte temporal de sua prédica, à "subordinação de todos os estamentos sociais ao 'bem comum' do reino".9 Talvez porque formada na mesma época em que ocorreu o Concílio de Trento, tornou-se mais nítida na Companhia de Jesus do que em outras ordens religiosas, a orientação tridentina quanto à pregação católica "como intervenção efetiva na vida prática dos fiéis", entendendo-se como tal o dever de cada missionário de "pregar a verdade revelada a toda criatura". Além disso, a Companhia restabeleceu, nos séculos XVI e XVII, um estilo de comportamento próximo das ordens religiosas militares da Idade Média, um estilo militar de conduta que os historiadores atribuem ao exemplo e à influência pessoal do seu fundador, Inácio de Loyola (1491-1556). Seja por seu estilo, seja por suas convicções tridentinas, o fato é que a Companhia de Jesus alcançou extraordinário êxito em seus objetivos: fechou as portas ao protestantismo na península Ibérica, batalhou com sucesso em França e pôde enfim bloqueá-lo na Alemanha.10 A Companhia de Jesus nasceu em 1538 de um compromisso de Loyola e alguns estudantes da Sorbonne, tomado em 1534, na Capela de Montmartre, de servir a Cristo sob as ordens do papa. Reconhecida a ordem pelo papa, em 1540, seu fundador foi designado superior-geral em 1541. Loyola, que, como outros nobres de seu tempo, era soldado, participou, como oficial de Carlos V, de guerras e combates, sofrendo ferimentos físicos que o aleijaram para sempre. A dor e as frustrações pessoais resultantes dessa experiência levaram o vaidoso jovem oficial a mudar de vida, dedicando-se de modo militante à propagação da fé. Segundo seu próprio depoimento, revelou-se nele um acentuado misticismo. Mais de uma vez relatou a amigos suas visões de Cristo e da Virgem. O fundador da Companhia de Jesus fora, na juventude, um apaixonado leitor dos romances de cavalaria, que pouco tempo depois Cervantes (1547-1616) tomaria como motivo de ironia no célebre Dom Quixote de la Mancha. Loyola nasceu na época do Renascimento, mas sua figura e suas obras lembravam os cavaleiros da Idade Média, como os demais membros do pequeno grupo de estudantes aos quais se associara. Eram os "companheiros de Jesus", como gostavam de ser chamados, entre os quais Simão Rodrigues e Francisco Xavier (1506-1552): o primeiro, de nacionalidade portuguesa, tornou-se o superior-geral da companhia em Portugal ao
tempo que Manuel da Nóbrega estava no Brasil; o segundo partiu, já em 1541, para a evangelização do Oriente, incluídos o Japão, a Índia e a China. 11 Assumindo os deveres da Contra-Reforma, os "companheiros de Jesus" passaram a ter diante de si, além dos desafios criados por Lutero, as velhas civilizações não-cristãs do Oriente e os novos mundos abertos pelos descobrimentos.
Nóbrega e as decepções com os cristãos A chegada de Manuel da Nóbrega assinala o início da evangelização das gentes do novo território português na América, que ainda dependia eclesiasticamente do bispado do Funchal, na Madeira. "Ao princípio, os padres sustentavam-se de esmolas e benemerências dos homens do governo, mas ainda não era decorrido um ano e já se dava, pelo almoxarifado régio, o subsídio mensal de um cruzado (400 réis) a cada um dos seis primeiros da companhia".12 Em 1551, poucos anos depois da chegada de Nóbrega, o território tornou-se dependência eclesiástica da diocese de Salvador, recém-criada. Era também o começo da institucionalização da Igreja e dos problemas que os missionários haveriam de enfrentar. Recém-chegado, Nóbrega registrava na primeira carta aos seus superiores em Lisboa: "Achamos a terra de paz e quarenta ou cinqüenta moradores na povoação que antes era. Receberam-nos com alegria. (...) Eu prego ao governador e à sua gente na nova cidade que se começa, e o padre Navarro à gente da terra". Seus bons desejos de recém-chegado não o impediram, porém, de registrar, já nessa primeira carta, as dificuldades que viriam: "Espero em Nosso Senhor fazer-se fruto, posto que a gente da terra vive toda em pecado mortal". Dos índios, dizia: "não há nenhum que deixe de ter muitas negras, das quais estão cheios de filhos". 13 Embora fale de "negras", queria dizer "índias". Era usual na época designar os índios como os "negros da terra"; os negros africanos eram os "negros da Guiné", que as cartas de Nóbrega mencionam poucas vezes. Em suas Cartas, o jovem jesuíta concentra suas observações nos índios. Quanto aos "negros da Guiné", menciona-os de quando em quando, para pedir ao rei que envie alguns para o serviço do colégio e da companhia. Manuel da Nóbrega era de família ligada a D. João III, e entrou na recém-fundada Companhia de Jesus em 1544, com 21 anos de idade. Seu pai, amigo do rei, foi desembargador, e um de seus tios foi chanceler-mor do reino. Com dificuldades de fala, Nóbrega era chamado "O Gago" em Coimbra, onde se formou em Cânones, em 1541. Diz um comentador que, como era freqüente "naqueles primitivos e dourados tempos", o jovem jesuíta "exercitava-se em muitos exercícios de humildade e mortificação".14 Embora algumas de suas Cartas ofereçam evidências de uma saúde frágil, não deixam nenhuma dúvida quanto ao ânimo forte do sacerdote, bem como
do conquistador de almas e do administrador das aldeias, igrejas e colégios que ajudou a criar. Além de membro de família ligada ao rei, Manuel da Nóbrega foi amigo dos governadores-gerais, em especial de Tomé de Souza e Mem de Sá, 15 e usou do seu prestígio pessoal junto à Coroa em diversos momentos de sua atividade como Superior dos jesuítas no Brasil para defender os indígenas dos ataques dos povoadores. Logo depois de sua chegada, com Tomé de Souza, orientou para toda a colônia – ou seja, para toda a costa do território, que era a colônia conhecida do seu tempo – as atividades do pequeno grupo de padres que chefiava. Era o ponto de partida para um trabalho de evangelização que haveria de se fortalecer em especial na região de São Vicente, ao sul, e na região da cana-de-açúcar, na Bahia e Pernambuco. Nesse primeiro momento de seu esforço de evangelização Nóbrega buscou dirigirse tanto aos índios como aos povoadores em geral. Eram, porém, muitos os problemas: a escravização dos índios, a antropofagia e a poligamia dos índios, os maus exemplos de povoadores e clérigos seculares, os desentendimentos com os povoadores e os bandeirantes. Alguns anos depois da chegada de Tomé de Souza, o navio no qual viajava D. Pero Fernandes Sardinha, primeiro bispo do Brasil, naufragou nas costas da Bahia; o religioso e outros náufragos foram comidos pelos tupinambás em cerimônia antropofágica.
Os índios são homens No século XVI, Bahia, São Paulo, São Vicente e Rio de Janeiro serão os cenários principais da atividade de Manuel da Nóbrega. Diz o padre Serafim Leite que foi na Bahia, no "remanso do Rio Vermelho (...) " que Nóbrega escreveu o Diálogo sobre a conversão do gentio, cujo "pensamento fundamental" é que "os gentios são capazes de se converter em direito porque são homens". O Diálogo que Serafim Leite considera "a primeira obra propriamente literária do Brasil" foi escrito anos depois da chegada de Tomé de Souza. É um texto doutrinário e genérico, que teria que omitir muitas experiências e frustrações que as Cartas revelaram em detalhe. Assim como os desafios e perigos dos navegadores estavam no mar, os desafios e perigos dos jesuítas estavam no sertão. E o sertão, no século XVI, começava nas vizinhanças das poucas e pequenas cidades e vilas em que erguiam suas capelas e igrejas. Nóbrega tinha objetivos definidos que, contudo, nem sempre atingiu como desejava. Seu primeiro objetivo – de si bastante ambicioso, pretendendo a presença dos jesuítas em toda a costa – foi atingido. O segundo, que era falar a todos na colônia, levou a freqüentes frustrações com os povoadores e, finalmente, ao
afastamento daqueles que ele chamava de cristãos, entre os quais, evidentemente, achavam-se também os clérigos. Já em 1549 o jesuíta dizia ao Padre Mestre Simão Rodrigues de Azevedo: " (...) vejo a gente dócil. Somente temo o mau exemplo que o nosso cristianismo lhe dá, porque há homens que há sete e dez anos que se não confessam e parece-me que põem a felicidade em ter muitas mulheres. Dos sacerdotes ouço cousas feias". 16 Em 1551, acrescentava: "Os clérigos desta terra têm mais ofício de demônios que de clérigos; porque, além de seu mau exemplo e costumes, querem contrariar a doutrina de Cristo, e dizem publicamente aos homens que lhes é lícito estar em pecado com suas negras, pois que são suas escravas, e que podem ter os salteados, pois que são cães, e outras cousas semelhantes, por escusar seus pecados e abominações, de maneira que nenhum demônio temo agora que nos persiga, senão estes. Querem-nos mal, porque lhes somos contrários a seus maus costumes. (...) Se não fora pelo favor que temos do Governador e principais da terra, e porque Deus não o quer permitir, nos tiveram já tiradas as vidas".17 Não tornava mais fácil a missão dos jesuítas a proximidade em que muitas vezes se encontravam com os povoadores. A vila São Paulo é exemplo dos muitos desafios que deveriam enfrentar. Por estar no planalto de Piratininga, distante do mar, a vila era considerada "boca do sertão", tendo por isso ficado à margem do desenvolvimento agrícola que se iniciava na Bahia e em Pernambuco. Como Santo André, fundada quase ao mesmo tempo, São Paulo era uma vila "da Borda do Campo", nascidas ambas para defender a capitania de São Vicente, abrir caminho para o sertão e para as minas de metais preciosos de que já se tinha notícia no rumo oeste, para os lados do Peru. Nasciam também ambas da mesma preocupação com a defesa dos caminhos do mar que levavam ao rio da Prata. Eram posições estratégicas para as conquistas lusas. Se a vila nascia para a defesa militar e para a conquista do interior, acrescentavase a esses objetivos a conquista dos índios para a fé. Nessa vila de São Paulo, que se tornaria cabeça-de-ponte das bandeiras, os jesuítas fundaram um colégio, como o haviam feito na Bahia. Assim como as cidades eram pequenas e poucas, as bandeiras que delas partiam para apresar, mas também para evangelizar índios, tinham, como á se disse, algo de "uma vila em movimento". Variavam "de apenas quinze ou vinte homens até a concentração de centenas de membros, acompanhados de um ou dois frades, no papel de capelães".18 Segundo Capistrano de Abreu, o capelão era figura obrigatória na bandeira. É ele quem cita este pedido de Domingos Jorge Velho em novembro de 1692: "Meu Capelão saiu para fora estando eu para sair para a Campanha (...) Mandei-o buscar; não quis vir; (...) Sem ele morreram-me três homens brancos sem confissão, cousa que mais tenho sentido nesta vida; peço-lhe
pelo amor de Deus me mande um clérigo em falta de um frade, pois se não pode andar na campanha e sendo com tanto risco de vida sem capelão".19 Do mesmo modo que nas vilas nascidas de um propósito militar surgiam os colégios dos jesuítas, também nas bandeiras iam os sacerdotes, dando exemplo de uma mescla de funções ligando a fé e o império. Mas mesmo nos primeiros tempos da colônia essa mistura de funções não podia esconder as desavenças que se tornariam mais graves no correr dos anos.
Nóbrega e Las Casas As diferenças de perspectiva e de interesses entre os missionários e os colonos eram basicamente as mesmas em toda a América ibérica. No espírito da aliança entre a Igreja e as monarquias da península, era convicção geral dos missionários que os indígenas não poderiam ser convertidos a menos que submetidos ao domínio das Coroas ibéricas. Era também essa a convicção de Nóbrega, como, depois dele, a de Antônio Vieira. "Nóbrega reconhece, indiretamente, um problema que analisará cada vez mais explicitamente durante os últimos dois anos da década (anos 1550). Os indígenas não podem ser convertidos a menos que sejam submetidos à norma portuguesa; mas o ato de submissão coloca-os em contato com os povoadores que querem afastá-los do controle dos jesuítas e que vivem, eles próprios, fora da igreja".20 Era o mesmo quadro dos demais países ibéricos, embora com algumas diferenças de tempo. Nas colônias hispânicas, sinais de conflitos entre os missionários e os "conquistadores" encontram-se, já em 1511, num sermão do dominicano Antonio de Montesinos.21 E nas primeiras décadas do século XVI o dominicano Bartolomeu de las Casas atacava de modo explícito, nas colônias de Espanha, aquilo que em Nóbrega era ainda, algumas décadas depois, apenas um pressentimento. Esse é mais um exemplo de como se distinguem o espírito espanhol e o luso na história. Assim como faltou no Brasil do século XVI um Las Casas para a defesa dos índios, faltou também aos povoadores quem os defendesse com o ardor e o brilho de Juan Ginés de Sepúlveda (1490-1573), um padre espanhol que polemizou contra Erasmo e defendeu, em polêmica com Las Casas, a idéia de guerra justa aos índios. A polêmica hispânica antecede a polêmica brasileira no tempo e ganha em clareza de propósitos. Como no Caribe e na Nova Espanha, também no Brasil os "conquistadores" queriam os índios como escravos, ao passo que os missionários os queriam como cristãos. Las Casas, que dedicou sua vida a esse combate, chegou até mesmo a negar
que nas colônias se tratasse de uma conquista, como admitia tivesse sido na península, na África e no Oriente. "Em todas as Índias", dizia, referindo-se às colônias ibero-americanas, "não há de haver conquistas contra mouros da África ou turcos ou hereges que têm nossas terras, perseguem os cristãos e trabalham para destruir a nossa santa fé". Por isso, nas Índias – as Ocidentais, ou seja, a América – há de haver "pregação do Evangelho de Cristo, dilatação da religião cristã e conversão das almas, para o que não é mister a conquista pelas armas, mas a persuasão pelas palavras doces e divinas, e exemplos e obras de santa vida". Aqui a ação dos espanhóis "não há de chamar-se conquista, mas predicação da fé e conversão e salvação de infiéis já preparados para receber Jesus Cristo por Criador Universal e Sua Majestade por católico e rei bem-aventurado".22 No início de sua experiência missionária, Manuel da Nóbrega começava a perceber aquilo que em Las Casas possuía, desde logo, a força de uma certeza. Em carta de 1550, dirigida de Porto Seguro ao padre Simão Rodrigues, dizia que os índios "não têm feito resistência nem matado aos que queriam fazê-los cristãos e se deixam arrastar para a fé". Nessa empreitada, o risco maior vinha dos cristãos "que aqui vêm não com o exemplo ou com a palavra ao conhecimento de Deus". Os cristãos chamam aos índios "cães e fazem-lhes todo o mal. E toda intenção que trazem é de os enganar, de os roubar, e por isso permitem que vivam como gentios sem a ciência da lei e têm praticado muitos desacatos e assassínios".23 Em outra carta, do mesmo ano da chegada, Nóbrega falava dos "saltos", ações de pirataria realizadas por barcos que navegavam na costa para apresar índios. Nos "saltos", dizia o jesuíta, os índios eram atraídos com sinais de comércio e de amizade, e assim os piratas os enganavam, "enchem os navios deles e fogem com eles". E concluía: " (...) de maravilha se acha cá escravo que não fosse tomado de salto". E isso era sempre obra de cristãos: "De maravilha se achará cá na terra, onde os cristãos não fossem causa de guerra e dissensão".24 "Nesta terra", dizia, "todos ou a maior parte dos homens têm a consciência pesada por causa dos escravos que possuem contra a razão".25 Segundo Nóbrega, os colonizadores não apenas desencaminhavam índios que poderiam tornar-se cristãos, mas alguns deles passavam até mesmo a viver como índios. Em particular os cristãos de São Vicente, diz um seu comentador. Convencido de que muitos dos males da colônia vinham dos colonizadores, Nóbrega vai afastar-se cada vez mais deles: "Quanto mais longe estivermos dos velhos cristãos que aqui vivem, maior fruto se fará". Em momentos de muita decepção com os cristãos e de dificuldades com os índios, o jesuíta manifestou desejos de pedir licença para sair da colônia, para o Paraguai, o Peru ou a Índia. Em todo caso, a aproximação dos jesuítas com a Coroa rendeu alguns resultados.
Manuel da Nóbrega lutou por uma legislação de proteção aos índios, e nos fins do século XVI muitas de suas demandas haviam se convertido em lei.26 Segundo Boxer, a administração colonial "apoiou os jesuítas em seus esforços para proteger os nativos, e por volta de 1600 deu o controle efetivo das aldeias à Companhia de Jesus, que, por seu lado, contratava com os colonizadores, sob certas salvaguardas, o trabalho dos índios das 'missões'".27 Não obstante suas vitórias na legislação, Nóbrega não escondia as dificuldades que cresceram com o tempo: os colonizadores "querem ver a terra administrada e dominada e querem o trabalho dos indígenas, mas querem que isso aconteça sem que plantem um único pé de mandioca". Ao final de muitas decepções, o jesuíta decidiu-se a negar a confissão (e a absolvição) aos povoadores, porque, segundo dizia, muitos deles têm escravos e, casados ou não, vivem em concubinato com as índias, assim como seus escravos. E, o que é pior, com a proteção de padres seculares que "dão a absolvição a quem vive dessa maneira". "Só os homens e mulheres pobres que não podem ter escravos são confessados por nós".28 Numa de suas cartas ao rei, Manuel da Nóbrega criticava "o costume da terra, que é terem muitas mulheres" e considerava conveniente "mandar Sua Alteza algumas mulheres que lá têm pouco remédio de casamento a estas partes". É que "nesta terra há um grande pecado que é terem os homens quase todos suas negras por mancebas, e outras livres que pedem aos negros por mulheres (...). E estas deixam-nas quando lhes apraz, o que é grande escândalo para a nova Igreja que o Senhor quer fundar". " (...) todos se me escusam que não têm mulheres com que casem". Na mesma carta, garantia ao rei que todas as mulheres que vierem "casarão mui bem, porque é terra muito grossa e larga, e uma planta que se faz dura dez anos aquela novidade, porque, assim como vão apanhando as raízes, plantam logo ramos, e logo arrebentam. De maneira que logo as mulheres terão remédio de vida, e estes homens remediariam suas almas, e facilmente se povoaria a terra". 29
Experiência e sincretismo Como de hábito entre os grandes religiosos do seu tempo, Nóbrega era também um homem de ação, não apenas um doutrinador. Um místico, mas também um homem prático e, como outros jesuítas, aberto a uma certa margem de reconhecimento das culturas dos povos que pretendia evangelizar. Assim, por exemplo, depois que reconheceu o gosto dos índios pelo canto, organizou grupos de canto de meninos. Do mesmo modo, a sua preocupação com a aprendizagem dos idiomas, como a de José de Anchieta (1534-1597) e, depois deles, a de Vieira, levou-o a estimular a
redação de catecismos em língua indígena. Em certos procedimentos do ritual católico, aceitou não apenas o idioma, mas também usos e comportamentos dos índios, confirmando uma tendência dos jesuítas pela adoção do sincretismo na evangelização. Em carta ao padre Simão, fazia perguntas diversas, além daquelas relativas à guerra e à escravidão. Perguntava se os índios podem confessar por intérprete; se podem estar junto com os cristãos na missa; se podem os padres cantar cantigas do Senhor em língua dos índios e tanger seus instrumentos; se os índios podem ser batizados nus.30 Nesse mesmo espírito de abertura aos ensinamentos da experiência, Nóbrega não deixou de reconhecer resistências dos índios à evangelização. Depois de algum tempo chamou-lhe a atenção que os nativos eram inconstantes: "concordam com tudo e logo mudam de idéia".31 Estavam dispostos a aceitar as influências religiosas próximas de suas próprias tradições, o que não significava que aderissem verdadeiramente a elas. A convicção sobre a inconstância dos índios parece ter sido geral entre os colonizadores. Depois de Nóbrega, esta parece ter sido também a convicção de Gândavo, para quem os índios seriam "mui inconstantes e mutáveis; crêem de ligeiro tudo aquilo que lhes persuadem, por dificultoso e impossível que seja, e com qualquer discussão facilmente o tornam logo a negar".32 Daí, segundo um historiador, a possibilidade de um sincretismo que envolvia uma "falácia da conversão".33 Como ocorreu depois com os negros, esse sincretismo parecia envolver, da parte dos jesuítas, um ardil visando seduzir os índios para o catolicismo. Mas envolvia também uma armadilha que levou os jesuítas a grandes frustrações. Símbolos e formas da religião católica se sobrepunham ou se misturavam a símbolos e formas das religiões dos nativos, que, assim, protegiam e preservavam suas crenças. O certo é que não foram alheias à evangelização inaciana doses notáveis de pragmatismo. Como Pero Vaz de Caminha, eles logo perceberam que não estavam diante do "paraíso terrestre". Não era deles, embora possa ter sido de Las Casas, a convicção de Michel de Montaigne (1533-1592), num capítulo célebre dos Ensaios: "A essa gente chamamos selvagens, como denominamos selvagens os frutos que a natureza produz sem intervenção do homem. No entanto aos outros, àqueles que alteramos por processos de cultura e cujo desenvolvimento natural modificamos, é que deveríamos aplicar o epíteto. ( ... ) Esses povos não me parecem, pois, merecer o qualificativo de selvagens somente por não terem sido senão muito pouco modificados pela ingerência do espírito humano e não haverem quase nada perdido de sua simplicidade primitiva".34 Na verdade, os jesuítas se distanciaram muito dessas imagens humanistas do "bom selvagem", supostamente portadores de virtudes já desconhecidas pelos civilizados.
Em 1554, José de Anchieta, consagrado pela história como o Apóstolo do Brasil, via os índios de tal forma bárbaros "que parecem aproximar-se mais à natureza das feras que às dos homens". Em 1563, era ainda maior a desilusão do Apóstolo: " (...) para este gênero de gente não há melhor pregação do que espada e vara de ferro".35 Manuel da Nóbrega, em momentos diversos de suas Cartas, bem como no Diálogo sobre a conversão do gentio, mostra sinais da mesma frustração. Sob pressão das experiências com os índios, nem sempre positivas, Nóbrega evoluiu para uma espécie de "pedagogia do medo", que, segundo interpretação de um pesquisador, anteciparia algo das teorias de Thomas Hobbes (1588-1679).36 Como bom português, ele seguia esse pragmatismo conhecido dos navegantes desde o século XIV, que rompia, na prática, ilusões medievais sobre o mundo, embora ainda convivendo com alguns dos seus sonhos e fantasmas. A experiência, "madre das cousas", parecia também inspirar o jesuíta, que dizia em carta de 1557: "por experiência vemos que por amor é mui dificultosa a sua conversão, mas, como é gente servil, por medo fazem tudo".37 A propósito dessa "pedagogia do medo", que cresce na cabeça do provincial, é reveladora a narrativa sobre o seu comportamento em face de um mestiço que lhe f oi entregue para julgar. Um comentador da Companhia conta que, diante do acusado, Nóbrega "lhe encareceu o seu crime e agravo (...) e lhe disse: 'Irmão, um tal pecado só se pode satisfazer sendo enterrado vivo: confessai-vos, comungai e tende santa paciência, que amanhã a tais horas vos hei de mandar abrir a sepultura; há-se-vos de cantar o ofício de finados, dizer missa dos defuntos e heis de ser enterrado vivo'". O narrador prossegue: "Pasmavam os portugueses e índios de cousa tão nova. Acabado o ofício, o triste foi estendido na cova e si lhe foi lançando alguma terra. Neste passo, o irmão Pedro Corrêa pediu com muitas lágrimas ao padre tivesse compaixão daquele miserável, e o padre, que só queria meter horror no culpado e aviso aos mais, se dobrou, mostrando nisso grandes dificuldades".38 São diversos os casos como esse narrados nas Cartas, reafirmando a força persuasiva do medo e o caráter educativo da punição. Seria exagerado, contudo dizer que tais transtornos desviassem o jesuíta de seus objetivos, sempre ligados à "dilatação da Fé" e, portanto, à conquista espiritual dos índios. O desencanto de Nóbrega em face dos "bons selvagens" é tão evidente quanto seu empenho em defendê-los, numa obra de evangelização a que dedicou a maior parte da sua vida. Em todo caso, e embora lutando para persuadir as consciências, Nóbrega não se recusava à guerra se necessário fosse. Se em mais de um momento buscou a paz com os índios inimigos – como em sua aproximação com os tamoios, inimigos dos portugueses, em São Vicente, em 1563 –, também participou de algumas das guerras de Mem de Sá.39
Os relatos de Nóbrega sobre as guerras dos índios não deixam dúvidas quanto ao seu realismo. "(Os índios) fazem guerra, uma tribo à outra, a dez, quinze e vinte léguas, de modo que estão todos entre si divididos. Si acontece aprisionarem um contrário na guerra, conservam-no por algum tempo, dão-lhe por mulheres suas filhas, para que o sirvam e guardem, depois do que moram por ali perto, e si deles ficam filhos, os comem, ainda que sejam seus sobrinhos e irmãos, declarando às vezes as próprias mães que só os pais, e não a mãe, têm parte neles. É esta a coisa mais abominável que existe entre eles. Se matam a um na guerra, o partem em pedaços, e depois de moqueados os comem, com a mesma solenidade; e tudo isto fazem com um ódio cordial que têm um ao outro, e nestas duas cousas, isto é, terem muitas mulheres e matarem os inimigos, consiste toda a sua honra. São estes os seus desejos, é esta a sua felicidade, (...) que tudo herdaram do primeiro e segundo homem, e aprenderam daquele qui homicida erat ab initio".40 As conseqüências dessa visão realista e pragmática transparecem no relato de um comentador da Companhia sobre ações militares de que Nóbrega participou, em companhia de Mem de Sá. "Chegaram a certo posto em que o principal de duzentas aldeias se tinha guarnecido. (...) Todas estas dificuldades se venceram. Foram entrados os inimigos, em que se fez brava matança. Estas vitórias fizeram mui respeitado a Mem de Sá de todo o sertão do Brasil e causaram veneração à pessoa do padre Nóbrega; pois viam com seus olhos não ser vã a confiança, com que aos nossos prometera sairiam vencedores nesta guerra em que a honra e serviço de Deus eram tão interessados".41
Sacerdote e político Nóbrega foi, como Vieira, sacerdote e político. Numa terra "toda em guerra", esta acabava por ser uma atividade de todos. E o jesuíta que participou, com Tomé de Souza, da fundação de Salvador, deu vários exemplos de suas qualidades políticas, como a sua insistência junto à Coroa em favor da criação da cidade do Rio de Janeiro. A cidade foi criada em 1565 por Estácio de Sá (1520-1567), depois de uma guerra em que se mesclaram razões de estratégia militar e de ordem religiosa. Com apoio dos jesuítas, formou-se uma aliança entre portugueses e temiminós, moradores do Espírito Santo e de São Vicente, e tupiniquins, de Piratininga, que conseguiram derrotar os tamoios e os franceses na Guanabara. Assim como já se fizera na Bahia com Tomé de Souza, em São Sebastião do Rio de Janeiro Estácio de Sá instituiu na cidade a câmara, concedeu sesmarias a cerca de cinqüenta povoadores e terreno para um colégio da Companhia de Jesus. Poucos anos depois, os índios maracajás receberam sesmarias como compensação por sua
participação, tendo sido o principal deles agraciado com a Ordem de Cristo e uma pensão anual.42 Depois da fundação da cidade, os combates prosseguiram, para subjugar os tamoios e expulsar os franceses do cabo Frio, levando ao fim do projeto da França Antártica e à definitiva expulsão dos franceses do sudeste do Brasil.43 Manuel da Nóbrega via a criação do Rio de Janeiro como uma forma de defender o litoral contra novas investidas dos franceses. Mas a via também como um meio de defesa do litoral sul, base de apoio para as pretensões portuguesas de predomínio nas viagens para a boca do rio da Prata. Como os missionários portugueses em geral, Nóbrega foi também um colonizador. Trabalhou pelas duas pontas do lema fundamental da conquista e da colonização: "dilatar a fé e o império".
1. S ARAIVA, op. cit., p. 69. 2. W EHLING, op. cit., p. 99. 3. COHEN, Thomas. The Fire of Tongues Antônio Vieira and the Missionary Church in Brazil and Portugal. Stanford: Stanford UP, 1998. p. 48. 4. Comentário assinado por A. P. na Apresentação das Cartas do Brasil, cit., p. 8. 5. C OUTO, op. cit., p. 240-41 6. LEITE, Padre Serafim. Suma histórica da Companhia de Jesus no Brasil (Assistência de Portugal), 15491760. Lisboa: Junta de Investigações do Ultramar, 1965. p. 3. 7. MARTINS , Wilson. História da inteligência brasileira, cit., v. 2, p. 14. 8. A ZEVEDO, op. cit., p. 12. 9. HANSEN, João Adolfo. "Padre Antônio Vieira". In: M OTA, Lourenço Dantas (Org.). Introdução ao Brasil. Um banquete no trópico. São Paulo: Senac, 1999. p. 29. 10. AZEVEDO, op. cit., p. 11. 11. Os outros eram Fabro, Bobadilla, Lainez e Salmerón. 12. LEITE, op. cit., p. 5 . 13. NÓBREGA, op. cit., p. 33. 14. FRANCO, Padre Antônio. Vida do padre Manuel da Nóbrega. Introdução a N ÓBREGA, op. cit., p. 21 e seguintes. 15. São o primeiro e o terceiro governadores-gerais. Na expedição que trouxe à colônia o segundo, Duarte da Costa, em 1553, veio também José de Anchieta. 16. NÓBREGA, op. cit., p. 75. 17. Ibidem, p. 37. 18. BOXER, C. R. A idade de ouro do Brasil (dores de crescimento de uma sociedade colonial). São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1969. p. 55. 19. ABREU, J. Capistrano. Capítulos de história colonial. Belo Horizonte: Itatiaia/Edusp, 1988. p. 143. 20. COHEN, op. cit., p. 33-34. 21. BUENO, Eduardo. Genocídio de ontem e de hoje. Apresentação de Frei Bartolomeu de las Casas. O paraíso perdido. Porto Alegre: L&PM, 1991. p. 14-15. 22. LAS CASAS, Bartolomeu. Memorial de remédios; Excertos. (Disponível em: . Acesso em: nov. 2005.)
23. NÓBREGA, op. cit., p. 107. 24. Ibidem, p. 81. 25. Ibidem, p. 109. 26. COHEN, op. cit., p. 40. 27. BOXER, C. R. A R. A Great Luso-Brazilian Luso-Braz ilian Figure: Padre Antônio Antôn io Vieira, S.J., S.J ., 1608-16 160 8-1697. 97. London: Canning House, 1957. p. 40. 28. NÓBREGA, op. cit., p. 40. 29. Ibidem, p. 78-79. 30. Ibidem, p. 141. 31. Ibidem, p. 231. 32. GÂNDAVO, op. cit., capítulo X, p. 97-8. 33. MARTINS, Wilson. História Wilson. História da inteligência inteligê ncia brasileira, bra sileira, cit., cit., v. 2, p. 29. 34. "As leis da natureza, não ainda pervertidas pela imisção dos nossos, regem-nos até agora e mantiveram-se tão puras que lamento, por vezes, não as tenha o nosso mundo conhecido antes, quando havia homens capazes de apreciá-las". MONTAIGNE, Michel de. Ensaio de. Ensaios. s. Brasília/São Paulo: Universidade de Brasília/Hucitec, 1987. v. 1, p. 259. 35. MARTINS, Wilson. História Wilson. História da inteligência inteligê ncia brasileira, bra sileira, cit., cit., v. 2, p. 39 e 41. 36. EISENBERG, José. As José. As missões missõe s jesuíticas jesu íticas e o pens p ensamen amento to político po lítico modern mod erno. o. Belo Belo Horizonte: UFMG, 2000. 37. NÓBREGA, op. cit., p. 159. 38. FRANCO, loc. cit., p. 39. 39. Sobre a cooperação entre Nóbrega e Mem de Sá, ver também LEITE, op. cit., p. 21 e seguintes. 40. NÓBREGA, op. cit., p. 90. A frase em latim refere-se ao homem "que era homicida desde o começo". 41. NÓBREGA, op. cit., p. 43; os grifos são meus. 42. COUTO, op. cit., p. 257 e 261. 43. Ibidem.
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Vieira, estrategista da Coroa e defensor dos índios.
CAPÍTULO 5
SÉCULO XVII ANTÔNIO VIEIRA: A PALAVRA E O FOGO
As obras obr as de d e Deus De us todas to das são boas; boa s; os instrumentos instrume ntos de que se serve se rve podem pod em ser se r bons bo ns e maus. maus . Entre Cristão Cr istão e Cristão não há diferença difere nça de nobreza nob reza,, nem ne m diferenç difer ençaa de d e cor. co r. PADRE ANTÔNIO V IEIRA IEIRA
O tempo que separou Manuel da Nóbrega e Antônio Vieira não afrouxou os vínculos que ligavam os jesuítas à Coroa nem a determinação com que se dedicavam à evangelização. Ao contrário, as circunstâncias da longa decadência em Portugal e das lutas religiosas na Europa empurraram os jesuítas mais a fundo para as incertezas e contradições da colonização que se iniciava. Destinado como os de sua ordem a intervir nos acontecimentos do mundo, o padre Vieira haveria de desempenhar papéis só comparáveis aos grandes da época, seja na Europa dos desacertos entre Portugal e Espanha ao fim da União Ibérica, seja no Brasil, sob a pressão crescente das incursões incursões holandesas e dos compromissos compromissos e confrontos com os povoadores e os bandeirantes. bandeirantes. Empenhado com igual igual força e talento t alento na conquista das almas para Cristo e nas nas questões do seu tempo, Vieira Vieira foi considerado "o homem mais notável no mundo luso-brasileiro mundo luso-brasileiro no século XVII". XVII".1 Se Nóbrega Nóbrega foi amig ami go de D. João III, da dinastia de Avis, Vieira foi amigo pessoal de D. João IV (1640-1656), o primeiro rei dos Braganças, chamado o Restaurador porque restabeleceu a independência de Portugal, sucedendo aos Filipes da União Ibérica. Os dois jesuítas desempenharam papéis políticos e religiosos, como era próprio dos tempos em que viveram, em especial em se tratando dos jesuítas. Do ângulo político, pode-se dizer que Nóbrega foi um tático e Vieira, um estrategista – diferença que se traduz nos textos que nos deixaram.
"O último grande pregador da Idade Média" Os sermões de Vieira destacam-se pela amplitude de visão, mais metropolitana, envolvida com as questões européias da época, ao passo que os textos de Nóbrega,
sobretudo as Cartas, têm algo da objetividade dos primeiros cronistas da colônia. Os relatos de Vieira, de notável sabor literário, sobre suas experiências na colônia podem ser encontrados em suas cartas mais do que nos sermões. Embora mais amplas e variadas do que as de Nóbrega, as experiências de Vieira, na colônia e na Europa, Europa, obrigaram o pregador a compromissos, confrontos confrontos e ambigüidades am bigüidades em quase tudo semelhantes às de Nóbrega, um século antes. A obra de Vieira é das mais expressivas da Europa do Absolutismo, das lutas religiosas entre protestantes e católicos bem como da aliança entre as Coroas ibéricas e a Igreja. D. João IV considerava Vieira o "primeiro homem do mundo" e o tinha como amigo mais m ais do que como conselheiro, a quem nunca deixou de ouvir nos mais importantes assuntos de Estado. Depois de D. João IV, a proximidade do esuíta com a Coroa continuará no conturbado reinado de D. Afonso VI (1643-1683), um período de regentes mais que do próprio rei, tido como incapaz. Ao longo dos dois reinados, Vieira tentou conferir um conteúdo místico aos projetos de grandeza da Coroa portuguesa recém-saída de uma condição de submissão à Coroa espanhola. Na atmosfera de um Portugal já em plena decadência, a Companhia de Jesus, envolvendo-se nos sentimentos da época, passou a semear a convicção de que as profecias sobre a volta de D. Sebastião diziam respeito aos reis que o sucederam. Eram os sonhos e mitos do sebastianismo tanto a expressão das aspirações de independência de Portugal diante da Espanha quanto a expressão mental de um país débil que, desesperadamente, tratava de arranjar forças para sair da decadência em que se achava. Considerado um dos homens mais cultos do seu tempo, Antônio Vieira participou desses sonhos e mitos, para os quais buscou um lugar na grandiosa estrutura do seu pensamento. Além de seus magníficos sermões, deixou diversos textos, mais controversos que todos, expressando sua confiança nas previsões de Gonçalo Anes, o Bandarra (1500-1556), um trovador analfabeto, cujas profecias sobre a história de Portugal foram durante muito tempo usadas pelos sebastianistas.2 Segundo alguns cronistas, Vieira foi "o último grande pregador da Idade Média". Alguns historiadores o vêem como orador só comparável, no século XVII, a JacquesBenigne Bossuet (1627-1704). Foi, em todo caso, um notável pregador, tanto na Bahia quanto em Lisboa e Roma, tendo sido reconhecido em sua época como um mestre do idioma e mais tarde homenageado por outro mestre, Fernando Pessoa, como o "Imperador da língua portuguesa". Em seus famosos sermões, ocupou-se de quase todos os temas importantes do seu tempo, na colônia e na Europa, projetando para a história as imagens, quase sempre controversas, de combatente da ContraReforma, protetor dos índios, crítico dos colonos e dos bandeirantes, protetor dos "judeus públicos" e dos "cristãos-novos". Antônio Vieira nasceu em Lisboa, de uma família burguesa que se tornou fidalga
por decisão do rei, grato aos feitos do pregador ilustre. Diferente nesse aspecto de Nóbrega, um filho de aristocratas ligados à Corte, Vieira era, segundo Hernani Cidade, filho de uma família de "burguesia modesta e mesclada de sangue africano". 3 O avô e o pai eram criados da casa dos condes de Unhão, da qual o pai de Vieira foi expulso por haver se enamorado de uma serviçal mulata. Segundo João Lúcio de Azevedo, a bisavó de Vieira teria vindo da África para Portugal como escrava. A informação sobre as origens de Vieira é confirmada por Boxer quando comenta a proibição do Império luso quanto ao ingresso de mulatos aos quadros da Igreja ou do Estado. Diz o historiador inglês que tal proibição foi muitas vezes ignorada na prática, "como no caso do Padre Antônio Vieira, cuja humilde avó mulata não foi impedimento para a sua entrada na Companhia de Jesus".4 Vieira veio para o Brasil ainda criança, com oito anos de idade. Entrou na Companhia de Jesus aos 15 anos e aos 18 já dava aulas de retórica no colégio de Olinda. Em 1633, dois anos antes de se ordenar sacerdote, pregou um sermão que se tornou famoso, diante da Irmandade do Rosário, aos negros de um engenho da Bahia. Em inícios de 1640, pregou na catedral da Bahia o celebérrimo "Sermão contra os holandeses". Em 1641 foi para a Europa, onde se desdobrou em diversas atividades diretamente ligadas à Coroa, como político e como diplomata. Voltou ao Brasil, mais especificamente ao Maranhão, em 1655, mantendo, porém, vínculos com a Europa, Europa, à qual voltou em mais m ais de uma ocasião. Em 1661 foi submetido à Inquisição, com motivo de suas aproximações com os judeus e de suas teorias do Quinto Império.
Nos limites da heresia heresia No começo de sua carreira, Vieira já era o sacerdote e o político que veio a ser em toda a sua vida. Mantendo sempre a ambição, própria da época, em especial entre os esuítas, de casar a reflexão refl exão sobre o mundo com a interpretação i nterpretação dos Evangelhos, Evangelhos, seus sermões são dominados por uma linguagem carregada de metáforas e hipérboles, quase ausentes nas singelas Cartas de Nóbrega, escritas um século antes. 5 Embora muitos historiadores e críticos tenham considerado Vieira um maneirista, representante do "discurso engenhoso", não parecia ser essa a pretensão do pregador. No "Sermão da sexagésima", que considerava o seu "primus inter pares", o pregador enfatizou a necessidade de um estilo claro e simples, repudiando as complicações do gongorismo que atribuía aos dominicanos.6 Seus sermões, combinando com freqüência a reflexão teológica e a política, são assinalados por uma ambigüidade que vai além de uma questão de estilo literário. l iterário.
O grande jesuíta quase sempre nos surpreende em seus sermões, que serviriam tanto à denúncia dos males e das injustiças do mundo quanto ao consolo das almas. No mencionado sermão de 1633, quando era apenas um jovem pregador, Vieira dirigiu-se à Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos de um engenho da Bahia em termos que até hoje assombram o leitor. Ele comparou os escravos a Cristo e assemelhou o engenho ao inferno: "e que coisa há na confusão deste mundo de semelhante ao inferno, que qualquer destes vossos engenhos, engenhos, e tanto t anto mais, quanto de maior fábrica? Por isso foi tão bem recebida aquela breve e discreta definição de quem chamou a um engenho de açúcar doce inferno". O pregador, então com 25 anos, ia ainda mais longe, distinguindo uma estrutura de dominação e de exploração entre escravos e senhores: "Eles mandam, e vós servis; eles dormem, e vós velais; eles descansam, e vós trabalhais; eles gozam o fruto de vossos trabalhos, e o que vós colheis deles é um trabalho sobre outro. Não há trabalhos mais doces que o das vossas oficinas; mas toda essa doçura para quem é? (...) Fabricais o mel, mas não para vós.7 [<<10]
O engenho, no sermão de Vieira: "doce inferno".
Na metáfora demoradamente construída desse sermão do Rosário, Vieira encontra, porém, na brutalidade da situação, um significado que a justifica. No "Sermão de São Roque", posterior ao do Rosário, ele dizia que "as obras de Deus todas são boas; os instrumentos de que se serve podem ser bons e maus".8 Uma reflexão que se alinha com essa, no sermão do Rosário, em que ele diz que no sofrimento dos escravos estaria o caminho para a salvação, sempre que os negros venham a conhecer a religião: "Mas se entre todo esse ruído, as vozes que se
ouvirem, forem as do Rosário, orando e meditando os mistérios dolorosos, todo esse inferno se converterá em paraíso; (...) e os homens, posto que pretos, em anjos". É preciso ter presente que Vieira dirige-se aos negros escravos do engenho: "Quando servis aos vossos senhores, não os sirvais como quem serve a homens, senão como quem serve a Deus, porque então não servis como cativos senão como livres, nem obedeceis como escravos, senão como filhos. (...) Assim como agora, imitando São João, sois companheiros de Cristo nos mistérios dolorosos de sua Cruz, assim o sereis nos dias gloriosos de sua Ressurreição e Ascensão". 9 Nessa visão do mundo, em que as obras de Deus se realizam por meio de instrumentos bons e ruins, encontravam justificativa tanto o sofrimento dos escravos quanto a dominação dos senhores, pois estes serviram de instrumento para que os negros, vindo da África para a América, passassem a conhecer a religião.10 Também Nóbrega, em meio às suas decepções com os colonizadores cristãos, entendia que os índios deveriam estar perto, ou mesmo dentro, das vilas e cidades, para que a evangelização pudesse chegar até eles. O raciocínio que Nóbrega aplicava aos índios, Vieira estendia também aos negros. O pregador considerava a vinda destes para o Brasil não como um "desterro", mas como um "milagre", porque encontrandose aqui, sob domínio português, suas almas poderiam ser salvas. Em meio às ambigüidades, são, porém, notáveis a grandeza e a coragem de Vieira, que, em seus discursos, preferiu, quase sempre, como disse Boxer, referir-se ao Velho Testamento, ao Deus das batalhas. Ainda na Bahia, em 1640, pouco antes de viajar para Portugal, e como os holandeses continuavam em suas investidas no nordeste do Brasil, Vieira pronunciou o seu notável "Sermão pelo bom sucesso das armas de Portugal contra as de Holanda". Diante da emergência, a retórica do jovem pregador, agora com 32 anos, tomou um tom incendiário, aproximando-se perigosamente dos limites da heresia, numa interpelação que, à maneira de Moisés, dirigia ao próprio Deus: "Senhor meu, que é isto? (...) Prouvera a Vossa Divina Majestade que nunca saíramos de Portugal, nem fiáramos nossas vidas às ondas e aos ventos, nem conhecêramos, ou puséramos os pés em terras estranhas! Ganhá-las para as não lograr, desgraça foi e não ventura: possuí-las para as perder, castigo foi de vossa ira. (...) se determináveis dar estas mesmas terras aos piratas de Holanda, por que lhas não destes enquanto eram agrestes e incultas, senão agora? (...) Entregai aos holandeses o Brasil, entregai-lhe as Índias, entregai-lhes as Espanhas (que não são menos perigosas as conseqüências do Brasil perdido), entregai-lhes quanto temos, e possuímos (como já lhes entregastes tanta parte); pode em suas mãos o mundo; e a nós, aos portugueses e espanhóis, deixai-nos, repudiai-nos, desfazei-nos, acabai-nos. Mas só digo e lembro a Vossa Majestade, Senhor, que estes mesmos que agora desfavoreceis e lançais de vós, pode ser que os queirais algum dia, e que os
não tenhais.(...) Abrasai, destruí, consumi-nos a todos; mas pode ser que algum dia queirais espanhóis e portugueses, e que não acheis. Holanda vos dará os Apostólicos Conquistadores. Holanda vos dará os Pregadores Evangélicos, que semeiam nas terras dos bárbaros a doutrina Católica".11 Que limites estabeleceria para si próprio o jovem sacerdote que ousava interpelar a Deus? Em todo caso, pode-se perceber, desde logo, que sua fúria de 1640 contra os protestantes holandeses é muito mais nítida no seu conteúdo político do que a indignação do sermão do Rosário de 1633, carregado de compaixão, em face do sofrimento dos escravos, aos quais, porém, aconselha a submissão aos senhores como forma de submissão a Deus. Veremos mais adiante, e talvez de um modo mais dramático, algo dessa mesma ambigüidade entre a força da compaixão e as razões da política, quando o pregador, na fase final de sua vida, será chamado a expressar-se sobre o quilombo dos Palmares. Tendo sido sempre sensível ao sofrimento de negros e índios, o grande pregador foi ainda mais sensível às razões da Contra-Reforma contra os infiéis e às razões da Coroa portuguesa, preocupada em salvar a sua colônia americana, o que lhe restava de rentável no Império decadente. Quando terminava a União Ibérica, persistindo na península Ibérica os conflitos entre portugueses e espanhóis, Vieira entendeu, já agora em Lisboa, em sermão do Ano-Novo em 1642, que deveria apelar a que cessassem as lutas fratricidas entre os dois países católicos. A paz era necessária para que ambos – em especial Portugal – pudessem enfrentar os desafios de uma época difícil. Nessa oportunidade, o pregador, tomado de fúria patriótica, usa de palavras que apelam diretamente ao derramamento de sangue. Havia que pacificar a Ibéria, diz ele. E havia que pacificá-la porque assim os portugueses poderiam voltar a "banhar suas espadas no sangue dos heréticos na Europa, e no sangue dos muçulmanos na África, no sangue dos pagãos na Ásia e na América". Mais uma vez o pregador une as razões do Estado às da Igreja. Haveria que conquistar e subjugar "todas as regiões da terra sob um único império, de modo a que todas possam, sob a direção de uma Coroa, colocar-se gloriosamente aos pés do sucessor de São Pedro".12
"Semelhanças proféticas" O século que consolidou Portugal e Espanha como fortalezas da resistência católica contra a Reforma foi também o das revoluções inglesas, em especial a primeira, a de 1640, de Cromwell, de enorme significação para a história do protestantismo. Embora se encontrasse em processo a separação do Estado e da religião, a secularização da política que Maquiavel antecipara no Príncipe teria que esperar o
século XVIII para se tornar um princípio amplamente admitido no discurso político europeu. Vieira acreditava, como muitos protestantes ou católicos da Europa do século XVII, "que os livros proféticos do Velho Testamento poderiam ser amplamente interpretados em termos do presente e do futuro imediato".13 Só numa época em que a referência aos Evangelhos era ainda obrigatória na política se poderia compreender que as dissidências religiosas inglesas tenham conduzido à experiência de "teologia aplicada" dos peregrinos nas colônias da Nova Inglaterra, de que fala Boorstin.14 Antônio Vieira foi um dos personagens mais brilhantes dessa época, na variante católica, ibérica e tridentina. Para ele, como diz João Adolfo Hansen, deveria ser "absolutamente estranha (...) a idéia iluminista de que não há nenhum fundamento absoluto para a história". Deveria ser-lhe inteiramente estranha a idéia da história como um processo apenas humano "que dispensa Deus como causa e finalidade".15 Por outro lado, ele não concebia a doutrina dissociada das coisas práticas, pois estas também teriam a presença de Deus.16 Desse modo, era-lhe essencial "demonstrar semelhanças proféticas entre o sentido da vida de homens e acontecimentos da Bíblia e o sentido da vida de homens e eventos do presente". Essas "semelhanças proféticas" eram entendidas "como presença providencial de Deus orientando uns e outros no passado e no presente". Para Vieira, "o papa e os pregadores evangélicos" eram instrumentos imediatos da "conversão do mundo". Pelas mesmas razões, em seu pensamento, as razões da evangelização e as do Estado não se separavam. O batismo dos escravos e a salvação das almas cativas não se dissociavam dos projetos de conquista de Portugal. Essa convicção se via, por toda parte, reforçada pelas circunstâncias da época. Em Portugal, na época da Restauração, os poderes espiritual e temporal, que nunca estiveram distantes um do outro, fundiram-se, visando defender a "política católica" da Coroa lusa aliada ao papa. Na missão em favor da fé cató lica, o rei era entendido como o instrumento "zelosíssimo" e remoto que protege os pregadores com a "assistência da segurança". Foi nessas circunstâncias que Vieira reconheceu em Portugal a elevada missão da salvação do gentio, na qual o papel do Novo Mundo se tornava essencial. E assim construiu uma teoria que sacralizou a dinastia dos Bragança, querendo ver nela um instrumento de Deus. Portugal seria, assim, a nação eleita para estabelecer o Império de Deus na Terra. Apoiado no pensamento do jesuíta espanhol Francisco Suárez (1548-1617), que sustentava a supremacia da Igreja perante o Estado, Vieira pretendeu, como observa Hansen, "promover a integração harmoniosa dos indivíduos, estamentos e ordens do império português, desde os príncipes da Casa real e cortesãos aristocratas até os mais humildes escravos e índios bravos do mato, visando a sua redenção coletiva
como um 'corpo místico' unificado". Ele seguia a teoria do "pacto de submissão", um contrato "no qual a comunidade, como uma única vontade unificada ou 'corpo místico', abriu mão de todo poder, alienando-o na pessoa simbólica do rei e declarando-se súdita (= submetida)". Acrescenta o mesmo autor: "Diferentemente do mundo protestante, em que o rei é sagrado porque reina por 'direito divino', como enviado direto de Deus para impor a ordem aos homens naturalmente inclinados à anarquia, em Portugal a figura do rei é sagrada porque representa a soberania popular alienada nela". É a versão católica, isto é, ibérica, do Estado absoluto, instrumento da vontade divina e aliado do papa contra os protestantes. De acordo com a visão de Vieira, Portugal teria obrigações com o gentio e com o Novo Mundo. Era esse o "destino apostólico da nação portuguesa (...), fundamento e base do reino de Portugal". O país teria tais obrigações como reino e monarquia, e "não só de caridade mas de justiça". "Tem esta obrigação Portugal enquanto reino, porque este foi o fim particular para que Cristo o fundou e instituiu". Esse "foi o intento e contrato com que os sumos pontífices lhe concederam o direito das conquistas, como consta de tantas bulas apostólicas". Porque acreditava que o rei português daria continuidade a D. Sebastião, Vieira propunha a Portugal caminhos que deveriam levá-lo ao Quinto Império. Daí a necessidade de catequizar os índios e libertar o Brasil dos "hereges calvinistas". Daí também a conveniência de preparar a vinda de D. João IV para o Brasil, ficando um regente em Portugal. Daí igualmente a conveniência de abrandar a Inquisição contra os judeus, devendo isentar de confisco os que viessem a investir na Companhia do Brasil que propôs fosse criada, "mesmo se o investidor fosse culpado de heresia, judaísmo ou apostasia". Nas semelhanças proféticas de Vieira, casavam-se, portanto, os interesses da fé e os interesses imperiais de Portugal. O "Sermão da Epifania", de 1662, dito na Capela Real, em Lisboa, no Dia de Reis, oferece o argumento básico do pregador quanto ao significado do Novo Mundo como o do novo nascimento da cristandade. Vieira voltava a Lisboa depois de derrotado no Maranhão pelos interesses dos povoadores e buscava persuadir a Corte dos objetivos de sua política. O pregador falava no Dia de Reis: "o mistério próprio deste dia é a conversão da gentilidade à fé. Até hoje a Igreja tem celebrado o nascimento de Cristo; hoje ela celebra o nascimento da cristandade". Lembrando os Evangelhos a propósito da visita dos reis magos, diz Vieira que eles representariam Ásia, África e Europa, mas que estaria faltando junto deles o rei que representaria a América. Para Vieira, os portugueses teriam completado com o descobrimento a visita dos magos a Cristo. Daí que a história de Portugal teria duas épocas, antes e depois dos descobrimentos. É isso que expressa "o destino apostólico único da nação portuguesa".17 Duas epifanias, dois chamamentos, "uma na época de Herodes, outra
dos portugueses".
Pernambuco e os judeus Em que pese sua preocupação em seguir a palavra divina, Vieira não se impedia de fazer, por sua conta e risco, cálculos políticos. No caso das invasões dos holandeses, e não obstante a fúria com que os atacou no sermão de 1641, o pregador adotou em 1648 um critério dos mais controvertidos de sua longa carreira de estrategista. Quando a luta lhe parecia de resultados incertos, ele se dirigiu a D. João IV, num texto em que chegou a propor a compra de Pernambuco aos holandeses e, eventualmente, a entrega de Pernambuco à Holanda. Pensava que isso seria um meio para aliviar as pressões da Espanha sobre Portugal que depois, mais preparado, buscaria reaver aquela região, certamente pelas armas. Como sabemos, nenhuma dessas sinuosas e arriscadas medidas veio a se revelar necessária. O poder português na colônia foi salvo pelos pernambucanos brancos, índios, negros e mestiços que, em 1654, derrotaram os holandeses. Os líderes que assim expressavam a incipiente formação da nacionalidade brasileira foram o negro Henrique Dias (?-1662), o índio Felipe Camarão (1601-1648) e o português João Fernandes Vieira (1610?-1681). Nenhum deles tinha nada de parecido com um rei, embora João Fernandes, que era "filho ilegítimo de uma prostituta mulata", tenha alcançado altas funções na vida, chegando a senhor de engenho e governador de Angola e da Paraíba.18 Mas a quem queira lembrar-se das semelhanças proféticas de Vieira, não será demais anotar que os líderes pernambucanos eram três, e de etnias diferentes, como os magos. Qualquer que seja, porém, o julgamento que se possa fazer (ou se tenha feito, na época) sobre esses cálculos políticos de Vieira, não se lhe pode negar a coragem e a audácia com que se movia nos meandros do cenário europeu. É claro que ele se apoiava no seu excepcional prestígio perante D. João IV, permitindo-se publicar livremente "certas convicções pessoais que feriam em cheio a opinião dominante no reino". Assim, "já em 1643, podia manifestar seu audacioso ponto de vista favorável à gente da nação em escrito intitulado Proposta feita a el-rei D. João IV, em que lhe representava o miserável estado do reino e a necessidade de admitir os judeus mercadores que andavam por diversas partes da Europa. Argumentando contra aquela opinião com os exemplos da Itália e da Santa Sé, que não embaraçavam a presença de tais mercadores em suas terras, salientava as vantagens para a economia portuguesa da admissão de tais mercadores".19 Nessa ocasião, e acompanhando o exemplo dos países do norte, Vieira propunha a criação de duas companhias de comércio.
Nessas palavras ao rei, Vieira combinava, com extrema habilidade, as referências bíblicas às circunstâncias da conjuntura. "Vença Vossa Majestade a infidelidade com as suas próprias armas, degolando a idolatria com a espada do judaísmo, assim como os mesmos judeus, quando Deus os governava, conquistaram a Terra da Promissão com os tesouros dos egípcios". Embora de maneira sibilina, instava a D. João IV que se inspirasse em exemplos de um passado glorioso. Ainda que soubesse que D. Manuel havia obrigado os judeus à conversão, Vieira considerou que o Venturoso os igualou aos cristãos-velhos, admitiu-os no seu reino e lhes prometeu favores. D. João II "favoreceu muito aos homens de nação e se serviu deles em postos de grande confiança". Foram os dois reis "mais felizes de Portugal, e seus anos os mais prósperos e gloriosos", "dilataram a fé e enriqueceram o reino". Não obstante, alguns historiadores considerem que houve excesso de otimismo de Vieira quanto a uma resposta positiva dos judeus, que não se interessaram tanto pela sua proposta como se esperava, o certo é que foi com dinheiro judeu que se organizou a Companhia de Comércio para o Brasil.20 Se o tema dos judeus não foi dominante entre os assuntos de que tratou Vieira em seus sermões, esteve presente em diferentes momentos da carreira do pregador. No "Sermão de São Roque", de 1644, ele apresentou a necessidade de uma abertura de Portugal aos judeus, em termos que os incorporam ao seu discurso em favor da cristandade. Ele pretendia a criação, que muitos temiam, de "duas companhias mercantis, Oriental uma, e outra Ocidental, cujas frotas poderosamente armadas tragam seguras contra Holanda as drogas da Índia e do Brasil". O objetivo era explicitamente político, ou seja, que Portugal "tenha todos os anos os cabedais necessários para sustentar a guerra interior de Castela". A criação das Companhias, aprovada e admirada na Europa, era, porém, temida em Portugal, onde "alguns de seus comerciantes" apareciam como "mal reputados na fé". Assim, "a mistura do dinheiro menos cristão com o católico, faz suspeitoso todo o mesmo remédio, e por isso perigoso". Diante desses temores, Vieira, como sempre em seus sermões, recorria ao texto bíblico: "Não houve no mundo dinheiro mais sacrílego que aqueles trinta dinheiros por que Judas vendeu a Cristo. E que se fez deste dinheiro? Duas coisas notáveis. A primeira foi que daquele dinheiro se comprou um campo para sepultura dos peregrinos. A segunda foi que mandou Cristo a el-rei D. Afonso Henriques que destes trinta dinheiros e mais das suas cinco chagas se formassem as armas de Portugal". O princípio em que se baseia é claro: "as obras de Deus todas são boas; os instrumentos de que se serve podem ser bons e maus". 21
As almas e os índios
Se o XVII foi na Europa o século das lutas religiosas, no Brasil foi, sobretudo, o das lutas entre jesuítas e bandeirantes. Na terra selvagem, em meio à floresta povoada de índios, os bandeirantes eram, em geral, uns sujeitos extremamente rudes, em quase tudo diferentes dos jesuítas, pessoas letradas e, por vezes, de origem nobre ou fidalga. Assim como Bartolomeu de Las Casas diante dos conquistadores espanhóis no século XVI e Manuel da Nóbrega diante dos primeiros povoadores do Brasil, Antônio Vieira, no século XVII, tinha opinião desfavorável dos povoadores e dos bandeirantes. Sempre próximo da Coroa, ele via nos bandeirantes parceiros incômodos que, no mais das vezes, tornavam-se inimigos. Produtos de uma mestiçagem iniciada com o descobrimento, muitos bandeirantes e povoadores se achavam em parte assimilados ao estilo de vida dos índios. No caso de São Paulo, mal falavam o idioma português, o que não seria muito diferente no Maranhão e no Pará, para onde a companhia enviou Vieira na segunda metade do século XVII. Embora desejando, como Nóbrega, evitar conflitos sobre a distribuição do trabalho indígena, o pregador não tinha dúvidas quanto às prioridades da evangelização. No "Sermão das Tentações", que pronunciou em sua chegada, em 1655, ao Maranhão, Vieira lembrou as tentações do demônio a que Cristo resistiu para dizer aos colonos que a escravização dos índios era uma tentação a que estes não haviam resistido, e por isso perdiam suas almas. Lembrando a passagem bíblica na qual Cristo lavou os pés dos apóstolos, afirmou que Deus queria que o povo e a nobreza do Maranhão libertassem os índios escravos. É que, ao lavar os pés dos apóstolos, Jesus queria dizer que os cristãos deveriam servir à humanidade. "Pois Deus ter se encarnado era tornar-se homem ele próprio; pois ele lavar os pés dos homens era ele próprio tornar-se um servo." "Sabeis, cristãos, sabeis nobreza e povo do Maranhão, qual é o jejum que quer Deus de vós. (...) Todos estais em pecado mortal: todos viveis e morreis em estado de condenação, e todos vós ides direito ao inferno."22 Vieira lembrava aos colonos o inferno porque queria salvar suas almas para o céu, tanto as dos povoadores quanto as dos índios. As almas a salvar seriam, para ele, "as verdadeiras minas do Maranhão". No plano prático da repartição do trabalho indígena, ele queria conciliar com os colonos. Queria chegar a uma forma por meio da qual "todos os índios deste Estado servirão aos portugueses; ou como próprios e inteiramente cativos, que são os de corda, os de guerra justa e os que livre e voluntariamente quiserem servir, ou como meios cativos que são todos os das antigas e novas aldeias". Quanto a essa proposta, o pregador perguntava aos colonos: "Pode haver coisa mais moderada? (...) Quem se não contentar e não satisfazer disto, uma das duas: ou não é cristão ou não tem entendimento".23 A chegada de Vieira ao Maranhão deu-se no momento em que se anunciava lei de
D. João IV que libertava os índios escravizados em toda a colônia e buscava estabelecer limites para as tropelias em torno da questão indígena.24 A nova lei determinava que a escravização de índios só ocorreria em quatro circunstâncias: a Coroa ordenava a escravização; os índios recusavam a pregação cristã (a lei proibia a conversão forçada); os índios eram cativos de outras tribos e ameaçados de morte ritual; ou eram capturados pelos portugueses em guerra justa. Essa nova lei provocou grande oposição, não obstante significasse, de fato, que muitos índios permaneceriam escravos, e ainda outros pudessem vir a ser escravizados. Vieira percebeu claramente as implicações da lei, como se pode perceber de suas palavras, buscando alguma forma de conciliação com os colonos. Estes, porém, não queriam saber de nenhuma restrição e, como sabiam da amizade entre Vieira e o rei, acusaram o pregador de haver sido o inspirador da lei que contrariava seus interesses. Embora Vieira negasse a acusação, isso não impediu que os colonos ameaçassem tomar o colégio dos jesuítas, assim que a lei foi publicada.25 A alegação dos colonos era que, sendo pobres, não podiam comprar os negros da África, e dependiam dos indígenas para tocar suas lavouras. Colocavam-se assim os moradores do Maranhão e do Grão-Pará abaixo do Estado do Brasil, em especial a Bahia e Pernambuco, onde era geral o trabalho escravo de negros africanos. João Lúcio de Azevedo resume os argumentos dos povoadores: "alegavam eles que a posse dos índios, da qual pretendiam esbulhá-los, era legítima, achando-se autorizada por uma junta (...) . Erro lastimável seria comparar a situação destas capitanias à do Estado do Brasil, onde entravam em quantidade negros africanos. Por cá o único socorro era o dos índios, e os povoadores, vivendo espalhados pelas ilhas e margens dos rios, a grandes distâncias, não podiam dispensar o serviço dessa gente, como remeiros. Tampouco para o trabalho das roças onde fabricavam o açúcar, o tabaco, e tantos outros gêneros que faziam a riqueza da república. E não eram os índios exclusivamente servos: como soldados ajudavam a defender o território; não existia nenhuma lei divina ou humana que vedasse a posse de escravos, sendo feitos com justiça; e, por outro lado, benefício era para estes, o entrarem de qualquer forma no grêmio da igreja cristã".26 Além do argumento econômico, os colonos se apoiavam em argumentos políticos e mesmo religiosos, alegações sempre possíveis na situação de ambigüidade normativa sobre o tema, em particular do lado da administração colonial e da Coroa. De um ponto de vista doutrinário, argumentavam que a submissão dos índios era legítima, pois era próprio do inferior subordinar-se ao superior, uma alegação então muito freqüente, baseada no clássico argumento aristotélico. João Lúcio de Azevedo anota que as queixas dos colonos do Maranhão, além de se referir ao regime dos índios, mencionavam os missionários em geral e os procedimentos do próprio
Vieira. Pela primeira vez apresentavam "a argüição de cobiça, o labéu constantemente lançado sobre as missões".27 Diante das ambigüidades da Coroa e das resistências dos colonos, Vieira recuperou diretrizes da Igreja do século XVI, a qual em 1537 estabelecia, por meio da bula Sublimis Deos: "os referidos índios e todos os demais povos que daqui por diante venham ao conhecimento dos cristãos, embora se encontrem fora da fé de Cristo, são dotados de liberdade e não devem ser privados dela, nem do domínio de suas causas, e ainda mais, que podem usar, possuir e gozar livremente desta liberdade e deste domínio, nem devem ser reduzidos à escravidão; e que é írrito, nulo e de nenhum valor tudo quanto se fizer em qualquer tempo de outra forma".28 Essa determinação foi reforçada, em 1550, pelo Concílio de Trento, quando identificou à heresia luterana a tese de que eram legítimas a conquista e a escravização dos selvagens americanos porque estes não conheciam a verdadeira religião revelada. Além desses antigos decretos, Vieira recuperou disposições anteriores de Nóbrega, Anchieta e Cardim. 29 Não obstante as intenções iniciais de conciliação, no ambiente já carregado de suspeitas, os jesuítas terminaram por se chocar frontalmente com os interesses coloniais. Em 1661, a população de São Luís se amotinou contra eles e, no mesmo ano, Vieira foi expulso de Belém. As tentativas de Vieira, buscando conciliação com os povoadores, conduziram-no a uma proposta para a utilização de escravos negros. É o que relata João Francisco Lisboa: "numa representação dirigida à câmara do Pará em 12 de fevereiro de 1661, disse também o padre Antônio Vieira que os negros de Angola eram muito preferíveis aos índios, por serem estes menos capazes para o trabalho, de menos resistência contra as doenças, e como muito próximos de suas terras, mais no caso de fugirem facilmente, ou de se deixarem morrer de saudades delas". Além dessa, Lisboa menciona uma segunda proposta de Vieira, em 1669, em favor da escravidão de africanos. E João Lúcio de Azevedo assinala que, em 1678, tendo regressado de Roma, e mandado ouvir pelo regente, Vieira voltou à proposta de introdução de escravos de Angola por conta da coroa. Além disso, incluía os seguintes itens: proibição absoluta dos resgates, desenvolvimento das missões e entrega das aldeias aos religiosos da Companhia.30 No ano de 1662, já em Lisboa, Vieira discorreu no "Sermão da Epifania" sobre as experiências dos jesuítas no Maranhão, nas quais fora derrotado. O pregador manifestou a intenção de celebrar, a propósito do nascimento de Cristo, o nascimento da nova cristandade no Novo Mundo: "finalmente, nasceu Cristo na conquista do Maranhão, que foi a última de todas as nossas". Mas lamentou a seguir: "o que, porém, excede todo o espanto, e não se pode ouvir sem horror e assombro, é que os perseguidores de Cristo e seus pregadores neste caso não sejam os infiéis e
gentios, senão os cristãos. Se os gentios indômitos, se os tapuias bárbaros e feros daquelas brenhas se armaram medonhamente contra os que lhes vão pregar a fé. No evangelho temos a Cristo hoje perseguido, e hoje adorado: mas de quem adorado, e de quem perseguido? Adorado dos gentios, e perseguido dos cristãos".31
Jesuítas e bandeirantes: a conciliação difícil Nas circunstâncias do século XVII, é mais fácil compreender as tentativas dos esuítas de conciliação com os colonos do que o freqüente fracasso dessas tentativas. Uma dessas tentativas de conciliação, entre muitas, foi feita em fins do século XVII pelo jesuíta toscano Giovanni Antonio Andreoni, que foi secretário particular de Vieira e chegou a reitor do Colégio de Salvador. Andreoni tornou-se mais conhecido como Antonil, o nome com que assinou seu livro Cultura e opulência do Brasil (1711), que depois de impresso foi apreendido por ordem real como contrário aos interesses da metrópole. Ele oferece, nesse livro, uma ampla descrição sociológica e econômica da colônia, na perspectiva de um realismo e de um pragmatismo que o conduziram a divergências com os pontos de vista de Vieira. Algumas das frases de seu famoso livro tornaram-se célebres. Por exemplo: a colônia brasileira é "inferno dos negros, purgatório dos brancos, e paraíso dos mulatos". Uma frase que, segundo Boxer, era freqüente entre os portugueses do século XVII. O que sugere uma percepção da consolidação da colônia por parte dos contemporâneos.32 Também é verdade, contudo, que, seja como inferno, purgatório ou paraíso, os elementos que compunham a colônia vinham sedimentando desde o século XVI: os conflitos em torno da questão indígena, a importação de negros da África, a produção do açúcar em São Vicente, Bahia e Pernambuco e as entradas e bandeiras sertão adentro em busca de ouro e de índios. Tudo isso vinha se desenvolvendo desde o século XVI como parte de um cenário colonial que, sobrevivendo aos ataques dos corsários e à decadência lusa, só iria mudar em meados do século XVIII, quando o marquês de Pombal redefiniu a linha das Tordesilhas e expulsou os esuítas. Na época da chegada de Vieira ao Maranhão já se havia feito geral na colônia o sistema de aldeamentos criado por Nóbrega. Como diz Boxer, "no início do século XVII, (a administração colonial) tinha dado controle efetivo de suas aldeias à Companhia" e buscava auxiliar os jesuítas "em seu esforço em proteger os nativos". Os jesuítas, em troca, firmavam com os povoadores "contrato de trabalho de seus índios, segundo algumas garantias".33 Mas permaneciam os conflitos, os quais, a despeito dos esforços conciliadores, pareciam inerentes ao sistema. Nesse sentido é expressiva a "síntese do edifício social" do Maranhão oferecida
por Azevedo: "Em baixo, a plebe de índios e negros africanos, os primeiros desaparecendo gradualmente ao contacto da civilização, os últimos indo fundir-se com os elementos europeu e indígena, para formarem a raça nova (...) . Acima deles, os colonos reinícolas e filhos da terra, com igual pendor para a ociosidade e as mesmas pretensões de ascendência heróica e nobre (...) ; cobiçam debalde os postos elevados do governo, que o ciúme da metrópole reserva aos seus enviados. Estes, no passo mais alto da escala, são os próceres e verdadeiros senhores da colônia".34 Na época de Vieira, os jesuítas, além de sacerdotes, já se haviam tornado também colonizadores. Daí "a argüição de cobiça, o labéu constantemente lançado sobre as missões". Com grande influência em Lisboa e na administração colonial, a Companhia de Jesus havia adquirido por intermédio do sistema dos aldeamentos uma real significação material. Havia alcançado pleno êxito o plano inicial de Nóbrega de implantar a atividade dos jesuítas em toda a colônia e, como resultado, a Companhia estabelecera uma vasta rede de aldeias em todo o território. Só na região amazônica, mais próxima da ação de Vieira, até 1660, havia 54 missões no Amazonas, nas quais viviam duzentos mil índios. [<<11]
O Brasil no século XVII: expansão promovida pelos bandeirantes para apresar índios, cujas almas Vieira queria salvar.
Os feitos dos colonizadores e dos bandeirantes não eram menos impressionantes. A produção do açúcar se havia estabelecido com êxito no Nordeste, um êxito a que se somam as iniciativas de criadores de gado, como os da Casa da Torre. Em 1585, a Bahia tinha 36 engenhos. Ao final do século XVII, passou a 146. E o país somava uma população estimada em 250 mil pessoas, na maioria composta por negros e índios, livres e escravos.35 Por outro lado, os bandeirantes expandiam o território por meio de marchas pelo interior que fixaram as posições de avançada da América portuguesa. São de Antônio Raposo Tavares (1598-1658) as maiores expedições, sempre a partir de São Paulo: a primeira (1628-1633) em direção a Guairá, na proximidade do rio Paraná; a segunda (1635-1637) em direção ao atual estado do Rio de Grande do Sul, junto com Fernão Dias Paes (1608-1681); a terceira (1648-1652) entrando pelo centro-oeste e subindo entre os rios Madeira e Tapajós, até a boca do Amazonas. Também saindo de São Paulo, Fernão Dias Paes foi, em 1638, rumo ao sul, na direção do rio da Prata. Manuel Campos Bicudo, em 1673, continuou as expedições ao centro-oeste. Embora mais numerosas, as expedições paulistas não são as únicas. Cortando o norte do país, a maior delas é de 1649, de Pedro Teixeira, que, saindo da boca do rio Amazonas, atravessando toda a região amazônica, chegou a Quito, no Equador. São de inícios do século XVIII, também nos rumos do centro-oeste, as expedições de Antônio Pires de Campos (1716), Bartolomeu Bueno da Silva (1725) e Pascoal Moreira Cabral (1718).36
Diferenças de mentalidade É possível que na época de Vieira o crescimento colonial tornasse mais difícil a conciliação entre jesuítas e colonos. O desenvolvimento da colônia era acompanhado do crescimento dos dois bandos e de suas respectivas áreas de influência e interesses, tornando mais agudos conflitos que, no século XVI, estavam ainda em germe. Essa possibilidade de explicação surge das queixas dos povoadores, acusando os jesuítas de buscar o controle dos índios para assegurar vantagens materiais para a Companhia. "A pretexto de proverem às despesas do culto e à manutenção das aldeias, aumentando assim o cabedal da companhia, pode dizer-se a história da companhia, por si só, uma história completa da colonização".37 Mais evidentes, porém, do que diferenças em torno de interesses materiais foram as divergências de mentalidade. Se Vieira deixou para a história a imagem de haver sido o último pregador da Idade Média, os colonos e, sobretudo, os bandeirantes, tinham muito dos últimos guerreiros da Reconquista, agarrados a antigas noções de honra, que incluíam o saque e a escravização do vencido. É certo, porém, que essa
mentalidade medieval se esgarçava nos dois grupos, o que talvez propiciaria divisões surpreendentes entre pessoas que, afinal, se haviam formado nos mesmos valores. Em todo caso, os conflitos se tornariam cada vez mais irredutíveis entre colonos e jesuítas. Estes, embora pragmáticos e vinculados aos interesses materiais das aldeias, nunca renunciaram à salvação das almas. No caso particular de Vieira, o pragmatismo revelou-se débil no interior de um pensamento que o conduziu, com freqüência, à condenação moral dos povoadores. No tribunal, sob a presidência de André Vidal de Negreiros, criado no Maranhão para decidir cerca de dois mil casos de índios escravizados de modo considerado ilícito ou duvidoso, o pregador sempre votou a favor da liberdade do índio. Ele aceitava e defendia a missão apostólica da Coroa que envolvia a conquista do Novo Mundo, mas não tinha a mesma facilidade para aceitar a legitimidade de ações dos povoadores e dos bandeirantes, embora estas caminhassem no mesmo rumo. Em suas críticas aos bandeirantes, Vieira passava por alto a contribuição destes últimos à expansão do território, para deter-se na denúncia moral e religiosa. A propósito das épicas expedições de Pedro Teixeira e de Raposo Tavares, disse que, tendo eles viajado cerca de três mil léguas pelo interior do país, "habitado por um número infinito de nações (indígenas) que homem nenhum da Europa, além daqueles viajantes, havia jamais visto, (...) aqueles mesmos homens só deixaram atrás de si exemplos de sua perversão e cobiça, não um único exemplo de sua fé".38 Na empreitada colonial em que todos se achavam envolvidos, realidades novas escapavam ao olhar do pregador. Ou, quando as percebia, tendia, como em geral os esuítas, a repudiá-las. E alguns aspectos dessas realidades repugnantes eram, ao tempo de Vieira, já antigos e conhecidos. Desde o século XVI, muitos povoadores e bandeirantes não podiam ser considerados portugueses, porque já eram mamelucos, mistura de índio com português. Contudo, desde Nóbrega até Vieira, os jesuítas observavam com repugnância o fato de que muitos portugueses se deixassem seduzir pelo modo de vida dos índios. Criticavam as misturas de índios com caçadores de índios que também vinham desde inícios da colônia, quando os grupos indígenas "amigos" foram estimulados a caçar índios em grupos rivais para escravizá-los e vendê-los aos colonos. Além disso, com o correr do tempo, parte importante das tropas bandeirantes passou a ser formada por índios.39 Em meados do século XVI já eram visíveis a Nóbrega os problemas que Vieira veio a enfrentar no século XVII. Talvez, em razão da distância em que a capitania se achava da Corte, a miscigenação em São Paulo tenha sido particularmente forte. A capitania recebeu notável influência indígena desde o início até o período das bandeiras, que alguns historiadores consideram "um fenômeno tipicamente mameluco". Segundo Teodoro Sampaio, "até meados do século XVIII falava-se em
São Paulo mais a língua-geral que o português". "Por isso são tupis os nomes de muitas localidades identificadas pelos Bandeirantes." Em mais de um momento Vieira criticou os paulistas, dizendo que em São Paulo as famílias dos portugueses e índios estão ligadas umas às outras e que falam a língua dos índios. É célebre o caso do paulista Domingos Jorge Velho (1641?-1703): em fins do século XVII, contratado pelo governo de Pernambuco para debelar o quilombo dos Palmares, percebeu-se que ele precisava de um "língua" para se comunicar com quem falava português.40 Depois da morte de D. João IV, Vieira disse, em carta de 1657, ao novo rei D. Afonso VI, que, em espaço de quarenta anos, dois milhões de índios haviam sido mortos pelos portugueses.41 O número suscita dúvidas em alguns historiadores, segundo os quais não haveria uma população indígena tão grande no país. Mas vale a estimativa de Vieira para indicar que foi grande o número de mortos, não apenas em guerras e combates, mas também por doenças trazidas pelos portugueses, para as quais os índios não dispunham das defesas orgânicas dos europeus. Vale também para indicar a que ponto chegou a tensão entre povoadores e jesuítas, cujas opiniões se opunham de modo irredutível. De qualquer modo, os bandeirantes e os povoadores eram o lado mais forte da disputa com os jesuítas. Eles garantiram o fornecimento da primeira "força de trabalho" no país; alargaram o território para além do meridiano das Tordesilhas; e, ao fim do século XVII, encontraram as minas de metais preciosos que ajudaram a suprir as necessidades de capital numa Europa que desenvolvia o seu progresso comercial e se preparava para a revolução industrial, aumentando, de passagem, os luxos de Portugal e dos ricos da colônia. Foi nesse processo que terminaram por derrotar os jesuítas e seus aldeamentos. Observando-se os conflitos de quase dois séculos, impregnados de medievalismo, fica sempre a impressão de que uma das duas partes estaria condenada a desaparecer. Embora compondo um projeto comum, de alargamento da fé e do império, nenhuma das partes parecia capaz de compreender as razões da outra. Ao final, prevaleceu o mais forte. Foram derrotados os jesuítas, primeiro com expulsões locais, como as de São Paulo e do Maranhão, e, finalmente, com a expulsão de todo o território. Antônio Vieira, o mais poderoso e o mais brilhante deles, caiu antes da Companhia, que depois dele entrou em decadência na colônia.
Desigualdade: os índios e os negros É até hoje motivo de espanto saber que a Igreja que tanto combateu em defesa dos índios tenha aceitado a escravização dos negros, não apenas no Brasil, mas em toda a
América ibérica. Mesmo no caso de uma figura tão notavelmente combativa como Bartolomeu de Las Casas, foi apenas ao fim de sua vida, toda dedicada a defender os índios, que se manifestou contra a escravidão dos negros. Vieira não se esqueceu dos negros, aos quais dedicou alguns sermões do Rosário, mas a atenção que lhes deu foi muito menor do que a dedicada aos índios e, em diferentes momentos, aos judeus. Queria salvar as almas dos negros, diminuir seu sofrimento, mas estava longe de admitir que deveriam ser livres. Como já se disse, o grande pregador do século XVII não pode ser interpretado com os critérios do Iluminismo do século XVIII. Mesmo quanto aos índios, nunca foi nítida nele a doutrina de que deveriam ser livres. Quanto aos negros, nunca foi um abolicionista, nem mesmo ao fim da vida, como Las Casas. No "Sermão da Epifania" ele diz: "Não é minha intenção que não haja escravos (...); nós queremos só os lícitos, e defendemos (proibimos) os ilícitos (...)". 42 É que, para Vieira, a verdadeira escravidão era o pecado que afastava o homem de Deus. Fiel à doutrina da Igreja do seu tempo e ao espírito da última Idade Média, ele não admitia em sua visão de mundo o indivíduo, no sentido iluminista. Assim como o homem se escravizava quando pecava, libertava-se quando se aproximava de Cristo, por intermédio da Igreja. Era essa a preocupação essencial de Vieira: a liberdade que se encontraria na salvação das almas. Já que Vieira admitia, quanto aos índios, que pudesse haver uma escravidão lícita, como distinguir, nos casos concretos, entre o escravo lícito e o ilícito? É razoável supor que ficasse aberta alguma possibilidade de entendimento com os povoadores. Mas os colonizadores não queriam saber de nenhuma restrição, de tal modo que a definição do que se considerava lícito ou ilícito colocava problemas práticos nem sempre fáceis de resolver. Segundo Alfredo Bosi, uma das razões do desentendimento entre Antonil e Vieira teria sido a conciliação, que o primeiro aprovava e o segundo condenava, com "preadores de índios em São Paulo".43 Contudo, não pode ter sido excepcional a tentativa de Antonil, que tinha precedentes nas alianças de Nóbrega no Rio de Janeiro e na Bahia. Tinha precedentes mesmo nas tentativas, fracassadas, de Vieira, buscando entendimentos com os moradores do Maranhão em entradas pelo interior. Além disso, sabe-se dos conflitos entre Nóbrega e Luís da Grã, seu sucessor como provincial, bem como das diferenças de opinião entre jesuítas e membros de outras ordens religiosas. As ambigüidades da Coroa e da Igreja abriam espaço para muitos conflitos dessa natureza. Em certas situações, o problema da licitude da escravidão indígena colocou-se para o próprio Vieira. Em carta ao rei de 11 de fevereiro de 1660, ele relata os sucessos das missões que realizara com o padre Francisco Gonçalves, de São Luís
para o Amazonas e o rio Negro, em 16 de agosto de 1658, atravessando por todas as capitanias do Estado, "e de todas elas fora levando os respectivos procuradores e canoas em quantidade para o resgate de escravos que se fazia naqueles rios". Foi aquela a primeira vez, diz Vieira, "que o resgate se fez por esta ordem, para que os interesses dele coubessem a todos, e particularmente aos pobres, que sempre, como é costume, eram os menos lembrados".44 O pregador também narra a guerra com que "este piedoso exército" (a ironia é de João Francisco Lisboa) castigou índios rebelados da nação inheiguara, que, segundo Vieira, "haviam há tempos impedido a outros índios da sua vizinhança que se descessem para a igreja e vassalagem de S. M". Diz Vieira: "São os Inheiguaras gente de grande resolução e valor, e totalmente impaciente de sujeição; e havendo-se retirado aos lugares mais ocultos e defensáveis das suas brenhas, em distância de mais de cinqüenta léguas, lá mesmo foram buscados, achados, cercados, rendidos e tomados quase todos, sem dano mais que de dois índios nossos levemente feridos. Ficaram prisioneiros duzentos e quarenta, os quais, conforme as leis de S. M., a título de haverem impedido a pregação do evangelho, foram julgados por escravos, e repartidos aos soldados".45
Desigualdade social e compaixão cristã Não obstante todos os constrangimentos do passado, a época de Vieira era também um tempo de mudança. E o pregador era, como sabemos, também um estrategista político. Daí que não há como considerar suas idéias como pertencentes a um bloco homogêneo. Assim como fazia às vezes seus cálculos políticos por conta própria, o "último pregador da Idade Média" enfrentava as questões do seu tempo com idéias novas a respeito da nova humanidade, nem sempre inspiradas na tradição ou enquadradas nos limites estabelecidos pela regras do Concílio de Trento ou, mesmo, da Companhia de Jesus. Ao contrário do que era dominante numa época em que a desigualdade das etnias se entendia como natural, Vieira parece descrer da superioridade de uma etnia sobre outras. Eis o que diz no "Sermão da Epifania": "pode haver maior inconsideração do entendimento, nem maior erro do juízo entre homens, que cuidar eu que hei de ser vosso Senhor, porque nasci mais longe do Sol, e que vós haveis de ser meu escravo, porque nascestes mais perto? (...) Dos magos, que hoje vieram ao presépio, dois eram brancos e um preto, e seria justo que mandasse Cristo que Gaspar e Baltasar, porque eram brancos, tornassem livres para o Oriente, e Belchior, porque era pretinho, ficasse em Belém por escravo, ainda que fosse de São José? Bem o pudera fazer Cristo, que é Senhor dos senhores; mas quis nos ensinar que os homens, de
qualquer cor, todos são iguais por natureza, e mais iguais ainda por fé, se crêem e adoram a Cristo, como os magos".46 Até mesmo as aparentes inconsistências do pregador de algum modo se vinculam em sua visão cristã do mundo. Está claro que, no "Sermão da Epifania", ele defende a igualdade das raças. Mas qual igualdade? A igualdade dos cristãos: "entre cristão e cristão não há diferença de nobreza, nem diferença de cor. Não há diferença de nobreza, porque todos são filhos de Deus, nem há diferença de cor". As etnias, portanto, são iguais quando cristãs. E por isso acrescenta: quando cristãs, são brancas. É assim que nos diz que os cristãos, por virtude do batismo, "são todos brancos": "Esta é a virtude da água do batismo". Daí concluir, num argumento contra o racismo dos colonos: "Mas é tão pouca a razão, e tão pouca a fé daqueles inimigos dos índios, que depois de nós os fazermos brancos pelo batismo, eles os querem fazer escravos por negros".47 Não faltou a Vieira a possibilidade, no "Sermão da Epifania", de uma admissão de culpa: "não posso, porém, negar que todos nesta parte, e eu em primeiro lugar, somos muito culpados. E por quê? Porque devendo defender os gentios, que trazemos a Cristo, como Cristo defendeu os magos, nós, acomodando-nos à fraqueza do nosso poder, e à força do alheio, cedemos da injustiça, e faltamos à sua defesa". Cristo defendeu os magos "de tal maneira que não consentiu que perdessem a pátria, nem a soberania, nem a liberdade: e nós (...) não só consentimos que (os gentios) percam tudo isto, senão que os persuadimos a que o percam, e o capitulamos com eles, só para ver se se pode contentar a tirania dos cristãos; mas nada basta. (...) Nada disto basta para moderar a cobiça e a tirania dos nossos caluniadores, porque dizem que (os gentios) são negros, e hão de ser escravos". 48 A condenação de Vieira pela Inquisição, em 1667, não significou o fim de sua atividade como jesuíta. Mas deu início ao ocaso de sua vida pública. O pregador foi levado ao Santo ofício em razão de disputas antigas entre a Companhia e os padres do Tribunal. Não faltaram ainda acusações de aproximação com os judeus, até mesmo a proposta para a formação das companhias de comércio. Foi também mencionado o texto de Vieira com o título Esperanças de Portugal, no qual divulgava o sonho sebastianista de recuperação de Portugal como o Quinto Império da humanidade. Depois de quatro anos de prisão para interrogatório, o pregador foi condenado. Quando ele se levantou para ouvir a sentença, no Colégio de Coimbra, todos os esuítas presentes se levantaram e permaneceram de pé durante os procedimentos, que duraram mais de duas horas.49 Dois anos depois depois, libertado, saiu de Portugal para Roma, onde foi defender os judeus e seu nome perante o papa. Em
1681 voltou à Bahia, dedicando grande parte do tempo à preparação dos sermões para publicação. Morreu em 1697.
Imperativos da colonização, limites da compaixão Merecem um registro final as reflexões de Vieira em torno do quilombo de Palmares. Um registro final e à parte porque ocorreram em 1691, quando o pregador á se achava à margem dos grandes combates a que dedicou sua vida. Vieira voltara há mais de duas décadas aos muros de sua ordem e se dedicava a assuntos pessoais e da Companhia quando lhe chegou consulta da Coroa sobre a questão de Palmares. Em sua resposta sobre a rebelião de Palmares encontram-se talvez os limites do seu pensamento sobre a nova humanidade que os povoadores e os jesuítas encontraram na América. O quilombo dos Palmares foi a mais notável rebelião negra no Brasil colonial. Como relata Perdigão Malheiro, as rebeliões dos negros eram freqüentes na colônia portuguesa como nas colônias espanholas, francesas e inglesas. A de Palmares durou décadas, cerca de 67 anos, na serra da Barriga, hoje estado de Alagoas. Resistiu a ataques dos holandeses de Maurício de Nassau e a diversas expedições da administração colonial. Começou na época das guerras holandesas, reunindo escravos fugidos e pessoas livres. Depois da definitiva expulsão dos holandeses, um dos primeiros cuidados do governo foi bater Palmares, ordenando várias entradas nos sertões. A guerra final contra o quilombo nasceu de um contrato entre o governador de Pernambuco e Domingos Jorge Velho, no qual se estabelecia que os negros aprisionados deveriam pertencer aos conquistadores. Era habitual no Brasil, para a repressão às rebeliões negras, o recurso aos capitães-do-mato. Nos combates para destruir Palmares foi empregada uma força de quase oito mil homens, derrotando numa luta de muitas semanas o quilombo sob a liderança de Zumbi.50 É inequívoca a posição tomada por Vieira sobre a questão de Palmares, em carta de 1691 dirigida ao rei de Portugal, D. Pedro II (1648-1706). Não existia, na época, diante da escravidão dos negros, a ambigüidade admitida em torno das definições da escravidão lícita e ilícita dos índios. Na época, quanto aos negros, toda escravização era lícita. Ou ao menos costumeira, em todo caso considerada inevitável. É o que se depreende das opiniões de Vieira sobre Palmares, vários anos antes dos combates que levariam à destruição do quilombo. Em carta ao rei, o pregador recusou a idéia de que se enviassem padres da Companhia para pregar aos negros de Palmares. Ele dizia que isso seria inconveniente porque os negros de Palmares se achavam "em pecado contínuo e
atual". Para Vieira, os negros deviam obediência aos seus senhores, e a rebeldia era um crime e um pecado. Recusou também a possibilidade de se enviar ao quilombo padres "naturais de Angola". Em um passo final de seu argumento, Vieira admitiu, de maneira surpreendente, que só haveria "um meio eficaz e efetivo" para fazer cessar a rebelião: o rei e os senhores concederiam aos rebelados "espontânea, liberal e segura liberdade", permitindo-lhes viver onde estavam, tal como "os outros indivíduos e gentios livres" viviam em suas aldeias. Poder-se-ia considerar essa aproximação especulativa entre índios e negros um indício de que Vieira pressentia a inconsistência do seu pensamento quanto ao tratamento a ser dispensado aos negros? Mas Vieira recusou também essa hipótese no curso de um argumento que denota os limites definitivos do seu pensamento: conceder a liberdade aos negros de Palmares, disse ele, "seria a total destruição do Brasil". É surpreendente e dolorosamente realista a razão que o levou a tal conclusão. Ele considerou que, "conhecendo os demais negros que por este meio tinham conseguido ficar livres, cada cidade, cada vila, cada lugar, cada engenho, seriam logo outros tantos palmares, fugindo e passando-se aos matos com todo o seu cabedal, que não é outra mais que o próprio corpo!".51 O grande pregador, cujos argumentos de pretensão universal aspiravam esclarecer o sentido da descoberta de uma nova humanidade, submetia-se, assim, à lógica férrea da preservação da colônia. Para Vieira, como para os colonizadores, não podia haver colônia sem escravos. A avaliação crítica dessas opiniões não deve, porém, ceder a nenhum anacronismo. Sabemos que Vieira não era um iluminista e que a sociedade européia de seu tempo permitia a escravidão dos negros. Na península Ibérica persistia a tradição da escravização do vencido. A propósito, nos séculos XVI e XVII, a exploração de escravos não se limitava aos países de predominância católica; Barléus, um calvinista holandês, lamentava em meados do século XVI que também a praticassem os holandeses. No caso de Portugal, é preciso lembrar ainda que funcionava livremente o tráfico negreiro, que surgiu muito cedo, quase ao mesmo tempo que os portugueses começaram a explorar as costas da África. É preciso lembrar, finalmente, que as primeiras imagens humanistas da modernidade não pareciam reservar aos negros nenhum reconhecimento. Quando tudo foi dito, permanece, porém, o fato de que o grande missionário, ao recusar pregar aos negros de Palmares e, mais, ao recusar-lhes a liberdade que admitia para os índios, submeteu-se à lógica de ferro da colonização.
Herança de Vieira
Muito estudado pelos críticos literários e pelos historiadores católicos, Antônio Vieira é menos conhecido dos sociólogos e dos cientistas políticos, até mesmo dos antropólogos. E, contudo, na defesa cristã (católica) da igualdade, que tão bem expressou ao longo da vida, encontram-se algumas das raízes do pensamento social e político brasileiro. Mais do que isso, encontram-se nele algumas raízes da peculiar abertura e das ambigüidades da cultura brasileira diante das etnias e da desigualdade social. Junto com os padres da Companhia que, como ele, dedicaram-se durante dois séculos a evangelizar o Brasil, o "último pregador da Idade Média" nos deixou a herança de algo de suas virtudes e de seus defeitos, alguns dos quais ele próprio reconheceu em vida. Mesmo que não tenham sempre conseguido ser igualitários e justos, Vieira, Nóbrega e os demais jesuítas transmitiram o valor da igualdade e da justiça a uma sociedade que, desde a origem, sabia-se desigual e injusta. Não conseguiram, depois de dois séculos, torná-la mais igualitária, mas obrigaram-na a abrir-se à crítica da sua própria desigualdade. Em lugar de uma sociedade criada na certeza da correção dos seus caminhos, Vieira e os jesuítas ajudaram a criar na sociedade uma elevada consciência dos seus próprios erros. Uma sociedade por isso compassiva dos que sofrem a própria injustiça. Em seu livro sobre Vieira, o historiador Thomas Cohen sugere que o melhor epitáfio para o grande pregador está nas palavras com que ele, apoiado nos exemplos de São Paulo e São Francisco Xavier, definiu o sentido essencial da atividade do missionário: " (...) ad omnia é e deve ser a empresa e o emblema de todo verdadeiro missionário (...) , todos por todos e todos por tudo. Não apenas catequizar o gentio, batizar os catecúmenos e instruir os cristãos, mas também alimentá-los quando têm fome, vesti-los quando estão nus, curá-los quando estão enfermos, libertá-los quando estão cativos, enterrá-los quando morrem: como preceptores, como pais, como pastores, como médicos, como enfermeiros, como servos, como seus escravos em todas as coisas, viver sempre com eles e morrer com eles, e por eles, e também em suas mãos. (...) É tudo isto que significa ad omnia".52 A sugestão de Cohen é valiosa pelo menos por uma razão: ninguém poderia dizer melhor do que Vieira o sentido da compaixão que ele buscou como significado de sua própria vida.
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Pombal: pensamento iluminista influenciando o Brasil.
1. B OXER, A Great Luso-Brazilian Figure..., cit.,p. 4. 2. As trovas do Bandarra foram publicadas, pela primeira vez, em 1606, em Paris, sob o título Paráfrase e concordância de algumas profecias de Bandarra, sapateiro de Trancoso. Submetido à Inquisição em 1541, Bandarra declarou ser analfabeto e haver composto as suas trovas baseado no que ouvira da Bíblia. 3. C IDADE, Hernani. Padre Antônio Vieira. Lisboa: Presença, 1985. p. 9. 4. CIDADE, op. cit. BOXER, A idade de ouro do Brasil, cit., p. 39. Ver também N ISKIER, Arnaldo. Padre Antônio Vieira e os judeus. Rio de Janeiro: Imago, 2004. p. 62. 5. O conceptismo é um estilo barroco caracterizado pela agudeza do pensamento, o uso intensivo de conceitos, metáforas e hipérboles. Em contraste com a simplicité dans la grandeur, que se atribui a Bossuet, Vieira seria um conceptista maneirista, influenciado pela nova escolástica da Espanha do século XVII. Cf. GOTAAS, Mary C. Bossuet and Vieira. A Study in National, Epochal and Individual Style. Washington D. C.: The Catholic University of America Press, 1953; e SARAIVA, António José. O discurso engenhoso. São Paulo: Perspectiva, 1980. 6. N ISKIER, op. cit., p. 141.
7. V IEIRA, Antônio. Sermões. Organização de Alcir Pécora. São Paulo: Hedra, 2001. v. 1, p. 655-657. 8. Ibidem, v. 2, p. 404. 9. Ibidem, v. 1, cf. nota 7. 10. Ibidem, sermão XIV, p. 635 e seguintes. Ver também Bosi,Alfredo. História concisa da literatura brasileira. 37. ed. São Paulo: Cultrix, 1994. p. 45-46; e, do mesmo autor, Dialética da colonização. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. p. 143-144. 11. Ibidem, v. 1, p. 452-453. 12. BOXER, A Great Luso-Brazilian Figure..., cit., p. 12. 13. Ibidem, p. 11-12. 14. Ver o capítulo 1. 15. HANSEN, João Adolfo. Introdução a Antônio Vieira. Cartas do Brasil. Organização de João Adolfo Hansen. São Paulo: Hedra, 2003. p . 27. 16. HANSEN, Padre Antônio Vieira, loc. cit., p. 33. As citações seguintes são de Hansen e correspondem a esse texto. 17. VIEIRA, op. cit., v. 1. Ver também COHEN, op. cit., p. 99 e seguintes. 18. BOXER, A idade de ouro do Brasil, cit., p. 40. 19. HOLANDA, Sérgio Buarque de. Capítulos de literatura colonial. Organização e introdução de Antonio Candido. São Paulo: Brasiliense, 2000. p. 450-451. 20. NISKIER, op. cit., p. 54. 21. VIEIRA, op. cit., v.2 , p. 401 - 402 e 404. 22. Idem. Sermões escolhidos. Organização de José Verdasca. São Paulo: Martin Claret, 2003. p. 33. 23. Ibidem, p. 38. 24. Na época, a administração da colônia se repartia entre o Estado do Brasil e o Estado do Maranhão e GrãoPará, criado em 1621, incluindo Ceará, Piauí, Maranhão, Pará e partes de Tocantins e Amazonas. 25. COHEN, op. cit., p. 40 e 94. 26. AZEVEDO, op. cit., p. 52. 27. Ibidem, p. 83. 28. Cf. BOSI , Dialética da colonização, cit., p. 136. 29. HANSEN, Padre Antônio Vieira, loc. cit., p. 37. Cf. também A ZEVEDO, op. cit., p. 43. 30. LISBOA, João Francisco. Vida do padre Antônio Vieira. Rio de Janeiro: Jackson, 1949. p. 357. João Francisco Lisboa não pode ser acusado de simpatias por Vieira. Comentando as razões do jesuíta para a preferência por escravos negros, diz Lisboa: "assim esse exílio eterno da pátria, e todos esses horrores da travessia a que desde então até hoje foram condenados os míseros africanos, eram uma atenuação d o mal, e uma verdadeira vantagem, no conceito do missionário jesuíta!". Sobre as propostas de Vieira quanto à introdução de escravos africanos, ver também AZEVEDO, op. cit., p. 111. 31. VIEIRA, op. cit., tomo I, p. 603. 32. BOXER. A idade de ouro..., cit., p. 23. Segundo esse historiador, antes de Antonil, cujo livro é de 1711, a frase famosa foi empregada por Dom Francisco Manuel de Mello, por volta de 1660, conforme P RESTAGE, E. Dom Francisco Manuel de Mello. Esboço biográfico. Coimbra, 1914. 33. BOXER, ibidem, p. 40. 34. AZEVEDO, op. cit., p. 151. 35. VILELA, Magno. Antônio Vieira. A escravidão negra na Bahia do século XVII.Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1997. p. 36 e 85. 36. GÓES FILHO, Synesio Sampaio. Navegantes, bandeirantes, diplomatas. São Paulo: Martins Fontes, 1999. p. 106 e seguintes. 37. AZEVEDO, op. cit., p. 13. 38. A citação de Vieira está em COHEN, op. cit., p. 183.
39. MONTEIRO, John Manuel. Negros da terra – Índios e bandeirantes nas origens de São Paulo. São Paulo: Companhia das Letras, 1994. caps. 1 e 2. 40. SYNESIO, op. cit., p. 112. 41. BOXER, A Great Luso-Brazilian Figure..., cit., p. 43. 42. VIEIRA, Sermões, cit., v.1, p. 622. 43. BOSI , Dialética da colonização, cit., p. 150 e seguintes. 44. LISBOA, op. cit., p. 349-350. 45. Ibidem, p. 351; A ZEVEDO, op. cit., p. 72. "Em 1655 tem lugar a primeira missão aos Tupinambás, então demorando à margem do Tocantins: mais de mil silvícolas são descidos nessa ocasião. Em 1657, missão ao rio Negro; em 1659, outra vez ao Tocantins. No mesmo ano, Vieira consegue reduzir as tribos de Marajó. Era a conquista de suma importância para a colônia: por ela as portas do Amazonas ficam definitivamente cerradas ao holandês". 46. VIEIRA, Sermões, cit., v.1, p. 621. 47. Ibidem, p. 621. Bosi cita várias passagens de Vieira no mesmo sentido, entre as quais estas: "(...) que os homens de qualquer cor são iguais por natureza, e mais iguais ainda por fé"; "(...) os homens, pervertendo a igualdade da natureza, a distinguiram com dois nomes tão opostos, como são os de senhor e escravo"; "Entre os homens, dominarem os brancos aos pretos é força, e não razão ou natureza''; B OSI , Dialética da colonização, cit., p. 135 e 145. 48. VIEIRA, Sermões, cit., v. 1, p. 620. Ver também V ILELA, op. cit., p. 164-165. 49. BOXER, A Great Luso-Brazilian Figure..., cit., p. 26; cf. também V ILELA, op. cit., p. 184. 50. MALHEIRO, Agostinho Marques Perdigão. Escravidão no Brasil. Ensaio histórico-jurídico-social. Rio de Janeiro: Cultura, 1866. p. 31 e seguintes. A ação dos capitães-do-mato foi regulamentada no Brasil em 1724. As penas do Código Negro foram abolidas em 1833. 51. VILELA, op. cit., p. 169-170. 52. COHEN, op. cit. Ver também V ILELA, op. cit., p. 56.
CAPÍTULO 6 SÉCULO XVIII VERNEY E POMBAL: ILUSTRAÇÃO E DESPOTISMO
Enterrar os mortos e cuidar dos vivos. POMBAL
A fradaria absorve-nos, a fradaria devora tudo, a fradaria arruina-nos. ALEXANDRE DE GUSMÃO
A Ilustração chegou a Portugal depois da França, Holanda e Inglaterra, mas quase ao mesmo tempo que na Espanha, Áustria, Rússia e Prússia. Chegou pelas mãos do Marquês de Pombal, que despertou a sociedade portuguesa adormecida na atmosfera decadente que sucedera aos descobrimentos e a um Renascimento e um humanismo reconhecidamente frágeis. Chegou a Portugal antes do que haveria de esperar uma sociedade que, ainda no século XVIII, era tão carregada de heranças medievais. Tal antecipação se deu, por um lado, por causa de mudanças de governo que levaram ao poder o Marquês de Pombal e, com ele, a influência de um pensamento que buscava aproximar-se do Iluminismo em expansão nos países mais avançados da Europa. Por outro lado, ocorreu como efeito da circunstância trágica do terremoto e do incêndio de Lisboa que em 1755 provocaram na Coroa e na sociedade portuguesas reações surpreendentemente inovadoras. Embora o Iluminismo luso possa ser tido como desdobramento de um centralismo de poder de antigas raízes, o Marquês de Pombal passou à história como o primeiro estadista português moderno. Ministro de D. José I (1714-1777), o marquês foi, como seus inspiradores intelectuais, um "estrangeirado", como os portugueses designavam homens com experiência de mundo, habituados a viagens e permanências no exterior, em particular nos países mais modernos da época. Deve vir dele e de outros "estrangeirados" essa disposição portuguesa, também brasileira, para buscar "lá fora" modelos e diretrizes. Por certo vem de Pombal uma contribuição para reforçar nas duas sociedades a consciência crítica do próprio atraso. A influência do Iluminismo pombalino estendeu-se além de Portugal, para a
América portuguesa. Em inícios do século XIX pode ser percebida em José Bonifácio de Andrada e Silva (1763-1838), bem como nas iniciativas de Rodrigo Sousa Coutinho (1745-1812), chefe de governo de D. João VI (1767-1826). Ampliou-se com certeza nas concepções centralistas que prevaleceram no Império brasileiro. Indo mais longe no rastrear das influências, o historiador Antônio Paim vê sinais de pombalismo na "mentalidade cientificista" de fins do Império e das primeiras décadas da República, confluindo com o positivismo de origem comteana. Esse cientificismo, uma espécie de fé religiosa na ciência, aplicar-se-ia a todas as esferas da vida, inclusive à moral.1 E ofereceu formas mais modernas para as crenças luso-brasileiras, mais antigas, na capacidade do Estado de intervir na vida da sociedade e eventualmente planejá-la.
Fendas na muralha A surpreendente mudança do pensamento e da cultura da época de Pombal tem antecedentes. "Na muralha que oprimia as inteligências havia fendas", disse João Lúcio de Azevedo sobre o período anterior. 2 E algumas dessas fendas talvez fossem muito antigas, reminiscências do século XVI, em particular de D. Manuel e D. João III, que estabeleceram a tradição portuguesa de enviar bolsistas ao exterior, preparando, assim, o clima para os "estrangeirados" de tanta influência no século XVIII. Desde os descobrimentos, a cultura erudita de Portugal foi, em grande parte, obra de portugueses que circulavam por outros países ou neles fixavam residência. Sem esquecer os técnicos estrangeiros agrupados à volta de D. Henrique no século XV, e alguns humanistas que se aproximaram da Coroa portuguesa no século XVI, os "estrangeirados" cresceram em número com os cristãos-novos que saíram de Portugal à época de D. Manuel. Não por acaso, como já se disse, pesou sempre uma suspeição sobre a cultura portuguesa, em grande parte obra de estrangeiros e de "estrangeirados". No século XVIII, não obstante a influência dominante dos jesuítas, D. João V (1689-1750) recebeu a influência, também "estrangeirada", de Alexandre de Gusmão (1695-1753) e D. Luís da Cunha (1662-1740), seus ministros. Igualmente de nobres como D. Francisco Xavier de Meneses (1673-1743), Conde da Ericeira, cujos escritos, publicados em Londres, investiam contra a Inquisição. Sabe-se que o rei pediu ao médico judeu Jacob de Castro Sarmento (1691?-1762), também residente em Londres, sugestões e propostas para reformar o ensino da medicina. A proposta de Sarmento não teve êxito, mas a reforma virá mais adiante, por meio das idéias solicitadas por Pombal a um outro médico judeu, Antônio Nunes Ribeiro Sanches (1699-1783).3 De D. João V ainda teria partido a incumbência dada ao oratoriano
Luís Antônio Verney (1713-1792) de elaborar propostas para a reforma do ensino, que virão mostrar-se decisivas na época de Pombal. Nas palavras do historiador Antônio Sérgio, a batalha para fazer Portugal entrar na Europa culta começou pelas mais sensíveis necessidades práticas. Daí a reforma dos estudos médicos. Mas as mudanças envolviam também a convicção, como era próprio de uma época iluminista em toda a Europa, de que "o que cumpria antes de tudo era modernizar a mentalidade, substituindo a mediévica orientação das nossas classes predominantes pelo espírito crítico e experimental". Juntava-se, portanto, essa busca de respostas práticas à procura dos elementos de uma mentalidade nova.4 A oportunidade da conjugação de ambas as procuras deu-se, com irremovível urgência, na tragédia de Lisboa, em 1755. Reconheça-se, porém, que, depois de dois séculos de associação entre a Igreja e a Coroa, a pretendida desmontagem do mundo intelectual organizado pelos jesuítas não teria sido possível sem a contribuição da própria Igreja. Os oratorianos Luís Antônio Verney e frei Manuel do Cenáculo (1724-1814) estavam entre os líderes intelectuais do movimento, mas não eram os únicos entre as figuras do clero que faziam crítica a um passado representado pelos jesuítas e pela escolástica. Segundo o bispo de Beja, por exemplo, as finuras e engenhosidades da escolástica conduziriam a exercícios que só servem para "adelgaçar o espírito, trabalhar a razão em agudezas que só a si mesmas significam. (...) É como aguçar o faminto cansadamente a faca, sem jamais tocar no alimento". Essa crítica, quase com as mesmas palavras, seria repetida por muitos, fazendo ressurgir, diante das supostas inutilidades da escolástica, uma antiga sensibilidade portuguesa para as experiências do mundo. Não é de surpreender que o cansaço da escolástica abrisse caminho, com Luís Antônio Verney, para uma forte influência do empirismo de John Locke (16431704).5
Pombal: déspota ilustrado Não obstante os títulos que conquistou, Sebastião José de Carvalho e Melo (16991782), conde de Oeiras e, depois, marquês de Pombal, tinha origem numa família de "fidalgotes de mediana fortuna". Embaixador em Londres (1739-1744) e Viena (1744-1754), foi designado por D. José I como secretário dos Negócios Estrangeiros e da Guerra e, logo após o terremoto de Lisboa, secretário dos Negócios do Reino. 6 Nomeado ministro de Estado, Pombal daria início a um período de quase trinta anos (1750-1777) de um despotismo semelhante a outros de sua época. O "fidalgote" português ergueu seu poder às alturas de outros déspotas ilustrados da Europa, como Frederico II da Prússia (1712-1786, coroado em 1740), Maria Teresa (1717-1780,
imperatriz em 1740) e José II (1741-1790, imperador em 1780) da Áustria, Catarina da Rússia (1729-1796, czarina em 1762) e Carlos III (1716-1788, coroado em 1759) da Espanha. O marquês subiu às funções de poder cercado de desconfianças. Depois da sua experiência como embaixador na Inglaterra, alguns imaginavam que se tornara maçom, e outros entendiam que aceitasse as regras da Igreja anglicana. Visto como um parvenu, ele foi acolhido num clima de desconfiança que se agravou em razão de seu distanciamento da velha aristocracia que, em contrapartida, tentava humilhá-lo. Dizem alguns historiadores que os da velha nobreza chamavam-no apenas pelos nomes de batismo, Sebastião José, como faziam com os criados. Pombal, por sua vez, respondia a seu modo, ou seja, nomeando seus auxiliares entre gente sem tradição. Disse um diplomata austríaco que, no início do governo do marquês, "uma hoste de plebeus arremetera a tomar posse dos cargos, até aí reservados à classe privilegiada". E acrescenta: "os fidalgos, por melhores dotes que possuam, e mais se distingam por seus atos, não conseguem emprego na Corte, e muito menos qualquer posto diplomático". Pode-se avaliar o que isso poderia significar numa época em que os maiores oponentes a Pombal se achavam entre os "puritanos" da nobreza. Naqueles tempos, "puritanismo" significava "pureza de sangue", ou seja, "ausência de ancestrais judeus ou mouros, uma condição que desde 1496 se exigia para a entrada em postos oficiais".7 O certo é que, ao chegar ao poder, Sebastião José demonstrou grande capacidade de iniciativa sobre os temas mais importantes de Portugal e do Império, em especial os da sua colônia americana. Reconheceu assim ao Brasil uma importância que, na realidade dos fatos, já vinha de antes e, aliás, de algo fundamental. Como afirma Kenneth Maxwell, Portugal era, no século XVIII, o caso singular de um pequeno país com um grande império, do qual o Brasil era a parte mais importante. O "ouro brasileiro provia os meios para consolidar o Estado absolutista português". Uma razão a mais para que Pombal, além de figuras de menor reconhecimento nos meios da velha nobreza, procurasse "cooptar e integrar brasileiros nos mecanismos de governo tanto no Brasil quanto em Portugal".8 No dizer do historiador português José Augusto França, "Portugal era o ouro do Brasil", que por isso "continuava a comandar a conjuntura econômica portuguesa". 9 Desde a descoberta do ouro, em fins do século XVII, reforçada pela descoberta do diamante nas primeiras décadas do XVIII, Portugal mudou de maneira decisiva as suas atenções para a colônia americana, que, além dos metais preciosos, já tinha uma forte economia do açúcar, baseada na grande propriedade da terra e no trabalho de escravos africanos.10 Entre as questões do Brasil que ocuparam as atenções de Pombal antes do
terremoto de Lisboa se acha o Tratado de Madri, de 1750, definindo os limites da América ibérica. As negociações, dirigidas do lado português por Alexandre de Gusmão, brasileiro, nascido em Santos, conduziram à renúncia de Portugal à colônia do Sacramento, em troca de um deslocamento para oeste do meridiano das Tordesilhas, com a inclusão do Rio Grande do Sul em território brasileiro. De 1755, o ano do terremoto de Lisboa, foi a designação do novo governador do Grão-Pará, Francisco Xavier de Mendonça Furtado (1700-1779), irmão de Pombal, que anunciou a declaração da liberdade dos indígenas e, depois, a dissolução do sistema das aldeias jesuíticas. Tudo leva a crer que tais decisões, embora do ano do terremoto ou próximas a ele, se inspirassem diretamente nas exigências do Tratado de Madri. Segundo João Lúcio de Azevedo, as instruções de Mendonça na chegada ao Brasil nada diziam que significasse hostilidade aos jesuítas. "Nelas, o governo considera a prosperidade do Grão-Pará e do Maranhão indissoluvelmente ligada à liberdade dos índios, e ao estado das missões. Declara livres todos os selvagens, e revoga quaisquer providências em contrário. Recomenda que os moradores do Estado cultivem as terras com escravos negros, como é uso no Brasil, ou então tomem os índios a soldada. (...) Nada, em tudo, se lê que toque especialmente aos jesuítas, ou demonstre contra eles hostilidade." O que significa que a ruptura com os jesuítas estaria naquele momento escondida em intenções não reveladas ou que deveriam vir depois. O mesmo historiador descreve o confronto com os jesuítas em dois "pontos essenciais – liberdade absoluta dos indígenas, e limitação do poder temporal dos missionários". A esses pontos deveria, portanto, ater-se a agudeza e a energia do governador. Diz Azevedo: "Em cada um destes campos, fiado em suas forças, desdenhoso e agressivo, o jesuíta resiste. Clama contra a extinção dos cativeiros, pelos quais é agora, desde que se fez grande proprietário. Opõe-se a deixar o domínio dos indígenas, de que depende o seu poder e o comércio que tem no Estado. As demarcações ofendem os direitos da companhia, deslocando as missões do Paraguai; manifesta-se portanto contra elas". No dia em que a Companhia se insurgiu contra Pombal, entrou no caminho da própria destruição.11 A notícia da decisão concedendo liberdade aos índios e dissolvendo as aldeias provocaria reações imediatas dos jesuítas. No Brasil, em 1757, o reitor do colégio esuíta do Pará dirigiu uma súplica ao rei: "Notável é a aflição e o susto em que me vejo, porque o governador pretende que todos os índios, servos deste colégio, com os mais do Estado, sejam declarados por forros; preensão assaz dura e injusta, porque, na realidade, há neste Estado muitos escravos legítimos". No mesmo ano de 1757, Pombal publicou a Relação abreviada da república dos jesuítas, que atribuía a estes
a tentativa de criação de um "Império Temporal Cristão" na região das missões, e denunciava a existência de uma poderosa república de trinta povoações, "tão ricas e opulentas em frutos e cabedais para os padres, como pobres e infelizes para os desgraçados índios". A publicação teve um efeito enorme na Europa, onde circulou traduzida em várias línguas, "talvez vinte mil exemplares, em francês, alemão, italiano", depois em latim.12 Antes da divulgação da Relação abreviada, Pombal foi levado a reprimir a oposição dos jesuítas no Brasil e em Portugal. Na colônia, os jesuítas e os índios resistiram nas aldeias a portugueses e espanhóis na chamada "guerra guarani", iniciada em 1756. A decisão de expulsar os jesuítas em 1759 nasceu da convicção de que suas missões atrapalhavam a aplicação do Tratado de Madri. Na decisão de expulsá-los, Portugal se antecipou a outros países, como França e Espanha, e se viu obrigado a cortar relações com o papado por nove anos. Pode-se imaginar o que isso possa ter significado em termos políticos, quando sabemos que só em 1773 a Companhia de Jesus seria dissolvida por decisão do papa Clemente XIV (1704-1774, eleito em 1769).
"Enterrar os mortos e cuidar dos vivos" Não obstante as audaciosas iniciativas de Pombal desde que começou seu governo, foi a tragédia de Lisboa que revelou a personalidade que deveria modernizar, muitas vezes por meios brutais, Portugal e o Império. O terremoto e o incêndio de Lisboa foram para o marquês a oportunidade de um incomum aumento de poder pessoal. A cidade, de 250 mil habitantes, foi destruída em menos de quinze minutos pelo terremoto, cujos efeitos, somados ao incêndio que veio em conseqüência, provocaram a morte de cerca de dez mil pessoas. Esse número permite estimar a quantidade, muito maior, de feridos e desalojados. A repercussão de terremotos anteriores, em San Francisco, Martinica e Messina, contribuiu para criar, a propósito de Lisboa, uma atmosfera de fim de mundo que afetou toda a Europa. No plano político, parece ter sido decisiva a circunstância de Sebastião José haver ficado em Lisboa no momento do pânico, quando fugiam todos os que podiam, entre os quais os membros do governo. Lutando contra o desamparo a que fora relegada Lisboa, Pombal transformou a necessidade da reconstrução da cidade na oportunidade de um projeto que haveria de lhe conferir a imagem de um herói modernizador. "Enterrar os mortos e cuidar dos vivos": a tradição atribui essas palavras a Pombal, que as teria usado para responder ao rei que, atordoado diante da tragédia, perguntava-lhe o que fazer. Talvez, como admitem alguns, a atribuição dessa frase ao marquês seja uma das
gentilezas que a história às vezes concede ao engrandecimento da imagem dos líderes. O certo, porém, é que essas palavras captam o sentido da ação de Pombal na emergência e servem para revelar o espírito decidido que ele daria a conhecer durante todo o seu governo. De algum modo, Pombal reconciliou Portugal com o pragmatismo de alguns dos momentos mais brilhantes dos séculos dos descobrimentos. Não por acaso, a reconstrução de Lisboa foi, junto com o combate aos jesuítas, um dos motivos constantes da propaganda de seu governo em toda a Europa. A tragédia provocou uma reviravolta no mundo das idéias que foi muito além dos limites do reino luso. Como disse um historiador português, "um vento de terror sacudiu as teorias otimistas que se forjavam na Europa". Surgiram por toda parte debates de que participaram Voltaire (1694-1778), Rousseau (1712-1778) e Alexander von Humboldt (1769-1859), entre outros. Os acontecimentos tiveram vasta repercussão literária, teatral, pinturas, gravuras etc. 13 Goethe (1749-1832) disse em sua autobiografia: "Porventura em tempo algum o demônio do terror espalhou por toda a terra, com tanta rapidez e força tal, o arrepio do medo". 14 Voltaire escreveu, a propósito, o poema "Le Désastre de Lisbonne". Escreveu também um pequeno livro que se tornou clássico, Candide ou l'optimisme, no qual faz uma crítica das teorias otimistas em voga em seu tempo, em particular as de Leibniz (1646-1716). Enorme na Europa, o impacto, evidentemente, foi maior em Portugal, que, tendo se libertado do domínio espanhol em 1640, vivia desde inícios do século XVIII um momento de retomada do seu antigo otimismo. Desde fins do século XVII começavam a chegar as remessas brasileiras de ouro, descoberto em 1690 além da serra da Mantiqueira. Quase ao mesmo tempo, entrara em vigor, em 1703, o Tratado de Methuen, passando a Inglaterra a controlar o comércio, como lugar de onde se importava tudo. Em 1729 ocorrera a descoberta dos diamantes, até então vistos nas Minas "como cristais vulgares, na areia dos regatos, ou nos tejucos dos pântanos".15 Como diz França, se à entrada do ouro, que se fazia cada vez mais aceleradamente, juntar-se "o valor dos diamantes, das madeiras preciosas, do tabaco, do açúcar e dos couros, compreender-se-á a importância decisiva do Brasil na balança das finanças de Portugal, ao longo do reinado de João V, ou seja, até 1750".16 A Coroa, já nas primeiras décadas do século XVIII, dava sinais de riqueza, até mesmo de ostentação, nas suas embaixadas no exterior, como em Paris, Roma e Haia. Lisboa começava a se acostumar com a ópera, o teatro, a moda francesa, os novos costumes. Em 1717 iniciou-se a construção do convento e basílica de Mafra, o maior monumento barroco de Portugal. Essas anotações sobre o otimismo português da primeira metade do século XVIII
podem servir também para ressaltar a impaciência de muitos diante do atraso do país. Nas palavras de Alexandre de Gusmão, Portugal era um "mar de superstição e de ignorância". "A fradaria absorve-nos, a fradaria devora tudo, a fradaria arruinanos" – não deixava por menos o secretário do rei e irmão de um jesuíta famoso, o padre Bartolomeu de Gusmão (1685-1724). No Estado, submetido a um poder absolutista, o clero predominava. A Igreja possuía um terço do reino, dizia o diplomata D. Luís da Cunha, amigo da família real, que abrira o caminho de Pombal ao poder, recomendando seu nome ao rei. Dizia D. Luís da Cunha, dirigindo-se a D. José I: "Se V. A. quiser dar uma volta aos seus reinos (...) achará que a terceira parte de Portugal está possuída pela Igreja que não contribui para a despesa e segurança do Estado". Essa referência à "segurança do Estado" tinha um sentido muito real: havia na época uma guerra entre Inglaterra e França (1755), diante da qual Portugal era neutro, embora simpático à Inglaterra; e, com a derrota dos franceses (1759), surgiram problemas nas relações com a Espanha, ligada à França. Na Europa das Luzes, o otimismo da primeira metade do XVIII iluminava o peso das heranças medievais e clericais de Portugal. Desde meados do século XVI até meados do XVIII "o número de conventos de Lisboa tinha aumentado de trezentos por cento, enquanto a população aumentara apenas 150 por cento". A ostentação de riqueza do clero de então pode ser lembrada ainda hoje, nas visitas às velhas igrejas de Portugal e do Brasil. A igreja "toda de ouro" se tornaria uma das glórias do barroco.17 Aos olhos dos críticos, vinculados ou não à Igreja, a responsabilidade por esse estado de coisas recaía sobre a Companhia de Jesus, que controlava a educação e a cultura na metrópole e na colônia. Os jesuítas "detinham o direito exclusivo de ensinar latim e filosofia no colégio de artes, a escola preparatória obrigatória para o ingresso nas faculdades de teologia, cânones, leis civis, e medicina na Universidade de Coimbra. Além desta, a outra universidade de Portugal, em Évora, era também uma instituição dos jesuítas. No Brasil, os colégios dos jesuítas eram as principais avenidas da educação secundária".18 Apesar da imensidão de ignorância e de atraso, Portugal surpreendeu a Europa, ainda uma vez, pela rapidez e eficiência com que reagiu diante da tragédia de Lisboa. O pequeno país que se apoiava quase exclusivamente na exploração das riquezas brasileiras, e no qual, diz França, "o gosto cortesão se atardava nas formas e nos símbolos suntuários do barroco romano e cuja cultura se anquilosava em formulários escolásticos; um país imobilizado, subalimentado, deserto, onde os conventos se multiplicavam e definhava a agricultura e o comércio e se ignorava a indústria – esse país, levado por uma vontade de revolucionar as suas estruturas, foi
capaz de fornecer o tônus necessário a um empreendimento fora do comum". Junto com as necessidades de economia e urgência, foi dessas circunstâncias que nasceu na arquitetura o "estilo pombalino": uma arquitetura simples, "nenhuma irregularidade, nenhuma fantasia nas fachadas". "A nova cidade saiu, em grande parte, da cabeça de um engenheiro militar." Apoiada na tradição, a arquitetura pombalina "chegou a uma personalidade estilística encontrada na sistematização racional de elementos já existentes", mas afastando-se do barroco e aproximando-se do neoclássico no monumentalismo, como na Praça do Comércio e no Palácio da Ajuda.19 Diz França: a última das cidades antigas da Europa haveria de se tornar a primeira das modernas.
Contra os jesuítas e a velha nobreza Enfrentando a tragédia, Pombal fez por conseguir contribuições dos países estrangeiros, como Inglaterra, Hamburgo, Espanha e Holanda, e apelou também às colônias. Já em 1756 o Brasil enviou a Lisboa 14 milhões de cruzados em ouro e prata e um grande número de diamantes e prometeu três milhões de cruzados para pagamento em trinta anos. Em meio às conseqüências do terremoto e do incêndio lavravam os conflitos do marquês com a velha nobreza e os jesuítas. Conflitos que, já presentes desde 1750, haveriam de crescer depois da tragédia, revelando as enormes diferenças de mentalidade que separavam os antigos e os novos donos do poder. Disse um historiador que " (...) toda a política do reinado" foi determinada pelo choque com os esuítas. Talvez fosse melhor dizer "quase toda", para reservarmos algum lugar para os conflitos com a velha nobreza e para os encargos de Portugal no Brasil e no Império.20 Ao mesmo tempo que Sebastião José tomava medidas para reconstruir a cidade, a Igreja rezava. "Procissões, penitências sem número procuravam acalmar a divindade; as do primeiro aniversário da catástrofe tiveram especial significado, no medo de que ela se renovasse." Eis um ponto em que fincavam pé as mentalidades religiosas mais atrasadas que se expressavam, por exemplo, em palavras como estas, do cardeal-patriarca: "O desastre fora castigo do céu: as igrejas foram mais atingidas devido aos abusos, aos escândalos e desordens que nelas eram cometidos". Como dizia um historiador: "Os padres e os frades flagelavam a impiedade do mundo, dirigindo-se a uma nação desnorteada e pronta a acreditar em tudo".21 A tragédia foi oportunidade para um choque de mentalidades, típico das circunstâncias do século XVIII. Contrastando com a mentalidade religiosa
dominante, Pombal dizia que o terremoto fora um fenômeno da natureza e se orientava para medidas práticas. O que, porém, não impediu que o Senado de Lisboa votasse disposição para que "em todo o reino se realizassem procissões em honra da Virgem, o domingo segundo de novembro em quanto o mundo durar".22 O jesuíta Gabriel Malagrida – um sacerdote de grande renome, que assistiu a D. João V no leito de morte, e que como missionário havia vivido cerca de trinta anos entre os índios do Maranhão e do Pará – dizia ter antevisto a catástrofe. E dizia ainda, em texto aprovado pelo Santo Ofício, sob o título Juízo da verdadeira causa do terremoto, de grande divulgação na época: " (...) não são fenômenos, não são contingências ou causas naturais, mas são unicamente os nossos intoleráveis pecados". Nesse clima de medo e religiosidade exacerbada, as insatisfações da velha nobreza levaram a tentativas de golpe contra Pombal, e em 1758 a um atentado contra o rei. Mas as tentativas se frustraram, oferecendo a Pombal oportunidade de aumentar ainda mais o seu poder. Acusados de cúmplices do atentado contra o rei, o marquês de Távora e o duque de Aveiro e seus filhos foram condenados e executados. Um ano depois dos atentados, em 1759, Pombal tomou a decisão de expulsar os jesuítas, e, no mesmo ano, extinguiu suas aulas. No caminho da secularização do poder, a Inquisição era um problema cuja gravidade se expressa no elevado número de condenações. De 1684 a 1747, 4.372 pessoas foram condenadas; de 1750 a 1759, houve 1.107 condenações. Mas a reforma da Inquisição começou em 1760: o marquês submeteu-a ao controle do Estado, ou seja, ao seu próprio controle, pois nomeou seu irmão como inquisidormor. O último auto-de-fé da Inquisição ocorreu em 1761 e, por ironia da sorte, a vítima foi o jesuíta Gabriel Malagrida.23 Em 1768, Pombal criou ainda a Mesa Censória retirando da Igreja o poder de determinar o que podia ou não ser lido, desse modo aumentando o poder do Estado à custa do poder do clero. Em 1769, Pombal tomou posição contra a própria Inquisição e, desse modo, os autos-de-fé cessaram, assim como a pena de morte. Na sua persistente desmontagem do poder dos jesuítas, Pombal iniciou em 1772 a destruição da velha universidade medieval, adequando Coimbra ao novo espírito das reformas educativas e culturais. Como parte dessas reformas, tornou obrigatório o uso da língua portuguesa em todo o território da colônia.24
Pombal e a Ilustração Assim como o confronto entre duas mentalidades, o combate de Pombal contra os esuítas e seus aliados da velha nobreza foi um confronto entre duas épocas. É por
isso que não se exaure na mera descrição dos acontecimentos que se aceleram em meados do século XVIII. O confronto exige a compreensão das concepções em luta, que, de um lado, remontam a uma época de após os descobrimentos em que o reino português, por meio dos jesuítas, praticamente se fundiu com a Igreja. Concepções que, de outro lado, projetam-se para o futuro, sobrevivem a Pombal e a D. José I, vão além da "viradeira" em que, no reinado de D. Maria I (1734-1816, aclamada em 1777), uma vez mais Portugal buscou caminhos de voltar ao passado. Como diz Maxwell, o século XVIII foi particularmente longo para Portugal: começou em 1660, quando se consolidou a separação entre Portugal e Espanha, e terminou em 1808, com a vinda de D. João VI ao Brasil. Na época, o quadro internacional era desafiador: "Lisboa tentava se ajustar tanto à França quanto à Inglaterra, mas, justamente por sua natureza atlântica e por causa do papel econômico central do Brasil no sistema comercial luso-brasileiro, Portugal estava preso inextricavelmente à Inglaterra". Foi esse o contexto no qual atuou Pombal, e no qual se assistiu "ao choque da tradição com as forças da mudança e da inovação, a luta entre a velha religião e o novo racionalismo". Um longo período em que, "não obstante a sempre presente nostalgia das passadas glórias do Oriente, o conflito entre os meios despóticos e os objetivos ilustrados" deixaria lugar para o desejo de Portugal ser novamente grande sobre a base da riqueza do Brasil.25 Nesse choque de amplas perspectivas históricas, os acontecimentos relevantes nasceram de concepções intelectuais, com toda a força simbólica que tinham na época. Dizem alguns historiadores que a fundação da Arcádia Lusitana, em 1756, teria contado com a presença do próprio Pombal. E que a Arcádia, diferente de associações literárias do mesmo gênero que vêm do século XVII, teria a novidade de colocar nobres e burgueses em pé de igualdade. Como ocorria em outras partes da Europa, o arcadismo português buscava mesclar razões políticas e sociais com novas formas da sensibilidade artística. No espírito do neoclassicismo, que em toda a Europa do século XVIII imitava o classicismo francês, buscava-se voltar à Antigüidade grega e latina, além de "restabelecer vários padrões do período por excelência clássico na literatura portuguesa, o século XVI".26 A Ilustração portuguesa se voltava contra a escolástica dominante por dois séculos em Portugal e na Espanha, tornando os dois países ibéricos fortalezas da ContraReforma. Como não podia deixar de ser, num país de tradição profundamente católica, a crítica pombalina aos jesuítas se fazia em nome de uma doutrina ela mesma de origem católica. Não apenas eram católicos alguns líderes intelectuais que se aliaram a Pombal, mas o próprio marquês, que, além de católico, era "familiar" do Santo Ofício. Tinha, portanto, todos os motivos para atuar dentro dos limites das convicções religiosas dominantes, respeitando "a opinião da nação, a religião da
coroa e as próprias tendências do tempo".27 Embora não tenha tido como evitar a separação do papado depois da expulsão dos jesuítas, Pombal apresentava sua nova concepção do Estado e da sociedade em linguagem católica. O marquês afirmava uma visão nacionalista da sociedade portuguesa e da soberania do Estado em relação à Igreja, mas o fazia "em nome (da) união cristã e da sociedade civil". Assegurando, como Verney, a religiosidade da sociedade nacional, repelia a instituição supranacional representada pela Companhia de Jesus. "Não há esuítas portugueses e jesuítas espanhóis", dizia Pombal em sua Dedução cronológica e analítica, "porque são na realidade os mesmos jesuítas, que não conhecem outro soberano que não seja o seu geral, outra nação que não seja a sua própria sociedade; porque pela profissão que a ela os une, ficam logo desnaturalizados da pátria, dos pais e dos parentes".28
Ribeiro Sanches: dedicado à educação A importância do pensamento iluminista de Verney será mais bem compreendida se nos adiantarmos um pouco no tempo, introduzindo-o por meio de algumas notas sobre Ribeiro Sanches, um dos seus seguidores. Judeu, filho de um sapateiro, sobrinho e primo de médicos, Antônio Nunes Ribeiro Sanches nasceu em 1699 e foi um intelectual devotado à educação e às coisas práticas. Ele considerava a escolástica, cujos conceitos os jesuítas comentavam em Coimbra, como "a produção dos séculos da ignorância, do ócio dos frades depois que deixaram o trabalho de mãos que ordenava a sua regra". Começou seus estudos em Coimbra, em 1716, de onde saiu em 1719, aborrecido com a anarquia do ensino e com o ambiente de desmandos e violência dos estudantes. Alguns destes iam para a universidade "armados como se fossem para a campanha ou para a montaria, com armas ofensivas, com pólvora e balas e cães de fila". Em 1720, Ribeiro Sanches foi para Salamanca, onde o ambiente intelectual não lhe pareceu muito melhor. Cem anos depois do empirismo de Francis Bacon (15611626) e John Locke, quando se esperava que já se houvesse aprendido algo das lições de Descartes (1596-1650) e Newton (1643-1727), Ribeiro Sanches registrou em Salamanca a presença de um jesuíta que se dedicava a "fungar excomunhões" contra a matemática, considerando-a "coisa do diabo".29 Voltou a Portugal, de onde novamente saiu, em 1726, para nunca mais regressar. É que, dessa vez, saiu no temor da Inquisição, que pouco antes havia prendido um primo seu e, logo depois, outros parentes. Era época de uma retomada das atividades do Santo Ofício que, em 1739, estrangulou no garrote o dramaturgo, de origem brasileira, Antônio José da Silva (nascido em 1705), cujo cadáver foi queimado em
auto-de-fé. Ribeiro Sanches foi a Londres, onde encontrou outros judeus portugueses, entre os quais os médicos Jacob de Castro Sarmento e Diogo Nunes Ribeiro, seu tio, que havia fugido de Portugal depois de envolvido num auto-de-fé, em 1704. Em suas andanças, passou por Montpellier, em 1728, para aperfeiçoar-se em medicina com o holandês Herman Boerhaave (1668-1738) e visitou D. Luís da Cunha, embaixador de Portugal em Haia, que lhe pediu um plano de reformas para a faculdade de medicina de Coimbra. Boerhaave indicou seu nome ao governo da Rússia, para onde se dirigiu em 1731 e de onde manteve contatos com os jesuítas portugueses que residiam na China, em Pequim. Em 1739, foi designado médico da czarina Catarina II. Em 1747, às vésperas do seu regresso a Paris, foi diplomado sócio-emérito da Academia das Ciências de São Petersburgo. Ainda encontrou tempo para as Cartas para a educação da mocidade e para as propostas, finalmente adotadas por Pombal, em 1761, de um Colégio dos Nobres inspirado no colégio russo, onde foi professor e médico. Do anti-semitismo reinante em Lisboa nas primeiras décadas do século XVIII dão testemunho algumas amargas anotações de Ribeiro Sanches, escritas na Rússia. Diz o autor, provavelmente referindo-se a si próprio: "Entra este rapaz cristão-novo no comércio do mundo, e a cada passo observa que os cristãos-velhos, por trinta modos, o insultam e desprezam. Quanto mais vil é o nascimento e ofício do cristão-velho mais insulta o cristão-novo; porque, como é honra passar e ser cristão-velho quem insulta e despreza um da nação honra-se e distingue-se. Por isso o carniceiro, o mariola, o tambor e mesmo o algoz e o negro escravo são os primeiros que insultam e que dão a conhecer com infâmia um cristão-novo. Os que têm melhor educação lá dão seus sinais de distinção, mas com maior decência: um, quando fala com ele lhe diz uma meia palavra de cão; outro, por gíria, lhe chama judeu; outro põe a mão no nariz; outro, antes que fale, dá umas cutiladas de dedos pelos bigodes; a maior parte faz acenos que tem rabo. Este é o trato de que tem de plebe um cristão-novo com os seus compatriotas, esta é a satisfação com que vive em sua pátria. E como ser desprezado incita vingança, não vive mais que roído do ódio e do fingimento". Joaquim Ferreira, prefaciador das Cartas para a educação da mocidade, diz, com razão, que essas penosas experiências explicam a partida de Ribeiro Sanches "para longe da pátria e a sua recusa de regressar a ela". Um típico "estrangeirado" português.
Verney e o "verdadeiro método de estudar" António Sérgio considera o Verdadeiro método de estudar, de Luís Antônio Verney,
como, "por alguns aspectos, a maior obra de pensamento que se escreveu em português". Um "estrangeirado", como o próprio Pombal e muitos que o acompanharam, Verney foi o intelectual mais influente do período. Foi, digamos à maneira de Gramsci, o "grande intelectual" de uma nova geração de intelectuais, impregnados do Iluminismo, junto dos quais se encontravam escravos libertos e udeus que, finalmente, "viam acordarem-se-lhes direitos de cidade".30 Assim como Ribeiro Sanches na Rússia e Castro Sarmento na Inglaterra, Luís Antônio Verney viveu a maior parte da vida na Itália, embora em situação bastante diferente daqueles. Seu famoso livro foi publicado em 1746, em Valença, na Espanha, e não deixava dúvidas sobre suas convicções religiosas e suas intenções práticas, já a partir do título: Verdadeiro método de estudar para ser útil à República e à Igreja .31 Tendo sido o livro solicitado por D. João V, seu autor se julgava com especiais direitos a ser ouvido pelo governo, um pouco como Voltaire junto de Frederico II, ou Diderot (1713-1784) junto de Catarina da Rússia. O Verdadeiro método é uma crítica da cultura portuguesa da época, na forma de uma compilação de cartas, dirigidas a um doutor em Coimbra. Inspira-se nos métodos dos países cultos da Europa, valorizando o estudo das humanidades e, particularmente, do latim e da língua portuguesa. Verney valorizava a latinidade e buscava reviver a lição dos humanistas do século XVI. Pretendia oferecer perspectivas de uma formação intelectual que, por meio dos clássicos, abrisse para os horizontes da cultura do Ocidente e gerasse uma mudança de mentalidade no Estado, a começar pela educação. É assim que, embora com a participação e a liderança de prelados, a educação deixaria, pelo menos em princípio, o campo da Igreja, e passaria a assunto de Estado. Seguindo os ensinamentos de Locke, Verney difundiu em Portugal o empirismo que haveria de ser a base para a reforma pombalina do ensino. Defendendo o primado da observação e da experiência, o Verdadeiro método manifesta-se contra o discurso engenhoso dos escolásticos. Entendendo que a razão deve sobrepor-se aos ornatos e figuras que decoram a arte de bem falar, critica o padre Antônio Vieira, no qual vê um barroquismo exacerbado. Também critica Camões, cujos versos seriam contrários aos modelos da Antigüidade e à boa razão. Recusando as antigas influências incompatíveis com o ideal da ciência e da clareza, também recusa o cartesianismo. Verney busca afirmar o primado do experimentalismo e da razão, nas pegadas de Locke, Condillac (1715-1780), Helvécio (1715-1771) e Holbach (17231789). E, porque era católico, distanciava-se dos enciclopedistas franceses, que eram deístas ou ateus. A publicação do Verdadeiro método provocaria extensas polêmicas em Portugal, que tomariam os últimos anos de D. João V e entrariam pelo reinado de D. José I. No
tom da política de Pombal, que suprimiu as aulas gratuitas dos jesuítas já em 1756, a influência de Verney no campo da educação de nível médio e superior virá mais tarde, em 1761, com a formação do Colégio dos Nobres, por meio das propostas de Ribeiro Sanches e, em 1772, com a reforma da universidade. Foi o empirismo pregado pelo Verdadeiro método a concepção filosófica consagrada pela Reforma pombalina da Universidade de Coimbra, que determinava "o conhecimento das regras newtonianas" e que "todos os raciocínios teóricos derivarão da física, da matemática, da química, da botânica, da farmacologia e da anatomia". Segundo se diz, o próprio Marquês de Pombal teria acompanhado a revisão dos manuais de filosofia da reforma de 1772, extirpando deles qualquer referência explícita a Aristóteles. Inspirados no filósofo italiano Antonio Genovesi (1712-1769), também seguidor de Locke, esses textos foram incorporados ao pensamento oficial português e tornados obrigatórios no ensino. Verney pretendia, porém, mais do que a reforma do ensino. Almejava uma reforma cultural do país. E, como já se observou, em Portugal o Iluminismo estava obrigado, assim como na Espanha, a ajustar-se ao catolicismo, ainda vivo como idéia política no fim do século XVIII. Nesses países, como diz Cabral de Moncada, o Iluminismo tornava-se essencialmente um reformismo e um pedagogismo, enfatizando a questão do poder, as relações entre o Estado e a Igreja e as questões sociais. Os objetivos desse Iluminismo ficaram claramente definidos a limitar o poder da Igreja, subordinando-a ao Estado, difundir o espírito laico, renovar a atividade científica, propagar e secularizar a educação, desenvolver o comércio e a indústria. Para chegar a tais fins esse Iluminismo tinha que se valer do nacionalismo e do absolutismo, as duas grandes idéias políticas novas da época. É dessa espécie o Iluminismo da época de Pombal.
Herança pombalina Alguns historiadores – em particular entre os portugueses – têm sido extremamente críticos com Pombal e suas reformas ilustradas, das quais enfatizam, sobretudo, as limitações e as contradições. Preferindo chamar a atenção para o que faltou nessas reformas, a fim de que Portugal emparelhasse com a França e a Inglaterra, ressaltam em suas descrições, quase sempre polêmicas, aquilo que teria resultado em fracasso no grande esforço português para se ilustrar. Em vez de excessivamente críticos com Pombal, talvez se possa dizer que esses historiadores têm sido demasiado exigentes com Portugal, aquele pequeno reino europeu ainda carregado de heranças medievais que o marquês pretendia mudar. Na substituição dos jesuítas pelos iluministas teria havido apenas, como diz
França, a substituição de uma ditadura por outra. Caíra com os jesuítas a ditadura de Aristóteles, e começara a de Locke, "a ditadura do Empirismo, à exclusão de qualquer outra teoria".32 No horror da especulação e da crítica livre, colocou-se Locke contra Descartes, e se proibiu a leitura de Rousseau, Voltaire, Hobbes e Espinosa (1632-1677). Insuspeito de simpatia pelos jesuítas, João Lúcio de Azevedo é um dos mais ácidos na crítica: a "efêmera revivescência da nação, no período pombalino, não passa de um curto parêntesis", na decadência que se inicia dois séculos antes e se acentua no reinado seguinte.33 Se o aspecto inquisitorial de uma época em que a Coroa se fundia com a Igreja era o atraso na Europa, continuaria a sê-lo depois de abolida a Inquisição e firmada a soberania do Estado no absolutismo monárquico de D. José I. O fim melancólico de Pombal parece confirmar as interpretações pessimistas desses historiadores. Morto D. José I em 1777 e, pouco depois, o príncipe da Beira, D. José (1761-1788), preferido por Pombal, o marquês já nada tinha a fazer. Saiu do poder derrotado, incriminado e condenado. Defendeu-se como pôde e, logo a seguir, morreu (1782). Por sua vez, o grande herói intelectual do período, Luís Antônio Verney – que não se dignara a voltar para Portugal no período pombalino –, permaneceu a distância, na Itália. E Ribeiro Sanches, cujos textos se tornaram a base para a criação do Colégio dos Nobres, faleceu em Paris.34 Chegava melancolicamente ao fim uma época que pretendera mudar Portugal, e se iniciava outra que parecia restaurar o passado. Começava a fase que os portugueses designaram como "a Viradeira", com D. Maria a Louca. Diz França, num texto excelente, embora sem poder evitar o pessimismo de uma avaliação às vezes anacrônica, que Pombal era "empírico e pragmático". Poderia não sê-lo? Pombal teria sido, por certo, um "déspota esclarecido", mas sem programa ou com um programa insatisfatório.35 Mas, como se depreende das informações do mesmo historiador, Pombal concebeu um programa, por insatisfatório que se o considere. Ressalta a qualidade da descrição histórica de França que, ela mesma, oferece os elementos de uma explicação para as alegadas insuficiências que aponta. Segundo diz, Pombal esteve "sempre obrigado a partir de zero, de criar ex nihilo, no meio de uma nação sem estruturas, para além dum dia-a-dia que as Índias e o Brasil tinham facilitado". "Não podia", diz o historiador, nesse aspecto com inteira razão, "deixar de fazer apelo a um gênio de improvisação, a um gênio empírico". 36 Não seria o mesmo gênio empírico que, sempre presente na cultura portuguesa desde os séculos dos descobrimentos, continuará vivo na cultura brasileira? Segundo o historiador, Pombal quis criar uma nova nobreza, introduzir sangue novo nas veias da antiga, atrasada, ignorante, esgotada em tradição. Quis criar uma nobreza nascida do grande comércio e das finanças, aberta a idéias modernas,
semelhante à que se tinha desenvolvido em França.37 Mas o que conseguiu fazer foi criar uma burguesia a partir dos privilégios de Estado, a que nasceu dos contratos do tabaco, do comércio da Ásia e dos comerciantes das companhias que haviam feito fortuna no Brasil e dominavam uma grande parte do comércio colonial. Inspiradas em Jean-Baptiste Colbert (1619-1683), as reformas pombalinas teriam chegado com cem anos de atraso. No tempo da fisiocracia, o mercantilismo e o monopolismo de Pombal pertenceriam ao passado.38 Outras interpretações são, porém, possíveis. Se as reformas de Pombal pertenciam ao passado, como entender que tenham continuado na história econômica de Portugal e do Brasil? Ademais, mesmo para a Europa, que tenham pertencido ao passado da França e da Inglaterra não significa que pertencessem ao passado de outros países. Pombal foi o "déspota esclarecido" que podia haver nascido de um país como Portugal, submetido a uma educação e a uma cultura religiosa que prolongou o medievalismo. Como diz o próprio França, um país subalimentado, despovoado, abandonado pelas suas forças vivas, pelos seus cientistas, pelos seus negociantes judeus, circunstâncias que a Contra-Reforma e a fusão do reino e da Igreja só fizeram agravar.39 Vista de hoje, o que há de mais surpreendente na época de Pombal não é que suas reformas tenham encontrado os estreitos limites que França e Azevedo criticam. O que surpreende é que tenham tido êxito dentro desses limites. Nem mesmo um déspota, ilustrado ou não, consegue mudar a história para além das condições que esta mesma estabelece. O historiador inglês Kenneth Maxwell oferece uma interpretação mais compreensiva. Reconhece êxitos importantes de Pombal nesse longo século XVIII português – que, como sugere, começou em 1660 e terminou em 1808. Para começar, a "reconstrução de Lisboa depois do devastador terremoto de 1755 se sustenta como modelo de um planejamento urbano ilustrado". Além disso, nas colônias, especialmente no Brasil, "pode-se apresentar a reforma de toda a estrutura administrativa: a criação de companhias por ação e a proibição da discriminação contra os índios na América portuguesa e dos asiáticos na Índia portuguesa". Acrescenta que devem ser contados entre os êxitos ilustrados a abolição da escravidão em Portugal (mas não nas colônias) e o fim da distinção entre cristãosvelhos e cristãos-novos. E, como culminância das reformas pombalinas de Estado, menciona a criação do Erário Real em 1761, com um sistema centralizado de contas e poderes uniformes de impostos, seguindo a prática britânica. Registra ainda a modernização da estrutura militar, com a criação de um novo exército.40
O Brasil e a herança de Pombal Na América portuguesa, de pequeno passado, as reformas de Pombal pertenceriam, para o bem e para o mal, ao futuro. Embora se ocupem pouco de Pombal, os historiadores brasileiros tendem a ser mais otimistas com as reformas ilustradas. Para Antônio Paim, teria sido "invenção de Pombal" o Estado patrimonialista, que considera, para a época, um "segmento modernizador" que contrastaria com o tradicionalismo da velha nobreza portuguesa.41 Pontos de vista semelhantes, ressaltando aspectos progressistas da administração, são freqüentes em outros intérpretes brasileiros, ressaltando uma obra e uma influência que, no Brasil, teria ido além da economia e da estrutura do Estado, alcançando o mundo da cultura. Antonio Candido afirma que a ação de Pombal no campo literário e cultural "foi decisiva e benéfica para o Brasil". Admite que o século XVIII brasileiro "foi um Século das Luzes dominantemente beato, escolástico, inquisitorial", mas também que as medidas ilustradas "se manifestaram nas concepções e no esforço reformador de certos intelectuais e administradores, enquadrados pelo despotismo relativamente esclarecido de Pombal". O marquês favoreceu "atitudes mentais evoluídas, que incrementariam o desejo de saber, a adoção de novos pontos de vista na literatura e na ciência, certa reação contra a tirania intelectual do clero e, finalmente, o nativismo". Mesmo estimulando uma literatura de lisonja e de interesse, "habituou os intelectuais a prezar a renovação mental, a acreditar na força organizada para modificar a sociedade, a afastar-se do fator clerical mais duramente passadista, (...) a Companhia de Jesus". Candido considera benéfico para a literatura brasileira que esta tenha sido iniciada, como literatura nacional, sob os auspícios neoclássicos do período pombalino.42 Na literatura, o exemplo mais significativo da influência pombalina é O Uraguay, de José Basílio da Gama (1741-1795), um poema que celebra a obra civilizatória de Portugal na América por meio da memória da "guerra guarani". Ex-jesuíta, mestiço e descendente de Vasco da Gama, Basílio se tornara secretário particular de Pombal. Segundo Ivan Teixeira, "a partir de 1769, com o Epitalâmio e O Uraguay, Basílio da Gama teria oferecido a Sebastião José a possibilidade de formar um grupo de poetas que o exaltassem de maneira exclusiva e convicta, pois, sem raízes na Metrópole, não apresentavam perigo de contatos com a velha nobreza, que se indispusera com a política do ministro".43 Antonio Candido escreve que foi brasileiro "o ciclo mais característico de pombalismo literário", especialmente O Uraguay, de Basílio da Gama, O desertor, de Manuel Inácio da Silva Alvarenga (1749-1814), O reino da estupidez, de Francisco de Melo Franco (1757-1823). Essas obras, junto com outras de Inácio José
de Alvarenga Peixoto (1744?-1792) e de Antônio Pereira de Sousa Caldas (17621814), constituíram "o eco brasileiro, ou luso-brasileiro, das idéias modernas", que se corporificaram no nativismo, na propaganda do saber, na aspiração ao bom governo, idéias que chegaram até a Independência.44 Mais significativa se tornou a aproximação entre Pombal e os poetas brasileiros, porque seus efeitos foram além da literatura. Como já se assinalou, a relação entre Portugal e Brasil durante o século XVIII "não foi nunca meramente de servo colonial e senhor europeu".45 Atitudes diferenciadas da parte dos brasileiros remontam ao século XVII, quando, numa atitude inusitada para meros colonos, os povoadores de São Paulo, Bahia e Maranhão decidiram reconhecer D. João IV em vez da continuidade da soberania da Coroa de Espanha, dominante na União Ibérica. São da mesma época as guerras holandesas que culminaram, alguns anos depois da União Ibérica, com a vitória dos pernambucanos na batalha de Guararapes. Além disso, é sabido que em todo o século XVIII o centro estratégico da política de Portugal eram precisamente as relações com o Brasil, principal fonte das riquezas do reino. A América portuguesa foi, então, cogitada por Luís da Cunha (e, antes dele, por Vieira) como uma possibilidade para o abrigo da Coroa portuguesa.46 Eram diversas as razões que aconselhavam os governos da metrópole a alguns cuidados no trato com os brasileiros. Consciente ou não dessas razões, Pombal escolheu brasileiros para funções de governo. Alguns dos brasileiros dos quais se aproximou se tornaram conhecidos por seu envolvimento nos movimentos independentistas da colônia. Cláudio Manuel da Costa (1729-1789) foi secretário do governo da Capitania de Minas Gerais, em 1763. Alvarenga Peixoto foi juiz de fora em Sintra, em 1769. O advogado e poeta Silva Alvarenga foi apresentado por Basílio a Pombal. Também era pombalino Tomás Antônio Gonzaga (1744-1810). De influência pombalina, e também maçônica, eram outros brasileiros que depois se ligaram ao processo da Independência brasileira: José Bonifácio de Andrada e Silva, José Álvares Maciel (1761-1804), Hipólito da Costa (1774-1823), José Vieira Couto (1752-1827), Antônio Carlos Ribeiro de Andrada (1773-1845), e Alvarenga Peixoto.47 [<<13]
Vila Rica: berço de pombalinos pró-independência da colônia.
No final do período colonial havia ainda brasileiros incorporados no próprio núcleo de direção do Estado português. Alguns deles continuariam, depois da independência brasileira, prestando serviços a Portugal, ao passo que outros regressariam ao Brasil, incorporando-se aos movimentos independentistas. Era brasileiro D. Francisco de Lemos de Faria Pereira Coutinho (1735-1822), reformador da Universidade de Coimbra, onde exerceu o cargo de reitor entre 1770 e 1821, natural de Santo Antônio de Jacotinga, no Rio de Janeiro. Também o oratoriano José Joaquim da Cunha de Azeredo Coutinho (1742-1821), nascido em Campos, foi formado em Coimbra e fundador do Seminário de Olinda, por onde passou "toda a belicosa geração que sucessivamente atearia a revolução emancipadora de 1817". Entre os nomes de brasileiros que ficaram em Portugal ou que vieram para o Brasil mencionem-se ainda Vicente José Ferreira Cardoso da Costa (1765-1834), desembargador da Relação do Porto, autor do primeiro projeto de Código Civil Português; Luiz José de Carvalho e Melo (1764-1828), desembargador da Relação do Rio de Janeiro, um dos redatores da Constituição de 1824, autor dos primeiros estatutos das Academias de Direito de São Paulo e Olinda; José Joaquim Carneiro de Campos (1768-1836), diretor-geral da Secretaria de Estado dos Negócios do Reino, um dos redatores da Constituição de 1824, membro da Regência Trina em 1831; José Egídio Álvares de Almeida (1767- 1832), conselheiro da Fazenda, membro da Junta do Erário Régio, secretário do príncipe, um dos redatores da Constituição de 1824.48 Embora em escala modesta, não são poucas as ressonâncias pombalinas da época das Luzes que o Brasil veio a conhecer com a chegada de D. João VI. Participaram do "entrosamento da iniciativa governamental, do pragmatismo intelectual, da literatura aplicada, (e) finalmente convergiram na promoção e consolidação da Independência".49 Era afilhado de Pombal D. Rodrigo de Sousa Coutinho, conde de
Linhares, que veio ao Brasil na qualidade de chefe do governo de D. João VI no Rio de Janeiro. Souza Coutinho criou a Real Academia Militar (1810), posteriormente denominada Escola Politécnica, desde o início dedicada ao ensino das ciências, querendo formar militares e engenheiros. Criou também a Imprensa Régia e a Real Sociedade Marítima, Militar e Geográfica, que retomou a tradição dos estudos náuticos do século XV.50 Como diz Teotônio Simões, as ressonâncias da época de Pombal no Brasil passaram, sobretudo, por ex-alunos de Coimbra que "continuaram a reforma pombalina nas terras do Novo Mundo (...), plasmaram cursos jurídicos onde as idéias mais avançadas por muito tempo tiveram sua cidadela". Diz Octavio Tarquínio de Sousa que, "entre 1772, data da reforma pombalina, e o último ano do século, mais de quinhentos rapazes nascidos no Brasil (...) figuraram no rol dos estudantes conimbricenses, o que significa uma média de quase vinte por ano".51 Entre os que passaram por Coimbra, acrescenta Teotônio Simões, encontram-se alguns nomes ligados diretamente às primeiras manifestações de independência da colônia, como José de Oliveira Fagundes, patrono dos inconfidentes; Ovídio Saraiva de Carvalho e Silva, defensor de Ratcliff; e José Inácio Ribeiro de Abreu e Lima (1768-1817), um dos executados na revolução pernambucana de 1817. Ernesto de Souza Campos diz que "a Universidade de Coimbra (entrelaçou-se) não somente com os reinóis, como também com os colonos nascidos além-mar, nestas terras de um Brasil ainda em formação (...). E de lá vieram homens iluminados que abriram a terra virgem para nela lançar as bases fundamentais de uma nova nação". Eram membros do corpo docente de Coimbra, entre outros, José Bonifácio de Andrada e Silva (Metalurgia), Vicente Coelho de Seabra e Silva Teles (1764-1804; Zoologia, Mineralogia, Botânica e Agricultura), Ângelo Ferreira Diniz e José Corrêa Picanço (1745-1823; Medicina), José da Silva Lisboa (1756-1835; Grego e Hebraico), João Pereira Ramos, irmão do reformador da universidade, que fez parte da comissão da reforma.52 Octavio Tarquínio de Sousa registra, entre os companheiros de turma de Bernardo Pereira de Vasconcelos (1795-1850) em Coimbra, outros nomes relevantes do Império: José da Costa Carvalho (1796-1860), futuro regente; Caetano Maria Lopes Gama (1795-1864), ministro e conselheiro de Estado; João Bráulio Muniz, futuro regente (1796-1835); Manuel Antônio Galvão (1791-1850), ministro de Estado; e os uristas Francisco Gomes de Campos (1788-1865) e José Paulo de Figueiroa Nabuco de Araújo (1796-1863). Entre os contemporâneos de Vasconcelos em Coimbra estiveram Pedro de Araújo Lima (1793-1870), Manuel Alves Branco (1797-1855), Miguel Calmon du Pin e Almeida (1794-1865), Manuel Odorico Mendes (17991864), Francisco Gê Acaiaba Montezuma (1794-1870), Felipe Patroni (1789?-1866),
José Cesário de Miranda Ribeiro (1792-1856), Cândido José de Araújo Viana (17931875). Desses nomes, que exemplificam a continuidade da influência pombalina no Brasil, são mencionados aqui, para tomar palavras de Octavio Tarquínio de Sousa, apenas alguns dentre "os que venceram o anonimato póstumo".53 E o venceram porque tiveram contribuição decisiva na conquista da independência e na construção do Estado nacional brasileiro.
1. PAIM, Antônio. Categorias para a análise da herança pombalina na cultura brasileira. In: P AIM , A. (Org.). Pombal e a cultura brasileira. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1982. p. 12. 2. A ZEVEDO , João Lúcio de. O Marquês de Pombal e a sua época. Rio de Janeiro/Lisboa: Anuário do Brasil/Seara Nova, 1922. p. 87. 3. CARDOSO, Luís Miguel Oliveira de Barros. Luís Antônio Verney e o 'verdadeiro método de estudar': um pensamento inovador entre Portugal e a Europa. Viseu: Escola Superior de Educação, s. d. 4. SÉRGIO, António. Breve interpretação da história de Portugal. Lisboa: Sá da Costa, s. d., p. 41. Ver também: SIMÕES,Teotônio. Os bacharéis na política. A política dos bacharéis. Tese de Doutorado em Ciências Sociais (Ciência Política). Universidade de São Paulo, Departamento de Ciências Sociais, Área de Ciência Política, São Paulo, 1983. Ver também: T EIXEIRA, Ivan. Mecenato pombalino e poesia neoclássica. São Paulo: Edusp, 1999. 5. C ARVALHO, op. cit., p. 49. 6. A ZEVEDO , O Marquês de Pombal, cit., p. 9. Sobre a ascensão de Sebastião José, diz ainda Azevedo: "Expirando Dom João V, a 31 de julho de 1750, logo no dia 2 de agosto foi Sebastião José de Carvalho designado para o mesmo cargo de secretário dos negócios estrangeiros e da guerra, que seu tio Marco Antônio, pouco antes falecido, exercera. A rainha Mariana de Áustria pagava, por esta forma, uma dívida de amizade à sua compatriota, esposa do novo ministro. (...) Ante o obscuro fidalgote, de duvidosa estirpe, roído de ambições, e até aí sem peso na corte, abria-se agora, rico de promessas, um vasto horizonte"; ibidem, p. 232. 7. MAXWELL, Kenneth R. Eighteenth-Century Portugal. In: LEVENSON, Jay A. (Org.). The Age of the Baroque in Portugal. Washington/New Haven/London: Yale University Press/National Gallery of Art, 1993. p. 118. 8. Ibidem, p. 125. 9. F RANÇA, José Augusto. Lisboa pombalina e o Iluminismo. Lisboa: Bertrand, 1987. p. 247. 10. MAXWELL, op. cit., p. 105. 11. AZEVEDO, O Marquês de Pombal, cit., p. 238-239. 12. Ibidem, p. 137 e 162. 13. FRANÇA, op. cit., p. 12. 14. AZEVEDO, O Marquês de Pombal, cit., p. 146. 15. Ibidem, p. 109. 16. FRANÇA, op. cit., p. 40. 17. Ibidem, p. 50. 18. MAXWELL, op. cit., p. 110. 19. FRANÇA, op. cit., p. 11, 58 e 179. 20. AZEVEDO, O Marquês de Pombal, cit., p. 128.
21. FRANÇA, op. cit., p. 70. 22. AZEVEDO, O Marquês de Pombal, cit., p. 147. 23. MAXWELL, op. cit., p. 121. 24. SANTIAGO, Silviano. Introdução a Intérpretes do Brasil. Organização de Silviano Santiago. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2000. p. xxiii. 25. MAXWELL, op. cit., p. 107. 26. A NTONIO CANDIDO. Formação da literatura brasileira (momentos decisivos). v. 1: 1750-1836. Belo Horizonte: Itatiaia, 1997. p. 41. 27. SIMÕES, op. cit. 28. A citação de Pombal está em CARVALHO, op. cit., p. 47-48. 29. As informações sobre a vida de Ribeiro Sanches são de Joaquim Ferreira, em prefácio a: SANCHES, António Ribeiro. Cartas para a educação da mocidade. Porto: Domingos Barreira, s. d. p. 20 e seguintes. 30. FRANÇA, op. cit., p. 245. 31. Para este capítulo, consultei a seguinte edição: VERNEY, Luís Antônio. O verdadeiro método de estudar. Lisboa: Presença, 1991. 32. FRANÇA, op. cit., p. 256. 33. AZEVEDO, O Marquês de Pombal, cit., p. 89. 34. FRANÇA, op. cit., p. 256. 35. Ibidem, p. 247. 36. Ibidem, p. 297. 37. Ibidem, p. 248. 38. Ibidem, p. 298. 39. Ibidem, p. 297. 40. Maxwell se refere à criação do novo exército pelo Conde Schaumburg-Lippe-Bückeburg, chamado a Portugal em 1762; MAXWELL, op. cit., p. 113. 41. PAIM , op. cit., p. 15 e 89. 42. ANTONIO CANDIDO, op. cit., v. 1, p. 63. 43. Ver: T EIXEIRA, op. cit., p. 469. Seguindo a linha interpretativa de Candido, Teixeira acrescenta que O Uraguay, embora visto pelos românticos mais pelo lado indianista, nativista, formador de uma nacionalidade, de uma literatura nacional, atenuando-se a ligação com Pombal, pode ser visto sob um aspecto que revela "uma poesia européia produzida por brasileiros no Setecentos: européia, em sentido amplo, pombalina, em sentido restrito". Assim, "o Brasil pode, sem perda de sua identidade, ser entendido como produto da inteligência européia"; ibidem, p. 58. 44. ANTONIO CANDIDO, op. cit., v. 1, p. 64. 45. MAXWELL, op. cit., p. 127. 46. Segundo Maxwell, "tão aguda tinha se tornado a dependência de Portugal em relação ao Brasil durante o século XVIII que D. Luís da Cunha previu a eventual transferência da corte portuguesa para o Rio. O rei passaria a ter o título 'Imperador do Oeste' e indicaria um vice-rei para governar Lisboa. Em suas instruções de 1738 a Marco Antônio de Azevedo Coutinho, Luís da Cunha projetava a imagem de um império português na América se estendendo do rio de La Plata e Paraguai ao Norte estuário da Amazônia"; ibidem, p. 112. 47. ANTONIO CANDIDO, op. cit., v. 1, p. 64-65. 48. SIMÕES, op. cit. 49. ANTONIO CANDIDO, op. cit., v. 1, p. 64-5. 50. PAIM , op. cit., p. 10. 51. SOUSA, Octavio Tarquínio de. História dos fundadores do Império do Brasil; Bernardo Pereira de Vasconcelos. Rio de Janeiro: José Olympio, 1957. v. 5, p. 16-17. Ver também o Capítulo 7.
52. As informações acima são de Teotônio Simões, que se apóia também na História da Universidade de São Paulo, de Ernesto de Souza Campos. 53. SOUSA, op. cit., p. 18.
PARTE III BRASIL IMPÉRIO
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D. Pedro I: tendência ao absolutismo.
CAPÍTULO 7 PRIMEIRO REINADO JOSÉ BONIFÁCIO E BERNARDO DE VASCONCELOS: LIBERALISMO E CONSERVADORISMO
Nós não conhecemos diferenças nem distinções na família humana. Como brasileiros serão tratados por nós o chinês e o luso, o egípcio e o haitiano, o adorador do sol e de Maomé. JOSÉ BONIFÁCIO DE ANDRADA E SILVA
F ui liberal, e então a liberdade era nova no país (...); o poder era tudo: fui liberal. Hoje, porém, (...) os princípios democráticos tudo ganharam e muito comprometeram; a sociedade, que então corria risco pelo poder, corre ago ra risco pela desorganização e pela anarquia. BERNARDO PEREIRA DE VASCONCELOS
A época das Luzes no Brasil começou com a vinda do príncipe regente D. João, em 1808.1 Luzes modestas, diz Antonio Candido, e, pode-se acrescentar, de curta duração política. Chegaram com atraso a Portugal e, como é compreensível, levaram ainda mais tempo para chegar à colônia. Na política, as figuras mais expressivas da Ilustração brasileira foram o português D. Rodrigo de Sousa Coutinho, afilhado do Marquês de Pombal e chefe de governo de D. João, a quem se devem as principais iniciativas inovadoras quando da vinda da Corte. E o brasileiro José Bonifácio de Andrada e Silva, parente distante de Coutinho, de quem foi amigo e protegido no longo período que passou na Europa. Quando regressou ao Brasil, quase às vésperas da independência, Bonifácio tornou-se o seu principal líder. Foi, como disse um seu biógrafo, "o oportunista genial, o político por excelência, (que) viu no expediente da monarquia constitucional a garantia da unidade do Brasil".2 Não obstante o heroísmo de alguns liberais e a retórica de muitos, o Primeiro Reinado (1822-1831) e a Regência (1831-1840) foram marcados pelo predomínio de um espírito conservador que se estenderia por todo o Império. A época da fundação do Império brasileiro foi de um conservadorismo que sempre conviveu com o liberalismo. Ou, à inversa, foi dominada por um sentimento no qual o liberalismo esteve sempre enquadrado por um forte senso realista e por um grande pragmatismo. Um conservadorismo de ex-liberais, como Bernardo Pereira de Vasconcelos, que expressou seu pensamento de maneira brilhante no curso dos acontecimentos mais do que em obra teórica.
As repercussões desse espírito alcançam o Segundo Reinado no conservadorismo de antigos conservadores, como o Visconde do Uruguai, Paulino José Soares de Sousa (1807-1866), em especial no Ensaio sobre o direito administrativo, publicado em 1862, sob o governo de D. Pedro II, quando o autor já deixara a política prática. É também representativo da época o Direito público brasileiro e análise da Constituição do Império, do marquês de São Vicente, José Antônio Pimenta Bueno (1803-1878). Como o Visconde do Uruguai, São Vicente também foi protagonista de grandes decisões políticas, mas talvez mais relevante como intérprete jurídico da organização política de sua época.3
Independência: ruptura ou continuidade? Em inícios do século XIX não foram poucos os monarcas europeus exilados, quando as tropas napoleônicas ampliavam para todo o velho continente os efeitos da Revolução Francesa. D. João foi, porém, o caso único de um monarca que se exilou dentro do seu próprio Império. Embora de há muito prevista pelos estadistas portugueses como uma possibilidade, e nas circunstâncias da política européia, admitida como conveniente pelos ingleses, a vinda da Corte para o Brasil foi uma surpresa para os brasileiros. Em 1808, a sede do reino transferiu-se de Lisboa para o Rio de Janeiro, então com apenas cinqüenta mil habitantes. Até 1817 chegaram ao Rio cerca de 24 mil portugueses, somados os que vieram com o rei e os que vieram depois, em sucessivas levas. Juntando aos recém-chegados de Portugal os que vieram da própria colônia, estimulados com a notícia de que a cidade se convertera em sede da Corte, o Rio dobrou de tamanho de 1808 a 1817. Logo depois da chegada de D. João, abriram-se os portos, tornou-se livre a indústria e o comércio, e tomaram-se medidas que converteriam o Rio de Janeiro numa "cópia de Lisboa".4 As mudanças vividas pela cidade antecipavam nos fatos a Independência do país, que, em caráter político formal, chegaria em 1822. Ainda hoje um fato histórico surpreendente, a vinda da Corte não foi, porém, "adotada repentinamente como um recurso extremo e irrefletido". Diz oliveira Lima que foi uma decisão amadurecida, preparada por propostas diversas, algumas das quais, como já assinalamos, vêm desde Antônio Vieira, no século XVII, e do diplomata D. Luís da Cunha, no XVIII. Essas idéias foram retomadas por D. Rodrigo de Sousa Coutinho no início do século XIX, diante da possibilidade da invasão de Portugal pelos exércitos de Napoleão. Dizia Coutinho sobre Portugal que "ainda resta ao seu soberano, e aos seus povos, o irem criar um poderoso império no Brasil, donde se volte a reconquistar o que possa ter perdido na Europa".
Nos mesmos anos, antes de Coutinho, já o marquês de Alorna, D. Pedro de Almeida Portugal (1754-1813), havia feito proposta semelhante ao príncipe regente: "V. A. R. tem um grande Império no Brasil, e o mesmo inimigo que ataca agora com tanta vantagem, talvez que trema, e mude de projeto, se V. A. R. o ameaçar de que se dispõe a ir ser imperador naquele vasto território aonde pode facilmente conquistar as colônias espanholas e aterrar em pouco tempo as de todas as potências da Europa".5 Além dos conselhos de homens próximos a D. João, havia também o vaticínio da Inglaterra, que, em 1806, entendia que a vinda da Corte portuguesa ao Brasil seria conveniente aos seus arranjos, num continente perturbado pela expansão napoleônica. Juntavam-se assim às circunstâncias da Europa em guerra os efeitos das peculiares relações entre a pequena metrópole portuguesa e sua grande colônia americana, reconhecida por muitos a "dependência do velho reino com relação ao novo".6 A continuidade entre a colônia e o Brasil independente se tornaria em pouco tempo evidente aos observadores que dessem atenção ao significado da permanência de um ramo da dinastia dos Bragança dirigindo os destinos da nova nação. Mas havia algo mais profundo e que vinha de há mais tempo: a colônia havia gerado sinais de independência que se evidenciavam desde o século XVII nas guerras holandesas e no reconhecimento dos Bragança pelos colonos. Como diria Martins, "o império português na América é bem a obra dos brasileiros, de sua energia, de sua audácia".7 Mas, embora cada vez mais independente de Portugal, o país se tornaria, desde a vinda da Corte de D. João, cada vez mais dependente da Inglaterra. Uma dependência que também vinha de longe, desde o tratado de Methuen (1703), que levou todo o Império português a uma "forçada vassalagem ao comércio britânico".8 Portugal pretendia aqui, como diz Maria Odila da Silva Dias, lançar "os fundamentos do novo Império português", alçando o Rio de Janeiro ao status de metrópole que chamaria a si "o controle e a exploração das outras 'colônias' do continente".9 Ao propor a vinda da Corte, D. Rodrigo de Sousa Coutinho entendia "o novo Império do Brasil como a tábua de salvação do reino". 10 Não era pequeno, portanto, o projeto português. Mas o que se realizou foi de escala mais modesta: não se conseguiu salvar o reino e, poucos anos depois, D. João VI teve que voltar a Portugal, que, logo a seguir, perdeu a colônia. Mas a vinda da Corte iniciou, de fato, uma "interiorização da metrópole", na expressão de Maria Odila da Silva Dias. Estabeleceu-se o Rio de Janeiro como metrópole do Império. Não o Império português, mas o brasileiro. Se as mudanças introduzidas por D. João VI aumentaram a "forçada vassalagem" à Inglaterra, mudaram alguns aspectos quanto à vida interna do Brasil, sobretudo a sua face cultural. A colônia não tinha ensino superior; a vida intelectual transcorria
na Corte e nos conventos, os quais "abrigavam toda uma academia", diz Oliveira Lima. Em 1819, estima-se a população do país em 3,6 milhões de "civilizados", com cerca de 800 mil "índios bravos", num total de 4,4 milhões de habitantes. Desse total, estima-se que cerca de 1,2 milhão fossem escravos. Na Bahia, calcula-se que o Recôncavo tivesse 40 mil brancos, 50 mil índios e 68 mil negros. Nas vizinhanças do Rio de Janeiro, onde dois terços da população eram negros, ainda havia índios nômades na região de Campos, e na própria baía de Guanabara estava instalado um aldeamento indígena.11 A "interiorização da metrópole" vinha acompanhada de medidas que deveriam ter conseqüências no futuro. Foi assim que, ao lado da abertura econômica, começou a se esboçar uma abertura para a imigração de trabalhadores europeus. Introduziu-se uma medida que concedia aos que viessem a se estabelecer na América portuguesa o direito a sesmarias, na mesma forma por que elas eram concedidas aos súditos portugueses.Embora essa política não tenha tido maior sucesso na época, permaneceu como uma das orientações prevalecentes em todo o Império. Nos inícios do século XIX cresceu a imigração de portugueses, mas a de outros europeus ficou limitada aos suíços, alguns dos quais fundaram Nova Friburgo.12 Retomava-se, assim, nas preliminares do Brasil independente, o tema da criação de um povo, que vem das origens da colônia, e insinuavam-se os sinais de uma "política de branqueamento" que o Império buscaria realizar por meio do programa de imigração em massa de fins do século.
Iniciativas na cultura Na pasmaceira da vida colonial, o impacto cultural da vinda da Corte limitou-se, sobretudo, ao Rio de Janeiro. Acompanhando D. João vieram ao Rio vários estrangeiros, aos quais se juntaram brasileiros que aqui se achavam ou que vieram das províncias, associando-se a iniciativas culturais futuras. Entre esses muitos nomes há que mencionar o cônsul-geral russo Grigory Ivanovitch Langsdorff (17741852), o príncipe Maximiliano de Wied-Neuwied (1782-1867), os exploradores Johann Baptist von Spix (1781-1826) e Karl Friedrich von Martius (1794-1868), os pintores Thomas Ender (1793-1875) e José Leandro de Carvalho (ca. 1750-1834), os músicos Marcos Portugal (1762-1830) e o padre José Maurício Nunes Garcia (17671830). E ainda os pintores Jean-Baptiste Debret (1768-1848) e Nicolas-Antoine Taunay (1755-1830), o escultor Auguste-Marie Taunay (1768-1824), o arquiteto Grandjean de Montigny (1776-1850) e Joachim Lebreton (1760-1819), secretário da classe de Belas-Artes do Institut de France.13 No país, que não tinha uma única escola de nível superior, criaram-se cursos de
medicina na Bahia e no Rio de Janeiro; cursos da Marinha; uma Academia Militar destinada a formar engenheiros e militares; uma Escola de Comércio; uma Academia de Belas-Artes; e o Instituto Acadêmico, que foi chamado de universidade, a qual, porém, teria que esperar ainda muito tempo para existir. Criouse ainda o Museu Nacional no Rio de Janeiro, onde se instituiu também um laboratório científico. Na colônia, onde não havia gráfica, a recém-instalada Impressão Régia publicaria obras didáticas, de moral, filosofia, poética, dramáticas, mercantis, clínicas, náuticas. Começaram a circular traduções de livros científicos de álgebra, mecânica, física, economia política, etc.14 Embora posterior, é da mesma onda a criação das faculdades de Direito em São Paulo e Recife, com base em brasileiros que haviam estudado em Coimbra. D. João VI voltou a Portugal em 1821, sob pressão do movimento constitucionalista do Porto. Antes de fazê-lo, porém, e antecipando a capacidade de centralização do poder que seria a do Império, derrotou, em 1817, um movimento revolucionário em Recife. Voltou a Portugal com cerca de três mil cortesãos, deixando o poder na colônia em mãos de seu filho D. Pedro, que no ano seguinte proclamou a independência. Não obstante o Brasil ainda colonial que, em 1821, se despede do rei tivesse 95% de analfabetos, limitando-se, portanto, a política – e ainda mais a cultura – a uma ínfima minoria, a elite vivia desde 1808 a consciência de participar de um intenso processo de construção histórica. Naquela época, "o Brasil passou a oferecer (...) a sensação quase física de que a história estava sendo feita". Ao mesmo tempo, escrevia-se a história do país, a primeira das quais seria a do inglês Robert Southey (1774-1843), de 1810. No ano seguinte, saía da Imprensa Régia a primeira edição brasileira de O Uraguay, de Basílio da Gama, ao tempo que o cronista-mor do reino, José da Silva Lisboa, o futuro Visconde de Cairu, preparava a sua história do Brasil. 15 Não por acaso, em 1817, a Carta de Pero Vaz de Caminha foi impressa pela primeira vez, em Portugal. O documento havia sido lido alguns anos antes em Lisboa, na Academia Real das Ciências, cujo secretário era José Bonifácio. Mencionando Pero Vaz de Caminha, dizia Bonifácio: "Esta Carta é extremamente curiosa, e importante; não só por ser seu Autor testemunha ocular, mas igualmente por ser um testemunho da lhaneza e simplicidade de maneiras daqueles áureos tempos da Monarquia Portuguesa". Como observa Wilson Martins, as duas primeiras décadas do século XIX ofereciam ao país a "consciência de estar estruturando uma cultura nacional", de criar "simultânea e reciprocamente, o Brasil e a História do Brasil". 16
Bonifácio, o visionário
José Bonifácio de Andrada e Silva foi um cientista europeu de renome, homem da Corte no reinado de D. Maria I e conselheiro de D. João VI. Como outros de sua época, formou-se em Coimbra, na universidade reformada que sobrevivera à "viradeira" de D. Maria I. Além de haver sido o principal dirigente da independência, foi mentor de D. Pedro I (1798-1834), tutor de D. Pedro II (18251891), e pode ser visto ainda como o mais típico representante da transição brasileira da colônia ao Império. Foi também uma das primeiras autoridades públicas do Brasil a propor a abolição da escravatura. Em seus tempos de convivência com a Corte portuguesa já se percebia o visionário, como nestas palavras de um poema em que apela a D. João VI: "Ilumina teus Povos; dá socorro,/Pronto e seguro, ao Índio tosco, ao Negro,/Ao pobre desvalido". 17 Fundador do novo Estado sob as roupagens da monarquia constitucional, Bonifácio antecipou temas fundamentais da história do Império, alguns dos quais se estendem até hoje. [<<15]
José Bonifácio, "pai-fundador" do Estado brasileiro.
Embora consagrado como "O Patriarca da Independência", ficou no poder de Estado menos de um ano. Para Bonifácio, um vitorioso na pesquisa científica, a política teve, talvez, o sabor da frustração mais do que o da glória. Mais do que qualquer outro dos líderes da época, ele assinalou os compromissos liberais que estavam na raiz da independência, o que não foi bastante para livrá-lo das contradições inevitáveis na sociedade conservadora e escravocrata em que vivia.
Tanto quanto seus êxitos na passagem da colônia para o país independente, seu pensamento deixou o registro, brilhante sempre, às vezes melancólico, dos dramas da formação social do país, contribuindo para tornar seu nome emblemático de toda uma época. Se liberais como ele não podiam ser inteiramente coerentes num país dependente do trabalho escravo, como poderiam ser integralmente conservadores os fundadores de um país onde a crença na liberdade estava na raiz da sua própria existência independente? Os êxitos, tanto quanto os fracassos de Bonifácio, são significativos de uma época que foi capaz de pensar os grandes problemas do poder e da sociedade mais do que de resolvê-los. E de um país cuja cultura política se dividiu, desde então, entre a retórica e o pragmatismo. O "pai fundador" do Estado brasileiro nasceu em Santos, em São Paulo, e em 1782 foi a Portugal para estudar em Coimbra, como muitos outros. Voltou ao Brasil em 1819, 37 anos depois, já realizado como profissional e como cientista. Além de Coimbra, realizou cursos e pesquisas na França, na Alemanha, na Áustria, na Noruega, na Itália e nos países escandinavos, conquistando uma reputação nos meios científicos europeus que lhe abriu as portas de importantes academias de ciências da Europa. Em Portugal, foi professor em Coimbra e funcionário do governo de Maria I, no qual exerceu funções como militar e diretor de segurança. Seu período europeu, no qual se tornou colega e amigo dos irmãos Wilhelm (1767-1835) e Alexander von Humboldt, foi a época da difusão do Iluminismo, de Voltaire, Montesquieu (16891755), Locke e Rousseau, da afirmação da filosofia de Leibniz e Descartes e da ciência de Newton. Dois anos depois de sua volta ao Brasil, já designado conselheiro de D. João VI, participou das eleições do governo paulista e integrou a lista dos deputados que representariam a província nas Cortes de Lisboa.18 Era já um homem maduro, de grande prestígio, cercado da admiração de importantes figuras do governo de D. João VI. Há que lembrar, entre estas, o nome de D. Rodrigo Coutinho, que tinha sido o ministro mais forte de D. João. Formado no Iluminismo europeu, José Bonifácio foi um visionário no Brasil. Em inícios do século XIX, foi o primeiro homem público do país a falar da necessidade da civilização dos índios, da abolição do tráfico e da escravatura, da miscigenação das etnias, da expansão do ensino básico e secundário, bem como da instauração de cursos superiores, inclusive de uma universidade (como paulista, ele a reivindicava para São Paulo). Foi também o primeiro a propor a mudança da capital para o interior, o que, como se sabe, só veio a ocorrer um século e meio depois, com a criação de Brasília. E propôs, entre outras especificações, que a nova capital se localizasse " (...) em 15 graus de latitude, em sítio sadio, ameno, fértil e junto a algum rio navegável". E que, a partir da nova residência da corte, " (...) dever-se-ão
logo abrir estradas para as diversas províncias e portos de mar para que se favoreça por elas o comércio interno do vasto Império do Brasil". Bonifácio foi também o primeiro a reconhecer a necessidade da mudança nas leis de propriedade de terras: que "não se dêem mais sesmarias gratuitas", e que com os recursos das vendas se crie um fundo a ser "empregado em favorecer a colonização de europeus pobres, índios, mulatos e negros forros, a quem se dará de sesmaria pequenas porções de terreno para as cultivarem e se estabelecerem". E talvez tenha sido ainda o primeiro, no Brasil, a manifestar a preocupação ecológica de obrigar a que os proprietários de terra "deixem para matos e arvoredos a sexta parte do terreno, que nunca poderá ser derrubada e queimada sem que se façam novas plantações de bosques".19 Não obstante o Patriarca tenha antecipado muitos dos temas relevantes para o novo país, ele tomava distância dos ideais revolucionários da época e reagia horrorizado diante da "hidra fatal da Revolução Francesa". Como funcionário de D. Maria I, foi adepto de um poder forte e centralizado. Entendia que "os grandes projetos devem ser concebidos e executados por um só homem, e examinados por muitos: centro comum de força e de unidade".20 Como bem observou Jorge Caldeira, no primeiro ano do Império o Patriarca desagradou aos dois lados em que se dividiu o cenário político brasileiro: pareceu muito autoritário aos liberais, e os "absolutistas" o consideraram pouco maleável. Isolado, saiu do governo em julho de 1823, antes que se completasse um ano da independência do país, sua grande vitória política.21 Começou no Brasil com José Bonifácio um estilo de pensamento que se tornará geral e duradouro, voltado à indagação sobre as raízes do país como parte de um esforço intelectual para sustentar projetos de construção nacional. "É necessário que a academia estenda as suas vistas e as suas meditações sobre a história geral do país, fazendo aprontar memórias exatas, respeitantes ao descobrimento, povoação e cultura de cada uma das diferentes capitanias de que se compõem os estados do Brasil, notando com muita particularidade as nações americanas civilizadas, semibárbaras ou inteiramente selvagens, que habitam as terras e matos que possuímos, e apontando com igual individuação os meios mais próprios para a civilização delas e para o trato e comércio que com as mesmas poderemos fazer."22 Antes do Patriarca, esforços intelectuais semelhantes visavam à evangelização, à defesa do território ou à atração de imigrantes, capitais e patrocínios reais para a colonização. Foi, porém, com Bonifácio que as referências ao passado começaram a atrelar-se a projetos, ou esboços de projetos nacionais, ou seja, para o futuro. Esse modo de ver as coisas se consagrou nas melhores obras da historiografia e do ensaísmo brasileiros, e se tornou dominante a partir de meados do XIX, com a
criação de uma historiografia e uma literatura nacionais. É a partir de Bonifácio que se pode dizer, como Silviano Santiago, que os livros sobre o Brasil sempre serviram aos brasileiros mais como farol do que como espelho: "com a sua ajuda e facho de luz é que temos caminhado".23 Não há exagero em dizer que esse estilo de pensamento chegou aos "intérpretes do Brasil" na primeira metade do século XX e às teorias do desenvolvimento da "era Vargas". Nos seus ensaios e projetos de legislação, Bonifácio propôs para o Brasil os grandes temas do século XIX, que chamava o "século filosófico". Via a agricultura como uma "ciência que sustenta os homens, adoça os seus costumes e os civiliza, forma impérios, e os eleva à maior grandeza". Sem agricultura "não há subsistência, nem civilização", pois dela e das "artes mecânicas" que sustenta nasce a riqueza das nações.24 Mas, na visão do cientista, a agricultura não poderia jamais ser separada da química, donde a necessidade de criar no país um jardim botânico, escolas de química, além de produzir instrumentos e máquinas agrárias. Do mesmo modo, não se deveria esquecer de "fomentar a indústria e as fábricas" do reino, pois a agricultura por si só não basta e "sem indústria, sem fábrica e manufaturas nenhum Estado é rico e independente". Não bastaria fomentar a agricultura, as artes e o comércio – este que é "tão antigo como o mundo". As idéias do Patriarca sobre a economia culminaram em uma visão do Estado: cumpre dar ao povo educação científica e moral; é preciso ter um bom exército e uma marinha.25
Bonifácio, o pombalino Ao lado das inovações, a continuidade é o traço dominante do pensamento de José Bonifácio. As idéias e propostas para o nascente Brasil se alinham, com algumas significativas exceções, com as idéias e propostas que poucos anos antes ele apresentara a D. Maria I, então rainha de Portugal. Quase tudo segue a mesma lógica do iluminista. Como se fora um texto de um discípulo de Pombal e Verney, Bonifácio não se esquece de elogiar algumas das obras do marquês, embora sem mencionar-lhe o nome. É assim que cita "a providentíssima lei de 6 de junho de 1755", que "declarou a liberdade das pessoas e do comércio para os índios do GrãoPará e Maranhão". Assim também com o elogio da reforma da Universidade de Coimbra: "não posso negar que no anterior reinado (o de D. José I, de quem Pombal foi ministro) se tinham lançado as primeiras linhas para se estabelecerem as ciências exatas e físicas na universidade". Reserva a D. Maria I, porém, seu maior elogio, pois considera que ela continuava a "reformação" da Universidade: " . . . se a cultura das ciências é útil e necessária em toda a parte, mais o era em Portugal. Apesar da reforma da Universidade, que tanto
honra a memória do sr. rei D. José I, ainda as ciências e as letras não tinham ganhado pés como deviam entre nós; ainda em muita parte nos dominavam os lêmures da filosofia arábico-peripatética; ainda com seus sofismas e argúcias ofuscava e sopeava a razão".26
Escravidão e miscigenação As variações da conjuntura política brasileira determinam a exceção maior nessa ordem de razões do iluminista adepto da unidade de comando: é o repúdio ao absolutismo que aparece em seu projeto de Constituição para o Brasil. "A monarquia absoluta é na realidade uma aristocracia encoberta. E por isso tem todos os males do despotismo e da aristocracia." Daí que "pretender de um soberano absoluto que não seja invejoso e despótico, é querer milagres da natureza humana". E vai por aí o Patriarca, numa radicalização liberal dos argumentos. Além de negar em sua proposta de Constituição o reconhecimento de uma "nobreza privilegiada e legal", estabelece o drástico dispositivo seguinte: "todo cidadão que ousar propor o restabelecimento da escravidão e da nobreza será imediatamente deportado".27 Embora de maneira sempre muito sumária, ao estilo não do historiador ou do ensaísta e sim do político prático, José Bonifácio viu o índio e o negro como homens capazes de civilização. E sobre essa premissa antecipou boa parte dos argumentos abolicionistas que virão de meados do século XIX em diante, nos escritos de Perdigão Malheiro (1824-1881) e Joaquim Nabuco (1849-1910), entre outros. Tomando nota que nos domínios ingleses a abolição do tráfico fora aprovada em 1807, propõe no Brasil o término do tráfico para "os próximos 4 ou 5 anos"; propõe também uma emancipação gradual e progressiva, já que não considerava possível fazê-lo de imediato "sem grandes males". Envergonhava-se de sermos "a única nação de sangue europeu que ainda comercia clara e publicamente em escravos africanos", em visível ofensa aos gritos da razão, do cristianismo e da honra nacional. E aconselhava que se voltasse a ler Vieira sobre os negros, o que não deixa de ser surpreendente quando se sabe que o grande jesuíta fora, afinal, um dos mestres da filosofia "arábico-peripatética". Na mesma linha, aconselhava ainda que a nova política em relação aos índios seguisse os princípios que inspiraram os esuítas nos aldeamentos.28 Depois da independência, já agora sem compromissos com Portugal, José Bonifácio denunciou os portugueses como os primeiros que, desde os tempos do infante D. Henrique, fizeram um ramo de comércio legal "o prear homens livres, e vendê-los como escravos nos mercados europeus e americanos". E, quando o Império brasileiro apenas se iniciava, anteviu aquela que seria a grande questão
institucional da nossa política em todo o século XIX: "Como poderá haver uma Constituição liberal e duradoura em um país continuamente habitado por uma multidão imensa de escravos brutais e inimigos?". "Sem a abolição total do infame tráfico da escravatura africana, e sem a emancipação sucessiva dos atuais cativos, nunca o Brasil firmará a sua independência nacional, e segurará e defenderá a sua liberal Constituição." Do mesmo modo, questionou com ironia a sociedade que se formava sobre a base da escravidão: "Tudo, porém, se compensa nesta vida; nós tiranizamos os escravos e os reduzimos a brutos animais, e eles nos inoculam toda a sua imoralidade e todos os seus vícios". Como em relação à responsabilidade dos brancos pelo ódio que lhe têm os índios, aqui também a responsabilidade é clara: " (...) o homem que conta com os jornais de seus escravos vive na indolência, e a indolência traz todos os vícios após si". 29 José Bonifácio falava com orgulho dos paulistas, gente da sua própria terra, como mestiços: os "Paulistas... essa raça mestiça, forte e ativa". 30 Ademais, elogiava a imigração de famílias alemãs, considerando que "estas colônias são de sumo interesse para o Brasil, porque lhe trazem uma mistura de sangue, e dão exemplo vivo da maior atividade e moralidade".31 Talvez por isso tenha se antecipado também no reconhecimento das virtudes da miscigenação, que, real no Brasil desde o século XVI, só será admitida de modo consistente pelas elites intelectuais no século XX. Segundo Caldeira, a idéia de Bonifácio de sustentar a nação no "amalgamento de pessoas de diversas raças" é anterior à independência: viria de 1812, numa carta ao conde de Funchal.32 Em todo caso, o certo é que reconhecendo no país uma extraordinária heterogeneidade "física e civil", aconselhava o Patriarca que "cuidemos desde já em combinar sabiamente tantos elementos discordes e contrários, e em amalgamar tantos metais diversos, para que saia um todo homogêneo e compacto". O professor de metalurgia não poderia ignorar, porém, que seria "amalgamação muito difícil" aquela de chegar a "um corpo sólido e político", com tanto "metal heterogêneo" – brancos, mulatos, pretos livres e escravos, índios etc. Mas, ainda assim, foi capaz de fazer a apologia da tolerância diante da miscigenação racial, na qual Manuel da Nóbrega via pouco mais do que o pecado da lascívia. O visionário que apregoava a mistura das raças e que era tolerante diante das diferenças de religião admitia também a possibilidade da miscigenação cultural. 33 "Nós não conhecemos diferenças nem distinções na família humana. Como brasileiros serão tratados por nós o chinês e o luso, o egípcio e o hait iano, o adorador do sol e de Maomé."34 Crítico da religião católica, que ele vê, tal como esta se pratica no país, "pela maior parte (como) um sistema de superstições e de abusos anti-sociais", é também um crítico do "clero, (que) em muita parte ignorante e
corrompido, é o primeiro que se serve de escravos, e os acumula para enriquecer". Mas, em que pesem decepções da política, é um entusiasta do seu país e dos seus "bons costumes". Com toda a sua experiência européia, por excelência um homem do Ocidente, ele nos surpreende ao tomar para o Brasil o exemplo da China, cercada pelas muralhas e indiferente ao que se passa no resto do mundo. "O brasileiro que possui uma terra virgem debaixo de um céu amigo recebeu das mãos da benigna Natureza todo o físico da felicidade, e só deve procurar formá-lo em bases morais de uma boa Constituição que perpetue nossos bons costumes. Devemos ser os chineses do novo mundo, sem escravidão política e sem mornos. Amemos pois nossos usos e costumes, ainda que a Europa se ria de nós."35 Não por acaso, nas lutas da independência, José Bonifácio criou um jornal com o título O Tamoio, homenagem aos índios conhecidos por seus combates contra os portugueses, ao contrário dos tupis, que os lusos consideravam em geral como índios amigos. Já a essa altura como brasileiro - e portanto distante do entusiasmo dos também pombalinos do século XVIII, Santa Rita Durão (1722-1784) e Basílio da Gama, pelas virtudes civilizatórias dos portugueses –, o Patriarca prenunciava o indianismo que será uma das dimensões da "ideologia de Estado" do império dos Bragança.
Vasconcelos: o conservador Bernardo Pereira de Vasconcelos se consagrou, na palavra de um de seus biógrafos, como "o mais lúcido doutrinador do regime representativo no Brasil e um dos potentes construtores das instituições nacionais". Nasceu em Minas Gerais, em 1795, de uma família na qual alguns membros se consideravam portugueses, e um de seus irmãos chegou a ministro da Guerra em Portugal.36 Estudou em Coimbra, por onde passaram desde o último quartel do século XVIII muitos que se tornariam figuras ilustres do Império brasileiro. Da velha universidade portuguesa, embora já reformada pela Ilustração pombalina, guardou uma opinião extremamente crítica.37 Em 1826, discursando na Câmara dos Deputados sobre a criação dos cursos urídicos no Brasil, encontrou oportunidade para dizer que "o método seguido em Coimbra (...) só tinha por fim confundir as idéias dos direitos do homem e demonstrá-lo de modo tal que favorecesse todos os erros propagados pelo mais bárbaro despotismo". Vasconcelos registrou a própria experiência: "Estudei Direito Público naquela universidade e por fim saí um bárbaro: foi-me preciso até desaprender. Ensinaram-me que o reino de Portugal e acessórios era patrimonial; umas vezes sustentavam que os portugueses foram dados em dote ao Senhor D.
Afonso I, como se dão escravos ou lotes de bestas, outras vezes diziam que Deus, no campo de Ourique, lhe dera todos os poderes e à sua descendência; umas vezes negava-se a existência, mas negava-se a soberania que os povos nelas exerceram; dizia-se que aquela e as outras assembléias da nação portuguesa tiveram de direito e de fato um voto consultivo; o direito de resistência, esse baluarte da liberdade, era inteiramente proscrito (...) . Estas e outras doutrinas se ensinam naquela universidade, e por quê? Porque está inteiramente incomunicável com o resto do mundo científico. Daí vinha que o estudante que saía da Universidade de Coimbra devia, antes de tudo, desaprender o que lá se ensinava e abrir nova carreira de estudos".38 Algo, ou talvez muito dessas convicções liberais deveria mudar em Vasconcelos por força dos embates políticos de uma época de crise e desordem. O Império que conheceu logo depois da proclamação da independência teve que passar pelo trauma da abdicação de D. Pedro I, em 1831, e pelas muitas rebeliões do período regencial para começar, em 1837-1838, a se consolidar como sistema de poder, em grande parte por influência das idéias de Bernardo e de sua sempre presente intervenção na política. O período regencial conheceu 18 rebeliões em diferentes regiões do país, a maioria na Corte e no Nordeste. As mais importantes, iniciadas entre 1835 e 1838, foram as rebeliões dos cabanos (1832-1835, Pernambuco), a revolta dos escravos malês (1835, Bahia), a Cabanagem (1835-1840, Pará), a Farroupilha (1835-1845, Rio Grande do Sul), a Sabinada (1837-1838, Bahia) e a Balaiada (1838-1841, Maranhão), culminando o ciclo das rebeliões a Praieira (1848-1849, Pernambuco).39 Ao longo dos seus 25 anos de atividade parlamentar e governamental, Vasconcelos defendeu os princípios da Carta de 1824, que estabelecera no país a monarquia constitucional. A Constituição definia o Poder Moderador e atribuía ao monarca a faculdade de nomear e demitir os ministros. Além do Poder Moderador, o imperador assumia também a chefia do Executivo, que exercia por meio do seu gabinete ministerial. Embora em princípio contrária ao absolutismo, uma vez que criara um sistema parlamentar e regulamentara o poder real, a Constituição travara as aspirações liberais por meio dos dois poderes que definia como pertencentes ao monarca. Expressão das forças políticas do período da independência, a Constituição viria a ser uma das raízes dos problemas institucionais do Primeiro Reinado. Vasconcelos combateu, ao lado de muitos outros, as tendências de D. Pedro I ao absolutismo – e em 1831 o imperador seria levado à renúncia. Mas já nesses combates, em que se afirmou como liberal, daria mostras do realismo e do "senso de lúcido oportunismo" com que haveria de passar à história. 40 E passaria à história como conservador. Embora as opiniões de Vasconcelos, como as de outros no Império, tenham
variado, sua posição conservadora em torno da questão da escravidão manifestou-se muito cedo e manteve-se basicamente a mesma ao longo de sua vida. Num debate parlamentar, em 1826, sobre as queixas de um grupo de africanos ilegalmente escravizados, sustentou, para estupefação de muitos dos seus colegas, que "a presunção é que um homem de cor preta é sempre escravo". Chamado às falas por contraditores, explicou-se: "eu falei na forma de nossa legislação (...), esta é a presunção que nela existe, e não sou obrigado a mais. Não disse que os pretos deviam ser sempre escravos (.. .)".41 Vasconcelos definiu o realismo de suas atitudes políticas com clareza maior do que a de muitos dos seus colegas, que, contudo, também partilhavam delas. Embora estes, como ele, se comportassem durante o Primeiro Reinado como conservadores atentos ao peso das circunstâncias e à força da tradição, reagiam às vezes com espanto diante da clareza freqüentemente brutal e cínica de suas definições. Um dos seus preceitos políticos dizia o seguinte: não há que discutir o que é melhor fazer, mas o que, no "aperto das nossas atuais circunstâncias", se pode fazer. Em outra oportunidade, disse: "uma vez que não podemos fazer tudo, e só podemos fazer o pouco, façamo-lo".42 Vasconcelos era, como diz Octavio Tarquínio de Sousa, um homem de "espírito prático e positivo até à insensibilidade, preconizava para os problemas sociais soluções consoantes ao interesse tangível do Estado, perecessem embora altos princípios de ordem moral". É certo que, em 1827, defendeu a suspensão do tráfico e, mesmo, a abolição da escravatura, mas voltou diversas vezes à opinião, que mais profundamente era a sua, de que a escravatura representava a sustentação econômica do país. Dizia Vasconcelos, em 1827: "Qual de nós deixa de fazer os mais ardentes votos para ver terminado este flagelo que tem assolado a África, desonrado o mundo civilizado e afligido a humanidade, como reconheceu o Congresso de Viena?". E depois afirmava: "o homem livre produz mais que o escravo, segundo os cálculos dos economistas (...); não lastimemos a falta de povoação cativa, não é desta que precisamos". Combatendo o tráfico, manifestava-se contra a própria escravidão quase com as mesmas palavras de Bonifácio: "como seremos constitucionais (...) se no recinto do nosso domicílio exercermos o mais absoluto despotismo?". Estava convencido, porém, de que "a pressão inglesa para a imediata extinção do tráfico (era) menos por motivos sentimentais ou filantrópicos do que para evitar a concorrência da produção agrícola dos países de trabalho escravo com a das colônias inglesas onde se abolira a escravidão". O escravo, tema de que se ocupou com alguma freqüência, foi visto sempre por Vasconcelos como coisa; e ele, nunca desatento aos negócios, "procurou explorar essa coisa da maneira mais rendosa".43
Bernardo Pereira de Vasconcelos afirmou certa vez que "a abolição do tráfico deve trazer tendências barbarizadoras" e que a África civiliza a América. 44 Não era esta uma convicção nova entre autoridades portuguesas e brasileiras: vinha dos primórdios da colônia. Vieira não disse algo de semelhante quando afirmou que a liberdade dos negros em Palmares seria o fim do Brasil? Diferente de Vieira, porém, Vasconcelos foi, pelo menos até meados dos anos de 1830, um liberal em política e em economia. Como muitos outros no Império, foi um liberal à moda britânica: queria o governo de gabinete; tinha horror ao despotismo, tanto quanto aos revolucionários, anarquistas e demagogos, e defendia a liberdade de imprensa mesmo quando esta atacava o sistema político e o governo. Queria soluções práticas e possíveis, detestava o discurso palavroso, submetia-se ao "determinismo das circunstâncias" e não acreditava em "plano geral" para o Brasil do seu tempo. Enquanto foi um liberal, nunca lhe faltou a sensibilidade conservadora e o gosto pragmático pelos quais tem sido sempre lembrado na história e que transparecem nas importantes contribuições que deu à construção do sistema institucional brasileiro. [<<16]
Rio de Janeiro, século XIX: palco de embates entre liberais e conservadores.
O"regresso" Sobre a abdicação de D. Pedro I, em 1831, em favor de D. Pedro II, então com cinco anos de idade, movimento do qual não participou, Vasconcelos disse que "o Brasil ficou entregue a si mesmo". De fato, o país não chegou à República, como queriam os exaltados, mas ficou sob controle dos moderados, ou seja, dos segmentos
políticos que melhor expressavam os interesses dos proprietários de terra. Como se disse muito tempo depois, a Regência, que durou dez anos, seria um ensaio republicano.45 Uma experiência republicana que não deu certo e diante da qual Vasconcelos reconheceria a perda de força da autoridade. E, contudo, a Regência, vista como um cenário de rebeliões locais por sua vez percebidas como ameaças ao poder central, ofereceria, de fato, a oportunidade de reformas que culminariam no Ato Adicional de 1834, que conduziria, de novo, à centralização do poder. Inaugurava-se, assim, um tempo de medidas drásticas em defesa da ordem pública, tomadas pelo padre Diogo Antônio Feijó (1784-1843). Ministro da Justiça em 1831 e regente de 1835 a 1837, ele criou a Guarda Nacional, ligada aos proprietários de terra. Contra "os inimigos da ordem pública", Feijó teve o apoio de Vasconcelos, na pasta da Fazenda, em 1831, e também na Câmara, onde teve o apoio da maioria, inclusive o dos líderes conservadores, entre os quais Paulino José de Souza (1834-1901), Honório Hermeto Carneiro Leão (1801-1856) e Joaquim José Rodrigues Torres (1802-1872).46 Atribui-se a Vasconcelos a Exposição de princípios da Regência de 1831, cujas idéias parecem um prenúncio da trajetória que deveria levar o país, na década seguinte, ao chamado "período do regresso", de predominância conservadora. Embora tivessem depois tomado caminhos diferentes, vindo Feijó a ser o inspirador da criação do Partido Liberal, e Vasconcelos o do Partido Conservador, os dois líderes da Regência eram à época liberais que queriam ordem, trabalho e paz. No Ato Adicional, em oposição aos "avançados" e aos "exaltados" que se inspiravam nas instituições norte-americanas, Vasconcelos bateu-se por instituições que entendia mais adequadas às circunstâncias nacionais. Queria um poder executivo forte, sem prejuízo do prestígio que reservava ao legislativo, ao qual pretendia dar competência para o julgamento dos membros do Poder Judiciário. Ainda em 1834, um mês depois da promulgação do Ato Adicional, revelava o objetivo que pretendia cumprir: "Foi minha profunda convicção de que nesta sessão cumpria fechar o abismo da Revolução, estabelecer e firmar verdadeiros princípios políticos, consolidando a monarquia constitucional". Mas em 1839, falando no Senado, queixou-se das mudanças que os debates parlamentares introduziram em seu projeto: "fizeram-lhe consideráveis emendas que o podem tornar, como eu receava, a carta da anarquia". O Ato Adicional revelou-se insuficiente ou inepto para o objetivo de Vasconcelos: havia que "parar o carro revolucionário". Essas palavras e esta explicação ele as usou dez anos depois, mas seu comportamento durante a Regência indicava claramente a convicção da necessidade de uma interpretação do Ato Adicional que resgatasse a intenção original dos seus autores. Até 1834 as revoltas se tinham limitado às
capitais: Rio de Janeiro, Salvador, Recife, Ouro Preto, São Luís, Belém. Agora elas se espalhavam pelas províncias. "Conseqüência ou não do Ato Adicional – os conservadores diziam que sim, os liberais que não – grandes revoltas irromperam na Bahia (Sabinada), no Pará (Cabanagem), no Rio Grande do Sul (Farroupilha), no Maranhão (Balaiada)."47 Vasconcelos entendia que, para consolidar a monarquia e a unidade nacional, era necessário dar conta da realidade adversa criada pelas Assembléias Provinciais, que "estavam construindo uma verdadeira Babel".48 Em 1838, quando o Senado passou a debater a "lei de interpretação do Ato Adicional", começava também o movimento da Maioridade, em reunião na casa de José Martiniano de Alencar (1794-1860), pai do escritor. Pretendia declarar maior de idade D. Pedro II, o "órfão nacional", o rapazinho que a nação desde 1831 criara para ser seu rei. Vasconcelos julgava indispensável que, antes de proclamada a maioridade, fossem criadas garantias institucionais: um Conselho de Estado, a reforma dos Códigos, a disciplina no exército, a reforma da administração da Fazenda. A Maioridade e as reformas pedidas coincidiram apenas parcialmente: a lei de Interpretação do Ato Adicional, de 1840, antecedeu de um ano a Maioridade, que foi decidida ao estilo de um golpe de Estado. De início, a medida beneficiou os liberais, mas, como era do espírito do tempo, estes foram sucedidos, logo a seguir, pelos conservadores.49 A essa altura, Vasconcelos definira seu perfil conservador, a serviço da grande lavoura que ia afinal preponderar na direção política do Brasil, e defendendo as causas que se ajustavam aos interesses dos donos de escravos. 50 Acusado de trânsfuga e retrógrado, o político se defendeu, em 1837, com palavras que se tornaram célebres: "Fui liberal; então a liberdade era nova no país, estava nas aspirações de todos, mas não nas leis, não nas idéias práticas; o poder era tudo; fui liberal. Hoje, porém, é diverso o aspecto da sociedade: os princípios democráticos tudo ganharam e muito comprometeram; a sociedade, que então corria risco pelo poder, corre agora risco pela desorganização e pela anarquia. Como então quis, quero hoje servi-la, quero salvá-la, e por isso sou regressista. Não sou trânsfuga, não abandono a causa que defendi, no dia do seu perigo, de sua fraqueza: deixo-a no dia que tão seguro é o seu triunfo que até o excesso a compromete. Quem sabe se, como hoje defendo o país contra a desorganização, depois de o haver defendido contra o despotismo e as comissões militares, não terei algum dia de dar outra vez a minha voz ao apoio e à defesa da liberdade? Os perigos da sociedade variam: o vento das tempestades nem sempre é o mesmo: como há de o político, cego e imutável, servir o seu país?".51
A solidez do Império As palavras de Vasconcelos para explicar sua renúncia ao liberalismo da juventude traduzem, mais do que a sua trajetória pessoal, o percurso de muitos líderes que, ao fim do Primeiro Reinado e da Regência, consolidariam o Império brasileiro. Reconheça-se, porém, que a orientação, a doutrina e a legislação da política conservadora do Império, assegurando um poder centralizado e a unidade nacional, eram, em grande parte, obra pessoal sua. Eram reclamadas, sobretudo, por Vasconcelos. Era dele a liderança intelectual, embora com a participação de outros, como Paulino José de Sousa. Segundo Joaquim Nabuco, que considerava Vasconcelos um "gigante intelectual", nesse processo de elaboração legal ele foi o mestre e Paulino, o aplicado discípulo. Embora fosse Paulino o ator político que fizera "passar nas câmaras as leis de 23 de novembro e de 3 de dezembro de 1841, que reconstituíram as bases da autoridade no país", assim fazendo ele "realizara o pensamento político de Vasconcelos".52 É por isso que, na reação liberal que veio logo a seguir, em 1842, os ataques foram dirigidos, sobretudo, a Vasconcelos, cuja obra era reputada funesta, retrógrada, atentatória de todas as liberdades. Não obstante, as reformas conservadoras permaneceram, entre as quais a do Código do Processo, que "deu ao Império uma armadura que o defendeu durante quase meio século".53 Como diz Nabuco, essa lei "durante quarenta anos (...) manterá a solidez do Império, que acabou, pode-se dizer, com ela".54 Para além das orientações partidárias e das atribuições pessoais, as grandes decisões que definiram a face do Império terminaram compartilhadas por toda a elite brasileira da época. Ascendendo ao poder em 1844, onde permaneceram até 1849, os liberais nada mudaram da legislação conservadora contra a qual se tinham rebelado.55 "Nada mais parecido a um saquarema do que um luzia no poder", dizia um velho político da época para assinalar a quase nenhuma diferença entre os liberais (chamados de "luzias") e os conservadores (chamados de "saquaremas"). Outros cronistas do Império diziam, porém, que, diante dos grandes temas, o protesto cabia aos liberais, a solução aos conservadores. É um diagnóstico que se verifica em alguns casos importantes, como a extinção do tráfico de escravos. Nas circunstâncias criadas pelas pressões inglesas de inícios de 1850, o conservador Paulino José de Sousa convenceu o ministério e o parlamento de que a única solução era acabar com o tráfico mediante lei e ação brasileiras. 56 A pressão inglesa cresceu com o Bill Aberdeen, ato legislativo de 1845 que autorizava a marinha britânica a tratar os navios negreiros como piratas, permitindo o seu apresamento e o julgamento dos envolvidos por tribunais britânicos. A saída
brasileira para uma situação que se tornava insuportável foi dada pela lei de 1850, que tomou o nome do também conservador Eusébio de Queirós (1812-1868), então ministro da Justiça, que interrompeu de uma vez por todas o comércio de escravos. Talvez por isso mesmo, nesse episódio, para todos, quer liberais quer conservadores, sobrariam críticas, humilhações e atribuições de culpa. Em 1852, Paulino José de Sousa, respondendo a críticas dos liberais, argumentou que a responsabilidade pelo tráfico era de todos os governos desde 1830. E acrescentou: "Qual dentre nós não teve relações com um ou outro envolvido no tráfico, em épocas em que não era estigmatizado pela opinião?". No mesmo discurso mencionou a crítica que recebeu do ministro britânico das Relações Exteriores, visconde Palmerston (1784-1865), extensiva a toda a elite do Império: "O sr. Paulino tem sido professo em declarações e promessas; mas estas coisas nunca faltaram da parte de qualquer ministro brasileiro".57 E concluía Paulino: "É verdade que os nobres deputados, quando estavam em oposição (note-se, quando estavam em oposição), levantaram algumas vozes contra o tráfico; foram palavras; talvez nós não tenhamos proferido tão belas palavras; fizemos porém mais; fizemos obra". Em meio às culpas e às críticas que se distribuíam para todos, concluía que a repressão ao tráfico seria do interesse geral do país, não deste ou daquele partido. "Quaisquer que sejam as divisões que possam existir entre nós a respeito dos negócios internos, sejamos unânimes no pensamento de acabar de uma vez o tráfico."58
1. A NTONIO CANDIDO, op. cit., v. 1, p. 64. 2. SOUSA, Octavio Tarquínio de. História dos fundadores do Império do Brasil; José Bonifácio. Rio de Janeiro: José Olympio, 1957. v. 1, p. 38. 3. A obra do Visconde do Uruguai se acha em: C ARVALHO, José Murilo de. (Org.). Visconde do Uruguai. São Paulo: 34, 2003. (Coleção Formadores do Brasil). Na mesma coleção, ver: K UGELMAS, Eduardo (Org.). Marquês de São Vicente. São Paulo: 34, 2002. 4. A descrição da chegada de D. João é amplamente baseada em: LIMA, Oliveira. D. João VI no Brasil. Rio de Janeiro: Topbooks, 1996. Ver p. 49, 8 7-88 e 135. 5. Ibidem, p. 44. 6. Ibidem, p. 623. 7. MARTINS , Wilson. História da inteligência brasileira, cit., v. 2, p. 108. 8. Ibidem, p. 26-27. 9. DIAS , Maria Odila Leite da Silva. A interiorização da metrópole e outros estudos. São Paulo: Alameda, 2005. p. 22. 10. Ibidem, p. 14. 11. LIMA, op. cit., p. 552. 12. LIMA, op. cit., p. 75, 85 e 512.
13. Ibidem, p. 89 e 552. 14. Ibidem, p. 164-165 e 557. 15. MARTINS, Wilson. História da inteligência brasileira, cit., v. 2, p. 39 e 41. 16. Ibidem, p. 52-54. 17. Apud S OUSA, Octavio Tarquínio de. História dos fundadores do Império do Brasil. v. 1: José Bonifácio. Rio de Janeiro: José Olympio, 1957. p. 136. 18. Jorge Caldeira, introdução a: CALDEIRA, Jorge (Org.). José Bonifácio de Andrada e Silva. São Paulo: 34, 2002. p. 13 e seguintes. (Coleção Formadores do Brasil). 19. A NDRADA E S ILVA, José Bonifácio de. Lembranças e apontamentos do Governo Provisório da Província de São Paulo para os seus deputados. In: C ALDEIRA (Org.), op. cit., p. 131. 20. ANDRADA E SILVA, Elogio acadêmico da Senhora D. Maria I. In: C ALDEIRA (Org.), op. cit., p. 102. 21. CALDEIRA, loc. cit., p. 30 - 1 . 22. ANDRADA E SILVA, Necessidade de uma academia de agricultura no Brasil. In: CALDEIRA (Org.), op. cit., p. 69. 23. SANTIAGO, Silviano. introdução a: SANTIAGO (Org.). Intérpretes do Brasil, cit., p. xv. 24. ANDRADA E SILVA, loc. cit., p. 78-79. 25. Idem, Elogio acadêmico., cit., p. 102-104 e 109. 26. Ibidem, p. 70 e 102; Bonifácio se refere, em sentido evidentemente polêmico, ao que considerava os fantasmas ("lêmures") da filosofia escolástica-aristotélica ("arábico-peripatética"), que embaraçava ("sopeava") a razão. 27. Ibidem, p. 121. 28. Idem, Representação à Assembléia Geral Constituinte e Legislativa do Império do Brasil sobre a escravatura. In: CALDEIRA (Org.), op. cit., p. 200-201. 29. Ibidem, p. 201 e 204. 30. Idem, Pensamentos e notas. In: C ALDEIRA (Org.), op. cit., p. 240. 31. Idem, Carta a Tomás Antônio de Villanova, 18 de maio de 1820. In: C ALDEIRA (Org.), op. cit., p. 116. 32. CALDEIRA, loc. cit., p. 37. 33. ANDRADA E SILVA, Carta ao Conde de Funchal, Lisboa, 3 de julho de 1812. In: C ALDEIRA (Org.), op. cit., p. 221. 34. Idem, Pensamentos e notas, loc. cit., p. 238. 35. Ibidem, p. 241. 36. "Se os Pereira Ribeiro de Vasconcelos deram ao Brasil três nomes não esquecidos, Bernardo e Francisco Diogo (...) o filho mais velho do Dr. Diogo Pereira Ribeiro de Vasconcelos, Jerônimo, nascido em Minas, atingira em Portugal (...) o posto de tenente-geral, seria ministro da Guerra e mereceria o título de Visconde de Ponte da Barca por feito militar em defesa da causa de D. Maria II"; S OUSA, História dos fundadores do Império do Brasil, cit., v. 5, p. 11. 37. Ibidem, p. 9, 11 e 38. 38. Ibidem, p. 19-21. 39. CARVALHO, José Murilo de. A construção da ordem. 4. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. p. 250. 40. SOUSA, História dos fundadores do Império do Brasil, cit., v. 5, p. 38. 41. Ibidem, p. 50-51. 42. Ibidem, p. 38. 43. Ibidem, p. 65-66, 86, e 260-261. 44. Discurso de Vasconcelos no Senado, 1843: "Eu digo que a associação brasileira hoje precisa de adotar uma economia política em grande parte contrária à geralmente admitida, por isso que a abolição do tráfico deve trazer tendências barbarizadoras." É aparteado: "O Sr. C. Ferreira [disse]: Já a África civiliza! O Sr.
Vasconcelos [disse]: uma verdade; a frica tem civilizado a América, e veja o nobre senador os grandes homens da América do Norte, os mais eminentes, onde têm nascido; veja os outros todos que devem sua existência, o seu aperfeiçoamento aos países que têm procurado africanizar-se"; Ibidem, p. 268. 45. NABUCO, Joaquim. Um estadista do Império. 5. ed. Rio de Janeiro: Topbooks, 1997. v. 1, p. 66 . 46. CARVALHO, José Murilo de. Entre a autoridade e a liberdade, introdução a: CARVALHO (Org.), Visconde do Uruguai, cit., p. 18. 47. Idem, p. 17. 48. SOUSA, História dos fundadores do Império do Brasil, cit., v. 5, p. 212. 49. Ibidem, p. 218 e 220. 50. Ibidem, p. 182. 51. Ibidem, p. 197. 52. NABUCO, op. cit., v. 1, p. 79. 53. SOUSA, História dos fundadores do Império do Brasil, cit., v. 5, p. 218, 220, 128, 235, 23 6 e 240. 54. NABUCO, op. cit., v. 1, p. 79. 55. CARVALHO, Entre a autoridade e a liberdade, loc. cit., p. 22. 56. Visconde do Uruguai. In: CALDEIRA (Org.), op. cit., p. 552 e seguintes. 57. Ibidem, p. 582. 58. Ibidem, p. 602.
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Aclamação de D. Pedro II: conturbado início de um estável Segundo Reinado.
CAPÍTULO 8 SEGUNDO REINADO JOSÉ DE ALENCAR: INDIANISMO E CONSERVADORISMO
O mestre que eu tive, foi esta esplêndida natureza que me envolve, e particularmente a magnificência dos desertos, que eu perlustrei ao entrar na adolescência, e foram o pórtico majestoso por onde minha alma penetrou no passado de sua pátria. Daí, desse livro secular e imenso é que eu tirei as páginas d'O guarani, as de Iracema. JOSÉ DE ALENCAR
E m Um estadista do Império, que escreveu sobre seu pai e o Segundo Reinado, Joaquim Nabuco disse que "a Regência foi a república de fato". Foi uma "república provisória" que se revelou incapaz de conter as rebeliões regionais, mas que cumpriu a função de manter o país unido, apesar das turbulências e dos separatismos. Foi eficiente ao substituir D. Pedro II, então ainda um menino, pelos regentes, sobretudo o padre Feijó. Mas não foi capaz de criar um regime que substituísse a monarquia nem de evidenciar a "desnecessidade do elemento dinástico, que era um pesadelo para o espírito adiantado". Fracassado o ensaio republicano, a alternativa para garantir a unidade nacional estava à mão: a proclamação da Maioridade de D. Pedro II.1
Duas épocas O período pós-Regência (1837-1841), que ficou na história como o "Regresso", começou sob a liderança de Bernardo Pereira de Vasconcelos no temor das rebeliões regenciais e com a consciência da necessidade da centralização do Império. Era o início de uma obra de centralização que só seria ultimada pelo "Ministério da Conciliação" (1853-1857), sob a presidência do também conservador marquês do Paraná, Honório Hermeto Carneiro Leão. Assim como a centralização, também continuaram por mais tempo as rebeliões que a motivavam. Algumas rebeliões da Regência só terminariam depois da Maioridade, como a dos Farrapos, no sul, que acabou em 1845. Pouco depois, em 1848, começaria a Praieira, em Pernambuco. Teria início mais adiante o período da
"Conciliação", com uma trégua entre liberais e conservadores que duraria até o início da Guerra do Paraguai, em 1864.2 Do famoso "Ministério da Conciliação" participou também o general Luís Alves de Lima e Silva (1803-1880), do Partido Conservador, cujos títulos nobiliárquicos – barão, depois marquês e duque de Caxias – servem para indicar a projeção que alcançou no campo político.3 Caxias, que debelou as rebeliões do período, sucederia o marquês do Paraná na chefia do Ministério. Esse "Ministério da Conciliação", segundo Euclides da Cunha, separou duas épocas, o Primeiro e o Segundo Reinados. Foi "o ponto culminante do Império". 4 Mas, conforme testemunhos da época, os tempos de D. Pedro I não foram muito diferentes dos inícios do reinado de D. Pedro II. Esse ponto de clivagem representado pelo Ministério da Conciliação vinha sendo preparado antes, assim como as mudanças que surgem depois dele. Foi a partir de 1850 que surgiram as primeiras estradas de ferro, desenvolveram-se o telégrafo e as linhas de navegação, renovou-se a instrução pública. Essas mudanças iriam dever-se tanto às ações do Ministério da Conciliação quanto aos efeitos da interrupção do tráfico de escravos (1850), que liberou capitais para investimento em diferentes ramos da atividade econômica. Joaquim Nabuco, em seu brilhante panorama do Império, registra as mudanças e as permanências na transição do Primeiro para o Segundo Reinados. Falando dos começos, de 1843, quando D. Pedro II tinha 17 anos, diz Nabuco que as mudanças teriam se limitado a personagens, famílias e grupos que participavam da Corte: "as antigas famílias (...) agora tratavam de ocultar do melhor modo que podiam sua irremediável decadência". A sociedade do Primeiro Reinado, que se reunia em torno de D. Pedro I, "desaparecera, com seus hábitos, sua etiqueta, sua educação, seus princípios, e os que figuravam agora no fastígio eram ou os novos políticos saídos da revolução ou os comerciantes enriquecidos. (...) a política e o dinheiro eram as duas nobrezas reconhecidas, as duas rodas do carro social. Quando a primeira se desconcertava, vinham as revoluções, no fundo tão oficiais como o próprio governo (...) quando era a segunda, vinham as crises comerciais, que se resolviam pela intervenção constante do Tesouro". Não obstante esse tom crítico, a apreciação de Nabuco sobre os inícios do Segundo Reinado é marcada pela generosidade. Essa fase inicial se caracterizaria por "uma sociedade moralizada e de extrema frugalidade; os princípios tinham ainda muita força, o honesto e o desonesto não se confundiam, sabia-se o que cada um tinha e como tivera; inquiria-se da fortuna dos homens públicos como um censor romano da moralidade dos personagens consulares; respeitava-se o que era respeitável; os estadistas de maior nome eram pobres, muitos tendo vivido sempre
uma vida de privação quase absoluta, em que merecer uma condescendência qualquer era quebrar a austeridade e provocar comentários. (...) A invasão do luxo só se fará dez anos mais tarde com a prodigalidade das emissões bancárias".5
Uma questão de identidade Nessas primeiras décadas do Segundo Reinado, em que o progresso econômico e as mudanças sociais caminhavam tão lentamente, os temas culturais e políticos alcançaram maior visibilidade nos caminhos escolhidos pela Coroa e pelas elites para construir o Estado nacional. Aos homens que forjaram o Estado brasileiro do século XIX impunha-se igualmente a tarefa de forjar uma identidade cultural para o país. Antecipada em inícios do século por José Bonifácio, a preocupação com a identidade nacional tomou a escala mais ampla de uma "ideologia de Estado" 6, com o apoio, e em alguns casos com a iniciativa, do próprio monarca. A mistura de política e literatura parecia inevitável. Foi um literato e político francês, François-Auguste-René de Chateaubriand (1768-1848), "que forneceu a chave de transição entre o universo de referências políticas da civilização ocidental e a realidade brasileira". Nessa transição, a iniciativa coube ao conselheiro Gonçalves de Magalhães, que fez a tentativa de gerar numa epopéia a "imagem da nação brasileira como síntese americana de europeus e aborígenes, africanos excluídos".7 Coube a José de Alencar (1829-1877), também literato e político, completar no romance esse trabalho de busca de uma identidade nacional. Nessa obra de construção foi também fundamental a cooperação do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), inspirado no Institut Historique de Paris, que cumpriu a missão de delinear uma visão brasileira do Brasil, produzindo uma história nacional e uma definição da brasilidade que unificava a nação.8 Como diz Angela Alonso, "o indianismo literário e o ensaísmo historiográfico do IHGB vinham dar acabamento simbólico ao processo de pacificação que a Conciliação empreendia na política institucional".9 É a época de ouro do romantismo e do indianismo.10 O poeta e diplomata Domingos Gonçalves de Magalhães (1811-1882) tornou-se o principal representante da nova corrente desde que lançou, em 1836, em Paris, seu "Discurso sobre a literatura no Brasil". Fundou, também em Paris, uma revista, chamada Niterói, em homenagem ao indianismo, na qual difundia os temas românticos dominantes na França. É de 1836 seu primeiro livro, Suspiros poéticos e saudades, no qual os críticos reconheceram mais pioneirismo do que qualidades poéticas. Estas chegariam dez anos depois, com os Primeiros Cantos (1846), de Antônio Gonçalves Dias (1823-1864), que se formou em Portugal sob a influência
do nacionalismo de Almeida Garrett (1799-1854) e Alexandre Herculano (18101877). Como assinala Wilson Martins, se a primeira década romântica é a de Magalhães, "basta pensar que, na década seguinte, o romantismo será representado pela geração de Gonçalves Dias, para medir a enorme distância literária que as separa". Nossos primeiros românticos achavam-se, porém, unidos pelo "indestrutível nexo histórico que os identifica num projeto comum".11 Foi desse nexo que uma década depois surgiu José de Alencar, com O guarani (1857), considerado por Machado de Assis (1839-1908), alguns anos depois, como "chefe da literatura nacional". Quando Alencar surgiu, Gonçalves Magalhães era ainda o condestável das letras, tanto por sua copiosa produção quanto pelo prestígio que lhe conferia a admiração de D. Pedro II. E foi em atenção a um pedido do imperador que publicou em 1856 A confederação dos tamoios, poema épico que se tornou alvo da crítica de Alencar. Este, que até então se dedicara apenas às crônicas e ao jornalismo, considerou o poema de boa intenção, mas de forma inepta para expressar o tema a que se propunha. Alencar, que quase ao mesmo tempo dava a público "seus dois primeiros 'romancetes' de ambientação carioca", era apenas um principiante na literatura.12 Mas sua entrada polêmica ficaria, além da história das letras, também para os registros da história política. É que da sua polêmica participariam outros personagens, entre os quais o próprio imperador. Ocorria, quase ao mesmo tempo, o lançamento d 'O guarani "publicado no (...) ornal à medida que ia sendo escrito", em três meses de 1857. É "um largo sorvo de fantasia, que realiza talvez com maior eficiência a literatura nacional, americana, que a opinião literária não cessava de pedir e Gonçalves de Magalhães tentara n'A confederação dos tamoios".13 Estreando como adversário de Magalhães e, de certo modo, também do imperador, seria Alencar o inovador no âmbito do projeto histórico-cultural que seus adversários literários haviam iniciado.
Um conservador inovador Diferente de Nabuco, Alencar não escreveu uma biografia do pai, que foi, contudo, um político de nomeada, membro de uma família de proprietários de terras e de escravos. Mas suas lembranças de infância e adolescência são coerentes com o cenário da grande inflexão histórica que vivia o país. As origens de Alencar fariam prever o rebelde mais do que o liberal conservador que se tornou em sua atividade política. Sua avó, D. Bárbara de Alencar, participou da revolução de 1817, em Pernambuco, o que a levou a passar quatro anos presa na Bahia. Também foi preso o pai do escritor, padre que abandonara a batina e era amigo do liberal Diogo Antônio Feijó, também padre, de quem o Alencar filho se
lembrava como estando presente nas reuniões em sua casa, do Clube da Maioridade, que levou D. Pedro II ao trono em 1840. O Alencar pai permaneceu fiel às idéias liberais da juventude, fez carreira política, tornou-se deputado, presidente da Câmara em 1837. Tornou-se depois senador, posição que no Império dependia de decisão final do imperador. E nisso teve mais sorte do que seu filho escritor. Em 1868, D. Pedro II negou acesso a José de Alencar no Senado, embora este já fosse escritor notável, deputado de várias legislaturas e inscrito no Partido Conservador.14 Além dos aspectos formais da expressão literária, a polêmica entre Magalhães e Alencar envolvia a questão da inclusão do índio como parte legítima da cultura nacional. O tema, de grande atualidade na época, tinha precedentes na literatura do período colonial. Na consideração dos críticos, A confederação, de Magalhães, era um épico neoclássico, como havia outros em uma tradição literária que contava com Caramuru, do frade Santa Rita Durão, e O Uraguay, do ex-jesuíta Basílio da Gama. A diferença é que esses poemas coloniais louvavam os portugueses, enquanto A confederação os atacava. Mas quaisquer que tenham sido as diferenças entre essas obras, o tema dos índios era persistente. Quase no mesmo momento em que se dava a polêmica Alencar-Magalhães surgiam Os timbiras, de Gonçalves Dias.
Civilização e barbárie - uma síntese Como observa Wilson Martins, a cultura do país estava diante da questão de como escolher entre a "civilização e a barbárie". Entendiam as elites do Império que estava o país em disjuntiva semelhante àquela tratada pelo argentino Domingo Faustino Sarmiento (1811-1888), no Facundo, de 1845. Havia que escolher entre a cidade e o campo, o presente e o passado, a civilização e a barbárie, a Europa e a América. Em contraste com Sarmiento, Alencar apresentou n' O guarani uma "resposta dialética", uma síntese que louvava, ao mesmo tempo, o português e o índio. 15 Ao modo do indianismo do século XIX, Alencar expressava uma propensão do Brasil à mestiçagem que vinha desde os primeiros séculos da colônia. Admitia a mestiçagem, porém, à maneira do século XIX. A síntese incluía os índios; não, porém, os negros. A história d'O guarani se passa no início do século XVII, num castelo medieval construído na floresta por um fidalgo português, da época da união Ibérica, mas rebelde ao domínio de Castela. O fidalgo tinha profunda admiração por Peri, o índio herói, no qual via um nobre como ele próprio, e com qual vai casar sua filha, Ceci, depois de dar ao índio o seu próprio nome no batismo que o converte em cristão. Assim, seus descendentes já não seriam nem portugueses nem índios, mas
brasileiros. Quanto ao aspecto propriamente literário, a novidade de Alencar foi ter escrito, em vez de um poema épico, um romance histórico, idealista e mítico, uma epopéia à maneira de Walter Scott (1771-1832) e Chateaubriand. Sua grande realização foi uma síntese de espírito conservador, sugerindo imagens dos fundamentos da nacionalidade que, com muitas variantes, persistem no pensamento brasileiro até hoje.16 Disse Machado de Assis que Alencar não deixara sem exame um recanto do país. Acompanhando o entusiasmo do grande escritor, a historiadora italiana Luciana Stegagno-Picchio considera a obra de Alencar um "balanço" total do mundo brasileiro de meados do século XIX, "uma comédia humana que vai das origens da colônia" à "contemporaneidade". Além d'O guarani, o "bom selvagem sem mácula nem medo", são exemplos de romances das origens Iracema, "a virgem dos lábios de mel", também "transparente anagrama da América" e As minas de prata, "amplo mural da penetração bandeirante do país". São exemplos da contemporaneidade (Lucíola), e dos romances regionais, do Ceará ( O sertanejo) ao Rio Grande do Sul ( O gaúcho), nos quais, como diz Alfredo Bosi, o bom selvagem "se desdobra em heróis regionais".17 O índio Peri se convertera em mito. Em 1870, o Teatro Scala de Milão encenava a ópera O guarani, de Carlos Gomes (1836-1896), inspirada no livro de Alencar, e que continua sendo uma das atrações dos teatros de ópera no país. Alencar concebera na união de Peri com Ceci "o tronco, se não biológico e racial, pelo menos alegórico e poético, da nacionalidade".18 Segundo Stegagno-Picchio, contra o mito de Peri, os modernistas de 1922 construirão "o mito do Macunaíma: o mau selvagem, zombeteiro e desleal, impávido e degradado".19 Uma tentativa inútil, sugere a autora, pois continua vivo o mito do índio que se converteu e, em sua nobreza, incorporou-se à nacionalidade.
Consciência de um projeto José de Alencar estava, por certo, consciente de que participava de um projeto comum à elite de sua época. É esclarecedora a resposta que deu aos contemporâneos que acusavam-no de imitador do norte-americano Fenimore Cooper (1789-1851), autor de O último dos moicanos (1832), que escreveu muito sobre a vida de fronteira e os pioneiros. Diz Alencar que, mais do que Cooper ou Chateaubriand, seu mestre fora a natureza do seu país: "(... ) o mestre que eu tive foi esta esplêndida natureza que me envolve, e particularmente a magnificência dos desertos, que eu perlustrei ao
entrar na adolescência, e foram o pórtico majestoso por onde minha alma penetrou no passado de sua pátria. Daí, desse livro secular e imenso, é que eu tirei as páginas d'O guarani, as de Iracema (...). Daí, e não das obras de Chateaubriand, e menos das de Cooper, que não eram senão a cópia do original sublime que eu havia lido com o coração. O Brasil tem, como os Estados Unidos e quaisquer outros povos da América, um período de conquista, em que a raça invasora destrói a raça indígena. Essa luta apresenta um caráter análogo, pela semelhança dos aborígenes. Só no Peru e (no) México difere. Assim, o romancista brasileiro que buscar o assunto do seu drama neste período da invasão não pode escapar ao ponto de contato com o escrever americano".20 De um modo ou de outro, a mitologia de Alencar persistiu e abriu caminho para um dos ramos do romance brasileiro que prosseguiu até o século XX. Os mitos de Alencar cumpriram algumas das funções que se espera de uma ideologia, iluminando alguns aspectos da realidade, colocando outros na penumbra, senão apagando-os de todo. Como disse Antonio Candido, quando surgiu o indianismo na literatura o índio já era o passado, ao passo que "o negro era a realidade degradante, sem categoria de arte, lenda heróica". No país novo o indianismo adequou-se como conveniente motivo das elites que buscavam afirmar uma identidade nacional, com a vantagem de evitar o "problema" representado pelo negro. A imaginação romântica de Alencar deu ao "país de mestiços o álibi de uma raça heróica, e a uma nação de história curta, a profundidade do tempo lendário. (...) No meio de tanta revolução sangrenta; em meio à penosa realidade da escravidão e da vida diária – surgia a visão dos seus imaculados Parsifais, puros, inteiriços, imobilizados pelo sonho em meio à mobilidade da vida e das coisas".21 O que tem a ver com o necessário sentimento de identidade e permanência de uma sociedade nova e instável que o Brasil era e continuará sendo pelos tempos vindouros. Era ampla a visão de Alencar sobre as origens do Brasil, a qual mesclava no plano simbólico a fidalguia portuguesa e a nobreza indígena. Ele cooperou com a formação da consciência nacional, reclamada pelo imperador e pela elite da época, de modo mais profundo que Gonçalves de Magalhães. Daí que o mal-entendido com o imperador, que tanto magoou o escritor e tanto irritou o monarca, talvez se deva às ambigüidades do tempo em que viviam. O escritor contribuiu, como também o desejaria o imperador, para construir uma ideologia que consagrava os rumos da independência, passando por alto as ignomínias da escravidão. Sua imaginação romântica criou com um povo índio, na época já uma lembrança do passado, uma imagem do país que não se podia construir com o povo real, do qual o negro escravizado era parte essencial. Uma visão do povo que, pelas mesmas razões, tampouco se podia construir com os pobres ignorados dos sertões, em geral
mestiços, que só virão à cena com Euclides da Cunha (1866-1909). No século XX, Jorge Amado (1912-2001) dizia-se "um rebento baiano da família de Alencar". Dizia que Alencar era o fundador da família do romantismo, e atribuía a fundação da outra família, a do realismo, a Machado de Assis. 22 Como se sabe, Jorge Amado foi comunista na juventude e manteve sempre uma aguda sensibilidade popular, tendo sido um dos primeiros escritores brasileiros a reconhecer o negro como herói literário. Não deixa de haver alguma ironia no fato de o romantismo e o realismo, variantes inovadoras da cultura nacional, terem sido criadas por dois literatos de opinião política conservadora.
Um monarca abolicionista O ano de 1868, quando Alencar subiu ao Ministério na pasta da Justiça, foi o da retomada das críticas do Partido Liberal às instituições políticas do Império. o movimento de crítica se iniciou com o famoso discurso do sorites, do senador Nabuco de Araújo (1812-1878), criticando o mecanismo institucional de formação dos governos no Império. Não obstante suas boas relações com o imperador, ou talvez por isso mesmo, o orador preferiu falar da tribuna do Senado, o que significava falar ao país em vez de ao Conselho do Império, ao qual também pertencia. "Ora, dizei-me: não é isto uma farsa? Não é isto um verdadeiro absolutismo, no estado em que se acham as eleições no nosso país? Vede este sorites fatal, este sorites que acaba com a existência do sistema representativo: o Poder Moderador pode chamar a quem quiser para organizar ministérios; esta pessoa faz a eleição, porque há de fazê-la; esta eleição faz a maioria. Eis aí o sistema representativo do nosso país!"23 Joaquim Nabuco, filho de Nabuco de Araújo, endossa em sua história do Segundo Reinado esses conceitos, em frases veementes, sem jamais colocar em questão o papel desempenhado por D. Pedro II. De acordo com Joaquim Nabuco, era a primeira vez no Senado que se "tachava" de "ilegítimo o uso de uma atribuição constitucional". Além disso, ele registra que seu pai repetiu no Conselho de Estado o que dissera no Senado, sustentando diante do Imperador o princípio que desejava que viesse a se tornar vigente: "o rei reina e não governa". 24 Embora o discurso de Nabuco de Araújo tenha sido feito em nome de princípios, sem intenção de crítica pessoal ao imperador, seria impossível ignorar seu significado político. De um modo ou de outro, como sabemos, no Império o rei reinava e governava. Com o discurso do sorites, diz Joaquim Nabuco, começa a fase final do Império.25 Monarquista, Joaquim Nabuco quase sempre elogia o imperador, ao mesmo tempo
que desnuda, como o fizera seu pai, a natureza institucional do "poder pessoal". 'Antes de tudo, o reinado é do imperador. (...) Como está em suas mãos o fazer e desfazer os ministérios, o poder é praticamente dele." Até mesmo quando elogia D. Pedro II – e o faz em diversos momentos, em razão das iniciativas da Coroa em favor da extinção do tráfico de escravos, da lei do Ventre Livre e da abolição –, a caracterização do "poder pessoal" é inequívoca. "A tradição, a continuidade do governo está com ele só. Como os gabinetes duram pouco, e ele é permanente, só ele é capaz de política que demande tempo." Eis uma realidade da política da época que, contudo, José de Alencar não parece ter sido capaz de compreender ou de aceitar. Como disse Nabuco, oporse ao imperador, opor-se "aos seus planos, à sua política, era renunciar ao poder". 26 Foi o que ocorreu com o romancista, menos por haver tido a audácia de colocar em dúvida o bom gosto literário do imperador do que por ter sido demasiado conservador para suportar as iniciativas abolicionistas da Coroa. Nas grandes mudanças que começaram em fins dos anos de 1860, já consagrado como escritor, José de Alencar iniciou seus passos no rumo do ostracismo. Desligouse do ministério em 1870, um ano antes do Ventre Livre, para se candidatar ao Senado. Foi eleito em lista sêxtupla e, a seguir, preterido pelo imperador. Daí em diante passou ao ataque ao "poder pessoal" de D. Pedro II, possivelmente com a simpatia de muitos dos seus colegas parlamentares, alguns dos quais viam, porém, com estranheza sua mudança de opinião em relação ao imperador. É que pouco antes do seu ingresso no governo, como ministro da Justiça, Alencar havia publicado nas Cartas de Erasmo um elogio do imperador que começa com as seguintes palavras: "Monarca, eu vos amo e respeito". E descrevia D. Pedro II: "O chefe por quem a parte sã da população almeja; o pensamento diretor contra o qual não se concebem rivalidades; o centro para onde convirjam as unidades esparsas; sereis vós, senhor. A flor do país se reunirá ao redor do trono. Esse há de ser o vosso artido, o grande partido nacional da regeneração, de cuja substância devem sair os nossos partidos políticos".27 Depois do fracasso de sua pretensão de ingresso no Senado, suas atitudes mudaram.
A lei do Ventre Livre Como era a Coroa que determinava a agenda política do Império, o combustível principal das lutas políticas de fins dos anos de 1860 e inícios de 1870 não viria das críticas liberais ao "poder pessoal". Não significa que as críticas liberais viessem a ser ignoradas, mas as reformas que propunham e que, em boa parte, foram atendidas, ficaram no segundo plano, obscurecidas pelos projetos abolicionistas, nos quais
trabalhava o Conselho do Império desde 1866. A Coroa e seus Conselheiros – entre os quais Nabuco de Araújo e o marquês de São Vicente – tinham presente, por certo, que há pouco terminara a Guerra de Secessão (1861-1865) nos Estados Unidos, dando fim à escravidão norte-americana, mas ao preço de uma guerra civil que as autoridades brasileiras fariam tudo para evitar. Quase ao mesmo tempo, em julho de 1866, chegava às mãos do imperador o apelo da Junta Francesa de Emancipação, que dizia: "já abolistes o tráfico; mas essa medida é incompleta. O número dos escravos é menor que o dos homens livres, e quase um terço já existe nas cidades exercendo ofícios ou servindo de criados, e é fácil elevá-los à condição de assalariados. A emigração dirigir-se-á para as vossas províncias, desde que a servidão tiver desaparecido". D. Pedro II respondeu em termos que significavam um aceno positivo no rumo da abolição: "A emancipação dos escravos, conseqüência necessária da abolição do tráfico, não passa de uma questão de forma e de oportunidade. Quando as penosas circunstâncias em que se acha o país o consentirem, o governo brasileiro considerará como objeto de prim eira importância a realização do que o espírito do cristianismo desde há muito reclama do mundo civilizado". Segundo Joaquim Nabuco, "a iniciativa, o desejo de que se levasse a questão (da Abolição) ao Parlamento, (...) partiu do Imperador" por meio de duas tentativas: a primeira veio com o ministério de 1866, dirigido pelo liberal Zacarias de Góis e Vasconcelos (1815-1877); a segunda, com o de 1871-1875, presidido pelo conservador Visconde do Rio Branco, José Maria da Silva Paranhos (1819-1880).28 Confiantes na força de sua própria crítica, os liberais entenderam não participar das eleições de 1869. Mas a decisão da Coroa de retomar o tema da escravidão ganhou predominância no debate político, por meio da reação positiva de D. Pedro II à mensagem dos abolicionistas franceses. Mais ainda porque a Coroa decidiu, então, pela inclusão do tema da escravatura na Fala do Trono. Foi como "um raio caindo de céu sem nuvens". Segundo José Murilo de Carvalho, o fato de haver o imperador tocado no tema da escravatura pareceu a muitos, "na perturbação do momento, uma espécie de sacrilégio histórico, de loucura dinástica, de suicídio nacional".29 A referência feita à abolição na Fala do Trono encontrou a "mais virulenta oposição já vista na Câmara", uma oposição, aliás, concentrada nas representações de Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais, cujas vozes ecoavam para um plenário todo conservador. 30 Começava o debate da lei do Ventre Livre, que veio a ser promulgada no primeiro ano do governo Rio Branco (1871-1875). A lei definia nos códigos do Império o princípio de que "na terra da Santa Cruz ninguém mais nasce escravo". 31 Seguindo exemplos bem-sucedidos em outros países, dava "à escravidão uma sobrevida de
vinte anos, ao estabelecer o protetorado do senhor sobre o ingênuo". Mas "suprimia por completo a perspectiva da reprodução do sistema escravista".32 [<<18]
Alencar queria a abolição ao fim de uma gradual "revolução dos costumes".
José de Alencar voltou-se contra a proposta da lei e contra o governo que a propunha, por intermédio de manifestações no parlamento que foram percebidas por muitos como as de um conservador extremado, favorável à escravidão. Como muitos que na época desejavam um aprimoramento das formas institucionais, ele entendia que a abolição desejável viria por meio de uma gradual "revolução dos costumes". Como conservador, considerava a lei do Ventre Livre uma "revolução efetiva" e, o que é pior, "com a desvantagem de ser a prazo". Considerava a proposta da Coroa, além disso, "iníqua e bárbara", porque libertaria os filhos, deixando escravos os pais.33 Alencar dizia que, "ao invés da liberdade do ventre (...) há outras alforrias" nas quais "o governo devia empenhar-se": "a alforria do voto, cativo do governo; a alforria da justiça, cativa do arbítrio; a alforria do cidadão, cativo da guarda nacional; e, finalmente, senhores, a alforria do país, cativo do absolutismo, cativo da
preponderância do governo pessoal".34 E acusava o chefe do gabinete, o também conservador Rio Branco, "por desligar-se do partido para provocar uma guerra civil".35 A Lei do Ventre Livre de 1871 não provocou nenhuma guerra civil, como temiam Alencar e muitos naquele momento. Embora depois de algumas dificuldades na Câmara, o Visconde do Rio Branco conseguiu aprová-la segundo as regras políticas prevalecentes no Império. A proposta de lei contava o apoio da Coroa e, portanto, tinha base para a conquista da maioria, composta em grande parte de funcionários públicos, decerto obedientes ao governo. Além das conseqüências sociais que a própria lei previa e desejava, o Ventre Livre teve conseqüências políticas. Ainda segundo José Murilo de Carvalho, deu-se nessa oportunidade "a primeira clara indicação de divórcio entre o rei e os barões". À lei do Ventre Livre se somaram ainda outras medidas do gabinete Rio Branco, conduzindo a um progressivo deslocamento do governo em relação às bases socioeconômicas do Estado. Em 1871, por demanda liberal, foi reformada a lei de 1841, que dera início ao "regresso". Em 1873, num sentido igualmente liberal, a Guarda Nacional "foi praticamente desmobilizada".36 Embora por mão dos conservadores, o Império que nascera liberal parecia disposto a voltar a sê-lo. Paradoxalmente, é essa disposição de renovação liberal que o acompanha em seu ocaso. Como diz Joaquim Nabuco, "a história da queda da monarquia não é senão a história da cisão conservadora de 1871".37 Alencar morreu em 1877. Morreu ainda jovem, aos 48 anos, e assim não teve tempo de ver os efeitos da crise conservadora e da retomada liberal. A estas se untariam mais adiante, prenunciando o fim do Império, a "crise militar", a "questão religiosa" e a "idéia republicana".38 O escritor que desejava o fim da escravidão por meio de uma reforma dos costumes não pôde ver o fim da escravidão por decisão de Estado, em 1888. Também não viu a queda do imperador, a quem jamais perdoou pelas desfeitas que recebera como literato e político. Tampouco parece ter sido perdoado pelo imperador, tão sensível como o adversário. Segundo um biógrafo de Alencar, ao saber da morte do escritor, o imperador teria dito: "era um homem inteligente, mas muito mal-educado".
1. N ABUCO, Joaquim. Um estadista do Império. 5. ed. Rio de Janeiro: Topbooks, 1997. v. 1, p. 66 e 68. 2. A LVES NETTO, Jeronymo Ferreira. Honório Hermeto Carneiro Leão. Jornal de Petrópolis, 19 a 25 de julho de 2003, ano 6, n. 345. 3. Em 1855, Caxias foi investido do cargo de ministro da Guerra. Em 1857, por moléstia do marquês do
Paraná, assumiu a Presidência do Conselho de Ministros do Império, cargo que voltaria a ocupar, em 1861, cumulativamente com o de ministro da Guerra. Assumiu a função de senador no ano de 1863. Em 1865, iniciou-se a Guerra da Tríplice Aliança e, em 1866, Caxias foi nomeado comandante-em-chefe das Forças do Império em operações contra o Paraguai. 4. C UNHA, Euclides da. À margem da história, Porto: Chardon, 1922. p . 280. 5. N ABUCO, op. cit., v. 1, p. 73. 6. Expressão criada por Bolivar Lamounier para expressar, na cultura política brasileira, uma tendência à preeminência do Estado sobre a sociedade. 7. A NTONIO CANDIDO, apud A LONSO, Angela. Idéias em movimento. A geração 1870 na crise do Brasil Império. São Paulo: Paz e Terra, 2002. p. 57. 8. Sobre o papel do IHGB e sua relação com a "política do regresso", ver: W EHLING, Arno. A invenção da história. Rio de Janeiro: UFF / Universidade Gama Filho, 1994. cap. 9, p. 151-169. 9. A LONSO, op. cit., p. 57-58. 10. Sobre o período, ver também: RICÚPERO, Bernardo. O romantismo e a idéia de nação (1830-1870). São Paulo: Martins Fontes, 2004. 11. MARTINS, Wilson. História da inteligência brasileira, cit., v. 2, p . 225. 12. BOSI , História concisa da literatura brasileira, cit., p. 134. Por "romancetes", refere-se a Cinco minutos (1856) e A viuvinha (1857). 13. A NTONIO CANDIDO. Formação da literatura brasileira (momentos decisivos). v. 2: 1836-1880. Belo Horizonte: Itatiaia, 1997. p. 200. 14. RODRIGUES, Antonio Edmilson Martins. José de Alencar: o poeta armado do século XIX. Rio de Janeiro: FGV, 2001. p. 21. Ver também: B OSI , História concisa da literatura brasileira, cit., p. 134-135. 15. MARTINS, Wilson. História da inteligência brasileira, cit., v. 3, p. 58. 16. MARTINS, Wilson. História da inteligência brasileira, cit., v. 3, p. 58-60. 17. STEGAGNO-PICCHIO, Luciana. História da literatura brasileira. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1997. p. 204; BOSI , História concisa da literatura brasileira, cit., p. 138. 18. MARTINS, Wilson. História da inteligência brasileira, cit., v. 3, p. 68. 19. STEGAGNO-PICCHIO, op. cit., p. 203-204. 20. STEGAGNO-PICCHIO, op. cit., p. 201. 21. ANTONIO CANDIDO, op. cit., v. 2., p. 201-202. 22. MARTINS, Wilson. História da inteligência brasileira, cit., v. 3, p. 68. 23. O sorites é um raciocínio circular. É composto de uma série de proposições ligadas entre si de maneira que o predicado da primeira tornase o sujeito da seguinte, até à conclusão, que tem como sujeito a primeira proposição. 24. NABUCO, op. cit., v. 1, p. 766 e 768. 25. Ibidem, p. 763. 26. Ibidem, p. 1 086. 27. Apud Nabuco em: C OUTINHO, Afrânio (Org.). A polêmica Alencar-Nabuco. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1978. p. 212. 28. Em Minha formação. Rio de Janeiro: Ministério da Cultura, Fundação Biblioteca Nacional, Departamento Nacional do Livro, s.d., p. 8. "Eu traduzia documentos do Anti-Slavery Reporter para meu pai que, de 1868 a 1871, foi quem mais influiu para fazer amadurecer a idéia da emancipação, formulada em 1866 em projeto de lei por S. Vicente (Pimenta Bueno). A iniciativa, o desejo de que se levasse a questão ao Parlamento, estou convencido, partiu do imperador, que não descansou enquanto o não conseguiu, a primeira vez de Zacarias, a Segunda de Rio Branco. Eu já disse uma vez que possuo o autógrafo, por letra dele, da carta em resposta aos abolicionistas franceses, carta que foi o ponto de partida de tudo." Ver também: PERDIGÃO MALHEIRO, op. cit., p. 377 e 379. 29. CARVALHO, A construção da ordem, cit., p. 305.
30. Ibidem, p. 305 e 308-309. 31. NABUCO, Um estadista do Império, cit., v. 1, p. 845. 32. ALONSO, op. cit., p. 80. 33. Ibidem, p. 83. 34. SANTOS, Wanderley Guilherme dos. Dois escritos democráticos de José de Alencar. Rio de Janeiro: UFRJ, 1991. p. 8. 35. CARVALHO, A construção da ordem, cit., p. 311. 36. Ibidem, p. 315 e 322. 37. NABUCO, Um estadista do Império, cit., v. 1, p. 839. 38. Ibidem, p. 816.
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A palavra a serviço da justiça: Joaquim Nabuco.
CAPÍTULO 9 SEGUNDO REINADO JOAQUIM NABUCO: A ESCRAVIDÃO E A "OBRA DA ESCRAVIDÃO"
A raça negra "nos deu um povo (...) construiu o nosso país". Tudo, absolutamente tudo, que existe no país, como resultado do trabalho manual, como emprego de capital, como acumulação de riqueza, não passa de uma doação gratuita da raça q ue trabalha à que faz trabalhar. Nós não somos um povo exclusivamente branco. JOAQUIM NABUCO
Joaquim Nabuco (1849-1910) é um caso raro na história brasileira, de pensador e político que se concentrou em um tema: a escravidão. Não que se esqueça a sua obra de diplomata, memorialista e historiador, e sobretudo o grande livro que escreveu sobre seu pai. Há que ressaltar, porém, que o predominante na variedade dos seus escritos se junta em torno do mesmo leitmotiv: o combate à escravidão. É de Nabuco o esclarecimento: "por felicidade da minha hora, eu trazia da infância e da adolescência o interesse, a compaixão, o sentimento pelo escravo – o bolbo que devia dar a única flor da minha carreira".1 Em suas memórias, ele diz que "desde muito moço havia uma preocupação em meu espírito que ao mesmo tempo me atraía para a política e em certo sentido era uma espécie de amuleto contra ela: a escravidão. Posso dizer que desde 1868 vi tudo em nosso país através desse prisma".2 Nas condições do Império, não era, porém, um prisma qualquer esse que, no mesmo ano de 1868, deu-lhe motivo para um pequeno e valioso livro, precisamente com o título A escravidão, que durante muito tempo esteve entre os guardados da família e só recentemente veio à luz em forma impressa. Quando o escreveu, Nabuco, rebento de uma família de advogados, promotores e juízes, alguns dos quais, como seu pai, dedicados à política, era um jovem estudante da Faculdade de Direito do Recife. Entre os estudantes, então agitados pelas idéias de Tobias Barreto (1839-1889) e Sílvio Romero (1851-1914) e pelas manifestações anti-escravistas de
Castro Alves, o jovem Nabuco escrevia ensaios e defendia perante o tribunal negros acusados de crimes diversos, entre os quais assassínio.3
A política como história De fortes sentimentos em relação aos escravos, os ânimos de Nabuco em relação ao Brasil oscilaram em mais de uma ocasião. Esse pensador brasileiro de um tema radicalmente brasileiro era, contudo, um personagem seduzido pela Europa. Filho, neto e bisneto de senadores do Império, o aristocrata Joaquim Nabuco foi sempre um homem do mundo. Como muitos intelectuais portugueses e brasileiros antes dele, era um "estrangeirado", termo que praticamente saíra de circulação em sua época. Ele dizia: "Sou antes um espectador do meu século do que do meu país". Como homem do mundo, andou sempre dividido entre o interesse intelectual pelas questões gerais da civilização, isto é, da Europa, e o sentimento que o prendia às coisas da sua terra, em particular sua família, os amigos e as lembranças da infância. Não há aqui uma interpretação das suas palavras ou do seu comportamento. É do próprio Nabuco a declaração de uma ambigüidade, de uma divisão entre sentimento e razão, que, diga-se de passagem, também não era apenas dele. "De um lado do mar sente-se a ausência do mundo; do outro, a ausência do país. O sentimento em nós é brasileiro, a imaginação européia."4 Uma divisão entre o sentimento e a razão que, expressando-se em Nabuco da maneira mais nobre e brilhante, desde sempre acompanhou muitos intelectuais brasileiros. As memórias do homem maduro contam dos deslumbramentos do jovem que, em 1870, tinha maior interesse na derrota e na capitulação de Napoleão III, em Sedan, do que na política do Brasil; que, em 1871, não se interessava tanto pela formação do Gabinete Rio Branco como pelas notícias sobre o incêndio de Paris. Em 1872, o que mais o interessava era, em Portugal, o terceiro centenário dos Lusíadas. Em 1873 foi à Europa, em sua primeira viagem, diz ele, com uma ambição sem limites "de conhecer homens célebres de toda ordem". Joaquim Nabuco foi, sem dúvida, um homem de extrema generosidade e coragem, que abraçou a mais relevante causa nacional e popular do seu tempo. Alguns dos seus escritos podem por isso surpreender o leitor de hoje pelo pedantismo com que na juventude mencionou seu país. Diferente de Alencar, conservador e escravocrata, que dizia construir a sua literatura a partir de seu amor pelos espaços e pelas florestas do país, Nabuco, um monarquista liberal que se tornou um campeão do abolicionismo, manifesta às vezes um desinteresse pelas paisagens brasileiras que se estende a todo o Novo Mundo. "As paisagens todas do Novo Mundo, a floresta amazônica ou os pampas argentinos, não valem para mim um trecho da Via Appia,
uma volta da estrada de Salerno a Amalfi, um pedaço do cais do Sena à sombra do velho Louvre. No meio do luxo dos teatros, da moda, da política, somos sempre squatters [povoadores, colonizadores], como se estivéssemos ainda derribando a mata virgem."5 Como entender então que esse jovem aristocrata, uma das figuras elegantes de seu tempo, que alguns consideravam um dândi, tenha se tornado "o advogado ex-officio da porção da raça negra ainda escravizada"?6 Sabemos que a Nabuco interessava "a política que é história". Não lhe interessava "a política propriamente dita, que é a local, a do país, a dos partidos", mas a ação do "drama contemporâneo universal". Permanece, porém, a pergunta: como entender que em meio a seus fascínios e deslumbramentos europeus de jovem e de homem maduro encontrasse tempo e ânimo para se engajar em uma causa social no Brasil, cujas paisagens não lhe valiam "um trecho da Via Appia"? É o próprio Nabuco quem resolve o paradoxo. Em 1871, diz ele, o que prendia a sua atenção no Brasil era a "luta pela emancipação" dos escravos. "Não será também nesse ano o Brasil o ponto da terra para o qual está voltado o dedo de Deus?"7 Se nos lembrarmos da sua compaixão pelos escravos, para onde mais poderia, aliás, estar voltado o dedo de Deus? Estava no Brasil, portanto – mais especificamente, na questão dos escravos –, a ação de interesse universal. Quanto ao fascínio pela Europa, Nabuco não apenas era diferente de Alencar, o que será óbvio a quem tenha lido a polêmica que travaram em 1875. Era diferente também de José Bonifácio, que, mais europeu do que ele pela experiência de vida, insistiu em que havia de afirmar a beleza dos nossos usos e costumes, "ainda que a Europa se ria de nós". Tinha, porém, em comum com Alencar e Bonifácio o interesse pela política e pelas letras, como era, aliás, freqüente entre os políticos e as eli tes do Império, que, com maior ou menor intensidade, cultivavam as coisas do espírito. E nesse cultivo, como sabemos, as elites do Império, como as que vieram depois, na República, tinham sempre, quaisquer que tenham sido as variações do seu ânimo cosmopolita ou nacionalista, um olhar voltado para a Europa. Se as declarações cosmopolitas de Nabuco soam pedantes, em todo caso diferentes do que se sabe da maioria desses intelectuais, isso serve apenas para ressaltar a clareza e a coragem com que o grande abolicionista enfrentou suas próprias oscilações de sentimento e, sobretudo, suas opções intelectuais. "Uma afeição maior, um interesse mais próximo, uma ligação mais íntima, faz com que a cena, quando se passa no Brasil, tenha para mim importância especial, mas isto não se confunde com a pura emoção intelectual; é um prazer ou uma dor, por assim dizer doméstica, que interessa o coração; não é um grande espetáculo, que prende e domina a inteligência."8 A exceção, já se viu, que une a razão e a paixão é a
emancipação dos escravos, que aponta para o Brasil o dedo de Deus. Nabuco considerou a abolição "a mais bela nova que em meus dias Deus pudesse mandar ao mundo".9
Nabuco versus Alencar O carinho de Joaquim Nabuco pelo pai também não há de ter sido exceção numa sociedade tradicional em que as relações de família eram muito mais fortes do que hoje. Foi, assim, mais pelas razões do coração do que pelas do intelecto que, tendo regressado da Europa, Nabuco decidiu tomar a primeira oportunidade para abrir polêmica contra José de Alencar. Ele reconheceu "ferinas alusões" a seu pai, o senador Nabuco de Araújo, em um romance recém-publicado de Alencar, Guerra dos mascates. Alencar registrava em certo ponto: "bem se vê quanto já era abundante de letrados a cidade de São Sebastião e se naquele tempo estivesse em uso a empreitada de códigos e leis, não faltaria quem a tomasse". Segundo o historiador Wilson Martins, essa frase podia ser vista como "uma provocação direta à família Nabuco, cujo chefe, alguns meses antes, havia precisamente firmado com o governo o contrato pelo qual se obrigava a concluir um código civil brasileiro no prazo de cinco anos, a contar de 1° de janeiro de 1873". 10 Joaquim Nabuco passou a esperar por uma oportunidade de resposta, que surgiu em 1875, quando Alencar, habituado aos êxitos, vinha enfrentando um enorme fracasso de público e de crítica com uma peça de teatro, O jesuíta. Assim como o jovem Alencar, impregnado de um romantismo nacionalista, entrara na vida literária contra Gonçalves de Magalhães, o jovem Joaquim Nabuco, imbuído de um liberalismo cosmopolita, não poderia escolher melhor adversário para o seu próprio ingresso. As insinuações do autor d'O guarani diziam respeito a algo de certa seriedade, menos pelo que pudessem pretender como denúncia, e mais pelo que revelavam das indecisões e das ambigüidades da mentalidade dominante na Corte. Não fossem as ferinas alusões vindas de Alencar, que além de notável escritor era advogado, várias vezes deputado, e fora ministro da Justiça, não deveria haver nada de espantoso no fato de um jurista de renome como Nabuco de Araújo ser contratado para a tarefa de escrever o código civil. Mas compreende-se que, numa sociedade hierárquica e elitista em que sabidamente o poder reservava favores aos amigos, a pequena cidade do Rio de Janeiro de então transformasse em escândalos de proporções meras maledicências, que no mais das vezes não tinham outra conseqüência além de irritar os atingidos. O mais sério disso tudo - e que nenhum dos contemporâneos podia saber naquele momento - é que, ao fim dos mencionados cinco anos, o tal código civil não estaria
pronto. E não por falta de empenho ou competência do velho Nabuco de Araújo, que adoeceu, vindo a falecer antes de poder terminar a tarefa. Havia também a força das ambigüidades sociais e políticas do Império, que postergaram por décadas a elaboração do documento. Entendia-se que, num código civil que se pretendia duradouro, não tinha sentido definir a condição do escravo, que, depois da lei do Ventre Livre, deixaria de existir em prazo previsível. Nem pretendiam as elites imperiais definir a condição do escravo em um código à parte, um "código negro", ao modo dos Estados Unidos. Assim, na indecisão, o código foi ficando para depois. Só veio a ser concluído por Clóvis Bevilacqua (1859-1944), designado para a tarefa trinta anos depois do falecimento de Nabuco de Araújo. No intervalo, veio a abolição, caiu o Império, e a República completou seus primeiros dez anos, sob o governo de Campos Sales (1841-1913).11
Duas visões do Brasil Embora envolvendo questões pessoais, a polêmica entre Alencar e Nabuco serviria para que se confrontassem duas visões da cultura e duas visões do Brasil. As críticas de Nabuco a Alencar "se enquadram na reação anti-romântica da década de 1870 (...) no sentido do realismo e do naturalismo. (...) O indianismo, o condoreirismo, o subjetivismo, a sentimentalidade constituíam os principais bodes expiatórios". 12 Como os de sua geração, o "ocidentalista" Nabuco, a quem Alencar acusa de ser um "folhetinista parisiense", buscava uma interpretação do país enfatizando as suas raízes européias. E, por razões pessoais e políticas, desqualificou Alencar nos meios intelectuais quando lembrou suas oscilações políticas e sua posição na Câmara contraria à lei do Ventre Livre. Para Nabuco, Alencar era o "dramaturgo escravagista" cujo teatro se acharia "limitado por uma linha negra e nacionalizado pela escravidão". "A escravidão", dizia Nabuco, "é a atmosfera do seu teatro; os seus personagens respiram nela, e desenvolvem-se com perfeita indiferença nesse meio corrompido". A acusação é pertinente quanto ao comportamento do Alencar político, mas exagerada quanto ao dramaturgo, que só em duas peças tratou da escravidão. Além disso, em Alencar, mais importante do que o teatro é o romance. A este, porém, Nabuco nega o que Alencar mais preza, o caráter nacional: "Lucíola não é senão a Dame aux Camélias adaptada ao uso do demi-monde fluminense, cada novo romance que faz sensação na Europa tem uma edição brasileira dada pelo Sr. J. de Alencar, que ainda nos fala da originalidade e do 'sabor nativo' dos seus livros".13 Mais dura é a crítica aos romances indianistas, os quais "podiam ter sido escritos por um mau discípulo de Cooper ou de Chateaubriand, sem nada perder seu 'sabor nativo'".14
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Menino branco e "mãe preta": afetos e carinhos.
A acusação política ao conservadorismo escravista de Alencar e a suas oscilações políticas teria tido um efeito avassalador num momento em que o autor d 'O guarani buscava aproximar-se dos republicanos. Segundo Nabuco, Alencar, que fizera por se aproximar de D. Pedro II até ser designado ministro da Justiça, passou a criticar o imperador depois que este o rejeitou para o Senado. "Depois dessa 'contrariedade' o Sr. J. de Alencar tornou-se um inimigo declarado do governo pessoal, mas qual a sua posição política? Em que partido? Que idéias apóia?" No debate sobre o Ventre Livre, "combateu denodadamente pela escravidão; hoje ninguém poderia dizer o que ele quer, ele mesmo não o sabe".15 Alencar retrucou dizendo que Nabuco se achava entre "certos escritores empenhados em desnacionalizar seu país, e para os quais a pátria não é senão o Estado com seu parlamento, seus códigos e outros acessórios". Quanto à escravidão, "manifestei-me sempre em favor de sua extinção espontânea e natural, que devia resultar da revolução dos costumes".16 Dizia que a existência da escravidão envolvia uma cumplicidade que se estendia a todos: "Se há questão em que ninguém tenha o direito de lançar pedra é esta. Os próprios emancipadores eram escravagistas um,
dois ou três anos antes, e ficaram sendo-o depois da lei de 1871, porque deixaram subsistir a instituição, e com uma injustiça clamorosa, ensinando os filhos a desprezar os pais".17 Dizia o romancista: "A escravidão é um fato de que todos nós brasileiros assumimos a responsabilidade, pois somos cúmplices nele como cidadãos do Império. Nenhum filho desta terra, por mais adiantadas que sejam suas idéias, tem o direito de eximir-se à solidariedade nacional, atirando ao nome da pátria, como um estigma, os erros comuns. Exprobrar a seus predecessores o atraso de que eles não têm culpa; detrair o passado para avolumar a sua individualidade; fazer da memória dos progenitores e da dignidade do país troféu para o seu ídolo caricato; é procedimento que, espero em Deus, não fará exemplo no Brasil. O folhetinista nasceu como a geração coeva em um país de escravos, no seio de uma respeitável e ilustre família servida por escravos". 18 De algum modo, o entendimento de Alencar sobre a escravidão como algo que dizia respeito a todos não era muito diferente do que veio a singularizar a obra de Nabuco.
O mandato do escravo Morto o senador Nabuco de Araújo, em 1878, seu filho Joaquim foi eleito deputado em 1879, vindo a participar como uma das figuras mais expressivas da campanha abolicionista que ressurgiu depois da longa calmaria política que se seguiu à lei do Ventre Livre. O jovem aristocrata, que sempre proclamou suas afinidades com o liberalismo inglês, retomou os passos de outros brasileiros favoráveis à abolição, como José Bonifácio, Perdigão Malheiro (1824-1881) e Jerônimo Sodré. E juntou-se a Joaquim Serra (1830-1888), Aníbal Falcão (1859-1900) e Gusmão Lobo, ao lado de intelectuais negros como André Rebouças (1833-1898), José do Patrocínio (18541905) e Luiz Gama (1830-1882). Com esses campeões do abolicionismo, Joaquim Nabuco reivindicou, perante o Império, a representação do "mandato do escravo". Uma expressão que tinha mais de generosidade do que de lógica, como Nabuco sabia muito bem. Ele afirmava, como em O abolicionismo, se tratar de uma "delegação inconsciente da parte dos que a fazem, interpretada pelos que a aceitam como um mandato a que não se pode renunciar". Faltava ao escravo o pressuposto da cidadania que informa a possibilidade de um representante e, portanto, de um mandato: "com a escravidão não há governo livre, nem democracia verdadeira; há somente governo de casta e regime de monopólio. As senzalas não podem ter representantes, e a população avassalada e empobrecida não ousa tê-los".19 Efeito de sua entranhada formação liberal, Nabuco diz que entrou para a Câmara
como se fosse "um liberal inglês (...) no Parlamento brasileiro". "Tão inteiramente sob a influência do liberalismo inglês, como se militasse às ordens de Gladstone." 20 Uma declaração que talvez se explique também pela importância que a Inglaterra e os Estados Unidos chegaram a alcançar no abolicionismo brasileiro. A Inglaterra teve influência decisiva no término do tráfico (1850), e os Estados Unidos a ela se untaram para apoiar a campanha abolicionista dos anos 1880. Quando o movimento se iniciou havia no Brasil dois milhões de escravos. Entre as elites e as classes altas muitos pensavam que a abolição arruinaria a lavoura e o crédito nacional. Não obstante, como observa Nabuco, a causa abolicionista seduziu a muitos entre os estudantes, a imprensa, os magistrados e os padres. Tinha também "afinidades profundas com o mundo operário e com o exército, recrutado de preferência entre os homens de cor; (operou) como um dissolvente sobre a massa dos partidos políticos".21 Quanto à Igreja, como instituição, e ao contrário do que sucedeu em outros países, esta nunca se expressou a favor da abolição, com exceção de uma manifestação dos bispos depois de vitorioso o movimento.
A escravidão como fenômeno total Nabuco escreveu os melhores estudos da época sobre a escravidão, formando, junto com Perdigão Malheiro, que o antecede, uma referência até hoje obrigatória na pesquisa sobre o assunto. Sobre a campanha abolicionista, Nabuco ainda é a maior autoridade. Em seus escritos, como O abolicionismo, de 1883, em geral concebidos no calor da hora, é sempre difícil distinguir entre a crítica do político e análise do historiador e do sociólogo. Nabuco também continua a ser o principal intérprete do Segundo Reinado, que viu findar. Com apoio nos arquivos de seu pai e nas próprias lembranças, dedicou vários anos a escrever um livro – Um estadista do Império – que permanece entre os monumentos maiores da historiografia brasileira. Como bem esclarece Evaldo Cabral de Mello, em posfácio a Um estadista do Império, Joaquim Nabuco foi o primeiro dentre os intelectuais brasileiros a explicar a sociedade brasileira por meio do regime servil. Diz Cabral de Mello que Nabuco entendeu a escravidão "não como um fenômeno a mais" e sim como "a variante sociológica mais abrangente", "aquela que ilumina mais poderosamente o nosso passado". "Com referência à escravidão é que se definiu entre nós a economia, a organização social e a posição das classes e das ordens, a estrutura do estado e do poder político, o próprio sistema de idéias." "Com referência à escravidão, definirase inclusive a existência de grupos e classes que viviam à sua margem, como a população livre mas pobre dos 'lavradores que não são proprietários', dos meeiros, dos 'moradores do campo ou do sertão', e de atividades que não lhe estavam
diretamente vinculadas." Nesse sentido, Joaquim Nabuco foi o primeiro dos nossos intelectuais a ver na escravidão brasileira o que alguns sociólogos designam como um "fenômeno social total". Também nisso, registra Cabral de Mello, acompanhando Nabuco, o Brasil é diferente dos Estados Unidos. Lá, a escravidão, que prosperou mais no sul do que no norte, "não afetara a constituição social toda"; aqui, "a circulação geral, desde as grandes artérias até os vasos capilares, serve de canal às mesmas impurezas".22 Ou, como diz Nabuco na forma heróica e polêmica de O abolicionismo, "Brasil e escravidão tornaram-se assim sinônimos". Uma outra formulação da mesma idéia: "Quando o sr. Silveira Martins disse no Senado 'O Brasil é o café, e o café é o negro' - não querendo por certo dizer o escravo - definiu o Brasil como fazenda, como empresa comercial de uma pequena minoria de interessados, em suma, o Brasil da escravidão atual".23 É a partir desse completo envolvimento da sociedade e do Estado com a escravidão que se deve entender a menção de Nabuco, em certa passagem de Um estadista do Império, às responsabilidades de seu pai como ministro de Estado. A Nabuco de Araújo se devem importantes iniciativas em prol da abolição, que foram, porém, obscurecidas pela atmosfera social predominante. "(...) a responsabilidade de Nabuco (de Araújo) é de ter exercido uma faculdade de que o poder público estava de posse desde os tempos coloniais, em virtude da qual os escravos tidos por perigosos e recalcitrantes eram colhidos por tempo ilimitado ao calabouço, e aí castigados ou mandados servir com os presos por sentença. Era esse o regime da escravidão, por sua natureza bárbaro, um como que estado de sítio permanente para a escravatura, porque só pelo rigor se podia manter a submissão de grandes massas de homens ao poder absoluto de uma pessoa. Em todos os tempos homens de coração o mais brando e compassivo impuseram penas cruéis; as penas que nós impomos hoje parecerão igualmente bárbaras às gerações que hão de vir depois. Todos os homens de governo entre nós, todos os depositários de uma parcela que fosse de autoridade, durante o período da escravidão, concorreram, direta ou indiretamente, para sustentar uma tirania pérfida, inquisitorial, torturante. (...) O mecanismo da instituição servil estava todo montado e funcionava automaticamente. A autoridade era requisitada a toda hora a prestar braço forte à escravidão."24 Porque foi um "fenômeno social total", a abolição da escravatura teria que ser um tema independente de opção partidária. Teria que envolver todos os partidos. E, de fato, não houve, no Brasil, em público ao menos, partido que se dispusesse a defender, em princípio, a escravidão, como houve quem o fizesse nos Estados Unidos da época. Por outro lado, achavam-se todos os partidos por demais contaminados pela escravidão para tomar a iniciativa de destruí-la. Mesmo Rio
Branco, o escolhido do monarca para fazer aprovar a lei do Ventre Livre, expressou suas opiniões sobre o tema de maneira bastante matizada e cuidadosa no Conselho do Império: "Não há entre nós um partido que tomasse a peito a abolição da escravidão. Ninguém supunha essa medida tão próxima, nem os proprietários rurais, nem o comércio, nem a imprensa, nem as Câmaras Legislativas".25 A reforma, portanto, teria que vir pelo alto. Porque a escravidão era um fenômeno que afetava a tudo e a todos, só podia ser superada por iniciativas vindas da própria Coroa. Só o imperador podia enfrentar o grande drama nacional, mesmo ao custo de se afastar dos seus barões e de suas bases econômicas e sociais. Teria que reformar a sociedade, mesmo ao preço de afastar-se dela. Assim, quando o imperador se propôs a realizar a abolição, afastou-se dos senhores de escravos e dos conservadores, sem que isso o aproximasse dos liberais. Mais adiante, as dificuldades viriam pelos lados do exército e da Igreja. Diz Nabuco sobre a Coroa, em sua interpretação sobre a crise final do Império: "as três forças que podiam mais cooperar para sustentá-la artificialmente, o exército, o clero e a grande propriedade, dispensou-as todas".26 Em O abolicionismo, previa o desenlace inelutável: "o Governo paira acima das Câmaras, e, quando seja preciso repetir o fenômeno de 1871, as Câmaras hão de se sujeitar, como então fizeram. Essa é a força capaz de destruir a escravidão, da qual aliás dimana, ainda que, talvez, venham a morrer juntas".27
O escravo e a alma nacional Também em um sentido cultural, a escravidão afetava a todos, formava e deformava a todos. Algumas páginas de Nabuco em suas memórias descrevem a atmosfera dos "engenhos do Norte" em termos que prenunciam a antropologia de Gilberto Freyre sobre a presença cultural do escravo na família patriarcal. Por exemplo, quando fala da "saudade do escravo". Mesmo tendo sido um ardoroso abolicionista - "eu combati a escravidão com todas as minhas forças, repeli-a com toda a minha consciência" - na hora em que a viu acabar começou a sentir saudade. "Na hora em que a vi acabar, pensei poder pedir também minha alforria", considerando "ter ouvido a mais bela nova que em meus dias Deus pudesse mandar ao mundo". Quando teve a experiência de que a escravidão estava extinta, sentiu "uma singular nostalgia". Essas anotações de Minha formação antecipam algumas das melhores páginas de Casa-grande & senzala. Aprofundando-se no exame do aspecto cultural da formação brasileira, diz Nabuco que "a escravidão permanecerá por muito tempo como a
característica nacional do Brasil. Ela espalhou por nossas vastas solidões uma grande suavidade". O contato do país com a escravidão "povoou-o, como se fosse uma religião natural e viva, com os seus mitos, suas legendas, seus encantamentos; insuflou-lhe sua alma infantil, suas tristezas sem pesar, suas lágrimas sem amargor, seu silêncio sem concentração, suas alegrias sem causa, sua felicidade sem dia seguinte". Da escravidão que conheceu em sua infância, eis um registro que vale para muitos da elite da sua época: "quanto a mim, absorvi-a no leite preto que me amamentou; ela envolveu-me como uma carícia muda toda a minha infância".28 Nas memórias de sua formação pessoal anotam-se aspectos centrais da formação cultural do país, como neste comovente depoimento: "Eu estava uma tarde sentado no patamar da escada exterior da casa, quando vejo precipitar-se para mim um ovem negro desconhecido, de cerca de dezoito anos, o qual se abraça aos meus pés suplicando-me, pelo amor de Deus, que o fizesse comprar por minha madrinha, para me servir. Ele vinha das vizinhanças, procurando mudar de senhor, porque o dele, dizia-me, o castigava, e ele tinha fugido com risco de vida... Foi este o traço inesperado que me descobriu a natureza da instituição, com a qual eu vivera até então familiarmente, sem suspeitar a dor que ela ocultava".29 É a partir de declarações como essa que se pode suspeitar sobre motivos mais profundos para as oscilações do sentimento e da razão em Nabuco. Devia haver algo de mais sofrido em seu mal-estar em face das coisas do Brasil de sua época. Talvez suas oscilações de ânimo tivessem origem menos no deslumbramento pelos refinamentos europeus do que na profunda indignação contra uma injustiça com a qual "vivera até então familiarmente".
A raça negra "nos deu um povo" Antecipando-se quase um século às elites às quais pertencia, Nabuco inaugurou no pensamento político brasileiro o complexo processo intelectual do reconhecimento da existência do povo. Porque a escravidão tomou no Brasil o caráter de um "fenômeno social total", o abolicionismo tomaria o caráter de uma "reforma política primordial". Para Nabuco, "a grande questão para a democracia brasileira não é a monarquia, é a escravidão".30 Mais do que uma reforma política, como aquela da qual se falava em seu tempo, restrita aos partidos e ao parlamento, a abolição deveria ser o ponto de partida de uma "refundação" do Brasil. Diferente do abolicionismo nos Estados Unidos e na Europa, o abolicionismo brasileiro quis "reconstruir o Brasil sobre o trabalho livre e a união das raças na liberdade".
Nos Estados Unidos, na França e na Inglaterra "não se queria a raça negra para elemento permanente de população, nem como parte homogênea da sociedade". Nos Nos Estados Unidos "ninguém sonhara para o negro ao mesmo tempo a alforria e o voto". Para Nabuco, o ponto fundamental está em que, no Brasil, "a raça negra é um elemento de considerável importância nacional, estreitamente ligada por infinitas relações orgânicas à nossa constituição, parte integrante do povo brasileiro". A raça negra "nos deu um povo", "construiu o nosso país". "Tudo, absolutamente tudo que existe no país, como resultado do trabalho manual, como emprego de capital, como acumulação de riqueza, não passa de uma doação gratuita da raça que trabalha à que faz trabalhar." "Nós não somos um povo exclusivamente branco." Assim, aqui a emancipação significará "a eliminação simultânea dos dois tipos contrários, e no fundo os mesmos: o escravo e o senhor".31 A emancipação dos escravos era, para Nabuco, "apenas o começo de um Rinnovamento, do qual o Brasil está carecendo de encontrar o Gioberti e, depois dele, o Cavour". Talvez essa capacidade de antecipação intelectual de Joaquim Nabuco tenha a dever muito ao fato de que ele pretendia mais do que a abolição da escravatura. Pretendia também a destruição da "obra da escravidão", todo o vasto sistema de miséria e desigualdade que esta criara. Nas últimas páginas de O abolicionismo, ele e le proclama a necessidade de uma reforma "de nós mesmos, do nosso caráter, do nosso patriotismo, do nosso sentimento de responsabilidade cívica" como o único meio de suprimir efetivamente a escravidão da constituição social do país. É que o grande abolicionista entendia que o Brasil seria "uma sociedade não só baseada, como era a civilização antiga, sobre a escravidão, e permeada em todas as classes por ela, mas também constituída, na sua maior parte, de secreções daquele vasto aparelho". Não escapa dessa contaminação a religião, pois "no regime da escravidão doméstica o cristianismo cruzou-se com o fetichismo, como se cruzaram as duas raças".32 Do mesmo modo, produziu-se a contaminação do conceito de pátria, pois confundiu-se o país com a escravidão a tal ponto que o combate a esta podia soar como crime de lesa-pátria.
Sociologia do escravo Não creio exagerado afirmar que a obra desse pensador de fins do século XIX inspirou o melhor do pensamento social e político brasileiro da primeira metade do século XX. XX. Ele foi o primeiro entre os nossos intérpretes a estabelecer diferenças sociológicas
entre as regiões e, no âmbito destas, entre a cidade e o campo. À maneira sumária do polemista em campanha, são dele algumas intuições fundadoras de parte substancial da sociologia brasileira que virá, seja em algumas das páginas de Os sertões, seja nas primeiras obras dos "intérpretes do Brasil", nos anos de 1920 e 1930. Começando Começando pelo Norte (para se referir ao Nordeste), descreveu descreveu a pobreza e a miséria m iséria dos seus interiores como "resultado final daquele sistema", ou seja do "regime da terra sob a escravidão (que) consiste na divisão de todo o solo explorado em certo número de grandes propriedades".33 Antecipando-se quase meio século a Oliveira Viana, Nabuco descreveria essas grandes propriedades como "feudos (que) são logo isolados".34 "É a divisão de uma vasta província em verdadeiras colônias penais, refratárias ao progresso", que não trazem "benefício algum permanente à região parcelada, nem à população livre que nela mora, por favor dos donos da terra, em estado de contínua dependência". Quanto às cidades, como resultado de trezentos anos de escravidão, são as cidades "por assim dizer mortas", "quase todas decadentes". As "fazendas ou engenhos isolados, com uma fábrica de escravos, com os moradores das terras na posição de agregados do estabelecimento, de camaradas ou capangas" não podem dar lugar à aparição de cidades autônomas "que vivifiquem com os seus capitais e recursos a zona onde se estabeleçam".35 Segundo Segundo Nabuco, os interiores do Sudeste, em particular das províncias do Rio de Janeiro e de Minas Gerais, não apresentam cenário muito diferente do Norte (Nordeste). Abre, nessas localidades, exceção para as regiões do café, nas quais reconhece, como na província de São Paulo, alguma capacidade de crescimento. Mas ainda essas regiões prósperas apresentariam a vulnerabilidade de depender de um produto único. O café, como o açúcar no Norte, poderia decair diante da competição internacional. Nabuco vê com pessimismo o progresso paulista baseado na monocultura: "quando passar o reinado do café (...) o Sul há de ver-se reduzido ao estado do Norte". O abolicionista considera um exagero o entusiasmo de alguns que chamaram os paulistas "os yankees do Brasil". Coerente com sua visão da escravidão como fenômeno geral, afirma, drasticamente, que o Brasil "não tem yankees". Seu pessimismo com relação a São Paulo é, porém, suavizado por uma observação: "por ter entrado no seu período florescente no fim do domínio da escravidão, há de revelar na crise maior elasticidade do que as suas vizinhas". Quanto a Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul, expressa a mesma confiança de sua época na imigração européia que "infunde sangue novo nas veias do povo". Além do reconhecimento das diferenças regionais, entra também no tema da mestiçagem, combinando a abordagem cultural e a política. Como no Brasil a
escravidão, ainda que fundada sobre a diferença das duas raças, "nunca desenvolveu a prevenção da cor", os contatos, desde a colonização primitiva dos donatários até hoje, produziram uma população mestiça. Crescimento da mestiçagem étnica e cultural que torna mais complexa a realidade social e política do país porque os escravos, ao receber a carta de alforria, recebiam também a investidura de cidadão. Assim, eles podiam, "na penumbra do cativeiro, comprar escravos, talvez, quem sabe? – algum filho do seu antigo senhor". A confusão de classes e indivíduos e a extensão ilimitada dos cruzamentos sociais entre escravos e livres fazem da maioria dos cidadãos brasileiros "mestiços políticos". Nesses "mestiços políticos" combatem "duas naturezas opostas: a do senhor de nascimento e a do escravo domesticado".36 Não lhe escapa à atenção a natureza peculiar do Estado nessa sociedade escravocrata, numa antevisão do Estado Cartorial definido por Helio Jaguaribe. Nabuco Nabuco vê nos empregados públicos a classe mais numerosa do sistema e afirma afi rma que com o crescimento dessa classe enraizou-se no país "a superstição do Estadoprovidência". Do Estado deve vir tudo, pois "sendo a única associação ativa, aspira e absorve pelo imposto e pelo empréstimo todo o capital disponível e distribui-o, entre os seus clientes, pelo emprego público". Suga as economias do pobre e torna precária a fortuna do rico, e, como conseqüência, "o funcionalismo é a profissão nobre e a vocação de todos". todos". É "o asilo dos descendentes das antigas famílias ricas ri cas e fidalgas, que desbarataram as fortunas realizadas pela escravidão. (...) É além disso o viveiro político, porque abriga todos os pobres inteligentes. (... ) Faça-se uma list a dos nossos estadistas pobres, de primeira e segunda ordem, e que resolveram o seu problema individual pelo casamento rico, isto é, na maior m aior parte dos casos, tornandose humildes clientes da escravidão; e outra dos que o resolveram pela acumulação de cargos públicos, e ter-se-ão, nessas duas listas, os nomes de quase todos eles". 37
Advertência Conhecedor da obra dos seus precursores, Nabuco menciona a conclamação de José Bonifácio, de 1823: "Generosos cidadãos do Brasil, que amais a essa Pátria, sabei que sem a abolição total do infame tráfico da escravatura africana, e sem Emancipação sucessiva dos atuais cativos, nunca o Brasil firmará a sua independência nacional e segurará e defenderá a sua liberal constituição; sem liberdade individual não pode haver civilização, nem sólida riqueza; não pode haver moralidade e justiça".38 Bonifácio não esperava que suas aspirações se realizassem no dia seguinte, mas a verdade é que tomaram muito mais tempo do que ele podia imaginar. O tráfico de escravos levaria ainda 27 anos para ser extinto, e a abolição demoraria 75 anos.
Como José Bonifácio, Nabuco foi um desses raros lutadores em que a paixão convive com uma extrema lucidez. Por isso advertiu, mesmo antes da abolição, que embora o abolicionismo destruísse a escravidão, poderia permanecer a "obra da escravidão". "Depois que os últimos escravos houverem sido arrancados ao poder sinistro que representa para a raça negra a maldição da cor, será ainda preciso desbastar, por meio de uma educação viril e séria, a lenta estratificação de trezentos anos de cativeiro, isto é, de despotismo, superstição e ignorância. O processo natural pelo qual a Escravidão fossilizou em seus moldes a exuberante vitalidade do nosso povo durou todo o período do crescimento, e enquanto a Nação não tiver consciência de que lhe é indispensável adaptar à liberdade cada um dos aparelhos do seu organismo de que a escravidão se apropriou, a obra desta irá por diante, mesmo quando não haja mais escravos."39 Nabuco, que competia em paixão e clarividência com o Patriarca, mais uma vez estava certo. Suas idéias deveriam ter um destino similar, muitas delas até hoje esperando pela oportunidade de se realizar. O abolicionismo venceu, mas a "obra da escravidão", escravidão", sob muitos m uitos aspectos, permanece.
1. NABUCO, Joaquim. Minha Joaquim. Minha formaç ão. ão. Rio de Janeiro: Fundação Biblioteca Nacional / Departamento Nacional do Livro / Ministério da Cultura, s. d. p. 46. 2. N ABUCO, Minha formaç fo rmação, ão, cit., cit., p. 8. 3. NABUCO, Joaquim. A Joaquim. A escravidã escra vidão. o. Organização e apresentação de Leonardo Dantas Silva; prefácio de Manuel Correia de Andrade. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999. p. xv. Outras obras de Nabuco são: Camões e os Lusíadas Lusíadas (1872); Amour (1872); Amour et Dieu, Dieu, poesia (1874); O abolicionismo abolicionismo (1883); O erro do imperador, imperador, história (1886); Escrav (1886); Escravos, os, poesia (1886); Por (1886); Por que continuo con tinuo a ser monarquista mona rquista (1890); Balmaceda, biografia Balmaceda, biografia (1895); A (1895); A interven inter venção ção estrange estra ngeira ira duran d urante te a revolta, história revolta, história diplomática (1896); Um estadista do Império, Império, biografia, 3 tomos (1897-1899); Minha (1897-1899); Minha formação, formaç ão, memórias (1900); Escritos (1900); Escritos e discursos literários literários (1901); Pensé (1901); Pensées es detaché deta chées es et souvenirs souv enirs (1906); Discursos e conferências nos Estados Unidos (1911). 4. N ABUCO, Minha formaç fo rmação, ão, cit., cit., p. 11. 5. Ibidem. 6. N ABUCO, Joaquim. O abolicionismo. Introdução abolicionismo. Introdução de Francisco Iglésias. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2000. p. 25. 7. N ABUCO, Minha formaç fo rmação, ão, cit., cit., p. 10. 8. Ibidem. 9. Ibidem, p. 49. 10. MARTINS, Wilson. História Wilson. História da inteligência inteligê ncia brasileira, bra sileira, cit., cit., v. 3, p. 429-430. 11. O Código Civil, Civil, definido pela Constituição de 1824, foi solicitado pela Coroa em 1858 a Teixeira de Freitas, cuja elaboração não foi aceita. Rescindido o contrato com Teixeira de Freitas, a tarefa passou em 1872 a Nabuco de Araújo, Araújo, que faleceu antes de concluída a obra. Depois de novas tentativas tentativas no Império, o código veio a ser elaborado, após a proclamação da República, por Clóvis Bevilacqua, Bevilacqua, designado para esse
trabalho em 1899 pelo presidente Campos Sales. Cf. DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro. 15. ed. Rio de Janeiro: 1999. v. 1, p. 47-48. 12. Afrânio Coutinho, in: C OUTINHO (Org.), op. cit., p. 6; as citações seguintes são de artigos de Alencar e Nabuco recolhidos nessa publicação. 13. Nabuco, in: COUTINHO (Org.), op. cit., p. 135. 14. Ibidem, p. 210. 15. Ibidem, p. 216. 16. Alencar, in: COUTINHO (Org.), op. cit., p. 58. 17. Ibidem, p. 120. 18. Ibidem, p. 119-120. 19. NABUCO, O abolicionismo, cit. abolicionismo, cit. p. 66-67. 20. NABUCO, Minha formaçã fo rmação, o, cit., cit., p. 47. 21. Ibidem, p. 51. 22. MELLO, Evaldo Cabral de. Um livro elitista?; posfácio a: NABUCO, Um estadista do Império, cit., Império, cit., v. 2, p. 1324. 23. NABUCO, O abolicionismo, cit., abolicionismo, cit., p. 106. 24. NABUCO, Um estadista do Império, cit., Império, cit., v. 1, p. 238. 25. CARVALHO, A construç con strução ão da ordem, ord em, cit., cit., p. 305. 26. NABUCO, Um estadista do Império, cit., Império, cit., v. 1, p. 966. 27. NABUCO, O abolicionismo, cit., abolicionismo, cit., p. 137. 28. NABUCO, Minha formaçã fo rmação, o, cit., cit., p. 49. 29. Ibidem. 30. Cf. ibidem, p. 46. 31. NABUCO, O abolicionismo, cit., abolicionismo, cit., p. 32-33. 32. Ibidem, p. 155 e 123. 33. Ibidem, p. 102. 34. Ibidem, p. 102. 35. Ibidem, p. 102-103. 36. Ibidem, p. 112 e 114. 37. Ibidem, p. 119. 38. Ibidem, p. 51-52. 39. Ibidem, p. 5.
PARTE IV PRIMEIRA REPÚBLICA
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Sobreviventes de Canudos: "rudes patrícios indomáveis" que a República não foi capaz de compreender.
CAPÍTULO 10 EUCLIDES DA CUNHA A REPÚBLICA E O SERTÃO
Galgava o topo da Favela. Volvia em volta o olhar. (...) E quase compreendia que os matutos crendeiros (...) acreditassem que 'ali era o céu...' (...) via-se um ondular estonteador; estranho palpitar de vagas longínquas; a ilusão maravilhosa de um seio de mar... EUCLIDES DA CUNHA
Em verdade vos digo, quando as nações brigam com as nações, o Brazil com o Brazil, a Inglaterra com a Inglaterra, a Prússia com a Prússia, das ondas do mar D. Sebastião sahirá com todo o seu exército. ANTONIO CONSELHEIRO
A Primeira República (1889-1930) foi vista, para além das mudanças da forma institucional, como uma continuação do Império. Assim como na passagem da colônia para o Primeiro Reinado, também na passagem do Império para a República alguns cronistas sentiram-se tentados a reafirmar a continuidade de uma história que mantém fortes vínculos com o passado. Falou-se muito de uma "República dos Conselheiros", em alusão à permanência de grandes nomes do Império nos primeiros governos republicanos. O governo provisório teve entre seus ministros figuras do Império, como o Barão de Lucena, Henrique Pereira de Lucena (1835-1913), sem esquecer que o fundador da República, marechal Deodoro da Fonseca (1827-1892), dizia-se que se comportava como se fosse um monarca. Não era sem motivo, portanto, a imagem da continuidade do Império, embora talvez exagerada no interesse de "republicanos históricos" ressentidos diante de tantos republicanos novíssimos nos primeiros governos de após 1889. Outro aspecto notado na primeira hora da República foi a ausência do povo no cenário político. Ficaram célebres as palavras de Aristides Lobo (1838-1896), ministro do Interior do governo provisório, que descreveu a proclamação da República como um golpe militar. "Por ora, a cor do governo é puramente militar, e deverá ser assim. O fato foi deles, deles só, porque a colaboração do elemento civil foi quase nula. O povo assistiu àquilo bestializado, atônito, surpreso, sem conhecer o
que significava."1 Embora alguns historiadores tenham acreditado ver uma classe média republicana em meio à multidão que em novembro de 1889 compareceu ao campo de Santana, o certo é que a derrubada do regime veio da iniciativa militar. E o povo estava ausente – ou, se presente, o que pode ter ocorrido com pequena parcela, não participava. Acreditava, como disse Aristides Lobo, "estar vendo uma parada".
República da oligarquia O marechal Deodoro da Fonseca, chefe do movimento, havia combatido, a serviço do Império, a revolução Praieira, e participado das guerras da Cisplatina e do Paraguai, tendo se tornado, como muitos militares, simpático às teses abolicionistas. Amigo e admirador de D. Pedro II, pretendia, ao que dizem alguns cronistas, a queda do gabinete de turno, não a do imperador. O marechal Floriano Peixoto (1839-1895) era, como Deodoro, um herói da guerra do Paraguai, e havia sido ministro da Guerra no último gabinete do Império, chefiado pelo visconde de Ouro Preto, Afonso Celso de Assis Figueiredo (1836-1912). De seus tempos de ministro, diz um historiador: "Não se conhece uma atitude sua, nem em favor da Coroa, nem em favor da República, nas vésperas do dia 15 de novembro. Chefe do Exército imperial, ele agira sempre por omissão".2 Ainda assim, monarquista de opção liberal e com aparências de omisso, passou à história como um republicano puro, dando início, com Deodoro, à participação dos militares na direção do Estado brasileiro. Mais adiante, a partir de meados da Primeira República, os militares se tornarão, até fins do século XX, uma referência obrigatória da história política brasileira. A República também começou sob o signo da instabilidade política. Em continuidade com o Império, dirigida por militares e distante do povo, nasceu sob o signo dos governos de mão dura. Assim como na monarquia, na qual o poder pessoal do imperador era quase tudo, inauguramos na República um presidencialismo de tipo caudilhesco. Ou, nos seus momentos de maior elegância, um presidencialismo de tipo imperial. Os governos de Deodoro da Fonseca (1889-1891), Floriano Peixoto (1891-1894) e do primeiro presidente civil, Prudente de Morais (1894-1898), responderam com força às turbulências dos primeiros anos da República ainda em consolidação. Esses primeiros sinais de uso da força surgiram quando Floriano Peixoto derrotou a Revolta da Armada (1894), movimento de protesto da marinha ao qual se atribuía uma intenção de restauração monárquica. Mas, à parte as eventuais reações dos restauradores, a força parecia a alternativa que restava a uma República que começara instável e a uma enorme distância do "país real". A presença da classe média – formada na época por militares, bancários,
funcionários públicos e profissionais liberais, que alguns acreditam ter sido o povo possível na política da época da Proclamação – será reconhecida mais adiante, no civilismo e nos movimentos tenentistas dos anos 1920. Mas o povo pobre – que se situa abaixo da classe média e constitui a grande maioria da nação – só dará sinais de existência por meio de algumas rebeliões notáveis. Ausente da proclamação, o povo continuou ausente da política institucional nas décadas seguintes, embora submetido à conhecida manipulação do "coronelismo" dos proprietários de terra. Os governos civis que se seguiram aos militares criariam o perfil de uma República entranhadamente oligárquica, que haveria de durar até 1930. As elites governantes da Primeira República tiveram que se confrontar, já nos primeiros anos, com rebeliões populares tão surpreendentes quanto inevitáveis. São dos primeiros anos após a proclamação as rebeliões de Canudos, na Bahia (18931897), a dos marinheiros, na Revolta da Chibata (1910), de João Candido (18801969), e a do Contestado (1912), na fronteira entre o Paraná e Santa Catarina. Embora se possam mencionar conflitos operários já em fins do século XIX, só a partir da guerra de 1914-1918 pode-se falar do surgimento, no país, de um movimento operário, especialmente em São Paulo, Rio de Janeiro e Recife. Do trato habitual dos governos com o movimento operário, ficou na história a definição célebre da "questão social" como "questão de polícia". As reivindicações sociais diriam respeito à ordem pública, cabendo aos governos tratar como desordeiros os que ousassem apresentá-las como demandas ao Estado. A Primeira República foi tão dura quanto o Império na repressão a movimentos e rebeliões populares. Prudente de Morais (1841-1902), que muitos viam como um fraco (a verdade é que o pretendiam mais forte do que efetivamente foi), deu fim à revolta Federalista (1893-1895), no Rio Grande do Sul, na qual igualmente se acreditava estivessem envolvidos interesses monarquistas. Além disso, esmagou a revolta popular de Canudos, movimento entendido pela opinião pública, e sobretudo pelos militares, como anti-republicano e restaurador. Ao fim do governo Prudente de Morais estavam criadas as condições para que Campos Sales (1841-1913) instaurasse a "política dos governadores", base oligárquica da sustentação da República, sob a liderança das oligarquias dos estados de São Paulo e Minas Gerais, e submetida aos interesses predominantes da economia do café.
Civilização e barbárie A obra de Euclides da Cunha é das mais expressivas dentre as que se escreveram nas perspectivas positivistas e cientificistas que em fins do Império e inícios da República buscaram caminhos de renovação das mentalidades no país. Euclides era
um jovem republicano, militar e engenheiro, formado no espírito pós-guerra do Paraguai, quando os militares ganharam influência política, intelectual e cultural no país. Aderindo ao positivismo e ao cientificismo que ainda no Império seduziram muitos, os militares de inícios da República participavam de um movimento de idéias inovador. A enorme repercussão intelectual alcançada por Os sertões beneficiou-se dessa atmosfera intelectual renovadora. Aproveitou-se também da onda de escritos sobre a vida rural e o interior, na mesma época. A intelectualidade começava a descobrir as gentes dos sertões do Brasil. Os sertões é o único livro de Euclides da Cunha; os demais que constam de sua bibliografia são coletâneas de artigos jornalísticos. Mesmo o grande clássico de Euclides é resultado de uma elaboração do autor sobre suas notas e reportagens para um jornal de São Paulo. Conquistou a intelectualidade brasileira mais pela paixão e sinceridade que transmite do que por suas adesões literárias, teóricas e filosóficas. Monteiro Lobato (1882-1948), que dedicou ele próprio algumas de suas melhores obras a fatos e costumes da vida rural, disse que Euclides da Cunha cumpriu "o papel de 'desasnador' dos intelectuais brasileiros do início do século XX".3 O livro pode ser visto como parte de uma tradição de relatos de guerra, iniciada com A retirada da Laguna (1871), do Visconde de Taunay, Alfredo d'Escragnolle Taunay (1843-1899), sobre um episódio trágico da guerra do Paraguai. E sua publicação coincide com a de Os jagunços (1898), de Afonso Arinos (1868-1916), sobre a vida rural e o interior, e de Canaã (1902), de Graça Aranha (1868-1931), sobre a imigração de trabalhadores europeus iniciada com o período da Independência. Mas, entre todos, o livro de Euclides se tornou um caso único pela profunda repercussão que alcançou na vida cultural e intelectual da República. Não apenas na Primeira, que começou com Deodoro, mas também na Segunda, que começou com a revolução de 1930 e deu início à "era Vargas".4 Hoje, mais de cem anos depois de sua publicação, continuam vivas as questões fundamentais suscitadas por Os sertões sobre a história e a cultura brasileiras. A partir de relatos jornalísticos, Euclides construiu uma grande obra de pensamento sobre a formação social brasileira e os desafios sociais que aguardavam (e ainda aguardam) o desenvolvimento da República. A história de Canudos foi contada por muitos, antes e depois de Euclides.5 Mas, tal como narrada n' Os sertões, essa guerra foi capaz de revelar as entranhas do país, com um impacto até hoje insuperável. Como diz Walnice Nogueira Galvão, a repercussão do livro, na época do lançamento, alcançou as dimensões de um grande mea-culpa nacional.6 Transformou a guerra de Canudos em um emblema das desigualdades e injustiças sociais da nação, obrigando "a atenção do país a se voltar para aquela que é a sua realidade profunda".7 Em nome de uma luta da civilização contra a barbárie, o
exército da República esmagou os pobres fanáticos do interior. Os acontecimentos da guerra sertaneja viriam a ecoar longamente na história brasileira, tornando mais frágeis e duvidosas as convicções liberais e modernizantes que as elites aprenderam nas preliminares da República. Nem mesmo as oligarquias civis, que, no momento dos acontecimentos, sustentaram opiniões a favor do esmagamento de Canudos, ficariam imunes à repercussão dos relatos. Difícil saber o que sobrou da racionalidade cientificista dos militares, em face da missão terrível de esmagar os sertanejos fanáticos, aos quais se atribuiu uma intenção política que não tinham. Sabe-se, porém, que não escapou a muitos oficiais e soldados o significado da injustiça que cometiam. Alguns oficiais e praças sentiram o gosto amargo da vitória no momento mesmo em que a conquistavam. Quanto a Euclides da Cunha, o ovem ex-tenente foi bastante claro quando disse ter "deixado muitas idéias, perdidas, naquela sanga maldita, compartindo o mesmo destino dos que agonizavam manchados de poeira e sangue".8 O livro ficou também como exemplo da influência da arte na política. Diz Berthold Zilly, tradutor d' Os sertões para o alemão, que, "não fosse o livro de Euclides da Cunha, a guerra de Canudos teria caído no semi-esquecimento do grande público, como tantos outros conflitos, movimentos populares, guerras civis e externas, revoltas, quilombos, greves – acontecimentos quase sempre caracterizados por massacres contra os de baixo, bastando uma rápida comparação com a Balaiada, a guerra do Paraguai, os Mucker, o Contestado". 9 O livro permanece ainda como exemplo de como eram lamentavelmente míopes as oligarquias fundadoras da República. Tiveram que esperar por uma guerra – e, mais, pela expressão literária magistral de Os sertões – para reconhecer realidades do interior do Brasil que sempre tiveram debaixo dos olhos. Muito já se falou sobre as qualidades e os defeitos da obra, sobre o que tem de novo e de velho, de grande prosa literária e de mero rebuscamento retórico, de pretensa ciência e de verdadeira poesia, de resíduos racistas e de um sentimento de verdadeira compaixão. Mas não é demais acrescentar que Os sertões se tornaram fator da conversão ideológica de muitos. Euclides da Cunha foi bastante honesto e sensível para ir além das convicções que tinha quando iniciou sua viagem para o interior da Bahia. Não seria, porém, tudo isso inevitável numa reportagem ornalística que se tornou uma obra de pensamento, uma nova descoberta do Brasil?
Euclides da Cunha Militar por formação, positivista, cientificista e republicano radical, Euclides da Cunha mudou a visão do país no mesmo passo em que mudou suas idéias sobre o
país. Por força da sua interpretação, a guerra de Canudos tornou-se um "eventochave da história brasileira", elevando à dimensão do mito o personagem obscuro de Antônio Conselheiro. No mesmo passo, também Euclides se tornou um mito, como explicador do Brasil.10 [<<22]
Denúncia inflamada em livro-monumento: Euclides da Cunha, autor de Os sertões.
Euclides da Cunha era filho de um fazendeiro de café da Província do Rio de Janeiro, e seu avô, na Bahia, vivia do tráfico de escravos. Ainda jovem, alcançou notoriedade como republicano quando, em 1888, expressou sua rebeldia ao Império atirando seu espadim de cadete aos pés do ministro da Guerra em visita à Escola Militar. O gesto provocou a indignação dos monarquistas, que exigiram do "governo agonizante" medidas punitivas. Entre os que pediram punição estava Joaquim Nabuco, que apelou a que não se admitisse "que uma instituição, criada pelo Estado à custa de muitos sacrifícios do contribuinte, (...) se (tornasse) um foco de agitação revolucionária, contra as instituições legais".11 O jovem cadete foi expulso do exército, não obstante os apelos de seu pai ao imperador, o que lhe permitiu a primeira experiência profissional no jornalismo, em São Paulo. Alguns dias depois da proclamação da República, foi reintegrado ao exército por iniciativa de oficiais republicanos, entre os quais se achava o major Sólon Ribeiro (1842-1900). O major, que se tornou depois sogro de Euclides, fora um dos líderes da quartelada republicana, e viria a desempenhar um papel no início da guerra sertaneja. Era amigo pessoal do marechal Floriano, que, já presidente, confiou a Euclides, então promovido a tenente, uma posição como engenheiro na estrada de ferro Central do Brasil.
Em 1896, desiludido com a política republicana, mas não com a República, Euclides preferiu sair do exército para se dedicar à engenharia civil, como funcionário da Secretaria de Obras de São Paulo. Pouco depois voltou ao jornalismo, demitido da secretaria em razão de cortes de gastos com pessoal. Em julho de 1897, antes portanto de viajar ao sertão, publicou no jornal O Estado de S. Paulo seus dois primeiros artigos sobre Canudos. Esses artigos, ambos com o título de "A nova vendéia", expressavam a clara intenção de assemelhar a revolta dos seguidores do Conselheiro a movimentos restauradores de camponeses da época da Revolução Francesa. Logo a seguir, Euclides foi designado pelo jornal para acompanhar a comitiva do ministro da Guerra em viagem à região de Canudos. O jovem militar, agora oficial reformado do exército, começava assim a sua temporada como correspondente de guerra.12 De uma guerra que vinha de alguns anos e que todos acreditavam que estivesse chegando ao fim.
Antônio Maciel, o Conselheiro Antônio Vicente Mendes Maciel, que depois veio a ser chamado o "Conselheiro", nasceu em 1830, em Quixeramobim, no Ceará, de uma família de pequenos criadores. Nem a religiosidade nem a violência estiveram ausentes dos primeiros anos de sua vida, marcada pelas lutas de família em que os Maciel se envolveram, desde 1833, com um rico proprietário de terras. Histórias antigas, portanto, e por meio das quais os Maciel, que já eram pobres, empobreceram mais, embora ainda mantendo um padrão de vida superior ao da maioria dos habitantes da região. Em meio a um povo de maioria analfabeta, Antônio Maciel se distinguia por haver freqüentado a escola, sabia ler e escrever, possuía rudimentos de educação religiosa e estudara a gramática latina. Entre suas várias atividades de jovem, antes de se tornar o Conselheiro, estão as de pequeno comerciante, caixeiro, além de solicitador e requerente no fórum. Em 1861, separou-se da mulher, sua prima, que o traíra com um amigo. Envergonhado, Antônio Maciel fugiu da cidade de Ipu, onde vivia, e tomou os rumos do sul do Ceará. Foi acometido depois disso de sinais de depressão e de esgotamento nervoso, o que, segundo alguns, não seria incomum em sua família. Acolhido em casa de um parente, terminou por atacá-lo, sendo preso por tentativa de homicídio. Foi depois solto como irresponsável. Saiu então do Ceará e tomou os rumos de Pernambuco, dando início às caminhadas pelos sertões que, aos poucos, fizeram seu renome como penitente. Quando chegou ao interior da Bahia, dez anos depois, já era famoso, e atraía gente nas feiras para ouvi-lo. Acusado de haver matado a mulher e a própria mãe, foi
levado de volta, preso, ao Ceará. "Acusaram-no", diz Euclides da Cunha, "de velhos crimes, cometidos no torrão nativo. Ouviu o interrogatório e as acusações, e não murmurou sequer, revestido de impassibilidade marmórea. (...) Quedou na tranqüila indiferença superior de um estóico".13 Uma vez mais foi solto, dessa vez inocentado. As descrições de Antônio Maciel, aprendidas na leitura de Euclides da Cunha e de estudiosos de sua obra, evocam a paisagem humana e social dos sertões, com sua miséria e seu misticismo, e sinais da guerra que deveria vir. Diz Sylvio Rabello que, quando Antônio Maciel buscou o sertão da Bahia, "já aí o Conselheiro não se pertencia mais, (...) se podiam contar aos milhares os seus devotos. Como na legenda de todos os profetas, o peregrino já não andava só".14 Não chamava a que o acompanhassem, simplesmente era seguido. Passou a viver de esmolas, prestigiado, diz Euclides, no seio de uma sociedade primitiva que "compreendia melhor a vida pelo incompreendido dos milagres". Era visto sempre acompanhado nos caminhos, causando preocupação aos padres. "A admiração intensa e o respeito absoluto (...) o tornaram em pouco tempo árbitro incondicional de todas as divergências ou brigas, conselheiro predileto em todas as decisões." Foi assim, aos poucos, assumindo a imagem que deveria deixar na memória do país. "De 1877 a 1887 erra por aqueles sertões, em todos os sentidos."15 Em 1887, a Arquidiocese da Bahia quis, sem qualquer efeito, internar Maciel em um hospital, pedido recusado por ausência de vagas. Na pobreza e no misticismo da vida no sertão, o Conselheiro atraía seguidores pela mera aparência de penitente: magro, a barba e o cabelo compridos, vestido com um camisolão azul. Um dos seus seguidores trazia um oratório "tosco, de cedro, encerrando a imagem de Cristo". Antônio Maciel agia como quem condensasse em si próprio "o obscurantismo de três raças", diz Euclides em alusão aos índios, negros e brancos que formaram o país. Acompanhavam-no como se precisassem de alguém que os guiasse "nas trilhas misteriosas para os céus", e assim remodelavam-no "à sua imagem". Visto como um problema pela Igreja da Bahia, tornou-se uma atração dos jornais, os de Salvador da Bahia e os do Rio de Janeiro, agora capital da República. Como diz Euclides, o Conselheiro era uma sombra, mas uma sombra que cresceu tanto "que se projetou na História". 16
O cenário da guerra A ocasião do primeiro confronto veio em 1893. Na verdade, não ainda um confronto militar, mas um distúrbio, coisa comum nos interiores de um Brasil onde o Estado chegava sempre muito frágil e, quase sempre, com enorme atraso. Depois da proclamação da República chegaram ao sertão algumas novidades, entre as quais a
cobrança de impostos municipais. O Conselheiro se achava na ocasião no arraial de Bom Conselho, que havia fundado. Quando apareceu a novidade republicana, ele não apenas disse ao povo que não pagasse os impostos, mas que queimasse as tábuas em que eram reclamados. Para reprimir os "desordeiros", a polícia da Bahia enviou um pelotão com trinta soldados, que foram derrotados pelos seguidores do Conselheiro em Masseté. Maciel, sempre acompanhado por seus seguidores, fugiu uma vez mais. Ia agora para Canudos, uma velha fazenda à margem do rio Vaza-Barris, ao fundo dos sertões de Piauí, Ceará, Pernambuco e Sergipe. Na sua chegada, Canudos já acolhia um lugarejo que "tinha como a maioria dos que jazem desconhecidos pelos nossos sertões, muitos germes da desordem e do crime".17 Com a entrada dos seguidores do Conselheiro, o lugarejo tomou ares que, segundo Euclides, assemelhavam-no a um acampamento de guerreiros ou a uma aldeia africana. O arraial era cercado de colinas, com o monte da Favela ao sul, a menos de dois quilômetros de distância. Como quase tudo da história de Canudos, o morro da Favela se tornaria lendário como parte do cenário da guerra. E depois da guerra se tornaria ainda uma vez lendário porque alguns soldados, de volta à cidade do Rio de Janeiro, se instalaram no morro da Providência, perto da Central do Brasil, chamando-o de Favela. Essa designação se tornou geral para os morros nos quais, ainda hoje, se juntam os pobres. Aliás, a designação generalizou-se não apenas para os morros, mas também para as várzeas e planícies, qualquer espaço onde a maioria da população é pobre, não apenas no Rio de Janeiro, mas em geral nas grandes cidades brasileiras.18 Começava cedo a transformação de Canudos em emblema nacional. Diz Euclides da Cunha que Canudos era a "Tróia de taipa dos jagunços" e que "crescia vertiginosamente".19 O Conselheiro – que há 22 anos, desde 1874, tornarase famoso em todo o interior do Nordeste e mesmo nas cidades do litoral e que, além do arraial de Bom Jesus, construíra dezenas de igrejas, reconstruíra cemitérios e conseguira açudes para o povo – faria de Canudos a sua última obra.20 Ao lado da velha igreja do lugarejo, construiria uma nova. Na igreja velha, ao entardecer, os sinos, mesmo nas batalhas, entoavam a Ave-Maria. As torres da nova seriam seu último ponto de resistência contra as investidas do exército.
A primeira expedição militar Em 1895, depois de um incidente em Juazeiro, nascido do descumprimento por parte de um comerciante de seu compromisso de entregar madeiras compradas por Maciel, surgiu a oportunidade de nova expedição a Canudos. Essa, que foi a primeira
expedição militar a Canudos, surgiu em novembro de 1896 por determinação do comandante do distrito militar, que, "por ironia do destino, era o sogro de Euclides, o general Sólon". Era uma companhia que, segundo o Diário da Bahia, "ia com a missão de expulsar de Canudos os bandidos que ocuparam a fazenda e capturar seu chefe, o sebastianista Antônio Conselheiro". 21 A expedição, dirigida pelo tenente Pires Ferreira, com cem soldados, confrontou-se com os sertanejos em Uauá, nas vizinhanças de Canudos. É assim que Euclides descreve o confronto: "A multidão guerreira avançava para Uauá, derivando à toada vagarosa dos kyries, rezando. (...) Guiavam-no símbolos de paz: a bandeira do Divino e, ladeando-a, nos braços fortes de um crente possante, grande cruz de madeira, alta como um cruzeiro. (... ) Equiparavam aos flagelos naturais, que ali descem periódicos, a vinda dos soldados. Seguiam para a batalha rezando, cantando – como se procurassem decisiva prova às suas almas religiosas".22 Atacados de surpresa, os soldados refugiaram-se nas casas à volta do largo, atirando indiscriminadamente contra os sertanejos. O resultado da batalha desigual reflete a diferença na qualidade das armas dos dois lados: morreram 150 sertanejos e apenas 10 militares, entre estes um alferes e um sargento. Engana-se, porém, quem pensar que em Uauá uma tal diferença fizesse pensar em fácil vitória da tropa do governo. Esta, pelo contrário, retirou-se, cansada, depois de quatro horas de luta. As enormes diferenças quanto ao número de mortes dos dois lados permaneceriam como um padrão até o fim de uma guerra que já não necessitaria de novos incidentes para continuar. Para tal bastava a existência de Canudos. Daí em diante o objetivo da guerra era destruir Canudos.
Esses rudes impenitentes A segunda expedição, comandada pelo major Febrônio de Brito, chegou a Monte Santo em dezembro de 1896: 543 praças, 14 oficiais combatentes e três médicos. Nos discursos militares de antes da partida para os combates, prometia-se destruir os desordeiros a ferro e fogo. Era preciso, relata Euclides, que "os rudes impenitentes, os criminosos retardatários, que tinham a gravíssima culpa de um apego estúpido às mais antigas tradições", era preciso que eles "saíssem afinal da barbaria em que escandalizavam o nosso tempo, e entrassem repentinamente pela civilização a dentro, a pranchadas".23 Ainda uma vez, porém, as coisas não saíram como se esperava. O primeiro choque se deu na serra do Cambaio, e foi antecipado pela "vozeria em
que, através dos costumeiros vivas ao 'Bom Jesus' e ao 'nosso Conselheiro', rompiam brados escandalosos de linguagem solta, apóstrofes insolentes. Havia entre outras uma frase desafiadora que no decorrer da campanha soaria como um estribilho irônico: 'Avança! Fraqueza do governo!'". Conquistada a posição pela tropa após três horas de conflito, do lado do governo "eram poucas as perdas – quatro mortos e vinte e tantos feridos. Em troca os sertanejos deixavam cento e quinze cadáveres, contados rigorosamente". Repetia-se o mesmo padrão de violência já observado em Uauá. Era também mais um combate sem decisão final, depois do qual a tropa do governo foi forçada a deixar o terreno e seguir adiante, dessa vez em busca de Canudos.24 O segundo combate, em Tabuleirinhos, não é menos violento. "A tropa perdera apenas quatro homens, excluídos trinta e tantos feridos", ao passo que os sertanejos "foram dizimados", sem que se tenha sabido do número de feridos. "Um dos médicos contou rapidamente mais de trezentos cadáveres."25 Naquele mesmo dia, à tarde, nas encostas do Cambaio, onde se dera o primeiro combate, assistiu-se a uma grande procissão. "O fragor dos combates, porém, trocara-se pela assonância das litanias melancólicas. Lentamente, caminhando para Canudos, extensa procissão derivava pelas serras. Os crentes substituíam os batalhadores e volviam para o arraial, carregando aos ombros (...) os cadáveres dos mártires da fé." E ainda uma vez, embora vitoriosas, as tropas governamentais, cansadas, bateram em retirada. E, como nas vezes anteriores, perseguidas pelos jagunços.26
O anti-Cristo ou o "corta-cabeças" A terceira expedição, em fevereiro de 1897, sob o comando do coronel Antônio Moreira César (1850-1897), tinha por objetivo mudar definitivamente o rumo das coisas. O coronel fora o principal chefe no fim da campanha federalista do Rio Grande do Sul e tinha grande prestígio como "debelador de revoltas". Sua designação para a guerra sertaneja teria assustado os jagunços, que o viam como um "anti-Cristo", o "corta-cabeças". Era, porém, um enfermo, sofria de epilepsia e teve dois ataques logo no início da campanha.27 A expedição chegou a avistar Canudos do alto do morro da Favela, um ponto que as expedições anteriores não conseguiram atingir, e de onde abriu o canhoneio, dando cobertura a um ataque da infantaria. Em certo momento, Moreira César foi ferido, vindo a falecer no dia seguinte. O novo chefe, o coronel Tamarindo, depois de consultar seus oficiais, decidiu-se pela retirada. Diz Euclides que, naquela noite, a guerra sertaneja passaria a tomar "a feição misteriosa que conservaria até o fim". Começaram a surgir as semelhanças de
formação étnica e cultural entre os soldados e os sertanejos rebelados. "Na maioria mestiços, feitos da mesma massa dos matutos, os soldados, abatidos pelo contragolpe de inexplicável revés ficaram sob a sugestão empolgante do maravilhoso, invadidos de terror sobrenatural. (...) É que grande parte dos soldados era do Norte, e criara-se ouvindo, em torno, de envolta com o dos heróis dos contos infantis, o nome de Antônio Conselheiro." E as lendas em torno dos seus milagres e façanhas lhes pareciam verossímeis diante daquela catástrofe.28 Perseguida pelos jagunços, a retirada tornou-se "uma debandada" de trágicas conseqüências. "Entre os fardos atirados à beira do caminho ficara, logo ao desencadear-se o pânico", o cadáver do comandante Moreira César. Quanto ao coronel Tamarindo, "inteiramente só, sem uma única ordenança, (...) lançou-se desesperadamente, o cavalo a galope, pela estrada – agora deserta". Também perseguido pelos jagunços, foi atingido por uma bala. A terceira expedição desaparecera, em debandada, e "os feridos agonizavam no absoluto abandono".29 Os sertanejos e os jagunços ficaram com os despojos, tendo levado para o arraial os quatro canhões Krupps que a expedição trouxera, bem como as Mannlicher e Coblains. Recolhidas as armas e as munições, os jagunços reuniam os cadáveres que aziam esparsos em vários pontos e os decapitavam. Alinhavam, nas margens da estrada, as cabeças, regularmente espaçadas, com as faces de frente para o caminho. Nos arbustos mais altos, dependuravam os restos de fardas, calças, dólmãs, selins, cinturões, quepes, capotes, mantas, cantis e mochilas. Três meses mais tarde, quando novos expedicionários seguiram para Canudos, encontraram fileiras de caveiras nas orlas do caminho, rodeadas de velhos trapos, dependurados nos ramos dos arbustos. Na margem da estrada encontraram "erguido num tronco o esqueleto do coronel Tamarindo, decapitado, braços pendidos, mãos esqueléticas calçando luvas pretas... Jaziam-lhe aos pés o crânio e as botas".30
O último confronto A quarta expedição, sob o comando do general Artur Oscar de Andrade Guimarães, tinha um plano único: levar a Canudos seus cinco mil soldados, do jeito que fosse possível. Não repetiria o erro das retiradas que se transformavam em debandadas. Diz Euclides que o general alterou a frase clássica: em vez do "cheguei, vi e venci" mudou-a para "cheguei, vi e fiquei".31 Além de sua própria determinação, o general percebeu que não tinha escolha. A capacidade de combate dos sertanejos revelou-se surpreendente. "Mais tarde, relatando o feito, o chefe expedicionário se confessou impotente para descrever a imensa 'chuva de balas que desciam dos morros e subiam da planície'." E um dos seus comandantes afirmou "que durante cinco anos, na
guerra do Paraguai, jamais presenciara coisa semelhante". Em meia hora de combate, um dos seus batalhões tivera "cento e quatorze praças fora de combate, e nove oficiais". A grande diferença em relação às expedições anteriores foi efetivamente esta: não houve retirada. Sendo impossível o recuo, os soldados se tornaram "forçadamente heróicos, encurralados, cosidos à bala numa nesga do chão". Mas isso evidentemente não resolvia a situação. "A tropa – cinco mil soldados, mais de novecentos feridos e mortos, mil e tantos animais de montada e tração, centenares de cargueiros – sem flancos, sem retaguarda, sem vanguarda, desorganizara-se por completo."32 O general Artur Oscar pediu um corpo auxiliar de cinco mil homens para livrar suas tropas da imobilidade em que se achavam. Se "as ordens do dia decretavam o começo do sítio", o fato era que "a expedição é que estava sitiada", como sempre sucedera desde fins de junho. De quando em quando havia escaramuças, nas quais os vitoriosos tocaiavam os vencidos; os assaltantes eram, por via de regra, os assaltados. "A vida normalizara-se naquela anormalidade. (...) Os soldados da linha negra, na tranqueira avançada do cerco, travavam, às vezes, noite velha, longas conversas com os jagunços."33 E, ao entardecer, o sino da igreja velha batia, calmamente, a Ave-Maria. E logo depois, da igreja nova, ecoava o cantochão melancólico das rezas.
A degola O cenário da guerra mudou, porém. Ela se aproximava do fim. A expedição do exército foi salva pelo ministro da Guerra, o marechal Carlos Machado Bittencourt (1840-1897), que chegou à região com reforços, tropas do norte e do sul, acrescidas das polícias de São Paulo, Pará e Amazonas. Aumentando as tropas em combate para cerca de oito mil homens, o marechal deu ao conflito as feições de uma campanha regular. Do lado dos sertanejos, as perdas eram graves. Haviam desaparecido os principais guerrilheiros: Pajeú, João Abade, Macambira, José Venâncio. Permaneciam ainda Pedrão, Cocorobó e Joaquim Norberto. Sem os seus principais líderes, Canudos se aproximava do fim. Quanto a Antônio Conselheiro, falecera em agosto. Euclides da Cunha não entra em maiores detalhes sobre as circunstâncias que cercaram a morte do Conselheiro. Nem encontrei nos demais relatos sobre a guerra outras informações a respeito. O Conselheiro morreu tão misteriosamente quanto viveu. Até o fim "uma sombra", como diria Euclides, que registra algumas reações dos sertanejos diante da morte do líder. Ele fora "em viagem para o céu", diriam. E diriam também que "o profeta volveria em breve, entre milhões de arcanjos descendo (...) numa revoada olímpica,
caindo sobre os sitiantes, fulminando-os e começando o Dia do Juízo".34 Uma nova mudança do lado dos militares dava o sinal da proximidade do desenlace. Era o início da degola dos prisioneiros. Como descreve Euclides, a degola incluía, quase sempre, o forçar a vítima a dar um grito de "viva a República". Paradoxalmente, em nome da civilização, praticava-se a barbárie. "Tínhamos valentes que ansiavam por essas covardias repugnantes, tácita e explicitamente sancionadas pelos chefes militares. Apesar de três séculos de atraso os sertanejos não lhes levavam a palma no estadear idênticas barbaridades." Agarravam a vítima "pelos cabelos, dobrando-lhe a cabeça, esgargalando-lhe o pescoço; e, francamente exposta a garganta, degolavam-na". A prática da degola era conhecida no arraial, o que certamente contribuiu para a enlouquecida resistência dos sertanejos, que lutariam até a morte. A condenação de Euclides é nítida: "Aquilo não era uma campanha, era uma charqueada. Não era a ação severa das leis, era a vingança. Dente por dente. Naqueles ares pairava ainda a poeira de Moreira César, queimado; devia-se queimar. Adiante, o arcabouço decapitado de Tamarindo; devia-se degolar. A repressão tinha dois pólos - o incêndio e a faca. (...) Ademais, não havia temer-se o juízo tremendo do futuro. A História não iria até ali". 35 Não obstante as brutalidades suscitadas pelo sentimento da vingança, "fizera-se uma concessão ao gênero humano: não se trucidavam mulheres e crianças", sempre que não se revelassem perigosas. E em muitos militares despontava um "irreprimível e sincero entusiasmo pelos valentes martirizados. (...) O quadro que se lhes oferecia imortalizava os vencidos, aqueles rudes patrícios indomáveis".36 Algumas das palavras das últimas páginas de Os sertões ficaram como uma legenda de glória da valentia dos sertanejos. Em outubro começou o canhoneio. Veio depois o toque de avançar contra Canudos, mobilizados dois mil homens para o ataque; entrou em cena a dinamite, "dezenas de bombas de dinamite". Derrotado Canudos, destruíram-lhe as casas, "5.200 cuidadosamente contadas". Diz Euclides, num desesperado paradoxo: "Atacava-se a fundo a rocha viva da nossa raça. Vinha de molde a dinamite... Era uma consagração". Tornaram-se célebres as palavras finais de Os sertões, que muitos brasileiros lembram de memória: "Canudos não se rendeu. Exemplo único em toda a História, resistiu até ao esgotamento completo. Expugnado palmo a palmo, na precisão integral do termo, caiu (...) quando caíram os seus últimos defensores, que todos morreram".37
Uma história sincera
Euclides transmite ao leitor uma lição da história. Uma lição sobre a formação do povo brasileiro que ele próprio aprendeu como observador de uma guerra que mudou seus conceitos sobre o sertanejo e sobre a República. Quando viajava para a Bahia e depois para o sertão, ele anotava no seu Diário claros juízos de defesa da República e de denúncia das barbaridades dos jagunços.38 Em Os sertões, cuja redação virá depois, são mais visíveis as ambigüidades, chegando ao final a expressões de forte simpatia pelos sertanejos. Na nota introdutória do livro, Euclides se apresenta como o "narrador sincero" dos fatos, citando as reflexões de Taine sobre o trabalho do historiador: "il veut sentir en barbare, parmi les barbares, et, parmi les anciens, en ancien". Não renuncia à civilização e acredita que esta, impulsionada pela "força motriz da história", "avançará nos sertões". Mas registra uma pesada crítica à civilização republicana brasileira que, no Diário, defendia inequivocamente. Em Os sertões, a campanha de Canudos lhe parece "um refluxo para o passado", como as entradas do período colonial. A campanha "foi, na significação integral da palavra, um crime". Há que tomar essas poucas frases de denúncia como resultado de um complexo processo de mudança das idéias do autor. Dizem alguns comentadores, com razão, que Os sertões são vários livros. E não apenas porque transita por diversas áreas da ciência, desde a geologia, geografia, antropologia física, antropologia cultural, sociologia, psicologia social, sem esquecer a historiografia e a ciência da guerra, mas também porque se expande em um número apreciável de juízos e avaliações paradoxais e contraditórias quando alcança os tons mais altos da retórica, da paixão e da poesia. Como disse Walnice Nogueira Galvão, seria possível escrever pelo menos dois livros a partir dos juízos ambíguos e contraditórios de Euclides sobre os sertanejos. No mesmo sentido, talvez se pudesse escrever ainda outros livros sobre as variações de tom de Euclides quando se refere a outros temas, como a mestiçagem, o Exército, a civilização. Tantas ambigüidades e contradições não significam, porém, que falte ao livro uma linha amarrando argumentos e descrições em um conjunto consistente. Para além das incursões científicas de Os sertões, o encontro de Euclides com os sertanejos em guerra foi, como já se disse, "uma experiência limite", uma dramática experiência de conhecimento do povo brasileiro. Embora apareça no livro como a última parte, a guerra foi o ponto de partida do percurso, difícil e tortuoso, pelo qual Euclides alcançou uma nova visão do país. À parte as incursões que, mais belas do que científicas, ficaram na história das letras mais do que na história da ciência, permanece no espírito do leitor a dramática experiência do intelectual republicano da cidade grande que chegou a uma nova visão do país observando a miséria e a grandeza dos "rudes patrícios indomáveis". Daí o enorme impacto do livro nas elites
e sua entronização como um clássico do pensamento brasileiro. Os sertões podem ser lidos como uma metáfora de uma mudança das elites que formavam uma consciência nacional desde inícios do século XIX e que passaram, lentamente e com não poucas dificuldades e desvios, a se reconhecer como parte de um país mestiço, rústico e primitivo, extremamente desigual. Essa formação de consciência tem, no caso de Euclides, como já se disse, o sentido de um "mea-culpa nacional". Uma autocrítica que, no caso de Euclides, realizou-se sem plano, literalmente na estrada, e a contrapelo da atmosfera até então dominante. A meditação que poderia organizar as anotações do correspondente de guerra veio unto com a redação do livro. E esta foi decerto uma outra viagem, no plano do pensamento, nos intervalos de tempo que tomou nos seus dois anos como engenheiro, dirigindo a construção de uma ponte em São José do Rio Pardo, em São Paulo. A guerra que, no Diário, o escritor via como sendo contra inimigos da República, passou a ser vista em Os sertões, especialmente na parte final, como uma guerra entre irmãos. A crítica do jagunço, entendido como um bandido dos sertões do Nordeste, foi aos poucos substituída pela admiração. E ao final do livro ressurge a denúncia do "crime", anunciada em nota introdutória que, como de hábito nas introduções, foi com certeza escrita no fim. O último ataque militar ao arraial, destruindo suas "5.200 casas cuidadosamente contadas", ecoa no fim do livro como o ataque àqueles que Euclides considera o centro da nacionalidade, "a rocha viva da nossa raça". Não por acaso, o leitor encontra, sobretudo ao fim do livro, não poucas semelhanças entre jagunços e soldados. O misticismo dos sertanejos alcança a alma dos soldados, sobretudo quando se ouve a Ave-Maria no sino da igreja velha. Ao final, percebe Euclides que era uma guerra de "jagunços contra jagunços", aquela que se revela quando entra no arraial um batalhão da Bahia. Aquele batalhão "não era um batalhão de linha, como não era um batalhão de polícia. Aqueles caboclos rijos e bravos, joviais e bravateadores que mais tarde, nos dias angustiosos do assédio de Canudos, descantariam, ao som dos machetes, modinhas folgazãs, debaixo de fuzilarias rolantes – eram um batalhão de jagunços. Entre as forças regulares de um e outro matiz, imprimiam o traço original da velha bravura a um tempo romanesca e bruta, selvagem e heróica, cavaleira e despiedada, dos primeiros mestiços, batedores de bandeiras".39 Os elogios à valentia dos soldados se equilibram com os elogios à valentia dos agunços. E o escritor expressa o mesmo horror diante dos crimes que os dois lados cometeram. De um lado e de outro, o mesmo sentimento primário da vingança. A mesma barbárie no fogo que incinera cadáveres e na faca que degola prisioneiros.
Pior ainda: dos dois lados a profanadora degola de mortos. Se todos os "crimes" são inaceitáveis, mais inaceitável para Euclides tornou-se o "crime" do governo. O republicano Euclides entendia que a República deveria ser capaz de incorporar aqueles que destruía.
Mestiçagem e misticismo A viagem do pensamento de Euclides vai, porém, mais fundo, deixando-nos a impressão de que o crime não foi apenas da República. Nas últimas linhas do livro, ele se revela perplexo diante "das loucuras e os crimes das nacionalidades".40 O crime, portanto, mais do que à República, dizia respeito a toda a nação, que participou inteira do episódio. Estaríamos diante de uma tragédia a ser entendida como parte de um processo que ainda não terminou, e por meio do qual a "força motriz da história" empurra para diante a formação da nação. A história do Brasil, segundo Euclides, abriu-se em duas, logo nas origens, numa separação radical entre o norte e o sul. Duas histórias distintas cujos elementos formadores – os sertanistas do norte e os bandeirantes do sul – passaram quase todos, "em busca das 'minas de prata' de Melchior Moréia", pelas margens dos sertões de Canudos. No século XVII acentuou-se o contraste entre o norte e o sul. "O 'paulista' – e a significação histórica desse nome abrange os filhos do Rio de Janeiro, Minas, São Paulo e regiões do sul – erigiu-se como um tipo autônomo, aventuroso e rebelde, (...) afastando-se do mar e dos galeões da metrópole, investindo com os sertões desconhecidos." Foram as bandeiras que desenharam as trilhas do povoamento até fins do século XVIII. Outra corrente vinha do norte, desde o Maranhão até a Bahia, num povoamento que caminhava mais vagaroso, por meio da mistura com os índios, e que contou com a colaboração persistente do jesuíta. Essa corrente apoiou-se no regime pastoril "que já no alvorecer do século XVIII ia das raias setentrionais de Minas a Goiás, ao Piauí, aos extremos do Maranhão e Ceará pelo ocidente e norte, e às serranias das lavras baianas a leste". O acesso de ambas as correntes à região dos sertões se fazia pelo rio São Francisco, "levando os homens do Sul ao encontro dos homens do Norte". O grande rio "erigia-se desde o princípio com a feição de um unificador étnico, longo traço de união entre as duas sociedades que se não conheciam".41 Segundo Euclides, são esses os antecedentes históricos mais distantes do jagunço. "Imaginemos que dentro do arcabouço titânico do vaqueiro estale, de súbito, a vibratibilidade incomparável do bandeirante. Teremos o jagunço." É "o cerne vigoroso da nossa nacionalidade", nascido da contigüidade do povoamento e do
encontro dos nortistas "que lutavam pela autonomia da pátria nascente e os sulistas, que lhe alargavam a área".42 Dessa fusão de nortistas e sulistas despontou uma raça de curibocas puros, quase sem mescla de sangue africano. A presença do negro, maior na costa, ligada à economia do açúcar, deu origem ao mulato que, porém, é anterior ao Brasil, tendo nascido em Portugal, como resultado do tráfico de escravos. Os "curibocas puros" – ou seja, os caboclos, mestiços de branco com índio – seriam figuras peculiares ao povoamento do interior do Brasil. São estas as origens históricas dos jagunços que surgem à luz da história através da guerra de Canudos: "(...) com as suas vestes características, os seus hábitos antigos, o seu estranho aferro às tradições mais remotas, o seu sentimento religioso levado até ao fanatismo, e o seu exagerado ponto de honra, e o seu folclore belíssimo de rimas de três séculos. (...) Raça forte e antiga, de caracteres definidos e imutáveis mesmo nas maiores crises (...) oriunda de elementos convergentes de todos os pontos, porém diversa das demais deste país". Toda essa população ficou perdida num recanto dos sertões, realizando a máxima intensidade de cruzamento uniforme "capaz de justificar o aparecimento de um tipo mestiço bem definido, completo".43 Com a dosagem preponderante do índio, ali ficaram num abandono completo, "evolvendo em círculo apertado durante três séculos (...), guardando, intactas, as tradições do passado". Os sertanejos têm "a mesma envergadura atlética, e os mesmos caracteres morais traduzindo-se nas mesmas superstições, nos mesmos vícios, e nas mesmas virtudes".44 Seu aspecto "recorda, vagamente, à primeira vista, o de guerreiro antigo exausto da refrega. As vestes são uma armadura. Envolto no gibão de couro curtido, de bode ou de vaqueta; apertado no colete também de couro; calçando as perneiras, de couro curtido ainda, muito justas, cosidas às pernas e subindo até as virilhas, articuladas em joelheiras de sola; e resguardados os pés e as mãos pelas luvas e guarda-pés de pele de veado – é como a forma grosseira de um campeador medieval desgarrado em nosso tempo".45 A religião do sertanejo "é, como ele – mestiça". É "uma mestiçagem de crenças" que inclui, além de crenças indígenas e africanas, também o misticismo dos portugueses, da época do descobrimento e da colonização. Foi essa uma época na qual "todos os terrores da Idade Média tinham cristalizado no catolicismo peninsular", e os portugueses estavam cheios "daquele misticismo feroz, em que o fervor religioso reverberava à cadência forte das fogueiras inquisitoriais". Os portugueses que chegavam ao Brasil e que, em parte, entravam pelo sertão, eram parcelas da mesma gente que após Alcácer-Quibir procurava a fórmula superior das esperanças messiânicas. "Imóvel o tempo sobre a rústica sociedade sertaneja, (...) ela respira ainda na mesma atmosfera moral dos iluminados que encalçavam, doidos, o Miguelinho ou o Bandarra. Nem lhe falta, para completar o símile, o misticismo
político do sebastianismo", que persiste nos sertões do norte.46 Ali, a terra é o exílio insuportável, e o morto um bem-aventurado, porque a morte é a felicidade suprema da volta para os céus.47 A biografia do Conselheiro resume a existência da sociedade sertaneja. É por isso que, diz Euclides, o Conselheiro "arrastava o povo sertanejo". Não o arrastava porque o dominasse, "mas porque o dominavam as aberrações daquele". Também por isso o Conselheiro foi como que "impelido por uma potência superior, bater de encontro a uma civilização, indo para a história como poderia ter ido para o hospício". Seu misticismo condensava todas as crenças ingênuas, os fetichismos bárbaros, as aberrações católicas, as tendências emocionais correntes na vida sertaneja. O Conselheiro "era o profeta, o emissário das alturas", com "uma função exclusiva: apontar aos pecadores o caminho da salvação". Era este o papel que ele se atribuía: ser um "delegado dos céus". Sentencia Euclides: o Conselheiro "parou aí indefinidamente, nas fronteiras oscilantes da loucura, nessa zona mental onde se confundem facínoras e heróis, reformadores brilhantes e aleijões tacanhos, e se acotovelam gênios e degenerados".48 Além de místico, o Conselheiro era também um chefe, assim como Canudos que, mais do que um ajuntamento de místicos, era, a seu modo, uma sociedade organizada. Como é freqüente nos grandes ajuntamentos de pobres, e como se verifica nas favelas das grandes cidades do Brasil moderno, Canudos era também "um homizio de facínoras". Ali "chegavam, de permeio com os matutos crédulos e vaqueiros iludidos, sinistros heróis da faca e da garrucha". Eles se tornaram ajudantes-de-ordens do Conselheiro. Canudos, como ocorria com muitos lugarejos do sertão, tinha "a sua tradição especial e sinistra".49 Entre os lugarejos do sertão, o arraial de Bom Jesus da Lapa se destaca como um lugar especial, como a Meca dos sertanejos. Ali, entre as dádivas que jazem em considerável cópia no chão e nas paredes do templo, "o visitante observa, de par com as imagens e as relíquias, um traço sombrio de religiosidade singular: facas e espingardas. O clavinoteiro ali entra, contrito, descoberto. Traz à mão o chapéu de couro, e arma à bandoleira. Tomba genuflexo, a fronte abatida sobre o chão úmido... E reza. (...) Ao cabo cumpre devotamente a promessa (...): entrega ao bom Jesus o trabuco famoso, tendo na coronha alguns talhos de canivete lembrando o número de mortes cometidas. Sai desapertado de remorsos, feliz pelo tributo que rendeu. Amatula-se de novo à quadrilha. Reata a vida temerosa". Esses "valentes desgarrados" têm a sua nobreza. Embora isso soe paradoxal, nos lugares em que vivem, o banditismo tem a sua disciplina, a "desordem" normalizou-se. "O saque das povoações que conquistam, têm-no como direito de guerra, e neste ponto os absolve a História inteira." Fora disso, são raros os casos de roubos. 50
O mais forte dentre os princípios que professava o Conselheiro era este: bemaventurados os que sofrem. Ele "abria aos desventurados os celeiros fartos pelas esmolas e produtos do trabalho comum. Compreendia que aquela massa, na aparência inútil, era o cerne vigoroso do arraial". Era um profeta que anunciava o uízo de Deus, a desgraça dos poderosos, o esmagamento do mundo profano, o reino de mil anos e suas delícias. Ansiava "pelo reino de Deus, prometido, delongado sempre e ao cabo de todo esquecido". Canudos lhe parecia uma escala no caminho para a eternidade. Segundo Euclides, os jagunços armavam em Canudos as tendas, na romaria para os céus. Como nada queriam dessa vida, aderiram a uma espécie de coletivismo: apropriação pessoal apenas de objetos móveis e de casas, comunidade da terra, das pastagens, do rebanho e dos escassos produtos das culturas. Junto com os haveres, o Conselheiro pregava que os fiéis abandonassem o mais leve traço da vaidade. Maciel tinha horror à mulher e à beleza, e considerava o uso da aguardente como delito sério. Contados os últimos dias do mundo, urgia antecipá-lo pelos jejuns, provações e martírio. Todo aquele que se quisesse salvar precisaria vir para Canudos, porque nos outros lugares tudo estava contaminado e perdido. Ali, porém, nem é preciso trabalhar, é a terra da promissão, "onde corre um rio de leite e são de cuscuz de milho as barrancas".51
A República e seus bárbaros O olhar de Euclides que condena e denuncia se abre então para o futuro em uma advertência sobre os rumos de uma história que ainda não terminou. Canudos foi "um assalto" em uma "luta longa" que conduz a civilização aos sertões, num processo do qual, de algum modo, todos participamos. Mas o olhar abrangente do escritor permite, não por acaso, reconhecer que à volta desse "crime" houve, apesar de tudo, e de ambos os lados, grandeza bastante para nos dar esperança. Uma das lições aprendidas por Euclides na guerra de Canudos é que "estamos condenados à civilização". "Ou progredimos, ou desaparecemos."52 Embora na linguagem do seu tempo, tão preocupada com as etnias e suas misturas, Euclides nos fala da formação do povo brasileiro, obrigando-se, desse modo, a rememorar o misticismo e a miscigenação que estão nas origens do país. As misturas do branco, do índio e do negro criaram o mestiço, o mameluco e o cafuzo, misturas típicas que se multiplicam em outras misturas. Daí, diz Euclides, que não temos uma raça única, "não a temos e não a teremos talvez nunca".53 Nesse amplo processo de criação de um povo multirracial, o sertanejo será a grande exceção, "fusão perfeita de três raças". Os "rudes compatriotas retardatários"
estão no centro mesmo da nacionalidade. O que significa que, tendo se esquecido deles, o país, na verdade, esqueceu-se de si próprio. Significa também que a recuperação da memória histórica sobre sertanejos e jagunços tem o sentido de uma redenção da própria nação. Em seus inícios, a República não entendeu a lição que revelava, em Canudos, "aquele afloramento originalíssimo do passado". A juventude militar foi atacada de "um lirismo patriótico que lhe desequilibrara todo o estado emocional. Para esses ovens, a luta pela República, "e contra os seus imaginários inimigos, era uma cruzada". E nesses modernos templários "a paixão patriótica roçava, derrancada, pela insânia". Dentre os que caíam a bala à entrada de Canudos muitos saudavam a memória de Floriano Peixoto "com o mesmo entusiasmo delirante (...), com que os agunços bradavam pelo Bom Jesus misericordioso e milagreiro".54 Nos anos da guerra de Canudos registrou-se uma "correria do sertão" invadindo as cidades do litoral. Como nas ladainhas do Conselheiro, o sertão chegava ao mar. A rua do Ouvidor, no Rio de Janeiro, tornou-se "um desvio das caatingas". Jornais que ousaram criticar as represálias contra Canudos foram queimados por multidões "aos gritos de viva a República e à memória de Floriano Peixoto". A guerra sertaneja alastrara-se civilização adentro, ali encontrando, o homem do sertão, "parceiros porventura mais perigosos". Eis a interpretação de Euclides: "a força portentosa da hereditariedade (...) arrasta para os meios mais adiantados – enluvados e encobertos de tênue verniz de cultura – trogloditas completos". O curso normal da civilização os contém e domina até que "um abalo profundo lhes afrouxa em torno a coesão das leis, (e) eles surgem e invadem escandalosamente a História". Foi assim que, no Rio de Janeiro, a primeira cidade da República, os patriotas satisfizeram-se com o autode-fé de alguns jornais adversos.55 A República não conseguiu entender que na pregação do Conselheiro não havia o menor intuito político. Foi tomada de espanto quando, nesse refluxo da história, teve pela frente, "inopinadamente, ressurreta e em armas (...) uma sociedade velha, uma sociedade morta". Depois da proclamação de 1889, mais fundo se tornou "o contraste entre o nosso modo de viver e o daqueles rudes patrícios mais estrangeiros nesta terra do que os imigrantes da Europa". Os brasileiros das cidades, "iludidos por uma civilização de empréstimo", não reconheceram a sociedade velha, como poderiam tê-la reconhecido os iluminados da Idade Média ou os aventureiros do século XVII. Foi assim que, "com arrojo digno de melhores causas, batemo-los a cargas de baionetas, reeditando por nossa vez o passado, numa entrada inglória, reabrindo nas paragens infelizes as trilhas apagadas das bandeiras".56 Foram por isso sempre decepcionantes para o Exército as vitórias contra os sertanejos de Canudos. Destruído o arraial, "o que mais acirrava a cobiça dos
vitoriosos eram as cartas, quaisquer escritos e, principalmente, os desgraciosos versos encontrados. (...) Registravam as prédicas de Antônio Conselheiro; (...) o que nelas vibra (...) é a mesma religiosidade difusa e incongruente, bem pouca significação política permitindo emprestar-se às tendências messiânicas expostas. O rebelado arremetia com a ordem constituída porque se lhe afigurava iminente o reino de delícias prometido. Prenunciava-o a República – pecado mortal de um povo – heresia suprema indicadora do triunfo efêmero do Anti-Cristo". Ao final da guerra, viu-se pela primeira vez, em conjunto, a população de Canudos. Era raro nela "um branco ou um negro puro. Um ar de família em todos delatando, iniludível, a fusão perfeita de três raças". Ao redor dos derrotados achavam-se os vitoriosos, "díspares e desunidos, o branco, o negro, o cafuzo e o mulato proteiformes com todas as gradações da cor". Euclides ressalta o contraste: "a raça forte e íntegra abatida dentro de um quadrado de mestiços indefinidos e pusilânimes". O "cerne da nacionalidade" fora quebrado na luta. "Humilhava-se." 57 Como diz Euclides, aqueles pobres rebelados requeriam outra reação, "obrigavamnos a outra luta".58 "(...) era indispensável que a campanha de Canudos tivesse um objetivo superior à função estúpida e bem pouco gloriosa de destruir um povoado dos sertões. (...) Toda aquela campanha seria um crime inútil e bárbaro, se não se aproveitassem os caminhos abertos à artilharia para uma propaganda tenaz, contínua e persistente, visando trazer para o nosso tempo e incorporar à nossa existência aqueles rudes compatriotas retardatários." A conclusão de Euclides, porém, é melancólica: "sob a pressão de dificuldades exigindo solução imediata e segura, não havia lugar para essas visões longínquas do futuro".59
1. L OBO , Aristides. em carta dirigida ao Diário de São Paulo, apud: RABELLO, Sylvio. Euclides da Cunha. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1966, p. 44. Os dados biográficos sobre Euclides da Cunha são apoiados nesse livro de Sylvio Rabello. 2. R ABELLO, op. cit., p. 48. 3. Apud STEGAGNO-PICCHIO, op. cit., p. 399. 4. Taunay foi, como Euclides, oficial engenheiro do exército. O livro, sobre um episódio da guerra do Paraguai, foi escrito em francês e traduzido para o português, tornando-se um clássico da literatura brasileira. "A retirada da Laguna é estruturada (...) em perspectivas de tragédia grega, na qual os heróis, 'nem completamente inocentes, nem completamente culpados', estão por antecipação condenados ao aniquilamento, em conseqüência de qualquer obscura vingança divina"; cf. MARTINS, op. cit., v. 3, p. 349. 5. Entre as obras mais recentes sobre a mesma história, acha-se o livro do escritor peruano Mario Vargas Llosa, A guerra do fim do mundo (Trad. de Remy Gorga Filho. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1981). 6. O livro foi um "imenso mea-culpa coletivo, que, aceito pela ordem vigente, serviu de catarse ao menos parcial para essa consciência"; cf. GALVÃO, Walnice Nogueira. No calor da hora. A guerra de Canudos nos
jornais. Quarta expedição. São Paulo: tica, 1974. p. 98. 7. S TEGAGNO-PICCHIO, op. cit., p. 399. 8. São palavras de Euclides da Cunha citadas em: VENTURA, Roberto. Euclides da Cunha: a história como tragédia. Disponível em: . Acesso em: nov. de 2005. 9. Z ILLY, Berthold. Quadros e cenas de uma guerra: a história encenada em Os sertões, de Euclides da Cunha. Disponível em: . Acesso em: nov. de 2005. 10. Ibidem. 11. Nabuco, apud RABELLO, op. cit., p. 40. 12. As informações biográficas sobre Euclides são de R ABELLO, op. cit., p. 40 e seguintes. 13. CUNHA, Euclides da. Os sertões. Campanha de Canudos. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1995. p. 181. 14. RABELLO, op. cit., p. 65. 15. CUNHA, Os sertões, cit., p. 183. 16. Ibidem, p. 178-179. 17. Ibidem, p. 199 e 204. 18. ZILLY, Berthold. A barbárie: antítese ou elemento da civilização? In: A LMEIDA, Ângela Mendes de; LIMA, Eli Napoleão de; ZILLY, Berthold (Orgs.). De sertões, desertos e espaços incivilizados. Rio de Janeiro: Mauad, 2001. 19. CUNHA, Os sertões, cit., p. 418. 20. Ibidem, p. 200, 203, 205 e 24 5. 21. ABREU, Regina. O enigma de 'Os sertões'. Rio de Janeiro: Rocco/Funarte, 1998. p. 111 22. CUNHA, Os sertões, cit., p. 251. 23. Ibidem, p. 278-279. 24. Ibidem, p. 292 e 295. 25. Ibidem, p. 375. 26. Ibidem, p. 286 e 309. Machado de Assis, que tinha uma coluna na Gazeta de Notícias, escreve em 31 de janeiro de 1897: "Protesto contra a perseguição que se está fazendo a Antônio Conselheiro". 27. CUNHA, Os sertões, cit., p. 336-7. 28. Ibidem, p. 371-372. 29. Ibidem, p. 375 e 377-378. 30. Ibidem, p. 377-380 e 409. 31. Ibidem, p. 469. 32. Ibidem, p. 425-426, 428 e 452. 33. Ibidem, p. 452, 458, 495-496, 521 e 5 77. 34. Ibidem, p. 383 35. Ibidem, p. 596, 598, 600 e 60 3. 36. Ibidem, p. 602 e 612. 37. Ibidem, p. 626 e 642. 38. Euclides da Cunha. Canudos: Diário de uma expedição. In: CUNHA, E. da. Obra completa. Organização de Afrânio Coutinho. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1995. v. 1, p. 585-691. 39. Euclides diz que esse batalhão da Bahia era "o único entre todos que se talhara pelas condições da campanha. Recém-formara-se com sertanejos engajados nas regiões ribeirinhas do S. Francisco"; CUNHA, Os sertões, cit., p. 409. 40. Ibidem, p. 645. 41. Ibidem, p. 64, 88, 94-95, 104 e 110. 42. Ibidem, p. 114 e 237. 43. Ibidem, p. 114 e 118.
44. Ibidem, p. 121 e 122. 45. Ibidem, p. 132-134. 46. Ibidem, p. 154 e 158. 47. Ibidem, p. 154-155 e 158. 48. Ibidem, p. 165-167, 169 e 193-194. 49. Ibidem, p. 194-195. 50. Ibidem, p. 239. 51. Ibidem, p. 208-210 e 215. 52. Ibidem, p. 84. 53. Ibidem, p. 82. 54. Ibidem, p. 389, 396 e 493-494. 55. Ibidem, p. 388-390. 56. Ibidem, p. 221-222. 57. Ibidem, p. 639-640. 58. Ibidem, p. 222-223. 59. Ibidem, p. 554.
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Oliveira Viana, a sociedade "insolidária", nova imagem do país sem povo.
CAPÍTULO 11 OLIVEIRA VIANA TRANSIÇÃO DA PRIMEIRA À SEGUNDA R EPÚBLICA
O latifúndio é o grande medalhador da sociedade e do temperamento nacional. O nosso homem do povo , o nosso campônio é essencialmente o homem de clã, o ho mem de caravana, o homem que procura um chefe, e sofre uma como que vaga angústia secular todas as vezes em que, por falta de guia, tem necessidade de agir por si, automaticamente. OLIVEIRA VIAN A
As idéias da "era Vargas" vêm de um passado distante. Anteriores ao próprio Getúlio Vargas (1883-1954), permaneceram influentes por vários decênios depois da sua morte. Nascido no Rio Grande do Sul, Getúlio Vargas foi deputado estadual em 1909, deputado federal em 1923, ministro da Fazenda em 1926, governador de seu estado em 1928. Sua projeção nacional veio com a revolução de 1930, da qual foi o principal líder. Foi chefe do governo provisório em 1930, presidente constitucional em 1934, ditador em 1937, deposto em 1945. Eleito presidente em 1950 pelo voto popular, sofreu quase ao fim do seu mandato, em 1954, uma crise política que o levou ao suicídio. Sua morte causou enorme impacto na opinião pública e assegurou dez anos de sobrevida política seus seguidores, representados nos governos de Juscelino Kubitschek (1955-1960) e João Goulart (1961-1964). Tendo ocupado a cena política brasileira durante os decênios de após 1930, sua influência se estendeu depois da sua morte, por meio de seus seguidores e até mesmo de seus antigos adversários. Assim como as idéias da "era Vargas", as instituições criadas por ele sobrevivem até hoje. As diversas biografias e os estudos monográficos sobre Vargas e seus períodos de governo não tornam mais fácil esclarecer as convicções pessoais de um líder cujas idéias estiveram sempre envolvidas em dúvidas e até mesmo num mistério que o suicídio tornou mais denso. Mas não é difícil imaginar que alguns dos princípios que adotou como político e chefe de Estado remontam ao centralismo do Império, talvez mesmo ao Iluminismo despótico do Marquês de Pombal. Em todo caso, teriam sido princípios mais antigos do que as tinturas do positivismo de Auguste Comte (17981857) que recebeu no início do século XX, como muitos jovens da elite republicana
da época. No estado atual dos estudos sobre Vargas, temos que nos contentar com o significado mais geral de suas idéias, aquele que se revela em seus feitos. Um procedimento indispensável no caso de um personagem histórico que se caracterizou como o mais contraditório e paradoxal da história brasileira do século XX. O certo é que Getúlio Vargas estabeleceu as bases do país industrial, do Estado e da nação brasileira que se conhecem na virada para o século XXI. Entre suas qualidades como estadista estava a de haver percebido as possibilidades inovadoras da época de crise e de mudanças em que viveu. Homem de formação tradicional, de família de estancieiros do sul do país, ele foi tão contraditório quanto muitos dos acontecimentos da época em que viveu. Como a história de Pombal, a de Getúlio Vargas se inscreve entre as dos estadistas que em algum momento acreditaram perceber o germe de modernidade embutido na tradição do país em que nasceram. Vargas terminou a vida tragicamente, mas consagrado entre os trabalhadores e o povo pobre do país. Foi também execrado por parte significativa das elites, que só agora, mais de meio século depois de sua morte, parecem capazes de reavaliar sua significação histórica com isenção. Vargas expressou sempre uma enorme sensibilidade para as circunstâncias e para as possibilidades do presente, revelandose portador de alguns traços típicos da tradição luso-brasileira. De um modo ou de outro, construiu um projeto nacional aos pedaços, e fez o país sair para a frente.
Um novo começo do pensamento brasileiro O Brasil de Vargas sofreu os efeitos recessivos da crise de 1929, como outros países na América e no mundo. Mas os efeitos econômicos da crise, embora enormes, não devem fazer esquecer que nem só de economia se faz a história. Na mesma época, observa-se uma outra realidade, que tem mais a ver com a cultura e com a política, e que permitiu ao Brasil aproveitar as oportunidades que a crise abria para seu desenvolvimento e modernização. Num ambiente em que a florescente economia do café contrastava, desde a segunda metade do século XIX, com a decadência das minas e das velhas regiões açucareiras, aumentavam de há muito as insatisfações das classes médias urbanas, pequenas em número, mas expressivas nas agitações da opinião. Bem antes de 1929, muitos percebiam que o país agrário das oligarquias, federalista e liberal, devia buscar um novo rumo. [<<24]
Latifundiário e estancieiro, Getúlio Vargas iniciou a transformação do Brasil em país urbano e industrial.
Na crise do mundo agrário, o pensamento social e político teve um novo começo que se beneficiou de aberturas para o mundo criadas pela revolução de 1930. Alguma aproximação entre os intelectuais e as autoridades revolucionárias se prolongou mesmo quando a revolução se converteu em ditadura, no Estado Novo (1937-1945). Isso se deveu, em grande parte, ao êxito de Gustavo Capanema (19001985) no Ministério da Educação, reunindo à sua volta intelectuais e artistas de diversas correntes de idéias: entre outros, os ensaístas Alceu Amoroso Lima (18931983) e Mário de Andrade (1893-1945); o poeta Carlos Drummond de Andrade (1902-1987); os músicos Heitor Villa-Lobos (1887-1959), Francisco Mignone (1897-1986) e Guiomar Novaes (1896-1979); o pintor Candido Portinari (19031962); os arquitetos Oscar Niemeyer (n. 1907), Lúcio Costa (1902-1998) e Le Corbusier (1887-1965); o educador Lourenço Filho (1897-1970).1 Se a cultura de algum modo se beneficiou da revolução e das novas circunstâncias políticas, também é certo que a política daqueles anos se beneficiou com uma elaboração cultural anterior, que vem desde os anos 1920, e que, em parte, se desenvolveu em paralelo aos acontecimentos da revolução e do Estado. Nas décadas de 1920 a 1940, encontram-se as primeiras e inspiradoras obras de Oliveira Viana (1883-1951), Gilberto Freyre (1900-1987), Caio Prado Jr. (1907-1980) e Sérgio Buarque de Holanda (1902-1982), que estabeleceram as premissas de uma teoria da sociedade e do desenvolvimento social do país.2 São daqueles decênios alguns livros
que se consagraram como as "interpretações do Brasil": Populações meridionais do Brasil, de Oliveira Viana, saiu em 1920; Casa-grande & senzala, de Gilberto Freyre, em 1933, mesmo ano de Evolução política do Brasil, de Caio Prado Jr.; Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda, veio três anos depois, em 1936. Dos mesmos autores, vieram ainda, no decênio de 1940, outras obras notáveis, como Instituições olíticas brasileiras, de Oliveira Viana; Sobrados e mucambos, de Gilberto Freyre; e Formação do Brasil contemporâneo, de Caio Prado Jr. Os livros que menciono acima não são as únicas obras importantes desses autores, mas as primeiras. Especialmente as dos anos 1920 e 1930 podem ser tidas como obras de juventude desses autores, cujas carreiras prosseguiram depois delas em rica produção intelectual. Essas obras são as que estão mais diretamente ligadas à emergência do Brasil moderno, e são por isso aquelas que chamam a minha atenção neste capítulo e no seguinte. Não obstante as muitas diferenças, esses autores assinalam, nessas obras juvenis, o surgimento de um novo pensamento brasileiro. Mais do que por sua produção intelectual posterior, foi por esses livros que eles se converteram, por assim dizer, em pensadores canônicos da etapa inicial da conversão de país agrário em país industrial. Em meio às polêmicas intelectuais de um período crítico da história, eles deram a reconhecer aspectos novos da identidade do povo brasileiro. Com a exceção de Oliveira Viana, esses "ensaístas do Brasil" não foram partidários de Getúlio Vargas. Mas também é certo que, com a exceção do comunista Caio Prado Jr., que foi perseguido e preso em 1935, nunca estiveram tão distantes que não pudessem ter momentos de convivência com o governo. Quanto a Oliveira Viana, um dos mais importantes pensadores do período, tornou-se consultor urídico do Ministério do Trabalho em 1932. Permaneceu no governo até 1940 e foi um dos principais autores das leis sociais e sindicais criadas pela ditadura – aliás, até hoje vigentes, com poucas modificações.3
Oliveira Viana: precursores Como seria de supor de intelectuais do Brasil da Primeira República, Oliveira Viana era, como Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda e Caio Prado Jr., um filho de família tradicional. Diz um historiador que o autor de Populações meridionais era membro de uma família de proprietários rurais, no estado do Rio de Janeiro, e que "confessava uma 'infinita ternura' pela gente humilde que mourejava à sombra nem sempre grata dos fazendeiros": (...) "toda minha obra respira uma 'íntima simpatia' por essa gente".4 Nascido nos últimos anos do Império e da escravidão (uma geração antes de Gilberto Freyre, Buarque de Holanda e Caio Prado Jr.), Oliveira Viana
formou-se numa época caracterizada pelo positivismo, eivada dos determinismos do clima e do meio natural e de racismos diversos. Embora viesse a se caracterizar como um crítico das influências estrangeiras no pensamento nacional, Oliveira Viana não podia – como, aliás, nenhum intelectual expressivo daqueles tempos – escapar de algum deslumbramento por idéias e modelos que vinham de fora. Na passagem do século XIX para o XX, ele se formou debaixo de forte influência de nomes europeus, na maior parte franceses, como o conde Joseph-Arthur de Gobineau (1816-1882) e Louis Agassiz (1807-1873). Além dos franceses, havia a influência do inglês Henry Thomas Buckle (1821-1862), que, numa extensa obra de história da civilização, deixou escapar em relação ao Brasil um pessimismo também freqüente em intelectuais brasileiros da época.5 Entre os latino-americanos, a presença mais antiga de Domingo Faustino Sarmiento e a mais recente de José Ingenieros (1877-1925). A historiografia brasileira ainda seguia as velhas orientações historicistas de meados do século XIX, inspiradas na busca de uma identidade nacional. Seguia as sugestões de Karl Friedrich von Martius em Como escrever a história do Brasil (1840) e da monumental História geral do Brasil, de Francisco Adolfo de Varnhagen (1854-1857).6 Esses autores definiam a base do ensino de história no país na passagem do século, não obstante as inovações de perspectiva de Capistrano de Abreu (1853-1927), com os Capítulos de história colonial (1907), buscassem estimular um melhor conhecimento da formação do interior do país. De conjunto, era uma historiografia pobre na interpretação das forças sociais, econômicas e culturais que moviam a história oficial, concentrada em grandes personalidades e acontecimentos. Há, porém, que matizar um pouco esse quadro, abrindo-o para o reconhecimento de exceções, sem as quais se tornaria incompreensível o surgimento de Oliveira Viana e dos demais "ensaístas do Brasil". Entre estas, algumas são verdadeiramente notáveis, como os escritos abolicionistas e a obra de historiador de Joaquim Nabuco e o extraordinário impacto de Os sertões, de Euclides da Cunha. Nas gerações que precederam Oliveira Viana registre-se ainda, ao lado da historiografia oficial, um movimento de renovação de idéias, de que participou, entre outros, Sílvio Romero. No discurso com que recebeu Euclides da Cunha na Academia Brasileira de Letras, em 1906, Romero criticou com ênfase a cultura do Segundo Reinado: "a inteligência nacional andava encurralada num círculo de romanticismo caduco e de metafisismo banal, envoltos ambos numas retorices sovadas, balofas, inanes, em que velhas frases eram glorificadas e erigidas à cultura de teses científicas, de pilastras eternas do verdadeiro. Em política o Visconde do Uruguai e o conselheiro zacarias de Góis esbofavam-se por estabelecer a exata doutrina acerca da natureza e limites
do poder moderador". Esse crítico severo podia ter também ímpetos de entusiasmo e esperança, raros entre os intelectuais da sua época: "O Brasil é fatalmente uma democracia. Filho da cultura moderna, nascido na época das grandes navegações, (...) ele é, além do mais, o resultado do cruzamento de raças diversas (...). Ora, os dois maiores fatores de igualização entre os homens são a democracia e o mestiçamento".7 Eis todo um programa de idéias novas, só parcialmente acolhido por Oliveira Viana, mas desenvolvido décadas depois por Gilberto Freyre. Oliveira Viana não foi uma exceção numa época de predominância racista, com todas as oscilações de um pensamento que tinha também algo de moda intelectual. Mas também é certo que, nos momentos iniciais do século XX, começavam a surgir os primeiros críticos do racismo. Manuel Bonfim (1868-1932) criticou o racismo e os determinismos em A América Latina (1905), e em outro livro antecipou uma visão culturalista que se tornou, décadas depois, dominante no pensamento brasileiro. "Somos um povo cruzado, e povos cruzados serão sempre aquilo em que se fizeram expressão de misturas combinadas." Em outras palavras, "o valor atual das raças é, apenas, valor de cultura". Segundo Flora Süssekind, a obra de Manuel Bonfim também se antecipou à do mexicano José Vasconcelos (1882-1959), La raza cósmica (1925), com a sua "utopia híbrida", na qual uma "fusão de estirpes" prepararia "o rico plasma da humanidade futura". Os sentimentos que afloravam no Brasil desabrochavam também em outras partes da América ibérica.8 Talvez se possa afirmar – e o fazem alguns comentadores – que Oliveira Viana não permaneceu tão distante dessas novas influências como pode parecer à primeira vista. No ecletismo mais ou menos inevitável na época, podemos tomá-lo também, sob certos aspectos, como um culturalista, embora não tenha sido esse, com certeza, o traço dominante em seu pensamento.9 De grande influência sobre Oliveira Viana foi Alberto Torres (1865-1917), ex-ministro de Prudente de Morais, o primeiro presidente civil da República, governador do Estado do Rio de Janeiro (1897-1900) e ministro do Supremo Tribunal de Justiça. Nos dois livros que publicou, em 1914, O roblema nacional brasileiro e A organização nacional, reuniu artigos e ensaios nos quais fazia a crítica do federalismo e pregava a centralização do poder. É só na década de 1920, porém, já em meio à crise da velha República agrária, que essas idéias chegariam a frutificar, nas obras de outros autores. Desses, o mais importante foi Oliveira Viana, em controvérsias políticas e culturais de grande projeção histórica. [<<25]
Colheita de café em São Paulo, 1930: crise do mundo agrário abriu espaço para um novo modo de pensar o Brasil.
O primeiro sociólogo Populações meridionais do Brasil, escrito em 1918, foi publicado em 1920. Trata-se, portanto, de um livro contemporâneo da crise da República agrária, anterior de quase dez anos à grande crise econômica de 1929 e à revolução de 1930. Talvez por isso tenha parecido mais ajustado ao tom da mentalidade conservadora inscrita na realidade do país do que os primeiros livros de Gilberto Freyre, Caio Prado e Sérgio Buarque de Holanda. Embora com uma vasta bibliografia que se estende até os anos 1940, Oliveira Viana foi, sobretudo, um herói intelectual dos anos 1920. Populações meridionais teve tamanho êxito que seu autor se sentiu estimulado a publicar, quase de imediato, uma série de livros, todos relativos à formação social e política do Brasil: O idealismo na evolução política do Império e da República (1922), O ocaso do Império (1925) e Pequenos estudos de psicologia social (1921), sem esquecer Problemas de política objetiva, embora este publicado em 1930. Essa apertada seqüência levou um crítico a dizer, com ironia, que na década de 1920 "grassava Oliveira Viana".10 Oliveira Viana foi, decerto, um conservador, mas também um inovador. Os temas centrais de sua obra, nas palavras de João Cruz Costa, foram "o sertão, as raças e a centralização política". Se entendermos que a referência às raças era, na época, uma forma indireta, no mais das vezes negativa, de referência ao povo, foram também esses os temas centrais do pensamento do seu tempo.11 É sabido que sua visão do Brasil incluía um declarado menosprezo pelo mestiço e pelo negro, ao lado de um
entusiasmo por um aristocratismo arianista que identificava nos primeiros colonizadores portugueses. Não obstante esses compromissos conservadores, Oliveira Viana criou os fundamentos da sociologia brasileira, dando continuidade a intuições anteriores de Joaquim Nabuco e Euclides da Cunha.12 Ele estabeleceu uma distinção de regiões na análise da sociedade brasileira que deixou para trás as velhas abordagens do país como um todo uniforme. Definiu assim uma perspectiva intelectual que, de algum modo, se "incorporou ao cânone interpretativo de nossa realidade". Estudando no seu primeiro livro as populações rurais do sudeste (Rio, São Paulo e Minas), ele se propunha pesquisar nas próximas obras as do sul e do norte.13 Algumas de suas inovações terminaram se impondo aos demais "ensaístas do Brasil", numa antecipação intelectual, mais do que cronológica. Apesar de racista, conservador e autoritário, ou talvez por isso mesmo, o fato é que Oliveira Viana inaugurou a agenda dos debates intelectuais dos anos 1920 e 1930. Nesse sentido, não creio que haja exagero na afirmação de que sua influência chegou aos anos 1950, por meio de alguns intelectuais filiados ao Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB).14
Anos 1920, uma década de crise Algo da força de Oliveira Viana nos anos 1920 tem a ver com as respostas que ofereceu para a atmosfera de crise daqueles tempos. Seu primeiro livro surgiu dois anos antes de acontecimentos que assumiram na história brasileira o sentido simbólico de um aprofundamento da crise da República agrária. O ano de 1922 foi marcado pelo episódio dos "dezoito do forte de Copacabana", da rebelião de jovens oficiais que iniciou o movimento "tenentista". Esse movimento, que teria seqüência em várias rebeliões, inclusive na de São Paulo, em 1924, culminou em 1926 com a "coluna Prestes". É também de 1922 a famosa Semana de Arte Moderna, em São Paulo, impulsionando uma ruptura com os padrões tradicionais nas artes e estimulando os intelectuais a um encontro com o país real. Surgiu no mesmo ano o Partido Comunista, de pequena influência, mas prenunciando o que viria a ser a Aliança Nacional Libertadora e sua tentativa de insurreição em 1935. Também de 1922, o governo de Artur Bernardes (1875-1955) operou seus quatro anos de gestão por meio do estado de sítio, irredutível a qualquer compromisso com os oposicionistas. Incapaz de evitar o desgaste crescente do sistema oligárquico, o governo seguinte (1926-1930), de Washington Luís (18691957), não teve como evitar que em 1929 a disputa rompesse o sistema, abrindo caminho para a revolução. Ampliada pelas polarizações ideológicas da Europa de
entre-guerras e agravada pela crise econômica de 1929, a controvérsia política se tornaria lugar comum no cenário brasileiro no decênio de 1920 e nos seguintes. Além do conservadorismo, em especial um racismo que alguns anos depois serviria para estigmatizá-lo, Oliveira Viana trazia em Populações meridionais, as bases de uma concepção autoritária do Estado que também pouco contribuiu para a sua popularidade entre os intelectuais, muitos deles com uma inclinação à esquerda. Sua concepção do Estado alimentava-se de um pensamento de longas raízes na política do Império, sobretudo em Paulino José de Sousa, o visconde do Uruguai, e José Antônio Pimenta Bueno, o marquês de São Vicente. Como seus precursores, Oliveira Viana expressava-se a favor de uma centralização do poder que entendia menos como um fim em si e mais como um meio necessário para que o povo fosse educado e organizado para o exercício da democracia. Era, sem dúvida, um autoritarismo, mas que se propunha como provisório, destinado a desaparecer quando atingisse seu objetivo. E, contudo, esse "autoritarismo instrumental" sobreviveu não apenas ao Império. Sobreviveu também à Primeira e à Segunda Repúblicas, estabelecendo-se como parte da cultura política brasileira. No regime militar (1964-1985), conviveu com visões governistas que limitavam o significado da democracia ("democracia relativa") e, nas áreas de oposição, com teorias de uma "democracia substantiva" que, mais do que o respeito em razão das "regras do jogo", punham em destaque seu conteúdo social e econômico. É muito recente na história brasileira a concepção da democracia política como um valor em si, contemporânea dos movimentos democráticos que, nos anos de 1980, dão fim ao regime militar. É também recente o resgate de Oliveira Viana como sociólogo como parte de um movimento de idéias que, em princípio, voltam-se contra as suas premissas ideológicas e políticas. 15 Em todo caso, mesmo como conservador, Oliveira Viana pertencia a uma época de transição, e desejava mudar o país, nisso participando da inconformidade comum aos intelectuais em qualquer tempo em países como o nosso. Apegado ao interior, de pequenas cidades, predominantemente rural, foi o típico intelectual de uma época em que mesmo os grandes aglomerados urbanos como o Rio de Janeiro, São Paulo e Recife (sem esquecer Niterói, capital de seu estado), eram pequenos diante da enormidade do mundo rural. Esse pequeno mundo urbano era ainda menor na visão de Oliveira Viana, fascinado com a vastidão quase infinita de um passado agrário, que ele se dedicou a resgatar em sua obra. Além da atmosfera conservadora em que se formou, há que considerar ainda que ele próprio, como pessoa, parecia infenso ao gosto pelas novidades, tendo vivido quase sempre enfurnado no interior do estado onde nascera. O autor de Populações meridionais não participou do movimento modernista, o
que ocorreu com Gilberto Freyre, Sérgio Buarque e muitos outros. Não se conhece dele nenhuma intenção de rupturas com o passado que renovassem o pensamento e as artes no Brasil. "Alguns modernistas, senão todos, deixavam-se fascinar pela técnica do mundo moderno, pelas máquinas, pelas invenções, pelas grandes metrópoles. Nada disto atraía Oliveira Viana." 16 Por outro lado, vale a pergunta: teria o modernismo que agitava alguns salões de São Paulo força bastante para chegar às vizinhanças de Niterói? Teria o conservador Oliveira Viana motivos para sair de seus cuidados, deixando-se impressionar pelo modernismo? Os modernistas buscaram, ao mesmo tempo, inspirar-se nas formas européias contemporâneas da arte, e resgatar, em nome da autenticidade nacional, valores estéticos e culturais do passado. Eram assim desde o início paradoxais as formas estéticas por meio das quais procuravam reconhecer os sinais de uma época de acelerada modernização da sociedade. Aumentou em alguns círculos a influência dos iconoclastas da cultura, mas os santos barrocos permaneceram venerados em seus nichos. Oscilando entre o cosmopolitismo e o nacionalismo, o modernismo trouxe também o engajamento de muitos intelectuais que ingressariam na cena política nos anos seguintes. Alguns se encaminharam para a direita, no Integralismo, e outros para movimentos de esquerda. Embora pretendessem seguir nas artes o exemplo das vanguardas européias, os modernistas queriam também pesquisar os "alicerces da nacionalidade brasileira na busca de suas maneiras de ser, seus falares, sua diversidade étnica e cultural, e das indefinições que estão na raiz da sua inventividade". Foram, portanto, partícipes de "uma modernidade ideológica e irônica (... ) que mescla o cosmopolita e o nacional, mas que representa, sobretudo, uma opção pelo nacional".17 Embora pudesse ser atraído por essa pesquisa do passado e dos "alicerces da nacionalidade", Oliveira Viana permaneceu alheio ao movimento. Um motivo evidente é o da recusa de suas pretensões renovadoras. Outro motivo possível seria que ele não precisava tornar-se modernista para realizar "uma opção pelo nacional" e uma pesquisa do passado que ele próprio já havia iniciado.
"Nós somos o latifúndio" Expurgadas do racismo e dos excessos de conservadorismo, algumas idéias de Oliveira Viana passaram a integrar, nos decênios de após 1920, o senso comum da intelectualidade. Como assinala Gildo Marçal Brandão, "o ponto de partida de Populações meridionais parece um ovo de Colombo, embora nem sempre tenha sido aceito como tal".18 De fato, algumas de suas idéias passaram a soar como truísmos, esquecidas a sua gênese e o contexto ideológico no qual se formaram.
É o caso, em especial, da definição de Oliveira Viana sobre o papel essencial da grande propriedade da terra na formação da sociedade brasileira. "Nós somos o latifúndio", dizia. É claro que, na intenção do sociólogo, tratava-se não de uma apologia do status quo, mas de um juízo de realidade. Mas, descontado o excesso retórico, que novidade teria tal frase nos ambientes intelectuais dos anos de 1950 e 1960? E, contudo, o êxito de idéias como essa não parece haver aumentado o prestígio do autor, cuja imagem permaneceu tisnada pelo racismo, pelo conservadorismo e pelo autoritarismo. A sociologia de Oliveira Viana expressava uma sensibilidade para o social, apoiada em uma distinção – ou melhor, no reconhecimento de uma inadequação – entre o "país legal" e o "país real", na qual é fácil perceber a influência da França católica e conservadora. Ele assinalava aspectos da realidade do país que a inteligência da Primeira República, embaraçada nos formalismos de seu liberalismo, revelava-se incapaz de perceber. No caso do latifúndio, Viana apontava para a realidade das bases sociais do regime: no Brasil, para ele, liberalismo significa nada mais do que caudilhismo local ou provincial. É dessa visão do desencontro entre o "país político" e o "país real" que vinha o aspecto inovador de sua visão da crise dos anos 1920 e 1930. Procedendo a uma atualização de argumentos já conhecidos no Império, sua crítica tinha como alvo principal o idealismo das elites. Para Oliveira Viana, viveríamos, desde a Independência, "politicamente em pleno sonho", apartados da "noção objetiva do Brasil real". Viveríamos rompidos com nosso passado em nome de ideais abstratos de elites que "criam para (seu) uso um Brasil artificial".19 Segundo a interpretação de Werneck Vianna, é nessa perspectiva que Oliveira Viana sustenta "a precedência do Homo sociologicus sobre o Homo politicus". Essa precedência é raiz comum do pensamento autoritário brasileiro que alimentará também o tronco comum "das interpretações que buscam afirmar a nossa singularidade como país". Prossegue Werneck Vianna: "na imensa área dos latifúndios agrícolas todas as demais classes sociais e os próprios centros urbanos se encontram submissos às influências e ao prestígio do senhoriato local – eis, aí, a marca da singularidade brasileira e o motivo pelo qual "somos inteiramente outros" em relação à formação das sociedades européias e da americana. Somos inteiramente diferentes mesmo em relação aos argentinos, que desconheceram "a função centrípeta das nossas fazendas autárquicas".20 Considerado seu débito com os pensadores do Império, a novidade de Oliveira Viana estaria em dar a perceber que aqueles viram o poder dos proprietários de terra a partir do ângulo político, não do ângulo social. Viram o poder dos proprietários por meio dos problemas que estes criavam para o poder central e para a preservação da
liberdade daqueles submetidos ao seu domínio. Em face dessa tradição que o influencia fortemente, Oliveira Viana guardava, porém, a originalidade de sua visão sociológica. Sem ignorar os temas da ordenação jurídica e institucional, presente em O ocaso do Império, e no cuidado estratégico com que discute as leis sociais do Estado Novo, sem ignorar os temas institucionais, seu ângulo de preferência é a sociedade. Como disse certa vez, ele não podia concordar com os que achavam que o Estado pode tudo. Para ele, se a sociedade não existe como capacidade de representação, existe como problema que o Estado não pode ignorar. Seu ângulo de preferência é o do "país real". Oliveira Viana foi o primeiro a formular o conceito do latifúndio como base da sociedade brasileira. O latifúndio existia na colônia como fato, não como conceito. E mesmo quando, no Império, veio a existir como conceito, o foi em caráter excepcional, na obra de Joaquim Nabuco, dedicada essencialmente ao estudo (e ao combate) da escravidão. Mas, se o conceito é tardio, o reconhecimento do fato nasceu com o país. Em fins do século XVI, Gabriel Soares de Sousa (1540?-1591) dizia que "há na Bahia mais de cem moradores que têm cada ano de mil cruzados a até cinco mil cruzados de renda, e outros que têm mais (...), os quais tratam suas pessoas mui honradamente, com muitos cavalos, criados e escravos, e com vestidos demasiados, especialmente as mulheres". Os luxos desses proprietários de muitas posses de terra são também mencionados por José de Anchieta, que diz que todos têm "muitos escravos e fazendas de açúcar". Fernão Cardim (1540-1625) fala da hospitalidade dos senhores de engenho, sempre de casa cheia, "parecem condes e gastam muito". É famosa na historiografia a frase de Antonil (1649-1716), de 1710: "O ser senhor de engenho é título a que muitos aspiram, porque traz consigo o ser servido, obedecido e respeitado de muitos". Antigo na realidade dos fatos, o latifúndio é, porém, relativamente recente como base de explicação sociológica e histórica da sociedade. Uma descoberta intelectual que, depois de Oliveira Viana, tornou-se, embora com modificações, amplamente aceita. O que ocorreu de um modo tão generalizado que, para muitos, tornou-se difícil aceitar que realmente fosse uma novidade. Como se o conceito tivesse vindo unto com o fato empírico, passou-se a ignorar a primazia de Oliveira Viana ao estabelecer uma premissa fundamental da sociologia brasileira. Para ele, o latifúndio era o "grande domínio", concebido à maneira da antigüidade, como "fazenda autárquica", e ressaltando, como nos antigos, o poder do paterfamilias. No clã familiar rural estaria a origem do "clã colonial", que Oliveira Viana entendia como instituição social nascida das circunstâncias brasileiras, numa época em que já se encontrava decadente em Portugal. Depois que na colônia o poder público fragmentou-se, pulverizou-se e por fim dissolveu-se, "o clã rural foi a
unidade social agregadora por excelência na colônia". Tornou-se a base da sociedade colonial e, no país independente, de uma peculiar estrutura de poder que encontrará no Império e na Primeira República sua forma exemplar. 21 Nesse sentido, o latifúndio tornou-se "o grande medalhador da sociedade e do temperamento nacional". O sociólogo conservador foi seguido nesse ponto pelo marxista Caio Prado Júnior, para quem o clã era "algo específico de nossa organização", ou seja, de nossa sociedade. Para o marxista, como para o conservador, o clã surgiu numa época colonial em que à autoridade pública "fraca e distante" não restara outro recurso senão reconhecê-lo e adaptar-se. Dava-se, assim, nas palavras de Caio Prado, a "aristocratização do grande proprietário". Assim como incorporada por Caio Prado Jr., "a linha traçada por Oliveira Viana sobre o problema do clã sobreviveria, através da obra de Gilberto Freyre, na concepção de uma sociedade colonial predominantemente patriarcal".22 A novidade de Oliveira Viana foi admitida com facilidade por Caio Prado Jr. e Gilberto Freyre, estendendo-se no travejamento interior de suas obras, talvez porque fossem mais próximos dele no tempo, ainda lembrados de sua influência nos anos 1920. O "grande domínio" está embutido no conceito da "grande família patriarcal" dos engenhos de açúcar estudados por Gilberto Freyre em Pernambuco, "forma sociológica" que, adverte o autor, encontra-se também em outras regiões, não apenas nos engenhos do Nordeste. Quanto a Caio Prado, em suas críticas à historiografia tradicional, abriu exceção apenas para Oliveira Viana, que, em suas palavras, "foi o primeiro, e o único até agora, a tentar uma análise sistemática e séria da nossa constituição econômica e social no passado". Modificando o significado do latifúndio segundo suas próprias preferências teóricas, Caio Prado e Gilberto Freyre passaram a ver nele a base da sociedade. Assim como na "grande família patriarcal" do primeiro, o latifúndio está embutido também na economia da plantation de Caio Prado Jr. À semelhança do sul dos Estados Unidos, Caio Prado via na plantation a base da economia do café de São Paulo, voltada para o mercado externo, como também o era a economia do açúcar no Nordeste.
Oliveira Viana e Joaquim Nabuco Quando Oliveira Viana despertou para suas descobertas sobre a sociedade brasileira, o país já havia mudado muito mais do que as preferências da elite para conhecê-lo. Se o pensamento do Império se inclinava para a ordenação jurídico-institucional, não quer isso dizer que ignorasse o plano do social. Quanto ao social, importa
ressaltar, porém, que a realidade que os pensadores do Império viam de essencial não era a propriedade da terra, mas a propriedade dos escravos. Até 1850, o que viam de essencial, mais do que a propriedade, era o tráfico dos escravos. Essas questões dominaram as atenções dos melhores pensadores do país até 1888, um ano antes do fim do Império. É esclarecedor, nesse sentido, comparar Nabuco e Oliveira Viana. Como historiador e como abolicionista, Nabuco é representativo do que havia de mais avançado e moderno no pensamento de sua época, tanto na perspectiva urídico-política que então prevalecia quanto na perspectiva social que mais o preocupava. Sua sociologia do senhor e do escravo pode ser tomada como precursora da sociologia do latifúndio (Oliveira Viana) e da sociologia da casa-grande e da senzala (Gilberto Freyre). Mas foi com o olho na questão central da escravidão que ele mencionou o poder autocrático do senhor de escravos no seu "feudo" e do "isolamento" que este produzia na sociedade. Foi na perspectiva da destruição da escravidão e da "obra da escravidão" que mencionou a "grande propriedade". Lembremos uma vez mais a reflexão de Nabuco: "O Norte todo do Brasil há de recordar, por muito tempo, que o resultado final daquele sistema (escravocrata) é a pobreza e a miséria do país. (...) Como se sabe, o regime da terra sob a escravidão consiste na divisão de todo o solo explorado em certo número de grandes propriedades. Esses feudos são logo isolados (...). A divisão de uma vasta província em verdadeiras colônias penais, refratárias ao progresso (...) não pode trazer benefício algum permanente à região parcelada, nem à população livre que nela mora, por favor dos donos da terra, em estado de contínua dependência".23 Embora presente no pensamento do grande abolicionista, a figura do grande proprietário de terras aparece, porém, no conjunto de sua obra, sempre misturada com a figura do proprietário de escravos. Não podia, aliás, ser de outro modo. Nabuco entendia que a abolição era o primeiro passo para a criação de uma sociedade livre, de um povo, de uma nação. O segundo passo estaria no combate ao que chamava a "obra da escravidão", uma perspectiva que se abriria depois da abolição, envolvendo esforços em prol da educação, da melhoria das condições sanitárias e das condições de vida do povo. Nabuco mencionou também os pequenos proprietários, preocupação das elites governantes desde o Primeiro Reinado, com algumas tentativas de colonização com imigrantes europeus no sul. Considerou ainda a necessidade da imigração, e acreditava, como quase todos em seu tempo, numa estratégia que conduziria ao "branqueamento" do país. Dentre os pensadores do Império, talvez tenha sido ele quem mais apontou os grandes temas que alimentarão o pensamento brasileiro que viria depois dele, em Euclides da Cunha, Oliveira Viana, Gilberto Freyre, Caio Prado
Jr. e tantos outros. Se José Bonifácio antecipou as idéias do século XIX, Nabuco antecipou as do século XX. De tudo isso, o mais certo, porém, é que Nabuco foi, sobretudo, um grande abolicionista, um homem do seu tempo. Em seu esforço intelectual e político, o que ele via de fundamental era a necessidade da universalização do trabalho livre como o ponto de partida para a construção da sociedade brasileira com a qual sonhava. Desse ponto de vista, a novidade da sociologia de Oliveira Viana ao distinguir o latifúndio pode ser tida como um reflexo da Abolição. Um reflexo, portanto, da vitória de Nabuco e dos abolicionistas. Com a Abolição, a base da riqueza e do poder, em vez do escravo, passou a ser a terra. Foi essa a raiz da descoberta intelectual de Oliveira Viana. O racismo do autor de Populações meridionais, mais visível no meio intelectual da década de 1930 do que já o fora nos anos 1920, um racismo do qual se afastou depois, embora sem abandoná-lo de todo, acabaria por empanar o brilho das suas inovações intelectuais, até o ponto de que estas quase se perdessem nos confrontos ideológicos da época. Esquentando as lutas políticas cada vez mais na Europa, com o surgimento do fascismo e do nazismo, muitos intelectuais passaram a expressar adesões democráticas e de esquerda, afastando-se do racismo os que porventura o tivessem aceitado no passado. Além dos reflexos da conjuntura européia, a instabilidade política no país era notória: a derrota da rebelião de São Paulo em 1932, os freqüentes confrontos entre comunistas e integralistas, a rebelião comunista de 1935, e, finalmente, a ditadura em 1937, depois da qual os integralistas ainda tentaram uma rebelião em 1938. Não é difícil compreender que, como diz Antonio Candido, nos anos 1930, "a obra por tantos aspectos penetrante e antecipadora de Oliveira Viana já parecia superada, cheia de preconceitos ideológicos". Decaindo a atração de Oliveira Viana, cresceu a dos ensaístas que surgiram nos anos 1930, sobretudo Gilberto Freyre.
O Estado organizador Nas suas concepções políticas, Oliveira Viana recebeu as influências liberais e conservadoras do Império e mudou-lhes o foco. Nisso, teve a ajuda de seu mestre Alberto Torres, um republicano liberal que, porém, era contrário ao federalismo. Para Alberto Torres, como para São Vicente e Uruguai, a preservação da unidade nacional, assim como a proteção da liberdade individual, não poderia vir do poder privado, representado pelos chefes das oligarquias provinciais em que se dividia o país. Assim como Nabuco acreditava que a abolição só poderia vir do alto, também eles acreditavam que a unidade nacional e a liberdade individual só poderiam ser
preservadas a partir de iniciativas do poder central. Sob a influência de Alberto Torres, Oliveira Viana propugnava antes de tudo pela restauração do Estado central que considerava destruído pelo federalismo repúblicano. Incorporou também de Alberto Torres tendências ao estatismo e ao nacionalismo, ausentes do pensamento dos liberais do Império. Junto com a crença de origem imperial no papel do Estado como garante da unidade nacional, acrescentava a crença no Estado demiurgo. Deverá tornar-se típica do pensamento de Oliveira Viana a convicção de que, se o Estado não criou a sociedade, deveria ser capaz de moldá-la, organizá-la, a partir da matéria caótica preexistente. Como é nítido em Uruguai e São Vicente, o pensamento dos conservadores do Império era de corte eminentemente jurídico, político e institucional. Concentravase nas questões relativas à organização institucional e ao papel centralizador e unificador da monarquia. A pedra de toque do sistema eram as funções do poder moderador ou do "poder pessoal" do Imperador. O Estado, segundo Uruguai, devia ser entendido, em vez do inimigo a ser combatido pelos liberais, como o principal fator de transformação política que, protegendo a liberdade, criava o espírito público. Era o pedagogo da liberdade, cabendo-lhe educar o povo para a participação na sociedade política. Onde não havia, como no Brasil, tradição de autogoverno, caberia ao Estado desenvolvê-la. Como bem observa José Murilo de Carvalho, que reconhece em Uruguai "ecos inconfundíveis de Tocqueville", o pressuposto do conservadorismo do visconde era a crença na liberdade individual. Não obstante sua confiança no Estado, "sua utopia política continuava sendo a sociedade liberal e a política liberal". Assim, a ênfase na centralização estatal não envolvia um autoritarismo como um fim em si.24 Também por isso, não era alheia, no campo das idéias, a certos representantes do liberalismo monarquista. Distante de Nabuco em muitos aspectos, em especial em sua descrição da estrutura social, Oliveira Viana se aproximou da sua sociologia política. Distanciava-se do abolicionista porque este era um federalista, embora, por força das realidades da vida, tivesse que ser, sobretudo, um monarquista. Como se sabe, Nabuco não seguiu o federalismo que se tornou dominante entre muitos dos seus companheiros de geração, como Ruy Barbosa (1849-1923), abrindo caminho para o republicanismo dos últimos anos do Império. Manteve, por certo, ao longo da vida a sensibilidade liberal, mas, quando escreveu Um estadista do Império, aproximou-se dos conservadores no reconhecimento de uma realidade que entendia como inexorável. Embora tivesse preferido, no campo das idéias, o federalismo, o "poder pessoal" do Imperador pareceu a Nabuco, quando assumiu as funções de historiador, tão
necessário para o centralismo do Império quanto este para a unidade da Nação. Para Nabuco, o "poder pessoal" de D. Pedro II se explicava pelo que considerava uma das virtudes do Imperador: sua capacidade de ver a realidade do país e de agir em conseqüência. E a realidade era a incapacidade da sociedade, corrompida pela escravidão, para se fazer representar. Tudo o mais, na política e no sistema institucional do Império, eram conseqüências. Em face dessa visão, a novidade de Oliveira Viana estaria em que a necessidade de centralização do poder nasceria já, não da escravidão, mas do latifúndio e das circunstâncias que este criava à sua volta. Em Populações meridionais, Oliveira Viana buscou na história da colônia e do Império as raízes do fenômeno que o preocupava no presente do país independente e republicano. Se Nabuco dizia que o "feudo" do senhor escravocrata conduzia ao "isolamento", Oliveira Viana quase lhe repete as palavras: o latifúndio "isola o homem", tornando-o incapaz de relações associativas. No latifúndio, "a solidariedade vicinal se estiola e morre", e, por isso, a sociedade brasileira é fundamentalmente "insolidária". E assim tudo se passa "como se não existisse a sociedade". Para Oliveira Viana, os latifúndios eram pequenos mundos que simplificavam a estrutura social, produzindo internamente diferenciações sociais que se limitavam aos senhores e seus dependentes. Só havia solidariedade dentro do clã fazendeiro, do clã parental, uma forma espúria de solidariedade, que gerava a patronagem e a política de clã. As instituições liberais do Império (e, por extensão, as da República federativa) serviam apenas para acobertar, como uma espécie de contrafação do selfgovernment americano, o domínio do caudilho. Oliveira Viana voltava, assim, ao tema do "país sem povo", mas daria um molde novo à velha idéia. Em sua visão, caberia ao Estado organizar a sociedade. Assim como os conservadores do Império acreditavam criar por meio do Estado cidadãos aptos para a democracia, Oliveira Viana queria, por intermédio do Estado organizar a sociedade amorfa. Não que isso devesse significar que o Estado "pode tudo", pois, para ele, que sempre preferiu começar pelo "país real", a sociedade existe, como, aliás deixou claro em um projeto de enquadramento sindical que escreveu em aneiro de 1940. Ele queria criar, sob impulsos do Estado, uma sociedade solidária com o barro da sociedade "insolidária". O fato, porém, é que chegava ao mesmo ponto de Nabuco, quanto ao sistema institucional: a incapacidade da sociedade de se fazer representar. Era também o mesmo ponto dos conservadores do Império: reforçar o poder central para manter a ordem e assegurar a liberdade individual. Para assegurar a unidade nacional, caberia ao Estado organizar a sociedade, ensiná-la a se organizar, a praticar a solidariedade. Não é de surpreender o êxito de Populações meridionais nos tumultuados anos
1920, que prenunciavam o fim da República agrária, em que já as tendências prevalecentes da opinião eram de crítica ao liberalismo e ao federalismo. A unidade nacional tornara-se, uma vez mais, um tema aberto à luz do dia. Com as rebeliões tenentistas e os freqüentes desacertos entre as oligarquias, as ameaças à ordem deixavam de ser simples figura de retórica. Nos anos de crise da República agrária, a teoria de Oliveira Viana oferecia um fundamento racional e plausível para as alternativas que se vislumbravam. Contrastando com as formas existentes de organização do poder, ele parecia responder a sentimentos predominantes na opinião, em especial nas cidades.
Centralismo e corporativismo Populações meridionais do Brasil antecipou-se, nos anos 1920, ao que deveria vir nos anos 1930 e 1940, quando o país retomaria o centralismo, num crescendo que o levaria à ditadura de Getúlio Vargas, no Estado Novo. Apesar das aparências mussolinianas, e mesmo de uma aproximação momentânea com a Alemanha nazista, o Estado Novo foi uma ditadura ao estilo luso-brasileiro. Uma ditadura de estilo salazarista, que atendia às exigências corporativistas que pareciam generalizadas não apenas nas tendências prevalecentes na conturbada Europa, mas também no solo da América ibérica. Nos anos 1930, ao mesmo tempo que o Brasil caminhava para o Estado Novo, o corporativismo se tornava um traço notável do México do general Lázaro Cárdenas (1895-1970), junto com o estatismo e o nacionalismo. Oliveira Viana reconhecia tendências semelhantes também na América do Norte, no New Deal de Franklin D. Roosevelt (1882-1945), o que lhe permitiu, em seus escritos moldados no espírito do iberismo, manter como uma constante o fascínio da democracia anglo-saxônica. Ao aceitar em 1932 o convite para trabalhar no Ministério do Trabalho – um ministério recém-criado e ao qual Getúlio Vargas atribuía grande relevância – , o sociólogo passava a servir à construção de um Estado que ajudara a conceber em teoria. Contribuiu para as leis sociais, buscando, nos moldes do corporativismo, organizar empresários urbanos e trabalhadores urbanos. Os do campo, onde tinha vigência o latifúndio, teriam que ficar para depois. Se na cidade as corporações ajudariam a regular os conflitos já existentes, no campo, regulado pela patronagem, serviriam apenas para criar conflitos onde eles não existiam. Evidentemente, no corporativismo, organizar a sociedade significa também controlar a sociedade, reforçando, desse modo, o poder do Estado, no qual o governo deveria distinguir-se da administração. Essa distinção, de origem francesa no pensamento do visconde do Uruguai, era freqüentemente repetida por Oliveira Viana
em "seu modelo de sociedade sindical e corporativa: centralização política, descentralização funcional".25 Assim como os conservadores liberais do Império apoiavam a centralização, mas não convertiam o autoritarismo em um fim em si, Oliveira Viana apoiou um governo ditatorial, mas insistiu o tempo todo que se tratava de uma democracia social. [<<26]
Bairro industrial do Brás, em São Paulo, nas primeiras décadas do século XX: para Oliveira Viana, corporações de empresários e trabalhadores ajudariam a regular conflitos.
José Murilo de Carvalho bem assinala que Viana não apoiava a ditadura pela ditadura; antes se enquadrava "na visão ibérica de inspiração católica", cujo mais ilustre precursor foi José Bonifácio, "uma visão leiga da sociedade e da política, embora informada por valores ligados à tradição católica medieval".26 A inspiração católica, Oliveira Viana a reconhecia explicitamente, particularmente em seus textos de política social: a Rerum Novarum e a Quadragesimo Anno teriam sido os principais guias de sua atuação no Ministério do Trabalho. Era assim de concepção iberista, de raízes católicas, rurais, paternalistas, seu "ideal de sociedade fundada na cooperação, na incorporação, no predomínio do interesse coletivo sobre o individual, na regulação das forças sociais em função de um objetivo comunitário".27 O iberismo de Oliveira Viana, contudo, não o impediu de perceber as mudanças do mundo contemporâneo. Nele, o corporativismo, o sindicalismo e a legislação social eram a resposta para a questão de "como organizar este mundo dentro da utopia de uma sociedade harmônica, incorporada, cooperativa". "A regência da
orquestra continuava sendo tarefa do Estado, com a diferença de que agora sua ação ordenadora e educadora não se exerceria sobre os irrequietos clãs rurais, mas sobre os sindicatos, corporações e outras organizações civis. Ao Estado caberia até mesmo forçar classes e categorias sociais a se organizar, pois a organização seria a única maneira de se exercer a cidadania no mundo moderno." Assim como no Império, "o novo Estado não deixa de ser o grande patriarca benevolente velando sobre o bemestar da nova grande família brasileira". 28 Evidentemente, o corporativismo de Estado que organiza a sociedade, organiza, sobretudo, o Estado. O corporativismo de Estado é, no essencial, a submissão organizada da sociedade ao Estado.
1. Ver: B OMENY, Helena Maria; COSTA , RIBEIRO , Vanda Maria; S CHWARTZMAN, Simon. Tempos de Capanema. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2000. Além do papel aglutinador de Gustavo Capanema no Ministério da Educação, Daniel Pécaut ressalta o da revista Cultura Política, sob a direção de Lourival Fontes, que deu espaço, além de conservadores como Francisco Campos e Azevedo Amaral, também para Gilberto Freyre, Guerreiro Ramos, Vieira Pinto, Graciliano Ramos e Nelson Werneck Sodré. Ver: PÉCAUT,Daniel. Os intelectuais e a política no Brasil. São Paulo: Ática, 1990. p. 69-70. 2. Acompanho Antonio Candido quanto a Casagrande & senzala, de Gilberto Freyre, Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda, e Formação do Brasil contemporâneo, de Caio Prado Jr. A esses livros acrescento Populações meridionais, de Oliveira Viana, nesse caso acompanhando outros estudiosos que vêm resgatando a importância desse autor no pensamento brasileiro; cf. a introdução de Antonio Candido a Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda (26. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2004). 3. Por razões políticas e ideológicas, Oliveira Viana é um dos autores mais controversos dentre os "intérpretes do Brasil". Dante Moreira Leite considera que "a obra de Oliveira Viana não resiste a nenhuma crítica", e entende alguns de seus raciocínios como formas de "delírio". Polemiza assim com Wilson Martins, que atribui a Oliveira Viana "toda a moderna orientação de nossos estudos de sociologia e de psicologia social", e associa suas propostas dos anos 1920 ao "desenvolvimentismo" dos anos 1950; cf. LEITE, Dante Moreira. O caráter nacional brasileiro. 6. ed. São Paulo: Unesp, 2002. p. 290-304; Dante acompanha Nelson Werneck Sodré, em A ideologia do colonialismo: seus reflexos no pensamento brasileiro. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1961. 4. CARVALHO, José Murilo de. A utopia de Oliveira Viana. In: B ASTOS, Elide Rugai; MORAES, João Quartim de (Orgs.). O pensamento de Oliveira Viana. Campinas: Editora da Unicamp, 1993. p. 28. 5. SKIDMORE,Thomas. Preto no branco. Raça e nacionalidade no pensamento brasileiro. 2. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989. p. 45. 6. W EHLING, A invenção da história, cit., ver caps. 9 e 10. 7. Sílvio Romero, apud A LENCAR, José Almino de. O Brasil é fatalmente uma democracia: Sílvio Romero. Tempo Brasileiro, 145, abril/junho de, 2001. Ver R OMERO , Sílvio. Introdução a doutrina contra doutrina. São Paulo: Companhia das Letras, 2001. p. 72. 8. BONFIM, Manuel. O Brasil na América, apud Flora Sussekind, Introdução a Manuel Bonfim, A América Latina. In: SANTIAGO (Org.) Intérpretes do Brasil, cit., v. 1, p. 615. 9. José Murilo de Carvalho, que reconhece tendências culturalistas em Oliveira Viana, assinala também que esse autor "esboçou uma crítica de Franz Boas, o mestre de Gilberto Freyre e o responsável pela guinada nos estudos antropológicos pela ênfase dada à cultura em substituição à raça"; J. M. de Carvalho, Introdução a: VIANA, Oliveira. Populações meridionais do Brasil. In: SANTIAGO (Org.). Intérpretes do
Brasil, cit., v. 1, p. 908. 10. BRANDÃO, Gildo Marçal. Linhagens do pensamento político brasileiro. Tese de Livre Docência, Departamento de Ciências Políticas, Universidade de São Paulo, agosto de 2004, p. 42. Sobre o pensamento de Oliveira Viana, ver também J. M. de Carvalho, Introdução a: V IANA, loc. cit., p. 899-914, e, do mesmo autor, A utopia de Oliveira Viana, op. cit. Ver ainda, de Maria Hermínia Tavares de Almeida, Oliveira Viana – instituições políticas brasileiras. In MOTA, Lourenço Dantas. Introdução ao Brasil – um banquete no trópico. São Paulo: Senac, 1999. 11. João Cruz Costa. Contribuição à história das idéias no Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio, 1956, p. 441. 12. Oliveira Viana seguiu, provavelmente, em sua primeira percepção das regiões brasileiras, intuições de Joaquim Nabuco, no Abolicionismo, e de Euclides da Cunha, n 'Os sertões e nos escritos sobre a Amazônia. 13. Ver: Carvalho, Introdução a: V IANA, loc. cit., p. 907. 14. Guerreiro Ramos, crítico do racismo, ressalta, porém, em Oliveira Viana, a adesão a um critério nacional para o estudo das realidades brasileiras. 15. Vem sendo feito por diversos autores, entre os quais Wanderley Guilherme dos Santos, Bolívar Lamounier, José Murilo de Carvalho e Luiz Jorge Werneck Vianna. Enquanto alguns desses autores colocam a ênfase na dimensão político-institucional, mencionando um "autoritarismo instrumental", outros preferem uma perspectiva civilizacional. Diferentemente de Wanderley Guilherme dos Santos, que fala de um "autoritarismo instrumental", Werneck Vianna fala de um "iberismo instrumental", contrapondo o "americanismo" e o "iberismo", retomando notas do ensaísmo ibero-americano e o argumento de Richard Morse em Espelho de Próspero, cit. 16. CARVALHO, A utopia de Oliveira Viana, loc. cit., p. 34. 17. Ver: PÉCAUT, op. cit., p. 26,-27. 18. BRANDÃO, op. cit., p. 34 . 19. VIANNA, Luiz Jorge Werneck. Americanistas e iberistas: a polêmica de Oliveira Viana com Tavares Bastos. In: BASTOS, E. R.; MORAES , J. Q. de (Orgs.), op. cit., p. 353. 20. Ibidem, p. 375. 21. A importância do latifúndio em Oliveira Viana é registrada pelos vários autores que participam do livro coletivo organizado por BASTOS, Elide Rugai; MORAES, João Quartim de (Orgs.). O pensamento de Oliveira Viana, op. cit. 22. Segundo Arno Wehling, seguiram Oliveira Viana, na afirmação de que, na colônia, a sociedade e particularmente o clã foram mais poderosos do que o Estado português aqui instalado, Gilberto Freyre, Nestor Duarte, Caio Prado Jr., Nelson Werneck Sodré e Guilherme de Aragão, por diferentes motivos; cf. WEHLING. O Estado colonial na obra de Oliveira Viana. In: B ASTOS, E. R.; MORAES, J. Q., op. cit., p. 74-75. 23. NABUCO, O abolicionismo, cit., p. 102. 24. CARVALHO, A utopia de Oliveira Viana, loc. cit., p. 22 e seguintes. 25. CARVALHO, A utopia de Oliveira Viana, loc. cit., p. 20. 26. Ibidem, p. 24. 27. Ibidem. 28. Ibidem, p. 26 e seguintes.
PARTE V SEGUNDA REPÚBLICA
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Gilberto Freyre: elogio da mestiçagem.
CAPÍTULO 12 GILBERTO FREYRE O POVO MESTIÇO
Os netos de teus mulatos e de teus cafuzos e a qua rta e quinta gerações de teu sangue sofredor tentarão apagar a tua cor! E as gerações dessas gerações quando apagarem a tua tatuagem execranda, não apag arão de suas almas, a tua alma, negro! JORGE DE LIMA
Todo brasileiro, mesmo o alvo, de cabelo louro, traz na alma, quando não na alma e no corpo (... ) a sombra, ou pelo menos a pinta, do indígena ou do negro. No litoral, do Maranhão ao Rio Grande do Sul, e em Minas Gerais, principalmente do negro. GILBERTO FREYRE
Na "era Vargas", como no Império e na Primeira República, a literatura e a política andaram juntas. Continuávamos depois de 1930 a rica tradição de políticos que se convertiam em escritores e, sobretudo, de escritores cuja criação estava sempre nas fronteiras da política. Na República de Vargas, a forma literária privilegiada por esses escritores-políticos foi "o ensaio de interpretação do Brasil", "um gênero de grande presença na cultura brasileira".1 Para Antonio Candido, essa "forma bem brasileira de investigação e descoberta do país" permitiu descrever "amplos panoramas da sociedade e da cultura brasileiras com base em modelos vindos da antropologia, da história, da geografia e da sociologia".2 Combinando um variado ecletismo com traços poéticos e memorialísticos, os ensaístas cumpriram o papel fundamental de abrir os olhos dos intelectuais para a realidade brasileira. Gilberto Freyre foi o mais importante ensaísta dos anos 1930 e 1940, tomando lugar de preeminência que, nos anos 1920, havia sido de Oliveira Viana. Eis a avaliação de Monteiro Lobato, ele próprio escritor e político, sobre os três grandes nomes de seu tempo: "Súbito, um relâmpago. Explodem os Sertões. (...) Depois emergiu Oliveira Viana, e foi novo espanto. E por fim aparece Gilberto Freyre. (...) E Gilberto Freyre tornou-se o Grande Desasnador".3 Lobato se referia a Casa-grande & senzala, cujo significado político-intelectual mereceu de Antonio Candido o seguinte comentário: "O jovem leitor de hoje não poderá talvez compreender, sobretudo em face dos rumos tomados posteriormente pelo seu autor, a força
revolucionária, o impacto libertador que teve este grande livro". Por sua técnica expositiva, Casa-grande & senzala "coordenava os dados conforme pontos de vista totalmente novos no Brasil de então". E prosseguia Candido afirmando que essa obra "é uma ponte entre o naturalismo dos velhos intérpretes da nossa sociedade, como Sílvio Romero, Euclides da Cunha e até mesmo Oliveira Viana, e os pontos de vista mais especificamente sociológicos que se imporiam a partir de 1940".4
Os "intérpretes do Brasil" e a política As décadas de 1920 e 1930 ocupam lugar especial na história das mentalidades brasileiras. No campo da música, as iniciativas de Mário de Andrade propiciavam estudos sobre o folclore e iniciativas de colaboração com a música popular. Foi também nessas décadas que o samba se consolidou como estilo nacional, evidenciando afinidades de gosto e sensibilidade entre pessoas de classes e etnias diferentes. Nesse sentido, é emblemático o encontro de 1926, no Rio de Janeiro, entre o músico erudito Heitor Villa-Lobos e os ensaístas Gilberto Freyre e Sérgio Buarque com os músicos populares negros Pixinguinha (Alfredo da Rocha Vianna Júnior, 1897-1973), Donga (Ernesto Joaquim Maria dos Santos, 1890-1974) e Patrício Teixeira (1893-1972).5 Embora o contato entre negros e brancos no campo da música venha de há mais tempo, esse encontro é significativo do início de uma época de aproximações entre as elites e o povo, depois de longo período de freqüentes expressões de desprezo por negros e mestiços entres os intelectuais. 6 Na época que se iniciava, alguns se empenhariam, como Mário de Andrade e Gilberto Freyre, para reconhecer o Brasil como um país de cultura plural, onde são fundamentais as contribuições negra e mestiça, além de brancos e índios.7 Naqueles anos de crise que culminariam na revolução e, depois, na ditadura, o pensamento brasileiro deu a público obras inspiradoras para o entendimento do passado, bem como para a compreensão da nova época que se abria para a modernização do Estado e da sociedade. Mencionei em capítulos anteriores alguns desses ensaios exemplares de Oliveira Viana, Gilberto Freyre, Caio Prado e Sérgio Buarque de Holanda.8 Considerado em conjunto, o ensaísmo daquelas décadas repetiu, com diapasão próprio, uma façanha que só teve precedente de igual relevo no romantismo e no indianismo de meados do Império. Inovou até mesmo em relação aos grandes precursores que foram Nabuco e Euclides, cujas obras, pelos aspectos mais profundos de sua significação política, estiveram vinculadas a grandes eventos. Seus grandes ensaios foram relatos de campanhas (Canudos) ou propostas para a
orientação da opinião pública diante da necessidade de decisões de Estado (Abolição). Os ensaístas das primeiras décadas do século XX, por seu turno, introduziram no pensamento brasileiro a singularidade de buscar caminhos de interpretação global da história e da sociedade brasileiras. Em vez da orientação diante de grandes eventos, buscavam a compreensão histórica de toda a sociedade. Como para os intelectuais do Império e da Primeira República, a política foi sempre uma atração para os "intérpretes do Brasil". Gilberto Freyre foi chefe de gabinete do governo de Estácio Coimbra (1872-1937), em Pernambuco, derrubado pela revolução de 1930. Ter participado do último governo da velha República em seu estado custou-lhe um período de exílio em Portugal e nos Estados Unidos, onde esteve como professor visitante da Universidade Stanford. Depois da queda do Estado Novo, em 1945, elegeu-se deputado federal (1946-1950), quando tomou a iniciativa de propor ao Congresso a fundação do Instituto Joaquim Nabuco (1949), com sede em Recife, sua terra, e no âmbito do Ministério da Educação. Embora tenha se retirado da política depois de seu período parlamentar, Gilberto Freyre se manteve presente na imprensa, como articulista, e suas opiniões conservadoras lhe valeram um afastamento dos intelectuais de esquerda. Em relação a estes, maior terá sido talvez o distanciamento gerado por seus contatos com o governo de Portugal, sob o regime salazarista. Na época, suas idéias sobre o "lusotropicalismo" foram entendidas por muitos como um elogio do colonialismo. Caio Prado Jr. ingressou em inícios dos anos 1930 no Partido Comunista, tendo participado em 1935 do movimento da Aliança Nacional Libertadora, o que lhe valeu, como a muitos outros, um período na prisão. Exilou-se em Paris e aproveitou o tempo para cursos na Sorbonne, em 1937 e 1938. Voltou ao Brasil em 1939 e fundou a Editora Brasiliense em 1942. Foi deputado estadual em São Paulo de 1946 a 1947, quando o Partido Comunista foi posto na ilegalidade. Foi também fundador e editor da Revista Brasiliense (1955-1964), de importante influência no pensamento da esquerda da época. Sérgio Buarque de Holanda, também paulista de nascimento (sua família mudouse para o Rio de Janeiro em inícios dos anos 1920), foi menos ligado à política do que seus colegas. Em 1929, foi representante de um jornal brasileiro em Berlim, onde assistiu a aulas na universidade, embora sem regularidade. Mas isso foi o bastante para que tomasse contato com a cultura alemã da época, em que primavam nomes como os de Friedrich Meinecke (1862-1954) e Max Weber (1864-1920). Regressando ao Brasil em 1931, voltou também ao jornalismo. Dedicou-se à pesquisa histórica e à atividade de docente universitário, sempre com enorme êxito. Embora mais distante da política do que outros ensaístas, ele tinha preferências por idéias socialistas democráticas, que o levaram, quase ao fim da vida, a assinar a ata
de fundação do Partido dos Trabalhadores, em 1979. Esses "intérpretes do Brasil" eram filhos de famílias tradicionais, alguns deles ligados à grande propriedade da terra, o que é fácil de entender no Brasil agrário e tradicional no qual nasceram. Assim como Oliveira Viana, também Gilberto Freyre e Caio Prado Jr. eram de famílias de fazendeiros e proprietários de terras, que diferiam entre si mais pela região e pela atividade setorial do que pelo status que ocupavam na sociedade. Gilberto Freyre gostava de se lembrar dos velhos engenhos de açúcar de sua família em Pernambuco. Caio Prado Jr. era de uma rica família de fazendeiros de café de São Paulo. Mais distantes da terra parecem ter sido as ligações de Sérgio Buarque de Holanda, um homem de classe média tradicional que se dedicou à crítica literária nos jornais do Rio de Janeiro e de São Paulo, onde se fixou, como professor universitário. Não obstante a origem social tradicional desses pensadores, o maior mérito de suas primeiras obras é ter oferecido uma visão moderna da sociedade brasileira. Sempre apegados à pesquisa histórica, eles nos legaram interpretações de nossa tradição, em imagens que cobrem a formação do país desde as origens. Suas obras, em especial as primeiras, que me interessam aqui, tornaram-se leitura obrigatória para quem queira compreender a formação do país agrário e sua transformação em país urbano e industrial. Abriram novos caminhos para gerações de intelectuais e se consagraram como os intérpretes mais significativos de nossa tradição e de nossa modernidade, sendo reconhecidos hoje, a justo título, como nossos clássicos modernos.
O passado e o povo A pequena diferença de tempo que separa Oliveira Viana, Gilberto Freyre, Caio Prado e Sérgio Buarque de Holanda torna possível entender afinidades e divergências entre autores que foram, afinal, frutos de uma mesma época. Não poderiam deixar de marcá-los os sinais do passado, embora estes sempre mais visíveis em Oliveira Viana, sobretudo o racismo que os demais puderam superar, pelo menos em suas expressões mais rudes. Ainda assim, é difícil que tenham podido ficar a distância de remanescentes da ideologia do "branqueamento" predominante nas elites brasileiras desde meados do século XIX. É o caso de Gilberto Freyre, que foi, contudo, paradoxalmente, o crítico mais veemente do racismo da época. Como ideologia, o "branqueamento", vitorioso na estratégia que aconselhou as migrações européias de fins do século XIX, sobreviveu aos anos 1930 e chega até os dias de hoje. A convicção de que ser branco é melhor, que se acha em seus pressupostos, tornou-se parte da cultura brasileira.
Sobreviveu, atenuando-se no fundo do racismo sutil, envergonhado, tão freqüente nos brasileiros. Por maior que tenha sido, contudo, o peso do passado, surgiam novidades em meio aos acordos e divergências dos "intérpretes do Brasil". Se, em Populações meridionais, Oliveira Viana acreditava que os proprietários de terra na colônia eram arianos de origem nobre, Gilberto Freyre trouxe, em Casa grande & senzala, a novidade de um reconhecimento intelectual do povo negro e, sobretudo, do mestiço. Enfatizou, como já o havia percebido Euclides da Cunha, que a mestiçagem não era uma criação americana, mas ibérica, resultado da antiga convivência dos portugueses com os mouros na Reconquista e das freqüentes incursões lusas no território africano desde o século XV. Deu-se conta de que a experiência de mestiçagem na península tornava os portugueses particularmente permeáveis e flexíveis nos contatos com outras raças. Por outro lado, Gilberto Freyre assinalou que a condição de ingresso na colônia era a religião, não a raça, o que permitiu à mestiçagem tornar-se uma tendência geral, além de objetivo de políticas da Coroa, com a complacência do clero e até mesmo dos jesuítas. Reconheceu uma simetria entre a escala social e a racial na colônia, na qual os brancos tinham mais probabilidade de estar em posições de mando, de maior poder e dinheiro, ao passo que os negros, em geral escravizados, estavam no ponto mais baixo da hierarquia social. Não obstante, Gilberto Freyre introduziu no pensamento brasileiro uma minuciosa descrição das relações entre negros e brancos e de suas muitas misturas, abrindo caminho para formas democráticas de consideração do povo brasileiro. Inaugurou assim o reconhecimento do povo mestiço, referência obrigatória para o conjunto da intelectualidade, mesmo com as muitas polêmicas que sua obra suscitou. Nesse reconhecimento do povo teve também participação Caio Prado Jr., com Evolução política do Brasil. Um livro de juventude, um ensaio que o autor considerava menor, mas que incluía páginas ressaltando as lutas dos escravos e as lutas populares do período regencial. Caio Prado Jr. chamou a atenção, na época, com sua análise do tema popular no Império, enfatizada pela crítica aos historiadores que o antecederam. Para a generalidade deles, dizia, as lutas populares não passam "de fatos sem maior significação social e que exprimem apenas a explosão de 'bestiais' sentimentos e paixões das massas". E recomendava: "há muito se faz sentir a necessidade de uma história que não seja a glorificação das classes dirigentes".9 Desse reconhecimento do povo também participou Sérgio Buarque, dando caminho próprio às desconfianças generalizadas entre os intelectuais diante dos formalismos da República e do Império. Raízes do Brasil reinterpreta uma sugestão
de Caio Prado Jr., em Evolução política: "as idéias do sistema político adotado (no Império) por nossos legisladores constitucionais exprimiam na Europa as reivindicações do Terceiro Estado, especialmente da burguesia comercial e industrial, contra a nobreza feudal, a classe dos proprietários. Até certo ponto, é o contrário que se dá no Brasil".10 Sérgio Buarque de Holanda se refere a esse mesmo desacerto entre as idéias e as formas políticas e a estrutura social quando fala da crise dos últimos decênios do século XIX como "o desfecho normal de uma situação rigorosamente insustentável nascida da ambição de vestir um país ainda preso à ordem escravocrata com os trajes modernos de uma grande democracia burguesa".11 Um desacerto entre ideologia e estrutura social que, tanto em Sérgio Buarque como em Caio Prado, não é muito diferente do que afirmava Oliveira Viana: "entre nós, liberalismo significa praticamente, e de fato, nada mais do que caudilhismo local e provincial".12 O caminho seguido em Raízes do Brasil indica, porém, uma outra filiação de idéias. Para Sérgio Buarque, "a democracia no Brasil foi sempre um lamentável malentendido", pois "a ideologia impessoal do liberalismo democrático jamais se naturalizou entre nós".13 Mas se a democracia dos proprietários de terra era um "mal-entendido", que seria a democracia "bem entendida"? Sérgio Buarque recorda que "todo o pensamento liberal-democrático pode resumir-se na frase célebre de Jeremy Bentham (1748-1832): 'A maior felicidade para o maior número'". O que, evidentemente, não era o caso nem para o Segundo Reinado nem para a Primeira República, em crise diante dos olhos do autor. Nem parecia ser o caso da nova República que surgia da revolução de 1930, em que se assistia a um processo de centralização e de autoritarismo que deixava sobradas razões para que continuasse o "mal-entendido". Nos anos 1930, o povo emergia, mas junto com ele surgia uma ditadura. Tendo regressado da Europa em 1930, onde cresciam o fascismo e o nazismo, Sérgio Buarque evocava, em passagens de seu livro (de 1936), a possibilidade do autoritarismo, de certo modo já incluída na importância que ele mesmo atribuía ao personalismo na cultura brasileira. Pode-se supor, portanto, que a sua imagem do "mal-entendido" da democracia tomaria um caminho diferente, certamente contrário, ao de Oliveira Viana, no qual o autoritarismo, mais do que uma possibilidade, é uma necessidade, mesmo que transitória. Não é demais lembrar que Raízes do Brasil foi publicado um ano depois da rebelião comunista de 1935 e da maior onda de repressão do período, e um ano antes do golpe de 1937, que implantou o Estado Novo. Ignorado pelas elites durante o Império e a Primeira República, o povo emergira com a revolução e não poderia mais ser omitido na história política do país. Não era
ainda o povo rural que continuará por muito tempo submerso no mundo autocrático do latifúndio, mesmo durante a Segunda República, mas já não se podia ignorar uma parcela do povo urbano, partes das classes médias e das classes populares das grandes cidades. Era a "democracia" que nos ia chegando por meio de um processo que, décadas depois, o sociólogo francês Alain Touraine descreveu como uma "democratização por via autoritária", um dos traços mais salientes da era Vargas. O "mal-entendido da democracia", como se vê, continuava, embora de um modo diferente do passado.
O peso do passado O reconhecimento da miscigenação por Gilberto Freyre e o das lutas sociais, por Caio Prado Jr., juntavam-se à problematização da democracia, por Sérgio Buarque de Holanda, como formas intelectuais de expressão da emergência popular que viria a caracterizar a nova época. Não obstante tais novidades, a velha sociedade, embora em crise, era ainda bastante forte para se impor. Evolução política, o primeiro livro do rebelde Caio Prado, foi o marco inicial da estrada marxista à qual juntou, em 1942, Formação do Brasil contemporâneo – colônia, sua obra maior. Naqueles anos, porém, o marxismo era ainda opção intelectual de poucos, e se achava, até mesmo no Partido Comunista, submetido ao personalismo de Luís Carlos Prestes (1890-1990), o "Cavaleiro da Esperança". Exemplo das tradições ibéricas descritas por Sérgio Buarque, o líder tenentista se impusera ao Partido Comunista antes mesmo de seu ingresso nessa organização política. Exemplo das tradições ibéricas brasileiras, mas não o único daqueles tempos: o personalismo de Getúlio Vargas era o maior de todos, de fecunda descendência, com muitos discípulos e herdeiros. Em todo caso, as razões da ideologia e da teoria em Caio Prado pouco podiam diante da força de uma tradição dominante na sociedade, inclusive em seu partido, que se suporia moldado pelos princípios impessoais da teoria e da ideologia. Caio Prado foi sempre relegado a posições secundárias na atividade partidária, não obstante sua relevância intelectual. Sérgio Buarque de Holanda, nessa época o mais fino crítico das nossas tradições ibéricas, enfrentou o dissabor de interpretações distorcidas de sua obra, que lhe impunham as mesmas tradições que criticava. Um dos aspectos interessantes de Raízes do Brasil é a idéia da "cordialidade", ou do "homem cordial", expressão com a qual o autor pretendia, à maneira de Max Weber, caracterizar a típica afetividade da cultura e da sociedade brasileiras. A "cordialidade" tradicional – que diria respeito ao coração, à emoção, ao afeto – tornaria difícil conceber a moderna impessoalidade das relações sociais, em especial das funções públicas, das leis e, por
conseqüência, do Estado. No espírito mais tradicional, porém, a interpretação predominante preferiu entender "cordialidade" como "bondade", mesmo quando o autor insistisse em dizer que do coração podem vir carinho e violência, amor e ódio. Uma leitura conservadora da "cordialidade" preferiu identificar esse conceito a uma suposta "índole pacífica" do povo brasileiro. Instalou-se desse modo, entre a crítica moderna de Sérgio Buarque e a tradição de muitos dos seus intérpretes, um mal-entendido que durou décadas. Nos anos de 1980, cansado das confusões em torno do seu livro de juventude, o autor encerrou a conversa dizendo que "já se havia gasto muita cera com o defunto". No que cometeu um exagero. No Brasil moderno em que fez tal declaração, havia ganho mais espaço a impessoalidade das relações sociais, em especial a das leis e a do Estado. Nos movimentos da sociedade civil brasileira contra a ditadura, esboçava-se um conceito de democracia como valor universal, distante, portanto, do "mal-entendido" do passado. Seria certo reconhecer que se atenuava a "cordialidade" da cultura brasileira. Mas seria excessivo dizer que estava morta. Na época em que surgiram os primeiros livros de Caio Prado e Sérgio Buarque, eram extremamente débeis as condições sociais e culturais que teriam podido dar maior realce e consistência a seu pensamento, sobretudo a suas projeções políticas. Nos anos 1930, o Brasil, embora em mudança, continuava um "país essencialmente agrícola". Nem a burguesia nem a classe média das cidades eram bastante fortes para conferir contornos modernos à interpretação do pensamento desses autores. A classe operária era ainda menos expressiva, embora viesse crescendo desde fins do século XIX, com as emigrações européias e, desde os anos 1920, com as migrações nacionais. Donos de vastíssimas obras, Sérgio Buarque e Caio Prado tornaram-se historiadores de repercussão nos meios acadêmicos. Mas Caio Prado foi recusado em duas oportunidades quando tentou ingressar como professor na Universidade de São Paulo. Em que pese a relevância intelectual de sua obra, a instituição parecia ter dificuldade em admitir em seus quadros um comunista conhecido.
Gilberto Freyre e o povo mestiço Não por acaso, os mais conservadores entre os "intérpretes do Brasil" seriam as influências intelectuais maiores da era Vargas. Assim como Oliveira Viana, também Gilberto Freyre misturava suas críticas à tradição com muito de nostalgia. Desejava, como todos os demais, mudar o país em consonância com os sentimentos dominantes na época de transição em que vivia, mas reconhecia com emoção a força do passado. De há muito em decadência no Nordeste e nos estados do Rio de Janeiro e de Minas Gerais, a velha sociedade agrária começava a decair nos anos 1930
também em São Paulo, com a crise da economia do café. No velho mundo rural em declínio, essas curiosas combinações de sentimentos – entre a vontade de mudar e a saudade dos tempos idos – não eram exclusividade de alguns. Havia disso em muitos intelectuais, mesmo os mais rebeldes. Foi traço característico dessa época uma sensibilidade conservadora que convivia com uma notável capacidade de inovação. Joaquim Nabuco – o mais importante dos precursores de Gilberto Freyre, e a quem este dedicou as mais significativas homenagens – dizia que os negros deram ao Brasil um povo. Gilberto Freyre acrescentou a esse reconhecimento do negro o reconhecimento do mestiço. Reconhecendo o negro e o mestiço, reconheceu o povo do qual eram (e são) a maioria. Combatendo o racismo, criticou uma atitude que, discriminando negros e mestiços, por via indireta negava reconhecimento à existência do povo brasileiro. Numa sociedade na qual a maioria é formada por negros e mestiços, o reconhecimento do povo exige, como preliminar, a crítica do racismo. Casa-grande & senzala foi, nas palavras do autor, um "livro carismático". É ainda hoje o mais lido e influente no conjunto de sua obra, base fundamental de sua visão do Brasil. Nele, torna-se evidente que, para compreender o sentido do povo brasileiro, era necessário compreender as relações entre as etnias e, sobretudo, a mestiçagem. Mais do que sobre brancos e negros, foi um livro sobre suas relações no ambiente da casa-grande e nas vizinhanças da senzala, nas quais ocuparia lugar especial a figura do mestiço. Em meio à sofisticada formação intelectual de Gilberto Freyre há diversas razões teóricas para explicar os caminhos que ele tomou em seu primeiro grande livro. A primeira dessas razões é a influência de Franz Boas (1858-1942) e sua separação entre raça e cultura, que distanciou Gilberto Freyre dos pressupostos teóricos da maioria dos intelectuais da época. "Foi o estudo de antropologia sob a orientação do professor Boas que primeiro me revelou o negro e o mulato no seu justo valor – separados dos traços de raça os efeitos do ambiente ou da experiência cultural". Há, porém, uma segunda razão igualmente importante, de natureza política. É interessante anotar a reflexão de Gilberto Freyre a respeito: "nenhum estudante russo, dos românticos, do século XIX, preocupou-se mais intensamente pelos destinos da Rússia do que eu pelos do Brasil na fase em que conheci Boas. (...) E dos problemas brasileiros, nenhum que me inquietasse tanto como o da miscigenação".14 A separação teórica entre raça e cultura vinha, portanto, junto com o reconhecimento da miscigenação para a formação do povo brasileiro. É por isso que não poderia faltar em Casa-grande & senzala uma crítica, no mais das vezes delicada e sutil, de Oliveira Viana. Talvez mais do que uma crítica de Populações meridionais, Casa-grande & senzala foi a sua superação. É por isso que,
sempre muito gentil nos momentos em que menciona Oliveira Viana, a crítica de Gilberto Freyre parece mais preocupada em absorvê-lo do que em confrontar-se com ele. A gentileza não o impediu, porém, de deixar claras as suas diferenças com este e, eventualmente, com outros mestres do passado. Daí o enorme impacto de Casagrande & senzala no ambiente cultural da época. O livro se volta diretamente contra as apreciações negativas que circulavam em relação às "raças inferiores" na formação do povo brasileiro. Entre os negadores do povo, Oliveira Viana contava com a vantagem de que, mesmo informado por justificativas morais, expressava as suas razões no campo do que julgava serem os juízos de realidade do sociólogo. Outros intelectuais da época abordavam o tema de maneira menos refinada. Não apenas negavam a existência do povo brasileiro como uma realidade sociológica e política como também ampliavam a negativa para o campo dos valores morais. E, em alguns desses, o peso do racismo se expressava de modo extremamente rude, embora nem sempre de maneira direta. Tobias Barreto, por exemplo, dizia: "no Brasil, 'Povo' significa uma multidão de homens, como 'porcada' significa uma multidão de porcos".15 É significativo que Barreto identifique "povo" e "porcada" nessa proposição carregada de arrogância e desprezo, mas ainda assim indireta: ao mencionar "porcos" ele pretende dizer "negros" e mestiços, a maioria dos quais evidentemente pobres. Mas não se pode deixar de perceber a intenção racista de uma proposição como essa, quando se sabe da composição étnica do povo. Gilberto Freyre oferece uma boa hipótese para que se entenda tamanho desprezo pelo povo. Tanta arrogância revelaria, na verdade, um profundo "complexo de inferioridade". Tobias Barreto, que era mestiço, expressava, diz Gilberto, o arrivismo do "novo culto". E o "novo culto" era um tipo comum entre mestiços que, submetidos à pressão dos preconceitos, desenvolveram um "evidente complexo de inferioridade" e se tornaram racistas. 16 Há outros exemplos. Nina Rodrigues, que se notabilizou por estudos sobre o negro, afirmava que "a raça negra no Brasil (...) há de constituir sempre um dos fatores de nossa inferioridade como povo". O que significa que o "complexo de inferioridade" mencionado por Gilberto Freyre seria talvez mais amplo. Nos anos 1950, Alberto Guerreiro Ramos (19151982), que além de mestiço era um forte crítico do racismo, mencionou também um "complexo de inferioridade" numa referência aos estados do Nordeste: ali o mestiço tenderia a falar de suas origens brancas e indígenas para encobrir seus antepassados negros.17 De um modo ou de outro, o essencial dessa alusão ao "complexo de inferioridade" é que, vinda de intelectuais mestiços, brancos ou negros, a incapacidade de reconhecer a dignidade de negros e mestiços em geral se tornava equivalente à incapacidade de reconhecer o próprio povo.
Em todo caso, o certo é que a crítica de Casa-grande & senzala a Populações meridionais é parte de uma virada na percepção dos intelectuais brasileiros sobre o negro e o mestiço, bem como sobre a sociedade e o povo brasileiros. Oliveira Viana dizia "inexistir" a sociedade por causa dos latifúndios em que senhores "arianos" dominariam sobre negros e mestiços. Gilberto Freyre empenhou-se em mostrar uma nova sociedade em formação por meio da mestiçagem e da convivência (e dos conflitos) entre as raças nas casas-grandes e ao seu redor, nos seus engenhos e senzalas, bem como nas suas vizinhanças urbanas e semi-urbanas. Oliveira Viana não via na sociedade brasileira senão a qualidade negativa da "insolidariedade", da incapacidade de relações associativas entre as pessoas isoladas pelo latifúndio. Gilberto Freyre distinguia na sociedade brasileira ricos atributos culturais de negros e brancos para a formação da nação, na religiosidade, nas procissões, nas festas, na música, na culinária. Anote-se, além disso, que na balança gilbertiana da formação cultural brasileira teria mais peso a influência do negro do que a do branco. Resgatando a influência não apenas racial, mas também cultural, do negro, Gilberto Freyre colocou a ênfase no "papel civilizador por ele representado". Seguindo Nabuco, afirmou que "a formação social brasileira deve-se ao negro" e que "todo brasileiro é racial ou culturalmente negro". 18 Quase as mesmas palavras de Nabuco quando reconheceu que a raça negra "nos deu um povo", "construiu o nosso país" e que "nós não somos um povo exclusivamente branco".19 Há muito de significativo na continuidade de idéias entre o abolicionista e o antropólogo. Identificados no reconhecimento da dignidade do negro, eles ajudaram a superar o irônico reconhecimento do "papel civilizador do negro", admitido no passado pelos escravistas e por seus representantes políticos, entre os quais Bernardo Pereira de Vasconcelos.20 Gilberto Freyre fez em Casa-grande & senzala uma crítica radical do racismo, não obstante a complacência com que, muitas vezes, tratou a desigualdade social e os preconceitos raciais que, contudo, não deixou de perceber existentes. Uma complacência que decorre de uma das maiores virtudes críticas de sua obra, que lhe permitiu reconhecer, enraizados no processo social e cultural da formação do país, tanto o racismo quanto a crítica do racismo. Como um e outro estão inscritos, com maior ou menor força, na normatividade da vida social, ele nos permitiu compreender que os brasileiros não gostam do racismo, mesmo quando o praticam. Não sugere a obra de Gilberto Freyre que a cultura brasileira esteja isenta de racismo. Sugere que, por ser formada através de séculos de mestiçagem, a cultura brasileira é, nesse aspecto, basicamente contraditória. Pode manifestar racismo em determinadas circunstâncias, mas não aceita legitimá-lo; e, mesmo quando o pratica, manifesta, ao contrário, a propensão a combatê-lo.
Gilberto Freyre e Joaquim Nabuco Teriam que ser muitos num país de formação católica os que tinham pena do negro na sociedade escravocrata. Não são poucos os exemplos de compaixão de brancos em meio a uma sociedade apoiada na violência e na crueldade contra o negro. Mas a compaixão que se expressava diante do sofrimento do escravo – e que se pode sentir diante do sofrimento de qualquer animal – é diferente de lhe reconhecer a dignidade como ser humano e criador de cultura. A dificuldade – talvez impossibilidade – da cultura escravocrata de reconhecer o negro como ser humano explica que sejam tão poucos os personagens negros na literatura brasileira do século XIX. Houve exceções, mas raras, como observou Antonio Candido, entre as quais os grandes poemas de Castro Alves. Exceções esplêndidas às quais se podem juntar as memórias de Joaquim Nabuco e alguns poemas de Luiz Gama. Mesmo para Nabuco, porém, como para os abolicionistas em geral, devia ser difícil ressaltar as qualidades humanas e culturais dos negros em discursos de combate contra a escravidão, nos quais aquelas qualidades ficariam obscurecidas pela obrigatória descrição da ignomínia da condição do escravo. Talvez por isso se possa dizer que, na obra do abolicionista, há uma sociologia do escravo, não uma sociologia do negro. É certo que Nabuco foi um dos primeiros intelectuais brasileiros a distinguir entre o escravo e o negro como ser humano. Foi também um dos primeiros a proclamar que o negro era parte da nação. Mas essas referências, cheias de vida em suas memórias, não poderiam, em seus textos abolicionistas, deixar de ser referências descarnadas, abstrações colocadas no meio de descrições, estas, sim, concretas e palpáveis, do escravo e do sistema que o oprimia. A maior virtude intelectual de Nabuco, e, em geral, dos abolicionistas, era a denúncia da desumanização do sistema escravocrata. O discurso do abolicionista não poderia deixar de enfatizar o negro como força de trabalho brutalmente explorada, vítima de um sistema que o tratava como coisa, besta de carga, animal. É por isso que, nos textos abolicionistas de Joaquim Nabuco, a força da luz concentrada na denúncia da condição do escravo colocava na sombra a criatividade do negro. Mesmo a do negro livre que, porém, na época do abolicionismo, era em maior número que o escravo. Não é por acaso que, embora presentes em suas memórias, sejam tão poucos os exemplos de negros livres nos escritos abolicionistas de Nabuco. Como inscrever tais exemplos no combate a um sistema escravocrata que o grande abolicionista desejava denunciar no seu caráter de máquina desumana de destruição da liberdade? Uma insistência em tais menções, se isso fosse possível, não significaria uma forma de atenuar a força da denúncia? Exemplos de negros livres estão, contudo, presentes nas memórias de Nabuco, nas suas lembranças de infância, bem como nas afetuosas menções a alguns de seus companheiros de
campanha, como José do Patrocínio, Teodoro Sampaio (1855-1937) e André Rebouças, todos políticos e intelectuais de primeiro nível. Acresce observar que a campanha abolicionista foi, sobretudo, uma campanha de advogados e jornalistas formados em direito. É expressivo o fato de que Nabuco se entendia, como os demais abolicionistas, como portador do "mandato dos escravos". Uma expressão que, como vimos, tinha mais de compaixão do que de lógica, talvez uma fina e triste ironia dirigida a um formalismo jurídico que obrigava a todos. Sabe-se que na época estavam todos imersos em um sistema cujos ideólogos eram uristas, mas que, evidentemente, não tinha lugar para os escravos senão como coisas. Nabuco foi quem mais se aproximou de uma sociologia do negro que, contudo, não tinha como realizar em toda sua extensão. Na dimensão abolicionista de sua obra, Joaquim Nabuco se declara herdeiro de Agostinho Marques Perdigão Malheiro, cujo livro A escravidão no Brasil (1866)21 é, sobretudo, uma obra de história do direito, ampla e detalhada descrição das leis e das normas de Estado relativas a escravos e libertos. Considera Malheiro "o doutrinador, o mestre da abolição", cuja obra teria sido o admirável ponto de partida depois do qual nada mais poderia deter a campanha.22 Do mesmo modo, a luta pela Abolição tinha que se realizar a partir do campo do direito, no qual, evidentemente, os escravos não tinham lugar como sujeitos e só podiam aparecer como objetos. Se em situações especiais – acusações de roubo, violências, assassinatos – podiam tomar advogado, o julgamento, como tal, jamais colocaria em causa a própria escravidão a que estavam submetidos. Podese considerar que Nabuco estava um passo adiante de Malheiro, embora fosse herdeiro das idéias deste. Gilberto Freyre, herdeiro das idéias de Nabuco, estava um passo adiante de suas idéias por várias razões. Uma delas é que viveu numa época em que a escravidão deixara de existir; a segunda é que viveu numa época na qual lhe foi possível uma ampla formação sociológica e antropológica. Nabuco e os abolicionistas queriam destruir a escravidão, e numa boa medida o conseguiram. Vivendo em outro período histórico, Gilberto Freyre queria compreender as condições de possibilidade da mestiçagem que tinha diante dos olhos nas ruas do Recife e nos engenhos do Nordeste.
Um povo mestiço Gilberto Freyre, admirador de Franz Boas, sentia-se mal nos Estados Unidos, como espectador da imagem dura de uma sociedade birracial, sem lugar para o mestiço. A distância de seu país, queria decifrar a flexibilidade cultural que permitiu ao Brasil reconhecer a mestiçagem e a pluralidade racial. Jamais existiu no Brasil a
observância estrita da endogamia com base na cor, tal como santificada por lei nos Estados Unidos na década de 1890. Nos Estados Unidos, ao contrário, a mestiçagem, que também existia, como em qualquer sociedade dividida em raças, jamais foi aceita como legítima.23 Talvez por isso Gilberto Freyre nos lembre que em sua permanência nos Estados Unidos agradava-lhe rememorar cenas brasileiras, em que uma maior flexibilidade cultural permitia reconhecer o mestiço. Talvez se possa dizer que, em Casa-grande & senzala, o reconhecimento do mestiço foi uma preliminar para o reconhecimento do negro. Ao olhar para o passado escravocrata a partir da mestiçagem presente, é de certo modo o mestiço que apresenta o negro e o branco, seus antepassados. Por isso, a sociologia do negro que Nabuco não pôde fazer se tornaria em Gilberto Freyre um capítulo de sua sociologia do mestiço. Ele queria caracterizar uma flexibilidade que reconheceu desde a colônia e o Império, pontos de passagem de uma mestiçagem e de uma pluralidade racial que vem de mais antigas raízes, desde a península Ibérica. É essa sociologia da mestiçagem que conduz Gilberto Freyre a uma visão original do negro, do branco e das relações entre ambos. Como ele mesmo declarou na abertura de Casa-grande & senzala: "dos problemas brasileiros, nenhum que me inquietasse tanto como o da miscigenação". Mesmo o seu inegável entusiasmo pela cultura lusa – que mais adiante o conduziu ao que chamou de "luso-tropicalismo" – envolve uma valorização do mestiço. "Portugal é por excelência o país europeu do louro transitório ou do meio-louro. (...) Esses mestiços com duas cores de pêlo é que formaram, ao nosso ver, a maioria dos portugueses colonizadores do Brasil, nos séculos XVI e XVII". Seriam esses, segundo Gilberto Freyre, os "portugueses típicos" e não nenhuma elite loura ou nórdica, branca pura: nem gente toda morena e de cabelo preto. "A escravidão a que foram submetidos os mouros e até moçárabes, após a vitória cri stã, foi o meio pelo qual se exerceu sobre o português decisiva influência não só particular do mouro, do maometano, do africano, mas geral, do escravo. Influência que o predispõe como nenhuma outra para a colonização agrária, escravocrata e polígama – patriarcal, enfim – da América tropical". 24 Esse reconhecimento das raízes mestiças de Portugal encontra-se também em Sérgio Buarque de Holanda, que reconhece "serem os portugueses, em parte, e já ao tempo do descobrimento do Brasil, um povo de mestiços".25
Mestiçagem cultural Como bem sugere Antonio Candido, é preciso hoje fazer um esforço para entender o que pode ter significado, nos anos 1930, essa radical mudança de perspectiva em
relação ao sentimento dominante entre os intelectuais, entre os quais alguns precursores do moderno pensamento brasileiro. Euclides da Cunha, por exemplo, via o mestiço como uma sub-raça, mistura infeliz na qual se perdiam as virtudes das raças originais. Ao contrário de Euclides, Gilberto Freyre via no mestiço uma promissora síntese. Da valorização da síntese surgiu a valorização dos elementos que a compunham. Deriva de uma incompreensão do sentido da mestiçagem a crítica de alguns intelectuais que acusam o autor de Casa-grande & senzala de haver visto o escravo no âmbito da família patriarcal, não o escravo no eito. Parece-me que o ponto é outro: assim como Gilberto Freyre partiu do mestiço para compreender o negro, na mesma lógica partiu da observação do escravo na família patriarcal, para compreender o escravo no eito. Realizou o mesmo movimento para chegar à esfera do econômico: partiu da observação da família patriarcal, na casa-grande, ou à sua volta, na senzala, com as suas relações pessoais, afetivas, religiosas e seus hábitos sexuais, para chegar ao latifúndio, ao engenho como unidade de produção. Não partiu da produção econômica em que o negro escravizado era coisa, besta de carga, animal, mas da família e do mestiço. Em outras palavras, partiu da cultura, transformando em força a debilidade de que lhe acusaram seus críticos. E, assim, ajudou seus muitos leitores a compreender que o negro, visto como coisa, na verdade, é gente. Já o era, mesmo no eito. Mesmo quando introduz no argumento a dimensão econômica, a análise se combina com a dimensão cultural: "No Brasil, as relações entre os brancos e as raças de cor foram desde a primeira metade do século XVI condicionadas, de um lado, pelo sistema de produção econômica – a monocultura latifundiária; do outro, pela escassez de mulheres brancas, entre os conquistadores. (...) Na zona agrária desenvolveu-se, com a monocultura absorvente, uma sociedade semifeudal – uma minoria de brancos e brancarrões dominando patriarcais, polígamos, do alto das casas-grandes de pedra e cal, não só os escravos criados aos magotes nas senzalas como os lavradores de partido, os agregados, moradores de casas de taipa e de palha vassalos de casas-grandes em todo o rigor da expressão". E acrescenta: "Vencedores no sentido militar e técnico sobre as populações indígenas; (...) os europeus e seus descendentes tiveram entretanto de transigir com índios e africanos quanto às relações genéticas e sociais. A escassez de mulheres brancas criou zonas de confraternização entre vencedores e vencidos, entre senhores e escravos. Sem deixarem de ser relações – as dos brancos com as mulheres de cor – de 'superiores' e, no maior número de casos, de senhores desabusados e sádicos com escravas passivas, adoçaram-se, entretanto, com a necessidade experimentada por muitos colonos de constituírem família dentro das circunstâncias e sobre essa base".26
Assim como antes de Joaquim Nabuco foram poucos os intelectuais capazes de reconhecer a dignidade do negro, foram muitos, antes de Gilberto Freyre, os pessimistas quanto ao mestiço. Temos a bela metáfora de Euclides da Cunha quando fala do sertanejo, mestiço, como o "núcleo da nacionalidade". Mas, quando escreveu sua grande obra, Euclides estava demasiado comprometido com o racismo das teorias e dos preconceitos do seu tempo. É vê-lo falar do "nervoso raquitismo dos mestiços anêmicos do litoral" para perceber que, para ele, os mestiços não prestam. Como se sabe, os "mestiços anêmicos do litoral" foram, sempre, a maioria entre os mestiços. E, na época de Euclides, eram já maioria em todo o povo. Em um dos mais belos momentos de Os sertões, Euclides nos fala desse "núcleo da nacionalidade" como de um mestiço especial, isolado e esquecido no interior do país. Esse mestiço de Euclides é, na verdade, um estranho núcleo, aliás, final e tragicamente esmagado pela nação. O mestiço de Gilberto Freyre é o vizinho do lado, o companheiro de mesa, o colega de trabalho. Não é apenas o núcleo da nacionalidade, é a maioria da nacionalidade. Não é só uma mistura racial, é uma síntese cultural que, em si mesma, dignifica as raças de origem. Uma síntese cultural que não pode se isolar das raças que a constituem e para as quais se constitui, por sua vez, em atração permanente e inevitável.
Democracia racial? O precioso legado de Gilberto Freyre confundiu-se às vezes com imprecisas referências do próprio autor, e, no mais das vezes, de seus críticos, a uma suposta "democracia racial". Essa "democracia", porém, é uma herança que vem de há mais tempo, desde o século XIX, propiciando, ao modo das mágicas próprias da ideologia, transformar em "coisa" uma possibilidade presente na realidade viva da cultura, obscurecendo a natureza real do racismo. Parte dessa ideologia é atribuída a Gilberto Freyre, e é possível que ele tenha contribuído para tal, em entrevistas ou artigos de ornal. Não o fez, porém, em obras de maior significação intelectual, menos ainda nos prefácios, em que gostava de anotar reflexões de caráter teórico. Em todo caso, o certo é que a superficialidade de textos de ocasião pode ter contribuído para uma confusão de conceitos que prejudica a compreensão de suas obras maiores. Segundo Levy Cruz, que realizou um levantamento do tema em Gilberto Freyre, este incluiu na versão em inglês (1963) de Sobrados e mucambos as seguintes palavras: "For Brazil is becoming more and more a racial democracy, characterized by an almost unique combination of diversity and unity".27 Interessante anotar que a "democracia racial" que aparece aí como tendência, não como realidade positiva,
não aparece nas posteriores edições brasileiras do mesmo livro. Outra menção foi registrada em discurso do autor na Câmara dos Deputados, em 1950, quando protestou, como parlamentar, contra "a rejeição de hospedagem", ocorrida alguns dias antes, em um hotel da cidade de São Paulo, à coreógrafa e dançarina americana Katherine Dunham, "por ser pessoa de cor". Na ocasião, protestou Gilberto Freyre: "Este é um momento – o ultraje à artista admirável cuja presença honra o Brasil – em que o silêncio cômodo seria uma traição aos nossos deveres de representantes de uma nação que faz do ideal, se não sempre da prática, da democracia racial, inclusive a étnica, um dos seus motivos de vida, uma das suas condições de desenvolvimento".28 Nessa passagem, a referência à "democracia racial" é uma referência ao ideal, nem sempre à prática, da cultura. A prática aparece, ao contrário, exemplificada no preconceito contra a coreógrafa, ao passo que o ideal, em vez de encobrir o preconceito, aparece no protesto contra esse mesmo preconceito. Embora tenha havido exagero nas atribuições do mito da democracia racial a Gilberto Freyre, não há nenhum exagero no reconhecimento da existência desse mi to na cultura brasileira. Segundo Élide Rugai Bastos, "o mito da democracia racial (foi) germinado longamente na história do Brasil através de afirmações que apontavam o tratamento concedido ao escravo como 'suave', 'cristão' e 'humano', e só vai ganhar sentido e objetivar-se com a Abolição e a implantação da República". Para George Reid Andrews, as raízes do conceito de democracia racial "remontam ao século passado (XIX, quando) as restrições datadas do domínio colonial português eram explicitamente declaradas ilegais ou simplesmente caíam em desuso".29 Se o mito vem de longe, a questão que se coloca é a seguinte: como descrever uma cultura e ignorar os mitos ou tendências que ela mesma declara? Eis um desafio que se colocou certamente para Gilberto Freyre ao escrever seu livro. Mas que se coloca também para o seu leitor. Assim como pode ter ocorrido às vezes a Gilberto Freyre, sobretudo em algumas de suas manifestações políticas, esse desafio pode ocorrer também a seu leitor, evidentemente impregnado do ambiente cultural em que vive. A confusão entre realidade e tendência que em certos momentos existe na cultura que a obra descreve pode passar para a leitura da obra. Se isso ocorrer, o leitor pode sentir-se tentado a atribuir a seu autor o transformar em mito um processo cultural que este, contudo, descreve in fieri. Buscando, para seu melhor entendimento, o que está nas entrelinhas, nas imaginadas profundezas do texto, o leitor pode encontrar expressões confusas de suas próprias inquietações. É um dos riscos do ensaio, como forma literária, especialmente no caso de Gilberto Freyre. É, em particular, um risco que se corre na leitura de uma obra tão carregada de ecletismo e poesia como Casagrande & senzala.
1. VENTURA, Roberto. Do mar se fez o sertão: Euclides da Cunha e Canudos. Disponível em: . Acesso em: nov. 2005. 2. Apud V ENTURA, ibidem. 3. B ASTOS, Elide Rugai. Oliveira Viana e a sociologia no Brasil. In B ASTOS, E. R.; MORAES, J. Q. de (Orgs.). op. cit., p. 411. 4. A NTONIO CANDIDO . O significado de "Raízes do Brasil'. In: HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes de. Raízes do Brasil, cit., p. 9-10. 5. Ver V IANNA, Hermano. O mistério do samba. Rio samba. Rio de Janeiro: Jorge Zahar/Editora da UFRJ. 1995. p. 19 e seguintes. 6. O emprego do negro como músico é conhecido desde o século XVII, acompanhando ritos religiosos ou compondo bandas e orquestras em festas de casas-grandes. A partir do século XVIII, alguns músicos mestiços alcançaram renome, a exemplo de José Joaquim Lobo de Mesquita (1746-1805), em Diamantina, e o Pe. José Mauricio Nunes Garcia (1767-1830), no Rio de Janeiro. Eram ambos filhos de português com negra escrava e se dedicaram, de mo do exclusivo, à música sacra, de influência influência européia. Já no século XIX, Carlos Gomes (1836-1896), neto de ex-escrava, sempre lembrado por seu grande êxito em músicas de raiz européia (O guarani, por guarani, por exemplo), deixou peças musicais de influência negra, na maior parte esquecidas. Para um panorama das origens da música brasileira, ver K IEFER, Bruno. História Bruno. História da música brasileira. bra sileira. Porto Porto Alegre: Movimento, 1997. 7. F REYRE, Casa-grande & senzala, edição senzala, edição crítica, cit., p. 303. 8. É evidente que os nomes mencionados acima não exaurem a riqueza e variedade do ensaísmo brasileiro. Atenho-me aos autores que considero mais significativos e, nestes, como esclareci anteriormente, a algumas obras. Um estudo mais amplo daquela época exigiria um levantamento que não posso realizar para os objetivos deste trabalho e que deveria considerar muitos outros nomes, entre os quais os de Paulo Prado, Mário de Andrade, Azevedo Amaral, Alcântara Machado, Cassiano Ricardo, Afonso Arinos, Ronald de Carvalho e Martins de Almeida. 9. P RADO JR., Caio. Evoluç Caio. Evolução ão política do Brasil: colônia co lônia e império. imp ério. 21. 21. ed. São Paulo: Brasiliense, 1994. p. 8. 10. PRADO JR., Evoluç JR., Evolução ão política do Brasil, cit., Brasil, cit., p. 54. 11. HOLANDA, Raízes do Brasil, cit., Brasil, cit., p. 78. 12. Oliveira Viana, apud PÉCAUT, op. cit., p. 38. 13. HOLANDA, Raízes do Brasil, cit., Brasil, cit., p. 160. 14. FREYRE, Casa-grande Casa-grande & senzala, edição senzala, edição crítica, cit., p. 8. 15. Apud GOMES, Ângela de Castro. A práxis corporativa de Oliveira Viana. In: B ASTOS, E. R.; MORAES, J. Q. de (Orgs.), op. cit., p. 54. 16. FREYRE, Casa-grande Casa-grande & senzala, cit., senzala, cit., p. 448. 17. RAMOS, Alberto Guerreiro. Introdução Introduç ão crítica à socio s ociologia logia brasileira. bra sileira. Rio Rio de Janeiro: UFRJ, 1995. p. 179 e seguintes. 18. BASTOS, Elide Rugai. Oliveira Viana e a sociologia no Brasil, loc. cit., p. 414-415. 19. Ver capítulo 9, nota 31. 20. Como sabemos, em debate sobre a extinção do tráfico, Bernardo Pereira de Vasconcelos afirmou que a África civiliza a América, mas limitava-se ao aspecto econômico em que o negro era considerado apenas como força de trabalho. E por isso dizia que "a abolição do tráfico deve trazer tendências barbarizadoras"; ver capítulo 7, nota 44. 21. PERDIGÃO MALHEIRO, op. c i t .
22. NABUCO, op. cit., p. 8 5 1 . 23. SKIDMORE, op. cit., p. 56. Como bem observa esse autor, a mestiçagem existe em qualquer sociedade dividida em raças e, desse modo, a questão que se coloca é reconhecer a mestiçagem como legítima, aceitável. Mas, nos EUA, onde também há mestiçagem, o mestiço é empurrado para o stock dos dos negros, ao passo que no Brasil ele constituiu um terceiro setor, nem negro nem branco, tendente a aproximar-se do branco. 24. FREYRE, Casa-grande Casa-grande & senzala, cit., senzala, cit., p. 225-230. 25. HOLANDA, Raízes do Brasil, cit., Brasil, cit., p. 53. 26. FREYRE, Casa-grande Casa-grande & senzala, edição senzala, edição crítica, cit., p. 8-9. 27. "Pois o Brasil está se tornando cada vez mais uma democracia racial, caracterizada por uma combinação única de d iversidade iversidade e un idade." 28. Cf. CRUZ, Levy. Democ Levy. Democrac racia ia racial, rac ial, uma hipótese. hipó tese. Recife: Fundação Joaquim Nabuco, Trabalhos para discussão n. 128, agosto 2002. 29. Ibidem. As citações são de: A NDREWS, George Reid. Negros Reid. Negros e branco bra ncoss em São Paulo: (1888-19 (188 8-1988). 88). São Paulo: Edusc, 1998; BASTOS, E. R. Aquestão racial e a revolução burguesa. In: D'I NCAO, Maria Angela (Org.). O saber militante. Ensaios sobre Florestan Fernandes. Rio de Janeiro / São Paulo: Paz e Terra / Unesp, 1987. p. 140-150.
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Helio Jagu J aguaribe aribe:: influên cia do d o cultura c ulturalismo lismo e do historicismo historic ismo na n a origem o rigem do ISEB.
CAPÍTULO 13 DESENVOLVIMENTO E DEMOCRACIA HELIO JAGUARIBE E OS PRIMEIROS ANOS DO ISEB
O otimista pode até errar na caminhada, mas o pessimista já começa errado. JUSCELINO KUBITSCHEK
A ideologia ideo logia do desenvo dese nvolvimen lvimento to só pode pod e ser se r conce co ncebida bida em cultura c ulturass que qu e possu p ossuem, em, entre e ntre suas sua s idéiasidéia sforça, a propensão para o domínio do mundo, dentro de uma cosmovisão racional, racional, mediante a sua configuração a serviço do homem. HELIO HELIO JAGUARIBE
Quem acompanhou as circunstâncias em que Juscelino Kubitschek (1902-1976) subiu à presidência da República em 1956 teria dificuldade para prever o êxito que alcançou em seu governo. Naqueles anos, talvez o único a acreditar nisso fosse o próprio Kubitschek, Kubitschek, que foi eleito elei to prometendo um governo que realizaria reali zaria "cinqüenta anos em cinco". O otimismo do candidato estava em aberto contraste com um cenário de crise institucional e de tentativas de golpe de Estado. Um otimismo que permaneceu vivo vivo na memória nacional como um facho de luz l uz no meio das sombras de uma conturbada conturbada história política. Médico de profissão, Kubitschek entrou na política em 1933, 1933, como secretário de governo de Benedito Benedito Valadares (1892-1973), recém-nomeado recém-nomeado por Getúlio Vargas interventor federal em Minas Gerais. Foi deputado federal em 1934, nomeado em 1940 prefeito de Belo Horizonte, deputado constituinte em 1946. Elegeu-se governador de Minas Gerais em 1950. Eleito presidente da República em 1955, Juscelino Kubitschek transferiu para o país a aura otimista de sua campanha eleitoral. Seguindo, com algumas modificações, a rota de Getúlio Vargas desde 1930, Kubitschek deixou definitivamente para trás o país agrário que o Brasil ainda era em meados dos anos 1950. Herdeiro de tendências que vêm desde os anos 1930 e 1940 e das novas idéias econômicas da Comissão Econômica Para a América Latina (CEPAL), o nacionalismo político e econômico ocupou um lugar central no debate ideológico dos anos 1950. A partir de meados da década, enriquecido com as influências do Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB), tornou-se uma linguagem política
dominante no cenário brasileiro. Talvez se possa dizer que, no segundo governo Vargas (1950-1954) e no governo Kubitschek (1955-1960), a influência da ideologia nacionalista equilibrou-se dentro de uma política cujo eixo central era dado pela noção do "desenvolvimento". Naqueles governos, o nacionalismo estaria enquadrado em uma concepção "desenvolvimentista" que envolvia a noção de um crescimento econômico voltado para o mercado interno, com características de autonomia nacional e distributivismo social. Como ideologia, o nacionalismo tornou-se mais importante no governo Goulart (1961-1964), estimulando uma radicalização política que alcançaria seu ponto extremo às vésperas do golpe de Estado de 1964.
Instituições da política e da ideologia fant asia organizada, os temas da Como bem observou Celso Furtado em A fantasia industrialização e do desenvolvimento passariam a ocupar espaços políticos crescentes no segundo após guerra, tanto no Brasil como em outros países da América Latina. Estava à vista de todos a destruição causada pela guerra na Europa, uma devastação que a muitos ocorria comparar com a América Latina, conhecida pela pobreza e pelas insuficiências do crescimento econômico. Não Não por acaso, havia no Brasil quem pretendesse um plano de desenvolvimento, a exemplo das políticas de recuperação propostas pelo Plano Marshall na Europa.1 Os anos do pós-guerra consolidaram no Brasil uma preocupação com a industrialização que vinha desde os anos 1930, quando as políticas de Vargas conduziram, empiricamente, pedaço a pedaço, nos espaços criados pela crise da agricultura de exportação, a uma ampliação do mercado interno e ao início do que depois se chamaria de "política de substituição de importações". i mportações". São do entreguerras iniciativas governamentais que levaram à criação de empresas públicas como a Companhia Siderúrgica Nacional (CSN) e a Companhia Vale do Rio Doce. Quase ao mesmo tempo, desenvolviam-se políticas semelhantes em outras partes de América Latina: no México, o governo Cárdenas chegou à formação de um monopólio estatal do petróleo; no Chile, a Corporação de Fomento e Crédito (CORFO) dava exemplo, desde os anos 1930, de uma instituição de financiamento da industrialização. Não obstante os desvios e recuos do governo Dutra (1945-1950), permaneceram no segundo governo Vargas (1951-1954) empresas públicas e instituições de Estado criadas em seu primeiro período (1930-1945). Entre essas instituições de Estado, Furtado menciona o Departamento de Administração do Serviço Público (DASP), que, inspirado em similares americanos, combinava áreas de estudos econômicos com outras destinadas a estudos administrativos. Permaneceram também no mundo
empresarial, além da influência de Roberto Simonsen (1889-1948), as expectativas de pessoas que se habituaram, durante o Estado Novo, a tratar com o Estado os temas de interesse da indústria. Acresce observar que depois de 1947 o clima da "guerra fria", embora mantendo dentro do país uma atmosfera de compressão política, preservou também certa continuidade das relações econômicas entre o Brasil e os Estados Unidos, algo no espírito da "política da boa vizinhança" de Roosevelt. Alguns planos econômicos surgiram no governo Dutra, como o Plano SALTE e a Missão Abincque. Segundo Furtado, esses planos foram de menor eficácia do que os entendimentos anteriores do período Roosevelt-Vargas, mas prenunciavam possibilidades futuras.2 Nessas circunstâncias, as idéias sobre a industrialização e o desenvolvimento nos anos 1950 – durante o segundo governo Vargas e durante o governo Kubitschek – encontrarão seus principais porta-vozes em instituições que, em sentido genérico, poderiam ser designadas como agências de Estado. Algumas dessas instituições eram de caráter internacional, como a CEPAL, formada no início de 1948, em Santiago do Chile, a partir de proposta do governo chileno. Da CEPAL participou, quase desde o início, Celso Furtado (1920-2004), que lá chegou pouco antes de Raúl Prebisch (1901-1986), principal líder da nova instituição e de uma nova corrente de pensamento econômico de influência geral em toda a América Latina. Outras Outras dessas agências de Estado tiveram um caráter binacional, como a Comissão Mista BrasilEstados Unidos. Foi criada em 1949, no fim do governo Dutra, e prosseguiu suas atividades no segundo governo Vargas, com influência maior do que o Plano SALTE e a Missão Abincque. Foi da Comissão Mista que surgiu o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico (BNDE), em 1952, sob a liderança de Roberto Campos (1917-2001). Na pesquisa das linhagens que conduzem ao desenvolvimentismo e ao nacionalismo dos anos 1950 há que considerar ainda a obra precursora de Roberto Simonsen (1889-1948), nos anos 1930 e 1940, como empresário, político e intelectual. Do outro lado do campo de debate das idéias estava Eugênio Gudin (1886-1986), com quem Simonsen manteve célebre polêmica. Gudin foi o líder da tendência liberal que criticava uma industrialização que considerava "artificial", pois de seu ponto de vista o Brasil era um "país com vocação agrícola" e, de certo modo, estaria destinado a ser um "país essencialmente agrícola". Roberto Simonsen iniciou-se na política junto ao integralismo, em 1931, do qual se afastou por divergências com o anti-semitismo de alguns de seus membros, vindo a ser eleito deputado federal em 1934 e senador em 1945. Foi, porém, no campo empresarial que alcançou renome, como presidente da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (FIESP) e vice-presidente da Confederação Nacional da
Indústria (CNI). Dedicou-se ainda às atividades intelectuais, como um dos fundadores da Escola de Sociologia e Política, em São Paulo, na qual ministrou cursos sobre economia. Deixou diversos estudos e livros sobre aspectos sociais e Histór ia econômica do econômicos da sociedade brasileira, entre os quais uma História Brasil, escrita em 1937, com base num curso professado naquela escola, que permanece até hoje uma referência nos estudos da área. Em reunião de 1947, um ano antes de falecer, defendeu no Conselho Inter-Americano de Comércio e Produção a tese de um Plano Marshall para a América Latina.
Helio Jaguaribe e o ISEB O ISEB foi a instituição de maior presença ideológica no momento histórico que se abriu com o governo Kubitschek. Criado em 1955 por iniciativa de Helio Jaguaribe (n. 1923), seu primeiro presidente foi Roland Corbisier (1914-2005). A primeira etapa do novo instituto terminou em 1958, em meio a uma crise suscitada pelas Nacionali smo na atualidade atual idade brasileira, brasil eira, de críticas de Guerreiro Ramos ao livro Nacionalismo Helio Jaguaribe.3 Na ocasião, Jaguaribe e Guerreiro saíram do ISEB, permanecendo Corbisier, que transferiu a presidência, a partir de 1959, a Álvaro Vieira Pinto (19091987). Iniciava-se a segunda fase do ISEB, que se caracterizaria por uma crescente inclinação à esquerda até 1964, quando ocorreu o golpe militar.4 O regime militar parece haver dado pouca atenção às divergências internas do instituto, entendidas, provavelmente, como excessos de sutileza entre intelectuais. Considerando todos como inimigos, cassou os direitos políticos dos fundadores e líderes do ISEB, os quais, mais cedo ou mais tarde, acabaram saindo do país, como refugiados ou como exilados. Foi o que ocorreu, por exemplo, com Guerreiro e com Jaguaribe, ambos acolhidos por universidades americanas. Vieira Pinto exilou-se no Chile, onde foi se juntar a outros intelectuais brasileiros que ali se encontravam refugiados.5 É de 1947, no Rio de Janeiro, a primeira iniciativa de Helio Jaguaribe reunindo intelectuais que depois formariam o ISEB. Naquele ano, Jaguaribe organizou a participação de alguns intelectuais numa página de debates sobre assuntos do país, n o Jornal do Commercio, contando com o apoio de Augusto Frederico Schmidt (1906-1965), diplomata, poeta e editor e representante do Brasil na ONU, durante o governo Kubitschek. A iniciativa de Jaguaribe se desdobrou num esforço para reunir intelectuais do Rio e de São Paulo em Itatiaia, um lugarejo de montanha escolhido simbolicamente entre as duas maiores cidades do país. O "grupo de Itatiaia" deu origem, em 1952, ao Instituto Brasileiro de Economia, Sociologia e Política (IBESP), cuja principal atividade, até 1956, foi a publicação da revista Cadernos do
Nosso Tempo. A transformação do IBESP no ISEB se deu em 1955. O IBESP teve, porém, algum tempo de sobrevida: o último número dos Cadernos do Nosso Tempo, de inícios de 1956, traz uma ampla análise das perspectivas do governo Kubitschek e, mais importante, um amplo ensaio, "Para uma política políti ca nacional de desenvolvimento", que antecipou muitos dos temas do ISEB e até mesmo do Plano de Metas.6 Nascia assim em direta continuidade com a pequena instituição privada de intelectuais uma instituição de Estado, também pequena de início, mas destinada a uma grande influência intelectual. A mudança teve início em 1954 em conversações entre Helio Jaguaribe e Lourival Fontes (1899-1967), importante assessor do governo Vargas. Mas a nova instituição surgiu apenas no ano seguinte, junto ao Ministério da Educação, então sob a direção de Cândido Mota Filho (1897-1977), por ato do presidente Café Filho (1899-1970), vice-presidente da República que governou o país por alguns meses depois da morte de Vargas. Os cursos do ISEB – que, assim como as publicações, tiveram grande êxito – começaram a funcionar depois da posse de Juscelino Kubitschek na Presidência. As biografias políticas de alguns dos fundadores do novo instituto podem ser tidas como expressivas de uma continuidade de temas e perspectivas intelectuais que vêm dos anos 1920 e 1930, e mesmo de antes. Helio Jaguaribe, Candido Mendes de Almeida e Ewaldo Correia Lima vinham de origens católicas e evoluiriam para posições próximas da social-democracia. Outros, como Roland Corbisier, Alberto Guerreiro Ramos Ramos e Álvaro Vieira Vieira Pinto, foram militantes do movimento integralista, que, porém, deixaram como uma página virada dos anos 1930. Caminhariam, não obstante as origens integralistas, para posições radicais de esquerda, diferentemente daqueles que, de origem católica, evoluiriam para a centro-esquerda. O historiador Nelson Werneck Sodré (1911-1999), então coronel do exército e membro do Partido Comunista, ingressou no ISEB já no início, não como fundador, mas como um dos seus participantes efetivos. Procurando buscar, com maior ou menor intensidade, caminhos pela esquerda, o ISEB mostrou, na diversidade ideológica dos seus fundadores, uma visível propensão ao pluralismo. Além dos nomes do seu núcleo dirigente, assinaram a sua ata de fundação o sociólogo Gilberto Freyre (1900-1987), o historiador Sérgio Buarque de Holanda (1902-1982), o educador Anísio Teixeira (1900-1971), o economista Roberto Campos (1917-2001), o advogado San Tiago Dantas (19111964), o jurista Miguel Reale (n. 1910), o historiador José Honório Rodrigues (19131987), os escritores Paulo Duarte (1899-1984) (1899-1984) e Sérgio Milliet (1898-1966). (1898-1966). Com nomes de grande projeção, a nominata dos fundadores do ISEB evidencia a preocupação dos seus líderes em estimular a participação de intelectuais do Rio, de
São Paulo e de outras partes do país. Também mostra um cuidado com a representação de diversas especialidades no campo das ciências humanas, com a presença maior de sociólogos, economistas, filósofos e juristas. Muitos desses fundadores tiveram, porém, uma participação apenas lateral, em alguns casos meramente simbólica. A diversidade de idéias, regiões e especialidades acadêmicas em torno de um tema comum – o desenvolvimento – sugeriu a um historiador a imagem bem-humorada de que o ISEB dos começos era uma espécie de "salada desenvolvimentista". Essa propensão ao pluralismo refletia o clima democrático que caracterizaria o governo Juscelino Kubitschek, não obstante as turbulências e instabilidades que o precederam. Mudara em muito o cenário político brasileiro de após a queda da ditadura, em 1945, esmaecendo as velhas paixões políticas dos anos 1930. Daqueles anos de conflito aberto entre esquerda e direita, ficaram, em meados da década de 1950, temas intelectuais que se revelaram capazes de conquistar adesões independentes de vinculações políticas imediatas. Ao contrário da atmosfera dos anos 1920 e 1930, marcada pelos inevitáveis constrangimentos de um quadro político de crescente autoritarismo, o decênio de 1950 propiciou aos velhos temas a oportunidade de novos debates, num contexto democrático que se pretendia duradouro. Tendo surgido nos inícios da crise do Brasil agrário, achavam-se agora reforçados por décadas de urbanização, industrialização e crescimento do Estado para se tornar as principais orientações do debate público à volta da industrialização e do desenvolvimento em uma fase de entusiástica afirmação nacionalista no país.
Historicismo e culturalismo A continuidade do ISEB com a temática intelectual dos anos 1920 e 1930 foi percebida e proclamada por vários dentre seus fundadores. Helio Jaguaribe, Guerreiro Ramos e Roland Corbisier insistiram, em alguns de seus escritos, no reconhecimento de filiações temáticas que os fazem representativos do historicismo e do culturalismo que vinham das primeiras décadas do século XX. Guerreiro Ramos, que se dedicou a estudos críticos sobre a sociologia brasileira, insistiu no caráter precursor de Sílvio Romero, Euclides da Cunha, Alberto Torres e Oliveira Viana. Sem impedir-se de lhes fazer reparos e críticas, críti cas, reconheceu nesses autores as origens de um pensamento capaz de escapar dos modismos estrangeiros para pensar o Brasil em seus próprios termos. Viria Viria deles a raiz – que Guerreiro faz retroagir até o Império, na figura de Paulino José de Sousa, visconde do Uruguai7 – de uma capacidade brasileira de pensar a nação com autonomia que se tornou pedra de toque t oque do pensamento do ISEB, a primeira e mais fundamental de suas ambicionadas
virtudes. É o que se depreende também de uma crítica de Roland Corbisier aos intelectuais de fins do século XIX até os anos 1920. Seria aquela uma "inteligência brasileira (que) transita de uma visão ufanista e otimista otim ista do Brasil para uma visão pessimista e quase desesperada, como se o problema, ou melhor, a missão da nossa inteligência não fosse a de conhecer e de compreender o país, mas a de exaltá-lo nos panegíricos ou denegri-lo nos requisitórios". Nessa crítica do passado, Corbisier, assim como Guerreiro, abriu exceções para José Veríssimo (1857-1916), Sílvio Romero, Alberto Torres, Euclides da Cunha e Oliveira Viana, considerando-os, porém, "figuras isoladas que não chegaram a fundar escola e a influir na vida do país".8 Mais do que a revisão do passado, porém, o ISEB queria afirmar o primado da ideologia nacionalista no presente. Pretendia – e numa certa escala conseguiu – aquilo que teria faltado aos seus precursores: criar uma ideologia do desenvolvimento, fundar escola, influenciar a vida do país. Isso exigia um acerto de contas com as heranças de um passado, no qual o período colonial, de três séculos e meio, ocuparia o lugar central. Exigia também acertar contas com uma tradição intelectual que tentaria transpor mecanicamente para a realidade brasileira modelos estrangeiros, em geral europeus e norte-americanos. Como seus precursores, os isebianos foram representativos de uma época intelectual impregnada de historicismo e de culturalismo. Algo de uma sensibilidade semelhante se prenunciava, não obstante pretendidas adesões positivistas e cientificistas, em Os sertões, de Euclides da Cunha, que comoveram as elites brasileiras de inícios do século XX pela "narrativa sincera" de uma guerra de brasileiros contra brasileiros, e pela força de verdade que transmitia o autor engajado no seu mundo. Essa sensibilidade aberta às urgências da história presente ressurgiu, depois de Euclides, em Oliveira Viana, Viana, não obstante o cientificismo ainda presente em muitas de suas obras, e se tornou vitoriosa nas obras de Gilberto Freyre e de Sérgio Buarque de Holanda, entre outros. Mais do que meras veleidades intelectuais, o historicismo e o culturalismo se afirmaram como tendências da cultura do Brasil do século XX. Nos anos 1960 e 1970, variantes desses estilos intelectuais contribuíram para a radicalização da atmosfera política que antecedeu ao regime militar. Dos dois lados da batalha das idéias sentia-se a urgência do tempo. Falava-se por toda parte a linguagem da revolução, qualquer qualquer que fosse o significado que cada qual atribuísse atri buísse a essa palavra, à esquerda e à direita do espectro político.
Fissuras no mundo das crenças
Os fundadores do ISEB reconheceram com muita clareza as condições intelectuais da época em que foram chamados a atuar. Em Filosofia no Brasil, de 1952, disse Helio Jaguaribe que, com exceção do neokantismo e do neotomismo, a filosofia contemporânea se caracterizava por uma radical modificação da perspectiva naturalista.9 No Brasil, essa mudança teria envolvido, a partir de inícios do século XX, as mais diversas escolas de pensamento, entre as quais a católica, de Jackson de Figueiredo (1891-1928), que, politicamente, lançaria as bases de "uma ideologia anti-individualista e corporativista que iria resultar no movimento integralista". Jaguaribe observou ainda que Alceu de Amoroso Lima, cujo neotomismo reconheceu como importante para o aprimoramento teórico do pensamento católico, acabou cedendo campo ao culturalismo e ao existencialismo. Era todo um mundo de idéias em mudança, algumas das quais alcançando os esforços de síntese entre o existencialismo e o culturalismo de Miguel Reale e do heideggeriano Vicente Ferreira da Silva (1916-1963). Essas influências chegaram ao ISEB por meio de diversos autores, entre os quais Roland Corbisier, que nos primeiros anos da instituição procurava a "base de uma cosmovisão existencial-culturalista, (para) interpretar a cultura e a vida brasileiras". Helio Jaguaribe assinala que, em contraste com velhas tradições intelectuais brasileiras, uma das novidades do ISEB foi ter trazido ao primeiro plano do debate intelectual idéias de origem germânica, mais do que as de origem francesa dos intelectuais do passado. Terá sido talvez uma ampliação desse fascínio pela cultura alemã que, embora sempre menor que o deslumbramento pela França, vem desde o século XIX, com Tobias Barreto e Sílvio Romero, seu continuador.10 A influência alemã pode ser reconhecida também, antes do ISEB, em Gilberto Freyre, um discípulo de Franz Boas, em Caio Prado Jr., um seguidor de Karl Marx, e em Sérgio Buarque de Holanda, que estudou na Alemanha da época da República de Weimar, de onde trouxe uma metodologia nitidamente weberiana. Essa presença da cultura alemã é, certamente, um traço característico do próprio Jaguaribe, que trouxe ao ISEB influências de Max Weber e Ortega y Gasset (1883-1955), bem como do culturalismo de Windelband (1848-1915) e Rickert (1863-1936). Para Jaguaribe, "apenas após a elaboração das teorias relacionadas com o historicismo e o culturalismo, em meados do século passado, organizaram-se instrumentos teóricos que permitiam alcançar na ciência política a objetividade que as ciências culturais já haviam atingido em outros setores". Seriam, pois, aquelas perspectivas intelectuais as que permitiriam ao filósofo na crise do século XX "suprir com idéias às fissuras que se abrem no mundo das crenças". Seguindo os passos de Ortega y Gasset, dizia Jaguaribe que se impunha ao homem interrogar-se sobre quem era nesse tempo em que sentia perder valor "o que antes era valioso".
Impor-se-ia ao filósofo interrogar a realidade em que vivia, num ato de liberdade que buscava novas idéias que restaurassem o sistema das crenças. A filosofia era a fundamentação das crenças, decorrente de uma reflexão sobre a realidade e sobre as próprias crenças.11 É claro que Jaguaribe descrevia a crise das idéias do século XX a partir da observação da Europa. Mas sua preocupação maior era o Brasil, que, dizia ele, participava da crise ocidental e, portanto, experimentava "a necessidade de rever suas crenças e de elaborar uma resposta para os impasses da vida contemporânea". Podem-se acrescentar, também nos anos 1950, mas de certo modo à margem do caso do ISEB, exemplos dessa mesma sensibilidade historicista e culturalista que buscaram inspirar-se em contextos intelectuais e políticos de outra linhagem. Alguns deles em oposição aos isebianos, como Florestan Fernandes (1920-1995), que, em nome da ciência, repudiava o cientificismo. Pretendendo afirmar-se como cientista, desejava construir uma sociologia inspirada no funcionalismo de Émile Durkheim (1858-1917) e Robert King Merton (1910-2003). Recusava-se a aderir às teorias do culturalismo e do historicismo, e não esquecia suas críticas aos isebianos no plano da política e da ideologia. Isso, porém, não o impediu, impulsionado por um mesmo sentimento das urgências históricas, de aderir em meados dos anos 1960 a um marxismo cada vez mais político e ideológico. Talvez se possa dizer que, na maré montante do culturalismo e do historicismo, a grande exceção foi Caio Prado Jr., que, não obstante seus ensaios políticos (em especial Revolução brasileira), permaneceu ligado a um marxismo de caráter sistemático e às análises de infra-estrutura. Marxistas mais jovens, porém, nos anos 1960, deixaram-se seduzir pelas idéias do marxista húngaro Giorgi Luckács (18851971) e do filósofo existencialista Jean-Paul Sartre (1905-1980). Era meio caminho andado para a atmosfera culturalista e historicista predominante em outras opções políticas e que, na esquerda, reaparecerá nos anos 1970, nas linhas do marxismo historicista, inspirado, sobretudo, em Antonio Gramsci (1891-1937).
Economia e poder Embora nos primeiros anos da década de 1950 Jaguaribe estivesse mais voltado para as questões da filosofia e da cultura, já se pode observar nele o cuidado, que se tornaria crescente entre os isebianos, com os fenômenos da economia e do poder. Ele considerava que o crescimento das cidades e a expansão da indústria, resultante da desagregação da economia rural baseada no latifúndio, tornaria insustentável o "descompasso" entre as necessidades sociais e culturais do país e as possibilidades
das forças tradicionais. Esse diagnóstico, que merecerá desenvolvimentos ulteriores em O nacionalismo na atualidade brasileira, não diminuía, porém, a relevância da cultura na análise do autor sobre a história do país. Sem perder de vista as mudanças econômico-sociais, Jaguaribe descrevia, como já o dissemos, um cenário de crise da cultura. Entendia, por exemplo, que a literatura morrera nos anos 1940 e nada teria restado que lhe tomasse o lugar. Morria o literatismo e o verbalismo, mas, como a intelectualidade continuava bacharelesca, a crise "se manifesta pelo silêncio que reina nos meios intelectuais". Daí que haveria que criar uma "literatura de idéias, apta a responder às grandes questões que pairam irresolvidas". Haveria que buscar o caminho para a "fundação de uma cultura brasileira, herdeira da européia, integrada no espírito ocidental, mas vinculada à realidade do Brasil e representativa de suas necessidades". 12 Na crise dos valores, advertia Jaguaribe, surgia a necessidade da formação de uma nova classe dirigente. Se os intelectuais permaneciam em silêncio, as elites econômicas e políticas teriam atingido "o clímax de sua inépcia". Formar uma nova classe dirigente seria uma tarefa de urgência, que se colocava em face de dois riscos a evitar. A formação de novos dirigentes deveria ocorrer "a tempo de evitar que a situação internacional" se modificasse "com a afirmação de uma hegemonia mundial". Considerando favorável ao país a circunstância de um mundo dividido entre os EUA e a URSS, Jaguaribe entendia que, se viesse a se afirmar a hegemonia mundial de um único centro de poder, o país estaria subordinado, "no presente estado de subdesenvolvimento", "seja qual for o bloco vencedor, à condição de terra colonial, a serviço da força dominante".13 Haveria ainda um segundo risco que a formação de uma nova classe dirigente deveria evitar. Era o risco de "que a crise econômico-social do país desencadeie uma revolução do primarismo". Na situação social em que se achava o país, não estava excluída a possibilidade de assistirmos "à irrupção avassaladora do primarismo nacional que destruirá o pouco que se logrou edificar, no curso do tempo, como cultura e como civilização". A filosofia, "como resposta da liberdade à crise das crenças e como autoconsciência da cultura" tem a missão de construir "as bases ideais" para a conquista "de um destino superior para a comunidade brasileira". Que a aproximação dos isebianos à economia tenha sido feita pelos caminhos da cultura constitui, precisamente, um traço peculiar de sua concepção da história. Assim como desejavam para o futuro uma economia impregnada de cultura, também viam impregnados de cultura o presente e o passado. Se Helio Jaguaribe percebia raízes econômicas da crise dos valores, isso não significa que visse na economia algo de exterior aos valores. Para ele, cultura e economia seriam mundos que se
comunicam, em "um processo social de caráter global", "condicionado, entre outros fatores, pelas crenças substantivas e adjetivas de uma comunidade". Assim como "há culturas que não conduzem a uma transformação qualitativa deliberada do contexto econômico", a ideologia do desenvolvimento só pode ser concebida em culturas "que possuem, entre suas idéias-força, a propensão para o domínio do mundo, dentro de uma cosmovisão racional, mediante a sua configuração a serviço do homem".14 Nesse espírito, o ISEB pôde conceber o desenvolvimento como um crescimento orientado por um projeto nacional autônomo e intrínseco ao próprio crescimento.
Ideologia e história Nos primeiros anos, Helio Jaguaribe e Guerreiro Ramos caminhavam no mesmo sentido, embora em disciplinas diferentes. Guerreiro queria para o "pensamento sociológico" uma transformação similar à da observada na CEPAL, que "busca tornar a política e o pensamento econômicos dos países latino-americanos fatores operativos do seu desenvolvimento". Entusiasta da CEPAL e de Raúl Prebisch, Guerreiro queria para o pensamento sociológico uma capacidade de intervenção na realidade semelhante à que via no pensamento econômico.15 Queria a unidade da teoria e da prática. O que, de certo modo, o ISEB produziu, influenciando a ação de parte das elites e do Estado sobre a sociedade. Essa influência, mais visível na área da economia, esteve presente também na sociedade, não apenas por meio de instituições políticas, mas, sobretudo, de instituições culturais. Foram diretamente influenciados pelo ISEB os Centros Populares de Cultura (CPC), a União Nacional de Estudantes (UNE) e os movimentos de educação, em especial os ligados à Igreja, como o Movimento de Educação de Base (MEB) e os movimentos educativos ligados ao "método Paulo Freire". Cabe observar, porém, que em Guerreiro Ramos a economia aparecia mais como um bom exemplo daquilo que ele, sociólogo, desejava como política de intervenção na sociedade do que como um dos elementos de explicação das condições da crise da cultura e da política. Embora os isebianos tivessem, em geral, uma tendência a ampliar o lugar da vontade na política, Guerreiro Ramos parecia exigir da vontade política mais do que Helio Jaguaribe e Roland Corbisier já o faziam. Falando, por exemplo, da formação da nação brasileira, Guerreiro Ramos dizia que, diferentemente da Europa, onde as nacionalidades se formaram através de milênios de história, aqui o "problema nacional" só passou a existir depois da Independência. Com tal afirmação ele queria dizer que aqui o "problema nacional" era mais recente e, além disso, constituído pela vontade do Estado. Guerreiro Ramos entendia
que, no Brasil, o Estado formou-se antes da nação, e esta por vontade daquele. Subestimava uma herança histórica, e cultural, de três séculos, uma longa experiência que, se não podia formar um Estado, plasmou alguns elementos sociais e culturais decisivos para a formação da nacionalidade, entre os quais a mestiçagem de brancos, índios e negros, a sensibilidade religiosa católica e a unidade de idioma. Passava por alto uma longa experiência histórica e cultural – a colônia – que outros isebianos examinaram com cuidado. Para Roland Corbisier, a colônia foi um "fenômeno social total", uma "situação global, que afeta e tinge de um colorido específico todos os ingredientes que a constituem". Ele nos fala também de um "complexo colonial" em que tudo se ligava, e no qual a "alienação" foi o traço característico. Corbisier, que, entre os isebianos da primeira fase, era o mais propenso à filosofia, falava da colônia como de um "instrumento", no sentido atribuído a essa palavra por Heidegger (1889-1976). Ou de um escravo, acompanhando a célebre dialética do senhor e do escravo, de Hegel (1770-1831). Era um "instrumento", no sentido heideggeriano, não tinha finalidade em si, sua finalidade pertencia a outrem. E, como o escravo, não tinha nada que lhe pertencesse. Peculiar à colônia é que não era dona de si nem de seu destino, que, ambos, pertenciam à metrópole. Não obstante a linguagem filosófica e a relevância que Corbisier concede aos aspectos culturais, ele não se esquece de observar que, no "complexo colonial", o "principal ingrediente" era a "dependência econômica". Era, pois, essencialmente diferente da nação, que incluía "entre os seus traços ou ingredientes constitutivos – além do território, da língua e da psicologia comuns – a infra-estrutura própria e a coesão da sua economia". A nação incluía uma dimensão econômica, um "arcabouço"; "sem essa ossatura econômica não há nação".16 É em sua teoria da passagem da colônia à nação que a consciência e a cultura retomam todo seu significado. Diz Corbisier que, no colonialismo, como no escravismo, o ponto frágil da dominação é a ideologia. Assim como na escravidão, também no colonialismo a crença na superioridade de raça e de cultura inclui-se entre os valores que buscam justificar o domínio na consciência do colonizador. Mas essa crença convive mal com um princípio que também se encontra na ideologia do colonizador, que é "a tese democrática da igualdade fundamental dos homens". Uma "tese democrática" que, cabe acrescentar, tanto na colônia quanto na escravidão, só poderia ter uma origem religiosa, ou seja, uma origem no catolicismo vigente nas empreitadas ibéricas na América. Nessa contradição intrínseca da ideologia do escravocrata encontra Corbisier "o gérmen que irá provocar e justificar a revolta do escravo". Assim também no colonialismo: é na consciência dos colonizadores que se encontra o ponto frágil do sistema de dominação.
Da colônia à nação: o Estado cartorial Helio Jaguaribe, em uma conferência de 1957, oferece uma presença mais concreta do pensamento econômico na sociologia e na ciência política. Combinando sua visão política e social com a perspectiva econômica aberta por Celso Furtado em Formação econômica do Brasil, Jaguaribe viu as preliminares da grande mudança dos anos 1930 na lei de repressão ao tráfico de escravos (1850) e, depois, na lei da abolição da escravatura (1888). Ambas estimularam uma reorientação da economia, que, a partir da crise de 1929, tomaria escala na direção do mercado interno, gerando as primeiras condições para a transferência para dentro do país do centro dinâmico da economia. As mudanças que sobrevieram a 1850, liberando capitais até então empenhados no tráfico negreiro, seriam reforçadas, a partir da Abolição e da imigração estrangeira, com o início da formação de um mercado de trabalho livre. Jaguaribe consideraria ainda as dificuldades de importação causadas pelas guerras de 1914-1918 e de 19391945, acompanhadas das crises cambiais de 1920 e 1940. Foi no contexto criado pelo conjunto dessas mudanças e condições históricas que a indústria passou a substituir importações de bens de consumo e, depois, bens de produção. Foi, portanto, como resultado dessa longa história que "fomos compelidos a produzir internamente o que antes importávamos".17 Depois de três séculos e meio de colônia, o Brasil ingressou em 1850 numa fase semicolonial que duraria quase um século, para só então entrar, a partir de 1930, em sua fase de desenvolvimento nacional. "O Brasil deixou, assim, de ser um país pura e simplesmente semicolonial, como havia sido até por volta dos anos 1930." No plano da política e da cultura, essa longa história teria conduzido o país a uma auspiciosa coincidência dos interesses do proletariado, da burguesia industrial, do campesinato e da classe média, os quais teriam seus interesses "representados pelo desenvolvimento. Somente são contrárias as velhas classes latifúndio-mercantis", que, contudo, são classes minoritárias. Jaguaribe descrevia, pois, um longo processo de diferenciação estrutural da sociedade brasileira. Mas assinalava também – e aqui, de novo, entram em cena os aspectos políticos e culturais – que as perspectivas abertas em meados da década de 1950 indicariam possibilidades, não certezas. Esse passado que gerara o desenvolvimento nos havia legado também pontos de estrangulamento que poderiam bloqueá-lo, assim como urgências sociais que poderiam abortá-lo. No plano político, entre tais pontos de estrangulamento estava a lentidão do Estado, amortecido pela política de clientela. Ao longo da história teríamos criado um Estado cartorial incapaz da ação dinamizadora que o desenvolvimento impunha.
Embora em 1930 o país estivesse nos umbrais do desenvolvimento, o Estado cartorial e a política de clientela acarretavam, entre suas conseqüências, uma "monstruosa deformação do serviço público". A política de clientela, nascida da necessidade de atendimento a uma classe média que surgira como "subproduto" de uma urbanização que produzira cidades "infladas", mas de escassa capacidade produtiva, subsistia apenas como um mecanismo de preservação do poder do latifúndio mercantil. Estabelecia-se, desse modo, "um divórcio crescente entre as forças que dinamizam o processo econômico e as que continuam manobrando a política de clientela e controlando o Estado". "O dinamismo econômico é provocado pela burguesia nacional, pela burguesia industrial e pelos setores do Estado vinculados à empresa produtiva. (...) Todavia, o Estado cartorial continua manipulado pelas correntes que já não detêm o poder econômico, mas que continuam detendo o poder político."18
Primado da ideologia Assim como Corbisier fala da ideologia na passagem da colônia à nação, Jaguaribe afirma que os caminhos do desenvolvimento teriam que vir da "superação da política". E esta dependeria, essencialmente, da ideologia, mais especificamente, da ideologia do desenvolvimento. É que, embora minoritárias, "as velhas classes latifúndio-mercantis" ainda eram predominantes na orientação da imprensa, e conservavam a possibilidade de determinar a composição do Congresso Nacional, pela manobra das clientelas. Tudo passaria a depender de que "a ação empreendedora dos homens, representativa do processo do desenvolvimento, estabeleça contato com as grandes massas". Na medida em que tal ocorresse "as formas de política clientelista tendem a ser desmascaradas pela própria ineficiência, e as formas de política ideológica a substituí-las, propendendo a organizar-se nova forma no Estado".19 Era essa a possibilidade de desenvolvimento que Jaguaribe via aberta "no governo Juscelino Kubitschek". Segundo dizia, foi esse "um governo que suscitou a adesão das grandes massas rurais e urbanas e assumiu o poder sob a bandeira do desenvolvimento econômico e da transformação econômica e social do país". Era, porém, uma possibilidade, pois, a despeito de seus compromissos e intenções, "o governo se encontra em dificuldades para executar coerente e sistematicamente a sua política, dada a heterogeneidade das forças que compõem a maioria do Governo e do Congresso Nacional". Os fatos da política, pondo "sob a rubrica comum do PSD e do PTB tanto as forças vinculadas ao desenvolvimento econômico como as forças a ele contrárias (...) inevitavelmente retiram dos partidos que compõem o Congresso
a possibilidade de atuarem de modo coerente". A esses fatores políticos que percebia obstaculizando o desenvolvimento, Helio Jaguaribe acrescentava observações sobre a economia, por meio das quais abria uma ampla frente de divergência com alguns dos seus colegas isebianos. Seguindo Furtado, entendia que, na economia, "o principal problema (...) é o de expandir a nossa capacidade de poupar, inclusive mediante investimentos estrangeiros e orientar estes investimentos em uma linha que represente o máximo de essencialidade". Essa perspectiva sugeria pontos de divergência que aparecerão, mais claramente, em seu livro O nacionalismo na atualidade brasileira, motivo do debate que abriu a crise isebiana de fins de 1958. É certo que Jaguaribe insistia em que "a principal causa de estrangulamento do nosso desenvolvimento é o fato de não coincidir o processo de formação da poupança e de aplicação dos investimentos com as necessidades da população". Mas parecia impossível a alguns isebianos, orientados por um nacionalismo radical, admitir que os investimentos estrangeiros cooperassem no processo de desenvolvimento. E era isso, não obstante, o que já começava a ocorrer, desde o início do governo Kubitschek, com a implantação da indústria automobilística. No plano social, para Jaguaribe, os pontos de estrangulamento que embaraçavam o processo global do desenvolvimento brasileiro se encontrariam na permanência de privilégios de classe, cuja influência se estenderia além da política de clientela. Ele caracterizava um parasitismo que afetaria os três principais estratos da sociedade: o proletariado, a classe média e a burguesia. Nesses segmentos sociais, precisamente os que poderiam formar uma ampla base de sustentação para a política de desenvolvimento, ele encontrava mecanismos "de enquistamento, de maltusianismo, de proteção a formas de produtividades extremamente baixas". Exemplo disso estaria nos altos custos dos serviços dos portos, essenciais à exportação, indicando, de algum modo, a precariedade das bases sociais do projeto. Diante de tais pontos de estrangulamento, a mobilização ideológica passaria a ser fundamental para a criação de condições de eficácia do Estado e do planejamento. A mobilização ideológica seria indispensável para que os diversos setores da sociedade "conciliem o seu próprio interesse com os objetivos do plano". Tratar-se-ia, portanto, de ajustar a consciência das classes sociais a seus interesses reais, quais sejam os do desenvolvimento. Tendo em conta que as ideologias que correspondem às necessidades situacionais da classe operária, da pequena-burguesia e da burguesia se entrosam na mesma necessidade, de conjunto, de promoção do desenvolvimento, "o problema que se apresenta é, essencialmente, um problema de educação e de organização ideológica. (...) Na medida em que a educação ideológica se torna consciente, configura-se a
necessidade, de que não se apercebiam as classes, de padronizar os comportamentos políticos em moldes que superam a barganha clientelista, organizando-se tais padrões segundo as grandes diretrizes da posição ideológica". O que permitiria que o Estado, "a principal instituição nas condições do mundo contemporâneo", passasse a funcionar de maneira eficaz, seja entendido como agente, seja como expressão do sistema de normas que disciplinam o procedimento social.20
Ideologia e pragmatismo: Celso Furtado e Roberto Campos Não se pode passar por alto, nos anos 1950, as distâncias que mantinham as idéias com as ações políticas em geral, em especial com as ações de governo. Precisamente por haver sido uma época em que as idéias alcançaram notável relevância, mais necessário se torna distinguir as diferenças entre as formulações dos ideólogos e aquelas que acabaram moldando as decisões dos políticos, bem como as dos técnicos que, dentro ou fora do Estado, implementaram decisões cruciais para o desenvolvimento da economia. Porque eram diferentes as circunstâncias em que atuavam, teriam que ser diferentes as razões dos teóricos e dos práticos, embora todos imersos na atmosfera criada pelos debates entre as idéias nacionalistas emergentes e um liberalismo até então dominante. O nacionalismo e o liberalismo não tinham, no começo dos anos 1950, no segundo governo Vargas, fronteiras tão nítidas como ao fim do governo Kubitschek e, em especial, no governo Goulart. Pode-se dizer que, naqueles primeiros anos, as ideologias foram mais importantes no discurso do que nas práticas de Estado. O impacto das circunstâncias da história obrigou todos os protagonistas a variações e matizes, bem como a realinhamentos e desgarramentos, evoluções diferenciadas de pensadores e políticos. Enquanto não chegava o tempo, que só virá na década de 1960, do confronto entre o liberalismo extremado e o nacionalismo radical, as opções ideológicas foram menos importantes na prática do Estado do que no discurso que aliciava adesões dos movimentos políticos e sociais. Celso Furtado tornou-se, quase logo após seu ingresso na CEPAL, uma referência dos nacionalistas no pensamento econômico, mas isso não o impediu, no início de sua carreira, de transitar com facilidade entre os diversos grupos em que se dividia o pensamento econômico no país. Segundo ele relata em suas memórias, a indicação que o levou à CEPAL saiu do gabinete de Octavio Gouvêa de Bulhões (1906-1990), que formava com Eugênio Gudin a dupla de patriarcas do liberalismo então dominante. Como membro da CEPAL até 1957, Furtado ajudou a criar as idéias da nova tendência nacionalista, participando também de várias atividades no Brasil
como representante daquela instituição. Entre essas atividades, participou, a convite de Roberto Campos, do grupo misto BNDE-CEPAL, que, por sua vez, veio a ter forte influência no Plano de Metas do governo Kubitschek. Furtado não participou formalmente do ISEB, ao contrário de Campos, cujo nome consta da nominata dos fundadores do instituto, embora em caráter formal mais do que efetivo. Mas, a convite de Jaguaribe, Furtado desenvolveu em 1953 um ensaio sob o título "Interpretação histórico-analítica do desenvolvimento econômico", cujas idéias entraram em sintonia com as do ISEB. Seu ponto de partida nesse ensaio era o de que "estávamos lidando com um amplo processo de mudança cultural", com a "força criadora das civilizações" (...) "se há mudanças é porque existe a possibilidade de escolha, o que pressupõe uma margem na disponibilidade de recursos, um excedente com respeito ao estritamente necessário à sobrevivência da coletividade".21 Furtado recupera essa referência à cultura em suas memórias, quando se reconhece herdeiro de uma influência kantiana, em razão de sua formação urídica, e que, considera, só viria a ser "temperada na medida em que começasse a beber mais a fundo em fontes historicistas". Os cruzamentos entre os caminhos de Furtado e de Campos estão claramente descritos nos livros de memórias que publicaram quase ao fim de suas vidas, Fantasia organizada e Lanterna na popa, respectivamente. Na passagem dos anos 1940 para os 1950, Roberto Campos era um jovem diplomata de carreira que estudara economia nos Estados Unidos. Nas universidades norte-americanas formara, junto com a crença no planejamento suscitada pelas experiências do New Deal, também a convicção da necessidade da modernização do Brasil. Diz Celso Furtado: "Quando o conheci, (Campos) era um homem essencialmente preocupado com a modernização do país. Os anos que passara nos Estados Unidos haviam deixado forte impacto em sua visão do mundo. Tinha consciência do atraso do Brasil".22 Roberto Campos, com quem Furtado declara haver tido uma colaboração harmoniosa, era um dos jovens da diplomacia brasileira que acreditavam na CEPAL, recém-formada. "Seu interesse pelo planejamento decorria de uma preocupação quase obsessiva em reduzir o campo da 'irracionalidade' na política." Ele "confiava no poder da razão e desconfiava do caráter das pessoas. O nacionalismo lhe parecia uma força negativa, mas pelas paixões que despertava". O depoimento de Furtado sobre a participação de Campos na Comissão Mista é conclusivo sobre seu colega daqueles primeiros anos: "do lado brasileiro, a pessoa mais influente na constituição da Comissão Mista e seu co-presidente foi Roberto de Oliveira Campos; expôs-nos o projeto de criação do Banco de Desenvolvimento e convidou-me para integrar a equipe. As experiências da Nacional Financeira, no México, e da Corporación de
Fomento de la Producción, no Chile, haviam demonstrado que um banco de desenvolvimento é o mais importante instrumento de política de industrialização em países subdesenvolvidos".23 Esses primeiros anos 1950, em que os jovens Celso Furtado e Roberto Campos ensaiavam seus primeiros passos como líderes de idéias que viriam depois a ocupar posições separadas e adversas, eram também, para os mais velhos, anos de continuação de debates mais antigos. A partir de 1950, relata Furtado, abriu-se "uma ofensiva no plano acadêmico contra as idéias da CEPAL", por iniciativa de Gudin, que teria ficado chocado quando tomou conhecimento das idéias de Raúl Prebish. "Disse-me: 'Aonde vai Prebisch? Que significa isso de pregar a autarquia econômica?'." Segundo Furtado, Gudin considerava o nacionalismo "manifestação de burrice coletiva". Suas concepções econômicas se apoiavam no determinismo de Buckle: "Não há como negar que o desenvolvimento econômico é principalmente função do clima, dos recursos da natureza e do relevo do solo". Gudin considerava que a civilização ocidental se desenvolvera unicamente fora da zona tropical. Por isso não se surpreendia com o considerável atraso do Brasil dentro da América Latina, nem com o avanço da Argentina, que tinha melhor clima e melhores solos.24
Ideologia e pragmatismo: Rômulo de Almeida Deve servir de exemplo das usuais – e talvez inevitáveis – incoerências internas dos governos o fato de Getúlio Vargas ter tido a colaboração de Campos na Comissão Mista Brasil-Estados Unidos, no mesmo momento em que Rômulo de Almeida (1914-1988), representante de um nacionalismo econômico ao qual Campos se opunha, dirigia a assessoria do presidente. Da assessoria presidencial faziam parte, além de Rômulo de Almeida, os economistas Jesus Soares Pereira (1910-1974), Inácio Rangel, Tomás Pompeu Acióli Borges e Cleanto de Paiva Leite, todos nacionalistas, funcionários do Departamento de Administração Pública (DASP).25 Nessa incoerência governamental temos sinal de um profundo paradoxo da história. Como observa Campos, o nacionalismo do governo vinha menos da influência dos assessores, dirigidos por Rômulo de Almeida, do que do próprio presidente, apegado ao êxito da cooperação da época da guerra entre o Brasil e os Estados Unidos. Em Getúlio Vargas, paradoxalmente, o nacionalismo se beneficiara da política rooseveltiana da "boa vizinhança", que estimulou, do lado brasileiro, um interesse maior nos empréstimos de governo a governo para investimentos estatais em infra-estrutura do que em investimentos diretos de empresas. Essa disposição de cooperação sofreria, porém, substanciais mudanças em inícios dos anos 1950, passando os americanos a se interessar mais pelos investimentos de empresas do que
pelos empréstimos de governo a governo.26 E assim antigos companheiros de trajetória começariam a se separar. Em 1951, Getúlio Vargas fez um famoso discurso contra a remessa de lucros para o exterior, que, além da grita política que suscitou dentro do país, indicava uma disposição de Estado que, segundo Roberto Campos, criaria dificuldades para o ingresso de capitais. É também desses anos o grande debate sobre a questão do petróleo, a partir de um projeto do governo esboçado por Rômulo de Almeida. Embora permitindo em sua formulação inicial uma abertura para a participação de capitais privados, o projeto governamental suscitou um grande debate nacional e a oportunidade de um forte impulso nacionalista. Diz Celso Furtado que, nos começos de 1953, "o debate ideológico desdobrara de todos os lados"; o Partido Comunista "deslizara para um extremo radicalismo, que extravasava verbalmente na campanha popular de 'O Petróleo é Nosso'".27 Roberto Campos saiu do BNDE em 1953, divergindo de determinação de Vargas que colocara na presidência do banco um político considerado incompetente entre os economistas. "Rompido no BNDE com Getúlio Vargas, e transferido pelo Itamaraty para Los Angeles em fins de 1953 (só voltado ao Brasil em março de 1955), tive lazer para meditação. Distanciei-me cada vez mais do estruturalismo da CEPAL, aproximando-me do liberalismo de Gudin e Bulhões."28 A essa altura, porém, os aspectos políticos tomavam um movimento autônomo mesmo quando se tratava de questões econômicas. Na marcha dos acontecimentos, o projeto da Petrobrás foi alterado no Congresso por iniciativa do partido da oposição a Vargas, a União Democrática Nacional (UDN), conduzindo ao monopólio estatal e fechando a participação aos capitais estrangeiros. Os paradoxos se acumulavam no país, que caminhava rapidamente para a crise de 1954, da qual resultaria o suicídio de Vargas e uma sucessão de golpes e contragolpes.
JK, um rico herdeiro Juscelino Kubitschek firmou-se na história brasileira como a figura rara de um líder que cumpriu grande parte de suas promessas. Passados mais de cinqüenta anos de sua passagem pela presidência, sua promessa de "cinqüenta anos em cinco" ficou como algo mais do que um slogan de campanha. Mas é difícil compreender a dimensão de seu êxito sem as bases econômicas e políticas criadas por Vargas, das quais foi um rico e talentoso herdeiro. Seguindo as linhas gerais da política de industrialização iniciada por Getúlio Vargas, seus planos de governo abriram o caminho para a construção do país urbano e industrial que somos hoje. A construção de Brasília tornou-se a sua obra mais conhecida; não, porém, a mais importante. Sua
realização mais forte foi a implantação da indústria automobilística, pelo famoso Grupo Executivo da Indústria Automobilística (GEIA), por meio de uma linha de ação pela qual o governo abria espaços para o capital privado. No período Kubitschek, como já se disse, o Brasil começou a adquirir o perfil de um país industrial moderno. [<<29]
Juscelino no Fusca: com a implantação da indústria automobilística, o governo abriu espaços para o capital privado.
Também no plano das idéias, o maior talento de Kubitschek foi dar continuidade ao que herdara, mesmo que fosse a continuidade das contradições e dos paradoxos. Como Vargas, ele pretendia um crescimento econômico orientado para a ampliação do mercado interno. Queria também um crescimento a partir de investimentos que estimulassem, tanto quanto possível, o capital nacional, público ou privado, e o crescimento do emprego e da renda, bem como a diminuição das desigualdades sociais. O desenvolvimento, portanto, era pensado em termos de uma lógica de crescente autonomia nacional e democratização social. Essa lógica do desenvolvimento nacional, à qual Kubitschek acrescentou a preocupação, maior do que a de Vargas, de atrair capitais estrangeiros, funcionou numa escala difícil de conceber nas circunstâncias de hoje, cinqüenta anos depois. Durante seu governo a economia cresceu, o salário real aumentou, o nível de emprego subiu. O que significa que a "questão nacional", tratada pelo ISEB e que
adquiria ressonâncias maiores pela influência da CEPAL, e a "questão social", impulsionada pelas esquerdas e pelos sindicatos, permaneceram equacionadas nos termos da "questão do desenvolvimento". A lógica que conjugava essas "questões" deixou de funcionar, porém, em 1961, quando a economia entrou em depressão. Nada mais adequado do que designar os anos de Kubitschek como a época do "desenvolvimentismo". Criada e difundida pelos intelectuais, especialmente no ISEB, a expressão era nova. Pretendia descrever o esforço do país para acelerar a modernização, bem como consolidar a afirmação do nacionalismo como uma linguagem cultural e política. Foi também um momento histórico de valorização da democracia, no qual o presidente caracterizou-se pelo sentimento da conciliação e da tolerância. A exemplo de seu governo em Minas Gerais, que se orientava pelo binômio "desenvolvimento e energia", Juscelino Kubitschek gostava de organizar seu discurso político em binômios. Assim, é bem provável que descrevesse seu governo no plano federal com os termos "desenvolvimento e democracia". A história de seu brilhante período na história não terminou, porém, como ele gostaria. Assim como ninguém poderia prever o êxito de Juscelino Kubitschek quando chegou ao governo, ninguém poderia prever que o Brasil voltaria a um cenário de crises institucionais quando ele saísse. Kubitschek deixou o governo em 1960; já em meados de 1961 o país chegaria ao limiar da guerra civil. A resistência de setores conservadores a aceitar a posse do vice-presidente João Goulart, depois da renúncia de Jânio Quadros, foi o início de turbulências institucionais que levariam ao golpe militar que derrubou Goulart em 1964. Vitorioso o golpe, Kubitschek foi um dos primeiros de uma lista de dirigentes políticos que tiveram seus direitos políticos cassados, e da qual faziam parte ainda os ex-presidentes Jânio Quadros e João Goulart. Depois da derrubada dos ex-presidentes, dos líderes da esquerda e, em geral, dos herdeiros de Vargas, o golpe militar atingiria também seus criadores civis, como, em 1966, o ex-governador Carlos Lacerda (1914-1977). Pensado como provisório, apenas para "arrumar a casa", o golpe militar pôs abaixo toda a elite política civil da época de Vargas, consolidando-se numa ditadura que durou vinte anos.
1. F URTADO, Celso. A fantasia organizada. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1985; e C AMPOS, Roberto. A lanterna na popa. Memórias. 4. ed. Rio de Janeiro: Topbooks, 2004, 2 v. 2. F URTADO, op. cit, p. 43-44. 3. J AGUARIBE, Helio. O nacionalismo na atualidade brasileira. Rio de Janeiro: MEC/ISEB, 1958.
4. O grupo do ISEB era formado por colegas e amigos, não obstante as divergências que deveriam crescer e que terminaram por separá-los na política. Em 1954, em entrevista sob o título "Guerreiro Ramos e a descida aos infernos", Guerreiro revelou à revista Marco (n. 4, 1954) dois dos seus "mais amoráveis projetos": escrever "a história secreta de Abdias do Nascimento" e a biografia de Helio Jaguaribe. "Com o segundo projeto, pretendo fixar a fisionomia dinâmica de um pedagogo, fixar um momento importante da evolução cultural do Brasil, quando uma vida humana se faz matéria em que um determinado 'tempo' histórico impregna o seu sentido (...)". R AMOS, Introdução crítica à sociologia brasileira, cit., p. 267. 5. São muitos os estudos contendo informações sobre as origens do ISEB. Apóio-me aqui nas minhas conversas com Helio Jaguaribe, bem como na leitura de "O Negro como lugar", introdução de Joel Rufino dos Santos a RAMOS, op. cit., p. 19-31, e em PÉCAUT, Os intelectuais e a política no Brasil, cit., que resume ampla literatura a respeito. 6. Cadernos do Nosso Tempo, janeiro/março de 1956, p. 47-189. 7. R AMOS, Introdução crítica à sociologia brasileira, cit., p. 176 e seguintes. Ver também o prefácio do autor a O problema nacional do Brasil, cit., no qual o autor declara haver dado esse título ao livro "com plena consciência de que ele vai situar-se na tradição de sociologia militante no país, que vem desde o Visconde do Uruguai, Paulino José Soares de Souza, até Oliveira Viana, passando por Sílvio Romero, Euclides da Cunha e Alberto Torres. (...) O presente livro, como o de Alberto Torres, é uma tentativa de utilizar a ciência social como instrumento de organização da sociedade brasileira". 8. CORBISIER, Roland. Formação e problema da cultura brasileira. Rio de Janeiro: MEC/ISEB, 1958. p. 41; conferência feita em 1955 no curso do ISEB de "Introdução aos problemas do Brasil". 9. JAGUARIBE, Helio. A filosofia no Brasil. Rio de Janeiro: MEC/ISEB, 1957. p. 46. Esse texto foi publicado em outubro de 1952 no Jornal do Commercio, e depois incluído em volume sob o título Aspectos da formação e evolução do Brasil, publicado por aquele jornal na celebração dos seus 125 ano s. 10. Ver JAGUARIBE, A filosofia no Brasil, cit., p. 32. 11. Ibidem, p. 12. 12. Ibidem, p. 50-51. 13. Ibidem, p. 50-51. 14. JAGUARIBE, Helio. Condições institucionais do desenvolvimento. Conferências pronunciadas no Clube de Engenharia em junho de 1957. Rio de Janeiro: MEC/ISEB, 1957. p. 37. 15. Ver: SANTOS, Joel Rufino dos. O negro como lugar. In: R AMOS, Introdução crítica à sociologia brasileira, cit., p. 19-31. 16. CORBISIER, op. cit., p. 65. 17. JAGUARIBE, Condições institucionais do desenvolvimento, cit., p. 42. 18. Ibidem, p. 22 e seguintes. 19. Ibidem, p. 31. 20. Ibidem, p. 38 e seguintes. 21. FURTADO, op. cit., p. 178. 22. Ibidem, p. 155. 23. Ibidem, p. 154. 24. Ibidem, p. 138, 157 e 160. 25. Cf. D' ARAÚJO, Maria Celina. O segundo governo Vargas 1951-1954: democracia, partidos e crise política. Rio de Janeiro: Zahar, 1982. 26. CAMPOS, op. cit., p. 174 e seguintes. 27. FURTADO, op. cit., p. 162. 28. CAMPOS, op. cit., p. 167.
POSFÁCIO HISTÓRIA DAS IDÉIAS E DO PENSAMENTO POLÍTICO
Há diferença entre o povo sem escolha de condições e aptidões, como o quer Jean-Jacques Rousseau, e o povo que forma a comunhão civil perfeita, como entende São Tomás. ZACARIAS DE GÓIS E VASCONCELOS
As vicissitudes da história do pensamento brasileiro possibilitaram uma indagação que deu título a um pequeno ensaio de Raymundo Faoro (1925-2003): Existe um ensamento político brasileiro?. Faoro define de maneira clara a relação do pensamento com a cultura nacional: "Se há um pensamento político brasileiro, há um quadro cultural autônomo, moldado sobre uma realidade social capaz de gerá-lo ou de com ele se soldar".1 Essa pergunta, se referida ao presente, tem uma clara resposta afirmativa. Mas ela é mais interessante se entendida como se referindo à história, digamos às raízes do presente, às raízes históricas que geraram no país uma cultura e uma realidade social capazes de formar um pensamento brasileiro. Também nesse sentido histórico minha resposta para a pergunta seria afirmativa: nesse longo período da formação de sociedade brasileira, formou-se um pensamento brasileiro, extensão do pensamento luso. Como vimos neste livro, temos um pensamento brasileiro que expressa a história da Ibéria, de Portugal e do Brasil, com suas raízes medievais e uma tradicional e inextricável unidade de aspectos políticos, econômicos e sociais. Um pensamento que, mesclando as dimensões políticas e sociais, é semelhante no aspecto formal ao pensamento político clássico ocidental. Também, como este, construiu uma teoria da política e da sociedade, diferindo, porém, na substância, no conteúdo. Assegura, desse modo, a possibilidade de uma comparação que ressalta sua originalidade.
Pensamento político e Estado moderno O pensamento político moderno nasceu na Europa quase ao mesmo tempo que nascia o Estado nacional e se anunciavam os primórdios da sociedade moderna. Maquiavel (1469-1527), como se sabe, não apenas desvendou segredos do Estado em formação. Ele queria também criar um Estado nacional na Itália. Concentrando suas atenções nos fenômenos de secularização do poder, o secretário florentino ofereceu perspectivas para o estudo não apenas do Estado, também da sociedade. É nesse sentido que o surgimento do Estado, como algo distinto da pessoa do monarca, está
na raiz de um pensamento político que envolve aspectos que hoje diríamos sociais. A luz projetada sobre as relações de autoridade e obediência, ou seja, sobre o campo do poder, iluminava mudanças em curso nas demais dimensões da sociedade. No Brasil e, de modo geral, na América ibérica, nos séculos XVI e XVII, não começava um Estado, mas o parto doloroso de povos novos. Essa peculiaridade de origem conferiu ao pensamento político ibero-americano, desde os inícios, o traço distintivo de uma dominância dos aspectos sociais. A primeira grande novidade do pensamento da América ibérica estava no confronto de portugueses e espanhóis com uma humanidade que desconheciam. Assim, desde a partida, o objeto desse pensamento foi mais social e cultural do que político. Se na Europa do Renascimento o pensamento político tornou-se o centro de uma reflexão que começou a distinguir outras dimensões da sociedade, aqui nem a circunstância social nem o olhar que a examinava exigiam uma distinção de aspectos políticos, entendidos como autônomos. No início da Idade Moderna, a velha Europa ocidental, – à parte os países católicos da Ibéria, como sempre cercados de circunstâncias excepcionais – começava a redefinir os fundamentos da autoridade e da obediência e a rever as concepções medievais do Estado e da sociedade. Surgia uma tendência à separação da religião e da política que deveria prosperar nas cidades italianas, assim como na Inglaterra, na França e na Holanda, aprofundando-se nos confrontos políticos e religiosos ulteriores à Reforma. Essas mudanças fizeram do rei uma figura independente da Igreja, mas não independente de Deus nem das leis da natureza. Mesmo as teorias que concentravam poder nas mãos do monarca, como as de Jean Bodin (1530-1596) e Thomas Hobbes (1588-1679), preservaram o respeito à liberdade e à propriedade dos súditos. É que ao mesmo tempo que mudava a sociedade, surgiam os novos pressupostos do Estado moderno, através de uma cultura que reconhecia os indivíduos e uma noção de igualdade entre indivíduos. O movimento das idéias dos séculos XVI e XVII, culminando nas teorias de John Locke (1632-1704), estabeleceu os fundamentos de um "contrato" que permitiria conceber velhos reinos medievais como comunidades políticas nacionais, com uma nova concepção da legitimidade do poder e do mercado. Essas linhas de um pensamento político moderno encontrariam na Inglaterra contrapartida em uma linha autônoma do pensamento econômico que começa no século XVIII, com Adam Smith (1723-1790). Esses desdobramentos, dos quais se podem encontrar exemplos na França e na Holanda, expressavam tendências mais profundas da sociedade a uma diferenciação de estruturas que se tornaria típica das sociedades modernas. Estruturas econômicas, sociais, políticas etc. – a sociedade moderna passaria a caracterizar-se por uma pluralidade de dimensões com qualidades específicas.
Assim como o desenvolvimento da sociedade e da economia européias, o desenvolvimento diferenciado das idéias alcançou de maneira também diferenciada as colônias na América. Enquanto as colônias ibéricas, frutos precoces dos descobrimentos, nasceram sob o signo das influências da última Idade Média, as colônias inglesas surgiram mais de um século depois, quando já ia avançado na Europa, sobretudo na Inglaterra e na Holanda, o rompimento com as tradições medievais. Desse modo, acompanharam os ritmos do pensamento europeu moderno, permitindo o desenvolvimento de um pensamento político diferenciado em relação às colônias ibéricas do Sul. Cabe mencionar, a propósito, a peculiaridade do pensamento político nos Estados Unidos, que, já a partir da Independência, dá exemplo nos artigos de Alexander Hamilton (1755-1804), James Madison (17511836) e John Jay (1745-1829), reunidos no Federalista, de um conjunto de reflexões fundadoras da democracia norte-americana.2 As mudanças culturais dos séculos XVIII e XIX, em Portugal e no Brasil, não alcançaram as mesmas conseqüências que se conhecem na Inglaterra e nos Estados Unidos. É certo que a Ilustração pombalina e a Independência brasileira acrescentariam dimensões propriamente políticas à tradição do pensamento lusobrasileiro. Além de Pombal, no século XVIII português, são lembrados no Brasil do século XIX nomes notáveis, como os de Bernardo Pereira de Vasconcelos, o Visconde do Uruguai, o Marquês de São Vicente e o senador Nabuco de Araújo, cada qual com marcas especificamente políticas. Mesmo José de Alencar, mais conhecido por sua notável produção como romancista, deixaria reflexões valiosas sobre o sistema representativo.3 Mas, se contribuíram para esclarecer dimensões políticas do Império, esses políticos e pensadores não foram capazes de erguer suas reflexões à autonomia do pensamento político moderno. O que significa que a reflexão sobre a democracia política terá que esperar por fundamentos que só começarão a surgir nas primeiras décadas do século XX, a partir de novos desenvolvimentos na sociologia e na antropologia.
Uma nova humanidade Eis a peculiaridade fundamental do pensamento luso-brasileiro: seu tema primordial não vem do rompimento de modos antigos do poder, como na Europa, mas do contato dos europeus com culturas e povos que desconheciam. A primeira questão colocada ao pensamento luso-brasileiro por Nóbrega e Vieira foi a do reconhecimento dos povos novos. Nem mesmo Pombal, que consolidaria a dimensão do Estado na tradição luso-brasileira, deixou de prestar esse reconhecimento aos aspectos sociais: seu conflito com os jesuítas foi, em grande parte, um conflito sobre
os índios. E, como não podia deixar de ser, preservava os compromissos da Coroa com a construção de uma "sociedade cristã", parte de um tradicional discurso religioso que, desde as origens, conviveu com o pragmatismo e a violência que tornaram possíveis a conquista e a colonização. A indagação sobre a humanidade dos povos conquistados constituirá a primeira raiz desse pensamento brasileiro que se construirá, ao longo do tempo, cimentado por uma mentalidade de forte herança medieval. O índio inspirou alguns dos mais belos sermões de Antônio Vieira, no XVII. Mesmo quando o "último grande pregador da Idade Média" deu mostras de seu talento como estrategista político da Coroa, sua preocupação maior foi sempre atribuir ao Império uma missão evangelizadora. O tema do negro, ao qual o jesuíta dedicou atenção menor, desenvolveu-se menos no discurso do que na ordem prática das coisas, sob controle dos traficantes e dos senhores de terra, submetidos os escravos negros às exigências da grande propriedade, sem encontrar quem combatesse a injustiça contra eles praticada. Juntando-se, no século XIX, ao tema dos índios, o tema do negro acrescentou-se a outros numa sequência de temas mais antigos – dos árabes e judeus – sobre a incorporação de povos não cristãos à humanidade de Cristo. A cultura e o pensamento brasileiros formaram-se sob o peso desse passado ibérico, que persistiu depois das mudanças que viriam com D. João VI e com a Independência brasileira. Mesmo a abertura do Segundo Reinado às influências francesas e inglesas esteve longe de significar uma ruptura dessa tradição. Como disse Angela Alonso, a cultura do Segundo Reinado se sustentou no "liberalismo estamental" e no catolicismo hierárquico da tradição ibérica, além do indianismo romântico que lhe deu as cores mais visíveis. Um dos aspectos típicos do poder daquela época é que "o 'sistema representativo' espelhava a hierarquia social". Ou seja, no sistema representativo não se representavam indivíduos, mas "as famílias que compunham a comunidade". Eis uma realidade da qual os líderes do Império tinham plena consciência, pois eram capazes de perceber que, como dizia Zacarias de Góis e Vasconcelos, "há diferença entre o povo sem escolha de condições e aptidões, como o quer Jean-Jacques Rousseau, e o povo que forma a comunhão civil perfeita, como entende São Tomás".4 Assim como no Portugal de Pombal, também no Brasil de D. Pedro II as mudanças nessa tradição são acréscimos, não rupturas. Desse modo, a obra da formação do Estado nacional à qual se dedicaram conservadores e liberais do Império parecia sempre inconclusa. Por mais que esses líderes tenham desenvolvido estudos e reflexões sobre a ordem institucional, persistiam neles urgências de origem social. Na prática, mais do que em suas obras ou discursos, liberais e conservadores do Império estavam obrigados, como todos em sua época, ao tema da
escravidão. Um exemplo do peso constrangedor da "questão social" sobre a possibilidade de um pensamento político autônomo foi a indecisão do Império diante da elaboração do Código Civil, tantas vezes postergado. Há outros exemplos. Como definir uma monarquia constitucional que se ergue sobre o solo de uma sociedade escravocrata? Uma pergunta formulada por muitos, embora sem resposta. E que teve desdobramentos: como definir uma monarquia constitucional quando tudo o que há de importante na política depende do "poder pessoal" do imperador? Como disse Nabuco, nas mudanças de ministério ou nas reformas que conduziram à Abolição, a vontade do imperador tinha que substituir o povo, que a seus olhos não existia. O caminho para o que haveria de mais criador no pensamento político brasileiro deveria passar obrigatoriamente pelo social. Na Primeira República, a predominância do social sobre o político ocorreu mesmo no interior da obra de pensadores que, como oliveira Viana, foram excelentes observadores da política. Foi assim também na Segunda República com os "intérpretes do Brasil", que escreveram obras de inegável significado político e, no entanto, de conteúdo basicamente social. Foram as primeiras obras de Gilberto Freyre, Sérgio Buarque e Caio Prado Jr. que começaram a fechar o círculo das indagações sobre a nova humanidade. Nesse sentido, os fundadores do ISEB foram legítimos sucessores, aos quais incumbiu retomar o tema das origens coloniais e da formação do povo. Dos anos 1920 aos anos 1950 esses pensadores nos deram a perceber que o grande problema das elites na formação da sociedade brasileira era menos o de criar um povo do que o de reconhecer o povo realmente existente e que, aliás, nessas mesmas décadas, começava a emergir para as luzes do cenário político. Foi depois de 1950 – e muito por influência dessas levas de pensadores de após 1920 e 1930 – que se desenvolveram no país a ciência política, a sociologia, a antropologia e a economia, como ciências.
Povo e Estado: a construção bifronte Na história do Brasil o tema da formação do povo sempre se associou aos temas da mestiçagem e da escravidão. Que gente era aquela que surgia da mistura dos índios, que já estavam aqui, com os brancos e negros que passaram a vir de fora? Desde Nóbrega e Vieira, sempre se lamentou que este país tivesse que crescer sobre as misérias dos índios, dos negros, dos mestiços e dos mamelucos que proliferavam em todo o território. Teria sido melhor, pensava-se, que fosse de outro modo, mas, afinal, como se dizia dos índios, os "naturais" eram muitos. É atribuída a Tomé de Sousa, o primeiro governador-geral, esta frase brutal sobre os índios: "Ainda que os
cortassem em açougue, nunca faltariam".5 À parte a crueza dessa frase, o fato é que, desde os primeiros momentos da colônia, não havia como evitar referências à estranha gente com que se confrontaram os portugueses na América nos primeiros séculos. Esses índios, mamelucos, mestiços e negros poderiam formar um povo? No entusiasmo dos primeiros anos da Independência, José Bonifácio respondeu a essa pergunta de modo afirmativo e inovador. E, desde José Bonifácio até Joaquim Nabuco, passando por Bernardo Pereira de Vasconcelos, as indagações sobre o povo andavam emparelhadas com outras, sobre as debilidades de um Estado liberal que se apoiava sobre os escravos. A pergunta sobre como construir uma nação e um Estado liberal sobre uma sociedade de escravos só encontrou resposta na perspectiva de Nabuco, que, como sabemos, descrevia a escravidão no Brasil como um "fenômeno social total". O que significa dizer que para construir um Estado liberal seria necessário destruir não apenas a escravidão, mas também a "obra da escravidão". Mais do que abolir a escravatura, ele queria mudar a sociedade, reconhecer a cidadania dos negros, e desse modo abrir os caminhos para a fundação (ou refundação) da nação. Assim, se o povo é o tema primordial da história das idéias no Brasil, o tema relativo à formação do Estado chegou a nós com enorme atraso. Ao contrário do que muitos pensam, o povo e a cultura brasileira, com a sua imensa diversidade, formaram-se aqui antes do Estado, que só começou a ser construído com a chegada de D. João VI e com a Independência, depois de três séculos de duração da colônia. Não se pretenda que pudesse substituir o Estado inexistente uma administração colonial vinculada a uma metrópole débil e decadente. Além disso, uma administração colonial submetida a um reino ainda feudal que deveria passar pela submissão à Coroa espanhola na União Ibérica e por provas constantes de fraqueza no controle da sua colônia americana. No século XVIII já se havia construído no Brasil uma colônia mais forte do que a metrópole. Mas só no século XIX começaria a ser construído no país um Estado com capacidade de controle e domínio sobre o amplo território, desde logo ameaçado por rebeliões e separatismos. E, para construí-lo, as iniciativas que estabeleciam o Estado real combinaram-se com a construção de um povo imaginário, apoiado nos devaneios da imaginação romântica e da idealização literária dos índios. Mas, além da ilusão ideológica, esse povo inexistia para todos os efeitos práticos da política. O povo imaginário, na realidade formado por índios enfurnados na mata ou desaparecidos no passado, era tão ausente da política quanto o povo real, formado na sua maioria por mestiços, em grande parte marginalizados, e negros, muitos dos quais eram escravos. Ao mesmo tempo, criou-se, por meio de um programa intelectual inspirado em
decisão de D. Pedro II, uma história do Brasil. Construiu-se, assim, uma visão do povo e uma imagem da história, ambas "em sintonia com as instituições políticas criadas com o Segundo Reinado". Construiu-se, lado a lado, uma visão "harmonizadora e hierarquizante" do país.6 Os devaneios românticos e a historiografia historicista funcionaram para os príncipes de Orleans e Bragança como parte da ideologia do Estado. E a construção do Estado, aliás, por meios muito práticos, não ocorreria sem o brutal realismo das guerras regionais, nem sem o senso estratégico que orientou a geopolítica imperial, definindo as fronteiras do país, basicamente nos mesmos limites que conhecemos hoje. Do mesmo modo, deveria ser beneficiária de decisões da Coroa que conduziram a medidas de real mudança da sociedade: o fim do tráfico de escravos, a abolição da escravatura e a imigração européia. O problema do reconhecimento das elites em face do povo real permaneceu na Primeira República, embora tivessem mudado o regime e as circunstâncias políticas. Embora Joaquim Nabuco e Euclides da Cunha tivessem prenunciado mudanças de mentalidade, estas só se tornarão efetivas no pensamento brasileiro a partir dos decênios de 1920. Na Primeira República, embora já não houvesse escravos, supunha-se que o povo, submetido ao latifúndio, ao "grande domínio rural", não formava de fato uma sociedade. Nesse aspecto, a obra bifronte só chegou a termo na primeira metade do século XX, com a urbanização e a industrialização, nos decênios atribulados anos da "era Vargas".
Cultura política: ambigüidades e desigualdades Os temas referentes ao povo e ao Estado formaram o pensamento brasileiro em um processo que atropela as cronologias. À parte o tema do Estado, que se esboça no século XVIII com Pombal e que se acrescenta no século XIX com a Independência brasileira, a única seqüência da qual se pode legitimamente falar quanto aos temas referentes ao povo é a da dominância desse ou daquele tema nas diferentes épocas da história. Assim, o tema dos judeus foi dominante na passagem do século XV para o XVI. O dos índios, no século XVI até o XVII. O dos negros, no século XIX. O dos pobres – ou o da desigualdade – dominante, a partir das primeiras décadas do século XX. Foram temas coetâneos nas origens do país e se mantiveram ao longo de uma história de séculos na qual se acham as raízes de algumas ambigüidades fundamentais do pensamento e da cultura política. A experiência traumática dos primeiros séculos de como incorporar (ou excluir) os judeus legou-nos uma ambigüidade, até hoje persistente, em torno da iniciativa econômica que visa ao lucro. A tradição medieval fechava aos judeus as atividades
consideradas nobres, só lhes deixando abertas algumas das atividades que impedia aos cristãos. Além disso, tendo se tornado refratária à concepção individualista criada pela Reforma, a cultura tradicional teve sempre enorme dificuldade em reconhecer a liberdade de iniciativa dos indivíduos pertencentes à plebe. A iniciativa individual seria atributo dos nobres, regulada segundo normas estamentais, no mais das vezes relativas ao poder e à guerra. Foi assim que o lucro e, por extensão, o êxito, estiveram sempre, na cultura brasileira, maculados de suspeição, tisnados de ilegitimidade. Vem dessa mesma tradição a desvalorização do trabalho. A observação de António José Saraiva sobre as Índias vale, com certeza, para a colônia brasileira: "o desdém pelo trabalho manual (constituiu) o ideal até dos vilãos, com os quais, aliás, se confundiam pela miséria econômica os fidalgos pobres, reduzidos a ínfimos patrimônios ou a uma vida de expedientes".7 Essa antiga tradição medieval de menosprezo pelo trabalho continuou na escravização dos índios e dos negros. "Trabalhar como um mouro", dizia-se na península; "trabalhar como um negro", dizia-se na colônia e no Império. Porque o trabalho físico permaneceu durante muito tempo uma qualidade ligada a raças consideradas "inferiores", sua valorização só começará a encontrar algum lugar na cultura brasileira com as migrações européias, brancas, de italianos e alemães, em fins do século XIX. À tradição do medievalismo ibérico juntaram-se as circunstâncias de uma colônia de três séculos e de um regime escravocrata que durou um século a mais, para fazer d a desigualdade algo de intrínseco à cultura brasileira. Apoiada, nos primeiros tempos, nas interpretações então prevalecentes dos Evangelhos e das idéias da Antigüidade retomadas pelos humanistas, consolidou-se aqui uma concepção que entendia a desigualdade entre os homens como natural. Uma concepção que estava em direto contraste com a frase com a qual Rousseau inicia o Contrato social: "O homem nasceu livre". Não se acreditava aqui que a desigualdade nascia da sociedade, mas que vinha do berço. Acreditou-se durante muito tempo que os índios e sobretudo os negros não nasceram livres, embora tivessem alma, como mandava reconhecer a boa religião. Anterior ao igualitarismo que justificaria as revoluções inglesas, americana e francesa, essa noção de desigualdade natural acabou por impor-se durante séculos aos usos e costumes do Brasil. Algo de semelhante ocorreu no México e no Peru, com suas grandes populações indígenas desde o começo submetidas ao domínio dos encomenderos. Foi assim, por formas e caminhos diversos, que a desigualdade herdada da cultura medieval encontrou na experiência ibero-americana suas próprias razões para se consolidar como algo natural. Também era fundamental, contudo, às doutrinas da Igreja na época dos
descobrimentos reconhecer que índios e negros, embora pagãos, tinham alma, devendo por isso ser conquistados para Deus. A conhecida diferença de tratamento nesses casos, lutando a Igreja contra a escravização dos índios ao mesmo tempo que aceitava a dos negros, não vinha das interpretações teológicas, mas dos usos e das tradições medievais que consideravam normal a escravidão dos negros, imposta pela cobiça e pela violência com que o mundo entrava na era moderna. Como assinalou um historiador, "os usos do reino, a tradição da Antigüidade consentiam na escravidão". 8 No impasse entre as doutrinas da Igreja e as tradições da sociedade, os caminhos tornaram-se sinuosos e propensos ao sofisma. Não faltou em Portugal dos séculos XIV e XV, como no Brasil dos séculos seguintes, quem dissesse que a captura dos negros na África para transportá-los à Europa ou à América era um modo de lhes salvar as almas. Argumento semelhante ocorreu também, em alguns casos, diante do problema da escravização do índio. Nóbrega e Anchieta, no Brasil, embora também críticos dos povoadores, admitiam que a evangelização dos indígenas só seria possível no quadro da expansão da colonização. E sabiam que naquele momento a colonização dependia do apresamento dos índios.
Igualdade, desigualdade e racismo Na sociologia, fala-se de "desigualdade" para mencionar uma relação de domínio (ou de autoridade), relação de "superior" a "inferior", qualquer que seja o sentido social que se lhe atribua. Não é apenas uma "diferença", mas uma diferença situada em alguma hierarquia, de riqueza, de prestigio ou de poder. Assim, em contrapartida, o que se entende por igualdade não significa necessariamente uniformidade; pode comportar diferenças. É o que ocorre nas sociedades pluralistas, modernas e democráticas, nas quais se reconhecem diferenças entre indivíduos e cidadãos que são, em princípio, iguais. De acordo com as mesmas premissas, pode haver também uma igualdade de pessoas socialmente desiguais – por exemplo, nas sociedades medievais, a igualdade dos cristãos. "A César o que é de César, a Deus o que é de Deus" – eis o princípio que, na decadência do Império Romano, permitiu reconhecer que os homens têm alma e que são iguais diante de Deus. Nos Estados Unidos, desde a partida, assumiu-se como natural a igualdade dos peregrinos, puritanos e brancos, das colônias da Nova Inglaterra que Thomas Jefferson (1743-1826) reafirmou, em 1776, na Declaração da Independência: "Consideramos estas verdades como evidentes por si mesmas, que todos os homens são criados iguais, dotados pelo Criador de certos direitos inalienáveis, que entre
estes estão a vida, a liberdade e a procura da felicidade". Se for assim, como entender a escravidão? Como entender, depois da escravidão, a virulência do racismo norte-americano? Gunnar Myrdal, em estudo clássico, The negro problem and modern democracy, diz que esse igualitarismo, limitado aos brancos, é uma premissa do racismo norteamericano. Ao contrário dos ibéricos, que, admitindo a desigualdade como natural, entendiam que os negros tinham alma embora continuassem escravos, os brancos anglo-americanos admitiam a escravidão porque, ao mesmo tempo, pensavam que o negro não pertencia à humanidade. Os negros podiam tornar-se escravos não porque assim se salvariam as suas almas, como pretendia Vieira, mas, precisamente ao contrário, podiam tornar-se escravos porque não teriam almas e, portanto, não poderiam ser salvos. Podiam tornar-se escravos porque não eram homens. Daí que, diz Myrdal, o racismo norte-americano se apóia na premissa de uma igualdade dos brancos, da qual se acham excluídos os negros. É diferente a lógica do racismo brasileiro. As ambigüidades do racismo brasileiro apóiam-se na premissa de uma desigualdade que a nossa cultura admite como natural. Para uma tradição como a brasileira, todos os homens têm alma, pertencem à mesma humanidade criada por Deus e são reconhecidos como Seus filhos. Mas cumprem funções diferentes na "sociedade cristã". São iguais diante de Deus, mas desiguais no mundo dos homens, no qual Deus lhes conferiu funções desiguais, não apenas diferentes, em face dos brancos. Daí que a escravidão dos negros não apenas seria possível como também ustificável: de outro modo, continuariam como pagãos, nas selvas africanas, perdidos para Deus. Trazê-los para a América, mesmo à custa de fazê-los escravos, seria um modo de incorporá-los ao povo de Deus. Uma diferença de concepção que repercute sobre a natureza do racismo: porque são também filhos de Deus não devem os escravos ser tratados com brutalidade, um ponto de honra do combate dos esuítas. Embora os negros possam ser vistos como "coisa" no campo do Direito, não devem ser tratados como "coisa" no campo das relações humanas.
Estado e desigualdade Numa sociedade que assim interioriza a desigualdade, o reconhecimento da igualdade não poderia vir da própria sociedade. Teria que vir de fora – do Estado, da religião ou da influência de outros países. Num primeiro momento, o reconhecimento da igualdade dos índios (no sentido de que não poderiam ser escravizados) veio da Igreja e da evangelização. A seguir, nos momentos mais
decisivos da história de Portugal e do Brasil, tais influências de sentido igualitário vieram do Estado. Não por acaso, um Estado em crescimento, como ocorreu com Pombal e, tempos depois, no Brasil, com D. Pedro II, e, ainda mais tarde, com Getúlio Vargas. Sempre em momentos em que o Estado que se destacou da espontaneidade da vida social e a ela se opôs, mesmo que por um curto período. Pombal incluiu a liberdade dos índios na primeira grande tentativa de reforma intelectual e cultural ocorrida em Portugal, com conseqüências sobre a unidade territorial do Brasil e sua independência. No estilo do despotismo ilustrado, impôs a liberdade dos índios aos povoadores que os escravizavam, e aos jesuítas, que os defendiam, mas que ofereciam uma face de insubmissão ao Estado. O Brasil teve que esperar mais de um século para que outras decisões começassem a criar, lentamente, as premissas de uma sociedade de trabalho livre. Nos dois casos, a iniciativa coube ao Estado, que, embora influenciado pela mentalidade cultural dominante, conseguiu agir como se estivesse fora da sociedade, introduzindo novos vetores que, no longo prazo, haveriam de modificá-la.
Idéias e circunstâncias A história das idéias supõe a iniciativa, não a onipotência, das idéias. Nem poderia supor uma tal onipotência uma história das idéias do Brasil, um país que herdou, unto com a valorização de crenças tradicionais, também a valorização da experiência. E, por conseqüência, uma propensão ao empirismo e ao pragmatismo, que de algum modo se viu reforçada pela difusão do empirismo lockeano realizada no período pombalino.9 Em todo caso, essas atitudes ligadas à valorização da experiência revelaram-se desde a sobriedade descritiva da Carta de Pero Vaz de Caminha e se estenderam nas várias tentativas pelas quais foi possível implantar o sistema de capitanias. Junto com as crenças religiosas, os descobridores e conquistadores estavam preparados para as surpresas que lhes reservavam as novas realidades da América. Assim como as palavras de Deus, colhidas nas escrituras sagradas, combinaram-se com as escritas profanas do Renascimento, também as idéias que orientaram a construção do país não tinham como evitar as circunstâncias nas quais deveriam atuar. Essas idéias formaram a cultura brasileira no mesmo movimento em que se deixaram surpreender pelas peculiaridades e imprevistos da sociedade em formação. Em alguns textos de Anchieta e Nóbrega pode-se perceber a surpresa dos jesuítas diante dos índios que a cultura medieval desconhecia. Mesmo conhecendo os povoadores, os jesuítas não deixaram de surpreender-se diante de comportamentos novos, às vezes esdrúxulos, impostos por circunstâncias novas para todos. É nesse
movimento – que se multiplica, se amplia e se aprofunda ao longo da história – que o olhar de fora, que está na origem do novo país, vai se tornando parte da sua realidade. O que se diz das idéias e dos homens se diz da própria sociedade. As idéias que vêm do olhar de fora têm limites, que aparecem na medida mesma em que as idéias se realizam – aliás, quase sempre de um modo surpreendente. Essa dialética entre projetos e circunstâncias não é exclusiva do Brasil. O peruano Garcilaso de La Vega (1539-1616) descobriu, num certo momento, que não era espanhol nem índio, mas mestiço. Os portugueses João Ramalho (1493?- 1580) e Diogo Álvares, O Caramuru (1475?-1557), que foram deixados nas praias da recém-descoberta Terra de Santa Cruz e aqui formaram família, tiveram, por certo, seus momentos de surpresa diante dos filhos mestiços, que iniciavam linhagens brasileiras. Nem foram essas surpresas e descobertas exclusivas das relações entre povos diversos que miscigenavam no Novo Mundo. Diriam respeito também a projetos relativos à organização econômica da sociedade colonial. Deve ter havido um momento em que, diante do êxito da economia açucareira de Pernambuco nos séculos XVI e XVII, o antigo modelo colonial da Madeira tornou-se mera reminiscência. No Brasil, como em outros países ibero-americanos, surgiram bem cedo esses encontros (e desencontros) entre idéias e circunstâncias, primeiros sinais de que uma nova nação começava a nascer. Esse movimento de idéias que, como os conquistadores, vinham de fora, e se encontram com circunstâncias por estes desconhecidas, marcou desde as origens a cultura brasileira. Não é um traço exclusivo do Brasil, nem apenas dos países iberoamericanos, estendendo-se também às colônias inglesas. De um modo geral, as Américas nasceram de um olhar que se equivocou muitas vezes diante de realidades que os europeus desconheciam. Em seus muitos equívocos – a começar por Colombo, que imaginava haver chegado às Índias –, sobraram a esse olhar de fora motivos de deslumbramento com a natureza e com os índios, tanto quanto excessos de violência. Como as colônias da Inglaterra, as da Ibéria têm em comum não apenas uma origem religiosa, mas também o fato de ser a novidade da história do mundo que as polêmicas religiosas ajudaram a acentuar por meio do tema fundamental da conquista da humanidade para Deus. Foi desde o início visível para os conquistadores que os "países novos" tinham de peculiar o ter nascido de uma intenção. Não estão aí "desde sempre", como se pretendem alguns países do Velho Mundo. Daí a relevância particular de uma história das idéias nesses países que nasceram de uma intenção, ou de intenções. Se a história é sempre uma construção, nesses países novos o é mais do que em
qualquer parte. Eles devem sua existência a um projeto – algum projeto – que tanto pode vir do Estado como da Igreja, no caso do Brasil especialmente da Companhia de Jesus. Ou que, no caso dos Estados Unidos, pode vir de movimentos religiosos dissidentes que buscavam novos territórios para pregar sua fé. Tais projetos servem para testemunhar que esses países nasceram com a história moderna, da qual são parte essencial. O que significa que sua construção, por caminhos "certos" ou "tortos", e quaisquer sejam as circunstâncias a enfrentar no presente ou no futuro, envolve um compromisso permanente com a modernidade.
1. F AORO, Raymundo. Existe um pensamento político brasileiro? São Paulo: Ática, 1994. p. 7. 2. Os artigos do Federalista foram publicados pela primeira vez em 1788, "com o objetivo de contribuir para a ratificação da Constituição dos Estados". Há vasta literatura sobre esses textos, mas uma boa introdução pode ser encontrada em: LIMONGI, Fernando Papaterra. O Federalista: remédios republicanos para males republicanos. In: WEFFORT, F. C. (Org.). Os clássicos da política, cit., v. 1, p. 245-287. 3. S ANTOS, op. cit. 4. A LONSO, op. cit., p. 54, 56 e 62. 5. A ZEVEDO, O Marquês de Pombal e a sua época, cit., p. 129. 6. A LONSO, op. cit., p. 58. 7. SARAIVA, História da cultura em Portugal, cit., p. 11: "O tipo de vida fidalgo e o desdém pelo trabalho manual constituem o ideal até dos vilãos, com os quais aliás se confundiam pela miséria econômica os fidalgos pobres, reduzidos a ínfimos patrimônios ou a uma vida de expedientes. As atividades capitalistas e artesanais tendem a ser monopolizadas por grupos relativamente fechados, como os 'cristãos-novos' (...) ou estrangeiros, sobretudo ingleses, franceses e holandeses, que legal ou ilegalmente fazem de Lisboa ou de Sevilha boa parte do comércio externo peninsular, e que levam mesmo até aos mercados de origem (América, Índia, Oceania) os seus barcos de contrabando". 8. A ZEVEDO, O Marquês de Pombal e a sua época, cit., p. 129. 9. Do século XIII ao XVI, diz Cruz Costa, o pensamento português sempre se ligou à ação, gerando uma cultura de "valorização pragmática da existência". Uma cultura dotada, segundo João de Barros, de um "profundo sentido realista da existência". Ver: C OSTA , Contribuição à história das idéias no Brasil, cit., p. 30 e seguintes; ver também: PAIM (Org.), Pombal e a cultura brasileira, cit.
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ROTEIRO DE IMAGENS
CAPÍTULO 1 [>>1] Desembarque de Cabral, 1922. Pintura de Oscar Pereira da Silva (1867-1939). Museu Nacional do Rio de Janeiro, RJ [>>2] Mapa da América, 1606. Gravura de Jodocus Hondius (1563-1612). Coleção particular. © Bridgeman Art Library
CAPÍTULO 2 [>>3] Grande procissão para o auto-da-fé dos sentenciados pela Inquisição de Lisboa, século XVIII. © TopFoto/HIP [>>4] Capa da publicação Relação do naufrágio da nau Conceição, de Manoel Rangel. [>>5] Infante Dom Henrique, o Navegador. © Museu Nacional de Arte Antiga, Lisboa
CAPÍTULO 3 [>>6] Dança tapuia. Óleo sobre madeira de Albert Eckhout (1610-1665). BELLUZZO, Ana Maria de Moraes. O Brasil dos viajantes. São Paulo: Objetiva-Metalivros, 1999. v. 1, p. 95. © Museu Nacional da Dinamarca [>>7] Mapa do Brasil com a divisão em capitanias hereditárias, c. 1586. Atribuído a Luis Teixeira. © Biblioteca da Ajuda, Lisboa
CAPÍTULO 4 [>>8] Fundação de São Paulo (1909). Pintura de Oscar Pereira da Silva (1867-1939). © Museu Paulista, São Paulo, SP
CAPÍTULO 5 [>>9] Padre Antonio Vieira. Óleo sobre tela de José Rodrigues Nunes (1800-1881).
© Museu de Arte da Bahia, Salvador [>>10] Paisagem com plantação (O engenho), 1668. Pintura de Frans Post (1612-1680). © HERKENHOFF, Paulo. (Org.) O Brasil dos holandeses: 1630-1654. Rio de Janeiro: Sextante, 1999. p. 235. [>>11] Caminhos das band eiras. © Maplink
CAPÍTULO 6 [>>12] Marquês de Pombal. Óleo sobre tela de L. M. Van Loo (1707-1771). © Câmara Municipal de Oeiras, Portugal [>>13] Vista de Vila Rica, século XIX. Aquarela sobre papel de Henry Chamberlain. © Museu da Inconfidência, MG
CAPÍTULO 7 [>>14] D. Pedro I, imperador do Brasil, 1826. Óleo sobre tela de Antonio Joaquim Franco Velasco (1780-1833). © Museu de Arte da Bahia [>>15] Retrato de José Bonifácio, 1914. Óleo sobre tela de Décio Rodrigues Vilares (1851-1931). © Museu Histórico Nacional, RJ [>>16] Vista do chafariz da Carioca, 1833. Pintura de William Smyth. © Coleção particular, Rio de Janeiro, RJ
CAPÍTULO 8 [>>17] Aclamação de D. Pedro II, segundo imperador do Brasil. Pintura de Jean Baptiste Debret. In: Viagem pitoresca e histórica ao Brasil. Trad. e notas Sérgio Milliet. Belo Horizonte/São Paulo: Itatiaia/ Edusp, 1989. v. 3. [>>18] Retrato de José de Alencar. Litografia de A. Sisson, segundo foto de Carneiro Smith © Fundação Biblioteca Nacional/Jamie Acioli (repr.)
CAPÍTULO 9 [>>19] Joaquim Nabuco. Retrato de J. B. Perillo. © Museu Histórico Nacional, RJ
[>>20] Ama escrava e menino Augusto Gomes Leal, c. 1860. © Acervo da Fundação Joaquim Nabuco, PE
CAPÍTULO 10 [>>21] Sobreviventes da revolução de Canudos. Foto de Flávio de Barros © Museu da República, RJ [>>22] Euclides da Cunha, imagem sem data © Biblioteca Oliveira Lima, Manaus, AM
CAPÍTULO 11 [>>23] Oliveira Viana com o fardão ABL. © Agência Estado [>>24] Getúlio Vargas. © Álbum de Família [>>25] Colheita do café no início do século XX. Foto de Guilherme Gaensly. Reprodução de A história de uma coleção. Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional. p. 243. [>>26] Bairro do Brás, capital de São Paulo, em 1913. Foto feita do Mosteiro de São Bento. Ao centro, a várzea do Carmo, ruas 25 de Março, Barão de Duprat e Joly; à direita, avenida Rangel Pestana, ponte do Carmo e Gasômetro. © Acervo Eletropaulo, São Paulo, SP
CAPÍTULO 12 [>>27] Gilberto Freyre em foto de 1945 © Alexandre Belém (repr.)/Ag. Lumiar/Fundação Gilberto Freyre
CAPÍTULO 13 [>>28] Helio Jaguaribe, em foto de 1979 © Walter Firmo/Editora Abril [>>29] O presidente Juscelino Kubitschek inaugura oficialmente a Volkswagen do Brasil. © Arquivo Nacional
Table of Contents Capa Folha de Rosto Créditos Sumário Prefácio Parte I - As duas faces do Ocidente Capítulo 1 - As escritas de Deus e as profanas Capítulo 2 - Tempos dos descobrimentos Capítulo 3 - Conquistadores e índios
Parte II - Brasil Colônia
2 4 5 8 10 17 19 34 60
84
Capítulo 4 - Século XVI - Jesuítas e colonos: tempos de Manuel da Nóbrega 86 Capítulo 5 - Século XVII - Antônio Vieira: a palavra e o fogo 101 Capítulo 6 - Século XVIII - Verney e Pombal: Ilustração e despotismo 128
Parte III - Brasil Império Capítulo 7 - Primeiro Reinado - José Bonifácio e Bernardo de Vasconcelos: liberalismo e conservadorismo Capítulo 8 - Segundo Reinado - José de Alencar: indianismo e conservadorismo Capítulo 9 - Segundo Reinado - Joaquim Nabuco: a escravidão e a "obra da escravidão"
Parte IV - Primeira República Capítulo 10 - Euclides da Cunha: A República e o sertão Capítulo 11 - Oliveira Viana: Transição da Primeira à Segunda República
Parte V - Segunda República Capítulo 12 - Gilberto Freyre: o povo mestiço Capítulo 13 - Desenvolvimento e democracia: Helio Jaguaribe e os primeiros anos do ISEB
Posfácio - História das idéias e do pensamento político Bibliografia Roteiro de imagens
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