ANDREW MARR
Uma história do mundo TRAD UÇÃO D E BERILO VARGAS
Copyright © Andrew Marr, 2012 TÍTULO ORIGINAL
A History of The World PREPARAÇÃO
Mariana Oliveira Thadeu Santos REVISÃO
Carolina Rodrigues Rayssa Galvão CAPA
Angelo Allevato Bottino REVISÃO DE EPUB
Juliana Latini E-ISBN
978-85-8057-840-9 GERAÇÃO DE EPUB
Intrínseca Edição digital: 2015 1ª edição TIPOGRAFIA
Bembo Todos os direitos desta edição reservados à EDITORA INTRÍNSECA LTDA. Rua Marquês de São Vicente, 99/3oandar 22451-041 – Gávea Rio de Janeiro – RJ Tel./Fax: (21) 3206-7400 www.intrinseca.com.br
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Para Harry, Isabel e Emily
SUMÁRIO
Capa Folha de rosto Créditos Mídias sociais Dedicatória Mapa gradecimentos Introdução Parte um DO CALOR PARA O GELO
Parte dois EM FAVOR DA GUERRA
Parte três A ESPADA E A PENA
Parte quatro ALÉM DA MISCIGENAÇÃO CONFUSA
Parte cinco O MUNDO SE EXPANDE
Parte seis SONHOS DE LIBERDADE
Parte sete O CAPITALISMO E SEUS INIMIGOS
Parte oito 1918-2012: NOSSOS TEMPOS
Fotos Notas Bibliografia Créditos das i magens Sobre o autor Leia também
AGRADECIMENTOS
Gostaria de agradecer às seguintes pessoas. Minha família, sempre perseverante — minha esposa, Jackie, e meus filhos, Harry, Isabel e Emily —, que atura há tanto tempo este arremedo de ser humano, muito distraído quasedesculpas sempre ausente. Contudo, projeto também forçou aa me afastar de meus amigos, e tambémepeço a eles. Agora vou este endireitar minha vidame e voltarei beber na hora do almoço, como antes. Este livro não teria acontecido sem o excelente Ed Victor, que cuidou e, algumas vezes, até desconfio de mim por anos a fio; e muito menos sem a magnífica equipe da Macmillan, Jon Butler, Georgina Morley, Tania Wilde e Jacqueline Graham — outra amizade que dura muitos anos. Mary Greenham, que administra a maior parte da minha vida, trabalhou duro para me impedir de ficar doido. Se ela obteve sucesso ou não, o veredicto permanece em aberto. Entre os muitos historiadores que gentilmente me aconselharam, leram trechos do manuscrito ou ajudaram a encontrar informações, estão Mary Beard e a equipe da Open University associada ao projeto de filmagem. Kate Sleight fez um trabalho maravilhoso de agradecer limar alguns dos meus maisque constrangedores, Sue Phillpott foi uma ao às duas, claro,erros reforço quaisquer errosenquanto remanescentes são minha culpa.ótima copidesque: O projeto em si, iniciado com a BBC, foi ideia de Chris Granlund, amigo e camarada, com quem hoje somo 22 horas de documentário para a televisão. Como em todos os meus outros empreendimentos, e não teria trabalhado tão bem sem a maravilhosa London Library. Apesar de eu não ter chamado pesquisadores para compor o livro, muitos integrantes da equipe da BBC contribuíram com ideias úteis, objeções e conselhos, e eu os menciono a seguir. A equipe da BBC foi liderada por Kathryn Taylor, que conseguiu combinar documentário e drama — e o drama foi todo filmado na África do Sul. Os produtores que atuaram na linha de frente e me acompanharam por horas em vans trepidantes, aeroportos, hotéis suspeitos e locações empoeiradas são Robin Dashwood, Guy Smith, Renny Bartlett, Neil Rawles e Mark Radice, que sofreu um terrível acidente de bicicleta, mas já está recuperado. O homem responsável pela câmera, que passou muitos meses me mandando ir para a esquerda ou um pouco para trás, foi Neil Harvey, o melhor diretor de fotografia do mercado. Já o som ficou a cargo de Simon Parmenter. Chris O’Donnell era o membro da equipe mais animado e perspicaz; e eu também gostaria de agradecer a Alison Mills, Julie Wilkinson, Katherine Wooton e Michaela Goncalves por organizar um dos maiores projetos de documentário da BBC a ir ao ar em muitos anos. Por fim, este livro também dependeu da gentil contribuição de historiadores e arqueólogos locais e de nossos assistentes na Rússia, Ucrânia, Alemanha, França, Países Baixos, Suíça, Espanha, Itália, Grécia, Turquia, Israel, Egito, Índia, China, Mongólia, Austrália, Japão, Mali, África do Sul, Peru, Brasil, Estados Unidos e Shropshire.
INTRODUÇÃO
...o que foi feito pelos homens, outros homens podem compreender. ISAIAH BERLIN, CITANDO GIOVANNI BATTISTA VICO ...história... é uma chatice interrompida pela guerra. DEREK WALCOTT EM THE BOUNTY
Escrever uma história do mundo é uma coisa ridícula de se fazer. A quantidade de informações é vasta demais para que uma pessoa sozinha possa absorver, as leituras são intermináveis e a probabilidade de erro é imensa. O único argumento favorável para se escrever, ou ler, essa história é que não ter uma noção da história do mundo é ainda mais ridículo. Olhar para trás pode nos ajudar a olhar melhor para nós mesmos. Quanto melhor compreendermos como governantes perdem o contato com a realidade, o por que revoluções produzem ditadores com mais frequência do que geram felicidade, ou por que algumas partes do mundo são mais ricas do que outras, mais fácil será entender a nossa própria época. O tamanho do assunto traz riscos evidentes: abstrações tediosas de um lado, uma algazarra desnorteante de boas histórias de outro. Selecionei assuntos e momentos que me parecem bem representativos e tentei vinculá-los a uma narrativa mais genérica. Contudo, eu poderia muito bem ter escrito outro livro, com uma seleção bem diferente; e sem dúvida sobraria assunto para outro. Meu tema geral é claro. Devido à capacidade de compreender e dar forma ao mundo à nossa volta, nós, seres humanos, somos uma aceleração biológica de habilidades e pensamento, que, aos trancos e barrancos, levou a uma recente aceleração de nossos números e de nosso poder. Agora já sabemos bastante sobre a srcem da vida neste planeta, sobre a estrutura do que existe à nossa volta e sobre o lugar do planeta no cosmos. Começamos até mesmo a explorar nossa autoconsciência, essa estrela que fulgura no “despertar do mundo”, como disse um filósofo. A população mundial hoje provavelmente é grande demais para que o planeta tenha condição de sustentá-la por muito tempo — embora isso dependa de como decidimos viver —, mas nossas capacidades tecnológicas nos dão pelo menos uma chance de sobreviver, assim como sobrevivemos a outros desafios. Por outro lado, esse brilhantismo técnico e científico não se reflete nas muitas decisões políticas que também deveriam ser motivo de orgulho. Imagine se você fosse capaz de trazer à sua presença e falar com uma camponesa do tempo de Jesus, ou com um guerreiro asteca. Se lhes mostrasse seu celular e tentasse explicar como ele funciona (supondo que você saiba), não haveria a menor possibilidade de fazê-los compreender. Primeiro seria preciso descrever-lhes um sem-fim de conceitos estranhos — tanta coisa que já encheria um livro de história. Contudo, vocêatual, quisesse Stalin, políticos corruptosmuito. e as guerras entredos os ditadores e o épovo no mundoseárabe elesfalar logosobre compreenderiam. Avançamos A maioria lugares hoje muito menos violenta do que as sociedades primitivas. Um mundo sob os cuidados das Nações Unidas se deteriora em pobreza e estraleja de guerras, mas é melhor do que um mundo de impérios rivais. No
entanto, no que diz respeito aos anseios, à raiva e às relações com o poder, não houve nada parecido com o progresso que se vê em nossa cultura técnica e científica. Quanto mais sabemos sobre a história de nossos primórdios, quando éramos caçadores-coletores, sobre nossa longa história como agricultores e sobre a atordoante aceleração do comércio e da indústria mundiais que nos trouxe para o mundo moderno, menos misterioso o mundo de hoje nos parece. No fim, espero que a maior parte do que se segue faça o leitor pensar não apenas em impérios há muito desaparecidos e em lugares distantes, mas no aqui e agora. Enquanto isso, a história continua mudando. Esta época tem sido uma benesse para os entusiastas da história, com obras recentes e minuciosas nos mais variados campos do conhecimento jorrando das impressoras a cada ano — de escritos sobre o dinheiro a crônicas de reinos europeus esquecidos, de comparações entre o império romano e o chinês a novas descobertas sobre Stalin e a Segunda Guerra Mundial. Ninguém seria capaz de ler tudo, mas o que fez este livro tomar forma foram os muitos anos de leituras compulsivas sobre os mais variados assuntos. Só reduzi as notas de remissão a pontos de referência essenciais porque, se não o fizesse, a lista de “leituras adicionais” resultante seria infindável; estimo que foram lidos cerca de dois mil livros, sem contar panfletos e periódicos, para chegarmos ao texto a seguir. Também tive a sorte imensa de produzir uma série de oito filmes sobre história mundial para a BBC, projeto que me permitiu visitar sessenta lugares em várias partes do mundo, desde os desertos peruanos à Ucrânia. Ver onde as coisas aconteceram — a propriedade de Tolstói ou a aldeia de operários no vale dos Reis, no Egito — influencia nossa compreensão de determinados enredos. Com certeza esse projeto para a televisão mudou minha abordagem. As narrativas em àdestacar essa pessoa fazendo ou dizendo isso ,própria para então termos esse resultado. televisivas A televisãoinsistem tem horror abstração. Precisa de personagens, datas, ações. O resultado é que grande parte do que vem a seguir exemplifica um eito de escrever história que andou fora de moda: a escola do “grande homem / grande mulher”, ainda que com formas novas determinadas por histórias ambientais, econômicas e sociais. Pois não existem forças abstratas na história. Tudo que provoca mudanças é natural. Uma parte é não humana — mudanças climáticas, vulcões, doenças, correntes, ventos e a disposição de plantas e animais que influenciaram a humanidade. No entanto, a maior parte da história humana é construída por escolhas humanas e músculos humanos. Em outras palavras, foi feita por indivíduos, atuando dentro da sociedade. Alguns causaram impacto maior do que outros, por isso foram “grandes”. Como vivemos numa cultura democrática ligeiramente histérica, que faz pronunciamentos estridentes sobre igualdade para esquivar-se de falar sobre as imensas diferenças de riqueza e poder que traz dentro de si, há certa tensão com relação a isso. A história das pequenas mudanças nas práticas domésticas de famílias de agricultores, ou do papel das mulheres nas primeiras redes sociais mercantis modernas, não é mais “real” do que os feitos de imperadores ou inventores? Em resumo, não. A história diz respeito a mudanças, e, portanto, faz sentido nos concentrarmos nos maiores causadores de mudanças. É verdade que todas as pessoas são iguais em dignidade e têm o mesmo valor potencial. É verdade que a maioria de nós leva uma vida de calmaria. Sim, todo mundo deveria ser igual perante a lei. Mas sugerir, a partir disso, que a história e as realizações de cada um são iguais às de todos os outros e também são igualmente interessantes é ridículo. O camponês da Borgonha que anda atrás dos bois, alimenta a família, vive uma vida sem mácula e morre pranteado por sua aldeia, àSidarta, idade madura anos, não ler temaarespeito relevância uma figura do histórica Carlosque V da Espanha o o Buda.deÉ 42 interessante dosdemarinheiros litoral como da Europa descobriram novos locais de pesca e fizeram aperfeiçoamentos pequenos, mas úteis, em seus barcos enquanto iam
cada vez mais longe em busca de bacalhau. Cristóvão Colombo dependeu do conhecimento que eles acumularam. Entretanto, como vida individual, a história de Colombo é mais importante. As “grandes figuras” nada mais são do que pessoas profundamente inseridas na sociedade ou na época em que viveram, o que lhes dá um número limitado de possibilidades de ação e pensamento. Fora alguns líderes religiosos, é quase impossível encontrar um personagem histórico do qual se possa dizer, com segurança, que sem ele (ou ela) determinada coisanunca teria acontecido. James Watt não poderia ter inventado a máquina a vapor cem anos antes ou se vivesse na Sibéria. Ele se apoiou nos ombros de muitos outros inventores, mecânicos, educadores e financiadores. Estava no lugar certo na hora certa. Se não tivesse inventado o condensador separado, alguém o faria. Mas elede fato inventou esse novo tipo de máquina a vapor, e os comos e porquês daquele momento são importantes. Os povos da estepe mongol, forçados pela fome e percebendo a importância de seus cavalos como armas, teriam, de qualquer forma, atacado as sociedades estabelecidas à sua volta — e isso acontecia com frequência. Porém, se Gêngis Khan não tivesse unido os clãs rivais sob sua liderança implacável e inspiradora, a história de grande parte da Ásia teria sido bem diferente. O que vem a seguir, portanto, é uma história elitista, uma vez que as pessoas com poder, dinheiro o tempo disponíveis para mudar sociedades tinham srcem, desproporcionalmente, nas camadas privilegiadas. Isso, às vezes, significa “reis e rainhas”. Só um membro da privilegiada família governante mongol poderia ter se tornado imperador quando Aurangzeb subiu ao poder. Mas o fato de ter sido Aurangzeb, e não um de seus irmãos, trouxe consequências importantes, pois ele era um fanático religioso que levou a Índia mongólica à falência e inadvertidamente abriu as portas para os britânicos. Cleópatra era casa grega governava Egito (não que fossem tão Antônio puros), mas fatomembro de ser puro-sangue ela, e não odairmão, quemquemandava na oépoca de Júlio César eassim Marco teveo consequências para o mundo clássico. Mais tarde, quando o remoinho de sociedades mais instruídas gerou uma variedade maior de personagens, as srcens sociais dos reformadores se ampliaram. Ainda assim, os grandes homens e grandes mulheres são os que têm cérebro, coragem ou sorte para produzir os avanços que outros não conseguem. Robert Oppenheimer, pai da bomba atômica, tem mais importância do que os físicos inteligentíssimos de sua época que nunca estiveram em Los Alamos. Hitler era um vagabundo de classe média baixa que se tornou um brilhante demagogo. A Alemanha sem Hitler teria sido muito diferente, e sua história é bem mais importante do que a dos muitos oradores ultranacionalistas de cervejaria cujos partidos perderam o significado e desapareceram. Espero, portanto, que esteja claro que, quando digo que esta é uma maneira de contar a história que leva os “grandes” em conta, não estou sugerindo que nenhum deles se destaca fora da coincidência de sua época e de seu lugar — do momento social que os fortalece ou neutraliza. Nem estou usando a palavra “grande” num sentido que implique admiração moral. Alguns dos maiores entre os maiores do mundo foram também os seres humanos mais desprezíveis que já existiram. No decorrer desta história, espero que os leitores desfrutem os detalhes específicos dos pequenos fatos que a iluminam — todos saqueados de verdadeiros historiadores. Num recente livro sobre a Itália, aprendemos que no começo da unificação italiana, em 1861, um total de 2,5% dos italianos falava o que nós hoje reconheceríamos como língua italiana.1 Noutro, aprendemos que, para serem aprovados em seus 2 exames, os burocratas chineses nos séculos XV e XVI tinham de memorizar 431.286 caracteres. O primeiro fato lança luz sobre a luta da Itália para se tornar um país moderno. O segundo nos ajuda a entender por que a China levou tanto tempo para desenvolver uma grande classe média alfabetizada. Tivesse feito isso — tivessem os chineses dependido de um alfabeto fonético de vinte e poucas letras —, a história da China teria sido diferente.
A forma da história humana pode ser contada através de números — o número crescente de pessoas no planeta, de talvez alguns milhares de casais no nosso último momento de quase extinção ao salto de hoje para sete bilhões, que daqui a pouco serão nove bilhões. Se pusermos esses números num gráfico, com uma linha do tempo no eixo horizontal, ainda assim a história seria um simples, ainda que drástico, salto de aceleração. Para começar, há os longos e planos hectares de tempo em que a população humana mal parecia mover-se: em torno de setenta mil anos com grupos familiares de caçadores-coletores espalhando-se lentamente a partir da África e mais ou menos dez mil anos que cobrem a invenção da agricultura, o desenvolvimento de sociedades tribais e de pequenas povoações, quando a curva populacional começa a subir aos poucos. Em seguida, vemos os primórdios das civilizações, há cerca de 5.500 anos, com outra grande invenção depois da agricultura: a escrita. Vem então o resto da história humana, estrelando o comércio e a revolução industrial. Em nossa época, a linha populacional dispara em direção ao céu, graças, sobretudo, a águas mais limpas e à medicina. Por que essa aceleração? Por que a população permanece tanto tempo em fogo lento e, de repente, dispara? A srcem de tudo está na capacidade de alterar o resto do mundo natural mostrada pelo Homo sapiens sapiens (e que nome mais arrogante nós inventamos — duas vezes “sábio”, e não uma só!). Outras criaturas se adaptam ao meio ambiente à sua volta, desenvolvendo características e comportamentos que lhes garantem um nicho, um recanto biológico, onde possam sobreviver e até progredir. O simples fato de estarem vivas já é suficiente para mudar o ambiente, como pode ser confirmado por qualquer um que tenha visto um ninho de cupins ou observado o impacto fluxo. de castores num rio. Toda vida existente altera o mundo, que está num processo constante de Os humanos, porém, com sua superioridade de intelecto e comunicação, usaram essa capacidade para moldar o mundo num nível diferente. Caçamos outros mamíferos e provocamos sua extinção. Domesticamos e alteramos os animais até ficarem irreconhecíveis — é só dar uma olhada nos ancestrais da vaca ou nos do Highland terrier. Fizemos a mesma coisa com as plantas — transformando a espiga de milho, por exemplo, de mero pedaço de fécula do tamanho de um dedo num inflado barril nutricional. Agora, com a piscicultura, estamos alterando o tamanho, a forma e a musculatura dos peixes. Isso nos proporcionou um excedente de energia que nenhum simples predador poderia jamais obter. Usando-a, crescemos em tamanho, passando de grupos de famílias a tribos, aldeias, cidades e nações, o que nos permitiu mudar muito mais nosso ambiente srcinal. Alteramos o curso dos rios e escavamos a cobertura mineral do planeta, dali extraindo carvão, petróleo e gás, que nos deram mais força energética, e explorando antigas reservas vegetais que viveram e morreram muito antes de nossa chegada. Em épocas mais recentes, nosso entendimento das coisas nos permitiu desenvolver remédios e tecnologias que aumentaram nossa expectativa de vida a níveis espetaculares. Nada disso é resultado de forças impessoais. Tudo vem dos atos acumulados de milhões de indivíduos humanos, trabalhando em nosso interesse imediato, como as minúsculas criaturas que compõem os vastos recifes de corais — com a diferença, é claro, da autoconsciência e, portanto, da capacidade de fornecer observações sobre todo o processo. Um levantamento da história humana leva a esta simples conclusão: “O que impulsiona a história é a ambição do homem de alterar as condições em que se encontra para que correspondam às suas esperanças.”3 Uma raiz mais fácil de mastigar; uma cabra mais gorda; segurança nas árvores contra invasores; uma canção mais animada; uma história mais interessante; um novo sabor; mais filhos para a velhice dos pais; um jeito de evitar o cobrador; um relógio; um secador de roupas; uma bicicleta; uma passagem aérea para ir ao Sol — são essas modestas iscas e pequenas chicotadas que nos empurram adiante até que um novo tipo de líder dê outro salto.
Não há prova de que mudamos biológica ou instintivamente durante o período coberto por este livro. Houve pequenas mudanças evolucionárias. O modo como os dentes superiores e inferiores são dispostos foi alterado pelas mudanças de nossa dieta: a “sobressaliência” provocada pelo triturar mais constante de grãos veio bem mais tarde. Grupos humanos que mantinham vacas para tomar leite desenvolveram sistemas digestivos adequados, enquanto os asiáticos que jamais criaram vacas, não. As diferentes populações humanas que se distribuíram pela África em diferentes direções e acabaram se acomodando em pontos mais férteis separaram-se umas das outras. Desenvolveram diferenças na aparência: cor da pele, desenho dos olhos e variações sutis no formato craniano, mudanças que produziram suspeitas recíprocas quando essas distâncias geográficas foram novamente reduzidas. Mas, em nosso tamanho e força em geral, em nossa capacidade de imaginar, de raciocinar, de comunicar, de empregar delicada força manual, de planejar e suar, continuamos os mesmos. Sabemos mais. Não ficamos mais inteligentes. Se não ficamos mais inteligentes, como foi possível nos multiplicarmos tantas vezes e melhorarmos com tanto êxito nossa vida material individual? A resposta é que somos criaturas que colaboram e aprendem umas com as outras, juntando as obras e os êxitos do passado e usando-os para construir coisas novas. Não nos apoiamos apenas nos ombros de gigantes, mas nos de nossos avós e tataravós. A demonstração foi feita recentemente por um pesquisador perspicaz que tentou construir uma torradeira elétrica do zero. Foi quase impossível. Precisa-se, primeiro, da história da exploração do petróleo, do plástico etc., assim como da especialização industrial que veio depois. Entregue a si mesmo (sem ser perturbado por guerras, catástrofes naturais ou epidemias de fome), tal processo produz, necessariamente, essa aceleração na população humana. A escrita foi inventada na Mesopotâmia — e de modofoi independente na China, na América Não e na precisou Índia. Contudo, quando entrou circuito do Mediterrâneo, logo adaptada e desenvolvida. ser reinventada pelosno franceses, otomanos ou dinamarqueses. A agricultura foi inventada sete vezes em diferentes partes do mundo, entre doze mil e cinco mil anos atrás; mas, como já foi mostrado, a máquina a vapor não preciso ser inventada sete vezes para se espalhar pelo mundo.4 Há outra consequência, e essa pode nos fazer hesitar. A agricultura foi criada por milhões de pessoas que aprenderam, sem contato umas com as outras, sobre as formas das gramíneas, como cuidar delas, por onde irrigar e assim por diante. Foi uma mudança incorporada pela experiência da família humana e, portanto, uma mudança cuidadosa, ainda que as consequências tenham sido muito importantes e inesperadas. Com a revolução industrial foi diferente. A energia a vapor precisava de mineradores de carvão e metalúrgicos, de advogados e financistas, mas pouca gente que viajava de trem ou usava roupas produzidas por máquinas movidas a vapor tinha necessidade de compreender a tecnologia. A especialização significa que, no geral, os avanços já não têm muito a ver com a vida de cada um de nós separadamente; tudo que a maioria de nós precisa fazer é aceitá-los em confiança. À medida que a civilização humana fica mais complexa, é inevitável que os indivíduos passem a entender menos o se funcionamento. Nossa capacidade de afetar individualmente o curso de nossa sociedade (que nunca foi muito grande) parece, portanto, ter desaparecido. Dos bilhões de seres humanos que hoje dependem da tecnologia digital ou da medicina moderna, pouquíssimos têm ideia, por mais vaga que seja, de como elas funcionam. Individualmente, quase não temos controle algum sobre nada. É por isso que a política, nossa única e instável alavanca, continua a ter tanta importância. E a história também é a saga dos solavancos e reveses que ocorrem quando mais gente, usando mais energia, constrói sociedades maiores. Nas primeiras fases da história, grandes reveses foram causados pela natureza: por erupções vulcânicas, às vezes suficientes para destruir lavouras, verões e até mesmo ecossistemas; por mudanças nos sistemas climáticos suficientes para destruir culturas humanas inteiras; e por eventos menores, como enchentes, terremotos e mudanças no curso dos rios. Boa parte da religião
nos primórdios da humanidade é dedicada a uma angustiada e perplexa tentativa de pedir às chuvas que continuem vindo e aos rumores subterrâneos que cessem. A saga fica mais interessante quando os homens se tornam capazes de fazer algo mais do que apenas reagir — construir represas, irrigar ou se deslocar. Mais adiante, os obstáculos ao desenvolvimento humano podem ainda ser causados por acontecimentos naturais, porém os culpados mais prováveis são os próprios humanos. Uma vez assentados, podemos nos tornar rapidamente vítimas da própria preguiça e ignorância, acabando com espécies animais que nos são úteis ou desmatando a terra para a agricultura, o que por sua vez expõe as camadas superficiais do solo à erosão dos ventos. Os moradores da Ilha de Páscoa cometeram esse erro. O mesmo fizeram os gregos antigos e os japoneses, que, no entanto, descobriram um jeito de superar essas dificuldades. Quando estendemos nossas transações comerciais sobre vastas áreas, logo começamos a espalhar doenças às quais alguns corpos são menos resistentes do que outros. Isso atrasou o desenvolvimento humano nas últimas fases dos mundos romano e chinês. E teve consequências ainda mais terríveis quando, depois de 1.300 anos de separação, os povos da Europa chegaram às Américas. Então chegamos à pesarosa reflexão do poeta caribenho Derek Walcott, citada na epígrafe deste livro, afirmando que a história é uma chatice interrompida pela guerra. Com certeza houve muita guerra. Novas pesquisas mostram que as primeiras sociedades de caçadores-coletores tinham uma inclinação terrível à guerra: reinos e impérios significavam apenas mais gente e armas melhores, portanto brigas maiores. Entretanto, a guerra costuma ter um efeito ambíguo. É horrível, claro. Mas o conflito leva a novas invenções, faz as pessoas pensarem mais profundamente a respeito das sociedades em que vivem e, ao destruir reinos, permite que novos surjam. A adversidade fortalece os sobreviventes. O desaparecimento de peixes de veados obrigam fáceis deaapanhar as pessoas desenvolverem caçar. As ou inundações pensar obriga em maneiras de aproteger-se e emnovas novasmaneiras formas de de pescar irrigareas plantações; e, por exigirem que as aldeias trabalhem em conjunto, as conduziram na direção da formação de Estados. As pestes despovoam regiões, mas também podem, como na Europa do século XV, libertar os sobreviventes para levar vidas diferentes e mais aventurosas. As guerras espalham terror e destruição, mas também trazem novas tecnologias, línguas e ideias. No meio de tantas afirmações ousadas, vale lembrar que a história equivale aos fragmentos que restaram de uma narrativa sepultada muito mais ampla. Alguns dos mais esplêndidos momentos de progresso ocorreram com povos (e em lugares) sobre os quais sabemos quase nada. Quem foi o primeiro a se dar conta de que rabiscos podem representar sons de partes de palavras, e não apenas pequenas imagens de outras coisas? Quem foi o primeiro a compreender que era possível ler sem dizer as palavras em voz alta? Quem fermentou grãos e tomou a bebida que surgiu do processo? Do sul da China à Arábia, solos úmidos e desertos que mudam de lugar escondem civilizações que um dia foram poderosas e desmoronaram por razões que talvez jamais venhamos a compreender. Há muita coisa que não sabemos. Não sabemos por que os grandes palácios da Idade do Bronze grega foram esvaziados e como aqueles povos perderam a arte da escrita. Pela maior parte da história, tudo que nos restou foram fragmentos acidentais, as coisas que não podiam apodrecer ou que de alguma forma sobreviveram à lixação do tempo. Na maioria dos lugares, as construções de madeira e terra, os tecidos coloridos, as línguas, as pinturas, as canções, as músicas e as histórias desapareceram para sempre. As culturas feitas basicamente de madeira e lã, de canções e histórias são as mais difíceis de recuperar. O que vem depois é muito desproporcional. Não apenas as infindáveis savanas da pré-história, mas os longos períodos de calma estabilidade as tréguas, despachados numcomo parágrafo ou de dois. Convulsões que ocorreram no período desocial, algumas décadas serão em lugares pequenos, a Grécia 400300 a.C. ou a Europa por volta de 1500, serão examinadas com atenção. Pois a mudança é cumulativa —
porém também é descontínua e às vezes súbita. As condições para um rompimento revolucionário podem ser investigadas séculos ou décadas antes, mas o momento do avanço ainda é o nó da história. Contudo, antes de começar, façamos uma pausa para admirar os 99%: os heróis esquecidos dos anos mais calmos, ocupados com o trabalho duro de simplesmente tocar a vida, seguir em frente e sobreviver — o camponês atrás do gado, os agricultores que trabalharam para alimentar a família e pagar impostos sem serem mortos por invasores mongóis ou recrutados por Napoleão, as mulheres que cavaram, deram à luz e ensinaram em dezenas de milhares de aldeias hoje desaparecidas. Este livro é sobre grandes revolucionários e a época em que viveram, mas tudo que nele se passa é cercado pelo resto de nós, que executamos tudo. Vassili Grossman, o grande romancista russo da era soviética, que aparece mais adiante neste livro, escreveu em sua obra-prima,Vida e destino: O ser humano não entende que a cidade que ele criou não faz parte da natureza. O ser humano não deve largar a espingarda, a pá e a vassoura se quiser defender sua cultura dos lobos, da neve, da erva daninha. Começa a se distrair e divagar por um ano ou dois e pronto: os lobos saem da floresta, o mato cresce, a cidade se cobre de neve, se enche de pó. Quantas grandes capitais já sumiram no pó, na neve, na tempestade... Sábias palavras de um historiador não profissional que, enquanto eu escrevia este livro, ressoaram o tempo todo na minha cabeça.
PARTE UM DO CALOR PARA O GELO
De setenta mil anos atrás até as primeiras civilizações mediterrâneas
Então, por onde começamos? A física e a biologia nos fazem voltar tanto no tempo que nosso cérebro tem dificuldade para compreender. Há o Big Bang, 13,7 bilhões de anos atrás (talvez apenas um entre muitos) e suas consequências — o surgimento dos elementos, das galáxias e dos planetas. Esse é o tempo profundo (ou tempo geológico), e fragmentos desse período ainda são visíveis no céu noturno todos os dias de nossa vida. Através dele fluem mistérios que nem mesmo os seres humanos mais inteligentes de hoje são capazes de compreender, como a energia escura e a matéria. Podemos começar mais perto de nós, pelos primórdios da história da Terra, há cerca de 4,5 bilhões de anos, e seguir o desenvolvimento da vida numa membrana fina e frágil em volta de uma esfuziante bola de ferro e rocha. Podemos começar pela captura de carbono e pela atmosfera da Terra quando esta passou a ter um quinto de oxigênio em sua composição, sem o qual nosso planeta seria apenas mais um torrão morto e quente de geologia enrugada. Esta é a narrativa da Criação da humanidade moderna — nada de serpentes emplumadas, de tartarugas gigantes ou de explosão criativa de seis dias de um experimentador moral, e sim algo igualmente tremendo em escala e mistério. Podemos pular o primeiro meio bilhão de anos da rocha viva, quando ela foi coberta por um manto de água (pouco mais de 70% ainda é), e falar da evolução da vida em terra firme.1 Podemos fingir que somos Charles Darwin, contando a história dos primeiros mamíferos minúsculos, nossos ancestrais, e de como eles se aproveitaram do desaparecimento dos grandes lagartos, os dinossauros. De maneira mais convencional, podemos registrar sistematicamente o que sabemos sobre a complexa e delicada árvore genealógica dos primeiros macacos e hominídeos dos quais viemos. Qualquer um desses pontos de partida seria informativo e útil. Nossa história humana, como é contada hoje, é apenas a página final depois de um vasto prefácio de intensos eventos astrofísicos, de reações químicas e de mudanças evolucionárias. Não começa com um criador moldando homens e mulheres com as próprias mãos a partir de um punhado de lama ou sangue, nem no Jardim do Éden. O que veremos aqui é uma história do ser humano social, global; portanto, comecemos por uma mulher, um nascimento; para usar uma linguagem poética, uma Eva africana. Mãe Ela tinha outro nome. Ninguém soube qual era durante mais ou menos setenta mil anos. Mas tinha um, pois viveu entre pessoas tagarelas e altamente sociáveis. “Mãe”, por razões que se tornarão óbvias, serve. Devia ser jovem, resistente, forte e de pele escura. Era uma viajante, parte de um povo em marcha perene. Além disso, estava em adiantada fase de gravidez. A tribo à qual pertencia era um povo de caçadores, especialistas em catar frutos, mariscos, raízes e ervas. Portavam ferramentas e couro de animais e levavam dois bebês, atados com tendões e peles nas costas de adultos, mas, surpreendentemente, havia poucas crianças no grupo. Aquelas que não aprendiam logo a andar, a ficar quietas e a acompanhar tendiam a morrer, atacadas por predadores que os seguiam. Contudo, à sua maneira, os viajantes eram formidáveis, armados de lanças e lascas de pedra afiadas como navalha desenvolvidas ao longo de mais ou menos cem mil anos de caçadas e (se tinham alguma
semelhança com os últimos caçadores-coletores) de lutas contra tribos rivais. Na média de idade, eram relativamente jovens, como seria o caso de todas as sociedades humanas até muito pouco tempo atrás na história. Mas haveria pessoas com mais de cinquenta, sessenta anos. Acredita-se, agora, que a menopausa feminina talvez tenha sido uma útil adaptação evolucionária, para assegurar a existência de avós, que tomariam conta das crianças enquanto as mulheres mais jovens procriavam: tribos que contassem com avós tinham mais condições de dar apoio a mais crianças até a idade adulta, e, portanto, poderiam crescer à custa de tribos sem mulheres mais velhas. Os homens com certeza traziam cicatrizes de caça, mas eram estrategistas francos e cuidadosos, com muita experiência em seguir a pista das caças e em utilizar a compreensão que tinham sobre outros animais. O mais velho, o pai desse clã, talvez fosse um sexagenário. Caçadores com trinta ou quarenta anos deviam ser mais eficazes na obtenção de alimento. O grupo andava de um lugar para outro havia anos, seguindo lentamente para o norte através do que hoje chamamos de Quênia e Somália, em direção a uma faixa de água que pudesse transpor. O fluxo de água era menos volumoso do que costumava ser, dando srcem a grandes áreas de terra seca. Passar de uma para outra era um risco que valia a pena correr, pois a caça e a vegetação em volta deles escasseavam a cada dia. A vida seria mais fácil do outro lado. O grupo não fazia ideia de que estava prestes a deixar um continente onde todos os seres humanos se srcinaram; nem tinha qualquer noção da distância que seus descendentes ainda percorreriam, abrindo caminho ao longo de praias, dois ou três quilômetros por ano, limpando mariscos e caranguejos em poças d’água nas pedras, empanturrando-se da carne de uma baleia encalhada na praia, capturando cabras desatentas. a vida uma viagem. Era preciso sempre abrir nova trilha. num À frente logo que se Toda punham em era movimento, as presas fáceis voltavam, masuma estabelecer-se únicoe atrás pontodeles, seria pouco natural e perigoso. Definir como “casa” um lugar qualquer significava morrer de fome. Dessa maneira, embora a água fosse um desafio e todos observassem enquanto outros vadeavam — pois o grupo dispunha de uma língua e discutia seus planos —, aquele era apenas um dia como tantos outros. Provavelmente usavam roupas de algum tipo: um estudo do DNA de piolhos sugere que os bichos já infestavam roupas há mais ou menos cem mil anos, e supõe-se que os humanos perderam a maior parte de sua pelagem milhões de anos atrás. Esse grupo, muito maior do que uma família, estaria acostumado a dividir tarefas, e isso estava diretamente relacionado com os problemas que começaram de novo com as dores de parto da Mãe. Como todas as mulheres, ela sabia que dar à luz seria doloroso. Há tanto tempo quanto se possa lembrar, os bebês humanos nascem com a cabeça já grande, tão grande que forçar a passagem deles pela vagina era agonizante. Mãe daria à luz em pé, cercada pelas irmãs. Seu bebê seria indefeso, uma coisinha vacilante e vulnerável por muito mais tempo do que as crias de outros animais. Era um enigma sobre o qual muito se falava durante as longas noites em que se contavam histórias. Mas, a longo prazo, a vulnerabilidade da criança humana moderna era uma vantagem, pois obrigava as famílias e os grupos tribais a compartilhar o trabalho e a cooperar. Em geral, as sociedades de caçadores-coletores de hoje têm uma clara divisão de trabalho entre os homens que caçam e as mulheres que coletam plantas, e é provável que isso já acontecesse na época de Mãe. Só depois de dezenas de milhares de anos as pessoas perceberiam que a cabeça grande, o relativo desamparo e o parto consequentemente doloroso eram na verdade um triunfo evolucionário, que produzia animais capazes de contar histórias. Historiadores da evolução tambémnasuspeitam que mesmas nosso caráter à guerra, à xenofobia e à hostilidade mútuahumana desenvolveu-se África, e pelas razões.propenso Tribos, estendendo-se além de grupos familiares, têm uma vantagem se todos trabalharem juntos “pelo bem da tribo”, ainda que o que façam seja perigoso e desagradável no momento. Isso significa que os laços tribais são muito
importantes; sem um senso de pertencimento e de dependência recíproca, a tribo se desfaz. O outro lado da moeda é que, num mundo em que tribos humanas andam de um lado para outro à procura de caça, o vínculo tribal provavelmente é reforçado pela hostilidade contra outras tribos. Isso, claro, é importante até hoje. Em todo o planeta, as primeiras sociedades humanas parecem ter trabalhado com afinco para se diferenciar dos vizinhos, usando adornos na cabeça, joias e roupas diferentes e, sobretudo, falando línguas distintas. O zoólogo britânico Mark Pagel chama a nossa atenção para o fato de que, ainda hoje, depois de tanta homogeneização cultural, os humanos falam sete mil línguas diferentes, quase todas ininteligíveis para os demais. Por quê? Os outros animais não são assim. Ele argumenta que nossas boas qualidades — a capacidade de sermos bondosos, generosos e amigáveis, que nos permite criar grupos maiores, cooperativos, e de nos “entendermos uns com os outros” — precisam ser contrastadas com as más — “nossa tendência a formar sociedades rivais, em geral não muito longe do conflito”. Em grupos de caçadores-coletores que competem por território, o conflito é comum, e a guerra tribal, com frequência um fato da vida. Nós, humanos, fomos caçadores-coletores por muito, muito mais tempo do que fomos agricultores — pelo menos dez ou quinze vezes mais. Só agora estamos nos tornando uma espécie que vive basicamente em cidades. Contudo, se dissermos que fomos dominados pelas cidades há um ou dois séculos, então nossa trilha de caçadores-coletores é mil vezes mais longa. Assim, seria de fato antinatural se grande parte do nosso comportamento não estivesse de alguma forma relacionada com essa herança; acima de tudo na nossa combinação de sociabilidade e desconfiança mútua. Mas, voltemos à Mãe. Pois ela é de mãetodos, de quase todos africanos, nós. (Há outra figuramuito mais mais antigapróxima e nebulosa: a “EvadaMitocondrial”, que seria a mãe incluindo e estaria do início história humana, talvez há duzentos mil anos, mas pouco se sabe sobre sua história.) A proeza materna de nossa personagem precisa ser compreendida de forma literal e não só como parábola. Há controvérsias em torno disso, como acontece com quase todos os aspectos da sociedade primitiva, mas o saldo das probabilidades aponta que ela é nossa super-Mãe. Se você é um advogado nova-iorquino, é dela que veio. Se é um aborígene de uma ilha do Pacífico num hospital oncológico, ou um agricultor alemão, um faxineiro japonês, ou um londrino paquistanês numa universidade, vem de nossa Eva. Stephen Oppenheimer, da Universidade de Oxford, especialista em estudos do DNA, afirma: “Todo não africano na Austrália, na América, na Sibéria, na Islândia, na Europa, na China e na Índia pode rastrear sua 2 herança genética de volta ao passado até chegar a uma única linhagem vinda da África.” Ou seja, um grupo. Uma viagem. Essa parece ser hoje a opinião consensual. À primeira vista, também parece impossível. Como pode uma mulher que dá à luz um bebê ser mãe de quase toda a raça humana? A resposta atende pelo nome de “linhagem matrilinear” e funciona da seguinte forma. Em cada geração, há famílias que não conseguem se reproduzir. A razão pode ser doença, acidente de caça ou incompatibilidade, mas algumas linhagens maternas se extinguem. No decorrer de longos períodos, porém, quase todas se extinguem. Desaparecem, e para sempre. Imagine que o processo é uma imensa foice, cortando para trás através de milhares de gerações e produzindo uma sombria colheita de seres que jamais nasceram. Como lembra o escritor darwiniano Richard Dawkins, somos filhos de sobreviventes. O aparente paradoxo é que, ao lado dessa foice, corre um delta cada vez mais largo de seres humanos que nascem e conseguem sobreviver. Por quê? Porque, para aqueles que sobrevivem tempo suficiente para procriar, se conseguirem ter filhos-sobreviventes um pouco acima da taxa de substituição de dois por dois (e o mesmo se aplica, por sua vez, aos filhos-sobreviventes), a matemática decreta uma linha surpreendentemente ascendente de crescimento populacional — toda formada, sem exceção, por filhos
dos primeiros sobreviventes. (Existem também ancestrais patrilineares, é claro, mas ninguém até agora descobriu um traço de DNA que nos ajude a segui-los recuando tanto assim no tempo.) Embora seja difícil de compreender, e pareça mais uma ilusão de ótica em hereditariedade, “linhagem” faz mais sentido quando se tem em mente que esse é um período em que a população humana em geral quase não cresce e a expectativa de vida é muito baixa. Eva é a nossa mãe universal porque tigres, cobras, deslizamentos de terra e micróbios levaram os outros. O grupo tribal de Eva já era, por si só, uma notável proeza de sobrevivência em face das dificuldades, parte de uma população humana de centenas de milhares na África, que tinha surgido para competir com outras variedades de macacos inteligentes. A história humana, compreendida adequadamente, começa quando deixamos de ser apenas uma presa no ciclo de comer-e-ser-comido, uma criatura jogada de um lado para outro pelo mundo natural, e passamos a ser uma criatura capaz de moldar o mundo. De seres a quem as coisas acontecem passamos a seres que fazem as coisas acontecerem. Contudo, o Homo sapiens foi o único ramo de uma árvore de hominídeos que aprendeu a modificar seu ambiente, mesmo que minimamente. Quase não existem controvérsias históricas mais complexas e acaloradas do que as que dizem respeito às srcens do homem moderno. A razão é simples e clara: os progressos científicos no estudo do DNA humano e na datação de fragmentos de ossos e de outros materiais sempre contestam, quando não desmentem, teorias mais antigas. Talvez essa seja a parte mais afastada da história humana, mas ela muda mais rápido do que, digamos, a história da Segunda Guerra Mundial. Amadores devem pisar com cautela nesse empolgante campo minado. É quase unanimidade, porém, que se trata de uma história na qual o clima desempenha papel crucial, mais que nos conta. O esfriamento ou aquecimento doseu planeta emde consequência solar,do impacto dedávamos meteoritos, erupções e minúsculas mudanças em ângulo rotação afetadeo atividade avanço e o recuo de desertos, a abertura ou o fechamento de pontes para migração e, com isso, a história de nosso macaco contador de histórias. Em geral, quanto mais complicada a mudança climática, mesmo quando provoca a extinção de outros animais, mais rápido parece ter sido o progresso dos hominídeos. A adversidade favorece os versáteis. As primeiras tentativas dos hominídeos arborícolas africanos para viver em duas patas ocorreram depois que o tempo frio e seco atacou suas florestas, há dois milhões de anos. As savanas abertas que disso resultaram tornaram imperativo saber correr, caçar, enxergar longe, e os cientistas acreditam que isso resultou no Homo erectus, importante versão inicial da humanidade, com um cérebro que media dois terços do nosso. Houve novas alterações no cérebro, quando a época pliocena cedeu a vez às eras glaciais do Pleistoceno e a novos desafios. Agora nos parece que dentro da África se desenvolveu uma grande complexidade de hominídeos. Mas o Homo erectus, que se espalhou para fora da África, evolui primeiro para o Homo heidelbergensis, de cérebro maior — um povo que caçava e fazia machados na Inglaterra meio milhão de anos atrás e tinha um cérebro não muito menor do que o nosso — cerca de 1.200 gramas, em comparação com nossos 1.500. Cérebros modernos “do tamanho do nosso” tinham se desenvolvido na África entre 150 mil e cem mil anos antes. Isso dá aos humanos modernos o maior cérebro em relação ao tamanho do corpo entre todos os animais conhecidos, mais ou menos sete vezes maior do que seria de esperar para o nosso peso. 3 Essa descrição do desenvolvimento humano é uma simplificação brutal. Há listas de espécies préhomem moderno de nomes intimidantes, variando bastante em altura, formato craniano, ossos da perna e peso. Apesar de os cientistas os batizarem e classificarem com nomes aparentemente distintos, ao montar árvores genealógicas evolucionárias percebe-se que a realidade era muito mais confusa. Chris Stringer, do Museu de História Natural de Londres, lembra bem a propósito que as espécies “são, no fim das 4 contas, aproximações da realidade, criadas pelo homem, no mundo natural”. Crânios da mesma idade,
parecidos, mas não idênticos, ocultam variações mais sutis entre os primeiros humanos hoje perdidas para nós, por isso não devemos ficar muito assustados com o matagal de nomes científicos. O importante é compreender que os humanos modernos não eram apenas um macaco superbrilhante, conquistador do planeta, que surgiu de repente, como num passe de mágica, de um mundo mais antigo pertencente a homens-macaco obtusos. Essas espécies iniciais, incluindo os famosos homens de Neandertal e na Ásia os “denisovanos” (ambos posteriores ao Homo heidelbergensis), também sobreviveram a mudanças climáticas espetaculares e entraram em novos territórios como pioneiras, equipadas com ferramentas para cortar e matar. Elas provavelmente se enfeitavam, tinham alguma forma de linguagem e até mesmo se miscigenaram com os recém-chegados, os Homo sapiens. Mais interessante para nós, porém, é o que elas não tinham. Retornemos, portanto, à Mãe e à sua migração tribal. Teria mesmo acontecido assim? Todo mundo concorda que a África retém uma diversidade genética de humanos não encontrada em nenhuma outra parte e que todos os humanos tiveram seu início ali em determinado momento. Mas há muita discussão sobre se todos os humanos modernos não africanos teriam se srcinado de um único (ou quase único) movimento para fora do continente, espalhando-se por todo o mundo a partir de setenta mil anos atrás. A ideia alternativa é que essas outras espécies, que deixaram a África e colonizaram a Europa e a Ásia bem antes disso, na realidade sobreviveram. Elas teriam evoluído para formar o Homo sapiens e em alguns lugares também se misturado com ele? Entre os dois extremos há tons de cinza, mas estes apresentam duas visões radicalmente diferentes da humanidade atual. Uma delas afirma que, em essência, todos os não africanos são parentes próximos, filhos da “Mãe”. A outra partes sustenta que diferentes populações humanas surgiram mais lenta ee separadamente, em diferentes do mundo. Isso explicaria por que muitos de nós temos aparência comportamento tão distintos. Esse último ponto de vista se tornou muito popular entre acadêmicos fora da tradição ocidental, e nossas ideias sobre a humanidade contemporânea carecem de explicação detalhada. Não é um argumento estéril. Somos uma família ou somos rivais? A opinião científica agora se inclina com tudo para o modelo “provenientes da África” ou “de srcem africana recente”, basicamente porque aumentou muito a possibilidade de seguir a trajetória de uma forma particular de marcador de DNA, o DNA mitocondrial, que nos conduz de volta à África, onde a humanidade moderna, oHomo sapiens, só começou a surgir há cerca de duzentos mil anos. No entanto, parece errada a velha imagem dos macacos que se tornam cada vez mais inteligentes, até o momento em que “nosso grupo” saiu da África e começou a povoar uma Europa vazia e o Oriente Médio. Como qualquer outro animal, os primeiros hominídeos já estavam em movimento bem antes disso. Recentes descobertas arqueológicas na África do Sul sugerem que o fogo e os alimentos cozidos eram usados quase dois milhões de anos atrás pelo Homo erectus , embora haja muita controvérsia sobre esse assunto. Isso ajudaria a explicar o crescimento de tamanho do cérebro, pois cozinhar aumenta imensamente a quantidade de calorias que podem ser ingeridas. E o cérebro tem fome de energia. De qualquer maneira, antes de nossa migração o mundo já era habitado por povos de outras espécies. O que aconteceu com eles? É provável que tenham sido vítimas de mudanças climáticas, destruídos pelo frio e pela fome quando as temperaturas voltaram a cair ou talvez por humanos modernos mais organizados e capazes de adaptação. Também não parece que os humanos modernos tenham deixado a África através do Egito, partindo primeiro para os mundos mediterrâneo e europeu, como pensavam os europeus antigamente. Primeiroavançávamos seguimos para o sul, descendo pelaforma, costa chegando da Índia eàdo Sudestepelo da Ásia, procurando mariscos enquanto e, por fim, de alguma Austrália mar. Cientistas também discutem esse ponto, mas parece possível que aborígenes australianos tenham chegado à sua terra milhares de anos antes que os aborígenes franceses ou espanhóis chegassem às deles. O
rastreamento da trilha do DNA sugere que os europeus Cro-Magnon descendiam de povos que, antes de seguir para o norte, viveram onde é hoje a Índia. A história é a narrativa da migração, assim como do assentamento, bem antes de Colombo ou os irlandeses chegarem à América. O que levou o Homo sapiens a ir embora da África? Aqui também há teorias discordantes. Há mais ou menos 73.500 anos, um enorme vulcão entrou em atividade no que hoje se chama Sumatra. 5 Foi, de longe, o maior desastre desse tipo dos últimos dois milhões de anos. Certos cientistas sugerem que os humanos por pouco não sucumbiram quando a erupção nublou os céus e esfriou drasticamente o planeta. Alguns afirmam que a população humana foi reduzida a poucos milhares de indivíduos no sul da África, sufocando a evolução num gargalo por milhares de anos. Isso pode ter produzido a poda radical e o rebrotamento de uma humanidade mais implacável e organizada, mais hábil para migrar em volta do mundo quando as condições melhoraram — a tribo bem organizada da Mãe. Outros acham que isso é exagero e que, por piores que fossem as condições, muitas espécies sobreviveram. No entanto, quando houve a migração humana da África, porém, é claro que novos episódios de enregelamento e de aquecimento influenciaram os movimentos seguintes e o êxito final. Muito tempo se passou antes que as rotas através do que hoje é o Oriente Médio até a Europa se abrissem. Mas, depois que os humanos chegaram na Europa, uma erupção vulcânica posterior na Itália, 39 mil anos atrás, e esporádicos “eventos de Heinrich” — quando icebergs se desprendem para o Atlântico produzindo severos períodos de esfriamento — fizeram o clima continuar imprevisível. A capa de gelo do norte recuou e avançou várias vezes. Os padrões migratórios de veados, bisões e outros animais foram alterados. Refúgios confortáveis se tornaram sinistros, e então ermos sinistros floresceram. Por diversas vezes os humanos tiveram de alterar hábitos e comportamentos para sobreviver. Repetindo: a adversidade favorece os versáteis. Parece que depois da migração africana pequenos grupos deHomo sapiens se mostraram mais capazes de administrar essas mudanças de clima do que versões anteriores dos humanos. Se é verdade, isso aconteceu não devido a uma clássica evolução darwiniana (não era época), mas a uma aceleração do desenvolvimento provocada pela cultura — linguagem, aprendizado, imitação, recordação. Tornamo-nos mais hábeis com os dedos. Em grupos maiores, éramos capazes de especialização — os melhores rastreadores seguiram pegadas; os melhores produtores de cordas as teciam; os melhores fazedores de ponta de flecha tiravam lascas. Trabalhando juntos, éramos caçadores mais eficazes e letais. Grupos humanos que tentavam se adaptar a um mundo mais frio e seco precisaram aprender coisas novas, incluindo a capacidade de elaborar uma linguagem mais complexa, de ter empatia com as presas (mais sobre esse assunto daqui a pouco) — e tanto de lutar contra grupos rivais quanto de aprender com eles. Chris Stringer diz que isso permitiu a aceleração que veio tomar o lugar dos “dois milhões de anos de tédio”: “Graças ao espírito de imitação e ao feedback de outros grupos, populações puderam se adaptar tirando proveito não apenas das capacidades de gênios isolados, cujas ideias talvez nunca 6 ultrapassassem os limites de sua caverna ou talvez se perdessem por morte súbita.” Pode ser que outros grupos de Homo também soubessem falar, planejar, e assim por diante, mas não tão bem, e por isso tenham sido destruídos pela velocidade das mudanças do mundo à sua volta, ou eliminados (e possivelmente comidos) por nós. Outro historiador de povos primitivos, Brian Fagan, afirma que essa nova cooperação envolveu a invenção não apenas da fala, mas também do pensamento abstrato, “um novo reino de significados simbólicos, que floresceu num mundo de parcerias entre os humanos e os arredores” e que incluiu, pela primeira vez, a arte e talvez a religião. Carregando conosco tudo isso, espalhamo-nos primeiro pela Ásia e depois pela Europa. Alcançamos o extremo oriente da Ásia quarenta mil anos atrás e chegamos às Américas, através da ponte terrestre de “Beríngia” (há muito desaparecida), há vinte mil anos. Por volta de doze mil anos atrás já tínhamos
alcançado as áreas meridionais da América do Sul, e as últimas áreas de habitação humana foram as ilhas do Médio-Pacífico. O Havaí e a Nova Zelândia só foram atingidos há mil anos, por povos cuja cultura ainda era essencialmente a da Idade da Pedra, mas que tinham desenvolvido habilidades como navegantes guiados pelas estrelas e na fabricação de barcos. Essa difusão do Homo sapiens é muito rápida se comparada com o período de 1,4 milhão de anos que nosso ancestral imediato, o Homo erectus, levou para se desenvolver até se transformar em nós.7 Em termos de tempo biológico, é como uma explosão. Em toda parte aonde chegamos há provas da extinção de outros grandes mamíferos. Já é tempo de procurarmos nos livrar da sensação confortável ou complacente de que os seres humanos contemporâneos, sentados em seus cafés ou ao volante de seus carros, são superiores em intelecto aos caçadores-coletores que emergiram daqueles difíceis éons africanos. Os caçadorescoletores precisavam fazer muito mais coisas diferentes do que os seres urbanos de hoje, e calcula-se que os homens perderam um décimo do tamanho do cérebro em relação aos povos da última era do gelo, e as mulheres, 14%. O cientista australiano Tim Flannery assinala que o mesmo ocorreu com animais domésticos em relação aos seus antepassados selvagens e pelas mesmas razões: “No geral, a vida para todos os membros do nosso rebanho domesticado e onívoro é tão mais benevolente que seus membros podem se dar ao luxo de investir menos energia no cérebro [...] Se duvidar que nossa civilização nos 8 transformou em rebanhos impotentes e autodomesticados, dê uma olhada no mundo à sua volta.” Isso pode parecer muito severo, mas é um bom corretivo para o nosso desdém. Os seres humanos primitivos que emergiram da África eram criaturas extraordinárias, até um tanto aterradoras. Cavernas de gênios Sabemos mais a respeito dos primeiros colonizadores europeus, os Cro-Magnon, do que a respeito dos primeiros asiáticos e australianos, mas isso tem mais a ver com a história da arqueologia, e a presunção dos europeus, do que com qualquer outra coisa. É perigoso fazer previsões quando se trata dos primórdios da história, contudo, parece seguro afirmar que as próximas grandes descobertas provavelmente virão da China e de outras partes do Leste da Ásia. Enquanto isso, os europeus se deleitam com a poesia ocasional concedida às culturas primitivas pelos lugares onde seus ossos são acidentalmente encontrados. Trata-se dos “aurignacianos”, “magdalenianos” ou “gravettianos”, o que causa confusão, mas é melhor do que o termo preferido pelos acadêmicos de hoje: “European Early Modern Humans” [Primeiros Humanos Europeus Modernos], ou EEMHs. E quem eram eles, afinal? A maior parte das pessoas da época só conhecia pequenos grupos locais. Estima-se que durante esse longo período raras vezes houve um grupo de humanos no planeta com mais de trezentos indivíduos. Certamente houve miscigenação entre grupos diferentes, do contrário o custo genético teria sido terrível; portanto sem dúvida havia também contatos entre tribos na periferia de seus territórios. Temos certeza de que dispunham de línguas, mas de que tipo? Povos estabelecidos nas culturas celta ou chinesa falavam dialetos diferentes em vales diferentes, com alterações a intervalos de algumas dezenas de quilômetros. O mesmo ocorreu em Papua-Nova Guiné, na Austrália, na América do Norte pré-europeia e na bacia do Amazonas. Os idiomas que emergiram em diferentes partes do mundo são muito diversos entre si, embora vestígios de algumas línguas srcinais, ou “protolínguas”, possam ser rastreados por meio de palavras aparentemente comuns. Mas através das vastas distâncias há grandes diferenças no modo como os sons
são formados — se na boca ou na garganta, ou como os lábios e a língua são usados — e como a gramática funciona. É provável que os povos Cro-Magnon, assim como os aborígenes australianos, tivessem um caleidoscópio de dialetos e línguas locais com um número suficiente de palavras e sons familiares que permitisse a comunicação na periferia de grupos tribais rivais. Sabemos também que sociedades agrícolas posteriores adoravam divindades associadas à sobrevivência — deuses da água, da chuva, do sol, do milho. Por isso, é provável que sociedades de caçadores-coletores reservassem um lugar especial para os aspectos da natureza dos quais mais dependiam — os animais que matavam e usavam. Os caçadores-coletores de hoje tendem a demonstrar reverência, e um intenso interesse de observador, pelos pássaros e animais com os quais convivem. Sabe-se que caçadores africanos imitam os animais que vão perseguir para entenderem sua maneira de pensar. Será que as pinturas rupestres de auroques e bisões teriam srcem semelhante? Os caçadorescoletores modernos também têm seus mitos de criação, suas histórias sobre de onde vieram. É improvável que versões de pele mais escura dos seres humanos que fomos não os tivessem também. E, de fato, os cerca de trezentos sítios arqueológicos rupestres até agora descobertos na Espanha e na França indicam um sistema de crenças baseado em animais e no mundo natural. Olhar, desenhar, copiar — usar a mão, o olho e a memória — parece constituir uma característica humana bem primitiva, e é sempre possível que as pinturas rupestres sejam apenas “arte pela arte”, sem finalidade espiritual. Ainda assim o uso de arte rupestre pelos povos da África e da Austrália e as imagens intensamente repetidas sugerem algum tipo de sistema religioso. Temos flautas de osso muito antigas, e as pinturas eram feitas na semiescuridão. Comsubterrâneos certeza também haviaà contação histórias.a Não é preciso imaginar rituais movidos música e de destinados garantir que osexagerar veados enaosfantasia cavalos para continuassem migrando ou a homenagear as criaturas gigantes derrubadas por caçadores armados com lanças. A associação entre escuridão, touros e mistério está profundamente arraigada no imaginário europeu. Uma arte parecida pode ter sido desenvolvida em outras partes e desaparecido. Pode ser que seja encontrada em muitos outros lugares: pinturas de seis mil anos de idade foram descobertas há pouco tempo numa caverna na Mongólia Interior, no norte da China. Mas o que temos no sudoeste da Europa é um maravilhoso soar de trombetas anunciando a chegada de humanos totalmente modernos, uma arte já tão consumada e comovente quanto os desenhos posteriores de Rubens e Van Gogh. Nossas relações com um parente contemporâneo mais próximo, os humanos de sobrancelhas bastas que chamamos de homens de Neandertal, são bem mais sombrias. Esses povos podem ser definidos como uma espécie à parte ou como um subgrupo da nossa e tinham aspectos físicos distintos: ossos mais pesados, crânio de formato diferente e talvez não possuíssem o dom completo da fala. Só surgiram plenamente desenvolvidos há 130 mil anos e sobreviveram na Europa até trinta ou 24 mil anos atrás — embora tenham desaparecido antes na Ásia. Dessa maneira, como espécie “malsucedida”, um fracasso total de que costumam zombar os cartunistas, eles sobreviveram durante cerca de cem mil anos — muito mais do que o Homo sapiens fora da África até agora, e cinquenta vezes mais do que o período que separa vocês, leitores, de Cristo. O que aconteceu com eles? Não houve nenhum evento cataclísmico. Os humanos modernos viveram ao lado de seus quase parentes durante trinta mil anos. Indícios arqueológicos espalhados pelo mundo sugerem que o homem de Neandertal pode ter copiado os novos supercaçadores, modificando as próprias ferramentas. Biólogos acirradamente entretersi ocorrido, sobre se ao houve miscigenação entre(escassas) os dois grupos, e a ideia mais discordam recente afirma que isso deve menos um pouco. Há provas de DNA provenientes de algumas comunidades separadas. O “novo povo” claramente desfruto de vantagens. Os homens de Neandertal podem ter usado uma forma de comunicação através de zumbidos
ou de cantos, em vez de uma linguagem desenvolvida por completo. Já se sugeriu que por viverem em 9 pequenos grupos não tinham necessidade de transmitir informações complexas, apenas emoções. Até onde sabemos, embora sepultassem seus mortos e talvez até usassem maquiagem, não produziram arte nem inventaram arcos, arpões, agulhas ou joias. Sobreviveram bem em condições climáticas que mal conseguimos compreender: a “velha idade da pedra” foi uma época de camadas de gelo que apareciam e recuavam, exigindo o máximo da flexibilidade dos humanos. Os homens de Neandertal tinham de recorrer às peles dos animais que matavam para se protegerem do frio, mas os humanos modernos tinham uma arma secreta, até mais importante do que o melhor instrumento de corte, as balestras e os arcos, que lhes permitiam matar de longe: eles tinham a costura. Muitas agulhas de belo formato foram encontradas, assim como as sovelas para abrir os buracos da passagem do fio. Como ocorre com os inuítes de hoje, o homem de Cro-Magnon vestia roupas bem ustas, dispostas em camadas, oferecendo proteção e flexibilidade bem maiores do que a pele de urso. Brian Fagan afirma: “A agulha permitia às mulheres fabricar roupas do pelo e do couro de animais diferentes, como lobos, renas e raposas árticas, aproveitando da melhor maneira as propriedades únicas de cada couro ou peliça para reduzir os perigos de laceração por frio e de hipotermia em ambientes de extremos que se alternavam rapidamente.” A agulha, somada a armas melhores, e o planejamento em grupo que a linguagem plena permitia tornaram o homem de Cro-Magnon imbatível. Os homens de Neandertal podem ter sido extintos pela mera competição. Ou pior: há indícios perturbadores vindos de Les Rois, na França, de marcas de abate num crânio neandertal, sugerindo que os humanos modernos teriam comido o que havia dentro. Os homens de Neandertal provavelmente foram canibais, pelo menos durante algum tempo, mas é possível que qualquer interação que tenhamos tido com eles estivesse mais longe da mera observação social, quanto mais dos cruzamentos regulares: “Homem de Neandertal? Humm... Saboroso demais para namorar.” É claro, só temos os estilhaços ósseos e empedrados de vidas em madeira e cores, enriquecidas por músicas, histórias e ideias sobre o cosmos, já perdidas para nós. Mas essas vastas extensões de tempo nos deixaram marcas. Alguns antropólogos acreditam que o tamanho da família e dos grupos de amizade que preferimos e consideramos normal — as pessoas que de fato conhecemos e com as quais interagimos, e não nossos amigos no Facebook — reflete o tamanho dos grupos de caçadores préhistóricos. Então, a necessidade de uma divisão de trabalho era ainda maior. Tirar a pele, curar, cortar, costurar e cozinhar eram atividades que tinham de ser executadas em paralelo com a caça e a coleta de alimentos. A divisão de trabalho por sexo já era um fato. Há quem afirme que diferenças tão aparentemente sutis entre os sexos, como o maior entusiasmo dos homens por alimentos e bebidas de gosto forte (molhos picantes, picles, uísque) são pálidos reflexos do passado de caçadores-coletores, quando os homens iam mais longe à procura de alimento e estavam sempre testando a comestibilidade da carne de animais mortos e de frutos. O jeito de nosso cérebro processar informações visuais, com foco implacável no movimento, é sem dúvida uma antiga adaptação para caçar (e fugir correndo). Será que nossa presteza para fechar as cortinas e nos acomodar diante de um aparelho de televisão quando chega o inverno é uma memória da segurança que sentíamos em cavernas subterrâneas? Ter um conhecimento tão escasso de nossas sociedades primitivas pode nos tornar ironicamente cautelosos quando tentamos imaginar esse período longo e distante da história humana. O mais provável, porém, é que, quanto mais damos corda à imaginação, mais realistas estamos sendo. Mas que lições podemos tirar, com segurança, das sociedades pré-históricas de caçadores-coletores?
A primeira é que, desde o início, somos peões do clima. A civilização humana surgiu durante uma fase quente e úmida de oscilação da Terra. Os primeiros momentos em que escapamos por pouco resultaram do esfriamento global, e não há razão para supor que os ciclos de aquecimento e esfriamento foram suspensos para sempre. Talvez estejamos reaquecendo o planeta num ritmo rápido e perigoso, o que pode levar ao nosso desaparecimento. Mas nossa história nos lembra que somos versáteis. Estamos aqui porque sabemos nos adaptar. A segunda é que somos extraordinariamente criativos e violentos. A rigor, as duas coisas parecem perturbadoramente inseparáveis. Historiadores e arqueólogos modernos tiveram grande êxito em demolir o mito do nobre selvagem, que infectou pensadores europeus — em reação à belicosidade de seus próprios líderes — desde o Iluminismo do século XVIII, passando pelo comunismo, até os nossos dias. Vem à luz uma história de ataques letais e massacres ocasionais que começa na Europa da Idade da Pedra, passa pelas terras altas da Nova Guiné, pelo Alasca, pelas Américas, alcança a estepe asiática e é, sem dúvida alguma, anterior aos estados guerreiros.10 Como veremos, certamente não era universal. Mas buracos de machadada no crânio de europeus assassinados sugerem que o homem pré-histórico não se limitava a fazer arte. Os arqueólogos Stephen LeBlanc e Katherine Register, depois de contemplarem os sinais de guerra e massacre entre os anasazi do Novo México, bem antes da chegada dos europeus, fizeram um longo estudo das guerras pré-históricas e chegaram à conclusão de que eram brutais e regulares. Eis o que dizem sobre aquelas célebres e gloriosas cavernas: Mais indícios de guerra são encontrados nas pinturas de Lascaux e outras cavernas na França e na Espanha. Essas primeiras obras de arte humanas de que se tem conhecimento trazem representações magníficas de bisões, mamutes e veados, mas incluem figuras humanas finas como gravetos com lanças projetando-se no corpo. Por alguma razão, descrições desses lados menos apropriados das maravilhas do mundo não costumam aparecer nos guias de viagem. Deixa-se de procurar, ou de ver, indícios de guerra por causa de um mito e da preocupação com a ideia de que o passado era pacífico.11 Como afirmei no começo, isso deve ter a ver com nosso forte vínculo grupal, que antes de tudo nos permite povoar o mundo, celebrarmos o “nós” e, por extensão, satanizar o “eles”. Muito provavelmente eliminamos tipos e, com certeza, outroscom mamíferos; ao longoexterminar de nossa história, nos outros intervalos emhumanos que deixamos de fazer arteeliminamos e amor, tentamos o maior empenho uns aos outros. Éramos desde o início, e ainda somos, agentes de instabilidade. O enigma agrícola Na Introdução, avisei que esta seria uma versão dos “grandes homens” e “grandes mulheres” da história humana e que reis quase sempre eram mais importantes do que camponeses. Mas só é assimpor causa desses agricultores. Por causa da agricultura, a população humana cresceu imensamente. Foi por pararem de andar de um lado para outro em bandos de caçadores-coletores e se fixarem para cuidar da lavoura e dos animais que os povos desenvolveram aldeias, depois cidades, e então civilizações. Versões mais densas do milho primitivo, as pesadas sementes das gramíneas asiáticas e o arroz selvagem colhido e replantado na China são minúsculos itens sobre os quais os astecas, os sumerianos, os egípcios e as
primeiras dinastias se apoiam. E nós também. Sem a agricultura não há divisão de classes, não há excedentes para elevar a condição de reis e sacerdotes, não há exércitos, não há Revolução Francesa, não há pouso na Lua. Então onde está o enigma? Em primeiro lugar, está no fato de os povos terem decidido cultivar, mas isso não tornou a vida fácil. Se está lendo este livro é porque, dos sete bilhões de pessoas vivas neste minuto, você faz parte do bilhão que vive no mundo rico e, dentro desse bilhão, viveu a vida toda numa vila ou cidade. Perdemos de vista a importância da agricultura, seus perigos, esperanças e escalas de tempo. A agricultura se tornou uma coisa com a qual a maioria das pessoas que leem livros como este nunca precisou se preocupar. Epidemias de fome só ocorreram na história europeia recente devido à guerracatástrofes ou à incompetência política. Aa abundância Europa é tão nenhum produtor de filmes sobre sequer contemplou epidemia denafome como um grande possívelque enredo ocidental. Apesar disso, a agricultura, que em sua quase totalidade é um trabalho monótono e cansativo, está voltando para nos perseguir, vítimas de seu próprio êxito. A agricultura permitiu que a população humana decolasse. Desde as primeiras tentativas de cultivar a terra, a população do mundo levou quase dez mil anos para chegar a um bilhão. Agora estamos adicionando um bilhão de pessoas a cada doze anos. Os estoques de alimento, guardados para emergências, são minúsculos. Isso significa que para evitar a fome cada pessoa precisa ser alimentada por um pedaço de terra muito menor do que em qualquer outra época. Não será fácil. De acordo com a Academia Nacional de Ciências dos Estados Unidos, levando em conta o peso, os humanos representam menos de 0,5% dos animais do planeta, mas consomem um quarto da produção vegetal. É hora de recordarmos como o simples cultivo da terra é, de fato, interessante e importante. E de saudar os primeiros que cultivaram, pois o registro arqueológico é claro. Os primeiros agricultores em geral tinham pior saúde e viviam menos do que os caçadores-coletores que os precederam e rivalizavam com eles. Vértebras fundidas e deformadas, joelhos fracos e dentes ruins contam uma história que se repete nas culturas do mundo inteiro. Num estudo realizado pelo arqueólogo J. Lawrence Angel em 1984, demonstrou-se que a expectativa de vida humana na verdade caiu entre os caçadores-coletores do período paleolítico, há 25 mil anos, quando os homens viviam 35 anos e meio, e o auge da revolução agrícola cinco mil anos atrás, quando viviam em média 33. Os homens perderam cerca de quinze centímetros de altura quando se tornaram agricultores, e as mulheres encolheram em torno de doze centímetros. Piadas posteriores sobre agricultores que se queixam sem parar do clima e são naturalmente têm fundamento verdade uma vida cercada preocupações. Para tristes os primeiros agricultores, numa o trabalho básicoprimária. de cortar Éárvores, irrigardura, campos, lavrarde a terra com galhos e colher com foices de ardósia e pedra misturava-se ao medo de que a lavoura fosse comida por animais selvagens ou roubada por caçadores mais bem armados e agressivos. Por isso, voltamos a perguntar por quê — por que, num mundo de águas repletas de salmão e de rebanhos de antílopes, um mundo relativamente vazio de humanos, mas repleto de frutos e de caça, as pessoas prefeririam se enterrar na lama? Antigos mitos de Jardins do Éden, de uma idade de ouro e de pessoas despreocupadas vivendo nas florestas nos lembram que lavrar a terra — moldar a natureza em vez de arrancá-la — nunca pareceu uma permuta que oferecesse atrativos óbvios. Não é por acaso que, posteriormente, quando surgiram os governantes, tornou-se frequente que eles se descrevessem como caçadores, e que mesmo no mundo moderno a caça seja um esporte de reis. Nenhum monarca se apresentava arando a terra, arrancando batatas. O mundo do caçador parece, de alguma forma, mais nobre, mais grandioso e mais excitante do que o do agricultor, curvado sobre seus sulcos ou patrulhando, inquieto, os muros do aprisco.
Uma resposta para a questão da ascensão da agricultura é que ela simplesmente permite que mais seres humanos vivam. Estima-se que um caçador-coletor precisa de cerca de 2.600 hectares de terra repleta de caça e frutos para viver, ao passo que a agricultura pode produzir em um décimo desse espaço calorias suficientes para sustentar cinquenta pessoas. A existência de mais humanos e, portanto, de menos território disponível para caçar sugere que a agricultura era a única solução. Mas estamos invertendo a questão. O aumento populacional veio depois que a agricultura começou, não antes. Em todo o planeta, durante esse período, uma porção muitíssimo maior de terra era mais habitada por caçadores do que por agricultores: essa é a narrativa não registrada das florestas da Índia, das estepes da Eurásia, das ilhas cobertas de mata do Leste Asiático e das migrações das Américas. A maioria das pessoas descobria um eito de não lavrar a terra. Apesar disso, a agricultura foi inventada repetidas vezes em partes do mundo completamente separadas. Aconteceu primeiro no Crescente Fértil, que começava numa curva onde hoje ficam a Jordânia e Israel, subia até a Anatólia, onde hoje é a Turquia, e descia para leste até o Iraque. Aconteceu depois no norte da China. Então no México; e de forma independente nos Andes; e mais tarde no que é agora o leste dos Estados Unidos. Pode também ter se desenvolvido independentemente na África e na Nova Guiné. Milhares de anos separam essas rupturas das “srcens da agricultura”, contudo são muito mais do que apenas coincidências. Uma vez que está bem estabelecida, a agricultura se espalha com facilidade, assim como aconteceu do Crescente Fértil para a Europa uns quatro mil anos depois de sua invenção e para os vales hindus no atual Paquistão e para o Egito.12 Embora os historiadores discutam as razões, a maioria está de acordo sobre a grande importância das mudanças climáticas. Não houve apenas uma “era do gelo”, como já sugerimos. Mas por volta de quinze mil anos atrás a fase mais fria da última era do gelo chegou ao fim, e o clima dos principais continentes ao norte do Equador começou a melhorar. Sem a maior proliferação de plantas a agricultura teria sido impossível. Nos climas mais amenos e úmidos sempre houve uma abundância de vida animal, o que facilitava a sobrevivência dos caçadores. Mas, das Américas à Austrália, os indícios da extinção de grandes mamíferos que se seguiu à chegada dos humanos são suficientes para sugerir que nós simplesmente nos tornamos bons demais como caçadores, o que gerou prejuízo para nossa própria sobrevivência a longo prazo. A caça ficou mais difícil de encontrar. Migrações de veados, cavalos, antílopes e outros animais diminuíram e mudaram de curso. Os ossos de animais encontrados perto de assentamentos humanos, na verdade, vão ficando cada vez menores à medida que os adultos maiores são extintos. Por volta de onze mil anos atrás, alguns grupos de humanos perceberam que se mantivessem alguns animais à mão — para começar, os ancestrais das ovelhas, das cabras e dos porcos — teriam sempre um suprimento de carne e couro. É provável que durante séculos as pessoas já colhessem sementes comestíveis, antes de passarem a plantá-las e voltarem depois para colher anualmente gramíneas carregadas de sementes ou ervilhas nutritivas. A maioria das plantas e dos animais, como se sabe, não tem utilidade para os humanos — as folhagens indigestas, as raízes venenosas, os pássaros de pouca carne e difíceis de capturar e os insetos —, por isso era fundamental fazer uma seleção cuidadosa das espécies que compensassem os cuidados e atenções. Temos de imaginar que uma determinada descoberta individual se repetiu muitas vezes — a grama que balança naquela encosta onde o riacho faz a curva, com seus grãos um pouco mais pesados, colhidos mais de uma vez e depois espalhados, que acabava se multiplicando. Em sociedades onde os homens iam caçar longe dos assentamentos, essa descoberta muito provavelmente foi feita pelas mulheres. Nisso os povos que viviam no Oriente Próximo foram especialmente agraciados. Há 56 gramíneas comestíveis na natureza — cereais como trigo, cevada, milho e arroz. Dessas, não menos de 32 cresciam
em estado selvagem nos morros e planícies do Crescente Fértil — onde hoje ficam o sul da Turquia, Síria, Jordânia, Israel e Iraque — em comparação com quatro variedades na África, quatro na América e uma na Europa Ocidental, a aveia. Além disso, os povos do Crescente Fértil tinham acesso aos srcinais agrestes do trigo emmer, da cevada, do grão-de-bico, da ervilha, das lentilhas e do linho, assim como a mais animais domesticáveis. Durante períodos posteriores da história, invadida por todo mundo, dos egípcios e persas aos árabes e cruzados, essa fatia do mundo não foi muito abençoada, mas teve muita sorte no início, sem a menor dúvida. Os americanos tinham lhamas, os chineses, porcos. Mas os povos do Crescente Fértil tinham ao se dispor uma parcela desproporcional dos treze animais de grande porte que podem ser domesticados. Dispunham não apenas de porcos e de cavalos selvagens nas proximidades, mas também de vacas, cabras e ovelhas, além daquelas 32 gramíneas. Jared Diamond assinalou que, em contraste, a parte mais favorável do Chile tinha apenas duas das 66 gramíneas cobiçadas: “A Califórnia e o sul da África tinham apenas uma cada, e o sudoeste da Austrália, nenhuma. Só esse fato ajuda a explicar muita coisa no desenvolvimento da história humana.”13 Dessa maneira, no Crescente Fértil, povos chamados natufianos já colhiam grãos havia treze mil anos, e logo depois — supostamente para ficar perto dos preciosos grãos — se estabeleceram em aldeias, em vez de continuarem andando de um lado para outro como caçadores-coletores. Não foram os únicos: hoje se supõe que mais ou menos na mesma época grupos de caçadores que viviam perto do rio Yangtsé, na China, também já colhiam e comiam o arroz silvestre. Então o clima voltou a mudar. O esfriamento não foi tão espetacular como nas eras do gelo, nem permanente, mas não deixou de ser dramático. Esse breve período é conhecido como “Dryas recente”, por causa de uma planta cujos avanços e recuos são usados para medi-lo. Os natufianos descobriram que o grão de que se alimentavam começou a morrer nas planícies mais frias e secas. O terreno alto atrai mais água e mantém mais espécies vivas em tempos difíceis, por isso a planta crescia nos morros, mas 14 era preciso andar mais para encontrá-la e colhê-la. Alces e mamutes desapareceram na mesma época. Algo parecido deve ter acontecido na China. Nunca se deve subestimar o poder da preguiça: sob pressão, esses povos parecem ter tomado a providência que a lógica recomendava. Em vez de se submeterem à chateação de migrar e construir novas aldeias, seguindo o comportamento incerto dos grãos silvestres, passaram a colher grãos excedentes, levá-los para casa e plantá-los. Parece uma mudança quase insignificante, um jeito de poupar o trabalho das longas caminhadas, mas foi imensa para a humanidade. No Crescentecomeçara. Fértil e na China, onde uma mudança semelhante se deu com relação ao arroz e ao painço, a agricultura Isso talvez explique também por que as primeiras aldeias surgiram onde surgiram. Há mais biodiversidade nos morros e montanhas, porém as pessoas preferem viver no abrigo dos vales. É neles que encontraram os lugares “na medida certa”, não muito expostos ao vento, mas perto o suficiente das plantas silvestres para que pudessem colher e tentar cultivar — do milho, feijão, abóbora, abacate e tomate das montanhas mexicanas às dezenas de gramíneas e favas das montanhas de Atlas. Sem dúvida plantas eram trazidas e testadas com regularidade, e só as mais promissoras, mantidas — as mais nutritivas, as mais resistentes e as que se transformavam com rapidez em versões mais gordas de si mesmas quando selecionadas. Para começar, e perdurar, o plantio de culturas e a domesticação ou o pastoreio de animais somavam-se às caçadas. Antílopes podiam ser obtidos quando migravam; veados e peixes eram trazidos para casa. Contudo, a humanidade agrícola caíra numa armadilha. Não pela última vez, tínhamos dado um passo decisivo e com consequências impossíveis de imaginar, e, uma vez dado esse passo, não havia como voltar atrás.
A arapuca consistia no fato de que comunidades agrícolas fixas logo produziam populações maiores. Mesmo com a tecnologia do fim da Idade da Pedra, cada hectare de terra cultivada era capaz de sustentar um número de pessoas dez vezes maior do que um hectare de terra de caça. E não se tratava só de alimento. Como vimos, as tribos caçadoras, por estarem sempre em movimento, tinham de carregar os filhos. Isso limita o número de bebês que cada mulher pode ter. Quando as pessoas se instalavam num lugar, a taxa de natalidade podia subir, e de fato subiu. Famílias maiores significam mais bocas para alimentar, o que quer dizer que lavrar a terra e pastorear se tornam cada vez mais importantes. Uma vez lavrados, os campos nunca mais podem ser abandonados. Os rebanhos jamais podem ser soltos e devolvidos ao estado selvagem. Os agricultores talvez sejam mais baixos, mais sujeitos a doenças — porque parasitas e pragas também se estabelecem — e morram mais cedo. Seus dias talvez sejam mais longos, e suas preocupações, maiores. Talvez tenham perdido a liberdade de errar por lugares selvagens e mágicos. Mas alimentam mais crianças — sobrinhos, sobrinhas ou mesmo netos. Não podem parar. Antes, moldavam e domesticavam plantas e animais. Agora as plantas e os animais os moldam e domesticam também. Além disso, eles desenvolveram outras habilidades. Tinham de moer e peneirar os grãos e armazenálos. Seus preciosos animais domesticados, que tinham de ser protegidos contra os animais ferozes e deixados à vontade para procurar comida — mas não muito longe —, eram explorados de todas as formas possíveis. A lã podia ser tosada, reservada e tecida. O sangue podia ser extraído e usado para enriquecer os alimentos. Alguns fazendeiros desenvolveram o estranho hábito de beber o leite de cabras e vacas lactantes — e a maioria de seus descendentes europeus até hoje tolera bem a lactose. A preparação de guardar couros, ea cozinhar teceduragrãos de cordas para a fabricação de cestos cerâmicas para — todo um ajudar mundo adelavrar tarefasa eterra, habilidades domésticas surgiu.e * ** A agricultura foi a mais importante de todas as revoluções humanas. Provocou não apenas uma imensa mudança política, pois hierarquias se erigiram sobre o suor e o sucesso dos agricultores, mas também mudanças menos fáceis de detectar na consciência humana. Supostamente, as comunidades assentadas perderam contato com a geografia mais ampla de seus ascendentes caçadores — e, com o “outro”, o desconhecido, em volta delas. Os moradores das aldeias se tornaram um pouco voltados para si próprios, distanciando-se das terras dos animais selvagens e dos grupos transeuntes de caçadores. A agricultura acabou produzindo excedentes de alimento para líderes e sacerdotes em tempo integral; pessoas capazes de viver sem pegar no arado ou cuidar de rebanhos. Mas a chegada da agricultura também significou o surgimento do lar ou da pátria. E, como a arqueologia demonstra, o ato de estabelecer-se produziu pessoas que podiam pagar com grãos ou peles materiais “de luxo” como sal, pedras afiadas, conchas bonitas e ervas. Assim, bem no início, comerciantes já deviam carregar seus pacotes por trilhas recém-abertas. Acabou sendo uma permuta muito mais complexa do que o primeiro punhado de sementes mais gordas poderia sugerir. A ascensão da agricultura de fato influencia toda a história posterior. A relativa escassez de animais para domesticar e a tardia iniciação na agricultura que coube aos povos chegados à Mesoamérica significaram que as civilizações ali estabelecidas estavam três mil anos atrás das da Europa e da Ásia e, portanto, muito vulneráveis à conquista. A degradação do solo no delta mesopotâmico provocou a queda da civilização sumeriana, e o uso abusivo das terras aráveis no mundo clássico levaria, em última análise, à desertificação do Norte da África. Esses fracassos da agricultura criaram vácuos políticos —
pedaços de terra relativamente pouco povoados — que no momento apropriado acelerariam a difusão do islamismo. O solo escasso propeliu tanto os vikings como os mongóis. Mas primeiro vieram as cidades. Ge ntis anarquist as Um dia Tóquio, Londres, Los Angeles e Moscou deixarão de existir e serão esquecidas. Um dia no futuro distante — esperamos — ondulantes aterros de pedra, uma cobertura verde de forma bizarra e muros sepultados, rodovias e objetos de metal jazerão em paz, como cicatrizes planetárias. Se isso é difícil de imaginar, basta refletir sobre as primeiras cidades há muito desaparecidas. Algumas estão sepultadas profundamente sob as cidades de hoje. Muito antes de suas muralhas caírem ao som das trombetas dos sacerdotes de Josué, Jericó foi um assentamento, um dos mais antigos do mundo, com uma fonte, casas de adobe e até mesmo um muro e uma torre, embora se imagine que servissem mais para proteger o povo contra enchentes do que contra ataques. Ao norte de Jericó, nas planícies da Anatólia, na Turquia de hoje, há dezenas de aterros de aparência estranha, morros mais ou menos simétricos, que se elevam com suavidade sobre os modernos campos de trigo, cevada e milho. Muito provavelmente, são em sua grande maioria restos de cidades neolíticas, cada qual abrigando milhares de pessoas em sua época: um mundo perdido, ruidoso, de agricultores primitivos e seus familiares, que se instalaram e trabalharam juntos durante séculos, adorando deusesleopardo, economizando para comprar artigos vindos de longe, contando piadas, casando-se e sepultando os mortos. Tudo isso é um palpite razoável, porque um desses aterros foi devassado, primeiro por arqueólogos britânicos. Foi uma revelação, uma arca do tesouro de informações sobre o que aconteceu depois da adoção da agricultura. Hoje Çatalhüyük é uma pequena área de terra escavada sob toldos de metal, com uma modesta coleção de abrigos para arqueólogos nas proximidades. Lembra um pouco o cenário de um filme passado nas trincheiras. É bem menos conhecida do que Roma ou Angkor Wat, mas na história humana tem quase a mesma importância. Seus edifícios serviram de moradia de 9.500 a 7.700 anos atrás. Não tem muralhas defensivas nem prédios grandiosos que se destaquem dos outros. Não há sinais de governantes, sacerdotes, alojamentos de guerreiros, cabanas de operários inferiores — é apenas uma colmeia igualitária. Em certo sentido, as casas parecem bastante modernas. Com lareira e sala de estar, despensa próxima e outros cômodos que parecem ter sido dormitórios, a casa típica era mantida escrupulosamente limpa, com caiações regulares de paredes e assoalho. Ao entrar sentimos desaparecer a impressão de estranheza, e essas moradas, mais ou menos do tamanho de um moderno apartamento urbano ou de uma casa de campo, nos parecem familiares — modestas, mas suficientes. Porém a sensação de familiaridade é só inicial. Não é uma cidade como as que conhecemos. Çatalhüyük não tem ruas, praças ou edifícios públicos. Seu povo entrava no favo de casas através de aberturas no telhado, com escadas para descer, quase como se estivessem entrando em cavernas construídas pelo homem. Imagina-se que socializavam nos telhados, que, interligados, deviam formar um espaço maior, seguro e plano para o trabalho artesanal, reuniões e conversas, provavelmente com coberturas para proteger do sol. (Nessa região da Turquia, com seus verões escaldantes, as pessoas ainda têm o hábito de sentar-se à sombra, e até de dormir, nos terraços.) As casas eram reformadas ou reconstruídas derrubando-se, em parte, as srcinais, depois se construindo verticalmente sobre as ruínas, de modo que cresciam quase como se fosse um coral humano,
estrutura sobre estrutura. Em alguns lugares, há dezoito camadas de casas. Os cômodos eram decorados com cabeças de touro engessadas, pinturas de leopardos e de caçadas, e com figuras de pedra e argila representando mulheres e animais. Ao contrário de Jericó e de outros centros urbanos primitivos, ali tudo parece acontecer dentro de casa. O arqueólogo-chefe do sítio, Ian Hodder, da Universidade de Stanford, afirma: “Numa cidade moderna, esperaríamos identificar diferentes áreas e edifícios funcionais, como zonas industriais e residenciais, a igreja, a mesquita ou o templo, e o cemitério. Em Çatalhüyük essas funções separadas ocorrem todas num só lugar: a casa.”15 Nessas casas, as pessoas guardavam alimentos — o suficiente para uma família — em grandes vasilhas de madeira escavada, teciam cestos e esteiras, produziam adagas e fivelas de cinto com lascas de pedra e osso, poliam espelhos de obsidiana, criavam braceletes e outras joias, faziam carimbos curiosos, provavelmente para marcar seus bens ou a própria pele, cozinhavam e limpavam. Ao redor havia terra excelente para agricultura, riachos e lagoas com peixes e pássaros. A população aumento para sete mil pessoas, talvez dez mil — tornando-a um dos maiores assentamentos humanos na Terra em sua época. Pelos restos de lixo encontrados fora da cidade dá para dizer que viviam bem, alimentando-se de porcos selvagens, patos, gansos, ovelhas, peixes, cevada e aveia. O mais extraordinário em Çatalhüyük é o lugar de sepultamento dos corpos. Depois de dobrados com cuidado — “amorosamente” parece a descrição mais apropriada —, os mortos eram enterrados debaixo do assoalho das casas, sob fogões ou sob as plataformas onde os vivos dormiam. Há quem ache que, antes de mais nada, eram deixados expostos do lado de fora para que os abutres fizessem uma limpeza, mas hoje predomina a opinião de que isso não ocorria, que as pessoas simplesmente acabavam se acostumando com o cheiro de decomposição. Em alguns corpos a cabeça era removida depois da morte, coberta de gesso, pintada e conservada. Presume-se que as cabeças tinham pertencido a pessoas importantes, talvez chefes de família. Parece que os mortos eram exumados, cobertos de gesso e sepultados outra vez, uma espécie de recordação de família que seria reciclada através de gerações. Uma casa continha mais de sessenta corpos. Há mais mistérios em Çatalhüyük: nas casas, as cabeças de touro e as pinturas de leopardo sugerem um culto do poder e da agressão naturais no mundo lá fora. Os moradores não precisavam que David Attenborough lhes trouxesse uma noção do perigo do ensolarado mundo exterior para dentro do útero escuro e cavernoso da casa. Mas a prática de construir mais e mais casas no mesmo lugar e sepultar pessoas da família e preservar as cabeças ali aponta para um culto dos antepassados, comum na China e no Japão, a rigor em todo o mundo mediterrâneo até a época romana. Essas pessoas vivem em famílias nucleares, ou pelo menos em casas nucleares, e se identificam com pais, avós e com as gerações anteriores. Estão dizendo: “ Somos este chão, este lugar, esta pegada no solo”; uma forte afirmação de assentamento depois de milhares de anos de nomadismo errante. Parece estranho? Se parece, é só porque agora somos, na maioria, gente da cidade que perdeu qualquer ligação direta com um pedaço específico de terra, o pedaço que pertenceu aos nossos antepassados. Contudo, pela maior parte da história humana, esta identificação entre linhagem e terra foi normal (ainda que sepultar a vovó debaixo do fogão não fosse). A segunda parte da mensagem de Çatalhüyük é sobre igualdade. À medida que o tempo passa e camadas se formam umas sobre as outras, surgem casas maiores, mais decoradas e com mais enterros do que outras — o que sugere a lenta ascensão de famílias dominantes ou mais poderosas. Mas ainda não existe nada que se pareça com uma classe governante ou sacerdotal. Çatalhüyük nos permite vislumbrar uma sociedade alternativa antes do aparecimento da divisão de classes, com os guerreiros, chefes e reis das cidades de tempos posteriores. É uma sociedade mais pacífica, aprumada em algum ponto entre as primeiras aldeias agrícolas e os impérios guerreiros do futuro. Os entusiastas de Çatalhüyük a veem
como um Éden igualitário, onde as mulheres eram veneradas, não existia guerra e as famílias com poucas propriedades pessoais viviam juntas de forma pacífica e cooperativa. Dizem que esse anarquismo simples é por natureza instável. Talvez seja, mas o povo de Çatalhüyük parece ter conseguido sair-se muito bem durante pelo menos 1.400 anos. Há riqueza excedente em quantidade suficiente para a pintura, a cerâmica, a tecelagem e uma boa dieta, mas não para espadas e impostos. Sorte deles. O povo pueril de Stonehenge Nossas preconcepções sobre a humanidade primitiva são tão marcadas de sangue e do brilho de grandes guerreiros que somos obrigados a nos perguntar se a história de relativa paz e amor de Çatalhüyük foi rara, senão única. Uma maneira de tentar responder é viajar mais para a frente no tempo, porém para uma parte mais primitiva do mundo, que ofereça comparações interessantes. O que agora se chama Grã-Bretanha desenvolveu-se mais lentamente do que o Crescente Fértil e tinha um clima mais hostil. Enquanto Çatalhüyük crescia, nove mil anos atrás, a camada de gelo enfim deixava as terras altas britânicas, e as terras baixas foram escassamente povoadas por caçadores e coletores. Com o gelo indo embora, a Grã-Bretanha se cobriu sobretudo de densas matas de carvalho, olmos, amieiros e limoeiros, além de bétulas e salgueiros ao norte. Um esquilo poderia atravessar de um lado para o outro sem pôr as patas no chão. Pelo menos é o que se diz. mil anos depois, Çatalhüyük tinha começava a declinar, Tinham a Grã-Bretanha ainda eraDois um lugar ingrato paraquando agricultores, mas eles já crescido estavam ealterando a paisagem. começado em pequenas faixas de terra costeira e agora obrigavam a floresta a recuar a cutiladas, plantando trigo nas clareiras. Essa agricultura de derrubadas e queimadas é uma proposição de curto prazo. Logo o solo se exaure, novas derrubadas se impõem e os “campos” anteriores são abandonados para voltarem ao estado de matagal. Mil anos adiante — pois ainda estamos num estágio em que as mudanças ocorrem lentamente — as clareiras eram bem maiores. Alguma coisa que se poderia chamar de terras aráveis começava a aparecer, sobretudo ao sul do que agora é a Inglaterra, lavradas e, sem dúvida, fertilizadas e capinadas. As pessoas cultivavam variedades primitivas de trigo, cevada e talvez de linho. Parece que não plantavam hortaliças, mas adicionaram frutos e castanhas à dieta. Aravam com o auxílio de bois, criavam gado, porcos, algumas ovelhas e, desde o início, domesticaram cães — foram encontrados ossos de cães que lembram os do labrador e os do terrier modernos. Os cães, que estão entre os primeiros animais a serem domesticados, davam ajuda vital em atividades de guarda e caça. Mas o historiador Rodney Castleden observou que as ossadas deixam claro que “alguns cães chegavam à velhice, além de sua vida 16 ativa, portanto eram mantidos pelos donos apenas por afeição”. O povo amigo dos cães não costumava chegar à velhice. Uma análise dos ossos de uma comunidade nas Órcades, então parte avançada das Ilhas Britânicas, mostra que 70% eram adolescentes ou tinham vinte e poucos anos. Apenas 1% passava dos cinquenta. Era uma sociedade jovem, evidentemente. Os crânios sugerem uma gente delicada, de traços finos, em nada parecida com os pesados e furiosos bretões da lenda popular. Não temos suas roupas, é claro: uma cultura que existe numa Grã-Bretanha quente, úmida e que, em sua maioria, construía e criava com madeira, trajava lã, couro e possivelmente capas, chapéus túnicas de linho, o que não deixa muitos evestígios. examinando-se o poucoainda que sobrou dee culturas semelhantes na Europa continental estudandoContudo, fivelas, alfinetes e ferramentas existentes, é possível postular, com alguma plausibilidade, o tipo de roupa bem costurada e confortável que os bretões usavam.
Nós a chamamos de era neolítica ou “nova idade da pedra”, mas talvez devêssemos chamá-la, mais exatamente, de idade da madeira e do couro. As pessoas começaram vivendo em casas de madeira retangulares e usando roupas de couro (amaciado com técnicas repulsivas que ao que tudo indica envolviam abundante quantidade de urina, esterco de vaca e miolos crus de animais). Depois passaram a usar roupas de tecido de lã, a viver em casas maiores, comunitárias, e em aldeias centradas em cabanas circulares astuciosamente construídas, onde centenas podiam dormir sob o mesmo teto. Ao falar do povo que vivia em Skara Brae, a belíssima aldeia de pedra iniciada quase cinco mil anos atrás numa baía curva nas Órcades, revelada por uma tempestade em 1850, Castleden diz que a impressão geral é de um alto nível de conforto doméstico: “Ao que parece, as condições de vida da gente comum eram no mínimo tão boas quanto as da Grã-Bretanha medieval, mais de quatro mil anos depois: em Skara Brae provavelmente eram ainda melhores.”17 Andar entre algumas casas e passagens de Skara Brae nos faz recordar vividamente o aconchego doméstico de Çatalhüyük — os mesmos quartos de família com cômodas, lugares para dormir e corredores, tudo feito de pedra, em vez de lama ou gesso. Pode ou não ser que houvesse chefes e sacerdotes, mas em todo caso não se trata de uma cultura devastada pela guerra. Na Idade Média e no fim da Idade da Pedra, as Órcades e as Shetlands, longe de serem arquipélagos marginais, eram lugares avançados. Seus objetos de cerâmica circulavam pela Grã-Bretanha, e seus círculos, cemitérios e aldeias de pedra eram inusitadamente grandes e complexos. Estavam muito à frente, por exemplo, dos úmidos pântanos meridionais que hoje chamamos de Londres. Durante séculos, historiadores tiveram muita dificuldade para acreditar que a cultura britânica primitiva pudesse ter se desenvolvido de forma tão admirável, chegando à criação do próprio monumento de Stonehenge, apenas em decorrência de uma evolução suave. Não teria, por força, havido uma elite guerreira e sacerdotal que chegou, quem sabe, como invasora oriunda de outro continente e que dirigia tudo? Não há qualquer sinal da existência dessa elite, nem de uma migração cultural. Parece não haver razão para duvidar que os bretões evoluíram mais ou menos como o povo de Çatalhüyük, em comunidades toscamente igualitárias, espelhadas às centenas pelas terras aráveis e interligadas por vínculos de comércio. Apesar de todas as lendas modernas a respeito de sacrifícios humanos (talvez tenha acontecido algum) e mortes violentas, a Grã-Bretanha neolítica deixou pouquíssimos indícios de guerra ou de violência organizada e absolutamente nenhum castelo ou palácio. Mas, se era assim, como se explica que tanta gente tenha sido mobilizada para criar Stonehenge, ou o espantoso “morro” de Silbury — que necessitou de tanta transposição de terra quanto uma pirâmide egípcia de tamanho médio construída na mesma época — ou as aldeias e os monumentos de pedra das próprias ilhas Órcades e Shetlands? São realizações assombrosas. Estamos falando de um povo que não tinha metal, cidades ou qualquer coisa que reconhecêssemos como uma forma de escrita. Entretanto, vivia em ilhas atravessadas por estradas ligando milhares de aldeias — a “Sweet Track” nos pântanos de Somerset, que com seus cinco quilômetros de carvalho rachado precisou de dez mil estacas, foi construída há seis mil anos e é a estrada mais antiga da Europa — e deve ter produzido as ferramentas essenciais, como lâminas e machados de sílex, em escala quase industrial. As minas de sílex eram fundas o suficiente para exigir que os mineiros trabalhassem com pequenas lâmpadas. Os barcos que transportavam produtos pela costa devem ter sido comparativamente grandes — eram canoas escavadas e atadas umas às outras, ou mesmo embarcações feitas com peles de animais revestindo um esqueleto de madeira. Há indícios de molinetes, de sofisticada marcenaria e de construções de pedra de imaculada perfeição. Essa é uma cultura sofisticada e paciente. Acima de tudo, havia tempo e cooperação. Stonehenge levou aproximadamente mil anos para ser construída, começando pelo trabalho de terraplenagem até se tornar uma vasta estrutura, incluindo 82
peças de arenito cinza-azulado trazidas do País de Gales, a 240 quilômetros, e os blocos de arenito de até 53 toneladas cada um, extraídos a 32 quilômetros de distância. Essas pedras foram esculpidas, alisadas, postas em pé e encimadas por outras, como lintéis. Como isso foi feito? Várias rotas terrestres e aquáticas foram propostas. As rodas já existiam, porém se acredita que as pedras eram muito pesadas, e o chão, áspero demais para que eixos de madeira aguentassem. Pode ser que as pedras tenham sido roladas sobre toras, o que seria um serviço realmente demorado. Parece mais provável, portanto, que usassem trenós, puxados por bois ou grupos de homens, depois que as pedras galesas eram descarregadas dos barcos. A fim de lhes dar forma e erguê-las, há várias técnicas possíveis e plausíveis, como o uso de cunhas e de fogo para rachar as pedras, abrir buracos forrados de madeira para erguê-las e construir plataformas que subiam lentamente para colocar os lintéis no lugar. É uma proeza espantosa, mas não exige gigantes — nem tiranos. As grandes comunidades tribais da área, trabalhando juntas e levando o tempo que fosse necessário (mais ou menos como os futuros construtores de catedrais que trabalhavam durante gerações), conseguiriam administrar as várias evoluções de Stonehenge e os outros grandes sítios neolíticos, até mesmo o supremamente admirável zigurate no morro de Silbury. Quase não há divergências sobre a finalidade de Stonehenge. Seu alinhamento com os raios do sol nascente de meados do verão mostra que era uma espécie de templo. Não é um calendário de pedra muito preciso, como já se afirmou, mas complexas marcas para o nascimento da Lua mostram um cuidadoso interesse pelos ciclos lunares. Novas datações com carbono de buracos de postes, onde as medições foram feitas, sugerem que isso começou incrivelmente cedo, mais ou menos há dez mil anos — portanto antes de Çatalhüyük. Não detalhes das crenças britânicas um período tão antigo, a não ser que estavam associadas ao sabemos Sol, portador de calor e fertilidade, além em da Lua, e que, portanto, envolviam as comemorações e preces sazonais típicas de povos agrícolas em toda parte. Os imensos túmulos com ossos quebrados e queimados antes do sepultamento sugerem uma reverência pelos ancestrais e pela continuidade tribal ou familiar, que encontra eco nos quartos rebocados de branco da Anatólia. Escuridão e morte, um vivo interesse pelas estações e pelo espantoso poder do Sol, família e memória; o resto é detalhe. Assim, só nos resta imaginar uma cultura criativa, paciente, habilidosa e jovem, e não uma de druidas de barbas brancas ou de assustadores e sanguinolentos líderes. Esses vieram depois, na Idade do Bronze. Os henges e as imensas casas circulares acabaram sendo abandonados. Não sabemos por quê. Pode ter sido devido às pressões de uma população cada vez maior, que provocaram conflitos em torno da terra arável escassa e degradada. Seja como for, uma idade mais sangrenta estava por vir, como aconteceu no Crescente Fértil e na China neolítica. Apesar disso, é bom lembrar que a idade das pacíficas comunidades agrícolas, que adoravam o Sol e a Lua, cuidavam de seus animais e lavouras, faziam comércio em suas fronteiras com outras comunidades e construiriam monumentos notáveis, duro milhares de anos na Grã-Bretanha, bem mais do que impérios, dinastias ou democracias. Nunca mais aconteceu — seja na Grã-Bretanha ou na Europa. A última palavra a esse respeito só poderia ser de Rodney Castleden: Com algo que se aproximava do equilíbrio ecológico e comunidades vivendo uma rotina pacífica com os meios dos quais dispunham, é possível ver na cultura neolítica uma lição concreta para as economias sociedades industriais do Ocidente. Elas mostram sinais de de que sobreviverãomodernas mais queedois ou três séculos à Revolução Industrial, ao passopoucos que a economia subsistência do período Neolítico durou dez vezes mais.
É uma advertência muito forte, mas nos tornamos numerosos demais, dependentes demais do consumo, para de fato prestarmos atenção. E, de qualquer forma, mesmo enquanto os construtores britânicos de monumentos caminhavam para o seu misterioso fim, a humanidade já se preparava para dar o próximo passo rumo à história escrita — à cidade. As cidades da planície A sudeste de Çatalhüyük, dois rios majestosos correm para o sul em direção ao mar. O Crescente Fértil viu o surgimento dos primeiros agricultores e dos primeiros grandes assentamentos e, portanto, não é de surpreender que também tenha dado à luz as primeiras cidades e os primeiros impérios. “Mesopotâmia” significa, simplesmente, a terra entre esses dois rios, o Tigre e o Eufrates. Ao se aproximarem do mar, eles se esparramam aos poucos nas sinuosidades de deltas entrelaçados. Uma área de agricultura maravilhosamente fértil, de solo escuro e úmido estava disponível pouco antes da formação dos pântanos. Oferecia as mesmas vantagens das terras aguacentas em volta de Çatalhüyük, mas em escala muitíssimo maior, e atraiu povos de toda a região. Estes se estabeleceram em casas construídas inicialmente de junco e depois de adobe, que se aglutinaram em aldeias. O que deveria ser a primeira cidade, Eridu, surgiu há cerca de sete mil anos, não muito depois de Çatalhüyük ter sido abandonada. Em poucas centenas de anos havia uma quantidade muito maior de cidades na área. Eridu era um assentamento de casas de adobe, com várias camadas de templos construídos, e pode ser que tenha começado como um local comunitário no qual diferentes vilas iam cultuar os deuses. Eram, em geral, lugares muito maiores. Ali não haveria nenhum anarquismo de gentilezas. As aldeias precisaram se juntar para criar e manter o complicado sistema de canais e diques necessários para a agricultura. Os trabalhadores tiveram de se organizar para dar conta; a excelente agricultura produzia excedentes de grãos, o que permitiu a introdução de governantes e sacerdotes, que construíram templos e empregaram servidores para administrá-los. Por ser o mundo mesopotâmico uma planície lamacenta, aquosa e queimada de sol, não é de surpreender que suas edificações mais características sejam os zigurates, plataformas piramidais para o culto dos deuses. No mundo inteiro as pessoas associam os deuses à altura, e nessa terra sem montanhas a única forma de subir era construir. A própria Eridu foi erguida sobre um aterro, perto de uma lagoa de água doce, com o deserto de um lado, os pântanos de outro e as terras aráveis de outro. Era um ponto de encontro perfeito de diferentes geografias, e seus deuses eram encabeçados pelo masculino Apsu, que representava a água doce, e pela feminina Tiamat, que simbolizava a água salgada. No entanto, os deuses da água não prestaram muita atenção à adoração: Eridu provavelmente perdeu sua preponderância quatro mil anos atrás, quando, ao que parece, houve um grande dilúvio. A próxima grande cidade, Uruk, tinha surgido mais ou menos na mesma época e teve em seu período de glória uma população de cerca de oitenta mil, o que talvez fizesse dela o maior assentamento humano do mundo, com dez vezes a população de Çatalhüyük. O rei de Uruk, Gilgamesh, é o cerne da primeira obra de literatura com um herói identificado pelo nome — o primeiro nome da história. Gilgamesh pode ou não ter sido um rei de carne e osso, mas sua história, que incorpora um dilúvio de escala bíblica, é uma história muito humana de sexo traição, fracasso, viagens morte. Em Uruk e outras cidades da planície Sabemos de etudo issoamizade porque efoi registrado por eescrito. mesopotâmica, os símbolos riscados em tabuinhas de argila, que representavam quantidades de milho, cerveja e outros artigos negociados, assim como a quem pertenciam, desenvolveram-se a tal ponto que se
transformaram em escrita. Ao longo de séculos, um sistema de anotação e registro evoluiu para um sistema que permitia registrar histórias e ideias. A razão por trás disso é muito parecida com a que levo à criação da própria Uruk. Mudanças climáticas, nesse caso resultando num ambiente ainda mais quente e seco, obrigaram os agricultores a construir canais muito maiores e mais sofisticados para assegurar a produtividade da terra. Individualmente, as famílias ou aldeias eram pequenas demais e não dispunham de tempo livre suficiente para fazer o que era necessário. Apenas combinando-se em grandes números e submetendo-se a organizadores poderiam sobreviver. Parece que os administradores eram sacerdotes, o pelo menos tinham suas bases em templos, de onde supervisionavam vastos projetos de irrigação. Uma vez que o sistema de mão de obra e de habilidades especializadas foi montado, os administradores podiam dispor da força muscular para construir templos cada vez maiores. O retorno do êxito da irrigação para o poder pessoal daqueles que a dirigiam é óbvio: com o tempo, os administradores puderam afirmar que falavam por, com e para os deuses. Foram eles os responsáveis pela própria sobrevivência do assentamento. A classe governante srcinal, no alto de suas plataformas, de ouvidos voltados para os céus, acabava de chegar. Abaixo dela, calculando as entregas de grãos, cerveja, carne e metais exigidas dos trabalhadores, estavam os escribas, ou a gestão intermediária. Não se pode ter uma sociedade hierarquicamente organizada sem lidar com papéis — ou, nesse caso, com argila. O feedback é uma ideia essencial. Explica por que os índices de desenvolvimento disparam quando as pessoas se organizam e se acotovelam atrás dos muros de uma cidade. Pois os sumérios, e depois deles os outros povos da antiga Mesopotâmia, os acádios e os babilônios, passaram por um ritmo de mudanças completamente diferente demais tudoperto que dos a humanidade visto. Os sacerdotes exigiram seus lugarese especiais — intimidadores, deuses. Issotinha demandava números imensos de trabalhadores artesãos, assim como medições e planejamento — o que, por sua vez, significava anotações detalhadas, a rigor, a escrita. Então, grandes tributos na forma de alimento, cerveja e matéria-prima foram exigidos, para manter vivos os trabalhadores da construção. Obrigar as pessoas a pagarem o que podemos chamar de impostos não devia ser agradável; impunhase o uso da força. Ao mesmo tempo, toda a riqueza acumulada seria uma tentação para os ladrões e, em última análise, para as cidades rivais. Por isso muralhas foram erguidas e a alguns homens atribuiu-se a tarefa de protetores em tempo integral. Surgiu uma classe de guerreiros. É triste dizer, mas nada impulsionou mais o progresso técnico do que a guerra. A invenção do bronze, que substituiu o sílex ou o osso como tecnologia de ponta, deu aos sumérios uma breve vantagem. Vieram então os carros de guerra, de início lentos e com quatro rodas, depois com duas. (Pode ser que tenham se desenvolvido primeiro para satisfazer a próxima novidade, o tempo livre, que as classes superiores usavam para caçar.) Sacerdotes de religião. Projetos de construção em larga escala. Escrita. Impostos. Soldados. Reis. A capacidade de guerrear. Tudo isso chegou ao mesmo tempo para a história humana, tendo como base as primeiras cidades, que são na realidade as primeiras concentrações de riqueza, que, por sua vez, tinha como base as culturas agrícolas ribeirinhas, que precisavam trabalhar juntas para domar a natureza. Essa mudança é mais poderosa do que os antigos laços de clã, parentesco e linhagem e marca o momento importante no desenvolvimento humano que veio após a própria agricultura. A rivalidade entre cidades e povos começará a acelerar as mudanças, a não ser que, e até que, a guerra total traga a catástrofe — o que ocorre de tempos em tempos. A ascensão de burocratas treinados, seus implementos de escrita cuneiforme, comunicação entre diferentes povos, com bilíngues. diferentes Cria-se idiomas. sumério transforma-sepermite na línguaa franca da Mesopotâmia e os escribas se tornam um O ímpeto que vez por outra se perde, mas que nunca mais parou.
As primeiras cidades também alimentaram um florescer de pensamento abstrato. A classe governante de reis e sacerdotes dispunha de tempo para fazer conjeturas, por exemplo, sobre o misterioso mundo de luzes piscantes e movimentos lá no alto, coisas que também obcecaram os construtores de Stonehenge. Por isso não chega a surpreender o fato de que a Mesopotâmia nos tenha dado a matemática, tanto as simples somas para calcular negócios e impostos, como as mais complexas, usadas para seguir as estrelas. Olhando para cima, sumérios e babilônios se indagavam sobre essa mensagem noturna, com suas formas e seus padrões regulares. Se os deuses eram capazes de lhes enviar mensagens, seria aquilo uma forma de escrita divina? Havia um padrão, que pudesse ser imposto aos ritmos mais indefinidos da vida humana? Interpretar as estrelas implicava a medição de ângulos. Os sumérios mapearam os movimentos dos cinco planetas que conseguiam ver — Mercúrio, Vênus, Marte, Júpiter e Saturno — e atribuíram dia a cada um. Depois deram um dia para a Lua e outro para o Sol, chegando à semana de sete dias. Sete era tido como um número perfeito; e a semana sumeriana é, obviamente, a nossa semana, com os dias ainda designados à moda sumeriana, embora com palavras do latim ou do inglês arcaico. Em inglês, Saturno torna-se Saturday [sábado], o Sol ( sun) torna-se Sunday [domingo]. Luna, a Lua, torna-selundi em francês, ou Monday (Moon-day , “dia da Lua”) em inglês. Marte émardi (em francês), embora em inglês, graças a um deus norueguês, seja Tuesday [terça-feira]. Da mesma forma, Wednesday [quarta-feira] é o dia de Wodin, mas Wodin é um deus associado ao planeta Mercúrio. Júpiter éjeudi ; ou, em inglês, Thursday [quinta-feira], sendo que Thor é um deus nórdico associado a Júpiter. Vênus évendredi em francês ou Friday [sexta-feira] em inglês. Os sumérios também desenvolveram um sistema numérico baseado no número divisível poros onze particularmente útilhoras para dea contabilidade da Idadesessenta, do Bronze. Daí vêm nossosnúmeros minutose,deportanto, sessenta segundos, as nossas sessenta minutos, os nossos anos de 360 dias e os nossos círculos de 360 graus. Pela época dos babilônios, os escribas já precisavam ser rápidos e precisos: uma tabuleta de exame da cidade de Nippur traz a pergunta: “Você conhece multiplicação, números recíprocos, coeficientes, balanços, contabilidade administrativa, sabe fazer todos os tipos de alocação, dividir propriedades e delimitar áreas do campo?”18 Tudo isso já é notável, porém as primeiras cidades também provocaram um florescimento da arte e do design, com esculturas de alabastro e mosaicos deslumbrantes, e carimbos graciosos (e úteis) para pacotes e artigos de Uruk, além de tabuleiros de jogos com incrustações, instrumentos musicais e delicadas joias de Ur — mesmo antes de chegarmos aos incríveis relevos dos assírios e babilônios. Hoje, graças aos hábitos dos arqueólogos do século XIX, o que há de mais adorável entre essas coisas pode ser encontrado em Berlim e (em menor quantidade) Londres, e não no Iraque. Cada cidade mesopotâmica tinha seus deuses, sua cultura e sua reputação. Uruk era famosa não apenas pelo imenso zigurate e pelo deus-céu, mas por sua divindade Inanna, feminina e erótica, associada a todo tipo de fertilidade e cujos rituais chocaram um escritor babilônio: “Uruk [...] cidade de prostitutas, cortesãs e garotas de programa, [...] os rapazes festeiros e o povo dos festivais que transformaram a masculinidade em feminilidade.”19 (E olhem que um babilônio não se chocava com qualquer coisa!) Dessa maneira, essas primeiras cidades estão entre os locais mais importantes da história humana. Sucessivas inundações reduziram muitas delas a ruínas esfareladas e obliteraram outras. Em consequência do descaso, da guerra e da falta de interesse de culturas posteriores, somados à agressiva caça ao tesouro da arqueologia vitoriana, embora algumas das melhores esculturas e outros artefatos estejam hoje em museus da Europa, os sítios propriamente ditos em geral são empoeirados e desapontadores. É trágico, pois as realizações dos sumérios, dos acádios e dos primeiros babilônios foram enormes e, de certo modo, mais admiráveis do que as dos egípcios, mais conhecidos. Sua cultura
urbana era burocrática e sem dúvida opressiva, em certo sentido, onerando muito os agricultores, dos quais exigiam o pagamento pelos canais e poços que mantinham a grande fertilidade de seus campos. Ela permitiu o surgimento de reis com força suficiente para guerrearem uns contra os outros e para formar os primeiros impérios, juntamente com a miséria que os primeiros assassinos em massa, como Sargão da Acádia, trouxeram para a terra. Mas aquelas primeiras cidades eram também lugares de beleza, progresso intelectual, encantamento e — claramente — muita diversão nada inocente. Aprese nto-lhes Da Yu Seria de se imaginar que o primeiro herói chinês designado pelo nome fosse um governante guerreiro como Gilgamesh ou um sábio barbudo; nada disso. É um servidor público, um engenheiro que só posteriormente virou rei. Da Yu, ou “o Grande Yu”, figura que se situa do lado errado da linha que separa o mito da história, foi o homem que domou o rio Amarelo, esse elemento essencial, mas caprichoso, da cultura chinesa primitiva. O pai de Da Yu, diz a história, era um homem chamado Gun, a quem o governante local atribuíra a tarefa de lidar com as arrasadoras cheias do rio. Culturas bem anteriores, sobretudo na Ásia e na Europa, têm histórias de dilúvio, sugerindo que houve uma época de inundações tão sérias que ficou gravada por milênios na consciência dos povos. No caso da China, Gun tentou resolver o problema construindo diques, ao que se supõe usando taipa, a mesma técnica encontrada nas primeiras cidades chinesas. Mas novas enchentes vieram e simplesmente arrastaram os muros de terra água abaixo. O rei castigou Gun, cortando-o em pedaços. O filho de Gun, Da Yu, mais inquieto, assumiu o serviço no lugar do pai estraçalhado. Consta que Da Yu trabalhou ferozmente — mas não construiu diques. Primeiro, viajou rio acima e abaixo, conversando com as tribos locais e convencendo-as a unir esforços e aceitar a autoridade central se quisessem resolver o problema. As semelhanças com a ascensão das cidades mesopotâmicas são óbvias. Seu passo seguinte foi mandar abrir os canais para levar água a outros rios e construir sistemas de irrigação a fim de espalhar a água pela terra de cultivo. Em vez de bater de frente com seu inimigo, Da Yu desorientou-o ao dividi-lo. Durante treze anos trabalhou como que obcecado, reduzindo mãos e pés a grossas camadas de calos. Consta que durante todo esse tempo só passou por sua casa em três ocasiões. Na primeira vez ficou sabendo que a mulher estava em trabalho de parto, mas não parou nem entrou. Na segunda, o filho já tinha idade para chamá-lo pelo nome. Ele não parou, porque as cheias exigiam toda a sua atenção. Na terceira vez, o filho já tinha mais de dez anos. Da Yu ignorou-o e continuou a trabalhar. Hoje seria perseguido pelo Conselho Tutelar e denunciado por colunistas de jornal. As coisas eram diferentes naquele tempo. O rei ficou tão impressionado com sua diligência e dedicação que lhe entregou o trono. Da Yu reino por 45 anos e passou o trono para o filho, fundando a dinastia Xia. Posteriormente, muito disparate foi acrescentado à história, alegando, por exemplo, que Da Yu tinha cortado uma montanha com um machado mágico e que contratara os serviços de um dragão amarelo e uma tartaruga negra para ajudá-lo. Mas um elemento importante da narrativa é que, de acordo com os primeiros historiadores chineses, a primeira dinastia do país surgiu com as tentativas de controlar enchentes. É, para dizer o mínimo, um bom palpite. Mais ou menos há quatro mil anos, parece ter havido um colapso no ritmo dos assentamentos chineses, exatamente na época em que a mesma coisa acontece no Oriente Médio e no Egito. Voltando àquelas histórias de dilúvio, Noé, o historiador Ian Morris 20 pergunta: “Será que mudanças climáticas provocaram uma crise no Velho Mundo?” Os mesmos anais que descrevem Da Yu também falam de chuva contínua por nove anos, causando inundações catastróficas.
Mas não há Noé, não existe arca: a China começa com um heroico servidor público, um organizador a serviço do Estado. Há qualquer coisa nisso que não parece nem um pouco ocidental. A cultura chinesa parece distintamente chinesa quase desde o início. Se pusermos uma pessoa com um mínimo de instrução de qualquer parte do mundo diante de uma cerâmica do fim do neolítico, das primeiríssimas vasilhas de bronze ou dos primeiros símbolos usados na escrita, mesmo nunca tendo visto exemplos daquilo, essa pessoa muito provavelmente dirá: “São chineses.” As srcens dos chineses estão envoltas numa nuvem de incertezas arqueológicas e disputas políticas. Muitos deles insistem que se povo não veio da África como o resto da humanidade e que, em vez disso, se desenvolveu separadamente de uma migração anterior de macacos, a doHomo erectus, na China. Por isso os chineses são distintos, do ponto de vista biológico, dos estrangeiros — o que satisfaz a visão de mundo chinesa, ainda que o consenso científico fora da China afirme que eles estão errados. No geral, o desenvolvimento humano na China seguiu linhas semelhantes ao do desenvolvimento humano no Crescente Fértil, mas dois mil anos depois — embora fosse mais adiantado em algumas coisas, como a cerâmica. Os grandes avanços na domesticação de plantas e animais, o aparecimento de aldeias e os túmulos sugerindo o culto dos antepassados são relativamente parecidos. Mas, pela época em que o mito começa a imiscuir-se na história, os objetos chineses já apresentam uma aparência diferente. Os arqueólogos hoje tendem a dar ênfase à variação e complexidade da China antiga — muitas culturas, muitos tipos diferentes de cerâmica e de construção espalhados numa vasta área. Descobertas recentes invalidaram a velha ideia de que havia uma civilização chinesa central, no norte, que se espalhou para o restante do lugar e se manteve mais ou menos intacta. Mas o que difere muito da experiência europeia é o vigor emocional de uma continuidade com tempos anteriores na imaginação chinesa. Por exemplo, a cultura conhecida como Longshan durou mais ou menos milênios, entre cinco mil e quatro mil anos atrás, aproximadamente a mesma duração das diversas fases das culturas neolíticas da Grã-Bretanha. Mas, enquanto os europeus perderam todos os registros ou memórias do povo de Stonehenge, a história chinesa procura manter um vínculo com os primeiros reis e culturas. Houve cinco imperadores míticos, governantes divinos primordiais que deram à humanidade as principais invenções da civilização — a culinária, a agricultura, o fogo, a medicina, o casamento, a domesticação dos animais. O último desses governantes míticos teria introduzido a escrita, a cerâmica e o calendário — as 21 invenções que distinguem a cultura Longshan de assentamentos anteriores. (Na afirmação de que os humanos começaram como parasitas ou vermes no corpo do criador, Pan Gu, talvez também haja um elemento inicial de autocrítica humana.) Depois dos cinco imperadores vêm as dinastias consideradas o princípio da China histórica — a Xia, a Shang e a Zhou. Nos quase dois mil anos cobertos por elas, temos os nomes de reis, artefatos cada vez mais complicados e belos, provas da existência de cidades, templos e fortalezas, além de uma escrita que claramente precede o chinês moderno. Em suma, temos a China. No início de tudo isso, porém, ainda estamos na zona turva e nebulosa onde há mais mitos do que provas. Datado de 300 a.C., o Shang-Shu, ou “Livro de História”, é o primeiro texto escrito sobre a chamada primeira dinastia da China, a Xia. O mesmo relato fala de dez mil Estados que coexistem na mesma época, portanto é claro que os Xia dificilmente abarcam toda a China. A arqueologia sugere numerosos feudos rivais. Os Xia teriam sido fundados em 2205 a.C. por nosso notável domador de rios e enchentes, Da Yu. Toda a história chinesa dos primeiros tempos trata de dinastias, uma sucedendo a outra, como a série de reis e rainhas que os estudantes britânicos antigamente tinham de memorizar. Mesmo que tenha sido registrado em tradições orais um tanto vagas por escritores empenhados em proclamar a existência de uma só China, Da Yu participa do começo de tudo isso. Supõe-se que dividiu a
China central numa série bem nítida de zonas paralelas em formato de caixa. O centro das nove zhou, o províncias, era a província do rei, seguindo na direção de uma zona para estrangeiros e depois para o ermo mais além — porém tudo isso soa como a versão chinesa do Reino do Meio e, portanto, como propaganda suspeita. Cabe, assim, perguntar se os reis Xia existiram mesmo, para não falar no próprio Da Yu. Até recentemente predominava a opinião de que essa história era mito do começo ao fim — tendo-se passado, afinal de contas, um intervalo de dois mil anos para que fosse registrada por escrito. Mas a descoberta do que parece ser a capital da cultura Longshan, em Erlitou, levou muita gente a mudar de opinião. Os Xia talvez não tenham sido uma grande dinastia, mas é provável que tenham existido nas margens do rio Amarelo e que tenham emergido da própria cultura longshaniana. Erlitou, descoberta em 1959 na província de Henan, produziu exemplos de belos cálices de bronze, oujue, que têm a delicadeza longa e esbelta dos designs modernistas. A cidade girava em torno de um conjunto de palácios com muralhas de taipa, tipo de construção que exigia muita mão de obra, mas produzia estruturas rijas como rochas, que ainda hoje perduram em toda a China.22 A arqueologia chinesa é muito empolgante nos dias atuais, porque há muito a ser descoberto: recentes escavações de túmulos revelaram belos vasos, ornamentos de jade, armas de bronze, escrita dos primórdios mais remotos, provas do cultivo da seda e do culto dos ancestrais. Essa civilização, ao contrário de Çatalhüyük, era hierárquica, governada por reis, ou reis-sacerdotes, e capaz de mobilizar um grande número de trabalhadores. Sabemos que a agricultura chinesa dependia essencialmente das ricas planícies aluviais do rio Amarelo e de seus afluentes. Nesse aspecto, o aparecimento dos primeiros assentamentos humanos não foi diferente do que nos arredores do Tigre, do Eufrates, do Nilo e do Indo — que também produziram cidades, reis e religiões complexas. Rios dão solos ricos, mas também trazem perigo. Como vimos, enchem, e suas águas precisam ser controladas e espalhadas para garantir o êxito máximo da agricultura. Assim como as plantas e os animais selvagens, têm de ser domesticados. Contudo, o trabalho necessário para isso pressupõe liderança e organização, o que, por sua vez, implica hierarquia e governança. Aldeias agrícolas não precisam se juntar em grande número simplesmente para lavrar a terra ou pastorear animais; mas sim se quiserem desviar o curso dos rios, criar redes de canais de irrigação e sistemas de proteção contra cheias. O papel da engenharia civil na história humana costuma ser negligenciado. A história de Da Yu é, portanto, uma espécie de explicação para o desenvolvimento da autoridade política. Ele se torna rei dos Xia por merecimento ao organizar o povo para seu próprio bem. Afirmar que, de modo geral, reis e imperadores trazem a opressão não chega a ser uma proposição radical. Eles talvez tenham um começo modesto, com suas equipes de trabalhadores construindo diques, mas evoluem para a edificação de fortalezas muradas, de exércitos e de coletores de impostos. A mensagem implícita na história de Da Yu é que essa imposição da autoridade ainda é melhor do que a desordem — nesse caso, o caos deflagrado por rios que mudam de direção ou de enchentes que destroem o sustento de milhões. Em outras palavras, os governantes são a melhor alternativa. É uma mensagem que faria faraós e sacerdotes babilônicos balançarem a cabeça em assentimento. Entretanto, o fato de a história de Da Yu e os altos e baixos das dinastias que vieram depois dos Xia terem sido registrados por escrito e transformados em parte de uma narrativa nacional tem quase a mesma importância. A autoridade, imposta já no início devido à necessidade de mobilizar as massas para controlar a natureza, é passada de geração em geração. E, como no Ocidente, os governantes chineses reivindicam autoridade não apenas porque são bons para organizar ou capazes de intimidar os súditos, mas porque têm uma ligação especial com os deuses. Eles podem ter uma conversinha ao pé do ouvido e ajudar a pôr fim à fome ou fazer cessarem as chuvas. Dessa maneira, os grandes avanços na arte e na
tecnologia chinesas estão estreitamente relacionados a ritos religiosos. Vasilhas de bronze elaboradas cada vez com mais engenho ou esculpidas com mais arte, instrumentos musicais e ossos de animais, cozidos e partidos para revelar o futuro, vêm à tona em sítios arqueológicos chineses. Grandes vasos e cálices de bronze cujos lados são tão intricados e ondulados como recifes de corais podem parecer coisas estranhas para que culturas primitivas investissem tanta energia em fabricá-las. A rigor, elas são impiedosamente políticas: dizem respeito ao poder. Pesadelos do Nilo O Egito antigo, nossa terceira civilização ribeirinha, é uma cultura que costuma despertar admiração, mas não amor. Quase não tem pontos em comum com o mundo moderno. Esfinges e pirâmides se tornaram imagens globalizadas batidas. Frequentadores de museus fazem fila no mundo inteiro para contemplar relíquias de ouro ou pintadas. Turistas desembarcam de aviões cheios para ver os templos e as tumbas do vale dos Reis. Mas, para quem teve uma cultura tão duradoura e bem-sucedida, os egípcios deixaram relativamente poucas marcas em outros modos de pensar posteriores. A religião de Hórus e Osíris teve um breve renascimento no século XX entre amantes do ocultismo e vigaristas de circo. Mistérios faraônicos entusiasmaram por algum tempo os produtores de comédias policiais. No entanto, em comparação com a profunda influência do judaísmo e de suas manifestações posteriores, ou com o poder do pensamento grego e da política romana — ou mesmo, na Ásia, com a contínua influência dos primeiros pensadores chineses e indianos —, o que sobrou do Egito antigo é bem pouco. As truncadas relíquias de tijolo esfarelado dos povos mesopotâmicos são patéticas quando comparadas a obras remanescentes dos egípcios, mas eles produziram mais em termos de ciência, matemática e tecnologia para passar adiante do que os criadores desse grande culto da morte à beira do deserto. Os egiptólogos (para não falar nos egípcios) diriam que essa impressão é ignorante e injusta. Os egípcios antigos foram artistas e construtores formidáveis e desenvolveram uma religião complexa, mantida por milênios. Muitos sítios de sepultamento mais humildes do que os dos governantes dão provas de uma cultura pitoresca, que tinha mais respeito pelas mulheres do que seus rivais e cujo povo amava a vida, divertia-se com a natureza e gostava de cerveja, comida, sexo e fofoca. A obsessão pela vida após a morte só se desenvolveu entre eles porque amavam demais a vida presente e achavam que, com a devida preparação, seria possível continuar a desfrutá-la. Apesar disso, o que nos resta são aqueles deuses hostis com cabeça de pássaro ou de cão, os escaravelhos e as miradas vazias de super-reis cujos vastos monumentos ainda insistem em inspirar espanto e reverência, mas nada além disso. Por que é assim? A falta de portabilidade da cultura através do espaço e do tempo parece estar relacionada à relativa falta de movimentação física em sua própria época — era de uma autossuficiência notável. O Egito antigo durou mais de três mil anos, dos reinos prédinásticos ao desaparecimento final dos faraós gregos na época dos romanos. Já bem cedo, a arte do Nilo tem uma sinceridade consistente que a distingue; alguns dos simples modelos de argila que representam agricultores e animais assemelham-se à arte primitiva sedutoramente humana dos povos mesoamericanos. Mas em pouco tempo um estilo egípcio se torna fixo e endurecido e, muito embora um olho treinado seja capaz de distinguir entremuito dinastias e até mesmo praticamente não evoluia.C., durante doisestaria mil anos. Existe uma escultura bem-feita de um reinos, rei (Khasakhemwy), de 2675 que não fora de 23 lugar entre as de seus sucessores 1.500 anos depois. No grande templo de Luxor há um pequeno templo interior construído para celebrar o fato de Alexandre, o Grande, ter sido declarado faraó em 332 a.C. O
trabalho artístico numa das paredes está de frente para imagens do Novo Reino, de mais de mil anos antes, e as duas coisas são muito parecidas, embora tenha havido certo declínio de sutileza. Uma razão óbvia é que, para os egípcios antigos, não havia arte pela arte. A arte era uma expressão de religião e poder terreno. Sua função era descrever o mundo oculto de deuses poderosos, registrar as relações dos homens com eles e intimidar viajantes ou rebeldes com o poder dos reis. Isso requer uma arte de repetição, por vezes de gigantismo, não de humanismo ou realismo. O culpado é também o herói da história egípcia, o Nilo. Maior rio do mundo em extensão, já é inusitado por correr do sul para o norte. Como os ventos predominantes sopram do norte para o sul, pessoas que dispõem apenas de simples barcos à vela encontram nele uma excelente esteira rolante nos dois sentidos. Melhor ainda, o rio não só oferece ao povo uma grande quantidade de peixes e de aves para caça, mas (antes da barragem de Assuã de Nasser nos tempos modernos) transborda regularmente todos os anos, trazendo água doce e aluvião que produzem um solo excepcionalmente rico. As enchentes não eram de todo regulares. Se viessem tarde ou cedo, se fossem fortes ou fracas demais, perturbavam o plantio e provocavam fome. A história do Egito antigo é marcada por periódicos transtornos, revoltas e recuos, tudo aparentemente relacionado com as épocas em que o Nilo cheio se comportava mal. Contudo, em comparação com as civilizações do Tigre, do Eufrates, do Amarelo e do Indo, no atual Paquistão, os egípcios eram abençoados. Não só desfrutavam de uma faixa de 6.400 quilômetros de notável fecundidade, culminando numa grande planície inundada pelo delta, nas margens do Mediterrâneo; como também eram muito bem protegidos pelos desertos e montanhas a leste e a oeste e por um interior africano relativamente pouco povoado sul.As O planícies Egito foi mais invadido por líbios e persas e porou misteriosos “povosda doPalestina mar”, maseram issopresas era um tanto no raro. achatadas da Mesopotâmia a faixa terrestre muito mais fáceis para exércitos de bigas e cavaleiros. O Egito era um lugar difícil de atacar e quase impossível de manter por muito tempo; por causa disso, no mundo antigo, sempre se recuperava. O Nilo também teve um efeito político. Apesar de falarmos de “Egito”, a rigor existiam dois Egitos. O sistema de trânsito de mão dupla estreitava os laços entre os povos ao longo de uma imensa vastidão territorial, reunindo negros núbios africanos e moradores do Mediterrâneo num só Estado. Não há como compreendermos direito a visão que os antigos egípcios tinham de sua geografia se não levarmos em conta que a maior parte do tempo o Alto Egito, o sul mais africano, dominou o Baixo Egito, o norte mais mediterrâneo. É fácil para os egípcios de hoje notar a diferença, visível na forma e na cor dos corpos. O Egito começou tarde em comparação com os mesopotâmios, em parte porque as terras à sua volta continuaram riquíssimas em plantas e vida selvagem por tanto tempo que os povos não foram obrigados a se fixar. Mas, depois o deserto invadiu mais a terra, e os primeiros reis unificadores chegaram do sul, ostentando nomes maravilhosos, como Narmer, ou “Bagre Tristonho”.24 Como na história de Da Yu e dos Xia, só o poder real centralizado poderia transformar numa única nação um conjunto tão esparramado de assentamentos. Para usar a generosidade do rio com eficiência, as pessoas ali também necessitavam de uma complexa rede de canais e sistemas de irrigação, que tinha de ser cuidadosamente desobstruída, cavada e restaurada todos os anos. Como resultado, o hábito de trabalho comunitário e a disposição das pessoas para cavar e construir longe dos campos formaram-se já no início. Isso mais tarde seria muito útil para a construção dos templos dos faraós. Os egípcios acreditavam que o Nilo nascia no mundo subterrâneo. Passavam boa parte do tempo — com razão — preocupados com a enchente anual. Os deuses do Nilo surgiram cedo em seu sistema de crenças, e os reis, ao se associarem ao fluxo do rio, adquiriram imenso poder simbólico. A geografia não é tudo. Frequentemente
na história humana o poder de um indivíduo ou de uma ideia reverte o que se poderia esperar da posição de rios ou do desenho de um litoral. Mas, se o determinismo geográfico funciona em algum lugar, é nessa terra feita pelo Nilo, protegida pelo Nilo, servindo aos governantes do Nilo — e, enfim, limitada pelo Nilo. Entre os monumentos do Egito antigo, há poucos tão comoventes como Deir el-Medina, logo depois do canto montanhoso do vale dos Reis e em frente a Luxor, do outro lado do rio. Os arredores são tomados por vastos monumentos. Há o assombroso Templo de Karnak, em Tebas; o intimidador templo de Ramsés III em Medinet Habu, que celebra as vitórias militares desse faraó com um extravagante senso de grandeza de deixar qualquer ditador do século XX embasbacado e morto de inveja. Há também os “Colossos de Mêmnon” — um par de monstros sem rosto que homenageiam o rei Amenhotep III — e os remanescentes teatrais do templo funerário da rainha Hatshepsut. Todos contêm tudo aquilo que hoje se espera dos egípcios antigos; todos são lugares que intimidam e impressionam à maneira nazista o stalinista. Deir el-Medina é bem diferente: um cinzento labirinto de paredes de pedra e adobe agora com poucos metros de altura, muito parecido com um imenso aprisco ou uma aldeia abandonada da Escócia gaélica, de alguma maneira perdida nos escaldantes morros do deserto. Acima, em terreno mais alto e cortados na face de um penhasco avermelhado, há numerosos buracos, alguns com minúsculas pirâmides de tijolo nas proximidades. Comparado a outros sítios da vizinhança, Deir el-Medina recebe poucos visitantes. Era ali, no entanto, que os artesãos que trabalhavam para os sacerdotes e os faraós viviam com suas famílias. Não eram escravos.25 Trabalhavam muito, geralmente no subsolo, lutando para terminar um túmulo antes que o patrão morresse. Recebiam como pagamento trigo, roupas e cerveja temperada com mel de abelha. Folgavam nos fins de semana (a semana egípcia tinha dez dias, então as folgas eram menos frequentes). Trabalhavam em dois turnos de quatro horas e podiam recorrer a camponeses mais pobres e a escravos para facilitar a vida. Organizados sob dois capatazes, que moravam na aldeia, eles comemoravam a morte de um faraó, que lhes garantia trabalho pelos próximos anos. Aproveitavam bem os dias de festa, quando havia bebedeira e orgias ocasionais, e transmitiam suas habilidades de geração para geração. A arte egípcia de mumificar cadáveres também era domínio desses operários artesãos. Mais admirável ainda era encontrarem tempo para construir seus próprios templos funerais que os conduziriam para a outra vida. O trabalho diário consistia em erguer grandes estruturas e cavar fundo na rocha a fim de preparar um último lugar de descanso para os graúdos e poderosos da Nova Dinastia. Porém, em paralelo, construíam suas próprias versões, às quais não faltavam pequenas pirâmides e belas câmaras pintadas cinco ou dez metros abaixo da superfície. Suas fachadas, ainda hoje de cores admiravelmente vivas, celebram o amor do homem e da mulher; as famílias dos trabalhadores; o mundo natural circundante com seus milharais ondulantes, patos e macacos; e alimentos em abundância. Ali eram sepultadas as pessoas comuns e, longe dos grandiosos e chamativos monumentos, que já atraíam ladrões de sepulturas mesmo nos tempos antigos, muitos permaneceram intocados até o início das escavações dos tempos modernos. Isso, por si só, já seria interessante. Mas aquelas pessoas também registraram seus pensamentos em pequenos pedaços de pedra calcária, geralmente sobras das escavações, em fragmentos de cerâmica e em papiros. Escritos na escrita popular simplificada e descartados três mil anos atrás, muitos chegaram até nós. Os cacos registram histórias populares, queixas jurídicas, poemas de amor, livros de sonhos, fofocas, pendências, máximas de sabedoria, a deserdação dos filhos de uma mulher que ficou com raiva porque não cuidaram bem dela na velhice, listas de lavanderia, problemas com jumentos defeituosos e até uma cura para hemorroida (farinha de trigo, gordura de ganso, sal, mel e vagens: misture até formar uma pasta e aplique no traseiro por quatro dias).
Parece que um sujeito particularmente mau, um capataz chamado Paneb, tinha o hábito de fazer ameaças cruéis a outros trabalhadores, roubar peças de sepulturas reais, coagir mulheres a fazerem roupa para ele e manter relações sexuais ilícitas com a mulher de outro homem, uma senhora chamada Tuy, além de outras mulheres casadas. Um dia, enfim, foi julgado pelo vizir do faraó e afastado do emprego, embora não saibamos o que lhe aconteceu. Pode ter sido o desfecho de uma briga de aldeia, mas mostra que havia um sistema de justiça confiável e eficaz. A história dessa aldeia não é apenas um caso animador e inusitado de trabalhadores comuns — pessoas qualificadas e valiosas, mas ainda assim trabalhadores manuais — e de suas famílias, cujas vozes emergem de uma história distante. Também mostra que eles partilhavam as convicções religiosas dos governantes e, tão cedo quanto possível, queriam compartilhar também o mundo subterrâneo. A rigor, quando se examina a vida dessas pessoas — que eram orgulhosas de suas habilidades de pedreiros, pintores, carpinteiros, alfaiates e cozinheiros, comiam razoavelmente bem, misturando peixe e carne a uma dieta básica de hortaliças, pães e cerveja, tinham uma rica vida espiritual que dava sentido ao se mundo e confiavam num sistema legal justo —, cai por terra a ideia de um mundo antigo de trabalhadores oprimidos e humilhados que exerciam um trabalho duro em regime de semiescravidão. Não seria a vida desses aldeões melhor, em muitos sentidos, do que a de milhões de pessoas desempregadas ou mal pagas nos arranha-céus de hoje? De volta ao Touro Os minoicos foram a primeira civilização europeia (de 3600 a 1160 a.C.), embora por pouco, uma vez que a ilha de Creta fica no extremo sul da recortada península grega. Era um povo de comerciantes e marujos, cujas peças de cerâmica aparecem no Egito e cuja arte foi influenciada pelos egípcios. Tinha forma de escrita própria, embora nunca tenha sido decifrada. Ao que tudo indica, era relativamente pouco inclinado à guerra. Sua arte e arquitetura nos atraem de imediato, dando a impressão inicial de uma sociedade graciosa, tranquila, dominada pelas mulheres, com um palácio em cujas paredes ondulam golfinhos bailarinos. Em meio a grossas colunas e um excelente sistema de esgoto, há imagens de saltos sobre touros aqui, outras de colheitas de açafrão ali. Mas os minoicos são particularmente úteis como uma advertência não a partir da história, mas sobre a história e sobre nossa tendência a romantizá-la. O grande palácio de Cnossosjáéenamorados um dos pontos populares do Mediterrâneo oriental, e assim é há minoico séculos. Visitantes, dessaturísticos idílica ilhamais quente, impregnada pelo aroma de alecrim, aprendem que o palácio foi destruído em consequência de um terrível terremoto em Santorini. As palavras “civilização perdida da Atlântida” são murmuradas. É assim que muitos europeus gostam de pensar em si mesmos como teriam sido de início — pacíficos, artísticos, livres e romanticamente fadados à ruína — uma história metade Éden, metade Titanic . Mas é quase tudo conversa fiada. Cnossos é um prédio antigo, pelo menos para nossos padrões. Data do período entre 1905 e 1930 — d.C. — e foi descrito por um arqueólogo como um dos primeiros edifícios de concreto armado construídos em Creta, contendo ecos inquietantes do mausoléu de Lênin na Praça Vermelha e da arquitetura modernista de Le Corbusier. Cathy Gere acha que ele está bem de acordo com o crescimento urbano descontrolado que agora avança sobre o sítio: “Hoje toda a Grécia está generosamente coberta de ruínas modernistas improvisadas, esqueléticas, de poucos andares, escadas que não conduzem a parte alguma.”26
A duvidosa reconstrução de um palácio da Idade do Bronze, repleto de imagens falsificadas, é uma façanha a qual o arqueólogo britânico sir Arthur Evans dedicou a vida inteira. Cnossos tinha sido descoberto por um antiquário grego que começou a escavá-lo nos anos 1870. Mas, dotado de excelente conhecimento dos clássicos e de riqueza proveniente da fábrica de papel da família, Evans comprou o sítio quando Creta se tornou independente do Império Otomano. Assim como o arqueólogo alemão Heinrich Schliemann, seu amigo, que em 1871 tinha descoberto Troia (e destruído uma parte, acidentalmente), Evans se via como alguém cuja missão era restabelecer a ligação entre os mundos moderno e antigo e limpar a confusa sujeira industrial da Europa moderna, revivendo a memória de épocas mais simples e nobres. Como diz Gere, Evans estava motivado por uma fome espiritual e desejava nada menos do que “o reencantamento pagão” do mundo moderno. No afã de alcançar esse objetivo Evans primeiro escorou com madeira e gesso as ruínas escavadas e, depois, aos poucos, pôs-se a “aperfeiçoá-las” com o flexível e útil concreto armado, que acabara de ser inventado. Decidir até que ponto sua reimaginação do conjunto de edifícios de Cnossos é um palpite exato e razoável ou apenas uma fantasia modernista é uma questão que divide até mesmo especialistas. Evans estava em busca de um paraíso pacífico, sexualmente descontraído, e em Creta evitava qualquer indício de fortificação militar. Mais tarde, ele contratou artistas modernos para “retocar” pinturas antigas de modo tão abrangente que eles acabaram produzindo novas. A dupla franco-suíça de pai e filho, ambos chamados Émile Gilliéron, fez reconstruções que ultrapassam qualquer coisa que os indícios existentes pudessem justificar e, apesar disso, hoje são reproduzidas no mundo todo. Provavelmente, chegaram ao ponto de produzir falsificações de alto a baixo. incluem guerreiros africanosque negros usados pelos minoicos, alemão. de acordo comAsa reconstruções fantasia de Evans, paraimagens invadir de a Grécia continental, ele associava ao militarismo Observadores astutos perceberam uma coisa estranha. O romancista inglês Evelyn Waugh, em visita ao museu de Heraklion, onde as pinturas estavam expostas, escreveu sobre sua suspeita de que “os pintores abrandaram o zelo pela reconstrução exata com uma predileção um tanto imprópria pelas capas da Vogue”.27 Até o nome “minoico” veio da crença de Evans de que tinha descoberto o sítio srcinal do famoso labirinto do rei Minos, onde, de acordo com o mito clássico, o herói Teseu matou o Minotauro, que era metade touro e metade homem. O mito situava Minos em Creta e dizia que o Minotauro devorava crianças atenienses; há qualquer coisa de sádico nessa história. Como os minoicos chamavam a si mesmos não sabemos dizer. Assim sendo, e a partir desse entulho, o que podemos saber com segurança sobre o povo que chamamos minoico? Sua civilização durou 1.300 anos e sobreviveu não apenas a um desastre natural, mas a uma série deles, incluindo um terremoto extremamente destrutivo, duas erupções vulcânicas e um tsunami que arrasou comunidades costeiras com seu importantíssimo transporte marítimo. A arqueologia recente, influenciada pelo imenso poder destruidor do tsunami de 2004 na Ásia, sugere uma devastação parecida em Creta. Os “palácios” minoicos, espalhados pela ilha e interligados por estradas de pedra, devem ser centros urbanos, religiosos e comerciais. Neles se negociava com estanho, cerâmica muito bem-feita e pintada (sem falsificações), mais um vasto conjunto de alimentos, óleos e outros produtos básicos. A agricultura era sofisticada e parece que a religião era dominada por sacerdotisas e por uma forma qualquer de culto do touro. Um esporte ou ritual que envolvia saltos sobre touros, segurando-os pelos cornos — provavelmente muito mais perigoso do que a tourada moderna — é visto em imagens genuínas. Ainda que sua arte não fosse tão sexy e exuberante como a dos reconstrutores, era sinuosa e atraente ao primeiro olhar. Mas essa cultura tem um lado mais sombrio. Hoje se acredita que eles iam à guerra e protegiam suas cidadelas com muralhas defensivas. Em Anemospilia, um templo perto de Cnossos, tão severo e sem
enfeites quanto o outro é reconstruído e imaginado, três esqueletos foram encontrados por uma equipe chefiada por gregos em 1979. Aparentemente, morreram dos efeitos imediatos da última erupção vulcânica. Supõe-se que um esqueleto seja de uma sacerdotisa de 28 anos, e outro de um sacerdote; o terceiro é de um rapaz de dezoito anos, encurvado em posição fetal e atravessado por uma faca muito enfeitada. O arranjo de ossos escuros e brancos sugere que ele ainda sangrava quando o desastre final sobreveio e a conclusão óbvia é que se trata de sacrifício humano destinado a apaziguar o vulcão. Longe de ser uma sociedade de paz e amor, bailando de um lado para outro em roupas vaporosas e admirando os golfinhos, parece que os minoicos eram tão sanguinários quanto qualquer outro povo. Assim como os primeiros homens de Cro-Magnon foram capazes de combinar arte e canibalismo, a primeira civilização da Europa combinava beleza e sacrifício humano. Os caçadores-coletores tinham lutado contra os desafios naturais de um clima errático e difícil, e seus descendentes minoicos ainda lutavam contra ameaças naturais sérias o bastante para devastar seu modo de vida. Entre os dois, o homem começou a aprender a moldar a natureza, mas, fora alguns vales fluviais especialmente favorecidos, essa vitória ainda era precária e incerta. O fim da história minoica é muito confuso. A maioria dos especialistas hoje acredita que os minoicos não foram varridos por um único cataclismo, como dizem os guias turísticos, e sim que, de tão enfraquecidos por erupções e terremotos, se tornaram presa relativamente fácil para os invasores gregos micenianos do continente. Com certeza, elites que falavam grego substituíram as últimas elites minoicas não muito tempo antes que sua civilização desaparecesse misteriosamente. Como veremos adiante, o fim de um vivaz e sofisticado mundo mediterrâneo da Idade do Bronze é um dos enigmas mais irresistíveis da história. A essa altura, os filhos de Eva já tinham lançado os alicerces do mundo moderno. A maior parte do trabalho preliminar fora realizada num período de cinquenta mil anos por povos cujos nomes jamais saberemos e cujas línguas continuam a ser, na grande maioria, um mistério. Derrubaram florestas, inventaram a agricultura, ergueram as primeiras vilas e cidades e progrediram o suficiente em conhecimento para usar a matemática e a escrita, preservando nomes e histórias. Começaram, também, a desenvolver um sistema de classes e elites guerreiras. Eles inventaram a guerra.
PARTE DOIS EM FAVOR DA GUERRA
A primeira grande era de impérios, dos assírios a Alexandre, e como o conflito civil produziu avanços radicais na religião, na escrita e na filosofia
Guerra e mais guerra: uma crônica deprimente de vaidosos reis carniceiros, cidades carbonizadas e moscas zumbindo ao redor de pedaços de carne? É verdade que os mundos mediterrâneo, indiano e asiático primitivos assistiram a uma série quase interminável de guerras, uma grande agitação de impérios e exércitos que, era de esperar, conduzisse a civilização de volta a uma idade das trevas. E, de fato, mais ou menos três mil anos atráshouve uma idade das trevas, um misterioso colapso nas áreas que foram o berço da civilização. Em toda parte, arqueólogos divulgam informações sobre despovoamentos, palácios abandonados e uma perda generalizada de habilidades adquiridas, incluindo a escrita. Mas do desastre emergiram novos impérios, agora com armas de ferro, prestes a registrar por escrito sua própria história e relatar suas próprias guerras. E, por mais terrível que seja a guerra, a embaraçosa verdade é que ela é um grande propulsor de mudanças na história humana. Quando metemos a mão na bolsa ou no bolso à procura de moedas, quando discutimos sobre perigosos extremistas em nossas democracias ou sobre a miscigenação de culturas, quando escrevemos nossos pensamentos usando o alfabeto ou lemos manchetes sobre ameaças à família tradicional, estamos usando ferramentas e pensamentos que nos foram dados por essa era aparentemente remota de impérios, pensadores e reis guerreiros. Assim sendo, da Grécia à Índia e à China, aqui vão argumentos em favor da guerra. A glória grega e os primeiros impérios assassina, funesta... atirou ao Hades tantas almas valorosas, almas de grandes guerreiros, mas fez de seus corpos pasto de cães e de aves Homero, Ilíada Uma lenda que ainda lemos nos dias de hoje permeia a história escrita. Começa no meio de uma guerra, com a cólera do guerreiro Aquiles, e se estende por duas semanas de altercações, areia, calor e morte sangrenta diante das muralhas de uma cidade. A ação transcorre perto do fim de um cerco militar de uma década de duração, um impasse sem sentido. É aIlíada, de Homero. Com este e seu outro grande poema de viagens e pesar, a Odisseia , Homero começou a construir a Grécia. Para os gregos clássicos, esses livros eram uma combinação da Bíblia com Shakespeare, uma fonte de identidade cultural, um vasto estoque de expressões e tesouros para oradores. Os gregos instruídos do século V a.C. orgulhavam-se de saber de cor esses poemas longuíssimos. Desde então, contos de Homero e os mitos do rapto de Helena e do Cavalo de Troia se incrustaram na imaginação do mundo, com uma influência que vai de generais romanos a poetas da Inglaterra de Shakespeare e cineastas da atualidade. Eis aí um ponto em que uma verdadeira cultura mundial começa, além de serem as primeiras obras que se conhecem da literatura ocidental. AIlíada não é só uma história de guerra, mas uma história de guerra inusitadamente convincente sobre um exército cujos líderes são
desprezíveis e às vezes rebeldes, na qual as doenças espreitam o campo, os ferimentos são assustadores e o inimigo deve ser admirado, não apenas odiado. E os mocinhos morrem. Esse poema se compraz na violência, mas foi escrito por alguém que considerava o apetite humano pela guerra tolo e grosseiro, um homem em profundo conflito com o conflito e, por isso mesmo, um poeta imortal da condição humana. Foi naqueles séculos que as civilizações nucleares da humanidade passaram das armas de bronze para as de ferro, dos contos orais para as histórias escritas. A função da guerra como sinistro condutor de mudanças é inevitável. Avanços em metalurgia, rodas, equitação, navegação à vela, matemática, arquitetura e religião são sempre impulsionados pelo confronto — seja na China, na Índia ou no Mediterrâneo. Trata-se, obviamente, de uma história ambígua. A Grécia é um bom lugar para começar a contá-la, tanto pelo que vai acontecer quanto pelo que tinha acontecido pouco antes da Idade do Ferro, quando temos o vislumbre irresistível de um futuro melhor que seria extinto. Em todo o mundo grego miceniano dos heróis de Homero, logo cairia uma sombra escura, espalhando povos e destruindo palácios e cidades, até que a própria capacidade de escrever se perderia. Os gregos que vieram em seguida, usando Homero para recordar a própria identidade, responsabilizaram a guerra por suas aflições. Não sabemos bem o que aconteceu. Por volta de 1000 a.C. um grande desastre, ou uma série de desastres, atingiu o Mediterrâneo oriental, causando um gigantesco despovoamento. Se os gregos que vieram depois, no começo dos tempos clássicos, supunham que isso tinha a ver com o conflito troiano, então talvez a guerra fosse uma parte da história. Historiadores acham que invasões de tribos dórias do norte, que devastaram pequenos estados gregos enfraquecidos por brigas locais, podem ter sido a causa. Uma que esse colapso foi provocado desastres naturais — mudançasUma climáticas ou uma série alternativa de terríveisé terremotos, deflagrando guerraspor locais pela mera sobrevivência. causa única parece improvável. Sabemos que antes desse grande e misterioso desastre, o mundo mediterrâneo da Idade do Bronze era próspero. Escavações e inscrições aos poucos preenchem os espaços vazios do nosso conhecimento. Poucas descobertas foram tão extraordinárias como a de um navio mercante, que navegava pela costa turca um século antes da guerra de Troia. Foi descoberto por um mergulhador e depois resgatado por arqueólogos entre 1984 e 1994. Destroços do barco, conhecido como o naufrágio de Uluburun, foram datados (com base na análise da lenha que levava a bordo) de 1310 a.C. Construído de cedro e carvalho do Líbano, provavelmente ia de Chipre para a Palestina, talvez para Rodes ou o império hitita, quando de súbito foi a pique perto do litoral. Ossos da refeição que os marinheiros preparavam na hora do naufrágio foram recuperados.1 Mais incrível, porém, era o que o navio transportava. Havia um imenso carregamento de lingotes de cobre provenientes das minas de Chipre, moldados cuidadosamente para serem transportados com facilidade em animais de carga, além de lingotes de estanho, para a fabricação do bronze usado em armaduras, armas e ferramentas. Havia sacos de vidro azul-cobalto, azul-turquesa e lavanda, muitos instrumentos musicais, jarros de contas, azeitonas e corantes de Canaã, madeiras escuras e resistentes da África, delicadas joias de ouro do Egito, presas de elefante e dentes de hipopótamo, cascas de ovo de avestruz e cascos de tartaruga, espadas da Itália, da Palestina e da Grécia, assim como outras armas que se supõe terem vindo da Bulgária e dos Alpes. Entre as ferramentas encontravam-se machados, brocas de perfuração, pinças e serrotes. Também havia alimentos, como pinhões, figos, coentro, amêndoas e romãs, além de âmbar do Báltico, o selo da rainha egípcia Nefertiti, e até dois livros para anotações feitos de buxo, marfim e cera de abelha, com um estilo para escrever — um tipo de caderno descrito por Homero. E isso foi encontrado num único navio, bem pequeno e miraculosamente preservado por 3.300 anos. O porão era como um nó com fios que alcançavam a Itália, os Bálcãs, a África Subsaariana, o Báltico, o
mundo assírio, Micenas e o Egito. É a prova viva da relativa riqueza, sofisticação e cultura cosmopolita que desapareceram. A descoberta casual de um único barco invalidou muitas velhas ideias sobre a Idade do Bronze e nos leva a pensar nas civilizações que poderiam ter surgido se, em vez de séculos de confronto militar, tivesse havido séculos de rivalidade comercial. Não era para ser assim. Na Idade do Bronze, a guerra, e não o comércio, foi o gatilho que deflagro repetidas mudanças. As guerras vagamente lembradas pelos ouvintes de Homero enfim cederiam a vez para uma época de conflito que deu às civilizações humanas da atualidade os alfabetos do Ocidente, a sofisticada escrita do Oriente, os grandes filósofos da Grécia clássica e da China confuciana, estilos arquitetônicos que ainda usamos e ideias religiosas que inspiram bilhões no mundo moderno. A democracia foi uma ideia imposta a falanges de combatentes, todos no mesmo nível, uns protegendo os outros contra homens mais ricos a cavalo. O monoteísmo emergiu da brutal invasão e escravização de um pequeno povo tribal espremido entre impérios. Ideias chinesas sobre ordem e dever só apareceram depois das experiências hediondas com confrontos intermináveis entre estados. Por outro lado, as culturas menos diretamente afetadas por pressões de guerra ou invasão, como a do Egito, foram as que menos mudaram e que deram menos retorno à história humana comum. Portanto, surge a pergunta: será que um Mediterrâneo pacífico, que permutasse matérias-primas e artigos de luxo, mas que vivesse basicamente do pastoreio de cabras e da pesca, teria produzido um Sófocles ou um Péricles? Poucas experiências humanas coletivas são piores do que a da guerra, com sua sucessão de estupros, fome, mutilação e destruição material. Porém, a guerra traz mudanças, às vezes até para melhor. Toda a poesia de Homero está entremeada de incerteza sobre a guerra. Seus heróis gregos e troianos são sobre-humanos — jovens, magníficos transbordantes de vida. para a nas idade dos heróis do passado, muitos de seus ouvintesanimais, acreditavam que os gregos que Olhando desembarcaram praias arenosas de Trôade eram, de fato, gigantes. Ossos de animais pré-históricos eram vistos como relíquias de super-heróis mortos, cujas façanhas interrompiam o infindável chá da tarde dos deuses do Olimpo. Contudo, Homero apresenta esses homens como demasiado humanos, pois se aborrecem, resmungam, se vangloriam e travam discussões mesquinhas sobre status. E, no fim, quando morrem, não vão para um glorioso Valhala meridional nem são confortados por virgens, mas desaparecem num mundo subterrâneo sinistro e espectral e numa semiexistência incorpórea.2 Para compreender essa brilhante combinação de movimento e amarga sabedoria, precisamos recordar quem era a plateia de Homero e o que tinha acontecido com os gregos de sua própria época, que viveram entre as façanhas heroicas da Idade do Bronze de Micenas e os primórdios da Grécia clássica das cidades-Estado. A respeito do próprio Homero não sabemos quase nada. Consta que era cego. Alguns especialistas acham que ele nem sequer existiu, que “Homero” é uma elegante abreviatura usada para designar um grupo anônimo ou uma tradição de contadores de histórias, embora outros refutem essa teoria, chamando a atenção para a inteligência formal e a coerência dos poemas. Homero, fosse quem fosse, ou fossem (prefiro o singular, por uma questão de simplicidade), usou um dialeto particular do grego chamado iônico, da região que hoje é a costa ocidental da Turquia, onde também fica Troia. A partir de pistas embutidas nos poemas, os historiadores acreditam que ele viveu por volta de 750 a.C., mais ou menos quinhentos anos depois da guerra que supostamente descreve. Apesar disso, há partes da Ilíada que parecem bem mais antigas, sobretudo o famoso “Catálogo de Navios”, uma relação das cidades-Estado e dos povos que compõem a força grega que descreve um mundo político da Idade do Bronze, e não da época de Homero. Ele pode ter escrito os poemas, em vez de tê-los composto na cabeça para serem declamados, pois cerca de cinquenta anos antes os gregos tinham começado a usar um alfabeto adaptado para registrar por escrito suas próprias palavras.
Troia era real. A série de antigos assentamentos e fortalezas descobertos pelo já mencionado aventureiro alemão Heinrich Schliemann, entre 1871 e 1873, é compatível com a geografia e o cenário do cerco que Homero descreve. Infelizmente, como arqueólogo inexperiente, Schliemann cavou tão fundo e tão rápido que talvez tenha destruído a maior parte da cidade troiana, que formava uma das camadas de escavação (e ainda se discute qual delas). Entretanto, muralhas de grandes blocos de calcário protegeram “Troia VI”, mais ou menos em 1350 a.C., e ela tinha torres de sete metros de altura, uma grande cidadela interior e um poço profundo. A incrível coleção de objetos de ouro do sítio, incluindo o que Schliemann acreditava ser a coroa de Helena de Troia, data de período bem anterior. Mas sem dúvida era um lugar importante e poderoso, perfeitamente situado para fazer comércio e extorquir tributos dos navios que passavam. Troia, ou Ilium, era uma cidade do mundo hitita, sob proteção do grande império que governava toda a Anatólia. Os hititas, alguns dos primeiros a usarem o ferro, imperialistas dotados de bigas, só recentemente reapareceram na história em sua plenitude depois de importantes descobertas arqueológicas. Troia para eles era um Estado vassalo na extremidade ocidental de seu mundo. Sabiam escrever: tabuletas hititas, basicamente com registros diplomáticos e de outro tipo, desenterradas em sua capital, Hattusa, deixam claro que Troia era parte de uma rica e complexa malha de postos militares e comerciais — os hititas a chamavam de Wilusa. Sabemos também alguma coisa sobre os gregos que sitiaram Troia, já que eles deixaram cidades e também porque sabiam escrever: usavam uma escrita primitiva chamada Linear B. São muitas vezes chamados de micenianos, oriundos de Micenas, a admirável cidadela de portões decorados com leões e capital rei Agamenon, segundo que nos conta Foi uma primeirasa bases gregas fortificadas, emborado estudos recentes sugiram Tebas Homero. talvez tenha tido das no mínimo mesma importância. Os gregos? Eles haviam ocupado os vales e as ilhas que recebiam seus nomes cerca de quinhentos anos antes do conflito troiano. Eram guerreiros que se baseavam num sistema de clãs e construíram fortes defensivos no alto dos morros por todo o continente. Logo se tornaram marujos e saqueadores eficazes e teriam ajudado a destruir os minoicos. Os gregos micenianos escravizavam povos derrotados e muito provavelmente faziam parte dos misteriosos “povos do mar” que tanto aterrorizaram os egípcios antigos. Desenvolveram colônias e praticaram o comércio — suas peças de cerâmica aparecem em todo o Mediterrâneo oriental. Registros hititas os tratam como um só povo e se queixam de seu mau comportamento, incluindo o transporte de sete mil pessoas da Anatólia para Micenas. 3 Registros gregos também se referem a listas de despojos e escravos: “Vinte e uma mulheres de Cnidus com suas doze meninas e seus dez meninos, cativos. Mulheres de Mileto. To-ro-ja — Mulheres de Troia.”4 Teria uma grande aliança de gregos da era miceniana travado uma guerra com os troianos? É provável. Troia ficava perto e era rica. Historiadores de hoje sugerem que teria sido uma guerra sobre tributos comerciais cobrados, e não sobre o rapto de uma bela rainha espartana chamada Helena. Contudo, mulheres desfrutavam de alta condição social e com frequência eram levadas como cativas em lutas na Idade do Bronze. Além disso, havia um culto de Helena em Esparta, ainda nos tempos clássicos, por isso parte da história pode ter uma base factual, mesmo que remota. Lamentavelmente, apenas duas gerações depois da guerra descrita por Homero, uma grande cortina negra se abateu sobre o mundo mediterrâneo. Os palácios foram abandonados. As magníficas habilidades dos gregos micenianos em ourivesaria desapareceram. A palavra escrita sumiu. O primeiro público de Homero era constituído de migrantes empobrecidos, refugiados espalhados por várias partes que recordavam os bons tempos de antigamente e repetiam a pergunta: “O que deu errado?” A Ilíada era parte de um ciclo mais longo de pelo menos seis poemas épicos, hoje desaparecidos, e conta
as srcens da guerra e como ela terminou — com a tomada e destruição de Troia.5 O poema homérico de 15.700 versos não dava para ser recitado ou ouvido de uma vez só; talvez se destinasse a festivais que duravam dias ou talvez fosse recitado como as séries de televisão de hoje, em episódios. Mas, como quer que fosse recitado e escutado, ele demonstra a grande ironia da guerra, que dá e toma. Sem uma guerra troiana, não haveria Homero. Sem Homero, não haveria uma cultura grega clássica familiar (ou pelo menos não tão familiar), pois, quando reapareceu na história, recitando as histórias de Aquiles e Heitor, de Páris e Helena, esse povo estava formando a civilização mais admirável dos tempos antigos. Com relação ao conhecimento — seja humilde E estava formando com uma nova invenção, uma coisa simples, inteligente e que influenciou todo o mundo ocidental. Não é invenção de um só indivíduo, pelo que se sabe, e apareceu misteriosamente no meio de um povo que quase não legou nada no mundo além disso. “Com relação ao conhecimento: aqui e agora seja humilde (você mesmo!) neste porão!” Assim diz a ordem breve, irritada, na metade do túnel que conduzia ao túmulo de um rei. Seu sarcófago foi descoberto em 1925, na cidade portuária libanesa de Biblos. O rei Airam aparece sentado num trono, recebendo uma flor de lótus oferecida por uma sacerdotisa — um dia como outro qualquer na vida de qualquer rei. Em volta dele, esfinges. Há também uma inscrição mais longa, que parece sugerir um sepultamento de pai e filho e adverte obscuros contra oTalvez roubosedetratasse sepulturas: “Deve-se registro relativo ao tuboem de termos libação bastante do sacrifício memorial.” de uma ameaçacancelar terrível seu na época em que foi inscrita. Outra tradução sugere mais diretamente que o filho sepultou o pai e é um alerta destinado a qualquer um que venha a exumá-lo: “Que o cetro de seu governo seja tirado, que o trono do seu reino seja derrubado.” O que torna o sarcófago de Airam extraordinário, porém, não é a arte nem o palavreado, mas a forma como as palavras são escritas, pois esse é o primeiro exemplo conhecido do alfabeto fenício, escrito em Biblos há cerca de três mil anos. Dessa escrita de 22 letras severas, simples e memoráveis, todas consoantes, vêm o alfabeto dos gregos antigos, o aramaico e o dos etruscos da Itália, portanto o do latim e de todas as línguas europeias. Muitos especialistas acreditam que os alfabetos índico e brami também vêm do aramaico, o que significa que a invenção dos fenícios cobriu quase todas as partes do mundo, exceto a China e o Extremo Oriente. Não é totalmente por acaso que “Biblos” gerou a palavra “Bíblia”: a cidade era um centro de comércio de papiros para escrever, e a palavra grega para papiro tornou-se a palavra para livro e, portanto, para Bíblia. Quem eram os fenícios? Esse também é um nome grego usado para designar o povo mercante e costeiro srcinário de Canaã. Vivendo na região que hoje corresponde ao Líbano, Síria e Israel, eles tinham sido expulsos da costa, ao que tudo indica pela máquina de guerra implacavelmente desagradável dos assírios, os maiores criadores de intriga da época. Os cananeus da costa eram exímios construtores de navios e excelentes marinheiros, o que transformou seus portos de Tiro e Biblos e, mais tarde, a grande colônia de Cartago nos eixos do comércio mediterrâneo. A antiga palavra egípcia para navio capaz de navegar em alto-mar era “barco de Biblos”, e havia histórias de que em 600 a.C. os fenícios tinham contornado a África — lenda mais surgir digna do de lado crédito pelodeestranho fato de que eles alegavam a certa altura, ter visto o sol tornada do meio-dia direito seus navios. Sabemos alguma coisa dos seus deuses e de sua aparência — usavam gorros cônicos, túnicas simples de algodão, adoravam joias de ouro, e os homens tinham barbas penteadas e oleadas. As mulheres, segundo
esculturas e inscrições, parecem ter desfrutado de mais poder e liberdade do que era comum no mundo antigo. O mais famoso de todos os fenícios, embora talvez mítico, foi uma mulher, Dido de Tiro, também conhecida como Elissa, que fundou Cartago em 813 a.C., depois de enganar os norte-africanos. Eles tinham dito que ela poderia ficar com toda a terra que coubesse num pedaço de couro, então ela o corto em tiras tão finas que conseguiu demarcar uma área considerável para construir um assentamento. Dido também se apaixonou por Eneias, que saíra do desastre de Troia e seguia para a Itália, e, quando ele insistiu em deixá-la, ela se matou numa pira funerária. Isso é o que diziam os romanos, pelo menos. A história do couro pode muito bem ser uma referência à opinião corrente sobre os fenícios na Idade da Pedra, de gente astuta e sempre disposta a passar os outros para trás, estigma a que estão condenados os comerciantes de qualquer época. Posteriormente, os fenícios seriam usados pelos persas e até mesmo pelos macedônios para fornecer navios nos quais seus exércitos pudessem combater. Esses úteis mediadores precisavam, portanto, de um jeito fácil de manter registros sobre vendas e trocas. Seu alfabeto empregava versões muito simplificadas de hieróglifos, imagens representando coisas, e os transformou em sons, um sinal para cada som. Os nomes das letras (comogimel , dalet , sin ) vieram das imagens srcinais (nesses casos, camelo, porta, dente). Ainda hoje parecem vagamente familiares; o alfabeto fenício começa assim:aleph , beth , gimel , daleth . As letras nos parecem mais estranhas, embora um pouco mais assemelhadas ao grego ou ao hebraico. Uma vez estabelecida a correspondência entre as marcas e os sons linguais e labiais, puderam ser arranjados de modo a imitar a fala de verdade. Isso pode parecer óbvio, mas foi um imenso avanço de lógica. Quemsaber conhecesse os sonsdedas letras de poderia descobrir os sons das palavraspodiam e ler mensagens sem precisar o significado milhares pequenos desenhos. As mensagens ser gravadas com rapidez, pois o alfabeto era simples, e escritas em tabuletas de cera, como a que foi descoberta no navio mercante — elas seguramente se destinavam a mensagens comerciais e à manutenção de registros feitos por negociantes ocupados, que não tinham tempo a perder. E, é claro, os sons serviam para idiomas diferentes, assim como as mesmas letras servem para o alemão e o português. Com isso, o invento fenício espalhou-se pelo mundo mediterrâneo e foi logo adaptado. Acreditamos que os gregos o tenham adotado por volta de 800 a.C., pouco antes de Homero entrar em atividade, e logo o aperfeiçoaram, acrescentando os sons das vogais. Os samaritanos tinham sua versão, derivada de um alfabeto misturado e ainda mais velho; a escrita hebraica veio da mesma fonte. Assim sendo, não só Homero, mas também a Bíblia paga tributo a esse povo pouco conhecido. Aqui temos, talvez, o maior exemplo na história mundial de uma invenção que no início tinha objetivos prosaicos, como as anotações de negociantes num mercado multilíngue, e foi muito além de suas intenções srcinais, alterando a vida humana. A transformação de um sistema militar de comunicações dos Estados Unidos na World Wide Web é um fenômeno análogo — porém é uma realização menor do que a escrita alfabética. Lamentavelmente, os próprios fenícios nos deixaram poucos escritos de interesse — alguns versos religiosos muito monótonos, listas e decretos furiosos de reis que morreram há muito tempo. A ideia hebraica Os hebreus teriam ocupado um lugar marginal na história do mundo, apenas mais um povo do Oriente Médio de srcens um tanto obscuras, se não tivessem tido uma grande ideia: o monoteísmo. Acabaram acreditando num único deus universal que tem uma relação pessoal com todos que nele acreditam. Isso se
transformou em textos e foi transmitido por escrito, e assim excedeu suas srcens, detonando no mundo inteiro como uma série de explosões mentais, a ponto de parecer normal. O monoteísmo mudou o mundo muito mais do que qualquer imperador, tecnologia ou descoberta científica. A crença num deus universal que não vive em determinado templo, à beira de um riacho gorgolejante ou no topo de uma montanha enevoada e que dá ouvidos ao venerador parece suprir uma profunda necessidade humana, ainda que a ideia tenha parecido muito estranha quando os hebreus a desenvolveram. O rabino-chefe da Grã-Bretanha, Jonathan Sacks, afirma que a mudança caminhou das religiões enraizadas no mundo para uma fonte de significado fora de qualquer mundo que possa ser visto ou tocado: “Os deuses do politeísmo, com seu ambiente confuso de zumbidos e vociferações, situavam-se dentroum do sentido universo. súditos da natureza. a criaram.” O deus judaico, outro “de lado,pessoas dava à vida queEram vinha de fora e tambémNão permitia uma nova política da por Aliança, 6 comprometidas umas com as outras e com o bem comum, uma política do ‘nós, o povo’”. Essa nova maneira de compreensão uniria as pessoas com uma nova intensidade. Infelizmente, também as dividiria com renovada ferocidade. Os historiadores discordam com veemência sobre como os hebreus descobriram o monoteísmo. Não sabemos sequer de onde vieram com exatidão. Segundo as histórias que eles próprios contam, o homem designado o primeiro profeta, Abraão, que pode ter realmente existido, nasceu em Ur, uma decadente cidade imperial ribeirinha de terraços de tijolo e deuses mesopotâmicos. A religião dos mesopotâmicos tem ecos antecipados do judaísmo. É possível que os judeus tenham passado quatrocentos anos em cativeiro no Egito antes de conseguirem a liberdade sob um líder de nome egípcio, Moisés, e marcharem a pé para a Terra Prometida, onde expulsaram as tribos locais e se estabeleceram. Mas não há registros egípcios de nada disso, nem qualquer comprovação arqueológica, e a história do Antigo Testamento parece ter sido escrita sete séculos depois. Sabemos que um povo chamado “Israel” viveu nos morros e vales da atual Israel por volta de 1200 a.C., graças a uma inscrição pretensiosa em que o faraó Merneptah relaciona os povos da área que 7 acabavam de ser esmagados. Entre eles: “Israel está destruído: sua semente não!” (semente deve se referir a lavouras, e não à linhagem masculina). Arqueólogos julgam a cultura desse povo muito parecida com a dos moradores da costa ali perto, na terra geralmente chamada de Canaã. Eles usavam os mesmos tipos de utensílios, de casas e de escrita. Mais importante, parecem ter tido deuses semelhantes. O grupo de hebreus do norte não chamava seu deus de Yahweh, mas de El, que era o nome do principal deus dos cananeus. Uma dúzia dessas tribos hebraicas vivia na área. Algumas talvez tenham chegado recentemente, porém há grandes chances de que fossem oriundas da Arábia e vivessem no deserto, avançando rumo a uma terra um pouco mais fértil. A palavra “hebreu” significa “alguém do outro lado” do rio Eufrates, por isso “imigrante” ou talvez apenas “andarilho”, e desde o início eles se distinguiram dos seus vizinhos. Para começar, o deus hebraico não estava sozinho no universo. El (como em Isra-el) era um deus pai, o Zeus, de uma família divina. A mulher era Asherah, os filhos eram o deus da tempestade, Baal, que também trazia fertilidade, e sua irmã, Anat. Baal em particular continuou a ser adorado por muito tempo, enquanto as tribos de Israel lentamente se diferenciavam de seus vizinhos. Yahweh substituiu El. A ideia de “deus” como um ser à moda grega, que anda pela terra, fala e intervém pessoalmente na vida humana — as divindades briguentas que, em Homero, acompanham os negócios humanos como espectadores de futebol —, deu lugar a uma presença mais transcendente, obscura e alarmante. Isso levou séculos e é mapeado por especialistas nas partes mais antigas dos escritos judaicos no que os cristãos agora chamam de Antigo Testamento.
A faixa de terra litorânea onde hoje estão Israel, Palestina e Líbano foi alvo de disputas tão acirradas nos tempos antigos quanto é atualmente. Teve a falta de sorte de situar-se entre os dois grandes povos ribeirinhos, os egípcios e os mesopotâmios, incluindo os assírios do rio Tigre. Vimos com os fenícios como o comércio é capaz de estimular invenções. O tema mais amplo desta seção, como já foi notado, é que a guerra também estimula, e disso os israelitas são um exemplo excelente. O conflito os coagiu a darem o passo seguinte para o monoteísmo completo. Mais ou menos há três mil anos, estabeleceu-se um reino com uma casa real que incluía figuras famosas como Saul, Davi e Salomão. Esse reino, que repeliu outro avançado povo litorâneo, os filisteus, é lembrado como o ponto alto da Israel independente dos tempos antigos. Ali, uma elite de professorespregadores, os profetas, desenvolveu uma nova maneira de pensar a respeito de religião e ética. Isaías, Jeremias e outros falavam de justiça e da igualdade dos homens sob as leis imutáveis de um deus universal, leis essas que eram mais importantes do que as de reis ou impérios. Por volta dos anos 700 a.C., porém, o reino foi dividido em dois, um Estado setentrional chamado Israel, cuja capital era Samaria, e um meridional, Judá, baseado em Jerusalém. Nessa época, um subproduto predileto da guerra era a deportação das elites derrotadas. Em vez de serem simplesmente massacrados, reis, professores, artesãos e suas famílias eram levados para trabalhar na cidade dos vitoriosos. Isso deixava o território derrotado acéfalo e, em certo sentido, descivilizado. Em 722 a.C. foi o que aconteceu com o reino do norte. Na prática, dez das doze tribos de Israel foram derrotadas, e 25 mil pessoas, deportadas. O império assírio, com sua imensa capital Nínive, produziu uma série de reis guerreiros imensamente bem-sucedidos, que tomaram como feudo a maior parte do Oriente Médio através de uma mescla de intimidação táticas terror. Seu longe o mais profissional e bem equipado da época, e eoscruas castigos que de reservavam paraexército qualquereraumdeque a eles se opusesse incluíam decapitação, esfolamento, empalamento e deportação. Conhecemos os detalhes de sua conduta brutal porque eles se vangloriavam dela em tabuletas de argila e a comemoravam com esculturas entalhadas em blocos de pedra. Essas esculturas conseguiam ser ao mesmo tempo belas e terríveis, uma propaganda de guerra para intimidar os visitantes de Nínive. Vinte anos depois da queda de Israel, Judá se rebelou contra os assírios e enfrentou outro exército excepcionalmente grande. A cidade de Laquis foi destruída, e Jerusalém foi salva apenas por volumosos subornos pagos aos conquistadores e, talvez, por uma epidemia que vitimou os sitiadores. Então o sumo sacerdote Helcias anunciou que tinha descoberto, num canto do Templo, um pergaminho com as leis dadas por Yahweh a Moisés. Sob o rei Josias, inaugurou-se um novo período de desenvolvimento religioso, baseado em documentos escritos, com os sacerdotes incumbidos de contarem toda a história dos judeus. O tom era mais agressivo, mais estridente.8 Ídolos dos velhos deuses cananeus Baal e Astarte foram destruídos. Prostitutos foram expulsos do Templo. Mas Judá ainda era uma sociedade pequena e frágil presa nas garras de impérios rivais, e Josias foi derrotado pelos egípcios não muito antes que o próximo império chegasse. Esses conquistadores eram os formidáveis babilônios, chefiados pelo rei Nabucodonosor. Seu ataque teve duas fases. Na primeira, o rei judeu e dez mil pessoas do povo foram levados para o cativeiro. Mas não foi o fim de Judá. Houve uma revolta, encabeçada em parte pelo profeta Jeremias. O exército babilônio voltou em 586 a.C. para um terrível cerco de Jerusalém. Após meses de fome e talvez até de canibalismo, os habitantes foram vencidos e a cidade quase totalmente destruída. Mais de vinte mil pessoas foram levadas, dessa vez não para Nínive, mas para a Babilônia. O Templo, onde Yahweh tinha residido, foi quase obliterado.9 O famoso “exílio babilônio”, durante o qual os cativos se prostraram unto às águas e choraram com saudades de Sião, tinha começado. Para o povo de Jerusalém, conduzido para leste de sua cidade pequena e poeirenta, a Babilônia deve
ter sido um espetáculo estupendo. Era um dos grandes centros do mundo, um pouco de cada povo do Oriente Médio que se reunia debaixo de imensos portões, em zigurates, templos e jardins suspensos. Era um espetáculo cintilante de telhas vitrificadas de azul e amarelo, estátuas de touros, leões e dragões e grandes estradas processionais. Ali, exilados sensatos se adaptavam e se conformavam. Os judeus, porém, não quiseram. Seus escribas e sacerdotes consultaram pergaminhos e decidiram que Yahweh afinal não tinha sido destruído com o Templo. Em vez disso, seguira seu povo como uma sombra gigantesca e estava com ele no exílio. Mas só estava com ele enquanto se observassem leis de castidade, que srcinariamente se destinavam apenas aos sacerdotes. Os judeus precisavam se manter isolados dos pagãos. Praticar a circuncisão, evitar carne de porco, orar com regularidade e refinar os textos sagrados, tudo isso ajudou a dar aos exilados judeus um forte sentimento de identidade coletiva. Eles estavam dentre diversas outras culturas, contudo, não se misturavam. Os judeus foram influenciados pela Babilônia, é claro. As histórias bíblicas incluem o Dilúvio, que tem reflexos de um famoso mito mesopotâmico, e o projeto de construção multilíngue da Torre de Babel certamente são ecos de histórias ouvidas ali. Enquanto isso, o horror do que tinha acontecido a Jerusalém lançava uma sombra sobre a religião, trazendo uma noção de ira divina e juízo final. Tudo isso é essencial para a história da religião no mundo. Sob influência da guerra e do exílio, os hebreus desenvolveram uma noção de Deus baseada em textos escritos, que tratava todos os crentes como iguais — enquanto os separava do resto da humanidade descrente — e que era móvel. A religião envolvia um texto, uma ideia de igualdade e união na fé, e aspirava à universalidade. Houve outros cultos eisso. religiões como o zoroastrismo persa, mas nada nem Para de longe se parecesse com Depoismonoteístas o judaísmo,antes, o cristianismo e o islamismo adotariam esseque padrão. os judeus depois do exílio, Yahweh, o santo dos santos, tinha seu Templo, com uma sala vazia para onde voltava e onde era novamente adorado. Entretanto, ele não estava, como outros deuses, preso a um lugar ou a uma terra em particular. Não precisava de um lugar sagrado para se comunicar. O monoteísmo moderno tinha chegado. O cativeiro babilônio não durara tanto. Depois de apenas 45 anos (em comparação com os quatrocentos do mítico exílio egípcio), o rei Ciro, da Pérsia, tendo derrotado a Babilônia, mandou os hebreus de volta para casa. E eles levaram consigo algo de novo. Ciro, cross-dre sse r Um homem, um único homem, foi responsável pelo retorno dos judeus para Judá e, consequentemente, pelo desenvolvimento de sua religião e das religiões cristã e islâmica que brotaram dela. É o único gentio que recebeu o título honorífico de “Messias”. Nas poeirentas ruínas de sua outrora magnífica capital, Pasárgada, hoje no Irã, há uma coluna onde está entalhada o que se acredita ser sua imagem. Um homem barbudo com uma coroa bizarra e quatro asas está de pé, trajando longas vestes. A inscrição que há em cima diz apenas: “Eu, Ciro, o Rei, um aquemênida.” Mas ele é claramente um cross-dresser cultural. Seu traje é igual ao que usavam os elamitas, povo que habitava as montanhas do sudoeste do Irã. A coroa era egípcia, porém com toques assírios e fenícios; as asas, persas.10 Que mensagem ele tenta passar? Uma mensagem bem mais prolixa de Ciro pode nos ajudar. Está no “cilindro de Ciro”, uma peça de argila em forma de bombo achada na Babilônia, que hoje se encontra no Museu Britânico, em Londres. Foi feito depois que Ciro capturou a Babilônia (pacificamente, insiste ele) e libertou os judeus do exílio. Como o relevo alado, trata-se de propaganda. Era como Ciro II gostaria de ser visto. Começa com a convencional retórica do tipo “olhem para mim”
de quem está por cima: “Eu sou Ciro, Rei do globo, grande rei, poderoso rei. Rei da Babilônia, rei da terra de Suméria e Acádia, [...] rei dos quatro cantos da Terra.” Até agora, bem dentro do padrão. Contudo, a outra coisa que Ciro quer que saibamos é que esse campeão do deus dos judeus também apoia o deus Marduque dos babilônios — “e tento adorá-lo diariamente”. Além de libertar escravos e reconstruir casas, ele tinha restaurado santuários, e não apenas para Marduque, mas para muitos outros deuses menos importantes em todo o seu império “além do rio Tigre, cujos santuários há muito estavam em ruínas [...]; os deuses cuja morada é no meio deles, devolvi a seus lugares e os abriguei em moradas duradouras”. Os gregos, que eram fascinados por Ciro e seus descendentes, acreditavam que os persas eram apenas mais abertos à influência estrangeira do que outros povos. Há sugestões de que, por serem srcinariamente bárbaros nômades, eles fizeram sua civilização avançar tomando e absorvendo a arquitetura, as roupas, as tecnologias de guerra e os deuses de povos já bem estabelecidos. Mas a história oferece muitos exemplos de invasores bárbaros que simplesmente incendeiam, oprimem e seguem adiante. Os gregos queriam entender um dos mistérios da história da Idade do Ferro — como foi possível que um povo tribal obscuro de repente irrompesse na Ásia, construísse e mantivesse o maior império conhecido até então. Entretanto, ao contrário dos judeus, os gregos compreenderam mal Ciro. Ciente de que seus persas eram uma pequena minoria assumindo o controle de muitas civilizações antigas e outrora poderosas, Ciro tinha descoberto uma nova maneira de governar. Sob seu poder, desde que não se rebelassem, todos tinham liberdade de culto e costumes. Foi o primeiro império multicultural. Mas isso não o tornou menos belicoso ou implacável na repressão aos inimigos. Ciro II vivia quase constantemente em guerra alguém e,paradeiza embora tenha construído uma capital famosa ser adorável, com jardins imensos e bemcontra cuidados — os (de onde vem a palavra paraíso) —,por muitos relatos afirmam que morreu como tinha vivido: lutando. O relato mais pitoresco diz que lutava contra uma feroz tribo chefiada por uma mulher chamada Tomiris, no atual Cazaquistão. Ele tinha vencido uma batalha usando o estratagema de embriagá-los com um álcool ao qual não estavam acostumados, mas Tomiris se vingou, comandando suas tropas num segundo ataque numa das batalhas mais ferozes dos tempos antigos, após a qual Ciro foi decapitado. O corpo foi levado de volta para Pasárgada, onde ainda hoje fica sua sepultura de pedra calcária, de uma severidade impressionante. Essa narrativa vem do “pai da história”, também conhecido como “pai das mentiras” por rivais invejosos: Heródoto. Ele provavelmente esteve na Babilônia, em busca de informações para a obra de sua vida, a história da luta entre os gregos e os persas. Escritor emocionante e grande contador de histórias, Heródoto esforçou-se ao máximo para conseguir informações em primeira mão e com certeza viajou muito pelo mundo antigo, mas também tinha o entusiasmo do jornalista por uma boa história. Jamais tentava ser estritamente factual. Vivia num mundo assombrado por deuses, supersticioso e crédulo — ainda mais do que o nosso —, numa época de oráculos e divindades vingativas. Pode até não nos contar o que de fato aconteceu, e ele é conhecido por sua indiferença às causas, mas Heródoto nos conta o que o povo na rua e nas aldeias achava que tinha acontecido e por quê. Heródoto diz que Ciro era neto do rei dos Medas, Astiages, o que deve ser verdade. Também diz que vovô Astiages teve um sonho no qual sua filha “urinou em quantidades tão enormes que encheu a cidade e inundou toda a Ásia”.11 Esse comportamento um tanto indecoroso foi interpretado como um aviso de que haveria problemas pela frente, e Astiages casou a filha com um homem quieto e maçante chamado Cambises. Ela engravidou. O velho Astiages teve outro sonho, dessa vez com uma imensa videira que crescia na vagina da filha e se espalhava pela Ásia. Na ausência do doutor Freud, os magos interpretaram isso como sinal de que o neto de Astiages usurparia o trono. Dessa maneira, ordens foram dadas para que o bebê fosse levado para longe e morto.
O empregado não teve coragem de fazer isso e passou a tarefa para um pastor pobre e sua mulher, que criaram o filho como se fosse deles. Quando tinha dez anos, Ciro participava de uma brincadeira chamada “reis” na rua de uma aldeia com outros meninos e comportou-se de modo tão nobre que o truque foi descoberto. Como recompensa por não ter eliminado o bebê, o empregado teve o próprio filho cozido e servido a ele como refeição. A conselho dos magos, Astiages poupou Ciro, que então chefiou uma revolta de soldados persas contra o rei, e Astiages, apesar de ter empalado os magos por interpretarem tudo errado (tudo certo, é preciso dizer), foi devidamente derrubado. Ciro tratou o avô assassino com grande consideração, permitindo que permanecesse na corte até morrer. Embora seja claramente uma mistura de fofocas picantes e narrativa mítica tradicional, o relato de Heródoto chama a atenção para uma verdade a respeito do Ciro histórico, ou pelo menos do Ciro como era visto nos mercados e atalhos onde o historiador ouviu e tomou notas. Ciro era uma estranha mescla de crueldade e tolerância, que vinha de uma velha linhagem de governantes-guerreiros e para quem tanto a linhagem como a autoridade eram problemáticas. Como combatente, combinava tropas de diferentes povos, introduzindo inovações táticas provenientes de toda a Ásia para alcançar vitórias espetaculares. Uma das mais famosas foi contra o rei Creso da Lídia, onde hoje é a Turquia ocidental. Os lídios eram velhos conhecidos dos gregos. Heródoto diz que eles inventaram as moedas de ouro e prata. Isso é certamente confiável. Na Lídia, o rio que contém substancial quantidade de minério de ouro ainda passa pelos restos arqueológicos de uma casa da moeda muito antiga, onde o metal era refinado, e as moedas, cunhadas. Moedas de estilo lídio, cujo grande mérito era que seu peso, pureza e valor eram aceitos muito além do território do pequeno Estado,naconstituíam sistema que Ciro importou para o se império. A moeda tornou-se corrente Ásia graçasum à guerra de monetário Ciro. Heródoto diz que Sólon, que compôs o primeiro sistema jurídico unificado para a Atenas clássica, visitou a Lídia e advertiu Creso de que ele não seria considerado feliz enquanto não estivesse morto, pois nunca se sabe o que pode acontecer. Quando Creso esperava para ser executado numa pira de madeira, falou ao rei persa sobre as palavras de Sólon. Ciro pensou em seu próprio caso e, demonstrando piedade, manteve Creso como prisioneiro e conselheiro. Quando perguntou ao lídio derrotado se ele tinha mesmo desejado a guerra, Creso respondeu com a frase mais famosa que Heródoto escreveu: “Ninguém é estúpido o bastante para escolher a guerra à paz. Na paz, os filhos enterram os pais, mas, na guerra, os pais é que enterram os filhos.” O interesse de Heródoto pela cultura persa, compartilhado por outros escritores gregos, era prático e urgente. Teriam Ciro e os grandes reis que vieram depois resolvido o problema de governar bem? Eles criaram um império interligado por estradas rápidas, retas, e governado por administradores locais o sátrapas. A tolerância para com costumes religiosos locais lhes permitia governar sem uma força muito opressiva, e pareciam extraordinariamente abertos às ideias de outros povos. Seus exércitos eram imensos e formados por muitas nacionalidades; suas principais cidades eram admiráveis. Heródoto observa que as pessoas beijam umas às outras quando se encontram nas ruas, em vez de falar, e admira muito o costume que leva até mesmo o rei a evitar condenar alguém à morte por um único crime. Eles têm horror a mentiras e dívidas. Nunca poluem os rios “com urina ou escarro” nem lavam as mãos na água que usam para beber. E têm uma maneira interessante de tomar decisões: Quando precisam tomar uma[...] decisão importante, discutem questão quando estão bêbados, dia seguinte o dono da casa submete a decisão para sera examinada quando estão sóbrios.e no Se ainda assim a aprovam, é adotada; caso contrário, é abandonada. Por outro lado, qualquer decisão que tomam quando sóbrios é reconsiderada depois, quando estão bêbados.
Esse sistema também resistiu ao tempo: é amplamente praticado na democracia britânica em Westminster. Os persas eram sem dúvida um povo admirável, para ser imitado, assim como temido. O milagre grego Na última vez que vimos o mundo grego, ele estava espalhado e emigrante, colonos em meio às ruínas de sua primeira civilização, ouvindo contos homéricos dos tempos heroicos. Entre 800 e 550 a.C., a história grega era de um ressurgimento gradual, baseado nas comunidades distintas que eles chamavam de poleis (singular: polis, que traduzimos como cidade-Estado). Elas variavam muito de tamanho. Atenas era um raro exemplo de sobrevivência da Idade do Bronze, que tinha perdido a hegemonia sobre a área circundante, mas a recuperou para se tornar a maior das cidades-Estado. Na maioria dos casos, a polis tinha um ponto alto facilmente defensável, a acrópole, com uma cidade em volta e aldeias e terras aráveis no entorno. Outros gregos rurais permaneceram em seu ethnos , ou clãs. As primeiras cidades eram difíceis de defender; mais tarde, muralhas de pedra e portões reforçados foram erguidas para protegê-las. Mas não contra os persas, e sim contra outros gregos. Nove entre dez gregos antigos eram agricultores, lavrando um solo relativamente pobre e lutando contra os primeiros efeitos do desmatamento. Eles utilizavam lenha e carvão como combustível e madeira para vigas de casa e para navios, porém, desde o início, tendo cortado as florestas um tanto esparsas nas montanhas de se arquipélago, viram-se obrigados a importar do mar Negro e da Ásia. Comiam pouca carne, criando cabras e ovelhas sobretudo para fazer roupas e ter leite, e dependiam muito de cevada, trigo, azeitonas, uvas e figos: os apreciadores de cerveja, como os egípcios, eram considerados muito estranhos. A dieta mediterrânea foi estabelecida muito cedo. A geografia da Grécia foi crucial para o desenvolvimento dessa civilização. Agudas cordilheiras descendo até o mar criaram cidades-Estado separadas, que cresceram independentes umas das outras, o que possibilitou que experimentassem diferentes maneiras de realizar suas atividades. Aqueles primeiros estados não eram igualitários, como as primeiras cidades anatolianas. A maioria evoluíra a partir de grupos semitribais chefiados por aristocratas-guerreiros, donos da maior parte da terra e das riquezas. Continuou assim mesmo quando os gregos se tornaram mais urbanos e republicanos em sua forma de governo; ainda na Idade de Ouro de Atenas, o Estado era violentamente dividido por conflitos de classe, com muito ressentimento do resto da população contra os nobres ricos. No entanto — para simplificar uma história muito complicada —, os aristocratas foram perdendo terreno político consistentemente à medida que a vida urbana ganhava importância. Perderam primeiro para os “tiranos”, palavra asiática cujo significado real era “usurpadores”, que assumiram sozinhos o controle de um Estado. Depois começaram a perder terreno para decisões de grupo tomadas por cidadãos comuns, que costumavam se reunir como famílias ou tribos. Por volta dos séculos VII, VI a.C., os gregos tinham um complicado panteão religioso abrangendo a “família” de deuses olímpicos, provavelmente trazidos pelos primeiros invasores arianos e cultos locais. Eles compartilhavam uma língua, embora tivessem dificuldade para entender alguns dos dialetos rivais. Também estavam divididos pela cultura, sendo que os gregos que viviam na costa asiática eram mais ricos e talvez mais mansos do que os gregos ocidentais do Peloponeso. O mais importante avanço dos primeiros tempos foi trazido por seu método de luta. No século VII a.C., os gregos tinham dominado a arte de lutar a pé em falanges de soldados rigorosamente organizadas, cada qual carregando um grande escudo para proteger o homem à sua esquerda e atacando com lanças, que eram trocadas por espadas em combates corpo a corpo. Daí decorreram duas coisas. A primeira é
que isso requeria disciplina geral e confiança recíproca, virtudes desenvolvidas na polis. A segunda é que qualquer um que pudesse dispor de equipamento básico — um elmo de bronze, cnêmides, escudo e lança — passava a ser um combatente útil. Isso incluía de pequenos agricultores a artesãos e comerciantes. O tradicional domínio de pequenos grupos de aristocrática cavalaria, disposta a defender seu pedaço, foi superado por homens comuns que lutavam juntos. As implicações políticas dispensam explicação: diz um historiador que, sem esse avanço, “ninguém ousaria destruir a principal força de combate de sua comunidade, a nobreza”.12 Por que isso aconteceu? A topografia da Grécia, com seus vales estreitos e desfiladeiros de montanha, não era particularmente adequada para combates de cavalaria e, de forma alguma, para as frotas de carros de combate muito usadas na Ásia. Seria difícil até mesmo começar a investir pela Ática sem virar o veículo ou perder as rodas. Não era uma paisagem feita para imperadores — não mais do que a Suíça ou o Afeganistão. Mais tarde, uma ampliação parecida de poder do povo surgiria no mar, quando os estados gregos desenvolveram marinhas de galés de guerra que precisavam de remadores disciplinados e experientes trabalhando em uníssono. Dessa vez os recrutas vinham de camadas pobres demais para se equiparem como guerreiros hoplitas em terra. Com isso, um sentimento comum brotado nos alojamentos compartilhados e na geografia familiar foi fortalecido pelo ato de lutarem juntos — e, em pouco tempo, por um inimigo comum. A solidariedade começou na guerra. Além das ideias religiosas e dos idiomas, para não mencionar as histórias homéricas, os gregos tinham um entusiasmo comum por esportes, para os quais se preparavam nus em ginásios. Jogos dos quais toda a Grécia participava, competições de música e de luta, assim como corridas, foram formas usadas desde o início para unir os gregos. Como cada cidade-Estado tinha seu calendário próprio, incluindo datas diferentes para começar o ano, os jogos se tornaram uma maneira crucial de medir a passagem do tempo: os nomes dos vencedores de cada Olimpíada desde (dizem) 776 a.C. eram o seu equivalente da nossa maneira de contar numericamente “2012” ou “1945”. Os ginásios, onde os atletas ficavam nus e passavam óleo no corpo, produziram uma forte cultura de admiração homossexual e de casos amorosos entre meninos e homens mais velhos. Esses são os primeiros sinais distintivos da cultura grega, mas, enfaticamente, não levaram aquelas cidades-Estado a desenvolver uma resposta única ao problema do governo e do poder. A competição política fez dos gregos historiadores e filósofos. Um dos mais extremos sistemas políticos, e um desafio a outros estados, foi o dos espartanos. Embora se atribua a Fédon de Argos a invenção da tática do combate com falanges por volta de 670 a.C., ela só se tornou uma obsessão dos espartanos quando eles foram vencidos no campo de batalha pelos homens de Argos. Os espartanos já eram um povo guerreiro, que tinha subjugado uma paisagem semiescravizada de agricultores ou hilotas (servos), assim como aldeias subsidiárias que produziam o alimento que lhes permitia concentrar-se em seu hobby e interesse prioritário — a guerra. Os espartanos desenvolveram um Estado que encontraria ecos no Japão dos samurais ou no fascismo, que rejeitava conscientemente o cultivo das artes mais suaves desfrutadas em outros estados gregos. Bebês que aparentassem fraqueza eram relegados à morte. Meninos e meninas eram separados aos sete anos. Os meninos eram criados em campos de treinamento de estilo militar e instruídos a roubar e matar animais para se alimentarem. As meninas também corriam e lutavam nuas; mais tarde, qualquer uma delas poderia servir de esposa para vários cidadãos espartanos unidos por laços de fraternidade. Os espartanos que lutavam e perdiam com frequência se matavam. Eles tinham dois reis, sempre, e um conselho de homens de mais de sessenta anos, que apresentavam suas propostas em reuniões só de cidadãos do sexo masculino.
Paralelamente a essa constituição de “equilíbrio de poderes”, que permitia à cidade-Estado evitar a tirania ao mesmo tempo que garantia a seus combatentes igualdade para opinar, os espartanos rejeitavam modernizações como dinheiro ou proteção de suas aldeias com muralhas e confiavam em seu exército semipermanente e assustadoramente bem organizado. O resultado foi um Estado militar dominante, que deixava outros estados gregos nervosos, mas com o qual podiam contar para derrubar tiranos o confrontar inimigos. Esparta atingiu o auge da fama quando encabeçou os gregos confederados contra os persas. Quando Ciro derrotou Creso, em 546 a.C., foram os espartanos que mandaram um recado ordenando-lhe que recuasse e que, 47 anos depois, mobilizariam os gregos ocidentais contra a Pérsia na revolta jônica. E, nos 25 anos que se seguiram, foram principalmente os espartanos que sustentaram a luta épica. No entanto, outros gregos, em particular os atenienses, riam dos espartanos devido a seus modos rudes e viam neles um bando de assassinos de cabelo longo, sujos e incultos. Atenas, a grande rival de Esparta, também era um Estado escravocrata, que dava amplos direitos de voto e outros direitos aos cidadãos do sexo masculino. Sua tirania srcinal fora derrubada com ajuda espartana em 510 a.C. Dois anos depois, o governante de Atenas, Clístenes, propôs um sistema novo e radical de votação e representação, baseado em eleições locais em nível de comunidade ou aldeia e em “demos” maiores. O demo era uma divisão territorial, que poderia ser do tamanho de uma cidade pequena e passaria a substituir o nome de família como principal insígnia de identificação. Foi uma mudança importante. Neto de um tirano ateniense, Clístenes acreditava que a rivalidade e as disputas pelo poder entre famílias tinham levado inexoravelmente à fragmentação e à tirania. Só pondo fim à obsessão a família, ou “gene”, é que a ordemlevou poderia ser restaurada. O maiscom importante é que esse plano complexo à formação de uma assembleia única de cidadãos, todos os homens de mais de trinta, incumbida de tomar as grandes decisões. Era uma assembleia grande demais para funcionar direito, pois contava com 25 mil pessoas, mas essas elegiam um conselho de quinhentos que governavam Atenas numa base diária. A assembleia geral também tinha sua reunião plenária, e em geral cerca de seis mil atenienses perambulavam pela cidade quase todas as semanas para ouvir e votar. Era a “democracia” em ação, uma característica da Atenas antiga sobre a qual quase todo mundo já ouviu falar. Revelou-se surpreendentemente consistente, devido à sua relativa moderação. Em vez de serem executados, os que ameaçavam o sistema podiam ser banidos para o “ostracismo” o mandados para o desterro depois de uma votação da assembleia — realizada com pedaços de cerâmica quebrada. Muitos tinham permissão de voltar do exílio depois de cumprirem a pena. A democracia como sistema sobreviveu em Atenas quase duzentos anos, com interrupções, ainda que nunca tenha deitado raízes amplamente no mundo antigo. Para funcionar, requeria cidadãos instruídos — muito embora talvez apenas um décimo deles soubesse de fato ler —, assim como pessoas que aprendessem a falar em público, a raciocinar e a seguir argumentos complicados. Esse desenvolvimento do que se poderia chamar de sociedade civil era tão importante quanto os resultados da votação. Todavia, a “democracia” ateniense não incluía as mulheres, os homens mais jovens ou os escravos. Para desenvolver sua deslumbrante arquitetura e escultura, assim como o teatro, a música e a filosofia, Atenas recorria ao trabalho escravo tanto quanto a severa e sisuda Esparta. E, como Atenas dependia cada vez mais de suas minas de prata para comprar o milho que não podia cultivar, um imenso número de 13 escravos foi importado para as minas: um cálculo sugere até 150 mil de uma só vez. Apesar disso, eles também eram muito usados na agricultura — o historiador Xenofonte fala em vinte mil que fugiram das fazendas atenienses durante uma invasão espartana — e como artesãos remunerados, na construção de grandes edifícios públicos, por exemplo. Estima-se que para cada cidadão ateniense do sexo masculino havia dois escravos. Sem os escravos, capturados durante as guerras, os agricultores gregos não teriam
como dispor de tempo livre para aprender a falar e votar, ou para atuarem como cidadãos ativos; nem os aristocratas gregos teriam desfrutado de riqueza e lazer para estudar filosofia. Mais uma vez, foi a guerra que serviu de base para o “milagre grego” — e muito mais substancialmente do que muitos admiradores gostariam de admitir. A luta contra os exércitos dos persas era travada em terra e no mar. Tinha começado com a revolta ônica de 499 a.C., uma rebelião dos gregos na Ásia contra seus senhores, que resultou em vitória persa. Mas então Dario, sucessor de Ciro, que assumiu depois de um interlúdio dominado pelos Reis dos Reis não tão grandes assim, resolveu punir Atenas por apoiar os rebeldes. A campanha começou bem para os persas, que exterminaram pequenos estados insulares gregos e destruíram apolis rebelde de Eretria, antes de desembarcarem na Ática para seguir em direção a Atenas. Ali, em 490 a.C., em Maratona, os atenienses obtiveram uma vitória surpreendente e notável. Estavam em imensa desvantagem numérica. Até mesmo historiadores modernos aceitam que o exército persa era de duas a dez vezes maior e, ao contrário dos atenienses, dispunha de cavalaria e arqueiros. Mas esses cidadãos-soldados fizeram uma coisa absolutamente inesperada: atacaram o inimigo persa a passo acelerado, com um centro deliberadamente fraco e flancos fortes, e acabaram com ele, produzindo um grande massacre. Sem nenhuma imparcialidade, Heródoto diz que os gregos lançaram-se sobre o inimigo ao longo da linha e combateram de uma maneira que jamais será esquecida. Foram os gregos os primeiros, tanto quanto posso dizer, a atacar a passo acelerado, e os primeiros a fitar sem hesitar o traje persa e os homens que o usavam; pois até aquele dia nenhum grego podia sequer ouvir a palavra persa sem ser tomado de terror. Os persas voltaram para seus navios e tentaram velejar até Atenas para outro ataque; mas o exército ateniense chegou primeiro. A história dessa extraordinária corrida de volta à cidade sob o peso das armas, segundo consta, teria produzido a maratona de 42 quilômetros dos tempos modernos. Outra lenda diz que o mensageiro ateniense Fidípedes correu 42 quilômetros até sua cidade para dar a notícia da vitória e fortalecer a determinação ateniense de resistir, morrendo logo após dar o recado. Infelizmente, parece não haver nada que comprove a veracidade histórica desse fato. Depois da morte de Dario e de um hiato de dez anos, seu filho Xerxes preparou uma invasão muito maior, destinada a acabar de vez com os gregos. Àquela altura, a federação encabeçada por Atenas e Esparta incluía mais de setenta estados gregos, embora houvesse uma quantidade ainda maior assistindo de fora ou ajudando o inimigo. Heródoto calculou que o inimigo persa dispunha de 5,2 milhões de homens, uma estimativa absurda, mas com certeza era uma força tremenda, que atravessou o Helesponto em pontes de corda e barcas, incluindo barcas especiais para cavalos. Heródoto faz um relato vívido e emocionante da famosa luta no desfiladeiro das Termópilas, onde o rei Leônidas e trezentos espartanos que ele mesmo escolhera a dedo — “todos os homens de meia-idade e todos os pais de filhos vivos” — detiveram os persas durante dias, até serem traídos e mortos. O exército de Xerxes invadiu a Ática, e os atenienses tiveram de evacuar a cidade, que foi incendiada. Mais tarde, no estreito de Salamina, a frota conjunta dos gregos teve uma vitória crucial contra os persas. Duas outras grandes batalhas, uma terrestre, em Plateia, e outra à beira-mar, em Micale, também resultaram em vitórias gregas, pondo fim à invasão. Desde então, historiadores sustentam que essas lutas foram essenciais paraea na civilização ocidental, se desenvolver, baseou-sepelo em despotismo grande partepersa. no pensamento, na arte política dos gregos,que, quepara poderiam ter sido extintos Como em outros momentos militares decisivos, é provável que o desequilíbrio de forças tenha sido exagerado, mas essas vitórias gregas tornaram-se protótipos da “guerra para salvar a civilização”, uma
metáfora usada pelos russos, antes de Borodino, pelos britânicos, em 1940, e por dezenas de outras forças. A vitória grega resultou numa idade de ouro para Atenas, uma vez que, estranhamente, Esparta não ocupou o papel de liderança que suas realizações no campo de batalha levavam a crer que mereceria. Os oitenta anos contados mais ou menos a partir de 450 a.C. abrangem a ascensão do grande estadista Péricles, a escrita dos primeiros historiadores — incluindo, é claro, Heródoto — e a reconstrução do Partenon sob o comando do escultor Fídias. O teatro ateniense tinha surgido, exuberante, de suas srcens na execução de cantos sacros. E, ao lado das tragédias de Sófocles, Ésquilo e Eurípides, floresceu uma tradição de comédias rude e incontrolável, a maioria perdida para nós, que funcionavam como uma crítica e uma troça constante da vida ateniense. Essas apresentações foram ficando cada vez mais espetaculares e caras, pois os atenienses ricos competiam entre si para financiá-las (mais ou menos como os últimos imperadores romanos competiam entre si para oferecer os melhores jogos). Nas encenações srcinais, havia pleno acompanhamento musical de coros, e os atores principais, de máscaras exóticas, recitavam suas falas numa toada rítmica. Os festivais eram brilhantes celebrações ao ar livre da vida urbana das quais participavam dezenas de milhares de pessoas, deliciando-se com a comida das barracas, o vinho e as fofocas. Dispor apenas das palavras dos dramas é um pouco como conhecer as óperas de Handel ou de Verdi só pelos libretos. No mesmo sentido, ver as estátuas magníficas de heróis e deuses atenienses expostas em galerias na frialdade das pedras brancas não pode dar uma ideia da presença pública viva e colorida de outrora. E, acima de tudo, é claro, destacavam-se os filósofos, argumentando sobre a natureza da realidade e sobre a melhor maneira viver e devieram organizar sociedades humanas. A riqueza e de a confiança do asgrande conflito. Nasceram da decisiva vitória militar contra a superpotência asiática da época. As críticas e as risadas vinham dos democratas vitoriosos, que tinham suficiente autoconfiança para rirem de si mesmos. O intenso desejo decompreender — compreender as constituições dos 158 estados gregos estudadas por Aristóteles e as diferenças entre as sociedades asiáticas e gregas investigadas por Heródoto, compreender as causas da guerra civil, como Tucídides tentou, ou a natureza da boa sociedade, como tentaram Sócrates e Platão —, toda essa curiosidade, nada tinha de ocioso ou de simples: era fruto da guerra. Aborígenes e arianos Entre as forças do exército persa que marchavam sob as ordens de Xerxes em direção a Esparta, segundo nos conta Heródoto, havia um grupo vestido de roupa de algodão, armado de arcos de vara com ponta de ferro e se deslocando em carros puxados por cavalos ou burros selvagens. Esse grupo vinha da Índia. A história inicial dessa vasta saliência triangular da Eurásia é um dos mais interessantes temas de estudo, ainda em desenvolvimento. Como já descrito, acredita-se que, na migração africana que mudou o mundo, seres humanos chegaram à Índia muito mais cedo do que ao Mediterrâneo, à Europa ou à China. Os moradores nativos das florestas do sul da Índia ainda se parecem mais com os aborígenes australianos e os ilhéus do Leste Asiático, que fizeram parte da primeira marcha da humanidade para o sul, do que com os indianos arianos do norte, que vieram bem depois. Quase no mesmo momento em que os primórdios da história da Índia foram abertos a estudiososexploradores britânicos no século XIX, o mundo passou a acreditar que as grandes civilizações da Índia vieram de fora, em vez de serem preparadas e moldadas em casa. E é verdade que ondas de migrantes e conquistadores, dos pastores tribais asiáticos aos gregos, persas e mongóis, avançaram para a Índia pela
passagem noroeste entre o mar e o Himalaia. Cada um deles mudou radicalmente o subcontinente. A única diferença no caso dos britânicos é que eles, assim como os portugueses e franceses, chegaram pelo mar. Mas, apesar disso, pode ser que a civilização da Índia mais antiga que se conhece, o misterioso centro urbano do vale do Indo, ou Mohenjo-Daro, tenha sido mesmo um produto caseiro. No início da nova república indiana, em 1947, um político importante, Jaipal Singh, representante do povo tribal (ou da floresta), dizia falar em nome da antiga tradição do vale do Indo, referindo-se aos outros indianos como recém-chegados: “Toda a história do meu povo é de contínua exploração pelos não aborígenes da Índia.”14 Então o que era essa civilização supostamente aborígene? As cidades de tijolo assado da planície do rio Indo dispunham de excelentes sistemas de água e tubulação, uma escrita que não foi decifrada e alguma arte de interesse. Esta inclui uma pequena figura que talvez estivesse praticando ioga e outra que talvez fosse uma primeira versão da divindade hindu Shiva de tempos posteriores. Há muitos selos finamente cortados mostrando touros, elefantes e tigres, tão importantes para a religião e a arte indiana que vieram depois. E há uma dançarina muito sexy, cuja pose desafiadora e cujos braceletes prefiguram a escultura erótica de templos hindus muito mais jovens, mas cuja face é de aborígene. Portanto, é possível — e não mais que apenas possível — que os primeiros migrantes humanos do Chifre da África que permaneceram na Índia tenham criado as condições essenciais da religião e da arte indianas muito antes dos invasores que chegaram do norte. Na época em que esses indianos foram organizados sob estandartes persas contra os gregos, porém, eram primos étnicos do povo que combatiam. Conectados pelas pontas de seus impérios, os indianos dos séculos V e IV a.C. sem dúvida sabiam dos gregos, a quem chamavam de “yona”, palavra derivada do termo persa para “jônicos”. Esses indianos do norte, assim como os persas, falavam uma língua que tinha as mesmas srcens do grego, do latim e de todas as grandes línguas europeias da atualidade. Isso é notícia velha, graças à descoberta feita em 1785 por um brilhante inglês amante da Índia que fora 15 mandado a Calcutá como juiz de tribunal superior, sir William Jones. Jones, exímio linguista, foi um dos primeiros europeus a aprender o sânscrito, o idioma acadêmico dos sábios hindus. Identificando pistas em palavras-chave e na estrutura gramatical, Jones viu que o sânscrito fazia parte do que seria chamado de família “indo-europeia” de línguas. Era srcinariamente a língua dos arianos, ancestrais de tantas tribos ruidosas posteriores. Os arianos tinham sido um povo de pastores, dependente de gado e de cavalos, que migraram em ondas de sua terra natal, localizada provavelmente nos arredores Cáspio da Ucrânia. “Ariano” uma palavra cujas implicações de superioridade racial, depois do da mar Europa dosou nazistas, podem causar érepúdio a ouvidos modernos. No entanto, é apenas um rótulo conveniente. Pode-se muito bem dizer que indianos, mediterrâneos e europeus são “todos caspianos” ou “todos ucranianos” (apesar de não dizermos). Como os povos antigos podem ser rastreados pelas palavras e pelas pedras, é de aceitação geral que os arianos se deslocaram para o oeste, rumo à Turquia, à Grécia e aos Bálcãs, bem como ao que hoje é o Irã, e também à Índia. Provavelmente penetraram no atual Paquistão mais ou menos na época da guerra de Troia e alcançaram a grande planície do Ganges duzentos anos depois. É possível que os dórios fossem outro ramo da migração ariana, desalojando os gregos micenianos mais ou menos na mesma época — nesse caso, em Maratona primos distantes se enfrentaram no campo de batalha sem saberem do parentesco. Os hinos antigos, ou “vedas”, dos arianos indianos, transmitidos oralmente com grande cuidado, mostram que eles são predispostos à guerra e obcecados por cavalos. Por outro lado, não tinham palavras para “arado”, “escrita” ou “elefante”,16 portanto pode ser que de fato tenham precisado
aprender com os povos indígenas com os quais se fundiram, ou que derrotaram e desalojaram. Não sabemos o que aconteceu, embora esses imigrantes arianos tivessem uma cultura de sacrifício de animais e roubo de gado compatível com pastores convertidos em saqueadores. Eles claramente tinham feito parte da família mais ampla do Oriente Próximo. Histórias como as incluídas nas Puranas apresentam semelhanças com os contos da Mesopotâmia e da Bíblia, incluindo a de um grande dilúvio no qual um deus, Vishnu, recomenda ao legislador Manu que construa um barco e depois o conduz ao pico de uma montanha para salvá-lo. Os arianos tinham seguido uma trajetória histórica familiar. Deixaram de correr atrás de animais para se estabelecerem. Os Rigvedas, as mais antigas histórias sânscritas, pintam um quadro de cultura tribal com chefes, sacerdotes, orgíacas cerimônias de sacrifício e gado como moeda corrente. O historiador John Keay comparou o sistema de clãs das montanhas da Escócia antes que a chegada das ovelhas limpasse os vales: “Todos [...] fossem indianos ou escoceses tinham a mesma língua (gaélico / sânscrito), o mesmo sistema social em que a precedência era determinada pelo nascimento e um mesmo estilo de vida em que tanto a riqueza como o prestígio eram medidos em gado. Na Escócia, como na Índia, roubar rebanhos de outros clãs era um passatempo e um ritual.”17 Mas na Índia, como na Escócia, a agricultura acabaria se impondo. Pela época dos clãs escoceses, as florestas srcinais da Escócia tinham desaparecido havia muito, derrubadas para servir de combustível e dar lugar à lavoura, deixando para trás uma ecologia frágil, suficiente apenas para garantir o sustento de poucos. Os arianos indianos tiveram mais sorte. Naquela época, o norte da Índia era bem diferente da planície cáqui densamente povoada e intensamente lavrada de hoje. Como os textos antigos deixam claro, os invasores, ao saírem do Punjab e migrarem para o leste, encontraram um terreno coberto de mata luxuriante e rico em animais selvagens e de caça, que se espalhava lentamente até o alagado delta do Ganges. A terra era habitada por povos da floresta, caçadores-coletores cujo modo de vida era comparável ao dos povos da Amazônia ou das montanhas da Nova Guiné. Mesmo na Índia do século XX ainda havia habitantes da floresta excluídos pela — e desconfiados da — cultura urbana e agrícola à sua volta. A Idade do Ferro foi a idade tanto do arado de ferro quanto da espada de ferro. Quilômetro a quilômetro, florestas foram queimadas para dar lugar a terras agrícolas, o solo cortado pelo arado e plantações de cevada semeadas. As caças recuaram, e aldeias se tornaram pequenas cidades. Os arianos se estabeleceram. Com o tempo, campos de arroz seriam plantados na terra pantanosa onde a floresta terminava. Essa mudança foi duradoura e estável. Partes da Índia de hoje, por exemplo em Bihar, na direção da fronteira com o Nepal, têm aldeias construídas de madeira e junco tecido, cujos agricultores aram com bois e cuidam de campos de arroz e hortaliças, queimando esterco de vaca como combustível, como fazem desde a Idade do Ferro. Mas logo os grandes rios foram usados para o comércio e para o transporte, e uma malha de estradas começou a ligar o norte. Assim, sob os grandes cumes brancos e contrafortes azuis do Himalaia, nos vales e planícies, uma civilização indiana setentrional se desenvolvia. Como aconteceu com as culturas grega, semítica, nórdica e mesopotâmica, os indianos da era védica tinham uma família de deuses e deusas que exigiam infindáveis e complicados sacrifícios. Esses deuses eram de responsabilidade dos sacerdotes brâmanes, que ocupavam o mais alto patamar de um sistema de castas em desenvolvimento. Casta é uma questão complicada e muito debatida. Para começar, nada mais é do que uma divisão grosseira de pessoas, mas que serve ao seu propósito, de acordo com as funções que exercem, como aconteceu também na Europa e na Rússia. Na formulação indiana, depois dos sacerdotes-professores, os brâmanes, vinham os guerreiros e administradores kshatriyas ( ); seguidos pelos agricultores e
comerciantes (vaisyas ); e, finalmente, os trabalhadores e empregados s(hudras ). Isso não é, por si, surpreendente. As sociedades agrícolas e as primeiras sociedades urbanas preservavam habilidades e conhecimentos, transmitindo-os dentro das famílias. Antes da instrução em massa, o know-how era precioso demais para ser desperdiçado permitindo-se que qualquer um escolhesse. Era acumulado e armazenado. Ceramistas moldavam potes e condutores de bigas passavam as rédeas para os filhos. Indícios fornecidos por escrituras primitivas sugerem que, apesar disso, algumas pessoas conseguiam se deslocar entre esses grupos. De outro lado, provas de DNA (muito contestadas) sugerem que os indianos das castas superiores de hoje têm laços genéticos mais estreitos com os europeus do que os das castas inferiores. Nesse caso, os brâmanes, kshatriyas e vaisyas podem ser filhos dos invasores indoeuropeus, enquanto as castas inferiores, que executam as tarefas mais grosseiras, sujas e rotineiras, são, mais provavelmente, descendentes dos povos primitivos da Índia. Se for verdade, seria um exemplo notável de persistência cultural. Contudo, também é preciso lembrar que, em termos de biologia, “história antiga” mal chega a ser ontem. Se pensarmos em termos de expectativa de vida moderna, digamos setenta anos, então os gregos de Maratona e os arianos antigos da Índia estão a apenas quarenta vidas de distância. O que não se discute é que esse sistema védico de castas primitivo tornou-se consistentemente cada vez mais determinado por lei e difícil de escapar. Enquanto as cidades e o comércio cresciam, havia mais especialização, e as funções eram definidas e situadas dentro de uma estrutura mais complexa, como gavetas que se acrescentassem a uma cômoda gigante. Como em outras culturas, o crescimento de cidades e estados levou a hierarquias de poder e riqueza mais complicadas e dominantes, tornando mais difícil o que de mobilidade Na base da estrutura, as famílias de trabalhadores encarregadas das chamaríamos tarefas mais imundas foramsocial. transformadas numa subclasse de hilotas explorados, os “intocáveis”. Porém, os gregos também tinham seus escravos. O rebelde na raiz da árvore Há outros paralelos entre o norte da Índia e o mundo grego. Enquanto se estabeleciam, muitos clãs ficaram sob a autoridade de reis, alguns hereditários e outros eleitos. Certos clãs desenvolveram um sistema que tem sido traduzido como “organização clânica”, ou “governo por discussão”. Simplificando, era uma forma de república na qual a maioria dos homens tinha voz ativa em reuniões regulares. O termo rajah pode significar qualquer coisa parecida com “cidadão-eleitor”, bem como com “governante”. Com isso, um mapa político do norte da Índia mais ou menos da época do nascimento da Grécia clássica mostra uma colcha de retalhos de estados rivais não muito diferentes dos estados do mundo grego, que também seguiam a ideia de governo pela livre discussão, em disputa com as tiranias. Por volta de 600 a.C., havia na Índia dezesseis mahajanapadas, ou “grandes estados”, do Indo a oeste até o Ganges e seus afluentes. Magadha, Licchavi, Kosala, Kura e Panchala eram nomes que tinham ressonância de Atenas, Esparta, Corinto e Tebas no sul da Europa. Reinos desafiavam repúblicas. Como governar e como viver da melhor maneira eram questões tão vivas na Índia como em Atenas. Ali também havia ligas e alianças, guerras e desentendimentos, além de grande interesse pela melhor maneira de equilibrar o poder e pelos deveres dos cidadãos. Também havia disputas mais rudes. Uma guerra particularmente longa foi travada entre o rei Bimbisara, do poderoso Estado de Magadha, e os “cavaleiros”, republicanos de Licchavi. No centro do episódio estava Amrapali, uma cortesã de Licchavi, capital de Vaishali, que foi seduzida por Bimbisara e lhe deu um filho — era uma Helena do
Ganges. São assim as velhas histórias ainda contadas na Índia moderna. Essa mesma mulher, Amrapali, tornou-se mais tarde seguidora de um indivíduo que certamente foi algo mais do que uma simples lenda. As primeiras biografias de Sidarta Gautama, o Buda, aparecem seiscentos anos depois de sua morte. Fornecem nomes de lugares, datas e uma história de vida plausível. Mas o intervalo é muito longo, o que faz dele o menos historicamente visível dos mais importantes revolucionários éticos da época dos grandes impérios. Confúcio só teve uma biografia, escrita cerca de quatrocentos anos depois de morto, obra do historiador chinês Sima Qian, porém Mengzi, ou Mêncio, que viveu um século depois de Confúcio, escreveu sobre ele, e suas próprias conversas relatadas preenchem as lacunas. (Em comparação com Buda e Confúcio, Cristo é uma figura histórica muito mais clara. Calcula-se que são Marcos tenha escrito seu relato apenas quarenta anos depois da morte de Jesus, no ano 70, na época da queda de Jerusalém. Há boas razões para pensar que ele talvez tenha ouvido as histórias diretamente de são Pedro, companheiro histórico de Cristo. Além disso, há provas corroborantes de fontes não cristãs — como o historiador judeu Josefo e importantes escritores romanos — sobre um grande número de seguidores de “Chrestus” menos de um século depois de sua morte.) Entretanto, a arqueologia e textos antigos explicam muita coisa sobre a sociedade da qual o Buda surgiu, assim como seus ensinamentos. Naquela época, o sistema brâmane, com sua hierarquia sacerdotal e seus sacrifícios, estava bastante arraigado, mas também era contestado por seitas e por pregadores itinerantes dissidentes. Isso provavelmente refletia as severas perturbações sociais que ocorriam no norte da Índia, região que sofria um grande aumento populacional e rápidas mudanças na vida de muita gente. As aldeias e os mercados locais tinham crescido, tornando-se vilas de tamanho considerável ou mesmo cidades cerca de 35 mil habitantes, que vieram acompanhadas por uma cultura de dinheiro, lojas, trilhas dedecarroça, fossos e muralhas fortificadas. Ao contrário da Grécia ou da Pérsia, construídas com pedras, quase não dispomos de vestígios arquitetônicos de um povo que ergueu suas construções com terra batida, adobes e madeira. Suas palavras, repetidas em escrituras e poemas longos o suficiente para fazerem Homero parecer sucinto, resistiram melhor do que os edifícios — ou qualquer coisa que tenham feito de maior do que vasos de cerâmica ou utensílios de ferro. Nas chamadas repúblicas, ougana-sanghas ,18 a autoridade brâmane parece ter sido mais contestada do que nos reinos. Sidarta Gautama veio de uma das primeiras, a pequena república clânica de Sakya, hoje no Nepal, que elegia seu próprio chefe. Discussões acadêmicas sobre quando Sidarta nasceu persistem; estudos recentes deslocam a data para cerca de oitenta anos adiante, de 566 a.C., mais ou menos, para mais perto da metade do século seguinte. Mas a sempre citada descrição dele como príncipe, que levava uma vida de luxo real, dificilmente corresponde ao que se conhece sobre o clã Sakya e mais parece um toque decorativo.19 É mais provável que ele tenha sido um membro importante do clã, com uma vida mais ou menos confortável. Sidarta casou-se com a prima, teve um filho e viveu bem, até que, com 29 anos, se rebelou e partiu em busca da iluminação, deixando a família para trás com um breve adeus e nenhum remorso aparente. Algumas tradições dizem que isso aconteceu depois que ele se recusou a tomar parte noutro acesso de briga sangrenta de clã. Ir embora não devia parecer estranho na Índia da época de Sidarta. Havia uma tradição de homens que deixavam aldeia e família para trás e partiam em busca de verdade espiritual nas florestas ou iam viver de esmolas nas estradas. Parece que “buscadores da verdade” de cabeça raspada, com seus mantos em frangalhos, eram muito respeitados, ainda que suas opiniões divergissem fortemente. A tradição pode ser vinculada às andanças no deserto dos profetas israelitas ou às dos santos e mendigos cristãos de tempos posteriores, que iam de aldeia em aldeia. Numa época de mudanças sociais e de guerra civil, o apetite por novas ideias sem dúvida é agudo. Em 1949, o filósofo alemão Karl Jaspers chamou o período de 800 a 200 a.C. de “a era axial”, porque a
revolução no pensamento espiritual foi tão poderosa que o resto da história humana gira em torno dela. Parece um produto essencial da maior quantidade de riqueza e tempo livre criada pela ascensão das civilizações baseadas em vilas e cidades e um efeito perturbador das guerras entre elas. Como frase, “era axial” caiu em desuso, mas claramente havia um repensar de velhas crenças da Grécia à China. O conflito entre pequenos estados indianos na época do Buda é um exemplo perfeito. Dizem que Sidarta experimentou algumas das técnicas usadas por outros buscadores da verdade, começando com a renúncia ascética e como pedinte numa cidade vizinha. Desistiu disso para andar, estudar com monges eremitas e meditar. Rejeitou a mortificação extrema — a prática do jejum até o ponto de quase tornar-se um esqueleto vivo — em troca de um “caminho do meio” entre isso e a satisfação mundana (parece que o truque era consumir arroz doce). Depois de meditar sob uma figueira sagrada (ou Bodhi) durante 49 dias e noites, numa pequena aldeia do norte da Índia, ele alcançou a iluminação aos 35 anos de idade, entendendo por fim qual era a fonte do sofrimento humano. E a que conclusão chegou? À de que as dores do nascimento, da doença, do envelhecimento e da morte eram causadas por um desejo de prazer sensual e vida renovada, que se repete no ciclo de morte e renascimento até que este seja superado pela força de vontade mental e moral. É nesse momento que o buscador da verdade rompe o trágico ciclo. Alcança um estado além do mundo físico, de pureza mental e serenidade, ou nirvana. O Buda, ou “iluminado”, como Sidarta passou a ser chamado, começou a atrair discípulos, que se tornaram monges. Com eles, viajou pela planície do Ganges, pregando para quem quisesse ouvir. A antiga cortesã Amrapali, que (como já foi dito) tinha provocado uma guerra, tornou-se seguidora devota; seu tornou-sedemonge budista. Buda fundou mosteiros, incluindo mosteirosdefemininos. Rejeitava tantofilho o sacrifício animais como oO sistema de castas, sobrevivendo a tentativas assassinatos por adeptos do bramanismo, chegando até os oitenta anos. Ou pelo menos é o que se diz — e, novamente, como comprovar? Histórias da vida do Buda e de suas pregações foram transmitidas mais por cânticos de massa metódicos, do que por lições decoradas em salas de aula tradicionais. Isso permitiu que passassem de geração para geração com um mínimo de erros, muito embora deturpações sempre apareçam. Mas boa parte da história inicial começa como história oral e é confirmada com surpreendente frequência pela arqueologia. Não podemos ignorá-la. Nesta história, há semelhanças óbvias com as histórias de Cristo e Maomé: o abandono da vida em família para buscar a iluminação na solidão natural (debaixo de uma árvore, numa caverna ou no deserto); a conquista de discípulos; pregações através de parábolas para todos, não apenas para a elite; e a rejeição de sistemas religiosos anteriores. Ao contrário dos fundadores dos grandes monoteísmos, porém, o Buda nunca reivindicou divindade para si mesmo ou para seu sistema. Muitos diriam que, estritamente falando, o budismo não é uma religião, mas um sistema de autocontrole, que permite a seus seguidores escapar das limitações das dores da vida diária. No entanto, pressupunha uma atitude pacifista e tolerante, que fazia dele uma questão pública, não apenas uma prática privada; e estava aberto para qualquer um, de qualquer credo anterior, posição social ou raça. Nos séculos que se seguiram à morte do Buda, seus seguidores foram beber na fonte de atitudes á presentes no pensamento indiano — a renúncia à riqueza e ao poder, o vegetarianismo, o pacifismo —, estendendo-as para formar um credo do tipo “trate os outros como gostaria de ser tratado”. Já o cristianismo ficaria estreitamente interligado com o poder muito mundano e agressivo do Império Romano dos últimos tempos o islamismo se armariaemdeessência, forma ainda O budismo era, de fato, ediferente. Tratava-se, de mais uma espetacular. rejeição radical de tudo que compõe o que chamamos de história — impérios terrestres, desenvolvimento de habilidades tecnológicas, mudanças de ideias e sistemas políticos. Diz o Buda: “Afasta-te de tudo isto e olha para
dentro de ti.” Não é de surpreender, portanto, que, com uma exceção que veremos depois, o budismo raras vezes apareça como um sistema de crenças capaz de moldar a história. Isso não quer dizer que não tivesse enorme influência. Espalhou-se para países do Sudeste da Ásia, onde templos e pátios budistas magnificamente elaborados foram erguidos, sob o patrocínio de reis budistas. A influência de monges e da arte budistas na China foi imensa e dali se difundiu para a Coreia e para o Japão, onde a história dos primórdios da arte parece, por vezes, quase completamente budista. O budismo foi perseguido na maioria desses lugares, mas não produziu um sistema político ou imperial próprio; o Buda ficaria horrorizado se tivesse. Mais tarde, na própria Índia, até os tempos modernos, o budismo quase foi exterminado, e foi apenas sob o raj britânico vitoriano que se reconheceu a existência do Buda como figura real, histórica. Apesar disso, continua a ser um sistema de crenças muito importante. Bodhgaya, onde o extenuado ex-aristocrata meditou sobre seu caminho para a iluminação debaixo de uma figueira, é hoje talvez o mais atraente de todos os locais de peregrinação das grandes religiões do mundo. Monges e monjas calmos, sorridentes, com seus mantos cor de açafrão e ameixa, vindos da Tailândia, da Birmânia e do Sri Lanka, cantam à sombra de um templo antigo. Há um clima revigorante de satisfação, e a quinquilharia religiosa é mais parca, mais barata e menos inconveniente do que em Roma, Jerusalém ou (imagino) Meca. E, enquanto isso, que dizer da civilização contemporânea do leste da Índia que era ainda maior? Crise de meia-idade de Kongzi Com 54 anos, um burocrata não muito importante de um estado falido e dividido resolveu dar um basta. Renunciou ao cargo de ministro da lei e da ordem, disse adeus à maioria dos amigos e partiu para uma ornada de treze anos. Não era uma busca budista de solidão e iluminação, mas uma jornada política. Após visitar estados rivais e ter dificuldade para achar emprego, o funcionário público voltou para casa. Estava chateado, mas também achava um pouco de graça em seu relativo fracasso. Ao morrer, contava com um pequeno grupo de amigos e adeptos. A carreira de Kong Fuzi, ou Kongzi, ou “Confúcio” (na versão latinizada do nome que missionários jesuítas tornaram atraente para hesitantes lábios ocidentais, dois mil anos depois), dificilmente seria considerada excepcional. Não obstante, sua influência foi enorme. Para o bem ou para o mal, Confúcio foi tratado como uma espécie de deus por dezenas de imperadores chineses e teve efeito imenso na vida chinesa. Vilipendiado por Mao Tsé-tung e pelos comunistas srcinais, sua influência volta a crescer no ano de 2012, à medida que novas gerações de chineses buscam valores que ultrapassem o comunismo ou materialismo surrado. Com patrocínio do Estado, foi produzido um filme muito ruim sobre sua vida. No templo confuciano central em Pequim — um dos três mil do tipo —, onde imperadores costumavam cultuar o pensador, crianças pequenas, enviadas por pais ansiosos para transmitir alguma coisa a mais do que meros fatos, aprendem novamente suas ideias. Dependendo da opinião que se tenha sobre a disputa em torno das datas da vida do Buda, os dois homens viveram mais ou menos na mesma época. Os chineses eram mais cuidadosos com seus registros, e acredita-se que Kongzi viveu de 551 a 479 a.C. Como Sidarta, nasceu num Estado marginal e numa época de rixas internas e guerra civil, durante a qual a velha ordem era contestada. Se a Índia tinha seus “buscadores da verdade”, que iam para a floresta trajando túnicas amarelas, a China tinha seus filósofos errantes, por tradição centenas deles. Como o Buda, Kongzi comungava com governantes sem sofrer influência de nenhum deles; como o Buda, pregava a importância de tratarmos os outros como
gostaríamos de ser tratados; como o Buda, jamais esteve a ponto de proclamar a própria divindade. Mas ele também se tornaria, posteriormente, o foco de uma semirreligião que o elevou a um status mítico. A China de Kongzi estava dividida em Estados rivais, assim como a Índia do Buda e a Grécia da Idade de Ouro. Depois de sua morte, o país também mergulhou em terríveis guerras locais. Em vez de Atenas, Corinto, Esparta, Panchala, Maghada, Sakla e o resto, a China tinha os Estados de Wei, Zhou, Song, Han e Chu. Mas, do ponto de vista político, a China era, se tanto, ainda mais caótica. As crônicas da época relacionam mais de 140 Estados, cujos governantes e sacerdotes se comportavam de uma maneira que os gregos, os persas ou os indianos contemporâneos compreenderiam. Eles tentavam adivinhar o futuro lendo rachaduras nos ossos queimados das espáduas de vacas ou na carapaça da barriga de tartarugas, o que não era mais tolo do que o hábito grego de ouvir a tagarelice inconsequente de mulheres que inalavam vapores venenosos ou o gosto romano por manusear entranhas de galinhas. O que tornava a China diferente era o fato de que já tinha sido unida. Era essa a fonte do profundo romantismo conservador de Kongzi sobre um passado perdido. Os Estados da época de Kongzi eram fragmentos da casca de uma China muito maior, a da dinastia Zhou, que tinha durado mais de sete séculos, depois da queda da Shang. A história imperial chinesa pode parecer impenetrável para estrangeiros, mas naquela altura a história era bem simples e direta. Shang foi a primeira dinastia historicamente clara, depois da nebulosa história das dinastias Xia e Da Yu. A China de Shang era, como a Índia dos primórdios, um lugar muito mais selvagem do que viria a ser, com extensas florestas e pântanos intransponíveis, ainda não drenados para o arroz. Onde a civilização chinesa deve ter lançado suas primeiras raízes, ao longo do rio Amarelo, vagavam animais como tigres, ursos, e panteras; o clima era também impiedoso, invernos frios eparecida verões com muitoa quentes,elefantes, além dasrinocerontes cheias regulares. A sociedade Shang era, com em muitos sentidos, Índia ariana dos primórdios, um ambiente de hierarquia aristocrática e guerreira que dava muita importância aos saques e às caçadas e vivia do trabalho de camponeses mais pobres. Como os assírios e os persas, os Shang lutavam em bigas e usavam arcos poderosos. Uma avalanche de sub-reis, duques, governantes e combatentes locais derivava sua posição do imperador. Suas cidades e fortalezas eram construídas com muros que, escavados nos dias de hoje, ainda são firmes e íntegros. Tinham edifícios de madeira no mesmo padrão retangular e com longos beirais da arquitetura chinesa posterior. (A madeira daria lugar ao tijolo, e os telhados de palha passaram a ser imitados com telhas vitrificadas amarelas e verdes, mas as características essenciais perduraram por um tempo bastante longo, pois a China não foi afetada pelos estilos importados e híbridos que deram grande diversidade à arquitetura europeia.) Depois de uma vida passada em suas casas de campo quadradas, sustentadas por colunas, a nobreza Shang era sepultada em funerais pródigos, com magníficos vasos de bronze, sedas e caixões laqueados. Eles eram viciados em sacrifícios humanos, e um imenso número de servos e prisioneiros parece ter sido assassinado e parcialmente desmembrado, para fazer companhia aos aristocratas Shang a caminho da outra vida. Nem tudo era sombrio. Sob a dinastia Shang, extensos terraços foram construídos para a agricultura, terras foram desobstruídas e mais canais foram cavados. Notavelmente, um texto manuscrito de pelo menos quatro mil caracteres, encontrado nos ossos de um animal pertencente a um adivinho, são bastante assemelhados ao chinês moderno, o que permite que os arqueólogos o decifrem sem problemas. Em muitos sentidos, a cultura Shang lembra o mundo dos astecas, com sacrifícios humanos e uma arte complexa e enroscada. como América Central, uma interessante popular”que emparecem escala humana tinha dado lugarAssim a imagens de na rituais cada vez mais complexas, fortes e“arte incrustadas, refletir a sociedade mais hostil que se desenvolvia nas cidades e nos palácios. 20 Os bronzes dos Shang
são particularmente famosos, conquistas extraordinárias da arte da fundição. No entanto, só inspiram admiração; não são atraentes. Os Shang foram derrubados pelos duradouros Zhou, e era para eles que Kongzi voltava seu olhar retroativo com deslumbrada admiração. Um historiador diz que os Shang mereciam sair: “Embriaguez, incesto, canibalismo, canções pornográficas e castigos sádicos animam a lista de impropriedades litúrgicas.”21 O homem que, mais que qualquer outro, pôs fim a esse comportamento lamentável foi o diretorial duque de Zhou. Seu irmão mais velho obteve uma grande vitória contra os Shang mais o menos 150 anos depois do cerco de Troia, num lugar chamado Muye, mas depois foi embora para casa e morreu. Como o filho do rei era jovem demais para assumir, o duque encabeçou um conselho de regentes, que com o tempo sobrepujou a dinastia anterior e estabeleceu os Zhou como substitutos sob “o Mandato dos Céus”. Esse é um conceito importante na história chinesa. Como nova família governante que vinha da periferia da China de Shang, os Zhou tinham de olhar bem onde pisavam. Precisavam de continuidade para assegurar a lealdade dos seguidores da dinastia derrubada. Dinastias posteriores teriam o mesmo problema. Por isso o duque de Zhou declarou que os Zhou eram apenas as ferramentas usadas por um Cé usto para punir os Shang. Incumbido dessa tarefa pelo Céu, o acordo exigia que o novo rei fosse reverente e bom. Disse o duque: “Enquanto atua como rei, não se permita que ele, só porque a gente comum se extravia e faz o que é errado, queira governar lançando mão de duros castigos. [...] Sendo rei, 22 ocupa sua posição na primazia da virtude. A gente miúda então se guiará por ele no mundo inteiro.” Essa doutrina era crucial para Kongzi. Um rei virtuoso resulta num povo virtuoso. Assim começa uma cadeia de obrigações e de serviços recíprocos. Se todos agirem de acordo com seu papel, tentando ser aquilo que são — mães, padeiros, professores, soldados — da melhor maneira possível, então haverá a boa vida e a boa sociedade. “Saber o seu lugar” é uma virtude social positiva, não apenas submissão. É uma maneira de pensar baseada na família e profundamente anti-individualista, mas, se nós, em nossa cultura individualista extrema (e excessiva), não fizermos um esforço para compreendê-la, não há possibilidade de virmos a compreender Kongzi, a história chinesa nem a China de hoje. Depois de explicar ao povo o Mandato dos Céus, o duque de Zhou deixou o cargo e devolveu o controle ao rei legítimo, seu sobrinho — um raro gesto de modéstia na história chinesa. Kongzi disse muita coisa a respeito do duque. O período áureo da dinastia Zhou foi, para ele e sua geração, um pouco como a idade dos heróis para os gregos da mesma época. Mas, em seu tempo, o sistema inventado por Zhou, que dividira interiortornaram-se, da China na emprática, principados subsidiários, já tinha desmoronado. principados, com suasocidades, hereditários, depois começaram a se concretizarOs em Estados rivais independentes. Um historiador resumiu belamente: a Casa de Zhou “agora arde apenas como uma fonte fantasmagórica de autoridade suprema num mundo onde todos os Estados e principados mergulharam por vontade numa luta pela sobrevivência, [...] os laços de linhagem e lealdade se afrouxavam”.23 Em resumo, era uma época de desordem. Kongzi acabaria achando que tinha nascido para consertá-la. Ao que parece, ele nasceu na aldeia de Chanping, no reino de Lu. As conexões de Lu com a dinastia falida eram particularmente pungentes; o duque de Zhou tinha voltado para governar Lu após devolver o controle da China. Portanto, Lu era um raro e leal vassalo dos Zhou, ou pretendia ser. Consta que o pai de Kongzi foi um famoso guerreiro que se impunha pela força chamado Zou He. Casou-se com “uma mulher do clã Yan” e fazia amor com ela “em lugares remotos” ou, de acordo com algumas versões, numa colina sagrada na floresta. O menino nasceu com cabeça disforme — um inchaço ou uma depressão no crânio e a face estranhamente encovada.24 Cresceu e ficou muito alto. Na China da época, ele poderia ter sido
abandonado para morrer. O fato de não ter sido explica a devoção de Kongzi pela mãe. O pai morre cedo e, embora praticamente pudesse reivindicar a condição de fidalgo, Kongzi parece ter tido um começo difícil. Nos Analectos, ou coleção de máximas, que oferecem o registro ao que tudo indica mais autêntico do próprio Kongzi, diz ele: “Eu era pobre e de uma camada inferior; é por isso que sei executar muitos trabalhos domésticos.” Mas recebeu instrução e conseguiu fazer carreira trabalhando para o perturbado e dividido estado de Lu. Foi guardador de rebanho e de grãos para a família do conselheiro-mor de Lu, depois se tornou ministro de obras públicas, em seguida ministro da lei e da ordem. Kongzi casou-se, embora pouco se saiba sobre sua mulher e é possível que tenha se divorciado. Como zombava dos escritores que inventam coisas que não sabem, é melhor termos cuidado. O historiador chinês Sima Qian diz que Kongzi foi, na verdade, muito bem-sucedido como servidor público. Sob seu regime, “vendedores de carne de porco e de cordeiro pararam de cobrar preços inflacionados, homens e 25 mulheres andavam em lados opostos da rua e ninguém pegava coisas deixadas na estrada”. A essa altura, precisamos enfrentar o maior obstáculo à compreensão moderna de Kongzi — sua obsessão por rituais e pela apresentação correta de ritos. Os ritos governavam funerais, comemorações, refeições diárias e encontros entre pessoas de diferentes posições sociais: calcula-se que um cavalheiro instruído tinha que obedecer a cerca de 3.300 regras. O que sabemos a respeito desse período chega a nós por intermédio de uma história de Lu esparsamente escrita, em essência diplomática, chamadaOs anais da primavera e outono , que pode ser de autoria do próprio Kongzi; assim como dosComentários de Zuo sobre a obra. “Primavera e outono” era apenas um jeito poético contemporâneo de dizer “um ano” ou “anual”, mas passou a ser o nome pelo qual todo esse período da história chinesa ficou conhecido. A grande preocupação das crônicas é com autoridade, status, procedimento e ritos. Para Kongzi realizar os ritos da maneira correta era de suprema importância, como já se disse. Deve ter sido uma falha na distribuição da quantidade ritualmente adequada de carne depois de um sacrifício que o levou a abandonar, furioso, o emprego e tomar a estrada. E, quando a mãe morreu, ele insistiu na série completa de ritos, por mais antiquados e caros que fossem. Pranteou-a durante três anos. Por que os ritos eram tão importantes? A resposta, numa palavra, é “família”. Kongzi raramente menciona a divindade e é possível que fosse agnóstico. O cumprimento sincero e adequado dos rituais tradicionais era uma forma de adquirir autocontrole e manter a ordem social numa rede de laços de família e clã. Na China tradicional, a família bem ordenada (em contraste com apolis grega) era a unidade fundamental. Preservava-se e fortalecia-se, adquiria seu senso de identidade, mediante ritos para prantear os mortos, celebrar festivais, recordar os antepassados, conduzir as refeições em família, honrar os deuses locais e assim por diante. Quando um estado ou clã destruía outro, os vitoriosos tentavam erradicar os ritos dos vencidos; com isso apagavam sua memória coletiva, suas tradições e identidade. Os ritos é que faziam de nós o que somos; sem os ritos, levados a sério, não seríamos nada. Os vínculos de famílias consanguíneas espalharam-se pelos primeiros miniestados chineses, que funcionavam quase como tribos bem ordenadas e formais. Porém, na boa sociedade, os laços (marcados e policiados por ritos) também iam além do parentesco de sangue. Os laços entre proprietário de terra e camponês, entre comprador e vendedor, entre governante e governado, entre estado subsidiário e reino maior estendiam-se muito além da família, mas eram cobertos por ritos semelhantes. Entretanto, na época de Kongzi, esse antigo jeito de ser (de saber quem se é e como a vida deveria ser) estava sendo contestado e derrubado por uma alternativa — o Estado. Ainda é cedo demais para falarmos em Estado absolutista ou totalitário, mas aqueles estados chineses emergentes exigiam obediência e governavam
pelo medo, através de uma burocracia que nada tinha a ver com a família. Não é absurdo detectar neles ecos distantes do impacto da hostilidade de Estados comunistas ou fascistas aos laços de família. No mundo ideal de Kongzi, assim como o bom pai exerce autoridade com bondade, o bom governante precisa ter misericórdia. Eis o que lemos nos Analectos: “Disse o Mestre: Governa o povo por regulamentos, mantém a ordem com castigos e ele fugirá de ti, e perderá o respeito a si próprio. Governa pela força moral, mantém a ordem através de rituais, e ele manterá o respeito a si próprio e virá procurar-te espontaneamente.”26 Ren, que significa algo como “virtude”, deu como resultado “caminho” ou dao, que pode ser comparado com as “veredas da justiça” da Bíblia. Ritual significa tratar todos com respeito, e a versão de Kongzi para a “regra de ouro” lembra muito a de Cristo: “Trata as pessoas comuns como se estivesses celebrando um sacrifício importante. Não faças aos outros aquilo que não gostarias que fizessem contigo.” Se esta mensagem é conservadora ou mesmo reacionária, como frequentemente se diz, então o conservadorismo de Kongzi é uma alternativa gentil ao poder violento e abusivo; é o conservadorismo de Shakespeare, que acha que o mundo é melhor quando reis se comportam como reis, pais são justos e assim por diante. Na China, o ritual também permite ao indivíduo controlar a si mesmo, até mesmo dominar a si mesmo. Numa passagem dosAnalectos, um seguidor, advertido sobre a importância do ritual, responde a Kongzi citando um poema: Como coisa cortada, como coisa limada, Como coisa cinzelada, como coisa polida. A escritora Karen Armstrong disserta: um cavalheiro “não nascia, era burilado. Precisava trabalhar 27 sobre si mesmo da mesma maneira que um escultor esculpe uma pedra e faz dela algo belo”. Isso mostra que “o ritual certo”, que pode parecer um eco misterioso e sem sentido de uma civilização antiga, não é muito diferente da meditação, da oração ou de qualquer programa de rigoroso autoaperfeiçoamento. Diz respeito ao domínio e à ordem do eu e da sociedade. Essas questões pareciam urgentes na China de Kongzi, com os estados em guerra e luxúria e desordem crescentes — até mesmo Lu foi perturbado por usurpadores, deixando o bom duque falido e impotente. Nas fronteiras, os bárbaros espreitavam. Na própria China, uma guerra civil muito pior se prenunciava, prometendo trazer horrores inimagináveis. Pensadores chineses que vieram depois desenvolveriam leituras alternativas. Monzi, pordeexemplo, achavaMas, o pensamento e defendia um sistema menos elaborado e mais direto justiça social. assim comoconfuciano Sidarta foielitista provocado pela turbulência da Índia setentrional e os profetas judeus foram açulados pela experiência da guerra e do exílio, Kongzi amais teria se tornado professor não fossem a violência e as rixas. O estado rival, Qi, temia que, se ensinado por Kongzi, seu senhor, o duque de Lu, se tornasse bemsucedido demais e o invadisse. Por isso, o governante de Qi enviou presentes e concubinas ao duque para corrompê-lo, e diz a lenda que isso funcionou. O duque entregou-se à luxúria, deixando de realizar os ritos adequados. Furioso, Kongzi decidiu procurar um senhor melhor para servir. Ele às vezes falava como um personagem bastante hostil. Enquanto o Buda foi convertido numa figura divina de rosto redondo e dourado, incrustado em escritura, Kongzi foi elevado à condição de velho mago da corte de aparência intimidadora e com uma barba sinistra. Entretanto, ele dificilmente poderia ser responsabilizado por isso. Assim como o verdadeiro Kongzi não pode ser responsabilizado pela doutrina imposta com rigidez e desprovida de senso de humor do confucianismo imperial que mais tarde foi desenvolvida e imposta declarando ilegal qualquer desvio da tradição, por menor que fosse. Kongzi foi exaltado primeiro como uma figura de culto e, depois, como
uma religião de estado a ser adorado como um deus. Mas em geral grandes pensadores estão condenados a serem conhecidos apenas em traduções. Tudo que sabemos de Cristo foi trazido pelos seus discípulos. Usar um paralelo cristão também não é inteiramente descabido: nos templos de Kongzi, outros filósofos que assimilaram e testaram seu pensamento são vistos como os quatro evangelistas, enquanto a próxima fileira de pensadores confucianos é apresentada como os doze apóstolos. Embora o Ocidente não tenha ninguém como Kongzi — um moralista conservador considerado digno de ser cultuado, mas que apesar disso não é fundador de uma religião —, basta um pequeno esforço para que ele nos pareça familiar. Nota-se que os piores excessos na história chinesa, as grandes repressões e os grandes massacres, surgiram do lado anticonfuciano. Vieram dos imperadores chineses hostis à linhagem e ao clã, que lançaram mão do terror e de punições brutais para construir seus estados, até chegar a Mao Tsé-tung, cuja revolução comunista, em meados do século XX, tentou romper e destruir a poderosa e ainda persistente tradição chinesa da família. Máximas confucianas foram removidas de muros de aldeias, onde haviam guiado e confortado camponeses durante séculos. Mao compreendeu que, se não soubessem quem tinham sido e, melhor ainda, se não honrassem seus antepassados — se sua identidade fosse apagada —, as pessoas se tornariam massa mais fácil de moldar nas mãos do estado. Em sua própria época, Kongzi entendeu a malícia e a inutilidade disso. Na vida, Kongzi jamais encontrou seu estado ideal. Perambulou pelos caminhos e estradas da China antiga, atraindo seguidores que repetiam suas histórias e argumentos, arranjando um trabalho aqui, outro ali, mas sem jamais conseguir outro emprego na corte. Já no fim da vida, ria de sua própria empreitada considerando-a um fracasso risível. Os Analectos e outras reminiscências pintam um retrato vívido de Kongzi a rir de si orgulho mesmo, de quesuaadorava comerdebem (mas se satisfaziacomo com um um homem prato desempre comidadisposto simples) e tinha capacidade beber semqueficar bêbado. Ao contrário do grande mestre Sócrates, suas conversas com os adeptos visavam chegar a verdades práticas, não a enredá-los em sua própria lógica ou exibir o próprio brilhantismo de argumentador. Como Sócrates, porém, ele foi muito bem servido por aqueles discípulos, que difundiram suas ideias por toda a China pensante, debatedora e letrada, bem na época em que a guerra civil forçava os homens a discutirem exatamente o que significava uma boa sociedade e como alcançá-la. Morrer bem Sócrates também sabia beber, e aproveitou, sobretudo, sua última dose. A melhor cena trágica na história da democracia foi escrita não por um teatrólogo, mas por um filósofo — embora Platão, discípulo do feio, exasperante, de nariz arrebitado, ainda que de alguma forma cativante, Sócrates, acalentasse a ambição de escrever para o palco. O relato platônico da morte do mestre continua a inspirar admiração. Sócrates fora considerado culpado, por pequena margem, da acusação de corromper a juventude de Atenas e desrespeitar os deuses. A maioria dos historiadores considera as acusações fraudulentas e o julgamento injusto, até mesmo histérico. Não se sabe muito bem o que significava “corromper”, exceto que Sócrates era um inimigo desdenhoso da democracia e jamais calaria a boca. Era figura famosa, de quem os poetas cômicos da cidade zombavam havia anos e cujo círculo de amigos incluía alguns dos aristocratas mais sinistros da época. Condenado, Sócrates ridiculariza o tribunal no que diz respeito à sua pena, e isso talvez tenha incentivado os juízes a condená-lo à morte, em vez de mandá-lo para o exílio. Mas, condenado, ele se recusa a fugir, como o teria feito sem dificuldades se quisesse. É provável que os atenienses esperassem que ele facilitasse as coisas para todo mundo fazendo isso, porém Sócrates achou que se exporia ao
ridículo se escapasse. Aceitou o veredicto, dizendo ao tribunal que era hora de partir. “Eu, para morrer e vós, para viverdes; qual dos dois destinos é melhor, só Deus sabe.” Seus seguidores também estavam na prisão no dia marcado para a execução, para a qual ele deveria tomar uma bebida com uma infusão de cicuta. A cicuta, dizem os biólogos modernos, paralisa o sistema muscular e causa morte por asfixia, o que não deve ser agradável. Sócrates tomou um banho, disse adeus à mulher e aos três filhos, antes de despachá-los (porque não queria nenhuma manifestação de histeria). Brincou com um seguidor choroso, Crito, a quem incomodava a ideia de sepultá-lo — mas o que seria sepultado, explicou ele, não era Sócrates, e sim apenas um corpo. Sócrates era uma espécie de agnóstico. Não sabia se a morte seria o fim, a extinção, ou apenas uma transição para outro mundo, o Hades da imaginação grega, povoado pelos espíritos dos mortos. Se fosse a extinção, não havia nada a temer, uma vez que o morto de nada saberia. Se fosse o Hades, ele se encontraria com alguns antigos heróis e conversaria com eles. Era o dia marcado para a execução. Avizinhava-se o pôr do sol, e o carcereiro veio para lhe dizer que chegara o momento. Sócrates achou esse homem, que também estava triste, “encantador” e mandou trazer o veneno. Crito observou que o sol ainda era visível nos morros: Sócrates poderia esperar mais um pouco, como tantos outros fizeram, e aproveitar mais a vida com os amigos. Sócrates recusou. Mais uma vez achou que se sentiria ridículo. O carcereiro voltou com o veneno. Sócrates perguntou se poderia derramar um pouco como oferenda aos deuses, para que o ajudassem na viagem. Não, disse o homem, havia apenas o suficiente para matá-lo. Em seu Fédon, Platão diz que Sócrates levou a taça aos lábios e “prontamente, sem vacilar, bebeu o veneno. E até aquele a maioria de nóstudo, tinha não conseguido a tristeza; vimos beber, quando momento percebemos que bebera pudemoscontrolar mais nos conter mas, e as quando lágrimaso escorreram contra minha vontade”. Sócrates perguntara ao carcereiro o que aconteceria depois e fora instruído a andar de um lado para outro até sentir as pernas pesarem e então deitar-se. Foi o que Sócrates fez e então ele se deitou de costas, de acordo com as instruções. O homem que lhe deu o veneno olhava a intervalos para seus pés e pernas; pouco depois, apalpou-lhe o pé com força, perguntou se sentia alguma coisa; ele disse que não; depois a perna e cada vez mais para cima, mostrou-nos que estava frio e enrijecido. Depois de apalpar mais uma vez, declarou: “Quando o veneno chegar ao coração, será o fim.”28 Suas últimas palavras para Crito foi que sacrificasse um galo para o deus da cura — pois via a morte como uma espécie de cura —, depois cobriu o rosto, calou-se e morreu. * ** Como devemos interpretar esta história? O pano de fundo é, mais uma vez, a guerra. Depois das heroicas derrotas dos exércitos persas diante da coligação entre Atenas e Esparta, Atenas sentiu-se envaidecida em seu poder. Foram precisos vinte anos, mais ou menos, para exterminar as forças persas que ainda controlavam gregas na Ásia. Os atenienses formaram uma aliança, Liga dee Delos, para sua marinha acidades concluir o serviço. Estados gregos menores contribuíram coma navios logo, por serajudar mais fácil, com dinheiro. Converteram-se de aliados de Atenas em seus súditos. Atenas passou de cidadeEstado contestadora a mini-império. Suas instituições democráticas permaneceram, mas o velho espírito
mudou. Mais riqueza e mais gente de fora significavam distâncias maiores entre as classes, bem como mais cidadãos distantes dos agricultores-soldados de antes. O senso de uma só comunidade minguou. A velha rival, Esparta, começou a inquietar-se e, com o tempo, quando o poder e a ambição de Atenas se tornaram muito incômodos para rivais comerciais como Corinto, o mundo grego entrou em guerra consigo mesmo. Esparta e seus aliados dominavam a luta em terra, enquanto Atenas mandava nas ondas. Ano após ano, os espartanos invadiam, e Atenas simplesmente retirava-se para trás de suas longas e impressionantes muralhas, que ligavam a cidade ao porto numa estrutura defensiva em forma de osso que lhes permitia trazer alimentos em abundância do mar e aguentar mais tempo do que os sitiantes. Tratados de paz foram firmados e perderam a validade, durante um longo e violento impasse. Então Atenas cometeu um erro grave. Incentivado por um glamoroso soldado, Alcibíades, seu povo concordou em atacar Siracusa, onde hoje fica a Sicília, rica aliada de Corinto, por sua vez aliada de Esparta. Havia muita ganância nisso, pois a captura da Sicília, e talvez até da Itália, deixaria Atenas tão forte que teria chances de dominar toda a Grécia. Mas os ataques resultaram em desastre. Os habitantes de Siracusa, ajudados pelos espartanos, obrigaram duas frotas de Atenas a recuar e puniram severamente os atenienses em terra, até que o estado outrora dominante foi quase reduzido à falência. A guerra durou muito tempo, mesmo depois disso. Os espartanos fizeram acordos com o antigo inimigo comum, a Pérsia, e muitos dos estados gregos jônicos, libertados durante as guerras anteriores, voltaram a cair sob domínio persa. E, depois de uma batalha naval em que Atenas perdeu sua principal fonte de alimentos e tornou-se passível de capitular por inanição, Esparta enfim venceu. Os muros de Atenas foram derrubados, e a cidade ficou sob controle espartano. A idade de ouro tinha afundado, de forma sangrenta, no mar. Tudo isso já era ruim. Mas a história do desastre de Siracusa e do que veio depois está entrelaçada com a de uma das mais atraentes, apesar de perversas, figuras da Grécia clássica, Alcibíades. Aristocrata aparentado com Péricles e bonito o suficiente para arranjar amantes de ambos os sexos, Alcibíades era um dos discípulos favoritos de Sócrates. Platão diz que Sócrates salvou a vida do sujeito no campo de batalha, e os dois ficaram inextricavelmente ligados na cabeça dos atenienses — muito embora Sócrates pareça ter resistido aos encantos sexuais de Alcibíades, passando uma famosa noite com ele, castamente, sob os lençóis. Como vimos, Alcibíades tinha sido um dos principais proponentes da catastrófica missão contra Siracusa. Convencera Atenas a aumentar a frota, elevando os riscos de forma desastrosa. Mas, antes de os navios partirem, foi acusado de envolvimento, talvez como uma espécie de piada de aristocrata bêbado, na mutilação de umas estátuas sagradas — osHermai, que eram ornados com falos e ficavam expostos a intervalos pela cidade. Embora tenha partido com a frota, sob comando conjunto, Alcibíades foi chamado de volta para ser julgado por blasfêmia. Bandeou-se para o lado de Esparta e lutou, com êxito, contra Atenas, até se desentender também com os espartanos e vender seus préstimos para os persas. Mais tarde, seus aliados em Atenas (onde fora condenado à morte à revelia) conseguiram, notavelmente, que fosse chamado de volta: as acusações foram retiradas e ele foi posto de novo no comando das forças atenienses. Dessa vez, a sorte parece tê-lo abandonado e, depois de algumas derrotas nas mãos dos espartanos, voltou a ser mandado embora de Atenas. Morreu no exílio, ao que parece surpreendido por assassinos espartanos na casa da amante, correndo ao encontro deles com uma adaga em cada mão e abatido por uma chuva de flechas. Plutarco afirma que o assassinato tinha sido arranjado por outro dos antigos discípulos de Sócrates e ex-amigo de Alcibíades, Critias. O jornalista americano I. F. Stone disse, com razão, que a história foi feita sob encomenda para esse leitor de Plutarco e amante
de um grande enredo, William Shakespeare.29 É a peça que Shakespeare deveria ter escrito, mas por alguma razão nunca escreveu, e isso nos lembra como o mundo grego antigo era pequeno. Alcibíades e Critias sem dúvida eram homens perigosos. Depois da derrota de Siracusa, a democracia ateniense fora brevemente posta de lado pelos chamados Quatrocentos, um grupo de aristocratas que, em 411 a.C., derrubou o governo e assumiu o poder, ato que produziu muitas mortes e um clima de medo. Supunha-se que Alcibíades tivesse participado, mas que o golpe fracassou quando os golpistas se desentenderam. Atenienses de classe média e mais pobres juntaram-se pela causa comum da democracia. Então, em 404 a.C., Atenas enfim foi derrotada por Esparta, e a democracia foi derrubada de novo, dessa vez sob o regime dos Trinta Tiranos, rica oligarquia encabeçada por Critias que suspendeu o direito ao voto ou a julgamento com júri de todos, exceto uma minúscula minoria de aristocratas. Foi um episódio muito mais sangrento. Eles governaram com um exército espartano, colaboradores ao estilo de Vichy, 30 usando gangues de criminosos armados de chicote para manter a ordem, exilando e executando líderes populares. Sócrates ficou em Atenas sob o governo dos tiranos, embora muitos outros cidadãos eminentes tenham escapado para um exílio relativamente confortável. Ele se desculpou depois, dizendo que recebera ordens dos Trinta de prender um homem para execução, mas a verdade é que fugiu da incumbência e deixou o cargo para outros — o que não é bem um ato digno de um contestador heroico. Mais uma vez, a hostilidade de classe média triunfou, os Trinta foram derrubados, e a democracia retornou. Porém, pela época do julgamento de Sócrates, apenas quatro anos depois, o regime ateniense ainda devia parecer vacilante, e Sócrates não era um dos seus amigos. Sua morte foi uma tragédia, não porque ele tivesse as respostas para os enigmas filosóficos do mundo antigo, mas porque mostrou que, mesmo nessa sociedade relativamente aberta, as maiores mentes nem sempre podiam se expressar com liberdade ou ir até onde seus próprios pensamentos as levassem. As maiores dificuldades enfrentadas pelas pretensas democracias e sociedades abertas — e Atenas estava mais, de fato, para as últimas do que para as primeiras — não têm relação com as minúcias dos sistemas de votação, ou sequer com o equilíbrio correto de poderes, apesar de estas serem conquistas difíceis. Eles têm a ver com como lidar com críticos que pareçam genuinamente ameaçadores, como Sócrates, embora já fosse velho, parecia em 399 a.C. Seria este o problema dos revolucionários franceses do Iluminismo, dos Estados Unidos durante a era McCarthy e continua a ser o das democracias atuais que lutam contra pregadores islâmicos do ódio. Pordequanto tempo conseguimos respeitar nossos princípios de liberdade de expressão e pensamento, antes cedermos ao medo? Como filósofo, Sócrates foi um dissolvente de certezas, um cético e um escarnecedor. Fez o mínimo de serviço possível na polis ateniense, foi o cidadão mais inativo que poderia ser. Combatera como soldado, mas preferiu não usar sua imensa capacidade de argumentação política nas grandes assembleias; preferia a pregação privada. Seus críticos o classificavam como “sofista”, quer dizer, um professor cínico da arte de argumentar — um provedor de lógica para todas as ocasiões. Era um julgamento injusto. Sua dúvida e sua autoindagação radicais jamais teriam produzido um manual sobre como viver bem, menos ainda uma constituição, mas ele continua a ser um contribuinte essencial para o amadurecimento da mente humana. Aprender a questionar é mais importante até do que aprender a acreditar. A fluidez de Sócrates é revelada pelos diferentes caminhos seguidos por seus adeptos e pelos adeptos de seus adeptos — a sombriamente autoritária república de Platão está a mundos de distância da defesa sofisticada de Aristóteles da cidade-Estado. Como na China, onde os seguidores e detratores de Kongzi discutiriam por séculos, a morte de Sócrates iniciou uma discussão que jamais teve fim.
Alexandre , o... Mediano Passamos muito tempo com gregos, chineses, indianos, hebreus e persas, observando como, ao longo de centenas de anos, mudanças sociais e ideias que duraram até a nossa época foram provocadas e aceleradas pela guerra. Mudanças técnicas também aconteciam, com a difusão de uma metalurgia sofisticada, de carros de combate, da escrita e de navios capazes de fazer longas viagens marítimas, embora nesse caso o ritmo das mudanças fosse mais suave. Houve muitos outros povos para os quais esses séculos foram importantes. A vanguarda da humanidade ainda avançava pelas Américas em direção sul, abrindo clareiras e começando a lavrar a terra; as primeiras civilizações costeiras americanas datam dessa época. No Pacífico, navegantes descobriam e colonizavam as últimas ilhas desabitadas, uma epopeia de coragem e de feitos de navegação que ninguém registrou. Na Europa, os celtas — que voltam a aparecer na próxima seção — tiravam do caminho os colonos que os haviam precedido. No Japão, Birmânia, Tailândia e Coreia estabeleciam-se as primeiras dinastias. Sobre outras partes do mundo, incluindo a Rússia e a África, sabemos muito pouco além dos prováveis movimentos e assentamentos de tribos nômades. Todas essas histórias são interessantes e muito estudadas, mas menos importantes do que o desenvolvimento dos quatro eixos essenciais de progresso da humanidade, localizados nas planícies da China, no norte da Índia, na Pérsia e no Oriente Próximo, e em volta do Mediterrâneo. O difícil nesse caso é queessas a guerra, nessa fasehaviam ainda sido maisdestrutivas do que o comércio, foi as claramente agente de Contudo, guerras locais (como todas guerras), um resultando no mudanças. colapso de culturas e cidades que, do contrário, poderiam muito bem ter florescido. Precisamos voltar uma última vez ao mundo grego, pois se há um homem que personifica a trágica ambiguidade dessas mensagens, esse homem é Alexandre III, da Macedônia, mais conhecido como Alexandre, o Grande. Foi sob o comando desse homem que os gregos romperam as fronteiras de seu arquipélago e se lançaram para o leste e para o sul através da Ásia Central, numa fúria guerreira. Alexandre, embora viesse do mais rude estado setentrional da Macedônia, era produto da idade de ouro da Grécia. Treinado na forma de combate dos hoplitas, carregava consigo um exemplar dos poemas de Homero, usando-os, segundo consta, como travesseiro. Foi educado pelo grande Aristóteles, seguidor da tradição socrática e também macedônio. O pai de Alexandre, Felipe, contratara o filósofo para instruir o príncipe e seus companheiros dos treze aos dezesseis anos. Sua escola, um refúgio verdejante nas montanhas, foi redescoberto. Ali, Alexandre aprendeu sobre os persas, incluindo Ciro — as informações coletadas por Heródoto —, além de uma ampla variedade de assuntos, incluindo história natural, botânica, geografia e matemática. Escritos posteriores de Aristóteles sobre educação dão a entender que Alexandre talvez não tenha sido o melhor dos alunos; ou talvez Aristóteles apenas quisesse dizer que adolescentes são teimosos e não sabem ouvir. Desde o início, Alexandre sonhava em unir Ocidente e Oriente, juntando os guerreiros pensadores da Grécia com a despreocupação, a riqueza e os costumes da Ásia. Porém, para os verdadeiros admiradores da idade de ouro grega, Alexandre seria um mensageiro fatal. A mensagem grega para o mundo tinha sido a de que a cidade era onde a humanidade se expressava melhor. umasob rude igualdade política entre os cidadãos queproduzir falavamumlivremente e ouviam atenção, Ali, vivendo o regime de leis claras, consensuais, podia modo de vida melhorcom — mais artístico, filosófico, até mesmo protocientífico. O direito, um sistema estabelecido e codificado de equidade, permitia que as pessoas vivessem bem em grupos maiores do que a família ou a tribo. Dessa
maneira, as cidades-Estado gregas orgulhavam-se de suas leis e reverenciavam seus antigos legisladores. A filosofia grega dedica muita atenção ao problema da lei. As cidades gregas tinham sido lugares onde, fora os escravos, as diferenças entre ricos e pobres não eram vastas a ponto de destruírem qualquer sentimento de comunidade. Essas cidades-Estado também demonstraram o poder da competição. Leis, constituições, sistemas políticos, habilidades artesanais, estilos de combate — tudo melhorava quando era constantemente testado contra outro. A competição grega levantou perguntas e ofereceu respostas que ainda reverberam pelo mundo. É possível ser uma verdadeira república e um império ao mesmo tempo? Não. Uma democracia pode sobreviver a grandes disparidades de riqueza? Não. O êxito produz a decadência? Sim. Mas, então, depois dos horrores da guerra do Peloponeso, esse mundo vigorosamente competitivo desmoronou. Democracias tornaram-se impérios. Atenas, depois Esparta, depois Tebas, dominaram cidades-Estado menores e umas às outras. Os exércitos de cidadãos hoplitas, minados pela desconfiança e pela derrota, começaram a dar lugar a forças de aluguel, os mercenários. Como diz um historiador: “Cidadãos pobres, marginalizados, homens sem terra, refugiados, estrangeiros e escravos tornaram-se mais numerosos. [...] Cidades isoladas e separadas, onde a voz dos cidadãos talvez ainda fosse ouvida, tinham perdido o controle do próprio destino.”31 E, quando finalmente as cidades-Estado mais importantes foram conquistadas pelos macedônios, em 338 a.C., a idade da cidade-Estado chegou ao fim. Os macedônios levaram o culto do líder, o domínio dos reis sobre os povos subjugados, para a maior parte do mundo grego — e Alexandre, apesar de todo o seu amor por Homero, não passava de um tirano glamoroso. A história oferece muitos exemplos de povos aparentemente marginais que de repente irrompem de suas fronteiras para sobrepujar e dominar as civilizações vizinhas mais ricas. Os persas pareciam ter surgido quase do nada para vencer a grande cultura guerreira da Assíria. Na China, o estado fronteiriço de Ch’in logo daria um salto para derrubar seus rivais mais ricos e mansos. A Macedônia também era um território fronteiriço do mundo grego, além do qual só havia bárbaros. Os macedônios falavam grego, embora soasse um pouco estranho. Tendo de lidar com florestas e pântanos e com um clima severo — nevava em abundância e podia fazer muito frio mesmo na primavera — eram tudo, menos decadentes. Era um povo tribal, que não vivia em cidades. Difíceis de governar e leais a seus nobres, fazia pouco tempo que os macedônios tinham passado a viver sob pleno controle de seus reis, baseados perto da costa. Esses reis, grandes caçadores de ursos e leões, tinham importado um pouco da cultura da idade de ouro grega, incluindo os palácios vistosos. Sua nova capital, Pella, dispunha de uma imensa área central aberta, ou Ágora, onde se fabricavam peças de cerâmica, metal, vidro e estátuas, onde se vendia excelente vinho e se expunham artigos do Mediterrâneo. Os palácios eram ricamente decorados com afrescos brilhantes e mosaicos trabalhados; suas joias de ouro eram delicadas e encantadoras. Havia indícios de um complexo de inferioridade: eles importavam muito dos estados mais desenvolvidos do sul. Mais práticos, desenvolveram e aperfeiçoaram o método grego de combater com falanges para suplementar sua cavalaria real. Porém, os gregos meridionais não os levavam muito a sério. A Macedônia era o lugar para onde se sugeriu que Sócrates fugisse a fim de escapar à pena de morte. Curiosamente, ele tinha zombado da ideia, considerando-a absurda. O primeiro grande rei da Macedônia foi Felipe II, pai de Alexandre, que se beneficiou das guerras entre as cidades-Estado gregas para construir uma poderosa posição militar. Conquistara a Ilíria e a Trácia, seus vizinhos e rivais, numa série de campanhas, comandando os exércitos pessoalmente e perdendo um olho e muito sangue no processo. Sua cavalaria lutava numa formação em V, sem estribos, e a infantaria usava lanças longuíssimas, algumas com quase seis metros de comprimento, criando a aparência e o efeito de um ouriço gigante enfurecido em alta velocidade. Subornando, lutando e
enganando, Felipe pôs as cidades-Estado (incluindo Atenas), já desarranjadas, sob seu controle. Foi uma enorme conquista. Só Esparta resistiu. Felipe tinha advertido os espartanos de que se conseguisse levar seus exércitos até o território deles destruiria suas cidades e mataria todo mundo. A resposta deles, magnífica, foi uma simples palavra: “Se.” Em seguida, ele planejava invadir a Ásia. Porém, quando se preparava para a invasão, as circunstâncias domésticas de Felipe pioraram. Ele se casara com várias mulheres e, em 336 a.C., fez uma coisa que provocou a mais velha das esposas de quem se divorciara. Não sabemos bem qual foi o motivo da briga, embora Felipe tenha arranjado uma mulher mais jovem, porém a mais velha não tolerava brincadeiras. Tratava-se de Olímpia, princesa lídia e mãe de Alexandre. Também cultuava o deus Dioniso e tinha fama de dormir com cobras em sua cama, embora muito provavelmente isso fosse uma referência aos ritos dionisíacos que envolviam o manuseio de cobras. Mais tarde, sugeriu-se que ela na verdade concebera Alexandre quando se deitara com o rei persa — que a mandou de volta para casa porque tinha mau hálito. Qualquer que fosse a razão, Felipe era hostil a Olímpia e, para isolá-la, decidiu casar a própria filha (de outra mulher) com o irmão mais velho de Olímpia, o rei da Lídia. Isso impediria que Alexandre o sucedesse, de acordo com as regras de sucessão dinástica. Mas quase nunca é boa ideia irritar uma esposa, ou ex-esposa, grega. Enquanto preparava o casamento da filha, Felipe foi assassinado por um guarda-costas. Muita gente acredita que Olímpia estava por trás do assassinato, vingando-se do marido e ajudando a garantir que o filho o sucedesse.32 Depois de uma sangrenta briga de família, Alexandre venceu, herdando um império magnífico e uma rixa com o império persa, já atormentado por seus próprios problemas dinásticos. Ele só tinha vinte anos quando subiu ao trono, um jovem de cabelos longos, rosto barbeado e olhar hipnótico, mas, ao que parece, de baixa estatura. Vinha ajudando o pai a governar e participava de batalhas desde que tinha dezesseis anos. Com treze, ganhou de presente seu famoso cavalo negro, Bucéfalo, depois de domar o garanhão, que parecia indomável. Quando adolescente, apaixonou-se por seu amante, Heféstion, que, como Bucéfalo, permaneceria ao lado dele durante quase toda a sua breve vida. O entourage do pai era convenientemente misto. Com a Grécia aos pés de Felipe, a corte macedônia atraía grandes escritores e artistas, incluindo o teatrólogo Eurípides e o pintor Apeles, além de músicos e filósofos. Porém Alexandre também cresceu junto com os filhos da mais desbastada nobreza macedônia, que viviam na corte do pai como pajens e reféns. Sua obsessão pelo Oriente começou nessa época, entre exilados persas e histórias de viagens. Heródoto lhe ensinou, entre outras coisas, os interessantes hábitos dos medas, persas e egípcios. Homero ensinou-lhe o culto do combate isolado e da busca da glória e achava, como o poeta, que os troianos, aqueles asiáticos astutos, eram admiráveis à sua maneira. Como já foi dito, Alexandre teve como tutor o próprio Aristóteles, que foi bem pago para ensinar ao príncipe filosofia natural, política e governo. Tudo isso resultou na mais admirável educação que qualquer príncipe de que temos notícia no mundo antigo recebeu — foram colocados à sua frente a inspiração marcial de Homero, o duro mundo da Macedônia, o melhor do pensamento e da curiosidade dos gregos e uma abertura para a Ásia. Isso despertou em Alexandre o desejo de lançar-se de um mundo para o outro, tomando aqueles territórios em suas mãos, num poderoso esforço para uni-los. O exército de seu pai vivia da terra, evitava qualquer espécie de luxo, era capaz de viajar cinquenta quilômetros por dia e contava com o apoio de aparelhos de cerco, arqueiros e lançadores de dardo. Esses homens é que avançariam em grande velocidade através da Ásia até a Índia, alguns duros como velhos falcões, combatendo já com mais de sessenta anos. As conquistas de Alexandre nos oferecem uma das epopeias mais espantosas do mundo antigo. Depois de sufocar rebeliões locais na Grécia — a outrora poderosa Atenas nem sequer tentou lutar, mas imediatamente fez um apelo formal pela paz —, ele
lançou suas forças em guerra contra o último rei dos reis persas, Dario III, que, de início, ignorou a invasão daquele menino insolente. Obtendo suas primeiras vitórias no que hoje é a Turquia, perto de Troia, Alexandre viu muitas cidades passarem para o seu lado; e, copiando o velho hábito persa, deixou que elas de fato governassem a si mesmas, desde que lhe pagassem tributo. Em 333 a.C., derrotou um exército persa comandando pelo próprio Dario, que fugiu, deixando tanto a coroa como a mulher no campo de batalha. As grandes cidades comerciais de Tiro e Acre foram sitiadas em seguida, antes de os egípcios receberem Alexandre como libertador, fazerem dele faraó e o designar como encarnação dos deuses Ra e Osíris. Logo disparou para a Mesopotâmia, onde obteve sua maior vitória, na batalha de Gaugamela, destroçando o exército muito maior de Dario e perseguindo o imperador persa, que acabou assassinado pelos próprios soldados. Alexandre declarou-se rei dos reis e governante da Pérsia. Capturou a Babilônia e, depois de um raro revés numa emboscada persa, tomou a grande cidade de Persépolis, que saiu da luta severamente incendiada. Cleitus, um general que salvara a vida de Alexandre numa batalha anterior, decepando o braço de um persa que ia matar o rei, em 328 a.C., se meteu numa disputa de bêbado com Alexandre durante uma conferência de generais em Samarcanda. (Os macedônios bebiam vinho sem diluir, todos os participantes da conferência estavam bêbados e provavelmente frustrados com a lentidão da campanha.) Cleitus disse a Alexandre, cara a cara, que seu pai, Felipe, tinha sido um rei melhor e, na briga que se seguiu, Alexandre, enfurecido, matou-o com uma lança. Consta que Alexandre ficou consternado. Mais tarde, escritores pintariam Cleitus como o homem que fala a verdade para o poder, um combatente velho e honesto que percebeu quesinais o poder subira à cabeça Alexandre de uma forma absurda. não Comapenas certeza, àquela altura havia claros de que o jovem, quedejamais fora modesto, embriagara-se de vinho sem água, mas de sua espantosa série de vitórias. Declarado senhor do mundo pelos egípcios, passou a afirmar que seu verdadeiro pai tinha sido uma mistura divina do grego Zeus com o egípcio Amon. No entanto, ele tinha um problema: sucesso demais. Os macedônios eram uma pequena minoria das forças combinadas que ele então comandava e uma minúscula minoria dos povos que havia conquistado. Precisava conquistar o respeito de seus súditos asiáticos, ainda que isso significasse ofender sensibilidades gregas. Por isso adotou trajes persas e permitiu o costume de ser recebido com um beijo de obediência, considerado respeitoso pelos persas e medas, mas irremediavelmente decadente pelos gregos. Alexandre passou a achar que era deus, murmuravam eles. Escolheu uma esposa, Roxana, pertencente ao povo sogdiano, iranianos do leste, no que é hoje parte do Afeganistão e do Uzbequistão, casando-se numa grandiosa cerimônia. Talvez fosse astúcia política, luxúria ou até mesmo amor. Alexandre sem dúvida tentou misturar os gregos macedônios com os asiáticos, como um verdadeiro imperador do mundo. Ordenou que trinta mil meninos asiáticos fossem treinados no estilo de combate dos gregos e deu a seu amante, Heféstion, um título persa e um cargo. De acordo com o historiador greco-romano Arriano, autor da mais completa biografia de Alexandre que chegou até nós, ele também organizou um notável casamento em massa entre gregos e persas na velha capital Susa. Ele mesmo casou-se também com a filha mais velha de Dario e deu a irmã dela para Heféstion, a fim de que os filhos de ambos fossem primos; a outros oitenta exímios “companheiros” macedônios, deu esposas da nobreza persa e meda numa cerimônia de grupo que faz pensar nos casamentos múltiplos do tipo que seria tão do agrado da Igreja da Unificação do reverendo Moon. Os casamentos foram celebrados à maneira persa, com cadeiras colocadas numa fila para os noivos. Depois do banquete, as noivas entraram e se sentaram, cada uma perto de seu marido. Os
noivos tomaram-nas pela mão direita e beijaram-nas. [...] Parece ter sido a coisa mais popular que Alexandre fez. [...] Cada homem pegou sua noiva e saiu com ela; e Alexandre concedeu dotes a todos, sem exceção.33 Ele também mandou registrar os nomes de outros dez mil macedônios que haviam se casado com mulheres asiáticas. Foi uma experiência de miscigenação cultural espantosa — como se a rainha Vitória tivesse ordenado a seus soldados ingleses, irlandeses e escoceses que arranjassem noivas hindus e muçulmanas, ou se o general Guster, em vez de combater em Big Horn, tivesse tentado acasalar a cavalaria dos Estados Unidos com índias sioux. Infelizmente, ao que parece, poucos casamentos duraram muito, apesar de os sucessores de Alexandre, depois da fragmentação do império, terem fixado raízes em partes da Ásia, permitindo com isso que uma nova forma de helenismo se espalhasse para além do Mediterrâneo. Novas batalhas vieram, enquanto Alexandre conduzia seus exércitos para o que é hoje o Paquistão e a Índia, onde lutaram contra seus primeiros elefantes de guerra. O cavalo de Alexandre, Bucéfalo, foi morto a leste do Indo, e o amante, Heféstion, morreu logo depois. Luto, ferimentos e os efeitos das bebedeiras começaram a arruinar Alexandre. Suas tropas, na extremidade do mundo conhecido, não aguentavam mais e rebelaram-se ante a possibilidade de novos avanços contra os exércitos de governantes indianos. Exigiram voltar para casa. Nem mesmo Alexandre pôde resistir. Recuou, retornando para a Babilônia, onde ergueu uma pira funerária para Heféstion. Agora, no comando de uma vasta extensão da superfície do mundo, que ia do Himalaia aos Bálcãs, planejava novas campanhas, até a Arábia, depois ao longo da costa africana, rumo à Itália. Tivesse vivido, poderia até ter extinguido uma cidade obscura, mas indisciplinada e ambiciosa, chamada Roma. Alguns dizem que foi envenenado. É mais provável que tenha contraído uma bactéria, talvez febre tifoide. O fato é que em junho de 323 a.C., com 33 anos, Alexandre morreu no palácio de Nabucodonosor. Sua vida assombrosa é um argumento em defesa da guerra e contra a guerra. Inspirado pela cultura grega e avidamente curioso pelo mundo dos persas e indianos, ele agiu como uma espécie de batedeira cultural gigantesca e sangrenta. O mundo grego passou a exercer imensa influência na Ásia Menor, no Egito e bem adentro da Mesopotâmia. Uma série de novas cidades ao estilo grego foi fundada, muito embora o império de Alexandre tenha tido a duração do bater de asas de um beija-flor. Seus generais dividiram entre eles a maior parte do mundo clássico, e um novo período de cultura grega, helenística, floresceu. Filósofos abriram novas escolas, escultores e pintores encontraram emprego em novos lugares e uma espécie de língua comum começou a se difundir. Porém, os massacres, as deportações em massa e os incêndios pelos quais Alexandre também foi responsável não produziram um sistema político estável ou atraente. Ele tinha espalhado a aparência da Grécia clássica, mas não sua essência. E jamais poderia transmiti-la, porque a essência da Grécia clássica era a mentalidade independente e cívica. Era algo de baixo para cima, não de cima para baixo. A democracia não pode ser imposta com lanças (ou canhões). Alexandre tinha uma visão imperial, abrangendo muitas culturas, mas seu enorme êxito militar apenas conduziu o Mediterrâneo de volta a um mundo de reis e imperadores, tiranos locais e dinastias de bairro. O leitor talvez pense em paralelos posteriores. Alexandre preparou o terreno para os invasores romanos — pelo menos foi o que pensaram os imperadores romanos. Inspirado pelos heróis homéricos, e ele próprio irresistivelmente heroico, mostrou os limites do que os heróis podem alcançar. Alexandre foi o coveiro do grande experimento grego, e não seu defensor.
PARTE TRÊS A ESPADA E A PENA
De 300 a.C. a aproximadamente 600 d.C.: Impérios clássicos na China, na Índia e na Europa e seus confrontos com novas religiões
Na época do nascimento de Jesus, cerca de metade dos seres humanos do planeta viviam sob o domínio de dois grandes impérios. Ainda que muitos mal se dessem conta — pois camponeses e agricultores longe das grandes cidades raramente tinham notícias do mundo exterior e, se tinham, eram deturpadas — aquilo era novidade na história mundial e não voltaria a acontecer. Roma e a dinastia Han emergiram mais ou menos ao mesmo tempo e governavam mais ou menos o mesmo número de pessoas — 45 milhões, no caso de Roma, no auge do império, e 57,6 milhões para Han, de acordo com um recenseamento tributário. Ambos cobriam mais ou menos a mesma extensão territorial, cerca de quatro milhões de quilômetros quadrados, embora a base de um deles ficasse nas margens de um mar interior, e a do outro, em vastas planícies cortadas por rios. Seus exércitos, marchando em formações disciplinadas, com armaduras e armas uniformes, bigas e cavalaria, também pareciam semelhantes. Os romanos reverenciavam deuses domésticos e os ancestrais; os chineses também. Mas ambas as culturas eram práticas e realistas. Cada qual se via como mais séria, disciplinada e civilizada do que qualquer possível rival. Os imperadores romanos diziam governar orbis terrarum , “o mundo inteiro”. Seus rivais chineses governavam “tudo debaixo do céu”. Imperadores romanos reivindicavam a condição de divindade, posando como deuses que só prestavam contas a Júpiter. Imperadores chineses reivindicavam um status semidivino semelhante. Os romanos construíram muralhas impressionantes para repelir os bárbaros, e os chineses também. Os romanos tinham estradas retas como flechas, e os chineses, longos canais retilíneos. Seus impérios eram até divididos mais ou menos no mesmo número de unidades administrativas. Suas tropas eram estimuladas com benefícios muito práticos — os chineses ganhavam dinheiro e status extra para cada cabeça de inimigo decepada que apresentassem depois da batalha, e os romanos valorosos podiam receber terras em Roma. O Império Romano tornou-se possível graças ao fato de que um poder ascendente na beira do mundo mediterrâneo derrotou seus briguentos rivais; a hegemonia de Han baseava-se na resolução final de uma guerra entre sete estados, imposta por um estado marginal. Sabiam pouco um sobre o outro, chineses e romanos. Estavam separados por mais de sete mil quilômetros de desertos escaldantes e cadeias de 1
montanhas. A rota marítima era 3.200 quilômetros mais longa. Ainda assim, esses impérios quase tocaram nos dedos um do outro. Parece ter havido uma noção chinesa confusa sobre uma China alternativa, possivelmente mítica, em algum lugar do extremo ocidente, enquanto a palavra romana Seres talvez se refira aos chineses. Em 97 a.C., um general chinês, Ban Chao, tentou mandar um embaixador a Roma para sugerir um ataque conjunto em pinça contra os partos, que com sua brilhante cavalaria representavam uma fonte de dores de cabeça para os dois impérios. O embaixador jamais conseguiu chegar à presença do imperador Trajano. Era longe demais. Ele desistiu e voltou. Assim, um dos grandes “o que teria acontecido se” da 2 história perdeu-se em alguma parada poeirenta no meio do caminho a leste do Egito. O embaixador Gan Ying, porém, ouviu rumores sobre os romanos, informando, ao voltar, que eles tinham mais de quatrocentas muradas e uma capital perto que, da foz umderio, que eram “altos e honestos” e que escolhiam os cidades reis entre os homens mais valorosos emdecaso calamidade, aceitariam rebaixamento de posto sem ficar com raiva.3 Gan Ying disse que o “rei” romano tinha 36 líderes com os quais discutia os acontecimentos do dia e que recebia petições da gente comum. Isso era verdade. Aqui se transmite
uma vaga impressão sobre o Senado e fica claro que a noção de política, envolvendo ganhadores e perdedores, era ao mesmo tempo desconhecida e interessante para os chineses. E não era só isso que tornava os romanos fascinantes. Gan Yin informou, com particular animação, que eles eram incríveis mágicos, capazes de produzir fogo com a boca e fazer malabarismo com doze bolas ao mesmo tempo. Setenta anos depois, de acordo com registros chineses, uma delegação romana chegou pelo mar ao Vietnã, então parte do império chinês, possivelmente enviada pelo grande imperador-filósofo Marco Aurélio. A delegação foi despachada; os únicos vínculos continuaram a ser distantes relações de comércio. Mais ou menos na época de Cristo, as mulheres romanas usavam vestidos de seda escandalosamente transparentes, o que fazia muitos moralistas balançarem a cabeça em sinal de desaprovação. A seda vinha da China, através de longas viagens marítimas que iam do Vietnã até o atual Sri Lanka e dali para o Egito. Moedas e objetos de cristal romanos foram encontrados na China. Existe até mesmo uma vaga possibilidade de que legionários romanos e soldados da dinastia Han tenham lutado uns contra os outros no Quirguistão — os romanos em formação “escama de peixe” —, depois de terem sido capturados pelos partos, em 54 a.C. Os impérios tiveram mais ou menos a mesma duração. Os romanos, que haviam começado como citadinos sem importância na Itália central, cresceram em parte por terem atraído migrantes, mas também graças a suas campanhas militares espantosamente bem-sucedidas e muito violentas. Sua hegemonia começou com a queda dos reinos gregos estabelecidos depois da carreira de Alexandre e com a destruição de sua rival norte-africana, Cartago, em 149-146 a.C. Mais ou menos setenta anos depois, o primeiro China tinha unido estados romano dividiria dois impérios:imperador o ocidental,daque se dissolveu apósos400 d.C., em e o guerra. oriental O (oumundo Bizantino), quesedurou até aem tomada de Constantinopla pelos turcos otomanos, em 1453. O império Han tinha desaparecido por volta de 220, embora a China unificada só tenha se desintegrado em 317. (Mesmo então, pode-se comparar a metade meridional, menos maltratada por invasões e mais culturalmente conservadora, com a longa sobrevivência do Império Romano Oriental.) Cada um desses impérios durou, portanto, mais ou menos meio milênio, o que não é tanto tempo assim em comparação com as civilizações anteriores da Mesopotâmia e do Egito, porém, de qualquer maneira, é impressionante pelos modernos padrões democráticos. Uma pergunta que historiadores repetem com frequência cada vez maior, diante da ascensão da China de hoje, é se nosso mundo, com uma só China unida, mas com uma Europa fragmentada, de alguma forma deriva das experiências fundadoras de Roma e de Han. Afinal, a China em geral permaneceu politicamente unida mais ou menos pela metade do tempo desde o surgimento de seu primeiro imperador, enquanto o Mediterrâneo e o ocidente europeu não voltaram a se unir depois da queda de Roma. Por quê? Geografia, dizem alguns. A China está dividida por vales fluviais e montanhas, mas também é cercada e isolada do resto do mundo por desertos e mares. Alcançar a unificação política não foi fácil. Calculase que entre 656 e 221 a.C. houve nada menos que 256 guerras isoladas na China. Contudo, uma vez superada essa fase, havia uma forte lógica topográfica na área, com sua longa costa em forma de barriga. Logo que as estradas, os canais e as muralhas traçaram as linhas de comunicação e defesa, a tendência era ficar onde estavam. Invasões continuariam a testar o país, porém não conseguiram apagar o mapa cultural da China Unida. O mover-se mundo mediterrâneo europeu éclássico, muito diferente. verdade, o “marnaturais no meiopara da terra” tornou mais fácil pelo Impérioe Romano mas haviaÉmenos barreiras deter invasores, com a Europa dividida por numerosos rios, que correm em todas as direções, e por cordilheiras.
Geograficamente, era uma península desajeitada, enrugada, rachada e, portanto, menos propensa a manter uma união política. Essa explicação a princípio parece boa, mas soa um pouco boa demais. Durante séculos, a China esteve dividida. Os povos do norte e do sul levavam vidas muito diferentes, falavam línguas diferentes e por vezes eram governados por impérios diferentes. A China por pouco não se lançou ao mundo com grandes frotas oceânicas. Só não o fez por decisão política. Enquanto isso, no Ocidente, por um momento pareceu que o Império Romano Oriental seria capaz de reunificar o Mediterrâneo. Bem mais tarde, governantes como o Habsburgo Carlos V e o aventureiro corso Napoleão Bonaparte quase conseguiram unir a Europa, apesar desses rios e cordilheiras. Que outras forças são relevantes? O papel desempenhado por estrangeiros sem dúvida foi importante. Os povos nômades e pastores da Ásia central, armados e militantes, produziram levas de migração forçada que inundaram a Europa. Muitos se estabeleceram por lá antes de serem impelidos a se mudar novamente por outra leva. Na China, os povos das estepes foram contidos com mais eficácia até que, com os mongóis, sobrepujaram o império. Mas agiram de modo tão rápido e abrangente que puderam substituí-lo por um governo imperial próprio e, portanto, manter sua unidade. Embora tanto o mundo chinês como o europeu viessem a ser balançados pela chegada de religiões desafiadoras, o efeito do monoteísmo — cristianismo e islamismo — no Ocidente foi mais dramático do que o impacto do budismo na China, onde os imperadores conseguiram reprimi-lo. Dessa forma houve uma tensão, um desespero, nas guerras de religião da Europa que a China não conheceu. O monoteísmo dividiria inúmeras vezes a humanidade ocidental em crentes e forasteiros, embora seguindo padrões diferentes. parecido ocorreudonaqueChina onde,Havia comoainda veremos, a lei eculturais, o pensamento conservadorNada tiveram mais impacto a religião. as diferenças como a social maior dificuldade para aprender a escrita chinesa, o que manteve uma elite burocrática autônoma e poderosa de maneira sem par no Ocidente. São assuntos que voltaremos a discutir. Porém, a história, tanto no cenário chinês quanto no romano, é sangrenta e brutal da mesma forma, repleta de casos de governantes cínicos, de terrorismo de estado e de perseguição de dissidentes. Pensadores de uma humanidade cativante aparecem nos dois mundos, além de alguns edifícios gloriosamente belos (embora a dinastia Han fosse construída quase toda de madeira e taipa, materiais que, como já foi dito, não sobrevivem à passagem do tempo). Contudo, também eram estruturas de poder construídas pela força e pelo medo, capazes de expressar sua beleza e sua filosofia apenas às custas do suor da grande maioria, os trabalhadores do campo. As conquistas imperiais romanas baseavam-se na incorporação de elites locais e da reputação das legiões; as chinesas baseavam-se mais na força bruta. Mas não fazia muita diferença se as elites instruídas estudavam as máximas de Confúcio ou as de Cristo, se prostravam diante de um imperador ou liam as proclamações de um senado: exércitos sob um controle central massacravam povos rebeldes da mesma forma e proclamavam sua autoridade por meio de castigos públicos e deliberadamente repulsivos. Se o poder tinha razão, o poder centralizado e mobilizado tinha mais ainda. Ashoka Antes mesmo que Roma ou a dinastia Han atingissem o apogeu, houve outro grande império, com uma história bem diferente. O terceiro império, que abrangia talvez um quarto da população mundial, foi o da Índia máuria. Cobria quase toda a Índia moderna, exceto o sul distante, mais o que é agora o Paquistão e boa parte do Afeganistão. Sua população no século II a.C. é estimada em cinquenta milhões, e o império
começou em 322, quando os romanos ainda lutavam para se impor na Itália central e os chineses padeciam uma guerra cruel e aparentemente interminável entre estados rivais. Mas esse terceiro império tinha desmoronado de novo por volta de 185 a.C., apesar do brilhantismo de seu maior governante, Ashoka. Depois dos máurias, que enfrentaram e derrotaram o mundo clássico, a Índia nunca mais conseguiu alcançar e dominar qualquer outra região do mundo. Boa parte da forma política e religiosa do mundo moderno foi estabelecida dois mil anos atrás, por figuras históricas cujos nomes conhecemos. No entanto, os governantes máurias estão na margem da história visível. Ashoka só foi devidamente identificado como figura história e não mítica por um filólogo amador do século XVIII chamado James Prinsep, cujo trabalho diário consistia em dirigir a casa da moeda britânica em Calcutá. O império de Ashoka é menos conhecidoUma e documentado do quegrego, os impérios dos romanos e dos chineses e sempre será. Há três fontes principais. é um historiador Megástenes, que trabalhou para Seleuco Nicator, general de Alexandre, o Grande, que abocanhou seu próprio mini-império, centrado na Pérsia, hoje o Paquistão. É provável que Megástenes tenha visitado a grande capital máuria de Pataliputra, hoje soterrada em algum lugar debaixo da moderna Patna, sem dúvida uma das metrópoles mais caóticas e poluídas do mundo. Infelizmente, seu livro desapareceu há muito tempo e só é conhecido pelo que historiadores tiraram dele posteriormente. A segunda fonte é um manual indiano sobre a arte de governar, que pode ter sido escrito, pelo menos em parte, por um dos conselheiros da corte máuria. E a terceira fonte são as palavras do próprio Ashoka, gravadas em pedras e colunas espalhadas pela Índia. O avô de Ashoka, Chandragupta, é, supõe-se, o mesmo governante indiano identificado por Megástenes como “Sandrokottos”, que tivera um encontro com Alexandre, o Grande. Chandragupta rebelou-se contra a dinastia anterior do norte da Índia, a Nanda. Com a ajuda de um conselheiro aparentemente capcioso e implacável, ele os derrotou e fundou sua própria dinastia, em 321 a.C. Adotara como estratégia desgastar o inimigo nas áreas remotas antes de partir para o centro, numa longa guerra de atrito, enquanto o antigo império ia encolhendo. Diz a lenda que ele passou a agir assim depois de ouvir uma mulher aconselhar o filho a não comer a comida do meio do prato, porque o centro tende a ser mais quente do que as bordas. Chandragupta voltou-se então contra os gregos, que até recentemente eram imbatíveis, e mais o menos em 303 a.C. derrotou Seleuco. É evidente que não foi um massacre, pois, em troca dos novos territórios que ganhou, Chandragupta deu a Seleuco quinhentos dos milhares de elefantes de guerra que possuía.4 O exército de Alexandre fora o primeiro esquadrão ocidental a se deparar com a espantosa visão dos elefantes de guerra indianos, e o próprio Alexandre levara alguns de volta para Bagdá como guarda pessoal. Hoje em dia, um presente como o dado a Seleuco equivaleria, para os gregos da época, a receber vários regimentos de tanques Tiger ou helicópteros de ataque. Os elefantes foram vendidos, emprestados e dados de presente para reis gregos: os reis egípcios, por exemplo, usaram elefantes de guerra indianos contra os judeus durante sua revolta e, mais tarde, os elefantes seriam usados contra o poder ascendente de Roma. Se os textos antigos referentes ao governo merecem crédito, o império de Chandragupta — que se espalhava pela maior parte do subcontinente indiano não era apenas belicoso, mas também altamente intervencionista, burocrático e paranoico. Porém sabemos pouco a respeito do governante descrito como o Júlio César indiano; e menos ainda sobre seu filho, que assumiu quando Chandragupta abdicou, em 297 a.C., e, segundo jejuou até morrer de fome mais num ou atomenos, de piedosa abnegação. Naa.C. verdade, quem nos interessa agora éconsta, seu neto, Ashoka. Ele governou, de 268 a.C. a 233 e era conhecido através de escritos budistas bem antes de uma tradução revolucionária dos misteriosos “éditos” escritos em pedras e colunas espalhadas pela Índia lhe dar voz no mundo moderno. Quem foi ele, de fato, era
menos claro. Mas esses éditos, decodificados em 1837 pelo supervisor da casa da moeda britânica, revelaram uma história surpreendente. Ashoka, que traduzido significa “sem remorso”, começou fazendo jus ao nome. Primeiro houve uma sangrenta batalha sucessória. Ele talvez não tenha realmente matado 99 irmãos rivais, como dizem as escrituras, mas o intervalo entre a morte do pai e sua subida ao trono sugere uma briga feia. Ashoka então se voltou contra uma das poucas partes da Índia que não estavam sob seu controle direto, Kalinga, e, depois de uma terrível batalha, reconquistou-a. De acordo com suas próprias inscrições, cem mil soldados foram mortos na luta e muitas pessoas morreram depois, de ferimentos ou dos efeitos da matança; outras 150 mil foram deportadas. Um César se gabaria do número de mortos; um chefe militar chinês também ou até mesmo, a bem da verdade, Chandragupta. Ashoka, porém, parece ter passado por uma drástica mudança de atitude, incluindo uma conversão para o budismo pleno, talvez incentivado pela mulher. Numa das inscrições, Ashoka disse sentir remorso por essa guerra, “pois, quando um país independente é conquistado, os massacres, mortes e deportações de pessoas [são] extremamente dolorosos. [...] Hoje, se a centésima o a milésima parte das pessoas que foram mortas, morreram ou foram deportadas [...] tivesse de sofrer do mesmo jeito, seria um grande peso na mente do Amado dos Deuses [ou seja, ele próprio]”. Ashoka segui adiante e, em seu 13o édito na pedra, advertiu os próprios descendentes contra novas conquistas, recomendando-lhes que se limitassem a impor “castigos leves”. Se Ashoka tivesse parado por aí, já teria sido um momento notável na história humana, o primeiro e último exemplo de um conquistador arrependido desculpando-se por suas vitórias. É como se Napoleão, depois da batalha de Austerlitz, anunciasse que estava desgostoso com seu comportamento incontrolável que se tornaria quacre. Contudo, Ashoka ainda tentou criar um império baseado na noção budista do darma, que significa algo como virtude, boa conduta e decência. Implica comportar-se de maneira decente com subalternos e parentes, não matar — e não apenas animais humanos, mas qualquer animal — e cultivar tolerância religiosa. Em éditos esculpidos das montanhas geladas do norte às florestas quentes do sul, Ashoka incentivou o vegetarianismo, a proibição de sacrifícios, o respeito por seitas religiosas diferentes e descreveu toda a humanidade como seus filhos. Esses dizeres foram inscritos em várias línguas, incluindo formas de aramaico no noroeste, na periferia do mundo grego, e versões do sânscrito e de dialetos locais, num alfabeto conhecido como brami. Os primeiros éditos foram esculpidos na face de rochas e em pedras soltas, onde viajantes pudessem reunir-se, sentar-se e ouvir alguém ler em voz alta. Mais tarde, em Pataliputra, Ashoka fundo uma espécie de fábrica para produzir imensas colunas, encimadas por leões, a serem despachadas pelo Ganges e outros rios e erguidas por toda a Índia central. Foi o mais perto que um rei primitivo pôde chegar de uma transmissão por alto-falantes de arenito polido. Ashoka, não mais modesto do que a maioria dos imperadores, gaba-se nesses éditos de ter plantado árvores de sombra à margem de estradas, estabelecendo pontos de pousada e abrindo poços. Diz que renega a guerra e a violência. Mais tarde, difunde a palavra mais longe ainda, enviando monges budistas para levarem sua mensagem de paz à Birmânia, ao Sri Lanka, ao Egito e até mesmo à Grécia. Se tudo isso parece bom demais para ser verdade, é porque talvez seja: a Índia tinha tantas religiões rivais e era tão fendida por diferenças de casta e língua que qualquer dinastia que tivesse esperança de durar precisaria de uma ideia unificadora qualquer. É quase certo que Ashoka criou deliberadamente o que governantes modernos chamariam de ideologia. Ainda que sem dúvida se tratasse de uma ideologia branda, a administração de seu império, na prática, deve ter sido bem menos liberal. Ele manteve a pena de morte em dose moderada, e volta e meia seus éditos atacavam os povos da floresta, pelo visto indomados e não muito impressionados com aquele budista liberal. Nem mesmo seu vegetarianismo era
absoluto: ele abria exceção para carnes de veado e pavão, ao que tudo indica, pois as considerava muito saborosas. Acima de tudo, somos obrigados a aceitar sua palavra. Se tudo que soubéssemos sobre Stalin viesse de seus discursos suavemente humanitários, talvez nos lembrássemos dele como um tio sentimental. Mas, tendo em conta que Ashoka de fato se repreende por suas antigas guerras sanguinárias, é provável que fosse mesmo um budista genuíno que tentou, tanto quanto possível, estabelecer um “império de bondade”. Parece plausível porque ele fracassou muito rápido. Consta que em seus últimos dias, Ashoka abri mão de todas as propriedades, findando a vida como orgulhoso proprietário de meia manga. O imenso conjunto de comunidades indianas não permaneceu leal ou unido por muito tempo depois de sua morte. Pouco se sabe de seus sucessores como governantes máurias, exceto que o último deles foi assassinado e o império se desintegrou, dando lugar a meio século de caos. Por fim, seguiu-se uma idade de prata o mesmo de ouro sob a dinastia Gupta, que começou a governar em 320 a.C., sob a qual floresceram o alfabeto sânscrito, a matemática decimal e outros avanços. Os muçulmanos, entrando pelo norte da Índia, começaram a expulsar os budistas. Diante da hostilidade hindu, o credo de Ashoka praticamente desapareceu também da Índia. Apesar disso, ele é alguma coisa a mais do que uma nota de rodapé da história. A Índia moderna, com suas fissuras acentuadas entre diferentes grupos religiosos e étnicos, redescobrindo ano após ano como a tolerância é difícil, adotou Ashoka como herói intelectual. O leão de três cabeças de Ashoka é um dos símbolos mais conhecidos da república, aparecendo, por exemplo, nas cédulas monetárias. E, em 1956, houve um eloquente protesto contra a intolerância religiosa, numa demonstração de que o budismo político Ashoka nãofoiestava morto.figuras dos primórdios da democracia indiana, advogado B. R.deAmbedkar uma de dastodo grandes brilhante da casta dos “intocáveis”. Chegou a ser presidente do comitê que redigiu a nova constituição da república,5 que aboliu o status de intocável e deu direitos especiais de voto a esse grupo social de trabalhadores braçais, sapateiros, faxineiros e especialistas em trabalho sujo. Mas Ambedkar continuo profundamente frustrado e furioso com a incapacidade da Índia de fazer mais por seu povo. Para ele, o que quer que dissesse a letra da lei, o preconceito de casta hindu — o preconceito religioso — ainda era um fato da vida indiana. Por isso, em 1956, pouco antes de morrer, numa cerimônia à qual compareceram multidões, ele se converteu publicamente ao budismo. Um milhão de pessoas assistiram ao se sepultamento, e muitos dos seus adeptos de castas inferiores também se tornaram budistas, contribuindo para um ressurgimento do sistema de crença na Índia atual. Claramente, alguma coisa da mensagem moral das colunas de Ashoka ainda estalava através das ondas de rádio. O primeiro imperador O primeiro imperador da China é um desvio tão radical da bondosa e ingênua figura de Ashoka quanto se possa imaginar. Qin Shi Huang Zheng, que governou mais ou menos na mesma época, também construi colunas no topo dos morros para proclamar suas obras. Mas Zheng não seria lembrado por suas próprias palavras. Sua reputação de paranoico, cruel e impiedoso veio de uma escandalosa história posterior. Ela foi reforçada, há pouco tempo, pela descoberta de parte da espantosa cidade da morte que ele construi para si mesmo, apresentando o mundialmente famoso “exército de terracota”. Se Ashoka buscava a aniquilação de todos os apetites e do egoísmo, Zheng queria ser protegido para sempre por uma máquina burocrática e militar feita de argila e bronze, toda pintada e pronta para repelir demônios. Sua visão era terrena, nascida da conquista e do medo, que faria mais sentido para os romanos, e até
mesmo para os egípcios, do que o recuo budista de Ashoka. O poder de Zheng é mais conhecido na China atual e no mundo inteiro do que Ashoka. Não obstante, assim como a do governante indiano, sua dinastia desapareceu logo e foi substituída com a mesma rapidez pela dinastia Han, que assimilou suas realizações políticas, tirando um pouco da paranoia feroz. Ele com certeza foi um personagem desagradável, contudo, unificou os alfabetos chineses, construiu grandes obras públicas, finalmente encerrou séculos de guerra civil e ampliou a própria ideia de China. Sua mensagem para a humanidade talvez seja avinagrada, mas ficou. Um dos maiores problemas com relação a Zheng é a história escrita à nossa disposição. É de autoria de Sima Qian, já nosso conhecido como o primeiro biógrafo de Confúcio. É uma das grandes figuras literárias da tradição de relato histórico chinês, um Plutarco asiático, cuja própria vida foi marcada pela tragédia. Como os historiadores latinos contemporâneos seus, ele sabia muito bem que ir longe demais na crítica aos governantes poderia resultar em exílio ou morte — ou, em seu caso, castração. Mas, como outros historiadores, Sima Qian parece ter percebido que poderia fazer críticas cifradas a seus próprios governantes atacando os predecessores, sobretudo quando derrotados. Dessa maneira, ele passa adiante as fofocas mais maldosas sobre Zheng. Sua crônica deShi Ji , uma história das dinastias chinesas, nos diz que Zheng era provavelmente filho de um vendedor ambulante, um imigrante do estado de Ch’in chamado Lu Buwei. Esse vendedor tinha uma linda amante que chamou a atenção do príncipe herdeiro. Ele a cedeu. Entretanto, a cortesã já estava grávida, e fez a criança passar por filho do príncipe. O príncipe se tornou rei, e a cortesã, rainha. Um bebê nasceu. A criança era Zheng, portanto, um bastardo e uma fraude. Ainda assim, aos treze anos, ele subiu ao trono do estado deO Ch’in quando o “pai”voltou morreu. — mas agora a essa rainha altura viúva, a história fato apimentada. vendedor Lu Buwei aosLamentável braços da amante, massesetorna cansode dela. Então ele... bem, aqui talvez seja melhor citar diretamente o nosso historiador: “Ele procurou em segredo até encontrar um homem chamado Lao Ai, que tinha um pênis inusitadamente grande, [...] no momento certo, mandou tocar uma música bem sugestiva e instruiu Lao Ai a enfiar o pênis no meio de uma roda de madeira paulownia e dar umas voltas com ela pendurada, para ter certeza de que a informação chegaria aos ouvidos da rainha e despertaria seu interesse.” 6 E foi interessante. Numa tentativa de abafar as fofocas, Lu Buwei primeiro condenou o bem dotado Lao Ai por um crime qualquer cuja pena era castração. No entanto, a operação foi simulada, e, com o cuidado extra de raspar bem a barba para sugerir que se tornara eunuco, Lao Ai pôde levar uma vida privada muito feliz com a rainha, agora imperatriz. Ela lhe deu muitos presentes e dois filhos. Infelizmente para ambos, porém, Zheng, agora cercado por uma mãe de comportamento estranho, um “conselheiro” indigno de confiança — que, segundo rumores, era também seu verdadeiro pai —, um falso eunuco e dois meios-irmãos que eram sucessores em potencial, decidiu que era hora de se impor. Exilo a mãe (embora mais tarde ela tenha voltado) e Lu Buwei, que depois resolveu tomar veneno para não ter de encarar novo desterro, e mandou matar os meios-irmãos. Também ordenou que Lao Ai, o erótico girador de roda, fosse dividido em quatro por bigas atadas a seus membros. Seus partidários foram decapitados ou desterrados — sobretudo decapitados. Se o cineasta Quentin Tarantino resolvesse botar as mãos no Hamlet, de Shakespeare, os efeitos dificilmente teriam sido esguichados de forma mais satisfatória. Contudo, pode ser que nada disso seja verdade, é claro. Temos de aceitar a palavra de Sima Qian, o talvez a palavra dos historiadores anônimos que escreveram mais tarde, acrescentando suas aleivosias. Todos eles trabalhavam para o império Han, que substituiu o Ch’in e não tinha razão alguma para zelar pela reputação de Zheng. Mas pelo menos parece que Sima Qian foi um escritor meticulosamente sério. Desentendeu-se com outro imperador por ter defendido um amigo, um general que perdeu seu exército.
Como castigo por essa contravenção, Sima Qian escolheu a humilhação de ser castrado, para que, vivendo como meio homem, pudesse pelo menos terminar seu livro. Enquanto isso, ao custo de vários parentes e do riso abafado de cronistas, Zheng tomou controle do maior e mais agressivo dos reinos chineses ao completar uma série de conquistas que fariam dele o ponto focal de um império unificado. Os antepassados Ch’in de Zheng já tinham feito a maior parte do serviço. Enganaram o povo de Shu, que vivia na atual Sichuan, além das quase instransponíveis montanhas de Qinling. Diz a história que o primeiro rei Ch’in, Hui, presenteou o rei Shu com lindas vacas de pedra, cujos traseiros eram pintados com nacos de ouro. O crédulo vizinho real tinha pedido que essas maravilhas que defecavam ouro lhe fossem dadas de presente e, em troca, permitiu que o rei Hui construísse uma estrada com pontes e galerias de madeira através das montanhas, para que fossem levadas até Shu. Atrás delas, é claro, ia o exército de Ch’in, que surpreendeu e esmagou os rivais, apossando-se de novo e vasto território. Um a um, os outros estados rivais da velha China foram vencidos e enganados pelas forças de Ch’in, até que no fim do reinado do Primeiro Imperador, avançando bem para o sul, ele concluiu o trabalho de unificar todas as principais regiões. Foram guerras sangrentas, travadas sobretudo com infantaria e balestras, mas provavelmente não tão destrutivas para a agricultura e as cidades como as depredações anteriores dos estados em guerra. O que o “povo de cabelos negros” das planícies chinesas, lutando para produzir suas safras e não ser recrutado por um dos exércitos em trânsito, realmente achava do se Primeiro Imperador, jamais saberemos. * ** Outras áreas do mundo nessa época iam sendo moldadas pela religião, assim como pela ascensão e queda de reis: na China foi diferente. Como já mencionado, havia uma longa tradição de culto dos espíritos ancestrais e de deuses locais. O complicado conjunto de crenças costumeiras conhecido como taoismo podia, em momentos diferentes, ser usado para apoiar ou contestar o poder imperial. O budismo se espalharia pela China a partir da Índia de Ashoka com mosteiros e monges que, também nesse caso, eram tolerados ou apoiados e, noutras épocas, perseguidos. Mas não havia religiões que mexessem com o povo ou abalassem dinastias, do tipo que subverteria o mundo mediterrâneo. Os chineses instruídos tinham a filosofia como grande agente unificador. Na época do Primeiro Imperador, entretanto, a visão humana e conservadora de Kongzi — Confúcio — fora contestada por uma nova escola de pensamento político, conhecida geralmente como Legalismo. Os legalistas punham a necessidade de ordem e submissão em primeiro lugar. Era um credo baseado no medo da anarquia social e destinado a atrair principalmente governantes. A lei, severa, mas imparcial e certa, era o bem social supremo. Os legalistas ensinavam que o Estado deveria organizar o povo, irrigar a terra, padronizar pesos e medidas e permitir a seus servidores e soldados promoções por razões estritamente práticas — quantos inimigos tinham matado, por exemplo. Em troca, o Estado organizava famílias e aldeias em grupos para que espionassem umas às outras. O apavorante arsenal de castigos estatais incluía ser esquartejado, fervido vivo, decapitado e serrado em dois. Para os de mais sorte, poderia ser apenas corte de dedos ou remoção de patelas. Por outro lado, indícios recentes sugerem que a lei pelo menos era aplicada com o maior cuidado e imparcialidade e pode ser que, na prática, não fosse tão cruel como parece.7
Graças à eloquência do sinistro e sábio legalista conhecido como lorde Shang, o estado Ch’in levava essa doutrina ao pé da letra. Situado no extremo noroeste das planícies chinesas, Ch’in já era visto pelos rivais como moderadamente bárbaro, perto demais do fim do mundo conhecido para ser civilizado. O legalismo o tornou ainda mais lúgubre, duro e repressivo. Sua filosofia de guerra agora envolvia a matança em massa dos inimigos sempre que possível e táticas de terror. Ch’in tem sido convincentemente comparado com aquele outro estado militarizado, Esparta, e com ditaduras modernas também. Na época do Primeiro Imperador, lorde Shang já tinha desaparecido havia muito (executado, dá prazer informar, depois de flagrado por seu próprio sistema de espiões), mas sua influência era forte como nunca. Ele teria aprovado com veemência uma das mais notórias ações de Zheng, que, com ajuda de se grande conselheiro, Li Si, ordenou a apreensão e queima da maioria dos livros de bambu da China sobre poesia, história e filosofia. De acordo com Sima Qian, Zheng tinha por objetivo propagar a ignorância: eliminando os registros do passado, a corte destruiria a capacidade de o povo contestar novas leis apelando para a tradição ou a história. Isto faz o ato de Zheng parecer uma tentativa maoista de apagar a memória do tipo “Ano Zero”. Na realidade, como historiadores recentemente demonstraram, muitas obras de história e livros de instruções práticas foram poupados; e era mais ou menos fácil esconder livros de bambu, ainda que as punições incluíssem ser tatuado e enterrado vivo. A tradição chinesa insiste que Zheng sepultou vivos muitos eruditos confucianos. Mao o aplaudiu por isso, mas disse que deveria ter matado mais. É possível que Sima Qian exagerasse para fazer sua profissão parecer ainda mais martirizada e heroica do que já era. Certamente, a paixão chinesa por registros históricos e pela poesia foi interrompida. As guerras de Zheng contra os últimoscontra estadossuarivais foramo seu legado conseguiu final para aproximar-se a China. Ele sobreviveu a um extraordinário atentado vida,não quando assassino levando-lhe mapas do território inimigo e a cabeça decapitada de um general rebelde (o general tinha participado da trama e cortara a própria garganta, para ajudar). Mas, de acordo com Sima Qian, havia uma adaga enrolada no mapa. O assassino e o imperador lutaram, e Zheng venceu. Isso se deu diante dos cortesãos, que, horrorizados, se limitaram a assistir. Não é de surpreender que Zheng tenha ficado ainda mais paranoico, construindo passagens cobertas entre seus palácios, de forma que ninguém soubesse exatamente onde ele estava. Grandiosos projetos de engenharia, incluindo imensos canais e vias navegáveis, tornaram-se cada vez mais importantes para ele. Zheng ordenou, notoriamente, a ampliação e o reparo de muralhas de terra e pedra para repelir os bárbaros — parte do que se tornaria a Grande Muralha da China — e estabelece estradas de terra compactada para ligar as muitas partes do império. A rivalidade anárquica entre os estados com relação a valor de moedas, medidas, comprimento de eixos e alfabetos enfim acabou. Em particular, já se afirmou que sem Zheng a China não teria um sistema único de escrita e, consequentemente, uma identidade cultural coerente. Ele viajou por seus novos domínios, exibindo a si próprio e ao seu exército diante dos súditos do novo império, erguendo colunas triunfais. Esse esforço de engrandecimento pessoal o levou à “punição” de um morro que tinha sido atingido por um raio, derrubando as árvores e pintando-o de vermelho, e também a uma busca infrutífera da imortalidade que envolvia caçar com arco e flecha criaturas marinhas gigantescas e provavelmente míticas. Ele talvez tenha contribuído para a própria morte ao ingerir pílulas de mercúrio que um médico receitara como atalho para a imortalidade. O que, de certa forma, acabaram sendo, Zheng — é conhecido hoje da China imenso monumento fúnebre, com oito mil pois guerreiros o “exército defora terracota” —,sobretudo cavalos, por bigasse e administradores, todos sepultados sob um vasto aterro perto de Xian. Precisamos retornar uma última vez ao nosso historiador, que nos diz que no centro jaz o próprio homem, cercado por uma maquete do mundo
chinês, com rios feitos de mercúrio e uma constelação de estrelas em cima. É possível que seja verdade. De fato, há indícios de quantidades anormais de mercúrio sob um morro vizinho, cuja forma é estranhamente regular e tem o tamanho adequado para o palácio funerário. Talvez, nas próximas décadas, a maior escavação arqueológica da história mundial nos revele o próprio Zheng. Zheng, assim como outros chineses, acreditava num mundo de sombras depois da morte, semelhante a este mundo, para o qual devíamos nos preparar com zelo. Sob dinastias locais anteriores, muitos outros reis e nobres chineses tinham sido sepultados com servos mortos especialmente para essa finalidade e com réplicas de artigos também feitas com esse propósito. As crenças de Zheng não pareceriam nem um pouco estranhas para egípcios, gregos, vikings e outros povos antigos, que acreditavam em despachar corpos mortais bem preparados para a próxima vida. Ideias religiosas envolvendo igualdade humana perante um deus ou um juízo moral que aguardasse os vivos pareceriam absurdas para ele — tão absurdas quanto um exército de argila para nos proteger dos mortos parece para nós. Apesar disso, Zheng também teve outra ideia, mais sutil, sobre imortalidade. Chamava-se a si mesmo de “o Primeiro Imperador”, porque pretendia ser seguido pelo segundo, pelo terceiro, e assim por diante, ao longo de milhares de gerações. Não esperava que sua dinastia Ch’in desmoronasse com a velocidade com que aconteceu, e a contagem parou quase de imediato. Mas a noção de uma sucessão ininterrupta de imperadores empolgou a imaginação dos chineses até as insurreições nacionalista e comunista do século XX; e a ideia manteve a lembrança de Zheng como seu criador para sempre viva, o que em si é uma espécie de vida após a morte. Com um alfabeto comum e uma língua comum, comunicações seguras e a consciência de ser um só povo sob um só governante, os chineses produziriam a mais duradoura e unificada civilizações antigas. O preço pagaram — foiaquelas o fato religiões de não serem expostos à ideia libertadora,das inquietante e desestabilizadora do que monoteísmo pessoais, universais e móveis que destruiriam completamente o único verdadeiro rival que os impérios Ch’in e Han tiveram, bem longe dali, na direção oeste. A ferroada dos macabeus De todos os países a oeste dos chineses, nenhum os intrigaria mais do que o povo de Judá. A última vez que encontramos os israelitas foi depois do exílio babilônico, quando refinavam sua religião incomum. Judá, um pequenino país com centro em Jerusalém e Jericó, ficou espremido entre dois dos estados gregos de Alexandre, o dos Ptolomeus, no Egito, e o dos selêucidas na Síria. Por volta de 200 a.C., Judá tinha caído sob controle dos gregos selêucidas e iniciou-se uma guerra de culturas entre os gregos — com suas tradições de sofisticação, gosto pelo prazer e pela filosofia — e os intensos e introvertidos israelitas, sob o comando de seus sumos sacerdotes. A cultura grega, ou helenística, era, àquela altura, propriedade comum da maior parte do mundo ocidental, oferecendo acesso a um distinto conjunto de histórias, heróis, maneiras de pensar, comer e se comportar. Em cidades de todo o Mediterrâneo oriental, estátuas, pinturas e edifícios — incluindo teatros e ginásios — davam à cultura grega um grande poder de sedução. Pode-se compará-la, sem demérito, ao magnetismo exercido pelos filmes, pela música e pela comida dos Estados Unidos do século XX. Rejeitá-la exigia grande força de vontade. Inevitavelmente, muitos judeus, sobretudo os mais ricos, “helenizaram-se”, competindo em jogos atléticos, vestindo-se como os helenos e conseguindo até mesmo — ao que parece — desfazer a circuncisão. Os reis selêucidas queriam que os sumos sacerdotes de Jerusalém servissem como governadores de suas colônias. Uma condenável série de trapaças, subornos e até mesmo assassinatos degradou o cargo sagrado, com os gregos tentando transformar Judá numa
sociedade grega normal. A partir de 167 a.C., o rei selêucida Antíoco IV baniu muitos ritos judaicos, tornando ilegais a circuncisão, as festas e os sacrifícios judaicos. Pior, Zeus foi conduzido, na forma de estátua, para dentro do próprio Templo. A essa altura, um dos livros do Antigo Testamento que os cristãos protestantes em geral desconhecem, Macabeus, continua a heroica história da resistência dos israelitas aos pretensos modernizadores. Os relatos começam com Alexandre, o Grande, que os israelitas viam corretamente como a fonte srcinal de todas as dificuldades: “E ele impôs seu poderio a países, nações e príncipes, e todos se tornaram seus tributários. Enfim, adoeceu e viu que a morte se aproximava.” Uma longa lista de horrores cometidos por Antíoco é enumerada, incluindo o massacre de mães que circuncidavam seus filhos (as crianças também foram enforcadas). Mas, então, um sacerdote, Matatias, apareceu e recusou-se a ceder aos gregos. Quando “certo judeu” que obviamente se tornara semigrego chegou ao Templo para fazer sacrifício a um ídolo pagão, em obediência à ordem de Antíoco, Matatias o matou — junto com o mensageiro do rei — e fugiu para as montanhas. Ali, foi formado um exército de resistência. Para começar, a religião prevaleceu sobre o bom senso, e mil judeus morreram por se recusarem a lutar no sabá. A regra que proibia lutar no sabá foi logo suspensa. Quando o velho Matatias morreu com a avançada idade de (aparentemente) 146 anos, seu filho Judas Macabeu assumiu como comandante. Boa parte do restante da narrativa, escrita logo depois dos fatos, refere-se à guerra de guerrilha travada pelos judeus contra os exércitos gregos, que, armados com seus elefantes, pareciam assustadoramente poderosos. Militantes judeus capturaram e circuncidaram crianças à força, altares pagãos foram derrubados, e por fim a própria Jerusalém foi recapturada pela insurgência interessante.judaica. Em comparação com muitas partes da Bíblia convencional, é uma história de guerra Outros filhos de Matatias, Jônatas e Simão, tornaram-se reis em seu novo reino — hasmoneano. Ampliaram o território de Judá, golpeando vizinhos infelizes e mais fracos em sua passagem e conquistaram um amigo forte, se bem que perigoso, aliando-se a uma cidade em ascensão da qual quase nada sabiam, Roma. A guerra de independência dos macabeus fora novidade para os judeus, um grande triunfo político. Tivera, no entanto, um custo assustadoramente alto em número de mortos. Parece ter sido nesse momento que a teologia judaica começou a tratar de modo adequado a noção de vida após a morte, assunto sobre o qual o velho judaísmo dizia muito pouco. Supostamente, ficou a sensação de que aqueles 8 mártires tinham morrido em nome de alguma coisa. O Livro de Daniel, escrito mais ou menos nessa época, diz que “muitos dos que dormem no solo poeirento acordarão, uns para a vida eterna, outros para o opróbrio, para o horror eterno”. Era uma nova ideia, que deixaria marcas profundas em dois mil anos de pregação cristã e parece ter surgido de uma guerra de guerrilha. Entretanto, o impressionante é que o êxito da revolta não reduziu a influência grega. Sob os reis hasmoneanos, a língua grega tornou-se amplamente usada, ao lado do hebraico e do aramaico. Comunidades judaicas começaram a negociar e espalhar-se pelo mundo grego, até chegar ao ponto de haver, segundo estimativas, cerca de um milhão de judeus só em Alexandria. Isso deve ser exagero, mas mostra como as comunidades judaicas adquiriram importância. Damasco tornou-se outro grande centro udaico. A maioria das grandes cidades portuárias tinha comunidades judaicas, com casas de reunião conhecidas pela palavra grega “sinagoga”, onde seus livros sagrados eram editados, codificados e ensinados. Os livros foram traduzidos para o grego e, aparentemente, muitos crentes falavam outras línguas além do hebraico e do aramaico. Não judeus que apoiavam sinagogas e adotavam a religião eram designados por um nome especial, “tementes a Deus”. A curta vida do reino judaico independente chegou ao fim em 63 a.C. graças a Cneu Pompeu Magno (“Magno” em homenagem a Alexandre, o Grande), general superstar de rosto graúdo cujo brilho cegou os
últimos anos da república romana. Pompeu, como o conhecemos, era um militar de carreira carismático, com personalidade brutal. Podia ser sentimental, sobretudo com relação a Júlia, filha de Júlio César, mas teve cinco esposas e uma amante, que se gabava de que ele tinha prazer em mordê-la, deixando marcas, quando faziam amor. Obteve as primeiras grandes vitórias no Norte da África, quando jovem, e debelo primeiro uma rebelião espanhola, depois piratas do Mediterrâneo. Em sua última campanha, avanço rapidamente pelo Ponto e pela Ásia Menor, quase chegando ao mar Cáspio, depois se voltou contra a Síria, onde destruiu o reino de Antíoco XIII, descendente do homem que havia provocado a revolta dos macabeus. Para a infelicidade dos judeus, eles viviam uma intensa guerra civil entre dois irmãos, os filhos principescos da rainha Salomé, cada qual apoiado por uma das principais seitas, a dos saduceus e a dos fariseus. Um dos irmãos, Aristóbulo, subornou os romanos para que o ajudassem enquanto estava cercado dentro do Templo em Jerusalém, que era uma estrutura maciçamente fortificada. O general de Pompe chegou e apossou-se de uma grande quantidade de ouro e prata. O próprio Pompeu começou a suspeitar de seu novo aliado: chegando a Jerusalém, tomou o partido do outro irmão, Hircano, e sitiou o Templo também. Suas tropas usaram catapultas, torres de cerco e aríetes para entrar. Em seguida, marcharam para o “santo dos santos”, o santuário no centro do Templo, restrito aos sumos sacerdotes, e o saquearam. Alguns defensores judeus, de tão horrorizados, se mataram. Como parte de uma vasta caravana de pilhagem, Pompeu levou muitos prisioneiros judeus para Roma, onde alguns foram libertados e se estabeleceram perto de onde hoje fica a basílica de São Pedro. Judá agora era apenas mais uma possessão romana, e ao lugar logo seria imposto um rei fantoche chamado Herodes. Estranhamente, porém, a influência judaica em outrosa povos continuou a crescer. rei, forçados a saírem de seu pequeno mundo, os judeus continuaram prosperar em outras partesSem do Mediterrâneo. Há uma disputa entre historiadores judeus sobre até que ponto esse povo se lançou à conversão de outros povos. A crença geral é de que eles jamais catequizaram — mas, se isso é verdade, como explicar a enorme expansão do judaísmo naquele período? O grande historiador judeu Salo Baron assinala que, tendo sido um povo de apenas 150 mil pessoas no século V a.C., os judeus formavam cerca de 10% do Império Romano no primeiro século d.C. Norman Cantor, outro historiador judeu que vive nos Estados Unidos, calcula: “Na época em que Jesus de Nazaré viveu e morreu e o Templo de Herodes foi destruído, cerca de seis milhões de judeus viviam no império romano. [...] Desses, dois terços viviam durante a Diáspora.”9 Parece uma proporção grande demais para ser explicada por viagens ou taxa de natalidade. Como os judeus posteriormente sofreriam as consequências das missões cristãs e muçulmanas, há certa relutância em aceitar que o judaísmo era, em si, uma religião missionária. Mas, já no ano 139 a.C., udeus foram expulsos de Roma por tentarem converter cidadãos romanos. Pouco depois, Cícero, grande legislador e político, reclamou dos judeus catequizantes. Dois imperadores, Tibério e Cláudio, 10 transportaram judeus para fora de Roma pelo crime de tentarem converter romanos. Escritores romanos como Horácio, Sêneca, Juvenal e Tácito discutem o assunto. Mais tarde, o imperador Teodósio publico ferozes decretos na era cristã contra qualquer um que tentasse converter pessoas para o judaísmo. O judaísmo e, mais tarde, o cristianismo (visto a princípio pelos romanos como uma versão do udaísmo) eram credos subversivos devido à ênfase que davam à igualdade diante de Deus e à negação da divindade dos imperadores. Defendiam uma realidade fora da realidade da vida diária no império. Tornaram-se crenças populares entre as classes médias alfabetizadas do mundo romano, os comerciantes e proprietários de terras distantes do poder real; os judeus (e, a princípio, apenas eles, sem os cristãos) também serviam como soldados. Representavam uma força inquieta e incessante. O historiador jude Shlomo Sand assinala que “todo monoteísmo contém um elemento potencial de missão. Ao contrário dos
politeísmos tolerantes, que aceitam a existência de outras divindades, a própria crença na existência de um Deus único [...] leva os crentes a propagarem a ideia da singularidade divina. [...] A aceitação por 11 outros do culto do deus único prova sua força e seu poder sobre o mundo.” Esta história é tão importante para o Ocidente, e tão complicada, que vale a pena tentar resumi-la. O povo hebreu primeiro se afastara do que até então tinha sido comum no Mediterrâneo, a adoração de vários deuses. Aos poucos e após muita discussão acabaram concentrando o foco num único deus, Yahweh. Muitos judeus discordaram disso, mas com o tempo os profetas de um deus único prevaleceram. Quando os primeiros reinos foram destruídos e os líderes exilados para a Babilônia, os sacerdotes levaram esse pensamento ainda mais adiante. Deus era, ao mesmo tempo, único e potencialmente universal, não confinado a uma área. Em vez de andar apenas em sua própria terra, estava em toda parte e em parte alguma. Esse deus tinha uma relação com cada crente e suas leis, registradas por escrito, podiam ser levadas de um lugar para outro e facilmente disseminadas. O reino judeu tardio travou uma violenta guerra de libertação, como já vimos, e ao contemplar seus numerosos mártires desenvolveu outra ideia poderosa, a de que talvez houvesse uma vida individual, pessoal, depois da morte. Em razão da política militar do mundo antigo — conquista grega, depois do Império Romano —, os povos que adotavam essas crenças foram dispersos pelo Mediterrâneo, como comerciantes e mercadores com comunidades e edifícios próprios. Julgando-se donos de uma verdade vital, difundiram a palavra e tentaram converter outros povos. Os judeus convencionais foram mais tarde postos de lado como a principal influência monoteística por dissidentes radicais que achavam que todo mundo deveria converter-se à sua fé — os seguidores de Jesus de Nazaré, de quem voltaremos a falar mais adiante. Essa é a história da interminável busca humana por significado, consolação e pertencimento. E foi produzida pela geografia do Oriente Médio, por suas antigas guerras e rotas comerciais e, finalmente, pelo assombroso poder de Roma. O cristianismo, depois o islamismo, destruiria qualquer possibilidade que o mundo clássico pudesse ter de construir uma civilização única e unificada segundo o modelo chinês. Mas, sem seus conquistadores imperiais, aqueles generais materialistas e mundanos, o monoteísmo não teria decolado nem se difundiria até conquistar o conquistador. Ascensão e queda dos romanos Os conquistadores dos judeus tinham sido politeístas. Como os primeiros reinos judaicos, Roma em seus primórdios era um lugar obscuro, na periferia do mundo grego. Tem sido comparada também com o reino de Ch’in, outro estado austero e implacável localizado nas margens, que endureceu para sobreviver. Mais ou menos na mesma época em que Judá foi derrotada pelos babilônios, o pequeno reino de Roma foi derrotado pela potência vizinha, os etruscos. Como os judeus, os romanos contavam histórias sobre suas srcens. Em vez do exílio no Egito, tinham a fábula de Eneias, que os comandara de Troia para a terra prometida, um grupo de colinas em torno de um pântano. Ou — reza outra história — Roma foi fundada por um andarilho chamado Rômulo, que fora amamentado por uma loba e depois matara o irmão. Dessa maneira, desde o início as histórias romanas envolviam jactância (Troia era a melhor srcem que o mundo antigo seria capaz de imaginar), migração e violência. Roma acabou ficando bem localizada. Era longe o suficiente do centro do mundo grego para ser deixada mais ou menos em paz. Ficava à beira de um rio, o Tibre, que embarcações marítimas podiam navegar pelo menos até certa altura, ao mesmo tempo que suas colinas fortalecidas ofereciam proteção contra saqueadores vindos do mar. Por fim, ficava no extremo sul de uma parte da Itália sob domínio etrusco. Os etruscos eram
comerciantes e guerreiros, tinham um alfabeto derivado do fenício e fortes ligações com os estados gregos. Transmitiriam aos romanos muitos de seus costumes, como o agrupamento de cidadãos em centenas ou “centúrias” e assegurariam a vinculação dessa pequena cidade, desde o início, com a cultura mediterrânea. Por um tempo, os romanos foram governados diretamente por reis etruscos, até enfim se rebelarem e os expulsarem. A essência da história romana são a política e a guerra, não a religião. A religião romana tradicional envolvia um complicado arranjo de deuses, que eles mais tarde tentariam ajustar ao famoso panteão grego — os romanos sempre gostaram de incorporar, como diz a historiadora Mary Beard: eram “esponjas intelectuais”. Seus sacerdotes tentavam ler o futuro observando o voo dos pássaros ou a forma como as galinhas sagradas se alimentavam.12 Oferendas de animais mortos, presságios, libações derramadas no chão, homens nus pulando em volta de passantes com chicotes — tudo isso é bastante comum como parte de cultos primitivos, caracterizados pela credulidade dos praticantes e totalmente desprovidos de charme. Prestar homenagem a deuses locais e cultuar os antepassados, ou apenas reverenciá-los, eram comuns na China ou no Japão. Mas sociedades que permitem a imigração de ideias mudam com mais rapidez. E nem mesmo as virgens vestais eram interessantes como seria de se imaginar. Não chega a surpreender, portanto, que os romanos tenham se tornado grandes absorvedores de tudo que existia, desde a filosofia grega aos cultos africanos, desde os ritos egípcios ao judaísmo. A religião, à moda romana, só ficava mesmo interessante quando os imperadores romanos se declaravam deuses; e isso tinha tudo a ver com política e nada com religião. E a política sempre foi interessante. Um dos últimos reis romanos, um guerreiro etrusco que, segundo consta, era filho de escravo, introduziu um código de leis e organizou reuniões regulares de cidadãos. Quando os reis foram depostos, Roma teve governantes aristocráticos, como a maioria das comunidades gregas, mas a plebs romana, os pobres, conseguiu estabelecer direitos fundamentais, defendidos por tribunos. Desde o início, houve um tosco equilíbrio de poder numa cidade que — ao contrário da maioria — de fato acolhia todo mundo. A história de Rômulo sugeria que a cidade fora fundada por fugitivos: migrantes e escravos libertos podiam se tornar cidadãos romanos, trabalhar e lutar pela república. Era uma sociedade hierárquica, porém machista, uma vez que os pais tinham poder quase ilimitado sobre a família e as mulheres eram excluídas da vida pública. E, como Roma estava circundada por rivais hostis, brigando por espaço numa parte fértil da Itália, era uma sociedade militar. No topo da sociedade romana havia famílias aristocráticas cuja influência datava da época dos reis e que compunham o Senado. Relativamente cedo, essa sociedade de imigrantes adotou eleições para postos-chave. Em 367 a.C., houve uma grande mudança, quando houve um acordo para que membros de todas as classes, não apenas patrícios, pudessem ser eleitos cônsules, desde que tivessem recursos financeiros suficientes. Um sistema complexo e demorado de eleições mais a experiência acumulada em serviço fizeram o Senado evoluir para se tornar uma organização governante severa e eficaz. Uma dupla de cônsules tinha funções executivas, com uma espécie de supermagistrado eleito a cada ano. Em seguida vinha o restante da população, os cidadãos comuns organizados em tribos e capazes, em suas próprias assembleias, de aprovar novas leis por maioria simples. Parece notavelmente democrático, mas não era. Uma forma romana de manipulação eleitoral, envolvendo votos proporcionais e a intimidação de eleitores, assegurava que os abonados estivessem, quase sempre, no controle. República significava sistema de governo sem reis e não sistema representativo. Porém o Senado era capaz de garantir um suprimento constante de novos talentos e de equilibrar facções entre os cidadãos mais ricos. O sistema eleitoral e a tensão entre diferentes corporações afastavam a ameaça do poder absoluto, a memória coletiva dos reis tiranos. Mais impressionante, o Senado era capaz de compensar sua autoridade tradicional concedendo direitos para
imigrantes e cidadãos pobres, tanto os que viviam dentro dos muros da cidade como os que lavravam a terra lá fora. Havia sempre tensão e, mais tarde, em tempos de escassez de alimentos ou fracassos militares, um espírito quase revolucionário se manifestava. No tocante a disputas sobre terra e justiça, os cidadãos romanos tinham voz mais ativa do que seus equivalentes da maioria das outras regiões do mundo mediterrâneo. Talvez fossem mais filisteus e provincianos do que os atenienses, mas desenvolveram um esperto equilíbrio político, que geralmente impedia qualquer possibilidade de caos interno. Seu sistema produzia um suprimento regular de bons administradores e legisladores e conseguia absorver grandes quantidades de novos “cidadãos” vindos de longe. Orgulhosos de sua austeridade e simplicidade, os romanos dos primórdios da república não desenvolveram literatura nem filosofia próprias, pelo menos de que tenhamos conhecimento. Seus edifícios eram apenas arremedos. Mas guerreavam com ninguém. Muitos líderes militares sabem que inspirar terror no coração do inimigo é meio caminho andado para a vitória. A prática romana, enquanto a cidade aumentava sua influência na Itália central, não tinha rodeios. Era terrorista ou, pelo menos, de base terrorista. Se uma cidade se rendesse, tornava-se vassala. Se oferecesse resistência, era completamente destruída e não sobrava vivalma — incluindo crianças, animais domésticos e até ratos. Cidadãos romanos eram convocados para servir no exército e, como acontecia com os hoplitas gregos, cidadania e belicosidade, solidariedade e ataque tornaram-se ideias interligadas. Combatendo em falanges compactas, armados de lanças longas e espadas curtas para apunhalar, os ancestrais das legiões imperiais já eram uma força temível por volta do começo do século II a.C. O êxitoescravos gera êxito. Ao separa renderem, cidades forneciam cidadãos e, da portanto, soldados; afluíam executar outrosintimidadas trabalhos. Os romanosnovos não dispunham imensanovos força militar necessária para destruir e tomar o resto da Itália num instante. O segredo estava na propaganda terrorista — renda-se logo ou vai se arrepender — combinada com a capacidade de pôr uma arma nos ombros das elites locais, tranquilizá-las e governar por meio delas. Dessa maneira, toda vitória produzia mais mão de obra para garantir a próxima. Depois de derrotar e invadir a Gália, que outrora conseguira saquear a própria Roma, os romanos puderam subjugar seus velhos inimigos ao norte e, depois, as colônias gregas mais ao sul. No fim, o mundo grego não pôde mais ignorar a cidade arruaceira que ascendia no oeste. E os gregos tinham, aparentemente, uma arma terrorista capaz de aterrorizar até os romanos: os elefantes de guerra, como já vimos, tinham ido da Índia para o mundo grego. Por um momento, parecia tratar-se de uma força militar transformadora. Um dos governantes gregos que os utilizaram foi Pirro, rei do Épiro, que os pedi emprestados aos governantes gregos do Egito. Arrojado líder em sua armadura de prata, Pirro foi solicitado a ajudar um dos estados gregos na Itália atacado pelos romanos. Levou seus elefantes para a Itália, a primeira vez que foram vistos ali, e obteve duas vitórias contra Roma. O extraordinário, porém, é que os romanos, embora assombrados com as criaturas — só acreditaram que fossem mortais quando um deles teve a tromba decepada —, não correram. Resistiram a esses herdeiros do poder de Alexandre de forma tão sangrenta que Pirro fez uma declaração famosa: “Outra vitória dessas e estamos perdidos.” Mais tarde, os romanos tentaram assustar os elefantes lambuzando porcos com gordura, em que ateavam fogo, e açulando os ruidosos animais contra eles. Repugnante, mas parece ter funcionado, pois Pirro acabou voltando para a Grécia, onde continuou a usar elefantes em combate, até ser morto por uma mulher furiosa, que atirou uma telha nele.13 Para os romanos, isso tudo acabou sendo uma boa preparação para o que viria. Logo mais entrariam em guerra contra Cartago e enfrentariam de novo os animais, dessa vez comandados por um homem que é sinônimo de guerra com elefantes: Aníbal.
Cartago, um futuro perdido? Uma das grandes conjecturas da história clássica é a ideia de que Cartago, e não Roma, poderia ter vencido as guerras púnicas. Seu maior general, Aníbal, não ganhou por um triz. Depois da horrenda batalha de Canas, em 216 a.C., que deixou de cinquenta mil a setenta mil romanos mortos, a estrada para Roma ficou praticamente sem defesa. Aliados desertaram. Os romanos entraram em pânico. O comandante da cavalaria insistiu com Aníbal para que marchasse para o sul e acabasse com a cidade. Ele não acatou, mas, por um breve período, teve uma imensa vantagem. Tivesse tomado Roma, nosso mundo talvez fosse muito diferente. Cartago, que sobrevivera durante seis séculos na costa norte-africana, protegida por imensas muralhas portuárias, era essencialmente uma potência marítima, cuja armada era tão grande em tonelagem quanto as da Grã-Bretanha, da Espanha ou da França no século XVIII. Seus navios mercantes iam fazer negócios nas ilhas Canárias, viajavam pela costa atlântica da África, adquiriam estanho na Bretanha e cruzavam em todas as direções o Mediterrâneo. Talvez um Ocidente Cartaginês tenha velejado para a América séculos antes das navegações europeias. Cartago era também uma grande potência manufatureira, produzindo o corante púrpura fabulosamente caro que dava um colorido tão distinto às togas dos senadores romanos, além de vinho forte, peças de cerâmica e metal de todos os tipos e tecidos variados. Sua frota era fabricada em massa e depois montada em alta velocidade, como esses móveis modernos vendidos para montar em casa, truque que seria esquecido até a ascensão de Veneza — e que permiti aos romanos submeterem as embarcações cartaginesas a um processo de engenharia reversa, de forma a também se tornarem navegantes. Cartago tinha teatros, oradores famosos e uma constituição que, embora de início governada por reis e mais tarde por oligarcas, dava muitos poderes aos cidadãos comuns. Muitos deles emigraram e estabeleceram colônias. Na Política, Aristóteles, escrevendo quase duzentos anos antes de Cartago ser enfim derrotada pelos romanos, elogia calorosamente as instituições cartaginesas: “A superioridade de sua constituição é demonstrada pelo fato de que as pessoas comuns continuam leais [a ela]. Os cartagineses nunca tiveram uma rebelião que merecesse o nome e jamais estiveram sob domínio de um tirano.”14 À época de sua destruição, Cartago era sem dúvida uma das melhores cidades do planeta; a população era muito maior que a de Roma. E, é claro, ficava na África. Um mundo mediterrâneo clássico cujo poder dominante estivesse no Norte da África, e não na península italiana, teria sido tão diferente que mal dá para imaginarmos. A vida cartaginesa tinha seu lado sombrio. Detratores romanos diziam que os cartagineses sacrificavam crianças, como seus antepassados fenícios, embora historiadores modernos tenham suas dúvidas, e depois de Canas os romanos também teriam recorrido a essa prática. O exército cartaginês, ao contrário do romano, era formado sobretudo por mercenários da Espanha, da Numídia, da Líbia e das ilhas Baleares.15 Apenas cerca de três mil cartagineses combatiam na infantaria, na chamada Legião Sagrada. Parece ter sido uma sociedade desconfiada, quase paranoica, de possíveis tiranos. Diferentemente dos generais romanos, que desfrutavam de seus êxitos, os generais cartagineses corriam o risco de enfrentar conspirações e até de serem executados quando voltavam vitoriosos. Dito isso, a total destruição de Cartago, quando os romanos finalmente venceram a terceira guerra púnica, deixa uma terrível lacuna nos registros históricos do Mediterrâneo. Não temos uma ideia exata de como eram seus edifícios — apenas alguns alicerces e pilares como pistas. Nada temos do que eles produziram em matéria de escrita, poesia, peças, histórias, relatos de família ou esperanças. É como se, depois da Segunda Guerra Mundial, nada escrito em alemão — nem a poesia,
a música ou os prédios alemães — tivesse sobrevivido. Se os azares da guerra tivessem sido um pouco diferentes, é claro, também não teria havido uma Roma imperial. Estariam os alunos de hoje aperfeiçoando seus conhecimentos sobre os verbos púnicos, estudando as viagens de heróis cartagineses para o Caribe, anotando as piadas de oradores cartagineses sobre Amílcar? Por vezes, em busca de causas profundas, criamos a ilusão de inevitabilidade. É possível que Cartago tenha caído por não ter a atitude flexível e aberta à cidadania e o robusto sistema político da república romana. Também é possível que tenha caído em consequência de algumas decisões erradas nos campos de batalha. Causas aparentemente insignificantes podem deflagrar mudanças graves. Seja como for, após longos anos de matança indiscriminada e de lutas na Itália, na Sicília e no Norte da África, Cartago enfim caiu. Depois da épica travessia dos Alpes, quando a cavalaria se mostrou mais importante do que os elefantes, e de sangrentas vitórias contra as legiões, Aníbal parou de devastar a Itália quando foi derrotado por Cipião “Africanus” e desterrado por seu próprio povo. Cartago seria finalmente aniquilada em 146 a.C., varrida do mapa numa orgia romana de matança, estupro e destruição. Com Cartago destruída, Roma pôde voltar-se contra os estados gregos que herdaram o mundo de Alexandre, contra a Macedônia e contra o império selêucida, que se estendia da atual Turquia até as estepes. Como sistema de poderosos impérios militares, o mundo grego começava a desmoronar. Em suas ideias sobre beleza, filosofia, arte e matemática, teria uma longuíssima meia-vida, quase como a consciência do mundo romano. Alguns de seus maiores pensadores e inventos ainda não tinham nascido. Mas é na queda de Cartago e dos reinos gregos diante das legiões romanas que podemos datar o verdadeiro início do mundo imperial romano. Dinheiro e política Por quê? Porque a república romana, com a austeridade e virtude de que se gabava, seu patriotismo do tipo “estamos todos juntos nisto”, não poderia sobreviver ao próprio êxito. A pilhagem que começou a fluir em quantidades cada vez maiores corrompeu seu sistema político. Uma nova e súbita fonte de riqueza tende a corromper qualquer arranjo político. O sistema romano de cobrança de impostos e de gastos era instável, para dizer o mínimo. As guerras permitiam a acumulação de imensas fortunas pessoais, sobre as quais o Estado não tinha praticamente controle algum. Estima-se que os romanos ricos eram, por exemplo, cerca de duas vezes mais ricos do que os aristocratas da dinastia Han. Para começar, os pobres eram subornados com alimentos e diversões públicas subsidiados. Por volta de 167 a.C., os impostos diretos para cidadãos romanos deixaram de existir, substituídos por “tributos” da Sicília, da Grécia, da Espanha e da África. Magistrados romanos enviados para governar o equivalente em área ao estado australiano de Nova Gales do Sul tinham toda a liberdade para enriquecer e voltavam ricos o bastante para subornar e pagar por mais poder em Roma. A corrupção tornou-se endêmica na vida política da cidade. Mas os pobres, que ainda pagavam impostos indiretos, eram muito castigados. Enquanto os muito ricos compravam fazendas e escravos para trabalhar a terra, os camponeses, que já foram vistos como a espinha dorsal da virtude romana, eram desalojados e iam viver na cidade como desempregados. Nesse período, aprendemos sobre uma nova doença, aluxúria ou decadência, ou, de forma mais simplificada, “excesso”. As longas décadas de luta constante e a chegada, em levas cada vez maiores, de cativos, aliados intimidados e escravos resultaram na transformação dos exércitos romanos, que deixaram de ser milícias de cidadãos prestando serviço para se tornarem corporações semi-independentes e perigosas. A guerra de classes começou a fermentar. De um lado, a nova decadência horrorizava os moralistas
romanos. A homossexualidade grega parece ter se tornado mais aceitável, e o preço de meninos amantes disparou. As lutas de gladiadores sempre foram populares em Roma — remontavam a modelos etruscos —, mas os “jogos” estavam mais grandiosos, apresentando animais e lutadores exóticos, enquanto ricos, em busca de um bom cargo, tentavam comprar popularidade. Contudo, ao mesmo tempo, hordas de camponeses desalojados e de trabalhadores citadinos que lutavam para sobreviver, o populacho facilmente mobilizado da política romana, atulhavam as ruas. Oradores extremistas, como os famosos irmãos Tibério e Caio Graco, exigiam reforma agrária e uma faxina do cenário político. Ambos foram assassinados numa orgia de violência, que começou a tomar conta de Roma. Membros do aristocrático Senado enchiam-se de raiva diante da possibilidade de reforma, embora estivessem divididos com relação ao assunto; por fim, um militar severo, Sula, conduziu Roma à beira da guerra civil, antes de fazer-se ditador e aumentar os poderes dos senadores e do exército. É uma sequência familiar nas capitais de outros grandes impérios: a extrema desigualdade, criada pelo fluxo ininterrupto de produtos pilhados de fora; a corrupção dos sistemas eleitorais e das instituições representativas; o grito rouco de protesto nas ruas; a contracorrente de violência; a ameaça de uso da força enquanto o exército interfere para “botar ordem”. O desequilíbrio de poder criado pelo império desequilibra o próprio império. A vida romana saiu do controle, de qualquer controle. Os senadores continuaram a agir como se ainda vivessem na velha república, arengando e tramando. Mas os exércitos já não eram de confiança, e agravou-se a agitação social. A imensa revolta de escravos iniciada pelo gladiador Espártaco, à sombra do monte Vesúvio, abalou até o âmago essa sociedade escravista. Sua força de setenta mil ex-gladiadores e ex-agricultores derrotou dois exércitos no ano 71 a.C. (Foram finalmente esmagados pelas forças da maior parte na do Ásia. poderPorém militaro disponível emforam Roma.) Houve um cônsul rebelde à solta na combinadas Espanha e mais problemas pior de tudo as medidas que precisaram ser tomadas para restaurar a ordem. Recém-vindo do leste, Pompeu estava de volta à cidade — ou melhor, aos arredores de Roma, esperando com suas legiões. O velho costume romano consistia em conceder aos generais vitoriosos um “triunfo”, um desfile solene pela cidade. O vitorioso ia em sua biga, com um escravo atrás, encarregado de lembrar-lhe que era mortal. Na frente, iam os cativos acorrentados e talvez uma parte da pilhagem da guerra. À medida que o alcance e o apetite de Roma aumentavam, esses triunfos foram se tornando grandiosos e extremados, dias de tumultuadas festas cívicas. Pompeu foi homenageado com três triunfos, o que era inédito, e o último deles tinha uma caravana de cair o queixo, com animais estranhos, reluzentes produtos saqueados, reis e sacerdotes derrotados, soldados e dinheiro. Como se viu, Pompeu acabou demonstrando não ser um político hábil para tomar o poder da forma como os críticos temiam. Mas havia dois outros aristocratas militares, rivais e muito ricos à solta. Crasso, soldado violento, agora era um plutocrata que, numa abominável manifestação de vingança, depois da guerra de Espártaco, crucificou na principal estrada ao norte de Roma cerca de seis mil rebeldes que capturara. O outro era Júlio César. * ** César é o mais famoso romano de todos, o que nos deu nosso calendário — a rigor, a maneira moderna de medir o tempo — e cujo assassinato é o clímax da vida política romana. Embora seu legado tenda a ofuscar e tenhamos de confiar em historiadores impressionados com César, parece que ele foi extraordinário desde a mais tenra idade. Jovem aristocrata do mais alto nível que se aliou ao lado errado, tinha sobrevivido à ditadura assassina de Sula, quando listas daqueles que deveriam ser judicialmente
mortos foram coladas no Fórum. Tornou-se soldado ainda na adolescência e fez seu nome, sobretudo por ter se vingado de piratas que o sequestraram e, num ato insensato, o soltaram. Ele ziguezagueou, atraiçoou e pagou para subir no perigoso mundo da política romana, assumindo um cargo após o outro e financiando jogos extravagantes, até alcançar, finalmente, o que deveria ser o topo, o consulado, em 59 a.C. Então conspirou para contornar o Senado, usando o dinheiro e as conexões de Crasso e Pompeu a fim de mais tarde arranjar um lucrativo comando militar para si. O maior orador romano, Cícero, que pensava estar enganando César o tempo todo, foi completamente enganado. César conseguiu o que queria, escapou de seus muitos inimigos e começou anos de luta além dos Alpes, massacrando tribos gaulesas e germânicas e chegando à Bretanha, embora não tenha permanecido muito tempo por lá. César sabia que a ascensão ao poder em Roma pressupunha uma combinação de um tipo de fama que só poderia ser alcançado no campo de batalha e grande riqueza, cuja melhor maneira de conseguir era também a guerra de conquista. Suas campanhas fora de Roma também eram campanhas pelo poder em Roma. Enquanto combatia — e era um brilhante general —, escrevia relatos claramente propagandísticos de suas campanhas para lustrar a própria imagem. Neles, revela um claro pensamento militar, uma capacidade de recuperar-se de reveses, uma rigorosa, ainda que fria, atenção aos hábitos e pontos fracos das tribos inimigas, uma aguda consciência de sua própria mitologia pessoal. O que asGuerras gálicas de César não explicam direito é que ele estava empenhado em destruir outra civilização para aumentar suas próprias chances. Não foi genocídio, porque ele estava pronto para negociar com as tribos que se submetessem e tinha interesse em conseguir escravos, além de montanhas de cadáveres; masfoi culturicídio. Os celtas usavam principalmente madeira em suas construções. Tinham uma cultura oral, não escrita. Buscas arqueológicas da segunda metade do século XX sugerem que foram muito mais bem-sucedidos do que se imaginava. Construíram estradas, talvez antes dos romanos. As estradas celtas em geral eram construídas através de terras alagadiças e florestas e feitas de junções de peças de carvalho, por isso a maior parte desapareceu, restando apenas fragmentos na Irlanda, no País de Gales e na Alemanha. César se dedicaria a reformar o calendário, mas há quem diga que o calendário celta era mais preciso: o artefato de bronze conhecido como Calendário de Coligny é sem dúvida sofisticado. Alguns historiadores celtas sustentam que eles tinham centros urbanos consideráveis, que tendemos a chamar de “fortes tribais”, em vez de “cidades”, porque engolimos a propaganda romana. Historiadores romanos discordam, achando que isso é um exagero. Algumas cidades celtas eram circulares, enquanto outras, no sul, tinham longos muros de pedra. As casas gaulesas eram sem dúvida mais do que choupanas: podiam 16 ter até dois andares e pátios. Ao que parece, os gauleses dispunham de um sistema de recenseamento. Os gauleses garimpavam ouro e prata e produziam elaborados enfeites de ouro, tão complicados e belos quanto qualquer objeto feito por mãos romanas. Usavam táticas sofisticadas em combate — seus carros de guerra e grandes escudos impressionaram particularmente os romanos — e tinham arados de ferro e máquinas debulhadoras melhores do que os da maioria dos agricultores do império. É verdade que se organizavam em agrupamentos tribais arcaicos — porém os latinos também, até bem recentemente. Os romanos deram muito destaque ao hábito horroroso que seus druidas tinham de queimar pessoas vivas em cestos de vime para acalmar os deuses e de colecionar cabeças de inimigos como troféu. Essas práticas eram lamentáveis; mas não se pode dizer que os romanos que crucificavam rebeldes e eram viciados arenas ensopadas de sangue estivessem em posição Algunsemgauleses eram viajados, servindo em exércitos gregosdee autoridade egípcios e moral. estabelecendo-se naquelas terras também. Suas mulheres tinham mais liberdade do que as romanas, incluindo complexos direitos de divórcio, caso fossem maltratadas. Ao contrário das mulheres romanas, algumas podem ter alcançado
posições de liderança, como sugere a revolta da rainha Boudica; há também túmulos de mulheres ricamente enfeitados na França e na Alemanha. Como os nativos americanos, eles demonstravam uma profunda sede por bebidas alcoólicas, que os gregos e romanos lhes vendiam, embora se tratasse de vinho, e não de uísque: parece ter sido uma grata surpresa para bebedores de cerveja de trigo. De seus poemas e de sua música, não sabemos quase nada. Diferentemente dos cartagineses, porém, havia sempre a probabilidade de serem derrotados. O que lhes faltava era o sistema cívico, a capacidade organizacional, do mundo romano. Numa guerra entre uma nação e uma tribo, venceu a nação. A destruição da cultura gaulesa por César não se limitou à morte de mais de um milhão de pessoas no campo de batalha — 1,2 milhão, de acordo com sua própria modesta contabilidade —, mas inclui também a inanição ou a redução de praticamente o mesmo número ao cativeiro. Isso sugere que uma em cada três pessoas desapareceu na Gália, índice de matança que rivaliza com o dos maiores carniceiros do século XX. Em outras palavras, César teve, proporcionalmente, o mesmo efeito da Peste Negra, que matou cerca de 30% da população do Oriente Médio e entre 30% e 60% dos europeus. Porém, ao contrário da bactéria Yersinia pestis, porém, ou das pulgas de rato que a transportavam, César estava preocupado basicamente com a carreira política. As vitórias e os relatos que redigiu, seguidos de procissões de escravos e produtos saqueados, garantiram-lhe uma reputação cada vez mais popular em Roma, enquanto sua fortuna pessoal só inflava. A rigor, ele se tornou o grande chefe militar de uma imensa fatia da Europa.17 Quando chegou a hora de renovar seu cargo, ele fez um acordo cínico com Pompeu e Crasso, dividindo os espólios em troca de uma ampliação de seu governo assassino, mas altamente lucrativo. Quando reagiu à morte de setenta romanos num ataque de tribos germânicas, matando 430 mil homens, mulheres e crianças, até mesmo alguns romanos, como Catão, ficaram enojados. Quando César enfim resolveu voltar, tinha o dinheiro, o exército e a reputação popular que lhe permitiam fazer praticamente qualquer coisa. Seus inimigos, intimidados, o viam como inimigo do Senado, da velha ordem e, na verdade, da constituição republicana romana. Em desafio à Constituição, César formou uma aliança de pessoas dispostas a serem subornadas e acolhidas, indivíduos que viam nele um novo líder, essencial e bem-sucedido; e ele estava preparando suas legiões. O único problema de César era que, se retornasse quando seu comando tivesse formalmente terminado, poderia ser processado por sua conduta como cônsul, muitos anos antes. E ele não tinha como saber se não seria condenado e morto. Por isso, cruzou o pequeno rio que separava seu comando do território romano, o Rubicão, e marcho para Roma. Se a Constituição o ameaçava, o remédio era destruir a Constituição. Pompeu, que custou a entender a ameaça que César representava, declarou-se defensor do Senado. Em seguida, junto com muitos senadores, fugiu de Roma para lutar noutro lugar. César chegou à cidade para reclamar sua herança roubada; o povo estava preparado para o suborno em massa que se seguiu e seus parentes defendiam a causa. Tanto podia dar certo como dar errado — subornar as legiões foi mais difícil do que se esperava —, porém tantos tinham sido os inimigos que fugiram para o exílio com Pompeu que ele pôde se impor na cidade. Sobre os cadáveres dos celtas e o silêncio de aldeias desertas, César erguera como seu monumento político a morte da outrora orgulhosa tradição republicana de Roma. “Cesarismo” havia se tornado um palavrão da política, e pelas melhores razões. Cleópatra e César: uma história de fracasso Para tentar ver Cleópatra claramente temos de estreitar e proteger os olhos — estreitar para enxergar além da demão de poesia e do flash dos filmes, além de Shakespeare e de Hollywood, além dos rumores
romanos apimentados e das pinturas eróticas vitorianas. Ela não era de forma alguma uma mulher fatal, nem uma menina atrevida e desagradável. Cleópatra era uma política brilhante. Era uma governante grega, forte e astuta, que tentava manipular o poder enquanto a república romana desmoronava, não uma sibarita com olhos sedutoramente delineados. Sua vida foi uma luta constante para reverter a má sorte de uma das grandes potências do Mediterrâneo, o Egito ptolomaico. E ela foi uma das grandes perdedoras da história clássica. Com sua morte, desapareceu um império que remontava a Alexandre, o Grande, bem como o domínio dos faraós. Esta é tanto uma história de guerra civil quanto uma história de amor. Depois da morte de Alexandre na Babilônia, em 323 a.C., com apenas 33 anos, seus generais tinham disputado as muitas sobras de suas conquistas. As esperanças um grande império que grego — maior dode queAlexandre o romanonoquepequeno o sucedeu — finalmente morreram com de Antígono, o Caolho, servira ao pai estado balcânico da Macedônia e cuja luta para preservar o legado do filho acabou quando foi morto em combate, aos oitenta anos. Um dos reinos que emergiram foi o Egito, governado por Ptolomeu Sóter, ancestral de Cleópatra. Esse Ptolomeu tinha sido amigo íntimo e um dos principais generais de Alexandre e vira o grande rei fundar uma cidade, Alexandria, no Egito. Ele agiu rapidamente para reivindicar o controle dela e, como parte de sua reivindicação, conseguiu apoderar-se do corpo de Alexandre, que ia sendo levado de volta à Grécia para sepultamento. Em Alexandria, o corpo foi sepultado num grande santuário. Ptolomeu teve de lutar contra os rivais para mantê-lo ali, onde tinha um poder totêmico igual ao que as relíquias de santos posteriores teriam para os europeus. (Na verdade, os ossos de são Marcos foram roubados do Egito por venezianos, para dar legitimidade similar à sua jovem república.) Ptolomeu I, como passou a chamar-se, escorou o Egito, apossando-se do que hoje é Israel, Líbano e a ilha de Chipre. Os Ptolomeus governariam o Egito por trezentos anos — mais tempo do que os Bourbons na França o os Plantagenetas na Inglaterra. Nunca foram uma família convencional. Ptolomeu II casou-se com a irmã, Arsinoé. Incesto e uma confusa reciclagem de nomes seriam características da dinastia. No primeiro período, grande parte de sua energia foi usada para repelir, com êxito, sucessores gregos rivais, particularmente os selêucidas, cuja capital era Antioquia da Síria, mas cujo império se estendia até bem dentro da Ásia. Os Ptolomeus também invadiram, ao sul, o moderno Sudão, para adquirir elefantes capazes de igualar-se aos elefantes de guerra da Índia, que os máurias tinham dado aos selêucidas. O envio de um embaixador à Índia teve como contrapartida o envio, por Ashoka, de missionários budistas para Alexandria. As vitórias prosseguiram sob Ptolomeu III, mas esses governantes gregos do Egito eram uma elite minúscula, sentada desconfortavelmente no topo de um povo muito maior, que tinha opiniões tradicionais e alienígenas. Como os normandos, quando conquistaram a Inglaterra, os Ptolomeus não se deram ao trabalho de aprender a língua local. Foi uma bênção maravilhosa para historiadores futuros, pois resulto em proclamações em duas ou três línguas — notoriamente, na forma da Pedra de Roseta —, que permitiram, depois, a decifração dos hieróglifos egípcios. Não foi uma bênção igual para os Ptolomeus, que tiveram de combater revoltas locais, encabeçadas por pretensos faraós, que eram, de fato, egípcios. O reino, portanto, era uma estranha mescla do egípcio antigo com o grego moderno. A maioria das pessoas apegava-se a crenças e cultos do antigo Egito, com seus sacerdotes e templos, seus animais sagrados e ritos complexos. Muitos viviam à espera da chegada de um rei egípcio salvador que reclamasse o trono, mais ou menos como os judeus esperavam um messias. Com o tempo, novos deuses foram inventados, metade gregos, metade egípcios, conforme a necessidade. Divindades egípcias, como Ísis, tornaram-se um pouco gregas, enquanto os gregos incorporaram os deuses egípcios Osíris e Hórus
ao seu panteão. Antes do advento do monoteísmo, uma misturazinha não chegava a criar problemas. Ainda assim, os governantes ptolomaicos tinham de proceder com cuidado: Cleópatra conseguiu algum apoio popular de que muito necessitava ao acompanhar um touro sagrado auspiciosamente colorido a caminho de um templo. Foi também a primeira de sua dinastia a falar egípcio e grego. Sua terra ainda era muito rica em recursos naturais. Um dos primeiros planos romanos para anexar o Egito propunha que fosse colonizado por agricultores romanos e usado como nova fonte de alimento barato. Como acontecia sob os faraós antigos, a maior parte da terra pertencia ao Estado e os templos tinham imensas propriedades para sustentá-los. Como os britânicos na Índia, a administração do país sob os Ptolomeus usava o antigo sistema de escribas e chefes de aldeia para coletar informações e impostos. Alguns títulos foram mudados do egípcio para o grego, mas, essencialmente, foi como sempre tinha sido. Os Ptolomeus tentaram introduzir algum rigor grego no Egito. Trouxeram uma economia de base monetária e um cadastro com os nomes de todos os súditos. Fixaram preços de mercadorias e transformaram os sacerdotes dos templos em funcionários públicos, ajudando a dinastia a levantar fundos para financiar seus exércitos e frotas. No entanto, safras ruins e derrotas, seguidas pela infeliz ascensão ao trono de um rei menino, levaram os Ptolomeus a começarem a perder terreno para os rivais. Foi uma perda após a outra. Como o reino menor de Judá, que também precisava de aliados, eles buscaram alguém que os protegesse e se decidiram por aquela cidade distante, mas conhecida por ser belicosa, Roma. Com isso, a dinastia, que vivia em apuros, ganhou tempo — porém a um custo inevitável. À medida que ganhava força, dando cotoveladas em cartagineses e gregos, Roma ia se tornando mais ameaça do que escudo protetor. O Senado romano passou intervir mais vida egípcia. E os romanos começaram a ver aquele imenso território,e com riqueza aacumulada, umnapopulacho fervilhante e governantes enfraquecidos, como dependente, não aliado. A Alexandria ptolomaica ia sendo estrangulada, muito suavemente, para a morte. Isso talvez fosse inevitável. O reino dos Ptolomeus não contava com uma forma eficaz de debater política ou de permitir a ascensão de bons administradores. Na prática, acadêmicos modernos acreditam, o estado ptolomaico era muito menos eficiente do que seu organizado sistema grego sugere. Trabalhadores do campo, por exemplo, abandonavam regularmente as plantações como uma forma de ameaçar coletores de impostos; a corrupção era endêmica; e muitos funcionários não eram treinados. Na época de Cleópatra, acredita-se que entre um sétimo e um sexto da população era grega ou judia, uma enorme migração causada pelo fato de o Estado depender de não egípcios “confiáveis” para lutar, administrar e organizar. Como o sentimento de anglo-indianos por Hampshire ou pelo País de Gales, os gregos no Egito preservavam uma forte consciência de suas srcens na Macedônia ou Atenas. Ao contrário de Roma, o Egito grego não desfrutava de nada que pudéssemos reconhecer como participação política. Continuou a ser uma autocracia real. E, ao contrário de Roma ou da Índia Britânica, sua cidade principal não era sequer parte oficial de seu território. * ** A história de Cleópatra é incompreensível sem alguma informação básica sobre este lugar único e cativante, Alexandria. A cidade em si foi a maior realização da dinastia. Fundada, como se sabe, por Alexandre, uma cidade-Estado direito próprio — dentro do Egito, ou “no” Egito, masHong não inteiramenteera parte dele. Comparaçõespor com cidades britânicas posteriores vêm logo à mente, como Kong ou a Cingapura de hoje. Alexandria também era um cadinho de imigrantes e mercadores que incho rápido, chegando a abrigar meio milhão de pessoas, o mesmo tamanho da capital do império chinês da
época e, no Ocidente, igualada apenas a Roma. Até os chineses ouviram falar de seu extraordinário Farol, uma das sete maravilhas do mundo antigo, com mais de cem metros de altura, uma estátua de Zeus e uma chama acesa para guiar os barcos nas imediações do porto. Alexandria gabava-se de ter planejamento urbano adequado, prédios grandiosos em estilo grego e, acima de tudo, um museu e uma biblioteca. A palavra museu vem do culto das Musas e popularizou-se em toda parte. No entanto, o museu srcinal em Alexandria era menos uma coleção de objetos do que um centro de estudos acadêmicos, e contava com alojamentos, restaurantes e pesquisadores trabalhando em tempo integral. A biblioteca, fundada pelo primeiro Ptolomeu e talvez montada por um dos discípulos de Aristóteles, não era aberta ao público. Era uma expressão cultural do Estado, destinada a abrigar uma cópiafora de da todos os livros escritos em grego, o que,denaorgulho era clássica, significava quase todos os livros existentes China. Supõe-se que havia de quinhentos a setecentos mil rolos de papiro cuidadosamente arquivados, organizados num catálogo de 120 volumes. A obsessão dos bibliotecários com sua coleção levou-os a pagar uma enorme taxa para que Atenas emprestasse — e eles copiassem — as obras de Ésquilo, Eurípides e Sófocles (diz a lenda que os srcinais foram retidos e as cópias é que foram devolvidas), e navios que chegavam a Alexandria eram obrigados a entregar qualquer livro que transportassem para ser copiado. Dessa maneira, a cidade acumulou um imenso estoque de literatura, matemática, filosofia e história do mundo antigo, a maior parte perdida. Ali, traduziu-se o Antigo Testamento para o grego, o que seria muito importante para a difusão do cristianismo. Muito trabalho foi dedicado a editar os dois grandes poemas que conhecemos como de “Homero”. Não é de admirar que, com patrocínio e concentração de conhecimento, Alexandria também se tornasse um centro de progresso literário e científico por direito próprio. Seus poemas eram menos famosos do que suas invenções e descobertas práticas. Euclides, que inventou a geometria moderna, com sua obra seminal sobre números primos, seções cônicas e perspectiva, talvez tenha estudado na Academia de Platão antes de mudar-se para Alexandria. Consta que um de seus discípulos alexandrinos foi Arquimedes, o matemático e engenheiro que, reza a lenda, foi morto por um soldado romano depois do cerco de Siracusa porque se recusou a interromper um problema que tentava solucionar — “Deixe meus círculos em paz”, teria dito ele. São nomes hoje famosos. Mas o que dizer de Eratóstenes, o primeiro homem que, tanto quanto sabemos, mediu com precisão a circunferência da Terra e produziu o primeiro mapa razoavelmente fiel do mundo antigo? Ou de Hero, que, ao que parece, fez um modelo de máquina a vapor? (Infelizmente, os alexandrinos tinham conhecimentos de metalurgia que pudessem ter levado à fabricação de veículos motorizadosnão gregos o romanos.) De utilidade mais imediata foi a roda hidráulica movida à mula, ainda em uso, assim como as descobertas de Herófilo no campo da anatomia humana, incluindo os sistemas digestivo e circulatório, só igualadas durante o Iluminismo europeu. Ao que tudo indica, Herófilo era capaz de medir o pulso com um relógio de água. Outros se dedicaram ao estudo de balestras de tiro rápido, do sistema solar e do uso de ar comprimido para movimentar mecanismos. Os retratos de múmia de Faiyum, que nos dão as “faces reais” mais realistas e comovedoras do período clássico, foram feitos logo depois da época de Cleópatra, mas é provável que venham de uma tradição de pintura que, como também o sugerem as esculturas existentes, dá testemunho de um povo extraordinariamente habilidoso. Se isso é decadência, o mundo precisa ser mais decadente. A Alexandria ptolomaica era, em suma, um caldeirão de criatividade e invenção, como a Escócia do Iluminismo, as Midlands da Inglaterra do começo da revolução industrial, a China do império Song ou a Espanha dos primórdios do domínio islâmico. Só num desses casos — o primeiro — a inventividade e a
pesquisa científica levaram a uma revolução econômica transformadora. A razão disso nada tem a ver com inteligência humana, e sim com a rara e “completa” convergência de curiosidade, tecnologias, leis, materiais e motivação. Na época de Cleópatra, o Egito ptolomaico estava em declínio militar e econômico. Talvez fosse também um declínio intelectual, pois a maior parte das invenções anteriormente descritas ocorreu no início da história dinástica. Por outro lado, pode não ter sido. Não podemos saber aonde seu futuro poderia ter levado. O que devia estar claro para Cleópatra, porém, era que o que ela tentava defender dos romanos e de outros rivais era um troféu intelectual e cultural, não apenas mais território e poder. Que teríamos a dizer sobre isso? Não há registros dos primeiros anos. Contudo, a dinastia usava acadêmicos do museu para ensinar seus filhos, e consta que Cleópatra não só falava oito idiomas, mas também escrevia livros, sobre temas como pesos e medidas; e contratou um filósofo para dar aulas aos filhos. A dependência de seu pai para com Roma e sua ingênua tentativa de enganar os líderes rivais da república tardia envolveram o pagamento de vultosos subornos, principalmente para Pompeu. Isso o obrigou a tomar muito dinheiro emprestado. Os impostos cobrados para pagar esses empréstimos e a perda de Chipre, que se tornou colônia romana, causaram uma revolta popular. Ele fugiu para Roma. A mulher e as filhas mais velhas passaram a governar, mas, quando Ptolomeu foi finalmente reconduzido, com a ajuda de Roma, sua vingança foi terrível. Como a mulher já tinha morrido, mandou decapitar a filha, Berenice, incumbiu os romanos da coleta de impostos e permitiu que um reino de terror tomasse conta do país. Designou os romanos guardiães dos filhos mais velhos que ainda restavam, Cleópatra e seu irmão de dez anos, outro Ptolomeu. Seguindo uma tradição família, os irmãos casaram. XII Seguindo outra tradição,então os dois como gatos sagrados dentrodede um saco. QuandosePtolomeu morreu, Cleópatra, combrigaram dezoito anos, não tinha a menor intenção de dividir o poder com o irmão, muito embora não houvesse no Egito tradição de rainhas que governassem por conta própria. Ela agiu com rapidez, fez aliados, declarou-se “uma deusa que ama o pai” — outra tradição de família era assumir títulos notoriamente hipócritas — e mandou cunhar seu rosto nas moedas. Por um tempo, parecia ter vencido, mas uma combinação de conservadorismo político e epidemia de fome permitiu que o irmão e seus aliados a expulsassem. Ela fugiu para o exílio, na esperança de reunir um exército: mesmo quando jovem, tinha coragem e determinação. A essa altura, para sorte dela, o irmão Ptolomeu XIII cometeu um erro terrível. Pompeu, que vimos pela última vez lutando contra César na interminável briga pelo poder entre esses dois magnatas militares, acabou demonstrando ser o pior comandante e o político menos hábil. Apesar de ter do se lado a maior parte do Senado e um exército consideravelmente maior, Pompeu foi enfim derrotado por César (e seu acólito Marco Antônio) em Farsalos, na Grécia central, batalha que César considerava sua maior vitória. Pompeu tinha poucos lugares para onde fugir, e um deles era o Egito. Afinal, aceitara propinas do velho Ptolomeu e fora guardião de seus filhos. Entretanto, Pompeu não percebeu que a notícia de sua humilhante derrota tinha viajado mais rápido do que sua própria frota. Para agradar ao vitorioso César, o jovem rei e seus conselheiros decidiram assassinar Pompeu logo que ele vadeasse na praia. Pompeu foi esfaqueado por um ex-oficial seu e decapitado diante da mulher e dos filhos. A cabeça foi embalsamada, colocada numa caixa e mandada de presente para César. Se Pompeu ascalculara Ptomoleu XIII travada e seus entre conselheiros também. simplesmente não compreendiam regras damal, guerra civil romana, homens que tinhamEles respeito um pelo outro e estavam ligados por laços de família. Pompeu fora casado com a única filha de César, Júlia (embora àquela altura ela estivesse morta havia muito tempo). Do ponto de vista de César, Pompeu era um
adversário honrado e poderoso, além de seu genro, e merecia tratamento melhor do que ser decapitado na praia por um rei-menino estrangeiro. César partiu para Alexandria. O trono de Ptolomeu de repente voltou a balançar. Boa parte da história de Cleópatra é lenda, contada por historiadores romanos e gregos bem depois dos acontecimentos. Mas Plutarco, em sua biografia de César, é vívido e direto. Diz ele que, tendo chegado a Alexandria (com uma força perigosamente pequena), César não achou grande coisa a recepção que Ptolomeu lhe ofereceu e mandou chamar Cleópatra. Ela teria sido interrompida no caminho ou talvez até mesmo assassinada se os homens de seu irmão a tivessem visto. Com a palavra, Plutarco: Dessa maneira, Cleópatra, escolhendo entre seus amigos apenas Apolodoro, o siciliano, para acompanhá-la, tomou uma pequena canoa e saltou no palácio quando já escurecia. Como de outra maneira seria impossível passar despercebida, enrolou-se num tapete, que Apolodoro atou com uma corda e entregou a César. Foi com essa artimanha de Cleópatra, segundo consta, que César ficou cativado, pois ela se mostrara uma ousada coquete. César, como era de esperar, “sucumbiu ao charme de outro intercurso com ela” e, quando o irmão Ptolomeu chegou, na manhã seguinte, descobriu, para seu desgosto, que a irmã de 21 anos tinha dado a César algo que ele não poderia dar. Reza a lenda romântica que o soldado se apaixonou perdidamente pela sedutora egípcia. Contudo, não sabemos se Cleópatra teve casos amorosos antes ou ligações românticas depois, além do famoso romance Cleópatra à beira Continha final algunscom dos Marco maioresAntônio. tesouros O da reino culturadehumana, masachava-se estava quase falidodo e àcolapso mercê dadefinitivo. eficiente máquina de matar conhecida como Roma. Será que o Egito ptolomaico tinha outro futuro que não fosse sob a proteção da superpotência da época? Dificilmente se poderia pensar num salvador mais improvável do que Júlio César, com sua escandida prosa de propaganda, suas vítimas que somavam mais de um milhão e seu absoluto cinismo sobre a religião de seu próprio povo. Aquele país tinha apoiado se inimigo, era tentadoramente valioso e tinha uma elite (aqueles perfumados gregos dionisíacos e sibaritas) que todos os romanos de verdade viam como decadente e inútil. Era preciso fazer alguma coisa. Cleópatra fez. E, tendo preparado sua cama, deitou-se. Uma violenta guerra local irrompeu em Alexandria, onde as tropas de que César dispunha eram insuficientes para controlar a rebelião e os combates de rua. Ele quase morreu. Parte da famosa biblioteca foi destruída. Cleópatra ficou do lado dele até que as legiões romanas chegaram para libertá-lo. Em troca, ela tornouse governante de fato e desfrutou de um passeio de barco pelo Nilo, antes de dar a César seu único filho. Ele, longe de estar cegamente apaixonado, dedicava seu tempo a estudar a reforma do calendário que havia muito vinha planejando. Foi um alexandrino que lhe sugeriu a solução do ano de 365 dias, com um dia extra a cada quatro anos. Enquanto isso, Cleópatra tratava de proteger-se. Para que não houvesse dúvidas sobre suas intenções, deu ao menino o nome de Cesarion. Até que ponto o conquistador fora vencido pela paixão? Talvez não de todo. Quando partiu para dar prosseguimento à guerra civil contra seus inimigos, que agora incluíam o vingativo filho de Pompeu e velhos adversários políticos como Catão, César deixou algumas tropas, apenas para ficar de olho em Cleópatra. Ela construiu um templo dedicado ao culto César. Cada quale àseu suafilho, maneira, dois aspiravam condição de divindade. Ela estava associada ao de antigo culto de Ísis ao deos Hórus. À medida à que César acumulava vitórias, Roma capitulava, votando para cobri-lo de honrarias cada vez mais extravagantes. A cidade pagã, tão brilhante em sua literatura e arquitetura, tratava-o como objeto de culto
e declarou-o ditador por uma década. Foi decretado um triunfo ainda maior do que o de Pompeu, e iniciou-se outro grandioso programa de reconstrução com os espólios das homicidas guerras civis de César. A degradação romana diante dele não tinha limites. César introduziu reformas, mas não fez qualquer gesto para conter o que se tornara a adoração de César. Sua casa foi adornada como um templo; sua biga, erguida em oposição à de Júpiter. Cleópatra esteve presente para assistir tanto aos sangrentos ogos realizados em honra de César como ao crescente culto a ele; assim como para certificar-se de que César não repudiaria o filho do casal. Para ela havia uma possibilidade, pelo menos, de uma política radicalmente refeita na qual essas duas pessoas divinas, ela e César, governariam juntas o mundo conhecido. César pode ter tido o mesmo sonho, embora não fosse do tipo sonhador. Ele pôs a estátua dela no templo de sua suposta deusa ancestral, Vênus Genetrix. O populacho romano começou a murmurar que ele pretendia casar-se com Cleópatra e transferir sua capital para a decadente Alexandria. Ele teve de permanecer ativo, manipulando e manobrando através das estradas e dos atalhos da política de Roma, mas a atitude de César para com a religião parece ter sido sempre cínica. Era uma escora do poder, uma alavanca útil que assumia muitas formas. Cada um à sua maneira, tanto César como Cleópatra evocavam um velho e conhecido mundo helenístico no qual governantes bem-sucedidos, como Alexandre, reivindicavam a divindade. Religião e poder mundano sempre andaram juntos, sacerdotes e reis lado a lado, desde que o mundo conhecido veio à luz. César, em triunfo, pintou o rosto de vermelho divino, como a estátua de Júpiter, e foi novamente declarado ditador, agora vitalício. Na realidade, ele acabou contrariando uma coligação letal de aristocratas conservadores ofendidos de tendência o assassinaria em 44 a.C., talvez para certificar-se que outra eguerra planejada contra osrepublicana, partos não o que tornasse invulnerável. A hora chegou. Depois que César, tendo ido a uma reunião do Senado, foi atacado violentamente por meia dúzia de conjurados e morto a facadas, contaram-se 23 ferimentos em seu corpo. Seu último gesto tinha sido cobrir o rosto para que ninguém visse a agonia da morte estampada nele. Com perfeita localização dramática, ele foi abandonado esvaindo-se em sangue perto da estátua do grande aliado, e mais tarde inimigo, Pompeu. César tinha ajudado a acabar com a república que, com todas as falhas, durara mais de quatrocentos anos. Suas noções de cidadania e rejeição da monarquia deram algo importante ao mundo. César fora incapaz de encontrar um jeito de governar essa sociedade heterogênea e sofisticada, mas seus assassinos republicanos subestimaram a popularidade de um homem forte, rico e capaz de imitar as ações e as palavras de um deus. Eles também logo estariam mortos, enquanto a associação entre divindade e governante mundano ficava cada vez mais evidente no mundo romano. Seu primeiro imperador de fato, César Augusto, foi deificado ao morrer pelo Senado. Rudes agricultores-soldados, numa dura república, haviam se metamorfoseado em ricos políticos imperiais e depois em criados de imperadores. Cleópatra também não demorou a morrer, o último dos faraós. A morte de César acabara provocando outra rodada de guerra civil, que já devia parecer interminável para os cidadãos de Roma, mas na verdade estava perto do fim. Otaviano, que fora declarado filho adotivo de César, foi à luta contra Marco Antônio, seu amado general, pelo mais alto de todos os troféus. Não havia muita coisa a escolher entre os dois, fosse no que dizia respeito ao sonho republicano moribundo ou à absoluta fome de poder. Se Otaviano, mais tarde Augusto, era para ser um dia declarado deus, Marco Antônio aparentemente se ulgava descendente de Hércules. evitou aopara máximo tomar dar partido até ter certeza ia ganhar, porém foi convocada porCleópatra Marco Antônio ir a Tarso explicações. Outra devezquem numa situação difícil, ela voltou a entoar uma velha canção, dessa vez aparecendo não enrolada num tapete, mas navegando numa barca de ouro.
A descrição arrasadoramente bela de Shakespeare — a mais conhecida — segue de perto a de Plutarco, que em algum lugar diz ter conhecido gente que conhecia gente do mundo de Cleópatra. A rainha, diz ele, velejou subindo o rio Cydnus numa barca com popa dourada e velas púrpura, impulsionada por remadores com remos de prata, ao som de flautas e alaúdes. Ela ia recostada sob um dossel estrelado de ouro, adornada como Vênus numa pintura, enquanto meninos semelhantes a Cupidos num quadro, abanando-a. [...] Aromas maravilhosos, de incontáveis oferendas de incenso, difundiam-se ao longo das margens do rio. Quem recusaria? Não Marco Antônio, em cujas veias corria sangue divino, e aparentemente o vencedor da luta pela supremacia no mundo romano. O casal foi passar o inverno no Egito, ao que parecia para um festim de amor e sensualidade, durante o qual Cleópatra, convenientemente, voltou a engravidar, dessa vez de gêmeos. Ela lhes daria nomes em homenagem ao Sol e à Lua, Alexandre Hélios, ou Alexandre Sol, e Cleópatra Selene, ou Cleópatra Lua, que poderiam vir a governar o mundo. Marco Antônio iniciou então a reorganização política do Oriente Médio, devolvendo à amante velhos territórios, embora não o de Judá, que continuou com Herodes. Em seguida, partiu para a destruição de uma nova fonte de irritação para os romanos, os intrusos chamados partos, velozes cavaleiros e hábeis arqueiros das planícies asiáticas, que César também tivera a intenção de atacar. Povo tribal iraniano que formou um império próprio e negociava tanto com o Mediterrâneo como a dinastia Han, os partos desenvolveram arcos mais poderosos e uma espécie de guerra móvel contracom a qual as legiões romanas pareciam impotentes. Marco Antônio não foi o primeiro general a iniciar uma campanha e ter de recuar, deixando atrás de si dezenas de milhares de baixas. Mas sua derrota diante dos partos o enfraqueceu num momento em que o rival, Otaviano, crescia no Ocidente. A derrota pôs fim ao sonho de um novo e ainda maior “Império Romano Asiático”, assim como a qualquer perspectiva de uma clara divisão do Mediterrâneo entre os chefes militares rivais. Poucas coisas na história acontecem com nitidez. Antônio alcançaria ainda uma grande vitória contra os armênios, comemorada com Cleópatra em Alexandria. Ele foi declarado o deus vivo Dioniso; e Cleópatra, “Rainha dos Reis” e “a mais jovem deusa”. Otaviano não perdeu tempo em estimular uma hostilidade romana contra esse perigoso fanfarrão: leu o testamento de Antônio perante o Senado, no qual ele atestava preferir Alexandria a Roma. A guerra foi declarada. Senadores ficaram divididos em sua lealdade. Legiões prepararam-se para marchar. A guerra terminou com uma das menos dramáticas, ainda que mais importantes, batalhas da história antiga. Foi uma batalha naval, em Ácio, na costa ocidental da Grécia, em 31 a.C. Cleópatra comando sua frota pessoalmente, mas entrou em pânico quando ela e Marco Antônio se viram diante da necessidade de romper o bloqueio de Otaviano e conduziu seus navios de guerra para mar aberto e em seguida para o Egito. Antônio provavelmente já estava fadado a perder. Seus homens tinham sido debilitados pela malária, seus enormes navios de cinco filas de remadores não conseguiam ganhar velocidade para investir de forma eficaz e um de seus generais bandeou-se para Otaviano, levando os planos secretos de batalha. De qualquer forma, essa última grande batalha naval da era clássica termino praticamente antes de começar, quando Marco Antônio, vendo Cleópatra partir, seguiu-a, levando apenas alguns de seus próprios navios. Depois disso, a causa de ambos estava perdida. Otaviano marchou para Alexandria, enquanto os amantes se entregavam a uma orgia derradeira. Marco Antônio apunhalou-se e morreu aos pés de Cleópatra. Ela ainda tentou negociar com Otaviano, em nome do filho Cesarion, mas, quando ficou claro
que Otaviano tencionava fazê-la desfilar em seu triunfo romano, também decidiu matar-se para evitar essa ignomínia. (Sua irmã fora forçada a desfilar no triunfo de César, mas a multidão compadeceu-se e César poupou-a. No entanto, depois Cleópatra mandou matá-la de qualquer maneira; a morte de Cleópatra não foi a de uma mártir romântica.) Graças a uma imagem exibida durante as celebrações de Otaviano, que mostrava Cleópatra morta por uma serpente, reza a lenda que ela cometeu suicídio colocando no peito uma áspide — uma serpente menor, mas verossímil — que lhe fora entregue clandestinamente numa cesta de figos. Talvez. Ou talvez ela tenha recorrido a um veneno de confiança. Cleópatra ainda não completara quarenta anos. Sua morte não salvou Cesarion, que foi capturado e executado. A paz romana Assim terminou não apenas a estratégia de Cleópatra em relação a Marco Antônio, mas também se sonho srcinal de unir os mundos do Egito, da Grécia e de Roma na pessoa de um deus-rei supremo. Otaviano declarou-se César Augusto e, com Roma exausta de guerras civis, conseguiu iniciar um longo período de paz imperial. Edward Gibbon, grande historiador inglês, fez a famosa descrição do que se seguiu como um feliz período da história humana, quando o Império Romano abrangia a melhor parte da terra e a mais civilizada parcela da humanidade. [...] A suave mas poderosa influência desfrutavam de leis e costumes tinha gradualmente união dasAprovíncias. pacíficos habitantes e abusavam das vantagens cimentado da riqueza ae do luxo. imagem deSeus uma constituição livre foi preservada com reverência: o Senado romano parecia ter autoridade soberana. Seu livro (publicado entre 1776 e 1778), que começa com essa análise, tentava explicar por que uma era de felicidade humana teve de acabar; chamou-o deDeclínio e queda do Império Romano. Sua resposta foi a ascensão do cristianismo, de que ainda vamos tratar. A maioria dos historiadores modernos evitaria responsabilizar os seguidores de Jesus pelo colapso do mundo romano. Outra parte da resposta foi dada nas palavras de abertura de Gibbon, quando ele menciona “a imagem de uma constituição livre” e diz que o Senadoparecia ter autoridade. Depois de sua vitória final, em 27 a.C., Otaviano restaurou a forma exterior de governo republicano, mas reservando para si mesmo os poderes que Júlio César reivindicara e tornando-se chefe militar, ditador e cabeça da religião oficial. Contudo, era um governante astuto, além de ter sorte. Após algumas campanhas iniciais, em que avançou para a Europa Central e para a Arábia, ele mais ou menos conteve a avidez romana por expansão para se concentrar num programa de renascimento cívico. Boa parte do que hoje chamamos de glórias de Roma — os edifícios grandiosos, as estradas imaculadas, a paz dos conquistadores e o materialismo ilimitado da vida da cidade — vem da paz estabelecida por Augusto. Seu governo foi de fato uma monarquia com acessórios do republicanismo, e não tardou a enrijecer-se em imperialismo sem disfarce. A fraqueza desse sistema é a possibilidade de aparecerem reis loucos ou maus. Roma sofreria nas mãos de muitos do tipo, notavelmente na família de Augusto, depois que ele transferiu o poder para o marido de uma Tibério. Os reis horrores como Calígula, louco, Nero, que sem dúvida era das mau.filhas, Seguiu-se “o ano dos incluiriam quatro imperadores”, depois do qualque umera rude filhoe de coletor de impostos, Vespasiano, tomou o poder. Seu filho foi assassinado, e um senador chamado Nerva restaurou o costume de adotar o candidato que parecia o melhor de todos como imperador designado —
um bom meio-termo romano entre política e monarquia, que produziu uma série de fortes imperadores, primeiro Trajano, famoso pelo Arco e pela Coluna, cujas conquistas alcançaram o golfo Pérsico e, depois, Adriano, da famosa Muralha. A vida parecia tão segura que o imperador seguinte, Antonino Pio, pôde reinar por quase 25 anos sem sair da Itália ou chegar a mais de algumas centenas de quilômetros das legiões. Mas enfrentou problemas de “excesso” nessa primeira sociedade de exibicionismo e consumismo quando um de seus festivais de circo com atrações como girafas, elefantes, rinocerontes, crocodilos e tigres custou tão caro que ele precisou depreciar a moeda para financiá-lo. Então veio Marco Aurélio, outro combativo imperador, hoje mais conhecido por suas excelentes meditações sobre a vida e os deveres, do ponto de vista estoico. O filho era figura fraca, impopular e foi morto jovem, inaugurando outro período de disputas acirradas e incertezas. Entretanto, essa experiência de império tinha sido uma considerável conquista política. Como no caso de muitos regimes posteriores, o poder supremo estava com o exército, sendo por essa razão que tantas legiões romanas ficavam estacionadas permanentemente longe de Roma, nas novas fronteiras da Germânia, Britânia e Norte da África. Os administradores romanos difundiram o império da lei através de elites, que de início talvez fossem bretãs, gaulesas, dácias ou judias, mas que acabavam se considerando pelo menos em parte romanas. Dentro das longas muralhas do poder imperial romano, desenvolveram-se novas maneiras de viver. Algo parecido com uma classe média mediterrânea emergiu, citadinos que, na qualidade de artesãos, comerciantes, lojistas, peritos legais, professores e construtores, acumularam riqueza suficiente para desfrutar exóticos, públicas os e residências próprias bem embora decoradas. Abaixo deles, mas acimadedaalimentos imensa classe dos diversões escravos, ficavam trabalhadores cuja vida, precária, também era animada pelas bancas de comida rápida das cidades romanas, por vinho barato e por distrações como loterias, jogos de azar e circos — estilos de vida não muito diferentes dos de milhões de moradores das cidades de hoje. Ainda que a maioria das pessoas, pastoreando cabras ou lavrando a terra em aldeias distantes, participasse pouco disso tudo, o imperialismo romano trouxe óbvios benefícios materiais. O que ele não trouxe foi um sistema coerente de crenças que mantivesse as pessoas estreitamente unidas, ou que lhes oferecesse uma maneira satisfatória de explicar o próprio destino. Tivesse feito isso, o pequeno problema de Gibbon, o cristianismo, dificilmente teria decolado com tamanho vigor. Júlio César e Cleópatra tinham visto a religião e a política quase como a mesma coisa, maneiras de disfarçar seu poder para assegurar a fidelidade das massas. Como os imperadores que vieram depois, César podia oferecer butim e favores a uns poucos e esmolas para acalmar a plebe, mas não foi capaz de inspirar fé. O mundo em que César nascera já era uma república arruinada, cínica e gananciosa, que já passara pela experiência de ser governada por um ditador militar em meio período, Sula. Apesar disso, ainda acreditava ter um futuro republicano virtuoso e estável. Até então, a razão, a ordem e o acordo político tinham sido possíveis. Depois de César, não mais. O paralelo chinê s O primeiro imperador da China e de seu estado guerreiro de Ch’in tinha mergulhado a área central daquela parte do mundo numa sucessão de guerras terríveis. Como César, Zheng teve uma visão megalomaníaca de poder pessoal. E, assim como a queda de Júlio César, a morte de Zheng catapultou se império numa guerra civil, na qual pretendentes à sucessão brigavam para assumir o controle. A guerra civil da China ainda foi pior do que a de Roma. Mas, nos dois casos, do horror emergiu um império
centralizado, com maior probabilidade de alcançar a paz. Talvez o puro cansaço, a cura para o derramamento de sangue, fosse parte da explicação. Embora nenhum dos governantes chineses de Han tenha a fama mundial de Augusto, suas realizações foram do mesmo nível. Eles reduziram o serviço militar, desmontaram parte de seus imensos exércitos e livraram-se das leis mais cruéis de Ch’in. Criaram a primeira burocracia verdadeiramente meritocrática e eficiente de que há notícia, baseada em concursos. A rigor, essa foi uma de suas grandes invenções, à frente de qualquer coisa existente no mundo romano. O mesmo pode ser dito sobre as balestras semimecanizadas das tropas de Han, disparadas por fileiras disciplinadas que avançavam e carregavam, como exércitos europeus viriam a ser, no futuro, com o mosquete. Tivesse um dia havido um combate entre as legiões de Roma e os exércitostribos de Han, chineses dúvida os romanos, os chineses de Han recrutaram da os periferia do sem império parateriam seus vencido. exércitos Como — “usando bárbaros para combater bárbaros” — e, assim como entre os romanos, isso acabaria se tornando um problema. Como os edifícios da dinastia Han eram basicamente de madeira esculpida e pintada, e sua arte pintada em seda, muito pouco dessa glória física sobrevive — bem menos do que da de Roma. Em geral, seus escritos são mais burocráticos do que os dos mais fofoqueiros e escandalosos escritores do grande período imperial romano, mas era uma sociedade bastante sofisticada. O historiador Ian Morris criou parâmetros engenhosos de consumo humano de energia para mapear a ascensão e queda de sociedades e, com base nisso, os impérios romano e Han se saíram igualmente bem, com seus povos usando sete ou oito vezes mais energia do que os ancestrais da era do gelo. Os chineses de Han padeceram de pestes transmitidas através de rotas comerciais que os ligavam ao Mediterrâneo (isso também, mais ou menos na mesma época, aconteceu com o mundo romano, supostamente contaminado por vírus chineses). Também conheceram secas e invasões bárbaras. Mas, devido à centralização de Zheng, os chineses avançaram. Tiveram paz e espaço para construir novos canais e estradas, difundir novas ideias sobre irrigação, desenvolver sistemas de pesos e medidas, leis e dinheiro que quase todos conseguiam compreender. Com o império Han, emergiram para um mundo que teria sido inimaginável durante a prolongada matança do “período dos Estados em guerra”. Do mesmo modo, a grandeza e relativa prosperidade do Império Romano em seu auge continuam a impressionar, e talvez se tenha imaginado que uma nova ordem ocidental perpétua fora estabelecida. Do sul da Escócia ao Norte da África e de Portugal à Síria, uma malha de estradas magníficas, muito bem mantidas permitia a cidadãos romanos viajar mais rápido por terra do que qualquer outro povo antes deles — casas e tão rápido quanto qualquer povo que veio literalmente depois, até oserviam adventode dasbase ferrovias. esgotos, de banho e aquecimento hipocausto à Pax Aquedutos, Romana. Os administradores eram dignos de confiança, embora jamais tenham alcançado o nível de eficiência dos rivais chineses. As legiões se tornaram legiões estrangeiras, à medida que tribos periféricas eram trazidas e domesticadas. Muitos outros seguiriam o exemplo de Edward Gibbon, qualificando aquele tempo como o melhor período de paz civilizada que o mundo até então conhecera, apesar do desaparecimento de qualquer coisa que se parecesse com democracia, das revoltas de escravos e do choque distante da guerra na periferia tribal. Mas, como a obra de Gibbon tentou explicar, esse mundo disciplinado se fragmentaria e entraria em colapso. Muitas teorias foram apresentadas para explicar os motivos. Uma quenão foi discutida no século XVIII pode ser acrescentada: mudança climática. Agora, o melhor conhecimento que temos da história chinesa daquela época torna o argumento ainda mais convincente. O mundo fico consideravelmente mais frio entre 200 e 500 d.C., depois do chamado período quente romano, que espalhou a agricultura para o norte e o leste da Europa e aumentou a produção de alimento.
Essa mudança climática não só atingiu agricultores e produziu periódicas epidemias de fome, mas também forçou as tribos da Ásia central a se mudarem para não morrer. Elas se moviam com bastante facilidade, por isso se mudaram, empurrando antigos migrantes para o oeste até penetrarem no império. Como já foi dito, a migração e o comércio propagaram vírus desconhecidos, e pestes assustadoras irromperam no mundo romano, atacando todas as gerações posteriores à década de 180. Nas piores épocas, os anos 250, milhares morriam diariamente em Roma.18 A fome, a doença e o desafio de migrantes armados e desesperados eram fatores que o Império Romano lutava para controlar. A dinastia Han padeceu dos mesmos perigos — safras ruins, pestes e a consequente pressão de tribos nômades, no caso deles os Xiongnu. E a dinastia Han, apesar de não ter sofrido nada parecido com o impacto perturbador dos fanáticos cristãos, teve de enfrentar enormes rebeliões de camponeses e começou a perder terreno bem mais rápido do que os imperadores romanos. O império se desmembraria, e em seguida viria um período de semianarquia e ferozes disputas entre aspirantes rivais ao Mandato dos Céus. Tanto o império ocidental quanto o império chinês passaram por inflações severas e viram a agricultura encolher, ambos sofreram invasões e revoltas. Na China, o estado de Han dividiu-se em três reinos: o de Wei, o de Wu e o Shu Han. Mas isso foi só o começo: o norte entrou em colapso, e pequenos e instáveis estados invasores substituíram o domínio chinês. A dinastia Jin, ainda reivindicando o Mandato dos Céus, retirou-se para o sul e resistiu tenazmente, assim como os bizantinos se apegaram com tenacidade aos modos romanos. A promessa srcinal de Zheng, o Primeiro Imperador, de um estado central imutável, que fora buscada com habilidade pelos Han, tornou-se apenas um sonho, uma aspiração, da mesma forma que fora o Sacro Império Romano. Contudo, ao contrário do Ocidente, um sonho que governantes chineses restaurariam. O clima, os padrões de vida, o desenvolvimento e a política não podem, a rigor, ser desenredados. Medições de poluição histórica (e consequentemente de atividade humana) em tarolos de gelo e sedimentos de lago mostram acentuado declínio após 200 d.C., à medida que tanto a civilização mediterrânea como a chinesa encolhiam. Ian Morris escreve que “ossos de vacas, porcos e ovelhas do mundo romano tornam-se cada vez menores e mais escassos depois do ano 200, o que sugere um declínio dos padrões de vida, e, pelo ano de 220, ricos moradores das cidades erguiam menos prédios e inscrições grandiosos.”19 No Ocidente, o declínio dos velhos deuses da época clássica levou os cidadãos romanos a procurarem cultos egípcios, crenças datadas do tempo de Zoroastro na Pérsia e versões extremas de filosofias gregas, mescladas com novas vindas do Orienteesses Médio. A estabilidade augustana, todas aquelas estradas e aqueles portos,religiões espalharam rapidamente sistemas de crença. Alguns parecem ter misturado antigas crenças com o pensamento budista e hinduísta — religiões “New Age” de dois milênios atrás. A cultura pública tornara-se fria e frágil, vazia de significado humano. Na China, houve levantes de grupos taoistas, como o movimento “Cinco Medidas de Arroz”, que declarava que uma profunda corrupção infectara a corte. Exigia distribuição equitativa de terras e proclamava a necessidade de reforma moral pessoal. Isso também talvez pareça familiar. A necessidade de encontrar um significado pessoal produziu uma necessidade de confronto e de martírio na China, assim como no Ocidente. Mas as ideias no Ocidente e no Oriente eram diferentes o bastante para tomarem direções distintas. Uma ideia, acima de qualquer outra, abalaria o mundo romano, deixando o mundo chinês intacto. Voltamos ao monoteísmo. Cleópatra, quando ia visitar Marco Antônio, fez uma parada para encontrarse com um rei local. Ele depois se gabaria de que ela tentara seduzi-lo. O rei era Herodes, cujo governo ganharia notoriedade no mundo inteiro, graças à história de um pensador prestes a nascer em Judá.
O agitador triunfante Nem mesmo os grandes conquistadores conseguem prever sempre os resultados de suas ações. Uma das cidades gregas postas sob domínio romano por Pompeu era um movimentado assentamento asiático chamado Tarso, onde hoje é a Turquia. Foi para lá que Antônio convocara Cleópatra, e lá que ele ficara maravilhado com sua barca dourada. Seu povo tinha recebido cidadania romana; havia ali uma próspera indústria de fabricação de tendas, incluindo judeus de fala grega. Numa dessas famílias, da tribo de Benjamin, nasceu um menino chamado Saulo. Saulo viria a ser são Paulo, que muitos teólogos declaram ser o verdadeiro fundador do cristianismo como religião mundial e o transmissor dessa religião para povos de todo o Mediterrâneo ocidental, tanto judeus como gentios. Poucos exerceram tanta influência sobre a humanidade como o fabricante de tendas de Tarso, que viveu na época de Cristo, mas que jamais o encontrou. Paulo tinha sido, como admite com franqueza numa de suas famosas epístolas, um judeu extraordinariamente devoto, quase sempre esteve em Jerusalém para estudar a Lei de Moisés. Ele conta aos Gálatas, que tinham acabado de fundar uma igreja, que fizera muito mal aos primeiros cristãos e “como eu progredia no judaísmo mais do que muitos compatriotas da minha idade, distinguindo-me no zelo pelas tradições paternas”. Ele talvez tenha estado presente ao primeiro martírio cristão, de Estevão, executado por apedrejamento por declarar que Jesus tinha sido o messias, poucos anos depois da crucificação. Homem tocado por uma tendência ao fanatismo, Paulo era membro da seita populista dos fariseus e tinha tudo por queser estivera ao romano, seu alcance e esmagar pequena, masalém irritante, heresia local. feito Em parte cidadão livrepara paraprender se locomover peloessa mundo imperial, de falante do grego, capaz de conversar sem dificuldade com as pessoas instruídas, Paulo faria mais do que qualquer outro para transformar aquele pequeno problema local numa religião mundial, um movimento global que ajudaria a pôr abaixo o velho mundo romano e transformar o Ocidente. Suas cartas para várias comunidades cristãs que ajudou a fundar são os primeiros escritos cristãos de que ainda dispomos; as sete epístolas cuja autoria costuma ser atribuída a ele datam de pouco mais de vinte anos após a morte de Cristo. Do próprio Paulo, as epístolas só nos contam poucos detalhes; muito do conhecimento biográfico que temos dele vem de seu amigo Lucas em Atos dos Apóstolos, compilado talvez cinquenta anos depois. Paulo e Lucas eram ambos admiradores de Roma e escreveram logo após a trágica revolta judaica contra seu domínio. Embora judeus, o principal objetivo de sua obra era levar a mensagem de Jesus aos outros judeus e repassá-la para o resto do mundo — para gregos, romanos, egípcios e qualquer um que quisesse ouvir, um farol para iluminar os gentios. Um estudioso da Bíblia afirma que, sem Paulo, os nazarenos — como os primeiros cristãos eram chamados — nunca teriam sido mais do que “uma seita judaica que só queria permanecer dentro do judaísmo e não tinha intenção de fundar uma religião”.20 É conhecido o caso em que Paulo ia de Damasco a Jerusalém para eliminar nazarenos quando “subitamente o cercou uma luz resplandecente vinda do céu. Caindo por terra, ouviu uma voz que lhe 21 dizia: ‘Saulo, Saulo, por que me persegues?’ Saulo disse: ‘Quem és, Senhor?’ ‘Eu sou Jesus...’”. Sem enxergar nada, foi conduzido até a cidade para aguardar novas instruções. Embora relutante, um membro da igreja nazarena em Damasco, Ananias, devolveu-lhe a visão e o batizou na nova fé. Diz Paulo que então, escolhido por Deus, saiu às pressas para a Arábia a fim de refletir sobre sua nova vida. Lucas, por outro lado, diz que ele permaneceu em Damasco e aprendeu sobre o cristianismo com os crentes dali. É costume dizer que Saulo sofreu uma espécie de ataque epiléptico ou de alucinação, e que se extremismo moral simplesmente mudou de lado, passando do judaísmo para Cristo. Crentes, é claro,
diriam que Cristo de fato apareceu diante dele. Mas o fabricante de tendas e ex-perseguidor fico abalado o suficiente para mudar de vida e de nome — adotando o romano Paulo — e passar de doze a quinze anos viajando pelo Oriente Médio, numa furiosa erupção de energia que só findou quando foi executado em Roma durante uma das severas investidas de Nero contra baderneiros religiosos. Ele mesmo conta que em várias ocasiões quase morreu vítima de chicotadas, apedrejamento e naufrágio, que passou fome, sede, frio de doer os ossos e que foi ameaçado por pagãos e judeus, bandoleiros e animais selvagens, “supostos irmãos”, e perigos naturais. Padecia de uma doença misteriosa, aparentemente repulsiva, e era preso com frequência. Paulo tentou o tempo todo manter relações de amizade com sua antiga fé judaica e entrava em confronto com judeus ao tentar explicar por que a mensagem de Cristo substituíra suas crenças. Batizo gregos e romanos não circuncidados, incluindo um centurião. O Deus dos judeus, solitário, móvel e indiferente a distinções de classe social, cujo culto já se difundira, embora levemente, através do mundo clássico, agora teria novo atributo: seria o Deus de todo mundo. A oportunidade era quase ideal. Dois anos depois dos incêndios de Roma e da morte de Paulo, segundo consta por decapitação (como cidadão romano, foi poupado da crucificação), começou a revolta udaica contra Roma, com manifestações em Cesareia. Fora deflagrada por disputas religiosas e protestos contra impostos, mas quando as legiões convergiram para as cidades amotinadas tornou-se uma rebelião total, que seria reprimida com brutalidade romana exemplar. Após um longo e heroico cerco, Jerusalém caiu em poder das legiões no ano 70, e seus moradores foram mortos ou vendidos como escravos. O famoso Segundo Templo de Herodes foi destruído e os judeus ficariam espalhados pelo mundo até os Fossemteria os nazarenos àquelae altura judaica baseada em Jerusalém, suatempos religiãomodernos. provavelmente sido destruída nunca ainda mais uma seriaseita mencionada, salvo por eruditos religiosos. A facção de adoradores de Cristo que era exclusivamente judaica, em sua srcem encabeçada por Tiago, irmão de Jesus, de fato se espalhou pelas ruínas da revolta e logo desapareceu da história. O “cristianismo” gentio (a palavra apareceu pela primeira vez em Antioquia, usada como insulto por falantes do latim) foi contrabandeado no momento exato para o mais amplo Mediterrâneo. Teve a infância de um filho rebelde do judaísmo, porém, como os escritos de Paulo mostram com insistência, foi obrigado a afirmar-se contra o pensamento judaico tradicional. Embora tenha acabado no cepo do verdugo, Paulo admirava o Estado romano. Escolheu deliberadamente centros romanos importantes, como Corinto, Antioquia e Filipos para divulgar a palavra e talvez até esperasse conseguir apoio substancial na própria Roma quando foi mandado para lá como prisioneiro. Os cristãos continuariam a ser perseguidos e exilados por um longuíssimo período, mas a possibilidade de um acordo final entre o poder secular de Roma e a nova religião era vislumbrada desde o início. Ao contrário dos líderes rebeldes judaicos, que se denominavam zelotes, ou dos líderes da revolta de 66-71, Jesus tinha evitado meter-se na política e falava em dar a César o que era de César. Paulo, bom romano, concordava. Devido à grande influência da mensagem do Nazareno tal como reformulada por Paulo, ele é responsabilizado por muita coisa que veio depois — pela bajulação cristã ao poder mundano, pela misoginia, pelo medo do sexo, pela intolerância. Ele era capaz de grande poesia humana: “O amor é paciente, o amor é benigno. Não tem inveja. O amor não é orgulhoso. Não é arrogante. Nem escandaloso. Não busca os seus próprios interesses, não se irrita, não guarda rancor.” Ele tentava levar sua mensagem acompanheiros comunidadesde tradicionais numa de grande quase em histeria. os outros crença, achava queépoca o Messias voltariaturbulência, em glória, muito breve, Como quase certamente ainda durante sua vida, para salvar os crentes e condenar o resto. Ter fé e concentrar-se nela à custa de tudo o mais era uma necessidade urgente que não poderia ser adiada.
Na mesma epístola aos coríntios, que contém o hino ao amor sossegado, ele também adverte os cristãos de que “o tempo é breve. O que importa é que os que têm mulher vivam como se não tivessem [...] os que se alegram, como se não se alegrassem; os que compram, como se não comprassem [...] digo isso porque a forma presente deste mundo está passando”. Suas palavras mostram que tinha mania de controlar tudo, e uma tendência a acessos de ira e ao autoritarismo, convencido de que havia pouco tempo a perder; mas apesar disso também era capaz de bondade, autocrítica e consideração. E podia falar como um revolucionário do século XX, correndo entre células e facções, tentando mantê-las dentro da linha ideológica “correta” e usando uma mistura de ameaça e lisonja — fogo e enxofre, com uma pitada de charme carismático. Não é raro que um convertido se transforme no linha-dura mais fanático o que o líder revolucionário revele uma fraqueza pela dramaticidade. Depois da morte de Paulo, em Roma, e provavelmente depois da execução de são Pedro, ali também — que, segundo consta, pediu para ser crucificado de cabeça para baixo, a fim de que sua morte não fosse comparada com a de Jesus —, uma comunidade cristã começou a crescer na capital do império. Era uma época de grande confusão religiosa. O judaísmo estava se reorganizando, e diferentes versões do cristianismo competiam entre si no mundo clássico. O acadêmico Diarmaid MacCulloch chamou a atenção para o estranho fato de que Roma, o centro da perseguição anticristã, tivesse se tornado a grande cidade cristã, em vez de Bagdá. Na verdade, o cristianismo poderia facilmente ter se tornado uma religião oriental, e não ocidental. Pelos séculos seguintes, houve um grande crescimento das comunidades cristãs no Egito, na Síria e em cidades judaicas como Antioquia, Gaza e Cesareia, além de na Anatólia, onde agora é a Turquia, e na própria Roma, onde os cristãos eram majoritariamente migrantes. Contudo, o cristianismo deitoueraízes no Norte daéÁfrica e naque Grécia com facilidade: apesar da ajudacristãs de Paulo aos efésios, não coríntios tessalonicenses, possível nenhuma das três comunidades tenha 22 sobrevivido. As comunidades judaicas bem estabelecidas e o grego como idioma comum tiveram muito a ver com a difusão da nova religião, assim como o efeito unificador da perseguição. Parece um paradoxo, mas muitos movimentos tinham sido fortalecidos nas primeiras fases da repressão. De judeus europeus a protestantes e islâmicos, a experiência da repressão, como bem sugere a etimologia da palavra, significa pressionar para trás, mas também pressionar junto; ela intensifica o sentimento de comunidade e envolvimento. Linhas e e spirais: o outro quarto Essas histórias se referem, grosso modo, a três quartos da população humana em qualquer época — o quarto no mundo romano, o quarto governado pela dinastia Han e o quarto que vivia na Índia sob os guptas e seus sucessores. E o resto? Nas Américas, emergiam civilizações que se situariam milhares de anos atrás da Eurásia em desenvolvimento, mas admiráveis à sua maneira. A cidade de Teotihuacán, no México, tinha um vasto conjunto de pirâmides e templos que os egípcios teriam admirado; e a grande civilização maia de Yucatán e da Guatemala produziu uma escrita sofisticada e um magnífico calendário baseado nas estrelas, que dividia o mundo em longuíssimos períodos de tempo. Seus equivalentes mais próximos tinham sido produzidos na Mesopotâmia, mais de dois mil anos antes. entanto, por não contar com a roda, com para muitos dos animais da Eurásia, os mesoamericanos emNo geral contribuiriam com poucas ideiasnem novas a cultura mundial. Dispunham de talentosos construtores e escultores, mas suas religiões eram, quase sempre, mais sombrias, sanguinárias e pessimistas do que as das culturas do outro lado do Atlântico. Ao chegarem, os espanhóis ficaram
horrorizados com o culto asteca de sacrifícios humanos em massa, tão difundido que havia forjado um novo estilo de guerrear, baseado na captura dos inimigos para que seus corações fossem arrancados em altares. Não houve equivalentes morais ou espirituais de um Kongzi ou de um Jesus nascidos nas culturas americanas — uma ausência sobre a qual vale a pena refletir. Uma teoria já foi discutida: a diferente distribuição de animais e plantas tornou a agricultura mais lenta e deixou as culturas mesoamericanas muito atrás de suas rivais europeias. Outra diferença que costuma ser citada está na forma geográfica dos dois continentes colonizados pelos humanos. A Eurásia, desdobrando-se pelo globo de leste para oeste, tem menos diferenças climáticas do que a faixa norte-sul das Américas, o que facilitaria a transmissão de culturas. Contudo, é claro que essas razões não são suficientes. Os mesopotâmios e os egípcios também tinham um lado sombrio em sua imaginação, porém não desenvolveram nada parecido com as religiões pessimistas e sanguinolentas a oeste do Atlântico. E, ainda que as culturas americanas estivessem de um a dois milênios “atrás” da europeia e da chinesa, era de esperar que por volta dos anos 1400 houvesse algo parecido com a idade de ouro grega ou a revolução religiosa judaica. Mas não há nada sequer remotamente semelhante. De pouco tempo para cá, há um crescente interesse por duas outras diferenças que ajudam muito a explicar essa distância. Uma é geológica, e não meramente geográfica: as placas tectônicas do mundo são responsáveis por uma instabilidade bem maior nas Américas, com terremotos e vulcões. Isso pode ter criado uma imaginação humana mais sombria, enquanto os povos lutavam para lidar com uma quantidade maior de desastres naturais (incluindo os ciclos climáticos do Pacífico). Esses desastres talvez parecessem inexplicáveis, a não ser como golpes espetacularmente punitivos de deuses irados que precisavam longo de todaComo a história da humanidade humano o presente supremo a ser umaaplacados. divindadeAoassustadora. recentemente disse oosacrifício historiador PeterfoiWatson, de Cambridge, isso, combinado com a maior proporção de drogas alucinógenas ou psicoativas encontradas nas Américas, pode ter dado srcem a uma encenação teatral desolada e extática de dor e de morte, em vez de religiões no sentido europeu ou indiano.23 A maior contribuição das culturas americanas ao mundo seria acima de tudo as plantas que domesticaram — como o milho, o tomate, o cacau, a batata e a abóbora —, que logo seriam adotadas por outras, mudando radicalmente populações, assim como gostos, na Europa e na África. A cultura quase perdida dos celtas pré-romanos é, em certo sentido, mais típica de povos da periferia de impérios avançados. Seja nas florestas indianas do sul, na África, nas estepes russas ou planícies da América do Norte, os poucos indícios de que dispomos sugerem grupos tribais retendo antigas crenças, centradas em xamãs e na natureza, combinadas com algumas tecnologias agrícolas sofisticadas e, em certas áreas, criando pequenos centros urbanos. É até possível que alguns reinos perdidos fossem mais interessantes e surpreendentes do que as civilizações que tiveram a sorte de construir com pedras e de saber escrever e, portanto, de serem lembradas. Centenas de idiomas, ideias, sistemas de arte e de crença desapareceram para sempre. Em algumas poucas áreas, arqueólogos ainda desenterram indícios notáveis de povos esquecidos. Poderíamos decidir examinar com mais atenção qualquer dos muitos exemplos de povos situados na periferia da história durante a época dos romanos e dos Han, mas um dos mais intrigantes vivia na costa sul-americana do Pacífico — os nazca. Enquanto os chineses lutavam com suas muralhas antibárbaros e os romanos suportavam um dilúvio de imperadores incompetentes, os nazca construíam uma cidade sagrada de pirâmides e praças chamada Cahuachi. Hoje, boa parte dela não parece mais do que uma série de pequenos montes no deserto, um deserto de brita e pedra. Há uma pirâmide central que depois de escavada passou por uma péssima “restauração”, na qual foram utilizadas faixas de concreto e gesso. Mas, andando pela área, percebem-se
pequenos buracos por toda parte, além de ossos humanos, pedaços de pano lindamente tecidos e lascas de cerâmica cor de tijolo. São restos deixados por violadores de túmulos. Expostos às intempéries, datam, mais ou menos, da época em que os romanos deixaram a Britânia. Não muito distante dali, há túmulos que ainda contêm defuntos nazca encolhidos, que parecem ter morrido uma ou duas semanas atrás. Os desertos das planícies costeiras do Peru estão entre os mais secos do mundo. Dificilmente alguma coisa se decompõe. Mas entre os corpos e crânios foram achados alguns que mal parecem humanos. Sacerdotes do mundo inteiro têm predileção por chapéus ou toucados de aspecto inusitado para se distinguirem do resto. Os sacerdotes nazca foram um pouco além. Desde a infância, seus crânios eram apertados entre placas para estirar os ossos, deixando-os alongados. Esses crânios são assustadores e mais parecem de alienígenas ou os srcinais do grito do pintor Munch. Em vida, deviam inspirar reverência, quando não puro terror.24 Como outras culturas primitivas, os nazca foram criados pelas vantagens especiais que uma paisagem incomum oferece. Pois, embora o deserto seja muito seco, há vales fluviais, e a água subterrânea fica surpreendentemente perto da superfície. Ainda hoje a transição entre deserto esturricado e lunar e o verde luxuriante é tão espetacular como em qualquer outra parte da terra. Lembra o vale do Nilo e partes do Iraque meridional. De fato, como os antigos egípcios e mesopotâmios, os nazca eram uma civilização ribeirinha. Os nazca também precisaram aprender a controlar o fluxo do rio e usá-lo com máxima eficiência para irrigação. Em seu caso, a chave de tudo não eram os canais, como no Egito, ou os campos com comportas e margens levantadas, como na Mesopotâmia, mas canais e galerias de filtragem subterrâneos, ligados à superfície por buracos em espiral lindamente perfurados, conhecidos comoojos , ou olhos. Esses buracos permitiam que as pessoas mantivessem os canais subterrâneos sempre limpos e com água corrente para beber, tomar banho, lavar-se e para agricultura. Como nas culturas ribeirinhas de outros lugares, esse sistema baseava-se em grandes números de pessoas trabalhando juntas sob a direção de outras e no desenvolvimento de habilidades especiais para trabalhar com a pedra. Como no Egito, isso ajudou a transformar uma cultura agrícola numa cultura mais centralizada e hierárquica. Como no Egito, isso levou ao surgimento de cidades e ao governo de uma casta sacerdotal — que até praticava a mumificação e construía pirâmides. É difícil, portanto, não ver os nazca como egípcios americanos tardios e menores. E para eles, por um longo tempo, a vida foi boa. Nessas luxuriantes depressões no deserto, agricultores modernos plantam algodão, abacate, aspargo e muitos outros produtos para o mercado mundial. O povo nazca vivia de milho, batata-doce, amendoim, feijões, mandioca, abóbora, carne de lhama e de porquinho-da-índia. Além disso, pescavam no mar com redes e botes infláveis de pele de animal e usavam lhamas como animais de carga. Os nazca produziam belos tecidos de algodão e lã e para ajudar a tocar o trabalho duro mastigavam folhas de coca, estimulante ainda popular na América do Sul. Em momentos de excesso, tomavam drogas alucinógenas extraídas de um cacto. Fabricavam flautas de Pã sofisticadas e trompetes de cerâmica com base numa frequência comum, num diapasão padronizado, e, para enfeite pessoal o comércio, davam valor especial à concha de um tipo de ostra, colorida de vermelho berrante. Seus trajes incluíam túnicas, mantos, turbantes e sandálias. De acordo com a arqueoacústica, esse povo sobreviveu e prosperou durante setecentos anos — mais ou menos o tempo decorrido entre a ascensão da república romana em seus primeiros encontros com Cartago e a morte do Império Ocidental, quando Roma caiu em poder dos vândalos. Pode ser que não tenham desenvolvido os grandes conhecimentos de engenharia dos romanos — ou tido necessidade deles —, mas seu sistema de aquedutos eojos foi uma realização considerável. Alguns funcionam até hoje.
Em certo sentido, era uma cultura atraente. A cerâmica era sensacional, belamente colorida e foi se tornando cada vez mais complexa à medida que a sociedade se desenvolvia. Pode-se ter uma ideia dos fantásticos deuses e criaturas de seu panteão pelos nomes que os acadêmicos modernos lhes dão — Gato Malhado, Ceifador Mítico, Pássaro Horrível e Baleia Assassina Mítica Cabeça de Leque. (Figuras de cerâmica sugerem que mulheres nazca tatuavam baleias assassinas em volta dos genitais — supostamente um formidável sinal de advertência) Seus famosos desenhos no deserto mostram um alto nível de habilidade artística. Alguns corpos mumificados, expostos em museus locais, são lancinantes, como se quase chamassem o visitante. Noutro sentido, porém, são apavorantes. Como os celtas e muitos outros povos antigos, os nazca praticavam o sacrifício humano. É certo que viam cabeças humanas decepadas como fonte de poder. As vítimas eram decapitadas, depois os crânios eram perfurados e atados em conjunto, em geral com espinhos de cacto atravessando os lábios. As cabeças ainda são abundantes na área, com os cabelos trançados e traços quase intocados pelo tempo. Uma pesquisa recente feita por equipes de universidades americanas sugere que as cabeças eram dos próprios nazca; é improvável, portanto, que fossem troféus de guerra. O hábito de decepar a cabeça é tema de acirrados debates entre os especialistas, que a rigor nada mais fazem do que dar palpites. Na fase final do período nazca, isso parece ter se tornado a tal ponto uma mania que quase um décimo da população, de acordo com estimativas recentes, foi decapitada. Por quê? Outras mudanças surgiram, mais ou menos na mesma época, nos misteriosos desenhos e linhas que foram criados removendo pedras vermelhas do chão do deserto, revelando o solo mais brilhante e branco por baixo.e Anteriormente, os desenhos nazca eramhumanoide padronizados e por arregalados. vezes figurativos — as pássaros, macacos peixes, um beija-flor e um misterioso de olhos Depois, linhas evoluíram, transformando-se em faixas longas e retas, que apontam por quilômetros em diferentes direções, tão parecidas com um aeroporto moderno que muitos já sugeriram que só podem ter sido criadas por alienígenas para guiar seus discos voadores. Quando examinadas do alto dos morros vizinhos, parecem ter sido desenhadas com régua de metal e lápis de engenheiro. Cobrem uma área de 490 quilômetros quadrados. Para que serviam? Como foram traçadas? A melhor visão que se tem delas é do alto, razão pela qual não chamaram muita atenção até os anos 1930. Já se propôs que os nazca dispunham de uma espécie de balão inflado a fumaça, mas essa teoria já se espatifou no chão. Já foi mostrado que as linhas e as imagens podem ter sido criadas pela ampliação de desenhos e com o uso de cordas e paus coloridos, o que parece fazer mais sentido.25 O consenso acadêmico hoje é de que as linhas provavelmente tinham algo a ver com a presença de água no subsolo, aqueles aquíferos importantíssimos, e com os rituais religiosos praticados para preservá-la. Mas é um consenso baseado em heroicas suposições. O que parece ser fato é que, numa fase mais adiantada de sua história, os nazca aumentaram o número de sacrifícios com decapitação e traçaram linhas cada vez mais longas. Alguma coisa estava mudando o mundo deles. Tudo coincide com grandes mudanças climáticas. O período de 535-536 d.C. é conhecido no mundo inteiro como “o ano sem sol”, quando colheitas foram perdidas e os céus permaneceram escuros. A causa talvez tenha sido um vulcão ou o impacto de um meteoro, e o efeito foi arrasador, com décadas de chuvas fortes. Em 500, um acontecimento climático relacionado ao El Niño piorou o clima na costa do Pacífico de forma drástica, provocando enchentes e perda de safras. Periodicamente, há catástrofes naturais — o ranger de placas tectônicas, que causa terremotos e tsunamis; a erupção de supervulcões ou a queda de meteoritos — contra as quais nenhuma sociedade encontrou remédio. A história tem muito pouco a ensinar sobre como lidar com elas.
Entretanto, o El Niño, os acontecimentos de 535 e longas chuvas, por mais devastadores que fossem, não devem ter destruído os nazca. Embora tenha havido uma seca subsequente, as chuvas teriam ajudado a reabastecer os importantíssimos suprimentos subterrâneos de água. Uma equipe da Universidade de Cambridge realizou uma pesquisa sugerindo que a razão do fracasso dos nazca está ligada, pelo menos 26 em parte, ao fato de terem derrubado florestas de árvores de huarango. Elas não apenas forneciam sombra, combustível e material de construção, mas também davam uma base sólida ao chão da planície, com seus imensos sistemas de raízes — de longe o maior das Américas. Por fixarem nitrogênio e ajudarem a fertilizar o solo, essas árvores já foram descritas como uma “espécie que é a pedra angular ecológica” da área. Uma vez derrubadas as florestas, talvez para cultivar algodão e milho, os vales inusitadamente exuberantes da região ficaram à mercê das enchentes trazidas pelo Pacífico — enchentes tão terríveis que arrastaram não só aldeias e plantações, mas também muitos séculos de penoso desenvolvimento cultural humano. A religião nazca, com as cabeças humanas empalhadas, sacerdotes de crânio pontudo, beija-flores, macacos e linhas retas como flechas, nada disse às pessoas sobre o erro mortal que cometeram. Eles foram mártires de seu conhecimento limitado — contrariando a confortável noção de que “povos indígenas” sempre entendem a natureza melhor do que ninguém. Dispunham de informações equivocadas e tomaram decisões equivocadas; em vez de se empenharem tanto em decepar mais e mais cabeças, deveriam ter se preocupado em cortar menos árvores. De certa forma, eles representam muitas outras civilizações primitivas que, longe de viverem em harmonia com a natureza, destruíram o meio ambiente e nunca obtiveram êxito. O triunfo dos cristãos Os cristãos tiraram a ideia do martírio do pensamento judaico, mas a levaram muito mais adiante. Há numerosos relatos de cristãos dos primeiros tempos que buscavam a morte, insistindo para que governadores romanos hesitantes aplicassem a pena, que no Império Romano significava uma saída dolorosa e humilhante. As imagens de cristãos dilacerados por animais selvagens para diversão de multidões não são apenas produto da imaginação exaltada de pintores e cineastas; a vida dos primeiros santos contém relatos extremamente minuciosos de mortes horríveis, com pessoas assadas, esfoladas, estripadas queimadas. As leis romanas eram mais que os muitas outras, mas os castigos públicos e evisavam a dissuadir: não há razão para justas duvidardoque mártires cristãos tiveram umeram fim terrível, ao lado de criminosos e renegados militares. Um raro registro das palavras de um dos primeiros mártires está numa “paixão”, descoberta em grego e latim, que seria o relato de Perpétua, uma mulher de 22 anos pertencente a uma família abastada de Cartago que foi morta em 203, com sua escrava grávida, Felicidade. Elas foram presas por receberem aulas sobre uma nova religião e não quiseram se retratar, ainda que Perpétua estivesse dando de mamar a seu bebê quando as duas foram presas, juntamente com muitos homens convertidos. O texto antigo soa como verdadeiro e talvez tenha sido escrito pela própria Perpétua ou ditado para um dos cristãos livres que tinham permissão de visitá-la. Foi preservado em mosteiros gregos durante a era clássica e é, muito provavelmente, o mais antigo relato em primeira mão de uma mulher cristã. Arrastada para uma masmorra, Perpétua conta: “Tive muito medo, porque nunca estivera em lugar tão escuro. Que dia terrível! Ó, o violento calor do choque da soldadesca, por causa das multidões! E estava aflita de ansiedade por meu bebê.” O pai tentou insistentemente convencê-la a se retratar, mas em
vão. O marido parece tê-la abandonado ainda no início. Na cadeia, teve visões do paraíso, de uma escada de ouro e do irmão que morrera de câncer no rosto, porém na visão aparecia curado. 27 Sonho que lutava com uma serpente e com um egípcio furioso, que ela associou com o diabo. A criada, Felicidade, queria tanto ser martirizada que rezou para o bebê nascer antes da data da execução, porque mulheres grávidas eram poupadas. Seu martírio foi adiado até o dia do aniversário do imperador, e as preces de Felicidade foram atendidas. Seu bebê nasceu prematuro e foi levado para adoção. Ainda com leite pingando dos seios, a criada e sua senhora, Perpétua, foram desnudadas, açoitadas, enroladas em redes e conduzidas para a arena. Os mártires do sexo masculino foram atacados por panteras, ursos e javalis, e as mulheres por uma vaca louca, antes de serem mortas por gladiadores. Perpétua, segundo um observador anônimo que assistiu ao massacre, insistiu em sentir a dor do golpe de espada e então, ajudando o nervoso algoz cuja tarefa era liquidá-la, “colocou a trêmula mão direita do gladiador em sua garganta” e morreu. Imagina-se que o consternado pai pagão e outros parentes estavam na plateia, assim como cristãos simpatizantes. Ao que parece, os mártires se ofereciam voluntariamente para morrer e cuidavam de si mesmos nas várias etapas do sistema jurídico romano, ganhando fama nas comunidades cristãs, na esperança de que suas histórias inspiradoras fossem transmitidas pelos líderes, mais tarde conhecidos como bispos. As perseguições romanas eram espasmódicas, com longos intervalos entre uma e outra, e variavam de severidade nas diferentes partes do império. Em algumas áreas, o povo tinha tamanho ódio aos cristãos que exigia sua execução. Há indícios na Gália, por exemplo, de que os cristãos eram quase sempre imigrantes, artesãos que chegavam à procura de trabalho, provocando ressentimentos, e que isso contribuía para sua morte. Em outros lugares, praticamente eram deixados em paz. Quando uma perseguição era ordenada em todo o império, eles perdiam o emprego ou tinham seus livros sagrados queimados, mas era só. As perseguições não funcionaram. Comunidades cristãs continuaram a crescer, embora se estime que por volta do ano 300 apenas uma em cada dez pessoas tinha se convertido. A maioria se apegava às velhas religiões, o que não diminuiu o desafio cristão. Os cristãos não se enquadraram facilmente no mundo romano porque decidiram não se enquadrar. Sua recusa a prestar homenagem, ainda que apenas formal, ao culto dos imperadores e às velhas crenças romanas quase os impossibilitava de servir no Exército ou de arranjar qualquer emprego público. Negavam-se a frequentar os banhos públicos, decisão nada bem-vista para as outras pessoas à sua volta. Mantinham o mais estrito segredo sobre suas práticas, especialmente sobre a Eucaristia, o que fazia gerar boatos terríveis sobre o que de fato faziam. Contestavam os judeus com sua mensagem, às vezes em sinagogas, provocando brigas e tumultos. Não é de surpreender, portanto, que de vez em quando servissem como bodes expiatórios em caso de um incêndio medonho ou de um protesto. O cristianismo oferecia uma lei moral, mas também a salvação pessoal, uma relação de cada indivíduo com um deus universal à disposição de qualquer um que o quisesse, livre das barreiras de etnia, raça ou classe. Como o mundo antigo tinha familiaridade com a noção de sacrifício, tanto humano como animal, o autossacrifício de Cristo na horrível grade de execução da Cruz não foi tão estranho. Num mundo afligido por imperadores maníacos e cheios de rixas, por ocasionais epidemias de fome e com uma nítida linha divisória entre a classe dos plutocratas e as massas, a ideia de um cataclismo iminente e do fim dos tempos talvez parecesse até sedutora. A época em que os cristãos começaram a conquistar convertidos em grandes números, apesar da perseguição, foi precisamente a época de disputas e de fome já mencionada, quando novos muros nas cidades romanas foram erguidos às pressas, muitas vezes para proteger os ricos, e as terras de lavoura foram abandonadas.
Os imperadores mais inclinados a perseguir os cristãos não eram meros sádicos, e sim aqueles que desejavam reviver as antigas glórias da era augusta. Estavam tentando girar para trás o relógio de água. Para homens como Diocleciano, que muito provavelmente era filho de um escravo, a profusão de cultos e religiões impatrióticas e dissidentes era um excelente exemplo da desordem que precisava ser contida. Diocleciano foi um notório perseguidor, cujo nome seria particularmente amaldiçoado por escritores cristãos, mas também um grande reformador político: foi ele que, em 285, dividiu o governo de Roma entre dois imperadores principais (um dos quais ele próprio), cada qual chamado Augusto, e dois secundários, os Césares, e fez melhoras significativas no sistema de cobrança de impostos. Conteve invasões e restaurou a lei e a ordem. No entanto, foi das perseguições por ele ordenadas e da divisão do novo regime imperial que surgiu o mais estranho dos personagens das primeiras histórias do cristianismo — o imperador proclamado não em Roma, mas em York. * ** Constantino, o Grande, é lembrado como o imperador que se converteu ao cristianismo e que, protegendo-o e promovendo-o, fez dele a religião de estado do Império Romano. Desse momento decisivo surgiu a igreja cristã como instituição de poder mundial, sediada na velha capital do império, com papas que davam as mãos a pretensos “sacro imperadores”. Os cristãos mudaram Roma, e Roma mudou o cristianismo; o homem que estava no centro desse negócio era Constantino. Durante séculos, a Igreja enalteceu nome:deo hoje, maiorporém, dos líderes, um de modelo de ovirtude peloao menos Oriental, um santo. Algunsseu cristãos o acusam ter sido homeme,que, fazer na de Igreja sua religião um esteio do poder imperial, politizou-a e esvaziou-a de sua mensagem revolucionária e redentora. O que teria pensado Perpétua? Constantino foi sem dúvida um estranho tipo de santo — na realidade, um estranho tipo de cristão. Tomou o poder montado nas costas do exército, aquartelado em York, depois da morte súbita do pai soldado em 306. Declarando-se imperador da quarta parte de Diocleciano, que compreendia a Britânia, a Gália e a Espanha, construiu sua corte em Trier, no rio Mosela, onde agora fica a Alemanha, antes de invadir a Itália e finalmente tomar Roma de um rival, um certo Maxêncio, após uma sangrenta batalha. Mais tarde ele contaria ao escritor Eusébio, propagandista da Igreja, que derrotara Maxêncio após ter tido uma visão da Cruz no céu, acompanhada pelas palavras “Com este sinal vencerás” e de ordenar a suas tropas que pusessem um sinal de Cristo — um monograma grego — nos escudos e estandartes. Foi a primeira vez que o Cristo da paz e do reino dos céus esteve associado ao desfecho de uma batalha. E há boas razões para suspeitar dessa história. Constantino associara-se, anteriormente, a Apolo, o “invicto deus Sol” (Sol Invictus), a quem suas tropas seguiam; seu arco do triunfo em Roma faz referência ao deus Sol, e não a Cristo. Constantino e seu coimperador do Oriente, Licínio, baixaram em Milão, em 313, um Édito de Tolerância, pondo fim às perseguições; mas nem isso se referia especificamente ao cristianismo, apenas a “cultos” em geral. Ao que parece, ele acreditava na ideia geral de um só deus, porém não descartava outras opções. Quando enfim se voltou contra Licínio e o Império Oriental, em 324-325, e o derroto numa batalha — ocasião em que voltou a usar símbolos cristãos —, Constantino se entregou a uma orgia de matança. Matou Licínio e o filho, que tinha apenas dez anos e, além disso, era seu sobrinho. Quando circularam boatos sinistros sobre um caso entre seu filho ilegítimo, Crispo — que chegara ao cargo de cônsul —, e sua mulher, Fausta, ambos também morreram. Há disputas sobre o que teria de fato
acontecido, mas todas as fontes srcinais afirmam que Crispo morreu envenenado e Fausta foi estrangulada ou morta em água fervente durante o banho. Um historiador sustenta que, na verdade, Crispo se matou e Fausta, grávida de um filho dele, tentava 28 fazer um aborto com água quente; outros insistem que foram execuções políticas, fria para Crispo, quente para Fausta, ordenadas por Constantino. Seja como for, são acontecimentos que evocam a vida na corte de Ch’in, mais do que o comportamento de um governante cristão modelo. E, quando, em 330, Constantino arrumou uma capital distante de Roma para o império reunido, escolheu para isso uma pequena cidade pagã na Grécia chamada Bizâncio — decorando-a com estátuas de deuses pagãos. Apesar disso, está claro que Constantino dava valor à Igreja, em particular aos bispos, que em todo o Mediterrâneo oriental se tornaram figuras de autoridade. Podiam ser usados para impor a ordem em cidades onde a burocracia imperial era quase ausente. E foi uma feroz e violenta disputa dentro da Igreja sobre a natureza de Cristo, jogando bispos contra bispos — a chamada Heresia Ariana — que pôs Constantino no centro dos assuntos da Igreja. Para resolver a disputa e acabar com a perturbação, ele convocou os lados rivais, em 325, para uma reunião, o Concílio de Niceia, e impôs um acordo que resultou no famoso credo niceno (“Creio em Deus-Pai [...] E em Jesus Cristo, seu único filho, Nosso Senhor [...] Creio no Espírito Santo...”). Como imperador, Constantino se via como encarregado de manter a ordem — se necessário, na Igreja cristã também, que deveria ser tão unida e única como o império. Iniciou um imenso programa de construção, incluindo uma igreja no suposto lugar onde são Pedro foi sepultado, em Roma, e sobre a caverna onde Jesus teria sido sepultado, em Jerusalém. Em troca disso, Eusébio, seu biógrafo, disse a Constantino, em 336, que ele tinha um aspecto de “soberania celeste” e que seu governo estava de acordo com o “srcinal divino” e “a monarquia de Deus”. Constantino, recebera de Jesus não uma mensagem de humildade e amor, mas de poder; era “o único Conquistador entre os Imperadores de todos os tempos a permanecer Irresistível e Invicto”.29 Isso tem notável semelhança com a espécie de tributo que o pagão Júlio César — ou Augusto — aceitaria de bom grado. Teria Perpétua, assim como centenas de outros, morrido para isso? Talvez fosse o acordo que Constantino sempre desejou. O “invicto deus Sol” ou Jesus Cristo? Não fazia muita diferença, desde que a autoridade imperial e a unidade do império fossem alcançadas. Constantino talvez achasse que tinha resolvido o difícil problema apresentado ao Ocidente por imperadores e mártires, por Cristo e Paulo, por César e Pompeu; que tinha encontrado a resolução definitiva para os empuxos opostos do É anseio do poder terreno. claroespiritual que não etinha. Mesmo quando o número de cristãos disparava, agora que era seguro e até vantajoso converter-se, e quando igrejas eram erguidas em todo o Mediterrâneo, a própria Igreja começou a se comportar como um poder terreno. Ela se dividiria, brigaria consigo mesma, exigiria que reis e imperadores fossem à guerra e perseguiria seus inimigos com ferocidade romana. E, no fim das contas, enfrentaria até mesmo um perigo maior — o de uma nova religião, também construída sobre as histórias dos judeus, que emergiu do deserto trovejando na ponta de uma espada. Blitzkrieg religiosa A imagememé seus lembrada no irrompendo mundo tododas e évastidões inesquecível; de árabe, milhares de ferozesfaiscando guerreiros beduínos camelos, ermasdezenas do deserto as cimitarras enquanto desabam sobre cidades prósperas e confiantes do fim dos tempos romanos e persas. As vitórias ressoam como explosões de trombetas enquanto orgulhosas cidades desabam — Cairo, Alexandria,
Jerusalém, Ctesifonte, Acre. Se, em 717, os exércitos do islã tivessem conseguido tomar Constantinopla, apesar das tremendas muralhas da fortaleza toda a Europa talvez estivesse cravejada de minaretes e mesquitas, em vez de catedrais e campanários. Como se viu, a influência muçulmana destruiria os persas, mudaria a China e, isolando o cristianismo ocidental das tradições cristãs mais místicas da Ásia, provocaria uma mudança drástica também no Ocidente. Que tudo isso seja atribuído a um comerciante de meia-idade da fronteira do deserto, que ouviu palavras divinas numa caverna, parece mesmo quase um milagre. Entretanto, boa parte da história é inexata. Para começar, a velha Arábia, de onde irrompeu o islã, não era, de forma alguma, uma vastidão erma. Em tempos pré-históricos, de 8000 a 4000 a.C., fora uma terra verdejante os ossos ali de encontrados dizem algumaque coisa rinocerontes, girafas, javalis e crocodilos e—fértil, e umseótimo campo caça para nos tribos africanas nos— legaram a arte rupestre. O período de seca criou os vastos desertos do norte, o “quarteirão vazio”, até a Síria, mas perto da costa, sobretudo no sul, eram áreas férteis onde complexas civilizações se desenvolveram muito antes dos tempos islâmicos. No leste, na área onde hoje ficam os países do golfo e Omã, então o país de Dilmun, bons portos ligavam a Mesopotâmia e a civilização do vale do Indo com o Mediterrâneo, onde eram negociados lã, cobre e cereais. A Arábia Felix (Feliz ou fortunada) era conhecida no mundo antigo como uma área extraordinariamente próspera, que depois caiu na zona de influência dos impérios assírio, babilônio e persa. Alexandre, o Grande, era louco para capturar essas terras árabes, atraído pelas histórias de sua riqueza, em particular de mirra, olíbano e canela, produtos imensamente valiosos, mas morreu cedo demais para tirar partido deles. No sul da enorme península, houvera uma série de reinos poderosos, alguns descendentes de Sem, filho de Noé. Desses, graças à Bíblia, o mais conhecido era Sabá (como na rainha de Sabá), que foi conquistado pelo reino de Himyar. Esses reinos talvez fossem marginais numa visão da história centrada no Mediterrâneo, mas eram ricos e duradouros. Os sabeístas duraram mais o menos mil anos; uma força militar enviada por Augusto foi incapaz de derrotá-los. Eles tiveram de desenvolver sofisticados sistemas de manejo das águas, incluindo grandes aquedutos subterrâneos, alguns dos quais ainda em funcionamento. Além disso, tinham construído a grande barragem de Marib para coletar água das monções e irrigar os campos. Funcionou bem durante séculos, até entrar em colapso sob o reino de Himyar, por volta de 570, provocando uma migração em massa do sul da península arábica para o norte. Antes disso, o comércio de especiarias e óleos dos sabeístas era famoso, e sua agricultura era descrita como um “jardim do paraíso”. A história bíblica da rainha de Sabá (essa área, antes do islã, tinha tradição de governantes mulheres) que fez uma visita a Salomão levando uma caravana de ouro, especiarias e pedras preciosas, pode ser um registro folclórico da grande riqueza da área. A bíblica rainha de Sabá teria reinado por volta de 950 a.C., mas as informações concretas de que dispomos são desprezíveis. Há, entretanto, um “vasto templo do deus da lua”. Mahram Bilqis, no Iêmen atual, é “o recinto sagrado de Bilqis”, outro nome da rainha de Sabá, e tem dez mil metros quadrados. Apesar de escavado apenas parcialmente, revelou um irresistível fragmento de afresco, uma cabeça feminina de alabastro e belas esculturas de calcário, além de colunas monumentais e caprichosos trabalhos em pedra. Ainda era visitado por peregrinos por volta de 600 d.C. Essas civilizações poderosas, mas mortas, eram cruciais para a Arábia onde Maomé cresceu. As migrações causadas pela falta de água tinham produzido cidades fervilhantes e densamente povoadas à beira dos oásis, assim como as cidades comerciais e pesqueiras do litoral, onde ele viveria e pregaria. Os árabes urbanos, mercantes e agrícolas da costa e do sul eram muito diferentes das tribos do deserto,
que sobreviviam pondo seus camelos, cabras e ovelhas para pastar mais ao norte. O uso dos camelos (que se desenvolveram dos camelídeos que tinham migrado da América pré-histórica para a Ásia) lhes permitia ir de oásis a oásis com uma facilidade que outros povos não tinham. Tanto os romanos, na fase do Império Oriental, como os persas tinham sido obrigados a cercar os atacantes árabes com estadostampões, formados por árabes cristãos, que ajudaram a manter a paz. Os beduínos do deserto eram famosos por seus estreitos laços tribais, essenciais para sua sobrevivência. Sua poesia de guerra apresenta ligeira semelhança com certas passagens de Homero. Há poucas informações diretas, da própria época, sobre a vida de Maomé. Ao que tudo indica, pouco foi registrado por escrito, e o acadêmico Tom Holland afirmou há pouco tempo que muita coisa provavelmente era censurada. Dois séculos depois, coleções de histórias sobre ele e de máximas a ele atribuídas começaram a circular — os hadiths —, mas quase nada do começo dos anos 600 sobreviveu, época dos grandes acontecimentos. Diz Holland: De indicações anteriores ao ano 800, os únicos traços que temos são os fiapos mais tênues ou o ilusório tremeluzir de miragens. [...] As vozes dos guerreiros árabes que desmembraram os antigos impérios da Pérsia e de Roma, de seus filhos e dos filhos dos filhos — para não mencionar as filhas e netas — foram silenciadas, completamente e para sempre. Nem cartas, nem discursos, nem diários. 30 Há referências fragmentárias a esse líder árabe em escritos cristãos mais ou menos da época do profeta, e poucos duvidam que ele de fato tenha existido, mas precisamos avançar com cuidado. Pelo que sabemos, em 622, depois de desentender-se com os anciãos de sua própria tribo, os Quraysh, em Meca, que contestaram a afirmação de haver recebido novas mensagens de um deus único, Maomé conduziu seus seguidores numa caminhada em direção ao norte para a mais amistosa cidade-oásis de Yathrib, que viria a se chamar Medina. Ali continuou a recitar as palavras que dizia terem sido ditadas por Deus, de início quando estava sentado sozinho dentro de uma caverna. Uma vez registrado por escrito, esse discurso direto de Alá se tornaria o Corão. Em Medina, aparentemente, Maomé também começou a transmitir as regras para orientar a vida dos seguidores. Havia regras sobre o papel das mulheres, a honestidade nos negócios (Maomé tinha sido mercador), a atitude correta na guerra e muito mais. Parece que ele reteve muita coisa do costume tribal árabe tradicional, talvez para conquistar o maior número possível de seguidores. Se isso for verdade, foi essa mesma flexibilidade que produziu o conjunto de regras sobre a vida doméstica e sobre o modo de vestir-se que hoje se tornaram tão controversos. De Medina, àquela altura simpática a judeus e cristãos, os outros povos do Livro, Maomé começou a ampliar sua influência para cima e para baixo, pelas rotas de caravana do mundo árabe. Um dos segredos da explosiva propagação do islã é que, pela primeira vez, Maomé e seu círculo puderam juntar os árabes mais ricos das áreas litorâneas e os beduínos. Parece ter havido uma explosão populacional mais ou menos nessa época e, uma vez aceita a autoridade do Profeta pelas saqueadoras e cheias de rixas tribos árabes do deserto, a única alternativa foi despachá-las para a conversão dos descrentes. Na maior parte da Ásia central, onde o avanço do islã foi quase miraculoso, os exércitos árabes entravam em território esparsamente povoado — algo bem conveniente para eles. Qualquer outra saída além da expansão talvez tivesse levado à fragmentação e à guerra civil dentro da própria Arábia.31 Mas não se tratava, nesse caso, de um povo puramente marginal e nômade que, tendo sofrido uma súbita transformação, voltasse sua atenção para o mundo civilizado; os povos da Arábia se consideravam cultos e importantes muito antes do advento do islã. Outro conceito errado é o de que os árabes desabaram sobre um mundo cristão pacífico e unido. As
primeiras levas de combates simplesmente espalharam o islamismo pelo mundo árabe, e a mais dramática dessas primeiras vítimas foi o reino sassânida da Pérsia. Os sassânidas, que coexistiram com os romanos durante quatrocentos anos, cujo império abrigava tanto zoroastrianos como várias seitas cristãs e judaicas e que se mantinha em estreito contato com a China e a Índia, tinham representado uma idade de ouro da cultura persa. Mas suas guerras intermináveis com os bizantinos exauriram seus recursos e, quando os árabes atacaram, em 632, eram liderados mediocremente por um rei-menino e se achavam em severo declínio econômico. A Síria e a “Terra Santa” estavam apenas se recuperando da peste e da guerra. Tinham sofrido uma epidemia catastrófica, que despovoara vilas e aldeias e deixara os campos por lavrar. O imperador romano bizantino Heráclio acabara de alcançar uma vitória espetacular contra os sassânidas, expulsando-os da Palestina e da Síria após vinte anos e restaurando a “verdadeira cruz” em Jerusalém. Depois disso, passou a tentar impor a ortodoxia cristã bizantina numa área que cultuava fortes tradições rivais. Dessa maneira, ao chegarem os exércitos do islã, atacaram terras que ainda lutavam para se recuperar de doenças e guerras e que não tinham nada da autoconfiança do mundo romano cristão ou do mundo persa de poucas décadas antes. E, embora os exércitos do Profeta usassem camelos, seus cavalos eram mais importantes no campo de batalha; eles lutavam com espadas retas tradicionais, geralmente importadas da Índia, e não com cimitarras. Isso explica o chocante êxito militar inicial do islã? Não: são apenas correções úteis da versão mais simplista dos acontecimentos. Não obstante, continua a ser uma história assombrosa. Numa única geração depois da morte de Maomé, os árabes destruíram o império sassânida, tomaram toda a costa do Norte da África, antiga civilização do Egito, capturaram As a Palestina, a Síria e o que melhor agora é do a Turquia e quase incluindo chegarama aos portões da própria Constantinopla. datas contam a história que as palavras: em 637, a Síria já era; em 638, Jerusalém cai em 639, a Mesopotâmia; em 642, o Egito; na mesma época, houve saques e invasões de Chipre e Cartago. No leste, os árabes tomam Cabul, em 664, e o norte da Índia, por volta de 710. A essa altura, já tinham entrado na Espanha, findando o reino cristão visigótico. Em 732, chegaram aos limites do possível, alcançando a França central, antes de retornarem. Depois disso, as regiões do Mediterrâneo, o Oriente Médio e a Europa nunca mais poderiam ser unidos como os romanos desejavam. Nunca haveria uma versão ocidental da China, porque essa parte do mundo estaria sempre dividida pela religião. Isso teria, sem dúvida, desapontado o Profeta, que achava que sua mensagem se destinava a todas as pessoas de todas as raças e de todas as crenças anteriores. Poucas ideias tiveram tamanho impacto físico. O credo simples e austero de submissão de todos ao Deus Único e aos ensinamentos do Profeta impulsionou aquelas conquistas assombrosas. Não era uma questão de tecnologia militar superior, ou de novas táticas, nem de acesso a uma riqueza ou a uma força de trabalho especiais. As “hordas” de conquistadores muçulmanos tinham tamanho modesto em comparação com os exércitos estabelecidos da época clássica. Ali estava o monoteísmo sem seu particularismo judaico e sua humildade cristã, armado desde o início contra os infiéis. Ele deu à invasão e à expansão um significado religioso. Dessa vez, era um império de crentes individuais, e não a imposição das crenças de um imperador. Era um movimento de massa, não um continente, dirigido por líderes religiosos e generais, mas motivado por um novo sentimento de comunidade. Por mais vago que seja para os historiadores, Maomé deve ter sido um grande líder. Como acontece com a maioria dos pioneiros difícil imaginarsozinho como era visto de A início, mas ele umimpôs dos ao melhores exemplos da grandereligiosos, diferença éque um homem pode fazer. mudança queéele mundo ultrapassa facilmente o impacto de Alexandre ou de Júlio César — até agora só encontra rival em Zheng, o Primeiro Imperador da China, e em são Paulo. Como figura religiosa, Jesus tem conseguido
mais apoio — talvez cerca de um terço dos crentes do mundo hoje, contra um quarto, ou um quinto, que são muçulmanos. Na época em que os povos da Ásia e do Norte da África eram convertidos ao islamismo, missionários cristãos avançavam para o norte, dentro da Alemanha, França e Grã-Bretanha de hoje. Mas, como já vimos, o cristianismo foi obra de muitos líderes. E Jesus pregava para os judeus, não para Roma ou para o Ocidente. Como o cristianismo, o islamismo sofreria divisões e seria prejudicado por ter de lidar com os problemas mundanos do poder e da política. Assumiria gradações distintas em diferentes áreas conquistadas; como o cristianismo, teria suas áreas de progresso intelectual e de sonolenta decadência. Começou declarando-se orgulhosamente aberto à igualdade de todos, e de fato a primeira voz a convocar os muçulmanos à prece foi a de um ex-escravo negro, Bilal. Apesar disso, logo o islã se tornaria também uma sociedade de donos e traficantes de escravos. Proclamando-se simples e unido, dividiu-se em facções hostis, que de início disputavam quem teria mais legitimidade para herdar o posto de líder. A maioria muçulmana sunita apoiava Abu Bakr, um dos companheiros mais próximos e sogro de Maomé, ao passo que os xiitas apoiavam a reivindicação de Ali, primo e genro de Maomé. Até hoje, como se sabe, as duas tradições do islã não cultivam boas relações entre si. A mudança que o islã trouxe para o mundo oferece uma conclusão adequada para esta seção. Desde a ascensão de Roma e a unificação do Estado chinês, a grande dificuldade tem sido encontrar uma fórmula de coexistência entre o poder terreno e novas religiões de massa. As potências imperiais, mais bem organizadas do que nunca e estendendo-se sobre áreas maiores, nada tinham a oferecer além de força e segurança. Todas sofreram o monótono desgaste causado por crises de liderança, mudanças climáticas, retrações econômicas batalhas perdidas.religioso Nenhumbem-sucedido. líder, nem mesmo ou Augusto, foilealdade capaz dee transformar-se no focoede um movimento Para César a maioria das massas, adesão eram uma questão prática, não emocional. Já as novas ideias éticas e espirituais que deram aos povos alguma coisa de que sentiam necessidade vieram todas da periferia: dos briguentos judeus da província, dos idealistas norte-indianos que seguiram o Buda, dos cristãos nas extremidades do império romano, dos povos árabes do deserto meridional. Alguns governantes simplesmente tentaram reprimir qualquer movimento religioso inconveniente; isso se tornou hábito na China, como vimos. Outros, como Constantino, tentaram assumir controle total. Mas só o islã determinou que o poder terreno e a crença religiosa se tornassem, com efeito, uma e a mesma coisa. A espada era forte — uma velha ideia. A pena era forte — uma ideia mais nova. Porém, ao longo de um século de colapsos e mudanças espetaculares, a pena, armada com a espada, mostrou-se irresistível.
PARTE QUATRO ALÉM DA MISCIGENAÇÃO CONFUSA
De 700 a 1480: A grande era do islã, os nômades que construíram impérios e o despertar da Europa
No ano 800, duas grandes culturas lideravam o mundo: a chinesa e a muçulmana. Dessa época até o Renascimento, um período de cerca de seis séculos, a Europa era uma região comparativamente atrasada. Ali, grupos tribais que tinham migrado da Ásia e povos que os romanos tinham governado foram aos poucos se juntando, primeiro em reinos feudais conduzidos por famílias, depois em nações com territórios e (quase sempre) idiomas próprios. Esses povos acreditavam que outrora houvera um Paraíso, um tempo de abundância natural, mas o pecado cometido pelas primeiras pessoas afundara o mundo numa miserável condição de “queda”, que acabaria quando Cristo voltasse e todo o comportamento humano fosse julgado. Depois disso, o tempo cessaria. Até lá, porém, apesar de serem excelentes construtores com a pedra e pensadores cada vez mais interessantes, sua civilização era mais atrasada do que as outras. Para os europeus instruídos de agora, isso talvez pareça uma ideia grotesca. Afinal, foi durante aqueles séculos que ocorreram a ascensão do papado, a criação do império de Carlos Magno, hoje de brumosa magnificência, as Cruzadas e o surgimento de muitas nações ainda claramente visíveis no mundo atual. Foi a época da unificação e ascensão da Inglaterra, da França e da Espanha, assim como da laboriosa formação de países menores, como Escócia e Portugal. Aquele período assinala o começo da Rússia e da Polônia modernas. Foram também os séculos das primeiras grandes catedrais góticas e do auge da vida monástica cristã, do florescimento da tradição cavalheiresca e do domínio dos cavaleiros vestidos de armadura. Em virtude do que sabemos sobre a explosão da influência europeia, que logo se exerceria sobre o mundo inteiro, a “Idade Média” europeia e até mesmo o que se costumava chamar de “Idade das Trevas” foram essenciais para preparar o terreno. Pela maior parte desse período, a Europa deve ter parecido atrasada para eruditos islâmicos o administradores chineses. Em comparação com a ciência e a arquitetura sofisticadas do mundo muçulmano, que abrangia a Espanha de hoje e partes do sul da França, estendendo-se até a Ásia central, as tribos da Europa eram iletradas e profundamente divididas. Não tinham cidade que rivalizasse com Bagdá ou o Cairo, sem mencionar as ainda maiores metrópoles chinesas de Chang’an e Kaifeng. Os europeus não dispunham sistema canaistinham bem mantidos, ofereciam pouca de segurança para os moradores das cidadesdeou para de os estradas viajantesoururais, um número insuficiente bibliotecas, poucos lugares onde a lei era imparcial e firme, e as fronteiras eram mais disputadas do que aceitas. A compreensão do calendário e a capacidade de medir o tempo eram rudimentares, e eles produziam poucos artigos de luxo. As maiores cidades do mundo mediterrâneo não eram bem europeias, no sentido posterior do termo. Constantinopla ocupava apenas a periferia da consciência latina europeia, tornandose mais “oriental” nesse período, enquanto Córdoba, sua maior rival em tamanho durante séculos, foi o centro da cultura islâmica até a “reconquista cristã”. Paris, Londres e Roma não se qualificavam como concorrentes. Só perto do fim desse período, quando as cidades-Estado italianas de Florença, Veneza, Milão e Siena atingiram sua fase mais vigorosa, a cultura europeia começou de fato a rivalizar com a das grandes cidades muçulmanas ou as chinesas Tang e Song. Parte da explicação é natural: problemas causados pela peste e pelo clima. Supõe-se que uma população de cerca de 55 milhões no Império Romano tardio (por volta de 400) foi reduzida à metade pela Peste de Justiniano, que irrompeu em 541 e foi seguida por levas de mortes causadas pela peste
bubônica até o começo da década de 700. Isso, combinado com o declínio da agricultura, já teria tornado muito difícil uma rápida recuperação europeia depois dos tempos romanos. Justiniano fora um imperador visionário, instalado na capital do Império Romano Oriental, Constantinopla, cujos generais Belisário e Narses recuperaram o Norte da África e a Itália e restabeleceram, ainda que por breve período, um só império. Sua mulher, Teodora, foi uma figura brilhantemente escandalosa, antiga artista de circo e prostituta, segundo se dizia, com um apetite tão insaciável por homens quanto o de Justiniano por terras: consta que se queixava de Deus por ter-lhe dado apenas três orifícios. Na Igreja de San Vitale, em Ravena, famosos retratos em mosaico os situam entre oficiais graduados, ambos com o mesmo olhar penetrante, ambos sagazes e endurecidos. Justiniano realizou uma façanha impressionante, contudo não dispunha nem de longe dos contingentes militares o de recursos capazes de gerar impostos para reconstruir de fato a glória de Roma. A Europa estava debilitada demais para recriar as legiões, o direito, as estradas e os aquedutos com os quais um dia contara. Justiniano podia vencer reis bárbaros, mas não a peste e a fome. No Mediterrâneo, o leste romano e o oeste grego divergiam, de qualquer forma. Justiniano esforçou-se com afinco para reatar laços rompidos entre os papas romanos e os patriarcas da Igreja Ortodoxa, mas as discussões eram muito acirradas. Líderes católicos romanos — srcinariamente líderes locais da seita —, que se agarraram com firmeza à decadente ex-capital imperial, tinham levado séculos para emergir como “papas”, reivindicando autoridade sobre todos os cristãos. Só tiveram êxito porque desfrutavam do prestígio conferido pelo fato de que Roma supostamente continha os túmulos de são Pedro, chamado pelos cristãos de a “pedra” sobre a qual se ergueria a Igreja universal, e de são Paulo. A própria Roma, apesar da triste desintegração dos palácios imperiais ovelhas vacas que vagavam pelo Apesar Fórum,de tinha uma história única, e a comunidade cristã inicialedadas cidade era ecomparativamente grande. ter havido papas fracos e até mesmo malvados nos primeiros tempos, também houve figuras de proporções gigantescas, capazes de disputar com seus rivais bizantinos e de mergulhar na violenta política de uso da força necessária para a sobrevivência na Itália em guerra. De vez em quando, no decorrer dos séculos seguintes, parecia que um papa romano, aliado a um poderoso líder temporal, conseguiria reunificar o Ocidente. Se o imenso rei guerreiro ostrogodo Teodorico, que governou a Itália de 493 a 526, não tivesse sido um herege, isso poderia ter acontecido mesmo antes das guerras de Justiniano. Em razão dos complexos assentamentos de povos migrantes que aos poucos reescreviam o mapa político da Europa, os papas quase sempre tinham de aliar-se a chefes militares francos ou germânicos. O exemplo mais óbvio é o de Carlos Magno, o rei franco que por um breve período criou um império que ia do norte da Espanha e da costa atlântica francesa à Alemanha ocidental, Suíça e Baviera. Seu pai, Pepino, já tinha protegido o papado e dado ao papa os territórios que seriam — anacronicamente, para a indignação dos nacionalistas italianos — os Estados Pontifícios até o século XIX.1 * ** Carlos Magno chegou a Roma em 800, quando, por coincidência, uma imperatriz, Irene, reinava em Bizâncio. Os romanos e os francos tinham um infinito desprezo masculino por mulheres governantes e, portanto, o cargo imperadorromano. romano.Mas, O papa Leãoda III,morte por conseguinte, surpreso consideravam Carlos Magnovago como sacro deimperador depois de Carlos coroou Magno,um o império franco logo se desfez, e o papado teve uma prova de sua própria fraqueza quando árabes muçulmanos invadiram a Itália a partir do Norte da África, chegando a Roma e saqueando-a em 846. Em
toda a Europa, das Midlands escocesas à Espanha setentrional, muros romanos desmoronaram e estradas romanas foram abandonadas, dando lugar a antigos caminhos de pedestres e trilhas de animais de carga. No entanto, não era a Idade das Trevas no leste, muito menos na China. Mais ou menos na mesma época em que os generais de Justiniano tentavam atar novamente o Mediterrâneo romano, o imperador Wendi, da dinastia Sui, derrubava a decadente dinastia Chen no sul, usando enormes frotas de fortalezas flutuantes de cinco conveses. Depois das invasões dos nômades do norte, a reunificação chinesa sob um governo único e eficiente permitiu que a rica economia de cultura de arroz do sul voltasse a se integrar ao norte mais avançado. Acima de tudo, a rede de canais, rios e comportas conhecida como Grande Canal, com seus 2.500 quilômetros, mantinha a civilização chinesa mais estreitamente unida do que os europeus podiam imaginar. O sistema de canais foi mais importante na história chinesa do que a Grande Muralha. Concluído entre 605 e 611, ligava o delta do Yangtzé às movimentadas terras interiores do norte, em torno da cidade que hoje se chama Pequim. Transportava grãos, sal, hortaliças e artigos de luxo. Comerciantes, exércitos e coletores de impostos percorriam-no para cima e para baixo; grandes cidades cresceram e espalharam-se rapidamente em suas margens. Um historiador comparou o sistema “às primeiras ferrovias transcontinentais da América do Norte. Ele tornou viável a integração econômica da China.”2 Outro diz que “funcionava como um mar Mediterrâneo feito pelo homem, alterando a geografia oriental para enfim dar à China o tipo de via navegável que a velha Roma um dia teve. O arroz barato do sul alimentou uma explosão urbana no norte.”3 Os grandes impérios muçulmanos parecem ter evitado pagar o alto preço da peste com mais êxito do que as apinhadas cidades cristãs e conseguiram, por quase todo esse período, utilizar um sistema de transporte talvez tão eficiente quando o Grande Canal. Suas caravanas de camelos e cavalos percorriam, untas, as grandes rotas comerciais que atravessavam o deserto entre fortalezas como Bokhara e Samarcanda, produzindo um sistema militar que uniu persas, árabes, norte-africanos, indianos e as tribos da periferia da China sob a mesma e única religião. Cidades como Bagdá e Cairo situavam-se em sistemas fluviais de importância crucial. Marinheiros usando dhows e novos velames, assim como novos instrumentos, difundiram tanto o islamismo como o comércio mundial para muito além do que a maioria dos europeus podia sonhar. “Europeu”, a rigor, era uma palavra que eles não teriam reconhecido. Os europeus faziam parte da “cristandade” e durante a maior parte desse período os orientais se esforçavam para entender o que isso queria dizer. A Europa era um espaço geográfico circunscrito, de norte grandee parte do — Mediterrâneo pelos muçulmanos e a todo tempo pressionado pelas migraçõesisolado tribais do do leste espremido entre a água salgada e os sarracenos. (A palavra “sarraceno”, embora viesse a adquirir um sentido pejorativo, deriva de “Sara”, mulher de Abraão, de quem Maomé supostamente descendia.) Em termos práticos, a cristandade não existia como entidade única. Era disputada pelas igrejas rivais grega e latina. Apesar disso, era uma ideia crucial na Europa, porque constantemente corroía as fronteiras alternativas de identidade étnica, geográfica ou tribal. O esforço para converter os pagãos e integrá-los à família cristã forjou alianças entre antigas famílias romanas e chefes militares francos; despachou monges irlandeses para a Escócia e a Inglaterra e missionários ingleses para a Alemanha; permitiu que antigos líderes tribais das florestas e dos pântanos do leste aderissem a uma ideia maior. Povos europeus rivais, que falavam variantes abastardadas de sublatim fortalecidas por densos grupos de palavras de línguas celtas e germânicas, competiam entre si, e seus governantes guerreavam uns contra os outros, mas em certo nível (a não ser que fossem hereges, pagãos ou judeus) se sentiam unidos em Cristo.
E isso tinha certa urgência. Ofuscando qualquer memória popular do perdido mundo clássico havia a expectativa de que uma segunda vinda de Cristo não demoraria muito. A advertência de Paulo avolumava-se. Depois de ter o que comer e onde morar, o mais premente imperativo da vida era preparar-se para esse acontecimento, que marcaria o fim da história humana; construir civilizações terrenas foi relegado para um distante segundo lugar. Os maiores monumentos europeus são religiosos, os mosteiros e as catedrais construídos por gerações que pacientemente esperavam o fim dos tempos. O maior projeto político latente, o “Sacro Império Romano”, nunca correspondeu à nostálgica promessa contida em seu nome, fosse sob os francos ou, mais tarde, sob governantes germânicos. Foi uma longa fantasia gótica à qual Napoleão acabou pondo fim. Num nível mais prático, porém, houve um persistente enovelamento de vida religiosa europeia. O grego talvez tenha em grande parte se perdido, mas o latim vulgar clerical estava em toda parte. No começo dos anos 500, são Bento levou a tradição monástica do leste da Grécia para a Itália, e sua “Regra de Bento”, obrigando os monges a serem castos e pobres e a obedecerem ao abade, difundiu uma rara mensagem de paz e esperança, afastando muitos jovens de famílias nobres de uma carreira de pilhagem e guerra. Os segredos do êxito posterior da Europa podem ser encontrados em três coisas, que na época estavam longe de parecer boa notícia. A primeira é que houve as sucessivas levas de migração tribal. Foram causadas pela fome nas imensas savanas da Ásia central, onde pequenas mudanças no número de seres humanos ultrapassaram os limites do que a cultura de pastoreio era capaz de sustentar, e por pressões semelhantes em áreas com agricultura parca, como a Escandinávia. Um grupo tribal empurrava outro mais para o oeste e assim por diante, até acabarem Danúbio quando ou o Reno penetrandochegaram no antigoàmundo Em 376, troar desseatravessando movimento ocomeçou os eostrogodos regiãoromano. hoje ocupada poro primeiro Sérvia e Bulgária. Foram seguidos por outra tribo, a dos alanos, e depois pelos visigodos, que se estabeleceram na França central antes de seguirem para a Espanha. Em 406, mais tribos entraram na Gália pelo Reno, que tinha congelado. Os hunos chegaram em 441. Os vândalos não demoraram a alcançar a Espanha e o Norte da África e, posteriormente, saquearam Roma. A princípio, as tribos germânicas em geral são classificadas como escandinavas; em seguida, como os povos do mar do Norte, incluindo jutos, anglos e saxões que migraram para a Inglaterra, a Escócia, partes da França e para os Países Baixos; e, mais tarde, os lombardos, os burgúndios, os vândalos, os godos e 4 outros que chegaram em grande quantidade através da França até Espanha e Itália. E atrás dos germânicos chegariam os próximos migrantes invasores, os eslavos. Com isso, veio a destruição de cidades e igrejas, saques constantes e muita miséria para os agricultores estabelecidos do continente pós-romano. Criaram-se novos reinos, forjados por chefes militares que logo desapareceriam, um padrão célere de domínios de parasitas e invasores. O recuo do domínio romano deixara em sua esteira uma paisagem de cidades muradas, campos cultivados e grandes propriedades que ainda existiam quando os saqueadores chegaram. Nem os proprietários de terras produtoras de vinhas no sul da França, nem as autoridades de Toulouse ou Milão, nem as grandes casas de campo nos vales dos rios tinham ideia de que seu mundo estava se acabando. Fora da Britânia, os invasores encontraram uma resistência pouco organizada enquanto tomavam posse de paisagens mais férteis e clementes do que qualquer outra que já tinham visto. Agricultores se prepararam para tempos difíceis. O mais sensato em tempos de perigo era conseguir proteção. As migrações levaram muitos camponeses a se tornarem servos voluntários, aceitando o controle de um proprietário de terra vestido de armadura ou de um cavaleiro em troca de certo número de dias de trabalho em sua terra e de pagamento em grãos ou animais de criação. Esse novo começo resultou no sistema feudal, que por sua vez produziria
novas identidades políticas. Para muita gente, talvez para a maioria das pessoas, essas identidades eram mais bem definidas pelos proprietários de terras do que pelos reis — por dinastias como os Percys, os Sforzas, os Douglases e os Brandemburgos. Os migrantes tribais germânicos deram imensa contribuição à á variada mistura linguística e cultural da Europa, uma vez que celtas, latinos, iberos, judeus e gregos ali permaneceram em grandes números. Em essência, os séculos seguintes de história europeia foram a narrativa do processo de digestão e acomodação desses invasores. Mas como isso poderia ser boa notícia? A resposta é que a competição funciona. Pode ter levado alguns séculos de pancadaria, mas a fixação e aglomeração de tribos produziram uma Europa de culturas vigorosamente competitivas, que se tornariam os Estados dinásticos e territoriais de tempos ulteriores. Lombardos, normandos, francos orientais e francos ocidentais se converteriam em italianos, franceses e alemães. O duradouro conflito entre invasores bretões e nórdicos acabaria forjando a Inglaterra e a Escócia, e a Conquista Normanda de 1066 produziria uma das nações bastardas mais estranhas e bem-sucedidas da região. Em vez da subjugação a um único imperador e a uma única autoridade teológica, a Europa avançaria graças à competição e ao conflito, uma cultura ruidosamente inquieta e agressiva. A prática de lidar com séculos de migrações tornou inevitável essa mudança de rumo. * ** A segunda bênção disfarçada já foi mencionada: o fato de que os norte-europeus estavam isolados do resto do mundo. Os poderosos califados islâmicos, que se estendiam do norte dos Pireneus, através do Norte da África, até o Oriente Médio e a Ásia central, atuavam como um cordão de isolamento religioso e militar, que poucos cristãos se arriscariam a penetrar. Invenções de outras partes do mundo, da álgebra ao papel, da pólvora à porcelana, levavam muito tempo para chegar à Europa. A perda de poder no que tinha sido o oceano romano, o Mediterrâneo, significava que a “cristandade” tinha de se voltar para o norte. Isso forçou o desenvolvimento de antigas províncias romanas, que se tornariam a França, a Borgonha e a Britânia, agora plenamente inseridas no mundo cristão. Nas planícies europeias, com seus espessos solos de argila e marga, florestas eram derrubadas e pesados arados preparavam a terra para uma paisagem de cevada e trigo. Os papas recorriam a governantes francos e germânicos em busca de proteção, porque não tinham mais ninguém a quem pedir socorro; na permuta, os francos, lombardos e godos foram amansados por influências sulistas. Cidades do norte da Itália ganharam importância. Gênova e Veneza se tornaram repúblicas mercantes independentes. As cidades e guildas independentes da Alemanha e da Holanda desenvolveram tecnologias e habilidades próprias. As cidades comerciais da Liga Hanseática formaram um sistema estreitamente interconectado. O comércio de lã inglesa difundiu-se pelo continente. Ingleses, irlandeses e escoceses, relegados à periferia da Europa depois da retirada das legiões romanas, voltaram a desempenhar papel central como missionários, combatentes e negociantes. Reinos dinásticos como o da Borgonha, o dos Habsburgos, o dos Jagiellons, na Polônia, e o dos Plantagenetas criaram imensos domínios feudais sem muita lógica geográfica. Houve uma exceção significativa nesse relativo isolamento: a grande civilização islâmica de alAndalus, onde hoje ficam Espanha e Portugal, que veremos mais adiante. Espremidos contra o mundo muçulmano, fosse nos reinos espanhóis nortistas de Aragão, Castela e Leão, ou nos dos Bálcãs, como Sérvia e Valáquia, os cristãos se definiam coletivamente como uma cultura em combate na linha de frente. O mais famoso exemplo dessa condição, as quatro grandes Cruzadas que visavam reconquistar Jerusalém
e a “Terra Santa” da Palestina dos árabes muçulmanos, começou como uma tentativa do papado de mobilizar europeus e fortalecer a autoridade de Roma. Embora algumas terras do Oriente Médio tenham sido conquistadas e mantidas por gerações e apesar de o chamado para a guerra contra os pagãos ter inspirado devoção em massa, sua brutalidade e o número de mortos que deixaram fizeram das Cruzadas um tremendo fracasso. Elas envenenaram, de modo fatal e quase permanente, a atmosfera reinante entre as duas grandes religiões abraâmicas e demonstraram, sem deixar margem a dúvidas, que a adoção de Jesus de Nazaré por Constantino tinha corrompido sua mensagem: a Cruz do sofrimento, da piedade e do perdão gravada nos estandartes dos cavaleiros invasores não fazia o menor sentido. As Cruzadas levaram o ânimo militar de volta para o coração da Europa. Os cavaleiros teutônicos criaram seu próprio Estado na Prússia e na Livônia, transformando-se de irmandade guerreiro-peregrina dedicada à derrubada do povo pagão do norte num mini-império à sua maneira. Sangrentas guerras religiosas contra os hereges cátaros no Languedoque francês tornaram-se ainda mais brutais com a participação de cavaleiros militantes que já haviam estado em campos de batalha e perdido muito de sua clemência. Também não podemos esquecer aqueles que, com crescente inquietação, compartilhavam o continente e suas ilhas sem, no entanto, compartilhar suas principais raízes linguísticas ou ideias políticas — povos como os celtas irlandeses e os seguidores dos xamãs escandinavos. Na Escócia, a ideia desconhecida de monarquia — monarquia não de território, mas de pessoas voluntariamente reconhecendo um líder — veio à tona. Partes da Germânia eram governadas não por senhores feudais convencionais, e sim por bispos. A Europa não só fervilhava de povos competidores — ela também fico com uma variedade de estruturas políticas muito maior do que qualquer outro lugar do planeta. Como umaEm reação química, elementos misturados e comprimidos. última análise,osaté mesmo eram a divisão da cristandade em duas metades — latina-romana-papal no ocidente e grega-bizantina-ortodoxa no oriente — era uma força, e não uma fraqueza. Bizâncio, cuja história virá mais tarde, resistiu durante séculos a atacantes tanto do noroeste germânico e eslávico como do leste tártaro e muçulmano. Depois de Justiniano, foi incapaz de exercer influência verdadeira na Itália. Isso deixou a Roma cristã livre para desenvolver sua própria teologia e seu sistema continental de bispados, mosteiros e alianças nos escombros do mundo romano. Na arte e cultura religiosas, assim como no sistema feudal de propriedade da terra e nas cidades livres, a Europa Ocidental seguiu caminho próprio. As cidades-Estado e os governantes locais, quando por fim se tornaram ricos e seguros o suficiente para voltarem a buscar os conhecimentos e técnicas do mundo clássico perdidos — conhecimentos preservados tanto pelo islã quanto por Bizâncio —, os exploraram com vigor, cada um à sua maneira. Naquela época, ninguém poderia prever isso. Enquanto os saxões cantavam seus poemas de guerra, o sofisticado japonês Murasaki Shikibu escrevia seu romance épicoO conto de Genji. Quando chefes militares como Offa, da fronteira galesa-britânica, decidiram cunhar moedas, produziram cópias grosseiras e desajeitadas dos dinares muçulmanos. E, mais tarde, quando as primeiras grandes catedrais sicilianas, alemãs e francesas estavam sendo erguidas, em outras partes do mundo obras de pedra igualmente extraordinárias eram produzidas por toltecas e maias. Antes de os europeus verem o papel pela primeira vez, os chineses já o usavam como moeda. No século 1100, enquanto os ingleses se despedaçavam no conflito sobre a ascensão dos Plantagenetas e os alemães e italianos vadeavam em sangue durante suas guerras de sucessão, Angkor Wat — que viria a ser o maior edifício religioso do mundo criado pela civilização khmer doanimadora. Camboja, primeiro como um centro hindu, posteriormente budista.— Emerasuma, a Europa não parecia muito A idade de ouro do islã
O ano 711 não é muito lembrado hoje em dia, mas a invasão muçulmana da Espanha abalou a cristandade e aterrorizou governantes bem mais ao norte. Durante a maior parte de sete séculos, castelos, mesquitas e cidades sob o domínio de governantes islâmicos contestaram a ideia de que “Europa” e “cristão” eram sinônimos. O reino visigodo da Espanha, que logo desmoronou depois que os exércitos árabes fizeram a curta travessia para Gibraltar, não foi modelo atípico da Europa pós-romana. Seus governantes germânicos, apesar das frequentes disputas entre si e da versão anticatólica do cristianismo que adotaram, conseguiam administrar uma sociedade relativamente bem organizada, lavrando a terra, vivendo com simplicidade nas grandes ruínas da era romana e falando uma versão deteriorada do latim. Os visigodos não eram tão diferentes dos carolíngios na França, dos saxões na Inglaterra ou dos ostrogodos na Itália. Não obstante, nove anos depois do primeiro avanço exploratório árabe, os visigodos tinham perdido quase toda a península. Os exércitos árabes só foram detidos em Poitiers, na França, e ainda assim porque suas linhas já estavam estendidas demais. Os “árabes” que avançavam pela Espanha eram, na verdade, uma vívida mistura de povos. Alguns vinham de onde hoje ficam a Arábia e o Iêmen, outros eram sírios, e outros eram berberes do Norte da África, recém-convertidos ao islamismo. Europeus apavorados chamavam-nos de “mouros”, mesmo quando aprendiam com eles. (A dança morris inglesa, por exemplo, é a rigor dança “moura”, surgida entre os muçulmanos africanos.) O que os europeus não sabiam era que essa erupção moura na Espanha só tinha acontecido por causa de um evento cataclísmico do outro lado do Mediterrâneo. Em 750, a dinastia omíada, cujo império se estendia por oito mil quilômetros e que tinha sido a sucessora indiscutível dodoprofeta, foi derrubada, sangrenta revolta, pelosárabes abássidas. O califado, essa expressão essencial islã político, adquiriranuma imensa importância. Muitos ressentiam-se dos antigos funcionários bizantinos e persas que aparentemente assumiram o controle e dos sírios que formavam uma falange em torno do governante. Por isso se rebelaram. O novo califado abássida sobreviveria centenas de anos, mudando a capital do mundo muçulmano de Damasco, no interior, para uma nova e grande cidade, Bagdá — com consequências decisivas, uma vez que isso, por si só, tornou o islã mais oriental. Mas o novo califado não incluiria al-Andalus. O neto de um dos califas omíadas derrotados fugiu para a Espanha, onde ele e seus sucessores passariam a governar um Estado independente. Ao contrário do califado, que girava em torno de Bagdá, esse Estado achava-se enfiado, de forma provocadora, bem dentro de território cristão. Al-Andalus alteraria irreversivelmente a cristandade, sobretudo devido às realizações intelectuais e comerciais de sua rival, Bagdá, com a qual mantinha estreito contato. Os abássidas se consideravam herdeiros dos conhecimentos dos gregos antigos, dos persas e dos hindus. Parte de suas queixas contra os cristãos de Bizâncio era que estes tinham esquecido ou evitado a grande herança cultural clássica. E estavam certos. Além disso, na cristandade ocidental também houvera um desinteresse deliberado pelos conhecimentos da idade clássica, em favor de uma visão de mundo fervorosa e impregnada de Deus e de símbolos. Isso tornava os francos, germânicos e ingleses, entre outros, uma gente bastante espiritual, mas não muito bem informada sobre o mundo material à sua volta. Eram incapazes de saber, com precisão, a hora do dia e lutavam com um calendário defeituoso e falho. Sua matemática era primitiva, de escola primária, e a geografia, apenas um pouco melhor. A forma do mundo fora da Europa e do Oriente Próximo era um mistério; era, muito chata e, se viajassem muito, acabariam caindo. Já os abássidas contudo se orgulhavam de suaprovavelmente, curiosidade e de sua sólida ciência num mundo que tinham mapeado e cuja circunferência mediram. Era quase a imagem inversa do Mediterrâneo dos anos 1700, quando os
cristãos tinham se apaixonado pela ciência e pela tecnologia e o mundo muçulmano tornara-se conservadoramente impregnado de Deus e hostil à indagação intelectual. Isso devia ter algo a ver com ambição territorial. Assim como os europeus de vocação marítima de tempos posteriores estavam chegando a outros continentes e lutando para compreender as civilizações indiana e chinesa, os abássidas estendiam-se por cerca de seis mil quilômetros em terra, do Atlântico aos confins da Índia. Os europeus precisavam de novos instrumentos para se orientar nos oceanos; os muçulmanos abássidas necessitavam deles para encontrar o caminho através de desertos e cordilheiras, assim como através do mar. Os europeus encontraram novas paisagens, com novos animais e plantas, que puseram à prova (e depois derrubaram) suas ideias sobre como era feito o mundo. Bem antes disso, pensadores muçulmanos tinham deparado com ideias provenientes de muitas e diversas fontes, num império transbordante de judeus, gregos, persas zoroastrianos e cristãos não ortodoxos, e lutavam para untar essas ideias de forma consistente. Eles tinham o maior desprezo pelos europeus cristãos. O geógrafo al-Masudi explicou que, por causa do frio e do clima sombrio, “os corpos são grandes; a natureza, rude; as maneiras, ásperas; a compreensão, lenta; e as línguas, pesadas”.5 A matemática é o exemplo mais óbvio do sucesso desses pensadores muçulmanos. Em 762, o califa al-Mansur tinha disposto sua capital, Bagdá, num círculo perfeito, uma graciosa homenagem ao matemático grego Euclides. Al-Mansur foi um governante que teve autoconfiança suficiente para incentivar um ressurgimento dos estudos persas e estender a mão aos chineses, mandando milhares de mercenários para ajudar em suas guerras locais. Em Bagdá, a Casa da Sabedoria, que combinava centro de pesquisas com biblioteca e faculdade, fervilhava de debates sobre direito, astrologia, medicina, geografia e muitos outros assuntos. Ali, a matemática era particularmente valorizada. Por que era assim? Uma razão fundamental tinha a ver com astrologia, a decifração dos astros que, segundo os muçulmanos e os cristãos, permitia prever o futuro, porém exigia “a mais absoluta exatidão de instrumentação e cronometragem, preparando tabelas de astros exatas não só até os minutos, mas até os segundos e mais além”.6 Outra explicação é que, com medições precisas, poderiam produzir mapas confiáveis de seus vastos domínios. Além disso, entendendo a rotação e a curvatura da Terra, poderiam calcular a direção exata de Meca ao fazer suas preces. Acrescente-se a essas preocupações místicas, imperiais e religiosas uma paixão desinteressada por números e padrões e o fascínio dos abássidas pela matemática fará todo sentido. Tentandoaoestabelecer exatidão a circunferência da Terra, o califa al-Mamun topógrafos deserto paracom avaliar a altitude do sol. Os homens foram divididos em dois enviou grupos, seus que marcharam em direções opostas, medindo enquanto caminhavam, até os cálculos mostrarem que tinham percorrido um grau do meridiano. Nos anos 820, os europeus não teriam entendido o que o califa estava fazendo e muito menos por quê — pelo menos não mais do que os nativos sul-americanos entenderam os sextantes e telescópios quando o capitão Cook chegou. Mas os matemáticos muçulmanos não trabalhavam isolados. Alguns anos antes, em 771, um grupo de eruditos hindus tinha ido da Índia a Bagdá levando textos científicos, entre os quais uma explicação da função seno — que, desenvolvida por pensadores islâmicos, produziria a álgebra moderna. O maior matemático daquela época, Muhammad al-Khwarizmi, provavelmente uzbeque, aperfeiçoo tabelas matemáticas para mostrar a posição exata do Sol, da Lua e dos cinco grandes planetas e, com isso, determinar a hora exata. Sistemas indianos de números, os “numerais árabes” de hoje, o uso do zero e de frações decimais foram cruciais para o novo mundo de al-Khwarizmi. Sua obra sobre álgebra, intitulada O livro de restauração e equilíbrio , usa as tabelas como provas na ciência mais antiga da
geometria. Suas especialidades particulares incluíam equações quadráticas, essenciais para a ciência da computação moderna. Acrescente-se à matemática de al-Khwarizmi a abrangente tradução e estudo de fontes gregas e sânscritas, as descobertas na astronomia, na medicina, nas ciências naturais, na engenharia, no manejo das águas e na preparação de mapas e começa-se a ter uma ideia de como o império abássida estava adiantado. Esse era o islã jovem, o islã de olhos abertos, decidido a explorar novos mundos, devoto, mas de uma praticidade aterradora e intelectualmente ambicioso. Seu campo de visão incluía a África Subsaariana, as costas da Índia e do mar Vermelho e até a Rússia. Enquanto as realizações abássidas cresciam e amadureciam, poucos ocidentais, como o rei normando da Sicília Roger II, se dispunham a aprender com elas. Mas o poder ascendente do papado, procurando à sua volta uma causa unificadora, via o califado muçulmano como um bando de horríveis pagãos polígamos. É difícil fazer uma cruzada contra alguém e aprender com esse alguém ao mesmo tempo. Se o mundo muçulmano rival de al-Andalus não tivesse existido, grande parte desse precioso conhecimento talvez ainda levasse séculos para chegar à Europa. Embora a derrubada da nobreza visigótica da Espanha tenha sido rápida como um raio, deixando os governantes cristãos encurralados num canto minúsculo, úmido e montanhoso do norte da península, os conquistadores muçulmanos nunca se sentiram totalmente seguros. A história política de al-Andalus, da década de 700 até a derrota final em Granada, último reduto da Espanha mourisca, em 1492, é tão repleta de rixas dinásticas, rebeliões, invasões e derrocadas espetaculares como qualquer outra parte da Europa. Desde o início, as ameaças de fanáticos religiosos do Norte da África e de saqueadores vikings eram, com frequência, sérias do que do os desafios ao norte. E as violentas que tinham formadomais a maior parte exército dos de cristãos conquista encabeçado pelos tribos árabesberberes rebelavam-se periodicamente, com algum êxito. O fugitivo príncipe omíada que fundou o reino de al-Andalus, Abd al-Rahman, tinha chegado do Norte da África com um pequeno exército para tomar o poder. Em Córdoba, em 756, ele se declarou “Amir”, ou governante civil. Cuidou dos rebeldes abássidas pondo suas cabeças em salmoura e mandando-as de volta para Bagdá, o que, ao que tudo indica, foi uma declaração de independência muito eficaz. Abd alRahman reinaria durante 33 anos, dividindo a península em porções administráveis, forjando um formidável exército de escravos, muitos deles cristãos, e estabelecendo uma capital gloriosamente bela em Córdoba. Ali sua grande mesquita ainda pode ser vista, embora com o bolo de noiva de uma catedral gótica enfiado no meio. Sua mundialmente famosa floresta de arcos esbeltos, com faixas creme e rosa, é uma metáfora de pedra perfeita do próprio al-Andalus. Os arcos duplos imitam edifícios romanos, sobretudo os aquedutos espalhados por toda a Espanha, mas o efeito lembra palmeiras brilhando no deserto distante; clássica como um oásis. A mesquita foi construída em cima de uma igreja, porém os cristãos receberam outros lugares para construir suas igrejas. E, embora a arquitetura seja, sem dúvida, “muçulmana”, as decorações de mosaico são de autoria de artesãos bizantinos. Tivera início uma complicada conversa entre religiões rivais. Afinal, esse reino exótico nada tinha de raça pura. Grande parte da população continuou cristã — apesar de muitos terem se convertido para evitar o pagamento do imposto cobrado aos que não se convertiam. Os cristãos que viviam pacificamente sob domínio muçulmano eram chamados de “moçárabes”; os que se convertiam eram “muladis”. Alguns desses últimos, por se sentirem tratados com desdém pelos árabes, tinham tendênciaque à rebelião, houve uma feroz e persistenteEm revolta sob o carismático rei-bandido Ibn Marwan, depois seereconverteria ao cristianismo. geral,muladi os judeus eram mais bem tratados do que em qualquer reino cristão. Escravos podiam fazer carreira na grande burocracia real de Córdoba, e mulheres cristãs eram tomadas como concubinas, de modo que, para
complicar ainda mais as coisas, alguns dos emires mais poderosos pareciam mais europeus do que árabes, com cabelos louros arruivados e olhos azuis. Era uma terra de alianças e traições. Reinos cristãos buscavam apoio de governantes muçulmanos em suas próprias disputas locais, e muçulmanos se aliavam com cristãos. Mesmo El Cid, o grande herói guerreiro cristão, lutava para governantes muçulmanos de vez em quando, desde que fosse bem pago. A paisagem da Espanha central e meridional, atulhada de castelos cristãos e mouros, muralhas fortificadas e torres de menagem em ruínas, demonstra o tipo de fronteira selvagem que foi a região. Contudo, era muito mais complicado do que uma simples luta de católicos contra o islã. Al-Andalus era, acima de tudo, uma censura brilhante aos miseráveis e lamacentos reinos da Europa setentrional. Córdoba tornou-se uma das maiores cidades do mundo, com uma vasta biblioteca de mais de quatrocentos mil volumes numa época em que mesmo os mais importantes mosteiros cristãos se gabavam de possuir no máximo algumas dezenas. Sob o melhor dos seus governantes, Abd al-Rahman III, a cidade dispunha de centenas de casas de banho públicas e excelentes instalações com água corrente, enquanto até mesmo os mais magníficos reis cristãos ainda fediam. Sob al-Hakam II, ela se declarou abertamente rival intelectual da Bagdá abássida, importando especialistas, sobretudo no uso do astrolábio, o belo e engenhoso aparelho usado para medir o ângulo do Sol, da Lua e das estrelas visíveis e com isso determinar a longitude da posição do observador. Inventado pelos gregos, o astrolábio tornou-se uma espécie de computador simples e universal para os muçulmanos, que o utilizavam em tudo, da astrologia à arquitetura. Quando os conhecimentos muçulmanos chegaram ao norte da Europa, o astrolábio converteu-se em símbolo da nova ciência natural: Chaucer foi um dos que o celebraram em letra de forma. Embora al-Andalus fosse um reino independente, as obrigações muçulmanas do hadji e a eterna azáfama do comércio mantinham os dois lados do Mediterrâneo estreitamente ligados, assegurando a fama de Córdoba. Os imensos palácios e fortalezas de al-Rahman atraíam embaixadas embevecidas tanto do mundo cristão — Paris, Roma e Constantinopla — como do Cairo, de Bagdá e de Damasco. As ruas de Córdoba eram limpas, pavimentadas com pedra e iluminadas à noite, as bibliotecas abrigavam algumas das mentes mais afiadas conhecidas na época, que nelas aprimoravam seus conhecimentos de matemática, astrologia, gramática e astronomia. Mais tarde, quando o califado caiu e a Espanha muçulmana se desfez em miniestados rivais, ou taifas , a erudição e a expertise permaneceram. Embora os remanescentes mais óbvios de hoje sejam muralhas fortificadas e ruínas de castelo espetaculares, que dão testemunho de séculos de fronteiras em transformação e de guerras religiosas, os maiores produtos árabes importados incluíam uma compreensão adequada da aquicultura, da drenagem e das rodas hidráulicas e novas lavouras do Oriente Médio e da Índia que fizeram o sul da Espanha florescer com berinjelas, pêssegos, damascos, laranjas, limões, melões, peras, algodão, arroz e até vinhedos. E bem mais tarde, na época da mais austera dinastia Almohad, que encerrou o caótico períodotaifa depois de lançar uma invasão a partir das montanhas da Espanha berbere, al-Andalus ainda podia se gabar de abrigar alguns dos maiores pensadores da Europa. Eles incluíam Ibn Rushd, ou Averróis, como os cristãos o chamavam, que foi juiz e advogado em Córdoba, o mais importante dos pensadores muçulmanos e especialista em Aristóteles, e Moisés Maimônides, médico e filósofo judeu, autor deGuia dos perplexos . O grande debate filosófico da época, que abalou o mundo muçulmano, lançava pensadores radicais contra ortodoxos. encabeçado pelo persaa partir Avicena, reconciliar a fé com a filosofiareligiosos racionalista grega deFoi Aristóteles. Escrevendo dos que anostentava 1020, ele fazia clara distinção entre um Criador remoto e eterno e um complexo mundo diário de causa e efeito, que, no seu entender, poderia ser investigado e compreendido de forma independente. Sugeriu que Deus apenas montara o
mundo, deixando-o, depois, seguir seu curso mais ou menos por contra própria, segundo regras que a humanidade poderia descobrir. Era um convite aos curiosos e aos determinados, mas repousava numa versão de Deus passiva e remota que não era a dos pensadores muçulmanos ortodoxos: o Deus deles estava profunda e ativamente envolvido com o mundo. O mais famoso desses pensadores ortodoxos, al-Ghazali, que escreveu na última parte do século XI, fustigou Avicena num livro com o esplêndido título deA incoerência dos filósofos. Mas ele, por sua vez, foi atacado por Averróis, que também distinguia o mundo da eternidade, fora do tempo, onde Deus existia, do pitoresco e malcheiroso mundo diário de causa e efeito explicado por Aristóteles. Como Avicena, ele abria espaço para a razão e a investigação humana — uma bolha para o florescimento do Iluminismo dentro de um universo feito por Deus. Dificilmente poderia ter havido uma proposição mais abrangente para o mundo da época. Só dessa maneira a herança exploratória e filosofante dos gregos daquela primeira idade da razão teria possibilidade de ser revivida na Ásia e na Europa dominadas pelas religiões judaica, cristã e muçulmana. Era um convite para reavaliar opiniões, um grito de guerra contra a tendência a deixar tudo entregue passivamente à vontade de Deus. Para Averróis, era como um desafio pessoal. O debate foi acirrado. Uma de suas obras principais, uma retaliação contra al-Ghazali, tem um título ainda melhor:A incoerência da incoerência. Averróis, embora incumbido por um califa andaluz de pensar radicalmente, ultrapassou todos os limites e foi expulso de Córdoba em 1195, tendo seus escritos queimados. Entretanto, tendo sido traduzidos para o latim e mais tarde descobertos pelos cristãos que dominaram redutos muçulmanos, esses livros teriam imensa influência no Ocidente. O historiador Jonathan Lyons diz que ele deu à Europa “uma abordagem totalmente filosofia, que mudou para sempre o cenário tradicional do pensamento ocidental. Isso coloca Averróisracionalista quase cincodaséculos à frente de Descartes, [...] o candidato do 7 Ocidente a fundador da filosofia moderna”. Situados no mesmo nível dele estavam Avicena e Moisés Maimônides, o judeu andaluz que adotou uma visão igualmente radical e contestadora do espaço da bolha dentro da qual o homem poderia raciocinar e discutir. Esses homens merecem ser tão conhecidos quanto Voltaire, Hume ou Montesquieu. O fluxo de filosofia árabe e andaluz para o mundo cristão tinha sido iniciado pela captura de Toledo de al-Andalus em 1085, revelando um tesouro de livros e manuscritos de Córdoba e Bagdá. Monges e tradutores vieram em seguida. Eruditos como Duns Scotus, de Oxford, levaram Averróis e, portanto, Aristóteles, para um público cristão. Em Paris e Nápoles, o grande pensador cristão Tomás de Aquino absorveu seu estilo de argumentar e, embora discordasse de certos aspectos de Aristóteles, viu no andaluz uma inspiração vital, que foi transmitida para Dante em Florença. Esses primeiros cristãos aristotélicos depararam com uma resistência dos papas e bispos igual à dos califas e imãs às ideias de Averróis e Maimônides. Argumentos islâmicos sobre a natureza de Deus e a margem para a razão humana desvendar a natureza foram repetidos, quase nos mesmos termos, nas primeiras universidades europeias, em debates entre professores e estudantes em Paris, Bolonha e Roma. A Europa acordava. Ocorreu uma transferência parecida de conhecimentos em astronomia e matemática, influenciando futuros pensadores europeus como Copérnico e Fibonacci. É aqui que tem início a longa estrada europeia para o Renascimento e, mais tarde, para o Iluminismo. Sem al-Andalus, esse movimento não teria começado tão cedo e com tamanha determinação. A Espanha muçulmana teria retrocedido e enfim desmoronado não por causa de uma exótica decadência moura — banhos demais, refrescos de frutas em excesso —, mas por uma razão mais prática e conhecida: a divisão política. Os árabes tinham conseguido, srcinariamente, derrubar os visigodos porque um governante visigodo não podia ver outro governante visigodo sem esporear o cavalo e atacar; o mesmo se deu em al-Andalus. A autoridade religiosa e moral dos emires foi enfraquecida por revoltas e caprichos de linhagem. Levas de
novos invasores, proclamando visões mais austeras do islã, vinham do Norte da África, restauravam a ordem e logo eram contestadas e derrotadas. Pelo começo do novo milênio, cada divisão muçulmana, cada período de instabilidade, representava outra oportunidade de ascensão para os reinos cristãos no norte. Rio viking A história política da Rússia começa com uma rota comercial e um povo apavorado. Os eslavos eram agricultores e criadores de gado que viviam no que hoje é o sul da Rússia, em partes da Europa Oriental e da Ucrânia, no norte do mar Negro e no oeste do Cáspio. As primeiras menções feitas por historiadores bizantinos em meados dos anos 500 falam de aldeias pobres e guerreiros primitivos, que falavam uma língua tosca e incompreensível. Contudo, os eslavos não eram apenas mais um povo nômade deslocandose para oeste através da Eurásia. A arqueologia revela fortes em montanhas, arados de ferro e peças de cerâmica. Eles lavravam o rico solo negro, perseguiam a caça abundante e pescavam em lagos e rios, além de serem capazes de sobreviver a invernos extremamente severos. Mas, apesar dos esforços de historiadores nacionalistas modernos, ainda permanecem misteriosos se comparados a outros povos. Vivendo em lutas frequentes entre si, os eslavos eram vulneráveis à chegada regular de novos povos nômades, como os hunos e os búlgaros, que avançavam para oeste através da Ásia. A mais notável das culturas da área nesse período foi o império cazar, um Estado feudal onde viviam muitos eslavos em relativa segurança. Os cazares têm importância histórica mundial porque, geralmente aliados a Bizâncio, frustraram a marcha para o norte do islã árabe pelo Cáucaso nas décadas de 600 e 700, impedindo a conquista muçulmana da Rússia e da Europa Oriental modernas. Se o Estado cazar não tivesse existido, a Rússia provavelmente não teria se desenvolvido e se transformado em nação. Os líderes cazares, buscando uma religião mais avançada para substituir suas velhas crenças (que incluíam o assassinato ritualizado de governantes fracassados), converteram-se ao judaísmo. Duraram seiscentos anos, na periferia do mundo letrado, e pelo menos um de seus grandes líderes militares foi uma mulher. Mas, apesar de fascinantes, peculiares e importantes, entrariam em declínio antes que sua literatura e cultura fossem adequadamente preservadas ou compreendidas pela humanidade moderna e, por isso, continuam sendo uma das mais sedutoras das civilizações perdidas. O povo que derrotou os cazares alegava ter sido convidado para arcaica, protegermas os eslavos tantoverdade. de suas próprias guerras tribais como dos estrangeiros. Parece propaganda pode tero sido Seja como for, o povo apavorado, se podemos chamá-lo assim, viu-se sob o domínio de estrangeiros do norte. Tinham vivido com um patrimônio de imenso valor, um sistema fluvial tão extenso que ligava o luxuriante e rico mundo de Bizâncio e o Oriente Próximo aos povos de agricultores e caçadores da Escandinávia e do norte da Europa. Grãos, vinho, ouro, prata e tecidos de luxo seguiam para o norte por esses rios. Isso requeria centros urbanos. Entrepostos comerciais, vilas fortificadas e, posteriormente, cidades começaram a aparecer ao longo do Dnieper e do Volga e seus afluentes, mais ou menos como as pequenas cidades do centro dos Estados Unidos que se aglomeram em torno de rodovias e ferrovias. A Rússia começou pelos rios. Os que chegavam eram chamados de “rus” ou, em Bizâncio, de varangianos. Hoje são mais conhecidos como vikings, os respingos orientais da explosão de marujos-guerreiros e agricultores que se lançaram para fora de onde atualmente ficam a Noruega, Suécia e Dinamarca a partir de 700. Os exploradores, negociantes e saqueadores vikings constituíram a primeira grande erupção de europeus
para outras partes do mundo. Alcançariam lugares remotos, onde tentariam em vão estabelecer-se, incluindo a “Vinlândia” na América do Norte e a Groenlândia. Em outros lugares, como partes do leste da Grã-Bretanha, Islândia e norte da França, conseguiram se fixar. Seus descendentes, os normandos, criariam reinos na Sicília e conquistariam a Inglaterra anglo-saxônica. Aqueles escandinavos podem reivindicar um papel de destaque na criação deste país híbrido, a Grã-Bretanha, e também foram vitais para a formação da híbrida Rússia. Embora outros saqueadores, sobretudo os mongóis, viessem a ter enorme influência aqui, nenhum deles se revelaria um eficiente construtor de nações. Os vikings já desciam o rio para o sul em seus barcos mercantes de fundo chato muito tempo antes de alcançarem o mar Negro. As mesmas habilidades magníficas de construtores de barcos manifestadas em suas compridas e famosas embarcações marítimas, que lhes permitiam saquear mosteiros e vilas da costa sem aviso prévio, também os capacitavam a ir mais longe pelos rios do que qualquer outro povo. Os principais sistemas fluviais russos apresentavam obstáculos — quedas, corredeiras, rochas submersas —, o que significava ter de carregar ou rolar os barcos de uma seção de água livre para a próxima. As maiores barreiras eram as cataratas ao sul de Kiev, onde numa extensão de 65 quilômetros paredes de pedras agudas como navalhas interrompiam o fluxo sereno das águas: os vikings as 8 designavam por nomes como Intransponível, Sempre Feroz, Fervedouro e Força das Ondas. Mas os vikings orientais, da atual Suécia e de suas principais ilhas, já tinham aprendido, quando saqueavam e faziam comércio na Finlândia, que seus barcos leves podiam ser carregados onde houvesse barreiras terrestres. Podiam ir aonde outros não iam. Do grande lago Ladoga, no norte, seguiram rio abaixo, para o sul e para o leste, estabelecendo assentamentos a partir de 850. Bem a sudeste, no atual Afeganistão, ficava um rico assentamento muçulmano com imensas minas de prata, disposto a fazer negócio; e para os vikings a própria Bizâncio era apenas Miklagard, “a Grande Cidade”, fonte de infinitas coisas boas. Sua história será contada mais adiante, porém vale notar que na narrativa da Rússia, o importante era que os vikings chegaram a essa cidade dourada bem cedo, em 838. Depois tentaram saqueá-la duas vezes, mas foram repelidos por frotas bizantinas com seu “fogo grego” secreto e acabaram fechando um amigável acordo comercial. Eles teriam permissão para passar pelos muros da cidade a fim de fazer negócios, mas nunca em grupos de mais de cinquenta e sempre desarmados. Mais tarde, por causa da bravura guerreira, os imperadores bizantinos passaram a recrutar vikings como uma força de combate pessoal, a famosa Guarda Varangiana, cujos grafites rúnicos ainda hoje estão espalhados pelo Mediterrâneo oriental. Enquanto isso, bem mais ao norte, os vikings aos poucos formavam uma espécie de classe governante importada ao longo do Dnieper e do Volga. De acordo com suas próprias lendas, por volta do ano 862, três irmãos suecos, a pedido dos eslavos, ficaram para instituir um novo tipo de governo. AsCrônicas dos tempos passados russas (também conhecidas como As crônicas primárias russas), redigidas cerca de duzentos anos depois, por monges do belo e labiríntico Mosteiro das Cavernas de Kiev, com suposta base em histórias que lhes foram repassadas, afirmavam que “devido ao fato de não haver lei entre eles, mas apenas tribos em luta contra tribos”, o povo local dissera aos rus: “Nossa terra é vasta e rica, porém 9 não há ordem. Venha nos governar.” Mas por que os vikings se aventuraram tão longe de casa? E que possíveis credenciais teriam como construtores de nações? Para os europeus ocidentais eles eram, no fim das contas, terríveis saqueadores pagãos, sem lei ou misericórdia, animais marinhos extremamente vorazes. “Ó, Deus, livrai-nos da fúria dos nórdicos”, rezavam os ingleses. Muitos historiadores modernos sustentam que o gatilho familiar da superpopulação foi crucial para a expansão viking. No quente período perto do fim do Império Romano, a agricultura nas áreas mais difíceis do norte da Europa, como vimos antes, tinha tido mais êxito. O êxito do tipo que foi alcançado tende a criar um futuro gargalo demográfico. Comunidades de agricultores e
pescadores que desde o fim da última era do gelo viviam onde hoje ficam a Dinamarca, a Noruega e a Suécia descobriram que sobrevivia um número maior de meninos do que havia terras para cultivar. A cultura viking favorecia o filho primogênito, e logo surgiu um excedente de jovens sem qualquer futuro visível em casa. Séculos de pesca e de comércio local e a abundância de madeira das florestas já tinham lhes proporcionado habilidades para velejar que inevitavelmente sugeriram a ideia de aventurar-se através da aparentemente ilimitada “rota das baleias”. Os vikings eram guerreiros formidáveis, cruéis e implacáveis, mas na década de 700 essas qualidades não chegavam a ser exclusivas, em especial entre bandos de homens guerreiros longe da família. Aqueles homens não eram sequer escandinavos, mas incluíam finlandeses, escoceses, germanos e galeses.10 Só são lembrados como piores do que os saxões, os francos ou os borgonheses porque eram saqueadores mais eficazes. A rigor, esses bandos guerreiros eram rápidos em se estabelecerem, casarem com mulheres locais e assimilarem os costumes da região — caso contrário não teriam se estabelecido tão rápido no norte da Inglaterra, na França e no Mediterrâneo. Os ferozes guerreiros nórdicos, com seus mitos sangrentos e barcos com proa de dragão, podiam ser domesticados. Alguns se tornariam duques da Normandia e, mais tarde, reis da Inglaterra. O ramo oriental, porém, produziu os russos. Rurik, o mais velho de três irmãos que chegaram para governar os eslavos locais, talvez seja uma figura meio mítica, no entanto, fundou uma dinastia que duro quinhentos anos. A cronologia inicial não faz sentido, mas Igor, filho de Rurik, sem dúvida foi uma figura histórica. Em 941, tentou, sem êxito, saquear Bizâncio com mil navios, e sua mulher, Olga, foi a primeira rus importante que se converteu ao cristianismo. Depois da morte do marido, passou a governar e foi a Bizâncio para se batizar. Sua capital, Kiev, aos poucos se transformou de um grande acampamento comercial de cabanas de tora de madeira, oficinas e depósitos numa fortaleza real cristã, combinando 11 costumes de guerreiros suecos com novas ideias aprendidas com os cazares e os bizantinos. Os eslavos eram uma parte importante do comércio do sul, junto com aves de caça e pele de animais. A cunhagem de moedas muçulmanas surgiu depressa nas cidades comerciais da Suécia, sobretudo na ilha de Gotland. Mas a exaustão das minas de prata afegãs dos muçulmanos levou a um colapso econômico em Kiev, e o filho de Olga — que recusou o batismo cristão — partiu para cima dos cazares e, depois, desastrosamente, de Bizâncio. Esse é um episódio central dos primórdios da história russa, pois um dos filhos dele , Vladimir, um bastardo que tinha fugido para a Suécia, correu em auxílio do pai, voltando com uma multidão de seguidores. Depois de estabelecer suas bases na cidade comercial nortista de Novgorod, o rapaz o líder do povo rus.viajou para o sul, descendo o Dnieper, tomou Kiev, matou um meio-irmão e tornou-se Embora santificado com uma estátua imensa e presunçosa que dominava a cidade, Vladimir era um idólatra pagão com atitudes anticristãs para com o casamento (um cronista o descreve comofornicator immensus). Seu êxito inicial baseou-se em saques de tribos e cidades, trazendo dinheiro como tributo para Kiev. Mas depois de fracassar diante dos búlgaros muçulmanos, nos anos 980, Vladimir parece ter resolvido se converter. Porém, ele não estava certo em relação à qual variedade do monoteísmo deveria se converter. Consta que para isso convocou representantes do cristianismo ocidental, católico, do cristianismo oriental, ortodoxo, do judaísmo e do islamismo, para explicarem e debaterem suas crenças diante dele. A história de que o rei guerreiro sueco descartou o islã porque se horrorizou com sua insistência em banir o álcool talvez seja apócrifa, mas a decisão de Vladimir de optar pelo cristianismo ortodoxo foi muito importante. Dizem os cronistas que seus embaixadores o influenciaram com relatos sobre a magnificência da igreja Santa Sofia em Constantinopla. “Não sabíamos mais se estávamos no cé ou na terra.”12
Bizâncio era rica, mas politicamente sitiada. Seu imperador, Basílio II, sob a pressão de revoltas búlgaras, precisava da ajuda dos vikings. Parte do acordo era que a irmã de Basílio, Ana Porfirogênita, de 25 anos, seria despachada para a distante Kiev a fim de se tornar a (mais recente) noiva de Vladimir. Se isso deve ter parecido um destino hediondo para uma princesa sofisticada, o fato é que funcionou: seis mil guerreiros vikings ajudaram o exército bizantino a repelir seus inimigos. Ana foi mandada pelo mar Negro, subindo o Dnieper até Kiev, onde se casou com Vladimir. Ele foi batizado e adotou o nome de Basílio em homenagem ao seu novo amigo e cunhado, o imperador. O principal ídolo da pagã Kiev foi derrubado, amarrado à cauda de um cavalo, arrastado, simbolicamente espancado com varas e jogado no rio. Os outros ídolos foram despedaçados e substituídos por imagens de santos, e igrejas foram construídas nos lugares que eles antes ocupavam. Cristãos já habitavam a terra do povo rus, mas foi então que teve início uma campanha de conversão. Vladimir levou artesãos e pedreiros de Bizâncio para construir uma igreja de pedra decorada com extravagância, onde ele e a mulher seriam sepultados, importou monges e a alfabetização e construi imensas muralhas fortificadas em volta de Kiev. Foram erguidos mosteiros extraordinários e igrejas de múltiplas torres, com cúpulas de madeira em forma de cebola, copiando os mais exuberantes voos de fantasia da arquitetura grega e bizantina, mas indo ainda mais longe. A “aparência” das cidades russas, com as estruturas de madeira pintada, a cidadela fortificada dos kremlins e as cúpulas douradas, nasce com Vladimir e a Kiev cristã. A partir de então, os assentamentos do povo rus se espalharam em direção às bravias terras tribais além dos grandes rios e o longo processo de construção nacional teve início. Suecos, miscigenando-se com eslavos e outros grupos, tornaram-se russos. Pagãos tornaram-se cristãos. Os povos do Dnieper e dodeVolhos olga adotaram o cristianismo ortodoxo, seus cultos perfumados fascinantes e seus ícones da Virgem tristes. Sob o governo de uma só família, cujos chefes ume dia imitariam as fantasias cesarianas de Bizâncio, chamando-se a si mesmos de “czares”, o sistema russo de funcionários aristocráticos começou a tomar forma. Isso tudo acontecia mais ou menos ao mesmo tempo que a Inglaterra normanda era fundada, num processo parecido de dominação militar seguida de assimilação. Tanto os saxões como os eslavos transformariam os nórdicos numa coisa diferente. Em ambos os lugares, a sangrenta política de sucessão dinástica se arrastaria por séculos, mas enquanto isso as cidades e os negociantes tornavam-se aos poucos maiores e mais ricos, de modo que tanto a Inglaterra como a Rússia ultrapassaram muito a terra natal dos vikings. Como seus velhos deuses, os nórdicos se tornaram metamórficos. Mali e Musa A história da África seria marcada pelos êxitos e fracassos da expansão muçulmana quase tão fortemente quanto a da Rússia. Negociantes e aventureiros muçulmanos nos deram quase tudo que sabemos sobre as civilizações africanas — e elas podem ser chamadas de civilizações por serem baseadas em cidades — da África ocidental subsaariana e da costa leste. Na época em que Bizâncio era pressionada pelos muçulmanos e o mundo do povo rus ainda se expandia, a África Ocidental era dominada por um mansa (“rei”) Musa. Era um homem fabulosamente rico. Quando visitou o Cairo em 1324 a caminho de Meca para a peregrinação muçulmana (ou hadj), distribuiu ouro como presente quecomo o preço despencou. também tornaria na Europa,tanto retratado no atlas catalão um do reimetal europeu, sentadoMusa em seu trono,secom coroaconhecido de ouro, orbe e cetro imperial. Seu império do Mali era famoso numa época em que os europeus tinham relativamente pouco ouro. Embora houvesse muitos mitos sobre a África, não era este o caso. Um
historiador africano moderno afirmou que o império de Musa era “muito mais forte, mais bem organizado e até mais letrado do que qualquer potência cristã da Europa”. 13 Ainda que seja exagero, não é tanto assim. E isso suscita grandes perguntas. O que de fato estava acontecendo ao sul do Saara, na África dessa época? Teria havido outros impérios dos quais pouco sabemos? E por que, se mansa Musa era um monarca do porte dos príncipes cristãos e dos califas árabes, a África não produziu outras civilizações poderosas e sofisticadas como a Europa? Para começar a responder, é preciso dar um salto para trás no tempo, porque a história africana diz respeito ao clima, aos minerais e à sorte. Em tempos pré-históricos o Saara não era um deserto, mas uma savana úmida e rica. Abrigava animais de caça e tinha grandes rios. Pinturas rupestres mostram girafas e crocodilos: durante milhares de anos, foi uma área de abundância para caçadores. Só há cinco mil anos começou a secar. Esse vasto dessecamento numa região do tamanho dos Estados Unidos de hoje teve efeitos importantíssimos para muitas sociedades. Separou os povos do Mediterrâneo e do Oriente Próximo daqueles da África subsaariana. Um oceano escaldante de brita mostrou-se uma barreira quase tão eficaz quanto os oceanos de fria água salgada. Ao norte do Saara, a história estava sendo escrita. Ao sul, em termo de escrita, predominava um silêncio pétreo. Não havia tantos animais ou plantas que pudessem ser domesticados com facilidade, nem uma abundância de caça e de bagas que adiasse a necessidade de cultivar a terra. A arqueologia pode ajudar a preencher os espaços vazios e está claro que sociedades humanas também se desenvolviam em ritmo bastante acelerado na África. Por volta de 2000 a.C., é provável que a revolução agrícola tenha atingido as terras, naquela época mais úmidas, da África Ocidental, nos limites do Saara, em torno do lago Chad e dos rios Senegal e Níger. Peças de ferro e esculturas já eram produzidas mais ou menos em 800 a.C., de modo que, embora essa parte do mundo só tenha saído da era dos caçadores-coletores depois da Eurásia, os conhecidos passos do desenvolvimento foram tão claros aqui como, digamos, na França ou na Turquia. O conhecimento de novas habilidades pode ter sido transmitido pelos núbios, na periferia dos territórios egípcios, ou por cidades do Mediterrâneo, como Cartago. Apesar de não terem deixado registros escritos, agricultores tocavam seus rebanhos através do deserto e mercadores continuavam, em pequeno número, a enfrentar o calor e a aridez, passando a se deslocar em caravanas de cavalos a partir de 1500 a.C. Existem antigos relatos gregos de guerreiros da África Ocidental que usavam carros de guerra, além de desenhos do deserto sobre carros de guerra puxados por cavalos. Hanno, o cartaginês, pode até ter tentado estabelecer portos marítimos na costa africana para facilitar o comércio; mas, teria sido difícil ir muito longe na direção sul com galés a remo, e não com os barcos à vela europeus de tempos posteriores. 14 Os romanos não tentaram fazê-lo, mas ouviram falar de povos dessa área que tinham muito ouro. Os primeiros indícios de vida urbana na África ao sul do Egito vêm de trechos do alto Nilo onde hoje ficam Sudão e Etiópia. Ali, uma série de reis e impérios de vaga memória — incluindo Kush, depois o cristão Axum — prosperaram entre os tempos antigos e meados do século 900. O uso do ferro difundira-se pelo continente num período de duzentos anos depois da queda de Axum, chegando a todas as partes, exceto o coração das florestas, onde o povo pigmeu vivia sem metal e ficavam as savanas mais áridas dos boxímanes no sudoeste. Depois disso, a agricultura africana em geral não avançou muito em comparação com a da Europa e da Ásia. Por que não? Uma teoria atribui o relativo atraso à falta de fortes animais de tração para puxar arados. O clima e as doenças representavam um desafio incontornável para cavalos ou bois — embora hoje eles sejam capazes de sobreviver ali, talvez mais bem protegidos pelo homem contra micróbios e predadores. A maior parte da África ficou limitada ao pastoreio e ao cultivo em pequena escala de
raízes, que raramente produziam riqueza excedente capaz de sustentar grandes sociedades. Houve exceções. Uma delas foi o Zimbábue, civilização do leste da África que utilizava imensas muralhas de pedras encaixadas sem argamassa para seus palácios e cidades e que teve seu apogeu entre 1250 e 1450. Esse povo viera provavelmente de Mapungubwe, um reino de pastores de gado e mercadores de ouro e marfim na África do Sul de hoje, que já viviam em cidades protegidas por muros de pedra. O reino do Zimbábue foi construído em escala bem maior. Na verdade, era tão grande que exploradores europeus de tempos posteriores se recusavam a acreditar que meros africanos pudessem ser os responsáveis por sua construção. O Zimbábue participava de um próspero comércio costeiro, dominado pelo islã, a religião e cultura de maior influência na África pré-colonial. Há provas da existência de uma rede comercial ao longo da costa do leste da África, que remontava aos tempos clássicos: moedas gregas, bizantinas e persas apareceram no Zanzibar e na Tanzânia.15 Os africanos com quem os estrangeiros faziam negócios talvez fossem os kushitas, que se mudaram para o sul. Mas os muçulmanos é que de fato desbravaram (e exploraram) as riquezas da África subsaariana. A partir de 700, os árabes atravessavam o Saara para saquear e negociar no sul e na costa africana do oceano Índico, estabelecendo enclaves e abastecendo-se de três coisas que os europeus depois iriam buscar — escravos, ouro e marfim. A história escrita da África subsaariana só começa quando mercadores árabes passaram a registrá-la, e é graças a eles que temos conhecimento das outras grandes exceções, os impérios do oeste subsaariano. Ali, a grande novidade tinha sido a domesticação dos camelos. Assim como os cavalos, provinham da América, onde estavam extintos. Na Ásia, tinham aumentado de tamanho e provavelmente foram domesticados primeiro na Arábia por volta de 2000 a.C. Indícios arqueológicos sugerem que chegaram ao Egito por volta de 700 a.C. Camelos já eram usados pelos exércitos como meio de transporte nos tempos clássicos e pelo povo tuaregue para atravessar o Saara por volta do ano 200 d.C. Um excelente meio de locomoção no deserto tanto para homens como para cargas, os camelos são difíceis de domesticar e manejar. Embora se acasalem em qualquer época do ano, em estado selvagem são lentos para se reproduzir. Uma grande descoberta que facilitou o uso de camelos pelos seres humanos foi aprender a inseminar os animais artificialmente, para ampliar os rebanhos. Ajudados em seus deveres reprodutivos, os camelos converteram-se num sistema de transporte vital para a abertura de rotas no Saara. Capazes de viajar até nove dias sem beber água e de aguentar uma carga duas vezes maior do que a dos bois, logo passaram a carregar imensas quantidades de metais e tecidos para os povos africanos do sul. As caravanas também levavam algo rotineiro, mas raro no sul e essencial para a vida — o sal. Caçadores-coletores obtêm sal suficiente na carne das caças, mas quando os seres humanos se estabeleceram para cultivar a terra passaram a precisar de sal extra, tanto para eles próprios como para o gado. Encontrou-se sal em depósitos subterrâneos do Saara, de onde era extraído em condições horrendas, geralmente por escravos. Por volta de 700, a cidade de Timbuktu se firmara como centro sazonal de comércio, onde o sal era embarcado em grandes canoas (de um tipo ainda usado) e levado, por via fluvial, mais para dentro da África. Em troca, os muçulmanos do Norte da África levavam ouro, em lingotes ou em pó. O ouro provinha de um império hoje chamado de Gana (embora esse, quase certamente, não fosse seu nome srcinal) e de reinos menores e mais misteriosos ao sul. Foi só por causa da troca de sal por ouro que o mundo muçulmano se deu conta da existência da África Ocidental e registrou o que ali acontecia. Gana entrou em colapso como entidade política quando teve a audácia de enfrentar os negociantes e pastores berberes do Norte da África. Os berberes produziram um império formidável próprio, os almorávidas, com quem já cruzamos na Espanha. Por volta de 1076 eles se voltaram para o sul contra
Gana. Embora não pudessem manter a área por muito tempo em seu poder, levaram sua religião para a África Ocidental e criaram uma abertura para um novo império, construído por africanos de fala mandinga, que chamariam seu reino de “Mali” ou “Mallel”. Esse reino se tornou o mais formidável da África subsaariana até então. Ainda hoje, a área é abençoada para a agricultura, em comparação com a maior parte do continente. Não tem as florestas quase impenetráveis do sul mais distante. O grande rio Níger e seus afluentes oferecem uma faixa generosa de solo irrigado, onde a agricultura floresce. Os rios sempre foram excelente meio de transporte e reservatório de peixes. Na periferia do Mali existem ricas regiões auríferas e em quase toda a área a cavalaria pôde policiar e ampliar o império. Pelo fim dos anos 1200, um reino africano de muçulmanos convertidos se estabelecera. Sua influência chegava ao oeste distante, rumo aos africanos do litoral numa direção e, na outra, bem para dentro do continente, onde hoje fica a Nigéria. Timbuktu, antigo acampamento comercial num oásis, cresceu e se tornou uma cidade de reis; o mesmo se deu com a ribeirinha Djenné, ao sul, que hoje abriga a maior estrutura de adobe do mundo, sua formidável mesquita. Nos anos 1260, um rei, mansa Uli, fez uma peregrinação a Meca, e em 1324 o famoso mansa Musa seguiu os mesmos passos. Mansa levou um ano para cruzar o deserto até o Egito com sua bagagem. Logo que chegou ao Cairo com seus estandartes reais, sombrinhas, riqueza, generosidade e histórias exageradas, atraiu a atenção admirada de escritores árabes. O rei Musa, ao que tudo indica, tinha levado para o Egito oito mil empregados, entre eles muitos escravos. Consta que seu exército tinha um contingente de cem mil homens. Além de dever religioso, a peregrinação era uma forma de divulgar a glória do peregrino e de seu país; isso certamente funcionou no caso de mansa Musa, cuja fama logo se difundiu. Entre os muitos escritores árabes que o descreveram, al-Umari, de Damasco, deixou um retrato vívido. “Esse homem”, narra ele, “inundou o Cairo com suas boas ações. [...] Os cairotas auferiram lucros incalculáveis com ele e sua comitiva, comprando e vendendo, dando e recebendo. Trocaram tanto ouro que depreciaram seu valor no Egito, provocando uma queda de preços.” Musa não era avesso a contar, uma boa lorota. Falou ao anfitrião no Cairo que tinha conquistado 24 cidades e que governava um país rico em gado, ovelhas, cabras, cavalos, mulas, gansos, pombas e galinhas — o que até podia ser verdade. Mas disse também que seu ouro vinha de um “pé de ouro”, que florescia na primavera depois das chuvas e tinha raízes de ouro. É possível que Musa ignorasse mesmo a srcem de sua riqueza, pois afirmou ainda que outro tipo de pé de ouro deixava suas raízes em buracos à beira do rio, onde podiam ser colhidas como se fossem pedra ou cascalho. Musa confidenciou a seu anfitrião que qualquer pai do seu reino que tivesse uma filha bonita a oferecia a ele, que “a possuía sem uma cerimônia de casamento, como as escravas são possuídas”. O anfitrião replicou que esse comportamento não era aceitável num muçulmano: “E ele disse: ‘Nem se forem reis?’. E eu respondi: ‘Não, nem se forem reis! Pergunte aos eruditos!’ Ele exclamou: ‘Pelo amor de Deus, eu não sabia. Vou abandonar essa prática!’”16 Se de fato mudou não sabemos, mas durante seu reinado (de 1312 a 1337, aproximadamente) mansa Musa sem dúvida estendeu a mão para o mundo muçulmano de outras maneiras, importando eruditos e arquitetos e construindo mesquitas em seu país. Depois de sua morte, em 1352-1353, o maior dos escritores de viagem árabes, Ibn Battuta, de Tânger, visitou Mali e anotou suas impressões. Disse que era um lugar de justiça confiável, seguro e acolhedor para os visitantes. Battuta ali chegou depois de uma longa viagem pelo deserto, que mesmo acostumado às durezas do mundo, tinha achado particularmente cansativa. Certa ocasião, ele deparou com um homem que se perdera no deserto e morrera de sede, estirado no chão “com suas roupas no corpo, um chicote na mão, debaixo de uma pequena árvore. [...] Havia água a menos de dois quilômetros de distância”.17 Noutra ocasião, ele tinha saído para defecar (“para satisfazer uma necessidade”) à beira do rio e sentiu-se muito incomodado com a presença de um
homem que se aproximou e ficou observando: depois descobriu que o homem teve medo de que um crocodilo que ele tinha avistado pudesse atacá-lo e se colocou, nobremente, entre Battuta e o crocodilo. Em Mali, ele mais uma vez se sentiu ofendido. (Os árabes dessa época, ao que parece, achavam os costumes africanos tão grosseiros como os exploradores europeus achariam poucos séculos depois.) Ibn Battuta tinha esperado receber, como presente de boas-vindas, finas túnicas e dinheiro, mas em vez disso foi presenteado pelo novo rei com três pães e um pedaço de carne frita, além de iogurte. Logo se animou, porém, embasbacado com a prodigalidade da corte “do sultão”, com seus guarda-costas maravilhosamente bem-vestidos e armados, e seus músicos, acrobatas e dançarinos. Como os missionários cristãos, Ibn Battuta não se acostumava com a nudez das mulheres africanas — “suas criadas domésticas, escravas e meninas pequenas aparecem nuas diante dos homens, com as partes privadas inteiramente descobertas” — nem com o hábito africano de comer carniças, cães e jegues. Mas ficou contente ao descobrir a obsessão nacional pelo Corão e ao verificar que os malianos vestiam roupas brancas limpas para as preces da sexta-feira. Notou uma ausência geral de “opressão” e achou o país extraordinariamente seguro — embora os escravos e as mulheres talvez discordassem. Nas palavras de um historiador posterior, “o quadro geral [...] é o de um império rico, próspero, pacífico e ordeiro, no qual um governo efetivo e comunicações e comércio bem organizados funcionam desde o Atlântico, no oeste, às fronteiras da moderna Nigéria, no leste, e da orla das florestas, no sul, na direção do deserto, ao norte”.18 Dentro desse império a maior parte dos habitantes ainda era composta de agricultores, que cultivavam painço e arroz, criavam gado e se dedicavam à pesca. O comércio de cobre, sal e outros artigos produzia impostos para o governo, e havia uma moeda de concha de cauri. Ibn Battuta registrou problemas com gafanhotos, e notou que animais selvagens representavam um perigo permanente — ele viu animais parecidos com grandes cavalos que viviam no rio, provavelmente hipopótamos. Mas o Mali é retratado como um refúgio. Fora de suas fronteiras habitavam canibais que devoravam escravas, havia horrendas minas de sal e cobre e muitos outros grandes perigos. No geral, seu veredicto é positivo, mas convém encará-lo com reservas. É impossível atestar a veracidade de relatos de viajantes e historiadores 19 muçulmanos, que com frequência plagiavam uns aos outros. Pode ser que Gana não tenha, de fato, “caído” em poder do Mali, nem o Mali em poder do próximo império de plantão, Songhai. Talvez cada um deles tenha simplesmente expandido a população além de sua capacidade de alimentá-la e desmoronado. Parece provável, no entanto, que um dos problemas do Mali fosse dasuma casas reais em—toda parte a—sucessão. a sucessão. tradição umem conselho anciãos — ooumesmo às vezes matriarca decidia PodePela parecer umaafricana, vantagem relaçãode à linhagem automática de sucessão, pois os pretendentes mais estúpidos e fracos eram excluídos. Mas também produzia rixas impossíveis de solucionar no vasto território de um império. E nem sempre resultava em bons reis, de acordo com outro historiador árabe, Ibn Khaldun. Um dos predecessores de Musa “era fraco da cabeça e tinha o hábito de disparar flechas contra as pessoas e matá-las por esporte. Por isso, o povo se revoltou e o matou”. 20 (O que parece bastante justo, aliás.) Depois de mansa Musa veio uma série de usurpadores e de rebeliões, e o Mali começou a perder território para os tuaregues do deserto e os songhai do rio Níger. Apesar de suas peregrinações e de suas grandiosas mesquitas, os governantes do Mali jamais conseguiram criar o tipo de sociedade islâmica unida que os árabes forjaram e depois exportaram para o Norte da África e a Espanha. Foi assim, em parte, devido ao poder da religião nativa na África. O culto da natureza e o animismo, ainda hoje tão populares, estavam arraigados demais para serem derrubados, particularmente fora das principais cidades. Battuta descobriu, para sua grande irritação, que mesmo na
corte, ao lado das preces muçulmanas, figuravam dançarinos mascarados e a recitação de histórias tribais (que lhe pareciam tediosas). Mulheres ainda tinham de aparecer nuas perante o rei, e todos os súditos salpicavam cinzas na cabeça quando se encontravam com ele21 — costumes esses nem um pouco muçulmanos. Os songhai, que vieram em seguida, eram francamente animistas. De acordo com os cronistas árabes, eles, por sua vez, foram derrotados por um guerreiro muçulmano, Muhammad Toure, que restabeleceu aspectos do império maliano srcinal mais ou menos na mesma época em que Cristóvão Colombo içava velas para partir em direção “às Índias”. Um longo período de disputas e divisões enfraqueceu também esse império, que acabou derrotado, em 1590, por um exército marroquino suplementado por mercenários cristãos, sob o comando de um capitão espanhol, que transportara canhões em lombo de camelos através do deserto. Foi uma aventura terrestre comparável a qualquer viagem através do Atlântico; e, como os espanhóis na América, os marroquinos fundaram uma colônia de cerca de vinte mil pessoas.22 Sua influência ainda hoje persiste na arquitetura maliana. Mas os marroquinos não conseguiriam ocupar essa imensa faixa da África Ocidental por muito tempo. Sua invasão contribuiu para a crescente desintegração política, durante a qual muitos Estados bem menores brigavam entre si pela supremacia, incluindo alguns governados por povos de srcem mais misteriosa, como os hausa — cuja língua não é da África Ocidental — e os fulas, mais altos, de pele mais clara, e criadores de gado. Mais uma vez, assim como na América, a invasão deflagrou novas perturbações e convulsões entre as nações locais. A essa altura, uma complicada profusão de miniestados se desenvolvera, e muitas embarcações oceânicas europeias vagavam sorrateiras pela costa. Isso nos leva de um salto para a história do comércio europeu de escravos africanos. Mas é importante lembrar o quanto o comércio de escravos na África já era grande e vigoroso bem antes da chegada dos portugueses e seus companheiros cristãos. Os escritores árabes já citados jamais questionavam a escravidão e, por sinal, até compravam os escravos de que precisavam para fazer suas viagens. Negros africanos foram levados para o norte para realizar trabalhos domésticos para os muçulmanos, depois foram importados em grandes números como trabalhadores agrícolas quando começou o cultivo do açúcar emplantations no Marrocos e no Iraque. Quando mansa Musa voltou de sua famosa peregrinação, como ressalta um historiador, havia “uma grande demanda do povo maliano por escravas turcas, etíopes, entre outras, e também por eunucos e meninos escravos turcos. O negócio de escravos desenvolvia-se, portanto, em ambas as direções”. 23 Escravos eram capturados em rápidas incursões, em incontáveis guerras locais, e depois vendidos. O comércio atlântico de escravos não teria acontecido uma forte tradição de escravidão, que écristã. parte integrante da história muçulmana tanto quantosem os navios negreiros sãoprévia parte integrante da história Embora Gana, Mali, os reinos songhai e zimbabuano sejam as sociedades pré-coloniais africanas mais lembradas, houve outros reinos que não deixaram história escrita. Com frequência deixaram atrás de si uma arte magnífica, que sugere ricas culturas, hoje esquecidas. A cultura ifé da atual Nigéria remonta aos anos 700, quando surgiu a partir da cultura anterior, nok, que tinha produzido admiráveis esculturas de cerâmica. Os ifé, povo iorubá, são mais celebrados por suas cabeças esculpidas em bronze; eles, por sua vez, foram substituídos pelo império do Benin, que sobreviveu de 1100 até o finzinho do século XIX. Durante o chamado Renascimento europeu, magníficos painéis de latão foram produzidos para a corte do obá, o rei de Benin. Essas cenas, de uma habilidade artesanal que os grandes artesãos italianos e alemães teriam invejado, foram feitas com latão importado da Europa em troca dos indefectíveis ouro e marfim. A corte de Benin permitia que cenas esculpidas em marfim fossem enviadas para o estrangeiro, mas manteve em casa seus maiores tesouros de latão. Quando centenas dessas peças chegaram ao mundo exterior, depois da tomada do Benin por forças militares britânicas em 1897, europeus e americanos
tiveram dificuldade para aceitar sua arte e beleza. O curador do Museu Britânico na época escreveu que, à primeira vista, “ficamos ao mesmo tempo espantados diante dessa descoberta inesperada e sem saber 24 como explicar uma arte tão desenvolvida no meio de uma raça totalmente bárbara”. Mas qualquer um que olhe para a minúscula quantidade ainda existente de esculturas de madeira produzidas por sociedades africanas antes da era da colonização europeia verá que a habilidade e o talento não estavam confinados às partes da África Ocidental onde esses impérios surgiram e desmoronaram. Pelo ano de 1400, havia poderosos Estados africanos nos dois lados do continente, assim como na Etiópia cristã; além de uma multidão de reinos menores, onde a agricultura e o comércio eram menos desenvolvidos. Claramente, já era uma terra de migrações, guerras e atividade política bem antes da chegada dos estrangeiros. O severo clima africano explica em parte por que civilizações de base urbana não foram muito longe, e a má sorte de possuir ouro, marfim e uma tradição escravista tornava a África perigosamente tentadora para aventureiros muçulmanos e cristãos de posse de melhor metalurgia e navios à vela. Apesar disso, se os europeus não tivessem aprendido a se proteger contra as formidáveis doenças da África, para então poderem invadi-la e reparti-la, sem dúvida uma África bem diferente teria se desenvolvido, mais condizente com as tradições e a história do continente. Mansa Musa poderia ter sido apenas um entre muitos renomados líderes, um Carlos Magno ou um Henrique VIII africano, e não o vago reflexo de um futuro perdido, visto de relance num espelho distante. Gêngis Um menino franzino de cabelo arruivado, quase nu e segurando um arco, avançava, sorrateiro, arrastando a barriga na direção de um pequeno veado. Pegou uma flecha, que tinha um curioso buraco na ponta e disparou-a. A flecha, astutamente projetada, produziu um zunido distinto, fazendo o veado olhar para cima, perplexo — no momento exato em que a ponta lhe atravessava a garganta. O menino, um nômade órfão de pai e banido, vivia na floresta com a mãe. Destemido e brutal, também era excepcionalmente esperto, com um talento para intuir o que se passava na cabeça dos outros. Logo mataria um de seus meios-irmãos numa disputa sobre caçada. Embora isso tivesse acontecido num dos cantos mais remotos da terra habitada, um lugar de planícies verdejantes a perder de vista, nenhuma construção e um vasto céu, esse menino abalaria e transformaria metade do mundo. Seu nome era Temujin, mas ele ficaria conhecido como Gêngis Khan.unir, através de um indivíduo, acontecimentos que transformam a história Muito raramente se podem em mais de um país. É singular conseguir fazer isso num conjunto de países como nos que a carreira de Gêngis Khan afetaria. Mas sem esse menino órfão de pai, que cresceu solto na natureza, é muito improvável que a explosão mongol tivesse tido a força e a direção que teve. Surpreendentemente, sabemos muito sobre as srcens de Gêngis, porque, apenas um ano depois de sua morte, foi escrito o primeiro livro mongol a respeito de sua ascensão — usando uma língua que seus nômades analfabetos tinham adotado e adaptado. Tem por título A história secreta dos mongóis e foi redigido, como ele mesmo afirma, “na época da Grande Assembleia [realizada na Mongólia Central em 1228] no Ano do 25 Rato e no Mês da Cabra, quando os palácios estavam sendo construídos em Sete Colinas”. “Pastoralismo” a desinteressante que osmilhares historiadores usam para descrever a vida desinteressante de épastores e nômadespalavra que durante de anos deslocaram-se através dos nada vastos oceanos verdes e marrons das estepes e planícies. Esses povos viviam naquelas grandes porções da terra que não eram montanha nem deserto, mas também não serviam para a agricultura. Eram mais do que
caçadores-coletores, embora caçassem e coletassem. Inclinam-se mais acentuadamente para um lado da versão fácil e retilínea do desenvolvimento humano, que vai da caça e da coleta para a agricultura e, por consequência, para as cidades. Os povos das estepes asiáticas, seis mil anos atrás, foram os primeiros a domesticarem cavalos, de início com a finalidade de comê-los. (No outro território parecido com as estepes, as planícies da América, de onde os cavalos provinham, eles tinham sido extintos pelos caçadores nos primórdios da história humana, e nada parecido com a cultura asiática de pastoreio se desenvolveu entre os nativos americanos.) Por volta de quatro mil anos atrás, os povos das estepes asiáticas já montavam em cavalos. Isso lhes permitia percorrer imensas distâncias tocando outros animais, ovelhas, cabras, vacas, camelos e iaques, para explorar as pastagens, carregando também suas casas — tendas de madeira e feltro — em carroças. Nunca se detinham num lugar por tempo suficiente para se tornarem agricultores, por isso não construíram aldeias de pedra ou madeira e jamais ergueram uma cidade. Em muitos sentidos, pisaram leve na superfície da terra, deixando atrás de si pouca coisa em comparação com o resto da humanidade. Fora o livro dos próprios mongóis, a história escrita conferiu aos nômades a pior reputação. Não há nada de surpreendente nisso: a história foi escrita por povos estabelecidos, que temiam os nômades — e frequentemente com razão. Sempre que a superpopulação ou a fome nas pastagens das estepes provocavam uma migração, aqueles povos, que se deslocavam com bastante frequência, acabavam saqueando ou invadindo o mundo estabelecido. O mais famoso entre os primeiros exemplos é o dos hunos, que, derrotando tribos germânicas, iniciaram “a grande migração” que destruiu o Império Romano Ocidental. Na época em que os hunos chegaram cavalgando, já eram temidos tinham como conquistado. um “outro” Nos bestial, tudo godo aquilochamado que o assentamento e a civilização dos homens anos antítese 550, um de cronista Jordanes escreveu que os hunos tinham sido formados pela união sexual de feiticeiras com espíritos impuros, que “geraram essa raça selvagem, que habitava primeiro os pântanos, [...] uma tribo mirrada, fétida e franzina, que mal se poderia chamar de humana, sem língua própria a não ser uma coisa vagamente parecida com a fala humana, [...] eles tinham, se me permitem dizer, uma espécie de protuberância informe no lugar da cabeça e pontinhos pretos no lugar dos olhos”. Na China, onde os ataques partiam dos xiongnu, que talvez fossem o mesmo povo huno, tinha-se opinião parecida e eles eram chamados de lobos, bandos de aves saqueadoras e “escravos furiosos”. Mas os nômades invasores podem deixar atrás de si mais do que carcaças e lavouras em chamas. Em 2003, pesquisadores publicaram uma dissertação no American Journal of Human Genetics sugerindo que o material genético de um único macho de novecentos anos atrás era compartilhado por um em cada 26 duzentos machos vivos do mundo, cerca de dezesseis milhões de homens espalhados pela Eurásia. Não chega a ser novidade que governantes poderosos deixem atrás de si um rastro genético substancial: existem exemplos da Irlanda até a África. Este, porém, aconteceu numa escala diferente. Os pesquisadores concluíram que a explicação mais provável é que esse progenitor muito bem-sucedido fosse Gêngis Khan. Os grupos de marcadores do cromossomo Y eram compatíveis demais com a época e a difusão do império mongol para que pudesse haver outra explicação. O grande invasor tomava mulheres dos inimigos vencidos por onde passava, sem falar nos filhos legítimos e nos filhos de suas concubinas. Por mais notável que pareça, isso nada mais é do que uma expressão da potência desse analfabeto filho das estepes. Os mongóis, depois de varrerem outras tribos nômades da região, governariam a China como a dinastia Yuan. Aniquilariam algumas das cidades e sociedades muçulmanas mais avançadas da Ásia central. Subjugariam o povo rus, tomando quase todas as cidades importantes e reduzindo seus príncipes a subordinados pagadores de impostos. Penetrariam na Europa até a Hungria, esmagando os cavaleiros
teutônicos da Germânia e chegando até os arredores de Viena, espalhando ondas de pânico e terror que ressoaram através dos tempos. Em apenas 25 anos, Gêngis Khan conquistou uma porção maior da superfície terrestre do que os romanos em quatro séculos, criando (ainda que brevemente) o maior império terrestre da história. A China nunca mais seria a mesma depois da influência do reino do grande Kublai Khan, cuja primeira capital, Shangdu (que o poeta Coleridge chamava “Xanadu”), cativou Marco Polo. Kublai, então, mudou-se para o lugar que se tornaria Pequim, por ele totalmente remodelada, tornando-se o primeiro imperador a governar a China a partir dessa cidade. 27 Mais tarde, os mongóis se voltariam para o sul, em direção à Índia. Os chineses acabaram absorvendo os governantes mongóis, e a dinastia Yuan não durou muito pelos padrões locais, embora tenha reunificado a China. Mas a chegada dos mongóis à Rússia teve enorme efeito no desenvolvimento do país — as palavras, nomes, roupas, comida, sistema tributário e a propensão a vomitar governantes “asiáticos”. Entre os russos de ascendência mongólica destacam-se o romancista Turgenev, a poeta Anna Akhmatova e o compositor Rimsky-Korsakov. Entre as tribos nômades da “Horda Dourada” estavam os calmiques. Lênin era calmique, como atestam suas feições mongólicas.28 Na Índia, o grande Babur, o primeiro imperador mongol, era descendente de Gêngis Khan: portanto, sem Gêngis, não teria havido o grande florescimento mongol, não haveria Taj Mahal e não haveria Paquistão. Mas mesmo com esse recorde — estabelecer um império militar que mudou o curso a história chinesa, persa, indiana e russa — ainda falta falar de Gêngis como transformador ímpar dos acontecimentos mundiais. A verdade é que, apesar de sua extrema brutalidade — da qual falaremos adiante — as hordas mongóis criaram um espaço contínuo, ligando de forma inédita o oriente e o ocidente, a China e o Mediterrâneo. Quando o Império Mongol finalmente se estabeleceu, Gêngis e seus sucessores ofereceram uma rota segura e bem administrada para o fluxo da seda, da prata e de outros artigos, entre as civilizações emergentes da Europa e a China. O historiador Ian Morris vai mais longe. Sustenta que, como os mongóis arrasaram as grandes cidades e culturas de Bagdá, Merv, Samarcanda e Bucara (que antes da chegada dos mongóis eram belos, avançados e fervilhantes centros de cultura e conhecimento), o Mediterrâneo pôde pular na frente: “Como não saquearam o Cairo, a cidade continuou a ser a maior e mais rica do Ocidente e, como não invadiram a Europa Ocidental, Veneza e Gênova continuaram a ser os maiores centros comerciais do Ocidente. O desenvolvimento sofreu um revés no velho núcleo muçulmano [...] por volta dos anos 1270, quando Marco Polo partiu para a China, o núcleo ocidental tinha se mudado 29
de vez para as terras mediterrâneas poupadas pelos mongóis.” * ** Gêngis era filho de um chefe de clã mongol, mas o nome que lhe deram pertencia a uma das tribos rivais, os tártaros, porque o pai acabara de voltar para casa com um cativo tártaro. Por isso, o menino foi chamado de Temujin. Nasceu provavelmente em 1162, num mundo de intermináveis rivalidades tribais e de frequentes guerras com os chineses ao sul. Consta que tinha medo de cães. Com oito anos, ficou noivo e foi levado, como era de costume, para o clã da menina. Mas, ao voltar para casa, seu pai foi envenenado por tártaros hostis. Temujin, audaciosamente, tentou reivindicar o posto de líder, como sucessor do pai, mas a tribo mongol não estava disposta a receber ordens de um menino de nove anos, portanto se livrou da família. Temujin, a mãe viúva, Hoelun, e mais seis crianças, entre elas dois meiosirmãos, ficaram desabrigados. Viviam buscando alimentos na floresta, colhendo cebolas, sementes e
ervas, comendo carcaças e caçando animais de pequeno porte. Há uma história reveladora segundo a qual a mãe deu a Temujin e a cada irmão uma flecha para que a quebrassem. Cada qual quebrou a sua sem dificuldade. Depois ela amarrou cinco flechas juntas e pediu que quebrassem o feixe. Não conseguiram. Da unidade nasce a força — uma mensagem forte para um menino banido. Consta que aos dez anos, Temujin matou um dos meios-irmãos. Mais tarde, quando capturado pelos inimigos do pai, conseguiu fugir apesar de algemado a um imenso jugo de madeira. Aquilo era (e é) o Leste Selvagem, e a biografia de Temujin retine de histórias de ladrões de cavalo e famosas façanhas até que, enfim, ele ascende dentro do clã, pela força da personalidade, para uma posição de liderança. Quando se casa com a menina de quem ficara noivo e ela é sequestrada (e provavelmente estuprada), ele e um amigo reúnemcontinuariam milhares de muito seguidores recuperam a primeira militar dee Temujin. Elede e ainfância noiva, Borte, unidose adurante toda — a vida, apesar vitória das concubinas das escravas. Até aqui, trata-se de uma história animada, mas pouco importante, de um chefe militar local em ascensão. Porém, Temujin estava apenas começando. Os povos das estepes mongólicas se dividiam em grupos rivais, como os tártaros, os uigures, os keraits e os mongóis. Aqui existe uma clara semelhança com o desenvolvimento de grupos de linhagem entre os povos nativos americanos da borda do Atlântico — famílias imensamente ampliadas, conectadas por primos e alianças. A grande façanha de Gêngis Khan foi descobrir um jeito de aglutinar as tribos da estepe num só povo, enquanto viviam, cavalgavam e lutavam juntas — um feixe de flechas, não uma só. Ele primeiro fez isso criando espertas alianças. Em 1190, já tinha unido todos os mongóis, o que não era pouco. Em seguida, voltou sua atenção para as tribos rivais, oferecendo às que derrotara uma parcela dos futuros espólios de guerra; ofereceu-lhes também fraternidade, em vez de exílio ou desgraça, convertendo, assim, inimigos tradicionais em novos recrutas. Apesar disso, o que veio em seguida foi uma longa e complicada guerra nas estepes, durante a qual Temujin por pouco não foi derrotado, quase foi morto com uma flechada e sofreu reveses, além de alcançar vitórias. Mas seu poder se ampliava a olhos vistos. Uma infelicidade da sua trajetória foi o fato de que um amigo de infância, com quem fizera um eterno pacto de sangue, tornara-se um de seus mais importantes rivais. Derrotado, o amigo não quis juntar-se a Temujin. De acordo com História a secreta, ele disse: “Eu seria o piolho em seu colarinho, a farpa no forro do seu sobretudo.” Temujin, prestes a tornar-se Gêngis Khan, o grande governante, concordou tristemente com seu pedido e lhe assegurou a morte Em 1206, Gêngis já tinha subjugado e unido os povos das estepes e estava pronto por paraestrangulamento. assombrar o mundo. Como líder militar, ele não recorria apenas a uma assustadora brutalidade para com os que se recusavam a capitular, também fazia uso de um novo sistema de direito (e, mais tarde, de escrita) e aprendia rápido com os outros. Empregava redes de espionagem, máquinas chinesas de cerco, imensos arcos mecânicos e até mesmo tipos de bombas de pólvora inéditos para os nômades. Suas primeiras vítimas foram os tanguts, ou xias ocidentais (ou, ainda, “mongóis brancos”), um povo cujo império tinha duas vezes o tamanho da França e ficava na fronteira setentrional da China, uma cultura sofisticada e avançada, com boa tecnologia de impressão e uma excelente tradição de pintura. Gêngis mais ou menos o varreu do mapa, no que um dos seus biógrafos modernos chama de “o primeiro exemplo de tentativa de genocídio de que há registro”.30 Ele seguiu em frente para destruir o poderio militar da dinastia chinesa Jin, que era muito maior, tomando a cidade que hoje é Pequim e forçando os Jin a se retirarem para o sul, onde os sucessores de Gêngis os perseguiriam, até acabarem inteiramente com a dinastia. Sua próxima vítima foi um canato a
oeste da China, seguido pelo imenso império Khwarezmid, com as belíssimas cidades comerciais fortificadas de Samarcanda, Bucara, Urgench e Merv, já mencionadas. Essas cidades seriam palco dos mais horrendos massacres da história. Com uma força de mais de cem mil homens, cada qual puxando dois ou três cavalos, a essa altura carregando um comboio de máquinas chinesas de cerco e de escravos, Gêngis e seus generais atravessaram as montanhas, retumbando, em direção a essas cidadelas de oásis, que dispunham de canais subterrâneos, ostentavam cúpulas refulgentes e tinham enriquecido com a seda e os escravos. E ali ele abriu as portas do inferno. Estima-se que seus exércitos mataram 1,25 milhão de pessoas, em dois anos, dos cerca de três milhões de habitantes do império Khwarezmid. Isso, como diz John Man, faz do massacre talvez a maior matança coletiva proporcional da história, “o equivalente a de 25% a 30% do corte de população produzido pela maior catástrofe da Europa, a Peste Negra”. A matança era feita aos lotes, depois que as cidades caíam, por soldados que brandiam metodicamente espadas e machados contra velhos e jovens, combatentes ou não. Lagoas de sangue e pirâmides de crânios foram deixadas na areia. Todas as formas especiais de crueldade eram reservadas para aqueles que resistissem com particular bravura. Samarcanda, que se rendeu prontamente, ainda assim perdeu três quartos de seus habitantes. Depois disso, os exércitos de Gêngis se dividiram. Ele se voltou para o sul, rumo ao Afeganistão e ao norte da Índia, enquanto seus generais seguiram mais para o norte, em direção ao reino cristão da Geórgia, pondo fim em 1221 à idade de ouro de que ele desfrutava sob sua famosa rainha Tamara, e, então, ainda mais para o norte, rumo à Rússia e à Bulgária. Seguiram-se grandes batalhas e uma notável derrota dos príncipes russos — depois da qual foram mortos por esmagamento debaixo de uma plataforma onde os generais mongóis se de banqueteavam. ataque exploratório aos mongóis existência de abundantes e ricas terras pastagem porEsse onde poderiam avançarrevelou mais para dentro daa Europa. Sob o governo do filho de Gêngis Khan, eles retornariam. Nesse retorno, eles destruíram a primeira grande civilização russa baseada em Kiev, arrasando suas cidades e espalhando seus habitantes de tal maneira que, quando a Rússia começou a ressurgir como Estado eslavo, situou-se muito mais ao norte, em Moscou e Novgorod, o que deu à Rússia um caráter diferente que ainda persiste. Em toda parte, os mongóis espalharam o terror; em toda parte, houve muitas mortes. Da China à Europa, logo passaram a ser descritos em palavras que lembravam as reações de terror e repúdio aos hunos, setecentos anos antes. O cronista inglês Matthew Paris escreveu que os mongóis eram “desumanos e da natureza dos animais, merecendo serem chamados de monstros e não de homens, sedentos de sangue, rasgando e devorando a carne de cães e de seres humanos”. Em seus últimos anos, Gêngis Khan mostrou um crescente interesse por questões espirituais, convocando um sábio taoista da China central para lhe dar instruções sobre longevidade e vida correta. Parece improvável, e talvez ele estivesse mais interessado em prolongar a própria vida do que em viver de acordo com princípios éticos: se foi isso, o sábio fracassou, porque Gêngis morreu quando entrava na casa dos sessenta, após derrotar mais uma vez os xias — que não o apoiaram em sua campanha centroasiática e pagaram por isso. Ele morreu de olho em novas vitórias na China. Há numerosas histórias sobre sua morte, atribuída ora a doença, ora a uma queda de cavalo, ou até mesmo a assassinato nas mãos de uma concubina que tinha escondido um alicate dentro de si mesma e o castrou parcialmente. Ele foi sepultado em segredo e, apesar de outra história afirmar que todos os envolvidos na cerimônia foram mortos para proteger a santidade de seu lugar de descanso, isso provavelmente é tão quantofoio enterrado, relato do alicate. os arqueólogos acreditam estarem aproximando dos valesapócrifo onde Gêngis e é bemHoje, possível que a Mongólia moderna seja o se sítio de uma descoberta espetacular nos próximos anos.
Os sucessores de Gêngis Khan estenderam o império mongol ao seu ponto máximo, tomando toda a China e a Coreia e, no Ocidente, derrotando os poloneses e os húngaros, cujo exército incluía franceses e germanos. Os métodos de matança tão conhecidos na Ásia foram repetidos na Europa. Os mongóis a essa altura já usavam a pólvora e bombas disparadas por catapulta, que horrorizavam e pasmavam os atrasados europeus. É quase certo que teriam derrotado a Germânia, a França e a Itália, se quisessem, mas fissuras internas começavam a dividir o império, e os exércitos mongóis recuaram. A essa altura, porém, tinham assumido o controle da Rússia, exigindo que os príncipes e as cidades que ainda restavam lhes pagassem impostos regulares. É verdade que o poder mongol trouxe um período de paz à Ásia central, permitindo a mercadores e exploradores viajar com segurança do Mediterrâneo ao Pacífico. Gêngis, que era analfabeto, supervisionou o estabelecimento da alfabetização dos mongóis. Demonstrou completa tolerância religiosa, permitindo que cristãos, muçulmanos, budistas e outros praticassem seus cultos à vontade. Mas aquela foi a paz que vem depois da devastação e a tolerância dos que tudo conquistam e são indiferentes à religião. O caminho plano pronto para receber Marco Polo e outros fora conseguido ao preço da destruição da grande civilização islâmica da Ásia central, assim como de muitos centros chineses e europeus. Apesar de agora terem sua própria capital, Caracórum — lugar pobre, segundo todos os relatos —, os mongóis não estavam interessados em construir nada que não fossem pirâmides de crânios (e nisso, sem dúvida, eram muito competentes). Não legaram qualquer pensamento ou literatura interessante além de sua própria história e criaram poucas coisas belas. Em todo o mundo que conquistaram, praticamente nada fizeram com suas vitórias. Mas Gêngis mudou o mundo. Sem época que esta suana intenção, ajudou atentaram Europa transformá-lo cristã a sobrepujar império muçulmano e pôs fim a uma de fosse divisões China. Alguns num odos primeiros apóstolos do globalismo e do livre comércio. Em sua própria terra, a Mongólia, ele é um formidável herói nacional: sua estátua equestre, a maior do mundo, fulge nas estepes, e sua face nos mira nas cédulas monetárias, nas encostas de morro e nos outdoors. Mas a verdade é que, embora o mundo talvez fosse muito diferente sem a ascensão do menino banido, provavelmente também estaria muito melhor. Marco, o Falastrão Em torno de alguns indivíduos, histórias adejam como moscas. Consta que quando Marco Polo, o viajante e contador de histórias, enfim voltou para Veneza depois de uma viagem de 24 anos à China e ao Extremo Oriente, ele e seus companheiros trajavam mantos de seda engordurados, peles desalinhadas e trapos tártaros. Mal conseguiam lembrar o dialeto veneziano — na verdade, mal pareciam italianos —, mas quando abriram as costuras das roupas, uma cascata de rubis e esmeraldas rolou pelo chão. Essa história aparece pela primeira vez quase dois séculos depois da volta de Marco Polo, em 1295. Bem antes disso, porém, o homem era ridicularizado por seus exageros. Na velhice, era conhecido pelos venezianos como Marco il Milione ou Marco Milhões. Provavelmente não se tratava de uma referência à sua riqueza, mas ao seu entusiasmo por exageros: “milhões” disto, “milhões” daquilo. Consta ainda que em seu leito de morte os amigos insistiram para que admitisse seus exageros e não se apresentasse perante o Criador com mentiras na ponta da língua. Ele respondeu: “Não contei sequer metade do que vi.”31 Marco Polo teria dado um bom repórter de tabloide inglês.
Ou pelo menos um repórter de sucesso, pois os famosos relatos sobre sua viagem à Mongólia e à China, que cativaram a Europa medieval, estão longe de serem modelos de boa reportagem. Incluem óbvios disparates sobre o mítico rei cristão Preste João, histórias de milagres e boatos fantásticos ocorridos durante uma viagem que ninguém que tenha tentado seguir seus passos jamais consegui entender. Parece ter havido muita gabação sobre o importante papel que desempenhou na corte mongol da China, não confirmado pelos minuciosos registros chineses da época. Muitas coisas que teriam chamado atenção de visitantes estrangeiros sobre a China da época de Marco Polo — a Grande Muralha, os hashis, chá, o costume de enfaixar os pés das mulheres para deformá-los, a escrita chinesa — sequer são mencionadas por ele. Um exame cuidadoso feito por um acadêmico britânico, que estudou em Pequim e mergulhou profundamente nas fontes, concluiu que é provável que Marco Polo nunca tenha estado na China — o que fez foi juntar boatos com plágios de outros relatos.32 Apesar disso, seu livro, ditado numa prisão genovesa para um escritor de fala francesa especializado em crônicas românticas, fez imenso sucesso e ainda é popular justamente porque Marco Polo sabia contar uma boa história. Ainda hoje nos oferece uma vívida imagem do mundo que a erupção mongol deixo para trás. Muitos fatos estranhos que relata, como o uso de pedaços de papel carimbado como moeda e o hábito chinês de queimar pedaços de pedra preta como combustível, foram comprovados. Viajando mais além da China, Marco Polo nos falou de costumes indianos que devem ter parecido extremamente bizarros, como o culto das vacas sagradas e a autoimolação das esposas nas piras funerárias, além de lugares onde uma estranha substância viscosa ressumava do chão e podia ser queimada para produzir calor. Ele levou para os europeus as primeiras notícias sobre lugares como a Birmânia e as ilhas Java e Spice — um novo mundo de maravilhas, em algum lugar além do horizonte. Não é, portanto, de surpreender que A descrição do mundo, escrito em 1298, provavelmente em francês e traduzido às pressas para dialetos italianos, latim, espanhol, português, inglês, irlandês e muitas outras línguas, tenha incendiado a imaginação europeia. As invasões mongóis tinham estabelecido suas estradas de travessia segura entre o Mediterrâneo e a China, religando rotas por muito tempo dominadas por mercadores muçulmanos. A partir do século VII, marinheiros e mercadores da Pérsia, do Egito e da Mesopotâmia tinham aprendido a usar os ventos de monções para chegar à Índia. Por volta dos anos 720, navegantes muçulmanos alcançaram a China litorânea, deixando os budistas locais preocupados. Depois de 750, quando os abássidas transferiram a capital do mundo islâmico para Bagdá, que o rio ligava ao golfo, esses vínculos comerciais se movimentaram. Sob uma de suas dinastias, a Tang, a China abriu-se inusitadamente à influência estrangeira. A influência persa e árabe tornou-se visível na arte chinesa e, por consequência, na arte aponesa também. Enquanto isso, a tradicional Rota da Seda por terra continuava a ser usada, apesar das complicações trazidas por uma nova rivalidade asiática entre o islã e a China de Tang. Como costuma acontecer, a guerra e o comércio seguiram juntos aos trancos e barrancos. Depois da derrota de soldados chineses por exércitos árabes na batalha do rio Talas, no atual Quirguistão, em 751, prisioneiros chineses ensinaram aos muçulmanos a arte da fabricação do papel, em Samarcanda, e, com o tempo, a tecnologia foi repassada para a Europa. (Muito lentamente, porém: a primeira fábrica de papel começou a funcionar na França, em 1189.)33 A dinastia Tang caiu em 907, e o caos político perturbaria o sistema comercial pelos próximos cinquenta anos, mas a dinastia que veio em seguida, a Song, continuo a participar do mercado muçulmano. Algodão e corantes indianos iam para a China. Seda, especiarias e porcelanas iam ainda mais para o leste. Os chineses queriam ouro, escravos e cavalos, assim como marfim e incenso dos mercadores árabes. Como conta uma história pitoresca do comércio mundial: “Poucos séculos depois da morte do Profeta, seus seguidores tinham feito da totalidade do mundo conhecido um vasto empório, no qual ouro, marfim e penas de avestruz africanos podiam ser trocados por
peles escandinavas, âmbar báltico, seda chinesa, pimenta indiana e objetos de metal persas feitos à mão.”34 Durante a era Song, que se estendeu de 960 até a vitória final do Yuan mongol contra o sul em 1279, o “chinesismo” da China ficou bem mais claro: uma cultura que consumia painço e vinho tornou-se consumidora de arroz e chá. Sob a dinastia Song, as mais altas realizações no fabrico de porcelana, na pintura e na produção de livros da China coincidiu com um movimentado comércio marítimo de exportação. Foi uma idade de ouro da cultura chinesa, uma época de curiosidade intelectual e de escritos magníficos. As bombas de pólvora, os lança-chamas e as catapultas gigantes adquiridos por Gêngis Khan eram invenções de Song. Esse período ostentou alguns dos melhores poetas-eruditos e uma inventividade tecnológica galopante, enquanto a célebre burocracia chinesa continuava muito ocupada em suas atividades ao fundo da cena. Porém, os Song foram desafiados por uma série de invasores mais belicosos do norte e, em 1127, se retiraram para restabelecer sua capital no sul, onde prosperaram durante um século e meio, repelindo exércitos até finalmente sucumbirem ao patrono de Marco Polo, Kublai Khan. Para os europeus, essa batalha titânica entre civilizações ficara muito bem escondida atrás da barreira poderosa e hostil do islã, contra o qual os cruzados continuavam a se lançar em sua malsucedida guerra santa. Assim, quando os canatos mongóis deram à Ásia central um século de paz, abriu-se uma janela no muro secular de ignorância mútua entre a China e o Mediterrâneo. Para os italianos da época de Marco Polo, os chineses eram tão misteriosos quanto tinham sido para os romanos. Esse outro mundo trouxe tecidos lisos e macios, feitos segundo uma técnica desconhecida, e delgados pratos e tigelas, muito mais finos do que qualquer coisa que os europeus pudessem fazer, estranhas histórias de reis poderosos. Mas quem era esse povo? Deve ter sido mais ou menos como descobrir vida na Lua, e os europeus instruídos mostravam-se cada vez mais curiosos e impacientes. Marco Polo, o contador de histórias, tinha conquistado um mercado insaciável de informações. Seja qual for a verdade sobre o itinerário de Marco Polo, ninguém duvida que alguns anos antes se pai e seu tio tinham viajado à já desaparecida capital mongol de Caracórum. Comerciavam na Crimeia, mas foram obrigados a se deslocar para leste por uma guerra travada entre dois netos de Gêngis e estiveram entre os primeiros ocidentais a chegarem, por vontade própria, ao quartel-general dos mongóis. Os venezianos tinham sido seduzidos por outro neto de Gêngis, o maior de todos eles, Kublai Khan. Ele vencera a guerra da sucessão e era agora o governador do que se poderia chamar de lado chinês da empresa familiar. A partir dos anos 1250, ele vinha cavando cada vez mais fundo em território chinês, tendo construído sua primeira capital em Shangdu e criado, a partir de 1266, um imenso complexo cortesão em Pequim. Kublai Khan é, em muitos sentidos, ainda mais interessante do que seu avô Gêngis, porque deu as costas à tradição política e militar da vida nômade, adotando em seu lugar as ainda mais impressionantes tradições chinesas de governo. Como Gêngis, Kublai era auspiciosamente tolerante com as religiões alheias. Tinha muito mais interesse pelo mundo exterior do que governantes chineses posteriores e complacentes. Em Caracórum, muçulmanos persas conviviam com clérigos das crenças nestoriana e católica, um médico grego, uma mulher francesa, um ourives parisiense, o filho de um inglês chamado Basil e muitos outros.35 Em Shangdu e Pequim, ele mantinha muitos técnicos e conselheiros muçulmanos, assim como chineses nativos. Não demorou para que Pequim tivesse até uma catedral católica. Quando seus exércitos avançaram para o sul, a fim de liquidar a dinastia Song, Kublai com certeza uso estrangeiros para projetar e operar máquinas de cerco e catapultas gigantes — muito embora a afirmação de Marco Polo de que ele mesmo ajudou Kublai como assessor militar seja amplamente desacreditada, principalmente porque as datas não correspondem. A vitória de Kublai contra os Song também foi facilitada por atitudes generosas de desertores e cativos.
Kublai, segundo consta, tinha tanto interesse por religiões estrangeiras que quis que o pai e o tio de Marco levassem uma carta para o papa, pedindo-lhe que mandasse à corte mongol cem eruditos cristãos para apresentarem argumentos a favor da conversão, assim como um pouco de óleo santo de Jerusalém. Os mercadores receberam salvo-conduto para voltar na forma de tabletes especiais de ouro que funcionavam como passaportes imperiais mongóis. Porém, quando chegaram ao Mediterrâneo, depois de uma viagem de três anos descobriram que o trono do papa estava vago. Clemente IV tinha acabado de morrer, e muito tempo se passaria até Gregório X ser eleito seu sucessor, em 1271. De volta a Veneza, o pai de Marco Polo se juntou ao filho, então com dezessete anos. Mais tarde, os dois partiram juntos para a China, sem os cem teólogos, mas levando expressões de boa-vontade e presentes do papa Gregório. Marco ficaria ausente por quase 25 anos. Pelo seu relato, depois de viagens extraordinárias, viveu na corte de Kublai Khan como conselheiro preferido, viajou em nome do imperador mongol pela China e mais além, retornando por mar via Índia, onde fora incumbido de transportar uma princesa para o governante mongol local. Viajou numa frota de imensos navios chineses e levou para a Europa, entre muitas outras notícias, as primeiras histórias sobre a riqueza do Japão e sobre o Buda, que Marco Polo ulgou que seria considerado um grande santo cristão na Itália. A volta de Marco Polo foi seguida por outra guerra entre a república veneziana e sua arquirrival, Gênova. Capturado durante uma batalha naval, ele foi jogado na prisão em companhia do escritor Rustichello da Pisa, a quem contou suas histórias extraordinárias. Rutischello anotou-as, e o resto é... bem, não exatamente história, mas sem dúvida uma leitura fascinante. O livro foi traduzido de pronto, aumentado, adulterado e mal traduzido. Depois, desdobrou-se em diferentes versões por mais de dois séculos: 143 versões foram identificadas.36 Teve enorme influência, um best-seller numa época préimprensa. A Europa, apesar de todas as suas guerras dinásticas e da construção de grandes catedrais, sentia-se na periferia de civilizações alternativas, e o livro abriu uma porta para um futuro diferente. Enquanto isso, a questão persiste. Marco Polo esteve mesmo na China? Os argumentos contra são muito fortes. Apesar disso, se não esteve, onde passou aqueles 24 anos? E como acumulou tantas informações, algumas exatas? Pode ser que tenha ouvido relatos de outros viajantes ou lido livros hoje perdidos de autoria de mercadores muçulmanos. Por outro lado, muitos de nós talvez deixemos de perceber coisas que historiadores venham a achar importantes. Nossa memória falha. Enfeitamos histórias até não sabermos mais o que é real e o que é invenção. O livro de Marco Polo fornecia exatamente os detalhes comerciais e mundanos capazes de interessar um ganancioso mercador veneziano — ele era mesmo um homem de sua cidade. Veneza, que começara como um grupo de ilhas lamacentas dispersas, usadas como esconderijo de refugiados durante as últimas guerras romanas, desenvolvera-se e transformara-se numa república vigorosa e agressiva, cujas galés e cujos barcos à vela estavam estreitamente ligados ao mundo comercial dominado pelos muçulmanos, carregando especiarias, escravos, sal, peles, ferro e madeira entre os reinos cristãos e os califados. Nascido numa família de mercadores que negociava com o otimismo e a credulidade de investidores em Veneza, não é de surpreender que Marco Milhões tivesse uma tendência a exagerar a própria importância e a gabar-se, nem que deixasse de perceber coisas que mais tarde fascinariam os historiadores sociais. A notícia que trouxe era, na verdade, muito simples: existe além da Europa um mundo de riqueza e oportunidades à espera daqueles que tiverem a coragem de conquistá-lo. Essa foi a mensagem que os europeus devoraram com grande avidez através de todas aquelas traduções e edições; e o livro de Marco Polo seria seguido por outros relatos de viajantes que traziam a mesma mistura de suposta reportagem com as invenções mais descabidas. Um exemplar do relato de Marco Polo foi levado por Cristóvão Colombo em sua épica viagem para as Américas. Colombo ficava particularmente encantado com a perspectiva do “Chipangu” ou Japão.
Houve, porém, uma ironia final a respeito do momento em que Marco Polo apareceu. Pois a rica e sofisticada China que ele descreve, com suas belas cidades (e lá havia cerca de seis milhões de pessoas vivendo em cidades naquela época, bem à frente da Europa), suas invenções, seus luxos e sua magnífica organização, estava, na verdade, em decadência. Os Song, que tanto realizaram, já começavam a desaparecer, depois de guerras de terríveis matanças e destruições, perante o mesmo Kublai Khan que a família Polo tanto admirava. * ** Por queoportunidade os europeus não se apressaram emmais seguirpara os passos Marco Polo? Aquela foi até a primeira grande de avançar uma vez além dode Mediterrâneo, por terra, a China. Esperavam havia muito que o mundo mongol fosse um aliado útil contra o inimigo comum muçulmano, o que explica o entusiasmo do papa por converter Kublai (meta não alcançada em parte porque os italianos não conseguiram demonstrar nenhum milagre sensacional para os céticos chineses). Mas a oportunidade não foi aproveitada. Os europeus continuaram a usufruir os luxos e especiarias — essenciais para conservar o alimento palatável — que vinham pela Rota da Seda. No entanto, dois anos depois da morte de Marco Polo, em 1329, alguma coisa aconteceu nas estepes por onde ele viajara e no vale do Yangtsé, na China, que mudou tudo. Uma estranha epidemia estava matando pessoas aos montes. Em 1345, já tinha atingido a costa chinesa. Em ano 1346, chegouaàPeste Crimeia, onde o pai e o tio Marcoe tinham negociado sua épica viagem. No seguinte Negra, transportada pordenavios provavelmente pore iniciado ratos, espalhou-se pelo Mediterrâneo. Em março de 1348 já morriam seiscentos venezianos por dia. Carregamentos de cadáveres eram levados de barco para serem sepultados nas ilhas mais distantes. Os médicos já estavam quase todos mortos. A mesma permuta de bens, pessoas e histórias que possibilitara a ascensão da implacável república marítima agora se vingava. Estima-se que três quintos dos venezianos morreram e cinquenta das famílias nobres desapareceram.37 A Peste Negra matou entre um terço e metade dos europeus, segundo estimativas, e teve impacto semelhante na China. Para as duas civilizações, assinalou o fim súbito e selvagem de uma época de crescimento e progresso, exacerbada por uma mudança climática que trouxe mais frio e arrasou a 38
lavoura. NaqueEuropa, surpreendentes. Notoriamente, morreuos tanta gente do campesinato lavrava teria a terraefeitos em países ocidentais, como a França e como a Inglaterra, sobreviventes tiveram condições de negociar melhores salários e de se libertarem um pouco das demandas dos proprietários, e as srcens de uma sociedade menos rígida, menos subjugada às terras das famílias nobres, emergiram do morticínio bacteriano. Curiosamente, na Europa Oriental o efeito foi quase o oposto. Os proprietários de terra na verdade viram seu poder e alcance aumentarem e aos poucos impuseram aos camponeses sobreviventes um controle ainda mais rigoroso, conhecido pelos historiadores como “a segunda servidão”. Isso foi possível porque os proprietários da Europa Oriental, que chegara atrasada ao feudalismo, eram um pouco mais poderosos e entrincheirados antes do advento da peste. As cidades da Polônia, da Alemanha oriental e da Hungria de hoje eram menos populosas e poderosas do que as cidades mercantis que negociavam com lã e vinho no norte da Itália e na Inglaterra. Os progressos em direitos adquiridos e o poder das guildas na Europa Ocidental talvez não tenham sido espetaculares pelos padrões modernos, mas foram suficientes para fazerem a balança pender contra a nobreza quando a mão de obra escasseava. No leste, a aristocracia era mais implacável e encontrava menos resistência do campesinato disperso.
Dessa forma, uma modesta diferença no equilíbrio de poder, exagerada subitamente pela perturbação social da Peste Negra, causou mudanças muito divergentes, e o resultado foi que durante séculos a Europa Ocidental foi mais avançada e socialmente complexa do que terras de aparência semelhante bem a leste.39 A França e a Holanda influenciariam o mundo todo; a Polônia e as terras tchecas influenciariam apenas o mundo contíguo. Esses efeitos eram, é claro, invisíveis para quem tinha vivido a destruição da peste, que voltaria, com intervalos, durante séculos. Na primeira e particularmente horrenda visita, cidades se tornaram espectros do que tinham sido. Aldeias inteiras ficaram desertas, devolvendo seus campos às ervas daninhas e às florestas. Manias e extremismos religiosos floresceram, e uma visão sombria do fim dos tempos tornouse profundamente arraigada para o povo cristão. As autoridades cambalearam. As artes e os ofícios entraram em declínio. O papado sofreu um abalo. Do outro lado da Eurásia, a glória da China de Song desmoronou, e os camponeses, lá também, se revoltaram. A mensagem de esperança de Marco Polo repercutiu em vão entre povos que ainda não tinham força suficiente para estender e juntar as mãos. De Bizâncio para o mundo Eis como a história acabou. Havia 22 quilômetros de muralhas protegendo Constantinopla, tida como a melhor cidade da cristandade. Mas dentro dos muros, entre as igrejas multicoloridas, os antigos monumentos espaçosas sobraram tão apoucos que partes da cidade tinham voltadoe as a ser terra de praças lavoura.dos Nosromanos, anos 500, aquela fora maior moradores cidade do mundo ocidental, com meio milhão de habitantes. Por volta de 1200, ainda havia quatrocentos mil, e sua riqueza pasmava os observadores. O cruzado francês Geoffroi de Villehardoin falou “dessas altas muralhas fortificadas e das fortes torres, [...] dos esplêndidos palácios e imponentes igrejas”. Os cruzados, disse ele, “jamais imaginaram que pudesse haver na terra um lugar tão rico e poderoso”. Não muito tempo depois, um mercador muçulmano chamado Abdullah informou que tinha levado uma manhã inteira para atravessar 40 Constantinopla de um lado a outro e que ali havia quase cem mil igrejas. Apesar disso, por volta do ano de 1453, no último esforço defensivo de Constantinopla para tomar conta daquelas muralhas, o último imperador, Constantino XI Paleólogo, contava apenas com sete mil homens. Constantino tinha diante de si um vasto exército sob comando de um jovem sultão turco de nariz afilado, cruel e brilhante, Mehmet II, que já havia desnorteado os defensores, arrastando seus navios para terra em cima de cilindros, de modo que a cidade, cercada de dois lados por água e de um lado por terra — onde seus famosos muros eram mais fortes —, ficou efetivamente um caco. Mehmet dispunha de cem mil soldados com experiência de batalha e um excelente canhão, projetado por um engenheiro alemão. Já tomara as cidades e os fortes vizinhos, empalando todos os sobreviventes a céu aberto para que os defensores de Constantinopla pudessem ver. Os apelos desesperados para que os governantes cristãos da Europa acudissem ficaram sem resposta. Um eclipse lunar, o fato de o mais precioso ícone ter escorregado enquanto era levado pelas ruas, uma violenta tempestade, um espesso nevoeiro e um estranho fulgor vermelho no céu conseguiram convencer muita gente de que Deus abandonara o que já tinha sido a enquanto maior cidade cristã doemmundo. Porém, o dobrar de sinos e as procissões de ícones continuaram os bizantinos, desespero, pediam socorro. Então o décimo primeiro imperador Constantino disse a seus comandantes que precisavam estar prontos para morrer pela fé, pelo país e pela família. Lembrou-lhes que descendiam de heróis gregos e
romanos. Na vasta igreja da Santa Sabedoria, ou Santa Sofia, centenas de padres e monges, freiras e pessoas comuns, se reuniram para celebrar as vésperas pela derradeira vez. Nas primeiras horas da terça-feira, 29 de maio de 1453, trombetas e atabaques turcos soaram e o ataque começou. Várias levas de soldados atiraram-se de encontro aos muros danificados por tiros de canhão. Por fim, movimentando-se em perfeita formação, os escravos nascidos cristãos e transformados em janízaros, as leais tropas especiais do exército de Mehmet, começaram a subjugar os defensores desesperados. Os turcos passavam pelas aberturas, matando sem pressa à medida que avançavam. Em Santa Sofia, padres continuaram celebrando a missa mesmo quando os atacantes começaram a atravessar as grandes portas, apunhalando e alanceando os fiéis até chegarem ao altar e aos próprios sacerdotes, que morreram orando, enquanto o último serviço religioso chegava ao fim. Diz a história que Constantino, decidido a não se deixar prender, livrou-se de todas as insígnias imperiais, a púrpura e as águias e se atirou, de espada em punho, no ponto onde a luta era mais feroz. Foi logo despedaçado. * ** O Império Bizantino, ou Romano Oriental, foi um dos grandes êxitos do mundo mediterrâneo, porém costuma ser lembrado, sobretudo, pela forma como terminou. Foi por muito tempo considerado um grande e impressionante fracasso, à margem da principal linha de desenvolvimento da história europeia. O que a maioria de nós sabe de Bizâncio? Temos uma vaga impressão de brilho e decadência. Como bem o disse o poeta irlandês do século XX, W. B. Yeats: De ouro batido e de ouro esmaltado Para manter um sonolento imperador acordado... O que provavelmente conhecemos são muralhas titânicas, com pedaços ainda hoje em pé, em volta da movimentada Istambul que conhecemos, e a estranha arte que os bizantinos produziram. É uma cultura de mosaicos e marfim entalhado, de imperadores sonolentos e santos e anjos solenes. Historiadores da arte afirmam que essa arte levou aos mais conhecidos retábulos do Renascimento e que sua conexão com os ícones cristãos ortodoxos da Rússia e da Bulgária é óbvia: o primeiro grande ícone pintado da história russa, ainda reverenciado em Moscou, a rigor foi executado em Constantinopla. No entanto, parece um tanto fora da principal corrente da arte europeia, uma figura fantasmagórica meio oculta por arvoredos teológicos e emaranhados históricos. Até o nome é evasivo. “Bizantion” era o nome da velha cidade grega de que Constantino se apossou e que transformou no novo centro do Império Romano. Seguindo uma tradição greco-romana de governantes que davam o próprio nome às cidades (como em Alexandria), ele a chamou de Constantinopla. Seus cidadãos se identificavam como bizantinos para se distinguirem dos romanos ocidentais, mas às vezes também como romani (“romanos” em latim), porque também julgavam ter herdado o melhor da antiga Roma. Tendemos a falar em Império Bizantino. Como já foi assinalado, nórdicos embevecidos chamaram o lugar de Miklagard, “Grande Cidade”; também era conhecida em grego como a Cidade de Ouro. Hoje é Istambul. Mas, qualquer que seja o nome, a verdade é que aquela foi, comoFundada nos lembra o historiadoremmoderno Norwich, sociedade humana de duração notável. por Constantino maio de John 300 eJulius subjugada pelosuma otomanos em maio de 1453, duro 1.123 anos e dezoito dias. Ou seja, mais ou menos o mesmo intervalo de tempo que separa os britânicos
de hoje da Inglaterra de Alfredo, o Grande, dos saxões e dos dinamarqueses. Se Bizâncio foi um “fracasso” ou uma cidade “periférica”, trata-se de um fracasso notavelmente persistente. O desprezo dos historiadores vitorianos por esse império projeta uma longa sombra. Norwich cita W. E. H. Lecky, escrevendo em 1869, que considerava o Império Bizantino “sem uma única exceção, a mais vil e desprezível forma que a civilização já assumiu [...] uma história monótona de intrigas de sacerdotes, 41 eunucos e mulheres, de envenenamentos, conspirações, invariável ingratidão, perpétuo fratricídio”. Por que tanta raiva de Bizâncio? Talvez por causa do amor do historiador pela ordem. Bizâncio não se encaixa perfeitamente na narrativa de uma marcha constante do Ocidente para o Iluminismo. Não deu à humanidade moderna uma ciência útil ou uma literatura muito srcinal — embora tenha tido alguns historiadores maravilhosamente vívidos e escandalosos. E, como se sabe, acabou mal. Mas a principal razão para cobrir Bizâncio de camadas de desprezo e negligência é o lugar central ocupado pela religião em sua civilização. Afinal, essa foi uma cultura mais saturada de fervor religioso e de discussões teológicas do que qualquer outra na história do mundo mediterrâneo. Apesar de fundada por um imperador romano que queria impor o cristianismo a seus súditos, só aos poucos se tornou o verdadeiro ponto focal do mundo cristão. Mesmo durante a criação de sua espantosamente bela e radical igreja da Santa Sabedoria, Santa Sofia, sob o imperador Justiniano — foi consagrada em 537, e sua cúpula mundialmente famosa agora protege uma mesquita —, a cidade abrigava muitos santuários pagãos e estátuas de deuses romanos. Em direito, know-how em assuntos militares e de engenharia, diversões, erudição e finanças, Bizâncio era a dobradiça que mantinha os mundos clássico e cristão medieval ligados entre si. Mas era uma dobradiça rangente e lenta. Os bizantinos estavam quase o tempo todo combatendo — contra as levas de guerreiros nômades que chegavam do leste, depois contra os conquistadores muçulmanos pressionando através de seus ricos flancos orientais e, frequentemente, contra reinos cristãos rivais a oeste e ao norte. Em seu ponto de máxima amplitude, o império abrangia o sul da Itália, os Bálcãs, a maior parte da Bulgária, da Grécia e da Turquia modernas, assim como a Crimeia na margem setentrional do mar Negro. Em seu período áureo, atraía imigrantes de toda a Europa e da Ásia, para trabalhar e lutar em seu nome, incluindo italianos, os vikings que formaram a Guarda Varangiana e anglo-saxões empobrecidos que ficaram sem teto depois da conquista normanda de 1066. Muito antes da queda das grandes muralhas, Constantinopla encolhera e era pouco mais do que uma cidade-Estado, com minúsculos pedaços de terra do lado de fora. Mas o real conflito de Bizâncio, que também jamais cessava, era sobre a verdadeira natureza de Deus, de Cristo e do Espírito Santo e a forma correta de adoração. Crenças diferentes sobre a natureza de Cristo, a autoridade do papa e dos bispos, e muitas questões menores eram da mais absoluta importância e tragicamente dividiam os bizantinos e seus inimigos cristãos. Em geral temos dificuldade para levar a sério essas disputas. Mas o problema talvez seja nosso. Para os cristãos daqueles tempos, tratava-se de questões prementes e pessoais. Quando Constantino convoco os bispos cristãos para a grande reunião de cúpula de Niceia em 325 a fim de discutir as opiniões de Arius, o debate foi sobre se Cristo partilhava da mesma substância divina de Deus ou (como Arius e seus seguidores acreditavam) se era uma entidade menor do que Deus. Não era uma disputa inconsequente, pois, se Arius estivesse certo, a promessa de salvação pela fé em Cristo, feita pelo próprio, se tornaria seriamente questionável. Era nada menos do que uma questão de vida ou morte. O arianismo foi condenado, mas sobreviveu e ganhou popularidade entre povos do norte. Seguiram-se outras disputas ferozes. Muitas tratavam dos rituais e das palavras usadas nos serviços religiosos e, mais tarde, de saber quem era o verdadeiro líder de todos os cristãos, se o papa em Roma ou o patriarca em Constantinopla. Durante todo o tempo, teólogos brilhantes, monges que viviam em mosteiros ou como eremitas e bispos
teimosos de igrejas distantes punham à prova uns aos outros e atraíam um número substancial de seguidores. A espiritualidade de Bizâncio era transmitida por meio de longos cultos com acompanhamento musical e o ar impregnado de incenso em esplêndidas igrejas douradas, que deviam deixar os fiéis pasmos de admiração. As igrejas ocidentais aprenderam com elas a deleitar — e até mesmo embriagar — os sentidos. Hoje, a melhor maneira de se ter uma noção de como devem ter sido é assistir a um culto russo numa das igrejas ortodoxas de Moscou ou Kiev. Mas a espiritualidade bizantina trouxe uma consequência política fatal, porque isolou este centro cristão oriental, de fala grega, do mundo latino e europeuocidental encabeçado por Roma. A ascensão e súbita expansão do islamismo fatiaram as províncias orientais de Bizâncio — hoje na Turquia — e transformaram a cidade num posto avançado do cristianismo. Italianos, franceses, germanos e espanhóis tendiam a encarar a versão bizantina do cristianismo como bizarra e herética; e, uma vez que os bizantinos abominavam a autoridade papal, lá não existia “cristandade” de fato. Às vezes isso levava os cristãos ocidentais a atacarem diretamente seus rivais orientais. Num dos casos mais vergonhosos, em 1202-1204, a chamada Quarta Cruzada desviou-se sobremaneira do se curso e, sob o comando de seus líderes venezianos, saqueou a própria Constantinopla. O papa tinha ordenado mais uma tentativa de recuperar Jerusalém dos sarracenos. Os cruzados, sob liderança franca, decidiram adotar outro plano. Influenciados pelos ambiciosos planos de Ricardo Coração de Leão, que morrera havia pouco, em 1199, resolveram atacar através do Egito. Para isso, precisavam de uma grande frota que os transportasse. Só Veneza, com seu estaleiro no Arsenal, poderia providenciá-la. venezianos época um eram chefiados por ume doge de mais oitenta anos, Enrico Dandolo,Osque conseguiunafechar excelente negócio depoiscego anunciou quedeparticiparia da cruzada pessoalmente. Mas, quando chegou a hora, os cruzados francos que apareceram eram bem menos numerosos do que o esperado e não tinham dinheiro para pagar pelos navios venezianos. Dandolo fez outro bom negócio: eles deveriam parar no meio do caminho para tomar de volta uma cidade balcânica que os venezianos tinham perdido. Foi o que fizeram. Mas ali depararam com um jovem imperador bizantino deposto, que pediu ajuda, em troca de uma recompensa, para retomar o trono de seu tio. Nesse ponto, a história é nebulosa. Os venezianos nunca quiseram atacar o Egito, pois tinham boas relações comerciais na região. Mas, como rivais comerciais e cristãos latinos, tinham o maior desprezo pelos bizantinos. (Pode ter sido depois de uma batalha em Constantinopla, muitos anos antes, que Dandolo perdeu a visão.) Mais uma vez, adiaram o combate contra os sarracenos e se voltaram contra a própria Bizâncio. O que provou ser uma decisão maravilhosa. Para as forças venezianas e francas não foi particularmente difícil derrotar o usurpador bizantino e instalar o sobrinho no poder, embora isso tenha exigido um ataque audacioso contra as famosas muralhas pelo lado do mar, para surpresa dos defensores. Mas foi muito mais difícil receber o dinheiro que o ovem imperador tinha prometido. Ele também se oferecera para colocar a Igreja Bizantina sob a autoridade do papa. Essa promessa temerária, o comportamento agressivo dos cruzados, o imenso custo de pagar aos venezianos e uma série de incêndios desastrosos contribuíram para tornar o novo imperador muito impopular na cidade. Ele foi devidamente assassinado por outro usurpador, e a única maneira de os francos e venezianos receberem o dinheiro foi lançar um segundo ataque. Dandolo, a essa altura muito provavelmente já nonagenário, comandara heroicamente suas tropas no front durante o primeiro ataque. Agora, quandoososmuros, venezianos juntavam e atavam os mastros de seussaquear barcos para criarexpulsaria uma plataforma onde assaltar ele decidiu arriscar tudo. Em vez de apenas o lugar, de vez de os governantes bizantinos e faria da cidade um Estado fantoche sob controle veneziano.
O ataque teve êxito, mas o que veio em seguida foi horrível: uma orgia de incêndios, estupros e saques que durou três dias e destruiu a maior parte do legado clássico de Constantinopla. Um observador bizantino descreveu a pilhagem da grande igreja como um estupro físico e espiritual: “Uma meretriz comum foi entronizada na cadeira do patriarca, para proferir insultos contra Jesus Cristo; cantou canções indecentes e dançou imodestamente no lugar santo, [...] nenhuma misericórdia foi demonstrada para com matronas virtuosas, donzelas inocentes ou mesmo virgens consagradas a Deus.” John Julius Norwich afirma que este saque de Constantinopla, que viu todo o saber que acumulara virar fumaça e todos os seus tesouros serem levados para a Europa, talvez tenha sido a maior perda individual da história: “A civilização ocidental sofreu uma perda maior do que o saque de Roma pelos bárbaros no século V ou o incêndio da biblioteca de Alexandria pelos soldados do Profeta no século VII.”42 A cínica e brutal história da Quarta Cruzada teve consequências duradouras. Os bizantinos já haviam passado por tempos difíceis. Na batalha de Manzikert, em 1071, foram humilhados por “turcos”, nômades do Extremo Oriente. Mas nada que fosse tão ruim como isso. Embora o Estado fantoche latino de Constantinopla não tenha durado muito e Bizâncio tenha recuperado parte de seu poder e autoconfiança sob imperadores que vieram depois, nunca mais seria a mesma. Seu admirável sistema de muralhas, criado em 412, tinha repelido todos os invasores ao longo de quase oitocentos anos, mas acabara se mostrando vulnerável. Destituída de grande parte de sua riqueza, de sua herança clássica e de sua honra, com o antigo território agora dividido em mini-impérios, reinos subsidiários, sultanatos e ducados, Bizâncio já não era o punho poderoso dos cristãos, armado contra todos que viessem. No devido tempo, sucumbiria diante dos invasores muçulmanos. Os venezianos, que levaram para casa estátuas de leões, cavalos e anjos e vasta quantidade de objetos preciosos, tinham, por acidente, ajudado o islamismo a ascender dentro da Europa. E o poder de Veneza cresceria firmemente. Portanto é injusto desvalorizar Bizâncio, com sua apaixonada fé cristã e suas ideias herdadas dos gregos e romanos, como se não passasse de uma sequência de desagradáveis tiranias. Mas, para olhos modernos, deveria parecer uma civilização alienígena. Com certeza era altamente conservadora, lenta, e tudo menos democrática. Para europeus acostumados a reverenciar o mundo clássico grego, com sua lucidez, sua crença na razão e sua experimentação política, a suntuosa hierarquia de Bizâncio e seu misticismo podem ser difíceis de engolir. Talvez seja mais fácil compreendê-la se a compararmos a outros impérios dinásticos, como o dos otomanos e o dos chineses. A exemplo das cortes dos imperadores Song, Tang e Ming, os bizantinos contavam com um serviço público altamente eficiente e letrado, encarregado de cobrar impostos e administrar com justiça e imparcialidade muitos povos diferentes. Como os chineses, os bizantinos utilizavam uma numerosa classe de eunucos, castrados na infância ou na vida adulta como prérequisito para servir na corte. Por mais bárbara que a prática nos pareça, os eunucos foram de grande utilidade para muitos impérios antigos. Incapazes de ter filhos, desprovidos de base familiar independente, eram mais confiáveis. Também podiam trabalhar com segurança nas dependências das mulheres, onde talvez ouvissem os segredos mais íntimos. Na China, em Bizâncio e sob os otomanos, eunucos galgavam posições de grande poder e riqueza, por vezes comandando exércitos e frotas. Os minuciosos procedimentos e rituais de Bizâncio, realizados em imensos complexos de cortes, não eram muito diferentes da vida na Cidade Proibida de Pequim. Assim como quem chegava à presença de um imperador chinês tinha de se prostrar, batendo com a testa no chão, perante um imperador bizantino todos eram obrigados a fazer aproskynesis — uma rotina parecida, mas tocando a testa, em vez de bater. Em Bizâncio, os cargos de poder ocupados por líderes religiosos como assessores e conselheiros eram análogos aos dos mandarins confucianos. O Mandato do Céu chinês, sob o qual imperadores tinham autoridade divina, mas precisavam agir dentro da moralidade para preservá-la, teria sido reconhecido
em Constantinopla, onde qualquer imperador culpado de ofender a Deus era morto ou exilado. Às vezes, como na China, desastres naturais eram vistos como sinais de descontentamento divino. Além disso, ambos os impérios faziam de suas srcens antigas um fetiche, com os chineses remontando as suas a tempos míticos e os bizantinos insistindo em serem reconhecidos como a continuação da antiga cultura grega e romana. Ambos os impérios mantiveram seu poder através de uma engenharia e de tecnologias muito avançadas, segredos que tentavam manter muito bem guardados. A Grande Muralha da China continua a ser uma das obras de engenharia mais impressionantes do mundo, tendo sido projetada para impedir a entrada de nômades “bárbaros”. De forma semelhante, as enormes muralhas fortificadas de Constantinopla, construídas para manter do lado de fora povos selvagens das estepes, eram, à sua maneira, a Grande Muralha da Europa. Outro pioneirismo foi o da pólvora. Tendo descoberto que a mistura de salitre, enxofre e carvão produzia esse útil acréscimo ao seu arsenal, os chineses puderam manter os inimigos à distância com mais facilidade. Tinham descoberto a mistura durante a dinastia Tang (618-907) e, em 1132, na dinastia Song, já faziam uma espécie primitiva de bomba, seguida, em 1259, por uma “lança cuspidora de fogo” 43 com cano de bambu, um misto de lança-chamas com espingarda rudimentar. Os bizantinos, enquanto isso, usavam o “fogo grego”, essa aterradora mistura de enxofre, piche, petróleo e nitro inventada nos anos 660 por um químico chamado Calínico. Era borrifado com uma espécie de bomba contra navios e soldados inimigos e tinha efeitos devastadores. Nos anos 940, foi relacionado oficialmente como segredo 44 de Estado bizantino por Constantino VII e ainda era uma das armas secretas de Constantinopla por ocasião de sua queda em 1453.45 Há outras semelhanças, incluindo uma habilidade similar em hidráulica e relógios de água, uma ênfase similar em procissões públicas para impor a autoridade real e uma firme crença em que sua capital era o centro (ou umbigo) do mundo. Mais significativamente, impérios conservadores, alicerçados num forte senso do próprio passado, funcionavam de modo parecido, utilizando hierarquias semelhantes de servidores públicos. Bizâncio não era uma cultura particularmente cínica, mas o despotismo dinástico sempre conduz a brigas entre gerações e entre irmãos, acabando, por vezes, em traições, assassinatos e golpes palacianos. As grandes mulheres geradoras de intriga de Constantinopla e seus eunucos eram basicamente primas das imperatrizes-viúvas da China que também tinham seus eunucos. As dinastias sobreviviam enquanto contassem com superioridade técnica sobre os inimigos, uma forte base camponesa da qual extrair impostos e uma burocracia eficiente. Por algum tempo, pelo menos, Bizâncio teve as três coisas. Bizâncio desmoronou, como vimos, em parte porque o Ocidente cristão não estava preparado para socorrê-la — na realidade, sob comando veneziano, fez tudo que podia para debilitar o império bizantino fatalmente. É bom lembrar que alguns venezianos e genoveses, assim como espanhóis (e talvez um único escocês), se juntaram para defender a causa de Bizâncio, já em sua fase final, e lá morreram. Um navio veneziano tinha conseguido furar o bloqueio turco e velejar pelo Egeu em busca de socorro, mas nada encontrara. O capitão pediu aos tripulantes que fizessem uma votação para decidir o que fazer — navegar direto para Veneza, considerar Constantinopla um caso perdido ou retornar para dar ao imperador a má notícia e morrer junto com ele. Só um marinheiro se manifestou a favor de seguir para casa, e mandaram46
no Mas calar oa estranho boca: elesé voltaram e morreram também. apesar de ter sido um acontecimento imensamente que a queda de Constantinopla, simbólico para as civilizações cristã e muçulmana, não teve, por si, consequências que abalaram o
mundo. Pouco tempo depois de absorverem a notícia, os venezianos e genoveses estavam de volta para negociar novos pactos comerciais. O comércio não dorme. Os otomanos dominaram os Bálcãs, indo até Viena, mas não conseguiram subjugar a Europa Ocidental e estabelecer o islamismo em toda a cristandade, como esperavam. Logo, com população variada, corte grandiosa, eunucos e rituais solenes, a Constantinopla otomana já não parecia muito diferente do que tinha sido. Mesmo transformada em mesquita, a magnífica igreja continuava estranhamente familiar. A influência artística e literária de Bizâncio, que chegara à Itália, à França e à Germânia como butim, intensificou-se com a renovação do interesse pela Grécia clássica, o que, por sua vez, teria um papel relevante no Renascimento. Leonardo “O Mouro” era como chamavam, talvez por causa da aparência sombria: Ludovico Sforza, duque de Milão. Certo dia, o duque recebeu uma carta excepcionalmente presunçosa de um suposto engenheiro militar. Esse jovem aventureiro se oferecia para construir pontes leves e portáteis, que supostamente permitiriam às tropas caçarem seus inimigos ou fugirem deles. “Também posso fazer carros cobertos e inexpugnáveis, capazes de penetrar as linhas inimigas com sua artilharia, e não existe um batalhão tão grande que eles não possam romper”. Além disso, o sujeito sabia fazer canhões, morteiros, catapultas, navios à prova de fogo, explosivos subterrâneos — qualquer coisa que se pudesse imaginar. O missivista, que era do sul, de uma oficina em Florença, dizia ainda que “em tempos de paz” poderia projetar edifícios e aquedutos. “Posso criar esculturas de mármore, bronze ou argila e, em matéria de pintura, posso também fazer tudo que há para ser feito tão bem como qualquer outro.” Ludovico entendia de arte e queria mandar fazer um cavalo de bronze gigante em memória do pai. Entendia também de guerra e deve ter ficado intrigado com esse negociante de armas que vendia ideias. Ludovico não pertencia exatamente à velha aristocracia. O pai, Francesco, tinha sido um chefe militar mercenário que mudara de lado tantas vezes que devia viver em perpétua confusão. Alguém precisava lutar contra a outra cidade à beira do rio? Francesco estava pronto. Enfrentar os francos? O papa? Sem problemas. O Renascimento italiano, além de ter sido uma grande época para a pintura devocional e a arquitetura de igreja (para não falar escravidão, com motim assassinato), também uma de chefes militares.daOs cidadãos pacíficos e preocupados o ebem-estar da foi comunidade que época habitavam as cidades Lombardia e da Toscana não eram guerreiros por natureza, mas viviam em frequente conflito; por isso, contratavam líderes guerreiros, os condottieri. Francisco Sforza tinha sido um exemplar típico dessa raça. Esse lutador de pescoço grosso e pálpebras caídas, filho ilegítimo de um mercenário e famoso por ser capaz de dobrar barras de metal com as mãos, dava sempre um jeito de acabar do lado vitorioso. Tinha lutado praticamente contra todo mundo, incluindo o próprio irmão, um filho, um cunhado e a maioria dos inimigos que pudessem existir no norte da Itália. Quando o duque de Milão morreu sem deixar herdeiros, a cidade voltou temporariamente a uma forma de república, mas brigas de facções e a fome provocaram uma nova crise. O velho e robusto soldado aproveitou para dominar a região. Para surpresa geral, ele se revelou um governante astuto e popular, contudo, quando Francisco morreu e o filho mais velho, Galeazzo Maria Sforza, assumiu as rédeas, o que se viu foi uma coisa totalmente diferente. O rapaz era sádico e muito mulherengo: consta que mando executar um caçador clandestino enfiando uma lebre, com pele e tudo, garganta abaixo do sujeito; que condenou outro homem a ser pregado vivo em seu caixão; e que seu passatempo favorito era inventar
torturas para os inimigos. Para satisfação geral, foi assassinado. O filho, de sete anos, o sucedeu; mas tio Ludovico tornou-se regente. O menino morreu misteriosamente, e Ludovico acabou duque de Milão. A história de Ludovico não era nenhuma novidade na Itália daquela época. Dramaturgos ingleses logo passaram a vasculhar relatos sobre as famílias governantes italianas em busca de enredos para suas cruentas tragédias. E Ludovico não era inculto. Fora aluno de um dos grandes sábios humanistas da época — “humanistas” eram aqueles que estudavam a literatura e a filosofia latinas e gregas, retomadas de alAndalus e de outras partes do mundo, trazendo antigas verdades para cidades jovens. Ele tinha ânsia de cercar-se de homens inteligentes e, para transformar Milão numa corte de fato brilhante, precisava de cultura — ou seja: escultura, música e pintura. Dessa maneira, em outubro de 1481, um homem forte e bonito de trinta anos, usando túnica curta corde-rosa e barba cacheada, apresentou-se na corte de Sforza. Carregava uma lira especialmente fabricada para a ocasião, porque o governante de fato de Florença, Lorenzo, o Magnífico, o enviara sobretudo 47 como músico e cantor, uma espécie de presente para seu aliado milanês. Acompanhava-o um jovem de dezesseis anos, que mais tarde se tornaria músico e ator. Os boatos devem ter corrido soltos: os florentinos tinham fama de sodomitas por toda a Itália. E, nesse caso, os boatos muito provavelmente tinham fundamento, pois o presunçoso cantor e engenheiro militar, capaz também de pintar quadros de vez em quando, era o famoso artista homossexual, Leonardo da Vinci. Leonardo, assim como o pai de Sforza, era bastardo, filho ilegítimo de um burocrata florentino que se casara diversas vezes e de uma camponesa, e nascera numa pequena aldeia. Mas o pai percebera os talentos precoces do menino e lhe arranjara uma vaga de aprendiz no ateliê de um dos grandes nomes da escultura e da metalurgia de Florença, Andrea del Verrocchio. Por volta dos anos 1460, os dias de glória das pequenas e independentes cidades-repúblicas italianas iam ficando para trás, mas a tradição das guildas e dos ateliês que lhes serviram de base prosseguia. As comunas que formavam em cidades famosas como Pisa, Lucca, Mântua, Siena, Bolonha, Verona, Pádua, Gênova e Perúgia, bem como em Florença e Veneza, tinham começado a emergir no fim do século XI, quando as velhas potências imperiais perdiam influência.48 Competindo entre si, especializando-se em habilidades e produtos particulares, essas cidades tinham complexos sistemas eleitorais e judiciais, que em geral dividiam o poder entre proprietários de terra locais, negociantes e artesãos.49 Por um tempo, sobretudo na Toscana e na Lombardia, pareceu um sistema muito bem-sucedido e srcinal, mais vigoroso do que enclaves maiores, como os Estados Papais e Nápoles, no sul. Mas o facciosismo, as revoltas cidadãos até mais e excluídos, assim como as brigas famílias mais ricas, reduziram suados influência, quepobres as cidades-repúblicas sucumbiram, uma entre a uma,asao domínio de graúdos, duques e príncipes locais. Veneza conseguiu, em grande parte, preservar seu velho e intricado sistema republicano, mas a poderosa e fanfarrona Florença era mais partidária da tendência contemporânea. Depois de acirradas disputas entre partidos e facções rivais, acabou caindo sob o feitiço de uma família de banqueiros extremamente ricos, os Médicis. No ano em que Leonardo ingressou no ateliê de Verrocchio, Lorenzo de Médici, “o Magnífico”, neto de Cosme, o primeiro governante entre os Médicis, tinha acabado de assumir o poder. Leonardo faria seu aprendizado no mundo movimentado, comunal e relativamente democrático das guildas e dos ateliês, dois elementos básicos da cidade-Estado italiana. Para comerciantes e profissionais — médicos, escultores, artesãos que trabalhavam com couro e ourives — as guildas eram instituições indispensáveis, que lhes permitiam desempenhar um papel importante na vida da cidade. As guildas estabeleciam e fiscalizavam modelos, organizavam procissões religiosas, fundavam hospitais e agiam como redes de ajuda mútua e de atividade política. Os ateliês eram minifábricas e ofereciam um
sistema de instrução superior, que dava aos jovens a oportunidade de aprender diretamente com os principais mestres até adquirirem as qualificações necessárias para iniciarem seu próprio negócio. Nos anos 1470, Verrocchio era dono de um dos principais ateliês artísticos de Florença. De acordo com o historiador da arte e biógrafo Giorgio Vasari, ele estudara ciências, sobretudo geometria, e trabalhara como ourives. Numa visita a Roma, testemunhara a mania das esculturas baseadas em obras da época clássica, que ali “eram desenterradas todos os dias”.50 Voltou-se para a escultura e depois para a pintura. Como homem brilhante, radical e intensamente curioso, era o professor perfeito para Leonardo. Nesses estúdios, havia muita colaboração. Quando Leonardo um dia pintou um anjo numa obra de Verrocchio, segundo nos conta Vasari, saiu-se melhor do que o mestre, Verrocchio simplesmente largou o pincel e parou de pintar. Já havia alguém superior. Leonardo teve de deixar o clima de camaradagem do ateliê e procurar também um grande patrono. Os dias de trabalho para toda a comunidade, num espírito de orgulho cívico, tinham acabado. Artistas e engenheiros precisavam de duques, banqueiros e bispos ricos para sobreviver. Leonardo se saiu muito bem em Florença sob os auspícios de Lorenzo de Médici, mas claramente não era visto por lá como figura indispensável, uma vez que foi mandado a Milão para se apresentar como o faz-tudo definitivo. Na biografia de Vasari já existe um vago aviso. Embora fosse um gênio, brilhante com a pena e o pincel, interessado em tudo e grande maquetista, “Leonardo começava coisas demais e não as terminava, pois estava plenamente convencido de que suas mãos, apesar de toda a sua habilidade, amais expressariam com perfeição as sutis e maravilhosas ideias de sua imaginação”. Em Milão, Leonardo mostraria que isso era verdade. Fez alguns belos quadros, decorou uma câmara do palácio e bombardeou o duque com desenhos e planos de máquinas de guerra engenhosas. Projeto desfiles e ajudou na reconstrução arquitetônica.51 Mas seu grande plano do enorme monumento equestre para o primeiro Sforza deu em nada. Era ambicioso demais. O bronze juntado para a estátua foi usado em canhões a serem utilizados contra um exército invasor francês. Então, quando chegou a hora de executar a mais famosa encomenda dos anos milaneses de Leonardo, uma das pinturas mais celebradas de todos os tempos, o artista-inventor fenomenalmente criativo foi longe demais. A última ceia, pintada entre 1495-1497 no refeitório do convento de Santa Maria delle Grazie, em Milão, era, em muitos sentidos, o desafio perfeito para um ambicioso aluno de Verrocchio, com um fascínio particular por iluminação e perspectiva. A encomenda exigia que Leonardo fizesse uma pintura imponente, estendendo-se bem acima da altura da cabeça, o que permitiria ao observador ver Cristo e seus claramente, comocom se fizessem da sala escolhida não estivessem apenas efeitos coladostão numadiscípulos parede. Leonardo resolveu maestriaparte os problemas de luz e eperspectiva, produzindo vigorosos que a cabeça de Cristo parecia atrair o observador. Leonardo vasculhou as ruas e seus cadernos em busca de modelos para os discípulos. Quando o prior reclamou que ele às vezes se limitava a ir ao ateliê e ficar olhando para a obra em execução, Leonardo foi convocado à presença do duque. O artista explicou que precisava olhar e pensar antes de saber o que fazer com as mãos e sugeriu que, como ainda não tinha encontrado um rosto com a malevolência e a crueldade de Judas, talvez pudesse usar a do prior. Ao que parece, o duque caiu na gargalhada. Infelizmente, Leonardo resolveu fazer experiências com a própria tinta. O método tradicional de pintar em paredes era o afresco, no qual se colocava um revestimento de argamassa na seção a ser pintada e logo aplicava aquarela, antes de a massa endurecer. Isso produzia cores brilhantes e frescas, mas não permitia mudar de ideia e era incompatível com as pinceladas lentas e deliberadas de Leonardo. Por isso, ele tentou uma nova técnica. Cobriu a parede do refeitório com uma mistura de piche, goma e giz e depois a pintou a seco, usando têmpera, uma tinta à base de ovo, que costuma resistir bem ao tempo. Mas não resistiu bem no muro em que Leonardo trabalhou. Menos de vinte anos depois de concluída, a pintura
começou a descascar; quarenta anos mais tarde foi descrita como “arruinada”. Mas o duque culto e nouveau riche jamais descobriria, pois, bem antes de a pintura começar a deteriorar-se, foi capturado pelos francos e morreu em 1508 numa masmorra subterrânea. Leonardo talvez tenha se sentido humilhado — ou talvez não, pois era um amador e um experimentador compulsivo e, com sua cabeça efervescente e volúvel, ficava entediado com facilidade. Mais tarde usou novas (e malsucedidas) técnicas de pintura, irritou um papa que alegava que ele jamais concluía coisa alguma e produziu centenas de projetos para centenas de objetos — que, devido à tecnologia relativamente primitiva de sua época, talvez nunca voassem, atacassem soldados, inundassem cidades inimigas ou explodissem castelos. A lista é de fato longa. Ele produziu desenhos gloriosamente belos e algumas das pinturas mais primorosas e enigmáticas já executadas. Mas no centro da busca que empreendeu durante a vida inteira estava o sonho de descobrir um pequeno número de princípios e padrões subjacentes capazes de explicar tudo na natureza. Seus cadernos estão repletos de imagens e conjecturas sobre estrutura de vórtices, válvulas do coração, formas de nuvens, desenhos de folhas, veias humanas, ossos e alavancas e de como o caráter se manifesta na forma do rosto. Em toda parte, ele procura correspondências. Cachos de cabelo soltos são parecidos com água de regato? Braços humanos são como asas de pássaro? Existem proporções perfeitas para o corpo humano, e estariam elas relacionadas com as proporções entre as pernas e os músculos dos cavalos? Que simetrias há nas formas das plantas e a que regras obedecem? No mundo de Leonardo, ainda não havia uma linha divisória clara entre “ciência” e “arte”. Eram uma coisa só. O artista analisava friamente a forma, a perspectiva e o efeito da distância nas cores, o que daria impacto à sua pintura. O artista usava lentes, aprendia a moldar metais e trabalhava com equações para saber como sustentar a cúpula de uma nova igreja. Para Verrocchio e Leonardo, “ciência” significava apenas aprendizado e entendimento; era a preparação prática que permitia fazer adequadamente edifícios, esculturas e quadros. Essa fome de conhecimento, assim como seu conhecido interesse por forças, engenharia e coisas como alavancas, levou Leonardo a ser definido como o “homem do Renascimento” srcinal. A imagem que se funde à ideia que fazemos do próprio Leonardo é a do nu de proporções perfeitas, em pé dentro de um quadrado e de um círculo, oHomem Vitruviano, o ser humano completo, executado por volta de 1487. Mas o que isso tem a ver com o Renascimento, cujo sentido estrito é o do renascer dos conhecimentos clássicos, como ensinavam os humanistas? Leonardo não era muito instruído — ou, ao que parece, não tinha muito interesse — em escritores romanos e gregos. Buscava padrões e simetrias à sua volta de um eito muito mais próximo das preocupações dos biólogos e dos físicos modernos do que das de Aristóteles ou Cícero. Sim, o Renascimento foi inspirado por todas aquelas estátuas desenterradas em Roma e pela tradução de textos antigos. Essa foi a decoração, o enfeite de uma época. Cardeais robustos se deliciavam com as histórias violentas e sexualmente explícitas da velha Roma e decoravam seus palácios com pornografia leve, um pouco atenuada por uma roupagem clássica. Contudo, Leonardo, assim como os melhores artistas, continua vivo porque priorizava o olhar — olhar atento, o segundo olhar —, olhar adiante e não para trás. Leonardo beneficiou-se de conhecimentos transmitidos pelo mundo muçulmano — por exemplo, em óptica — e da riqueza levada para o sul da Europa pelas novas rotas comerciais. A Europa cristã tinha progredido não apenas por esforço próprio, mas também graças a mudanças ocorridas fora de suas fronteiras, à aniquilação núcleoideias asiático do Deus islamismo por Gêngis, a invenções surgidas na China durante a dinastia Song edoa novas sobre e o mundo que tinham aparecido em al-Andalus. Leonardo tornou-se arquétipo não apenas do homem do Renascimento, mas do espírito europeu, no que ele tem de mais ousado e otimista. A verdade é que o Ocidente já deixara de ser apenas um caldeirão de
raças e culturas bem antes de ele pegar no pincel pela primeira vez. Agora estava pronta para explodir em todas as direções.
PARTE CINCO O MUNDO SE EXPANDE
1492-1640: a Europa se espalha em todas as direções, enquanto o resto do mundo passa por dificuldades
Costuma-se dizer, e com razão, que as duas mudanças mais significativas da história humana foram a invenção da agricultura, da qual tudo o mais passou a depender, e a revolução industrial, que deu forma ao mundo atual. Alguns acreditam que os últimos avanços em tecnologia digital e neurociência representam um terceiro grande salto; outros discordam. Mas, se a agricultura e o capitalismo foram o primeiro e o segundo saltos, talvez seja preciso acrescentar mais um estágio, uma espécie de meio salto para a frente ou, apenas, um passo determinado. Esse estágio é o comércio mundial, que emergiu de uma era de descobertas. Foi impulsionado pela distribuição desigual de plantas, minerais e animais no mundo, criando fluxos de açúcar, tabaco, especiarias e dinheiro. Sem ele, o capitalismo nunca teria acontecido, por consequência, a revolução industrial — pelo menos, não de uma maneira que lembrasse, mesmo de longe, a que de fato ocorreu. Vimos muitos exemplos de sistemas locais de comércio que se estenderam por imensas distâncias. Os marinheiros árabes que conseguiram ligar a Índia ao Mediterrâneo, conectando-se, dessa maneira, aos mercadores navegantes do Extremo Oriente, foi um deles. O tráfego de caravanas através do Saara foi outro; o sistema fluvial explorado pelos vikings, resultando na criação da Rússia, um terceiro. Mas só quando os marinheiros da Europa Ocidental, explorando novas embarcações à vela, abriram caminho de um continente clássica para outro é que o sistema de comércio global a funcionar de verdade. Foi mais uma demonstração de tecnologia incremental. Um vaso de começou madeira com cordas, quilhas e lemes avançado, somado a novas formas de armar lonas de vela, de repente se torna um galeão, guiado por bússolas e instrumentos para ler as estrelas, dentro de pouco tempo armado com canhões. Essas embarcações evoluíram ao longo dos séculos, a partir das galés do mundo antigo e dos velhos cargueiros marítimos, mais redondos. O efeito foi arrasador. Estudiosos divergem a esse respeito, mas, na época da chegada dos novos barcos, as Américas talvez tivessem uma população de cinquenta milhões de pessoas, mais ou menos a mesma da Europa de então. Esses povos concentravam-se principalmente onde hoje ficam o Brasil, o México, o Peru e ao longo do rio Mississippi. Logo depois, os números populacionais despencaram. Nas regiões americanas mais avançadas do centro e do sul, colonizadores espanhóis e portugueses voltaram a impor uma forma de trabalho forçado e de escravidão, dando início a séculos de desenvolvimento vagaroso e de estagnação política. No norte mais deserto, colonos de outro tipo se estabeleceram, aprenderam a lavrar a terra e construíram uma cultura democrática. Essas mudanças deixaram sua marca no equilíbrio de poder e na prosperidade do mundo atual. O fluxo de ouro e prata para a Europa, depois para a China, provocou agitação política nessas duas áreas. Na Europa, a velha hierarquia religiosa foi transformada, e o continente ficou radicalmente dividido: as necessidades dos negociantes globais levaram à invenção de sistemas financeiros que também marcam o mundo atual. No Oriente, sociedades como o Japão e a China lutaram para achar um jeito de retaliar os que chegavam pelo mar, que se puseram a construir impérios onde podiam. Esta parte do livro examinará de que forma, a partir do momento em que a Europa se lançou com entusiasmo pelo resto do mundo, usando tecnologias relativamente primitivas — quase sempre aprendidas com outros povos —, alguns dos mais importantes elementos formadores da modernidade começaram a se encaixar. Essa fase costumava ser narrada como um conto heroico, egocêntrico, de exploradores e conquistadores que levaram religião e luz para os nativos, de artigos exóticos que
chegavam às cidades europeias, de agricultores admiravelmente autônomos que aravam o solo virgem. Agora se sabe que a história foi muito mais brutal, com europeus pisoteando a maior parte do planeta, um pouco à maneira dos Quatro Cavaleiros do Apocalipse. Quando indagamos por que certas partes do mundo são muito mais ricas do que outras — o que funcionou e o que não funcionou —, notamos que esse período é decisivo. Também veremos que a história real foi muito mais estranha do que qualquer sumário seria capaz de sugerir: inclui o terror de piratas costeiros da Europa; a admiração do povo europeu por defensores nacionais como Vlad, o Empalador; a importância de ater-se à grandeza da Rússia; e o papel de promotores das campanhas contra o fumo na Inglaterra e no Japão. Problema no paraíso Se os espanhóis “descobriram” a América nos anos 1490, então Napoleão “descobriu” a Rússia em 1812. Foi uma invasão. Na invasão europeia da América, navios de madeira — que faziam uso das invenções chinesas da bússola e da pólvora, da matemática muçulmana de navegação e das habilidades dos velejadores europeus no Atlântico — representaram o papel que cavalos e bigas desempenhavam em terra. Só é lembrada por europeus e seus modernos primos americanos como “a descoberta” porque os povos invadidos eram fraquíssimos militarmente e sucumbiram rápido às doenças. Além disso, após séculos de desmatamento, drenagem, caçadas em larga escala e pesca extensiva, a Europa estava relativamente destituída de recursos naturais e, para os europeus, as Américas pareceram um ermo rico, maduro e intocado, outro paraíso. Pregadores, soldados, empresários e escritores anunciaram a descoberta de uma terra de florestas desabitadas e pagãos amistosos à espera das bênçãos da boa agricultura, dos direitos de propriedade e do Evangelho. Na verdade, as florestas e pradarias da América vinham sendo exploradas por caçadores durante milênios, desde que bandos de asiáticos ali chegaram através de uma ligação terrestre, talvez há vinte mil anos. A história dos nativos americanos no período que vai daquela época à chegada dos europeus é uma história complexa, de muitas civilizações diferentes e de um continente que, longe de ser desabitado, provavelmente abrigava mais seres humanos do que a Europa da época de Colombo. Nos anos 1490, havia de sete a oito milhões de “índios” na América do Norte, muitos deles agricultores competentes, número que, somado às muito povoadas áreas mexicanas e meridionais, 1 sugere uma população de 75 milhões a cem milhões, em comparação com os setenta milhões da Europa. As sociedades americanas abrangiam de caçadores inuítes a moradores de pueblos , de sofisticadas culturas agrícolas e bandos de tribos confederadas a impérios. As primeiras descrições europeias que dão conta da existência de selvagens ao longo da costa atlântica da América do Norte e o folclore sobre ferozes caçadores que moravam em tendas e viviam constantemente em guerra uns com os outros não passam de propaganda. Ali, a maioria dos povos era de agricultores que habitavam aldeias e cidadezinhas, ou pueblos , cultivando uma mistura de lavouras — ainda que a maior parte da agricultura tivesse por base um sistema de derrubadas e queimadas, com os agricultores se mudando depois de alguns anos para permitir que a terra se regenerasse, algo muito parecido com a agricultura praticada nos primórdios da Grã-Bretanha, da França e da Alemanha. Seus sistemas tribais eram, com frequência, caracterizados por um equilíbrio de poder em que havia espaço para mulheres de destaque, que escolhiam os chefes homens, assim como complexos acordos e alianças para evitar conflitos. Tratava-se, acima de tudo, de um continente muito variado socialmente. Estima-se que só na América do Norte havia
mais de seiscentas sociedades diferentes e mais ou menos uma dúzia de grupos linguísticos 2 independentes, “em alguns casos, mais diferentes entre si do que o inglês e o chinês”. Embora os europeus considerem Colombo “o descobridor”, a verdade é que os vikings já tinham alcançado o litoral atlântico setentrional da América e ali se estabelecido por um breve período e que marinheiros bascos conheciam, havia muito tempo, as regiões ricas em bacalhau da Terra Nova. Depois que Colombo chegou ao sul, as primeiras conexões nortistas foram negociantes de peles franceses, espanhóis, holandeses e, mais tarde, ingleses, seguidos por assentamentos que, em grande parte, só puderam sobreviver com a ajuda de nativos americanos para conseguir alimentos. Contudo, o impacto dos europeus teve como resultado uma catástrofe multifacetada, que só há pouco começou a ser de fato compreendida. Desde sua chegada nos anos 1520 até 1900, estima-se que houve quase cem epidemias americanas, praticamente varrendo povos inteiros do mapa. Além das vítimas de doenças, muitos morreram de fome, porque campos deixaram de ser lavrados e lavouras, de serem plantadas. O paraíso “virgem” e vazio proclamado por colonos europeus em muitas áreas era, na verdade, uma zona de desastre ao ar livre. O efeito sobre os povos nativos não se limitou às doenças, é claro. O desejo desesperado dos europeus por peles, em especial por couro de castor para chapéus, semeou conflitos entre as tribos, que caçaram os animais até extingui-los, localmente, provocando uma reviravolta no seu modo de vida tradicional. A introdução de armas de fogo e de álcool teve efeito parecido. Mais ao sul, os espanhóis reintroduziram os cavalos, que tinham sido eliminados pelos primeiros americanos. No começo dos anos 1700, cavalos fugidos que voltavam ao estado selvagem e outros, que tinham sido trocados por mercadorias ou roubados, sustentavam uma enorme mudança no estilo de vida dos índios das planícies, que sempre haviam caçado a pé os seus bisões. Montados, eles se tornaram um povo nômade muito mais bem-sucedido — e belicoso. No fim, os atos invasivos de colonização destruíram os impérios nativos da Mesoamérica e as culturas litorâneas da América do Norte e causaram ondas de migração. Longe se ser “atemporal” e “indomada”, como se dizia, a América era um continente muito bem povoado. A chegada dos europeus, do ponto de vista de seus habitantes srcinais, foi um dos grandes desastres da história. Cristóvão se perde Cristóvão Colombo — ou Cristóbal Colón (espanhol), Cristoforo Colombo (italiano), Cristofferus de Colombo, Colom ou seja qual for o nome que escolhermos na miscelânea de nomes pelos quais é conhecido esse lobo do mar de faces vermelhas e cabelos brancos — pode ser definido como o batedor, o escalão avançado. Em toda invasão há os homens que vão na frente e depois voltam para contar o que viram. Seja como for, esse grupo inicial viajava em três pequenos navios, conhecidos pelos tripulantes por gírias que designavam “prostituta”. A nau capitânia de Colombo, aSanta Maria , era conhecida por seus marujos como “Maria Imunda”. Quando partiram de um pequeno porto de aldeia espanhol em 1492, esses homens não tinham medo de cair no fim do mundo. Achavam que encontrariam terras do Extremo Oriente, talvez o Japão, a Índia, ou quem sabe a China, com seu “Grande Cã” (apesar de esse império ter acabado uma centena de anos antes — as notícias se espalhavam muito devagar). Colombo foi para o leito de morte convencido de que tinha encontrado “as Índias”, mas tal atitude sugere que estava um tanto confuso: ele mesmo reivindicara o Caribe para a Coroa espanhola, o que dificilmente teria feito se achasse de fato que as ilhas faziam parte do poderoso império chinês.
O que ele realmente pensou que estivesse fazendo é um mistério. Em sua primeira viagem, não levava muita coisa para negociar, apenas umas bugigangas e nenhum soldado ou padre, ninguém para registrar com desenhos o que pudesse encontrar. Não podia ter a menor ideia, é claro, de que sua pequena expedição seria o zumbido de vanguarda que precedeu o enxame de navios europeus para o oeste — o as primeiras gotas d’água antes da tempestade. As explicações que deu depois são tão variadas e contraditórias que pode ser que talvez não soubesse muito bem o que estava procurando, embora escrevesse obsessivamente sobre ouro. Colombo ostentava grandes títulos — almirante de oceano e vicerei — e tinha assegurado o direito de ficar com um décimo de tudo que encontrasse. Essas coisas lhe foram concedidas pelos monarcas espanhóis Fernando e Isabel, que tinham acabado de destruir o último ponto de apoio muçulmano na Europa, o pequeno reino de Granada. Colombo era um bravo marinheiro, embora talvez fosse um vigarista ainda melhor. E foi, sem dúvida, responsável pelo erro mais significativo da história humana. Talvez devêssemos chamá-lo de “artista da autoconfiança”, pois tinha uma crença formidável em se próprio destino. Batalhara muito para levantar fundos a fim de empreender o que, em essência, era uma ogada de especulação financeira. Como já vimos, naquela época havia intensa competição no Mediterrâneo ocidental. Os portugueses, os verdadeiros marujos pioneiros, tinham alcançado a ponta da África e se preparavam para estabelecer rotas seguras para a Índia. Tinham esperança de chegar aos campos auríferos de propriedade dos malianos e dos Songhai e de atacar o bloco muçulmano pelo sul. Os espanhóis haviam competido com eles e com aventureiros franceses na disputa pelas primeiras colônias atlânticas da Europa, os grupos de ilhas dispersos na costa africana. Dessas, os portugueses ficaram com as ilhas da Madeira e de Cabo Verde, enquanto os espanhóis asseguraram as ilhas Canárias entre 1404 e 1493. O ocorrido nas Canárias fora pequeno em escala, mas representara um teste quase perfeito para a colonização da América. O povo local, possivelmente de srcem berbere, era alto e não tinha a pele muito escura. Vivia em grupos tribais e, embora lutasse contra os espanhóis, não dispunha das vantagens dos cavalos e das espingardas, cuja existência desconhecia. Também era vulnerável a doenças europeias. Muitos foram levados para a Europa como escravos. Sua cultura desapareceu por completo. Em se lugar, os espanhóis estabeleceram plantações de cana-de-açúcar e sonharam com ouro, nesse caso o ouro africano que não estava muito longe dali por via marítima. Mas o que havia além das Canárias, mais para oeste? Colombo não era o único a supor que o Japão e a China poderiam estar a apenas quatro semanas de viagem à vela. Europeus instruídos já aceitavam que o mundo fosse redondo. Como foi dito, marinheiros cristãos usavam astrolábios muçulmanos e bússolas chinesas, além de mapas da Antiguidade Clássica. Entre os que disseram a Colombo que a China poderia ser alcançada por aquele lado estavam Paolo Toscanelli, sábio de Florença que conheceu Leonardo da 3 Vinci e, provavelmente, Américo Vespúcio, que depois daria seu nome ao continente. Por outro lado, havia geógrafos eminentes que discordavam. Para eles, a viagem seria muito mais longa do que Colombo supunha, e a distância era grande demais para que a tripulação dos barcos daquela época, com se limitado suprimento de água, sobrevivessem. Colombo não conseguiu apoio dos portugueses para o se empreendimento, porque os calculadores do rei, a Junta dos Matemáticos, discordavam das distâncias por ele estimadas. Por falar nisso, ele passou exatamente pelo mesmo problema na Espanha. Contudo, Fernando e Isabel, entusiasmados com o triunfo militar contra os mouros, acabaram ajudando. Foram motivados por uma mistura de ganância, orgulho, piedade e medo. Cobiçavam ouro e também as especiarias orientais que tinham enriquecido negociantes e cidades ao longo da rota terrestre. A conquista de Granada fora gloriosa, mas custara caro. Eles, porém, se orgulhavam do grande triunfo cristão, que havia ecoado por toda a Europa, e claramente se julgavam fadados a um grande destino, com
o qual a aventura de Colombo era bem compatível. Como outros cristãos contemporâneos seus, achavam que Cristo não demoraria a voltar e que era seu dever descobrir o maior número possível de almas para conduzir a Ele. Acima de tudo, tinham medo de ficar para trás em matéria de novas descobertas. Colombo já tinha pedido auxílio a Portugal. Mandara um irmão (que se atrasou, por ter sido capturado por piratas) conversar com os ingleses. E, quando os espanhóis enfim concordaram em financiar Colombo, ele já estava pronto para vender a ideia aos franceses. Colombo não era espanhol, e sim genovês. No entanto, a aristocracia, a Igreja e os negociantes da Espanha é que deram o dinheiro — coisa que fizeram de novo — depois que ele retornou com escravos nativos, algumas plantas interessantes, papagaios e uma escassa bandeja de pedaços de ouro, sugerindo que, se não quisessem perder tudo teriam de investir mais. Colombo sustentou que poderia chegar ao Japão em quatro semanas navegando a partir das ilhas Canárias, uma viagem que dizia ter 3.860 quilômetros. Mas os matemáticos portugueses tinham razão: a distância verdadeira era de mais ou menos 19.200 quilômetros e, portanto, totalmente fora do alcance de um navio daquela época se não houvesse escalas para reabastecimento durante o trajeto. Ele devia saber que estava exagerando, o que torna o simples fato de partir rumo ao desconhecido de uma coragem ainda mais notável. Pelo menos outra frota exploratória bem organizada tinha viajado para o oeste e desaparecido. Não devemos deixar de levar em conta, entretanto, a euforia e a agitação provocadas pelo mero ato de pegar aquelas novas máquinas, os navios feitos para cruzar o oceano, e ver até onde podiam ir. Fernando e Isabel tinham oferecido prêmios vultosos para o primeiro marinheiro que avistasse terra — um dote de dez mil peças de prata por ano pelo resto da vida. Com cada homem a bordo dos três minúsculos navios provavelmente fantasiando o vencedor eu”, avistamentos a ganância e o otimismo duraram semanas depois da última escala, as ilhasque Canárias. Mas,“pode após ser muitos falsos e com os suprimentos diminuindo, o humor mudou. Colombo, o comandante italiano, fez súplicas e lisonjas a sua tripulação espanhola, para que prosseguisse. Alguns marujos lembraram que ele era um estrangeiro maluco e que estavam arriscando a vida para enriquecê-lo — acusação bastante justa. Outros falaram em jogá-lo ao mar se insistisse em prosseguir. Depois de seis semanas de viagem, Colombo convocou uma reunião com os capitães dos outros dois navios, o Pinta e o Niña, que concordaram, com relutância, em seguir em frente, mas só por mais quatro dias. Dois dias depois, em 12 de outubro de 1492, um dos marujos, Rodrigo de Triana, enfim avistou terra — parte de uma cadeia das atuais ilhas das Bahamas. Se Rodrigo entreviu com prazer a vida fácil que teria pela frente, é porque não conhecia seu capitão. Colombo alegou que já tinha avistado terra e ficou com o prêmio. Como evitou ser atirado no mar por seus desolados tripulantes durante a viagem de volta é outro mistério. Quando desembarcaram, Colombo reivindicou a ilha para a Coroa espanhola, batizando-a de São Salvador (o nome srcinal era Guanaani). O povo dali tinha parentesco com os tainos caribenhos, cujos inimigos mortais eram os caribes, caçadores-canibais. É provável que não mais de duzentas mil pessoas vivessem no Caribe naquela época, ocupando-se de agricultura básica, pesca e tecelagem — e fumando com grande prazer as folhas secas da erva tabaco enroladas em forma de charuto. Colombo descreveu os tainos (chamando-os de “índios”) como pacíficos e gentis, disse ao rei Fernando que poderiam ser forçados a trabalhar, lavrar a terra, construir e tecer roupas. Partindo para reivindicar ilhas maiores, ele até sequestrou alguns nativos para exibir na Espanha. Dezoito anos depois da chegada dos primeiros colonos espanhóis — na segunda eestavam muito mortos. mais demorada visita Colombo um ano depois da primeira —, 99% dos habitantes locais A maioria fora de vítima por doenças. Na primeira visita, como seu maior navio tinha naufragado, Colombo viu-se obrigado a deixar 39 homens para construir um assentamento e arrancar mais ouro dos habitantes. Mas a cobiça do ouro e da
conquista era tão forte entre os espanhóis que até os tainos reagiram. Quando ele voltou, os 39 estavam mortos. Sempre haveria mais colonizadores, porém os tainos e outros povos da região estavam condenados à morte. Eles transmitiram sífilis para os marujos de Colombo e, consequentemente, para todos os europeus sexualmente ativos; ainda assim, quase desapareceram da história, deixando para trás apenas umas poucas palavras, como “hammock” [rede para dormir], “canoe” [canoa] e “barbecue” [churrasco].4 A segunda expedição levou cerca de duzentas pessoas, incluindo mulheres, além de alguns daquelas novas criaturas assustadoras, os cavalos, com soldados montados e muitas armas de fogo. Para os nativos americanos, a estranha combinação de um ser refulgente metade homem com quatro longas patas e capaz de cuspir fogo deve ter parecido uma monstruosa espécie de dragão. Na segunda viagem também havia mulas, galinhas e porcos. Foi nesse momento que a exploração se converteu em tomada de posse. Os “índios”, com frequência difamados pelos espanhóis (para justificar os próprios atos) como “canibais” quando algum tratamento muito severo era empregado contra eles, passaram a ser considerados propriedade do novo império espanhol. Sua terra seria terra imperial. Será que a propensão dos católicos espanhóis a verem todos os não católicos como hereges — que ou eram convertidos, ou arderiam para sempre no inferno — os levou a ignorar qualquer noção de direito dos povos nativos? Protestantes do norte se comportariam de forma parecida; a religião provavelmente serviu apenas como desculpa. Para a nova monarquia espanhola a verdadeira ameaça, de qualquer forma, não estava no Novo Mundo, mas no Velho. Vinha dos rivais portugueses, com quem os espanhóis competiam em todo o oceano ocidental. Em 1494, os dois países firmaram um acordo extraordinário, ratificado como Tratado de Tordesilhas, que dividia metade do mundo longitudinalmente entre si. A linha ia de polo a polo e passava a oeste das ilhas de Cabo Verde, na costa da África, que já eram portuguesas, dando as ilhas de Cuba e Hispaniola, reivindicadas por Colombo, à Espanha. Uma revisão do primeiro acordo daria aos portugueses a maior parte do Brasil; mais tarde, em 1529, a partição ibérica foi estendida para o outro lado do mundo, com uma linha traçada no Extremo Oriente no Tratado de Saragoça. As terceira e quarta viagens de Colombo culminaram num desembarque na própria América do Sul e na descoberta de pérolas. Àquela altura, os colonos brigavam entre si e se desentendiam muito com os tolerantes tainos. Fernando e Isabel reduziriam o negócio excessivamente generoso que Colombo reservara para si e iniciariam o longo processo de transformar o que a rigor fora um empreendimento privado de alto risco num império patrocinado pelo Estado e pela Igreja. A fronte ira c ristã Para compreender por que Colombo fez o que fez e o aparente absurdo de dois países dividirem entre si a maior parte do mundo (com a bênção do papa), é preciso examinar mais atentamente a política ibérica da época. Se a Europa cristã estava isolada do Oriente pela longa e dispendiosa Rota da Seda, então Espanha e Portugal deviam se sentir ainda mais isolados. São Estados na ponta da Europa, que acabavam de se livrar dos muçulmanos e eram semeados de castelos, linhas de defesa e acampamentos. Fernando e Isabel eram monarcas de fronteira, crentes apaixonados numa cristandade católica. A experiência de seus súditos tinha sido a de que, para se sentirem seguros, precisavam prosseguir com determinação, ampliando suas terras. Tratava-se de uma fronteira inquieta, policiada por barcos à vela, uma fronteira familiarizada com a guerra.
Durante os séculos de al-Andalus, só uma estreita faixa montanhosa do norte da Espanha, o reino de Astúrias, permanecera cristão. Como vimos, reis cristãos exploravam as divisões entre os muçulmanos para lentamente abrir caminho, lutando, até o sul. Sob a austera dinastia Almohad, que chegou do Norte da África para impor uma forma mais repressiva do islamismo, muitos judeus e outros grupos descobriram que os briguentos Estados cristãos lhes davam boa acolhida e, por isso, houve uma grande migração para o norte. A maior parte da “reconquista” fora alcançada séculos antes do reino de Isabel e Fernando. A vitória crucial se dera em Las Navas de Tolosa, em 1212, quando os reis de Castela, Navarra, Aragão e Portugal, rompendo um hábito da vida inteira, lutaram do mesmo lado, esmagando os almôades, dinastia berbere cujas tropas vinham do interior da África, de lugares como o Senegal, assim como do atual Norte da África. Por volta dos anos 1490, só faltava derrotar o pequeno reino de Granada. Forças muçulmanas opuseram longa e brava resistência, mas a fome acabou por obrigá-las a entregarem a própria Granada, seduzidas por um tratado aparentemente generoso. Os cristãos prometeram permitir que voltassem à África todos aqueles que assim o desejassem, contudo garantiram que de qualquer maneira a lei muçulmana seria preservada para os que preferissem ficar. Centenas de milhares optaram por ficar e viver sob domínio cristão. Alguns acharam isso intolerável, pois o tratado srcinal logo foi ignorado, porém muitos muçulmanos se converteram ao cristianismo. Aos judeus, talvez duzentos mil ao todo, também foi oferecida a opção de se converterem ao catolicismo ou deixarem a Espanha. Estima-se agora que apenas quarenta mil saíram, a maioria foi primeiro para Portugal, embora, mais tarde, tenham seguido para Amsterdã, Constantinopla, Veneza e até Roma.5 A riqueza dos que não se converteram foi confiscada pelo Estado e, de fato, acabou ajudando a financiar as missões de Colombo. Mas os não convertidos devem ter sido minoria. O bispo de Burgo era um antigo rabino; santa Teresa de Ávila, uma das grandes figuras místicas da Contrarreforma, vinha de uma família de judeus convertidos; o mesmo ocorreu, provavelmente, com Bartolomé de Las Casas, frade e historiador que revelou o lado sombrio do colonialismo espanhol na América. Apesar de a Inquisição espanhola ter sido tão brutal e desumana como sua imagem popular sugere, testando constantemente a sinceridade dos marranos ou criptojudeus e entregando para execução até quatro mil pessoas, os judeus e muçulmanos também matavam apóstatas. Para Fernando e Isabel, a Inquisição e a cristianização forçada de toda a Espanha eram essenciais para a união política de seus reinos, Castela e Aragão — uma rocha ideológica absoluta sobre a qual o novo país, com um só povo, seria construído. Era um casal curioso, o que formavam esses monarcas católicos tão prontamente admirados em Roma. Isabel, da casa real de Castela, teve uma infância difícil, com tempos de verdadeira pobreza quando viveu com a mãe, que sofria de perturbação mental. O problema devia ser genético: a filha de Isabel ficou conhecida como Joana, a Louca. Seu pai, que alimentava ambições dinásticas, tinha agenciado Isabel nas cortes de metade das cabeças coroadas da Europa. Ela não achara nenhum deles atraente e aprendera a esquivar-se com destreza de homens muito mais velhos. Em certa ocasião, suplicou a Deus que a livrasse de ficar noiva de um nobre de 43 anos. Ele morreu de apêndice supurado quando ia cortejá-la. (Isso talvez explique a célebre devoção de Isabel em fase posterior da vida.) Em vez disso, com bênção especial do papa — necessária, porque seus avós eram primos —, ela fugiu em 1469 para casar com Fernando, da casa real de Aragão, ao que tudo indica contra a vontade de todos. Fernando parece ter sido um homem flácido e melancólico, a julgar pelos retratos. Tornou-se um governante formidavelmente ambicioso, sempre envolvido nas guerras e nos tratados intermináveis de sua época, enquanto ampliava o poder dos dois reinos. Trabalhava ferozmente também, chegando, por vezes, a prender uma atadura no rosto para melhorar a concentração. No que dizia respeito a mouros, hereges e judeus era ainda mais duro do que Isabel, que gostava de estar ao lado de suas tropas nas horas
decisivas. Era genuinamente igualitário na atitude para com sua mulher (embora com ninguém mais). “Tanto monta, monta tanto, Isabel como Fernando” era o mote dos dois — “Isabel, Fernando, é tudo a mesma coisa” —, talvez a melhor receita de felicidade conjugal que a história tem a oferecer. Infelizmente para os dois, ele viveu doze anos a mais que ela. Tudo isso é da maior importância porque Fernando e Isabel estabeleceram a mais poderosa dinastia do Ocidente e talvez do mundo em sua época. Joana, a Louca, casou-se com Felipe, o Belo, um Habsburgo filho do sacro imperador romano: o filho deles, Carlos V, ligaria a monarquia espanhola à da Áustria, além de herdar faixas de terra da Borgonha e dos Países Baixos, o sul da Alemanha, Nápoles, a Sicília e a Sardenha. Ao ser eleito em 1519 sacro imperador romano (respaldado pelo fato de que se irmão governava a Boêmia e a Hungria também), Carlos se tornou o primeiro homem, desde os tempos clássicos, a ter a chance de unificar a Europa. A oportunidade parecia maior ainda por causa da imensa quantidade de prata que logo encheria seus cofres, proveniente do novo império americano — ao qual retornamos agora. Sufocado de prata Foi uma das emboscadas mais desiguais e significativas de todos os tempos, mas não era o que pensavam os espanhóis que aguardavam, tremendo, escondidos atrás de paredes caiadas. “Muitos de nós urinamos sem perceber, de puro terror”, confessaria um deles. Seu líder, um combatente analfabeto, bastardo e grisalho Francisco em Pizarro, oriundo de uma cidade paupérrima da Espanha, com 168 homens, chamado 62 deles montados cavalos. Naquela manhã de 16 de novembro de 1532, só elecontava estava diante do governante de Tahuantinsuyo — que hoje chamamos Peru — e seu exército de oitenta mil soldados. É verdade que os espanhóis dispunham de armas de fogo e que o armamento do exército era mais adequado para uma batalha da Idade do Bronze — bodoques, arcos e flechas, clavas, cassetetes e capacetes de madeira. Mas os arcabuzes espanhóis eram lentos e incômodos, e Pizarro tinha apenas dez ou doze deles. Apesar disso, quem parecia estar em imensa desvantagem eram os impertinentes invasores, que tinham convidado o imperador inca Atahualpa para um encontro na enorme praça da cidade de Cajamarca, nas montanhas verdejantes peruanas. Cajamarca tinha templos e prédios militares, construídos de acordo com uma técnica de montar quebra-cabeças monumentais de pedras, que ainda hoje parecem muito mais engenhosos do que qualquerbaixos, construção de pedrapara europeia. No adoradores centro da praça havia um vasto deles espaço aberto cercado de prédios que serviam hospedar e viajantes. Dentro estavam escondidos os espanhóis. Atahualpa não suspeitava da armadilha. Estava em vias de ser coroado na capital inca de Cuzco, depois de derrotar o exército de seu meio-irmão numa guerra civil. Embora os espanhóis viessem, havia anos, causando violentas desordens mais ao norte, ele jamais ouvira falar nos conquistadores. A chegada de Pizarro à costa lhe fora informada por mensageiros e houve notícias inquietantes sobre saques, mas aquilo tudo deveria parecer secundário em comparação com a épica guerra civil inca. Um enviado dissera a Atahualpa que se tratava de gente pouco importante — criaturas desorganizadas, sem postura militar e de pele pálida que usavam brilhantes carapaças de metal e cavalgavam grandes lhamas. Não valia a pena preocupar-se com aqueles “cavalos”, pois não comiam gente. Nas palavras do enviado inca, um dos recém-chegados, um sacerdote chamado frei Vicente de Valverde, usava “varas cruzadas”. Diante disso Atahualpa ficou apenas curioso. Depois diria a Pizarro que tinha planos para os cavalos, que a se ver poderiam ser úteis. Quanto aos espanhóis, ocorrera-lhe a ideia de levá-los como curiosidades para guardar seu harém. Quando chegou em sua liteira, enfeitada com penas de papagaio, prata e ouro e
carregada por oitenta figurões vestidos de azul-claro, seis mil soldados de elite corriam garbosamente ao lado, entoando canções, enquanto outros soldados iam na frente varrendo a estrada. Usavam poucas armas e vestiam trajes cerimoniais. Por ter sucumbido com tamanha facilidade às armas espanholas, costuma-se supor que o exército inca era ruim. Não era. Aqueles homens eram treinados com severidade feroz e tinham vencido todas as forças rivais que enfrentaram, guerreiros que lutariam corpo a corpo até a morte. Quando chegaram, a praça estava deserta. Depois, o sacerdote apareceu e disse ao imperador que recebera instruções para convertê-lo à fé cristã. Frei Vicente segurava uma Bíblia, objeto que Atahualpa nunca tinha visto. O inca pegou-a e teve dificuldade para abrir. O frade tentou ajudar, mas Atahualpa o empurrou de lado. Quando finalmente abriu o livro, fitou as linhas negras garatujadas e jogou-o no chão, desapontado. Que recepção chata! Que presente inútil! O sacerdote, indignado com a blasfêmia, convocou a emboscada. “Venham, venham, cristãos!”, berrou. “Acabem com estes cães inimigos!” Pizarro, ao sinal combinado, deixou cair um pano que tinha nas mãos. Dois de seus pequenos canhões dispararam (os outros dois falharam). Os espanhóis, esquecendo-se do medo e das botas desconfortavelmente úmidas, atacaram a cavalo e a pé. O barulho e a surpresa espalharam o pânico entre os incas. Eles nunca tinham enfrentado espingardas, armas de metal ou cavalos. Fugiram em todas as direções. Durante as duas horas que restavam antes do pôr do sol, pelo menos sete mil incas foram mortos tentando proteger o imperador e deus Sol em sua liteira ou fugindo por cima de um muro de adobe e correndo pelos campos. Os espanhóis, de lança, punhal e machado nas mãos, golpearam até cansar. A liteira de Atahualpa acabou lançada pelos ares por cavaleiros, e Pizarro o capturou, para dentro.inca recebeu uma proposta de Pizarro. Os espanhóis tinham ficado Ainda arrastando-o perplexo, o imperador impressionados com a quantidade de bandejas, jarros, taças e joias de ouro e prata que tomaram dos inimigos. Atahualpa revelou a Pizarro que havia muito mais no lugar de onde tinham tirado. Para os incas, o ouro estava associado ao Sol, o que explicava o deus Sol. O valor real dos objetos estava no acabamento e na elegância, mas para os espanhóis só o que importava era o metal, seu valor de mercado. Logo passaram a fundir os objetos em lingotes. Atahualpa, já ciente da estranha obsessão dos espanhóis, ofereceu-se para encher de ouro a sala onde estava detido em troca da liberdade. A sala tinha sete metros de comprimento por cinco de largura — ainda existe — e, cheia, daria dois metros de altura de ouro. Atahualpa ainda prometeu enchê-la outras duas vezes com objetos de prata. Tudo isso em dois meses. Espantado, Pizarro aceitou a oferta e prometeu soltar Atahualpa — promessa que não tinha a menor intenção de cumprir. Quando a procura e a coleta de metal terminaram, o que na verdade durou até junho seguinte, as melhores obras dos ourives incas tinham sido derretidas para formar mais de seis mil quilos de soturnos lingotes de ouro e doze mil quilos de blocos embaciados de prata. A essa altura, os espanhóis avançavam cada vez mais para dentro do império inca, lutando, atraiçoando e semeando a discórdia entre os inimigos. Atahualpa foi muito útil por causa da absoluta autoridade que exercia sobre seu povo, mesmo em cativeiro. Isso deu aos espanhóis grande liberdade de movimentos, enquanto o inca fazia planos para recuperar a liberdade e o império. Isso não aconteceria. Incumbido de tentar formar um exército para se libertar, Atahualpa pôde escolher entre ser queimado vivo ou converter-se ao cristianismo e ser estrangulado. Como os incas acreditavam na preservação doassim corpomandou pela mumificação, ele optou pela conversão e fez as devidas súplicas. Depois, Pizarro ainda queimar seu corpo. É fácil ver nisso um clássico confronto entre imperialistas perversos e nobres habitantes locais. Fácil, mas equivocado: se já houve líderes conscientemente imperiais, esses líderes foram os incas, cujo
império tinha irrompido de sua base em Cuzco, bem ao sul, e só começara a se ampliar noventa anos antes. Cajamarca caíra em seu poder sessenta anos antes de Pizarro chegar, e o maior período de avanço inca tinha ocorrido apenas três décadas antes da invasão espanhola. Engenheiros habilidosos e militaristas, muito parecidos com os romanos nesse particular, tinham construído mais de quinze mil quilômetros de estradas, assumindo o controle de outras culturas nos Andes e nas planícies costeiras do Pacífico mediante uma combinação de perícia militar, suborno e intimidação de elites rivais. Os incas não tinham meios de transporte sobre rodas, sistema de escrita e quase nenhuma arma de metal. Comunicações e burocracia eram administradas por meio de um engenhoso sistema de cordões de cores variadas com nós, chamados quipos, levados por mensageiros de um lugar a outro. Mas o feudalismo inca era duro. Toda a terra pertencia ao império, e o povo era organizado em unidades de famílias que prestavam serviços ao imperador e não tinham permissão para se mudar. Atahualpa estava longe de ser santo: esperava que cada capricho seu fosse cumprido com obediência servil, ordenando execuções sem grandes dificuldades, e gostava de usar a cabeça mumificada de um general inimigo como copo. A fraqueza do império inca, além da falta de cavalos e armas de fogo, era o centralismo extremo, que seria de imensa ajuda para os espanhóis. Esse sistema colocava nas mãos espanholas, desde que controlassem Atahualpa, o tronco encefálico de toda a administração inca. Depois de matar o imperador, deram o cargo a seu irmão Yupanqui, e conseguiram manter certo controle por intermédio dele, enquanto combatiam a resistência inca — guerra essa que prosseguiria por mais quarenta anos. Esse já era o modelo espanhol. Como na derrota do império asteca, bem mais ao norte, sob o comando de Hernando Cortés 1519-1521, os para invasores descobriram muitoslocal, povos conquistados peloideia império recémsurgido em estavam ansiosos se aliarem contra oque opressor sem terem a menor do negócio em que estavam se metendo. Depois de capturarem o governante asteca, Montezuma, os espanhóis puderam usar sua autoridade residual para controlar o povo — e saquear seu ouro. Depois que ocuparam o México e o Peru, os comandantes espanhóis passaram a usar sistemas nativos de controle e outros importados da Espanha — notavelmente aencomienda, um sistema de concessões feitas a nobres espanhóis que impunha aos povos indígenas condições não muito distantes da escravidão e que fora empregado pela primeira vez contra os muçulmanos na Espanha. No Peru, eles se apropriaram do costume inca de trabalho forçado e o aplicaram de acordo com suas próprias necessidades, sobretudo na mineração de prata em Potosí. Afinal de contas, tratava-se apenas de substituir dois sistemas imperiais por um só, não havendo, portanto, nada parecido com a transformação das relações entre camponês e governante que ocorreria na América do Norte pouco depois. Os espanhóis não tinham saído para construir um novo mundo no sentido de um novo início social, um recomeço. Longe disso. Eram aventureiros em busca de saques que pudessem transportar e deviam lealdade à Corte espanhola. Fizeram muitas construções — escolas, hospitais, quartéis e igrejas —, mas reformas sugeridas por Madri ocorreram lentamente ou não ocorreram. Antonio de Mendoza, importante vice-rei espanhol e marquês da Nova Espanha, aconselhou seu sucessor a fazer pouco e devagar. Muitas figuras-chave da conquista e das décadas que se seguiram preferiram terminar seus dias em casa na Espanha — entre eles o próprio Cortés. Repetidas vezes os escritos de autoria dos seguidores de Pizarro revisam o assunto do ouro e da prata, ponderando sobre ele de forma obsessiva, em vez de tratar do povo e da paisagem. Os espanhóis no Novo Mundo, apesar de toda a beleza de sua arquitetura e do brilhantismo sua música, não se mostrariam especialmente criativos e esclarecidos como construtores de império.deAssumiram o controle de um mundo havia muito em guerra consigo mesmo e cujas ofertas culturais à Eurásia seriam limitadas. A capital asteca de Tenochtitlán talvez fosse na época a maior cidade do planeta, fora Constantinopla, e
com seus canais, palácios e arte religiosa (para não mencionar a implacável dominação dos povos subjugados e a sombria obsessão pela morte e pela vida após a morte) tem notável semelhança com Veneza. Contudo, a religião asteca deixou os europeus horrorizados, e a arte asteca foi ignorada. Os maias, que na península de Yucatã demoraram mais para se render, havia muito tinham deixado para trás o seu momento de glória, porém sua intricada arquitetura e sua astrologia pareceram igualmente desinteressantes para os europeus dos anos 1500. Na América do Norte, outros assentamentos europeus logo atrairiam um tipo diferente de aventureiro — os dissidentes religiosos, resistentes agricultores que de fato desejavam um mundo novo, uma sociedade renovada. Ali, apesar das tentativas de recriação de uma aristocracia de estilo europeu na Virginia e na Carolina, a demanda por uma democracia mais rígida (pelo menos para europeus do sexo masculino) se mostrou irresistível. Para a Mesoamérica os espanhóis levaram aristocratas, soldados e sacerdotes. Seu imenso terreno decadente de igrejas, conventos, fazendas, camponeses sob contrato e escravos mostrou-se vulnerável aos norte-americanos e a rebeliões de inspiração iluminista. E, quando a monarquia espanhola perdeu sua autoridade para os regimentos de Napoleão e entrou em colapso, o México declarou sua independência — não para criar uma sociedade nova e mais democrática, mas justamente pela razão oposta: manter a posição de aristocratas locais contra mudanças radicais preocupantes que ocorriam na Espanha.6 As carreiras de José de San Martín, da Argentina, e Simón Bolívar, da Venezuela, são emocionantes epopeias locais, porém eles também foram incapazes de fundar países que pudessem desafiar os Estados Unidos e os impérios britânicos ou europeus. A velocidade do avanço espanhol nas primeiras etapas da Conquista fora possível graças às doenças que os espanhóis transmitiam e às armas que levavam nas mãos, pois eram audaciosos e estavam dispostos a correr riscos. Os micróbios espanhóis chegaram à capital inca de Cuzco bem antes de Pizarro. A varíola teve um efeito arrasador nos Andes, assim como em outras partes da América do Sul. Provocara a guerra civil travada quando Pizarro desembarcou, matando o imperador inca e jogando seus filhos uns contra os outros. Do México às ilhas do Pacífico, epidemias tiveram efeito similar. Foi a longuíssima quarentena dos americanos, que destruíra sua imunidade a germes comuns na Eurásia — um afastamento de pelo menos treze mil anos de duração — que tornou o impacto tão grande, sobretudo no centro densamente povoado do continente americano. Estima-se que cerca de 95% das pessoas que ali viviam antes da chegada dos europeus morreram de moléstias transportadas através do oceano — sarampo, varíola, difteria, tifo e tuberculose. Pode-se duvidar da exatidão da percentagem, mas parece que a escala de mortalidade não tem paralelo em qualquer época da história europeia. O que os espanhóis e o resto da Europa levaram em troca? Curiosamente, poucas doenças: apenas a sífilis, que com certeza não derivou do contato mesoamericano. O principal artigo que a Espanha recebe foi um imenso e súbito influxo de dinheiro em espécie. A febre do ouro infectou os espanhóis, enquanto o império inca desmoronava. Pedro Sancho, secretário de Pizarro, abre o relato em que se justifica com as seguintes palavras: “No que diz respeito à grande quantidade de prata e ouro trazida de Cuzco...” Aquelas primeiras pilhas de lingotes foram só o começo. Uma vez que a cultura inca foi despojada, dentro de vinte anos novas técnicas de mineração e extração possibilitaram a exploração plena da fabulosa montanha de prata de Potosí, hoje na Bolívia. Ao custo da vida de dez nativos para cada moeda de peso ali cunhada, segundo consta, Potosí forneceria dois terços das cinquenta mil toneladas de prata transferidas da América para a Europa ao longo dos 150 anos seguintes. Pilhagem, porém, é bem diferente de prosperidade. O ouro e a prata foram levados em galeões espanhóis para a Corte espanhola, mas acabaram se espalhando praticamente pelo mundo todo. Boa parte foi usada para decorar igrejas. Carlos V tanto gastou em suas desesperadas guerras para manter o
controle dos Habsburgos na Holanda e contra os rivais franceses na Itália, que enriqueceu abastecedores de tropas flamengos, armeiros alemães e mercenários de todos os tipos. Depois utilizou o produto da pilhagem para pagar dívidas com credores genoveses e venezianos; estes, por sua vez, o repassaram para o leste, na compra de seda, porcelana e outros artigos de luxo na China. Ali, o império Ming tinha, a essa altura, substituído os governantes mongóis Yuan e estabelecido outra idade de ouro. O problema é que às vezes era dourada demais ou, melhor, viciada demais em prata, pois a riqueza saqueada na América, depois de passar pela Espanha e pelo Mediterrâneo oriental, provocou uma crise monetária para os Ming. Como se esse rodopio planetário do metal inca não bastasse, não podemos nos esquecer dos piratas. Os franceses e os ingleses, que não participaram dessa medonha bonança, usaram seus navios para interceptar galeões e levar seu butim para casa. A rainha Elizabeth, da Inglaterra, fez vista grossa para a pirataria e, quando Francis Drake, o heroico velhaco de Devon, contornou a América do Sul e entrou em águas peruanas para roubar ouro e prata dos espanhóis (que, no fim das contas, tinham roubado dos 7 incas), a fatia que coube a Elizabeth foi suficiente para pagar toda a dívida externa da Inglaterra. O significado dos piratas ultrapassa o romance das histórias individuais: ao atrair mais ingleses e franceses para o Atlântico em busca de pilhagem, a pirataria aperfeiçoou as habilidades náuticas do norte e estabeleceu cabeças de ponte no Caribe, o que, mais tarde, facilitaria a expansão do império. No que diz respeito à terra natal dos conquistadores espanhóis, nas palavras do historiador econômico 8 David Landes, a Espanha “tornou-se (ou continuou) pobre porque tinha dinheiro demais”. Os espanhóis compravam tudo quanto era tecido, alimento ou produto exótico de seus rivais. Regozijavam-se com a boa sorte que lhes permitia desfrutar de uma economia de consumo sem um correspondente aumento de produtividade — mais ou menos como o Ocidente chafurdou na explosão de consumo impulsionada pelo crédito na primeira metade do século XXI. Isso foi percebido na época. Landes cita o embaixador marroquino em Madri já perto do fim desse longo acesso de ostentação, em 1690, que comentou que os espanhóis tinham a maior renda de todo o mundo cristão: Mas o amor dos luxos e confortos da civilização os dominou, e raramente se encontra alguém nesse país que se dedique ao comércio ou viaje ao exterior por motivos comerciais, como fazem os de outros países cristãos, como os holandeses, os ingleses, os genoveses, entre outros. Além disso, os artesanatos produzidos pelas classes inferiores e pela gente comum são desprezados por esse país. É difícil imaginar uma receita mais completa para o declínio nacional do que essa. No Novo Mundo, a Espanha construiria um império letárgico e já decadente de aristocratas, sacerdotes e latifundiários e amais experimentaria a sacudidela para a modernidade que animou seus rivais. Atahualpa não foi o único imperador incapaz de prever o que o futuro lhe reservava. Homem de preto A aparência das coisas, a configuração exterior, pode ser profunda — nem um pouco trivial. Durante a Reforma, um tipo de culto cristão, conduzido por homens de trajes deslumbrantes que cantavam em latim dentro de suas igrejas ricas e multicoloridas, foi atacado por outro. A Alemanha de Martinho Lutero era uma terra em preto e branco. A severa e sombria prosa alemã de suas pregações, com suas escolhas prementes, avança decididamente, a passos largos, sobre o branco níveo do papel. As letras negras, pontudas, impressas com a mistura fuliginosa da tinta das primeiras impressoras, colocavam dezenas de
milhares de sermões proferidos por sua voz nas mãos de pessoas espalhadas por todo o norte da Europa. Para os que não sabiam ler, toscas xilogravuras em preto e branco — tão diferentes quanto se pode imaginar dos retábulos ricamente coloridos que as precederam — transmitiam as mensagens dos reformadores. Suas roupas eram simples — brancas, escuras, negras. Sua língua era o bate-bate gutural do alemão comum. Seus rostos nos olham nos retratos mais antigos, severos e intransigentes. O norte estava em revolta contra o sul. Ali, o brilho e o fulgor italianizados do papado, com suas igrejas policromas e suas madonas douradas, representavam uma Igreja que se tornara mundana. Não é de se admirar que Martinho Lutero, um tipo robusto, másculo, que adorava chamar a atenção, se tornasse herói alemão, enfrentando papas e imperadores, colocando-se, como costumava dizer, “na boca do grande Beemote, entre seus grandes dentes”. A história de Lutero é a história e cavaleiros, de imperadores, arcebispos e fábulas. Em alemã muitosantes sentidos, ele parece ter sidodeogovernantes primeiro alemão moderno, de mãos nos quadris, destemido, encarando-nos de frente em seu conhecido retrato. Era um homem simples, sincero, mas não um camponês. O pai tinha trabalhado nas minas de carvão da Saxônia e ganhara o suficiente para se aburguesar, tinha esposa rica e uma casa imponente, de paredes de pedra. Mandara Martinho para uma escola boa, apesar de brutal, e como tantos pais que ascendem socialmente queria que o filho fosse advogado. Mas desde o início Martinho Lutero mostrou um sombrio lado indagativo de sua personalidade, uma perene inquietação. Precisamos imaginar agora um mundo em que o Inferno é real e próximo, onde as florestas e os caminhos são infestados de espíritos malignos e de feiticeiras e onde a única saída para tudo isso é garantir a ajuda de Cristo. A Alemanha da época de Lutero não era um lugar confortável nem seguro. Além de afetada pela peste e pela ameaça de fome nos piores anos, era politicamente fraca. No leste, os cavaleiros teutônicos haviam se curvado diante dos poloneses. No norte, os dinamarqueses tinham tomado Holstein. No oeste, a confederação suíça conquistava sua independência. Mais importante — e foi assim durante a vida de Lutero —, os exércitos muçulmanos dos otomanos ameaçavam toda a Europa. Esses primeiros anos da Reforma coincidem com sensacionais desafios otomanos, como a queda de Belgrado em 1521, a tomada de Rodes em 1522, o esmagamento dos húngaros em 1526, o cerco de Viena três anos depois, novos avanços na Polônia, no Mediterrâneo em direção a Malta e a longa luta contra Veneza. Embora as potências católicas acabassem finalmente vencendo a frota otomana na Batalha de Lepanto, em 1571, e apesar de Malta e Viena resistirem, muitos cristãos acreditavam estar vivendo o fim da cristandade, achavam que eram os últimos povos de uma civilização condenada à morte. A Alemanha existia como área territorial e linguística reivindicada por aquele “mito religioso e pseudoclássico”, o Sacro Império Romano.9 Não existia como nação. Na sopa política de ducados, principados, arcebispados e cidades-livres havia mais ou menos trezentos principados semiautônomos, muitos com suas próprias leis, moedas e brigas de família. A guerra e a peste tinham reduzido a população da Alemanha. Uma nova e terrível moléstia, a sífilis, espalhava-se pela Europa. “Aldeias fantasmas”, lugares que de uma hora para outra foram abandonados, eram uma cena comum. Uma série de violentas rebeliões camponesas tinha estourado no sul e no oeste da Alemanha, embora não na escala da “Guerra dos Camponeses” de quando Lutero era adulto, que deixaria pelo menos cem mil mortos. Assim, Lutero se sentia instável e impermanente. A morte espreitava de trás de cada árvore. Ele nos conta que certo dia de 1505, quando era um estudante de 21 anos, teve uma revelação enquanto caminhava por uma estrada durante uma tempestade. Com relâmpagos rasgando o céu, prometeu que, se sobrevivesse, entraria num mosteiro. Lutero logo abandonou os estudos e tornou-se monge numa ordem notavelmente severa, embora não radical. Por mais de doze anos, foi um monge exemplar, espicaçado em seus estudos e obrigações por superiores ambiciosos, e estudava os textos convencionais do catolicismo
quase a ponto de sofrer de esgotamento nervoso. Saiu-se tão bem que o mosteiro o mandou a Roma numa missão diplomática, que não teve êxito. Depois foi mandado para a nova universidade de Wittenberg como professor. Universidades surgiam em toda a Alemanha de então. Para os principados e as cidades ambiciosas, representavam um meio de demarcar território e atrair novos talentos. Wittenberg era uma entre vinte, mais ou menos, e tinha fama de progressista e experimental. A pequena cidade, pouco mais do que uma aldeia cercada de muros, era governada por Frederico, o Sábio, Eleitor da Saxônia. Personagem astuto e independente, Frederico era um dos sete “eleitores” alemães, cujo status lhes permitia eleger o sacro imperador romano (nessa época um título não hereditário) e tinha considerável influência política no norte da Alemanha. Mais tarde, na época de sua grande rebelião religiosa, Lutero dependeria de Frederico para a própria sobrevivência. Em Wittenberg, as ideias de Lutero sobre pecado e redenção contestavam grande parte do ensino tradicional. Eruditos até hoje discutem se sua teologia era mesmo tão radical quanto parecia — sem dúvida não era única. A essência do problema era a seguinte. A tradição escolástica do começo do período medieval insistia em que o Deus do amor condenava a humanidade pecadora ao inferno com base em leis tão estritas e truculentas que não podiam ser observadas ao pé da letra. Na opinião de Lutero, a humanidade era inteiramente pecadora, corrupta, perdida e não poderia ser transformada numa criatura merecedora do Céu pela simples repetição de rezas e pela prática de boas ações. Dessa forma, como alguém poderia se salvar? Num mundo tão religioso, essa era uma questão urgente. Lutero resolveu-a ao concluir que Deus simplesmente não levava em conta a iniquidade dos que tinham a fé — dos eram salvos, os eleitos. O pecado era poderoso demais para ser derrotado porverdadeira ação humana. Só que um milagre de amor divino poderia suplantá-lo. O sacrifício de Cristo, assumindo todos os pecados da humanidade, era o meio pelo qual esse milagre se realizava. Para ser salvo, tudo de que se precisava era acreditar nisso com fé verdadeira. O problema óbvio da opinião de Lutero é que ela implica que o comportamento pecaminoso não tem, necessariamente, importância. Tentar derrotar o pecado no dia a dia era inútil. Só a fé importava. A resposta de Lutero a essas objeções era que os salvos ficariam tão agradecidos que não desejariam pecar. (Isso, como muitas gerações de protestantes depois perceberiam, era fácil demais: a sátira do escritor escocês James Hogg, Confissões de um pecador justificado, critica ferozmente a facilidade com que os hipócritas poderiam ter seu bolo de pecado e comê-lo.) O pensamento de Lutero era o de um intelectual cristão que aprendera a desprezar o pensamento cerebral, sofisticado, clássico de Platão e Aristóteles, que servia de base à teologia tradicional da Igreja. Seu principal impulso, quando chegou à conclusão sobre o pecado, era emocional e pessoal, um senso urgente de alívio e alegria que precisava ser comunicado — e que nada tinha a ver com a hierarquia o as liturgias da Igreja. Ele dizia sentir-se “nascido de novo”, experiência que ainda ocupa lugar central no protestantismo evangélico moderno. Isso sempre levaria um homem como Lutero, curiosa mistura de brutamontes e sonhador, a brigar com as autoridades da Igreja. Mas foi a prática de vender indulgências que o fez agir. O que era uma indulgência? No sentido mais literal, era a transferência de um pedacinho da bondade de Cristo e dos santos (o “tesouro de mérito”) para um pecador humano. O recebedor da indulgência, com isso, passaria menos tempo no purgatório — hoje visto como a tediosa sala de espera de aeroporto do sistema, só que sem as free shops— , porém, naquele pintado como lugar de purgação e de fogos dolorosos e mesmo tortura antes de chegartempo, ao Céu.eraNão era um cartão mágico que livrasse alguémmuito imediatamente de uma situação difícil, mas sem dúvida era um passe que ajudava a chegar ao Céu mais depressa.
Como conseguir uma indulgência? Orações e boas ações eram um caminho. Fazer uma viagem para ver e tocar as relíquias de santos também — o que, além disso, daria uma boa receita a qualquer igreja ou cidade que tivesse as relíquias (Wittenberg tinha uma das melhores coleções do mundo de fragmentos de madeira, ossos, espinhos e cabelos). Mas, além das orações, das boas ações e das relíquias havia um caminho mais confiável: dinheiro em espécie. Havia muito tempo os sacerdotes vinham sugerindo que os beneficiários de indulgências talvez desejassem fazer “ofertas caridosas”, como gesto de agradecimento, digamos assim. Com o passar do tempo, isso se tornou uma clara transação monetária. Como vigário de Cristo na terra, o papa simplesmente podia vender indulgências. Elas se tornaram sua reserva monetária, em notas das mais variadas denominações. Ele não só para que o comprador encurtasse seu tempo de purgatório, mas também para os já falecidos pais do comprador, que talvez estivessem suplicando aos filhos para entregar as moedas. Clérigos reformistas da Itália e da Holanda, da França e da Suíça já tinham se manifestado contra a grosseira comercialização das indulgências: a crítica de Lutero seria muito mais raivosa. O papado deu à história um número impressionante de vilões decadentes. Leão X, adversário de Lutero, foi um deles. Era um Médici, filho do grande governante florentino Lorenzo, o Magnífico, e tinha sido criado numa atmosfera de guerra, exibicionismo artístico e intriga política. Feito cardeal aos treze anos, interessava-se pouco pela religião em si. Quando a política italiana o pôs na função de papa, aos 37 anos, Leão teria dito que, se Deus lhe dera o papado, “então vamos aproveitar”. Esse homem gordo, suado e hospitaleiro transformou a vida no Vaticano num perpétuo carnaval romano de peças indecentes, touradas, danças, banquetes e corridas. O ouro escorria de suas mãos numa brilhante torrente de favores, patrocínios e compras compulsivas. O problema mais dispendioso de Leão era a basílica de São Pedro. A igreja srcinal fora construída sob são Constantino nos anos 330, no lugar onde supostamente são Pedro fora sepultado. Em péssimo estado de conservação, estava sendo substituída por uma nova e gigantesca igreja, destinada a assombrar o mundo por seu tamanho e beleza. Mas em 1517 a igreja era um vexame gigantesco, pouco mais do que um imundo canteiro de obras. A despesa imensa estava arrasando o papado. A solução de Leão foi decretar uma campanha para levantar fundos por meio de indulgências cada vez mais numerosas e caras. Na Alemanha, um arcebispo hiperambicioso, que levantava fundos por motivos próprios, atuaria como agente de Leão. O povo alemão teria de ser espremido e, depois, espremido de novo. Na Saxônia de Lutero, o espremedor-chefe foi um notável vendedor chamado Johann Tetzel. Tetzel era um televangelizador convencido numa época de oratória de púlpito. Chegava às cidades à frente de uma longa procissão de padres solenes, de batina, e muitos seguidores, carregando uma insígnia papal e a bula de Leão X (declaração papal, com o selo redondo, ou bulla , pendurado, como prova de autenticidade). Cofres de carvalho e ferro para guardar o butim eram abertos, uma grandiosa barraca, armada, e Tetzel começava. Sua mensagem era direta. Se alguém quisesse evitar centenas, talvez milhares, de anos de sofrimentos no purgatório, era só pagar. Se quisesse livrar a mãe ou o pai queridos de tormentos, era só pagar. Conforme sua riqueza e sua capacidade, era só pagar. Se isso parece uma sátira ao seu estilo, o jingle pelo qual é lembrado nos dá o autêntico estilo Tetzel: Quando uma moeda tilinta no cofre Uma alma sai do purgatório. Para Lutero, isso era mais do que roubar de alemães honestos para construir uma igreja pretensiosa na Itália. Era um pecado terrível que condenava os inocentes compradores de indulgências ao fogo do inferno, porque significava que não se arrependeriam adequadamente nem encarariam a própria
iniquidade ou buscariam o perdão de Cristo. As questões mais profundas de fé e castigo tinham sido transformadas em transações comerciais. Foi isso que por fim lhe esgotou a paciência. Protestantes do mundo inteiro sabem que, em 13 de outubro de 1517, Martinho Lutero entrou pelas portas de carvalho da Igreja do Castelo de Wittenberg e nelas pregou uma lista de 95 “teses” ou argumentos para debate — um gesto de desafio lançado contra o papado. Pode ter sido assim. As portas srcinais desapareceram há muito tempo e foram substituídas por réplicas metálicas “antigas”. Longe de ser um homem a quem a modéstia pessoal prejudicasse, o próprio Lutero jamais menciono ter pregado as teses. É provável que a história tenha surgido depois. Na época de Lutero, as portas da igreja com certeza eram usadas como mural de notícias, lugar para anúncios de toda espécie. Portanto, seria bem possível que um monge acadêmico famoso no local pregasse argumentos religiosos, mas não necessariamente. E Lutero não tinha intenção de iniciar uma revolução ou de desafiar diretamente a instituição do papado. Eram tópicos para discussão, em latim de igreja, embora redigidos no estilo enérgico de sempre. Seus alunos na Universidade de Wittenberg já os teriam ouvido antes. Lutero ainda era católico e muito do que dizia ainda era doutrina oficial. Para entender por que os argumentos de Lutero se espalharam com tanta rapidez, é preciso ir a outra pequena cidade alemã da época, no noroeste do país, Mainz. Ali, quinze anos antes de Lutero nascer, Johannes Gutenberg morreu depois de ter inventado a primeira verdadeira máquina de impressão da Europa. Os chineses e coreanos já usavam havia muito tempo a impressão com bloco de madeira e até com cerâmica. Xilogravuras também tinham sido feitas na Europa, muito antes de Gutenberg. O que ele fez foi montar um sistema de moldagem de letras individuais de metal e grupos de letras e arranjá-las em linhas de palavras, depois passar e imprimi-las em Gutenberg, papel úmidoexceto ou velino pele de animal. Sabemos relativamente pouco tinta a respeito do próprio que de trabalhava bem com metais — podemos descrevê-lo como engenheiro mecânico de empreitada — e cortava pedras preciosas; era também um empresário ambicioso, disposto a tomar dinheiro emprestado para criar seu próprio negócio. A Alemanha urbana, com suas minas de carvão e estoques de minério de ferro e sua longa tradição de confecção de armaduras, armas e relógios, ainda não passara por uma revolução industrial, mas vivia uma explosão de industrialização, um crescimento do status e da ambição de artesãos, que transmitiriam suas habilidades. Gutenberg comprou papel na Itália, fez experiências com ligas de metal e misturas de tinta e contrato pelo menos dezoito ajudantes para suas seis prensas. Sua intenção era produzir uma Bíblia impressa e queria que esta parecesse tão tranquilizadora quanto possível como uma escrita à mão — mais ou menos como as primeiras peças de TV imitavam o teatro, ou os primeiros blogs tentavam imitar páginas de ornal on-line. Seu projeto de fazer uma primeira tiragem de 180 Bíblias de 1.282 páginas foi uma tremenda aposta e, em 1454, precisou levantar fundos em toda a Europa. Consumiu seis meses moldando os tipos de metal e dois anos compondo e imprimindo. Depois, a Bíblia foi colorida e ilustrada à mão, para parecer “real”. O efeito produzido foi semelhante ao da escrita à mão contemporânea, comparada à época com tecido preto e branco ou têxtil — daí a palavra “texto”. Todo o processo durou cerca de três 10 anos, o mesmo tempo que um escriba levava para escrever uma Bíblia à mão. O escriba, porém, produzia uma, e Gutenberg, 180. Imprimir tornou-se uma sensação quase da noite para o dia. As Bíblias foram admiradas na Alemanha, nos Países Baixos, na Itália e na Espanha. As máquinas de Gutenberg passaram a ser usadas para outros trabalhos impressos, como gramáticas para estudantes, violentos panfletos atacando os turcos, calendários e, acima de tudo, indulgências, feitas como se fossem imensas folhas de cheque, apenas com a hora, a data e a assinatura a serem preenchidas à mão.
A Alemanha logo foi inundada de material impresso. Alguns panfletos, entre dezenas de milhares produzidos, tratavam de assuntos médicos e científicos; outros eram absolutamente grosseiros. O próprio Lutero, num sermão sobre o casamento, queixou-se de que os vendedores de livros estavam espalhando material “que não trata de outro assunto que não seja a depravação das mulheres”. Com isso, as teses de Lutero também, tivessem ou não sido pregadas, foram rapidamente impressas e distribuídas. Ele as juntou num sermão único, que foi reimpresso 25 vezes em dois anos. (Ao mesmo tempo, mudou o pseudônimo deEleutherius , nome grego que significa “livre”, para o caseiro nome alemão Luter, depois Luther). Seus argumentos despertaram grande interesse entre sacerdotes e laicos que já discutiam a questão das indulgências, da correta noção de pecado e da autoridade papal. Em se apogeu, calcula-se que Lutero tenha produzido, em média, um panfleto a cada quinze dias. Seus seguidores, como o simples sapateiro-escritor “Hans Sachs”, e seus inimigos católicos produziram muito mais. Wittenberg tinha dependido da interessante coleção de pedaços do corpo de santos, pertencente a seus governantes, como fonte de renda. Agora se tornava uma cidade subitamente próspera, com muitos trabalhos de impressão ali concentrados pela simples razão de que era onde Lutero vivia.11 Seus argumentos não demorariam muito para serem ouvidos em Roma. Arranjaram-se confrontos coreografados. Primeiro, ele atacou monges agostinianos de Heidelberg — e com grande eficácia; em seguida, em Augsburg, foi contra um dos mais inteligentes cardeais de Leão X; depois, atacou um brilhante teólogo rival de Leipzig, onde foi induzido a apoiar o reformador tcheco Jan Hus, queimado na fogueira por heresia. O próprio Lutero foi condenado como herege numa bula papal, que ele na mesma hora queimou em Wittenberg. A essa altura, o gosto por uma boa briga de fato tinha tomado conta dele. Em três famosos ataques, A nobreza cristã da nação alemã (dirigido a esses membros da sociedade), O cativeiro babilônico , dirigido ao clero, e A liberdade do cristão, dirigido aos leitores em geral, Lutero demoliu muitos dos argumentos sobre os quais repousava a autoridade da Igreja, como a função especial dos padres, sua organização como clero e a supremacia do papa. Ele tinha pegado o touro — e a bula — à unha. Mais uma vez, isso teria sido impossível sem as máquinas de impressão: o último dos três livros citados teve 36 edições em dois anos e foi traduzido para o holandês, o inglês, o espanhol, o tcheco e o latim. Toda a Europa inflamava-se em discussões. Na distante Inglaterra, Henrique VIII ordenou aos bispos que pensassem em refutações a serem apresentadas contra Lutero. Em abril de 1521, o recém-designado sacro imperador romano, o adolescente Habsburgo Carlos V, enfrentou Lutero pessoalmente em Worms, onde se reunia a assembleia deliberativa do império — a “dieta”. Frente a frente com seus próprios livros e tendo recebido ordem para se retratar, Lutero, como todos sabem, se recusou. Não há provas de que de fato tenha respondido: “Minha posição é esta. Não posso agir de outra forma.” As palavras foram incluídas em seu discurso mais tarde por um editor, depois da morte de Lutero. Mas são boas demais, ressoam bem demais para serem apagadas. Afinal, aquele foi um confronto potencialmente perigoso. Lutero pode até ter achado que seria queimado na fogueira, apesar da oferta de salvo conduto para Worms. Depois de Worms, Lutero foi tirado dali, para sua própria segurança, por Frederico, que o manteve no germânico Castelo de Wartburg. Ali, usando barba e nome falso para se disfarçar, Lutero voltou a fazer uma coisa assombrosa — começou a traduzir a Bíblia em prosa alemã popular, afiada e mordaz. Produzi rapidamente o Novo Testamento e, depois, num período de vários anos, a Bíblia completa. Gabava-se de ter adotado um estilo aprendido não no estudo do latim, mas nas ruas: “Perguntem à mãe em casa, aos filhos nos becos, ao homem comum no mercado a respeito disso e prestem atenção no que lhes sai da boca.” Muitas frases suas, como Herzenslust, para “até não querer mais”, e Morgenland, para “leste”, continuam em uso no alemão moderno. Lutero disse que seu intuito era “tornar Moisés tão alemão que
ninguém suspeitasse que era judeu”, e sua tradução foi chamada de “o documento central na evolução da língua alemã”.12 As Bíblias logo foram postas à venda na já famosa feira de livros de Leipzig, com preço mais o menos equivalente ao de um bezerro ou a duas semanas de salário de um professor primário, e, por ocasião da morte de Lutero, estima-se que havia meio milhão de exemplares em circulação. Outras Bíblias, em diferentes línguas e dialetos europeus, também tiveram grande efeito — a Bíblia do rei Jaime, da Inglaterra, é um exemplo óbvio —, mas em certo sentido o impacto de Lutero no alemão é mais parecido com o de Shakespeare no inglês. A historiadora C. V. Wedgwood faz uma boa colocação ao dizer que as frases alemãs ocorriam a Lutero com uma facilidade quase excessiva, “irrompendo em abundantes imagens caseiras, rudes, práticas, explícitas, [...] sua Bíblia talvez tenha sido a tradução mais assombrosa e pessoal até hoje criada”. Dessa forma, Lutero teve um efeito nacionalista, além do efeito religioso. Aos poucos, um por um, aristocratas e cidades livres da Alemanha aderiram à sua causa. Alguma coisa semelhante também ocorria na Suíça, na Holanda e na Dinamarca, onde reformadores se agitavam. Mas logo ficou óbvio que a reforma religiosa de Lutero e o início de uma nova Igreja eram temas que não poderiam permanecer separados da contestação ou mesmo da revolução social. Multidões favoráveis a Lutero puseram-se a destruir obras de arte religiosa. Greves de mineiros e camponeses, em protesto contra sacerdotes coletores de impostos, usavam argumentos como os de Lutero. Padres rebeldes foram os primeiros a zombar de seus antigos líderes e das antigas ordens. Lutero, que dependia da proteção de um aristocrata e provinha de família próspera, começou a ficar nervoso, insistindo na importância da autoridade temporal. Então, em 1524-1525, uma imensa rebelião camponesa se espalhou pela Europa, das terras dos cavaleiros teutônicos e da Hungria à Suíça e à própria Alemanha central. Não tinha coordenação e era desesperada. Para a ordem estabelecida da Europa do fim do período medieval, foi algo aterrador. Um dos primeiros seguidores de Lutero, o carismático padre Thomas Müntzer, encabeçava o movimento mais extremista, prevendo a eliminação de toda a autoridade terrestre num iminente apocalipse. Ele e seus seguidores criaram uma “Liga de Deus” semicomunista e de curta duração na cidade de Mülhausen, até ser, como as outras rebeliões, esmagada pelo poderio militar dos príncipes. Em toda a Alemanha, as calejadas forças do imperador, que acabavam de voltar de vitórias contra os francos na Itália, aniquilaram os exércitos camponeses, impondo uma terrível vingança. Lutero os estimulava. Em se panfleto de abril de 1525, de início intitulado Uma admonição à paz (com certeza o pior título do ornalismo alemão), escreveu o seguinte: “Quem puder que golpeie, mate ou apunhale, secreta o abertamente, lembrando-se de que não há nada mais venenoso, funesto ou demoníaco do que um rebelde.” 13 O “rebelde” de antes agora estava firmemente do lado dos príncipes alemães, que, por sua vez, empenharam sua lealdade ao cristianismo luterano. Na Saxônia, em Hesse, Schleswig, Brunswick e Brandemburgo, eles mudaram de ideia. Assim também fez a maioria das cidades e vilas do norte. Embora Carlos V se esforçasse ao máximo em busca de conciliação e planejasse formas de unir seu império, os governantes e soldados influentes que aderiram à causa de Lutero tornaram-se numerosos demais para que isso fosse praticável. Lutero disse a seu aliado e colega reformador Philipp Melanchthon que “qualquer acordo em doutrina é claramente impossível, a não ser que o papa resolva abolir o papado”. A teologia de Lutero se tornara mais conservadora em seus efeitos sociais: defendia com agressividade os direitos do marido sobre a mulher e era hostil a casamentos fáceis. Eis o que escreveu contra pretendentes: “Se criei uma filha com tantas despesas e tantos esforços, cuidados e dificuldades, com diligência e trabalho, e investi minha vida, meu corpo e minha propriedade nela durante tantos anos, não
deveria ela contar com mais proteção do que uma vaca que se extravia na floresta?” Era também um amargo antissemita. Em 1531, um tratado entre príncipes luteranos, conhecido como Liga de Esmalcalda, torno irrevogável a divisão política. Depois houve uma abençoada trégua. A Paz de Augsburgo, de 1555, permitiu um tempo de reconstrução e crescimento econômico, durante o qual a cultura alemã floresceu e as universidades alemãs ficaram famosas — um tempo em que até mesmo peças e atores ingleses elisabetanos viajaram à Alemanha em busca de fama. Mas a grande linha divisória aberta por Lutero envenenaria o futuro da Europa. A Guerra dos Trinta Anos não demoraria muito. Seria uma catástrofe impulsionada pela lança e pela espingarda de pederneira, pelo estupro e pela fome, e faria surgir em solo alemão um inferno tão terrível como o castigo que Lutero passara a vida temendo e para o qual os monges otimistas tinham vendido indulgências para escapar. Pagãos e piratas A revolução de Lutero, amplificada e endurecida por João Calvino em Genebra e por outros reformadores, como o severo e ameaçador John Knox, da Escócia, tinha sido provocada, em parte, pela crença comum de que a históriatinha de terminar em breve. A maravilhosa segunda vinda de Cristo era sem dúvida esperada, sobretudo porque a cristandade estava ameaçada. A Europa cristã, que logo dominaria grande parte do resto do mundo, ainda se sentia cercada, dividida, batendo em retirada. Só nos éparanoicos possível compreender a ferocidade dos reformadores, comjesuítas suas advertências e os excessos da Contrarreforma católica, encabeçada por fanáticos eseveras pela Inquisição, se compreendermos como os cristãos estavam amedrontados. O Império Otomano agora controlava mais a costa e as águas do Mediterrâneo do que os cristãos. O medo dos “turcos” assombrava a imaginação de crianças cristãs, repreendidas na hora de ir para a cama. Só mesmo Shakespeare para conseguir retratar o “mouro” como plenamente humano. Nem é verdade que a ameaça dos “mouros” ou dos “turcos” se limitasse à captura de ilhas mediterrâneas, à derrota de frotas ou à tomada de terras cristãs e cidades muradas. Para muitos cristãos, viajar pelo mar, ou mesmo viver à beira-mar, se tornara perigoso. Algumas incursões de saqueio eram espetaculares. Em 1544, corsários muçulmanos atacaram a Baía de Nápoles e capturaram sete mil homens, e crianças. Dez depois, tomaram no “dedão” Itália e, emcristãos” 1566, mais quatro milmulheres em Granada e no sul daanos Espanha. Depois dissoseis era mil comum dizer-sedaque “chovia em 14 Argel. Em todas as partes cristãs da costa do Mediterrâneo, a vida ficou mais arriscada. Na Córsega, na Sardenha e na maior parte da Itália, aldeias à beira-mar foram abandonadas e reconstruídas mais para o interior. No mar, a seleção de navios cristãos para abate atingiu índices extraordinários. Num curto período, entre 1609 e 1616, a Marinha Real reconheceu que 466 navios ingleses e escoceses — embora muitos relativamente pequenos — tinham sido capturados por corsários argelinos. A mesma taxa de desgaste afetou o transporte marítimo holandês, francês, alemão e espanhol, que alimentavam a insaciável necessidade de escravos de governantes muçulmanos do Norte da África, que usavam os homens como operários e as mulheres como criadas domésticas ou sexuais. Enquanto aldeões cristãos abandonavam o litoral e navios cristãos ficavam mais cautelosos, os saqueadores avançavam mais para dentro da Europa. Apareceram diversas vezes no estuário do Tâmisa e levaram pescadores ingleses da costa de Essex e Kent. Com a ajuda de um marujo holandês renegado, Jan Janszoon de Haarlem, que se converteu ao islamismo e adotou o nome de Murat Reis, saqueou a
Islândia em 1627, incendiando a igreja da ilha de Heimaey e sequestrando 242 pessoas, além de levarem outras do continente perto de Reykjavik. Janszoon estava presente em 1631, quando 327 pessoas foram levadas da aldeia de Baltimore, em West Cork. (Ele próprio depois foi capturado pelos Cavaleiros de Malta, mas conseguiu escapar e viveu até idade avançada. Entre seus supostos descendentes estariam John F. Kennedy, Humphrey Bogart e muitos Spencers e Churchills, incluindo uma dama de honra da rainha Elizabeth II.) Embora o ponto alto da tomada de escravos por muçulmanos ao longo da costa se desse entre 1530 e 1640, os ataques continuaram até os anos 1780. E, para cada grande incursão, acredita-se que tenha havido dezenas de ataques menores, com barcos surgindo de repente em angras — nessas ocasiões, os aldeões saíam correndo dos campos, e os corsários levavam os que conseguiam pegar. Calcula-se que, no total, 1,25 milhão de cristãos foram escravizados, número muito maior que o dos negros africanos levados para o outro lado do Atlântico por brancos durante grande parte desse período. Muitos morriam de peste ou maus-tratos em terríveis circunstâncias na África. Poucos se converteram, e alguns foram resgatados ou tiveram o resgate pago por sacerdotes ou famílias ricas. Tudo isso encheu de terror os europeus e forneceu enredos para certo tipo de história, refletindo-se palidamente em pantomimas cristãs e contos de inverno que perduram até os tempos modernos. Até pouco tempo atrás o assunto não era sequer mencionado na história oficial, deixando transparecer, em parte, a culpa dos brancos pelo tráfico atlântico de escravos, que se tornaria de nove a dez vezes maior. Em parte, reflete, sem dúvida, o mais puro constrangimento. Mas, para os europeus do tempo de Lutero, a persistente corrosão na costa causou muito medo e insegurança. Os ataques maisOtomano espetaculares, porém,cada vinham extremo do mundo europeu, com poderoso Império avançando vez do mais. Depoisoriental do governo do primeiro sultão-o conquistador (que tinha tomado Constantinopla), seus sucessores propagaram o islã bem dentro do mundo cristão. Depararam com resistência feroz. A batalha de Kosovo, ou mais poeticamente, a “Batalha do Campo dos Melros”, em 1389, foi um massacre arrasador de servos pelos otomanos. Mas ocorre décadas antes de os otomanos enfim tomarem a Bósnia e a Sérvia. Na Valáquia, um homem se identificava como Wladislaus Dragwlya foi aplaudido pelo papa e metade da cristandade por suas vitórias contra Mehmet II em 1459 e 1462. Esse líder cristão tinha vivido, quando menino, na corte otomana como refém — fora mandado pelo pai junto com o irmão mais novo. O irmão se converteu ao islamismo e serviu aos otomanos, enquanto que ele aprendeu o Corão e o turco, mas acabou voltando-se contra o islamismo. Mais conhecido como Drácula, ou Vlad, o Empalador, ele se revelou um guerrilheiro formidável e mobilizou a Transilvânia contra os invasores, sobrevivendo à prisão na Hungria antes de morrer no campo de batalha na Romênia, em 1476. Mas o gosto de executar prisioneiros, criminosos e rivais empalando-os diminuiu sua popularidade. Em dado momento, Drácula chegou a ter vinte mil inimigos mortos ou morrendo em espetos, empalados pela traseira, em volta de sua capital. Os boiardos, príncipes locais, começaram a achar que uma ocupação islâmica relativamente humana talvez fosse preferível à liberdade cristã paranoica e sádica. * ** Um dos grandes derrotados nisso tudo foi a extraordinária dinastia Jagiellon da Lituânia-Polônia. No fim dos anos 1300, a Lituânia era muito maior do que o pequeno Estado de hoje. A rigor, era o maior país da Europa quando considerado individualmente, estendendo-se pelo que hoje são Ucrânia,
Bielorrússia e partes da Rússia. Oficialmente, permaneceu pagã, repudiando as sangrentas cruzadas de cavaleiros teutônicos, em favor de uma família de deuses e deusas antigos. Estes eram divindades do tipo comum (o fogo, a Lua, o destino, a morte, as estrelas vespertinas), embora houvesse também, o que era muito charmoso, um deus da boa aparência. Esse panteão só chegou ao fim em 1386, quando o governante Jogaila casou-se com a rainha Jadwiga, da Polônia, e se converteu ao cristianismo. Seus cavaleiros e cortesãos, vendo para onde o vento soprava, mergulharam numa onda de batismos em massa nos rios locais. À união efetiva da Lituânia e da Polônia, acrescentou-se mais tarde a Hungria, fazendo da dinastia Jagiellon uma das mais poderosas da Europa. Essa dinastia e os Habsburgos, ao sul, eram os verdadeiros guardiães do mundo cristão contra ataques orientais e, posteriormente, otomanos. A batalha de Mohacs, até hoje lembrada na Hungria como um momento de catástrofe nacional, também acabou com os agiellonianos. Buda, então capital da Hungria, onde Vlad fora aprisionado, caiu em poder dos otomanos em 1541. Até aqui, temos um quadro bastante simples e direto da agressiva conquista muçulmana de um lado e da ansiosa defesa cristã de outro. Mas a situação real não era tão simples assim, pois no meio da Europa destacava-se o grande governante católico e sacro imperador romano Carlos V, que para muitos cristãos — os adeptos de Lutero e outros reformadores — representava ameaça maior do que qualquer otomano. Seu governo era menos tolerante com as diferenças religiosas do que a autoridade muçulmana. Seus grandiosos projetos de renovação e ampliação do imenso império, com base na autoridade de sua família, assustavam mais os venezianos, holandeses e francos do que os exércitos em marcha de janízaros otomanos. talvez, não de se surpreender queautoria o maisdeconhecido (e melhor) temos de MehmetPor II, isso, conquistador deseja Constantinopla, seja de Gentile Bellini, queretrato só foique mandado para lá 25 anos depois da queda da cidade, pelo doge de Veneza, a fim de fazer um registro daquele flagelo de todos os cristãos. Ou que nos anos 1460 já existisse uma grande colônia de florentinos em Gálata, a cidade pouco acima de Constantinopla, comandando cinquenta casas de negócios. Gálata tinha igrejas — só não lhes era permitido o barulho de sinos, para preservar a tranquilidade islâmica —, tavernas e carnavais na quaresma. Também não deveria nos surpreender o fato de que judeus, protestantes franceses, luteranos e cristãos ortodoxos se mesclassem com segurança, sob domínio muçulmano, no litoral do Bósforo. Ou que Francisco I, da França, em luta contra os Habsburgos, pedisse ajuda em 1525 a Suleiman, o Magnífico. Ou mesmo que houvesse um constante diálogo entre governantes protestantes e muçulmanos, que incluía desde cartas entre a rainha Elizabeth I e o sultão Murad III, nas quais se discutia um pacto militar anglootomano, até a oferta de tropas feita por Suleiman para ajudar os luteranos em Flandres. Muitos protestantes e otomanos achavam que a simplicidade da devoção e a antipatia comum por estátuas e ícones faziam deles aliados naturais contra os católicos — numa divisão baseada não em Cristo contra Maomé, mas em “homens de fé” contra “idólatras”. Isso ajuda muito a explicar por que nem Carlos V nem os papas conseguiram unir a “cristandade” como uma força única contra seus inimigos. Ivã, Yermak e a construção da Rússia Por que a Rússia é tão grande? Por que tem a forma que tem? São perguntas que podem parecer ingênuas. Mas há razões óbvias para que a amplidão de florestas, tundras e montanhas da Sibéria fosse governada por eslavos ribeirinhos estabelecidos no oeste e não pelos chineses e mongóis do leste. Um mapa do mundo pós-Gêngis Khan nos levaria a esperar que a Rússia fosse menor. Entretanto, a Rússia de Vladimir
Putin é hoje um dos maiores países do mundo, com imensas reservas de petróleo, gás e outras riquezas minerais, um vasto interior e pretensões no Ártico, graças a batalhas e explorações ocorridas nos anos 1580. A Rússia é grande assim, em primeiro lugar, por causa da ambição pessoal de um czar de Moscou, Ivã IV, conhecido historicamente como Ivã, o Terrível (embora os que não falam russo devessem levar em conta que seu nome também pode ser traduzido como “Ivã, o Poderoso”). Entretanto, os russos não começaram já pensando em criar um império — não mais do que os ingleses á começaram pensando em criar o Canadá ou os Estados Unidos. Em todos esses casos, os europeus apenas se aproveitavam de uma pequena vantagem tecnológica para adquirir bens que lhes pareciam (o de fato eram) Entre esses bens há produtos que já apareceram nestaháhistória, voltarão a aparecer, comoessenciais. o sal, a madeira, o ferro e (antes dos plásticos) o marfim, mas tambémeum que ainda não tinha aparecido — a pele. Antes da era moderna, com seus materiais sintéticos, o couro e a pele de animais eram alguns dos limitados recursos de que as pessoas dispunham para se manterem aquecidas; e isso foi particularmente importante numa época de clima frio, ou “pequena era do gelo”, que se estende dos anos 1550 até o começo do século XIX, com congelamentos especiais nos anos 1650 e no fim dos 1700. É dessa época que nos vêm algumas das mais adoráveis paisagens holandesas de canais congelados e comemorações camponesas, as grandes feiras londrinas no Tâmisa endurecido como ferro e registros de imensas nevadas na Espanha e em Portugal. De tempos em tempos, a Islândia ficava completamente isolada pelo mar de gelo e epidemias de fome se alastravam pela América do Norte, pela França e pela Escandinávia. Para qualquer pessoa de posses, as peles de urso, raposa, esquilo, castor, vison e marta representavam uma proteção essencial. As togas cerimoniais enfeitadas de peles ainda hoje usadas por uízes, lordes-prefeitos e funcionários de corporações, por exemplo, datam desse período, quando qualquer um que pudesse pagar queria poder sentar-se abrigado em ricas peles num banco, num trono cívico ou em qualquer outro lugar sugerido por sua fantasia. Os mais pobres se arranjavam com peles de coelho ou raposa, mas o verdadeiro calor emanava das peles mais grossas e lustrosas de animais que viviam nas grandes florestas setentrionais, do Alasca à Terra Nova numa direção e à Rússia europeia na outra. Essa era uma época em que caçadores que trabalhavam com armadilhas eram tão importantes quanto mineiros, e a ascensão de Moscou como rico centro comercial baseou-se fortemente no negócio de peles. Já em 1486 um George Trakhaniot, servia em Moscou, “Muitos comerciantes da diplomata Alemanha grego, e da Polônia vêm para a que cidade durante todo o informava: inverno. Compram exclusivamente peles — de zibelinas, raposas, arminhos, esquilos e às vezes lobos. E, embora as peles sejam obtidas em lugares a muitos dias de viagem da cidade de Moscou, [...] todas são trazidas para cá e é aqui que os comerciantes compram.”15 Ao norte de Moscou, a cidade de Novgorod (ou “Cidade Nova”), fundada pelos vikings, tinha sido pioneira no comércio de peles, estendendo sua influência às densas florestas do nordeste e estabelecendo vínculos com as cidades comerciais alemãs da Liga Hanseática e através delas com os holandeses. Durante aproximadamente três séculos — a partir de 1136, quando os moradores de Novgorod demitiram seu príncipe —, foi uma república cidadã cujo governo era mais parecido com o da republicana Veneza, o de Florença ou o do Estado holandês posterior do que com qualquer parte do mundo russo. Novgorod em teoria era governada por veches , ou assembleias públicas, embora os comerciantes ricos ou as famílias de boiardos e uma série de arcebispos detivessem a maior parte do poder. Quando queriam príncipes ou guerreiros principescos, eles os convocavam. O comércio de peles, mel, cera e marfim de
morsa permitiu que Novgorod criasse um grande e esparramado Estado próprio, que se estendia até os Urais e o mar Branco e para o norte até o Báltico. Situada numa das pontas da Rota da Seda, que ia até a China, estava longe o suficiente, na direção norte, para evitar as destruições da horda mongólica, muito embora, para manter a independência, o exército de Novgorod tivesse de lutar contra povos nativos da floresta, suecos invasores e cavaleiros cruzados alemães. Famosa como centro de religião e cultura, Novgorod começou a perder terreno para o poder ascendente de Moscou, com sua tradição rival mais sombria de autocratas, que tinham aparecido no meio de brigas de família. Como a república romana anteriormente, Novgorod produzira uma rica classe governante, cuja ostentação era motivo de ressentimento por parte dos cidadãos comuns. Um historiador descreve a vida na casa de um dos seus financistas cosmopolitas: “A conversa transcorria em alemão, intercalada de floreios de frase latinos, da mesma forma que mais tarde aristocratas russos usariam o francês. Ali se bebia vinho precioso da Borgonha, despejado de garrafas da Boêmia em taças venezianas, para acompanhar pão de gengibre de Nuremberg.”16 A última vez que mencionamos a Rússia foi depois que os príncipes de Kiev se converteram ao cristianismo ortodoxo, para em seguida caírem em poder das hordas mongólicas, que esmagaram aquela primeira civilização eslava. Moscou era apenas uma das cidades-principados russas que pagaram tributo aos mongóis e iniciaram uma lenta recuperação nos anos 1300. Depois de uma violenta guerra entre pretendentes rivais em 1433-1445, a família que a governava estabeleceu um claro sistema de “sucessão vertical” única, que permitia uma consolidação de poder. Sob seus príncipes magníficos, o Estado de Moscou estava pronto para se expandir. Porém, na falta da agricultura fértil dos Estados europeus ocidentais (a estação de plantio era curta, e o solo, fino), ou de óbvios recursos naturais, os governantes de Moscou lançaram os olhos para a rede de comércio fluvial ao norte, dominada por Novgorod, e para as infindáveis florestas da Sibéria, ricas de peles de animais, a oeste. Isso só podia significar expansão por meios bélicos. Não tendo conseguido ajuda dos reinos vizinhos de Lituânia e Polônia, Novgorod cai em poder do príncipe Kholmsky, de Moscou, em 1471-1472. Tivesse a burguesa e republicana Novgorod emergido como poder dominante em vez da autocrática Moscou, a história política da Rússia poderia ter sido intrigantemente diferente — e mais feliz. A essa altura os caçadores de peles russos tinham desfalcado tanto a população de animais selvagens perto de Moscou e Novgorod que o poder de sedução da Sibéria tornou-se irresistível. Mas uma família de ricos comerciantes de Novgorod é que daria ao czar em Moscou, Ivã III, a oportunidade de avançar mais a leste. Os Stroganovs tinham ajudado a financiar os duques de Moscou enquanto eles construíam a fortuna da família com salinas. Como a África subsaariana, a Rússia central tinha pouco sal e o importava da Europa Ocidental. Os Stroganovs encontraram fornecedores mais perto, em florestas e lagos. Isso os fez entrar em conflito com chefes militares muçulmanos. Dizia-se até que o nome da família, que significa “tiras de carne”, vem de um desagradável castigo infligido a um dos primeiros membros da família, que foi cortado em pedaços (daí as tiras de carne no “estrogonofe de carne”). Aparentemente impávidos, os Stroganovs ampliaram os negócios da família, passando a incluir peixe, cera, coro e madeira. O mais influente dos seus patriarcas, Anika Stroganov, mudou-se para Moscou, ao sul, tornando-se o fornecedor predileto de peles e outros artigos de luxo para o czar e uma fonte regular de fundos. Tanto Ivã III quanto Ivã IV, “o Terrível”, concederam grandes transferências de terras para famílias aristocráticas favoritas, mas os Stroganovs quiseram mais. Em 1558, Ivã, o Terrível, deu a esses administradores de empreendimentos privados cartas patentes que lhes conferiam autoridade suprema sobre vastas áreas de terras bravias por vinte anos, livres de impostos, de leis e da intervenção de qualquer outra espécie de autoridade. Os Stroganovs foram para a Rússia o que a Companhia da Baía de Hudson seria para o Canadá.
Os czares se intitulavam “comandantes de toda a Sibéria”, mas isso era mais expressão de um desejo do que a constatação de uma conquista de fato de terras habitadas por povos nativos — a mesma reivindicação era feita pelos governantes mongóis. Ivã seria diferente. O pai havia morrido quando ele tinha três anos, e a mãe (possivelmente envenenada), quando tinha oito. Primeiro príncipe moscovita a ser coroado czar de todas as Rússias, em 1547 (com dezesseis anos), numa cerimônia bizantina na maravilhosamente ornada Catedral da Dormição no Kremlin, Ivã se mostrou um governante perigoso desde o início. Talvez fosse bipolar — sem dúvida tinha terríveis acessos de fúria. Muitos adversários seus simplesmente desapareceram ou morreram e, um dia, ele matou por acidente o próprio filho e herdeiro numa briga de bêbados. Mas Ivã era astuto e mais inquieto em relação a suas ambições do que qualquer de seus antecessores no governo de Moscou. Tentou arranjar uma noiva culta, despachando embaixadores para as cortes da Europa Ocidental. Recebia com boa vontade comerciantes ingleses e quis firmar uma união política, e até pessoal, com a rainha Elizabeth, da Inglaterra. Formou uma grande biblioteca, importou artesãos alemães e foi responsável por alguns dos palácios e igrejas mais magníficos que ainda adornam Moscou. Cercado pelo oceano de problemas bem conhecidos da maioria dos governantes da época — insurreições, longas guerras com potências vizinhas e intrigas de corte —, Ivã, apesar de tudo, amplio muito Moscou. Conquistou os canados muçulmanos de Kazan e Astracã nos anos 1550, acabando, enfim, com o longo período que a Rússia viveu à sombra dos descendentes da “Horda de Ouro” mongol. Ainda assim, foi incapaz de avançar para oeste, apesar de conflitos aparentemente intermináveis com cavaleiros dinamarqueses, suecos e alemães no Báltico. Tomando ações mais radicais, criou uma espécie de Estado totalitário, um reino oprichnina , que, por uma de ironia a maior parte do território da pessoal outrora conhecido republicanacomo Novgorod. A guarda pessoal Ivã, sinistra, mistura ocupou de polícia com exército formada pelos oprichniki , era usada para exercer a mais severa repressão e, em 1570, saqueou a cidade de Novgorod, reduzindo-a a um fantasma triste e servil do que fora. Os territórios que os habitantes de Novgorod tinham desenvolvido nos Urais, alcançando a Sibéria, foram tomados pelos moscovitas. Esse foi, pois, o governante inquieto, perigoso e ambicioso que a família Stroganov convenceu a lhe conceder a hegemonia privada de imensos territórios em ambos os lados dos Urais, incluindo permissão para construir fortes ao longo de rios. Os Stroganovs foram os primeiros oligarcas russos, fabulosamente ricos, explorando recursos naturais, protegidos por monopólios; e ao mesmo tempo dependentes do governante autoritário de Moscou, para quem eram imprescindíveis. Com seus próprios fortes, um imenso palácio familiar de madeira longe de Moscou e um exército particular de vendedores e caçadores de peles explorando áreas cada vez mais remotas, os Stroganovs eram algo inédito na história, um enorme empreendimento capitalista e uma dinastia de família numa coisa só. Podiam ser comparados às grandes famílias italianas que começaram comerciantes e acabaram príncipes, como os Médicis e os Bórgias, com a diferença de que os italianos jamais tiveram o afã quase imperial de expansão dos Stroganov. Por que será que um governante tão obcecado por poder pessoal como Ivã IV não só tolerou, mas incentivou um rival potencial tão cheio de energia em seu próprio reino? Porque sua Rússia, com vastas e porosas fronteiras e inimigos por todos os lados, precisava da riqueza que as peles novas, assim como o sal e a madeira, constantemente fornecidas pelos Stragonovs, traziam para Moscou. Ele também sabia que as cartas patentes — com prazomuito. fixo — de terrase que os moscovitas tinham visitado—sempre podiam ser revogadas. Não mudou Oligarcas magnatas dependemjamais de líderes políticos desde que esses líderes políticos sejam decisivos — mais ainda do que os políticos precisam deles.
A falha desse negócio era que os caçadores de peles e os exploradores dos Stroganovs se mudavam para dentro de territórios que outros julgavam ser deles. Havia muitas tribos nativas que tinham caçado e pescado na taiga, aquelas vastas florestas pantanosas, desde a Idade do Bronze, talvez antes. Aqueles povos não chegavam a ser uma ameaça militar, mas havia também os cãs muçulmanos, descendentes da invasão mongol que reivindicavam suserania. Eram mais ferozes e entravam em conflito com os russos regularmente. A maior ameaça era o ascendente canado de Sibir, entre os rios Tobol e Irtich, chefiado por Kuchum Khan. Em 1571, ele deixou de pagar tributo a Moscou. Ivã, às voltas com suas guerras contra a Polônia, os cavaleiros livônios e os escandinavos e ameaçado como sempre pelos tártaros do Cáucaso, não podia se dar ao luxo de mandar outro exército ajudar os barões das peles Strogonov a subjugarem Kuchum. Desesperados, eles se voltaram para um flibusteiro, um combatente cossaco chamado Yermak Timofeyevich. Na cultura russa, Yermak tem alguma coisa da estatura de Daniel Boone, ou mesmo Robin Hood — um herói romântico, cujas façanhas têm sido contadas, recontadas e aumentadas através dos séculos. Ele provavelmente lutou nas fracassadas guerras de Ivã contra os cavaleiros livônios germânicos endurecidos na batalha, a oeste. Era um chefe militar de talento, capaz de comandar quinhentos mercenários — cossacos, russos, germânicos e suecos — contra o canado siberiano. Esses cossacos não eram a cavalaria de tempos posteriores e por uma boa razão: os terrenos de florestas, montanhas e rios tornavam o cavalo uma opção nada prática. Também não levavam canhões, apenas mosquetes e pólvora. A minúscula força de Yermak viajava em jangadas de rio e a pé. Parte da história tradicional diz que os inimigos tártaros de Yermak não conheciam a pólvora e ficaram tão espantadoscontestaram com as armas de fogo quanto nativos ou menos mesmaà época. Historiadores recentemente essa os versão — americanos os tártarosmais estavam mais na ligados corrente humana predominante17 —, porém os invasores sem dúvida tinham mais armas do que os defensores muçulmanos, que dependiam mais de arcos e flechas. Em 1581-1582, Yermak chegou ao território natal de Kuchum e logo em seguida tomou sua capital, Isker. Foi uma jogada punitiva e exploratória, destinada a dar uma lição nos muçulmanos; seria, a rigor, a primeira investida dos russos num vasto território que acabariam engolindo. A força cossaca parece ter derrotado um exército cinco a dez vezes maior e, por dois ou três anos, Yermak foi capaz de manter uma guarnição dentro do território siberiano, ao mesmo tempo que mandava mensagens cada vez mais desesperadas para Moscou, pedindo reforços. Ivã, que antes via Yermak como bandido, ficou impressionado. Respondeu enviando-lhe presentes e o perdão. Entre os presentes havia uma armadura. Se a história é verdadeira, o presente foi mal inspirado. Como Yermak não tinha pólvora nem homens, sua posição ficou cada vez mais difícil, e ele acabo morrendo numa batalha menor, à beira do rio Irtich. Ainda tentou salvar-se a nado, mas afundou com o peso da armadura que ganhara do czar. Verdade ou não, é uma boa metáfora do destino de sucessivos agentes da autocracia russa, que acabavam mal, enquanto o Estado a que serviam ficava cada vez mais forte. Logo depois da morte de Yermak, os russos voltariam a insistir em avançar para o leste. Em duas gerações tinham alcançado a distante costa onde a Sibéria toca no Alasca e o mar de Okhotsk, ao norte do Japão. Se o povo rus foi o iniciador da Rússia, Ivã, o Terrível, foi o verdadeiro pai da Rússia moderna. Após sua morte, o poder e a coerência de Moscou sofreriam avanços e recuos, a começar por um caótico “tempo de dificuldades”. Contudo a proeza realizada por Ivã, de estender a influência da Rússia para o sul, para o leste e para o norte, deu ao país uma forma essencial, que assim permaneceria. Os russos continuariam acossados por poloneses, alemães e escandinavos ao norte e ao oeste, mas conseguiram
expandir suas fronteiras sobre uma imensa área na direção leste. Depois da morte dos governantes muçulmanos de Kazan e Astracã, as forças russas penetrariam mais para o sul, chegando, ao mar Negro e ao mar Cáspio na época de Catarina, a Grande, e de seu extraordinário amante e general, o príncipe Potemkin. Como as sucessivas levas de uma maré montante, expedições russas inundaram implacavelmente a Sibéria, trazendo para o estado não apenas couro, sal e madeira, mas uma perpétua colônia penal para os inimigos. De fato, o que começara como uma caçada de animais em busca de peles deu aos russos uma área de terra correspondente a uma vez e meia a dos Estados Unidos, uma região contendo 80% das reservas de petróleo da Rússia moderna e 90% das de gás e carvão — vastos suprimentos dos quais dependem basicamente sua riqueza e seu poderio global. A Sibéria é também uma rica fonte de ferro, latão, ouro e outros metais e abriga o lago mais fundo do planeta, o Baikal. Sem a Sibéria, nossa noção de Rússia desmorona. Foi para as vastas amplidões além de Moscou e da Rússia ocidental que o país pôde se retirar e reunir forças quando precisou enfrentar Napoleão e, mais tarde, Hitler. Essa combinação de “geladeira e El Dorado” foi onde os inimigos do czar e as vítimas do gulag comunista pereceram e era onde se localizavam centros espaciais e misteriosas bases militares. A Rússia sem a Sibéria seria um grande, mas banal, Estado europeu oriental. Entretanto, se Ivã, o Terrível, deve ficar com parte do crédito pela importância posterior da Rússia no cenário mundial, que fique também com parte da culpa pela tradição então inaugurada de poder político russo personalizado e baseado no medo. Yermak pode ter sido um flibusteiro audacioso e romântico, mas foi também o exército precursor da autocracia. Dois governantes, um problema No ano de 1604, o rei Jaime teve muitos problemas. Para começar, que Jaime era esse? Como rei escocês, era Jaime VI, “Jamie Saxt”, o último de uma longa linhagem de Stuarts. Mas agora estava em Londres, na Inglaterra, onde era Jaime I. Então que reino era o seu, exatamente? Ele propôs o nome de Bretanha, que não agradou aos ingleses, e preparava uma nova bandeira, uma feia mistura de linhas e cores de que, já de início, ninguém gostou. Queria paz com o tradicional inimigo católico da Inglaterra, a Espanha. Como tantos monarcas, também tinha problemas de caixa. Mas Jaime, intelectualmente confiante, estava incomodado com um problema social em particular, uma mania que tomara conta do seu novo reino e que ele achava revoltante. Pegou pena e papel e escreveu um panfleto a que deu o título, simplesmente, de “Um contra-ataque ao tabaco”. Em todo o país, homens imitavam os “índios selvagens, infiéis e servis” fumando folhas, “essa fumaça fétida que entra pelo nariz e fica presa nos cérebros frios e úmidos”. O rei se indignava particularmente com gente que fumava enquanto comia: “Quanto às bobagens cometidas com esse hábito imundo, não é ao mesmo tempo uma grande bobagem e uma imundície homens não se envergonharem de sentar à mesa com Cachimbos de tabaco e lançarem baforadas de fumaça uns nos outros, fazendo com que a fumaça imunda e seu fedor se propaguem por entre os pratos?” Nesse ponto, o monarca salivante, de barbas ruivas, falava com absoluta segurança. Encerrou com uma magnífica tirada: o tabaco era um “hábito desprezível para os olhos, odioso para o nariz, prejudicial para o cérebro, perigoso para os pulmões e, em sua negra 18
e fétida fumaça, de pertooutro a horrível Fumaçaenfrentava Estigial doo abismo fundo”. O tabaco também tinha Do outro ladolembra do mundo, governante mesmosem problema. chegado ao Japão, provavelmente por meio da influência jesuíta portuguesa. O homem que em tese governava, o imperador, era uma nulidade, mas o verdadeiro governante do país, o generalíssimo o
xógum, desprezava o tabaco tanto quanto Jaime. Também decidiu proibi-lo. Na distante Inglaterra, o tabaco era visto como um hábito indisciplinado, coisa de pirata, associado a reuniões desregradas em tavernas e às plateias de teatro. No Japão, bandos de homens indisciplinados, parecidos com os punks do século XVII, os kabukimono, também tinham adotado o tabaco. Os kabukimono formavam gangues de rua, trajando roupas terríveis e quimonos femininos como capa. Usavam penteados estranhos e se comportavam de forma agressiva nas ruas, atacando passantes, lutando, dançando e ostentando longos cachimbos. Assim, em 1612 e novamente em 1615, a corte japonesa foi ainda mais longe do que Jaime e baniu o fumo. Foi uma comoção. Sentando em seu escritório em Osaka, um comerciante inglês chamado William Eaton escreveu, em 1o de março de 1613, para seu colega Richard Wickham, na capital japonesa de Edo (hoje Tóquio), informando-lhe que pelo menos 150 pessoas tinham sido presas “por comprar e vender tabaco, contrariando o decreto do imperador, e elas correm risco de vida, além disso, queimaram uma grande provisão de tabaco”. 19 No começo do século XVII, as semelhanças entre a Bretanha e o Japão iam além da ameaça social de uma nova e controvertida droga. Eram ambos arquipélagos mais ou menos do mesmo tamanho perto de um continente muito maior, com o qual mantinham relações desconfortáveis. Como os escoceses e ingleses, os japoneses tinham importado ideias religiosas, tecnologias e artigos de luxo através de um mar estreito, mas conseguiram conservar-se um pouco à parte. Como a Bretanha, o Japão apenas recentemente fora unificado sob o comando de um só governante. Em 1582, depois de um longo período de conflito, o soldado Hideyoshi, filho de uma família humilde do clã Tokugawa, se tornara xógum. Logo, os dois países tomariam rumos diametralmente opostos, durante uma das experiências mais fascinantes que os primórdios da história moderna podem oferecer. Porém, no princípio, as semelhanças eram notáveis. Em seus anos de poder, Hideyoshi se revelara um governante dotado da energia da rainha Elizabeth, da Inglaterra. Assim como a rainha, era instintivamente tolerante em matéria de religião e, por algum tempo, permitiu que os jesuítas portugueses convertessem ao cristianismo qualquer cidadão interessado. Os exércitos de Elizabeth tinham combatido na Holanda e na França contra os espanhóis, de influência esuíta, com notável falta de êxito. Hideyoshi organizara um grande ataque ao império chinês, através da Coreia, que suas tropas arrasaram, mas sem qualquer êxito duradouro. Hideyoshi não podia se gabar de 20 nenhum Shakespeare japonês, mas seu reino se distinguiu por seus magníficos castelos e pinturas. Era famoso também pela determinação de restaurar a ordem e, em 1588, enquanto Elizabeth esperava a Invencível lançou uma “caça àmilitar espada”, confisco em massa de adagas, espadas e lanças, que atingiu todasArmada, as pessoas, salvo a classe dos um samurais. No mar, piratas saqueadores do Japão eram os equivalentes asiáticos de gente como Drake, Hawkins e Raleigh. Os ingleses saqueavam portos e navios espanhóis em busca de ouro, artigos de luxo e (no caso de Hawkins) escravos. Dos portos do Japão figuras famosas como o capitão Wu-Feng partiam para submeter os chineses ao mesmo tipo de tratamento. As duas nações emergentes empregavam brutalidade com qualquer um que atravessasse seu caminho. Os ingleses de Elizabeth oprimiram os irlandeses, enquanto os compatriotas de Hideyoshi fizeram o mesmo com o povo ainu das ilhas setentrionais. Em termos econômicos, tanto a Bretanha como o Japão lutavam para controlar os efeitos do desmatamento colossal e do crescimento da sociedade urbana: tanto Londres como Edo logo exalariam o mesmo cheiro, 21
sufocadas pela fumaça de carvão queimado. Havia muitas diferenças, é claro — diferenças em estrutura política, em religião e na sorte nas guerras. A formidável frota da Coreia, com seus navios de guerra armados de canhão, saíra-se bem melhor contra o Japão do que os espanhóis contra a Inglaterra. Também havia uma grande diferença em
população. O Japão, com cerca de dezoito milhões de pessoas, tinha provavelmente três vezes mais habitantes do que a Bretanha. Sentia-se mais autossuficiente. Aquele comerciante inglês que escreve sobre a proibição do tabaco era membro da chamada English Factory (a rigor, uma feitoria), com sede em Hirado, na ilha de Kyushu, perto de Nagasaki. Não havia comerciantes japoneses no Ocidente, e os postos avançados europeus no Japão logo desapareceram. Os jesuítas e os holandeses aguentaram mais tempo. Os ingleses, que tinham chegado em 1613, saíram em dez anos, incapazes de ganhar dinheiro com comércio. Isso intrigou o rei Jaime, que escreveu para o imperador japonês oferecendo “boas relações e amizade”. Tudo que ele queria era “o arranjo e estabelecimento de um intercurso de comércio e negócios para o bem mútuo de todos os súditos de cada um de nós”. Embora magoado por não ter obtido resposta a essa primeira carta, Jaime estava preparado até para se humilhar um pouco: “Não recebemos resposta 22 sua, o que atribuímos à distância que separa nossos domínios, e não a qualquer hesitação.” Foi um raro e estimulante exemplo de europeu do início da modernidade tentando ver as coisas de outro ponto de vista. A Bretanha de Jaime e o xógum do Japão, agora Tokugawa Ieyasu, o próximo na linha de sucessão, viram-se diante da mesma questão estratégica crucial: que deve fazer um país-ilha para prosperar num mundo de impérios cada vez maiores? A Bretanha respondeu lançando-se para fora, construindo frotas e espalhando-as pelos oceanos em direção à América e ao Extremo Oriente. Ingleses e escoceses eram impelidos pelo fervor religioso, mas também pela esperança de lucro. A primeira sociedade de ações da Inglaterra foi uma associação de capitalistas, a Muscovy Company, formada em 1555. A Companhia das Índias Orientais conseguiu sua carta patente de Elizabeth em 1600. Sete anos depois, a “Companhia de Londres” estabeleceu a colônia da Virgínia. Exploradores tornaram-se heróis populares, e o apetite por ouvir tudo sobre o resto do mundo, que pode ser visto em peças, panfletos e livros, parece ter sido insaciável. A frota de Elizabeth tinha sido minúscula em comparação a outras, mas um ministério da marinha reorganizado, juntamente com estaleiros em escala industrial — primeiro em Deptford, depois em Chatham e Portsmouth — logo passou a produzir mais e maiores navios. Por volta do ano de 1637, quando oSovereign of the Seas , com 102 canhões, foi lançado pelo filho de Jaime, Carlos, a Bretanha podia gabar-se de possuir o mais formidável navio em operação. Os japoneses podiam ter adotado a mesma abordagem e quase agiram assim. A partir dos anos 1580, tinham feito comércio com grande sucesso em seus armados navios mercantes “selo vermelho” na Tailândia, no Vietnã e nas Filipinas. Em 1600, um marinheiro inglês chamado William Adams, que tinha servido com Drake e lutado contra a Invencível Armada espanhola, chegou ao Japão. O navio holandês em que navegava, à deriva e desesperado, com a tripulação morrendo de fome, tinha lançado âncora. Adams foi resgatado por pescadores japoneses e levado à presença da autoridade mais próxima, o futuro xógum, Ieyasu. Para os portugueses, que estavam perto de converter o espantoso número de meio milhão de japoneses ao catolicismo, a chegada de um herege inglês sujo e desgrenhado não foi bem-vista. Com verdadeira solicitude cristã, os jesuítas sugeriram a Ieyasu que crucificasse Adams. Em vez disso, o governante receptivo interrogou o inglês sobre navios, Deus e matemática e nomeou-o seu conselheiro. Ieyasu era fascinado pela ideia de construir uma poderosa frota oceânica e, em 1605, Adams supervisionou a construção de dois excelentes navios transoceânicos de estilo europeu num novo estaleiro em Ito. Will Adams, de Gillingham, em Kent, tornou-se Anjin-Sama, figura respeitada e até hoje lembrada no Japão, íntimo assessor de Ieyasu, o chefe militar que à sua maneira foi tão influente em forjar o Japão como país único quanto Jaime tinha sido em forjar a Bretanha. Não há razão para que os
aponeses, acostumados a viagens marítimas e tecnicamente avançados, não pudessem construir em pouco tempo frotas de galeões, assim como já tinham copiado e melhorado mosquetes e canhões europeus. Um vigoroso debate se desenrolava no Japão sobre o rumo a ser tomado. Os estrangeiros traziam artigos interessantes para vender — sua pólvora era considerada boa, mas os tecidos eram terríveis — e sem dúvida tinham habilidades fascinantes. Mas também eram fonte de instabilidade e grande parte do problema vinha do rápido êxito dos missionários cristãos. Calcula-se que no começo do século XVII eles converteram quinhentos mil japoneses, incluindo camponeses, samurais e proprietários de terras, basicamente no sul. De início, os xóguns não deram muita importância ao assunto, mas isso mudo quando os cristãos japoneses começaram a criar dificuldades. O cerco do castelo de Osaka em 16141615 foi uma epopeia, que cristalizou a vitória dos Tokugawa como governantes de todo o Japão. Mas enfrentando-os atrás das maciças muralhas da fortaleza, junto com o dono, havia milhares de samurais decididos — muitos deles cristãos, portando bandeiras de santos cristãos. Graças a Adams, Ieyasu fora capaz de distinguir entre europeus protestantes e aqueles rebeldes católicos. Respondendo a Jaime com afabilidade, até lhe mandara como presente uma bela armadura de samurai. Mas Ieyasu morreu de repente, não muito depois do cerco, possivelmente de sífilis ou câncer, e o novo xógum, seu filho Hidetada, era mais cruel. Iniciou-se um expurgo de estrangeiros, a princípio concentrado nos jesuítas, mas que congelou todo o comércio com os europeus. Vinte anos depois, em 1637, houve uma grande revolta de trinta mil camponeses, na maioria cristãos, na ilha de Kyushu. O levante foi muito mais motivado por impostos e fome do que por religião e terminou depois de outro cerco épico, durante o qual os camponeses e samurais rebeldes repeliram um exército muito maior. Os Tokugawa só conseguiram suprimi-los com a ajuda de navios pertencentes àqueles outros cristãos (embora protestantes), os holandeses. Tudo isso era muito constrangedor e moldou a visão japonesa sobre a melhor maneira de equilibrar oportunidade e risco quando o assunto era influência estrangeira. Dois anos depois, foram tomadas as drásticas medidas conhecidas como sakoku, ou política do “país fechado”. O tamanho dos navios aponeses seria reduzido por lei. Só poderiam ser grandes o suficiente para a pesca costeira. Os navios transoceânicos foram desmantelados e construí-los tornou-se crime passível de pena de morte. Para não correr riscos, os navios, a partir de então, seriam construídos com um grande buraco no casco, que os tornava letais em mar aberto, onde um vagalhão seria uma sentença de morte — caso único de navios construídos especificamente para afundarem. Os cidadãos japoneses foram proibidos de deixar o Japão, sob pena de morte, e os estrangeiros, proibidos de entrar. O cristianismo foi declarado ilegal, embora muitos cristãos japoneses preferissem morrer a renunciar à nova fé. Por fim, os estrangeiros foram expulsos. Quando os portugueses voltaram em 1640 para protestar, sua missão foi destruída. Embora sobrassem pouquíssimos e rigorosamente regulados vínculos comerciais com comerciantes coreanos e holandeses, o país foi de fato trancado. Essas restrições permaneceram em vigor por mais de duzentos anos. Eram vistas como um caso clássico de idiotice política. O que teria acontecido se o rei Jaime, talvez furioso com outro incidente de fumo passivo no Palácio de Westminster, ordenasse a destruição da frota britânica e a proibição de contatos com o continente? Os japoneses, na verdade, também desinventaram os armamentos modernos. Assim, na época em que a Marinha dos Estados Unidos (instituição impensável quando a política entrou em vigor) chegou, em 1853, os aponeses não tinham resposta para a ameaça flagrante de seu canhão. Mas a história temdooutro lado.sido Ospossível mais dededois séculos isolamento criaram umdistintas, Japão mais intensamente japonês que teria qualquer outrademaneira. As construções suas tradições singulares na arte e no teatro, seus rituais em torno do chá, da música, das cortesãs e das estações e sua cozinha srcinal, inusitada, simplesmente seriam “menos o que são”, sem as portas
trancadas dos Tokugawa. Ainda hoje o Japão é mais ele mesmo, mais distinto, do que outras culturas — sem dúvida mais do que a homogeneizada cultura global dos britânicos modernos. Isolada das epidemias globais propagadas pela navegação e desfrutando de paz interna, a população japonesa cresceu rápido, de tal maneira que Edo era a maior cidade do mundo no começo dos anos 1700 (não que o mundo notasse). As armas quase desapareceram. A união interna trouxe um período de grande prosperidade para o comércio doméstico. Os japoneses da era Tokugawa conseguiram até resolver alguns de seus problemas ambientais mais prementes. Tinham dependido tanto quanto os ingleses de madeira para construção — metade da capital Edo, na maior parte construída de madeira, foi destruída pelo “grande incêndio” de 1657, nove anos antes de acontecer a mesma coisa em Londres. A madeira necessária para castelos, barcos e combustível e a demanda por mais terras aráveis à medida que a população aumentava provocaram enorme desmatamento e erosão. O desastre se aproximava. Em vez disso, como Jared Diamond mostrou, os japoneses conseguiram controlar a população, atingindo uma espécie de nível de estabilidade. Descobriram fontes alternativas de alimento, principalmente no mar, que ainda ocupam lugar central na dieta japonesa. E reflorestaram. Graças a um complicado sistema de regras sobre quais madeiras usar para quê, a encargos financeiros pela exploração de árvores e a uma compreensão cada vez maior da silvicultura, as florestas japoneses voltaram a crescer. A madeira adquiriu grande valor, assunto para debates entre especialistas. Camponeses em melhor situação sabiam que árvores de crescimento lento seriam úteis para os netos, e um governo central severo impôs as novas regras em toda parte. Comparando-se isso à destruição de florestas em parar grandee pensar parte dasobre Grã-Bretanha e depois emsábia: grande dos Estadospor Unidos, há pelo motivo para que decisão foi mais se parte a de espalhar-se toda parte ou menos a de ficar em posição defensiva. Mas isso é apenas metade da história. A outra questão a respeito do Japão dos Tokugawa, à qual voltaremos mais adiante, é a de que era uma sociedade intensamente conservadora e hierárquica, que amais desenvolveu a cultura semidemocrática e mais aberta dos primórdios do Ocidente moderno. É provável que o conservadorismo e a reclusão andassem de mãos dadas. Na época em que o Japão volto a fazer parte do mundo, o país já era governado por uma hierarquia de aristocratas com ideias medievais, e seus cidadãos estavam habituados, talvez um pouco demais, a cumprir ordens. Isso teria implicações na história do século XX. O Japão ainda tem seus punks, é claro. E, apesar dos éditos de 1612, continuam a ser fumantes formidáveis. Numa casca de noz para Nova York O vindouro domínio britânico do mundo ainda não parecia óbvio. A incapacidade de penetrar no mercado japonês foi acompanhada por outros fracassos. A ascensão dos britânicos como potência naval e comercial é parte tão firme da história do mundo que pode ser chocante descobrir que, na disputa mais lucrativa de todas, eles foram vencidos pelos rivais que aparecem na história japonesa, os holandeses. Em sentido amplo, a história da expansão mercantil europeia pode ser dividida em três fases. Primeiro, a partir do fim dos anos 1400, vieram os portugueses, cujos navios exploraram a costa africana. ao descobrirem que oosCabo podia ser alcançado dentro do Oriente. Atlântico,Os a oeste, Depois, permitindo que os ventos conduzissem, chegaramafastando-se à Índia e para ao Extremo portugueses agiram mais como comerciantes violentamente monopolistas do que como construtores de impérios, estabelecendo fortificações para proteger suas rotas marítimas e repelindo todos os rivais. Os
espanhóis foram os próximos a entrar em cena, mas não se esforçaram muito para tirar os portugueses de “suas” rotas, preferindo concentrar-se, como já vimos, nas Américas. O maior navegante português, Fernão de Magalhães, estava a serviço dos espanhóis quando descobriu a rota pelo cabo Horn para a América do Sul. Morreu logo depois. Um dos navios com que iniciara a viagem tornou-se a primeira embarcação a circum-navegar o mundo. A segunda fase viu dois povos mais setentrionais, os ingleses e os holandeses, juntarem-se à aventura. Para começar, não eram mais deliberadamente imperialistas do que os portugueses, movidos também pela esperança de lucro própria dos comerciantes. A Europa alimentava um antigo e quase desesperado desejo pelas especiarias, que só cresciam no Oriente. As mais deliciosas e (supunha-se) saudáveis eram encontradas nas Ilhas das Especiarias, espremidas nos perigosos mares entre Bornéu e Nova Guiné. Nozmoscada, cravo, macis, pimenta e canela tinham sido levados para as ilhas por navegantes muçulmanos, depois para a Índia e, de lá, através do mundo islâmico, para Constantinopla e, finalmente, por Veneza, para a Europa. Em cada parada geravam lucros, de modo que essas castanhas e sementes aromáticas tornavam-se caríssimos artigos de luxo quando chegavam a Paris e Londres. Mas, antes do advento da refrigeração, numa época de carne malcheirosa e comida sem graça, havia um apetite insaciável por especiarias, assim como por peles. Supunha-se também que a maioria delas protegia contra doenças. Dizia-se que a noz-moscada curava sífilis e até a peste. Enquanto isso, a navegação portuguesa tinha descoberto um caminho mais curto para as Ilhas das Especiarias. A jornada ainda podia durar meses, até anos, e matar talvez um terço dos marinheiros que tentavam realizá-la, mas navios da Europa agora podiam ter acesso direto às especiarias. Seus proprietários única viagem, de foram acumular os lucros fabulosos, divididos entre vendedores aoseriam longo capazes, de meio numa mundo. Os perdedores os comerciantes árabes eantes indianos, inopinada e brutalmente cortados da corrente. Os mercados de Constantinopla ficaram menos barulhentos, e os avaros comerciantes do Grande Canal de Veneza resmungaram em seus palácios. Os próximos perdedores seriam os próprios portugueses, diante da competição de navios mais bem construídos e de aventureiros mais ousados, dessa vez provenientes das terras baixas do norte da Europa. Em particular os holandeses, que mesclariam conhecimentos náuticos com as artes do comércio aprendidos na Itália para produzir uma fórmula capaz de mudar o mundo. Nós, seres humanos, ainda somos, em parte, animais muito simples: amamos novos gostos, olhar para coisas belas e brilhantes, ter coisas macias contra nossa pele, aromas agradáveis e sentir sabores interessantes. Sempre foi esse o caso, mas para a Europa, depois de séculos de relativo isolamento, era especialmente assim. Os holandeses conseguiram quase monopolizar o que eles chamavam, como um eito de falar admiravelmente franco, de “comércio rico” — não só especiarias, mas também sedas e finas porcelanas japonesas. Os lucros eram enormes. E também os riscos. Tempestades, piratas e deterioração das cargas significavam que muitos investidores perdiam tudo. Dividir, distribuir e vender o risco, assim como garantir o sistema de divisão de lucros, levaram os holandeses a desenvolver o primeiro mercado de ações propriamente dito. Comprar e vender ações não era uma coisa de todo nova. Carlos V, ao levantar fundos para suas batalhas nos Países Baixos, produzira um sistema de anuidades, transferíveis e negociáveis. Em Antuérpia, letras de câmbio eram compradas e vendidas de maneiras cada vez mais complexas e, quando os protestantes foram expulsos da cidade, em 1585, acabaram dando prosseguimento a seus negócios em Amsterdã. Ali, em 1609, o Wisselbank, ser tido como o primeiro banco central do mundo, entrou em operação para garantir o valorque de costuma moedas diferentes, mediante o pagamento de pequena taxa. Num mundo de moedas aparadas e depreciadas, isso oferecia uma segurança básica para o desenvolvimento de um comércio mais aventureiro.23
Antes da abertura da beurs — ou bolsa de valores — de Amsterdã, apenas um ano depois do Wisselbank, os especuladores da cidade tinham regateado e fechado seus negócios na Ponte Nova ou em igrejas próximas. O novo prédio formalizava as transações, e suas poucas horas diárias de funcionamento a portas abertas davam um ar de frenética praticidade que se tornaria muito familiar para futuros corretores. Em pouco tempo, centenas de mercadorias diferentes eram compradas e vendidas. Como o primeiro banco central, a primeira sociedade por ações foi fundada em Amsterdã e num período bastante curto os holandeses desenvolveram todos os fundamentos de uma fonte segura e flexível de financiamento, que os aristocratas ingleses, os monarcas britânicos ou as cortes de Espanha e Portugal simplesmente não conseguiam igualar. O “comércio rico” envolvia façanhas quase miraculosas de navegação e coragem. Rivais europeus tentaram abrir caminho através do gelo ártico ou penetrar nos ermos desertos canadenses, ainda à procura de um atalho para as ilhas aromáticas. Em Londres, tentaram imitar os holandeses fundando sua própria Companhia das Índias Orientais, mas os britânicos descobriram, e não pela última vez, que é difícil ser o segundo num novo mercado. Os holandeses eram inflexíveis, determinados e absolutamente implacáveis. Numa série de violentas batalhas, cercos heroicos, acordos asquerosos e traições bárbaras, acabaram se apossando das Ilhas das Especiarias — e de quase todo o resto do comércio do Extremo Oriente. Os negociantes holandeses perceberam que, para afastar rivais, precisariam de fortes, armazéns protegidos, ancoradouros seguros e um acordo permanente com os governantes locais, cujos produtos cobiçavam. Isso significava que os holandeses — apesar de republicanos tementes a Deus — estavam se tornando imperialistas. A terceira fase tinha chegado. A Indonésia de hoje foi sua base oriental, com uma nova capital “Batávia”. Paraholandesa, os britânicos, com menos armas, menos navios e menos capital do que seria necessário, tinha sido impossível, até então, afrouxar a gravata aplicada pelos holandeses. Nos últimos anos, a heroica saga do marujo britânico Nathaniel Courthope, que defendeu a minúscula ilha de especiarias de Run, a primeira colônia asiática da Grã-Bretanha, contra um longo cerco holandês, transformou-se num bestseller inspirador. Graças à sua corajosa resistência, a Grã-Bretanha conseguiu, com o tempo, permutar a posse legal de Run por outra pequena ilha controlada pelos holandeses, chamada pelos nativos de “Manhattan”. Nova Amsterdã se tornaria Nova York, e a história imperial britânica começaria para valer na América do Norte, onde a Grã-Bretanha já estabelecera postos avançados na Virgínia e na Carolina. Um anseio de liberdade religiosa, mais do que de especiarias, ou de simples lucro, resultaria numa colonização muito mais significativa do que quaisquer lutas no oceano Índico. O poderio naval britânico cresceria até chegar a um ponto em que, durante as guerras napoleônicas, o país pôde voltar por um breve período às Ilhas das Especiarias e simplesmente arrancar, pôr em vasos e transplantar as valiosas árvores para outras colônias, como Granada, acabando com o monopólio holandês. Mas isso só ocorre depois de quase duzentos anos de lucro fácil despejado na Holanda. Basicamente, os holandeses fariam bom uso de sua boa sorte, produzindo a primeira classe média estável e rica de consumidores, do mundo. Mas antes disso acontecer, como veremos em seguida, esses norte-europeus sóbrios, de cabeça fria e voltados para o comércio, deixariam o mundo boquiaberto — antes de rolar de rir à sua custa. Uma história bem moderna A história, no sentido convencional, decorre quase sempre fora de casa. Ao ar livre, generais montam em cavalos e marinheiros dedicam-se à faina de navegar. Nas oficinas, inventores cortam, torcem, mordem os lábios e garatujam. Na rua, pregadores vociferam e vendedores despontam, sempre oferecendo
novidades. Mas a história só passa a existir mesmo quando é sentidadentro de casa. As grandes mudanças são as que ocorrem ao redor da mesa ou no leito de um enfermo. Às vezes a casa fica num novo continente, é incendiada ou abandonada. As grandes descontinuidades da vida humana, que untamos num todo chamado “história”, são as que têm impacto direto na vida coletiva dos seres humanos. E onde vivemos, em geral, é em casa. Pieter Wynants era um comerciante de tecidos, que também manufaturava linho e linhas. Tinha uma bela casa em Haarlem e, em 1o de fevereiro de 1637, convidou amigos para um almoço em família. Deve ter sido um grande banquete, servido por criados a visitas muito educadas, sobriamente vestidas, sobre uma toalha de mesa esticada e bem passada. Este é um mundo que julgamos conhecer bem, graças aos grandes pintores da idade de ouro — que Rembrandt, Rubens, de Hooch e Vermeer mundo tranquilizador deholandeses pessoas eretas e zombeteiras, usam golas de rufos brancas e vivem —, numum ambiente de fartura suavemente iluminado. Mas, logo além da moldura da tela, era também um mundo de epidemias, constantes ameaças de guerra, ferozes disputas religiosas e histeria financeira. Se os holandeses daquele período são os primeiros modelos da sociedade burguesa e consumista de hoje, a verdade é que nada havia de estável e tranquilizador nesse modelo. À mesa de Pieter Wynants todo mundo se conhecia muito bem e todos estavam na flor da idade, com seus trinta e poucos, quarenta anos. Tinham boa situação e eram interligados pela fé menonita, todos membros de um grupo protestante que era (e é) pacifista, hostil à interferência do Estado na religião e contra o batismo de crianças. Entre eles havia não menos que três mulheres, recentemente enviuvadas pelo último surto de peste bubônica. A doença tirara a vida de uma pessoa em cada oito em Haarlem, que á não tinha onde sepultar os mortos. Resultara também em dinheiro herdado para essas mulheres. O irmão mais jovem do anfitrião, Hendrick, tinha uma boa ideia, apesar de óbvia, sobre como deveriam gastá-lo. Sugeriu a uma delas, Geertruyt Schoudt, cujo marido fora comerciante de lã, que comprasse alguns bulbos de tulipas Switzer. Os preços continuavam a disparar, e ela com certeza ganharia muito dinheiro. As Switzers eram flores um tanto sem graça e não faziam parte do mesmo grupo das raridades sutilmente estampadas que os entendidos tanto cobiçavam, mas a grande mania holandesa das tulipas estava no auge. Até as Switzers trocavam de mãos por 1.350 florins a libra, o preço de duas ótimas casas ou de um par de navios totalmente equipados.24 Sabemos o que aconteceu logo depois por causa de minuciosos registros da corte. A viúva teve dúvidas sobre a compra dos bulbos e só aceitou a ideia quando outro conviva, Jacob de Block, se ofereceu para segurar-lhe a venda por oito dias, enquanto ela levantava o dinheiro. Qualquer coisa da atmosfera tensa e competitiva do almoço é capturada pelo fato de que, logo que o negócio foi fechado, propuseram à viúva Schoudt um lucro de cem florins se ela concordasse em revendê-las no ato. Influenciada por Jacob, ela recusou a oferta e decidiu esperar um lucro muito maior. Foi um erro, pois a bolha do bulbo de tulipa, como toda bolha financeira, estava prestes a estourar. Dentro de poucos dias, os bulbos não valeriam praticamente nada. Essa mania da tulipa tem sido vista como um caso clássico de histeria financeira, precursora da Bolha dos Mares do Sul, da Quebra da Bolsa em 1929, da bolha “pontocom” de 1995-2000 e de bolhas imobiliárias anteriores à mais recente crise bancária. Há muita verdade nisso. As pessoas em volta da mesa em Haarlem eram, como tantos investidores depois, gente trabalhadora — os menonitas costumam se descrever comoo “gente — que até imaginava compreender mercado em queEra realizava seus negócios. Faziam que se simples” tornara normal, mesmo “sensato”, emoseu meio social. “impossível perder dinheiro” com bulbos de tulipa, assim como seria “impossível perder” com empresas de internet
ou com a matemática dos fundos multimercado. Por mais que isso tirasse seu sossego, o fato é que o lema “ganância é bom” de um futuro investidor já se insinuara na Holanda protestante. “Holanda” a rigor era apenas um dos territórios de um país que se identificava como Províncias Unidas. Era um nome melhor. A maior parte da Europa era província de algum lugar, e essas províncias em particular se juntaram como resultado do impacto da Reforma de Lutero. Os holandeses, como os vizinhos alemães do norte, tinham se convertido majoritariamente ao protestantismo. A certa altura, teria sido absurdo para as terras de lavoura e pesca da costa setentrional da Europa continuar a ser governadas de Madri pelos Habsburgos, mas a linha divisória da religião deu às guerras de independência holandesas uma premência e uma intensidade especiais. Depois que Felipe da Espanha intensificou a perseguição de “hereges”, o que começara como protesto contra impostos altos e o aquartelamento de tropas se transformou em revolta total. Enquanto a Europa se dividia em tribos religiosas rivais, refugiados protestantes inundavam os Países Baixos. Depois de uma heroica defesa da cidade de Leiden, os holandeses repeliram a primeira tentativa espanhola de reconquista. A política espanhola de terrorismo eliminava a possibilidade de acordo, e teve início uma complicada luta envolvendo fome, perseguição e guerra em terra e no mar. Em diferentes momentos, os desesperados holandeses tinham oferecido aos monarcas da França e da Espanha a Coroa da Holanda em troca de apoio, mas, por volta de 1609, as províncias setentrionais tinham, para todos os efeitos, se separado, deixando o sul dos Países Baixos para os católicos e os Habsburgos. Uma nova invasão espanhola ocorreria em 1628, e as pessoas reunidas na casa de Pieter Wynants, nove anos depois, não podiam ter certeza de que não haveria outros ataques. A paz final só foi assinada dez anos depois quecomo a mania das tulipas acabou.holandesa já se estabelecera como a maior potência náutica do Então, vimos, a república mundo. Um povo que tinha pescado e negociado no mar do Norte e na costa da Europa construíra uma tradição náutica sem igual — que não perdia nem mesmo para seus rivais quase vizinhos e protestantes, os ingleses. Seus mercadores eram encontrados na Índia, na China e no Japão. Sem grandes riquezas naturais, quer se tratasse de solo rico ou de reservas minerais, os holandeses ficavam ricos através de uma rede mundial de comércio. Mas as inovações que lhes permitiam ter mais financiamento do que os rivais envolviam riscos. A compra e venda de ações introduziu a excitação e o prazer das apostas altas e competitivas numa sociedade antes conservadora. A ideia de “futuros” — vender não apenas as mercadorias, mas seu preço futuro, como pura especulação, tornou-se lugar-comum para um povo que já se tornava notório por suas loterias e pelo gosto do jogo. Sem o imenso influxo de riqueza levado para as Províncias Unidas pelo “comércio rico” e o fato de que os cidadãos mais destacados ficavam ainda mais ricos com suas apostas comerciais, a mania da tulipa jamais teria acontecido. Tudo de que se precisava agora era uma mudança de mentalidade na vasta maioria de artesãos, hoteleiros, pequenos fabricantes e agricultores que, em circunstâncias normais, amais disporiam de capital para seguir o exemplo da burguesia rica. Pela primeira vez na história, o homem de poucos recursos podia sonhar com um investimento único capaz de mudar sua vida. Os holandeses têm sido alvo de zombarias desde então, porque sua febre especulativa concentrava-se em algo tão absurdo e transiente como bulbos de flor. Para o olho moderno, a ideia de uma tulipa ter o valor de uma casa ou de uma pintura de Rembrandt é sem dúvida absurda. Mas seria mesmo? Afinal, damos valor aparentemente descomedido a objetos cuja raridade (real ou fabricada) confere status a quem os possui. Um quadro de Monet é (quase melhor doMas queseria uma cem obra-prima um melhor? de seus seguidores feita vinte anos depois do apogeu dosempre) Impressionismo. ou mil de vezes Uma bolsa Chanel tem a mesma utilidade de uma bolsa comprada numa loja do comércio e para o olho
não treinado não parece, necessariamente, cem vezes superior. Será que a diferença nos glóbulos oleosos ustifica a diferença de preço entre o caviar de Beluga e as ovas de lumpo? Pode-se sustentar a mesma discussão sobre vinhos, diamantes, carros esportivos ou roupas de grife. Pensando bem, a obsessão holandesa por tulipas fazia mais sentido. Tulipas, srcinariamente flores silvestres que ocorriam nas montanhas entre a China e a Pérsia, eram apreciadas nessa região por serem belas o suficiente para representar o amor ou mesmo a perfeição de Deus. Tinham sido cultivadas e estimadas pelos turcos otomanos e foi assim que chegaram à Europa. Difícil de cruzar para obter diferentes cores e formas, elas extasiaram os primeiros botânicos e eram dadas de presente ou trocadas por jardineiros em busca de uma flor especialmente vívida. Assim sendo, o que haveria de estranho em causarem um prazer especial debaixo dos céus cinzentos do norte da França, da Holanda e da Alemanha? A mania começou entreconnaisseurs cultos e especializados, que tinham predileção por um pequeno número de bulbos, aqueles que produziam flores com padrões delicados nas pétalas, complexos trançados e filetes vermelhos, amarelos ou púrpura sobre branco. A rigor, essas tulipas sofriam ataques de um vírus difundido por pulgões. Eram doentes. Hoje estão praticamente extintas. Mas, nos anos 1630, em razão de nomes grandiosos como “Semper Augustus” e “Admirael van der Eijck”, eram compradas e negociadas entre os muito ricos. Um único bulbo podia custar o equivalente a seis ou sete vezes o salário anual de um carpinteiro. (Aqui também é preciso lembrar o frenesi competitivo de colecionadores ricos que disputam selos raros no mundo atual.) Então a rede de cultivadores, vendedores, divulgadores e empresas que surgiu com a nova mercadoria transmitiu seu entusiasmo para a sociedade holandesa em geral. Pessoas comuns não podiam comprar esses superbulbos, masano, havia muitas variedades humildes para negociar. Como asque tulipas só florescem uma vez por durante poucas semanasmais na primavera, as pessoas descobriram estavam negociando com um artigo cujo desempenho podia ser adivinhado, mas não de todo garantido. Isso significava que os negócios eram feitos com tulipas dormentes ou tulipas futuras, antes da estação das flores. Palpites, negócios de má-fé, roubos de bulbo e simples ignorância — como a conhecida história de um bulbo fabulosamente valioso que um marinheiro confundiu com uma cebola e comeu — alimentavam essa atmosfera de busca do ouro. Um sistema de compra e venda apareceu em albergues em toda a República Holandesa, mas sobretudo em Amsterdã e Haarlem. Imitava a bolsa de valores de Amsterdã, mas numa atmosfera anárquica de consumo de cerveja, vinho e cigarro. Um dos historiadores da mania assinalou que a bolsa de valores e os novos bancos estavam fora do alcance do povo das tavernas, ainda que dispusessem de algumas economias: “Não havia sociedades de crédito imobiliário no século XVII, fundos mútuos, planos de participação acionária, ações de baixo preço, deduções e paraísos fiscais.” 25 O sistema de tavernas, envolvendo ofertas escritas a giz em quadros e regateadas por “amigos” do pretenso comprador o vendedor, era viciado para encorajar vendas. Havia penalidades financeiras para o comprador que recusasse o preço final oferecido e outras semelhantes para compradores que se retirassem. Rodadas de bebida, comida e muita cantoria comemoravam o fechamento de negócios. No auge do período de mania, os quatro anos a partir de 1633, o valor nominal do comércio de bulbos de tulipa foi estimado em dez vezes o da poderosa Companhia Holandesa das Índias Orientais, base de grande parte da verdadeira riqueza dos holandeses. Sabemos exatamente quando a bolha explodiu. Na primeira terça-feira de fevereiro de 1637, numa taverna de Haarlem, uma libra de Switzers foi oferecida por 1.250 florins e ninguém comprou. O leiloeiro foi baixando o preço, mas ainda assim ninguém quis. Devem ter sido alguns minutos deprimentes. O pânico tomou conta e se espalhou. Dentro de três meses, os preços caíram cem vezes. No papel, pelo menos, centenas de milhares de pessoas ficaram expostas à ruína, à falência e até à fome. Afinal, não tinham só investido o dinheiro de suas economias. Como
ocorreria em booms posteriores, tinham tomado muito dinheiro emprestado por conta de ganhos futuros. Outros tinham hipotecado casas, terra, ferramentas de trabalho. E tudo em troca de objetos cheios de dobras, lembrando cebolas, que de repente valiam quase tanto numa caçarola como num vaso. Mas o que há de realmente interessante no rápido crescimento do negócio das tulipas é que não terminou em desastre universal ou mesmo em quebradeira generalizada dos especuladores holandeses. Os Estados Gerais que governavam a república se recusaram a adotar medidas especiais e devolveram o problema para as autoridades municipais. Muitas cidades, por sua vez, se recusaram a processar o examinar qualquer ação judicial envolvendo o comércio de tulipas, seguindo adiante como se nada tivesse acontecido e deixando que as perdas e os ganhos não realizados se compensassem. Se os sonhos de enriquecimento súbito foram desfeitos, assim também foram os pesadelos de empobrecimento repentino. Os holandeses se orgulhavam, já então, de seu bom senso e de sua capacidade de discutir os problemas. Foi uma solução bem holandesa, e a economia prosseguiu sem se deixar influenciar. Os cultivadores de tulipa sofreram um duro golpe e houve casos individuais muito tristes, mas a república e seu novo sistema financeiro mal se abalaram. A rigor, os holandeses acabaram transformando as tulipas (que crescem bem no solo arenoso dos Países Baixos, assim como nos planaltos arenosos da Ásia) num comércio regular de exportação, apenas mais um artigo de luxo para colocar numa mesa em Bristol, Düsseldorf ou Lille. Hoje os holandeses dominam o comércio mundial de flores e o sistema, criado por eles nos anos 1600, de bolsas de valores, negociações a futuro e transações internacionais, domina a economia mundial. Eles deram uma resposta adequada simplista de riqueza acalentada pelos espanhóis da época Colombo Pizarro — blocos àdeideia ouromais a serem derretidos para decorar igrejas e travar guerras e terrasdepara serem eocupadas e habitadas em nome de Deus e da glória. A maneira holandesa, que consiste em tirar o máximo proveito da terra escassa e usar o dinheiro como ferramenta, tornou-se a maneira moderna. Nós a chamamos capitalismo.
PARTE SEIS SONHOS DE LIBERDADE
1609-1796: Iluminismo e Revolução, da Índia ao Caribe
O capitalismo funcionava. Mas só para alguns sortudos, numas poucas cidades europeias. Para a vasta maioria das pessoas, mesmo na Europa, não havia uma sensação de revolução. A vida prosseguia, dominada pelas tradicionais limitações sobre a quantidade de alimentos que se podia cultivar e a quantidade de energia que se podia explorar queimando madeira e algum carvão, utilizando a ajuda muscular de animais ou um pouco de vento e força hidráulica e, acima de tudo, o trabalho dos próprios humanos. Havia alguns novos artigos de luxo, porém a vida ainda era basicamente rural e delimitada por velhas histórias e velhas crenças. E para as pessoas que viviam em lugares como Austrália, ilhas do Pacífico, Pérsia, Império Otomano, Coreia, Japão, a maior parte da Sibéria, Índia, América do Norte, Indonésia e China não havia qualquer sensação de mudança. As tradições iam da caça no estilo da Idade da Pedra à sofisticada administração imperial, mas não havia a sensação de que alguma coisa importante tivesse acontecido, menos ainda de uma aceleração. Em toda parte, as pessoas eram na maioria camponeses agricultores, cujo mundo não ultrapassava o âmbito de duas ou três aldeias, que tinha pouca notícia de eventos mais amplos, a não ser, talvez, com um ano ou mais de atraso. Na Europa Oriental, em geral, os agricultores ainda eram servos, legalmente vinculados à terra e tratados como bens móveis pelos proprietários. Na Escócia gaélica, na Irlanda e em grande parte da Escandinávia e do norte da Rússia, as pessoas viviam em clãs, ou grupos de linhagem, quase desligadas do mundo exterior. A maioria dos europeus não falava a língua de qualquer nação que dizia governá-las ou falava dialetos incompreensíveis em suas capitais. Assim como tinham feito nas Américas, nas Ilhas das Especiarias e em poucas e limitadas partes da África Ocidental, alguns europeus estavam prestes a perturbar e desestabilizar o resto do mundo. Muitos povos indígenas já estavam condenados à extinção. Não dispunham da imunidade, das armas ou do nível de organização necessários para resistir. Mas em 1600 não havia uma boa razão para que outras partes do mundo não acompanhassem o ritmo dos britânicos, dos holandeses e dos franceses. Na verdade, os mongóis na Índia e a dinastia Qing na China pareciam muito mais adiantados — mais ricos, administravam com eficiência vastos territórios e viviam em relativa autossuficiência. A vitória dos europeus não parecia nem um pouco inevitável. Dessa forma, o que foi que fez virar a balança? Já vimos como mudanças locais aparentemente pequenas podem ter efeitos globais. Nesse período, as mudanças locais mais importantes ocorreram na política e começaram na Grã-Bretanha, sem plano algum. Se os britânicos não tivessem sido governados nessa época com particular incompetência e teimosia por uma de suas piores dinastias, os Stuarts, talvez tivessem atravessado com dificuldade os anos de 1700, ainda obedecendo a monarcas monopolistas. Mas a realeza pobre, guerras e disputas religiosas resultaram numa revolução em dois estágios que deu à Grã-Bretanha um novo tipo de governo. Primeiro, seus parlamentaristas rebeldes depuseram e mataram um rei. Em seguida, quando um dos sucessores se mostrou ao mesmo tempo incompetente e nem um pouco confiável quanto à religião, eles aterrorizaram esse rei de tal maneira que ele fugiu, e em seu lugar foi instalada uma monarquia de marido e mulher clara e abertamente sob controle do parlamento. Isso não era democracia, mas uma distribuição radical de poder entre os homens mais ricos de todo o país. Sugeria que o povo não precisava necessariamente tolerar seus governantes, fossem eles quem fossem, e planteava a possibilidade de um novo tipo de país, no qual o povo tinha direitos, não temia os governantes e podia pensar e agir com mais liberdade. Algo de parecido já acontecera na Holanda,
contudo a experiência britânica teve efeito mais profundo. Fez da Grã-Bretanha um ímã para as minorias perseguidas noutras partes da Europa, entre eles os protestantes franceses, e mostrou que havia um grande país onde as pessoas podiam publicar mais ou menos o que quisessem. Isso inspirou pensadores na França, em particular. Entretanto, essa experiência foi assimilada mais radicalmente por colonos nos treze assentamentos litorâneos da Grã-Bretanha na América do Norte, que levaram o pensamento dos reformadores britânicos à sua conclusão lógica, criando um Estado baseado em eleições, em direitos e numa Constituição escrita. Não foi apenas uma mudança de método, mas uma mudança dinâmica das regras, cujas consequências ninguém compreendia de fato. Na realidade, isso srcinou um debate que até hoje continua entre Pequim e Washington, Moscou e Bruxelas: qual é o equilíbrio ideal entre a autoridade do Estado e a liberdade do indivíduo? Nenhum Estado bem-sucedido é fixo. Todos os estados bem-sucedidos são um incansável cabo de guerra entre conservadorismo, sabedoria da tribo e radicalismo ou novas ideias. A sabedoria da tribo de fato é importante: são as lições acumuladas da história, os erros e as respostas que uma sociedade organizada adquiriu. Mas, se não for contestada, essa sabedoria se fossiliza. As revoluções políticas dos britânicos e, depois, dos americanos incentivaram indivíduos a alterarem o equilíbrio de poderes sem destruir o Estado. Na França, onde uma monarquia conservadora entrou em colapso, os revolucionários tentaram varrer inteiramente o passado e criar um novo presente, baseado apenas na investigação radical, o “razão”; foi um fracasso ousado e sangrento, inúmeras vezes copiado. O experimento britânico-americano encorajou novos pensadores em ciências naturais a expressar suas ideias com maisfinanceiros liberdade do que era opossível da Europa. permitiriaque que chamamos inventores ede especuladores criassem avançonadomaior uso parte da energia e da Isso manufatura, “revolução industrial”, que, por sua vez, deu ao “Ocidente” uma vantagem sobre o resto do mundo que se manteria até quase os dias de hoje. Isso tudo vem depois. O que é importante nesse período é que a experiência britânica-americana não parecia ser a única resposta sensata, ou a mais sensata, para como alcançar o equilíbrio ideal entre sabedoria e desafio, entre velho e novo. A outra ideia em voga era o absolutismo, a noção de que um líder sábio, atento e enérgico poderia guiar o país com segurança em meio a períodos turbulentos de declínio e caos. E, fora suas particularidades antiquadas, essa ideia ainda é intensamente popular entre governantes não eleitos por boa parte do mundo atual. Mas que e la gira, gira Estamos em agosto de 1609: numa sala com uma das decorações mais deslumbrantes do mundo, o Saguão do Colégio do Palácio dos Doges, em Veneza, um homem volúvel, de barbas ruivas, causou sensação. Entregou um tubo coberto de couro ao doge, governador da Sereníssima República de Veneza, cercado por seus conselheiros e comandantes navais. Depois de um alvoroço de perguntas e respostas, todos correram para fora do palácio, atravessaram a praça da grande igreja veneziana, a basílica de São Marcos, e subiram até o alto da torre. O doge apertou os olhos para ver pelo tubo. Em seguida, todos eles, um a um, fizeram o mesmo. No continente, a quilômetros de distância, edifícios apareciam perante seus olhos, tremeluzindo. Nas ilhas próximas, o doge e seus homens viram pessoas entrando nas igrejas; no mar, galeões a mais de duas horas de viagem de Veneza podiam ser observados claramente. O que aqueles homens tinham nas mãos era uma maravilhosa ferramenta militar e prática. O homem que a trouxe seria muito bem recompensado.
Era um matemático pisano — que agora dava palestras em território veneziano — chamado Galile Galilei. Ele havia roubado a ideia de um holandês pobre, que viera de Flandres, onde realizadores de espetáculos tinham inventado o telescópio, e esperava fazer fortuna na Itália. Mas Galileu, trabalhando com afinco nas lentes, melhorou muito o dispositivo. Astuto, ele dera o telescópio de presente para o doge. Depois voltou para a sua oficina na vizinha Pádua e fez outros ainda melhores. Logo virou um deles para cima, para o céu noturno. Galileu já era conhecido como personagem falastrão, exuberante, ganancioso, que adorava contestar o eito convencional de pensar. Seu trabalho era, em essência, prático. Dava consultoria a governantes em questões de balística, fortificação e bombeamento de água. Tinha inventado uma bússola militar. Mas também era conhecido por questionar ideias aceitas no mundo católico sobre a natureza, então dominadas pelas explicações que Aristóteles formulara quase dois mil anos antes. Num de seus livros, Galileu faz um seguidor de Aristóteles pensar em quem seria o guia da humanidade se o sábio grego tivesse de ser abandonado. O interlocutor retruca: “Só o cego precisa de guia. Quem tem olhos e mente precisa usar essas faculdades para discernir por contra própria.”1 Essas duas frases expressam perfeitamente o entusiasmo de Galileu pela ciência prática, experimental. O grande avanço na contestação da velha ortodoxia com relação ao lugar da Terra na Criação tinha ocorrido sessenta anos antes, quando um polímata alemão-polonês chamado Nicolau Copérnico publicara Das revoluções das esferas celestes. Muitos clérigos, tanto protestantes como católicos, ficaram chocados. No entanto, a ideia de que a Terra girava em torno do sol não tinha sido rejeitada de imediato pela Igreja Católica, apesar de contradizer a opinião aceita de que Deus tinha colocado o Sol, a Lua e os planetas em esferas externas separadas para guiar e ajudar a humanidade. De início, a possibilidade de acomodar a nova ideia à Bíblia foi debatida. Mas não por muito tempo. Quando o errante frade radical Giordano Bruno, depois de uma vida de especulação desobediente, foi finalmente acusado de heresia por numerosos crimes, entre eles o de afirmar que o sol era uma estrela, e o universo, infinito, os juízes o condenaram. Com um espeto de aço enfiado na língua, para parar de falar, foi queimado na fogueira em Roma, em 1600. A discrepância entre o otimismo de Galileu sobre a inteligência humana e o que aconteceu com Bruno explica em grande parte por que o renascimento do saber não levou a um grande avanço em tecnologia e a uma revolução industrial na Itália e na Espanha, nos anos 1600, em vez de acontecer na Grã-Bretanha nos anos 1700. Acostumados à ordem na qual as coisas de fato aconteceram, tendemos a aceitar como natural, sem contestação, que o grande salto capitalista para a frente não tenha acontecido antes. Foi estranho, porém, pois a Itália e outras partes da Europa meridional estavam imersas nas ideias do Renascimento e já tinham desenvolvido uma expertise em contabilidade, transações bancárias e engenharia em pequena escala que poderia muito bem ter provocado um arranco de desenvolvimento, em vez de apenas um arquejo. “Renascimento” não é uma palavra inteiramente prática. Embora do fim dos anos 1200 até os anos 1500 tenha havido, de fato, uma redescoberta e um renovado interesse nas civilizações clássicas, os avanços mais interessantes foram os novos. Portanto, foi mais nascimento do que renascimento. Por volta dos anos 1400, o norte da Itália, assim como partes do norte da Europa, já dispunha da maioria dos requisitos necessários para uma decolagem esclarecida. As primeiras universidades da Europa ofereciam uma educação estimulante a quem pudesse aproveitar. Logo que a publicação de livros se espalhou, ideias e argumentos passaram a circular com rapidez. No latim, encontrou-se uma língua comum. Havia competição entre estados poderosos, como Florença, Gênova e Veneza. Às vezes isso degenerava em guerra e as ciências da matemática, da balística, da ótica e da medicina progrediam rapidamente
enquanto governantes e exércitos disputavam a primazia. O entusiasmo de Leonardo da Vinci por fortificações e armamentos novos é apenas o exemplo mais famoso. Abaixo do nível dos festejados inventores existia uma poderosa base de habilidades técnicas, de artesãos e de designers capazes de produzir peças de armas, relógios, óculos e motores para dragar, levantar e bombear. Guildas estabeleceram padrões profissionais e medições comuns foram difundidas. Uma vigorosa malha comercial punha os italianos em contato com as últimas ideias e divulgava notícias do mundo árabe e do resto da Europa. E o comércio trouxe consigo um sistema financeiro relativamente sofisticado, possibilitando transações de longa distância. Pensadores e inventores italianos, assim como artistas, tinham mais opções do que nunca. Galileu era um dos muitos que iam de cidade em cidade em busca de melhores contratos, como um acadêmico dos dias de hoje. Encontramos até um exemplo muito incipiente de manufatura industrial. No famoso Arsenale de Veneza, organizado com rigor e fazendo uso de uma força de trabalho de seis mil trabalhadores, a república podia produzir um navio de guerra ou um navio mercante — pré-fabricados e totalmente equipados — por dia (coisa que em qualquer outro lugar da Europa levava um mês). Isso mostrava que, apesar de ser um exemplo isolado, os italianos do século XVI tinham capacidade similar de organização de fabricantes do século XX. Lançando um olhar sobre a Europa, seria possível prever, com razoável segurança, que o grande avanço das civilizações agrícolas e aristocráticas para civilizações inteiramente urbanas e industriais começaria em torno do rio Pó, e não do Trento ou do Aire, e um século e meio antes da data em que de fato ocorreu. Italianos instruídos tornaram-se vigorosos, competitivos e curiosos, além de ricos. A curiosidade voltava-se para o mundo natural e para tecnologias que permitissem controlá-lo: apesar de “arte” ser a primeira quecaso nos vem à mente quando pensamos no ininteligível Renascimento, vez deEm ciência ou comércio, como palavra vimos no de Leonardo, essa divisão seria naem época. suas descobertas sobre perspectiva, cor, distância, luz e anatomia, outros pintores italianos e holandeses se mostraram observadores intensos, constantes e analíticos. Eles também precisavam ser artesãos habilidosos e químicos amadores, coletando os ingredientes, depois moendo, misturando, afinando e engrossando suas cores, garantindo, durante o processo, que permanecessem frescas e claras. Muitos usavam lentes de vidro fosco para ajudar em suas observações. O que Galileu fazia, então, além de usar suas lentes e seus poderes de raciocínio para examinar com mais atenção do que qualquer um antes dele, embora os objetos que examinava estivessem muito mais longe do que era comum em sua época? Ele tem sido chamado de pai da “ciência”, mas não teria compreendido o sentido dessa palavra. Seu pai era músico e foi um dos primeiros a fazerem experiências com ópera. Galileu era fascinado pela física da música, assim como pelas proporções do Inferno de Dante. Seu mundo era muito próximo do mundo do Iluminismo e do começo da revolução industrial. A diferença era que a Itália do Renascimento e a maior parte da Europa do Renascimento viviam sob a autoridade não apenas de governantes locais autocráticos, mas de um poder maior, que pela época de Galileu se impunha ainda mais rigorosamente. O renascimento do saber clássico fora usado como estrutura de sustentação do cristianismo católico. Platão foi transformado numa espécie de profeta cristão involuntário dos primeiros tempos, Aristóteles tornou-se um pilar da ortodoxia cristã, Ptolomeu, um defensor da versão bíblica do cosmo. Até mesmo os mitos gregos e romanos foram reinterpretados como alegorias cristãs. Dante, imerso no pagão Cícero, usou o pagão Virgílio como seu guia num mundo subterrâneo cristão. O polímata genovês Leon Battista Alberti estudou o arquiteto romano Vitrúvio e ruínas romanas antigas como ótica cristãs, árabe), como mas era tambémSanta um sacerdote cristãoflorentina. devoto que uso seus conhecimentos para(assim construir igrejas a gloriosa Maria Novella Michelangelo estava imerso nos clássicos. Quando a grande escultura de Laocoonte — todo cobras e músculos contorcidos — foi desenterrada, em 1506, num vinhedo no monte Esquilino de Roma, onde
estava sepultada desde os tempos antigos, ele foi imediatamente convocado para vê-la. (Chegou a ser acusado de forjá-la.) O Davi de Michelangelo é um gigante grego pesado e contemplativo, com a diferença de que é um herói judaico-cristão. Vezes sem conta o grande truque do Renascimento era vestir a cultura cristã de uma toga imperial e fazer a filosofia clássica servir aos papas. Isso deu à humanidade os melhores artefatos até hoje produzidos, mas impôs um limite aos avanços científicos que poderiam ter sido permitidos. Galileu usou seu telescópio para estudar primeiro a Lua, depois as luas de Júpiter e a vasta quantidade de estrelas espalhadas pelo céu, até então invisíveis. Isso o levou a concluir sobre a impossibilidade do sistema ptolomaico com tal força que ele achou que pudesse convencer o Vaticano. Conseguiu ter longas e sérias conversas com os principais pensadores de lá, incluindo o cardeal Roberto Belarmino (posteriormente canonizado), a principal força intelectual por trás da Contrarreforma na época. Mas não foi só o fim de Bruno, cujos crimes contra a ortodoxia iam muito além da astronomia, que deve ter deixado Galileu cauteloso. Em Veneza, um dos seus grandes amigos era frei Paolo Sarpi, eminente erudito e estadista, que encabeçara a luta contra o Vaticano em torno da autoridade final do papa dentro daquela república cínica e materialista. Sarpi também tinha lutado pela independência veneziana em questões seculares. O papa Paulo V respondera excomungando o doge e todas as autoridades venezianas. Foi uma medida drástica para os que lá viviam. Nas palavras de um biógrafo de Galileu, “toda a república veneziana ficou isolada do corpo de Cristo, até que autoridade do papa fosse reconhecida. [...] Batismos e sepultamentos não eram mais realizados. Casamentos foram dissolvidos, filhos, declarados ilegítimos. Maridos podiam abandonar suas mulheres e filhos, não precisavam obedecer aos pais”.2 A reação de Sarpi foi expulsar os esuítas de Veneza e, apesar de enfim chegarem a um acordo, frei Sarpi pagou um preço alto. Certa noite, assassinos o atacaram e o apunhalaram quinze vezes, atravessando sua cabeça com uma fina adaga. Incrivelmente, Sarpi sobreviveu, enquanto os agressores fugiram para os Estados Papais. Mas foi uma declaração eloquente da determinação do Vaticano de fazer-se obedecer. Sob ameaça da Reforma Protestante e de novas ideias de todos os tipos, aquelas foram as décadas do Papa Militante, o papado aguerrido que insistia na deferência absoluta e, cada vez mais, na ortodoxia absoluta. Parece que, acima de tudo por ganância, Galileu deixou o refúgio relativamente seguro de Veneza e voltou a trabalhar para Florença. Embora fosse provocador e crítico, e a reação religiosa contra ele ganhasse força, ele sempre achou que seria capaz de safar-se de qualquer dificuldade pela persuasão verbal. Quando o cardeal Belarmino o convocou, em 26 de fevereiro de 1616, e lhe disse que ele precisava abandonar a ideia de que o Sol ficava parado com a Terra girando em torno — e, mais que isso, que deveria prometer que não abrigaria, ensinaria ou defenderia essa ideia por escrito o verbalmente —, Galileu concordou, porém parece ter chegado à apressada conclusão de que não se tratava de fato de uma “verdadeira” última advertência. Enquanto isso, todas as obras de Copérnico foram incluídas na lista de livros proibidos do Vaticano. Doente e já idoso, Galileu ficou mais ou menos calado por algum tempo. Contudo, acabou voltando ao ataque: seu caráter agressivo e seu amor por uma boa discussão com padres ignorantes tornaram o ulgamento final quase inevitável. Em 1632, após ter zombado dos argumentos do novo papa (de quem já fora amigo) em seu livro Diálogos sobre os dois principais sistemas do mundo, Galileu foi ameaçado de tortura e de ser queimado vivo. Depois de interrogatórios longos e ameaçadores, ele enfim se retratou, declarando que a Terra não girava em torno do Sol. Mesmo assim, foi condenado como “veementemente suspeito de heresia”. Diz a lenda que ele, em tom de desafio, disse baixinho: “Mas que gira, gira”, depois de abjurar publicamente o sistema copernicano. Seu castigo foi a prisão, primeiro em Roma, depois em casa, na Toscana, onde continuou a escrever.
Nenhum Iluminismo e nenhuma revolução científica poderiam ter surgido num lugar onde pensadores eram forçados a “abjurar, amaldiçoar e detestar” as ideias a que tinham chegado examinando o mundo físico. A Itália do Renascimento tinha os realizadores, os pensadores, os banqueiros e a competição para decolar, porém também tinha a Inquisição. A tragédia era que, no norte da Europa, embora o ambiente fosse mais livre, naquela época o que mais lhe faltava era a energia da Itália setentrional. Lá no norte, Galileu foi logo comparado a Cristóvão Colombo como o descobridor de novos mundos — mas como um explorador que não derramara sangue e fizera descobertas ainda mais importantes. Quando Galileu já estava velho, sob prisão domiciliar e à beira da cegueira e da morte, os holandeses tentaram pagar-lhe para que os ajudasse a descobrir o segredo da medição da longitude no mar, crucial para viagens oceânicas mais seguras. Ele se sentiu lisonjeado e tentado a aceitar, mas uma Igreja Católica constrangida o impediu de receber o ouro de Amsterdã. Anos depois, o problema foi resolvido por um holandês, Christiaan Huygens e, mais tarde, ainda com mais eficácia, pelo inglês John Harrison. Enquanto isso, escritos que defenderam o sistema copernicano permaneceram na lista de livros proibidos do Vaticano até 1835.3 O poder do Iluminismo e seu efeito revolucionário na história humana tinham se deslocado para o norte. O absolutismo e seus inimigos A próxima grande ideia a dominar a Europa foi essa versão centralizadora e modernizante da monarquia, oMetade “absolutismo”. Pode-se defini-lo uma noção estúpida embelezada comdopedras e escândalos. das capitais da Europa aindacomo tem palácios, arcos ou outros monumentos governo de alguma família de absolutistas. Alguns dos personagens mais exóticos da história ocidental — Catarina, a Grande, e Pedro, o Grande, da Rússia, Frederico, o Grande, da Prússia — foram monarcas absolutos desse período. No que tinha de mais ambicioso, a ideia consistia em acabar com a confusa massa de privilégios locais, direitos civis, pedágios, tradições e cartas patentes herdados dos séculos medievais, em nome do rei, que substituiria isso tudo com uma autoridade central única, eficiente e devidamente organizada. Essa autoridade se encarregaria de melhorar as estradas, abrir canais, cobrar impostos para manter um exército e estabelecer leis confiáveis para todos os súditos. “O Estado? Sou eu”, disse Luís XIV, o Rei Sol da França. E ele não estava apenas brincando quando disse isso. Luís e seus imitadores reais empenhavam-se em minar o velho poder semiautônomo dos proprietários de terra aristocráticos de província e das fundações clericais, criando cortes fascinantes para espantar, intimidar e seduzir. Em muitos sentidos, eles forneceram as bases para os estados-nação que vieram em seguida. Fora da França, os absolutistas mais convictos eram os Romanovs russos, que criaram uma nova capital, São Petersburgo, e que tinham por modelo os governantes ocidentais, sobretudo a casa real da Prússia, os Hohenzollerns, que conheceremos mais adiante. Mas nessa área os maiores rivais da família de Luís, os Bourbons, eram os Habsburgos, cujos territórios eram ainda maiores e com quem já deparamos na Espanha. Essa família nobre foi mais um produto de exuberantes arranjos matrimoniais do que de coerência territorial. Originariamente da Suíça, durante os tempos medievais ampliou seu poder por toda a Alemanha central e passou a governar a Áustria. Durante séculos, os Habsburgos foram apenas mais uma das dinastias europeias rivais, ao lado dos Luxemburgos, dos jagiellonianos e de muitos outros. Mas, com sorte, um pouco de guerra e muitos e muitos casamentos acabaram absorvendo a Borgonha, os Países Baixos e muitos pontos e nacos da Europa Central. Acima de tudo, a partir de 1438 e por quase
exatamente trezentos anos, os Habsburgos forneceram todos os sacro imperadores romanos, esses aspirantes a ser um césar alemão. Em poucos anos, perto do fim do século XV, adquiriram suas terras espanholas e húngaras e expandiram-se também para a Itália, tornando-se a mais importante fonte de poder na Europa, fora o papado. Porém, o governo dos Habsburgos não era absolutismo pleno. Brotara do emaranhado da política de famílias da Idade Média e nunca desenvolveu uma teoria de poder estatal modernizante em qualquer sentido. Seu quartel-general imperial, as vastas amplidões de pedra do palácio Escorial em Madri e os grandiosos palácios posteriores de Viena não tinham apoio firme no bolso ou na imaginação de alemães, espanhóis ou holandeses, como os Bourbons tinham entre os franceses. Os Habsburgos lutavam em tantos fronts e através de tantos territórios que nunca estabeleceram uma ideia imperial única. No século XVI, a linha dos Habsburgos se dividia na monarquia espanhola, que, com seu império americano e seu controle da Holanda, era a mais importante, e a linha austro-húngara, que se espalhava pela Europa Oriental. Por consequência, o governo dos Habsburgos nunca foi uniforme: o poder imperial na Nova Espanha era uma proposta diferente de seu similar na Holanda. O papel do imperador na Hungria contestada pelos turcos era mais direto do que nas cidades e nos estados alemães cujos “eleitores” e príncipes o elegiam. O domínio dos Habsburgos era uma salada de poder político e militar, raramente estável do ponto de vista financeiro, e tinha um terrível custo genético. O princípio de infindável endogamia na família, para manter suas possessões, demonstrou o sentido do tabu do incesto — um alto preço em crianças mortas e adultos deformados ou incapazes. A esquisitice física dos últimos Habsburgos, de olhos saltados, com imensas mandíbulas inferiores e lábios salientes, foi bem registrada pelos mais bravos pintores da Corte. O pior linha talvez tenha sido o infame Carlos II, Espanha, que babava, se julgava pelo diabo, era da incapaz de mastigar, gostava de observar os da corpos exumados dos parentes e erapossuído — talvez felizmente — impotente. Sua morte, em 1700, pôs fim a um ramo da família, gerou a Guerra da Sucessão Espanhola, seguida em 1740 pela Guerra da Sucessão Austríaca, quando esse ramo se extinguiu. Isso mostra como a política dinástica era frágil ainda no século XVIII, embora as duas guerras na realidade tivessem menos a ver com a Espanha ou a Áustria do que com um esforço para conter o exemplo mais vigoroso e expansivo do absolutismo europeu, a monarquia dos Bourbons na França. Os Bourbons tinham surgido como uma linha júnior da antiga dinastia capetiana, cujas raízes remontavam à Paris dos anos 800. Tinham vindo de Navarra (mais ou menos o País Basco de hoje, na fronteira franco-espanhola) e estavam do lado protestante, huguenote, durante as guerras francesas de religião, que terminaram em 1598. O primeiro rei Bourbon da França, Henrique IV, foi o primeiro a reconverter-se ao catolicismo, tendo supostamente comentado que Paris valia uma missa, mas acabo sendo assassinado. O verdadeiro fundador do absolutismo bourbonista foi o cardeal Richelieu, ministrochefe supremo da França por duas décadas, a partir de 1624. Richelieu fora soldado antes de ingressar na Igreja, em parte para proteger os interesses de família, e chegara ao poder através dos perigosos corredores de uma corte que estava nas mãos da mãe do jovem rei Luís XIII, Marie de Médicis, antes de tornar-se assessor indispensável e ministro do próprio monarca. A estratégia de Richelieu era criar uma autoridade única e vigorosa na França, destruindo qualquer oposição interna — mandou demolir os castelos dos aristocratas e esmagar os huguenotes —, enquanto ampliava a posição externa da França contra os Habsburgos. Sob Richelieu, a Guerra dos Trinta Anos, que tinha sido essencialmente uma guerra de religião, arrasando Alemanha enquanto contra católicos, transformou-se guerra sobre o papel daaFrança na Europa. Osprotestantes Habsburgos,lutavam na Espanha e na Alemanha, pareciam ternuma a França cercada, e a família tinha ambições de receber a aprovação papal como uma espécie de monarquia europeia universal. Por isso, empurrar os Habsburgos para trás até quase arruiná-los pôs a França recém-unificada
numa posição crucial de maior potência da Europa. Como resultado disso, depois da morte de Richelieu, quando o cardeal Mazarino, nascido na Itália, sucedeu-o como ministro-chefe, o caminho estava aberto para Luís XIV, o “Rei Sol”, erguer-se no horizonte com fulgor especial. Luís reinou de 1643 a 1715, um período incrivelmente longo de 72 anos, embora seu governo pessoal só tenha começado em 1661, depois da morte de Mazarino. Por essa época, a França tinha crescido — para o sul, para o leste e para o norte. Richelieu estabelecera um novo sistema de cobrança de impostos, centralizara o poder na corte e promovera um incipiente desenvolvimento industrial, de canais a obras de tapeçaria. Sob Richelieu e Mazarino, fortalezas foram construídas para proteger a nova França e planos ambiciosos foram incubados para um império francês na América do Norte. Quando passou a governar diretamente a França, Luís deu continuidade à política de implacável hostilidade contra os Habsburgos, pois decidira estabelecer-se como o dominante príncipe europeu. A corte, com seus complicados rituais públicos, suas festas suntuosas e sua bisbilhotice escandalosa, pasmava as pessoas instruídas da Europa. Logo se veria que monarcas absolutos podiam ter praticamente qualquer coloração religiosa — luteranos e calvinistas na Alemanha e na Escandinávia, ortodoxos na Rússia, católicos na Espanha e em Portugal. Apesar da reputação posterior da Escandinávia como pioneira do pensamento democrático, a Dinamarca-Noruega (sob Frederico III, nos anos 1660) e a Suécia (sob o governo pessoal de Carlos XI, a partir de 1672) conheceram formas iniciais e agressivas de absolutismo. Elas tinham uma longa tradição de reis poderosos e conselhos de Estado incompetentes ou divididos e com frequência se envolviam em guerras sangrentas, que tendiam a concentrar poder nas mãos de governantes que também fossem comandantes militares eficientes. Nessa época, depois dos rebuliços do seu governante mais conhecido, Gustavo Suécia ou dava impressão de que emergiria como oa principal potência do o norte da Europa, emAdolfo, vez da aPrússia da aRússia. Nesse último país, Pedro, Grande, que assumiu poder em 1682 e governou por quase 43 anos, basearia suas próprias mudanças radicais na mesma mistura de centralização, modernização antifeudal e racionalização introduzida na França. Para Luís XIV, o preço das fortalezas e dos exércitos extras era a tributação mais alta, e, em 1649, Paris chegou perto de uma primeira revolução francesa depois de uma segunda rodada de aumentos conhecida como Fronde (o nome se refere às catapultas usadas por crianças para atirar pedras nas casas dos ricos). Um sistema de guerra baseado em blocos de soldados cuidadosamente treinados disparando mosquetes, assim como no uso de canhões e fortalezas, tinha uma poderosa propensão em favor de uma autoridade tributária centralizada, mas esta por sua vez dependia de arrochar com eficiência a cidade e o campo sem provocar revoltas constantes. A mecânica básica de cobrar impostos, impor leis e manter a ordem com bico de pena e mensageiros montados era difícil de administrar. Os monarcas absolutos tendiam a construir seus sonhos em pedra — em Versalhes, São Petersburgo e Potsdam — ao mesmo tempo que fantasiavam que sua autoridade se estendia por centenas de quilômetros de terras de camponeses, florestas e estradas lamacentas e mais além. Afinal, é claro que grande parte da Europa ainda era uma complicada colcha de retalhos de territórios fora do alcance do governo efetivo dos grandes monarcas, que sangravam sua autoridade em guerras infindáveis uns contra os outros. * ** O poder monárquico desconfortável vindo século para a guerra absolutismo. A rigor,
nunca esteve inteiramente seguro, mensagem que logo se fez ouvir num volume da direção do Reino Unido. A Grã-Bretanha, por ter resvalado durante aquele civil e para o regicídio, por vezes é vista em separado da idade europeia do essas ilhas setentrionais estavam intimamente ligadas às tensões e aos dilemas do
continente. Elas tinham caído sob controle de outro alastramento dinástico, dessa vez uma casa real escocesa que, na forma do nosso Jaime inimigo do tabaco, tinha subido ao trono inglês por sucessão. Os Stuarts, como os Bourbons e os Habsburgos, tinham surgido de uma relativa obscuridade medieval — no caso deles, durante os anos 1300 — fornecendo nove monarcas, alguns sábios, outros tolos, para o se pequeno país. Uma vez em Londres, os Stuarts foram sugados no turbilhão das rivalidades dinásticas europeias, tentando fazer casamentos e alianças com os Habsburgos e com os Bourbons e intervindo militarmente — embora sem sucesso — nas guerras continentais. Os Stuarts logo mostraram o que podia acontecer quando um pretenso absolutista era incapaz de levantar o dinheiro necessário para uma guerra. Charles I não tinha nenhum Richelieu. Seus favoritos eram no geral menos de eficazes visionários. Ao contrário dos Estados Gerais deSeu Luíssistema XIV, ode principal Parlamento Charlese I,menos o inglês, recusava-se obstinadamente a ser ignorado. cobrança pessoal de impostos não era baseado numa rede de coletores profissionais, mas em leis medievais já meio esquecidas e que em toda parte causavam ressentimento. Na França, foi possível pôr fim às guerras religiosas internas refreando os protestantes; na Escócia e na Inglaterra, isso foi impossível. As consequências involuntárias desse fracasso dinástico seriam imensas, não apenas para a Grã-Bretanha, mas também para a história da Europa e da América, porque apontaram o caminho para um novo tipo de governo. Na Escócia, onde Charles nasceu, uma revolução presbiteriana estava em pleno curso, substituindo uma igreja de bispos por uma de congregações autônomas sob os “anciãos” da igreja. Na Inglaterra, o antigo parlamento revelara-se cada vez mais militante durante o reinado de Jaime I, pai de Charles, e era teimoso e difícil quando se tratava de autorizar tributos ou de acompanhar a errática política externa de Charles. Uma longa, embora talvez meio mítica, tradição de antigos “direitos” ingleses, que remontava a uma memória folclórica da época dos anglo-saxões, foi invocada contra a tirania monárquica. Em 1629, Charles suspendeu o parlamento e governou onze anos diretamente através dos próprios ministros. Mas, outra vez, na falta de um sistema de tributação direta, lutou por dinheiro e lutou para impor sua vontade em questões religiosas — para qualquer rei, uma severa humilhação. Quando a Escócia se rebelou contra suas políticas nos termos da Convenção Nacional durante os anos de 1638-1639, Charles foi incapaz de controlar seus súditos enfurecidos. Quando enfim convocou o parlamento inglês outra vez, em 1640, porque precisava conseguir dinheiro, os parlamentares demonstraram uma hostilidade obstinada e insistiram em reestabelecer seus direitos. Charles os dispensou, mas, em seguida, enfrentou outra rebelião escocesa bem-sucedida, que dessa vez chegou ao norte da Inglaterra. Derrotado pelos próprios súditos e diante de outro levante na Irlanda, Charles foi obrigado a tentar mais uma vez acertar-se com o parlamento inglês. Entretanto, a essa altura, o parlamento já estava empenhado na reforma política. A Câmara dos Comuns insistia para que no futuro apenas os parlamentares, e não o rei, pudessem dissolvê-lo. Charles, perdendo o respeito — e também quase qualquer vestígio de autoridade —, falhou ao tentar prender os parlamentares mais importantes e retirou-se da capital, que então se convertera em território inimigo. De Nottingham, voltou a erguer seu estandarte contra os parlamentaristas e a guerra civil enfim começou no verão de 1642. Nos três anos seguintes, os exércitos de Charles foram vastamente derrotados pelas tropas mais disciplinadas e bem chefiadas do Exército Novo de Oliver Cromwell. Houve uma pausa, depois a luta continuou. Uma complexa série de campanhas, envolvendo escoceses protestantes, irlandeses católicos, a nobreza inglesa, exércitos de cidadãos e os regimentos cada vez mais profissionais de Cromwell, assim como as bandas de cidade de voluntários ingleses, culminou na vitória total dos exércitos do parlamento.
Apesar dos protestos de seus irmãos monarcas, Charles foi julgado e decapitado em 1649 — o mesmo ano em que Luís XIV enfrentou a Fronde em Paris. Charles acreditava com muita convicção no Direito Divino dos reis, como qualquer Bourbon ou Habsburgo. Não era assim que se esperava que o Direito Divino, ou o absolutismo moderno, funcionasse. Àquela altura uma Commonwealth britânica tinha sido decretada e conseguiu governar com habilidade durante alguns anos, reconstruindo uma poderosa marinha e restaurando a ordem, antes de degenerar na quase monarquia pessoal de Cromwell. O exército dos Roundheads do Lorde Protetor mergulhou em discussões de democracia e reforma agrária mais radicais do que qualquer coisa imaginada pelo próprio Cromwell ou pelos proprietários de terra e generais que constituíam o núcleo da república. Libertários revolucionários, que capturavam e aravam terras privadas e estabeleciam comunidades idealísticas, chamando-se a si próprios de “Diggers”, sugeriram que a revolução política fosse seguida de uma social. Foi demais para a nova junta militar da Grã-Bretanha — como ela poderia ser razoavelmente designada, depois que Cromwell também dissolveu o parlamento —, e os radicais foram suprimidos. Não seria nem de longe a última vez que uma revolução otimista, transbordante de esperança e radicalismo, degenerava em ditadura militar. O governo de Cromwell perdeu a afeição tanto de radicais como de boa parte da gente comum, que achava que suas liberdades ficaram ainda mais reduzidas do que na época dos Stuarts. Decretos puritanos banindo feriados tradicionais, incluindo o Natal, e diversões populares, como o teatro, agradaram aos devotos e desagradaram ao resto. Depois da morte de Cromwell e de um intervalo muito breve em que seu filho tentou herdar sua autoridade, a Commonwealth foi extinta quando os regimentos marcharam para Londres e convidaram o filho de Charles, Charles II, a voltar do exílio Holanda. Numa retornar atitude sensata, o novodo reimodelo limitou político a desforra apenas Mas aos regicidas óbvios e logo a vida na britânica pareceu a uma versão europeu. não foi bem assim. O parlamento nunca mais voltaria a calar-se, e Charles percebeu que teria de buscar a popularidade e a aprovação pública de uma forma que os monarcas franceses e Habsburgos teriam desdenhado. Se palácio de tamanho modesto ficava espremido entre as ruas e a beira do rio de Londres, vivia repleto de suplicantes e ociosos e ele aparecia em público regularmente — em nítido contraste com o glorioso isolamento de Luís em Versalhes, longe de Paris. No continente, a revolução britânica tinha sido vista como uma aberração, produto da estranha circunstância da fusão de uma religião mestiça e de uma dinastia incompetente. Mazarino e Luís XIV, já mais confiantes em seus papéis, tinham uma opinião muito negativa dos Stuarts de Londres. Estiveram preparados para fazer acordos com a república de Cromwell e deixaram de apoiar a restauração de Charles II quando convinha à França fazer outros acordos. Muitos radicais britânicos, amargamente desapontados com a junta cromwelliana e depois com os Stuarts, emigraram para as colônias americanas, onde tinham esperança de formar comunidades exclusivas e “puras” de agricultores livres e tementes a Deus. Entretanto, a revolução britânica não tinha terminado. Bastaria apenas mais um Stuart incompetente para acabar de vez, para sempre, com a monarquia irrestrita naquelas terras. Grã-Bretanha invadida Mas ela estava ou não estava? Os rumores sobre a rainha, uma italiana de olhos escuros que sofrera muitos abortos, eram venenosos. A própria filha do rei, a princesa Ana, escreveu para a irmã mais velha na Holanda: “Não consigo deixar de pensar que a grande barriga da esposa é um tanto suspeita. É verdade que a mulher é muito grande, contudo, parece maior do que nunca, o que não é comum.” Uma
semana depois, ela voltou a escrever, dizendo que, com todas as fofocas e piadas sobre uma falsa gravidez, a rainha, “para convencer o mundo, deveria deixar que eu ou algumas de minhas amigas apalpássemos sua barriga; mas, muito pelo contrário, sempre que se fala que ela está grávida, a rainha parece ter medo de que alguém encoste nela. E, sempre que estou no quarto quando ela se despe, a rainha vai para o quarto ao lado vestir sua camisola.”4 Foi esse falatório que acabou empurrando a GrãBretanha numa direção totalmente diferente. A rainha grávida era Maria de Módena, mulher de Jaime II da Grã-Bretanha, uma Stuart católica que queria que os católicos fossem tolerados, e talvez mais do que tolerados, no país protestante do marido. As filhas do primeiro casamento dele com uma inglesa, a princesa Ana, e sua irmã mais velha, Maria, eram protestantes. A segunda mulher, italiana, não conseguira lhe dar um filho — até então. Em 10 de unho de 1688, a rainha deu à luz um menino, James Francis Edward Stuart. Lançaram-se fogos de artifícios e acenderam-se fogueiras. Taças e pratos comemorativos foram encomendados e quadros pintados, exatamente como ainda acontece quando há um nascimento na família real britânica. Com a diferença de que, dessa vez, a maledicência nacional continuou, espalhando-se. O chamado herdeiro, dizia-se, não era filho da rainha, mas um substituto, levado de forma clandestina para a câmaramaternidade num aquecedor de cama para garantir que um católico herdasse o trono. Na realidade, o nascimento fora assistido por um pequeno grupo de testemunhas, que abarrotaram o quarto e os corredores vizinhos. No entanto, nem mesmo isso foi suficiente para dissipar o boato. Apenas seis meses depois, o Coldstream Guards, um dos regimentos mais empavonados da GrãBretanha, recebeu ordem para deixar seus postos na guarda do rei, em seu palácio de Whitehall. A rigor, todos os soldados ingleses de Londres receberam ordem para sair, o Life Guards para St Albans e outros para Sussex. Em seus lugares marchou um exército invasor, a excelente infantaria da Dutch Blue Guard, com seus uniformes azuis e amarelo-alaranjado. Eram a ponta de lança de uma imensa força invasora, duas vezes maior do que a Armada Espanhola. A frota holandesa de 53 navios de guerra e cerca de quatrocentos navios de provisões tinha vencido a Marinha Real, navegando primeiro para a costa da Inglaterra e depois aproveitando uma mudança de vento — o “vento protestante”, como o povo dizia — para seguir em direção oeste, desembarcando em Torbay, Devon. Os holandeses tinham surpreendido as frotas britânica e francesa cochilando. A muitos quilômetros de distância dos defensores ingleses mais próximos, quase quarenta mil soldados tinham desembarcado, unto com cinquenta canhões, voluntários e cavalos extras. Estavam bem equipados, com tudo aquilo de que um exército moderno precisava, desde mosquetes e pistolas recém-fabricados até carretas de suprimento, bombas e mesmo carrinhos de mão. E era uma força invasora verdadeiramente internacional. O monarca holandês Guilherme de Orange chefiava, ao lado de alguns renegados escoceses e ingleses, uma força composta de alemães, suíços, suecos e até lapões. Só para mostrar que Guilherme era um conquistador do mundo, havia duzentos negros vindos de plantações de cana-de-açúcar na América, usando turbantes e penas. O exército marchara primeiro para Exeter e em seguida para o Tâmisa, chegando a Henley e a Windsor, lugar do antigo castelo real. Enfim, no momento em que o rei Jaime se preparava para se deitar, às onze da noite de 17 de dezembro, chegou ao St James Park, bem no meio de Londres. Ele não conseguia acreditar no que estava vendo. Embora Jaime tivesse um exército maior e contasse com o apoio da maioria dos proprietários de terra do sul, o fato é que havia semanas sofria de um abjeto estado de pânico. Sua filha, a loquaz princesa Ana, era uma das pessoas que o tinham abandonado em favor de Guilherme e da irmã, Maria. Assim como a melhor amiga de Ana, Sarah Churchill, mulher do duque de Marlborough (as duas eram tão íntimas que tratavam uma à outra por apelidos — Senhora Morley e Senhora Freeman). O regime desmoronava a
partir de dentro. Jaime já tinha feito uma tentativa de fugir para a França, seis dias antes, deixando o Grande Selo cair de propósito do seu barco dentro do Tâmisa. Fizera isso porque nenhum parlamento era legal sem ele e esperava, dessa maneira, provocar uma crise constitucional. Provocou, mas a Câmara dos Lordes, pragmática como sempre, formou um governo provisório, até que Jaime finalmente foi despachado pelos holandeses para Rochester. Poucos dias depois, ele viajou para a França, com os guardas instruídos a deixarem-no partir. Pelos próximos meses, todos os regimentos britânicos tiveram ordem para não se aproximarem menos de 32 quilômetros de Londres enquanto holandeses e alemães instalavam seus acampamentos dentro da capital, em Kensington, Chelsea e Paddington. Os britânicos em geral não fazem muito caso dessa invasão. Mesmo pessoas muitos instruídas acham que a Inglaterra não foi invadida desde a chegada dos normandos, em 1066. Ficou-se com a impressão de que Guilherme foi mais ou menos convidado para solucionar uns probleminhas constitucionais. Não foi bem assim. Guilherme tinha feito uma enorme aposta militar e pessoal, porque os protestantes holandeses estavam desesperados. Se Jaime não tivesse se acovardado e fugido ou, se o vento mudasse um pouco de direção, Guilherme poderia ter perdido tudo. Em vez disso, com a esposa, Maria, confidente e irmã mais velha da princesa Ana, ele se tornou parceiro da única monarquia conjunta da história britânica moderna. Contudo, o reinado de Guilherme e Maria ainda não estava garantido. Uma grande tentativa de recuperar a coroa para os Stuarts e para o catolicismo surgiu na Irlanda (e, com menos intensidade, na Escócia), e só foi frustrada no campo de batalha. Portanto, não foi nem mesmo uma “revolução sem derramamento de sangue”. Mas 1688 foi de fato um momento decisivo da história europeia, porque estabeleceu um modo diferente de governar. de Orange formadolhe seucontou exército e sua sobre marinha e feito aquela aposta, porpareceu-lhe achar que nãoGuilherme tinha escolha. Quandotinha sua cunhada a fofoca a gravidez da rainha Maria, óbvio que a sucessão britânica estava decidida e a corte londrina permaneceria católica. Era uma notícia terrível para a Holanda protestante, com seus aliados alemães do norte, deixando-os expostos ao mais perigoso dos inimigos, Luís XIV. O Rei Sol os estava espremendo. Tinha aumentado drasticamente os impostos sobre produtos holandeses exportados para a França e proibido a importação de arenques em conserva dos quais tantos pescadores e comerciantes holandeses dependiam para sua sobrevivência. Confiscara trezentos navios mercantes holandeses. Seus exércitos pareciam imbatíveis. Os holandeses tinham perdido toda esperança anos antes, porque Charles II não correra para socorrêlos. Mas a sucessão de Jaime II, um católico como Luís, agravou ainda mais suas dificuldades. A chegada do filho, a despeito de o menino ter sido levado clandestinamente para a câmara-maternidade ou não, foi o golpe definitivo. Ou Guilherme de Orange invadia a Grã-Bretanha e neutralizava a ameaça de uma aliança britânico-francesa, ou via seu país protestante e mercantil, transbordante de empreendimentos comerciais e de ciência, com uma classe média próspera, ser estrangulado. Por isso lançou uma invasão, 5 que já foi descrita como “organizada contrariando todo bom senso e toda experiência profissional.” Como a historiadora Lisa Jardine mostrou definitivamente, o que ocorreu em 1688 só aconteceu porque os holandeses resolveram que seria assim, e não porque os britânicos pediram que acontecesse. Mas suas consequências foram muito além de tudo que Guilherme pudesse imaginar. Com Jaime fora do caminho e apesar de sua Guarda Azul Holandesa, a posição de Guilherme em Londres não era de todo segura. Estritamente falando, ele era apenas o quarto na linha de sucessão. A maioria dos grandes proprietários de terra sentou-se em cima do muro para ver quem ganhava, antes de se comprometer. O exército e a marinha estavam insatisfeitos, para dizer o mínimo. Depois de ter marchado por Londres, como ele estabeleceria sua autoridade? Reunidas numa Convenção, uma vez que na ausência do Grande Selo não podiam constituir um parlamento, a Câmara dos Comuns e a Câmara dos Lordes discutiram que medidas tomar. Acabaram
simplesmente declarando novos princípios constitucionais enquanto debatiam. Jaime não tinha sido posto para fora, mas abandonara seu país, rompendo, com isso, o contrato. (“Contrato? Que contrato?”, teria perguntado um tradicionalista.) Jaime e seu filho foram removidos da linha de sucessão com base no novo princípio de que eram católicos e de que “pela experiência” tinham demonstrado que eram governantes inviáveis.6 Em seguida, os pares e membros do Parlamento ofereceram a Coroa apenas a Maria, uma Stuart por sangue. Isso, disse Guilherme, era inaceitável. Preferia voltar para casa com a esposa e deixar os britânicos brigando uns com os outros. Diante disso, os membros do parlamento recuaram e anunciaram uma monarquia conjunta, na qual Guilherme, agora Guilherme III, exerceria a autoridade real. Foi uma grande vitória para o holandês — ou teria sido, se a Câmara dos Comuns não insistisse em receber algo em troca. Ela preparou uma Declaração de Direitos. Concordar significaria que Guilherme também concordaria que no futuro nenhum monarca britânico aumentasse impostos ou tivesse um exército permanente sem o aval do parlamento, que ele teria de permitir eleições livres e frequentes e que não poderia ser católico romano. Em comparação com as pretensões absolutistas da monarquia continental, foi uma verdadeira e permanente revolução britânica. Um monarca que não controlava nem o dinheiro nem as tropas e cujos súditos ditavam sua orientação religiosa não era monarca coisa nenhuma. Os parlamentaristas britânicos haviam rejeitado a tirania monárquica de Charles I e a ditadura de Oliver Cromwell. Tinham pouca paciência com os sonhos católico-absolutistas de Jaime, porém também não estavam preparados para se deixarem esmagar pelo tacão de um holandês protestante. Teriam a monarquia, mas em seus próprios termos. E para uma grande potência isso era uma coisa inteiramente nova. A “Revolução Gloriosa” seria a pedra angular da política e do poder britânicos por mais de três séculos. Os direitos e liberdades assegurados pelo parlamento permitiam publicar, discutir, sondar e experimentar. Foi uma resposta a Roma inequívoca e transformadora do mundo. * ** Dela viriam os grandes pensadores do Iluminismo britânico e uma florescente indagação da natureza — aquilo que mais tarde seria chamado de “ciência”. Isaac Newton, que publicou seuPrincipia Mathematica um ano antes de a frota de Guilherme partir para Devon, desfrutou seus melhores anos como figura pública sob a nova monarquia. Como Galileu, estava firmemente convencido da correção do princípio heliocêntrico e, como Galileu, combinava a matemática com experiências práticas numa grande variedade de campos. Produziu o primeiro telescópio de reflexão, por exemplo, para o qual poliu suas próprias lentes. Assim como seus colegas, o químico Robert Boyle, o polímata Robert Hooke — que inventou a palavra “célula” para designar o elemento fundamental da vida — e Christopher Wren, nunca precisou se preocupar com ortodoxias religiosas ou com as atenções da Inquisição. Sob a liderança da Sociedade Real, formada durante o reinado de Charles II, esses pensadores discutiam e disputavam constantemente, mas apenas sobre o significado de suas descobertas, sobre quem tinha inventado o quê primeiro e sobre patentes — não sobre a autoridade divina. Eram parte do que, por algum tempo, foi mais um meio social anglo-holandês do que puramente britânico. Entre os holandeses que logo fizeram a viagem para Londres estava o mesmo Christiaan Huygens que começara a resolver o problema de medir a longitude com um relógio de precisão, o homem de quem a Igreja Católica mantivera Galileu bem afastado.
Galileu era fascinado por microscópios, assim como por telescópios, e, em Roma, em 1624, tinha 7 mostrado a multidão de insetos gigantescos revelados por seu próprio microscópio composto. Em Londres e Leiden, teve-se uma sensação ainda mais forte dos minúsculos mundos novos que iam sendo descobertos quando Hooke, Huygens e o renomado Antonie van Leeuwenhoek olharam por suas lentes e publicaram imagens extraordinárias de piolhos, mofo e outras coleantes e minúsculas criaturas aterradoras. Se Galileu, apesar das ansiedades provocadas pela Inquisição, finalmente foi parar num paraíso cristão, deve ter olhado para baixo e balançado a cabeça em sinal de frustração por ter nascido demasiado ao sul e um pouco antes da hora. E que foi feito, enquanto isso, da terrível fofoqueira Ana, a princesa cujas cartas tinham deflagrado coisas muito maiores do que poderia esperar? No devido tempo, ela se tornou a roliça e imponente rainha Ana. Como os Habsburgos, a última dos monarcas Stuarts tornou-se um símbolo infeliz de fraqueza dinástica: das dezoito ou dezenove gestações, só três não produziram bebês mortos — natimortos, abortados ou mortos logo depois de nascerem. Esse preço terrível, transformado numa tragédia pessoal com a morte na infância dos três sobreviventes (dois deles de varíola), sugere um problema genético profundo. Mas, se Ana não deu à luz um sucessor, seu reinado assinala o verdadeiro nascimento de um país moderno. Em 1707, ela se tornou o primeiro monarca a governar os domínios constitucionalmente unidos de Inglaterra, País de Gales e Escócia — ou, como todos eles ficaram conhecidos, Grã-Bretanha. O parlamento escocês, depois de desastrosas tentativas de criar um império na América Central, tinha levado o país à bancarrota. Aceitando o resgate nos termos ditados por Londres, dissolveu-se a si próprio, com isso criando um único parlamento britânico. Sarah Churchill, amiga da rainha Ana, tornou-se uma das mulheres mais influentes do país, e seu marido, o duque de Marlborough, haveria de conduzir os exércitos britânicos pela Europa, enfim libertando a Holanda dos franceses e repelindo a ameaça católica. Depois disso, a Grã-Bretanha começaria o processo de adquirir o maior império do mundo e, além de sua contribuição original para a política, “moderação” real mais do que “absolutismo”, alcançar também a primeira revolução industrial. Os Bourbons da Índia: de Babur a Bust A história da Índia pode parecer um emaranhado indistinto de nomes confusos e românticos, ocultos em touceiras de material de fonte pouco confiável. Lá atrás, nós a deixamos no meio da confusão política que se seguiu aos impérios dos máurias budistas e à dinastia hindu Gupta, que foi a idade de ouro da arte, da arquitetura e da escrita indianas. Mas a Índia hindu não seria capaz de manter sua dominação política. As mesmas perturbações violentas que abalaram a Europa Oriental, a Ásia central, a Rússia e a China surgiram também na Índia. Os invasores mongóis, vindos no encalço de exércitos turcos muçulmanos, imprimiriam o islã nos territórios setentrionais e dominariam o subcontinente até a chegada dos britânicos. Isso não precisa nos confundir muito. Há paralelos proveitosos entre a história da Europa dos anos 1200 a 1600 e a da Índia na mesma época. Afinal de contas, a imensa península da Europa e a cunha gigante da Índia são duas línguas de tamanho similar que se projetam para fora do continente eurasiano. Durante esse meio milênio, ambas sofreram um longo conflito entre um centro pretenso e as identidades locais ou regionais, e depois uma prolongada luta entre religiões rivais, que impediram que qualquer desses dois subcontinentes alcançasse a unidade política. O pretenso centro da Europa era o papado em Roma, trabalhando em conjunto com o Sacro Império
Romano e outras monarquias católicas. Na Índia, o suposto centro era Déli, sob as dinastias turcomuçulmanas de Khalji e Tughluq, cuja dominação foi contestada tão vigorosamente quanto a de Roma — que, por sua vez, enfrentou hereges e a revolta protestante, enquanto as dinastias muçulmanas de Déli foram contestadas por reis hindus e povos rebeldes do oeste, do centro e do sul. Os muçulmanos arruinaram muitas das glórias da civilização hindu, esmagando templos e objetos de arte antigos, assim como os protestantes destruíram mosteiros e objetos da arte religiosa católica. Se uma continha países tão diversos como Escócia, Lituânia, Inglaterra, Polônia e Hungria, a outra tinha Malwa, Orissa, Vijayanagara, Jaunpur e os estados Rajput. Dependendo da luz sob a qual são examinadas, até parece um pouco que elas são a mesma coisa: pode-se sem dúvida comparar a elaborada arquitetura de pedra esculpida da Índia durante esse período com as catedrais e os castelos de governantes europeus. E a Índia oferece indivíduos tão idiossincráticos quanto Henrique VIII da Inglaterra ou um papa dos Bórgias, e tão bem lembrados quando esses. Houve um grande governante muçulmano de Déli, Ala-ud-din, com regimentos de soldados montados em elefantes e cavalaria turca, que avançou profundamente no sul, cobrando tributos faiscantes — quase uma caverna de Aladim repleta deles — e que repeliu até os mongóis. Houve o poeta, intelectual, patrono das artes e matemático Muhammad bin Tughluq, sultão de Déli, cujo jeito feroz de tratar os rebeldes e aqueles que lhe desagradavam tornou-se lendário. Um desses foi esfolado vivo, depois teve a pele recheada de arroz misturado com sua própria carne picada e servida para a família dele — comportamento capaz de rivalizar com o daquele príncipe e guerreiro cristão chamado Vlad. A história indiana da Idade Média até o início dos tempos modernos não é, portanto, menos extravagante do que regionais, a europeia. nela camponeses um desfile comparável deecercos, marchas, brigas violentas e rebeliões sobEncontramos o qual labutavam empobrecidos comerciantes urbanos pesadamente tributados. O que não encontramos é uma dissidência popular do mando de reis e príncipes. Há muita filosofia e ciência natural indianas, mas nenhum Iluminismo indiano, nem muita experimentação política (nesse período). Pelo menos é o que achamos. Infelizmente, a história indiana fora das cortes muçulmanas é um tanto mal registrada. Um historiador moderno lamenta: “Sem ser animada pelas narrativas bisbilhoteiras tão do gosto dos escritores muçulmanos, a história contemporânea da Índia hindu ainda precisa ser laboriosamente deduzida do fraseado estéril e das enumerações otimistas dos panegiristas reais.” 8 No entanto, o hinduísmo não poderia ser erradicado, fosse pelos imames muçulmanos ou mais tarde pelos missionários cristãos. Governantes muçulmanos derrotaram governantes hindus, porém raras vezes tentaram oprimir o próprio hinduísmo ou qualquer outra religião. Houve abundantes atrocidades individuais, mas não os cruéis incêndios em massa, as conversões forçadas, a tortura de hereges ou as guerras de extermínio que a Europa viveu. E, ao contrário de seu equivalente europeu, a navegação indiana era quase toda costeira e baseada no comércio, não na guerra ou na exploração. Houve frotas belicosas, particularmente sob a dinastia Chola, do sul da Índia, durante o período medieval, quando frotas indianas chegaram à China, mas não durante séculos. Em terra, os governantes indianos de vez em quando também reuniam exércitos para avançar em direção norte através do Afeganistão, para a Pérsia, ou em direção leste, para a China, contudo nunca desenvolveram as ambições globais de Portugal, da França ou da Grã-Bretanha, que estabeleceram pontos de apoio na Índia. A história indiana forma um todo com a ascensão do grande império mongol, mais ou menos na mesma época da Reforma na Europa e da chegada dos espanhóis ao Peru. Isso começa como uma assombrosa história de aventura nas áreas remotas e inabitadas da Ásia central e termina como uma lição sobre os perigos da monarquia absoluta.
* ** Zahir-ud-Din Muhammad, em geral conhecido pelo apelido de “Tigre”, ou Babur, o fundador da dinastia mongol, era descendente de Gêngis Khan e de Tamerlão. Babur nasceu no Uzbequistão em 1483, o mesmo ano em que nasceram Rafael e Martinho Lutero. Filho de um modesto governante local, alcanço sua primeira grande vitória militar, a captura de Samarcanda, quando tinha apenas catorze anos. Lutando contra deserções, revoltas e a ameaça representada por inimigos muito maiores, Babur lentamente construiu sua base de poder no Afeganistão antes de desabar sobre o norte da Índia com a nova arma da época, o mosquete. Seus exércitos derrotaram a dinastia muçulmana Lodi, capturando Déli em 1526, e em seguida esmagaram também os orgulhosos governantes hindus Rajputs. Ao morrer, em 1531, deixou como legado jardins primorosos (como o de Cabul, onde está sepultado), a primeira autobiografia de um governante muçulmano, a reputação de construir colunas com as cabeças de inimigos decapitados e uma notável dinastia. O problema das dinastias, porém, é que produzem membros fracos no meio dos fortes. O filho de Babur perdeu o império e depois o reconquistou, mas foi seu neto, Akbar, o Grande, que de fato amplio a dominação dos mongóis. Akbar, mais ou menos contemporâneo de Elizabeth I, dos primeiros Tokugawas e de Ivã, o Terrível, governou durante meio século. Suas vitórias militares, que incluíam grandes ataques de elefantes e canhões, estendeu o tamanho do império para cerca de cem milhões de habitantes, em comparação com os cerca de cinco milhões de ingleses e dos quarenta milhões de europeus da época. Essas vitórias costumavam ser muito sangrentas, tão terríveis quanto qualquer coisa que Ashoka tinha perpetrado. No cerco de Chittor, fortaleza hindu dos Rajputs, em 1567-1568, os soldados optaram pela morte tradicional do suicídio, enquanto as mulheres e crianças morreram no fogo que elas próprias atearam para não serem capturadas vivas. Apesar disso, trinta mil civis sobreviveram o suficiente para serem massacrados pelas forças de Akbar. Mas, como Ashoka, Akbar é mais lembrado por suas qualidades pacíficas do que por sua selvageria militar. Akbar foi um caso menos extremo do que Ashoka. Mantinha um vasto exército, sustentado por pesados tributos pagos pelos camponeses, porém também criou uma burocracia eficiente, relativamente justa, e tinha uma mente tolerante em questões religiosas. Depois de fundar uma nova capital, Fatehpur Sikri, combinando deslumbrantes estilos arquitetônicos islâmicos, indianos e persas, Akbar promoveu debates entre rivais religiosos, aos quais assistia sentado. A mistura de colunas e arcos de estilos diferentes refletia-se na mistura de visões de mundo, com muçulmanos sunitas e xiitas, sufis e hindus, jainistas e siques, e até cristãos portugueses trocando ideias sobre a natureza de Deus. Parece que Akbar jamais teve intenção de converter-se a nenhuma crença. O que ele pretendia era juntá-las para formar alguma coisa nova, compatível com seu império de múltiplas crenças. No fim, essa “alguma coisa” talvez não passasse mesmo de uma leal e piedosa admiração pelo próprio Akbar. Assim como a nova capital — com falta de água e excessiva proximidade de reinos rebeldes —, isso não sobreviveu, exceto como a sempre lembrada possibilidade de uma política indiana mais tolerante. Akbar foi sucedido pelo filho, Jahangir. Esta breve declaração deve vir acompanhada de uma admissão: o hábito mongol de filhos em revolta contra pais e de filhos em luta contra filhos cria uma história complicada demais para ser relatada aqui. Os mongóis eram tão maus quanto os plantagenetas o os otomanos. Basta dizer que Jahangir, outro homem tolerante em matéria de religião e grande patrono da arte e da arquitetura, era alcoólatra e governou junto com a esposa, bem mais esperta, que mandou cunhar
moedas com seu nome. Jahangir foi, no devido momento, derrubado por um dos filhos, que também se livrou dos irmãos e reinou de 1628 a 1658 como o xá Jahan. O xá Jahan será sempre lembrado, pois deixou como legado o mais bem-sucedido emblema o arquitetônico da história mundial. Sua esposa, Mumtaz Mahal, morreu ao dar à luz o 14 filho do casal. A morte da mulher o levou, em seu luto, a encomendar o edifício mais impressionante que a Índia já viu, o Taj Mahal. Flutuando ao amanhecer ou ao anoitecer, nos arredores da cidade de Agra, sua luminosa beleza supera as reproduções estereotipadas que aparecem em restaurantes e anúncios no mundo inteiro, impondo-se até mesmo à esparramada cidade industrial que agora o cerca. Esse monumento fundamentalmente simples ao amor conjugal é também uma prova da excessiva magnitude que a dinastia mongol era capaz de empregar na época. A mania de mármore do xá Jahan materializou-se na forma de belos edifícios espalhados por Déli, Agra e outras cidades, causando espanto aos observadores contemporâneos. Essa era outra coisa que o absolutismo do século XVIII sabia fazer bem. Mas seria razoável juntar os mongóis na Índia e seus governantes europeus contemporâneos sob o mesmo rótulo de “absolutismo”? A dominação mongol tinha raízes religiosas e filosóficas bem diferentes das monarquias europeias ou russa. Também não houve um Iluminismo indiano paralelo, apesar das experimentações religiosas de Akbar. Contudo, os mongóis se viam como centralizadores e modernizadores, conferindo nova coerência ao subcontinente. Os primeiros mongóis eram intelectualmente abertos e curiosos. Além disso, europeus instruídos da época, em particular observadores franceses, tinham aguda consciência dos mongóis como uma dinastia paralela, da qual poderiam ser tiradas lições proveitosas. Como em São Petersburgo o Versalhes, o poder mongol mobilizava um imenso volume de mão de obra e de recursos para criar épicos em pedra, destinados a assombrar. Ainda assim, os mongóis eram símbolo — mesmo na Europa — de extravagância monárquica. E apesar da constante ampliação de seus domínios imperiais, do poder de seus exércitos e da opulência de sua corte, eles começavam a dar sinais de que as dinastias também envelheciam, inevitavelmente. À insolente exuberância de Babur seguiram-se a jovial curiosidade intelectual de Akbar, o declínio de Jahangir e agora o dispendioso apego do xá Jahan a grandiosos projetos de construção. Assim como se costuma dizer que as corporações modernas que constroem sedes espetaculares, com fontes e estátuas na frente, estão condenadas ao fracasso, teria sido o Taj Mahal, apesar de toda a beleza, o início de um declínio? E haveria alguma coisa inerente à estrutura do absolutismo que tornava esse declínio inevitável? Era o que as pessoas, já naquela época, se perguntavam. As comparações saltavam à vista, porque a dinastia mongol chegou ao auge justamente quando a era do absolutismo começou na Europa. O Taj Mahal foi concluído em 1648. Os arquitetos de Luís XIV iniciaram a grande expansão de Versalhes doze anos depois. Pedro, o Grande, tornou-se governante único da Rússia no momento em que o império mongol atingia seu tamanho máximo. E o reinado do último imperador mongol realmente importante, Aurangzeb, coincidiu com a chegada de Frederico I como rei da Prússia e com o início da dinastia Bourbon na Espanha. François Bernier, que foi médico pessoal de Aurangzeb, escreveu uma carta para Jean-Baptiste Colbert, ministro de Luís, sobre a riqueza e o luxo espantosos da corte mongol, mas advertiu que o sistema de taxas e impostos sem fim cobrados dos camponeses indianos reduzia-os à escravidão e dificultava a melhoria da terra: pessoas que nada tinham a ganhar no futuro não se sentiam motivadas a consertar canais ou trabalhar com mais afinco.9 Aurangzeb tinha começado a carreira como todos começavam, matando um irmão depois de uma guerra de sucessão e do encarceramento do pai. Os europeus estavam muito curiosos: o poeta inglês John Dryden escreveu uma peça sobre “Aureng-zebe” em 1675, fazendo do piedoso muçulmano um herói. Mas
o Aurangzeb real arruinaria os mongóis. Seu império abrangeria quase todo o subcontinente indiano. Tinha algumas das virtudes do governo absolutista — um único sistema jurídico, estradas bem mantidas, e fortalezas robustas, um sistema padronizado de pesos e medidas, cobrança de impostos relativamente eficiente, comércio cada vez mais intenso (e não menos com os europeus) e um grande exército permanente, além de manter registros. Mas ficou cada vez mais opressivo. Aurangzeb tinha dado as costas à atitude tolerante dos primeiros mongóis, incluindo o pai e o irmão trucidado. Decretou a proibição islâmica ao álcool, à dança e ao registro escrito da história. Demitiu os artistas da corte, cujas delicadas miniaturas eram uma das glórias da cultura indiana. Instituiu um sistema de censores e permitiu que suas tropas profanassem ou destruíssem templos hindus. Num episódio famoso, mas contestado, os músicos da corte, gemendo e chorando, organizaram uma enorme cerimônia fúnebre com vinte féretros: quando Aurangzeb perguntou o que era aquilo, responderam-lhe que, como ele tinha matado a música, estavam “enterrando a música”. “Pois que a enterrem bem fundo”, foi sua resposta. Como outros autocratas, ele precisava de recursos cada vez maiores para suprir exércitos e a burocracia, porém não conseguiu alcançar o crescimento econômico de outros países mais abertos e voltados para fora. Partiu para a conquista de novos territórios na planície do Decão e no sul da Índia: sua conquista mais famosa foi a da maior mina de diamantes do mundo, em Golkonda, que produziu o Koh-i-Noor, o “Azul Francês” usado por Luís XIV (que reapareceu nos tempos modernos como Diamante Esperança) e muitos outros. A mina era protegida por um muro de treze quilômetros em volta de um morro de granito. O ataque, em 1687, foi prolongado e sangrento, mas acabou fazendo de Aurangzeb o governante maisa rico mundo.costumes Tambémreligiosos. era um dos governantes maismorrendo saudáveis aos do planeta, provavelmente seus do austeros Reinaria até 1707, 88 anos,graças ainda comandando sua perene campanha para subjugar toda a Índia. No fim, governava quase um quarto da população mundial. Contudo, essa longa guerra agora parece uma grande loucura, com um custo maior do que a mania de construção do xá Jahan. Exaurindo o Estado mongol, ela levaria à ascensão da Índia britânica, consequência que Aurangzeb não poderia ter sequer suspeitado. Seu maior inimigo era o Estado hindu Maratha, baseado nos Ghats Ocidentais e ao longo da costa, naquela época ferozmente comandando por um gênio militar chamado Shivaji, que se tornou herói para os hindus e tema de muitos relatos exagerados enquanto encabeçava suas forças irregulares em incursões ousadas. De 1681 a 1707, os marathas e os mongóis travaram uma guerra cujo único equivalente na Europa foram as longas guerras Desta, Daquela e de Outras Sucessões. Ao longo dessa campanha de 26 anos de duração, o já idoso Aurangzeb viajava com uma capital portátil, uma cidade de tendas que, segundo consta, tinha cinquenta quilômetros de circunferência, com meio milhão de seguidores e trinta mil elefantes, despojando a terra de seus produtos por onde passavam e ajudando a espalhar doenças. Como generais que vieram depois, ele descobriu que os exércitos convencionais têm dificuldade para derrotar guerrilhas, e a luta contra os marathas começava a parecer uma guerra sem fim. Espalhava ódio, em vez de afeição, ao islã. O conflito levou o império à beira do colapso e, à medida que os impostos subiam, as revoltas se multiplicavam para muito além do sul. É a melhor ilustração que se poderia desejar dos perigos do absolutismo. Um império impulsionado pela obsessão de um único homem, nesse caso religioso, e baseado na repressão e na expansão territorial não pode durar muito. Osquase paralelos com a Europa fortes:disso, ali também eram sobreeles sucessão e diferenças religiosas, tão longas quanto.são Apesar graças asa guerras frotas oceânicas, se espalhariam por uma área muito maior, incluindo na própria Índia. Quanto a Aurangzeb, ao morrer, teria dito ao filho: “Apareci e desapareço como um estranho. Não sei quem sou nem o que fiz.”
Os mongóis adentrariam o século XIX cambaleando, porém, a essa altura, já estavam exaustos. Quando os primeiros aventureiros da Companhia das Índias Orientais começaram a construir fortes no litoral e a derrotar exércitos locais — juntamente com seus rivais franceses —, encontraram na Índia mongol uma porta carcomida, fácil de derrubar com um chute. Sob um ambicioso arrivista chamado Robert Clive, os britânicos não só irromperam com baionetas e canhões, mas se infiltraram no sistema mongol de cobrança de impostos para a corte de Agra. Isso lhes deu autoridade instantânea numa terra estranha, permitindo-lhes roubar a hegemonia mongol até se livrarem deles por completo. Sob o manto mongol, a Companhia das Índias Orientais cresceu a ponto de tornar-se um governo substituto. E, escondida debaixo das atividades empresariais da Companhia — e quase igualmente surpresa com os rumos tomados pelos acontecimentos —, estava a Coroa britânica. O Império Britânico precisaria começar outra vez do zero, pois do outro lado do mundo seu primeiro império, conquistado nas florestas da América, estava prestes a desmoronar. E não demoraria muito para que o absolutismo na Europa também começasse a se desintegrar. Zozo e Fred Em 20 de junho de 1753, houve um rebuliço nas ruas de Frankfurt. Um francês esquelético, famoso em todo o mundo europeizado, tentava escapar de agentes prussianos. Eles haviam revirado sua bagagem e tinham ordem para atirar caso ele tentasse fugir. Foi uma fuga atrapalhada: sua carruagem presa por numsoldados engarrafamento de carroças de feno. portão da cidade, ele foi reconhecido, paradoficara e levado para verificação. Uma revistaNo corporal raramente é digna. O viciado em nicotina François-Marie Arouet, conhecido pelos pais como Zozo, mas pelo mundo como Voltaire, seu pseudônimo literário, fez um apelo jurando que não podia viver sem rapé, porém sua caixa de rapé foi tomada. Numa estalagem local, Chifre de Bode, para onde o levaram, sua sobrinha, que também era sua amante, quase foi estuprada por um soldado prussiano, enquanto roupas, dinheiro, fivelas de prata e tesouras de ouro lhe foram roubados. Voltaire já tinha sido destituído de sua estimada Ordem do Mérito e da chave de ouro que era sua insígnia de Camareiro da Corte de Frederico, o Grande, da Prússia. Foram os agentes de Frederico que prepararam uma emboscada para o filósofo: o rei queria desesperadamente apossar-se de um livro de poemas e outros escritos que ele mesmo compusera, do qual Voltaire tinha um raro exemplar. Os escritos eram demasiado comprometedores, demasiado radicais para um monarca militar. No fim, o abalado e humilhado Voltaire teve permissão para se exilar na Suíça. Uma das grandes experiências de despotismo esclarecido — ideais de liberdade e indagação postos em prática sob a proteção de um rei-filósofo — não funcionara como planejado. Voltaire tinha caído em desgraça muitas vezes com governantes de sua França natal. Quando jovem, fora preso na Bastilha por suas composições insolentes. Mas conhecera Frederico durante grande parte de sua vida de escritor e vira nele um raio de esperança. Atraído a Berlim para trabalhar para o governante da Prússia, Voltaire se desiludira, queixando-se de que, apesar da boa conversa, das festas e da música, “há prodigiosas quantidades de baionetas e pouquíssimos livros”. 10 Frederico respondera à altura, dizendo a um cortesão que se queixara do tratamento generoso dado a Voltaire: “Devo precisar dele por mais um ano, não mais que isso. Depois de espremer a laranja, joga-se fora o bagaço.”11 Frederico ficou furioso quando Voltaire atacou em letra de forma seu ministro da Ciência, PierreLouis Maupertuis, um matemático com problema de bebida que tinha seduzido uma das amantes do filósofo. A diatribe de Voltaire era brilhantemente engraçada, sagaz e popular, afrontando Maupertuis, a
quem acusava de ser uma fraude. Quando se voltava contra um inimigo, Voltaire manejava uma das penas mais letais da Europa. Mas Frederico também era um mestre no uso da artilharia e de todas aquelas baionetas. Ordenou que a sátira fosse apreendida, rasgada e queimada pelo verdugo público e disse a Voltaire que ele deveria ser posto a ferros por sua conduta. O filósofo escafedeu-se. Voltaire foi sem dúvida um dos europeus mais importantes do século XVIII. Suas campanhas contra a intolerância católica atearam fogo ao continente pensante, enquanto suas tragédias e comédias faziam as delícias de Paris. Suas Cartas filosóficas , uma combinação de ensaios sobre os ingleses e ataque feroz ao pensador católico Pascal, são acertadamente chamadas de a primeira bomba atirada contra o ancien régime de monarcas absolutos. Oriundo de uma rica família parisiense de advogados e juristas, fico famoso como poeta, autor de peças teatrais, filósofo, polemista e como uma espécie de cientista — sempre perigoso e sempre, do ponto de vista dos ocupantes do poder, pouco confiável. A Grã-Bretanha, que tinha emergido de sua Revolução Gloriosa, era de extrema importância para Voltaire. Ele fugira para lá depois de ser espancado por capangas de um nobre a quem tinha ofendido e de constatar que suas esperanças de obter justiça eram bloqueadas pela corte e pela nobreza. A GrãBretanha parecia diferente — como a Holanda, outro país de relativa liberdade e prosperidade da classe média. Voltaire atribuía isso, em parte, à política parlamentarista, mas também aos hábitos de tolerância: “Se a Inglaterra só tivesse uma religião, poderia haver risco de despotismo; se tivesse duas, uma cortaria a garganta da outra; contudo há trinta e vivem juntas, com paz e felicidade.” Voltaire era um estudioso de Newton e, em visita à Inglaterra, cortejou seus poetas, teatrólogos, políticos e a nata da sociedade hanoveriana. Ali conheceu Sarah, duquesa de Malborough, que fora companheira de infância da princesa Ana),muito antes,sobre a rainha Caroline da época, SwiftGay, (que acabara de escrever As viagens de Gulliver Pope, tempo cujo Ensaio o homem ele adorava, e John da Ópera dos mendigos. Conheceu lady Mary Wortley Montagu, que tinha estado na Turquia e trazido de lá a ideia da vacinação contra a varíola. Voltaire admirava a liberdade da vida pública inglesa e a forma como o povo honrava seus artistas e cientistas: Newton foi sepultado na abadia de Westminster ao lado de monarcas, o que jamais aconteceria na França, e a famosa atriz inglesa Anne Oldfield foi enterrada com todas as honras. Em Paris, quando a maior atriz de seu tempo, Adrienne Lecouvreur, morreu ainda jovem, foi-lhe negado sepultamento cristão — atores eram “excomungados”. Enterrada como indigente num terreno ermo na periferia da cidade, teve a sepultura espargida com cal virgem. Ela também fora amante de Voltaire, que ficou horrorizado com o contraste.12 Durante a maior parte da vida, Voltaire conseguiu esquivar-se das restrições impostas ao livre pensamento pela monarquia francesa, atirando-se no centro das atenções públicas com uma peça brilhante ou um poema de um momento bajulador, enquanto publicava suas obras mais provocativas anonimamente ou no exterior. Retirava-se por longos períodos no exílio interno de um belo castelo de província onde escrevia, praticava arte dramática e fazia experimentos newtonianos com sua amante quase tão brilhante quanto ele, Émilie du Châtelet. Mais tarde, teve de retirar-se para fora do alcance da corte francesa — na Suíça. Podia contar com o apoio do público parisiense e tinha defensores poderosos. Era um investidor tão esperto que chegava a ser brilhante, negociando com suprimentos militares e cereais, e consta que talvez tenha tido de sair da Inglaterra às pressas porque falsificou dinheiro. Nas disputas era destemido, porém nunca sabia quando parar. E não era nenhum santo. Sua situação é extraordinariamente parecida com a dos maiores compositores e escritores da Rússia soviética, populares com o público, mas empenhados num perigoso jogo de gato e rato com o regime. No mundo de Voltaire, é claro, a forma normal de governo era uma espécie qualquer de absolutismo. Contemplando as grandes potências continentais, um apostador teria imaginado que o futuro continuaria
girando em torno de cortes e de governantes todo-poderosos. Uma revolução real, política, era impensável. Por isso, quando o príncipe Frederico da Prússia começara a escrever a Voltaire cartas de admirador, o futuro monarca parecia apresentar um tipo de resposta. Segundo disse madame Du Châtelet: “Como parece inevitável que tenhamos príncipes, embora ninguém saiba exatamente por quê, ajudaria muito se pelo menos todos fossem como ele.” Frederico também ansiara pela liberdade inglesa. Quando jovem, sofrera nas mãos do pai tirânico, Frederico Guilherme, que estabelecera a Prússia como Estado absolutista centralizado. O pai acreditava no dever absoluto, na disciplina de estilo militar e numa rotina férrea. O filho, como tantos meninos e adolescentes, era lerdo, sonhador, romântico e livresco. Refugiava-se na música, tanto que se torno virtuose de flauta francesa, e era viciado em livros franceses. Por fora, obedecia ao pai, assistia a desfiles e reuniões e aceitava as surras e as humilhações públicas que sobravam para ele, mas ostentava uma forma estúpida de insolência, que deixava o pai ainda mais furioso. Frederico provavelmente era homossexual e com certeza não demonstrava interesse por mulheres, nem mesmo pela futura esposa, que baniu da corte. Aos dezoito anos, planejou fugir da Prússia com um oficial da Guarda de 26 anos chamado Hans Hermann von Katte, seu melhor amigo, que, segundo consta, se comportava com o príncipe “como um amante com sua amante”.13 Dois anos depois que Voltaire deixou Londres, a dupla resolveu partir para esse facho de luz de relativa liberdade. Mas o rei devia ter sido avisado, e o par de fujões realizou a planejada fuga com tão pouco cuidado que, quando Frederico se esgueirava do acampamento militar, foi facilmente capturado e levado de volta. O pai mandou prendê-lo numa lúgubre fortaleza militar, onde foi obrigado a vestir uniforme de detento e interrogado com grande severidade. Disseram-lhe que poderia até ser executado por ordem do pai. Enquanto isso, Von Katte foi condenado à prisão perpétua por um tribunal militar. Frederico Guilherme achou o castigo inadequado e sugeriu que o jovem tivesse os membros arrancados com torquês quente, antes de ser enforcado. Gentilmente comutou a pena para decapitação, mas fez questão de que a sentença fosse executada na presença do filho. Em 6 de novembro de 1730, Von Katte foi tirado de uma cela na mesma prisão onde Frederico estava detido e levado para um monte de areia no pátio. O príncipe teve o rosto encostado nas barras da sua cela por dois carcereiros, para assistir à execução à força. Num relato escrito posteriormente por um sacerdote, Katte olhou em volta e viu Frederico na janela, dizendo-lhe adeus com “palavras corteses e amigas ditas em francês”. Então tirou a peruca, o casaco e o cachecol, ajoelhou-se na areia, invoco Cristo, e teve a cabeça decepada com um único golpe de espada. Frederico, porém, não viu o momento final: tinha desmaiado. Lendo as obras de Voltaire e outros escritores franceses radicais, Frederico pôs-se a pensar num jeito diferente de governar. Pode-se ver nisso uma reação traumática à crueldade do pai, em combinação com o idealismo radical da juventude, mas Frederico queria mesmo ser um monarca esclarecido. Era, também, um escritor prolífico e, como Voltaire, um historiador compulsivo de sua própria época. Achava o alemão um idioma bárbaro, dando sempre preferência ao francês, da mesma forma que preferia a música francesa. Chegou até a chamar seu palácio de recreação em Potsdam, nos arredores de Berlim, de Sans-Souci (“Despreocupado”). Quando se tornou rei, deu continuidade à tradição prussiana de boas escolas e universidades, formando uma corte de pensadores e cientistas, e começou a renovar suas cidades. A Prússia de Frederico, o Grande, não era apenas o Estado militarista beligerante da lenda, com nobres estúpidos proprietários de terras açoitando camponeses e todos os jovens metidos em fardas. Houve experiências avançadas em agricultura, projetos industriais incipientes (sobretudo nas indústrias do ferro e do aço), sociedades de leitura, livrarias, jornais, clubes filosóficos e o crescimento de uma
sociedade civil relativamente sofisticada. Durante a vida inteira, Frederico estimulou avanços na agricultura, na construção de estradas, na drenagem, na construção de fábricas e na educação dos jovens, exatamente como se esperava de um autocrata esclarecido. Praticava a tolerância religiosa e, quando lhe perguntaram se essa tolerância se estendia aos católicos romanos, respondeu que construiria mesquitas e templos se turcos e pagãos quisessem ir para a Prússia. Proibiu a tortura. Visitantes ficavam impressionados com a relativa liberdade de expressão nos cafés e nas livrarias de Berlim. O problema é que essa era apenas uma metade da personalidade de Frederico. Ele talvez se horrorizasse com a simplicidade germânica do pai, contudo idolatrava o exército que recebera de herança. O ressentimento por ter sido obrigado a casar-se com uma mulher que não amava era dirigido não apenas ao pai, mas também ao poder presunçoso do mundo germânico, que pressionara para que o casamento ocorresse — o império austríaco dos Habsburgos. Portanto, ao se tornar rei, dez anos depois da dramática decapitação do amigo, a primeira providência de Frederico foi enviar seus exércitos para a vizinha Silésia, controlada pelos austríacos, imenso território com considerável riqueza produtiva, e apossar-se dela. Os exércitos de Frederico por pouco não destruíram os austríacos, em vez de simplesmente derrotá-los, mas isso alterou o equilíbrio da política de poder europeia, deflagrando mais guerras. Em seu segundo ato já como rei, ele assumiu o papel de agressor, tomando a Saxônia. Como resultado, em seu terceiro e maior conflito, parte da global Guerra dos Sete Anos, Frederico teve de enfrentar uma intimidadora aliança formada por França, Áustria, Rússia e Suécia, que o cercava e ameaçava trinchar a Prússia de uma vez por todas. Ele contava com a ajuda de uma pequena força britânico-hanoveriana, porém a situação era esmagadoramente desfavorável. A essa altura, oFrederico rei-filósofo a pensar de fato numa “morte de soldado” suicida no campo de batalha. Entretanto, nãochegou se tornou “o Grande” porque cultivava pensadores iluministas ou tocava bem flauta, mas porque se revelou um soldado brilhante. Especialista em dividir e confundir o inimigo, venceu a maioria de suas batalhas, frequentemente iniciadas em grande desvantagem. Assim como Alexandre, o Grande, não teria alcançado seus brilhantes êxitos sem o exército criado pelo pai, Felipe II, Frederico também não teria feito o que fez sem o formidável exército formado por se pai. O exército prussiano movimentava-se com mais rapidez e mais eficiência em formação nos descampados do que qualquer outro. No século XVIII, exercícios no campo de batalha e disciplina eram essenciais. Ser capaz de virar os batalhões com rapidez, despejar fogo de ângulos inesperados e manter formação perfeita sob uma chuva de balas de mosquete e tiros de canhão era o que transformava soldados e mosquetes em armamento de massa. O exército de Frederico era constituído por jovens duramente treinados sob o comando de aristocratas, que por sua vez tinham aprendido nas novas academias militares a verem a guerra como uma ciência. Essas famílias aristocráticas chamadas de Junkers perderam um vasto número de filhos nas guerras de Frederico, entretanto conquistaram para si, no Estado prussiano em rápida expansão, um status que só perderiam nos tempos nazistas. Essas guerras talvez não fossem tão destrutivas socialmente como as do conflito protestante-católico anterior, mas eram sem dúvida sangrentas, com estupros, saques, incêndio de cidades e aldeias e o massacre de civis, com a carnificina das batalhas programadas. Estima-se que a Prússia tenha perdido 10% de sua população, cerca de quatrocentas mil pessoas. (Na Primeira Guerra Mundial, para que se possa comparar, a Alemanha perdeu 2,47 milhões de pessoas, mas isso era menos de 4% da população total. as guerras designificativas. Frederico foram, duasdevezes e meia mais sangrentas.) AsPortanto, consequências foram Na proporcionalmente, Prússia, Frederico teve reparar os danos transferindo populações para áreas pouco exploradas, numa espécie de colonização interna, e introduziu políticas de alimentos baratos e previdência social. Isso, por sua vez, resultou num Estado mais poderoso e invasivo.
A Áustria descobriu de repente que tinha perdido a posição tradicional de domínio sobre a colcha de retalhos de pequenos estados conhecido como Sacro Império Romano. A França, distraída de sua principal luta estratégica com o poder emergente da Grã-Bretanha, enredou-se numa estreita aliança com a Áustria dos Habsburgos, o que, para muitos franceses — acostumados às lutas dos Bourbons contra os Habsburgos —, parecia errado e contra a natureza. A chegada da princesa Maria Antonieta, uma Habsburgo, para se casar com o futuro Luís XVI, foi apenas um aspecto de uma política impopular, que custaria caro à monarquia francesa. Em tudo isso, Frederico continuava um enigma. Quem era ele, afinal? Um historiador do Estado prussiano disse: “À severa advertência do pai abrutalhado: ‘seja honesto, apenas seja honesto’, o adolescente Frederico teria respondido com uma civilidade dissimulada e faceira, adotando a pose do forasteiro irônico, mascarado e moralmente agnóstico.” Esse homem escorregadio, inescrupuloso e implacável tinha sido construído, mas também destruído, pelo pai. Restava-lhe reler os clássicos, desiludir-se com a humanidade e praticar a flauta até os dentes caírem, “devorando as mais recentes obras de filosofia e recrutando novos parceiros de conversa para ocupar os lugares deixados por amigos que morreram ou que o traíram casando-se”.14 * ** Voltaire, a essa altura, já tinha aprendido a não confiar em príncipes, por mais que jurassem adorar seus livros. Enquanto a guerraembora assolava Europa,modesta. ele resolveu a questão viver na sob fronteira monarcasfranco-suíça, absolutos tornando-se um deles, ema escala Na aldeia de de Ferney, comprou uma propriedade que lhe permitiria escapar das tentativas francesas de prendê-lo. Ali seria possível fugir de carruagem ou de barco, tomando uma direção entre várias, caso soasse o alarme. Em 1758, adquiriu uma casa grande e bastante terra, cercada de muros, e passou a responsabilizar-se pelos agricultores que lá viviam. Dentro desse minúsculo reino, pôde escrever sua obra-prima, o romance satírico Cândido, atacando praticamente todos os aspectos da velha Europa, e colaborou na preparação da grande enciclopédia — a Encyclopédie — da nova geração de filósofos esclarecidos, mexendo com casas de marimbondos sem ser picado. Voltaire não era ateísta, era teísta — acreditava num ser supremo. Mas, depois do catastrófico terremoto de Lisboa, que atingiu a cidade em 1o de novembro de 1755, foi ficando cada vez mais hostil ao pensamento do início do Iluminismo de que “tudo vai da melhor maneira” ou “tudo que é está certo”. O terremoto não só matou trinta mil pessoas em Lisboa, como também inundou Cádiz com um tsunami e sacudiu os países vizinhos. Ocorreu durante um dia santo e, entre os mortos, estavam jesuítas que se preparavam para queimar judeus portugueses na fogueira como hereges. Um grande debate tomou conta da Europa sobre o que significava esse desastre à luz da ideia de um Deus de bondade. De Ferney, Voltaire fustigou em todas as direções — os jesuítas, o militarismo de Frederico, a intolerância em todas as suas formas. Em casa, Voltaire passou a dedicar-se à agricultura e a cultivar seu pequeno pedaço da França fronteiriça, transformando a casa numa versão em miniatura de Sans-Souci, reconstruindo a igreja (tolerância, mesmo ali), fazendo do celeiro um teatro e acolhendo visitantes intelectualmente curiosos de toda a Europa para sua minúscula fortaleza de liberdade. Eles vinham até da América, mas sobretudo da Inglaterra — e da Escócia, onde a fase seguinte do Iluminismo ia em marcha acelerada. Entre eles estavam o pai da economia moderna, Adam Smith, e o amigo do doutor Johnson e de David Hume, o
irrefreável James Boswell. Na época da morte de Voltaire, Ferney tinha uma indústria de relojoaria (que ele fomentara), cerca de oitenta casas e mil moradores, cujo monarca absoluto se autodefinia como o “estalajadeiro de toda a Europa” e representava todas as noites para convidados. Voltaire ainda tinha muito fogo dentro de si. Depois da tortura e da hedionda execução pública de um idoso protestante num caso de assassinato arquitetado em Toulouse, moveu uma campanha furiosa, que terminou na revogação da condenação em Paris. “Écrasez l’infâme!” — “Esmaguem o infame!” — era seu grito de guerra, inventado por ele em suas conversas com Frederico nos velhos tempos na Prússia. Voltaire viveu muito, travando outras campanhas em favor da justiça — modelos que seriam imitados por ornalistas e políticos, do caso Dreyfus até os dias atuais. Tornou-se defensor dos protestantes, coisa de alto risco na França, e também cometeu atos estúpidos, ao declarar que Shakespeare, parcialmente recém-traduzido, era ruim. No fim, voltou para Paris, onde era tratado quase como um deus vivo, aplaudido, celebrado e coroado de louros no teatro. Morreu em 30 de maio de 1778, depois de recusar a confissão e dizer a dois padres: “Deixem-me morrer em paz.” A França absolutista, que parecia um inimigo tão formidável, também estava moribunda. Fora enfraquecida tanto por Zozo como por Frederico, pelo novo pensamento surgido em casa e pelos arrasadores custos da guerra, incluindo contra a Grã-Bretanha. As velhas certezas vacilavam. De que outra forma Voltaire poderia ter se tornado herói da católica Paris? Mas o apodrecimento tinha começado nos campos de batalha da Alemanha. Ir à guerra é o que fazem os monarcas absolutistas. Significa que amais poderiam se tornar esclarecidos — pois que sentido há em proibir a tortura quando se permite que centenas de milhares morram lenta e dolorosamente no campo de batalha? Mas aambos essa altura difíceis — questões Frederico e Voltaireepor um breve Pode-se, momento quando eramas jovens como que é tinham possívelunido combinar autoridade liberdade? verdadeiramente, legislar para a felicidade humana? — recebiam um novo tipo de resposta. Entre aqueles que tinham ido prestar homenagem a Voltaire em suas últimas semanas de vida estava um homem oriundo de um país livre, muito maior do que Ferney. Era Benjamin Franklin, mandado à França pelo novo Congresso americano. Chá frio e mohawks Até hoje é um dos mais famosos protestos contra um tributo em toda a história mundial. A noite de 16 de dezembro de 1773 era fria e nevoenta no movimentado porto de Boston, Massachusetts. Mais de duzentos homens, alguns disfarçados de guerreiros mohawks, subiram a bordo de três navios amarrados no ancoradouro de Griffin — o Dartmouth, o Eleanor e o Beaver. Todos carregavam, em pesadas caixas forradas de chumbo, o artigo de luxo mais disputado da época, o chá. As 340 caixas foram levadas para os conveses, abertas a machadadas e esvaziadas dentro da água fria e escura do mar. Foi um trabalho demorado e difícil. Durante mais de três horas, os homens se livraram de mais de quarenta mil quilos de chá, srcinariamente cultivado na China e distribuído no mundo inteiro pela Companhia das Índias Orientais. Foi um protesto contra o imposto cobrado pelo distante governo de Londres, mas, de maneira mais fundamental, contra o princípio do governo britânico nas colônias, cujo povo não tinha representantes no Parlamento de Westminster. Como dizia o slogan: “Nenhuma tributação sem representação.” Houve muita coisa estranha com relação à “Festa do Chá de Boston” (embora só viesse a ser conhecida por esse nome no fim do século seguinte). Uma delas era que os americanos àquela altura estavam, na verdade, vencendo a disputa contra os ministros britânicos, muito mais flexíveis e menos determinados do que a
história se lembra. Em 1756, a Lei do Selo, uma tentativa de tributar jornais, revistas e documentos legais americanos, tinha sido repelida em apenas um ano, depois da realização de boicotes e manifestações. Chá quente e impressão a frio iam dar no mesmo assunto: representação. A Lei do Selo chamou a atenção dos americanos para seu status de segunda classe dentro do Império Britânico. Os americanos das treze colônias litorâneas se julgavam, na grande maioria, ingleses, com direito inato à liberdade conquistada nas guerras civis do século anterior. Mas não lhes era dado ocupar os cargos mais altos o ditar suas próprias regras comerciais, muito menos votar para o Parlamento. Um advogado autodidata da Virgínia chamado Patrick Henry exigia os direitos dos ingleses nascidos livres, e seu estado aprovou uma moção determinando que impostos só podiam ser criados pelo próprio povo ou por seus representantes eleitos. Um dos que ficaram surpresos com a violenta rebelião que se seguiu foi Benjamin Franklin. Depois de uma longa carreira como um dos gênios de Filadélfia e de clássico polímata iluminista, Franklin estava em Londres defendendo a proposta de transformar a Pensilvânia em colônia real, talvez com ele mesmo como representante do rei George. Franklin, suspeito em sua terra de favorecer a Lei do Selo, soube que sua casa tinha sido alvejada pela multidão e que por sorte não fora queimada. Depois de recuar na Lei do Selo, o governo tentara recuperar alguma receita introduzindo vários outros impostos, dessa vez sobre mercadorias rotineiras, mas essenciais, como tinta, papel, chumbo, vidro — e chá. Em Londres, Franklin foi a favor de tudo isso. Contudo, os colonos mais uma vez reagiram com marchas, boicotes e protestos. Os boicotes não impediram que os americanos continuassem tomando chá: alguns recorreram a chás de ervas locais, outros, a chás mais baratos, contrabandeados de navios holandeses. E, mais uma vez, depois de alguma hesitação, o “tirânico” governo britânico cedeu, revogando os impostos, princípio datodos soberania da Coroa. exceto sobre o chá, mantido apenas para asseverar o esfrangalhado Houve uma trégua na crise, que terminou em circunstâncias bizarras. Em Londres, o governo do primeiro-ministro lorde North vinha cobrando impostos exagerados do chá em geral, levando, com isso, a Companhia das Índias Orientais à beira da falência. Ministros responderam permitindo que a Companhia vendesse direto para os colonos, em vez de fazer o chá passar primeiro por Londres para ser taxado. Isso reduziria drasticamente o preço do chá americano, ao mesmo tempo que ajudaria a Companhia. Foi uma lei liberal. Mas lorde North manteve o modesto imposto srcinal sobre o chá americano porque ele pagava governadores e juízes coloniais, assegurando sua lealdade ao rei George. Mesmo assim, os bostonianos e outros agora tinham à sua disposição uma oferta de chá mais barato do que o contrabandeado que vinham bebendo. A “Festa do Chá de Boston” foi uma revolta tributária contra uma mercadoria que ficava mais barata, e não mais cara. Como assim? Os ministros devem ter pensado que a única coisa pior do que perder uma guerra é ganhá-la. Pois, em 1763, uma década antes de o chá ser tão indecentemente preparado com água fria e salgada do mar, a Grã-Bretanha tinha terminado em triunfo sua Guerra dos Sete Anos contra a França e a Espanha, com os sinos dobrando nas igrejas de todo o país. A guerra se espalhara pela maior parte da Europa, onde a GrãBretanha ajudara Frederico. Fora da Europa, a Grã-Bretanha tinha conquistado Bengala, na Índia, ilhas no Caribe e Minorca, no Mediterrâneo. Mas foi na América que ocorreu a mudança mais dramática. Em 1759, o “ano das vitórias”, forças britânicas (incluindo um jovem George Washington) e seus aliados nativos americanos derrotaram os franceses, apossando-se do Canadá e da Flórida. A “Nova França” desapareceu do mapa. Em consequência disso, a Grã-Bretanha passou a controlar toda a costa leste americana, de ter ter estabelecido o “direito” putativo avançar paracomo oestegovernante além dos Apalaches. uma famosa vitória, que além parecia de vez ade Grã-Bretanha da América.Foi Quando o novo rei, George III, foi proclamado, os americanos lealmente se regozijaram.
Entretanto, isso acabou se tornando um clássico exemplo de consequências imprevistas que transformam o vencedor em vencido. Em primeiro lugar, uma vez afastada a ameaça francesa, os colonos não precisavam de tropas britânicas para garantir sua segurança. Em segundo, os colonos americanos perderam o esperado direito de se expandirem como desejavam, porque, para aplacar os novos súditos de fala francesa do Império Britânico, o controle de terras nativas americanas (onde hoje ficam Ontário, Illinois, Michigan, Ohio e Wisconsin) foi dado ao Canadá. Os pioneiros das treze colônias americanas da Grã-Bretanha foram proibidos de avançar para o oeste. Em Massachusetts e Virgínia, o medo de uma invasão francesa foi substituído pela raiva contra a nova partilha. Tudo isso já era péssimo sinal. Mas, em terceiro lugar, o imenso custo da guerra global dobrara a dívida nacional britânica e cerca de metade da receita do governo era consumida no pagamento de juros.15 Novos impostos eram inevitáveis. Um primeiro-ministro que veio depois, filho do grande William Pitt, que presidira a primeira rodada de vitórias imperiais da Grã-Bretanha, acabaria tendo de introduzir um imposto de renda, para ter condições de guerrear contra Napoleão. Antes disso, novos tributos significavam, basicamente, novos impostos sobre mercadorias, e as mercadorias mais procuradas e mais valiosas (como o chá) eram os alvos mais prováveis. Em suma: na década seguinte à vitória de Londres, os colonos americanos precisavam menos da Grã-Bretanha, estavam sendo restringidos pela diplomacia britânica e ainda tinham de pagar mais para os europeus. A razão para os colonos não quererem pagar nem mesmo os impostos mais baixos sobre o chá era a suspeita de que estariam abrindo mão de um princípio. Se aceitassem que a Grã-Bretanha tinha o direito de tributá-los, os impostos, cedo ou tarde, alcançariam níveis intoleráveis. Não deixava de ser um bom argumento: era sempre mais fácil cobrar impostos de colonos distantes do que de proprietários de terras vociferantes e de grandes negociantes representados no Parlamento sem meias palavras. Alguns achavam inevitável a ruptura, embora, no começo dos anos 1770, ainda fossem minoria. Benjamin Franklin, numa jornada intelectual que o distanciava da lealdade à Coroa, pôs o dedo na ferida do problema que já se impunha: um dia, a população da América britânica seria maior e mais rica do que a das ilhas metropolitanas. E o que aconteceria, então? A capital do Império Britânico teria de ser transferida de Londres para a Filadélfia? Outros desejavam permanecer leais à Coroa, mas também queriam desfrutar de toda a liberdade para realizar suas transações comerciais sem a cobrança de taxas, aprovar leis locais sem precisar submetê-las a Londres e tomar terras nativas sem ligar para os tratados globais. Não há quase nenhuma dúvida de que, se os ministros do rei tivessem sido ainda mais cautelosos, não só revogando impostos impopulares, mas também aceitando limites para o seu poder nas novas colônias, a rebelião teria sido adiada por muito tempo. Enquanto isso, muitos erros menores foram cometidos. Se os soldados britânicos não tivessem reagido a gracejos e provocações humilhantes abrindo fogo e matando manifestantes no “massacre de Boston”, a cidade não teria se tornado o caldeirão de sentimento antibritânico. Se o governo de lorde North não tivesse respondido aprovando as chamadas Leis Intoleráveis para reprimir protestos em Massachusetts, em geral, e em Boston, em particular, as colônias não teriam retaliado com seus próprios congressos o se reunido para formar o primeiro Congresso Continental. Se a Grã-Bretanha não tivesse mandado mais e mais tropas, provocando a criação de milícias, e se o rei George não tivesse rejeitado, num ato de arrogância, “a petição do ramo de oliveira” do Congresso Continental, em 1775, afirmando a lealdade americana, a guerra teria sido evitada. E, para terminar, se os comandantes britânicos na Guerra da Independência de 1776-1781 fossem melhores e tivessem tido mais sorte, as forças britânicas teriam vencido, pelo menos por um tempo.
No entanto, esses “ses” não são convincentes. Voltando ao argumento de Benjamin Franklin, por volta de 1770, as treze colônias tinham uma população de cerca de 2,4 milhões, na maioria britânicos de srcem, mas também holandeses e alemães. Ainda havia uma diferença de mais ou menos quatro milhões em relação à da Grã-Bretanha, mas essa população crescia rápido e era substancial demais para ser excluída indefinidamente da vida política imperial. E “substancial” significa mais do que números. Eram pessoas com alto nível de alfabetização, com redes de sociedades políticas, advogados, jornais e panfletos, com seu próprio nível de política colonial. Para os muitos partidários britânicos da causa americana, os americanos eram britânicos em nada diferentes de quaisquer outros e, portanto, com direitos iguais. A filosofia política britânica baseava-se em histórias de resistência ao poder tirânico, remontando aos tempos medievais. O argumento sobre o direito de representação, que tamborilava insistentemente nos cafés e nas salas de visita da Filadélfia, de Boston e de Nova York, era entendido com a mesma clareza por muitos observadores na Cheapside de Londres, em Bristol ou em Edimburgo. Como poderiam as colônias ser bem representadas num Parlamento que ficava a uma distância de oito perigosas semanas de navegação? Não podiam. Apesar disso, conheciam seus direitos e os teriam de qualquer maneira. Qual seria a alternativa para a independência? Ainda que os colonos tivessem tido representantes em Westminster, seu crescimento numérico naquele país muito maior acabaria levando os membros americanos do Parlamento a suplantarem os britânicos, de modo que Essex ou Hampshire acabariam sendo governados pelas votações da Pensilvânia e de Nova York. Essa solução teria sido mais aceitável para George III e seus sucessores? A outra possibilidade, de que os americanos pudessem ser incentivados a combinar e formar seu próprio parlamento, mantendo a lealdade apenas ao rei — na verdade, a opção canadense é mais plausível. Mas nem tanto. coisa que poderia ter A deflagração de rebeliãooue australiana guerra em —, 1775-1776 foi, na verdade, a melhor acontecido, tanto para os colonos como para seus inimigos. Foi um conflito relativamente curto, decisivo e (para a Grã-Bretanha) humilhante, em vez de arrastado e sangrento, como é provável que uma guerra posterior tivesse sido. Tornou-se uma guerra mais ampla quando a Espanha, a França e os holandeses se untaram aos americanos contra a Grã-Bretanha, provocando temores de invasão de Londres até a Escócia. Mas isso jamais aconteceu. Juntando os colonos e iniciando o processo de enfraquecimento dos estados individuais para formar um país, a guerra inspirou e energizou um sistema político que viria a ser o mais bem-sucedido do mundo. Forçando a Grã-Bretanha a assestar suas ambições imperiais noutra direção, a perda do “primeiro Império Britânico” levou à aquisição de um segundo, muito maior, centrado na Índia. Isso, em combinação com a falência da monarquia francesa, causada em parte por se apoio financeiro aos rebeldes americanos, fez com que a Grã-Bretanha se tornasse uma potência naval e imperial de amplitude planetária que se manteria assim pelos próximos 150 anos. Mas houve claros perdedores, além da parcela de aproximadamente um quinto dos americanos que tinha apoiado a Coroa, muitos dos quais perderam suas propriedades e alguns a própria vida. Houve afro-americanos que lutaram ao lado dos britânicos contra os colonos, por temerem que a independência americana servisse apenas para consolidar a escravidão e acharem que os britânicos talvez a abolissem. Quando o Parlamento britânico aboliu o comércio de escravos em seu território, pouco mais de trinta anos depois da Declaração de Independência americana, suas expectativas se confirmaram. Observadores britânicos deram muita importância à estranha situação de americanos como Thomas Jefferson, que lutou pela liberdade, mas, ao mesmo tempo, manteve seus escravos. O grande escritor e casmurro inglês Johnson a célebredepergunta: ouvimos em favorSamuel da liberdade vêmlançou de condutores negros?”“Por que mesmo osuivos mais altos que Em 1750, havia 236 mil negros nas colônias; em 1810, havia mais de um milhão de escravos nos Estados Unidos.16 Entretanto, numa guinada histórica ainda mais estranha, a revolta francesa em favor da
liberdade ampliou a escravidão na América: a “Compra da Luisiana”, transação que transferiu da França para os Estados Unidos um vasto trecho do interior americano, foi negociada por Napoleão como uma necessidade da guerra; e, como veremos adiante, foi nessas terras que a escravidão de fato floresceu. * ** A injustiça histórica mais imediata, porém, nos leva de volta aos homens que esvaziavam caixas de chá nas águas do porto de Boston — ou melhor, não aos homens propriamente ditos, mas aos “disfarces” que escolheram. Alguns deles, como já mencionado, estavam vestidos de mohawks, supostamente com rosto pintado e penas. Não temos certeza se era para se disfarçarem ou intimidarem os marinheiros. O que sabemos é que os mohawks de verdade ficaram, na maioria, do lado dos britânicos contra os colonos — e saíram da guerra como grandes perdedores. Como os negros americanos pró-britânicos, eles tinham se untado à potência imperial em defesa desesperada dos próprios interesses. Afinal, foi o tratado britânico-canadense que impediu que os colonos invadissem mais ainda seu território. E quem eram eles? Os mohawks — que se chamavam dekanien’keha:ka , ou “povo da pederneira”, por serem grandes cortadores de pedra-de-fogo, usando o material em suas flechas e lanças — eram um dos mais importantes povos iroqueses da América costeira. Suas terras iam do atual norte do estado de Nova York, passando por Vermont, até o sul do Canadá, e eles vendiam peles para os holandeses desde o início dos anos 1600. Na segunda metade do século, aliaram-se aos britânicos contra os franceses, e, quando a guerra começou, por pouco não voltaram a ficar do lado da Coroa. Não é que sentissem grande afeição por George III, mas sabiam muito bem o que os colonos desejavam: suas tradicionais terras de caça. Era uma história antiga. Os primeiros colonos ingleses mal haviam conseguido sobreviver ao inverno na nova terra, Virgínia. Dizimados pela doença e pela inanição, às vezes recorrendo ao canibalismo, tinham sido salvos pela ajuda dos nativos. Mas, logo que os colonos cresceram em número e se estabeleceram melhor, multiplicaram os ataques contra eles. Já se afirmou, de forma convincente, que a guerra feroz travada pelos exércitos ingleses elisabetanos contra os irlandeses os preparou para ver os nativos americanos como igualmente bárbaros, até mesmo sub-humanos. Aos olhos dos ingleses, não havia muito que escolher entre os clãs irlandeses que usavam gabão e moravam em cabanas e as capas de 17
couro e aldeias de os madeira americanos. cultivassem), Eram povos eque pareciam raramente dedicar-se à agricultura (embora nativosdos de Massachusetts só por isso já não mereciam perder sua terra? Em 1608, apenas um ano depois da chegada dos primeiros colonos, líderes “indígenas” protestavam: “Ouvimos dizer que vocês vieram lá do outro lado do Mundo para tomar o nosso Mundo.” Nos anos 1620, declarara-se guerra aberta, com os colonos usando sua potência de fogo para destruir aldeias nativas. Uma depois da outra, as tribos eram repelidas, dizimadas por novas doenças, obrigadas a passar fome e atacadas. O êxito das treze colônias foi construído em cima da destruição de povos nativos, que culturalmente não estavam preparados para uma economia fundada na propriedade privada e na agricultura estabelecida. No começo deste livro, vimos como a passagem da condição de coletor-caçador para a de agricultor na Eurásia foi difícil e ilógica. Ali, o processo levou milhares de anos. Na América, esperavase que os nativos fizessem a transição em poucos anos ou meses. Em 1789, numa tocante petição a Connecticut, o povo moicano declarou que seus antepassados, em tempos idos, tinham vivido em grande fartura: “Quando queriam Carne, bastava correrem até o Mato com suas Armas e Logo traziam para casa boa carne de veado, Guaxinim, Urso e Aves [...] plantavam só um pouco de Milho e Feijão e não tinham
Gado nem Cavalos, pois não precisavam.” Agora, porém, eram obrigados a lavrar a terra, criar animais e construir cercas, porque não havia mais onde caçar. Apenas os mais fortes progrediam e “pobres Viúvas e Órfãos Têm de ser deixados de lado e ali são obrigados a Ficar, Chorando, Passando Fome e morrendo”.18 Com suas alianças variáveis e suas guerras, os mohawks, como tantos outros nativos americanos, simplesmente tentavam preservar terras de caça e pesca em quantidade suficiente para manter seu estilo de vida tradicional. Sabiam que estavam cedendo terreno, ainda que o tratado de Quebec lhes permitisse ganhar tempo. Depois de ficarem do lado derrotado na Guerra da Independência, foram obrigados a fugir mais para o norte, já dentro do Canadá. Dentro dos novos Estados Unidos, nada menos do que Thomas Jefferson escreveu, no ano do apogeu de 1776, que era a favor de levar a guerra para o coração das terras indígenas: “Mas eu não pararia aí. Nunca deixaria de persegui-los enquanto restasse um só deles do lado de cá do Mississippi. Nunca deixaríamos de persegui-los com guerra enquanto restasse um só deles na face da Terra.” 19 Era a voz verdadeira da jovem república faminta de terra. Poucas décadas depois da independência das colônias, os creeks, os choctaws, os chicasaws e os cherokees foram emboscados, ameaçados, massacrados, expulsos e presenteados com tratados sem valor algum pelos colonos e seus líderes, que os demonizavam como selvagens. O mesmo destino teriam os povos das planícies do outro lado do Mississippi, exatamente como Jefferson previra — os cheyennes, os arapahos, os sioux e os pawnees. Houve um breve período durante o qual os nativos americanos foram romantizados ou levados às capitais europeias para serem rude e estupidamente contemplados. Mas, uma vez disparada a lógica da colonização e da tomada de terras, eles tiveram de ser alijados. Os falsos mohawks de Boston rebelavam-se por uma combinação de motivos. Tinham boas razões para se ressentirem de pagar impostos sem terem a equivalente representação em Londres, e “liberdade” era mais do que uma palavra bonita. Entretanto, na expectativa de um mundo mais espaçoso e rico do que o seu, livre das hierarquias e da intolerância religiosa da Europa, eles sabiam que esse mundo só estaria disponível porque outros povos livres, os nativos americanos, estavam condenados à ruína. E não só eles. Nobres s e lvagens O sequestro tinha dado certo. Fora perversamente executado. Um jovem tenente da Marinha britânica, chefiando dois barcos repletos de marinheiros, soldados e detentos, tinha deparado com alguns nativos na praia e exibido alguns gordos peixes frescos numa tentativa de atraí-los para o raso. Dois homens agarraram os peixes com avidez e puseram-se a dançar juntos, quando foram capturados e algemados. Outros vieram correndo assistir. Num relato escrito mais tarde, o tenente diria que o barulho dos homens, a gritaria das mulheres e das crianças na praia e a situação dos “pobres miseráveis” que ele tinha capturado formavam uma cena deprimente, “de longe o serviço mais desagradável que já tive ordem de executar”.20 Um dos capturados escaparia com relativa facilidade. O outro, Woolawarre Bennelong, aprenderia a falar inglês e a vestir roupas de tecido grosso e de couro, com botões e fivelas, e até visitaria balneários ingleses na própria Londres, indo ao teatro, concertos e à Câmara dos Comuns antes de voltar para casa. Até hoje é uma figura famosa, embora ambígua, na Austrália.
O sequestro de Bennelong foi parte de uma das mais bizarras colisões de povos da época dos impérios. De um lado, estavam ingleses, escoceses e irlandeses, uma mistura de marujos, soldados e criminosos — homens, mulheres e crianças — que tinham sobrevivido a uma viagem marítima digna de um pesadelo, para serem largados o mais longe possível da Grã-Bretanha. À exceção de uns poucos oficiais, eram todos, à sua maneira, vítimas de uma revolução na economia da pequena ilha setentrional. Na zona rural da Inglaterra e da Escócia, a antiga vida dos camponeses que lavravam a terra comum e eram livres para apanhar lenha, matar caças e alimentar seus próprios animais, finalmente chegava ao fim. Um modo mais eficiente de produzir alimentos ajudaria a abastecer novas comunidades de operários de fábrica. Mas ela também expulsou uma grande quantidade de pobres para cidades já populosas, onde muitos eram obrigados a viver de pequenos crimes. Alguns eram enforcados, outros apodreciam em prisões acanhadas e imundas; e outros, ainda, eram expulsos, “transportados” para um novo mundo. Nesse novo mundo havia de 750 mil a um milhão de pessoas que tinham chegado à Austrália numa das primeiras migrações saídas da África, talvez cinquenta mil ou mais anos antes. Tinham viajado para o sul ao longo da costa da Ásia, usando ligações terrestres que já não existem, e realizado, também, formidáveis travessias marítimas. Encontraram um continente com plantas e animais que só existiam ali, como leões marsupiais, espécie de vombates do tamanho de hipopótamos e gigantescos cangurus carnívoros (que logo desapareceram). Antes da chegada de navios europeus, nativos australianos viviam em cerca de 250 nações, cada qual com sua língua própria, sutilmente diferente das outras, e compostas de tribos subsidiárias. Tinham um sistema político parecido com o dos nativos americanos e, supostamente, com o de europeus e chineses da faseespesso de caçadores-coletores. A caça-coleta australiana não evoluiu a agricultura devido solo pouco e carente das gramíneas e dos vegetais necessários para opara desenvolvimento. Em vezaodisso, eles usavam queimadas para destruir as plantas rasteiras e permitir nova vegetação. Além disso, tinham iniciado sistemas de canais, armadilhas para peixes e aldeias para passar o inverno — tudo isso antes da invasão britânica. Jared Diamond afirma que, se a colonização europeia não tivesse ocorrido, em 1788, os aborígenes australianos “poderiam, em poucos milhares de anos, se transformar em produtores de alimentos, cultivando lagos de peixes domesticados e plantando inhames australianos domesticados e gramíneas de sementes pequenas”.21 Em outras palavras, dentro de alguns milhares de anos, a contar daquele momento, eles talvez pudessem chegar aonde o povo de Çatalhüyük chegara havia 7.500 anos. Essas diferenças de flora, fauna e clima, ao que parece minúsculas, produziram divergências humanas assombrosas. Isolados do resto da história humana, os australianos tinham sua maneira própria de entender o mundo, assim como histórias, rituais, artes e mapas mentais inteiramente diferentes. Quando os primeiros navios europeus chegaram à costa australiana, eles acharam que se tratava de ilhas flutuantes, habitadas por fantasmas de pele branca de seus antepassados. Por causa das perucas e dos cabelos longos, supuseram que os marujos fossem mulheres. E, quando os marinheiros britânicos baixaram as calças para mostrar que eram do sexo masculino, os aborígenes lhes ofereceram mulheres, na esperança de que, uma vez satisfeitos, fossem embora. A incompreensão mútua era mais vasta do que os oceanos que separavam esses povos. Foi assim que Bennelong tornou-se um viajante do tempo, movendo-se entre os tempos pré-históricos e o mundo industrial. Fora sequestrado porque a colônia britânica situada no lugar onde hoje é Sidney lutava para entender o novo mundo. Seu governador, Arthur Phillip, esperava comunicar-se com os nativos e aprender a impedir que atacassem seu povo para roubar. Precisava explicar-lhes que os britânicos tinham vindo em paz, para ficar. Um tradutor era imprescindível. “Baneelon”, como um dos soldados o chamava, seria o intermediário. Quando chegou à paliçada britânica, segundo este soldado,
era “robusto e de boa estatura”.22 Era também incrivelmente marcado de cicatrizes. Tinha tido varíola, flagelo levado para a Austrália pelos primeiros detentos e marujos, mas também apresentava cicatrizes na cabeça, marcas de lança que atravessaram um braço e uma perna. Faltava-lhe metade do polegar e tinha uma estranha cicatriz nas costas da mão. “O amor e a guerra pareciam seus passatempos prediletos; em ambos, tinha sofrido muito.” Bennelong cantava, dançava e dava cambalhotas, porém relutava estranhamente em explicar o ferimento na mão. Um dia, confessou: fora provocado pelos dentes de uma mulher de outra tribo, que ele tentava tomar à força. A história de Bennelong mostra também que as atitudes europeias para com os “selvagens” passariam de um extremo a outro num período notavelmente curto. Menos de vinte anos antes do início da colonização da Austrália, com os detentos e seus guardas, os nativos tinham sido admirados pelo capitão Cook e seu famoso assistente naturalista, sir Joseph Banks, quando Cook “descobriu” a costa de Nova Gales do Sul. Foi a época do “nobre selvagem”, termo usado pela primeira vez nos anos 1670, mas conceito fundamental na última fase do Iluminismo. “Selvagem” significava, simplesmente, “rude”, e pensadores como o conde de Shaftesbury tinham afirmado que a humanidade era naturalmente moral — os povos primitivos, então descobertos pelos exploradores, podiam parecer diferentes e não usarem roupas, contudo eram tão bons como qualquer cristão civilizado, senão melhores. A cobiça de Bennelong por mulheres de tribos rivais e sua disposição para usar a violência contra elas deveriam servir de advertência contra a propensão a idealizar esses povos: mas, em pouco tempo, longe de ser este o perigo, os europeus já viam os nativos como sub-humanos, chegando a caçá-los por esporte. * ** Compreender outros povos e lugares ou tomar posse deles? Para os exploradores europeus do século XVIII, o instinto nobre e o instinto de cobiça tornaram-se inextricavelmente misturados. Novos animais, novas plantas e novas sociedades empolgavam a imaginação. Naturalistas, botânicos e agrimensores partiram a bordo de navios cujas bandeiras seriam plantadas em praias e pontais, territórios reivindicados como propriedade de reis distantes — um George ou um Luís. Mas, para início de conversa, muitos desses exploradores tinham a mente mais aberta do que a história posterior do império talvez nos levasse a esperar. Assim, o capitão Cook, quando pela primeira vez deparou com os aborígenes da Austrália, em 1770, levava instruções do presidente da Real Sociedade de Londres para ser paciente com qualquer nativo e lembrar que “derramar uma gota de sangue desses povos é um crime da mais alta natureza, [...] eles são, no estrito senso da palavra, os donos naturais das diversas regiões em que habitam”. Esses povos tinham o direito de rechaçar invasores.23 No entanto, Cook também tinha ordens secretas de reivindicar novas terras em nome do rei George — uma inconsistência gritante. A primeira impressão de Cook sobre os australianos teria agradado ao mais idealista dos filósofos europeus. Ficou muito impressionado com seu vigor, sua saúde e seus cabelos limpos, sem piolhos, e com seu desinteresse por objetos materiais, não só por roupas: “A mesma indiferença que os impedia de comprar o que levávamos, os impedia também de tentar roubar.”24 Achou que um dos motivos de sua felicidade era o desconhecimento das conveniências “supérfluas, mas necessárias” da Europa. Cook, que era de uma família pobre de Yorkshire e lutara para alcançar a posição a que chegara, também gostou da igualdade da sociedade que encontrara: “Não cobiçam casas magníficas, bens domésticos ou coisas do tipo, vivem num clima quente e ótimo, desfrutam de um ar muito saudável, por isso praticamente não precisam de roupa.”25 Parecia um paraíso.
Cook e seus marujos tinham atravessado o Pacífico partindo do Taiti, onde seu navio, oEndeavour, fizera uma escala de três meses e onde depararam com um paraíso ainda mais surpreendente, uma terra que lhes parecera toda inocência e liberdade sexual. Com Cook viajava o aristocrático Banks, então com apenas 26 anos. Banks se divertira com as mulheres locais e também aprendera um pouco da língua taitiana, estudara os costumes e acabara se identificando tanto com a vida nativa da ilha que participou, totalmente nu, de danças rituais de luto — o corpo coberto de carvão e cinza branca de madeira, ao lado de um feiticeiro, duas mulheres e um menino, todos nus. Para os britânicos e para os exploradores franceses que os precederam, os taitianos pareceram um povo selvagem quase ideal — selvagem no bom sentido. Banks era um produto radicalmente liberal do Iluminismo, sempre disposto a comer assado de cachorro taitiano, a admirar seu estranho esporte aquático, o surfe, e a admitir que seus corpos eram glabros e limpos e que até mesmo o óleo de coco de que tanto gostavam melhorava com o hábito: “Apesar de rançoso, é preferível ao odorífero perfume para os dedos dos pés e para axila, tão frequente na Europa.”26 Dessa maneira, o primeiro contato dos britânicos com o povo aborígene da costa leste da Austrália foi cautelosamente amistoso. Cook, Banks e os oficiais do navio tiveram dificuldade para se comunicar e acharam impossível fazer transações comerciais com os belos homens e meninos encontrados nas praias, que traziam cicatrizes de lutas, mas pareciam livres de qualquer doença. A terra parecia cálida e relativamente deserta, além de rica em plantas desconhecidas e animais estranhos, muitos deles do tipo que dava pulos. A palavra “Austrália” não era de uso geral — refere-se ao termo latino que designa “meridional” e aparecera nos primeiros mapas como um possível continente desconhecido ou talvez tivesse srcem num explorador espanhol, que dera a um lugar que supunha existir o nome do seu monarca, Filipe III, cuja família era austríaca. Entretanto, o litoral que Cook chamou de Nova Gales e Nova Gales do Sul permaneceria vividamente na imaginação de Banks quando voltou para casa. Banks era agricultor, além de botânico, e achava que o solo e a água da borda da Austrália, de fácil cultivo para agricultores europeus, seriam capazes de garantir o sustento de bois, ovelhas e trigo. E, como rico proprietário de terras e cientista, Banks tornouse figura influente na Londres georgiana. Era membro do Conselho Privado do Rei, da Real Sociedade e de um grande número de organizações dedicadas ao saber. O homem nu que fazia cabriolas no Taiti tornou-se o potentado com perfil de batata de Piccadilly. O aventureiro e colecionador de cabelos desgrenhados tornou-se a aranha no centro de uma teia de debates botânicos e eruditos e foi nomeado conselheiro de George III em seus Reais Jardins Botânicos de Kew. Por isso, não é de surpreender que o Parlamento tenha recorrido a ele quando procurava um lugar para onde pudesse mandar criminosos condenados à prisão. Esse problema tornara-se urgente. Com uma população urbana em rápido crescimento e um “Código Sangrento” que a certa altura relacionava 220 crimes puníveis com a forca, a Grã-Bretanha precisava de uma forma alternativa de lidar com seus presos. A opinião pública estava ficando cada vez mais nervosa e preocupada com a prática de matar os mais pobres, o que incluía enforcar crianças, até mesmo por pequenos furtos. Num período de sessenta anos, a contar de 1770, 35 mil pessoas foram condenadas à morte, embora apenas sete mil tenham de fato morrido na forca.27 As prisões britânicas eram poucas e imundas. Para muita gente, despachar detentos de barco para outros lugares parecia a alternativa mais humana. Antes da perda das colônias britânicas na América, cerca de sessenta mil criminosos tinham sido mandados para lá, onde trabalhavam na terra durante alguns anos, até conquistarem a liberdade. Quando a independência dos Estados Unidos eliminou essa opção, criminosos passaram a ser confinados
em nauseabundos cascos de velhos navios desmastreados no Tâmisa. Porém, era uma resposta perigosa e pouco prática, e ministros precisavam achar outra colônia penal. Banks sugeriu a Austrália. Ali, como na América, criminosos britânicos poderiam fazer uma nova terra florescer e depois desfrutar de sua liberdade. “Botany Bay”, nome dado por Cook em homenagem ao entusiasmo de Banks por caçar plantas, foi o lugar escolhido. Em maio de 1787, a “Primeira Frota” de onze navios, carregados com 775 presos — incluindo 192 mulheres — mais 645 soldados, oficiais e parentes, partiu para uma penosa travessia de 36 semanas. Os presos tinham sido condenados por uma série de pequenos crimes, quase todos envolvendo furto — de roupas, relógios e alimentos até repetidos arrombamentos de casa. (O transporte de condenados por crime político, particularmente da rebelião feniana, viria depois.) Os primeiros de 165 mil presos chegaram à Austrália em 20 de janeiro de 1788. A prática foi enfim abolida nos anos 1850, pouco antes da migração muito maior da corrida do ouro australiana. O encarregado da Primeira Frota era um admirador e correspondente de Banks, o marinheiro profissional Arthur Phillip. Ele logo se deu conta de que Botany Bay era consideravelmente menos atraente do que o nome sugeria e transferiu a nova colônia para a localidade vizinha, Port Jackson (dando à enseada onde ficaram pela primeira vez o nome de “Sidney”, em homenagem a lorde Sidney, secretário do Interior e seu chefe). Os nativos, porém, não foram amistosos. Receberam os primeiros colonos aos gritos de “Warra, warra, warra!”, ou seja, “Vão embora, vão embora, vão embora!”.28 Quando, em vez irem embora, os colonos começaram a construir cabanas, houve ataques periódicos e intimidações vindos de algumas das 1.500 pessoas que já viviam na área, clãs do povo Eora. Phillip era um ambicioso marinheiro multilíngue, vindo de uma família pobre, que se considerava um homem moderno, produto do Iluminismo. Correspondia-se com Banks e não tinha a menor intenção de ficar apenas dirigindo uma enorme prisão. Insistia no primado da lei e na emancipação final dos colonos condenados, prometendo que na Nova Gales do Sul “não haveria escravidão”. Mas foi um duro começo que por vezes levou a nova colônia à beira da inanição. Açoitados, advertidos e, com pouca frequência, enforcados, os agricultores involuntários sobreviviam à base de rações trazidas por navios britânicos de suprimentos, que de vez em quando os reabasteciam, enquanto aprendiam a cultivar a terra e cuidar dos rebanhos de outros migrantes que também viajavam a bordo, as vacas. Londres, muito mais preocupada com as guerras contra os franceses, parecia tê-los esquecido, mas novas frotas e mais gente determinada acabavam chegando e a colônia se desenvolvia. Quanto aos povos aborígenes, furiosos e intrigados com os invasores, Phillip queria que fossem bem tratados. “Matem-nos”, dizia aos soldados e colonos, “e vocês serão enforcados”. A ordem do rei era que procurasse comunicar-se com o povo nativo — que “se empenhasse, de todas as formas possíveis, para iniciar relações com os nativos e conciliar suas afeições, ordenando a todos os súditos que vivessem num clima de harmonia e bondade com eles.”29 Isso teria sido ótimo se os clãs estivessem dispostos a simplesmente ceder seu excelente porto e suas áreas de pesca. Não estavam. Um dos oficiais de Phillip, um capitão de fuzileiros navais chamado Watkin Tench, escreveu que eles “pareciam nos evitar com cautela, por medo, ciúme ou ódio. Quando encontravam pessoas extraviadas, sem armas, às vezes matavam-nos, outras vezes feriam-nos”. Tench achava que os aborígenes eram, no fundo, pessoas de “humanidade e generosidade” que apenas reagiam a “ofensas não deliberadas” dos brancos.30 Algum tipo de comunicação precisava ser estabelecido, o que explica a captura de Bennelong, um homem casado, de vinte e poucos anos, do clã dos Wangal. Bennelong ficou seis meses, desenvolveu uma relação muito próxima com Phillip, a quem chamava de “pai” e deu um nome nativo, antes de desaparecer outra vez no mato.
Uma vez livre, convenceu Phillip a ir vê-lo, num momento em que seu povo comemorava o encalhe de uma baleia. Provavelmente por razões de honra, mandou um “homem sábio” ferir o governador no ombro com uma lança. Thomas Keneally, o historiador australiano, afirma que isso era consequência natural do costume aborígene de punir atirando lanças, e, na cabeça de Bennelong, Phillip foi castigado “por tudo: os peixes e caças roubados; a presunção dos britânicos de acampar permanentemente sem pedir permissão; os armamentos e redes roubados, [...] o abate aleatório de nativos; a praga da varíola; e as misteriosas infecções genitais das mulheres e, por consequência, dos homens”. Demonstrando notável compreensão, porém, Phillip deu ordem para que não houvesse retaliação e, quando enfim se recupero do grave ferimento, refez a amizade com Bennelong e supervisionou um período de melhores relações entre colonizadores e nativos. Mas não duraria muito. Em 1792, quando Phillip voltou para casa, Bennelong e uma jovem aborígene foram juntos, mais o menos como nativos americanos, a exemplo da princesa Pocahontas, tinham sido levados em tempos anteriores. Quando Bennelong foi exibido em Londres e levado ao teatro, à corte e às províncias, não parece ter atraído nada parecido com a atenção que outros “selvagens” antes dele atraíram, talvez porque á não fosse mais novidade. Ou talvez porque a Nova Gales do Sul já fosse vista como uma espécie de depósito de lixo horrivelmente prático onde deixar britânicos indesejados, em vez de um paraíso exótico. Já foi afirmado que Bennelong voltou para casa e levou uma vida triste, rejeitado pelo próprio povo e bebendo até perder a consciência em Sidney, além de repudiado pelos colonos que tinham trocado qualquer noção de nobre selvagem por um desprezo racista. A verdadeira história parece menos radical, embora não menos comovente. Bennelong continuou como conselheiro dos britânicos e aprendeu inglês o suficiente para escrever à família chefe de Phillip, Também manteve de umahonra” posição de poder entre os aborígenes, tornando-se de clãnadeGrã-Bretanha. umas cem pessoas. “Combates envolvendo lanças atiradas contra homens que tinham de se defender com escudos eram parte importante da vida aborígene, e Bennelong costumava participar. Voltou a casar-se, teve um filho e acabou a vida como ancião respeitado. No entanto, com os colonos se apossando de mais terras e as relações com os nativos em franca deterioração, qualquer noção de coexistência pacífica ou de amizade foi deixada de lado. Bennelong morreu com cinquenta anos, talvez em parte devido ao consumo excessivo de álcool, mas admirado por seu povo. O Sydney Gazette , porém, falando em nome dos colonos, chamou-o em se obituário não de “nobre selvagem”, como o capitão Phillip ou o jovem Joseph Banks talvez o fizessem, mas de “selvagem absoluto, impossível de ser tirado da forma e do caráter que a natureza lhe dera”. A admiração do Iluminismo por povos de caçadores-coletores vivendo sem roupas e sem hipocrisia não demorou muito para se desvirtuar em desdém colonialista. No fundo, colonização tinha a ver com força, não com amizade. O povo nu, tão admirado por Cook por sua honestidade, fora removido à força de sua terra porque os britânicos precisavam de um lugar para despejar seus ladrões, cujas famílias a que pertenciam também tinham sido, em muitos casos, expulsas da terra onde viveram por gerações. A industrialização e a colonização envolveram múltiplas migrações e expulsões. Na Austrália, alguns aborígenes recorreram à revolta declarada. Um deles, Pemulwuy, resistira bravamente em 1797: foi baleado sete vezes e capturado. Fugiu, com algemas no tornozelo, e foi morto em 1802. Sua cabeça decepada foi mandada para a coleção do grande amante da Austrália, sir Joseph Banks. A Austrália é apenas um exemplo bastante dramático de uma história que se repetiu também nas Américas, na África e no Extremo Oriente. Uma de suas vítimas seria o otimismo iluminista. A Revolução
Eles se reuniram, um exército de cidadãos patriotas declarando-se a favor da liberdade — “um direito inalienável [...] verdadeiramente emanado do povo” — e usando uma palavra nova na política europeia. Relembrando Atenas, identificaram-se como “democratas” e anunciaram que a terra não pertencia aos odiados aristocratas ou monarcas, mas ao povo. Usando fitas e carregando mosquetes, convocaram as pessoas comuns a “se armarem, a se reunirem e a tomarem conta dos negócios da terra”. Primeiro uma cidade, depois outra, todas foram caindo vítimas do levante revolucionário. Não se tratava, porém, da Paris de 1789, mas da Holanda quatro anos antes, onde rebeldes tinham proclamado uma nova constituição escrita, e seus “Corpos de Exército Livres” tinham capturado Utrecht, depois a própria Amsterdã. Exatamente como não tardaria a acontecer na França, símbolos absoluta:tinham os governantes de então eram a Casaverdes de Orange, por isso os a cor laranjaadquiriram foi banidaimportância — até as cenouras de ser expostas com as folhas o deixadas de lado. Os holandeses, porém, eram um povo pouco numeroso, e, quando irritaram o rei da Prússia prendendo um parente seu, o exército do rei invadiu e extinguiu com facilidade a incômoda demonstração de idealismo democrático. Extinguir a Revolução Francesa seria um pouco mais difícil. Quando a monarquia Bourbon enfim entrou em colapso, enredada em dívidas e politicamente paralisada, a França era o melhor país da Europa. Era o centro das ideias e das modas. O francês era a língua internacional da diplomacia e da boa sociedade. Seus exércitos eram enormes, e sua marinha, ainda não humilhada por Nelson, metia medo. Paris se achava a capital da civilização, e, para muitos, que ainda mal tinham consciência da China ou do Japão, isso parecia uma obviedade. Portanto, o impacto da Revolução Francesa — o maior acontecimento na política europeia desde a queda do Império Romano do Ocidente — sempre seria sentida no restante do continente. Revelou-se ainda mais importante do que isso. Juntamente com a revolução industrial, as duas mudanças concomitantes na cena europeia sem dúvida alteraram o curso da história humana. A revolução em Paris deixou um legado ainda mais difícil de avaliar. Deu ao mundo as noções de “esquerda” e “direita”. Introduziu na linguagem política o conceito de “direitos humanos” no sentido moderno e influenciou as constituições de países do mundo inteiro. Mesmo na época, tanto os que se extasiaram quanto os que se aterrorizaram com ela compreenderam que se tratava de uma virada decisiva na história, o começo de uma nova era. Também demonstrou como é curto o caminho que leva dos ideais abstratos para a repressão sangrenta, pois essa foi a primeira revolução a comer suas próprias crias — faminta, pública e rapidamente. impacto inicial no resto da Europa onão foi trazeroutra a liberdade, como Beethoven, Wordsworth e outrosSeu como eles esperavam, mas mergulhar continente vez na guerra, na fome e na repressão. Consta que, em 1972, o líder comunista chinês Zhou Enlai deu a seguinte resposta ao diplomata americano Henry Kissinger, que lhe perguntara sobre o impacto da Revolução Francesa: “Ainda é cedo para dizer.” Pode ser que, quarenta anos depois, isso já não fosse mais verdade. Quase tudo que diz respeito à Revolução Francesa é contestado, exceto quando começou. Foi quando Luís XVI convocou uma assembleia arcaica chamada “os Estados Gerais” no domingo, 5 de maio de 1789. Em tese, essa organização representava os três diferentes grupos de interesse da França — a nobreza, o clero e o “terceiro estado”, que representava todos os demais, desde comerciantes ricos a camponeses. Como já vimos, os absolutistas Bourbons tinham conseguido viver muito bem sem ela. Luís esperava que esse protoparlamento o ajudasse a aumentar os impostos, particularmente na aristocracia. A França sofria uma crise, a essa altura já familiar, na qual uma dívida estratosférica e uma base tributária demasiado estreita significavam que a velha maneira de governar se tornara insustentável — o que também tinha acontecido com as dinastias Ming e Qing, na China, e com os Stuarts, na Grã-Bretanha. Na França, apesar da teoria do absolutismo real, os grandes proprietários, o clero e as empresas
comerciais mais poderosas desfrutavam de imunidade contra a maioria dos impostos e, a bem da verdade, contra outras restrições legais. Havia uma densa teia de acordos consagrados que alguém, de alguma forma, teria de romper para evitar a falência da Coroa francesa. A situação fora agravada drasticamente pela decisão de ajudar a financiar os rebeldes americanos contra a Grã-Bretanha de George III. Isso contribuíra para aplacar o orgulho ferido da França pela perda de seus territórios indígenas e canadenses para os britânicos, mas transformara o crônico problema da dívida de moléstia em crise mortal. Ao mesmo tempo, numa série de verões ruins, somada ao aumento da inflação, tinha se tornado quase intolerável a vida dos pobres da zona rural, que nunca fora fácil. Luís e seus ministros precisavam encontrar uma resposta excepcional. Contudo, a convocação dos Estados Gerais, adormecidos num sono de 175 anos, se mostraria um pouco dramática demais. Luís deveria ter se lembrado de suas lições de história inglesa e da jogada parecida de Charles I, quando precisou arrancar dinheiro do Parlamento londrino. Em 17 de junho, o “terceiro estado” de representantes não aristocráticos e não clericais (na maioria advogados, funcionários, negociantes e jornalistas) se impôs aos outros dois, insistindo para que a organização se juntasse numa só, com a designação de Assembleia Nacional. Sem poder ou sem querer suprimir a instituição insurgente, Luís viu a ordem pública começar a degringolar na capital. Em 13 de ulho, os revolucionários derrubaram os postos de alfândega nos arredores de Paris, que representavam a autoridade real. No dia seguinte, 14, invadiram outro símbolo (quase vazio) doancien régime , a fortaleza e prisão da Bastilha. Uma onda de violência alastrou-se pela Coroa francesa, com ataques a abadias, assaltos contra aristocratas ricos e assassinatos de freiras e padres. Algumas cidades se proclamaram autônomas. Mas o poder definitivamente tinha mudado de lado. A Convenção não parava de baixar novas regras e acabou reescrevendo a constituição da França. De início, parecia possível acomodar o rei nessa nova ordem. Os revolucionários destruíram o velho sistema de províncias francesas, transformando-as em departamentos modernos, transferiram terras da Igreja para o Estado, declararam todos os homens iguais perante a lei, acabaram com a censura e a tortura, cancelaram os privilégios dos nobres e o aparelho urídico da servidão e começaram a construir um sistema de governo genuinamente representativo. Foi uma cascata de mudanças sem precedentes na história do mundo. Em 26 de agosto, a Assembleia divulgou uma “Declaração dos Direitos do Homem”, cujas promessas de liberdade e devido processo legal ecoaram por toda a Europa, deleitando os jovens e otimistas e provocando a inquietação de cortesãos em toda parte. O amedrontado Luís XVI foi obrigado a assistir a uma missa com os líderes dessa revolução, para comemorar suas notáveis conquistas. O mundo ficou maravilhado. A cada novo estágio, porém, as pressões da guerra, da fome e do medo empurravam os organismos que comandavam a revolução rumo a posições mais e mais extremas. A Assembleia Legislativa, que substituiu a Assembleia Nacional Constituinte depois das eleições de setembro de 1791, chegou-se mais para a esquerda, mas então foi, por sua vez, assoberbada pela declaração de uma Convenção Nacional republicana. Durante o período de 1792-1795, esta passou a ser controlada por um grupo extremista que chamava a si mesmo de “jacobinos”. A revolução parecia em perigo, cercada por inimigos prussianos e austríacos e, no exterior, em guerra contra os britânicos. A turba parisiense, ossans-cullottes , intimidava ao mesmo tempo que era manipulada por um novo fenômeno — os demagogos populares, primos dos líderes radicais da república romana da última fase. As ameaças alemãsoutra de vingança caso o rei ameaçado tiveram efeito contrário eao desejado, provocando onda de sangrenta extrema violência. Emfosse setembro de 1792, padres, aristocratas outros suspeitos de resistirem à revolução foram assassinados nas prisões de Paris e Luís finalmente foi deposto. A rigor, já era cativo no velho palácio das Tulherias, no centro da capital, depois de quase ter
escapado da França em junho. Durante a fuga, tinha sido localizado e preso em Varennes, não muito longe da fronteira oriental. Seu julgamento, no inverno de 1792, foi tema de apaixonados debates públicos. Acusado de 33 crimes, os deputados votaram esmagadoramente por sua culpabilidade, com poucas dezenas de abstenções e nenhum voto contra. A votação para condená-lo à morte, porém, quase de empate. Mas foi o suficiente: em 21 de janeiro de 1793, Luís foi executado, depois de perdoar seus inimigos, a voz abafada pelo rufar dos tambores. Sua mulher, a Habsburgo austríaca Maria Antonieta, figura particularmente odiada pela turba parisiense, foi guilhotinada em outubro, e o filho deles, de dez anos, apenas na teoria Luís XVII, morreu nas mãos de pais adotivos sem compaixão. Embora o destino da família real tenha escandalizado observadores estrangeiros, o maior drama foi o sangrento fim da própria revolução. A Convenção, que agrupara os jacobinos à esquerda e os mais moderados girondinos à direita, continuou sendo a arena teatral dos discursos, mas o poder real fora transferido para o Comitê de Segurança Pública, entidade menor e dirigida primeiro por Georges Danton, depois por Maximilien Robespierre. Por sua vez, o comitê passou a ser quase controlado pelo Clube Jacobino. O clube talvez não tenha ultrapassado os três mil membros em seu apogeu e, dentro dele, os que de fato tinham influência eram bem menos numerosos. Assim, uma panelinha controlava um comitê ligeiramente maior, que por sua vez controlava a organização de fachada. Lembrava muito a forma como os revolucionários comunistas no século XX, atrás da simulação de Congressos do Partido e parlamentos, montavam pequenos grupos internos dentro de “politiburos” — bonecas dentro de bonecas dentro de bonecas. E, como ocorreu com revoluções posteriores na Rússia, na China, no Vietnã e no Camboja, a panelinha governante acabou ficando obcecada por segurança, traição e a necessidade de “pureza” — esta última uma obsessão particular do ex-advogado de olhos verdes, o frio e hipnótico ideológica Robespierre. Mais uma vez como em revoluções posteriores, demonstrou-se grande fé no poder dos símbolos. Os revolucionários franceses declararam uma nova religião, o culto de um Ser Supremo, e montaram altares para a “Razão” em igrejas danificadas. Também acabaram com o velho sistema de contar dinheiro às vintenas, dezenas e dúzias (que sobreviveu na Grã-Bretanha até os anos 1970) e criaram um sistema decimal para substitui-lo. A mesma reforma “racional” foi realizada com medidas de distância e, mais radicalmente, com um calendário modificado. Tinha doze meses de trinta dias, designados pelos nomes de colheita, bruma, frio, neve, chuva, vento, sementes, flores, fenação, messe, calor e frutos. Começaram também uma nova contagem dos anos, com 1792 como o ano primeiro. Não só o mundo familiar de reis, padres e proprietários de terras tinha desaparecido, mas com ele também se foram as referências familiares para dinheiro, tempo e espaço. Nem Lênin iria tão longe. Essa lâmina de guilhotina, depois de separar o passado do presente, garantiu que não haveria reconciliação. Os jacobinos não chegaram nem de longe a matar tanta gente como revolucionários que vieram depois. Calcula-se que 45 mil pessoas morreram no “Terror”, em execuções públicas ou nas mãos de multidões violentas. Nas lutas regionais fora de Paris houve execuções à beira da estrada, enforcamentos sumários e afogamentos em massa em cascos de navio. O número de mortos chega a centenas de milhares, se a guerra civil e a fome em toda a França forem incluídas, contudo não foi a liquidação de uma classe inteira, pelo menos fisicamente. Naquela época, a França tinha cerca de 250 mil aristocratas do sexo masculino: não dá nem para começar a comparar essa carnificina com os milhões trucidados pelos bolcheviques e pelos comunistas chineses. Entretanto, no contam mundo bem da França no séculoque XVIII, o Terror foi aterrorizante o suficiente. números jamais todamenor a história; os detalhes ficam agarrados na imaginação tambémOs são importantes. Paris era, pelos padrões modernos, um lugar pequeno, com a nova máquina de matar ocupando, muito publicamente, o centro. Com certeza foi mais humana do que enforcamentos executados
de qualquer jeito ou do que a morte a machadadas, mas ofereceu uma forma pública de vingança popular espetacularmente sangrenta. O doutor Joseph-Ignace Guillotin ficou popular e apareceu na propaganda graças ao aparelho de decepar cabeças. A rigor, ele não o inventou, pois era contra a pena de morte, sobretudo contra a pena de morte como espetáculo público. (Também não é verdade, como muita gente supõe, que ele mesmo tenha sido vítima da guilhotina: Joseph-Ignace sobreviveu bastante tempo à revolução e morreu de causas naturais em 1814.) Guillotin queria que o aparelho, versões do qual tinham sido usadas na Escócia, na Inglaterra e na Alemanha, fosse visto como uma forma moderna e igualitária de despachar criminosos perigosos e os inimigos irredutíveis das mudanças. Durante o Terror, ele se tornou símbolo da determinação paranoica da ditadura de matar possíveis inimigos com o mínimo possível de processo legal e ofereceu um meio conveniente de fazer um acerto de contas com os que um dia foram ricos e poderosos. Panfletos eram vendidos com listas dos já marcados para execução, e multidões se reuniam para tripudiar e escarnecer. No fim, a matança se tornara tão rotineira que provocava tédio, e, ao que parece, as multidões escassearam. (Nada devia irritar mais do que ser transportado numa carroça para a viagem derradeira e descobrir que ninguém estava muito interessado em vê-la.) De todas as histórias do Terror, a que talvez melhor revele suas ironias é a de Jean-Paul Marat, assassinado no banho por Charlotte Corday, em 1793. Marat tinha seus lampejos de homem brilhante. De srcem relativamente humilde, chegou a ser considerado um cientista sério. Trabalhou no Soho, em Londres — onde parece ter adquirido o vício do café forte —, em Newcastle e na Suíça antes de se tornar médico famoso por suas curas em Paris, onde atendia à corte e aos aristocratas, cobrando caro e fingindo terfalhas statusdasemiaristocrático. Também escreveu políticos, incluindo inteligente análise das constituição britânica, que apesar de tratados tudo admirava. Defendia um uma sistema judicial mais humano e imparcial e, ao investir contra a tirania, nos primeiros estágios da revolução, fazia questão de ressaltar que Luís era, em essência, um bom rei, auxiliado por bons ministros. Mas parece que Marat sempre foi vaidoso e se ofendia à toa, o que trazia à tona sua paranoia. Seus escritos sobre eletricidade, calor e ótica eram amplamente lidos. Admirado por Goethe e Benjamin Franklin, não conseguiu despertar a admiração da (Real) Academia Francesa — e fervia de ressentimento. Gostava de discutir e tinha poucos amigos. Quando a revolução começou, e Marat passo a dedicar todo o tempo ao jornalismo e à política, descobriu que tinha um verdadeiro talento para a prosa agressiva e provocativa. Fustigando moderados como Lafayette, deu a seu jornal o nome deL’Ami du Peuple e via-se cada vez mais como o maior Amigo do Povo, o homem incorruptível e sem partido, vestido sem qualquer apuro e incentivando os pobres a exigirem seus direitos econômicos além de uma voz política. Eleito para a Assembleia Nacional, tornou-se a voz dos extremistas e chegou a ser julgado por incitar a violência — um julgamento encenado no qual o maior encenador era o acusado, o próprio Marat, triunfalmente absolvido. Apesar disso, teve de escapar para um breve exílio em Londres e, quando voltou, estava sempre fugindo de alguma coisa, escondendo-se, por vezes, nos esgotos de Paris. Marat sempre insistiu em seus escrúpulos e repúdio à violência. Dizia que detestava ver machucarem um inseto. No entanto, quando pegava a pena para escrever em defesa de uma revolução assediada pela rebelião de ruralistas realistas e por exércitos estrangeiros, o demônio do extremismo tomava conta dele. Já no início, em dezembro de 1790, antes de o Terror de fato começar, escreveu emL’Ami du Peuple que não era nos campos de batalha, mas na capital, que o inimigo precisava ser atacado. As execuções populares uma necessidade. “Seis por meses atrás, quinhentas ou seiscentas teriam bastado para evitareram que caísseis no abismo. Hoje, terdes deixado estupidamente vossos cabeças implacáveis inimigos conspirarem entre si, [...] talvez precisemos decepar cinco ou seis mil; mas, ainda que sejam vinte mil, não há lugar para hesitações.”
Mais tarde, como quem não quer nada, aumentou a cifra dez vezes, depois para metade de um milhão — pensamento de um embrião de Stalin ou Mao. Destilava vitríolo de sua pena ao comandar os ataques contra a facção girondina, mais moderada, que logo seria derrotada pelos jacobinos. De onde vinha essa raiva? Fisicamente feio, sofrendo de uma doença epidérmica dolorosa e repulsiva e vindo de uma família de exilados religiosos e políticos, devia trazer elementos de vingança pessoal em sua constituição. Mas parece ter tido pavor genuíno da volta dos monarquistas, que, como não se cansava de advertir os revolucionários, cortariam a garganta de todos, estuprariam as mulheres e estripariam as crianças diante de seus olhos. Marat foi morto de forma bem mais brusca, por uma simpatizante dos girondinos, uma mulher da Normandia chamada Charlotte Corday. Ela era um pouco parecida com Marat. Também tivera um começo de vida muito sofrido — a mãe morrera jovem e ela fora mandada para um convento —, e, como ele, fora muito influenciada pelo pensamento iluminista, particularmente Rousseau e Voltaire. (A história das pensadoras e agitadoras da revolução só começou a ser contada pelos historiadores nas duas últimas décadas, se tanto.) Da mesma forma, ela se aterrorizava com a possibilidade de a França mergulhar na guerra civil e horrorizara-se em particular com os massacres nas prisões, em setembro. Em julho de 1793, ela chegou a Paris, comprou uma faca de cozinha e, falando com um e com outro, chegou à casa de Marat. Nessa altura, o poder político de Marat estava em declínio, mas ele continuava a trabalhar sentado na banheira forrada de cobre, para atenuar a doença da pele. Ali, Corday lhe falo sobre os refugiados girondinos, e Marat jurou que em breve eles também perderiam a cabeça. Logo depois que a mulher de Marat saiu de casa, Corday esfaqueou-o no peito, cortando a carótida, matando-o rapidamente, enquanto ele gritava porpela socorro. Corday, é claro,e que foi guilhotinada, mas, antes de morrer, explicou que responsabilizava Marat onda de assassinatos matara um homem para salvar cem mil — a mesma justificativa dada por Robespierre para matar o rei. Marat sobreviveu como símbolo da revolução, um mártir cujo busto foi erguido em igrejas e escolas, cuja morte foi preservada na memória de todos pelo maior artista revolucionário da França, JacquesLouis David. O quadro mostra Marat caído para o lado, a pele sem defeitos, ainda segurando uma carta numa das mãos. A pose tem uma poderosa sugestão da descida de Cristo da cruz, à exceção dos anjos o das Marias enlutadas, e, a rigor, Marat foi mesmo comparado a Cristo na pureza do seu amor pelo homem comum. O indivíduo que fez a comparação, numa oração fúnebre, foi o Marquês de Sade, seu amigo. Coisa parecida aconteceu àqueles outros extremistas manchados de sangue, Lênin e Trotski, depois de sua morte. A raiva e a falta de misericórdia foram metamorfoseadas em amor e misericórdia, e daí construiu-se um culto. Enquanto isso, a revolução degenerava num zigue-zague de acusações e contraacusações. Grupos investiam uns contra os outros, e sangue corria pelas ruas. Até Robespierre caiu sob a guilhotina, gritando de dor e de medo, horrivelmente ferido depois de dar um tiro no próprio rosto. * ** Um ano depois da morte de Marat, o frenesi de matança revolucionária e de extremismo idealista parecia esgotado. Guerras lá fora consumiam mais tempo e energia da próxima fase de governantes, os da chamada Reação Termidoriana. Esses, por sua vez, tiveram de pedir ajuda militar para fazer face à rebelião e, com isso,e depois, de 1799em a 1802, jovemimperador. general corso Napoleão Bonapartealgumas assumiudas o controle,monarquista primeiro como cônsul 1804,ocomo Napoleão consolidaria principais reformas da revolução, pelo menos em princípio, ao mesmo tempo que instituía uma ditadura militar que mergulhou metade da Europa em sangue e sufocou a outra metade com fumaça de pólvora. O
ódio de Marat aos tiranos ajudara a criar um novo. Os “bolcheviques” da revolução tinham permitido o surgimento de um culto da personalidade com polícia secreta e guerras a serem travadas. Mas os princípios srcinais dos primeiros estágios da revolução — liberdade, igualdade e fraternidade ou, mais prosaicamente, imparcialidade jurídica e o fim dos privilégios especiais de monarcas e aristocratas — influenciaram enormemente movimentos reformistas da Holanda à Alemanha, da Inglaterra à Itália. Para começar, os exércitos aparentemente imbatíveis de Napoleão pareciam imbuídos de liberdade revolucionária. A maior realização civil de Napoleão foi o código civil francês, ou Código Napoleônico, uma simplificação radical e uma racionalização de antigas leis, produzindo um sistema único e coerente. Ele refez a França e exerceu influência em todo o continente. Em seu auge, o Império Napoleônico se estenderia até o Ducado de Varsóvia, a ponta da Itália e os Bálcãs, acabando com velhos direitos aristocráticos e com a discriminação religiosa — até mesmo contra os judeus — e difundindo novas leis e o sistema métrico decimal. Ludwig van Beethoven chegou a chamar sua terceira sinfonia, srcinalmente, de O Bonaparte. Mas consta que Beethoven, em sinal de protesto, rasgou a página que trazia o título quando Napoleão coroou a si mesmo imperador, rebatizando-a como Eroica e dedicando-a “à memória de um grande homem” — com ênfase na memória. Pois, embora na Itália, Espanha, Alemanha e Holanda os exércitos napoleônicos depusessem velhos governantes, os substitutos geralmente eram escolhidos da própria família de Napoleão ou entre os seguidores mais próximos. Enquanto os cambaleantes Habsburgos e Hohenzollerns assistiam, horrorizados, ele parecia estar construindo alguma coisa mais parecida com um novo império de família do que com uma nova ordem política, algo mais próximo da visão do Rei Sol, uma Europa dominada pela realeza francesa, do que do republicanismo de Robespierre ou Danton. Napoleão acabaria vitimado pelo excesso de ambição, mais notavelmente em sua tentativa de subjugar a Rússia, que terminou numa marcha espectral de volta para casa pela neve, mas também em sua longa e ineficaz campanha contra partidários espanhóis, ajudados pelos britânicos sob o comando de Wellington. Em seguida à batalha de Trafalgar, em 1805, quando a frota de Nelson destruiu as frotas francesa e espanhola depois de uma manobra espetacularmente perigosa, que custou a vida do mais famoso almirante, dentre outros, Napoleão perdeu a esperança de invadir a Grã-Bretanha. Isso levou a uma longa contenda entre potência naval e potência terrestre, durante a qual os britânicos bloquearam portos continentais, mas não conseguiam lidar efetivamente com “o próprio tirano corso”, cuja maior vitória veio no fim do mesmo ano, em Austerlitz, onde desbaratou os exércitos combinados dos austríacos e dos russos. Até seu fracasso russo, o gênio militar de Napoleão assombrara e confundira todos os grandes exércitos europeus. Foi só em 1813, na batalha de Leipzig — ou “Batalha das Nações” —, que eles enfim se juntaram em número suficiente para derrotá-lo. Russos, prussianos, austríacos e suecos, com sua imensa superioridade numérica sobre os franceses, além de alguns aliados italianos e poloneses, travaram a maior batalha da história europeia até então, envolvendo seiscentos mil soldados. A derrota de Napoleão permitiu que a coalizão de exércitos tomasse Paris e provocou um motim entre seus principais generais. Veio então a abdicação, seguida pelo exílio na ilha de Elba. A volta de Napoleão de Elba, e a reconcentração imediata de seus soldados em torno dele, foi uma das grandes aventuras da história do século XIX. Masfoi uma aventura. Os “cem dias” de seu último governo, quando o gordo Bourbon, Luís XVIII, fugiu de Paris, terminaram na batalha de Waterloo, onde o exército combinado do duque de Wellington, com a ajuda dos prussianos que chegaram no último minuto, venceu os franceses. O último exílio de Napoleão, para Santa Helena, no Atlântico Sul, o isolo definitivamente, e ali ele morreu, em 1821.
Napoleão tinha forçado as outras potências europeias a mobilizar suas tropas e a aprender a lutar numa escala que só se repetiria na Primeira Guerra Mundial. E por um instante ameaçou o governo das monarquias, que dominavam a Europa havia mil anos. Contudo, as guerras de conquista e o republicanismo são mutuamente excludentes, e seu legado político foi surpreendentemente pequeno. Isso não se aplica à revolução, cuja bagunça final permitira o surgimento do próprio Napoleão. A Europa retornaria à velha ordem, mas só por um momento — a um sistema de alianças reacionárias dominado pelo Império Austro-Húngaro, pelo último bruxuleio da França dos Bourbons e pela sombra sinistra da autoridade czarista russa como “xerife da Europa”. Mas a França nunca se curou por completo. Permaneceu radicalmente dividida entre seus velhos realistas, a identidade católica e os novos republicanos e revolucionários, divisão essa que se manifestaria em mais duas revoluções, levaria à radicalização da sociedade francesa, no caso Dreyfus, e continuaria a abalar o país através dos anos 1930, culminando na colaboração do regime de Vichy com a Alemanha nazista. Pelo resto da Europa, a memória dos “Direitos do Homem”, do governo republicano e de uma lei justa e moderna inspiraria radicais ao longo de todo o século XIX. As revoltas de 1848 no continente mostraram que o novo pensamento, que começara duas gerações antes em Paris, não poderia ser esquecido. O verdadeiro enigma é saber se é possível que uma reviravolta revolucionária total, seja ela qual for, não descambe em assassinatos em massa e, por fim, em ditadura militar. Faz sentido comparar os Levellers [“igualitários” ou “niveladores” sociais] ingleses, digamos, com os jacobinos franceses o com os bolcheviques russos? Seria mesmo faltar totalmente com o rigor histórico comparar Cromwell, Napoleão e Stalin? As situações eram muito diversas e os principais atores pensavam em si em termos muito diferentes, pelo menosesclerótica isso se pode afirmar. Uma velhauma autoridade — por mais injusta, surdamas às mudanças, e desprezível que vez seja derrubada —, é raro aexistir nova ordem esperando educadamente para entrar em cena, uma ordem mais racional, mais humana, mais progressista. O poder enlouquece. Nossos inimigos nos rondam. Há traidores por toda parte. Poderes de emergência são imprescindíveis. A severidade de agora resultará em suavidade futura. Não é hora de ter escrúpulos. E o desmoronamento da autoridade prossegue, até tanta miséria ser causada que há uma aceitação exausta do punho de ferro e da primeira promessa do ditador — que é a da lei e da ordem. Todos alegam falar em nome do povo, mas é claro que o povo — a verdadeira maioria de adultos vivos — não tem voz. As monarquias e os impérios têm seus problemas de sucessão, como vimos. Isso inclui golpes palacianos, filhos idiotas, guerras entre irmãos e a derrubada de uma família por outra. Porém parece que os problemas de passar de um sistema de governo para outro totalmente diferente são ainda mais sangrentos. Jacobino negro Hoje, o Haiti é um dos lugares mais pobres, desesperados, deteriorados, corruptos e de meio ambiente mais degradado do mundo. Trezentos e cinquenta anos atrás, era um dos mais ricos. Então chamado de Saint-Domingue, era a metade exuberante e de solo rico de uma das maiores ilhas do Caribe, cujas montanhas cobriam-se de florestas de madeira de lei, cujos morros abrigavam plantações de café, cacau, manga e laranja, cujas planícies cintilavam com a folhagem de campos de banana, tabaco e cana-deaçúcar. Colônia da França, sua riqueza construíra algumas das praças e mansões mais grandiosas de Bordeaux, Nantes e Marselha. Era considerada a colônia insular mais importante do mundo. À época da Revolução Francesa, seus portos recebiam mais de 1.500 navios por ano: a França empregava 750 navios imensos e 24 mil marinheiros só no comércio de Saint-Domingue.
Por que, então, um lugar tão farto e bem-sucedido se tornou a demonstração apavorante de tudo que pode dar errado na vida pública do homem? A resposta é a escravidão e o que aconteceu quando a escravidão entrou em choque com os altos ideais da democracia francesa. Saint-Domingue assistiu à primeira e única revolta bem-sucedida de escravos negros contra os opressores brancos. E embora o desfecho final tenha sido triste para o povo do Haiti, rapidamente esquecido quando os países brancos do norte ultrapassaram a fase das plantações de cana-de-açúcar e dos navios negreiros, o levante teve em seu coração um dos líderes mais inspiradores do século XVIII. Seu nome era Toussaint L’Ouverture. O pai era um chefe africano que tinha sido capturado na guerra, vendido como escravo e levado por um plantador de cana francês. O filho Toussaint, um dos oito rebentos do deslocado chefe de clã e de sua mulher católica, teve uma educação privilegiada, em comparação com a maioria dos escravos, aprendendo um pouco de francês e de latim, chegando a administrador do rebanho de gado na propriedade do seu senhor. Embora nunca tenha sofrido as torturas e as surras de chicote comuns na vida da maioria dos miseráveis trabalhadores das plantações de canade-açúcar, a verdade é que foi escravo até ser alforriado, aos 33 anos. À época da Revolução Francesa, á tinha mais de quarenta, com cabelos brancos, e era conhecido como “Velho Toussaint”. O sobrenome “L’Ouverture” (“A abertura”, em francês) era um apelido que se referia à sua capacidade posterior, como comandante militar, de encontrar uma “abertura” nas fileiras inimigas ou possivelmente a uma falha entre os dentes.31 Era um homem baixo, magnífico cavaleiro e de grande carisma. O mundo de Toussaint era parte do comércio atlântico de escravos, que perdurou por quase quatro séculos, até o fim do século XIX. Calcula-se que 12,4 milhões de pessoas foram capturadas na África, embarcadas em navios negreiros e levadas para o Caribe, para a América do Sul e para a América do 32 Norte, com quase dois milhões morrendo durante a travessia, antes de chegarem às plantações. Some-se a isso a grande proporção de mortes das guerras africanas, depois que reis ashantis, daomeanos, congoleses e outros, percebendo que os cativos poderiam ser altamente lucrativos, mataram os velhos e os jovens, e levaram os adultos saudáveis para a costa em marchas espectrais. Acrescentem-se, ainda, a taxa de mortalidade dos cercados para escravos na costa e o número dos que morriam no primeiro ou no segundo ano de “adaptação” às plantações, e o total de mortos é provavelmente maior do que o dos que atravessaram o Atlântico — cerca de dezesseis milhões.33 A captura sistemática de escravos africanos para trabalhar em ritmo intensivo nas feitorias a cé aberto das plantações de cana-de-açúcar fora inaugurada pelos muçulmanos árabes, que já tinham enfrentado suaslógicas próprias de escravos na Mesopotâmia. Mas ela foi às suasférteis últimas consequências pelarebeliões conjunção da navegação atlântica, da conquista de levada novas terras e do insaciável desejo europeu de açúcar, tabaco e algodão baratos. Foram os portugueses que iniciaram o negócio em suas primeiras aquisições, as ilhas de Cabo Verde e da Madeira, no fim dos anos 1400. Sua grande colônia no Brasil explica por que os negreiros portugueses acabariam sendo responsáveis por 40% do comércio de escravos; mas logo quase todos os países europeus que cruzavam os mares também estariam envolvidos, espanhóis, franceses, holandeses e dinamarqueses. No século XVIII, porém, os britânicos passaram a dominar. Há poucos episódios mais sombrios (ou mais conhecidos) na história do que o da “Passagem do Meio”, o estágio do comércio triangular no qual navios negreiros superlotados transportavam músculos humanos da África para as Américas. O açúcar e outras matérias-primas eram reimportados pela Europa, tendo os produtos manufaturados europeus sido mandados para as colônias já na primeira perna desse tráfico. A rigor, antes da primeira onda da revolução industrial, as economias europeias mais adiantadas usavam o trabalho manual de estrangeiros como máquina propulsora de sua prosperidade. Hoje, as
histórias dos movimentos antiescravistas de reformadores cristãos indignados são particularmente louvadas. Mas, por mais bravos que fossem esses homens e essas mulheres, o fato é que não varreram do mapa os dois séculos de tráfico. Tudo isso é simples e não muito remoto. O doce sabor do chá açucarado na boca, o estalar satisfeito do rum nos lábios, a suave sensação de uma camisa de algodão nova e a calma exalação de uma boa fumaça de tabaco eram os intensos prazeres físicos que permitiam a gerações de europeus desviarem os olhos da economia escravista da qual dependiam. Mesmo com a televisão e outros veículos modernos de comunicação, ainda é muito fácil desfrutar de um tablet com um design inteligente, de uma carreira de cocaína ou de roupas coloridas descartáveis sem pensar muito em como se tornaram tão facilmente acessíveis. A partir dos anos 1600, imensas fortunas foram feitas de Glasgow a Lisboa, belos terraços foram construídos em Bristol e Nantes e políticos poderosos foram financiados em Londres, Paris e Amsterdã, tudo pelo tráfico de escravos. A crueldade do negócio, das marcações a ferro aos açoites e das plantações aos escravos jogados no mar para alimentar tubarões e ao uso do canibalismo como castigo, é tudo tão repugnante que compromete seriamente o estilo e a ostentação intelectual da Europa iluminista. Os navios negreiros, superlotados de homens e mulheres acorrentados, cheiravam tão mal que sua chegada era percebida quando ainda estavam longe da costa. Os tubarões iam atrás deles no Atlântico, à espera dos corpos regularmente jogados no mar. Saint-Domingue era um dos mais famintos mercados de escravos no período mais intenso do transporte de escravos por britânicos e franceses, pois o clima tropical infestado de doenças e os rigores do trabalho de cortar e ferver a cana-de-açúcar os matavam depressa, e os proprietários de terra estavam sempre mais.emNovez século precedeu a Revolução cerca 850 mil escravos foram levados querendo para lá, mas, de a que população negra aumentar,Francesa, como seria de de esperar, quando a revolução começou havia apenas 435 mil escravos na colônia. Nada disso era especificamente francês. Os números sobre a Jamaica, governada por britânicos, eram parecidos. É uma perda de vida tão imensa que ajuda muito a explicar o que aconteceu quando esses escravos enfim se rebelaram. A colônia, governada pelo Código de Escravos de 1685, de Luís XIV, desenvolvera uma população complexa e imprevisível. Havia os ricos proprietários brancos, em geral os segundos filhos ou filhos bastardos de aristocratas franceses. Havia uma classe mais vasta de brancos pobres — lojistas, artesãos, capatazes de plantações e alguns agricultores. Depois vinha uma classe ainda maior de pessoas meio brancas e meio negras, fruto abundante de um século ou mais de homens brancos tomando para si mulheres negras. Esses “mulatos” se dividiam de acordo com uma hierarquia, dependendo do grau de brancura dos pais. Alguns haviam se tornado relativamente ricos, provocando o profundo ressentimento dos brancos mais pobres, embora não tivessem direitos políticos. Por fim vinha a imensa maioria de negros — quase todos, mas nem todos, escravos. Grupos de negros fugidos tinham encontrado refúgio nas terras altas de Saint-Domingue, onde praticavam cultos vodus e de vez em quando tramavam ataques a plantações. Nessa mistura explosiva, as notícias da Revolução Francesa chegaram como petardos. Os brancos ricos eram na maioria monarquistas, como seria de esperar, assim como os funcionários locais e os oficiais do exército. Mas muitos outros brancos eram republicanos entusiásticos, assim como muitos mulatos. Então, revoluteando na fronteira e esperando tirar vantagem do caos, havia os espanhóis em sua colônia, a outra metade da ilha, chamada Santo Domingo. Não muito longe, do outro lado do mar, havia os britânicos, sua colônia de Jamaica, e suaestava marinha temerosa. Portanto, acom história da Revolução Haitiana fadada a ser complicada. Escravos rebeldes por vezes se juntavam aos espanhóis contra os revolucionários franceses; os franceses lutavam dos dois lados; e os mulatos podiam tomar o partido dos monarquistas ou até mesmo dos invasores britânicos.
Todo mundo lutava para garantir um lugar, enquanto as notícias de Paris não paravam de mudar. Na primeira parte da revolução, democratas parisienses de classe média, muitos dos quais tinham ganhado um bom dinheiro no comércio de açúcar, inclinavam-se a preservar a escravidão. Os que faziam campanha contra a escravidão, incluindo ingleses, esperavam que a revolução fosse um momento decisivo, mas nisso foram frustrados. Debates na Convenção sobre Saint-Domingue eram realizados em código murmurado e constrangido, evitando-se a palavra “escravo”. Mais tarde, quando a revolução ficou mais democrática, proclamaram-se os direitos dos negros. Em aneiro de 1794, um ex-escravo, Jean-Baptiste Belley, falando na Convenção, exigiu que a escravidão fosse abolida e foi aclamado num clima de grande emoção. O historiador marxista do século XX C. L. R. James, que escreveu um relato pioneiro da revolta haitiana, declarou: “Era apropriado que um negro e ex-escravo fizesse o discurso que introduziu um dos atos legislativos mais significativos já aprovados por qualquer assembleia política.”34 Mas logo, logo, quando veio a reação antijacobina, o clima em Paris mudou violentamente — contra os escravos e a favor da velha ordem. O homem que tentava manter o curso que levaria à libertação completa de todos os negros de SaintDomingue foi Toussaint L’Ouverture. De início, com a Revolução Francesa veio o conflito entre os rivais franceses monarquistas e republicanos e entre os brancos pobres e os mulatos, que também queriam seus direitos. Houve também levantes de escravos em outras ilhas francesas, Martinica e Guadalupe. Toussaint, católico e médico especialista em ervas medicinais, começou como cauteloso e moderado líder dos escravos rebeldes, em busca de acordos e concessões e pronto para fazer acordos de anistia para os líderes — que, traiçoeiramente, levariam a maioria dos rebeldes de volta à escravidão. Durante algum tempo, lutou com os monarquistas espanhóis contra a revolução, tamanha era a suspeita que alimentava contra os radicais brancos mais pobres. Mas, à medida que ganhava experiência e alcançava êxitos como chefe militar — estudara cuidadosamente asGuerras das Gálias de Júlio César e parecia ter uma aptidão natural para a guerra tão grande quanto a do próprio Napoleão —, Toussaint adotou a abordagem radical dos Direitos Humanos dos líderes jacobinos em Paris. E transformou uma turba de escravos furiosos num exército disciplinado, esperto e determinado, que foi conquistando uma vitória depois da outra. Sua maior vitória foi contra os britânicos, que tentaram tomar a colônia, fingindo estar do lado dos negros e mulatos e da causa da liberdade, quando de fato sua intenção era explorar a fraqueza da França. Ministros britânicos lembravam-se perfeitamente de que escravos de sua própria ilha, a Jamaica, tinham se revoltado em 1760. Toussaint examinou, sem levar muito a sério, as ofertas britânicas, contudo estava ficando cada vez mais entusiasmado com os ideais da Revolução Francesa, embora não tanto com os agentes mandados pela França para contê-lo. Infligiu ao exército britânico uma das derrotas mais constrangedoras de toda a sua história. Isso tem sido ignorado e mantido em silêncio por historiadores patriotas, mas as baixas que custou aos britânicos rivalizaram em número com as da Guerra Peninsular contra Napoleão. Toussaint era um líder complicado. Parece que reverenciava genuinamente a França, porém declaro que, na prática, seria melhor que sua colônia fosse governada de maneira quase independente por ele mesmo, para ter certeza de que não haveria uma tentativa de trazer de volta a escravidão negra. Quando a revolução começou a tropeçar, e líderes mais conservadores assumiram o poder em Paris, ele lhes aviso que, se tentassem reaplicar a escravidão, estariam tentando o impossível. “Aprendemos a enfrentar perigos para conseguir nossa liberdade — e saberemos enfrentar a morte para preservá-la.” 35 A essa altura, apesar de todo o sangue derramado e das suspeitas, a revolta dos escravos já tinha transformado radicalmente as atitudes raciais na ilha. Quando um rival mulato de Toussaint chamado Rigaud foi acusado de se recusar a obedecer-lhe porque seu líder era um negro, ele respondeu: “É um matiz de cor,
mais ou menos escuro, que instila princípios de filosofia num indivíduo ou lhe dá mérito?” E continuou: “Acredito demais nos Direitos do Homem para achar que existe na natureza uma cor superior a outra. Para mim, um homem é um homem e nada mais.” Depois de expulsar os britânicos e tomar posse de Santo Domingo, Toussaint tornou-se, durante anos, praticamente o ditador da colônia. Parece ter feito um trabalho extraordinário na restauração de uma terra arrasada pela guerra, levando os trabalhadores de volta às plantações para evitar a fome, iniciando o estabelecimento de escolas e de um sistema de governo local, criando tribunais, construindo um hotel excelente, introduzindo impostos simples e enfrentando contrabandistas. Cercado por outros ex-escravos e por brancos liberais, dava soirées abertas ao público, nas quais recebia petições, e cruzava a ilha a cavalo para conferir todos os detalhes administrativos. Divulgou uma constituição impressa, com uma assembleia geral subordinada a ele na qualidade de governador. Cintilando no Caribe, surgiu a possibilidade de uma comunidade genuinamente multirracial governada por negros. Cintilava com brilho talvez excessivo, porém, para o gosto desse outro governante autonomeado, Napoleão Bonaparte, que não tinha paciência com negros e compreendia muito bem que a perda permanente de Saint-Domingue, que já fora responsável por dois terços da riqueza da França no alémmar, seria um golpe terrível. Brincou de gato e rato com Toussaint até que um breve interlúdio de paz com a Grã-Bretanha e seus outros inimigos lhe permitiu despachar vinte mil soldados — o maior exército que já tinha partido da França de navio — para esmagar a revolução negra. Toussaint a essa altura já se desentendera com alguns dos seus tenentes mais capazes e com adeptos mais radicais da causa negra, que o achavam leniente demais com os brancos e duro demais com se próprio povo.ser Não decidiaMas, se queria uma ruptura completa com a França, nem até que ponto sua ilha livre deveria radical. quando desembarcaram os generais de Napoleão, descobriram que nova ele era quase tão difícil de derrotar quanto os britânicos. Uma nova e violenta guerra começou, e os regimentos negros, cantando para os franceses as canções revolucionárias dos próprios franceses, por pouco não venceram. Se alguns dos principais comandantes de Toussaint não tivessem mudado de lado, ele poderia ter resistido até que a estação das chuvas e das doenças chegasse para liquidar os invasores. Como se viu, ele tentou negociar um armistício e foi traído, preso e despachado para a França, onde Napoleão mandou confiná-lo numa gélida prisão até morrer. Contudo, a história não acabou aí. A captura de Toussaint não esmagou o ânimo dos escravos libertos. Os comandantes franceses iniciaram uma brutal tentativa de exterminar os mulatos e matar tantos escravos que eles, intimidados, voltariam a aceitar a escravidão. Mas os afogamentos em massa, incêndios e ataques com cães especialmente treinados tiveram o efeito contrário e uma nova guerra de guerrilha começou. Pela primeira vez, aquilo começou a parecer uma guerra total entre raças, com as forças negras agora chefiadas por um ex-escravo cheio de marcas de chicote chamado Jean-Jacques Dessalines. Ele fora um brilhante general sob o comando de Toussaint, mas não tinha nem sua moderação nem sua modéstia. Terríveis atrocidades foram cometidas por ambos os lados. Enquanto revoltas locais eram deflagradas por toda parte, a força de vontade dos franceses se esgotou, e o resto da grande força invasora de Napoleão fugiu da ilha para ser capturado por navios britânicos que já estavam à sua espera. Dessalines, noutro episódio que lembra Napoleão, coroou-se imperador em 1804 e entro ostentosamente na cidade de coroa americana na cabeça, transportado numa carruagem cerimonial de fabricação britânica. No ano seguinte, talvez incentivado pelos tradicionais inimigos da França, que queriam ver a colônia eliminada de “Haiti”. uma vez Dois por todas, Dessalines ordenou umbritânico massacrefinalmente dos brancos que ainda restavam no agora chamado anos depois, o parlamento torno ilegal o comércio atlântico de escravos e a Marinha Real começou a capturar navios negreiros, libertando 150 mil escravos. O sistema do plantation começou a entrar em colapso. Isso, somado à
devastação do Haiti causada por anos de guerra e ao isolamento internacional provocado pelo massacre de brancos ordenado por Dessalines, condenou a ilha à condição de pária. Sua riqueza natural tinha sido aumentada pelo plantio de cana-de-açúcar, café, tabaco e outros produtos que o puseram no centro de um sistema internacional de comércio. No entanto, tudo isso dependia de brutalidade sistematizada. Até então, as pessoas puderam fingir que não viam, mas, no fim do século XVIII, a Grã-Bretanha enfim conseguiu prosperar enormemente em casa, graças a suas indústrias tocadas a vapor, e não precisava mais daquele negócio repugnante. Ainda assim, se os escravos de Saint-Domingue não tivessem levado a sério as promessas da Revolução Francesa e mostrado ao mundo que os negros sabiam lutar tão bem quanto ou melhor do que seus supostos senhores, os abolicionistas sem dúvida teriam enfrentado dificuldades ainda maiores. O mais triste de tudo, porém, é que, se Toussaint tivesse sobrevivido e construído sua pequena república, talvez deixasse atrás de si um legado mais substancial, e o Haiti de hoje talvez tivesse evitado seu destino de terra de ditadores e de pobreza. Varíola bovina Em Boston, nos anos 1720, vivia um reverendo caçador de bruxas chamado Cotton Mather, que se esforçou muito para identificar a mão de Deus no número assustador de filhos que ele e a mulher tinham perdido para o grande flagelo da época, a varíola. “Um filho morto”, refletia ele, “é um sinal não mais surpreendente do escravo que umaOnesimus, jarra quebrada ou uma flor deformada.” Mas Mather notou umaacoisa estranha a respeito de seu nascido na distante Líbia. Onesimus, que não pegou doença, tinha arranhões nos braços ainda do tempo em que era criança na África. Como outros escravos africanos, fora inoculado de acordo com costumes tribais. Mather ficou intrigado e pôs-se a pensar. Contudo, não fico intrigado o bastante para poupar seu escravo quando este cometeu um pequeno delito e teve de ser 36 vendido, mas o germe — de uma ideia, para variar — fora plantado. Do outro lado do Atlântico, na mesma época, uma senhora brilhante e bem relacionada seguia a mesma trilha. Mary Wortley Montagu contraíra uma infecção aguda de varíola em 1715, que destruiu a beleza de seu rosto e quase a matou. Quando acompanhou o marido embaixador em missão à Turquia, ela ficou sabendo do costume otomano de inoculação ou “variolização”, como era chamado — um pequeno corte na opele, um para poucoproteger de material doente o resultadoaoeraharém. uma infecção suave. Os turcos usavam truque a beleza de inserido mulherese destinadas Lady Mary usou-o para proteger o filho de seis anos. De volta à Inglaterra, dois anos depois, fez o mesmo com a filha e convenceu a princesa Caroline, sua amiga, a tentá-lo em seus herdeiros reais. Na Inglaterra, como na América, iniciou-se uma grande discussão. A varíola era uma doença horrenda e letal. Conhecida na China, na Índia e na África dos tempos antigos, provavelmente chegou à Grécia e a Roma na era clássica. Com certeza afetou os cruzados, que a levaram para a Europa nos anos 1100, onde a doença se tornou endêmica. Causava erupções e pústulas horríveis no rosto e no corpo, câimbras terríveis, cegueira e, com frequência, a morte. Os sobreviventes em geral ficavam marcados de cicatrizes, por vezes mutilados e cegos. As crianças eram as mais afetadas, e a varíola disseminava-se com maior eficácia em ambientes concentrados como as aldeias e cidades europeias. Calcula-se que, no século XVIII, uma em cada dez mortes na Inglaterra era provocada pela varíola. Em Glasgow, de 1783 a 1802, foi responsável por um terço das mortes infantis. A situação tinha pelo menos a mesma gravidade 37 na Rússia e, durante todo o século, só na Europa a varíola pode ter matado sessenta milhões.
Quando vemos recriações das aldeias da Inglaterra de Jane Austen, da Edimburgo do Iluminismo o das cidades americanas da época revolucionária, em geral os cineastas deixam de fora um elemento que teria sido evidente — as multidões de pessoas cobertas de pústulas e cicatrizes, os olhos espremidos pelas mutilações da varíola, indescritivelmente miseráveis. Um estudo concluiu que, “levando em conta o número de pessoas que a varíola matou, cegou, aleijou e cobriu de marcas e cicatrizes em dois mil anos de história escrita e oral, essa doença foi, provavelmente, a pior peste que já afligiu a humanidade”.38 Entretanto, as pessoas sabiam, desde a Antiguidade, que dar a alguém uma pequena dose de varíola podia resultar num ataque suave, que impediria um ataque posterior da doença em sua forma mais agressiva. Médicos da China antiga recolhiam cascas de ferida de portadores da varíola, secavam, moíam e sopravam o pó no nariz de pacientes, usando tubos especiais de osso. Também esfregavam deliberadamente o pus nas roupas das crianças. Na Índia e em partes da África, as pessoas o enfiavam nas veias com a ajuda de espinhos, engoliam, ou esfregavam nas feridas expostas. Foi essa a tradição com que o reverendo Mather deparou, entre os escravos de Boston, e que lady Mary conheceu nas casas de madeira de Constantinopla. Não era segredo. Mas também não era uma resposta. Médicos europeus tendiam a evitar a prática, e não por qualquer motivo absurdo. Uma pessoa que fosse infectada com uma pequena dose ficava sujeita a um ataque agressivo e, portanto, a morrer ou ficar mutilada. Já se contava com uma taxa de mortalidade de 3% a 5%, o que fazia da “variolização” um risco real. Outras vítimas ficavam cobertas de marcas ou cegas. Em Londres, um dos distintos amigos de lady Mary, o conde de Sutherland, perdeu o filho depois de inoculá-lo. Em ambientes onde havia muita gente, adotar a “variolização” podia, a rigor, disseminar a doença com mais rapidez do que normalmente ocorreria. Por fim, as facas sujas usadas por boticários europeus costumavam espalhar infecções. Médicos ingleses, seguidos de perto por cartunistas, zombaram de lady Mary e até sugeriram que a inoculação era parte de um complô estrangeiro para matar bebês ingleses. Tão grande era o flagelo da varíola, no entanto, que a “variolização” aos poucos ficou mais popular. Tal como praticada na Inglaterra, era uma experiência horrível. O menino ou a menina a serem inoculados passavam fome durante semanas, para debilitar a constituição, depois eram sangrados para afinar o sangue e mantidos numa escassa dieta de hortaliças. O corte era feito, e a varíola, inserida por ataduras com cascas de ferida presas em volta dele. Para impedir que a doença se espalhasse, a criança era amarrada e mantida numa “casa da peste” ou num celeiro com outros pacientes por dez dias, até as novas crostas de ferida soltarem. As condições eram imundas, e a experiência deixava em muita gente não apenas cicatrizes físicas, mas também mentais. Um menino de oito anos que passou pelo suplício quando Gloucestershire foi assolado pela varíola queixou-se, mais tarde, de que fora reduzido a esqueleto e nunca mais conseguira dormir direito. Seu nome era Edward Jenner. Jenner já havia perdido a maior parte da família e fora criado por um irmão caridoso e muito mais velho, um vigário mais ou menos bem de vida. Desde cedo era fascinado por botânica e logo decidiu que seria médico, trabalho que na época significava passar por aprendiz, e não pela universidade. Em Londres, tornou-se um dos favoritos do melhor cirurgião da época, John Hunter, e teve a oportunidade de ir com o capitão Cook em sua segunda viagem à Austrália. Preferiu, entretanto, voltar para Gloucestershire, para os prazeres mais sossegados da vida de médico do interior. Ali deparava regularmente com os estragos causados pela varíola. Enquanto praticava medicina, cultivava pepinos, fazia experiências com balões e cuidava da mulher doente, mantinha os ouvidos atentos — e de repente se viu refletindo sobre uma historinha do folclore local. Ao que tudo indica, as mulheres ordenhadeiras às vezes contraíam uma versão bovina da varíola, por isso chamada de varíola bovina. Uma vez infectadas com essa doença bem mais branda, dizia-se que
ficavam imunizadas pelo resto da vida contra o grande flagelo. Sugeria-se até que a longa tradição de canções e poemas que descrevem a cremosa beleza das mulheres ordenhadeiras tinha começado ustamente por causa da sua pele isenta de marcas de varíola. Pelo menos um fazendeiro, Benjamin Jesty, tinha tanta certeza da veracidade da história que infectou a mulher com pus de varíola bovina, em 1756. Coisas muito estranhas aconteciam no campo. Mas só quarenta anos depois o médico, já de meia-idade, fez sua famosa experiência. Ouvindo dizer que a filha de um fazendeiro, uma ordenhadeira chamada Sarah Nelmes, contraíra a varíola bovina na aldeia de Berkeley, em Gloucestershire, em 14 de maio de 1796, Jenner convenceu-a a deixá-lo extrair material de suas feridas e conservá-lo. Em seguida, fez um corte no braço de um menino chamado James Phipps, filho de um operário local, e infectou-o. O jovem Phipps, como era de esperar, contraiu a forma mais suave da doença. Quando se recuperou, Jenner fez outro corte, em o1de julho, e tentou infectá-lo com o material de varíola. (A ética de usar animais para fazer experiências médicas provoca debates acirrados nos dias de hoje. Na Inglaterra do século XVIII, usar um menino da classe operária, pelo visto, não causava muita comoção.) James não contraiu a doença. Jenner, que àquela altura era um médico com 24 anos de prática, teve tanta certeza do resultado que nem se preocupou em fazer novos testes e logo expôs sua ideia por escrito num panfleto. Foi um best-seller quase instantâneo. A história de como e por que a notícia se espalhou rápido é tão curiosa como a própria descoberta. Em primeiro lugar, Jenner era membro de um clube local de debate científico e apresentou sua descoberta como ciência comprovada, não apenas como remédio caseiro do campo. Sua argumentação se impôs, apesar de parcialmente errada, porque havia uma plateia grande e esclarecida, pronta e ansiosa para ouvir. Em segundo lugar, apesar de ser apenas um médico do interior, ele era bem relacionado. Graças à elegante cidade balneária de Cheltenham — um dos resorts surgidos quando as guerras francesas tornaram impossível para os britânicos endinheirados viajar ao exterior — ele mantinha contato com aristocratas e escritores influentes, que divulgaram a novidade. Logo o tratamento com varíola bovina tornou-se a última moda na Grã-Bretanha e rapidamente ultrapassou as fronteiras. Em 1799, a princesa Luísa da Prússia escreveu para Jenner pedindo material de “vacina” (a palavra vem de “vaca” em latim) e, no mesmo ano, o novo astro da medicina foi apresentado a George III. Para onde fossem a realeza e a aristocracia, a classe média ia atrás. No ano seguinte, o anfitrião e a anfitriã de um jantar formal ao qual Jane Austen compareceu insistiram em ler em voz alta o panfleto de Jenner para os convidados. Pelo ano de 1801, a Marinha Real já vacinava seus marinheiros, enquanto, em sua residência campestre de Monticello, na Virgínia, o presidente dos Estados Unidos, Thomas Jefferson, inoculou pessoalmente trinta pessoas. Aquele ano, a imperatriz da Rússia deu à primeira criança vacinada no país o nome de Vaccinof, e calcula-se que cem mil pessoas foram tratadas na Europa. A grande descoberta ultrapassou até mesmo as barreiras impostas pela interminável guerra europeia: em 1804, Napoleão mandou cunhar uma medalha em honra de Jenner e vacinar seus exércitos. Na realidade, Napoleão tinha uma reverência tão grande por Jenner que, quando o médico do interior lhe escreveu uma carta sobre o assunto, o imperador francês concordou em libertar prisioneiros de guerra britânicos. Um dos maiores admiradores de Jenner em Paris era o nosso filantrópico doutor Guillotin. Mas a descoberta também foi criticada. Cartunistas ignorantes zombavam da noção de infectar pessoas com material tirado de vacas. Médicos advertiram que nada de bom poderia resultar disso. Mais seriamente, outro famoso intelectual da época, Thomas Malthus, incluiu uma severa reprimenda a Jenner na segunda edição, a de 1806, de seu famoso livro de advertência contra o perigo da superpopulação. Para Malthus, o número de mortes causadas pela varíola era algo bom, pois mantinha a população sob controle. Se a vacina funcionasse, outras doenças simplesmente pipocariam para tomar o lugar da varíola
e fazer a seleção necessária. “A natureza não será, nem poderia ser, derrotada em seus propósitos”, escreveu Malthus. “A mortalidade necessária virá, de uma forma ou de outra.” A rigor, o sistema de vacinação faria da varíola o primeiro grande flagelo a ser erradicado. Discussões retardaram a legislação necessária em muitos países, incluindo a Grã-Bretanha, até o fim do século XIX. A varíola continuou a matar, cegar e aleijar pessoas no mundo inteiro, até boa parte do século XX. Mas, graças à descoberta de Jenner, a ONU pôde anunciar, em 1980, que a doença tinha sido erradicada por completo. O médico do interior, usando a nova crença na experimentação e o poder da publicação, fizera infinitamente mais pela felicidade dos seres humanos do que quaisquer revolucionários políticos de sua época, que proclamavam os direitos do homem com tanta estridência.
PARTE SETE O CAPITALISMO E SEUS INIMIGOS
1800-1918: A revolução industrial s ubverte a vida em todo o planeta — e depois se volta contra si mesma
A revolução industrial Entre meados dos anos 1700 e o fim dos anos 1900, o mundo mudaria mais do que em qualquer outra época desde a invenção da agricultura. O termo “revolução industrial” não faz sentido tecnicamente, uma vez que “revolução” implica um retorno a algo anterior, quando, na verdade, esse processo foi completamente novo. Mas o nome pegou. Essa megamudança, baseada em máquinas que usavam a energia estocada na terra (em carvão e petróleo) para produzir tudo, de roupas baratas a comida enlatada — e, também, para construir outras máquinas —, redefiniu a relação da humanidade com a natureza. Permitiu que as pessoas viajassemmuito mais rápido por mar, em navios a vapor, e por terra, em trens. Permitiu-lhes iluminar casas e locais de trabalho a um custo menor e com mais eficiência, ampliando imensamente suas horas úteis, sobretudo nas latitudes norte. Pôs boas roupas, bons utensílios domésticos e boa diversão ao alcance de milhões na Europa e na América — pessoas que antes jamais poderiam sequer sonhar em ter acesso a essas coisas. Mas o custo foi tão alto que muitos pensadores odiaram essa revolução, questionando sua validade, pois ela submeteu milhões de pessoas a trabalhos repetitivos e tediosamente duros, em ambientes confinados, obrigando-as a viverem em moradias urbanas atulhadas e insalubres. Seus efeitos sobre o meio ambiente, em cidades ou vales densamente povoados, podiam ser terríveis. Grandes quantidades de britânicos vitorianos morreram vítimas de doenças pulmonares causadas pela poluição — quase um quarto das mortes devido à má qualidade do ar.1 Em 1866, inspetores governamentais encontraram um rio, o Calder, tão poluído que suas águas podiam ser usadas como tinta, enquanto meninos ateavam fogo regularmente no canal Bradford, produzindo chamas de dois metros de altura em suas águas transbordantes de subprodutos químicos da indústria.2 À medida que a revolução se espalhava para os Estados Unidos, para a Europa continental e, em seguida, para o Japão, a mesma coisa acontecia com os imensos rios e sistemas lacustres dessas regiões. A revolução também tornou as guerras muito mais destrutivas. Ficou fácil para os países industrialmente avançados intimidar, ocupar e explorar os menos avançados, destruindo culturas seculares num piscar de olhos. A rigor, esse foi o período mais significativo de “destruição criativa” que a sociedade humana já tinha vivido. E, embora os países que a encabeçavam incluíssem alguns que dominariam a história do século XX, acima de tudo os Estados Unidos e a Alemanha (com França e Rússia seguindo de perto), a transformação começou nas úmidas ilhas da Grã-Bretanha. Ali, o aproveitamento de carvão, produtos químicos, minérios e eletricidade foi lento, se comparado a qualquer revolução política. Na Grã-Bretanha, levou mais ou menos um século, de meados dos anos 1700 a por volta de 1850, a partir de áreas relativamente remotas, como em Coalbrookdale, no desfiladeiro de Ironbridge, em Shropshire, onde o carvão e o ferro eram encontrados tradicionalmente perto da superfície, nasSeus áreas córnicaseram de minas de de estanho e também nos arredores mais da então modesta cidade de Birmingham. pioneiros homens negócios e fidalgos-cientistas, do que transformadores visionários. Em suas cerâmicas e bugigangas de metal, procuravam deliberadamente imitar velhos e conhecidos objetos feitos à mão e o uso de máquinas visava acima de tudo, ao lucro imediato. Não havia
um plano geral, nenhuma célula revolucionária. Os lucros eram suficientemente grandes para inspirar a produção rápida de cópias e uma concorrência quase desesperada. Quando a revolução industrial chego à Alemanha, aos Estados Unidos e a países menores como a Bélgica, a cascata de mudanças já ganhara velocidade, graças aos primeiros avanços britânicos. Mas por que a Grã-Bretanha? E por que nessa época? A industrialização teve mais a ver com política do que com os acasos da geografia, muito embora a Grã-Bretanha dispusesse de grandes depósitos de carvão e ferro. Não poderia ter acontecido sem o capitalismo — sem o sistema de capital intensivo, baseado no mercado e implacavelmente perturbador, em um sistema criativo / destrutivo de financiamento, compra e venda sob o qual o mundo ainda vive. A industrialização também pode acontecer sem capitalismo. A União Soviética e a China comunista o demonstraram. Contudo, nos dois casos exigiu extrema violência, enorme desperdício e, acima de tudo, o roubo ou a compra de tecnologia capitalista. Não é possível realizar experiências controladas com a história, mas parece que a industrialização não poderia ter sido produzida e mantida fora do sistema de mercado. E que, por sua vez, para funcionar adequadamente, precisou de um conjunto especial de circunstâncias. Essas circunstâncias ocorreram primeiro na Grã-Bretanha do século XVIII. Não porque os britânicos fossem mais bem-dotados por natureza — basta pensarmos nos inventores chineses e gregos, nos exploradores franceses e espanhóis, nos artesãos italianos e alemães —, mas porque felizes coincidências se juntaram para criar uma coisa inteiramente nova, mais ou menos como uma mistura aleatória de elementos químicos pode provocar uma reação em cadeia. Coincidências aconteceram país das quecolônias parecia bem pobrezinho. A Grã-Bretanha não tinha parecido com a riqueza de ouronum e prata espanholas, nem com o exército imenso e a nada corte cintilante da França. Decapitara um monarca, implorara ao filho exilado que voltasse e acabara importando uma dinastia estrangeira. Os territórios ultramarinos que tinha conquistado no começo de sua fase capitalista, fossem quais fossem, ainda eram marginais e, com as notáveis exceções do tabaco e de algumas plantações de cana-de-açúcar, não davam lucro. Também não era um tempo de paz, que permitisse que os britânicos se concentrassem em seus assuntos internos. Tendo acabado de sair, ainda cambaleando, de duas terríveis guerras civis, a Grã-Bretanha entrava num período, de 1689 a 1815, no qual quase um ano a cada dois seria gasto em guerras contra rivais europeus. O país ainda era escassamente povoado, mas já bastante desbastado de suas madeiras srcinais. Em 1696, um servidor público chamado Gregory King tinha calculado que a população da Inglaterra e do País de Gales não passava de 5,5 milhões, um décimo da qual vivia em Londres. Muitas pessoas ambiciosas e de espírito independente, sobretudo dissidentes religiosos, estavam ansiosas para emigrar e recomeçar a vida. Entretanto, por trás desse quadro um tanto desolado, mudanças enormes começavam a ocorrer. A primeira delas acontecia longe das cidades, nas planas e ondulantes terras de agricultura, onde proprietários mais adiantados, com o uso de arrendamentos mais curtos e alguns novos agricultores profissionais, vinham aumentando imensamente a produtividade de seus campos. O principal efeito seria sentido nas pessoas, tanto em seu número como nos lugares onde viviam. Estima-se que, antes do século XVII, nenhum país desenvolvido conseguira alimentar o povo sem empregar pelo menos 80% da população no campo.3 Da China à França, dos novos Estados Unidos à Rússia, isso queria dizer que no máximo um quinto da população se encarregava de cuidar do resto — como soldados, marinheiros, sacerdotes, governantes, burocratas, artesãos e comerciantes. Tinham riqueza excedente, mas não chegavam nem perto de formar um mercado consumidor para que o capitalismo pudesse decolar. Na Inglaterra, porém, a delimitação de terras comuns, a drenagem e os novos sistemas de rotação de culturas mudaram radicalmente essas proporções. Não é possível melhorar muito a produtividade dos
campos nas pequenas faixas de terra tradicionais. Também não há incentivo para investir em novas técnicas, sebes ou drenagem se os arrendamentos forem curtos. No entanto, a partir do fim dos anos 1500 — e em passo cada vez mais acelerado ao longo do século seguinte — a tomada e a delimitação das terras que tinham pertencido a todos alteraram a configuração do interior da Inglaterra. Campos maiores, onde mais alimento podia ser cultivado, eram criados, protegidos por sebes maiores e por arrendamentos mais longos. Foi um processo polêmico, que arrancou pela raiz antigas tradições de propriedade e manejo de recursos agrícolas. Para os olhos de hoje, os campos ingleses talvez pareçam aconchegantes, até preguiçosos, mas, para os lavradores dos séculos XVII e XVIII, a maior parte pareceria desoladoramente nova, bruta e pouco familiar, com seus grandes e rigorosos quadrados de terra lavrada. A Igreja e muitos escritores protestaram contra o efeito devastador de tudo aquilo sobre os pobres da zona rural. A dor causada à Velha Inglaterra repercute nas peças de Shakespeare e na poesia colérica e rural de John Clare. Mas a consequência disso foi que, por volta de 1700, a agricultura da Inglaterra era a mais produtiva da Europa, provavelmente duas vezes mais do que a de seus rivais mais próximos. Um ano depois, Jethro Tull apresentou sua famosa máquina semeadora puxada a cavalo. Logo depois disso, a rotação de cultura de quatro plantas, que usava trifólios e nabos para manter os campos ricos e fartos, foi importada de Flandres. Apesar da falta de qualquer conhecimento científico, os agricultores conseguiram desenvolver ovelhas e vacas maiores: dentro de um século, no mercado de Smithfield, em Londres, o peso médio de uma ovelha subiu de 12,7 quilos para 36,2.4 As mudanças ocorreram irregularmente, com Essex, Hertfordshire, Norfolk, Suffolk e Leicestershire à frente, mas, nos anos de 1750, tinham chegado também a outras partes das Midlands e do norte, impulsionadas pela entusiástica propaganda reformista nos ornais — também produto de impressoras novas e mais velozes. Um número bem menor de pessoas passou a produzir uma quantidade muito maior de alimentos, permitindo que um número muito maior de pessoas fizesse... qualquer outra coisa. Logo a mão de obra empregada nos campos ingleses já não 5 correspondia a 80% da população, mas apenas a 32-33%, uma transformação espantosa. Outros países também aprendiam a se alimentar com menos agricultores, ainda que não no mesmo grau. Para a Grã-Bretanha, isso significava duas coisas, ambas importantes no salto para o sistema capitalista. A primeira é que o medo ancestral da fome começou a diminuir. Ainda haveria épocas de fome depois de primaveras úmidas e gélidas, mas os excedentes de grãos eram estocados, e novos alimentos, trazidos de fora. A probabilidade de as pessoas assumirem riscos é menor quando temem passar fome, por issocomo o espírito de artesãos, aventura ganhou força. eAatividades segunda édoque passouque a haver gente para trabalhar lojistas, comerciantes gênero, eram muito pagos mais com moedas em vez de comida, como nos velhos tempos. Os novos moradores das cidades seriam os novos consumidores. Graças ao acelerado comércio internacional já descrito, que trazia especiarias, tecidos indianos, vinhos, tabaco, açúcar, seda e cerâmicas para as praias da Grã-Bretanha, as pessoas agora tinham o que consumir — novas necessidades de que nem desconfiavam. Abastecida e protegida por seus navios, tanto mercantes como militares, a Grã-Bretanha tornou-se uma economia de mercado muito antes de se tornar uma economia industrial. Uma economia de mercado melhor alimentada significava mais gente. Em 1700, a expectativa de vida na Inglaterra era de 37 anos, o que parece muito pouco, mas era melhor do que os 28 da França. Basta uma pequena melhora nas taxas de reprodução e sobrevivência para gerar uma população que cresce 6 Sem as rapidamente. Em 1850, no auge da revolução industrial britânica, a população tinha triplicado. mudanças nos campos e aldeias, isso não poderia ter acontecido. Entretanto, sem o sistema político adequado, também não. Como vimos, as guerras e a revolução política do século anterior tinham
reduzido aos poucos grande parte do poder independente da monarquia britânica, que então se vi engastada no Parlamento. Esse arranjo representava não “o povo”, mas as pessoas abastadas, como proprietários de terras (que incluíam donos de minas), negociantes ricos e investidores do comércio, assim como as panelinhas que governavam cidades pequenas e grandes. Dito assim, pode parecer que a Grã-Bretanha simplesmente trocou uma monarquia por uma oligarquia, mas as guerras de religião tinham sacudido a Grã-Bretanha muito além desse ponto. A derrubada da supremacia real resultou num judiciário de fato independente, enquanto só o Parlamento tinha autoridade para criar tributos. A Grã-Bretanha ainda tinha seus latifundiários, porém a tradição de primogenitura limitava o tamanho da aristocracia, ao mesmo tempo que o trauma da Guerra Civil levava condes, barões e viscondes a procederem com mais cautela. Já a França tinha uma aristocracia em contínua expansão, com muitos privilégios e direitos que oneravam bastante os camponeses produtores de alimentos. Na Grã-Bretanha, uma consequência da relativa fraqueza da velha ordem foi que o mau hábito de levantar fundos vendendo esses privilégios e monopólios entrou em declínio. Sob Jaime I, dizia-se que o inglês típico tinha uma casa construída com tijolos de monopólio e aquecida com carvão de monopólio. “Suas calças são mantidas no lugar por cintos de monopólio, botões de monopólio, alfinetes de monopólio”, e ele comia “manteiga de monopólio, groselhas de monopólio, arenque de monopólio, salmão de monopólio, lagosta de monopólio”.7 Incontáveis tarifas e barreiras comerciais continuavam a existir na França, na Alemanha e na Itália, mas estavam desaparecendo na Grã-Bretanha. Os britânicos desenvolveram um banco nacional usando a autoridade do governo para garantir seus empréstimos, com isso estabilizando a dívida nacional e dando uma sensação de segurança aos mercados de capital. Londres não tinha nem de longe a importância de Amsterdã como centro financeiro, mas estava chegando perto. Depois que o Banco da Inglaterra foi fundado, em 1694, bancos locais começaram a brotar em todo o país. * ** Se hoje é difícil para nós ter certeza das mudanças que ocorrem à nossa volta, para os britânicos dessa era de mercados em rápida mudança foi igualmente difícil. Muitos não se sentiam particularmente livres. Guardas-florestais com suas armadilhas para capturar pessoas, magistrados locais severos, a ameaça das patrulhas de recrutamento naval, rigorosas restrições religiosas que coagiam jovens ambiciosos — a tirania mesquinha estava em toda parte. No entanto, a tirania absoluta tinha desaparecido. A lei recorria a castigos bárbaros, mas também podia ser usada por muita gente que não era rica para proteger seus interesses. O parlamento podia ser influenciado por lobbies, em resposta ao crescente interesse pela mudança de leis que estorvavam mudanças. Quando os inventores e os primeiros capitalistas contestaram a velha ordem, a lei de patentes e o debate parlamentar seriam as pedras angulares de seu êxito. Houve outra diferença fundamental em relação à maioria do continente europeu. Junto com uma agricultura aprimorada, leis mais seguras e um governo menos opressivo, os britânicos agora tinham uma imprensa mais livre do que qualquer outra. Isso tinha começado com a produção regular de panfletos e cartazes repletos de calúnias e com as abusivas discussões sobre religião que infestaram os anos 1600, mas evoluíra para a coisa mais parecida que já se vira com um livre mercado de ideias. Cientistas — o “filósofos naturais”, como ainda chamavam a si mesmos — podiam publicar suas conjecturas sem medo do censor. Jornais transmitiam um enorme volume de informações sobre novos sistemas de lavoura e engenhocas diferentes, assim como sobre as ações de principelhos e generais e sobre preços de
mercadorias. Na Grã-Bretanha, discussões sobre política comercial e finanças podiam ser travadas abertamente. Um fato de grande importância era que, embora a Grã-Bretanha fosse estorvada por restrições comerciais e por um sistema de transportes deficiente, a indústria já estava instalada, apenas ainda não se organizara em fábricas. Homens ricos financiavam famílias que trabalhavam com máquinas de fiar e tecer em suas casas de campo de Yorkshire; nas cidades e aldeias em crescimento das Midlands, fabricantes de pregos, fivelas, parafusos e botões operavam nas oficinas de suas famílias. Nas tradicionais áreas de mineração de carvão, acima de tudo nos arredores de Newcastle, proprietários faziam experiências com máquinas em sua antiga luta para manter as minas mais fundas livres de água. Como na indústria de estanho, tinham usado rodas hidráulicas e polias desde tempos remotos, contudo agora experimentavam primitivos motores a vapor. Em 1679, o inventor francês Denis Papin expôs sua “marmita a vapor” na Real Sociedade e oito anos depois desenvolveu uma panela de pressão melhor e uma bomba a vapor. Dois engenheiros de Devon apropriaram-se de sua ideia, aperfeiçoando-a. Thomas Savery fizera alguns aparelhos primitivos, mas engenhosos, incluindo uma máquina a vapor usada por mineiros da Cornualha de 1708 a 1714; então, por volta de 1712, um pregador batista e engenheiro chamado Thomas Newcomen produziu uma versão mais eficiente. Custou a ser aceita nas minas de estanho de West Country, porém, depois que ele convenceu os donos de minas de carvão de Warwickshire e Newcastle a experimentarem as máquinas, seu uso logo aumentou nas áreas mineiras de Yorkshire, Lancashire e Staffordshire. Entretanto, elas pareciam servir apenas para um serviço, como sugerido na descrição que Newcomen fez de seus clientes: “Proprietários da invençãotanto para carvão elevar que águasópela força fogo.” As máquinas eramdepara tirar água de minas, mas consumiam podiam serdo instaladas ao lado das minas carvão. Mesmo naquela altura, a Grã-Bretanha já tinha coisas que outros países não tinham — inventores, abundância de matérias-primas, produção excedente de alimentos. Havia pequenos surtos locais de criatividade. Contudo, ninguém conseguiria prever a erupção quase vulcânica de inventividade prestes a acontecer ali, como não tinha acontecido na Itália, na Alemanha, na China, na França ou no Japão. Para examinar esses acontecimentos mais de perto, talvez seja proveitoso seguir a carreira do homem que pegou a invenção de Newcomen e a transformou em algo que levaria a energia das minas de carvão para milhares de fábricas, para trilhos de ferrovias e para dentro dos navios. Jame s Watt A carreira do engenheiro e inventor de máquinas James Watt é um clássico exemplo das limitações da época e de como esses limites são repentina e brilhantemente rompidos. O pai de Watt era um artesão, comerciante e pequeno capitalista. Sua base era o porto escocês de Greenock, portão de entrada para Glasgow, aonde navios chegavam carregados de tabaco, madeira, arenque, linho e açúcar. Watt pai vendia os elementos essenciais da construção naval, projetava guindastes para uso nas docas, investia em navios e consertava os instrumentos dos marinheiros. O filho James era inteligente, se bem que doentio. Era também habilidoso com as mãos e tinha um talento especial para a matemática. A Escócia onde cresceu já era conhecida por seu alto grau de alfabetização e pelo espírito prático das universidades. Só se unira formalmente à Inglaterra quando a Grã-Bretanha foi constituída, três décadas antes de James Watt nascer, e ainda era um jovem parceiro um tanto canhestro e inseguro do novo país. Quando James tinha nove anos, os britânicos do norte (como os escoceses por vezes se referiam a si mesmos), assim como os ingleses, tinham passado pela rebelião jacobita de 1745. Essa última jogada dos
católicos Stuarts unira clãs gaélicos, aventureiros franceses e irlandeses, católicos escoceses e ingleses. Embora “Bonnie Prince Charles” [Charles Edward Stuart] e seus seguidores falassem na restauração dos Stuarts, o que havia por trás daquilo era algo mais radical: a restauração de uma ordem pré-capitalista, aristocrática e feudal, uma verdadeira revolução contra os Novos Tempos. A rebelião chegou a Derby antes que os membros de clãs, preocupados com a colheita e com suas famílias, voltassem para o norte. Derrotada em 1746 pela disciplina de um endurecido exército moderno — a Batalha de Culloden foi mais um confronto armado do século XIX nas colônias do que uma luta entre oponentes iguais —, a revolta chegou ao fim. O que ela destruiu não foram exatamente os Novos Tempos, mas a maneira antiga, o mundo gaélico e de clãs do norte e do oeste. Por muito tempo, pelo menos entre romancistas e poetas românticos, a crueldade dos vitoriosos e a comoção do desaparecimento de um modo de vida pré-moderno obscureceram a verdade, ou seja, o fato de que o desfecho de Culloden foi vantajoso não só para a Inglaterra, mas também para a Escócia. Como bem o disse um historiador escocês, a União em 1707 dos dois países “envolveu uma Escócia com horizontes e possibilidades ampliados, um comércio em expansão, as boas coisas da vida”. 8 O êxito do príncipe Charlie teria bloqueado tudo isso. A vida de Watt abarcaria o melhor da Escócia e o melhor da Inglaterra, exemplificando a nova Grã-Bretanha de horizontes e possibilidades ampliados. Depois da revolta, a política escocesa praticamente deixou de existir. O país passou a ser governado por representantes de Londres. Em Edimburgo, não havia uma corte real para sugar ambições, como no resto da Europa. Por isso duas ou três gerações de escoceses tiveram de procurar trabalho e agitação fora dali. Graças a sua religião presbiteriana baseada no estudo da Bíblia, os escoceses tinham um gra inusitado de alfabetização e suas quatro universidades estavam livres da influência sufocante do establishment anglicano inglês. Em Edimburgo, Glasgow e Aberdeen, os estudantes eram incentivados a pensar a partir de princípios, a desafiar ideias recebidas. O resultado foi um notável florescimento de novas ideias — o famoso Iluminismo escocês. Watt, que não tinha a educação baseada no conhecimento do grego e do latim dos cavalheiros ingleses, era excelente campo para esse desenvolvimento, sugando ansiosamente as novas ideias divulgadas por homens que viriam a se tornar seus amigos, como o pioneiro da química Joseph Black e o filósofo do capitalismo Adam Smith. Antes disso, porém, precisava encontrar um meio de vida. Não era nenhum grande esforço para ele querer aprender a fabricar instrumentos matemáticos, acompanhamentos essenciais do novo saber científico. E, em 1755, foi com a maior naturalidade que fez a longa e sacolejante viagem da Escócia para Londres, a grande e fétida metrópole, para submeter-se ao aprendizado. No entanto, Watt esbarrou de imediato na velha barreira para meninos brilhantes que têm pressa. As guildas medievais, que ainda controlavam o comércio em Londres, tentavam manter gente de fora à distância e insistiam para que todo aprendiz trabalhasse sete anos. Watt era um recém-chegado ansioso para avançar depressa. Queria concluir seu aprendizado em um ano e acabou pagando para conseguir, mas essa manobra o deixou perigosamente exposto aos grupos de recrutamento naval. Em carta para o pai, queixou-se de que eles “agora coagem qualquer um em quem possam botar as mãos [...] a não 9 ser que se trate de um Aprendiz ou de um artífice confiável, é quase impossível escapar”. Se Watt tivesse sido tomado pela Marinha, não poderia ter apelado para o lorde prefeito, uma vez que já burlara o sistema de aprendizagem. Teve sorte e voltou em segurança para Glasgow, disposto a abrir a própria oficina. Mas Glasgow, como Londres, era uma cidade antiga, governada por carta real, cujas guildas tentavam a qualquer custo preservar seu reduto. E, como Watt não tinha acesso aos círculos burgueses de Glasgow, a guilda que importava no seu caso, a “Hammermen”, não lhe deu permissão para abrir uma oficina, apesar de não haver nenhum outro fabricante de instrumentos matemáticos na Escócia naquela época. Se essa situação
fosse representativa de toda a Grã-Bretanha, de uma terra de grupos de recrutamento que percorria as ruas sequestrando homens para servir na Marinha e de guildas profissionais ferrenhamente apegadas a seus antigos direitos de excluir todo mundo, salvo os poucos que escolhia, Watt teria sido forçado a resignar-se a uma vida de bicos e ninguém ouviria falar nele hoje. Ou, se os jacobitas tivessem vencido, ele acabaria seus dias frustrado, na oficina de uma ruela de Glasgow. Em vez disso, foi salvo pelo Iluminismo escocês. Especificamente, conseguiu emprego para consertar instrumentos astronômicos que tinham acabado de chegar da Jamaica para a Universidade de Glasgow. Ali, construiu uma oficina, fabricando seus próprios instrumentos e tornando-se indispensável para os professores. Como homem prático, sem formação clássica, teria sido apenas um empregado a mais em Oxford ou Cambridge. Em Glasgow, logo passou a ser considerado pelos cientistas alguém de mesmo nível social que o deles. Abriu sua loja na cidade e começou a estudar as últimas novidades em matéria de engenhocas, incluindo máquinas a vapor. Em 1763, quando tinha 27 anos, foi incumbido de consertar o modelo de um motor de Newcomen pertencente à universidade. Watt fez a recuperação, mas achou o motor bem malfeito e ineficiente. O princípio era fácil: o vapor entrava num cilindro, empurrando um pistão para cima. Então, o vapor condensava-se, ao voltar ao estado líquido criava-se um vácuo que fazia o pistão abaixar. Era o movimento para cima e para baixo que impulsionava a bomba das minas de carvão. O problema era que a maior parte do vapor escapava. Como melhorar? Dois anos depois, ainda intrigado com a ideia do “calor latente”, expressão cunhada pelo amigo Black — quer dizer, o calor recebido ou cedido durante uma mudança de fase, como quando a água ferve ou o gelo derrete —, ele descobriu de repente a solução. Foi, peloNuma menos assim elemanhã se lembrava, um momento clássico de “eureca”. ensolarada de domingo em Glasgow, Watt passava por uma lavanderia (provavelmente um lugar vaporífero) quando lhe ocorreu que, se o vapor corria para dentro de um vácuo, onde quer que o vácuo estivesse localizado, ele poderia colocar um tubo ou cilindro separado ao lado do cilindro principal para capturar o vapor e fazê-lo voltar ao estado líquido. Com isso, o cilindro principal ficaria aquecido e o desperdício de energia seria muito menor. O motor usaria menos carvão e produziria mais potência. A ideia de uma duplicata, o condensador separado, pode parecer simples. Mas teria ocorrido a alguém que não se interessasse pela teoria científica (como explicaram os amigos de Watt na universidade) e fosse, ao mesmo tempo, fabricante de instrumentos práticos, com tempo livre para pensar e espaço físico para escarafunchar dispositivos mecânicos? Ainda havia um longo caminho a percorrer, com frustrações, fracassos, equívocos e erros experimentais, mas a capacidade de entendimento de Watt transformaria o cenário industrial, primeiro na Grã-Bretanha, depois no mundo inteiro. Ele pegou uma simples bomba de tirar água de mina de carvão e transformou-a numa máquina de aplicação universal. Watt lembrava-se bem daquele momento: “Não tinha nem passado do clube de golfe quando tudo se arranjou em minha cabeça.”10 Contudo, não poderia prosseguir sem dinheiro, apoio e ajuda de outros engenheiros. Precisava de capital, de respaldo que lhe permitisse produzir protótipos e, depois, de máquinas para vender. Embora houvesse um número cada vez maior de bancos privados na Grã-Bretanha, ainda era cedo demais para um inventor chegar ao gerente de seu banco e esperar que ele lhe emprestasse dinheiro suficiente. A maioria dos empresários tomava emprestado de amigos, mulheres ou parentes. Os primeiros a apoiarem Watt foram seu amigo médico Joseph Black e, mais significativamente, um empresário entusiasmado, de nome John Roebuck. Roebuck, como Watt, era produto de uma nova Grã-Bretanha. Era um químico de Sheffield e Birmingham, que estabelecera uma bem-sucedida casa de fundição em Carron, Stirlingshire. Seu canhão de curto alcance, conhecido como “carronade”, seria usado por todo mundo, do duque de Wellington ao
exército imperial russo e, mais tarde, pelos novos Estados Unidos. No passado, as manufaturas tinham ocorrido onde surgiam, totalmente por acaso. Roebuck introduzira uma novidade. Tinha começado do básico, perguntando onde havia boa força hidráulica, suprimentos de minério, pedra calcária, carvão e boas redes de transporte, só então montara sua operação a partir da estaca zero. Por acaso o lugar escolhido era na Escócia, mas ele importou da Inglaterra os empregados mais importantes. Suas 11 providências são descritas como “uma mudança decisiva na estrutura da indústria”. Roebuck precisava de carvão para sua fundição, por isso comprou uma bacia carbonífera nas proximidades, porém descobriu que ela sofria do perene problema anterior a Watt de excesso de água no subsolo. Ouvindo falar do projeto de Watt, ajudou a financiar uma versão inicial que, no entanto, não tinha força suficiente. Embora tenha entrado em sociedade com o engenheiro mais jovem, Roebuck faliu — uma das primeiras quebras de banco foi em parte responsável — e vendeu sua parte da invenção de Watt para outro inglês ansioso, Matthew Boulton, de Birmingham. Essa cidade agora se torna parte essencial da nossa história. Havia muito tempo já que Birmingham era um centro importante para ferreiros e metalúrgicos. Fornecera espadas em grandes quantidades para os exércitos de Cromwell durante a Guerra Civil, canhões para ambos os lados durante a rebelião jacobita e fivelas e botões para meio mundo. Mas, como cidade, custou a desenvolver-se e usufruía a maravilhosa benesse de não ter uma carta real, de modo que as guildas e associações de artesãos não tinham influência, o que mantinha suas portas abertas para empreendedores e aventureiros do comércio. Dissidentes se juntaram ali, e a cidade já contava com uma efervescente vida intelectual. Logo, membros da famosa Sociedade Lunar, experimentadores como Erasmus Darwin (o brilhante avô de Charles), e o químico e radical dissidente Joseph Priestley se reuniam no domingo mais próximo da lua cheia (que lhes permitia chegar em casa com mais segurança) para debater questões de química, física, evolução, os novos canais e fábricas, e muito mais. 12 Birmingham ficava muito longe de Londres — o que lhe fazia muito bem. Um dos homens da Lunar era Boulton. Tratava-se de uma dessas figuras do século XVIII cuja energia e amplitude de interesses eram comparáveis aos de qualquer personagem do Renascimento. O pai, outro Matthew, tinha sido um bem-sucedido metalúrgico de Birmingham. O jovem Matthew inventou umas fivelas de aço que ficaram tão na moda que passaram a ser exportadas para a França e reimportadas, pois nada tão chique poderia vir srcinariamente de Birmingham. Ele adquirira capital casando-se com uma herdeira, depois herdou o negócio da família em 1759 e o ampliou imensamente para o Soho, ao norte de Birmingham, apostou tudo num enorme centro manufatureiro movido a energia dispunha seus onde operários em compartimentos designados, dependendo dos artigos a seremhidráulica. produzidosAli, — fivelas, correntes de relógio, punhos de espada ou caixas de metal. Esses itens não demoraram para ser vendidos em toda a Europa, contudo a fábrica — pois é o que era — ainda dependia de habilidades manuais especializadas, com uma ajudazinha da água corrente. O que Boulton precisava era de uma fonte de energia mais confiável. Boulton e Watt viviam longe um do outro, mas frequentavam círculos parecidos. Ambos promoveram os novos canais, o grande avanço na área de transportes da era pré-ferroviária e ambos se mantinham em contato com os mesmos filósofos e outros entusiastas. Boulton conhecera Watt em 1767 e lhe mostrara o Soho, tentando convencer o escocês a ir para Birmingham. Entretanto Watt, constantemente deixando de lado sua máquina a vapor para tocar outros projetos, custou a responder. Só quando já se haviam passado sete anos, depois da traumática morte da mulher, ele enfim resolveu deixar a Escócia e mudar-se para o sul. Tivesse ela sobrevivido e os projetos de engenharia de Watt na Escócia dado mais certo, ele seria lembrado hoje, muito provavelmente, como projetista de canais nas Highlands. Em vez disso, em 1774, James Watt foi para Birmingham, no sul, e uma de suas máquinas de mina de
carvão — que ele chamava de “fire-engine” [máquina de combustão] — foi instalada no Soho. Funcionou, não brilhantemente, mas bem o suficiente. Watt logo fez sociedade com Boulton, cujo principal negócio continuava sendo metalurgia. Watt agora dividiria seu tempo entre duas tarefas de igual importância. Escarafunchava e experimentava, trabalhando sem parar no aprimoramento de sua máquina, introduzindo uma série de melhorias pequenas, porém cruciais. A grande e experiente mão de obra dos mecânicos do Soho ajudou muito, mas pode-se imaginar a mesma cena acontecendo nos arredores de Paris ou Hamburgo. Ao mesmo tempo, Watt e Boulton travavam uma batalha jurídica longa e feroz nos tribunais britânicos e no próprio Parlamento para proteger seu copyright intelectual contra os ladrões de ideias já em atividade. A noção de que um inventor merecia uma grande fatia dos lucros advindos de sua ideia, de que dispositivos mecânicos podiam enriquecer alguém, era muito nova. Os primeiros inventores comportavam-se, frequentemente, como filantropos, expondo seus pensamentos diante da imprensa e esperando, acima de tudo, ficar famosos. Mas as patentes e, por conseguinte, os lucros eram essenciais para estimular a horda de pessoas inteligentes e ambiciosas, que transformariam a Grã-Bretanha num viveiro de invenções. As lutas de Watt com a política e com a lei foram cansativas e por vezes devem ter parecido inúteis, mas são tão importantes para a história da industrialização quanto sua máquina e não teriam produzido resultado algum em outros países europeus daquela época. Boulton, apesar de ter recebido uma segunda benesse matrimonial (nova mulher, nova fortuna), lutava desesperadamente para conseguir capital. Muitas das novas máquinas foram vendidas para empresas de estanho da Cornualha, que obtinham o dinheiro para comprá-las em parte da economia feita com carvão. Mas negócios escusoslhe e acusações de monopólio, assim como o demorado pagamento de outros produtos vendidos no exterior, causaram sérias dificuldades. As máquinas de Watt foram empregadas primeiramente em minas, porém logo em seguida também em moinhos para produzir farinha, fábricas de cerveja e outras fábricas. Ao todo, entre 1775 e o fim do século, a empresa produziu cerca de 450 máquinas a vapor. Boulton ampliou seus negócios, passando a produzir moedas. Nessa época, a Grã-Bretanha sofria uma praga de falsificação de moedas tão severa que a Casa da Moeda Real tinha parado de cunhar. Boulton, em sua “Cunhagem do Soho”, já tinha produzido moedas para o livre mercado, assim como moedas para governos estrangeiros, para os britânicos na Índia e, finalmente, para os britânicos na própria Grã-Bretanha. As moedas dependiam, para manter a alta qualidade, de quantidades fixas de metal, da exatidão da forma e da fabricação em escala industrial: precisão e confiabilidade eram coisas que o novo sistema de Boulton, com suas máquinas de Watt, podia garantir. Olhando em retrospecto a história deles, fica mais fácil ver por que a industrialização levantou voo primeiro na Grã-Bretanha. O Estado ainda era antiquado. O que hoje chamamos de “infraestrutura” era primitivo. Havia algumas boas estradas, alguns canais úteis, mas o comum era a viagem enlameada e perigosa. Os bancos eram pouco confiáveis; as leis comerciais, cheias de furos; o parlamento, uma rinha onde direitos adquiridos repeliam os recém-chegados; e o país estava obcecado por suas guerras no ultramar. Contudo, tanto na Escócia quanto na Inglaterra exercitava-se uma livre e vigorosa troca de novas ideias. Longe de Londres e fora das antigas restrições das guildas, homens conseguiam construir, negociar e experimentar livremente, fazer lobby com políticos e orgulhar-se da nova filosofia do capitalismo explicada pelo amigo de Watt, Adam Smith, emA riqueza das nações, publicado em 1776. Também podiam ficar da ricos. Watt e Boulton de ferrovias e pontes de ferro, de novos tipos de navio, iluminação a gás, darepresentam eletricidade,osospioneiros iniciadores de revoluções em cerâmica, vidro, tecidos e ferramentas mecânicas, homens de gênio tão diversos como Humphry Davy, Michael
Faraday e Abraham Darby. Eram todos notáveis. Também eram todos homens de sorte: aquela época, aquele lugar. Escuro, satânico e contagioso Mas a industrialização de partes da Grã-Bretanha teve um custo terrível. Arrancadas de seus velhos ritmos sazonais e de seus feriados religiosos, as pessoas eram obrigadas a trabalhar de modo muito diferente. Já se estimou que, durante os anos 1700, a média anual de dias de trabalho na Grã-Bretanha aumentou de 250 para trezentos. Aqueles eram dias para viver, amar, contar histórias e ensinar que foram perdidos. Os que madrugavam todos os dias saíam de casa cambaleando no escuro e iam para fábricas e oficinas iluminadas artificialmente, onde passavam doze horas em pé, com o tempo regulado por grandes relógios mecânicos. As famosas fábricas negras de carvão, com suas imensas chaminés, de início eram raras, sobretudo nas cidades algodoeiras de Lancashire, mas as moradias atulhadas e de qualidade inferior e a fumaça de carvão que cobria tudo apresentavam uma imagem convincente do inferno para escritores tão diversos como Charles Dickens, Friedrich Engels e a rainha Vitória. Apesar de as crianças sempre terem trabalhado no campo, realizando as tarefas mais leves, foram pressionadas a integrar a força de trabalho industrial e, de tão maltratadas que eram, até mesmo naqueles tempos severos surgiu um movimento para limitar sua jornada de trabalho. Movido pela mesma indignação cristã que impulsionou o movimento antiescravidão, esse deu como resultado uma série de Leis da Fábrica, limitando jornadas e estabelecendo requisitos de saúde e segurança. Mas um sinal lúgubre da vida das crianças operárias do começo do século XIX transparece nas cláusulas da primeira dessas leis, de 1802, estipulando que elas podiam trabalhar até oito horas por dia a partir dos nove anos e doze horas a partir dos catorze, que só podiam começar a trabalhar depois das seis da manhã e que não podiam dormir em grupos de mais de duas pessoas na mesma cama, devendo receber uma hora de instrução sobre cristianismo aos domingos. Mesmo com multas leves, essas leis eram quase sempre ignoradas. Seguiram-se mais relatórios, escândalos e leis. Em seus livros, Dickens e sua amiga romancista Elizabeth Gaskell ressaltaram as condições de trabalho nas fábricas, jornalistas pioneiros exploraram as cidades do norte como se fossem selvas estrangeiras — e, para sulistas de classe média, era o que elas eram. A industrialização também alterou a política britânica das mais inesperadas. Notrabalhavam período de 1811-1816, em Nottinghamshire, Yorkshire e Lancashire, osmaneiras velhos artesãos tecelões que com teares manuais instalados em casas de campo se revoltaram violentamente contra os novos teares mecânicos das fábricas, que destruíam seu meio de vida. Dando à sua batalha o nome de um combatente fictício da liberdade chamado Rei Lud, esses “ludistas” arrebentaram máquinas, atacaram patrões e magistrados e, tendo praticado manobras noturnas nos arredores das cidades industriais, acabaram enfrentando o exército. Muitos foram enforcados ou mandados para a Austrália. Em 1830, trabalhadores agrícolas de Kent iniciaram os “Motins de Swing” — outro ataque às novas tecnologias destruidoras de empregos, nesse caso as debulhadoras mecânicas. A Nova Lei dos Pobres, de 1834, que substituiu o sistema elisabetano de assistência paroquial por uma rede nacional de lúgubres asilos destinados a forçar os mais pobres a deixarem a zona rural para procurar emprego nas cidades, ou a viverem em condições deliberadamente difíceis, separados por sexo, em edifícios parecidos com prisões, provocou violentos protestos em cidades como Bradford, Oldham e Huddersfield. Em 1834, também, os “Mártires de Tolpuddle”, seis trabalhadores da agricultura de Dorset, que tinham formado um sindicato contra os baixos salários, foram levados para a Austrália. O
protesto popular que veio em seguida resultou numa campanha que exerceu grande influência no desenvolvimento do sindicalismo trabalhista. Para muitos visitantes do continente, desde o capitalista alemão Engels ao artista francês Gustave Doré, a Grã-Bretanha era ao mesmo tempo um exemplo incrível de novas formas de produzir coisas e uma visão da desigualdade humana levada longe demais. Antes do advento da industrialização, a política britânica tinha sido um equilíbrio entre a influência das velhas elites — proprietários de terras e pequena nobreza —, dos comerciantes urbanos e do clero, mais a dos novos empreendedores. Agora, esse equilíbrio fora rompido. De 1780 a 1830, a população da Inglaterra dobrou. A produção industrial triplicou. Grande parte da riqueza crescente foi para as cidades, e os governos se viram obrigados a defender os direitos de propriedade de donos de fábrica, a mandar soldados para desbaratar protestos operários e a alterar tanto a lei como o sistema político, para que refletissem a nova riqueza e o novo poder. A Câmara dos Comuns fora eleita a princípio por eleitorados cujas srcens estavam meio perdidas no tempo, muitos deles “distritos decadentes” sem qualquer relação com o crescimento das cidades industriais. O mais importante sistema tarifário, as Leis do Milho, taxava os alimentos importados para proteger a renda de agricultores e proprietários de terras britânicos, com isso mantendo o preço do pão artificialmente alto. Numa orgia de reformas, esses desequilíbrios foram eliminados. A questão dos alimentos fora agravada pela longa guerra da Grã-Bretanha contra a França e seus aliados continentais. Vimos que enormes progressos na agricultura britânica tornaram possível a revolução industrial, de modo que, pelo fim dos anos 1790, a Grã-Bretanha tinha parado de exportar grãos. “A segurança alimentar”, que seria um problema tão importante para os britânicos durante as duas guerras mundiais, também maiorese preocupações na era napoleônica. tarifasa eram vistas comofoiuma formauma dedas proteger promover o nacionais cultivo interno de alimentos.AsMas industrialização se alimentava — literalmente — daquilo que agora precisava ser importado. Embora a retórica extravagante do livre comércio e do avanço da civilização obscurecesse os fatos, aquela foi de fato uma luta entre a Grã-Bretanha mais meridional, dos campos, e a Grã-Bretanha mais setentrional, das fábricas. Em 1846, as fábricas — e o norte — emergiram como vitoriosas, quando um primeiro-ministro conservador, Robert Peel, aboliu as Leis do Milho à custa do próprio cargo. Àquela altura, as mudanças políticas também já estavam em andamento. A Lei da Grande Reforma, de 1832, eliminou os distritos mais corruptos e aumentou em mais ou menos 60% o direito ao voto, mas não estendeu o voto a cidadãos pobres em número suficiente para satisfazer o crescente movimento da classe operária e da classe média pela democracia. Grande parte da história política do fim do século XIX girou em torno da constante pressão por reformas e da série de novas leis que ampliou o direito ao voto e começou dar a cidades como Birmingham o cacife político que não tinham durante a vida de Watt e Boulton. Dessa maneira, o Estado britânico passou de uma posição em que essencialmente apoiava o poder da terra, das antigas guildas urbanas e das empresas comerciais legitimadas por carta real para uma posição em que essencialmente apoiava o capitalismo e a indústria. Controvérsias religiosas, sempre importantes, foram aos poucos substituídas por lutas de classe, enquanto sindicatos trabalhistas e reformadores políticos, como os cartistas, exigiam novos direitos. A indústria britânica saíra vitoriosa na corrida da concorrência. Tendo esmagado concorrentes estrangeiros, os britânicos começaram a adotar o livre comércio como religião nacional. Talvez tenha sido injusto com outros países, que lutavam para fazer o mesmo e precisariam de um de proteçãoassim para como desenvolver indústrias próprias. Sem dúvida de aos britânicos a reputação de período sórdida hipocrisia, de habilidade e capacidade de trabalho. Também ficou claro que as teorias otimistas de Adam Smith e de seus seguidores adeptos do livre comércio minimizaram o papel da guerra. Muitas das primeiras habilidades técnicas da Grã-Bretanha
estavam relacionadas à sua frota poderosa (pensemos no pai de Watt, nos instrumentos náuticos e na devastação causada por aqueles canhões “carronades”). Sua jovem economia de consumo era alimentada pelo êxito das baionetas e dos canhões britânicos na Índia, na América e no Caribe. A Grã-Bretanha provavelmente teria sido o primeiro país a industrializar-se, de uma maneira ou de outra, mas se a França não estivesse tão preocupada com as guerras revolucionárias e napoleônicas durante essas décadas cruciais, poderia ter concorrido mais de perto com seu velho adversário. (A iluminação a gás, tão importante para tornar a vida nas primeiras cidades industriais mais segura e os dias mais longos, recebeu um grande empurrão na Grã-Bretanha, com a enorme acumulação de canos de mosquetes 13 indesejados depois da derrota de Napoleão em 1815, que foram transformados em tubulação de gás.) * ** Os dois outros países importantes a iniciarem em seguida o processo de industrialização protegeram suas indústrias e usaram-nas para promover o nacionalismo. Os Estados Unidos tinham grandes vantagens como potência industrial emergente. Contavam com um povo jovem, terras que pareciam não ter fim, longos rios para transporte, vastos recursos naturais e um novo e esclarecido sistema político que certamente incentivava as pessoas a desafiarem a ortodoxia europeia. A Alemanha tinha vantagens de outra natureza. Depois que Napoleão aboliu o Sacro Império Romano, os povos de língua alemã continuavam divididos em cerca de trezentos países separados, minipaíses, micropaíses, cidades livres e outras firulas. Mas tinham imensas reservas de carvão e de ferro, uma longa e excelente tradição de metalurgia e, na Prússia, um líder nacional em ascensão. Os prussianos envolveram outros estados alemães menores em seu bloco alfandegário, ouZollverein , o que estimulou o livre comércio e começo a acabar com o labirinto de sistemas métricos, moedas e leis correspondentes. Depois de derrotar primeiro os austríacos e depois os franceses, a Alemanha unificada, sob a liderança da Prússia, avanço com notável rapidez. Parecia óbvio que o crescimento industrial precisava de uma ordem política liberal para prosperar. Mas a maior parte da Europa vivia sob a hegemonia dos Habsburgos não liberais da monarquia austrohúngara e de outras monarquias menores, com o czar da Rússia ainda agindo como xerife de última instância. Ao longo do século XIX, a luta para construir estados políticos liberais, onde o capitalismo e, consequentemente, a modernização pudessem avançar, foi a principal causa interna europeia. Em geral, o liberalismo e o nacionalismo marchavam juntos. A unificação da Itália, uma luta prolongada e complexa contra ocupantes austríacos, monarquias locais de srcem medieval — como o reino das Duas Sicílias e o ducado de Modena — e contra o conservadorismo papal, foi impulsionada pelo sentimento de que a Itália precisava de um Estado democrático moderno e unido que a levasse para o mundo moderno. (A rigor, os monarcas absolutos nem sempre se saíram mal. O reino das Duas Sicílias, sediado em Nápoles, tinha alguns estaleiros e empresas de engenharia ferroviária muito eficientes.) Em nenhum outro lugar a tensão entre o tradicionalismo e a modernização foi mais aguda do que na França. A monarquia pós-napoleônica solidificou-se numa monarquia completamente reacionária, sob Carlos X. Derrubado por uma revolta em 1830, ele foi substituído pelo mais liberal Luís Filipe, o “monarca porém a Françacomeçou estava muito atrásOdaproblema Grã-Bretanha matéria cidadania, e um formidávelburguês”, movimento de reformas a crescer. para osem liberais de de classe média era que a mudança provavelmente seria provocada pelas massas mais pobres e zangadas, que eles também temiam. Colheitas medíocres e a fome generalizada, por sua vez, provocaram a marola de levantes que
fez de 1848 o ano das revoluções na Polônia, em todo o império de Habsburgo e em países menores, como a Dinamarca, a Bélgica e a Suíça. Na França, a velha monarquia foi enfim derrubada e houve a declaração de uma Segunda República, a qual, dentro de quatro anos, sob Luís Bonaparte, se converteria no Segundo Império. Esse movimento de dois passos para a frente e um para trás padronizou-se em toda parte. A maioria dos levantes fracassou, e poucos produziram avanços políticos claros. Talvez seu mais importante efeito colateral tenha sido a maior de todas as novidades políticas da metade do século: o credo socialista messiânico do marxismo. Karl Marx vinha de uma família rica da Renânia, mas passou os primeiros anos da vida adulta como rebelde-filósofo, por fim encontrando segurança na Grã-Bretanha liberal. Com seu coautor e sócio financiador Friedrich Engels, ele defendia uma visão puramente material do progresso histórico, na qual a luta entre os ricos proprietários do capital e da indústria e os operários que produziam a riqueza real acabaria resultando num mundo comunista, onde a classe operária seria dona do valor total de se trabalho e o Estado — monárquico, burguês, parlamentar ou republicano — deixaria de existir. EmO manifesto comunista de 1848, destinado a operários alemães revoltosos, ele se expressou com imagens claras, mordazes e excitantes. Seu volumoso trabalho posterior, de 1867-1894,O Capital, usava estatísticas para tentar demonstrar a verdade científica que instruía sua visão. Tornou-se a bíblia secular dos revolucionários do século XX, embora Marx supusesse que a revolução deveria começar nas avançadas Alemanha ou Grã-Bretanha, e não na atrasada Rússia. A obra de Marx difundiu-se entre os socialistas radicais da Europa, mas era, naquela altura, um gosto de minoria, comparado com as visões parlamentares moderadas, com um toque de cristianismo, da política socialista. Faltavam à sua análise as sutilezas dacompetição política tradicional e dosdofilósofos moralistas,doporém ele tinha um agudo entendimento implacável oculta atrás sorriso simpático capitalismo burguês. O futuro em nada da se pareceria com suas predições, mas o mundo à sua volta, em meados do século XIX, era basicamente como ele o descreveu. Tanto os Estados Unidos quanto a Alemanha exploraram tecnologias a princípio desenvolvidas na Grã-Bretanha. Roubaram patentes, copiaram máquinas, interrogaram operários britânicos e estabeleceram suas próprias escolas técnicas. Isso era inevitável. Num mundo interligado, não há como esconder boas ideias. De qualquer maneira, avanços decisivos bem aproveitados na revolução industrial britânica tinham, eles mesmos, vindo de fora — não só aquela primeira máquina a vapor da França, mas também a fiação úmida de linho e o tear de Jacquard, bem como a rotação de quatro colheitas da Holanda. Os japoneses fizeram o mesmo depois de 1945; os chineses estão fazendo agora com o Japão e os Estados Unidos. Um dia, com sorte, os africanos roubarão sistemas chineses. Acontece que copiar é muito mais rápido do que inventar. A princípio, tanto para os Estados Unidos quanto para a Alemanha, a mais importante inovação tecnológica foi a ferrovia (embora os dois países tenham seguido a Grã-Bretanha também na abertura de canais). Na Grã-Bretanha, 1830 costuma ser citado como o ano em que o sistema ferroviário atingiu a maturidade, mas foi também o ano da inauguração da primeira ferrovia dos Estados Unidos. Já nos anos 1860, os americanos tinham quase cinquenta mil quilômetros de trilhos e, em 1870, oitenta mil, em comparação com os 9.600 construídos na Grã-Bretanha em 1830-1850, no auge da “mania ferroviária”. Em 1875, a Alemanha também tinha ultrapassado a Grã-Bretanha em quilômetros de ferrovia. Um salto à frente parecido ocorreria com o ferro e o aço, mas tanto os Estados Unidos quanto a Alemanha logo desenvolveriam novas os tecnologias próprias, comoimpulsionou o telégrafo,o produtos químicos e motores mais avançados. Em ambos casos, a industrialização nacionalismo e foi impulsionada por ele. Nos Estados Unidos, as ferrovias ligaram um novo e imenso país. Enquanto na Grã-Bretanha elas tinham sido construídas com dinheiro e mão de obra da iniciativa privada, que com frequência preciso
lutar contra políticos que tentavam obstruir novas linhas, nos Estados Unidos o governo empresto engenheiros militares para ajudar. Na Alemanha, embora as primeiras ferrovias fossem projetadas para ligar as cidades industriais, a unificação fez desse meio de transporte um agente decisivo para aglutinar o novo país. A teoria industrialista-capitalista enfatiza a abertura e o livre mercado, afirma que quanto mais comércio, menos conflito nacional. Na prática, o nacionalismo e a industrialização capitalista marcharam em passo rigorosamente afinado. A experiência americana envolveu cartéis, escândalos de suborno, corrupção política e a supressão brutal de organizações operárias, bem como a exclusão racista de alguns aspirantes a operários da indústria, como os chineses, por outros, como os irlandeses. A industrialização foi um processo muito mais violento e menos puro do que os primeiros cronistas do capitalismo esperavam. A teoria, embora fosse boa, surgira da experiência única dos britânicos como primeiro e incontestado viveiro dessa importantíssima mudança na vida humana. E houve muitos lugares onde ela não criaria raízes de forma alguma. De jogador de cartas a s anto: a oportunidade perdida da Rússia A cena era uma pequena mas elegante cidade turística russa nos contrafortes do Cáucaso, Pyatigorsk, no verão de 1853. Um oficial de artilharia, soldado perspicaz porém desorganizado, que tinha combatido rebeldes chechenos em nome do czar, passava por uma situação difícil. Era, em muitos sentidos, um ovem aristocrata típico sua colegas época. Perdera imensas dinheiro nas mesas de jogo de Petersburgo, jogando comdeseus de exército. Sua somas carreiradeestava estagnada. Ele sonhava comSão uma Rússia mais moderna, menos sujeita ao controle do czar e seus censores, enquanto escrevia histórias de guerra. Tinha corrido atrás de muitas mulheres, não hesitando em usar a posição de proprietário de terras para se aproveitar de jovens servas, e vivia fazendo planos para mudar de vida e esquecendo-os. Com sua grande testa e enorme franja, era uma figura impressionante — intensa, quase feroz. Suas dívidas de jogo estavam ficando incontornáveis. Poucos meses antes, precisara pedir ao cunhado que vendesse uma segunda aldeia em sua propriedade, além de seus 26 servos com as respectivas famílias — dispondo de pessoas como de fichas de jogo. Ele se deu conta de que teria de vender a casa principal, lugar construído por seu avô, onde ele nascera. Assinou o vale. A grande casa foi devidamente adquirida porSó umrestaram proprietário de terras rival, desmanchou, pôsnoem vagões e reconstruiu em sua própria terra. duas alas menores daque casa,a com uma lacuna meio. Nem a venda ocasional de servos para pagar dívidas de jogo, nem a exploração de servas eram comportamentos inusitados entre os entediados, mimados e descontentes filhos da nobreza. Contudo, esse homem era Liev Tolstói, já perto dos trinta anos. O melhor romancista do mundo de todos os tempos, ele se tornaria figura de autoridade moral não só na Rússia, onde seria idolatrado, mas no mundo inteiro. No fim da vida, com suas longas barbas patriarcais, trajando uma túnica de camponês, faria um apelo aos russos para recuperar suas raízes camponesas, imergir na vida do campo, dar instrução a seus antigos servos e aspirar aos mais altos ideais cristãos. Voltando para viver numa ala da outrora grandiosa casa de campo que tinha vendido, Yasnaya Polyana, perto de Tula, a 190 quilômetros de Moscou, Tolstói passaria quase todo o tempo de vida que lhe restava tentando expiar os pecados da juventude. Parte do poder da sua escrita em Guerra e paz e Anna Karenina vem da revelação implacavelmente honesta de seus próprios vícios e egoísmo, além da satisfação e do entusiasmo com que abraça a Rússia rural. Três anos depois desse último desastre nas mesas de jogo do Cáucaso, Tolstói estava de volta à sua propriedade, aprendendo a viver na casa reduzida — a lacuna onde ficava a seção do meio estava
coberta por árvores, mas essa situação devia ser um constrangimento diário. Tolstói tinha participado da defesa russa de Sebastopol durante o cerco de onze meses de duração, em 1854-1855, que decidiria o desfecho da guerra da Crimeia. O conflito entre a Rússia czarista de um lado e a Grã-Bretanha, a França e a Turquia do outro era, a rigor, a respeito das ambições russas de avançar cada vez mais para o sul através da Ásia, ameaçando outras potências imperiais. Fora um choque para todos os exércitos envolvidos. Grandes demonstrações de bravura de ambos os lados não bastaram para mascarar a incompetência, a pobreza de equipamento e as táticas ultrapassadas da cavalaria britânica, da infantaria francesa e das forças russas também — mas foram os russos que acabaram perdendo, e o prestígio do czar caiu mais ainda. A Rússia tinha um novo czar, Alexandre II, trazido por intelectuais relativamente liberais. Ele percebera que a partir de agora era impossível sustentar que a Rússia, tendo perdido uma guerra na porta de casa, se modernizara. Os soldados russos que tinham combatido e morrido em defesa da pátria também eram, na maior parte, servos. Ou seja, estavam atrelados à terra e podiam ser tratados como bens móveis pelos donos. A mesma verdade se aplicava aos exércitos russos que desafiaram Napoleão em 1812 e o derrotaram em 1813. Nessa ocasião, alguns oficiais julgavam ter conquistado a liberdade no campo de batalha. Foram ignorados, mas o mesmo sentimento voltou a aparecer com grande força depois da Crimeia. As guerras costumam gerar radicalizações, as derrotas mais do que as vitórias. Em março de 1856, Alexandre fez um discurso avisando aos proprietários de terra da sua intenção de abolir a servidão de cima para baixo, por lei, em vez de esperar que ela se abolisse a si mesma de baixo para cima, num levante qualquer. seus conselheiros sabiam que seria difícil. proprietários indignados. HaviaAlexandre problemase práticos, como criar um novo sistema de Muitos leis e governos locaisficariam na zona rural para substituir a servidão. Então havia o fato constrangedor de que muitos proprietários já estavam falidos: terras e servos hipotecados pertenciam, tecnicamente, a bancos em Moscou e São Petersburgo. A maior parte da terra era inútil e não valia nada sem a mão de obra dos servos para mantê-la fértil. Os servos morreriam de fome se não possuíssem seu pedaço de terra e não tinham dinheiro. Era, portanto, um projeto imenso e muito complicado — seria uma das mais dramáticas tentativas de reforma imposta de cima para baixo jamais realizadas. Já era espantosa também por sua escala. Um censo de 1857, quatro anos antes da libertação dos servos, mostrou que mais de um terço dos russos, cerca de 23 milhões de pessoas, eram servos. Compare-se com os cerca de quatro milhões de escravos negros americanos da época. A servidão remontava aos tempos feudais, mesmo clássicos, e de início significava trabalho agrícola vinculado à terra, com um excedente a ser repassado para o proprietário — fosse igreja, barão ou cidade. Como vimos, a servidão se extinguiu lentamente na Europa Ocidental, com um vigoroso empurrão dado pela escassez de mão de obra deixada pela Peste Negra. Mesmo ali, algumas formas de servidão persistiram até bem tarde — os trabalhadores das minas de carvão da Escócia foram servos até 1799. No leste, a servidão era muito mais generalizada. Chegou tarde, mas foi imposta com êxito por proprietários de terra e monarcas por muito mais tempo. No século XVIII e até uma fase avançada do século XIX, servos eram encontrados na Polônia, Prússia, Áustria, Hungria e muitos pequenos estados alemães. A servidão russa, porém, era de uma escala e de uma ordem diferentes. Os servos russos não eram escravos no sentido pleno (muito embora a palavra “servo” venha do termo latino “escravo”). Os donos podiam matá-los ou vendê-los nopor estrangeiro. A escravidão absoluta, quepara existia principalmente paranão os escravos domésticos, fora abolida Pedro, o Grande, em 1723. Mas, a partir dos anos 1550, as leis da Moscóvia tinham dado aos proprietários poderes ainda maiores sobre seus camponeses. Um século depois, a servidão plena tornou-se geral nas regiões
agrícolas de “terra negra” da Rússia central. Servos eram vinculados aos campos de cultivo e aldeias dos proprietários de terra, castigos severos eram impostos para quem tentasse fugir. Geralmente eram proibidos de casar com alguém de fora da propriedade. Como Tolstói demonstrou, podiam ser comprados e vendidos junto com a terra. Os servos indispensáveis para o cultivo da terra eram mantidos, enquanto os “excedentes” podiam trabalhar para outros. Podiam ser livremente punidos pelos donos — o que incluía castigos corporais. Meninas e mulheres servas com frequência eram estupradas pelos donos. Poucos servos sabiam ler e escrever. A distância entre os maiores proprietários de terra russos, que falavam francês e faziam frequentes viagens a São Petersburgo ou ao exterior, e seus servos era tão grande como a que separava os governantes ingleses do Raj dos indianos comuns ou os donos de plantações de cana-de-açúcar caribenhos dos escravos africanos. O caso mais próximo é o das plantations americanas nas quais, exatamente como nas propriedades russas, comunidades inteiras viviam isoladas da vida urbana, com padarias, pomares, alojamentos, estábulos, celeiros e sistema de justiça próprios. Portanto, a servidão russa não era, de forma alguma, única no que diz respeito à opressiva atmosfera que gerava. Para trabalhadores rurais que viviam pouco acima do nível de subsistência em qualquer parte do mundo e que tinham de entregar parte dos produtos que colhiam e dos animais que criavam para os donos da terra, graus de servidão eram, em grande parte, teóricos. A ascensão da servidão russa coincidiu, afinal, com a do absolutismo pleno na França. Os camponeses não eram muito mais livres sob os Bourbons do que os servos russos sob os Romanovs. Mas a servidão russa tinha aspectos únicos, que tornavam a Rússia fundamentalmente diferente das sociedades ocidentais. Para nãoeslava, havia com uma qualquer linha divisória étnica entre patrões servos. Era europeias tudo a mesma mistura, na começar, maior parte coisa de tártaro e por vezese de alemão. Senhores, senhoras e servos tinham aparência e nomes semelhantes. Servos, vivendo por gerações na mesma terra negra, compartilhando as velhas histórias e a velha música, seguindo a religião ortodoxa com devoção, pareciam, aos olhos de muitos proprietários de terra liberais russos, mais “reais”, mais autenticamente russos do que eles próprios. Para numerosos escritores e intelectuais a Rússia era especialmente amaldiçoada, mas, quando por vezes radicais tentavam “se aproximar” dos servos para fazer amizade, esses camponeses céticos, de mentalidade conservadora, os recebiam com perplexidade ou hostilidade. Para dezenas de milhares de proprietários mais pobres não havia sequer uma linha divisória cultural entre eles e suas “propriedades” humanas. Servos cozinhavam na cozinha do patrão, amamentavam e criavam seus filhos, contavam histórias ao redor do fogo e ensinavam os conhecimentos e tradições do campo para pequenos nobres que cresciam entre eles. Faziam caçadas juntos. Entre os servos havia artesãos, músicos, decoradores e construtores talentosos, aos quais os senhores recorriam para obter produtos e serviços, assim como os europeus ocidentais mais abastados recorriam a trabalhadores livres assalariados. Muitas vezes patriarcas de famílias de servos pediam aos patrões que resolvessem disputas de família. Havia, portanto, na servidão russa vivida em casas e aldeias distantes das cidades uma intimidade que alguns proprietários achavam mais constrangedora e mais tocante emocionalmente do que a escravidão rural de outros lugares. A servidão não foi, em nenhum sentido, uma forma de capitalismo inicial. A escravidão das plantações de cana-de-açúcar e de algodão surgiu porque seres humanos eram usados como maquinaria de campo num novo sistema de comércio e de acumulação capital.—Anem agricultura russa, a rigor, teve nem se desenvolvimento retardado pela servidão, uma vez quedeninguém o dono, temeroso de revolta, o servo, que não era dono da terra onde trabalhava — tinha interesse urgente em investir na melhoria da agricultura. Acima de tudo, a servidão na Rússia não pode ser compreendida sem levar em conta como o
autocrático sistema russo, que vimos começar a enrijecer-se já no reino de Ivã, o Terrível, era perigosamente instável. Os czares estavam no topo da pirâmide, mas eram com frequência mortos em golpes palacianos (muitas vezes encabeçados por altos oficiais) ou, mais tarde, assassinados. A nobreza, que fora organizada em rigorosa ordem hierárquica — de acordo com a Tabela Hierárquica de 1722 — era formalmente constituída de servos, até mesmo de escravos, do czar. E durante grande parte desse período os nobres lhe deviam serviços, a serem executados em funções de Estado — o exército, a justiça e o governo local. Era comum dependerem do czar para obter sua renda, uma vez que a produção agrícola russa era muito baixa, e, por fim, da autoridade do czar para mantê-los acima dos servos. Protestos e rebeliões de camponeses eram muito frequentes — quase 1.800 episódios de “desordem” foram registrados entre 1826 e 1856 — para mantê-los em seu lugar.14 Apesar disso, seria impossível para o czar governar a Rússia sem a nobreza. Mesmo depois que o czar Pedro III a libertou da obrigação de servi-lo, em 1762, o sistema formal de servos servindo nobres e nobres servindo o czar continuou sendo a ideia que sustentava o Estado russo. Por vezes mais parecia uma situação de equilíbrio entre três elementos opostos. A grande rebelião contra esse estado de coisas tinha acontecido depois da guerra dos russos contra Napoleão, que em 1812-1814 levara muitos jovens aristocratas russos para o centro da Europa Ocidental. Em Paris, eles se embeberam do novo espírito da era do Iluminismo, que tinha um gosto melhor do que o da vodca. Quando marcharam novamente para casa, sentiram-se constrangidos e envergonhados pela natureza arcaica e fossilizada do Estado czarista. Em dezembro de 1825, oficiais rebeldes, mais tarde conhecidos como “decembristas”, iniciaram uma revolta em São Petersburgo contra um novo czar, Nicolau I, depois que seu irmão Constantino recusou o trono. Após um confronto de cinco horas entre tropas rebeldes e legalistas no centro da cidade, o czar mandou seus soldados abrirem fogo, e a rebelião acabou. Cinco conspiradores foram enforcados e 121 foram destituídos de seus títulos e exilados na Sibéria. Ali, acompanhados por suas mulheres e famílias, muitos passaram a viver não como proprietários, mas como simples agricultores. Os filhos de um deles, segundo descrição da mãe, brincavam com os camponeses, pescavam truta, pegavam coelhos com armadilhas, caçavam ninhos de pássaro e “acampavam no mato com os meninos bravios”. O pai também adotou os costumes locais, deixando crescer a barba, não tomando mais banho e trabalhando no campo. Chamava-se Sergei Volkonsky e era primo de Tolstói, com quem se encontrou ao voltar do exílio. O escritor baseou um dos principais personagens de Guerra e paz nesse homem admirável e mais velho do que ele.15 Esses “decembristas” foram, em geral, grande fonte de inspiração para a geração mais jovem, da época de Tolstói. Remorso das jogatinas, vergonha de sua posição de proprietário de servos e admiração pelos exilados liberais de 1825, tudo isso se misturou na cabeça de Tolstói. Aconteceu o mesmo, o coisa parecida, com muitos outros proprietários e escritores liberais. Um dos menos prováveis liberais de 1856 foi o novo czar Alexandre II. Depois do fracasso na Crimeia, ele iniciou reformas generalizadas, incluindo a do Exército, do serviço público, do código penal e o afrouxamento da censura. Mas sua ação mais dramática teve a ver com a servidão. Seria extinta, de uma vez e completamente. Até os servos desconfiaram. Quanta terra sobraria para eles? Não teriam mesmo de dar nada em troca? Em 1856, depois de Alexandre anunciar as reformas iminentes, mas antes de chegar-se a um acordo sobre a lei de emancipação, Tolstói teve um vislumbre do que poderia acontecer quando decidiu por sua conta dar a todos os servos sua liberdade pessoal e vender-lhes terra a preços baixos ao longo dos próximos trinta anos. Convocou uma reunião em Yasnaya Polyana (que se poderia traduzir, aproximadamente, por “Clareira Limpa”), porém se deparou com uma barreira de desconfiança. Diz um
recente biógrafo de Tolstói: “Os camponeses estavam convencidos de que iam ganhar a liberdade quando o novo czar fosse coroado, por isso achavam que o contrato proposto por Tolstói era apenas uma artimanha maliciosa para iludi-los. Depois de várias reuniões, recusaram todas as suas propostas, mesmo corrigidas.”16 Tolstói viajou ao exterior e encontrou-se com o antigo exilado Volkonsky antes de instalarse novamente em Yasnaya Polyana para escrever e desfrutar de seu refúgio de felicidade doméstica. (Embora sua mulher, criando treze filhos e dedicando o tempo livre a copiar seus manuscritos quase ilegíveis, achasse a vida bem menos bem-aventurada.) Ele acabou conseguindo libertar todos os servos, para que cada um pudesse cultivar a própria terra. Construiu uma escola com seu dinheiro para os filhos dos camponeses (uma alta proporção dos quais era de filhos ilegítimos dele mesmo), dando-lhes aulas pessoalmente, a essa altura já trajando roupas de camponês. Escreveu livros para crianças, a fim de ajudar a alfabetizar a Rússia. Como magistrado local, ajudava o campesinato contra a própria classe a que pertencia, e dizia aos meninos locais que estava decidido a tornar-se camponês. Era, entretanto, um péssimo fazendeiro, matando os porcos de fome. Depois de ter demitido os administradores, como escreveu o historiador Orlando Figes, “a experiência foi um fracasso total. [...] Ele não sabia curar presunto, bater manteiga ou o tempo certo de arar e carpir os campos, e logo se cansou daquilo e foi para Moscou”.17 Enquanto Tolstói lutava com seus porcos e sua consciência, os ministros de Alexandre lutavam com proprietários hostis e comitês relutantes, e o czar tentava encontrar um jeito de libertar os servos da Rússia sem provocar uma revolta dos nobres. O resultado foi o manifesto de Emancipação da Servidão, de março de 1861. Era um documento de elevada retórica, publicado dois anos antes de a Proclamação de Emancipação de Abraham Lincoln libertar os escravos dos Estados Unidos, mas não agradou a quase ninguém. Tolstói ouviu a notícia no exterior, durante sua única visita a Londres, onde ouvira Charles Dickens ler seus livros em público, visitara algumas escolas e usara a biblioteca do novo Museu Victoria and Albert. Percebeu de imediato que a linguagem inflada e pretensiosa e o tom do manifesto não seriam compreendidos pelos camponeses. O que ele não sabia era o quanto essa emancipação seria limitada. Os proprietários lutaram com tenacidade para preservar ao máximo sua situação, e o resultado foi que, durante quase meio século, os servos libertos teriam de pagar ao governo vultosas quantias pela terra que consideravam sua. O governo, por sua vez, compensou os proprietários. Os pagamentos eram baseados em estimativas inflacionadas do valor da terra, ao mesmo tempo que, para compensar ainda mais a nobreza, a fatia geral destinada camponeses reduzida emeles atépermaneceriam um quarto. Embora livresdepara casar com quem quisessem aos e para vender suasfoipropriedades, sob controle seussepróprios tribunais locais, precisariam de passaporte para viajar e continuariam sujeitos a castigos corporais. Estava muito longe daquilo que os camponeses russos esperavam, e o desapontamento foi tão amargo que houve quase 1.900 casos de desordem em 1861, alguns reprimidos com violência pelas tropas do czar. Os proprietários agora reclamavam de sua pobreza relativa e da perda da capacidade de castigar diretamente “seus” camponeses, como antes faziam. Com o tempo, muitos camponeses abandonaram a terra, migrando para as cidades, onde se tornariam operários das novas fábricas e onde seus filhos um dia constituiriam a matéria-prima da revolução bolchevique de Lênin. O czar continuou a tentar reformar as leis de censura, a educação, a justiça, as forças armadas e os governos locais. Um leitor de jornais bem informado em Paris ou Londres do começo dos anos 1860 poderia muito bem ter comparado a terrível guerra civil que estraçalhava os Estados Unidos com o programa de reformas comparativamente ordeiro dirigido por São Petersburgo e concluir que a Rússia emergiria como a potência mais forte. A Rússia czarista tinha começado bem atrás dos Estados Unidos em seu desenvolvimento industrial, porém nos anos 1880 ostentava um crescimento mais rápido. Na
verdade, a autocracia russa não tinha resposta para as crescentes demandas do povo recém-libertado, mas libertado para ser pobre, nem para as demandas dos intelectuais que exigiam democracia plena. Durante os últimos anos do reinado de Alexandre II, multiplicaram-se os grupos revolucionários e terroristas. Terríveis epidemias de fome ressaltavam o persistente atraso e fraqueza da agricultura e da sociedade russas. Quando o czar foi despedaçado por uma bomba terrorista, em 1881, seu sucessor, Alexandre III, encerrou abruptamente o período de reformas e restaurou a censura e a polícia secreta. Tolstói via a condição da Rússia com crescente desespero. Não era nenhum entusiasta da urbanização ou da industrialização. Achava Moscou um lugar de “fedor, pedras, luxo, pobreza, devassidão”, onde os deslocados camponeses “enceram nossos assoalhos, esfregam nossos corpos no banho e mourejam como cocheiros”.18 Depois do imenso sucesso de seus romances, ele se entregou decididamente a atividades campestres — apicultura, pomares, caçadas — e também a cuidar de sua imensa família e de sua escola, tudo isso misturado a mais escritos e algumas disputas literárias cruéis. Pelo fim dos anos 1870, já falava em tornar-se monge. Artistas e escritores acorriam para prestar homenagens a esse santo secular, que defendia a simplicidade rural cristã e parecia oferecer uma terceira via entre a repressão czarista e a revolução socialista. Pelo começo do século XX, Tolstói era um guru de fama mundial, a uma vida inteira de distância do intrépido jovem oficial de artilharia que tinha perdido casa, aldeias e servos na mesa de cartas. Talvez tenha se tornado também um egomaníaco e um chato (como a maioria dos gurus), mas a história de sua vida ainda mostra um arco satisfatório de aprendizado e redenção, coisas que sua Rússia jamais conseguiu. Sua casa ainda é um monumento a um paraíso perdido, com seus quartos singelos, biblioteca de livros inspiradores, pomares, escola, celeiros e mata, onde Tolstói está sepultado num simples túmulo de terra. Ao redor da propriedade, porém, a Rússia empobrecida e feia de um século de guerras e fracassos políticos está ao alcance da mão. Tivessem os anos 1860 assistido ali a uma convulsão tão dramática como a Guerra Civil americana — à qual retornaremos agora —, talvez a velha Rússia pudesse ter se transformado num país de negócios de classe média, de cidades prósperas e de democracia. Não há como saber. Vitória da liberdade, por muito pouco Foram dias de cansaço e alívio, de tristeza e prazer. Em 4 de abril de 1865, um vapor chamadoMalvern subia o rio de Washington, capital dos Estados Unidos da América, para Richmond, Virgínia, antiga capital da Confederação. Jefferson Davis, presidente dos estados confederados ou rebeldes, estava numa igreja quando um oficial de cavalaria chegou com um bilhete de seu principal general, Robert E. Lee, recomendando-lhe que fugisse. Enquanto em Richmond ressoavam as explosões de paióis de pólvora e o barulho das multidões famintas saqueando mercados e bebendo uísque — que também escorria nas sarjetas —, as pontes da cidade eram arrebentadas a dinamite, e seu governo, amontoado em carretas e carruagens, desaparecia numa nuvem de pó. OMalvern subia o rio James, passando por cavalos mortos, barcos naufragados e destroços, até encalhar. Um barco de doze remos foi baixado e nele entrou um homem de pele coriácea, de suíças, com um nariz de abutre e uma barba que lembrava vassoura de lareira. Abraham Lincoln tinha ido ver pessoalmente a capital da rebelião que por pouco não destruíra o sonho republicano da América. Lincoln desembarcou num lugar chamado Rockett’s Landing e encontrou uma multidão à sua espera, sem que se visse no meio dela um único rosto branco. Não era sua intenção que a Guerra Civil fosse uma
luta de libertação dos escravos da América, mas, quando o conflito se agravou e sua posição ficou cada vez mais desesperada, ele baixou sua famosa Proclamação de Emancipação. Agora era saudado por americanos negros, que o chamavam, aos berros, de “o grande Messias” e “Jesus Cristo”. Quando um homem de sessenta anos se ajoelhou diante dele, Lincoln disse: “Não se ajoelhe diante de mim. Só deve ajoelhar-se diante de Deus e agradecer-lhe por sua liberdade.” O homem respondeu que, depois de tantos anos no deserto sem água, ele agora estava diante de “nossa fonte de vida”. Rodeado de antigos escravos, Lincoln trocou apertos de mão e, protegido apenas por doze marujos, iniciou a caminhada de mais de três quilômetros até o centro da cidade faminta que ardia em chamas. Lincoln logo se viu no meio de uma multidão heterogênea. Os brancos sulistas, inimigos recentes, limitavam-se a olhar. Um dos que caminhavam ao lado de Lincoln se lembraria mais tarde: “Cabeças amontoavam-se em todas as janelas. Homens se penduravam em árvores e postes de telégrafo. Contudo, era uma multidão silenciosa. Havia forte opressão naqueles milhares de espectadores que não emitiam um som, fosse de boas-vindas ou de ódio. Acho que teríamos ficado satisfeitos com um grito de 19 provocação. Dei uma olhada lateral para o senhor Lincoln. Ele tinha uma expressão fixa.” Mas ninguém atirou. Nessa Semana Santa, 9 de abril, Lee, imaculadamente vestido, renderia seu famoso Exército da Virgínia do Norte à suja figura do general Ulysses Grant. Lee calculara que mais derramamento de sangue, fosse no campo de batalha, fosse provocado por bandos guerrilheiros, seria inútil. A guerra acabara. O Norte enlouqueceu de alegria, e a Confederação vencida ficou desolada. Cinco dias depois, em 14 de abril, Sexta-Feira da Paixão de 1865, Lincoln, de volta a Washington, recebeu cumprimentos de um fluxo aparentemente interminável de simpatizantes, que lhe diziam jamais ter duvidado de sua vitória. Menos de um ano antes, ele se sentira liquidado, achando que tinha perdido a presidência e a guerra. Apesar disso, aquele foi um bom dia. Lincoln gostava de teatro, um raro momento de descanso. Fora advertido por amigos em Washington de que aparecer em público sem guardas era perigoso. Sentado em seu camarote, ele e seus amigos seriam incapazes — nas palavras que um ano antes lhe dissera um amigo preocupado — de se defender “de qualquer mulher nesta cidade”.20 Entretanto, Lincoln tinha acabado de atravessar a capital rebelde a pé. Não estava inclinado a dar ouvidos a advertências. Também não estava muito propenso a assistir à peça em cartaz no Teatro Ford. ChamadaNosso primo americano , era uma comédia fraca cheia de trocadilhos, de autoria de um dramaturgo inglês de nome Tom Taylor, tivesse como atrize muito popular, Laura Keene. A esposa de Lincoln lhe suplicou que embora fosse. Ele cedeu. O estrela generaluma Grant sua esposa deveriam tê-los acompanhado, mas não apareceram — Grant detestava eventos sociais —, e os jornais vespertinos informaram que o presidente tinha intenção de comparecer. No intervalo, Lincoln passou o tempo despachando em seu gabinete e ouvindo uma mulher negra aflita cujo marido não tinha recebido seu soldo no exército. Ele promete cuidar do caso. Depois comentou com a esposa que nunca se sentira tão feliz. Porém, deve ter tido algum pressentimento do desastre. Pela primeira vez, aventou a possibilidade de que um dia seria assassinado e disse que não gostaria mesmo de ir ao teatro — iria, sim, mas só para não desapontar o público. Sentado no camarote presidencial com a bandeira americana servindo de enfeite, oculto da maior parte da plateia, Lincoln contava com a proteção de guardas — só que não muito boa. O assassino tinha aberto um buraco na parede do camarote vizinho e, trancando a porta, conseguiu esgueirar-se e ficar atrás do presidente. Com um punhal numa das mãos e uma pistola Derringer de um tiro único na outra, atirou no presidente de uma distância de menos de um metro e meio. A bala entrou no crânio pelo lado esquerdo, na diagonal, atravessando o cérebro e alojando-se atrás do olho direito. Um jovem major sentado com Lincoln foi apunhalado, mas tentou agarrar o assassino, que pulou no palco, prendendo-se na bandeira.
Apesar de quebrar o tornozelo, conseguiu escapar antes que a plateia compreendesse o que se passava. O corpo inconsciente de Lincoln foi levado para uma casa em frente ao teatro, onde ele morreu, às 7h22 da manhã seguinte, cercado por membros chorosos da família e do gabinete. Tinha havido também uma tentativa de matar William Seward, secretário de Estado de Lincoln, e planos para assassinar o vicepresidente. O assassino do presidente era John Wilkes Booth, um dos dez filhos de um ator que se chamava Brutus [Junius Brutus Booth], o assassino de César, e que por sua vez dera ao filho o nome de John Wilkes, em homenagem ao escritor radical inglês. O menino gostava muito de ler e queria ser ator. Fervoroso adepto da causa confederalista, assistira ao enforcamento público de John Brown, rebelde violentamente antiescravista. O pai de Booth tinha sido um bom ator, embora fosse alcoólatra, com tendência a ataques de loucura (muito comuns entre atores). O filho não era tão bom ator quanto o pai e certa vez quase se matara no palco, num acidente com um punhal. A rigor, tinha qualquer coisa declown. Desprezava Lincoln, mas também se roía de remorso por não ter pegado em armas no exército confederado. Queria desferir um golpe em favor do Sul arruinado. Só que os motivos dos assassinos raramente são surpreendentes, ou sequer curiosos. Embora a morte de Lincoln tenha estarrecido o mundo, transformando-o no maior mártir democrático dos Estados Unidos, cuja gigantesca estátua num memorial em Washington o faz parecer mais pai da pátria do que o próprio Washington, é bom lembrar que, naquela época, esse assassinato fez a felicidade de muitos americanos. Um jornal texano, por exemplo, oTelegraph, de Houston, disse que até o dia do Juízo Final, a mente humana jamais deixará de entusiasmar-se com a morte de Abraham Lincoln [...] vai para aquela alta lista de países e de homens universais, ao lado do assassinato de Tarquínio, de César, de Carlos I, de Luís XVI, de Marat. [...] Nenhum soldado, nenhuma mulher, nenhum velho ou criança balbuciante que ame de verdade esta terra sulista deixará de sentir a comoção elétrica, 21 divina, diante desta queda súbita, em seu próprio sangue, do maior de nossos opressores. A guerra de Lincoln foi o conflito mais importante do século XIX, mais significativo do que as guerras imperiais travadas pelos britânicos, as guerras de independência na América do Sul ou a guerra que a Rússia perdeu na Crimeia. Pode-se até afirmar, com fundamento, que foi mais importante do que as guerras travadas e por fim perdidas por Napoleão no começo do século. A hegemonia francesa sobre o resto do continente europeu não teria perdurado, devido às limitações dos exércitos e das comunicações da época, mas a Guerra Civil americana uniu um país imenso, que, do contrário, se teria fragmentado, e talvez em mais do que apenas duas partes. Ao fim, a guerra criou a superpotência do século seguinte. Tivessem os Estados Unidos se dividido nos anos 1860, provavelmente não haveria ajuda atlântica em 1917 ou 1941 para as democracias europeias cerceadas por tantas dificuldades, nem uma potência única tão grande a ponto de, mais tarde, enfrentar o império soviético. Foi também um momento decisivo para o conceito de governo republicano, ainda uma raridade na época. Silenciosos defensores da causa confederada incluíam a maioria da direita conservadora e aristocrática na Grã-Bretanha, Napoleão III na França e o partido monarquista na Espanha. A guerra de Lincoln mudou os Estados Unidos, e, portanto, o mundo moderno. As simples estatísticas já dão uma medida de sua escala. A Guerra Civil americana de 1861-1865 foi a guerra mais letal travada por qualquer país do Ocidente entre 1815 — a derrota final de Napoleão em Waterloo — e o avanço alemão na Bélgica, que deu início à Primeira Guerra Mundial. Foi, de longe, a guerra mais letal da história dos Estados Unidos. Cerca de 620 mil soldados morreram, apenas sessenta
mil a menos do que o número de militares americanos mortos em todas as demais guerras juntas. Morreram quatro vezes mais americanos numa única batalha da Guerra Civil, a de Antietam, do que no 22 Dia D, em 1944. Um quarto de todos os homens brancos em idade de servir na Confederação foi morto. Mas essa guerra era sobre o quê? Não começou como uma tentativa de acabar com a escravidão nos Estados Unidos. Lincoln foi um adversário consistente e ruidoso da escravidão. Para muitos americanos, particularmente no Sul, sua eleição para presidente tornou a guerra inevitável. No entanto, ele tinha deixado bem claro que não queria abolir a escravidão nos estados que já a praticavam. Queria apenas ter certeza de que a escravidão não se espalharia para os novos estados criados em terras dos Estados Unidos e manter a autoridade do governo federal sobre todos os estados existentes à época. Numa carta escrita no começo da guerra, ele declarou: “Meu objetivo primordial nesta luta é salvar a União, não salvar nem destruir a escravidão. Se pudesse salvar a União sem libertar qualquer escravo, eu o faria.” Acreditava que a escravidão se extinguiria naturalmente, ainda que durasse até o século seguinte, e levava a sério a ideia de que os negros da América poderiam ser todos mandados para a África. Mas, num discurso perante o recém-fundado Partido Republicano, em 1858, reconheceu que a questão da escravidão não poderia ser evitada: “Uma casa dividida contra si mesma não sobrevive. Acredito que este governo não poderá continuar sendo, em caráter permanente, metade escravo e metade livre. [...] Tornar-se-á totalmente uma coisa ou outra.” Agora que a escravidão é quase universalmente vista com repúdio, parece inevitável o surgimento de uma corrente antiescravista no Norte, impulsionada pelo clero protestante e por outras pessoas influenciadas pelo Iluminismo europeu. Mais interessante é saber por que a escravidão era uma força tão poderosa no Sul dos Estados Unidos e por que levou tanta gente que se sentia honrada, religiosa e decente a morrer e matar para defender essa “instituição peculiar”. Não é por que a maioria fosse constituída de senhores de escravos. Dos oito milhões de brancos que viviam nos quinze estados escravistas no começo da guerra, apenas 383 mil possuíam escravos, dos quais metade tinha menos de cinco. Uma pequena minoria de brancos, cerca de três mil desses oito milhões, possuía mais de cem escravos, correspondendo, portanto, mais ou menos à imagem popular de fidalgos em casas imensas com lantations movidas à mão de obra escrava.23 Até mesmo a maioria dos donos de escravos era de pequenos agricultores, que trabalhavam ao lado dos escravos. Na verdade, os sulistas eram, na grande maioria, apenas agricultores mourejando na terra ruim. A escravidão embora de longe a Declaração de Independência, tinha sido um vício íntimo dos americana, pais fundadores dospré-datasse Estados Unidos. Tanto George Washington como Thomas Jefferson eram senhores de escravos, assim como os fidalgos da Virgínia e de outros estados sulistas. Talvez sentissem uma fisgada na consciência de vez em quando, mas seriam incapazes de administrar seus complexos negócios de agricultura sem ela. Na época da independência, a escravidão era legal nos treze estados. No Sul, tabaco, açúcar, arroz e algodão exigiam trabalho opressivo e duro nos campos e, sem uma imigração em massa ou a disposição de nativos americanos para executarem esse serviço, a escravidão parecia a única alternativa. Nos estados nortistas, onde o clima e o solo exigiam uma agricultura diferente, ela era muito menos difundida. A disciplina imposta pelo trabalho no campo, frequentemente catorze horas por dia, produziu uma agricultura que, segundo cálculos, era de 35% a 50% mais eficiente do que a dos estados nortistas, o que tornava o Sul, no início da guerra, mais rico do que qualquer país europeu exceto a Grã-Bretanha. Longe de ser uma economia inepta, como a propaganda nortista posterior sugeriria, já se afirmou que “só a Suécia e o Japão foram capazes de manter índices de
crescimento de longo prazo significativamente maiores do que os alcançados pelo Sul pré-guerra, entre 1840 e 1860”.24 Era, portanto, uma economia em rápido crescimento que precisava, com urgência, espalhar-se para novos estados americanos, como Kansas e Texas. Para compreender o que estava em jogo deve-se levar em conta a extraordinária expansão aos pulos para o oeste da nova república. Jefferson, o terceiro presidente dos Estados Unidos, tinha preparado uma divisão de novas terras, mapeando mais catorze estados. Durante as guerras napoleônicas, seu governo aumentara imensamente o tamanho dos Estados Unidos com uma única transação, talvez a transação imobiliária mais significativa de todos os tempos, a á mencionada “Compra da Luisiana”. Em abril de 1803, Napoleão, que, como a maioria dos conquistadores, estava sem dinheiro e já voltava os olhos para uma invasão de seu último inimigo sério, a Grã-Bretanha, tinha vendido a Washington os territórios espalhados que a França reivindicava a oeste dos Estados Unidos, anunciando que não havia mais lugar para hesitação: “Renuncio à Luisiana.” Por quinze milhões de dólares, arranjados pelo Barings Bank, de Londres, os americanos adquiriram um território mais de duas vezes maior do que o que o rei George havia cedido, empurrando as fronteiras do país para as Montanhas Rochosas. Em 1812, eles travaram e perderam uma guerra contra os britânicos, que esperavam resultar na posse do Canadá também, mas que resultara apenas no incêndio e ocupação de Washington. Contudo, isso mal chegou a provocar uma pausa na história da expansão. Em 1819, os espanhóis desistiram da Flórida também. A velha barreira dos Apalaches foi rompida e, em trinta anos, metade dos cidadãos dos Estados Unidos vivia do outro lado dela, penetrando ainda mais no interior do continente. A expansão continuou em ritmo temerário. O Texas, que foi tomado dos espanhóis mexicanos e começo como estado independente (e por um breve momento flertou com a ideia de juntar-se ao Império Britânico), tornou-se parte dos Estados Unidos em 1845. Três anos mais tarde, após uma terrível guerra com o México, os Estados Unidos compraram toda a Califórnia e o Novo México por uma soma irrisória. A grande pergunta era esta: que tipo de sociedade seria a nova América, depois que seus habitantes srcinais fossem derrotados, mortos ou empurrados para reservas? Por enquanto, a maior parte dos novos territórios era selvagem e sem lei: “homens da montanha”, caçadores, exploradores, garimpeiros febris e aventureiros avançavam vigorosamente para o oeste, contra a dividida população nativa. Mas duas versões diferentes dos Estados Unidos já eram evidentes. No Sul havia uma economia de escravos e lantations , que esperava expandir-se talvez até o Caribe e a América Latina. No Norte desenvolveu-se de início uma economia de pequenos agricultores, que logo virou uma economia industrial impulsionada por imigrantes europeus — alemães, irlandeses, escandinavos, além de ingleses e escoceses. Essa era uma América urbano-capitalista em sua essência, com fortes influências cristãs protestantes que repercutiam a hostilidade à escravidão àquela altura já tão veemente na Grã-Bretanha. Um a um os estados do Norte tinham abolido a escravidão em seu próprio território, a começar por Vermont em 1777. Em 1804, todos os estados nortistas já a tinham abolido ou estavam abolindo e, em 1808, o Congresso, seguindo o exemplo dado pela Grã-Bretanha no ano anterior, votou pelo fim do envolvimento americano no comércio atlântico de escravos. Mas isso levaria apenas ao desenvolvimento de um programa interno de comércio e procriação de escravos no Sul produtor de algodão e cana-deaçúcar. Os fundadores da União percebiam muito bem o perigo dessa divisão. John Adams, um dos rebeldes srcinais de Boston e o segundo presidente dos Estados Unidos, temia que pudesse “produzir 25 Em 1820, um pacto genérico foi tantos Países na América do Norte como os que existem na Europa”. firmado, o Acordo de Missouri, dividindo o continente de lado a lado, ao longo de uma linha ao sul, onde a escravidão era permitida, e ao norte, onde não era. Entretanto, ninguém acreditava que o acordo seria respeitado quando a grande expansão começasse. Havia terras demais, dinheiro demais, em jogo.
O Sul estava acostumado a dominar a política de Washington, fornecendo um número desproporcional de presidentes, juízes, destacados congressistas e senadores. Estava sendo contestado pelo crescente poder dos militantes antiescravistas do Norte. Em 1850, a situação quase atingiu um ponto crítico quando a Califórnia foi admitida na União. Ameaças sulistas de secessão só foram afastadas graças a um acordo de último minuto, determinando que ela deveria ser admitida como estado não escravista, mas que os escravos que fugissem para o Norte teriam de ser devolvidos. No entanto, a pressão voltou a crescer. Já vimos que a ferrovia vinha transformando a América, porém nada teria impacto comparável ao de uma linha que ligasse o Pacífico ao Atlântico. A promessa de um investimento tão grande foi, em parte, o que segurou a Califórnia dentro da União. Mas para fazer a conexão com o novo centro industrial de Chicago a linha teria de atravessar Kansas e Nebraska. Isso elevaria à condição de estado o Kansas, território ao norte da linha de Missouri, que teria, portanto, de permanecer livre. Contudo, o Kansas também tinha terras boas para o plantio de tabaco e cânhamo, que interessavam ao lobby dos donos de plantations. Políticos favoráveis à escravidão argumentavam que novos estados como o Kansas tinham o direito de decidir o próprio destino. Proprietários, com seus escravos, chegaram por um lado. Abolicionistas e agricultores do Norte chegaram por outro. Teve início uma guerra de guerrilha espetacularmente cruel, com atrocidades cometidas pelos dois lados. John Brown, o militante abolicionista, cujo enforcamento foi testemunhado por Booth e cujo cadáver aparece numa famosa canção de guerra unionista, chefiou uma incursão de brancos e negros em Harpers Ferry, pequena cidade da Virgínia Ocidental com um arsenal. Ele esperava iniciar uma insurreição geral dos escravos e fracassou. Capturado e enforcado, tornou-se mártir para o Norte e terrorista aos olhos do Sul. Dessa maneira, a guerra começou,najáAmérica. havia umHouve rastrotambém de sangue e imensas disputasdos não resolvidas sobre as quando limitações da escravidão ardentes advertências estados sulistas, declarando que preferiam deixar a União a se submeterem. Mas o fator realmente decisivo foi o crescente poder econômico e demográfico do Norte industrial. Imigrantes iam para lá em busca de emprego. Nasplantations do Sul havia muito pouco que os brancos pobres da Europa quisessem fazer. As cifras do desenvolvimento industrial da época dizem tudo. Do dinheiro investido em manufaturas na América, apenas 18% vinha do Sul. O Norte tinha uma capacidade industrial nove vezes maior que a do Sul, 2,5 vezes mais gente, a vasta maioria dos novos imigrantes europeus e índices de alfabetização muito mais altos. A nova América que crescia para o noroeste, com cidades como Chicago e Detroit, estava do lado da urbanização e do capitalismo. O Sul tinha três vezes mais brancos analfabetos do que o Norte. Portanto, asplantations talvez fossem mais eficientes do que as fazendas nortistas e tivessem conseguido inserir-se à sua maneira numa economia global, mas aquela guerra era entre sociedades inteiras e, no começo, um dos lados era, claramente, mais desenvolvido do que o outro. São fatos econômicos e geográficos. Por cima deles havia diferenças culturais que para os envolvidos talvez fossem mais importantes. No Sul, muita gente via a escravidão como um sistema humano natural, com srcens honradas nos tempos bíblicos e na Antiguidade clássica, na realidade mais benévolo do que a “escravidão assalariada” das cidades nortistas, com seus “negros de fábrica”. Nisso havia um grão de verdade. Por volta de 1850, crianças nascidas escravas no Sul viviam, em média, doze anos a mais do que as crianças nascidas no coração industrial da Inglaterra, em Manchester. A população escrava crescia depressa, não precisando mais ser completada por navios que cruzavam o Atlântico, o que sugeria nível de saúde. os fundamental americanos pró-escravidão, também era e os direitos certo de propriedade, eramPara parte de seus direitosescravo constitucionais, quepropriedade, o governo federal não tinha autoridade para adulterar. A escravidão não existiaem todos os Estados Unidos quando as treze
colônias se rebelaram? Os confederados poriam o rosto dos senhores de escravos Jefferson e Washington em seu dinheiro. Os sulistas eram, na grande maioria, brancos pobres ou escravos. No entanto, a Confederação se apresentava não só como uma sociedade hierárquica, romântica e conservadora, mas como refinada e mais humanamente autêntica do que o agitado e turbulento Norte ianque. Há fortes pontos em comum entre os valores aristocráticos dos legalistas ingleses daquela primeira Guerra Civil, os românticos jacobitas do século seguinte e as atitudes dos donos deplantations do Sul dos Estados Unidos. Todos eles tinham aversão aos valores mercantis da cidade, aversão essa que evoluiria para um profundo desprezo pelos valores do capitalismo urbano e industrial. Já vimos que a derrota da monarquia absoluta na Inglaterra depois da causa jacobita na Escócia fez avançar o Iluminismo, a ciência e por fim a indústria. Para o Sul, tudo isso era uma maldição. No começo da guerra, William Howard Russell, o excelente repórter do Times de Londres, observou que o Sul era ferozmente hostil “às profissões, ao comércio, à busca do lucro, à manufatura e às artes mecânicas básicas”.26 Um historiador americano da escravidão menciona uma elite governante nos estados escravistas, com seu espírito aristocrático, “com ênfase na família e no 27 status, um forte código de honra e aspirações ao luxo ao conforto e à proficiência”. Este é o Sul de ...E o vento levou e de românticos generais cavalheirescos, cachos ondulantes e bigodes eriçados, atacando a infantaria da União, como se o príncipe Ruperto do Reno tivesse nascido de novo para cavalgar pela Virgínia ou “Bonnie Prince Charlie” estivesse lutando em defesa do Kentucky. Este é também, é claro, o Sul das Causas Perdidas, mas nunca é demais declarar com veemência que nada sobre essa guerra, apesar do desequilíbrio industrial, era inevitável. Um dos melhores e menos parciais historiadores do conflito, James McPherson, mostra que para ganhar a guerra no ponto em que ela chegara em 1863 o Norte tinha de conquistar vastos territórios, prejudicar seriamente a economia sulista e destruir seus exércitos. Tarefa difícil — por isso “a superioridade nortista em efetivo e recursos era uma causa de vitória necessária , mas não suficiente ”. O Sul tinha apenas que perseverar e sobreviver. McPherson sustenta que há um mundo paralelo plausível, no qual, com uns poucos acontecimentos inesperados, os estados rebeldes poderiam ter vencido a guerra — caso em que a história teria tomado uma direção bem diferente. Antes de tudo, se Lincoln, o duro advogado e gênio político do Kentucky, não tivesse sido eleito — o tivesse perdido a presidência na metade da guerra, como quase aconteceu — o Norte poderia ter aceitado a escravidão. Com um pouco mais de sorte os brilhantes generais sulistas “Stonewall” Jackson e Robert E. Lee poderiam derrotado os exércitos nortistas forma tão decisiva, antes da chegada nortistas melhorestercomo Sherman, que a vontade de de lutar da União teria desmoronado. O fatodeé generais que isso quase ocorreu. Houve momentos em que um comando militar incompetente da União e o crescente descontentamento com Lincoln e com a guerra — incluindo os piores motins da história dos Estados Unidos em Nova York, que mataram 120 pessoas durante os protestos contra o recrutamento — quase deram a vitória política à Confederação. Finalmente, porém, a pura força bruta do Norte mais populoso, mais industrial e bem organizado, que por isso mesmo escapou da escassez de alimentos e da inflação galopante que afligiram o Sul, causou a devastação das cidades sulistas e a rendição de Lee. Mas foi uma disputa apertada — tanto quanto a quase vitória alemã na Grande Guerra justamente no momento em que as forças americanas começavam a chegar à Europa. Foi de fato uma guerra cujo desfecho girou em torno de determinadas batalhas e personalidades, uma das razões pelas quais continua a exercer tanta força sobre a imaginação dos historiadores.
* ** Por que, então, eles lutaram, essa massa majoritária de homens sulistas que não eram nem senhores de escravos, nem ricos, mas dos quais um quarto pereceu e muitos dos que sobraram ficaram mutilados? No fim, suas cartas sugerem que o mais importante foi a lealdade à terra, à família, às tradições locais. Eles lutaram contra as certezas de cidades estrangeiras, que lhes pareciam arrogantes, contra um futuro ameaçador, mais frio, de salários, capatazes de fábrica e pregadores ianques hipócritas. Alguns soldados confederados se opunham à escravidão. Robert E. Lee achava que era uma instituição perniciosa, e ele mesmo não possuía escravos. Só renunciou à sua patente na União e combateu do lado confederado porque não podia desertar sua terra, Virgínia, e sua família. Muitos tinham sentimentos parecidos. Lutavam pela Geórgia, pelo Tennessee ou pela Carolina do Sul por causa dos amigos de copo, dos primos, dos pais. Lutavam pela noção de localidade contra a noção de nacionalidade. Sua derrota não apenas soldou o Sul e o Norte numa coisa só, sob um governo federal, que se torno muito mais forte por causa da guerra, mas também permitiu a última grande onda de colonização do oeste, enquanto os Estados Unidos que conhecemos hoje enfim tomavam forma. A ferrovia, cujos trilhos no Kansas tinham ajudado a provocar a guerra, semearia assentamentos através das planícies centrais e dos desertos da América. Soldados desmobilizados dos dois exércitos foram para o oeste a fim de tentar recomeçar a vida. Os nativos americanos das planícies — povos que incluíam os sioux, os cheyennes e os arapahos, que tinham mudado a própria cultura ao adotarem o cavalo no começo dos anos 1700, tornando-se magníficos caçadores para — seriam cadaendurecido vez mais, eaté acabarema destroçados por soldados americanos. Infelizmente eles, a acuados guerra tinha brutalizado atitude americanoeuropeia: em 1864, um massacre particularmente hediondo de mulheres e crianças nativas foi perpetrado em Sand Creek, Colorado. Quando a guerra acabou, a destruição da cultura nativa acelerou-se, sobretudo depois da descoberta de ouro nos Black Hills de Dakota. Os anos 1870 assistiram a ataques implacáveis contra os índios das planícies e suas tentativas de reação, que culminaram na espetacular derrota em Crazy Horse do general George Custer, herói da Guerra Civil, na batalha de Little Big Horn em 1876. Mas nem mesmo os sioux, a mais audaciosa e agressiva das tribos — quase se poderia chamá-los de os zulus da América — tinham chance de vencer os soldados muito mais numerosos, bem armados e disciplinados enviados para combatê-los. E os soldados foram apenas o grupo precursor de uma fervilhante migração de agricultores, caçadores, criadores de gado, atendentes de bar e lojistas. Mesmo que a Confederação tivesse sobrevivido intacta, os povos nativos americanos teriam sucumbido às armas e ao número avassalador de intrusos, mas talvez não com a mesma rapidez. A guerra também trouxe grandes avanços para o capitalismo industrial americano. Entre os homens que fugiram do serviço militar nos exércitos da União, pagando outros para tomarem o seu lugar, estavam o magnata das refinarias de petróleo John D. Rockefeller, o superbanqueiro J. P. Morgan e o gigante do aço Andrew Carnegie. A economia de guerra tinha criado uma necessidade insaciável de aço e armamentos, de petróleo como fonte de iluminação e lubrificantes, de carvão hulha para movimentar os trens e navios da União. Também permitiu que especuladores astutos fizessem fortunas manipulando preços de mercadorias e que banqueiros estabelecessem estreitas relações com políticos de Washington. A concentração de poder em relativamente poucas mãos caracterizou o capitalismo americano em sua fase “heroica”, e o tratamento brutal de grevistas e sindicalistas pode ser atribuído a atitudes assumidas na época da guerra.
Há um último e essencial argumento a ser apresentado sobre a Guerra Civil. Embora tenha soldado a União e preparado o terreno para a hegemonia americana, ela não ofereceu a salvação para os americanos negros que aquela gente que saudou Lincoln à beira do rio em Richmond havia esperado. Cerca de 180 mil negros tinham deixado o Sul para se alistarem nos exércitos da União durante a guerra, muitos deles combatendo heroicamente. Contudo, Lincoln adotara medidas muito cautelosas para acabar com a escravidão, em fases, impulsionado pelas demandas de um conflito cada vez mais desesperado. No Norte, o medo de perder a guerra aumentou a influência dos abolicionistas linha-dura. Na linha de frente, escravos fugidos adquiriram uma importância cada vez maior. Lincoln disse ao seu ministério em 1862 que a emancipação se tornara “uma necessidade militar. [...] Precisamos libertar os escravos, ou seremos subjugados”. (No fim, o exército confederado acabou também utilizando soldados negros.) Sua Declaração de Emancipação de 1863 era válida para os escravos dos dez estados rebeldes e destinavase, em parte, a enfraquecer a economia do Sul e sua capacidade de luta. Só perto do fim do conflito a escravidão se tornou ilegal em todos os Estados Unidos, com a Décima Terceira Emenda da Constituição. Mas libertar os quatro milhões de escravos do Sul, pondo fim ao vergonhoso status americano de maior país escravista do mundo, ainda estava muito longe de garantir aos negros segurança o prosperidade. Durante a “Reconstrução” que veio depois da guerra, os estados sulistas derrotados foram postos sob controle militar direto, antes de serem readmitidos na União. Cidades eplantations destruídas, soldados brancos presos e a influência nortista dos “carpetbaggers” [aventureiros políticos] sugeriram, por um momento, que a velha ordem tinha de fato desaparecido de vez. Muitos ex-escravos logo partiram para outraspor regiões dos Estados ignorando apelos seus antigos propriedades, senhores para ficarem e trabalharem dinheiro. DepoisUnidos, de uma marchaospelo Suldeincendiando convertendo cidades em fogueiras e pisoteando colheitas, o general da União William Sherman pusera em prática um programa de entregar a terra diretamente a ex-escravos, a política de “quarenta acres e uma mula”. Em alguns estados, negros começaram a progredir na política. No entanto, tudo isso era, em grande parte, ilusório. “Reconstrução” também significava corrupção. Políticos nortistas não tinham nem apetite, nem capital, para de fato governarem os estados sulistas. Nem gostavam muito de ideia de rasgar o direito constitucional da propriedade que a redistribuição de terra implicava. Há um interessante paralelo com a emancipação russa dos servos. Nos dois lugares, a terra sem os servos ou sem os escravos para trabalhá-la quase não tinha valor, mas tanto servos como exescravos descobriram que havia pouco serviço disponível para eles, exceto o velho e duro trabalho no campo. Portanto, até que ponto essa liberdade era real? Uma delegação de escravos libertos da Carolina do Sul queixou-se às autoridades da União: “Ficamos numa situação mais desagradável do que a anterior. [...] Temos propriedades na forma de casas, gado, carruagens e peças de mobília, mas não temos terra nem um lugar nosso. [...] Isto não é condição de homens livres de verdade.”28 Camponeses russos desiludidos, de volta à sua terra, fazendo novamente pagamentos em grãos e galinhas para os proprietários, não poderiam ter resumido melhor a situação. Muitos negros americanos acabariam se estabelecendo em cidades industriais do Norte e do Noroeste, tornando-se os “negros de fábrica” de que seus antigos senhores zombavam. No Sul, muitos outros ficaram sujeitos a uma forma de extorsão conhecida como sistema de parceria. Recebiam a terra, um barraco e ferramentas para cultivar a terra de um proprietário e/ou lojista como adiantamento. Os termos eram tão severos que eles dificilmente tinham chance de obter lucro de seu trabalho, e uma ou duas safras medíocres poderiam torná-los escravos do ponto de vista econômico, senão jurídico.
Mas isso foi só o começo. Os estados sulistas baixariam as medidas segregacionistas das “Leis de Jim Crow”, que humilhavam a população negra e a relegavam a uma condição de segunda classe, um eco estridente da própria escravidão. Devido também ao surgimento de movimentos brancos terroristas como a Ku Klux Klan, que agiam décadas depois da guerra contra a escravidão, a vida dos americanos negros foi quase tão desolada quando antes do conflito — e, como já vimos, para alguns foi até mais desolada. As relações entre americanos negros e brancos ferveriam, num clima de infelicidade, por um século, até que eles voltariam a se enfrentar nos anos 1960: muitos diriam que as velhas feridas ainda hoje não cicatrizaram. Dito isso, a guerra mudou os Estados Unidos irrevogavelmente e para melhor. De início a república não se parecia em nada com uma democracia, ou sequer com um Estado centralizado convencional. O correio era a única instituição federal americana com que a maioria dos americanos se mantinha em contato. Mas a imensa expansão para o oeste introduziu um novo tom cruamente democrático e o fluxo de milhões de migrantes europeus pobres transformou as novas cidades do país em vibrantes centros de miscigenação. Além de fortalecer os magnatas capitalistas, a guerra tinha exigido um exército nacional no Norte, alistamento militar, tributação direta, tribunais federais mais fortes e o início da previdência social. A derrota do Sul permitiu que a Constituição srcinal fosse reinterpretada como um documento democrático, conferindo direitos de cidadania a todos os homens (embora as mulheres continuassem excluídas da política). Abraham Lincoln começou a usar a palavra “nação” em vez de “união”, e em se discurso de Gettysburg a promessa de um “governo do povo, pelo povo, para o povo” tornou-se uma espécie de declaração fundadora do republicanismo americano. O capitalismo americano garantiu que o poder das elites ricas continuasse a gerar atritos, enfurecendo agricultores, operários de fábrica e aqueles que perdiam tudo em crises e quebras periódicas. Pelo fim dos anos 1860, a América não era nem culturalmente unida, nem uma verdadeira democracia. Mas já começara a tornar-se o Titã que emergiria no século XX. Agonia samurai O último enfrentamento de Saigo Takamori e seus guerreiros samurais contra o exército moderno do Japão, em 24 de setembro de 1877, ocorreu no momento em que, do outro lado do Pacífico, os índios das planícies eram abatidos a tiros pelo exército dos Estados Unidos. Como as batalhas de Crazy Horse, aquele confronto foi um dos grandes episódios de futilidade militar romântica. Os guerreiros da rebelião de Takamori, que brandiam espadas, bebiam saquê, escreviam poemas, cultuavam os antepassados e eram essencialmente medievais, atacaram um exército de soldados alistados, cujas fileiras eram constituídas de filhos de camponeses, mas que possuía fuzis, canhões e minas modernos. Depois de uma terrível carnificina nas primeiras horas da manhã, só restavam a Saigo cerca de quarenta soldados, que já celebravam a morte iminente e se jogaram uma última vez diante das balas. O próprio Saigo, atingido do lado direito do quadril, caiu e chamou o camarada Beppu Shinsuke para ajudá-lo a ter uma morte honrada — a cometer haraquiri. Na realidade, parece que Saigo estava por demais ferido e chocado para rasgar o próprio ventre, mas Beppu decepou a cabeça do seu senhor, como 29 mandava a tradição. batalha, os soldados levaram algumpudessem tempo paracontemplá-lo. localizar a cabeça e juntá-la ao corpo de Saigo, a Após fim dea que os oficiais japoneses vitoriosos É uma história muito japonesa, desde a cena dos arcaicos guerreiros samurais descendo pela encosta do morro para atacar até a ênfase na honra e no suicídio ritual. Depois da morte, Saigo Takamori tornou-
se uma espécie de santo que ascendera aos céus para muitos japoneses, símbolo de tradição e de honra. Outra versão diz que não morreu, mas foi exilado na Rússia — talvez na Índia —, de onde retorno vitorioso. Doze anos depois da morte, sua popularidade era tão grande que ele foi postumamente perdoado pelo imperador japonês por sua rebelião e tornou-se um herói nacional de duradoura reputação. Contudo, não se deve dar um valor exagerado à “japonesice” desses acontecimentos. A verdadeira história é bem mais complicada do que a de espadachins aristocráticos lutando contra o mundo. Na verdade, foi um confronto entre a maneira antiga de se fazer as coisas e o mundo mercantil e industrial que teve equivalentes em outras regiões. Esse episódio faz lembrar o ataque dos clãs gaélicos escoceses contra os mosquetes e canhões do exército hanoveriano em Culloden, em 1746. Bonnie Prince Charles, que de fato foi para o exílio, também era, para alguns, símbolo de um mundo perdido e, de certa forma, melhor. Em outros sentidos, a mais recente derrota da Confederação americana também foi um episódio comparável, uma guerra civil contemporânea sobre modernização e o poder do capitalismo. Embora não tivesse nada a ver com escravidão, a rebelião de Saigo em Satsuma foi uma tentativa de restaurar valores tradicionais e contestar os novos tempos. No caso japonês, o governo modernizante tinha surgido graças a uma dramática intervenção estrangeira — a chegada de navios europeus e, em particular, da frota americana do comodoro Matthew Perry em 1853-1854. Houve outros golpes contra o Japão na primeira metade do século XIX, provocando a preocupação e a raiva dos japoneses. Mas, antes que sua própria guerra viesse, os americanos já tinham interesse especial pelo Pacífico. Seus “homens da montanha” atravessando as Rochosas e seus baleeiros navegando pela costa tinham iniciado a colonização Califórnia. Havia agora um apetite vorazpor peloisso, óleosedeaventuravam baleia, e os baleeiros ianques já tinham acabadodacom os exemplares da costa americana, cada vez mais Pacífico adentro (irônica inversão da política baleeira de hoje, com ambientalistas americanos de um lado e depredadores japoneses do outro). * ** A última vez que vimos os japoneses foi no começo dos anos 1600, isolados e a ponto de viverem mais de dois séculos de afastado desenvolvimento sob os xóguns de Tokugawa. Esse governo conservador trouxe ordem e estabilidade, mas um lento desenvolvimento econômico. Permitiu que a intensidade e estranheza da cultura japonesa, uma sociedade de rigorosas hierarquias e arte extremamente delicada, florescessem. Porém deu pouco espaço para os desenvolvimentos industriais e econômicos que revolucionavam a Europa e a América. Essa “japonesice” não se traduzia diretamente num forte sentimento de nacionalismo político. Ali estava uma terra dividida por uma montanhosa espinha dorsal, pela distância entre as muitas ilhas e se longo litoral, onde a maioria das pessoas professava apenas lealdades locais. Por centenas de anos, o imperador, embora reverenciado por motivos religiosos, tinha sido politicamente insignificante. No topo do sistema de Tokugawa, sob o próprio xógum, havia o seubakufu , ou governo militar (a palavra significa “governo em tendas”). Em volta disso, em suas terras — os mais leais mais perto — quase em círculos concêntricos, ficavam os grandes proprietários, ou barões, os daimyo, que por sua vez dependiam muito de guerreiros privilegiados, famosos samurais. Centenasdadeclasse milhares de maior combatentes, cerca de 6% a 7% daospopulação, gabavam-se de seus ancestrais e contavam histórias que remontavam às ferozes guerras civis dos anos 1400, 1500 e mais além. Os samurais desfrutavam de privilégios especiais, como o de usar duas espadas em público, e recebiam
pagamento (em arroz) mais ou menos equivalente à posse da terra de que a maioria deles abrira mão. Muitos ainda viviam em quartéis exclusivamente masculinos ou em cidades aglomeradas em volta dos castelos dos daimyo. A vida de um samurai deveria consistir, primordialmente, de treinamento militar, da contemplação da morte e das artes superiores.30 Na prática, porém, a prolongada paz do período Tokugawa tinha dado à maioria desses soldados pouca ou nenhuma experiência de batalha. Havia muitas queixas populares de que esses supostos guerreiros nunca tinham lutado a sério, a não ser em brigas de bordel ou em antros de bebedeira. Na prática, os mais ambiciosos tinham passado a constituir uma classe administrativa, cuidando dos territórios dos governantes num país ainda organizado em cerca de 280 estados de daimyo, ou domínio, muito parecidos com uma versão da Alemanha pré-unificação, nos quais dialetos de um lugar eram frequentemente incompreensíveis para os de outros. Os daimyo, a quem a maioria dos samurais servia, organizavam-se também em categorias, dependendo da história da lealdade ou falta de lealdade de sua família ao clã Tokugawa. Para todos os efeitos, um sistema que obrigava a morar um ano dentro e um ano fora da capital Edo (atual Tóquio) transformava as famílias daimyo em reféns do xógum e de seu governo, elas praticamente não representavam ameaça. Num país que passara tão grande parte de sua história mergulhado em complexas guerras civis e clânicas, a paz resultante foi um importante avanço político. O Japão de Tokugawa não era nenhum paraíso, sobretudo para os agricultores na base da pirâmide social e para as famílias marginalizadas, que (como na Índia) eram incumbidas das tarefas mais desagradáveis. Houve períodos de fome, revoltas camponesas, erupções vulcânicas e sérios problemas de criminalidade urbana. Mas foram séculos sem guerra civil ou epidemias vindas de fora, durante os quais a população cresceu mais rápido do que na Europa. A produção de arroz, vinho, artigos de luxo de papel, tecidos caros, móveis laqueados e de madeira aumentou e as estradas ligando as cidades, geralmente maiores do que as da Europa, viviam cheias de comerciantes. Contudo, esse período também produziu uma atitude presunçosa, até mesmo arrogante, para com o mundo exterior. Quando navios estrangeiros começaram a chegar de novo na costa, um crítico japonês reclamou: “Nos últimos tempos, desprezíveis bárbaros ocidentais, esquecendo-se de sua vil posição nas extremidades inferiores do mundo, vêm cruzando insolentemente os Quatro Mares, pisoteando outros países. Agora têm o atrevimento de desafiar nossa elevada posição [...] Que insolência é essa?”31 Os japoneses da era Tokugawa não tinham como dar uma resposta real à insistente demanda americana por transações comerciais. Seguindo Adam Smith e teóricos como David Ricardo, a economia do século XIX via o comércio comouns a grande forçaa benfazeja mundo. Como já foi observado aqui, supunha-se que países que ajudavam aos outros enriquecerdo tinham menos inclinação para a guerra. O que essa otimista crença liberal não levava em conta era que grande parte do comércio de fato lucrativo produzia imensa riqueza justamente porque era desigual e — da Índia à China e ao Japão — imposto à boca de canhão: “Ou comércio pacífico, ou disparamos.” Quando o comércio enfim se abriu, o Ocidente encontrou no Japão muita coisa que desejava, de excelentes móveis laqueados a sedas e brilhantes gravuras que tanto influenciaram os pintores impressionistas. Os japoneses seguiriam um caminho radicalmente diferente dos chineses, construindo uma economia e um exército industriais modernos. Mas o preço pago pelo Japão foi a destruição de sua personalidade anterior, num processo penoso e paradoxal, que dentro de um século envolveria a América em outra guerra. O paradoxo tinha começado com os samurais. Com alguns dos principais proprietários de terras, começaram a movimentar-se contra o xógum Tokugawa. Enquanto ele e seus conselheiros admitiram, com relutância, que precisavam assinar os tratados comerciais desiguais exigidos pelos ocidentais, incluindo humilhações como aceitar que estrangeiros fossem imunes às leis japonesas, houve um violento contragolpe. O bakufu de Tokugawa, o governo militar, fazia o possível para reformar o velho sistema,
mas suavemente. Já os rebeldes queriam que os demônios estrangeiros fossem expulsos de imediato. Apelaram para esse símbolo do Japão antigo, havia tanto tempo excluído da política, o imperador e sua corte em Kyoto. Para onde deveria ir o Japão? Numa reveladora história desses tempos confusos, um samurai, Sakamoto Ryoma, invadiu a casa de um oficialbakufu envolvido na modernização da marinha com a intenção de assassiná-lo. No entanto, o oficial, Katsu Kaishu, pediu ao samurai que ouvisse sua explicação antes de matá-lo: depois de uma tarde inteira de discussão sobre a importância de uma marinha forte, o pretenso assassino convenceu-se e mudou de lado. Mas a crescente inquietação social causada pela abertura para o Ocidente, revoltas, inflação e a deserção de partidários daimyo enfraqueceram o regime Tokugawa, provocando uma crise na qual mais samurais rebeldes se atiraram. Iniciou-se uma disputa nacional sobre a necessidade de passar de uma sociedade essencialmente feudal e tradicionalista para uma sociedade moderna, no fundo não muito diferente das lutas travadas na Rússia e na América. O Japão realizaria sua modernização com muito menos sangue derramado do que os Estados Unidos — embora a transformação resultante fosse menos democrática — e muito mais êxito do que a Rússia. Por fim, depois de mais de dois séculos de relativa estabilidade, o xogunato desmoronou, e em 1867-1868 o jovem imperador Meiji retornou como governante supremo do Japão. Esse período é conhecido como a “Restauração Meiji”. Os tradicionalistas tiveram um choque terrível, que levou logo ao confronto entre os samurais de Saigo e o exército japonês, pois o novo regime fez exatamente o que os samurais conservadores e hostis aos estrangeiros queriam evitar. Modernizou-se e muito depressa. As mais de 280 propriedades de posse dos daimyo foram abolidas e transformadas em 72 prefeituras modernas, de estilo ocidental, pela primeira vez criando um território único.não Os tributados. samurais perderam os privilégios, desde o direito de andar com duasnacional espadas efetivamente até os estipêndios Quem, nos anos 1870, precisava de guerreiros espadachins (um tanto enferrujados) loucos por poesia? Velhas regras sobre trajes, penteados e lugares onde morar foram rasgadas. Os moradores das cidades japonesas começaram a experimentar roupas ocidentais. Criou-se um exército moderno, recrutado por alistamento e baseado em ideias militares ocidentais. Adotou-se a educação compulsória. A capital transferiu-se de Kyoto para Edo. Um novo imposto sobre propriedade rural eliminou complexos arranjos feudais e, em 1872, as ferrovias chegaram. Depois de um início vacilante, os japoneses recorreram à experiência alemã de capitalismo dirigido pelo Estado para criar suas indústrias e aos britânicos para ajudá-los a construir uma marinha moderna. Pelo ano de 1889, uma nova constituição, foi estabelecida criando uma câmara dos pares e uma câmara de representantes, esta última eleita, mas por um direito de voto muito restrito (apenas 1% dos homens tinham propriedades suficientes para votar). Os cidadãos japoneses conquistaram direitos civis, e movimentos democráticos populares floresceram. O resultado de tudo isso foi o mais dramático e mais rápido (não revolucionário) programa de reformas da história moderna. Foi quase uma revolução — mas não completamente, porque foi empreendida por samurais e proprietários de terra, embora na maioria de nível intermediário, e porque ocorreu sob a autoridade de um antigo sistema imperial. Fez o czar Alexandre II parecer preguiçoso. Entretanto, produziu turbulência e reações quase tão extremas como as de muitas outras revoluções. Houve revoltas de camponeses e samurais, que não aceitavam a perda de antigos poderes — e que ainda contavam com o apoio de muitos japoneses de mentalidade conservadora nas cidades e aldeias. Saigo Takamori apenas o mais audacioso rebeldescom e, ele também, como tantosquando outros seu samurais, tinha começado foi do lado da restauração Meiji. dos Só rompeu o novo regime em 1873, conselho de invadir a Coreia foi ignorado — um plano que, segundo esperava, restauraria o glamour e a autoridade da classe guerreira.
* ** Saigo nasceu no domínio de Satsuma ou Kagoshima, na ilha de Kyushu, a mais meridional das grandes ilhas japonesas. Era famosa não apenas por suas laranjas pequenas, mas também por ser atrasada, tradicionalista e ter um número inusitadamente elevado de samurais — cerca de um quarto da população masculina.32 Era também famosa pela autoconfiança e chefiada por uma antiga famíliadaimyo, que se apresentou como o reino independente de Satsuma na Exposição Internacional de Paris em 1867. Saigo vinha de uma família de samurais pobres, porém era inteligente e estudioso, trabalhou muito para subir da função de escriturário e desempenhar um papel no centro da vida política japonesa em Edo. Sua carreira política teve altos e baixos, incluindo dois desterros, mas em meados dos anos 1860 ele representava os interesses de Satsuma na corte imperial em Tóquio. Contudo, ali se destacou como adversário do regime de Tokugawa, embora conservador em muitas áreas, tornou-se um reformista político. Depois da restauração Meiji, ele até emergiu como linha-dura, entusiasta da criação de um exército moderno de alistados, que mais tarde liquidaria com ele, pronto para acabar com o velho sistema de estipêndio dos samurais e implacável na destruição do poder do antigo regime e de seus partidários. Era o rebelde mais improvável que se poderia imaginar contra o imperador Meiji, por quem tinha reverência. A rigor, o próprio senhor de Saigo em Satsuma, Shimazu Hisamitsu, considerava-o um reformador nocivo, empenhado em transformar o velho e orgulhoso Japão numa colônia dos países bárbaros. A crise coreana provocou sua renúncia ao governo, mas foi o conflito interno de Saigo, assim como o conflito entre a velha cultura samurai em que fora criado e as demandas da modernização, que talvez tenha tornado sua vida intolerável. Após deixar o governo e voltar para Satsuma, adotou um estilo de vida quase tolstoiano de caçadas, cultivo da terra e criação de escolas para ensinar valores confucianos às crianças. Não escreve romances, mas compôs poemas: Amarro minha canoa no regato de juncos floridos Com uma vara de pescar na mão, me sento numa pedra 33 Alguém sabe alguma coisa sobre o outro mundo deste homem magnânimo? A essa altura, Saigo também era uma figura representativa nacional no Japão, da qual cada gesto era observado com atenção. É difícil dizer exatamente o que o transformou de um visionário em exílio voluntário, que fazia advertências sobre decadência no governo, no chefe de uma rebelião militar. Mas a revolta foi provocada pela administração de Tóquio, que mandou espiões — e possivelmente assassinos — perseguirem Saigo e tentarem confiscar armas estocadas em Satsuma. Começou como um levante de estudantes de escola militar privada em Kagoshima. Saigo logo assumiu a liderança do levante e anunciou que partiria para a capital com seu exército local, para desafiar o governo. Começando com mais de doze mil homens, armados de fuzis, carabinas, obuseiros e morteiros, além de suas espadas, eles foram reunindo seguidores durante a marcha na neve para o norte. Mas então pararam para fazer um fracassado cerco de 54 dias contra um o enorme Kumamoto, do século XVII, issomil permitindo desembarcasse exércitoCastelo muito maior e mais bem equipado, de com sessenta samurais que leaisae oposição soldados conscritos. Em batalhas ferozes, os rebeldes foram obrigados a retroceder numa longa retirada, lutando e 34 perdendo soldados ao longo de todo o caminho, até o ataque final, encosta abaixo, e a morte de Saigo.
Não é, portanto, a história simples de samurais tradicionalistas lutando desesperadamente contra um governo modernizante que pode parecer a princípio. Se fosse, Saigo Takamori não seria o herói trágico que continua a ser para muitos japoneses. Sua história é bem mais interessante e triste. Ele também foi um modernizador durante a maior parte da vida (e lutou com mais frequência trajando um uniforme moderno, de influência francesa, do que roupas de samurai). Ficou dividido entre o passado e o futuro de seu país, e só quando se viu contra a parede tomou a decisão de lutar pelo passado. Mesmo então não tinha um projeto coerente além da noção muito vaga de desejar um governo mais “virtuoso”. A natureza ambígua de sua revolta se revela na declaração que fez, no decorrer da luta, de que não estava guerreando para vencer, mas pela “oportunidade de morrer por princípios” — em outras palavras, para se tornar um símbolo. Isso ele com certeza conseguiu. O êxito do Japão como potência modernizante logo assombraria o mundo, quando o país derrotou a Marinha Imperial Russa na batalha de Tsushima em 1905. Mas, embora revestido de aço moderno e de uniformes europeus, o Japão do século XX reteve muitos instintos medievais da classe samurai em se coração, com a ênfase na morte, na honra e na linhagem familiar e o desdém por estrangeiros — pelo menos até os desastrosos anos 1940. Saigo representava os dois Japões, o que era demais para uma só vida. O mistério do imperialismo Que a era do imperialismo moderno começasse na Europa não é nenhuma surpresa. Os europeus vinham competindo mortalmente uns com os outros havia séculos. Seu mar doméstico, o Mediterrâneo, estimulara a navegação, a pirataria e as rivalidades comerciais de tal maneira que, logo que tiveram condições, seus navios avançaram cada vez mais, contornando a África e atravessando o Atlântico. Quando compravam ou tomavam um pedaço de terra, construíam um forte e ali ficavam, era geralmente para proteger aquele novo comércio contra outros inimigos: os portugueses construíram fortes contra os holandeses, os holandeses para manter os britânicos à distância, enquanto que os britânicos e os franceses lutavam uns contra os outros. Embora a primeira e mais óbvia história do império seja a dos países colonizadores europeus se impondo contra povos não europeus mais fracos, o fato é que tudo começou por causa da competição interna europeia. Isso explicalocais, a velocidade, a avidez e a agressividade da séculos, expansãovoltavam imperial do continente. e rivalidades cozinhadas em banho-maria durante a explodir em Inimizades novas terras. Ao pensarmos em império precisamos ter em mente o desprezo recíproco de holandeses e espanhóis, nascido da brutal tentativa da Espanha dos Habsburgos para manter e sufocar a jovem república protestante; a duradoura rivalidade entre Espanha e Portugal; e o desprezo recíproco de marinheiros ingleses e holandeses, alimentado por batalhas marítimas no Canal e no Tâmisa. Com frequência, eram disputas religiosas, além de nacionais. Precisamos ter em mente que a corte britânica tinha inveja da dominação da França católica dos Bourbons e que os comerciantes, missionários jesuítas e aristocratas franceses ficaram furiosos quando os britânicos pareciam estar chegando antes deles nas florestas da América. Se tivesse ocorrido ao contrário, seria como se os africanos tivessem não só colonizado a Europa, mas travado uma antiga e feroz competição entre si — congoleses contra malianos, zimbabuanos contra bantus — enquanto abriam caminho pelos vales do Tâmisa, do Reno e do Ródano. Se isso fosse tudo, teria sido uma história simples, ainda que desagradável. Poderíamos definir a era imperial da Europa como o resultado previsível do fato de uma parte do mundo ter desenvolvido tecnologias melhores e uma melhor organização do que o resto e por um breve período tomar tudo que
pôde tomar. Não há nada de especificamente europeu nisso — nenhum pecado srcinal. Árabes muçulmanos, pastores mongóis, povos chineses da fronteira e marujos maoris se comportaram da mesma maneira hedionda quando houve oportunidade. Sempre que bandos de guerreiros, todos homens, são lançados contra povos estabelecidos, que têm como base a família, há uma alta probabilidade de que se comportem de forma abominável. Livres dos laços de necessidade mútua, de empatia cultivada e da possibilidade de passar vergonha dentro de sua própria sociedade, é muito provável que matem aleatoriamente e até estuprem e torturem. Sejam eles britânicos, americanos, espanhóis, alemães — o hindus, astecas e zulus —, não faz muita diferença. Mas não é que o imperialismo europeu tenha simplesmente soltado bandos de homens gananciosos e solitários, espicaçados por rivalidades nacionais, noutras partes do mundo. Ele também lhes impôs culturas nacionais e religiosas europeias, que já eram bem desenvolvidas e tinham um forte sentimento da especificidade de sua história e de seus valores culturais. Portanto, a história dos britânicos na América não poderia ser apenas uma história de conquista militar, comerciantes e caçadores, porém tinha a ver também com direito, dissidência cristã, questões morais e rebelião política. Os espanhóis, quando chegaram ao México e ao Peru, levavam consigo micróbios e caos, mas também mosteiros e a missa. As colônias francesas do século XIX lutavam para conciliar cidadania republicana com a posse de novas terras e de novos povos. O estabelecimento dos holandeses na África do Sul (não estritamente um momento imperial) foi um êxodo cristão-republicano da terra natal, profundamente influenciado por um sentimento calvinista de missão, com os holandeses como o povo eleito durante a Reforma na Europa. O imperialismo alemão na África era uma extensão da crença daquela corte no destino da Alemanha como nova superpotência europeia, mais disciplinada e menos andrajosamente democrática do que seus decadentes rivais liberais. Tudo isso veio junto com uma dose cavalar de hipocrisia e propaganda egoísta. Tinha de vir. Como poderiam os portugueses católicos justificar sua presença no Brasil ou no Congo sem insistir em que estavam ali para trazer a eterna luz do cristianismo para dissipar as trevas — assim como o comércio de escravos? Quando os britânicos na Índia despedaçavam revoltosos com a boca do canhão ou abatiam a tiros manifestações de protesto, precisavam convencer a si mesmos de que estavam ali para trazer o império da lei, educação e administração adequada, coisas que, a longo prazo, beneficiariam os súditos muçulmanos e hindus. Quando o “vale-tudo para tomar conta da África” começou, jornais franceses, belgas e britânicos invectivavam contra a maldição dos traficantes de escravos árabes, pois era para libertar os africanos que seus soldados agrilhoavam as terras tribais. Contudo, as sociedades europeias tinham se tornado mais abertas e mais autocríticas exatamente no momento em que adquiriam impérios. Já não podiam continuar se alimentando de uma dieta de hipocrisia sem adoecer. Havia entre os missionários muitos homens que tinham o maior prazer em se comportarem como donos do mundo em lugares úmidos e remotos, dando ordens a serviçais e usufruindo sexualmente da gente subjugada, a milhares de quilômetros da família e de concidadãos. Mas havia também cristãos genuínos, horrorizados com as consequências morais do imperialismo — homens como Bartolomé de Las Casas, o frade dominicano que fazia campanha contra os mais graves excessos da “Nova Espanha”, insistindo na plena humanidade dos povos nativos, ou, na África, o escocês David Livingstone. Em casa, quase desde o início as sociedades europeias estavam divididas na questão do imperialismo. A tendência não conformista, batista e partidária do livre comércio presente na vida política britânica combatia vigorosamente traficantes de escravos outros entusiastas do império. grupodegrande muito ruidoso e franco deospró-americanos já existiaeem Londres bem antes da FestaUm do Chá Boston.e Na França, havia uma longa tradição de escritos que zombavam das pretensões dos europeus de serem mais avançados do que os povos que eles escravizavam e conquistavam. A vitória do lobby
antiescravista na Grã-Bretanha do começo do século XIX, apesar de não ter sido o fim de uma guerra, foi uma batalha ganha de imenso significado. Toda sociedade europeia que adquiriu um império foi afetada, com frequência negativamente. Vimos o efeito do ouro e da prata americanos sobre a Espanha. Embora a riqueza portuguesa se baseasse, por séculos, em suas conquistas na África e no Brasil, por volta da metade do século XX o país se tornara um lugar atrasado, ressonando sob uma ditadura. A Grã-Bretanha ficou dividida social e politicamente entre os adeptos do livre-comércio e os não conformistas liberais de um lado e, de outro, os amantes do império, amontoados em torno da corte, das forças armadas e de Londres. Se os imperialistas tivessem perdido antes, talvez a Grã-Bretanha não fosse hoje um país pós-manufatureiro e pós-industrial excessivamente dependente dos serviços financeiros, o último vestígio da expansão imperial. Sem dúvida teria havido bem menos imigração em massa e um histórico bem menor de envolvimento em guerras no ultramar. Por isso é importante lembrar que o imperialismo nunca foi simplesmente uma questão de um país invadir ou ocupar outros. Era uma via de mão dupla. Pressupunha sempre escolhas internas e a vitória de um lobby ou de certos interesses econômicos sobre outros. Fora da República Holandesa, onde o capital vinha de uma classe média em crescimento, isso geralmente significava a vitória da corte e dos militares associados à corte. Sociedades divididas em cortes pequenas e numerosas, como a Alemanha ou a Itália, só puderam participar da corrida imperial depois que se juntaram para formar um único centro militar e financeiro. E, logo que se estabeleceram, seu primeiro ato, a bem dizer, foi adquirir territórios ultramarinos. Pareciam os imperialistas brutais, mas só porqueeforam os últimos a chegar. Grã-Bretanha tinhaantes lutadoque parao dominar a Índia,mais massacrado tasmanianos ajudado a eliminar povos Anativos americanos, clarão ofuscante das comunicações modernas tornasse tudo isso por demais constrangedor. Os holandeses se comportaram de forma feroz com os javaneses antes que alguém na Europa tomasse conhecimento o desse importância. Os alemães com suas metralhadoras no Leste da África e Mussolini com seus aviões e gases na Etiópia foram alvos mais fáceis de indignação. Os únicos países europeus que quase não participaram da construção de impérios naquela altura foram os que já tinham impérios dentro da própria Europa, como os austro-húngaros (e, em grau menor, os russos), ou que eram pequenos demais e sem acesso ao mar para terem esperança de competir, como os suecos, os noruegueses, os suíços e os poloneses. Em geral, esses construíram as sociedades mais igualitárias e bem-sucedidas de hoje, o que talvez não seja coincidência. Há, no entanto, um exemplo gritante de país pequeno que adquiriu um vasto império. Embora peculiar, é uma história que nos diz muito sobre como o imperialismo de fato funcionava. Leopoldo, o Repugnante O império pessoal criado nas entranhas do continente africano pelo rei belga Leopoldo II, foi o exemplo mais extremo, quase absurdo, de imperialismo europeu. A Bélgica era um pequeno perdedor na Europa do século XIX, um país com dois idiomas que só ficara independente em 1830 (e ainda hoje quase não é um país). Os belgas tinham ido procurar um rei para comprar no mercado monárquico da Alemanha. Optaram príncipe Leopoldo de Saxe-Coburg-Saalfeld, oficialaofanfarrão no exército russo quepelo combatia Napoleão. Casara-se com a segunda na que linhafora de um sucessão trono britânico, que morreu antes de poder tornar-se rainha, e era tio da rainha Vitória. Na realidade, ajudara a arranjar o casamento dela, reconhecidamente feliz, com seu sobrinho, o príncipe Albert. Depois de aceitar o convite
da Bélgica — já tinha recusado a chance de tornar-se rei da Grécia —, Leopoldo mostrou-se, em muitos sentidos, um bom rei, apoiando reformas sociais e conduzindo-se com a circunspeção de um monarca constitucional. Ele era, e isso tem um significado especial, rei dos belgas, e não rei da Bélgica — o chefe de um povo, não o dono de um feudo. À medida que a era do império amadurecia, isso irritava Leopoldo. Seus parentes, notavelmente a sobrinha Vitória, tinham belos impérios. A Bélgica não tinha nada. Era um país populoso, mais ou menos pobre, onde se falava em emigração como um meio de evitar uma revolução social. Leopoldo perguntou aos turcos se queriam vender Creta. Tentou Cuba, até mesmo o Texas, quando ainda não era parte dos Estados Unidos. Chegou a pensar nas Ilhas Faroé. Lançou olhares de cobiça para da de América do para Sul também. havia nada morreu desiludido, mas apartes mania colônias o filho, Não o manhoso, alto,disponível. magro e Leopoldo narigudo Leopoldo II. O filho erapasso mais atrapalhado do que o pai. Lutava contra um casamento infeliz e saiu andando a esmo pelo mundo. Figura pouco atraente, hipócrita do mais alto nível, não gostava do papel inferior reservado à monarquia constitucional na Europa e não achava a Bélgica grande coisa. Petit “ pays, petits gens” [“País pequeno, gente pequena”], resmungava. Como herdeiro, viajou muito, observando o imperialismo britânico no Egito, estudando em Sevilha o fluxo financeiro do império espanhol e lendo sobre o tesouro que fluíra da colônia de Java para a Holanda. Como candidato a comprador ainda mais importuno do que o pai, o jovem Leopoldo pergunto se podia comprar uma parte de Bornéu. Alimentava fantasias sobre adquirir qualquer coisa na Abissínia ou no Nilo. Talvez os argentinos pudessem lhe arranjar alguma coisa... Quem sabe poderia afanar um naco da China? De Fiji? Do Vietnã? Das Filipinas? Uma ilha na costa do Uruguai? Ou no Pacífico? Como o pai, estava a ponto de tornar-se figura de ópera-bufa: “Trainee de imperador precisa de um império. Estudará todas as ofertas.” Mas já tinha recebido uma terrível advertência sobre como podia ser perigoso para europeus caírem de paraquedas em tronos estrangeiros. A irmã se casara com o malfadado arquiduque austríaco Maximiliano, que os franceses tinham despachado para o México como imperadorfantoche. Sem se deixarem impressionar, os mexicanos o executaram, oferecendo inspiração para um belo quadro de Manet. A mulher enlutada, irmã de Leopoldo, enlouqueceu, e ele a manteve escondida num palácio pelo resto da vida. O que transformou essa trama secundária da história dinástica europeia numa tragédia mundial foi a penetração da África Central por exploradores europeus. A partir do fim dos anos 1840, britânicos como oderam extravagante Burton e seu companheiro (posteriormente inimigo) do John Speke início aomultilinguista mapeamento Richard do interior da África, começando pela busca das nascentes Nilo. Os heróis da Real Sociedade Geográfica de Londres não desejavam ampliar o Império Britânico — embora a fama e a riqueza provenientes da bem-sucedida publicação de livros fossem certamente muito atrativas. Nem o governo britânico estava muito interessado. Verney Lovett Cameron fracassou ao tentar resgatar o grande David Livingstone, o missionário congregacionalista e explorador escocês, mas voltou para Londres depois de atravessar o continente, transbordando de histórias sobre seus rios, lagos e solo rico. Os ministros não demonstraram o menor interesse. Livingstone tinha atravessado o continente, na direção oposta, viajando sem muita bagagem e sem ofender a maioria dos chefes tribais africanos que encontrou pelo caminho. Acreditava profundamente na civilização ocidental, cristã, e queria de fato salvar almas, além de mapear rios e lagos, mas pertencia a uma tradição religiosa que suspeitava do poder terreno, militarista. Como Cameron, era um detrator genuinamente indignado da escravidão africana. O mesmo se poderia dizer de Henry Morton Stanley, menino galês que tinha sofrido muito em seus anos de formação num asilo para pobres antes de ir para os
Estados Unidos, onde conseguiu lutar dos dois lados da Guerra Civil, até emergir como um jornalista brilhantemente marqueteiro e pouco confiável. Quando trabalhava para um magnata da imprensa de Nova York, recebeu a missão de encontrar Livingstone. Abusando cruelmente dos carregadores nativos e sedento de fama, acabou fazendo a pergunta “Dr. Livingstone, I presume?” [“O senhor é o dr. Livingstone, não?”] e tornou-se celebridade mundial. Stanley também voltou para Londres e, embora já fosse americano, queria que os britânicos reivindicassem a posse das imensas terras novas. Mas, como Cameron, Stanley não encontrou em Londres nenhum entusiasmo pela anexação do Congo. Leopoldo II, lendo os relatos do explorador em se exemplar do The Times, entregue diariamente ainda intacto à mesa do café da manhã de seu palácio nos arredores de Bruxelas, teve outra reação. Leopoldo queria, como disse, uma fatia “deste magnífico bolo africano” e lançou uma esperta campanha para consegui-lo. Decidiu bancar o filantropo. Como já vimos, traficantes muçulmanos de escravos abasteciam-se, havia muito tempo, nos reinos africanos, e quando o movimento antiescravista pôs fim ao envolvimento britânico no tráfico atlântico o combate à escravidão africana tornou-se causa moral de grande prestígio. Dessa maneira, Leopoldo se apresentou como um cruzado, dizendo à rainha Vitória que queria “levar a civilização para a África” e em 1876 realizou uma grande conferência na Bélgica, na qual exploradores, políticos e benfeitores de toda a Europa e da Rússia foram homenageados, condecorados, ouvidos e recebidos com magníficos banquetes. Bebida de graça e adulação vão longe, como Bruxelas sabe muito bem. Leopoldo disse a todo mundo que só queria acender a luz da civilização para os nativos e sugeriu a criação de uma rede de estações europeias no Congo, onde médicos, cientistas eregião. outrosImpressionados, ajudassem a abolir a escravidão, estabelecer “harmonia entre os chefes” e “pacificar” a os figurões da conferência de aBruxelas concordaram em formar a Associação Internacional para a África, com o rei Leopoldo como presidente. Sua faca de cortar bolo estava pronta. Burton, Speke e Livingstone teriam ficado horrorizados com as consequências de suas viagens heroicas e solitárias. Talvez achassem bastante improvável que aquela terra viesse a ser tomada tão rápido pelos europeus. A malária, a febre amarela, as matas fechadas, os animais selvagens, os nativos hostis e o calor feroz tinham, até então, mantido os forasteiros a distância. Tratava-se do interior do que era chamado, sem qualquer afetação europeia, de “Continente Negro”. Mas Stanley, que estava na África quando a conferência de Bruxelas foi realizada, era outro tipo de homem. Era ambicioso de sucesso mundano e, uma vez menosprezado pelos britânicos, foi facilmente seduzido por Leopoldo II. Cinco anos depois da conferência, Stanley e sua equipe belga tinham aberto caminho por um rio nas pedras e na floresta para chegar ao imenso e navegável caudal do Alto Congo, que logo passou a ser utilizado por barcos para fazer comércio, formar pequenos assentamentos e firmar “tratados” unilaterais espúrios com chefes de clãs locais. Mesmo nos anos 1880, a legalidade da tomada de posse, sem mais nem menos, de uma vasta fatia da África por determinado império pessoal (o parlamento da Bélgica deixou claro que não queria se envolver) era questionável. Porém a tortuosa diplomacia de Leopoldo conquistou o apoio do presidente dos Estados Unidos. França e Portugal, ambos com interesses na região, ficaram furiosos, mas Leopoldo ogou as potências europeias umas contra as outras. O fato de ninguém se sentir ameaçado pela Bélgica também ajudava. Com isso, Leopoldo conseguiu o apoio da Alemanha de Bismarck e, mais tarde, dos britânicos. A “Associação Internacional do Congo”, hasteando a bandeira de um velho rei do Congo, tornou-se, na realidade, uma eempresa de fachada do novo“Rei-Soberano império de Leopoldo. EmLivre 1885,do o parlamento belga respaldou seu plano, ele passou a intitular-se do Estado Congo”. Venderam-se ações e levantaram-se fundos, embora Leopoldo continuasse a controlar tudo pessoalmente.
Logo, a um terrível custo humano, uma ferrovia foi construída da costa até as águas navegáveis acima das imensas corredeiras e quedas que separavam o majestoso rio Congo do mar. Comerciantes armados precipitaram-se para dentro da barriga da África, de início comprando todo o marfim disponível. Chefes eram induzidos, com falsos argumentos, a transferir suas terras, aldeões eram seduzidos, intimidados e ameaçados para que entregassem seus estoques de alimentos e marfim. Elefantes foram caçados e quase extintos em todas as áreas aonde os brancos conseguiam chegar. A lei da forca e do açoite entrou fundo no Congo; a cruzada supostamente humanitária tornou-se uma nova forma de escravidão. O marfim tinha enorme valor, pois era usado em quase tudo, desde dentes falsos a teclas de piano, mas, quando o pneu inflável para bicicletas foi inventado, a borracha — seiva de trepadeiras que crescia naturalmente em todo o Congo — adquiriu valor ainda maior. Nativos africanos eram forçados a entregar quantidades cada vez maiores da goma viscosa e desagradável. Se relutassem, as mulheres e os filhos eram tomados como reféns. Os que protestavam — e havia rebeliões — eram abatidos com novos fuzis de repetição rápida e com metralhadoras, pendurados em árvores ou açoitados até morrer. Um exército nativo brutal, comandado por oficiais belgas, decepava as mãos daqueles que matava, para reivindicar uma gratificação financeira. Frequentemente, para falsificar os números ou por puro sadismo, mãos e ouvidos também eram decepados dos vivos. Longe das famílias, dos sacerdotes e dos vizinhos, fora da área de atuação dos repórteres de jornal, homens belgas comuns transformavam-se em perpetradores de massacres. Não foi uma história muito diferente da transformação de tranquilos lojistas luteranos e trabalhadores rurais suábios em assassinos das SS em foram camposdescartados. de extermínio. Congoleses, como judeus,Danão eram totalmente Os freios sociedade “Ninguém” estava olhando. Antuérpia, partiam humanos. aventureiros, armasdae munição, junto com grilhões e algemas, para o Congo. O que vinha de lá eram carregamentos de marfim e borracha, lucros imensos também para Leopoldo, que começou a alardear gastos extravagantes, não apenas com amantes e artigos de luxo, mas também com a ampliação de seu palácio real e a construção de edifícios para impressionar os súditos belgas. O êxito da audaciosa jogada de Leopoldo causou muita preocupação e inveja no resto da Europa, e a “briga pela África” começou. Os britânicos tinham se estabelecido no extremo sul do continente, uma área climática e geográfica bem mais tolerável para os europeus, convivendo desconfortavelmente com bôeres holandeses e com nativos. No extremo norte, os franceses tinham começado a tomar conta da Argélia em 1830 e o canal de Suez estava sendo construído com dinheiro francês e britânico no período de 1859-1869. Mas foi a prosperidade obtida por Leopoldo com a borracha e a descoberta de diamante perto do rio Orange, na África do Sul, seguida pela febre do ouro dos anos 1880, que transformaram a expansão em exaltação. Os franceses avançaram pela África ocidental, em países como Chade, Senegal e Mali, que tinham sido o núcleo de civilizações africanas anteriores, enquanto tentavam fazer uma ligação entre a bacia do Níger e as possessões do Norte da África através do Saara. Os britânicos seguiram para o norte a partir da África do Sul, por onde ficam os atuais Zâmbia, Zimbábue, Quênia e Malaui, tentado conectar o Cabo ao Egito numa imensa faixa de controle norte-sul. A Alemanha, que entrou tarde na disputa, abocanhou pedaços da carcaça restante — Tanganica, Togolândia, Namíbia. Dos anos 1890 até 1914, a agitação provocou grunhidos e brigas entre as potências europeias. A fome insaciada da Alemanha foi umaDas dasdepredadas causas da Primeira Mundial. florestasGuerra tropicais da bacia do Congo, despojadas de borracha e elefantes e despovoadas pela matança belga, aos regimes brutais que emergiram da humilhação da conquista e da exploração, a “briga pela África” foi um imperialismo tardio sem qualquer aspecto que o redimisse.
Alguns dos piores comportamentos testemunhados na África moderna, do uso de crianças como soldados (ideia belga) à amputação de braços, pés ou mãos de rebeldes, vêm daquela época. As linhas do mapa traçado na Europa, dividindo tribos e grupos linguísticos, são pelo menos em parte responsáveis pela sequência de estados falidos, incapazes de inspirar lealdade, que atulham a África contemporânea. É verdade que médicos europeus levaram drogas e remédios que começaram a conter antigas doenças africanas, mas essas mesmas drogas permitiram que europeus entrassem em determinadas regiões do continente e as explorassem pela primeira vez. A África estava menos populosa e, logo que povos protegidos contra as doenças e industrialmente armados chegaram, ficou perdida quase por completo. Para lhe dar algum tipo de crédito, Leopoldo percebeu isso cedo e de maneira instintiva. Seu império congolês era tão bárbaro que a notícia se espalhou, e os protestos na Europa aumentaram. A história dos escritores e paladinos que divulgaram os horrores do Congo Belga é impressionante. Um antigo escrivão de navio chamado Edmundo Morel, que notara a disparidade entre as cargas que saíam de Antuérpia e os carregamentos que chegavam — só armas e munição saindo, só marfim e borrachas lucrativos entrando —, foi um dos principais líderes da agitação, fundando a Associação para Reforma do Congo. Morel era um “bom europeu” a ser colocado como contrapeso para Leopoldo. Outros homens famosos, como o romancista polonês-britânico Joseph Conrad e o nacionalista irlandês Roger Casement, também eram muito influentes, embora a tradição não conformista cristã fosse mais importante do que qualquer indivíduo isolado. Foi a primeira campanha humanitária da época moderna, equivalente eduardiano do Live Aid ou da Anistia Internacional. O fluxo constante de histórias de horror que jornais europeus e americanos publicavam irrito imensamente Leopoldo. Ele reagiu intimidando, subornando e contratando seus próprios propagandistas, mas nada funcionou. Quando uma comissão de inquérito que ele mesmo designou foi incapaz de camuflar a história, ele acabou desistindo e vendeu seu império privado para o Estado belga. Depois disso, iniciaram-se as reformas. Adam Hochschild, o escritor americano que registrou uma cuidadosa história moderna do império de Leopoldo, menciona cálculos sugerindo que, entre 1880 e 1920, os assassinatos, a fome, as doenças e a queda dos índices de natalidade reduziram a população do Congo à metade: “Isso significa [...] que, durante o período de Leopoldo e seus efeitos imediatos, a população do território perdeu cerca de dez milhões de pessoas.”35 Animais empalhados, uniformes, correntes e botins nativos estão expostos num dos edifícios grotescos, de mau gosto, de Leopoldo nos arredores de Bruxelas. Os belgas, o que é compreensível, têm feito o possível para esquecer esse monarca astuto e notavelmente desagradável. Contudo, o ato mais dramático de caos imperial foi praticado não por um retardatário, mas pelo criador do capitalismo moderno. Ópio, guerra e tragédia A história começou, porém, com uma vitória chinesa contra os britânicos, comandada por uma das figuras mais intrigantes e trágicas do século XIX, Lin Zexu, ou “comissário Lin”, como é mais lembrado. O cenário foi uma pequena aldeia à beira do rio, abaixo da grande cidade de Cantão, um mundo de águas, verde-cinza, quente, brumoso, vibrando de mosquitos e cheirando a lama. Lin, um homem grande de gargalhada ruidosa e bigode basto, supervisionava a destruição de uma imensa quantidade de drogas apreendidas. Por ordem do imperador chinês, desfazia-se meticulosamente de vinte mil baús de ópios, que valiam uma fortuna.
Livrar-se de um volume tão grande da droga pegajosa, fétida e escura era muito difícil. Lin tinha uma equipe de quinhentas pessoas cavando imensos poços forrados de pedra e madeira. Os baús de madeira eram postos de cabeça para baixo. Depois, as bolas de ópio, atadas com folhas de papoula, eram esmagadas com os pés e jogadas nos poços, onde se dissolviam na água com sal e cal, eram mexidas até formar um mingau malcheiroso e então escorriam para um riacho e do riacho para o mar. Havia tanto ópio que o serviço consumiu três semanas. Lin, que nas horas vagas era poeta, além de popular e bemsucedido funcionário público, já tinha composto uma oração para o mar, pedindo desculpas pela poluição e aconselhando aos peixes e outras criaturas marinhas que buscasse refúgio num lugar seguro qualquer até que o ópio se dissolvesse.36 Era o desfecho da persistente campanha do comissário Lin contra comerciantes estrangeiros em Cantão, majoritária, mas não exclusivamente britânicos, em sua tentativa de acabar com o comércio de ópio. Os chineses não foram os primeiros usuários de ópio, nem sequer os primeiros a adotá-lo. O pó amargo e grosso extraído de sementes de papoula branca fora usado na Antiguidade clássica e no mundo árabe. Tinha sido cultivado na Índia, sob os mongóis e despachado para o resto da Ásia por negociantes indianos e holandeses. Mesmo no momento em que os homens de Lin esvaziavam os baús de madeira no rio das Pérolas, também era usado na Grã-Bretanha. Escritores como Thomas de Quincey e poetas como Coleridge e Crabbe eram viciados. O conquistador britânico da Índia, Robert Clive, morreu de overdose. O ópio era receitado como láudano, um “medicamento” líquido muito popular também entre homens e mulheres da classe operária, que lutavam para se adaptar à revolução industrial. Era usado até para fazer bebês pararem de chorar. Mas só os chineses tinham começado, em grandes números, a usar a droga de uma nova maneira — fumando-a misturada com tabaco. Isso produzia um estado de euforia mais potente, mais viciante e, portanto, muito mais perigoso — a novidade podia ser comparada a cheirar cocaína e fumar crack. Não se sabe ao certo quantos homens chineses (pois era uma questão eminentemente masculina) tinham adquirido o vício por volta dos anos 1830. Estimativas da época variavam entre quatro milhões e doze milhões. Seja qual for a cifra, todos achavam que a percentagem de viciados estava aumentando rápido, apesar de um decreto feroz contra o negócio baixado pelo imperador em 1799. Quando menino, Lin tinha visto os efeitos da droga em sua província natal de Fujian, onde homens trabalhadores se transformavam em zumbis siderados. Aderiu com entusiasmo à campanha contra as drogas. Além disso, era uma estrela em ascensão na burocracia chinesa, sufocara uma revolta camponesa usando de persuasão e ficou conhecido como “Céu Azul” pela reputação de raro funcionário incorruptível. Nomeado pelo imperador para resolver o problema em Cantão, Lin tinha criado uma sofisticada mistura de incentivos e castigos. Os incentivos incluíam uma anistia de oito meses para viciados e um refúgio para fumantes que tentassem largar o vício. Os castigos incluíam a pena de morte para os traficantes — estrangulamento vagaroso para chineses, decapitação para estrangeiros. Entretanto, as punições mais importantes eram para ser usadas contra os traficantes estrangeiros, pois o ópio estava sendo despejado na China pela Índia britânica, onde a nova potência colonial assumira os campos de papoula dos mongóis. De início, era um negócio não oficial e sub-reptício, que a oficialmente sancionada Companhia das Índias Orientais deplorava. Havia uma modesta quantidade de contrabando, sobretudo pela porta de acesso de comerciantes estrangeiros à China imperial, as chamadas fábricas, um pequeno bairro de galpões, casas e pátios de comércio nos arredores de Cantão. Então a economia global deu sua contribuição. O grande vício britânico não era o ópio, mas o chá, que naquela época só se cultivava na China. Essa benigna obsessão nacional, que continua até hoje e desempenhou papel tão estranho na perda das colônias americanas, era ao mesmo tempo cara e lucrativa para o governo britânico. No começo do
século XIX, o governo cobrava 100% de imposto sobre o valor do chá, às vezes obtendo dinheiro suficiente para cobrir metade dos custos de sua máquina de guerra global, a Marinha Real. Os chineses, porém, recusavam-se a comprar produtos manufaturados britânicos para compensar o valor do chá importado, portanto, o que ocorria era um imenso e potencialmente danoso derrame de prata e ouro britânicos. Era isso que preocupava Londres. Para começar, em comparação com o chá e a prata, o ópio era secundário. Então esses operários de fábrica viciados em láudano entraram na história. Os cotonifícios britânicos, produzindo tecidos baratos, tinham um mercado cativo na Índia. Se o ópio indiano trouxesse a prata de volta da China, então a Índia poderia comprar algodão — e outros produtos — da Grã-Bretanha e, por sua vez, a Grã-Bretanha poderia pagar pelo chá. Era o tipo da transação múltipla criada pela industrialização. A troca de prata por chá — ruim para os britânicos — tornou-se uma dança em quaternário para o chá, o ópio, o algodão e a prata — de resultado muito positivo para os britânicos. A Companhia das Índias Orientais vendia ópio na Índia para “comerciantes do interior”, negociantes independentes cujos navios levavam a mercadoria para abastecer o mercado chinês em expansão. Quando o monopólio da Companhia foi enfim abolido, esse negócio até então sub-reptício tornou-se um dilúvio. Foi isso que provocou a crise que levou Lin a Cantão. O pobre comissário julgava estar simplesmente suprimindo um vício maldito. A rigor, estava prestes a lançar um império em guerra contra o outro. * ** As Guerras do Ópio são lembradas como as piores em que o Império Britânico se meteu, um ataque implacável ao território, à moralidade e à soberania de uma China amodorrada, decadente e incompetente. Até hoje, na China, o Tratado de Nanquim, de 1842, que pôs fim à primeira Guerra do Ópio, humilhou o imperador e escancarou as portas oceânicas do império ao comércio britânico é recordado como uma humilhação nacional. Os governantes comunistas, a partir de 1949, usam o tratado unilateral como um grande exemplo de como a última dinastia, Qing, traiu o povo chinês. No Ocidente, incluindo na Grã-Bretanha, os malefícios do comércio de ópio, cinicamente vendido junto com tratados missionários, são vistos como exploração imperial indesculpável. A verdadeira história é um pouco diferente. Para começar, o império Qing não estava cambaleando. Tinha um imperador fraco e enfrentava revoltas internas, mas isso estava longe de ser uma raridade na história chinesa. A dinastia governava a China apenas desde 1644, quando a Grã-Bretanha penava nas garras de uma revolução. Bem no momento em que Charles I enfrentava sua derrota final, o último imperador, Ming Chongzhen, se enforcou em se palácio, enquanto um rival surgido do nada queimava a periferia de Pequim. A capital logo caiu diante dos manchus vindos das estepes, srcinariamente nômades setentrionais, cujo exército incluía mongóis orgulhosos de seu ancestral, Gêngis Khan. O império Ming, apesar de ter sido uma das maiores dinastias da longa história da China, sofrera uma debilitante crise financeira. Depois do fracasso do velho sistema monetário baseado em cordões de moedas de cobre e, mais tarde, em papel-moeda recorrera-se à prata, na maior parte importada. (A moeda também estava na srcem dos problemas do rei Charles.) Quando as importações de prata estancaram, a corte Ming teve que cobrar impostos cada vez mais opressivos. Como os grupos mais poderosos e ricos tinham conseguido isenção ou arranjavam meios de sonegar o pagamento de seus impostos (sombras da França de Luís XVI), o fardo recaía sobre os mais pobres, particularmente nas cidades. Uma sequência de más colheitas e epidemias de praga provocou revoltas e
grandes rebeliões. A mais séria foi liderada por Li Zicheng, que se intitulava “o príncipe arrojado”, destruiu algumas grandes cidades e acabou expulsando o último dos Qing, antes de chegar a sua vez de ser derrotado pelos manchus. Ninguém teria apostado dinheiro ruim, menos ainda dinheiro bom, em que os manchus saberiam administrar a China. Eram de etnia distinta, vindos de fora dos limites do império propriamente dito. Sua região de origem ficava a noroeste da Coreia, mas graças a uma poderosa rede de alianças e clientes que formaram com mongóis, tibetanos e alguns chineses Han conseguiram estabelecer-se na China setentrional e declarar-se a dinastia do norte. Depois de 1644, apropriaram-se do “Mandato do Céu” dos Ming e acabaram conquistando o sul, o que lhes permitiu governar uma área bem parecida, em tamanho e forma, à China moderna. Porém nunca deixaram de ser “de fora”. Os Ming, que tinham despachado sua famosa frota de barcaças de guerra de junco para a Índia e a África, depois chamado de volta, e foram responsáveis por um dos mais notáveis florescimentos da arte e da cultura chinesa, eram uma dinastia nativa que antes havia derrotado a dinastia mongol “forasteira” dos Yuan. Como poderia um bando de semibárbaros dominar e governar o maior império do planeta? Contudo, foi exatamente o que os manchus fizeram. Primeiro, pela guerra, demonstrando aterradora crueldade ao tomarem a primeira cidade importante, usando canhões e cavalaria em batalhas muito parecidas com as batalhas travadas na Europa da mesma época. Então, impuseram o uso de trajes manchus aos Han que haviam conquistado, além de testas raspadas e de longas tranças — a aparência “chinesa” caricatural que logo se tornaria famosa na Europa. A resistência Han e Ming continuou por muito tempo, como a dos muçulmanos em outras revoltas regionais, e os manchus nunca foram inteiramente Mas oimperadores fato é que reformaram aperfeiçoaram o sistema de administração, sob uma sérieaceitos. de grandes — Kangxi, eYongzheng e Qianlong —,Ming governaram com êxito e,um império cada vez mais populoso e rico, dos anos 1660 até a crise do ópio, coincidindo com a época das revoluções francesa e americana e o advento do capitalismo industrial. Foi uma façanha e tanto. As dezoito províncias da China eram governadas por uma hierarquia de funcionários selecionados por um sistema ferozmente competitivo que consistia em aprender e recitar textos clássicos. Na imensa maioria, os milhões que eram estimulados a estudá-los fracassavam nos exames e, embora seu forte não fosse promover pensamentos srcinais, ainda assim o sistema produzia burocratas bem preparados e muito dedicados. Dentro do império, uma complexa rede de rotas postais mantinha a capital rigorosamente informada do que acontecia a milhares de quilômetros de distância. As forças militares chinesas estavam atrasadas em relação às da Europa em capacidade tecnológica, mas não muito. Começaram a usar canhões muito tempo antes dos europeus, suas barcaças de junco estavam acostumadas a derrotar piratas locais, e, depois de sufocar numerosas revoltas, os exércitos do imperador tinham experiência de combate. Em suma, a China manchu não era de se jogar fora. Se a dinastia não tivesse sido afetada pelas consequências da remota revolução industrial, não há por que achar que não teria ficado ainda mais forte. Só estava fadada à ruína por causa do que aconteceu em Manchester e Birmingham. Pouco antes da crise do ópio, a China teve um imperador duro e diligente, que governou por muito tempo, chamado Daoguang, sexto da linhagem dos manchu. Governou cerca de quatrocentos milhões de pessoas, a esmagadora maioria camponeses, mas incluindo muitas cidades comerciais poderosas que mandavam grãos, sal, seda e artigos de luxo para todo o país. Era o país mais rico e populoso do mundo, que fazia negócios línguas. com o Império dos Habsburgos doem quequatro qualquer outro.Nesse Mas sentido, a China era dosmais Qingparecido não tinha rivais locais. Austro-Húngaro Havia apenas a China, centro do mundo, e estados fracos e suplicantes na periferia.
Isso explica a atitude desdenhosa para com a enorme missão diplomática britânica em Pequim em 1793, chefiada por lorde George Macartney. Brilhantemente ataviado e levando lãs, canhões, relógios, pinturas, instrumentos musicais britânicos e até mesmo um balão de ar quente (com um balonista entusiasmado e tudo), Macartney tinha chegado num grande navio de guerra com 95 acompanhantes. Sua expedição exigira 2.495 carregadores para transportá-la por terra. O lorde era astuto e tinha resolvido as dificuldades de se aproximar do imperador, incluindo evitar a vênia humilhante de ajoelhar-se e tocar o chão com a testa. Mas a proposta que apresentou para estabelecer uma embaixada britânica permanente em Pequim e uma chinesa em Londres, como prelúdio de mais amplas relações comerciais, foi rejeitada com desdém. Qianlong aceitou a saudação de George III com protestos de “humildade e obediência”, porém explicou que não queria engenhocas, “e também não temos a menor necessidade dos produtos manufaturados do seu país”.37 Para os chineses, os britânicos eram apenas outra pequena tribo além do horizonte. Dessa maneira, quando o comissário Lin chegou, em 1839, para lidar com a séria, mas localizada, dificuldade representada pelos negociantes britânicos que inundava a China com drogas altamente viciantes, achou que pudesse dar as cartas. Tinha perfeita consciência de que o comércio de chá era bom para os plantadores e negociantes chineses e não tinha intenção de isolar seu país por completo. Suas maneiras bruscas refletiram-se muito bem numa carta amável, mas dura, que escreveu para a rainha Vitória. Não sabia que o ópio era legalmente vendido na Grã-Bretanha — que pensamento bizarro! — e explicou-lhe com paciência que “esse artigo venenoso é fabricado por certas pessoas diabólicas em lugares sob seu governo. Não é, está claro, feito ou vendido por ordem sua”. Disse-lhe para acabar com o comércio e voltar a falar com ele, prometendo que, se o fizesse, “estaria agindo de acordo com sentimentos decentes, o que pode até influenciar o curso da natureza em seu favor”. A rainha Vitória nunca recebeu a carta. Apesar disso, o Times publicou-a posteriormente, provocando muitas risadas ignorantes à custa desses estrangeiros ignorantes. Na realidade, havia em Londres um vigoroso debate sobre a imoralidade do comércio do ópio, mas o complexo negócio que também envolvia chá, prata e algodão era lucrativo demais para ser abandonado. O grande erro de Lin foi ameaçar o uso da força contra os negociantes estrangeiros em Cantão. Começou por intimidar os mercadores super-ricos chineses que trabalhavam com eles. Ordenou, peremptoriamente, aos britânicos, americanos e demais que parassem de vender o ópio e entregassem todos os estoques para serem destruídos. Diante de sua recusa, mandou fechar as portas das “fábricas” a prego e impediu o suprimento de comida. Os estrangeiros logo foram abandonados por seus empregados, alguns dos quais reapareceram mais tarde como parte de um grupo intimidador de soldados chineses fazendo exercícios diante das janelas dos mercadores. Gongos soavam para mantê-los acordados a noite inteira. Aquilo equivalia a uma espécie de cerco militar e de tomada de reféns, na esteira dos quais Lin desfrutaria de um sucesso total e imediato. O funcionário britânico encarregado acabou prometendo aos mercadores que o governo britânico os ressarciria dos prejuízos, desde que entregassem todo o ópio que Lin exigia. Ameaçados de ruína e temendo pela própria vida, eles concordaram. Lin pegou o ópio e o destruiu publicamente, sem que houvesse nenhum dos “vazamentos” tão comuns nas operações de busca e apreensão de drogas hoje em dia. E os britânicos foram embora, muitos se reunindo em navios na costa de Hong Kong. O problema de Lin foi que, ao envolver o funcionário do governo britânico que promete ressarcimento, transformou o episódio num desafio político, que não dizia respeito apenas aos negociantes. Com isso, o lobby do ópio em Londres não teve grande dificuldade para pressionar em favor da guerra. É perfeitamente claro, a julgar pelos debates da época nos jornais e no parlamento, que muita gente compreendia exatamente a natureza do comércio de ópio, pois o comércio era quase tão viciante
quanto a própria droga. Os britânicos eram viciados em chá; seu governo, em impostos; e os viciados em droga, na China, estavam longe demais para serem levados em conta. Mas esse argumento mesquinho, impalatável e amoral agora vinha embalado numa indignação sintética contra o afrontoso tratamento dispensado a súditos britânicos — servidores da Coroa, nada menos — e as insolentes ameaças de Lin. Lucros? Que nada, era uma questão de orgulho. Lin não facilitou sua posição ao exigir que a GrãBretanha se comprometesse a entregar às autoridades chinesas qualquer pessoa que estivesse a bordo de um navio com contrabando de ópio — o que significava a morte. Não há dúvida de que o sucesso deixo Lin muito convencido e agressivo diante do que lhe parecia uma covarde fraqueza britânica. Os chineses tinham fama de orgulhosos. Mas os britânicos também, e a diferença era a seguinte: os chineses tinham um exército que, apesar de valente, ainda usava mosquete, lança, arco e flecha, bem como uma marinha composta de barcaças de unco, cujos canhões eram fixos e, portanto, não podiam fazer mira. Os britânicos dispunham de tropas modernas e disciplinadas e uma marinha baseada em canhoneiras movidas a vapor. NoNemesis, formidável navio a vapor com rodas de pá de ferro que era praticamente insubmergível, eles também tinham o que havia de mais moderno em matéria de embarcação militar. A guerra começou com complicadas provocações, demandas de um lado e de outro, insultos e assassinatos, mas, quando a Marinha Real enfim chegou com toda a força à costa chinesa, foi um combate de mão única. O rio das Pérolas de Cantão foi bloqueado. Portos vitais da costa, incluindo Xangai e Nanquim, foram bombardeados e tomados. Tropas chinesas foram abatidas. Soldados manchus, que não acreditavam em ser capturados vivos, mataram mulheres e filhos antes de cometerem suicídio, e milícias camponesas destroçadasque pelos mosquetes britânicos. Nessa altura, Lin uma já tinha sido de escarnecido publicamenteforam pelo imperador, o descreveu como “não muito melhor do que imagem madeira” e o demitiu. O humilhante Tratado de Nanquim, que veio em seguida, incluía uma indenização espetacular a ser paga pela China à Grã-Bretanha, a abertura de cinco portos chineses ao comércio internacional, a entrega de Hong Kong como colônia britânica e — isso mesmo — a continuação do comércio de ópio. Dentro de dois anos, um quarto dos navios que chegavam a Hong Kong transportava ópio. Foi um desastre para a dinastia manchu e também para a própria China. A autoridade imperial logo foi contestada por um culto bizarro encabeçado por um chinês do sul que, ao contrário de Lin, fora reprovado nos exames e que mais tarde passou a intitular-se o irmão mais novo de Jesus e, portanto, filho de Deus. O movimento de Hong Xiuquan, conhecido como Adoradores de Deus, visava, particularmente, aos viciados em ópio. A essa altura, o vício das drogas tomara conta da China, e viciados que quisessem deixar o ópio eram incentivados a adotar um rigoroso regime de abstinência. Em parte protocomunistas, em parte fanáticos religiosos, os seguidores de Hong se rebelaram em 1853 e tomaram Nanquim, provocando uma imensa carnificina. Hong estabeleceu ali uma espécie de corte, que durou mais de uma década. As prolongadas lutas da Rebelião Taiping, como a revolta dos Adoradores de Deus foi chamada, assolou a China central e estima-se que tenha causado a morte de vinte milhões de pessoas, na guerra civil mais devastadora da história humana. No meio disso tudo, veio uma segunda guerra entre a Grã-Bretanha, dessa vez trazendo outras forças ocidentais, e o império manchu. Esta “Segunda Guerra do Ópio” é lembrada em especial por causa do incêndio do Palácio de Verão do imperador, nos arredores de Pequim, causado por tropas britânicas, em retaliação pela medonha morte de nas mãos dos chineses. O Palácio de Verão era muito maisContinha que um edifício. Era uma vastade área de cativos belos palácios, pagodes, pavilhões, bibliotecas, templos e jardins. um depósito de obras arte chinesas, cuja destruição foi uma das feridas culturais mais severas já infligidas ao país por forasteiros. O equivalente disso seria a destruição por um exército inimigo de todos os palácios, igrejas,
catedrais e museus do centro de Londres ou a demolição do coração de Paris. Lin, que pensara estar trazendo um futuro mais limpo e brilhante para os chineses quando enfrentou a praga do vício das drogas, não chegou a tomar conhecimento de nada disso. Perdoado pelo imperador, recebera ordem para sufocar a Rebelião Taiping, mas para sua sorte, morreu antes que se conhecesse todo o horror daquilo que ele, involuntariamente, desencadeara. A modernização nunca parecera tão sórdida. Familiar e estranho Nos anos 1880, o capitalismo arrastava países do mundo inteiro numa arrancada de modernização. A Primeira Guerra Mundial iminente não seria apenas uma guerra de impérios, mas a primeira entre inimigos capitalistas do mesmo nível — razão pela qual foi tão horrenda. Em muitos sentidos, o mundo no fim do século XIX era a imagem invertida do de hoje. Quase todos os países, à exceção de Estados Unidos e França, ainda eram monarquias, e não repúblicas, enquanto as potências europeias dominavam e a Ásia jazia de bruços. Não havia instituições internacionais de relevância. O racismo era quase universal e tido como coisa natural. Mas, em outros sentidos, havia fortes semelhanças com os dias de hoje: o mundo se abria, com comunicações muito mais rápidas, importantes ondas de migração e uma explosão de inventividade, produzindo uma nova economia de consumo que se espalhou pelos continentes. O fato novo mais importante, derivado das viagens mais rápidas, da introdução dos cabos telegráficos e das publicações em massa, era simplesmente que as ideias se espalhavam quase de imediato. Havia centros particulares de inventividade. A Alemanha, unida sob liderança prussiana depois de vencer uma breve e decisiva guerra contra a França, tinha uma reputação especial pela qualidade de seus engenheiros e escolas técnicas e por seus homens de negócios ambiciosos, por isso apresentou uma espantosa série de invenções num período muito curto. Nicolaus Otto, que trabalhava principalmente em Frankfurt e Colônia, pode ter sido o indivíduo mais influente do século XIX pela invenção do motor de combustão interna de quatro tempos, mas foi seguido de perto por Karl Friedrich Benz, de Karlsruhe, cujo carro de três rodas movido a gás, o Motorwagen, foi patenteado em 1885, e que, em seguida, inventou uma série de veículos maiores e mais potentes. Assim como por Rudolf Diesel, o inventor bávaro do motor a diesel. Seguiu-se um torvelinho de inventividade, dosempresas Estados Unidos à Itália, da Áustria França, da Grã-o Bretanha à Suíça, com indivíduos e pequenas competindo entre si para àmelhorar tanto combustível quanto a engenharia, com novos eixos de comando, sistemas de refrigeração e direção, freios e carroceria. O Clément-Panhard de quatro rodas, lançado em 1894, foi talvez o primeiro a ter uma forma mais parecida com a de um carro moderno — quer dizer, mais ou menos —, mas logo ficou para trás. O desenvolvimento do carro foi um triunfo do sistema capitalista. Começou a se aprimorar na GrãBretanha e logo se espalhou. Parte do segredo dos alemães era sua excelente educação em técnica e engenharia e a longa tradição de perícia profissional. A Alemanha, como os Estados Unidos e a França, contava com um efetivo sistema de patentes, que permitia a inventores como Benz e Otto ficarem ricos. (O pobre Diesel não era tão bom em negócios e, tendo ficado sem dinheiro, provavelmente comete suicídio no canal da Mancha.) Periódicos técnicos e a intensa exportação de diferentes modelos aceleraram a corrida para aperfeiçoar os automóveis, que logo ultrapassou avanços industriais anteriores, como as locomotivas e os navios a vapor. De início os carros serviam para os ricos se
exibirem e, em geral, eram vistos com suspeita e escárnio, sobretudo quando exportados para longe de seu lugar de srcem, como a Austrália e o Japão. O maior inventor dos Estados Unidos, Thomas Edison, cujos inventos incluíam a lâmpada elétrica, o fonógrafo e a câmera cinematográfica (entre as mais de mil patentes em seu nome), era um entusiasta fanático da produção em massa. Ele decerto rivaliza com Benz como um dos moldadores do século seguinte. Um de seus protegidos, um engenheiro de uma família de imigrantes anglo-irlandeses chamado Henry Ford, foi incentivado por Edison a montar uma fábrica de automóveis. Depois de vários reveses e de inegáveis fracassos, em 1908, Ford lançou o Modelo T, um carro barato, fácil de manter e fácil de dirigir, destinado às massas. A propagação dos jornais foi fundamental para a máquina publicitária usada por Ford e outros fabricantes de motores — que anunciavam corridas de carro locais e nacionais, com a presença de pilotos famosos e os mais variados truques publicitários. Mais importante ainda, em 1913, Ford e um grupo de empregados desenvolveram a linha de montagem móvel, que acelerou imensamente a produção. Isso, somado à atitude paternalista de Ford para com seus empregados — ele pagava mais o menos bem, mas era bastante hostil aos sindicatos trabalhistas —, fez com que o “fordismo” se tornasse sinônimo da fase seguinte do capitalismo industrial. Já vimos os efeitos causados pela fome de borracha (primeiro para os pneus de bicicleta, logo para os pneus de carro) na África, contudo o capitalismo da era Ford precisava de muito mais — gás, petróleo, minerais e aço. Seus produtos eram vendidos para a Europa e suas colônias, para os Estados Unidos e partes da América do Sul, mas sua fome de matéria-prima ia ainda mais longe. Esses avanços libertariam a humanidade da forte dependência de cavalos e homens para o transporte de cargas, criando, ao mesmo tempo, um mundo emfazer que muito mais pessoas maisproduziria, liberdade édeclaro, movimento, dando-lhes mais tempo livre para mais negócios. Essa tinham inovaçãomuito também sérios problemas de poluição atmosférica e de expansão da perfuração de campos de petróleo, com consequências políticas especiais no Oriente Médio. Entretanto, alimentar pessoas é mais importante do que lhes conceder liberdade de movimento. Portanto, mais importante até do que o carro foram os progressos ocorridos, no fim do século XIX e começo do século XX, na fertilização do solo. A exaustão do fósforo e do nitrogênio é um subproduto inevitável da agricultura intensiva, o que, lenta, mas seguramente, reduz as colheitas. O guano, coletado nos penhascos do Chile e do Peru, foi levado para a Europa e para os Estados Unidos a fim de ajudar a repor o nitrogênio. A invenção de um fertilizante artificial à base de fosfato por um agricultor inglês também manteve as safras. Mas só em 1908, quando um cientista alemão, Fritz Haber, descobriu como extrair nitrogênio do ar usando amônia, é que houve uma imensa expansão na produtividade agrícola. Haber era um nacionalista fervoroso, que mais tarde produziu gás venenoso para o exército alemão durante a Primeira Guerra Mundial, mas, como judeu, teve de fugir para a Grã-Bretanha quando os nazistas tomaram o poder — portanto, uma figura ambígua. No entanto, já se afirmou que os fertilizantes artificiais permitiram que mais dois bilhões de pessoas vivam e comam nos dias de hoje, o que faz de Harber uma das figuras mais influentes de todos os tempos. A curto prazo, porém, houve outros alemães cujo efeito no mundo rivalizaria com o dele. Aquele suje ito animado de Be rlim Qual é o tipo de gente mais característico da primeira parte do século XX? Não é o soldado, apesar das guerras. Nem o revolucionário profissional ou o cientista. Nem mesmo Ford ou Edison. Não, dos britânicos na Índia aos administradores coloniais da França, passando pelo reino do terror de Lênin e
pela economia capitalista dos Estados Unidos, os ruídos característicos dessa época são o da caneta no papel e o da máquina de escrever. Portanto a resposta à nossa pergunta é: o burocrata. Essa é a época do administrador profissional que vai de ônibus elétrico para o trabalho, onde arquivos o aguardam. No escritório, pendura o paletó, acende o cigarro e senta-se à mesa para calcular impostos, número de contrarrevolucionários presos ou redige um relatório sobre casos de febre tifoide. E o que ele deseja, acima de tudo, seja trabalhando atrás de telas contra mosquito em Calcutá ou de janelas cobertas de gelo em Moscou, é uma promoção. A burocracia chinesa já foi famosa por seus registros meticulosos e pela administração imparcial, apesar de por vezes cruel. Pelo fim do século XIX, as economias avançadas do Ocidente tinham alcançado o mesmoChurchill nível. O planejavam poder do Estado aumentava depressa. Na Grã-Bretanha, Lloyd George e Winston criar pensões e seguros estatais. No Japão, os David ministros da restauração Meiji davam prosseguimento a seu curso intensivo de modernização e educação. Mas em nenhum outro lugar o avanço da burocracia a serviço da modernização foi mais exaustivo e profissional do que em Berlim. O chanceler alemão Bismarck tinha unificado a Alemanha pela guerra e pela expansão de uma união aduaneira favorável ao comércio e, depois disso, deu outro nó no país com o mais impressionante estado do bem-estar social do mundo. A burocracia alemã era famosa. Tinha um clima quase militar. Porém, nos escritórios forrados de madeira do Estado alemão, diferentemente do que ocorria nos melhores regimentos do exército prussiano, quem não era aristocrata tinha chance de chegar ao topo. Arthur Zimmermann era um dos mais perfeitos exemplos do novo homem: simpático, “bom sujeito”, modesto, eficiente e incansável. Em 1916, o embaixador americano em Berlim o descreveu como “um alemão grande e muito divertido”, e oThe New York Timesviu em sua ascensão até o topo do serviço exterior do cáiser a vitória de um “homem do povo” que abrira caminho laboriosamente num mundo até então dominado pelos “junkers” prussianos, aristocratas com títulos de nobreza contendo a partícula “von”. Zimmermann era de classe média, “um solteirão grande, corado, bem-humorado, de aparência 38 tipicamente alemã, com 58 anos, olhos azuis, cabelos louros arruivados e bigodes bastos”. Nascido numa parte da Prússia que agora fica na Polônia, formara-se em direito antes de ingressar no serviço consular em Berlim. Em suas aventuras, tinha assistido à supressão dos rebeldes na China. À custa de muito trabalho, eficiência e obediência, galgou posições dentro do serviço sem deixar de ser o sujeito franco, direto e informal de sempre. Além disso, ostentava uma cicatriz adquirida em um duelo, na época quase obrigatória para um homem alemão ambicioso. Passara para o serviço exterior em 1902, continuando a subir na profissão. Sua pena era infatigável, seu conselho, sempre consistente. Apesar disso, talvez Zimmermann tenha sido o homem mais destrutivo de sua geração. Arrastou os americanos para a Primeira Guerra Mundial, sendo, portanto, responsável pelos nefastos tratados de paz dominados pelo presidente Woodrow Wilson no pós-guerra. Fomentou a Revolta da Páscoa na Irlanda, de consequências tragicamente sangrentas. Tentou fazer com que ajihad islâmica contra os britânicos fosse declarada em todo o Oriente Médio (felizmente, não conseguiu). E foi também um dos principais envolvidos na decisão alemã de mandar o líder revolucionário Lênin num trem lacrado para a Rússia com o objetivo de agravar a situação por lá — sem dúvida, um êxito à sua maneira. Sem a chegada de Lênin, é muito menos provável que sua minoria bolchevique tivesse conseguido sequestrar a revolução anticzarista e criar oamericana Estado soviético. uma senhora de acusações. A historiadora Barbara ÉTuchman comlista certeza tem razão quando diz que “vencer pelos próprios méritos nas fileiras aristocráticas do Serviço Exterior” teve como efeito “tornar Zimmermann mais Hohenzollern do que o cáiser. Por desejar ser ‘um deles’, foi o mais ansioso para ser ortodoxo, o
mais facilmente assimilado pela elite governante”.39O entusiasmo do forasteiro que deseja pertencer a um grupo e, portanto, se deixar dobrar é uma história comum em instituições, sejam governos ou bancos internacionais. Nesse caso, a ascensão de Zimmermann ao topo do serviço exterior alemão ocorreu num momento decisivo da Primeira Guerra Mundial, quando havia imensa pressão política para que se fizesse uma jogada imensamente arriscada. Zimmermann tomou parte porque forçaria o passo dentro do que se transformara numa espécie de ditadura real-militar, não porque fosse um democrata ou um homem moderno. A questão era simples. A primeira ação arriscada da Alemanha Imperial tinha falhado. O ataquerelâmpago à França em 1914 não conseguira chegar a Paris e acabar com a guerra — embora tivesse chegado a empolgantes 68 quilômetros do alvo. O que aconteceu foi que a pequena Força Expedicionária Britânica, junto com os desesperados exércitos francês e belga, repeliu o ataque alemão. Em 1915, ambos os lados estavam literalmente atolados numa linha de trincheiras que ia do mar do Norte à Suíça. Estava claro que a nova tecnologia de guerra, uma combinação de imensas peças de artilharia com metralhadoras, gás e arame farpado, era muito mais eficiente na defesa do que no ataque. Ninguém conseguia romper. Embora o exército alemão tivesse infligido enormes derrotas aos exércitos russos do czar Nicolau II no leste, a Alemanha agora estava bloqueada por mar e não conseguiria resistir por tempo indeterminado. Havia, entretanto, um jeito de a Alemanha alcançar a vitória, mesmo em face da força de trabalho e do poderio industrial do Império Britânico. Esse jeito consistia em privar os britânicos de combustíveis, alimentos e matérias-primas. Era inteiramente possível. Embora a guerra no mar entre couraçados não fosse mais decisiva do que a guerra na superfície terrestre, a frota de U-boats da Alemanha, espantosamente eficaz, tinha uma possibilidade real de afundar um número tão grande de navios mercantes que a Grã-Bretanha seria obrigada a pedir clemência. A essa altura, a Marinha Real não dispunha de uma resposta satisfatória para a guerra submarina, e o Atlântico ia se transformando num cemitério de navios. O problema da Alemanha era que, para serem plenamente eficazes, seus U-Boats precisavam de permissão para afundar qualquer navio que demandasse um porto britânico ou francês, incluindo navios neutros e todos os navios americanos. Uma “irrestrita” guerra de U-boats enfureceria a opinião pública dos Estados Unidos, até então contrária a um envolvimento, e poderia levar o presidente Wilson, firme opositor da guerra, a se declarar contra a Alemanha. Mas, se os U-boats afundassem uma quantidade suficiente de navios com a rapidez necessária, a Grã-Bretanha poderia entrar em colapso antes que os Estados Unidos acudissem, e a guerra acabaria. Essa corrida era elemento essencial da aposta. Zimmermann tinha um plano astucioso. Se os americanos declarassem guerra à Alemanha, por que não convencer o México a invadi-los pelo sul? E seria ainda mais preocupante para Washington se o Japão pudesse ser envolvido na trama antiamericana. O Japão, embora já tivesse decidido juntar-se aos aliados contra a Alemanha, poderia muito bem ser convencido a mudar de lado. Décadas antes de Pearl Harbor, o Japão imperial e os Estados Unidos eram rivais no Pacífico, e a opinião pública americana vivia regularmente abalada pelo medo do “Perigo Amarelo”. Em 1915-1916, os Estados Unidos receavam que a Alemanha e o Japão estivessem de fato “se juntando” num novo pacto contra as democracias. Em 1913, o Japão vendera armas para o general Huerta, ditador do México. Em abril de 1914, pouco antes da Primeira Guerra Mundial, os Estados Unidos e o México se enfrentaram no porto mexicano de Veracruz por causa de um carregamento de armas alemão, resultando em quase duzentos mortos. O México, embora dilacerado por seus próprios conflitos políticos, unia-se em furor patriótico em face dos imensos territórios que os Estados Unidos lhes haviam tomado no século anterior e abrigava sentimentos cada vez
mais antiamericanos. Visto de Berlim, isso tudo era como o rastilho de uma situação altamente inflamável. Zimmermann pôs-se a trabalhar. Em janeiro de 1917, enviou mensagens secretas para o embaixador alemão em Washington, o conde Von Bernstorff, informando-o de que uma guerra irrestrita de U-boats começaria em 1o de fevereiro e pediu-lhe que mandasse uma mensagem ainda mais dramática para os mexicanos por intermédio do embaixador alemão na Cidade do México, Heinrich von Eckhardt. Dizia, em parte, o seguinte: “Guerrear juntos, fazer a paz juntos, generoso apoio financeiro e a compreensão, de nossa parte, de que o México deve reconquistar o território perdido no Texas, no Novo México e no Arizona.” Sugeria, ainda, que o Japão se aliaria contra os Estados Unidos e que os submarinos alemães ofereciam a possibilidade de “coagir a Inglaterra a aceitar a paz dentro de poucos meses”. O que Berlim não sabia era que, com grande antecipação, a Inteligência Naval britânica tinha decifrado seus códigos diplomáticos, e a notícia sensacional foi lida em Londres antes de ser lida pelo próprio embaixador alemão. O presidente Wilson ainda tentava desesperadamente não participar da guerra, mas, quando ele e o público americano tomassem conhecimento das intenções dos alemães, a pressão para lutar seria irresistível. Numa complicada manobra para comprovar sua autenticidade, a inteligência britânica mostrou o “telegrama de Zimmermann” a um funcionário da embaixada americana em Londres, que o repassou à Casa Branca. Nos Estados Unidos, foi um Deus nos acuda. Wilson divulgou a notícia, primeiro para os senadores e congressistas, então para a imprensa. Americanos de srcem alemã e o grupo contrário à guerra ficaram perplexos, mas sugeriram, de imediato, que um complô alemão-mexicano-japonês para invadir os Estados Unidos era tão inconcebível que só podia ser coisa dos britânicos. Importantes políticos e escritores americanos que não tinham a menor simpatia pelo Império Britânico proclamaram com estardalhaço que o documento era falso, uma cínica falcatrua de Londres. Mesmo nesse estágio tão avançado ainda seria possível que, de tão desconfiados, os americanos evitassem correr para pegar em armas. Mas não contavam com Zimmermann. Dois dias depois, numa entrevista coletiva em Berlim, um ornalista americano secretamente a serviço da Alemanha lhe pediu que contornasse a situação. “É claro que Vossa Excelência vai desmentir a história”, disse o repórter. “Não posso”, respondeu Zimmermann. “Pois é verdadeira.” Dessa maneira, espicaçados por temores do Complô Prussiano de Invasão e com os jornais do país alertando os leitores para a possibilidade de “hordas de mexicanos, sob o comando de oficiais alemães, invadirem o Texas, o Novo México e o Arizona” enquanto o Japão tomaria e “orientalizaria” a 40 Califórnia, os Estados Unidos entraram na guerra em abril de 1917. A irrestrita guerra alemã de submarinos funcionou com extrema eficácia e faltou pouco para levar a Grã-Bretanha à derrota, com estoques de petróleo e outros suprimentos vitais, incluindo alimentos, para poucas semanas mais. O que a salvou na última hora foi a compreensão de que o sistema de comboios poderia funcionar. A essa altura, os Estados Unidos já estavam despachando navios carregados de soldados para toda a Europa. A Alemanha faria uma última tentativa de romper o impasse no Front Ocidental, porém já tinha perdido sua grande aposta. E a culpa disso foi em grande parte do simpático burocrata de classe média Arthur Zimmermann. Barbara Tuchman concluiu que os Estados Unidos muito provavelmente acabariam entrando na guerra. “Mas já estava quase passando da hora e, se demorássemos mais, os Aliados talvez fossem obrigados a negociar. Nesse sentido, o telegrama de Zimmermann mudou o curso da história. [...] No panorama mundial, foi um pequeno complô de um ministro alemão. Na vida do povo americano, foi o fim da inocência.”41
Se isso fosse tudo, o impacto de Zimmermann em seu século já teria sido notável. Mas não foi tudo. Como secretário do Exterior, também estava informado sobre planos secretos alemães para levar a Rússia czarista, já aturdida com a derrota militar, ao colapso total. Logo que a Rússia suplicasse pela paz, os exércitos alemães no leste estariam livres para reforçar seus camaradas no Front Ocidental: este era outro lado da “última tentativa” da política alemã à qual Zimmermann dedicara sua vida. Contudo, o desfecho foi ainda mais desastroso do que o estropiado complô mexicano contra os Estados Unidos. * ** No primaveraalemães, de 1917, irlandeses, a cidade suíça de Zurique gente deslocada pela guerra — começo italianos,dafranceses, russos. Entre fervilhava eles, haviadecompositores famosos como Busoni, escritores como James Joyce, Stefan Zweig e Romain Rolland e um modesto pelotão de agitadores e revolucionários profissionais. Um deles, oriundo de uma família na pequena nobreza, era um homem de aparência tranquila que vivia com a esposa e uma assistente e passava boa parte do tempo lendo em bibliotecas públicas ou fazendo longas caminhadas nas florestas e montanhas suíças. Nunca teve um emprego e, à exceção de alguns meses em 1905, vivia há dezessete anos fora da Rússia. Durante esse tempo, aplicava a maior parte de suas energias em ferozes discussões políticas com uma vasta gama de pensadores esquerdistas e liberais. Evitava a música clássica porque, ao ouvi-la, sentia-se fraco e sentimental. Não gostava de literatura e tinha um jeito de escrever muito pesado. Adotara o nome revolucionário de Vladimir Ilitch Lênin. Como os outros líderes comunistas, Lênin foi apanhado de surpresa quando a Revolução de Fevereiro rebentou em São Petersburgo (então conhecida como Petrogrado). A guerra fora desastrosa para o czar e seu regime. Exércitos alemães tinham feito picadinho das forças russas, que apesar de imensas eram mal equipadas. Os sofrimentos terríveis dos soldados comuns eram rivalizados nas cidades por uma perigosa escassez de alimentos, incluindo pão. Nicolau II demitiu a maioria dos ministros competentes, perdeu a lealdade de muitos oficiais e rejeitava sem hesitar qualquer sugestão de reforma. Lênin, apesar de achar que com a guerra viria uma crise qualquer, tinha medo de que não houvesse revolução enquanto vivesse. Por isso, quando recebeu a notícia, trazida por um jovem vizinho polonês, de que quatro regimentos da guarnição de Petrogrado tinham se juntado aos operários em greve e às mulheres que realizavam protestos, provocando assim um levante total, ficou muito asatisfeito — mas também e ansioso.a Precisava voltar. Era o momento pelo qual esperara vida inteira e ali estavasurpreso ele, empacado, milhares de quilômetros de distância e com uma guerra no meio. Lênin ganhara mais autoridade sobre a “maioria”, ou seja, sobre o grupo bolchevique dos comunistas russos ao insistir em que era dever do bom marxista não tomar partido numa guerra de capitalistas. Outros socialistas, na Alemanha, na França, na Grã-Bretanha e até mesmo na Rússia, tinham posto de lado a hostilidade contra seus governos, deixandose levar pelo sentimento patriótico. Para Lênin, uma guerra na qual os ricos mandavam os pobres lutarem uns contra os outros era revoltante. A peste caia em suas casas — como russo, ele ficaria muito feliz se a Rússia perdesse. Ele achava que a única vantagem da guerra era sacudir de tal maneira os países “burgueses” e a Rússia czarista que eles acabariam desabando e levando a uma guerra de verdade, uma revolta de operários contra patrões. Era o que parecia estar acontecendo. Mas, enquanto a revolução avançava na Rússia, não era Lênin que a encabeçava: eram vozes desconhecidas no soviete dos trabalhadores de Petrogrado somadas a uma ampla coalizão de reformadores liberais e socialistas moderados, que haviam
formado um governo provisório. Apesar do caos e da deterioração da lei e da ordem em partes de Petrogrado, os dois grupos pareciam trabalhar juntos em relativa harmonia. Em Londres, Paris e Washington, a abdicação do czar provocou um contentamento geral e a sensação de que um novo governo fortaleceria, em vez de enfraquecer, o apetite dos russos para continuar lutando. Era justamente disso que Zimmermann, o cáiser e o alto-comando alemão tinham medo. Queriam que houvesse um colapso rápido e de preferência total na Rússia — assim como Lênin, por razões bem diferentes. Será que não conviria a Berlim mandar Lênin de volta para Petrogrado? O revolucionário russo Maxim Litvinov e o conservador britânico Winston Churchill falaram usando termos parecidos. Litvinov disse que os alemães precisavam eliminar o exército russo de cena antes da chegada dos americanos: “Objetivamente, fizemos o papel de um bacilo introduzido no Leste”, diria mais tarde. Churchill comentou que os alemães, maravilhados (com Zimmermann à frente), tinham “voltado contra a Rússia a mais sinistra de todas as armas. Transportaram Lênin num caminhão lacrado, como um bacilo da peste, da Suíça até a Rússia.” James Joyce, quando ouviu a notícia sobre seu vizinho de Zurique, comparou-o a um cavalo de troia alemão. Todos os envolvidos sabiam muito bem o que estava 42 acontecendo: um general alemão comparou Lênin a um gás venenoso. O “caminhão lacrado” era, na verdade, um trem alemão comum com os vagões marcados para evitar inspeção alfandegária e fazer de conta que o perigoso revolucionário russo jamais pusera os pés em solo alemão. Com os revolucionários acomodados em vagões de segunda classe, desfrutando de boa comida alemã e tendo insistido em que fumar só fosse permitido nos banheiros, Lênin e seus assessores, sacolejando e escrevendo, atravessaram a Alemanha e a neutra Suécia com destino à estação ferroviária Finlândia em Petrogrado. O serviço exterior de Zimmermann e o alto-comando de Ludendorff estavam tão empenhados em fazer Lênin chegar à Rússia que o teriam mandado passar pelas linhas de frente alemãs se os suecos bloqueassem o caminho. Ele não os decepcionou. No trem, ia anotando seus principais argumentos, que incluíam não cooperação com o governo provisório; exigência imediata de paz com a Alemanha, fossem quais fossem os termos; tomada do poder pelos sovietes, os comitês de operários e soldados — chefiados, é claro, por ele e pelos bolcheviques. Nesse meio-tempo, os alemães tinham ajudado a financiar e transportar os revolucionários de Lênin, algo de que a multidão que aplaudia na estação não poderia estar informada. O bacilo tinha sido entregue. Até então, a facção comunista na capital russa estava seriamente dividida. Muitos marxistas ortodoxos acreditavam, como o filósofo, que a revolução de fato só poderia ocorrer depois de um período burguês, liberal — ou seja, que não era possível simplesmente saltar de uma economia camponesa subdesenvolvida para uma economia socialista. Portanto a tarefa deles seria aguardar, educar e agitar, enquanto os moderados prosseguiam na função de impedir que a Rússia desmoronasse. Ficaram perplexos com a mensagem inflexível de Lênin, mesclada de torrentes de sátira e insulto. A Rússia sem dúvida estava a ponto de explodir, e a disposição de Lênin para provocar uma guerra civil não assustava os operários e soldados desesperados a quem ele dirigia seus apelos. Enquanto os debates prosseguiam, juntamente com manifestações, passeatas e reuniões altas horas da noite, o governo provisório prometia continuar a guerra contra a Alemanha. Alexander Kerensky, líder socialista moderado (cujo pai fora professor de Lênin), surgiu como o homem que poderia fundir o soviete de Petrogrado e o governo numa coisa só. Tornou-se primeiro-ministro, tentou reagrupar a tropa e declaro a Rússia uma república, com ele como presidente. Mas Kerensky, apesar da retórica e da energia, mostrou-se tão incapaz de dirigir os exércitos russos quanto o czar. Pois as tropas tinham desistido, não iam mais lutar. Os bolcheviques, agora totalmente sob o comando e o feitiço de Lênin, escolheram a hora e atacaram. A Revolução de Outubro, prometendo pão e paz, foi logo seguida pelo tratado de paz que os
alemães queriam, depois, por uma coisa muito parecida com uma ditadura de grupo dirigida por Lênin e, por fim, pela guerra civil, pela fome e pela catástrofe. Num tribunal imparcial da história, Arthur Zimmermann seria isento de responsabilidade por esses acontecimentos terríveis. Pelo menos de responsabilidade direta. Embora protagonista decisivo, ele era apenas parte da panelinha alemã que enviou Lênin para a Rússia — o cáiser Guilherme aprovou a ideia e o chefe militar Ludendorff também se envolveu. Nunca saberemos ao certo se Lênin não teria achado outro jeito de voltar para casa, embora seja difícil imaginar como, nem o que teria acontecido em Petrogrado se Lênin jamais voltasse ou se sofresse um atraso durante os meses cruciais de meados de 1917. É bem possível que outros tivessem orquestrado a derrubada do governo provisório e que a Rússia caísse, de qualquer forma, sob uma ditadura e mergulhasse na guerra civil. Levando isso em conta, o veredicto legal escocês de “não provado” sem dúvida seria pronunciado. Contudo... Lênin era um líder de uma espécie muito rara, seguro de si, carismático, assustador e obcecado, muito mais digno de admiração do que seus rivais. Metia medo, ganhava discussões, intimidava, pensava melhor do que revolucionários de menor estatura, sempre extremado, sempre rejeitando acordos e jamais hesitando diante do terrível custo em sangue e sofrimento de suas políticas. Era outro Robespierre, um homem em cujas veias corria um sangue gélido, totalmente convencido de que uma espécie de paraíso humano estava à mão e que, para chegar lá, quaisquer meios seriam lícitos. Com o sistemazinho rigoroso a que chamava de “ditadura do proletariado”, sua polícia secreta e o expurgo de qualquer um que ousasse discordar, Lênin começou o que Stalin terminaria. Ambos, é claro, utilizaram burocratas trabalhadores e zelosos, de olho numa promoção, homens afáveis que gostavam de um drinque e só queriam fazer parte daquilo. É de suspeitar que Arthur Zimmermann teria se ajustado perfeitamente.
PARTE OITO 1918-2012: NOSSOS TEMPOS O melhor e o pior dos séculos
Dois homens estão sentados numa prisão russa durante o Terror de Stalin. Um deles acaba de ser torturado. O outro espera sua vez. Conversam sobre história. Aleksey acha que não há esperança para a humanidade: “O homem é simplesmente o homem, e não há nada que se possa fazer para melhorá-lo. Não existe evolução. O que existe é uma lei muito simples, a lei da conservação da violência. É tão simples como a lei da conservação de energia. A violência é eterna, pouco importa o que se faça para acabar com ela. Não desaparece, nem diminui; apenas muda de forma.” O outro homem, Ivan, discorda. Para ele “a história humana é a história da liberdade, do movimento de menos liberdade para mais liberdade”. Aleksey, que logo estará morto, zomba de Ivan. Não existe história. É como “pilar água no almofariz... a humanidade não progride em humanidade. Que história da humanidade pode haver se a bondade do homem fica sempre parada?”1 A discussão ocorre perto do fim de um furioso romance,Everything Flows [Tudo flui], de Vassili Grossman. Ele escreveu nos anos 1960, recordando como era a vida sob Stalin, o segundo assassino em massa mais letal dos tempos modernos. (O primeiro é Mao, o terceiro, Hitler.) Sua discussão, porém, diz respeito à humanidade, não apenas à Rússia. O século XX ofereceu o mais importante argumento de todos. Aprendemos? Melhoramos? A violência para ou fica maior à medida que aumentamos em número? É um século que apresenta um grande paradoxo aparente. A matançafoi maior do que nunca. Em termos numéricos, superou até mesmo os mongói s, todas as invasões das Américas pelos europeus armados de doenças e todas as guerras anteriores. Essa matança foi resultado do aparecimento de líderes que prometiam melhorar radicalmente a humanidade ou parte da humanidade e conseguiram alcançar uma posição de poder quase absoluto. O “século mais sangrento da história” hoje é um clichê. Apesar disso, esse clichê é contestado, entre outros, pelo cientista Steven Pinker, para quem o número aterradoramente exorbitante de mortes se explica em parte pela existência de um número bem maior de pessoas vivas: não se pode matar gente onde não há gente. Se a contagem do sangue derramado for ajustada à população, a era moderna não parece tão ruim. As Conquistas Mongólicas (já descritas), a violenta revolta do século VIII na China, as conquistas de Tamerlão, a queda da Roma antiga e a derrocada final da dinastia Ming 2
— Além todas mataram mais gente dorecente, que a Segunda Guerra Mundial. disso, o proporcionalmente que sabemos da violência mais seja fotografada, somada, filmada e registrada para nós em diários, memórias e discursos, é muito mais detalhado e mais vívido do que o nosso conhecimento da violência, digamos, na África do século XVI, nas aldeias da França medieval ou nos primeiros impérios da Coreia. Essa “miopia histórica”, segundo Pinker, nos incentiva a ver o passado com mais leniência e a história recente com mais desolação. Por razões históricas específicas, que provavelmente não se repetirão, o século XX viu uma guerra de aniquilação entre a Alemanha de Hitler e a Rússia de Stalin que, depois de se propagar por boa parte do mundo, terminou com o uso de armas nucleares. Isso por si não demonstra que as pessoas se tornaram mais violentas ou más. A rigor, como afirma Pinker, quando se levam em conta as pequenas guerras, a violência doméstica, a violência contra as crianças e os idosos, a crueldade com os animais, os sacrifícios religiosos, a escravidão e os crimes hediondos, as pessoas estão ficando menos violentas e “melhores”. É assim até mesmo na África, região particularmente afetada pelas guerras em tempos mais recentes. As sociedades onde a lei impera e as
mulheres têm mais autoridade, cuja integridade é mantida por tratados internacionais (que as impedem de se envolver em guerras tremendas com armamentos nucleares), produzem modos de vida mais tranquilos. Dando razão a Pinker, o pesquisador americano Matthew White, que inventou o termo “atrocitologia” para explicar toda uma hierarquia de acontecimentos letais, mostra que, durante o século XX, mais de 95% do total de mortes tiveram causas naturais. É uma questão crucial, que deveria ser ressaltada desde o início. A grande maioria de nós vive a maior parte da vida no que chamo de “tréguas”, esses longos períodos de calma estabilidade social. Depois disso morremos de doenças ou de velhice. Os remédios e alimentos melhores, a água mais limpa e o policiamento mais efetivo resultaram num imenso acréscimo de longevidade, bem como num enorme (e insustentável) aumento da população humana. Com isso, as tréguas têm durado mais tempo. Para citar apenas um exemplo: se Friz Haber não tivesse descoberto como fixar o nitrogênio para produzir fertilizantes artificiais em 1919, acredita-se que dois bilhões de pessoas hoje vivas não existiriam. 3 E, em alguns países que sofreram terríveis epidemias de fome — a China é o exemplo mais claro —, o século XX assistiu a uma explosão de riqueza material e de oportunidades. Muito mais gente vive melhor, mais pacificamente, do que em qualquer outra época. Junto com a matança das guerras industriais do século XX e a ameaça de guerra nuclear, precisamos incluir os bons momentos trazidos para centenas de milhões de pessoas que conheceram a paz e a abastança numa escala sem precedentes históricos, nem mesmo durante a “Paz Romana” do primeiro império. Portanto, também é o melhor dos tempos. O problema da política Um tema fundamental desta história está no desencontro entre a capacidade humana de compreender o mundo e reformulá-lo e a falta de progresso na maneira como somos governados. A ciência avança a passos largos; já a política tropeça como um bêbado. É o que vimos na época das descobertas e na época dos impérios, mas com particular intensidade no século XX — e eu acrescentaria também (até agora) o século XXI. Nossos dois filósofos-detentos russos discutiam por causa do maior fracasso político do século XX, ou seja, a crença, testada até a destruição, de que a humanidade marchava inevitavelmente de uma situação de hierarquias e classes para um paraíso de igualdade sem governo. Os comunistas achavam que os meios — a crueldade e a tirania — eram justificáveis devido à grandiosidade dos fins. Não foram os primeiros a cometer esse erro. Inquisidores católicos, por exemplo, pensavam da mesma maneira. Mas, por volta dos anos 1930, com o aparelho de um Estado imenso nas mãos, os comunistas soviéticos tinham o poder de ir ainda mais longe e tentar aniquilar todas as classes, nacionalidades e categorias de humanidade que julgassem estar atrapalhando. (Os marxistas nunca resolveram a charada implícita na convicção de que embora sua vitória fosse inevitável era preciso lutar por ela com a máxima astúcia, disciplina e brutalidade. Se era inevitável, por que a necessidade da luta?) Será que Stalin e sua coterie realmente acreditavam nisso? Ele levava a vida da alta sociedade, viajando para seus apartamentos de luxo, um “czar vermelho” cujo mais leve sinal de irritação aterrorizava seus apaniguados. Stalin começou como gângster e se comportava como chefe de gangue — capcioso, insensível e cínico com relação aos motivos humanos. Mas seria um erro concluir que o comunismo, em si, era um manto cínico jogado sobre um sistema não muito diferente, em sua essência, do de Ivã, o Terrível. Sem os vastos números de seguidores convictos, de assassinos de roupas de couro, de operários simples, de dirigentes e burocratas que genuinamente acreditavam estar do lado certo da
história e trabalhando para reconstruir o mundo, o stalinismo jamais teria existido. O problema não era o cinismo do comunismo, muito embora ele produzisse cinismo. O problema era sua sinceridade. Pode-se dizer o mesmo do irmão rival mutante do comunismo, o fascismo. Nem Benito Mussolini na Itália, nem Adolf Hitler na Alemanha viam a marcha inevitável da história exatamente como os comunistas. Nem tentavam abolir classes inteiras. Contudo, tinham a crença sincera, comunicada a milhões de seguidores sinceros, de que sua parte da raça humana era especial, fora projetada para dominar as outras e tinha direito à glória. Não era inevitabilidade histórica, e sim destino . Cartas e diários dos grupos de comando nazistas que trucidavam de forma sistemática mulheres, crianças e idosos udeus mostram que eles achavam que aquela era a maneira certa de agir, por mais desagradável que fosse. A espúria ciência de raça, adornada com uma linguagem supostamente científica sobre higiene, ajudava-os a se distanciarem daquilo que de fato faziam. O marxismo era uma versão espuriamente “científica” da história; o nazismo era uma versão espuriamente “racial” da biologia evolucionária. Assim como as espécies, as raças também viviam em interminável competição. Para os mais fortes, deixar de lutar contra e destruir os fracos era um fracasso moral: significava que a humanidade regrediria em vez de avançar. No mundo de Hitler, isso equivalia a um dever ariano de avançar à custa de eslavos, judeus e outras formas inferiores de humanidade. Isso não levaria a uma utopia comunista, mas a uma idade de ouro. Ambos os regimes tinham de abrir caminho para o paraíso matando — fossem camponeses rebeldes e egoístas, rivais socialistas, inimigos de classe ou judeus. Atacando camponeses mais abastados ou kulaks ou atacando judeus, usavam linguagem parecida, rotulando os inimigos como bestiais e sub-humanos, vermes ou bacilos. Curiosamente, nenhum dos dois parecia de imaginar o paraíso termos que fossempara os um maismundo banaisdee antiquados: tanto capaz a propaganda comunista comovindouro a nazistaemchamavam seusnão adeptos mães de faces rosadas, em ensolaradas paisagens semirrurais, sob a supervisão de figuras paternas abigodadas — um Éden tímido, hipersentimental. Se isso fosse tudo, a história dos tempos modernos seria bem melancólica. Entretanto, o século XX também trouxe uma expansão da democracia, que teria parecido impossível em suas décadas mais sombrias. O “Século Americano” trouxe liberdade e escolha para milhões no mundo inteiro. Foi o triunfo da economia de mercado, defendida pela ciência, que produziu armas tão destruidoras que as grandes potências do planeta não ousavam mais ir à guerra. Os russos ainda não têm a liberdade dos americanos, europeus e muitos outros, mas têm mais liberdade do que Grossman poderia ter tido a audácia de esperar quando inventou a discussão na cela da prisão. Podemos concordar, portanto, que esta é uma história predominantemente positiva. As loucuras da política no século XX foram apenas a conclusão lógica de ideias desenvolvidas muito antes na Europa. O racismo, o utopismo, a crença no destino nacional, o antissemitismo, a fraqueza por líderes fortes... nada disso chega a ser novidade. Depois das experiências da ditadura marxista e do nazismo, são lições que ficam para todo o sempre, certo? Não entramos, enfim, num mundo politicamente mais moderado e melhor, com nossa ONU, nossas declarações de direitos humanos, nossos tribunais penais internacionais? É um argumento defensável. O fato de ainda haver guerras no Afeganistão, na África e no Oriente Médio não desmente a teoria de avanço geral, apenas nos lembra de que o progresso chega aos solavancos. No entanto, há dois solavancos tão grandes que não podem ser facilmente contornados. O primeiro é que, a rigor, a democracia não se difundiu de forma efetiva. O brilhante cientista político Francis Fukuyama proclamou ao emfim O fim e odemocracia último homem quedeaslivre grandes discussões acabaram. Chegaram comdao história triunfo da liberal, mercado. Algunspolíticas países e culturas levariam mais tempo do que outros para chegar lá, porém no fim todos chegariam. Num mundo onde a não democrática mas próspera China e autocracias fundadas no petróleo e no gás (Rússia, Irã,
Arábia Saudita) ganham tanto destaque, isso já não parece assim tão provável. Fukuyama estava errado porque a democracia não é um sistema. É uma cultura. Baseia-se em hábitos, atitudes, divisões de poder há muito consolidadas, na crença arraigada na lei e na ausência de corrupção sistêmica e de cinismo. Pode-se até importar, instalar e fazer funcionar um sistema, mas não é possível importar uma cultura. Isso não quer dizer que a maior parte do mundo esteja condenada a viver sob tiranias e cleptocracias. Significa apenas que é um pouco cedo para os democratas declararem fim de jogo. O segundo solavanco diz respeito à natureza da democracia. Há pouco tempo, as democracias se alicerçaram basicamente na capacidade de partidos políticos diversos oferecerem aos eleitores um melhor futuro material (mais coisas), ano após ano, geração após geração. Contudo, como a ciência e a paz elevaram a população do planeta a níveis acima do que seus recursos naturais podem suportar, não se trata de um plano de ação plausível a longo prazo. Para nos alimentarmos, nos vestirmos e nos divertirmos, nós, humanos, precisamos cavar a superfície da Terra em busca de petróleo e água, e, assim, mudamos (talvez) irreversivelmente o clima com a quantidade de dióxido de carbono liberada por nossas atividades. Se todos os chineses, todos os indianos, todos os povos do Sudeste da Ásia e da África esperam um dia ter acesso aos bens materiais da classe média ocidental, vão ter uma grande decepção. O Ocidente tem agora a primeira geração de adultos que espera que a dos filhos seja menos abastada, materialmente, do que a sua. As democracias sobreviveram a recessões comerciais e conseguiram se preservar durante guerras perigosas, porém ainda não lidaram com um longo período de baixas expectativas e menos prosperidade. Até sabermos como isso se dará, não podemos supor que a democracia liberal, de mercado, esteja segura. Tiramos algumas lições do que vem a seguir nesta parte do livro. Mas não todas. O homem de Landsberg É julho de 1924, e uma cena bizarra ocorria nas salas espaçosas e bem iluminadas do primeiro piso da Prisão de Landsberg, perto de Munique. O prisioneiro, condenado por alta traição depois de uma disparatada tentativa de derrubar o governo alemão, usava short de couro e uma curta túnica de montanha. Ganhara algum peso, e suas acomodações estavam atulhadas de presentes trazidos por simpatizantes — bolos, chocolate, buquês de flores. Os visitantes eram numerosos. De acordo com um amigo, “o lugar parecia uma delicatéssen. Dava para abrir uma loja de flores, frutas e vinhos com tudo aquilo”. Hitler parecia visivelmente mais gordo.4 Na realidade, o flácido agitador de cervejaria, de 35 anos, acabaria tendo que decretar um novo regime e mandar as visitas embora para dispor de sossego e sentar-se para ditar vagarosamente um livro. O título srcinal e impertinente era “Quatro anos e meio de luta contra a mentira, a estupidez e a covardia”, 5 que o editor cortou para Minha luta ou, em alemão, Mein Kampf. Hitler faria mais do que qualquer outro ser humano para abrir as portas do inferno no século XX, mas ninguém que se dê o trabalho de ler Mein Kampf, que vendeu seis milhões de exemplares até 1940, poderia alegar que ele tentou disfarçar suas intenções. Longe disso. Foi sincero até demais. Hitler é mais conhecido, é claro, por sua determinação de livrar a Alemanha, e mais tarde a Europa, dos judeus. Alguns historiadores puseram em dúvida seu envolvimento pessoal com o Holocausto. Outros afirmam que a indústria dos assassinatos em massa começou quase por acidente, depois que a Alemanha invadiu a Polônia, a Rússia báltica e a Ucrânia. Sentado ali enquanto redigiaMein Kampf, cercado de flores e caixas de chocolate, Hitler apresentou a questão judaica da seguinte maneira. Existiria, indagava
ele, alguma “modalidade de imundície e de depravação [...] sem que houvesse pelo menos um jude envolvido? Se cortarmos, mesmo cautelosamente, um desses abscessos descobriremos, como verme num 6 corpo em decomposição, quase sempre ofuscado pela luz súbita, um judeu!” E compara os judeus à “pestilência, pestilência espiritual, pior do que a Peste Negra” e a aranhas sanguessugas. Houve quem dissesse que, apesar disso, Hitler só queria que os judeus se mudassem para outro lugar e não alimentava nenhuma má vontade contra eles. EmMein Kampf (no segundo volume, escrito depois que saiu da prisão) ele afirma: “Se no começo da Guerra e durante a Guerra doze mil ou quinze mil desses corruptores hebreus do povo tivessem sido submetidos a gás venenoso, [...] o sacrifício de milhões no front não teria sido em vão.”7 Hitler equiparava o comunismo bolchevique aos judeus, contudo,mas, também via manipulando seuem aparente inimigo, o capitalismo Os dominam judeus sãoa fracos, apesarosdisso, controlam tudo toda parte. São minúsculos eminternacional. números, porém Alemanha. Controlam a imprensa, os partidos de esquerda, os bancos, tudo. Precisam ser destruídos. Hitler era um ser humano raro. Biógrafos e historiadores acreditam que ele quase não tinha capacidade de empatia, talvez por causa de uma infância fria e violenta. Era um fantasista que por acaso viveu numa época e num lugar já tão conturbados que pôde transformar suas fantasias em realidade, ainda que por poucos anos, antes que desabassem sobre si mesmas. Com um grau de instrução medíocre, preguiçoso, fisicamente desagradável, foi, não obstante, capaz de encantar plateias, hipnotizar indivíduos com seu olhar sombrio e congregar um país num frenesi de adulação. Apesar disso, sem a derrota da Alemanha na Primeira Guerra Mundial, sem o triunfo de Lênin na Rússia ou sem a longa história do antissemitismo europeu, ele não teria sido ninguém. Quase nenhuma parte da Europa tinha ficado imune ao antissemitismo. O primeiro gueto judaico foi criado em Veneza. Reis ingleses queimaram, perseguiram e expulsaram judeus. Na época das cruzadas, monarcas franceses confiscaram sua riqueza e os expulsaram. A Inquisição católica lhes deu a chance de escolher entre a conversão e a morte. A história do império russo está infestada de pogroms contra os udeus. E no começo do século XX, poucos lugares eram tão fervorosamente antissemitas quanto a Áustria e a Alemanha. Viena, onde o aspirante a artista Hitler passou seus anos de formação mais difíceis, tinha uma cultura política e jornalística particularmente hostil aos judeus, personificada pelo prefeito populista Karl Lueger. Como diz Ian Kershaw, biógrafo de Hitler, “era uma cidade onde, na virada do século, antissemitas radicais propunham que as relações sexuais entre judeus e não judeus fossem consideradas sodomia para efeitos de punição, e que todos os judeus fossem estritamente 8
vigiados proximidades da tudo Páscoa, para impedir o assassinato ritual de crianças”. Hitler nas deve ter absorvido isso, mas conhecia judeus e na verdade até usava conhecidos judeus para ajudar a vender seus quadros não muito bons sobre a cidade, na época em que morava numa casa para homens sem um meio definido de subsistência. Embora fosse um pangermânico que queria a união de todos os alemães num só Reich e um dos primeiros amantes da música de Wagner, tão impregnada de antissemitismo, não há provas confiáveis de que fosse um antissemita digno de nota nesses primeiros anos, nem sequer sugestões de que simpatizasse com a esquerda social-democrata. Muito se escreveu depois, quando ele já era o governante da Alemanha, sobre a existência de uma trajetória consistente, mas é difícil provar. Hitler afirma emMein Kampf que ficou chocado na Grande Guerra, quando esteve em casa de licença, com a quantidade de judeus que não participavam da luta. O livro fervilha também de alegações sobre o envolvimento de judeus com a prostituição. Hitler talvez fosse impotente e certamente expressou sentimentos de repulsa, até mesmo de horror, contra a licenciosidade sexual, o que pode ter de alguma forma se misturado em sua cabeça com histórias sobre udeus que remontavam aos tempos medievais. É provável, porém, que o desprezo de Hitler pelos judeus
tenha começado de fato pouco depois da derrota da Alemanha em 1918, quando ele voltou com se regimento para Munique como cabo altamente condecorado. Natural da Áustria, ele tinha tido a sorte de ser aceito num regimento bávaro e combatera nas trincheiras como mensageiro, com considerável bravura. Para ele, a derrota do Exército Imperial Alemão foi difícil de aceitar. Quase pior ainda foi descobrir, quando voltou, com poucas esperanças, que Munique era um viveiro de revolução. Durante o inverno e no começo da primavera de 1918-1919, anarquistas e comunistas estabeleceram uma “República Vermelha” na Baviera, imitando a tomada do poder pelos bolcheviques na Rússia. Seguiu-se um período de escassez, assassinatos, confisco de propriedades, violência e censura de esquerda. Contudo, não foi nada nem de longe parecido com o “terror vermelho” vivido no leste e logo teve fim com um contra-ataque militar de direita, deixando, ainda assim, profundas cicatrizes. Muitos de seus líderes tinham sido judeus. Hitler, que fora eleito representante militar durante a República Vermelha, compreendeu cedo as vantagens, para um agitador, de ter um inimigo único e fácil de identificar. Naquele meio social, de pequenas e intensas reuniões, de pequenos e intensos partidos, ele fez nome graças ao extremismo de sua linguagem e a sua retórica de um só culpado. Nos bares e cafés de Munique, “treinadores” do Exército alemão usavam-no para avançar sua campanha contra a esquerda e contra o moderado governo republicano na distante Berlim. Judeus, bolcheviques, capitalistas ardilosos e os traidores que permitiram que a Alemanha fosse derrotada eram todos, para Hitler, partes essenciais do mesmo ninho de inimigos. Fora essa época no Exército, pode-se dizer que Hitler até então nada mais fizera na vida do que falar. Pintara medíocres, dinheirinho família... e falara. sobre baratos arte, música,quadros Alemanha, história vadiara, e políticagastara tinhamo ressoado nasdacasas de pensão, nosSuas cafésarengas e nos bares de Linz, Viena e Munique. Falar acabara se tornando sua profissão. O jovem Hitler está tão soterrado debaixo da imundície leprosa de sua reputação, do Holocausto e da imagem que ficou de sua pálida cara branca, adornada pelo bigode ridículo, que é difícil imaginar uma época em que ele era um homem carismático. Mas ele evidentemente o era. O pequeno partido de direita em que ingressou, e que com o tempo se tornaria o partido nazista, logo passou a depender dele como orador mais popular. Hitler era capaz de prender a atenção de uma sala por duas horas de sarcasmos, gritos, piadas, calúnias e pregações, interrompidas por vivas, vaias e risadas. Entre denúncias contra o governo alemão e os aliados vitoriosos, ele sugeria que os judeus ora fossem enviados para campos de concentração, a fim de mantê-los afastados dos bons alemães, ora fossem expulsos da Alemanha. Não demorou para que o comparassem a Lutero e até mesmo a Napoleão. Seu público, ao que parece formado por pequenos comerciantes, lojistas, escriturários, soldados desmobilizados e uma proporção surpreendentemente alta de mulheres, via nele a melhor diversão, assim como o melhor professor, que se podia desejar. No começo dos anos 1920, para muita gente, a Alemanha parecia estar à beira de uma revolução comunista. Militares e pensadores “populares” de direita estavam sempre discutindo como deveriam reagir. Falavam sobre a necessidade de depor o governo em Berlim, tão inclinado a apaziguar os franceses, de recuperar um grande pedaço da pátria alemã e de reconstruir as Forças Armadas alemãs. Grupos paramilitares estocavam armas. O dinheiro vinha de comerciantes magnatas assustados com a possibilidade de uma revolução socialista. Partidos formavam-se, discutiam, dividiam-se, reformavamse. O general Ludendorff, ajudara a liderar a Alemanha durantetornara-se a guerra,um ressurgiu como herói da direita. E Munique, depois que de uma breve experiência de revolução, centro de pensamento reacionário. Hitler estava no lugar certo. Fizera alianças com organizadores paramilitares, com destaque
para Ernst Röhm. Conquistara admiradores poderosos no Exército, incluindo o próprio Ludendorff. Contava com o apoio de jornais extremistas e gangues de delinquentes organizados. Chegara a desenhar, ele mesmo, a bandeira que logo ficaria mundialmente conhecida, a suástica negra num círculo branco sobre fundo vermelho. A suástica já existia como símbolo do pensamento antissemita alemão. Antigo e comum emblema de felicidade, usado por hindus, budistas e animistas, popularizara-se depois que o arqueólogo alemão Heinrich Schliemann desenterrou amostras da antiga Troia e as sugerira como representação de identidade ariana. A suástica foi usada por nacionalistas alemães antes de Hitler: o que ele fez foi refinar um desenho e uma combinação de cores para a tensa e giratória cruz quebrada, transformando-a, nas palavras de um recente crítico de arte, “talvez no emblema gráfico mais potente até hoje inventado”.9 Hitler talvez tenha sido mau pintor, mas era um brilhante propagandista, obsessivamente preocupado com imagem. Fez-se fotografar em várias poses, com diferentes roupas, chapéus e capas, rejeitando quase todas as fotografias até conseguir a imagem certa do líder solitário e motivado. Debruçava-se sobre os uniformes de suas tropas de assalto e dos seguidores do partido, bem como sobre visões arquitetônicas posteriores, com uma atenção que nunca dedicou à política ou à burocracia. Numa época de marcas políticas, Hitler foi o gênio maligno dos gerentes de marca. O que ele fez, afinal, para se ver na prisão em 1924? Tinha chefiado uma tentativa ridiculamente frustrada de golpe, a princípio contra o governo regional da Baviera, mas tendo Berlim como alvo derradeiro. Seu partido, o Partido Operário Alemão, que se tornaria o Partido Nacional-Socialista dos Trabalhadores Alemães, NSDAP — ou “nazista” para encurtar —, ainda era relativamente pequeno. Entretanto, o movimento geral de “organizações patrióticas” e de partidos similares era coisa grande. Generais do Exército alemão e até governantes políticos de Munique foram amplamente receptivos. No outono de 1923, houve longas discussões sobre como derrubar o governo, um golpe a ser encabeçado pelo Exército ou por grupos paramilitares ou, quem sabe, ao fim de uma marcha, no estilo de Mussolini, para a capital. Hitler, a essa altura conhecido como “o Mussolini alemão”, acreditava que, com o ímpeto certo, Ludendorff, à frente do exército na Baviera, se juntaria a um levante geral contra Berlim. Não era uma esperança de todo infundada. Só faltava a faísca. E ela veio do tambor do revólver Browning de Hitler, por volta das 8h40 da noite de 8 de novembro de 1923, numa imensa cervejaria, a Bürgerbräukeller, de Munique. As cervejarias eram — e ainda são — lugares onde os moradores de Munique faziam política — grandes e cavernosos espaços muito apropriados para discursos e altas emoções. Naquela noite, a grande maioria dos homens importantes apareceu para participar de uma havia muito anunciada reunião anticomunista — mais ou menos três mil pessoas estavam no salão. Gustav Ritter von Kahr, político de direita agora instalado como líder da Baviera, estava a todo vapor no momento em que as tropas de assalto, comandadas por Hermann Goering, antigo ás da aviação, entraram no salão. Imediatamente Hitler pulou em cima de uma cadeira, disparou o revólver para o alto e declarou que o governo bávaro estava deposto e uma revolução nacional, iniciada. Conduziu os líderes políticos e um general para uma sala ao lado e lhes disse que formariam com ele um novo governo alemão. Se desse errado, ele tinha uma bala reservada para cada um, incluindo para si, e depois disse à multidão: “Ou a 10 revolução alemã começa hoje ou ao amanhecer estaremos todos mortos!” Ludendorff foi trazido até ele e, apesar de surpreso e confuso, aderiu ao movimento. Hitler anunciou que para “salvar o povo alemão” marchariam para “essa Babel pecaminosa, Berlim”.11 Hitler supunha que o exército e a elite política da Baviera marchariam atrás dele. Diante de suas tropas de assalto e de suas ameaças, eles por um momento tinham concordado, mas, na ausência de
preparação adequada e de um plano, não quiseram começar uma guerra civil. Desertaram logo que possível, e o golpe de Hitler desandou. Enquanto seus seguidores pensavam no que fazer, o exército e a polícia fecharam o cerco. O que o historiador Alan Bullock chamou de “revolução pelo blefe” tinha fracassado. Na manhã seguinte, Hitler e Ludendorff comandaram cerca de dois mil nazistas numa marcha por Munique rumo ao Ministério da Guerra, embora ninguém soubesse ao certo o que pretendiam fazer. Ao depararem com um cordão de isolamento da polícia, houve troca de tiros, quatro policiais e dezesseis seguidores de Hitler foram mortos. Hitler se jogou no chão ou foi empurrado. O homem que estava ao se lado foi baleado e morto. Ludendorff, o velho soldado, simplesmente continuou marchando em direção aos policiais. Eles o deixaram passar, mas ninguém o seguiu. Embora alguns dos outros golpistas tivessem escapado, Ludendorff se entregou e Hitler foi preso na casa de um amigo. O julgamento de nove acusados de alta traição começou em 24 de fevereiro de 1924, na antiga escola de infantaria de Munique. Hitler, talvez com vergonha de ter se esquivado já aos primeiros disparos, mostrou mais uma vez que era um mestre da propaganda. Assumiu total responsabilidade, não negou coisa alguma e passou a maior parte do julgamento pronunciando longos e desafiadores discursos políticos. Os juízes parecem ter ouvido com grande simpatia e, pelos crimes de traição, que tinham resultado na morte de policiais, na tomada de reféns e em roubo, Hitler foi condenado a apenas cinco anos de cadeia. Na realidade, seria solto bem antes, cumprindo apenas treze meses. Estivesse ele em pé poucos centímetros para o lado durante o golpe, tivesse sido baleado, recebido uma sentença mais severa ou pelo menos cumprido a pena a que foi condenado, a humanidade sem dúvida teria tido muito mais sorte. O discurso de Hitler no fim do julgamento o tornou famoso em toda a Alemanha. Uma das muitas cartasJosef lisonjeiras queAté recebeu na prisãoo vinha de um jovem estudante doutorado em Heidelberg chamado Goebbels. os carcereiros saudavam dizendo “Heil Hitler”de e, graças um pouco a Mein Kampf, ele teve tempo de sobra para alimentar o culto da personalidade — embora nunca tenha desenvolvido suas ideias. Ainda faltava muito para que Hitler fosse finalmente instalado como chanceler da Alemanha, em 1933, e pudesse desmontar o Estado legal e impor seu regime de terror expansionista. Essa jornada dependeria de uma nova crise econômica mundial, que pôs fim ao lento e consistente retorno da Alemanha à saúde econômica depois da guerra, e da má condução política de outros países, bem como de uma série de erros desastrosos cometidos por rivais políticos alemães. De sua parte, Hitler pagou caro para aprender que, se quisesse tomar o poder, não lhe bastaria cooptar o Exército alemão, por maior que fossem a amargura e o ressentimento dos oficiais. Era preciso vencer politicamente. Em muitos sentidos isso era mais adequado aos seus talentos. Em 1924, ele já reunira o arsenal de intimidação uniformizada, silencioso respaldo empresarial e extrema provocação retórica, que nove anos depois o levaria ao poder em Berlim. O culto do líder crescia. Dentro do partido, banido, mas refundado em 1925 com sua ajuda, ele estabelecera o princípio da liderança pessoal sem os entraves da democracia ou das eleições, que mais tarde imporia a toda a Alemanha. Seu estilo de trabalho caótico, que obrigava todos à sua volta a tentarem adivinhar o que ele queria e, dessa forma, o distanciava pessoalmente de quaisquer erros cometidos, também já se tornava familiar. Acima de tudo, a ideologia era clara: um único inimigo no mundo todo, o povo judeu, estava por trás de todas as desgraças que a Alemanha vinha sofrendo. Ele precisava ser erradicado. Na época do golpe de Munique, Hitler também já tinha decidido que não bastaria à Alemanha apenas recuperar antigas fronteiras imperiais a união com a Áustria,nonem simplesmente vingar-se da França. A suas Alemanha precisava de mais terras.e Só poderia encontrá-las leste, incluindo a Rússia, agora sob controle dos judeus e, portanto, uma civilização inferior. EmMein Kampf lemos que “o novo Reich precisa acertar o passo para marchar de novo com os reis teutônicos de antigamente e obter pela força da
espada alemã solo para o arado alemão”. 12 Diria Hitler mais tarde: “As fronteiras dos Estados são feitas pelo homem e modificadas pelo homem.” A nação alemã está “confinada numa área impossível”, e um acerto de contas com a França só será útil “se oferecer cobertura de retaguarda para um alargamento do espaço vital de nosso povo na Europa”.13 Não poderia haver aviso mais claro sobre os ataques a serem lançados na Polônia, na Ucrânia e na Rússia. Estava tudo lá, em preto e branco, a partir do dia em que Mein Kampf foi publicado pela primeira vez. Para os alemães dos anos 1920, o trauma da quase inanição no período final da Grande Guerra era ainda uma lembrança recente. A Marinha Real da Grã-Bretanha tinha imposto um bloqueio contra a Alemanha que forçou seus habitantes de classe média a mastigarem batatas ainda verdes — a tentativa alemã de Mas, fazer embora a Grã-Bretanha passar fome com sua campanha U-boats foi, como vimos, quaseo fracasso. tenha sido derrotada no Front Ocidental, de a Alemanha triunfou no lesteum contra império russo. Durante a Grande Guerra, os alemães tinham governado seu próprio mini-império na Polônia, na Ucrânia e na Bielorrússia. Na opinião de Hitler, para impedir que seu país voltasse a passar fome era preciso que mais uma vez tomasse conta das ricas terras de agricultura a leste. Um historiador que escreveu recentemente sobre os assassinatos em massa nas “terras sangrentas” da Europa Central diz o seguinte: “A verdadeira política agrícola nazista foi a criação de um império oriental de fronteira [...] tomando terras férteis de camponeses poloneses e soviéticos — que morreriam de inanição, seriam assimilados, deportados ou escravizados. Em vez de importar grãos do leste, a Alemanha exportava seus agricultores para o leste.”14 A credulidade mais ingênua também é parte do tema recorrente da história humana. Se tanta gente que se julgava experiente e vivida, de Stalin ao governo britânico, dos embaixadores americanos aos estadistas franceses, não tivesse preferido acreditar que Hitler não falava sério, alguns dos maiores desastres do século XX teriam sido evitados. Parece haver um profundo desejo de olhar para os nossos inimigos e achar que estamos diante de um espelho — que lá no fundo somos todos iguais — de modo que deixamos de agir diante da rara realidade do mal franco e explícito. Nesse caso, estava tudo lá desde o início, em fria letra de forma, inequívoco. Pode-se dizer qualquer coisa de Hitler, menos acusá-lo de não ter avisado. Hitler e o resto de nós Agora, todas as cartas desabam. As estantes de bibliotecas estão repletas de meticulosos relatos da política alemã nos anos que se seguiram à breve prisão de Hitler, quando ele teve oportunidade de reconstruir rapidamente o partido nazista e conduzi-lo ao poder, pela via das eleições, em 1933. Tivesse a Alemanha um centro político mais forte, capaz de aguentar os golpes da esquerda comunista e da direita fascista, tudo teria sido diferente. Se a Constituição alemã já não tivesse posto o poder efetivo nas mãos de um chanceler legitimamente autorizado a contornar o parlamento alemão, o Reichstag, a ascensão de Hitler teria sido muito mais difícil. Tivessem as outras potências europeias tomado providências para puni-lo por seus primeiros atos agressivos, na Renânia, pela Anschluss austríaca e pela tomada de terras tchecas de fala alemã, o próprio golpista-mor poderia ter sido derrubado bem antes do ano fatal, 1939. Havia generais prontos para agir, mas os políticos da Grã-Bretanha e da França democráticas não os ajudaram. Pois é errado ver a ascensão dos nazistas como fenômeno puramente alemão ou mesmo como fracasso puramente europeu. Há um ponto de vista americano segundo o qual em 1941-1942 os Estados Unidos
tiveram de correr para salvar a Europa pela segunda vez de um grande mal que, a rigor, nada tinha a ver com o Novo Mundo. A história não é bem essa. A trajetória de Hitler não poderia ter ocorrido sem um fracasso mundial de liderança, e isso inclui os Estados Unidos. Nos anos 1920 e 1930 o mundo já estava inextricavelmente interligado. A Primeira Guerra Mundial deixara uma Europa e um Oriente Médio mal divididos. A culpa foi do presidente Woodrow Wilson, tanto quanto dos líderes britânico e francês Lloyd George e Clemenceau. Mas a ineficaz Liga das Nações, em parte ideia dos americanos, foi abandonada pelos Estados Unidos, para vagar e falar besteira durante a era de isolacionismo americano. A Europa teve de lidar sozinha com as consequências do jeito americano de construir Estados nacionais — uma Iugoslávia remendada, uma Polônia inchada, as minorias alemãs na Tchecoslováquia e em Danzig. O descontentamento na Alemanha e na Áustria não foi evocado pelos nazistas. Ali se mergulhava em ressentimento. Era a água em que se nadava. Mesmo assim, a Alemanha poderia ter se livrado do extremismo político e fortalecido sua democracia na fase final dos anos 1920 e mais além, se não fosse a Grande Depressão de 1929, que atingiu primeiro a descontrolada economia de consumo americana. Poderia ter havido uma correção local logo em seguida, não fosse o fato de a pífia liderança das democracias, incluindo a da Grã-Bretanha sob Ramsay MacDonald e a dos Estados Unidos sob Herbert Hoover, arrastar o mundo para a crise econômica generalizada e o desemprego em massa. Isso aumentou imensamente o prestígio das ditaduras como rota alternativa de crescimento: as tarifas protecionistas e o congelamento do comércio mundial pareciam ter posto as democracias capitalistas de joelhos. O desejo de que um ditador patriótico assumisse o comando e suspendesse as regras normais do mercado não ficou confinado a Munique. Seja comoA for, muitosdepois paísesdeeuropeus tido apenas uma breve experiência políticae democrática. Espanha, um séculotinham de monarquia autoritária, ditaduras, golpes, de rebeliões restaurações, caíra sob a influência de um novo ditador, Primo de Rivera, antes que a Segunda República fosse declarada em 1931 — esse governo de esquerda seria por sua vez destruído pela guerra civil, depois da rebelião militar do general Francisco Franco. Com intensa religiosidade e economia camponesa de um lado e cidades industriais e tradições republicanas de outro, a Espanha já era uma nação dividida bem antes da rebelião de Franco. A Itália era um novo país, ainda aprendendo a cultura da democracia, quando o antigo jornalista e homem de esquerda Benito Mussolini tomou o poder em 1922 num golpe audacioso, depois convertido pela mitologia oficial numa “marcha sobre Roma”. Como a Espanha, a Itália fora dividida pela crescente militância industrial. A Polônia teve apenas cinco anos de governo parlamentar entre a vitória contra os russos bolcheviques em 1919-1921 e a tomada do poder pelo general Jozef Pilsudski em 1926. Como na Alemanha, o antissemitismo e o nacionalismo seriam correntes poderosas da política polonesa quando a Grande Depressão se aproximava. Os países da Europa Central que tinham emergido em 1919 das ruínas do Império Austro-Húngaro eram ainda mais novos. Monarcas ditatoriais controlavam a Iugoslávia e a Albânia. Os generais Metaxas e Kimon Georgiev controlavam respectivamente a Grécia e a Bulgária como ditadores. Houve o regime do almirante Miklos Horthy, na Hungria, um governo militar em Portugal e uma forma de autoritarismo monárquico na Romênia. Dessa maneira, embora a Alemanha se tornasse o exemplo mais extremo de fascismo europeu, tratava-se de uma moda, não de uma invenção alemã. Como as democracias acabariam triunfando na Europa Ocidental, é fácil esquecer que, no intervalo entre as guerras, as democracias é que pareciam exceção. entretinha democracia prosperidade muito corporativismo menos óbvia dodeque tinha sido. A Itália, eo nãoAa relação Alemanha, servido ecomo teste. Ali,parecia o alardeado Mussolini, envolvendo aproveitamento de terras pantanosas, subsídios para aumentar a produção de cereais e por fim a tomada e fusão de bancos e indústrias, parecia dar certo. É verdade que Il Duce se comportara mal no exterior,
mas, afinal de contas, sua vontade de ter alguma espécie de império africano para fornecer matériasprimas e mão de obra baratas não era diferente do que outros países europeus tinham desejado e conseguido. Porém a verdade é que o fascismo acabou não ajudando muito a economia italiana. Na década transcorrida entre a Grande Depressão e a Segunda Guerra Mundial, ela cresceu à metade da taxa anterior à guerra, e quase metade dos italianos ainda vivia da terra. O índice total de investimentos na verdade caiu durante o governo de Mussolini, antes do conflito. Mas nada disso era óbvio para observadores externos naquela época. O próprio Hitler achava a economia uma questão chata e secundária. Sua maneira caótica de governar a Alemanha mais ou menos o isentava de fazer qualquer planejamento econômico. Um de seus biógrafos diz, sem rodeios: “A extraordinária recuperação econômica, que rapidamente se tornou componente essencial do mito do Führer, não foi obra de Hitler.”15 Fascinado por carros, Hitler autorizou enormes destacamentos de operários, muito mal pagos e organizados em acampamentos militaristas, para construir as novas autobahns , além de mourejarem em outros projetos de drenagem e silvicultura. O desemprego despencou de seis milhões no começo de seu mandato como chanceler para níveis desprezíveis em 19381939. A exclusão das mulheres, que os nazistas achavam que deveriam estar em casa cuidando da família, e dos judeus das cifras de desemprego era parte da história estatística. Outra parte era a proibição de sindicatos trabalhistas e de greves. Apesar disso, os imensos projetos do setor público e o projeto ainda maior de desarmamento absorveram muitos dos que antes não tinham trabalho. Sob Hjalmar Schacht, ministro da Economia e diretor do banco central, os nazistas conduziram uma versão semimilitar da economia keynesiana, mantendo os preços baixos e produzindo imensos déficits governamentais no fim dos anos 1930, quando os investimentos militares superaram bastante os gastos industriais ordinários. Uma largada insustentável para a guerra tomava forma. As importações limitavam-se às matérias-primas e aos alimentos essenciais. Tudo que pudesse era feito ou substituído dentro da Alemanha. Goebbels falava de “somas fantásticas” aplicadas em armamentos, enquanto Hitler não se cansava de repetir que “dinheiro” — quer dizer, economia — não tinha sentido quando comparado à prontidão militar. “A economia” a rigor não existia no pensamento nazista como entidade separada do país, bem armado e preparado. Mas a Alemanha tinha uma magnífica infraestrutura científica e industrial, que sobrevivera à derrota de 1918, e uma poderosa rede de líderes empresariais, que Hitler não incomodava muito em troca de apoio aos nazistas. A expulsão dos judeus e a imposição da ideologia nazista levariam muito tempo para estropiar a criatividade e o talento industrial dos alemães. Mesmo nas etapas finais da guerra, apesar da escassez de energia e de matérias-primas, os grandes grupos industriais alemães continuavam a produzir novos armamentos de qualidade excepcional. Apesar disso, os déficits imensos e o planejamento de curto prazo para uma economia de guerra contavam sua própria história. Na época em que planejava a invasão da Polônia, Hitler estava usando a insustentável natureza da explosão econômica alemã, criada para preparar o país para a guerra, como argumento da necessidade de guerra. A verdadeira natureza de suas intenções não era amplamente compreendida na época. O milagre econômico de Hitler era alardeado dentro e fora do país. Nos Estados Unidos, até Franklin Delano Roosevelt, com o programa de obras públicas do seu New Deal, parecia ter dificuldade para fazer a economia americana avançar. As democracias recuperariam a confiança. Antes que o rearmamento se tornasse prioridade, a GrãBretanha sob Stanley Baldwin e os Estados Unidos sob Roosevelt voltaram a crescer. Mas a maior diferença política entre os países que lutavam contra a recessão no período do entreguerras e os países que lutam contra ela hoje, depois da crise bancária de 2008, é que, na primeira vez, parecia haver alternativas reais para a democracia capitalista. Mussolini, que hoje nos parece um palhaço, era visto
amplamente como um gênio romano. No outro extremo, a ignorância sobre a verdadeira situação da União Soviética permitia que os propagandistas de Stalin levassem o Ocidente a acreditar na ilusão de que ele também dera um bem-sucedido salto para uma economia industrial poderosamente triunfante. Katharine e Margaret Em nova York, no verão de 1921, enquanto Adolf Hitler vociferava nos antros de bebedeira de Munique, duas quarentonas um dia se sentaram uma diante da outra, olhos nos olhos. Uma era uma agitadora ruiva, descendente de operários irlandeses do norte do estado de Nova York. A outra, uma elegante filha da aristocracia industrial dos Estados Unidos, que passava boa parte do tempo cuidando do marido esquizofrênico em seu refúgio californiano. Margaret Sanger e Katharine Dexter McCormick eram duas americanas de espécies bem diferentes, que juntas fariam mais para mudar a vida das mulheres na metade final do século do que qualquer político, tanto nos Estados Unidos como na Europa. Sua causa, porém, era inegavelmente política. Tratava-se de dar às mulheres o controle da própria fertilidade ou, para falar com toda a franqueza, de ajudá-las a parar de ter filhos que não queriam ter sem serem obrigadas a abrir mão de todo o sexo que desejassem. Margaret Sanger é uma heroína feminista, mas não uma mulher que desperte simpatias fáceis. Era marqueteira, muitas vezes desleal e testemunha pouco confiável. Até mesmo sua biógrafa, que lhe é muito simpática, admite: “Em suas memórias, Margaret nem sempre era totalmente honesta quando falava da própria vida.” 16 Ela atacou violentamente Marie Stopes, a pioneira britânica do controle da natalidade, pelo simples fato de ser uma rival e abandonou o primeiro marido e (por algum tempo) os filhos com chocante frieza. Mais tarde, seria acusada de ser racista e de ter opiniões eugenísticas. Contudo, não há razão alguma para acharmos que pessoas corajosas que defendem uma causa devam ser coerentes o fáceis de lidar. Quase sempre ocorre o contrário. No caso de Sanger, sua determinação de dar às mulheres o controle da reprodução tinha profundas raízes nas experiências que viveu na infância. O pai era um livre-pensador irlandês radical, mas em casa, numa cidadezinha do interior do estado de Nova York, era um patriarca feroz. A mãe, católica devota, engravidou nada menos que dezoito vezes em 22 anos e morreu aos cinquenta de câncer cervical. Margaret estudou enfermagem e viu jovens de classe operária morrerem de aborto malfeito nos bairros pobres de Manhattan, casas Mundial onde seteentre ou oito pessoas se atulhavam no mesmo quarto. Passou os anosa anteriores à Primeira em Guerra uma multidão de anarquistas e socialistas, ajudando organizar greves, falando de revolução, da moralidade do assassinato e da alegria do sexo. Aos poucos, porém, voltou sua atenção para a questão bem mais simples e prática de ajudar as mulheres que buscavam desesperadamente evitar a concepção. Quando o mundo mergulhou na guerra em 1914, Sanger lançou uma revista, The Woman Rebel, defendendo algo para o qual cunhara um novo termo, “controle da natalidade”. Mas na mesma hora entrou em conflito com outra poderosa corrente da vida pública americana — o puritanismo. Anthony Comstock era um inspetor dos correios e ex-soldado, de bigodões que emendavam com as bastas costeletas e que fundou a Sociedade Nova-Iorquina para Supressão do Vício. Gabava-se de ter mandado destruir quinze toneladas de livros e quatro milhões de fotos e de ter posto na cadeia milhares de pessoas. Comstock via vício em toda parte. Tinha um faro especial. Via vício em livros didáticos de medicina, nos manequins de cera das alfaiatarias, em cartões-postais, em romances e nas peças de George Bernard Shaw.
Sua maior façanha foi a Lei Comstock, de 1873, a nível federal, que proibia a venda de material obsceno e lascivo pelo correio. A definição incluía artigos e informações relativos a controle da natalidade. Nos termos da lei, qualquer item ou artigo “para a prevenção da concepção ou para provocar aborto ilegal” seria punido com uma grande multa ou com uma temporada de seis meses a cinco anos de cadeia, no regime de trabalhos forçados. Comstock preparava armadilhas para médicos enviando-lhes cartas lamentosas, aparentemente escritas por mulheres desesperadas que pediam conselhos sobre contraceptivos, e processando aqueles que fossem compassivos o suficiente para responderem, com frequência condenando-os a penas severas. Já Sanger queria publicar um livro oferecendo opções de contracepção. Em 1914, Comstock e sua lei se lançaram contra ela. Usando nome falso e com medo de ser presa, Sanger fugiu para a Grã-Bretanha. Ali conheceu o defensor da liberdade sexual Havelock Ellis e teve um breve caso com H. G. Wells, compulsório para mulheres de esquerda na Grã-Bretanha durante esse período. Mas o resultado mais importante de seu exílio europeu foi a visita que fez a uma clínica holandesa de contraceptivos em 1915. Pois desde que existem registros históricos sabemos que as mulheres tentaram todos os dispositivos e todas as técnicas disponíveis para evitar a gravidez, desde os tampões de fibra embebidos em mel, usados no Egito antigo, a folhas de chá umedecidas, pedaços de papel oleado, esponjas banhadas em vinagre, supositórios de glicerina feitos em casa e camisinhas feitas de materiais como folha, casca de árvore ou tripa de ovelha. (Alguns dos remédios mais estranhos, como esterco de crocodilo, acabaram encontrando uma justificativa científica, uma vez que os crocodilos comem uma erva que contém uma droga de efeitos contraceptivos.) A invenção do látex e de novos tipos de borracha tinha produzido preservativos maisosconfiáveis, assimseu como membranas E só quando à Holanda e leu folhetos sobre uso diafragmas e sobre os emais recentespara tiposmulheres. de diafragma Sanger chego se de conta do que era possível fazer. Foi esse, na verdade, o principal assunto de sua conversa com Katharine McCormick. Sanger tinha voltado aos Estados Unidos e começado a publicar recomendações e conselhos sobre contraceptivos, abrindo a primeira clínica a oferecer ajuda no Brooklyn, em 1916. Logo voltou a entrar em conflito com a lei e, em 1917, foi mandada para uma casa de correção por trinta dias. Mas a opinião pública ia mudando lentamente, e Sanger, usando as aparições no tribunal para promover sua causa, aos poucos se tornava uma heroína para os defensores americanos dos direitos da mulher. Aproveitando-se de uma brecha na lei, que permitia a contracepção por recomendação médica, ela conseguiu publicar folhetos e livros. No começo dos anos 1920, lançou uma organização para levantar fundos e promover campanhas, uma clínica de controle de natalidade composta só de mulheres e passou a discursar em toda parte nos Estados Unidos — bem como no Japão e na China. Mas sua clínica precisava de contraceptivos reais, ou seja, de diafragmas, muito difíceis de encontrar nos Estados Unidos por vias legais. Foi o que a levou a McCormick. O mundo de Katharine Dexter McCormick tinha sido muito diferente. Era o que os Estados Unidos tinham de mais parecido com aristocracia. Ela vinha de uma família orgulhosa e rica que chegara aos Estados Unidos nos anos 1640, destacara-se na rebelião contra a Coroa Britânica e fora pioneira no estado de Michigan, onde uma cidade, Dexter, levava o seu nome. Pelo fim do século XIX, fazia parte da elite super-rica de Chicago, convivendo com famílias famosas como Pullman, Kellogg e Otis. O pai de Katharine, advogado e filantropo, morreu quando ela era muito jovem, e a mãe tinha opiniões progressistas, por exemplo, oKatharine direito dasabrira mulheres ao voto.com o seu trabalho no Instituto de Mostrando apoiando, grande determinação, caminho Tecnologia de Massachusetts e foi uma das primeiras mulheres a conquistar um diploma em ciência. Tornou-se sufragista dedicada e casou-se com outro radical jovem e rico, rebento do império industrial
McCormick, cujas máquinas agrícolas tinham ajudado a abrir o Meio-Oeste para os agricultores. Infelizmente, o marido logo caiu doente, com esquizofrenia, exigindo cuidados quase em tempo integral pelo resto da vida. Ela passou a levar uma intensa vida dupla, supervisionando o tratamento psiquiátrico do marido ao mesmo tempo que fazia campanha pelo voto das mulheres. Foi assim que ouviu falar em Sanger. * ** Os Estados Unidos tinham chegado um tanto tarde à igualdade de voto. Antes da Primeira Guerra Mundial, apenas alguns países tinham adotado essa mudança tão radical, destacando-se os finlandeses, os noruegueses e os australianos. Estados americanos, como Oregon, Washington e Califórnia, tinham, individualmente, dado o direito ao voto também às mulheres. Mas foi preciso uma guerra e suas consequências para produzir uma avalanche de mudanças em lugares como Grã-Bretanha, Alemanha, Áustria, a maior parte da Europa Oriental e a Rússia, Nova Zelândia e Holanda. A batalha nos Estados Unidos fora dura e prolongada, mas, como na Grã-Bretanha, produziu toda uma nova geração de mulheres que aprenderam a falar em público, a organizar-se com êxito e a perturbar os comícios dos adversários. No começo deste livro, vimos que a guerra é capaz de impulsionar mudanças, desde sistemas políticos a novas tecnologias. Uma transformação nos direitos públicos das mulheres deve ser acrescentada à lista. A necessidade de as mulheres atuarem no esforço de guerra sem dúvida mudou sua situação nos Estados Unidos, onde Katharine se tornou diretora do comitê feminino do Conselho Nacional de Defesa, encarregado de cuidar do suprimento da Cruz Vermelha, do bem-estar das crianças e dos direitos das mulheres nas fábricas, além de outras atribuições. Em 1920, quando o Congresso dos Estados Unidos enfim aprovou a 19a Emenda da Constituição, impondo o voto feminino em todo o país, Katharine buscava novos desafios. No ano seguinte, ao receber um folheto de Sanger anunciando a Primeira Conferência Americana de Controle da Natalidade no Plaza Hotel, de Nova York, ela lhe escreve 17 sugerindo um encontro. Eram duas mulheres fortes — e se deram muito bem. Katharine McCormick tinha dinheiro, relações e influência. Margaret Sanger precisava disso tudo, mas também de dispositivos anticoncepcionais para seu “Departamento de Pesquisa Clínica”. Na autobiografia, que ela mesma reconhece ser pouco confiável, Margaret descreve o dia em que a clínica foi aberta e invadida por mulheres: “Até quase na esquina elas formavam fila, de xale, sem chapéu, as mãos vermelhas segurando as mãozinhas menores e rachadas dos filhos. O dia inteiro, chegavam em números cada vez maiores. [...] Judias e cristãs, protestantes e católicas, todas nos fizeram confissões.” Uma lhe disse que tinha tido quinze filhos, dos quais apenas seis ainda viviam: aos 37 anos parecia ter cinquenta. Outra contou a Sanger: “Se não me ajudar, vou cortar um vidro em pedacinhos e engolir hoje à noite!” Ajuda, para essas mulheres, significava contraceptivos, e não mais conselhos. Contudo, naquele estágio, isso ainda era difícil. O próprio Comstock já tinha desaparecido, mas o ânimo político do país continuava puritano: a venda de álcool estivera proibida de 1920 a 1933 — o primeiro e maior fracasso na guerra contra as drogas. A “era da proibição”, entretanto, acabara ajudando os defensores do controle da natalidade, porque os contrabandistas estavam dispostos a contrabandear diafragmas junto com as bebidas, ainda que em pequenas quantidades. De onde vinham os diafragmas? Da Europa. Por isso certo dia, em 1922, McCormick foi às compras. Partiu de transatlântico para uma viagem de quatro meses com três grandes baús e cinco malas, ao que tudo indica para se abastecer fartamente de
artigos da última moda europeia. A família tinha um château na Suíça, à beira do lago Genebra. Fora um famoso ponto de encontro de intelectuais do Iluminismo. Identificando-se como médica, Katharine encomendou grandes quantidades de diafragmas de fabricantes franceses e italianos, a serem entregues em seu castelo, ao mesmo tempo que comprava vestidos e casacos. Em seguida, contratou mulheres suíças para costurarem mais de mil diafragmas nas roupas, que depois foram firmemente enfiadas na bagagem, agora composta de oito baús. Então marchou, imperiosa, com seu contrabando, passando por funcionários da alfândega francesa e americana, e mandou entregá-lo em caminhões na clínica de Sanger. Se fosse tudo, já teria sido uma importante contribuição para o movimento de controle da natalidade, que McCormick continuou a financiar discretamente, embora Sanger também não demorasse a se casar com um homem rico, um barão do petróleo, e a deixar de ter problemas financeiros. Mas estava longe de ser tudo. Em 1947, Stanley McCormick morreu. Ninguém poderia desejar esposa melhor: Katharine tinha cuidado dele com devoção, gastando prodigamente o dinheiro da família dele com jardineiros, empregados, médicos e músicos, para tornar um pouco mais fácil sua vida atormentada. Devido à crença de que a insanidade era hereditária, pode ser que sua doença tenha contribuído para a decisão de Katherine de não ter filhos e que isso por sua vez lhe tenha aguçado o interesse por contracepção. Agora que o marido estava morto, a família dele quis exercer algum controle sobre sua imensa fortuna, mas apesar disso Katharine ainda era rica num nível quase inimaginável. Que fazer com tanto dinheiro? Ela escreveu uma carta para Sanger. As duas a essa altura já tinham mais de setenta anos; contudo, esse reencontro seria ainda mais significativo do que o primeiro. Em 27 de“Acho outubro respondeu uma carta nos pelapróximos qual McCormick ofereceradeajuda financeira: quedeo 1950, mundoSanger e também nossa acivilização 25 anos lhe dependerão um contraceptivo simples, barato e seguro, a ser usado em bairros pobres, selvas e entre as pessoas mais ignorantes.” A nota eugênica não foi um ato falho. Ela prosseguiu na mesma veia, dizendo que “agora, imediatamente, deveria haver uma esterilização nacional para certos tipos disgênicos de nossa população, que estão sendo incentivados a procriar e que se extinguiriam se o governo não os alimentasse”.18 McCormick e outros a demoveriam dessa fixação, mas para ambas o essencial era encontrar uma solução “simples, barata e segura”. Poucos meses depois de receber a carta de Margaret, Katharine McCormick foi jantar em Nova York com um cientista-pesquisador de Massachusetts, notavelmente parecido com Einstein, mas que na realidade era um especialista mundial em óvulos de mamíferos. Se havia alguém capaz de dar uma resposta rápida, esse alguém era Gregory Pincus. E quanto custaria? Uns 25 mil dólares, calculava ele. Na verdade, McCormick gastaria quase 2 milhões de dólares. Logo tanto Sanger como McCormick, essas duas formidáveis senhoras de idade, estariam rondando Pincus em seu laboratório em Massachusetts. Pincus não trabalhava sozinho. Um ginecologista chamado John Rock vinha estudando a progesterona, um hormônio essencial na fertilização que ajuda a impedir que o corpo produza múltiplas gestações. O mesmo era feito por outros dois cientistas, um jovem refugiado judeu de Viena chamado Carl Djerassi e Frank Colton. Nenhum deles tinha intenção de produzir uma pílula anticoncepcional. Os hormônios sintéticos eram a grande novidade da época, em forte demanda pelas empresas farmacêuticas. No entanto, Djerassi, quando trabalhava no México, sintetizou uma droga muito mais forte do que a progesterona natural e que podia ser administrada por via oral. Destinava-se, de início, a combater o sangramento menstrual severo, mas seria crucial para o êxito do que logo ficaria conhecido simplesmente como “pílula”. Pincus já era famoso ou notório como o homem que fertilizara óvulos de coelha em proveta, ganhando o apelido de “dr. Frankenstein” nos jornais e provocando repercussão no mundo científico. Antes da
guerra, Harvard lhe negara um emprego de professor — segundo Pincus, porque ele era “um jude marqueteiro, que publicava antes da hora e falava demais”.19 Pôs-se a trabalhar em sua nova tarefa e, em 1952, conheceu por acaso um homem que vinha estudando a progesterona, também sem o objetivo de evitar a gravidez, mas para ajudar mulheres estéreis. Embora fosse católico devoto, esse homem concordou em trabalhar com Pincus, colaborando nas descobertas que culminaram na preparação de uma droga oral, que Colton e Djerassi refinariam. Muitas dificuldades ainda precisariam ser resolvidas no caminho, porém depois de um bem-sucedido ensaio clínico Pincus anunciou numa conferência em Tóquio em 1953 o que tinham conseguido. E... ninguém deu a menor atenção. A batalha comercial para testar e fabricar um produto vendável levou anos, mas a pílula foi finalmente revelada ao mundo como contraceptivo em 11 de maio de 1960. Poucas descobertas tiveram impacto tão grande em tanta gente. Até que ponto era mais eficaz do que outros métodos anticoncepcionais? Um estudo minucioso realizado em 1961 mostrou que o índice de falhas dos preservativos era alto, 28%; o dos diafragmas ainda mais alto, quase 34%; e o dos supositórios vaginais, 42%. Com a pílula era menos de 2%. 20 As mulheres compraram a ideia. Nos primeiros anos, quatrocentas mil americanas tomaram-na. Em 1965, calculou-se que um quarto de todas as mulheres casadas abaixo dos 45 anos nos Estados 21 Unidos tomava a pílula. Em 1984, a estimativa mundial chegava a oitenta milhões. É importante lembrar que tudo na ciência moderna tem mais a ver com colaboração, conquista compartilhada e sorte do que com o gênio isolado que salta nu da banheira e grita “já sei!”. * ** Essa é também a história do capitalismo. Se o pai do pobre Stanley McCormick não tivesse ganhado uma fortuna com as máquinas colheitadeiras, Katharine não teria tido dinheiro para ir à Europa contrabandear diafragmas para os Estados Unidos, nem para financiar Pincus nas pesquisas da pílula. Se não estivessem tão interessadas nos lucros a serem obtidos, as empresas farmacêuticas dos Estados Unidos teriam se esforçado menos para desenvolver hormônios sintéticos. Se os Estados Unidos não tivessem se tornado uma rica economia de consumo, na qual as mulheres esperavam ter mais liberdade e já viviam os efeitos libertadores das novas máquinas domésticas, a aceitação da nova pílula teria sido mais demorada. Em vista do rápido avanço da bioquímica naquela época, sem dúvida acabaria acontecendo — se bem que em outra época, quando o moralismo cristão tivesse menos influência na vida americana. Nos anos 1930, digamos, ou mesmo hoje, a pílula talvez não tivesse sido licenciada com tamanha facilidade. Certamente, sem aquelas duas septuagenárias obstinadas, não teria acontecido quando aconteceu. Uma começara a vida como anarquista e extremista política, que desejava a queda do capitalismo americano; a outra estava casada com o capitalismo americano. A pílula precisava de ambas, da agitadora política que contestou o pensamento convencional e da patrocinadora discretamente resoluta. Essa parceria improvável ajuda muito a explicar a força subjacente da cultura americana, seu radicalismo e sua energia. A pílula era moralmente controversa. É provável que sempre seja. Muita gente religiosa, sobretudo entre os católicos, se opõe a qualquer forma de contracepção, enquanto outras pessoas a responsabilizam pelo afrouxamento da moralidade anos 1960 em diante. Ela podecom ter osérios efeitos colaterais. Acrescente-se a isso o sexual fato detradicional que muitasdos mulheres se sentem indignadas fato de que menos esforço tem sido feito para descobrir um contraceptivo oral para os homens, um que os impeça de fertilizarem óvulos. De qualquer maneira, é uma tecnologia democrática, na qual as pessoas depositavam
sua confiança ao comprá-la. Graças a ela, pela primeira vez as mulheres puderam separar, de maneira fácil e confiável, o prazer sexual da possibilidade de engravidar. Tornou-se possível uma relação diferente entre o corpo como zona de prazer e delícias e a reprodução — coisa sobre a qual a jovem Sanger e seus amigos anarquistas falavam quase sessenta anos antes. O argumento de que o mercado pode ser tão desestabilizador para uns como libertador para outros e tão revolucionário como qualquer ação do Estado talvez nunca tenha sido demonstrado tão bem como no caso da pílula. A guerra dos impérios A Primeira Guerra Mundial tinha sido uma guerra tribal europeia, que acabou envolvendo outros continentes e povos basicamente por causa dos impérios da Europa. Canadenses, australianos, neozelandeses, indianos e sul-africanos acorreram convocados pelo Império Britânico. A tentativa alemã de provocar no Oriente Médio uma jihad contra os britânicos ajudou a jogar o Império Otomano já em desintegração e os árabes no conflito. Os Estados Unidos participaram, como vimos, porque sua própria segurança parecia ameaçada tanto por submarinos alemães como por intrigas mexicanas. Os países da Europa ainda dominavam o mundo de tal maneira que, quando entraram em choque uns contra os outros, o alarme soou praticamente em todos os pontos do planeta. A Segunda Guerra Mundial seguiu o mesmo padrão — alguns historiadores chegam a apresentá-la como a segunda metade do mesmo conflito. Também começou na Europa e envolveu a maior parte do globo. Mas havia uma diferença fundamental. A vitória inicial da Alemanha no continente europe humilhou as outras potências europeias, debilitando seus impérios e espalhando a guerra pela Ásia. Tornou mais fácil para um novo império, o japonês, avançar vigorosa e rapidamente por velhas colônias do Pacífico, o que significava, também, que os japoneses, já em guerra com a China, acabariam entrando inevitavelmente em conflito com os Estados Unidos. As primeiras vitórias alemãs tiveram ainda outro efeito: fizeram Hitler julgar-se um gênio militar e o incentivaram a levar adiante o seu sonho srcinal e invadir a União Soviética. Isso teve o efeito perverso de agrupar os Estados Unidos e as velhas potências imperiais europeias, acima de tudo a Grã-Bretanha, do lado de seu mais implacável inimigo político. Dessa maneira, embora a Segunda Guerra Mundial às vezes seja vista como a última grande guerra ideológica, uma batalha para “salvar a democracia”, o fato inconveniente é que ela foi vencida parcialmente pelo regime totalitário de Stalin e não poderia ter sido vencida sem ele. Seria mais exato vê-la como a última grande guerra imperial. O Japão tentava construir um império na China, na Manchúria e nas relíquias dos impérios britânico e holandês no Extremo-Oriente (e esperava incluir a Índia britânica). O plano alemão era criar um império no que tinha sido a Europa Central e a Rússia ocidental. Até mesmo Stalin, que constantemente atacava o “imperialismo”, tinha participado. Depois de abandonar a revolução mundial pelo “socialismo num só país”, ele tinha atualizado a tradicional atitude imperial da Rússia. Já vimos que na época de Ivã, o Terrível, a Rússia engoliu Kazan e começou a devorar a Sibéria. Seguiram-se a invasão e dominação do Cáucaso e o estabelecimento da hegemonia russa na Ucrânia, na Geórgia, na Chechênia e na Mongólia. Os russos também viam a Finlândia, os países bálticos e parte da Polônia como naturalmente “seus”, e a Segunda Guerra Mundial começou quando os russos já combatiam os finlandeses. A visão stalinista de uma União das Repúblicas Socialistas Soviéticas significava, a rigor, o controle russo sobre tudo que nessa vasta área fosse militarmente viável. Stalin estava preparado até para ordenar a migração em massa de povos inteiros a fim de sufocar qualquer dissidência. As minorias nacionais tinham status inferior, mal disfarçado por um folclórico véu de harmonia. Mais tarde se diria que na União Soviética “as minorias dançam”.
Por fim, o envolvimento forçado dos Estados Unidos depois de Pearl Harbor em 7 de dezembro de 1941 levou os americanos a dominarem metade do mundo através de um quase império, constituído não de corpos de guarda e governadores, mas de potência de fogo nuclear, guerras por procuração, commodities e finanças. Acabaram estabelecendo uma presença militar permanente do Japão à Europa Ocidental, envolvendo-se profundamente na política da América do Sul e comandando grandes frotas que logo tomaram o lugar da Marinha Real da Grã-Bretanha como guardiãs da influência ocidental. Ainda veementemente hostis aos “velhos impérios” da Europa, seu êxito na guerra seria seguido por uma difusão espetacular dos interesses comerciais americanos e pela emergência do dólar como a moeda mais importante do mundo. Tudo isso era boa notícia para os que respiravam livremente sob o escudo protetor dos Estados Unidos, a salvo da visão imperial comunista. Mas outros viram nisso o momento da perda da inocência, quando a república americana se transformou no império americano. * ** Desde o início ficou claro que a ideologia estaria subjugada ao interesse nacional. O Pacto NaziSoviético de agosto de 1939 decidiu o destino da Polônia, que foi invadida e repartida no mês seguinte. Daquele momento até o fim de 1941, um período de quase dois anos e meio, os Estados Unidos conseguiram ficar fora da guerra. Mas, durante mais ou menos dois anos, até a invasão inesperada (para Stalin) da União Soviética na Operação Barbarossa em junho de 1941, os soviéticos e nazistas trabalhavam unidade desconfortável paraenorme ambos.ajuda Comomaterial lembra odahistoriador militar Max Hastings, isso permitiunuma aos exércitos de Hitler receber União Soviética: “Trens com suprimentos continuavam a rolar para o oeste até o exato momento da invasão; os aviões da Luftwaffe eram em grande medida abastecidos com petróleo soviético; os U-boats da Kriegsmarine tinham acesso às instalações portuárias russas.”22 Dessa maneira, de 1939 a 1941, a guerra ficou confinada a uma área relativamente pequena. Era em essência um duelo entre os velhos inimigos da Grande Guerra, com os britânicos e franceses de um lado e os alemães do outro, mas dessa vez os franceses foram nocauteados. Tivesse Hitler conseguido invadir a Grã-Bretanha em 1940 ou encontrado outra forma de obrigar os britânicos a proporem a paz, a guerra talvez terminasse naquele momento. Se issoteria tivesse acontecido, seríamos dominados pelos Estados Unidos europeu e a Rússia soviética permanecido, em hoje essência, dentromenos de suas antigas fronteiras. O continente não teria ficado inteiramente sob controle direto dos alemães. O general Franco, da Espanha, tinha rejeitado com desdém uma aliança militar completa com Hitler, o que, levando em conta a ajuda que recebera durante a Guerra Civil espanhola, pareceu mais ingrato do que cauteloso. A Itália de Mussolini era aliada, mas não uma cópia fiel. A Suécia, a Suíça e a Irlanda ficaram neutras. A Grécia, a Romênia, a Hungria e a Iugoslávia poderiam não ter sido atingidas pelo conflito. Será que tantos judeus teriam morrido? Cidades como Londres, Hamburgo, Dresden e Coventry teriam ficado intactas? Fora da Europa, se os britânicos tivessem proposto a paz provavelmente o colapso do seu império seria imediato. Era o que pensava Churchill. A Índia poderia muito bem ter caído sob controle japonês. É de supor que os Estados Unidos, isolacionistas, não teriam adquirido sua bomba atômica tão cedo, uma vez que para isso dependeriam de cientistas britânicos e judeus imigrantes, assim como de um imenso esforço industrial para ultrapassar os cientistas de Hitler.
Mas essas divagações pertencem a especulações de romancistas, pois o líder britânico se recusou a pedir paz, a Grã-Bretanha impediu uma invasão alemã, e o pensamento de Hitler, a maneira como havia construído a Alemanha nazista e sua personalidade tornavam inevitável o ataque à União Soviética. Se universo retórico tinha como alicerce um conflito entre o germanismo e o bolchevismo judaico, e sua oferta ao povo alemão era a de um novo e grande império que os tornaria ricos e seguros. Isso só poderia se materializar com o colapso da União Soviética. Teria sido melhor para ele humilhar Churchill primeiro, mas cedo ou tarde teria de voltar-se contra Moscou. EmMein Kampf, a Operação Barbarossa á era visível no horizonte. A derrota da Luftwaffe pela Grã-Bretanha no fim do verão e no outono de 1940, que se tornou um mito-história quase arturiano ou shakespeariano para os britânicos modernos, significou bem mais do que simplesmente frustrar a invasão. Significou que ao entrar na guerra, os Estados Unidos puderam representar uma ameaça direta à Alemanha, não só ao Japão. Roosevelt tinha se esquivado e tergiversado, tentando ajudar a Grã-Bretanha com dinheiro e contratorpedeiros antiquados, ao mesmo tempo que acalmava uma opinião pública ainda hostil à guerra. Por mais que os americanos simpatizassem com os valorosos londrinos durante a blitz, a ideia de mergulhar numa nova guerra mundial para salvar o Império Britânico não era nada popular. De qualquer maneira, a Alemanha não era o inimigo mais óbvio. A guerra do Japão contra a China tinha tornado os militaristas de Tóquio as figuras mais odiadas em Washington. E o Japão tentou, brevemente, atacar a Sibéria, mas foi repelido pelos russos. Seu alto-comando agora achava que o embargo americano do petróleo tornava inevitável que eles avançassem para o sul, a fim de conquistar um império nooPacífico grande odesuficiente para garantir a segurança do paíscontinentais contra os Estados Unidos. A noção de que Japão pudesse fato conquistar um país de dimensões como os Estados Unidos sempre foi absurda, é claro, mas seus governantes ainda acreditavam que um número suficiente de grandes êxitos militares intimidaria Washington, levando-o a buscar logo a paz. Tóquio supunha — como a maioria dos observadores — que Hitler seria vitorioso na Europa. Portanto, é razoável supor que algo como o ataque a Pearl Harbor estava fadado a acontecer. O assalto arrasadoramente bem-sucedido de torpedos e bombardeiros contra a Frota Americana no Pacífico, que afundou quatro couraçados e muitos outros navios, foi, num nível técnico e operacional, obra de gênio militar. Sem dúvida manteve os americanos a distância enquanto os exércitos japoneses assolavam o Sudeste da Ásia. Foi, também, um ato de extrema estupidez estratégica. Mostrou como os chefes políticos e militares de Tóquio compreendiam mal os Estados Unidos. Levou a guerra mundial para o Pacífico e tornou a derrota final do Japão inevitável. E, como a Grã-Bretanha ainda resistia, ainda estava conectada aos Estados Unidos pela linha vital do Atlântico e ainda contava com os recursos formidáveis do seu império, o ataque tornou a entrada dos Estados Unidos na guerra contra Hitler plausível como não tinha sido até um dia antes de os aviões japoneses atacarem. Alguns líderes entenderam tudo bem rápido. Churchill telefonou para Roosevelt para confirmar o ataque. O presidente dos Estados Unidos lhe disse “agora estamos no mesmo barco” e Churchill depois anotou sua reação visceral, emocional: “Quer dizer que, afinal, vencemos.” Curiosamente, Hitler interpretou mal o episódio, satisfeito com o fato de o Japão agora estar do lado da Alemanha: “Não podemos perder a guerra de forma alguma. Agora temos um aliado que em três mil anos nunca foi conquistado.”23 Com relação aos americanos, a entrada dos Estados Unidos no conflito simplesmente confirmou a crença de Hitler de que a Alemanha estava diante de uma ameaça judaica mundial. A história da Segunda Guerra Mundial é, obviamente, a história de batalhas, de líderes com suas estratégias, de aviões, tanques e exércitos. Pode ser contada citando-se uma série de nomes de lugares que ressoam e continuarão ressoando ainda por muito tempo — Varsóvia, Dunquerque, Alamein,
Stalingrado, Kursk, Cingapura, Midway, Okinawa, Nagasaki. É composta de “batalhas” que noutros tempos tinham representado guerras inteiras — a Batalha da Inglaterra, a Batalha do Atlântico, a Batalha do Pacífico. As primeiras gerações de historiadores e memorialistas do pós-guerra ressaltaram o papel titânico desempenhado por líderes como Churchill, Hitler, Roosevelt, Eisenhower, Rommel, Tojo e Zhukov e deram grande atenção ao equipamento utilizado, os caças e bombardeiros, os couraçados e tanques, os foguetes e radares. Vieram em seguida historiadores que enfatizaram a matança de civis, a destruição de cidades e os erros de discernimento. As lições tiradas desse conflito, que matou aproximadamente setenta milhões de pessoas (duas vezes mais civis do que soldados), foram variadas. Para os russos, os que mais perderam tanto no total como na percentagem da população da União Soviética, é a Grande Guerra Patriótica. Na época pareceu justificar Stalin (apesar de suas hesitações no começo do conflito) e o Exército Vermelho, cuja vitória sobre o mal absoluto, o nazismo, envolveu alguns outros. Para os americanos, foi a guerra para salvar a democracia, que estabeleceu a hegemonia moral e física de seu país. Para os judeus (e muitos gentios) foi o Shoah, o Holocausto, o fracasso étnico definitivo da civilização europeia, que resultou na moderna Israel. Para muitos árabes, foi a guerra que convenceu os europeus a roubarem terra árabe para os judeus, fazendo os árabes pagarem pelos pecados europeus. Para os alemães, foi a consequência de sua época de loucura e, para os britânicos, o momento “de autossuficiência” que ofusca qualquer dos episódios mais duvidosos do império ou dos reveses militares. E assim por diante. A maioria das pessoas tirou conclusões simples, como tinha de tirar. Mas, à medida que a distância aumenta e ganhamos perspectiva, as primeiras lições vão sendo revistas. O imenso número de mortes de ucranianos, poloneses e outros que, etnicamente, não“russo” eram russos. Na também verdade,incluiu muitosbaixas foramcolossais mortos pelos próprios russos. A determinação tomada por Stalin depois da guerra de minimizar o horror do que aconteceu com os judeus da Europa — “Não vamos dividir os mortos” — reduziu uma verdade hedionda a regozijos patrióticos. Além disso, a fome deliberadamente imposta e as deportações em massa dentro da União Soviética antes de 1939 tinham destruído vastos territórios, que ficaram mais vulneráveis à depredação alemã. Hitler queria simplesmente esvaziar vastas áreas entre o mar Negro e o Báltico para assentar colonos alemães, mas o tratamento dado por Stalin a essas mesmas áreas — um “celeiro” esvaziado para alimentar cidades soviéticas — preparou o caminho. Um magnífico estudo recente,Bloodlands , de Timothy Snyder, começa dizendo o seguinte: “No meio da Europa, no meio do século XX, os regimes nazista e soviético assassinaram cerca de catorze milhões de pessoas. O lugar onde todas as vítimas morreram, as terras sangrentas, vai da Polônia central à Rússia ocidental, passando por Ucrânia, Bielorrússia e países bálticos.” Elas morreram entre 1933 e 1945 e, embora metade dos soldados mortos na Segunda Guerra Mundial tenha falecido na mesma área, “nenhum dos catorze milhões assassinados era soldado na ativa. Na grande maioria, eram mulheres, crianças e idosos; nenhum portava armas; muitos tinham sido privados de seus bens, incluindo roupas”. Dos catorze milhões, mais ou menos dois terços foram mortos pelos nazistas, e um terço, pelos stalinistas. Acrescente-se a essa conta o longo período em que a União Soviética e a Alemanha nazista trabalharam lado a lado, dividindo a Polônia e fomentando a guerra, e a enorme ajuda material dada ao Exército Vermelho pelos britânicos e americanos depois da invasão de Hitler e a história da Grande Guerra Patriótica começa a ficar mais complicada. O maior fracasso moral da Alemanha nazista antes da guerra o colapso danademocracia, a campanha para de desumanizar os tornou judeus,muito para fácil distorcer estancarnão tãofoi drasticamente cabeça dos mas alemães a capacidade empatia que matá-e los. Entretanto, examinando a campanha feita por Lênin, depois por Stalin, para reduzir os agricultores abastados, os kulaks, à condição de desprezíveis inimigos do povo, o que se vê não é igual?
Os kulaks, como os judeus, eram apresentados como seres grosseiros, inchados, ridículos. Como os soldados alemães, os comissários bolcheviques achavam muito fácil matar kulaks e incitar outros a fazerem o mesmo. Isso tinha começado com o ódio bolchevique do campesinato ignorante. Pela ênfase numa “guerra impiedosa” para “esmagar” o inimigo e pela exaltação do terror, a linguagem de Lênin e seus companheiros não era diferente, em tom, da de Hitler na mesma época. No fim dos anos 1930, sob Stalin, o ódio contra os kulaks fora bem disseminado através de pôsteres e campanhas. A conduta das Brigadas Vermelhas devastando campos à procura de grãos e de quem os armazenava lembra muito a conduta posterior dos soldados alemães: “Urinavam nas vasilhas de picles, ou se divertiam mandando os camponeses famintos trocarem murros, obrigando-os a rastejar e latir como cães, a se ajoelhar na lama e rezar.”24 Depois vieram os estupros em massa e a fome. O canibalismo era frequente. As mesmas humilhações rituais, a mesma desumanização de judeus e camponeses seriam praticadas pelos alemães, quando chegaram dez anos depois. Os judeus da própria Alemanha eram relativamente poucos em 1939 e a vasta maioria morreu não nesse país, mas nos territórios violados do leste. Embora seis milhões acabassem morrendo, o “plano de fome” de Hitler para a região significava que outros trinta ou quarenta milhões de não judeus deveriam morrer de inanição, a fim de liberar o solo para os invasores. Antes do Shoah, os russos tinham matado boa parte da intelligentsia e dos líderes profissionais da Polônia e muitos dos mais brilhantes e ambiciosos camponeses ucranianos. Uma vez iniciada a guerra, tanto os exércitos russos quanto os alemães conduziram-se com assombrosa ferocidade, cometendo estupros em massa e assassinando civis em território inimigo e prisioneiros de guerra. Só na primeira fase da Operação Barbarossa, o número de prisioneiros de guerra soviéticos mortos foi comparável ao dos prisioneiros de guerra britânicos e americanos mortos durante toda a guerra.25 Os russos imporiam aos alemães o mesmo castigo, com estupros em massa e tiroteios em seu caminho de volta para Berlim. E a violência não se limitava à praticada por um país contra outro. Calcula-se que mais soldados russos morreram executados por seus próprios oficiais, pelos crimes de covardia e deserção — cerca de trezentos mil — do que o total de soldados britânicos mortos durante a Segunda Guerra Mundial.26 A Grande Guerra Patriótica foi também um triunfo da força de vontade humana, notável pelos heroicos cercos de Leningrado e Stalingrado e pelo sofrimento obstinado de milhões de soldados. No fim, a Rússia de Stalin tinha mais fábricas militares, situadas bem a leste, para lá do avanço alemão, capazes de produzir mais equipamento de mais homens e maise terra. Exército aVermelho era muitomuito mais numeroso do que ode doscombate, alemãesalém e esmagou-os com tanques aviões.OContudo, “Grande Guerra Patriótica” também fez dos vitoriosos uma sociedade cinzenta, temerosa, atrofiada e fundamentalmente pessimista. Os soviéticos terminariam a guerra governando seu próprio império europeu escravizado e ameaçando a aniquilação nuclear mundial, mas incapazes de construir uma sociedade decente. A experiência de guerra americana foi muito mais fácil. Produziu o enorme crescimento industrial interno, que elevou padrões de vida e colocou os Estados Unidos firmemente na rota da dominação global de mercado, que só agora está terminando. Muito menos americanos morreram, em números proporcionais e absolutos: cerca de 417 mil no total, contra 5,7 milhões de baixas soviéticas, ou 2,5% da população americana em 1939, em comparação com quase 25% no caso da União Soviética (ou do Japão). Hastings mostra que dezessete mil americanos foram mutilados em combate — mais cem mil 27 tiveram de ser amputados em consequência de acidentes industriais dentro do país. Os Estados Unidos travaram a guerra com habilidade crescente, com tenacidade e com espantosos avanços técnicos, mas
travaram-na em países alheios. Essa guerra que jamais atingiu seriamente os civis americanos é lembrada, pela simplicidade moral, como “a boa guerra”. No entanto, os Estados Unidos não poderiam ter ganhado a boa guerra sem sua aliada, a Rússia soviética, ou sem a sobrevivência de outra abominação dos políticos americanos, o Império Britânico. A guerra dos Estados Unidos foi dominada por três acontecimentos. O primeiro foi a destruição sem remorsos dos japoneses no Pacífico, mais crucialmente na batalha de Midway, em junho de 1942, quando as frotas e o poderio aéreo americanos começaram a desfazer no mar os avanços conquistados pelas baionetas e pela infantaria japonesas em terra. Terminou com o lançamento da bomba atômica e a ocupação do próprio Japão. O segundo, com os britânicos, foi a lenta e sangrenta vitória de comboios e aviões de longo alcance contra os U-boats no Atlântico, que permitiu o reforço da própria Grã-Bretanha e o aprovisionamento da União Soviética. Esse, por sua vez, levou ao terceiro grande acontecimento, a invasão da França em 1944 por forças americanas, britânicas e canadenses. A essa altura, os americanos tinham transformado grande parte do sul da Inglaterra num vasto acampamento da potência de fogo americana, de onde bombardeiros britânicos e americanos partiam para aniquilar cidades alemãs. Os Estados Unidos sairiam do conflito sem a mácula dos crimes de guerra, otimistas quanto ao futuro da democracia e mais fortes do que nunca. Dentro dos Estados Unidos, cidadãos japoneses foram presos, mas para muitos a vida prossegui quase normalmente. Houve uma grande explosão industrial impulsionada pelo setor militar, que completou a expansão do governo federal do New Deal de Roosevelt e uma vasta expansão da burocracia de Washington. Mulheres americanas foram convocadas para trabalhar em fábricas, dandolhesAoportunidades e uma autoconfiança talvez não tivessem emNenhum tempos debritânico paz. consciente poderia experiência britânica da guerra foique profundamente ambígua. ter ignorado a mensagem contida numa série de derrotas iniciais. A Grã-Bretanha e a França tinham ido à guerra com base na fantasia de que, de alguma forma — ninguém sabia como —, poderiam ajudar a Polônia. Depois de uma período inicial de calma, os britânicos foram humilhados na Noruega e, mais tarde, completamente derrotados pela blitzkrieg alemã na França. A Batalha da Inglaterra salvou as ilhas da ameaça de invasão e a blitz da Luftwaffe nas cidades britânicas produziu uma notável efusão de solidariedade e disposição de resistir. Mas esses acontecimentos não anulavam o fraco desempenho do exército britânico na Grécia e inicialmente no Norte da África, nem a humilhação do avanço japonês até quase as fronteiras da Índia, depois da capitulação de Cingapura. A derrota dos exércitos alemães em El Alamein e o bombardeio cada vez mais feroz da Alemanha pelo Comando de Bombardeiros da RAF, que perdeu uma imensa proporção de tripulantes, começaram a restaurar a confiança nacional, como o fez a bem-sucedida invasão da Sicília e, depois, da Itália. Mas era óbvio mesmo depois do Dia D que o poderio britânico declinava. No império do Extremo Oriente, a derrota de exércitos brancos europeus pelos japoneses jamais seria esquecida e a Índia se libertaria quase imediatamente depois do fim da guerra. Àquela altura, a Grã-Bretanha estava quase falida, profundamente endividada com os Estados Unidos por causa da compra de equipamento de combate e até mesmo de alimentos. Assim como aconteceu com a França e a Holanda derrotadas, o controle britânico em outras partes do mundo foi fatalmente debilitado. A França perderia seu império na Indochina e no Norte da África, mas a desonra dessa rendição teve um lado consolador. Desde a revolução, a França se debatia entre sua história monárquica e sua mais recente personalidade secular e republicana. Depois da acabou. queda do Estado cliente nazista da França conservadora, com sede em Vichy, essa disputa finalmente A dissolução de paíse s
A Europa dera ao mundo o conceito moderno de nacionalidade. Foi um presente ambíguo. Vimos como os europeus saíram do estágio em que viviam em territórios governados por famílias para desenvolverem um forte reconhecimento de si mesmos como grupos linguísticos rivais e perfeitamente coerentes. As monarquias tinham lenta e penosamente dado lugar a democracias representativas. Passados mitológicos foram confeccionados para novos países, junto com bandeiras listradas, sedes de parlamento em forma de bolo de noiva e sistemas jurídicos unificados. Esse modo de ser foi exportado primeiro para a América do Norte. Em seguida, adotado pela América Latina e pelo Japão. Na África, as divisas coloniais do século XIX se tornaram fronteiras nacionais no século XX, com sociedades tribais se reorganizando em países livres. No Oriente Médio, europeus construíram Estados-nação a partir do cadáver decomposto do Império Otomano. Embora muitos povos do mundo não se vissem como membros desse ou daquele país, o sistema europeu estava tão adiantado que ficou impossível imaginar um retrocesso. Um mundo de identidades e passaportes nacionais se juntou, ao que tudo indicava logicamente, nas Nações Unidas, organização fundada em São Francisco, em 1945. Mas bem nesse momento, quando os europeus poderiam ter comemorado a dominação global de sua invenção política, esse mundo de bandeiras, fronteiras, constituições e presidentes, em vez disso, começaram a tentar dissolver o Estado-nação. A razão era óbvia: o nacionalismo tinha acabado de destroçar a Europa. Em especial, depois de quatro guerras modernas entre franceses e alemães — a napoleônica, a francoprussiana e as duas guerras mundiais —, esses países tinham chegado a um novo entendimento. Numa Alemanha agora dividida, o nacionalismo tinha quase desmoronado. Sob Charles de Gaulle, a França foi reconstruída politicamente: os presidentes franceses acumulariam mais poder pessoal do que os políticos de qualquer outra parte da Europa moderna. A França logo afastaria o autocrático e presunçoso De Gaulle, mas a sempre formidável classe política do país descobriria na embrionária União Europeia um novo objetivo nacional. A Alemanha Ocidental tornou-se a principal aliada da França. Comprometidos com severas políticas financeiras para impedir a volta da inflação dos anos de Weimar e sem uma força militar própria substancial, além de teimosamente determinados a ressurgir das cinzas de 1945, os alemães ocidentais, agora com a capital sediada na pequena Bonn, criaram uma história de sucesso à qual se aplica muito bem o termo “milagre econômico”. Países europeus menores, como a Bélgica, a Holanda e Luxemburgo, formaram uma união alfandegária, como o fizeram França e Itália. Todos se beneficiaram do imenso pacote de ajuda oferecido pelos americanos depois da guerra, o Plano Marshall, que despejou alimentos e produtos industriais básicos no continente arrasado — o melhor, na parte situada a oeste da “Cortina de Ferro”. Os americanos foram motivados pela necessidade de rechaçar o comunismo e de assegurar a lealdade da Europa Ocidental, mas não há dúvida de que se tratava de um programa de grande generosidade e sabedoria, que permitiu à Europa recuperar-se da guerra com notável rapidez. O primeiro passo essencial foi a formação da Comunidade Europeia do Ferro e do Aço em 1952, que, embora incluísse Bélgica, Itália, Luxemburgo e Holanda, visava, essencialmente, integrar a indústria pesada francesa e alemã-ocidental de uma forma tão completa que os dois países jamais voltassem a enfrentar-se numa guerra. Os mesmos seis países se juntaram em seguida numa união comercial, a Comunidade Econômica Europeia, em 1958. Impulsionada por uma comissão de servidores públicos dos países-membros, por reuniões regulares de líderes nacionais e, posteriormente, incluindo um parlamento, a CEE desenvolveu-se por etapas até se converter na União Europeia atual, de 27 países. A meta sempre foi o supranacionalismo, uma pressão persistente e suave, de cima para baixo, sobre a independência nacional. Sempre se apregoava a maior eficiência comercial e consequente prosperidade que trazia, e,
quando a União Soviética foi desfeita, os países do Leste Europeu correram para aderir, como garantia de liberdade de mercado e enriquecimento. Contudo, o verdadeiro objetivo da UE era dissolver os países com a abolição de postos alfandegários de fronteira, usando-se em vez de exércitos leis harmonizadas, padrões comuns e, por fim, uma moeda única, o euro — aspiração existente desde 1969, porém só lançada em 2002. Isso era bastante político, mas de uma maneira que a política europeia nunca vivera. Era, deliberadamente, uma alternativa benigna para os agitados anos do entreguerras no continente, com seus governos socialistas de curta duração, suas “fachadas” comunistas financiadas pelos soviéticos e o estranho glamour do fascismo. “Europa”, com bandeira, hino, políticas externa e de ajuda e banco central próprios não é país nem império. Vista como uma única economia, é a maior do mundo, um pouco superior à dos Estados Unidos, contudo, não tem forças militares nem um líder verdadeiro — nenhum presidente que seja visível em questões mundiais. Rica, nervosa, herbívora, não temida por ninguém, exceto pelos nacionalistas, é também admirada o suficiente para ser copiada, em forma mais diluída, por sul-americanos e africanos. Apesar disso, ainda não convenceu sequer seu próprio povo de que é realmente democrática. E não é. Uma democracia sempre dependeu de um senso comum de pertencimento, com base sobretudo numa língua e numa história compartilhadas. Os Estados-nação da Europa ainda contam com apoio local suficiente dos cidadãos para que possam se ver primeiro como europeus e só depois como franceses — ou gregos ou britânicos. A crise econômica que atingiu a região do euro em 2010-2012 escancarou as tensões existentes. A política continuou, é claro, a ser praticada dentro dos países europeus. Esquerdistas alemães no Ocidente abandonaram o marxismo em de uma versão branda da que comunistas também se tornou popular na Escandinávia. Em troca alguns países, sobretudo na social-democracia, França e na Itália, respaldados por Moscou lutaram seriamente para conquistar o poder, mas foram repelidos por partidos capitalistas, quase sempre social-democratas ou católicos. Na Itália, os comunistas acabaram rompendo com Moscou e desenvolvendo uma forma própria de “eurocomunismo”, porém nunca derrotaram os partidos centristas respaldados pelos americanos, que ofereciam crescimento e bons momentos, apesar de serem corruptos. A Espanha de Franco e Portugal depois das ditaduras de Salazar e Caetano conseguiram desfazer-se de suas identidades meio fascistas e adotar políticas tradicionais. Na GrãBretanha, um governo socialista expulsou os conservadores de Churchill e foi mais longe que nunca na criação de um Estado de bem-estar social, mas saiu, em 1951, e, depois disso, a Grã-Bretanha também viveu um longo período de governos de centro-direita. França, Grã-Bretanha, Bélgica e Portugal gastaram muita energia política lutando contra os problemas da descolonização — com frequência uma fuga que mal poderia ser considerada digna. A guerra, que começara numa Europa dominada por ditadores e se tornara uma guerra de impérios, produziu uma Europa de comitês, procurando conscientemente dispensar heróis políticos, e destituída de impérios. Críticos britânicos do projeto europeu, referindo-se à capital em Bruxelas, falavam de um “império belga”, mas isso era, pelo menos até certo ponto, piada. Se fosse um império, era um cujo abraço as colônias tinham buscado voluntária e até ansiosamente, cujo impacto no resto do mundo foi mínimo. Influência mundial, de qualquer maneira, era coisa que os europeus em geral evitaram depois da guerra. Culturalmente, em suas atitudes comerciais, a Europa passou a seguir a América. Em outras circunstâncias, os Estados Unidos sem dúvida teriam se erguido e dominado a Europa. Porém, a guerra apressou processo de maneira considerável. Os Estados Unidos, quea tinham aparelho oestatal primeiro em resposta à Depressão e depois durante guerra,construído receberamum umapoderoso função global que muitos americanos teriam visto com incredulidade e ansiedade sete anos antes. Mas isso foi consequência inevitável da nova arma do país.
A cidade perdida No auditório de uma cidadezinha construída às pressas para cerca de seis mil pessoas nas terras altas do deserto do Novo México, um homem alto e desengonçado, de pouco mais de quarenta anos, abri caminho no meio da multidão. Era a tarde de 6 de agosto de 1945. O homem subiu no palco, depois se virou e olhou para baixo. Fez uma pausa e juntou as mãos em cima da cabeça, no tradicional gesto de comemoração de um pugilista triunfante. Aplausos soaram. Ele disse à multidão que se orgulhava do que tinham conseguido juntos. Mais tarde, as pessoas se dispersaram para ir a festas, mas alguns não sentiam a menor vontade de festejar. Ficaram por ali, conversando sobre o que tinham feito. O homem era Robert Oppenheimer. E a cidade, Los Alamos. A multidão eram as pessoas, os cientistas, os soldados e ajudantes que tinham feito a primeira bomba atômica do mundo. E o que conseguiram poucas horas antes foi a morte por queimadura, radiação e escombros de setenta mil civis aponeses na cidade de Hiroshima. O total de mortes subiria depressa, devido a cânceres e outros efeitos, para duzentas mil. Oppenheimer, o diretor do Projeto Manhattan, que produziu a bomba, era resultado de uma mistura culta — um excelente exemplo do entrelaçamento das história europeia e americana no século XX. Foi um dos primeiros adversários do fascismo e chegara a ponto de dar dinheiro aos comunistas para ajudar a causa antifascista na Guerra Civil espanhola. Posteriormente seria acusado de ter sido membro entusiástico do Partido Comunista, acusação que negava. Sua obsessão era Hitler. Naquele dia ele disse à multidão Loscontra Alamos só lamentava os Estados Unidos nãoem tivessem desenvolvido a bomba tempo de em usá-la os que alemães. (Hitler seque matara três meses antes, 30 de abril, e a rendição alemãa tinha sido assinada em 9 de maio.) A equipe de Oppenheimer estava repleta de europeus, refugiados da Europa nazista ou simplesmente cientistas empenhados em que as democracias e não as ditaduras conseguissem “a bomba” primeiro. J. Robert Oppenheimer era judeu-alemão, pelo menos quanto às srcens, embora sua rica família nova-iorquina fosse indiferente às tradições judaicas ou à religião. Foi criado numa família altamente intelectual e liberal, que tinha quadros de Van Gogh, Renoir e Picasso pendurados nas paredes, amava a música de Beethoven, sabia latim e grego e viajava para a Europa. Eram membros da Sociedade Cultural Ética, organização secular judaica que dava grande importância às boas obras e ao humanitarismo. Quando jovem, extasiado com a ciência, Oppenheimer idolatrava o jovem físico Niels Bohr e foi para Cambridge estudar física e matemática. Na Europa, conviveu com algumas das grandes mentes da física teórica em seu período mais excitante — o dinamarquês Bohr, o inglês Paul Dirac, o alemão Werner Heisenberg, o austríaco Wolfgang Pauli, o italiano Enrico Fermi e o judeu-alemão Max Born. Estudou em Göttingen, a universidade da Saxônia, e em Zurique. Entretanto, Oppenheimer também era intensamente americano, e sua história ilustra a transferência de poder da Europa para os Estados Unidos. Apaixonado pela paisagem do interior do Novo México e da Califórnia, em meados dos anos 1930, estabeleceu-se em Berkeley, lecionando no Instituto de Tecnologia da Califórnia — que ficava na Califórnia, sem dúvida, mas de forma alguma isolado dos acontecimentos na Europa. Refugiados judeus da Alemanha, socialistas e comunistas pró-Moscou eram parte do se círculo social. Discussões sobre a natureza do stalinismo, sobre o que fazer com Hitler e sobre a omissão das democracias na guerra espanhola ferviamAnos terraços que davamdo paraNew os jardins Franciscotinha e continuavam durante passeios a cavalo. Depressão, seguida Deal de de São Roosevelt, radicalizado muita gente na Califórnia e não havia nada de extraordinário nos flertes de Oppenheimer com o pensamento comunista e as diversas organizações “de fachada”. Ele leu o relato propagandístico
de Sidney e Beatrice Webb a respeito das glórias da vida sob o stalinismo, Soviet Communism: A New Civilisation. Esse era o lado político do mundo de Oppenheimer, que lhe traria dificuldades depois da guerra, quando a ansiedade americana em relação à infiltração “vermelha” estava no auge. Mas era apenas um lado da sua vida, bem menor do que a parte que o levou a dirigir o Projeto Manhattan. Esfomeado intelectual que devorava informações em muitas áreas de conhecimento, Oppenheimer dedicou-se a tudo, desde o pósitron às estrelas de nêutrons e aos buracos negros. Desenvolveu um trabalho fundamental em mecânica quântica e colapso gravitacional e, por azar, não ganhou o Prêmio Nobel. Antes da guerra já tinha ficado claro, a partir de pesquisas sobre a estrutura do átomo, que em tese era possível liberar vastas quantidades de energia — uma tremenda explosão — fissionando átomos e criando uma reação nuclear em cadeia. Albert Einstein tinha assinado uma carta para Roosevelt alertando-o para o perigo de uma arma tão peculiar. Tinha sugerido que o presidente americano ordenasse o armazenamento de urânio (a matéria-prima mais provável para uma explosão dessa natureza, por causa de sua fraca estrutura atômica) e apressasse as pesquisas com urgência. Depois que dois cientistas alemães imigrantes em Birmingham fizeram uma descoberta matemática, mostrando que seria possível produzir a reação com uma quantidade de urânio ou plutônio suficientemente pequena para ser transportada de avião, os Estados Unidos levaram a ideia a sério. O projeto secreto de ser o primeiro a conseguir uma bomba atômica foi aprovado por Roosevelt em outubro de 1941 e acelerado depois do ataque a Pearl Harbor em dezembro daquele ano. No verão de 1942, uma equipe da qual Oppenheimer participava concluiu que uma bomba de fissão nuclear era possível. parte científica não estava totalmente resolvida. A certa altura chegou-se de fato a temer queMas umaa bomba desse tipoainda pudesse incendiar a atmosfera da Terra, à base de hidrogênio, e acabar com a vida no planeta. Embora o projeto estivesse sob firme controle das Forças Armadas dos Estados Unidos, o carismático Oppenheimer acabaria encarregado de cuidar do lado científico e técnico. Foi uma escolha inspirada. Ele sugeriu Los Alamos como local, uma remota e bela região do Novo México que conhecia bem de suas caminhadas e cavalgadas. Minério de urânio foi levado do Congo Belga e reuniram-se cientistas de todos os rincões dos Estados Unidos e da Grã-Bretanha. Entre os funcionários da inteligência americana havia sérias preocupações sobre as supostas simpatias comunistas de Oppenheimer, que não foram nem um pouco atenuadas quando ele sugeriu partilhar conhecimentos com Stalin. Mas não havia dúvida de que Oppenheimer e a maioria de sua equipe estavam obcecados pela necessidade de avançar depressa e pelo medo real de que os alemães, chefiados pelo velho amigo de Oppenheimer, Heisenberg, pudessem chegar primeiro. Enormes quantidades de dinheiro, infraestrutura, testes e argumentos que competiam entre si produziram exatamente a onda de criatividade que Oppenheimer desejava. Ficava cada vez mais claro que a Alemanha nazista não seria capaz de responder com uma arma viável. No entanto, com a ajuda de Bohr — o dinamarquês tinha fugido pela Suécia, com a Gestapo em seu encalço —, Oppenheimer salientou que a bomba americana teria de ser usada de qualquer maneira. Poderia muito bem acabar com todas as guerras, mas era preciso que fosse vista no mundo inteiro como capaz de produzir esse efeito.28 Com a Alemanha à beira do colapso final, o alvo teria de ser o Japão. Alguns cientistas, como o húngaro Leo Szilard, que fora o primeiro, nos anos 1930, a investigar de forma adequada as reações nucleares em cadeia, desaconselharam desesperadamente o uso da bomba contra civis japoneses, dizendo que isso desencadearia uma corrida armamentista fatal contra a Rússia. Roosevelt tinha morrido pouco antes, e o novo presidente, Harry Truman, ignorou o argumento. É possível que Truman e seus assessores quisessem que a bomba fosse usada antes de o Japão ter a possibilidade de propor a paz, talvez utilizando Stalin como intermediário. A União Soviética começava a ser vista como o novo inimigo
mundial dos Estados Unidos, e seria conveniente que Stalin soubesse do que a nação americana era capaz. Oppenheimer concordava com Truman e participou de discussões minuciosas sobre o “tremendo” impacto visual da bomba, sobre a necessidade de que matasse muita gente e sobre a altura exata da explosão, para que tivesse o máximo impacto. Não deveria ser detonada muito alto, nas nuvens, na chuva 29 ou na neblina, “do contrário, o alvo não sofrerá tantos danos”. Essas palavras têm de ser comparadas com a famosa reação de Oppenheimer quando a bomba foi testada com êxito num lugar do deserto de codinome “Trinity”, em 16 de julho de 1945. Mais tarde, ele disse que se lembrou das palavras de Vishn nas escrituras hindus do Bhagavad-Gita (que havia estudado): “Agora eu me tornei a morte, a destruidora de mundos.” Outros não têm tanta certeza de que ele fez essa declaração naquela época, embora pouco antes do ataque a Hiroshima tenha dito, pensando nas vítimas: “Coitadas dessas pessoas, coitadas dessas pessoas.” 30 Oppenheimer viu-se no meio de um dos maiores dilemas morais que um cientista poderia enfrentar. De um lado, estava bem ciente do assombroso poder da arma que fora incumbido de produzir. Poderia ser uma força a favor do bem, se acabasse com a guerra convencional. Mas, como admirador dos soviéticos, tinha plena consciência de que eles lutariam para adquirir a bomba o mais rápido possível e que a futura política da era nuclear era imprevisível. Esse humanista altamente culto, esse homem muito espiritualizado se entregara de corpo e alma a uma máquina destinada a matar pelo fogo centenas de milhares de pessoas inocentes. Fizera isso, antes de tudo, devido à terrível possibilidade de que Hitler logo viesse a adquirir sua “arma maravilhosa” definitiva e derrotasse as democracias, mas, agora, fazia simplesmente porque ela tinha de ser usada. Mais do que qualquer outra coisa, o que Oppenheimer queria era saber se funcionava. Como qualquer físico teórico, tinha passado a vida intelectual num plano de abstrações empolgantes, que só raramente se cruzavam com o mundo do dia a dia. Sem a guerra mundial e o poderio industrial e financeiro dos Estados Unidos, quem investiria dinheiro e esforço para testar uma teoria como essa? Ali estava uma raríssima oportunidade de ver se ele e o resto da comunidade de físicos estavam certos. Os argumentos que ele usou e sua linguagem ambígua dão a sensação de que não queria discutir as consequências com o mesmo rigor com que discutia a ciência. Talvez sua curiosidade inesgotável tenha vencido qualquer escrúpulo político. Ambos são partes igualmente fortes do espírito humano. Hoje, Hiroshima, onde a primeira bomba foi detonada, é um brilhante e moderno centro regional, com belas plantações de chá, elegantes shoppingecenters com reputação de servir excelentes doonde, mar. Crianças imaculadamente vestidas estudam brincame na escola primária perto do centro dafrutos cidade em 1945, todas as crianças — com uma exceção — e todos os professores morreram queimados, junto com a maioria da população. Hiroshima simplesmente desapareceu. Uma cidade antiga e movimentada, com prédios de estilo europeu, diversos rios, pontes e habitações lotadas foi reduzida a uma área plana e estorricada. Pouquíssimos pedaços de edifício e algumas árvores enegrecidas pela explosão permaneceram em pé. Nagasaki foi a próxima, e a rendição japonesa, que vinha sendo adiada por ferozes discussões de gabinete, seguiu-se quase de imediato. Oppenheimer tornou-se celebridade nos Estados Unidos, apesar de ter advertido que um dia talvez as pessoas viessem a amaldiçoar os nomes de Los Alamos e Hiroshima. Disse à Sociedade Filosófica Americana que tinha produzido “uma arma terribilíssima, [...] algo que, por todos os critérios do mundo em que fomos criados, é coisa do mal”.31 Será que a ciência, perguntou, era mesmo um bem para a humanidade? Desde então, por um período equivalente a uma vida humana, não houve guerra entre os maiores países do mundo, graças à ameaça de guerra nuclear. Mas, com Paquistão, Índia, Coreia do
Norte, Israel e daqui a pouco quem sabe o Irã, todos na posse de armas nucleares, o perigo de um conflito nuclear aumentou, em vez de diminuir. As preocupações de Oppenheimer, assim como sua “arma terribilíssima”, tornaram-se universais. Gandhi e o império Já se disse que em 1930 três pessoas alcançaram reconhecimento mundial, não apenas para si, mas para a causa que representavam.32 Uma delas foi Charles Chaplin, outra, Adolf Hitler e a terceira, um sessentão encrenqueiro que vestia roupas simples. Em 12 de março, às seis da manhã, ele partiu levando um saco de roupas de cama e uma sacola, um fuso para fiar um pouco à noite, seu diário, um relógio e uma caneca. Acompanhado por 78 seguidores, estava iniciando uma caminhada de 385 quilômetros pelas aldeias do leste da Índia e chegaria à costa 25 dias depois. Ali, propôs apenas que apanhassem um pouco de sal e foi preso. Mohandas Gandhi fez exatamente o que disse que faria. Seguido por jornalistas e equipes de filmagem do mundo inteiro, caminhou, curvou-se, escavou... e foi preso. As fotos eram perfeitas. Ele tinha criado uma imagem simbólica instantaneamente reconhecida, sal em suas mãos, as salinas atrás. A imagem era resultado de um artifício. As fotos foram tiradas dez dias depois que ele chegou à costa, num lugar mais fotogênico. Mas Gandhi conseguiu a atenção internacional que desejava. O maior expoente de um novo tipo de política enfrentava o maior império do mundo e ganhava com um pé nas costas. O sal indiano era taxado, não muito pesadamente, pelas autoridades britânicas, como o fora antes pelos mogóis. Gandhi tinha concebido e tentado várias maneiras de constranger as autoridades britânicas na Índia. Pedira a proibição do álcool. Pedira um boicote na educação. Apoiara ruidosamente operários em greve. Alcançara êxitos morais, mas sem qualquer progresso político. O sal, porém, foi um alvo bem escolhido. Todo mundo o usava na cozinha. (Menos Gandhi, que tentava excluí-lo de sua dieta por considerá-lo prejudicial à saúde.) O imposto sobre o sal rendia pouco ao governo, porém castigava os mais pobres de forma desproporcional. Gandhi disse que, fora água, era a única coisa que, ao taxar, “o Estado pode atingir até mesmo os milhões que passam fome, os doentes, os mutilados e os totalmente desprotegidos. O imposto representa, portanto, o impostoper capita mais desumano que a criatividade humana é capaz de conceber”.33 Ao coletar — sal um e recusar-se a pagarrelativamente o imposto, ele desafiava os britânicos a indiciarem-no e prenderem-no homem polido, idoso e esquelético — e darem um espetáculo ridículo. Foi o que fizeram. Mas para exercer máxima pressão sobre os britânicos, Gandhi precisava de uma audiência mundial. Os Estados Unidos foram particularmente influentes. Para os americanos, a revolta contra o imposto do sal evocava um paralelo histórico imediato, sua própria rebelião contra o imposto britânico sobre o chá. A proeza era típica de Gandhi: parecia simples, quase uma palhaçada, contudo, foi um estratagema cuidadoso e até friamente calculado. Gandhi já era visto por milhões no mundo inteiro como um santo em vida. Fora apelidado de “Mahatma Gandhi”, ou “Gandhi dotado de grande alma”, por Rabindranath Tagore, o poeta indiano agraciado com o Prêmio Nobel. Era famoso pelo estilo de vida ascético e pelo moralismo feroz e intransigente. “Se preciso apenas de uma camisa para me cobrir, mas uso duas, sou culpado de roubar uma de alguém. [...] Se cinco bananas bastam para me manter, comer a sexta é uma forma de furto.”34 Oito anos antes, ao ser julgado mais uma vez por sua campanha de desobediência civil, o juiz britânico que ouvia o caso confessou: “O senhor está numa categoria diferente de qualquer pessoa que já julguei o
provavelmente virei a julgar. [...] Até aqueles que discordam do senhor em termos políticos veem-no como um homem de ideais elevados e de vida nobre, mesmo santa. É meu dever julgá-lo como um homem sujeito à lei.” O truque de Gandhi era como um movimento de arte marcial no qual o lutador finge fraqueza para derrotar um adversário aparentemente mais forte. Primeiro na África do Sul, em campanha pelos direitos dos operários indianos (não dos negros africanos), ele tinha desenvolvido a teoria da satyagraha , o “firmeza na verdade”. Na prática, isso englobava campanhas de não cooperação, de desobediência civil e de jejuns agressivos para “fazer o adversário pensar e compreender”. Gandhi sempre procurava ser extremamente polido e sorridente quando encabeçava protestos. Falava com admiração de muitos aspectos da vida britânica, o que tornava ainda mais difícil lidar com ele. Buscava ativamente ir para a cadeia e recomendava aos seguidores, alojados em seus ashrams, que fizessem o mesmo. Essa forma de chantagem moral, quando elevada ao nível de política internacional, pode ter efeito inesperado. Gandhi tem inspirado pessoas que combatem a injustiça no mundo inteiro, incluindo desde os militantes dos direitos civis sob a liderança de Martin Luther King nos Estados Unidos nos anos 1960, os operários poloneses de estaleiros do “Solidariedade” em 1980, que enfrentaram o regime comunista, e os rebeldes antissoviéticos da Hungria e da Tchecoslováquia até, mais recentemente, os manifestantes que derrubaram Hosni Mubarak no Egito. A força das pessoas comuns, bem organizadas e pacíficas, confrontando o poder e angariando a ajuda dos refletores da atenção internacional, tem sido uma das poucas ideias políticas potentes e animadoras dos séculos XX e XXI. Na vida doméstica, a inclinação de Gandhi pelo confronto era menos atraente. Ele usava a disposição para jejuar ou para se privarjejuava. de uma Se coisa qualquer exercer controle sobre todos Se à sua volta.lhe Se brigasse com a mulher, duas pessoaspara dormissem juntas noférreo ashram, jejuava. o filho causava uma decepção, jejuava. Quanto mais os outros choravam e pediam que reconsiderasse, mais satisfeito ficava. E, embora a chantagem moral como tática política tenha sua utilidade, não deveria tornar-se estilo de vida. Em combinação com a estranha determinação de Gandhi de deitar-se ao lado de mulheres jovens sem as tocar, só para provar que podia ser um celibatário, e seu entusiasmo quase maníaco por enemas, isso nos lembra que em geral os santos são mais admiráveis de longe do que quando convivem conosco. A autoridade moral de Gandhi, porém, despertou toda a Índia. Embora por pouco tempo, ele consegui unir militantes muçulmanos e hindus e atrair intocáveis e outros indianos de castas inferiores para o mesmo movimento de que participavam negociantes instruídos e advogados indianos formados na GrãBretanha. Ele compreendeu desde o início o poder da imagem e, portanto, da roupa que se usava. Como ovem estudante de direito em Londres, vestia-se de terno e gravata-borboleta. Como advogado radical na Índia, trajava roupas formais britânicas, mas com turbante. Lutando em defesa dos trabalhadores contratados, adotava a mesma espécie de túnica de algodão que eles usavam. E, quando as campanhas contra roupas caras de fabricação inglesa ganharam ímpeto, ele preferia vestir-se com roupas indianas toscas. Enquanto sua reputação internacional crescia, ele insistia em ser fotografado trajando apenas uma tanga de algodão que ele mesmo fiara. Gandhi acabou se tornando uma grife. Charles Chaplin, com sua bengala e suas roupas largas, e Hitler, com seu boné militar e seu bigode, faziam parte de um mundo totalmente diferente do de Gandhi. Mas, num mundo inundado por fotografias, os três compreenderam a importância de ser reconhecível. E Gandhi, despertou tambémeteve sorte com o adversário que lhe coube. os O problema dos que britânicos era um quesubcontinente, queriam ser amados admirados, além de comandar, e Gandhi conhecia bem. Entre os pensadores britânicos que o influenciaram estavam Ruskin e Edward Carpenter, a ex-radical grevista de fábrica de fósforos e espiritualista Annie Besant e as sufragistas britânicas. Se
inglês escrito era excelente. Ele não teria tido o sucesso que teve sem o inglês como língua que ao mesmo tempo unia os militantes indianos e lhe permitia alcançar uma audiência mundial. Acima de tudo, os ingleses eram suscetíveis, pelo menos de vez em quando, ao tipo de chantagem de Gandhi. Era possível constrangê-los. Reprimiam e prendiam, mas não gostavam de fazer isso. Hitler, por exemplo, não conseguia compreender isso. (Gandhi o interpretou de forma totalmente equivocada, vendo nele alguém parecido com os britânicos. Disse que Hitler não era tão mau quanto o pintavam e sugeri que os judeu-alemães deveriam insistir em permanecer na Alemanha e desafiar os nazistas a matá-los o prendê-los — o que mostra o tamanho da sua incompreensão.) Hitler, por sua vez, tinha dito ao vice-rei britânico antes da guerra: “Tudo que o senhor precisa fazer é matar Gandhi. [...] Vai se surpreender com a rapidez com que o problema desaparecerá.” 35 Gandhi contra Hitler teria sido uma história bem mais curta do que Gandhi contra o Império Britânico. Mas, quase desde o momento em que tomaram posse da Índia srcinalmente, os britânicos desejavam ser bons governantes. Após as primeiras décadas de pilhagens cometidas por funcionários da Companhia das Índias Orientais, Westminster lutou para criar um sistema de governo que fosse visto como justo e, a longo prazo, bom para o subcontinente. Depois disso, a história da Grã-Bretanha na Índia foi uma gangorra, oscilando entre repressão e reforma. * ** A história tinha começado nos anos 1750, com Robert Clive, um administrador rechonchudo que misteriosamente se tornou gênio militar, venceu exércitos franceses e locais e estabeleceu o domínio da Companhia das Índias Orientais sob o trono mogol. No entanto, ao voltar para casa foi acusado de ter acumulado uma fortuna pessoal excessiva e cometeu suicídio, com 49 anos. Depois dele, Warren Hastings chegou como governador-geral e em catorze anos organizou um sistema administrativo muito mais eficiente. Sua recompensa foi ser processado num espetacular julgamento político em Westminster, novamente por corrupção. Foi absolvido, mas saiu de cena arruinado. Durante aquele julgamento, um de seus acusadores, o político e filósofo irlandês Edmund Burke, queixou-se de que até então os britânicos tinham apenas tirado da Índia, comportando-se tão mal como os orangotangos ou os tigres: “A Inglaterra não construiu igrejas, hospitais, palácios ou escolas na Índia; a Inglaterra não construiu pontes, não fez estradas, não abriu canais de navegação, não cavou reservatórios.”36 Administradores que vieram depois tomaram suas censuras ao pé da letra. Além de proibirem algumas tradições hindus mais cruéis, como osuttee , quando viúvas demonstram sua devoção (ou são forçadas por parentes a demonstrar sua devoção) atirando-se vivas nas piras funerárias, eles construíram cidades e adotaram leis de estilo britânico, juntamente com um exército no qual regimentos indianos eram formados segundo o modelo britânico e sob comando britânico. A instrução britânica foi promovida, e administradores como o historiador Thomas Babington Macaulay aguardavam ansiosamente o advento do governo autônomo. Ainda era uma Índia parecida com uma colcha de retalhos que alguns britânicos recém-chegados tinham dificuldade para compreender. Outros estudavam com admiração as culturas antigas que com tanta facilidade tinham subjugado. Contudo não é possível possuir outra cultura e respeitá-la, pelo menos por muitopara tempo. O colonialismo trarianãobenefícios a Índia, entre eles a redescoberta arqueológica de culturas hindus quase esquecidas pela Índia de governo muçulmano, que afinal de contas chegara através de outro invasor estrangeiro, os mogóis. Mas, como Gandhi compreendeu muito bem, o colonialismo corrompe os
dois lados. Embrutece a potência colonial, incapacitando-a de viver segundo seus ideais mais elevados, e humilha os colonizados, tornando muito difícil para eles respeitar os governantes ou a si próprios. A época de relativa inocência imperial da Índia britânica acabou em 1857, com um episódio que nas escolas britânicas era ensinado como o Motim Indiano, e os alunos indianos conhecem como Levante Nacional ou a Primeira Guerra de Independência. Foi um choque sangrento e desesperado. Começou por causa de boatos sobre o uso de gordura de vaca e de porco para untar cartuchos de munição de soldados (hindus e muçulmanos), mas logo se transformou numa revolta mais geral contra o domínio britânico. No papel, os britânicos tiveram a sorte de resistir, levando em conta seu pequeno número. Muitos indianos, de príncipes a regimentos inteiros, preferiram não se envolver, enquanto os rebeldes eram divididos e muito mal comandados. Depois de massacres e de cercos heroicos, os amotinados foram tratados de forma abominável, reduzidos a pedaços na boca de canhões britânicos. Grandes monumentos do período mogol foram despojados e vandalizados. A Índia tornou-se possessão britânica no pleno sentido da palavra, e várias gerações de profissionais muito inteligentes e dedicados atravessaram o oceano para trabalhar na Administração Pública Indiana, ainda hoje lembrada como uma das burocracias menos corruptas e mais eficientes da história humana. Rapazes saídos das novas escolas públicas da Inglaterra e versados em literatura clássica e noções de ustiça chegavam para cobrar impostos e administrar justiça a dezenas de milhares de pessoas — cujas línguas desconhecidas se esforçavam para aprender — e em diversas áreas. Em seu ponto mais alto, a aventura britânica na Índia levou para o subcontinente não apenas igrejas e canais, mas quase cinquenta mil quilômetros de ferrovias e uma única língua comum — o inglês substituiu o persa, que nunca fora amplamente compreendido sul dode centro de poder mogol. implantaram umnão sistema de direito comum. Durante umao período dominação mais longoOs dobritânicos que o da dinastia mogol, legaram nenhum Taj Mahal, porém deixaram agitadas cidades modernas e uma magnífica capital em Nova Déli. Supervisionaram também o crescimento de uma população que, em 1901, só era menos numerosa do que 37 a da China e de uma classe média pequena, mas ascendente e dotada de consciência política. Deixaram também o críquete. Os funcionários públicos de formação clássica não conseguiram, porém, corrigir a tendência fundamental do imperialismo. Às vezes sua falta de compreensão da Índia e o dogmatismo do evangelismo cristão e do liberalismo moralista os tornavam intoleráveis. Muitos alegavam que os indianos eram, por natureza, indolentes, dissimulados, traidores, supersticiosos e, em geral, imprestáveis. Em razão disso, como ocorreu na Irlanda, quando as epidemias de fome chegaram, os governantes britânicos logo se afastaram do caminho, responsabilizando as vítimas por sua desgraça. E milhões de pessoas morreram. Mesmo nos anos em que não havia fome, a economia da Índia era incapaz de crescer adequadamente. Então, suas indústrias ficaram expostas, sem qualquer proteção, à impossível concorrência da revolução industrial britânica, e, mais tarde, quando os negócios indianos começavam a crescer, eram incapacitadas por tarifas e pelas regras impostas. Não bastasse isso tudo, os custos de administrar e proteger o Império Britânico na Índia acabaram sendo pagos pelos próprios indianos — salários, pensões, dívidas, juros e aventuras militares dos 38 britânicos eram responsáveis por um quarto dos impostos cobrados na Índia. (Posteriormente, quando o poderio industrial da Grã-Bretanha entrou em declínio e sua economia se debatia em dificuldades, muitos britânicos passaram a acreditar que tinham não apenas civilizado a Índia, mas pagado do próprio bolso para fazê-lo. De maneira nenhuma. Mesmo impérios que se consideram magnânimos muito raramente saqueiam o país-sede para ajudar os conquistados.) Se a Índia não tivesse combatido na Primeira Guerra Mundial ou gastado seu capital comprando locomotivas a vapor e produtos manufaturados britânicos e, em vez disso, tivesse reinvestido sua riqueza no próprio desenvolvimento, será que não teria
ultrapassado a China muito tempo atrás? Impossível saber. Mas ressentimentos econômicos, somados à crescente humilhação sofrida por indianos instruídos que não tinham voz ativa no governo do seu próprio país, tornaram a revolta final inevitável.
Houve lentas e cautelosas reformas políticas, como a introdução de eleições indiretas para o Conselho Legislativo, em 1892, mais membros eleitos em 1910, e uma vaga promessa de algo que se assemelhava a um Governo Autônomo, feita durante a Primeira Guerra Mundial, quando dois milhões de indianos serviram como voluntários. Mas nada disso serviu para acalmar a agitação e os esporádicos ataques a bomba, que eram respondidos com represálias ferozes. O pior momento da fase final do domínio britânico na Índia foi o “Massacre de Amritsar”, de abril de 1919, quando o general Reginald Dyer mandou suas tropas abrirem fogo continuamente e sem avisar contra uma multidão naquela cidade do Punjab. Na multidão havia manifestantes, mas muitos eram aldeões participando de um festival de primavera. Os soldados, com alvos fáceis à sua disposição, dispararam 1.650 tiros e mataram de 379 a 530 pessoas (há uma disputa sobre números), feriram gravemente mais de 1.200 homens, mulheres e crianças. Dyer, que declarou estar se vingando de uma revolta anterior que resultara na morte de cinco europeus, ainda obrigou indianos a rastejarem de barriga no chão no lugar onde um missionário tinha sido atacado. Perdeu o comando, mas nunca se arrependeu, e foi tratado como herói por jornais conservadores quando voltou para casa.39 Se Dyer representa o que havia de mais brutal da presença britânica na Índia, devemos colocar do outro lado da balança homens como Allan Octavian Hume, que como oficial se tornara desacreditado por tomar o partido de indianos e que, já reformado, fundou o Congresso Nacional Indiano em 1885. De início uma organização militante que lutava por um governo autônomo, o Congresso Nacional Indiano viria a ser, sob liderança indiana, a principal força política da campanha pela independência. Depois de Amritsar, a opinião pública indiana endureceu. Motilal Nehru, advogado moderado e decididamente pró-britânico, que fora muito ativo no Congresso e tinha mandado o filho Jawaharlal para Harrow e Cambridge, pegou seus chapéus de feltro, seus caros ternos e gravatas londrinos, os vestidos da mulher e o resto e queimou tudo numa fogueira. Desfez-se de suas mobílias britânicas e passou a vestir-se com roupas de algodão, à maneira de Gandhi. O filho anunciou a independência da Índia em 1947, tornou-se seu primeiro-ministro — e o que ficou mais tempo no cargo — e foi o único homem a rivalizar com Gandhi na história moderna da Índia. Em certo sentido, sua trajetória foi disparada por Amritsar, o momento em que as reformas britânicas e o apaziguamento da opinião pública indiana sucumbiram sufocados num tiroteio. * ** Depois de Amritsar, as campanhas de não cooperação de Gandhi, assim como greves, motins e ataques violentos, transformaram a Índia num lugar cada vez mais difícil para os britânicos governarem. A autoridade de Gandhi cresceu a tal ponto que, para desgosto de Winston Churchill, ele passou a conduzir discussões com sucessivos vice-reis. Quando esteve em Londres para participar de rodadas de negociações sobre o futuro da Índia, em 1931, foi convidado para ir ao Palácio de Buckingham pelo rei George V e atraiu multidões de operários. Mas, dentro da própria Índia, Gandhi foi incapaz de aplacar tanto os políticos muçulmanos como os nacionalistas hindus mais extremados. Os planos britânicos de reforma eram reais e substantivos. Após as eleições, as províncias indianas passaram a ser governadas por políticos do Congresso, com funcionários públicos britânicos sob suas ordens. Contudo, devido à oposição dos príncipes, que temiam — com razão — perder a autoridade em seus estados semiautônomos, e devido à intensa politicagem em Londres, planos para um novo regime, dominado por indianos em Nova Déli, nunca se concretizaram.
Durante a Segunda Guerra Mundial, quando a Índia foi ameaçada pelo Japão, alguns nacionalistas indianos passaram para o lado do inimigo. O Congresso tinha uma política de não cooperação com as autoridades britânicas. Nehru foi internado, e Gandhi, preso, mas ambos foram soltos depois. Por vezes, as autoridades britânicas se esforçavam para manter o controle. O político trabalhista britânico Stafford Cripps foi enviado para oferecer os termos de um governo autônomo quando a guerra terminasse, porém esses planos foram considerados insuficientemente democráticos e rejeitados por Gandhi e Nehru. Gandhi desejava a vitória britânica, mas continuava estranhamente convencido de que a não violência era a melhor maneira de derrotar o nazismo. Durante a Batalha da Inglaterra, sugeriu que os britânicos deixassem Hitler e Mussolini invadir: “Que eles tomem posse de sua bela terra, com seus belos edifícios. Vocês lhes darão tudo isso, mas não sua alma ou sua mente.” A ideia foi rejeitada com polidez, em favor de baterias antiaéreas e Spitfires.40 Na metade da guerra, já estava claro que a Índia conquistaria sua independência, de uma maneira o de outra. Com a perda de prestígio da Grã-Bretanha depois do ataque japonês e sua falência após seis anos de luta, tudo que restava era combinar os detalhes da separação. Com a eleição de um governo trabalhista em 1945, lorde Mountbatten, com suas conexões reais, foi despachado para ultimar os arranjos finais, obedecendo a um apertado cronograma determinado por Londres. No entanto, apesar dos esforços de Gandhi, a divisão entre muçulmanos e hindus se aprofundara durante os anos em que o Congresso comandou a luta pela independência. Tratado com desdém pelos líderes hindus, o rabugento advogado Mohammad Ali Jinnah levou sua Liga Muçulmana noutra direção, fazendo campanha por um estado próprio no noroeste, o Punjab e Bengala. Com base num acrônimo formado pelas primeiras letras das províncias de maioria muçulmana, esse estado se chamaria Paquistão. Não haveria um sucessor único para o Raj britânico. Gandhi se esforçara ao máximo para preservar a união. Quando a matança brutal intercomunitária se desencadeou, ele realizou uma de suas caminhadas, preparando-se para jejuar, e fez um apelo para que hindus e muçulmanos se vissem como irmãos. Mas, uma vez demarcada a linha divisória entre a Índia e o Paquistão (que nessa época incluía o distante Bangladesh, no leste), iniciou-se uma migração colossal, nas duas direções, acompanhada por descontrolada matança. Suspeitas e antipatias recíprocas que remontavam ao período mogol e que os britânicos não puderam ou quiseram acalmar ao longo de duzentos anos, explodiram em violência. No Punjab, em particular, muçulmanos, hindus e sikhs declararam guerra, e talvez um milhão de pessoas tenham morrido, estraçalhadas, abatidas a tiros, espancadas, queimadas ou simplesmente por falta de alimento e de água. Cerca de dez milhões se mudaram para o norte ou para o sul da nova fronteira, a maior remoção forçada da história, maior até do que as que tinham ocorrido na Alemanha e na Rússia, poucos anos antes. Foi um desfecho horrendo para a campanha pacifista que Gandhi realizara ao longo de toda a vida. Ele fico arrasado e começou outro jejum em protesto contra a violência, recusando-se a comemorar a data da independência da Índia. Extremistas hindus agora o viam como traidor. Em 30 de janeiro de 1948, um deles o assassinou. Tendo desempenhado o papel principal no drama que pôs fim ao domínio britânico na Índia e criado um novo modelo de protesto contra a injustiça, Gandhi pode ser visto como um dos políticos mais bemsucedidos do século XX. Mas o país que emergiu foi completamente diferente de sua visão srcinal. Seguidor de Tolstói e de sua ideia de uma vida simples de camponês, Gandhi tinha sonhado com uma Índia espiritual, que desse as costas para ferrovias, fábricas e grandes cidades e fizesse o caminho de volta para a vida autossuficiente da aldeia. Era um conservador radical, uma versão pacífica dos comunistas que rejeitavam toda a civilização ocidental. Muitos de seus amigos ingleses também eram
idealistas vegetariano-ruralistas, que ansiavam pela volta da humanidade a vilarejos, pomares e arados. Ele queria também, é claro, uma Índia única, onde muçulmanos, cristãos e hindus vivessem em harmonia. No entanto, em vez disso, o que houve foi partição, capitalismo, urbanização e dois países mutuamente hostis, ainda hoje às turras por causa da Caxemira, e ambos equipados com armas nucleares. A pantomima de ódio militar representada em cerimônias de fronteira está tão distante do sonho de Gandhi quanto se possa imaginar. A própria Índia é agora uma das economias mais poderosas do mundo, com cidades buliçosas, fábricas, uma classe média bem instruída e uma democracia que, apesar da corrupção, dos assassinatos ocasionais e do ressurgente extremismo hindu, tem tido mais êxito do que a maioria dos países que já foram colônias. Com uma população de 1,2 bilhão e um PIB por volta de duas vezes maior que o da Grã-Bretanha, é um dos países que provavelmente dominarão o próximo século. Não é, porém, o país que Gandhi Dotado de Grande Alma queria. Uma Guerra Fria com interrupções tropicais Para muitos países e muita gente corajosa, a Guerra Fria não foi nada fria. Esquentou suficientemente na Coreia e no Vietnã, em Angola e na Somália, nas fronteiras da China, em vastas faixas da América Latina e no Oriente Médio. Para rebeldes na Hungria, na Tchecoslováquia, na Polônia e no Afeganistão, foi uma luta violenta e letal. Serviu de base para a política mortífera do Oriente Médio depois da guerra, onde Israel, aliado dos Estados Unidos, combateu árabes apoiados pelos russos, e iranianos lutaram contra iraquianos. Talvez tenha mas começado apenas como umaponto luta que, entredurante dois modelos civilização, duas lideranças, duas capitais, se espalhou tanto e a tal quarenta de anos, quase ninguém em parte alguma deixou de ser afetado. Pelo fato de o drama central de blefe e escalada nuclear, um jogo de pôquer com o planeta, ser praticado por pequenos grupos de homens em escritórios nos Estados Unidos e na União Soviética, é fácil esquecer que sangue de verdade foi vertido em praticamente todos os outros pontos do planeta. Tinha começado como uma competição entre dois recentes aliados que não sabiam direito o que estavam fazendo. De que tamanho deveriam ser suas reivindicações territoriais? Seria aquilo um conflito existencial sobre o futuro da humanidade e, nesse caso, até onde cada lado deveria insistir? Por causa dessa confusão, os quinze anos decorridos entre 1948 e 1963 foram a fase mais perigosa da Guerra Fria. Depois, a sangrenta esubjacente constrangedora guerra americana ainda estivesse por vir,em o impasse embora militar fundamental ao “equilíbrio de terror”nofoiVietnã compreendido com clareza Washington e Moscou, e os passos iniciais e cautelosos em direção aos tratados nuclear foram dados. Após as primeiras explosões de artefatos termonucleares — pelos Estados Unidos em 1952, pela União Soviética nove meses depois e, outra vez, essa mais letal, pelos americanos em 1954 —, tornou-se óbvio que a guerra entre as duas potências provavelmente extinguiria a raça humana. O confronto deveria, portanto, prosseguir por procuração, estendendo-se também ao mais lento, porém enfim decisivo, campo da economia. Esse padrão tornou-se evidente mesmo antes de a União Soviética, pelo menos, ter qualquer capacidade real de lançar ataques nucleares contra seus inimigos capitalistas. O Plano Marshall, sob o qual os americanos financiaram a reconstrução da Europa Ocidental depois da guerra, tinha sido lançado em 1947, com ajuda para a Grécia, onde comunistas e monarquistas se enfrentavam numa guerra civil, e para a Turquia, ameaçada por Stalin, que queria ter bases soviéticas para uma frota no Mediterrâneo. Os Estados Unidos aprofundaram seu envolvimento na Europa, indo muito além da ajuda econômica, quando
sua Agência Central de Inteligência, novamente autorizada a conduzir uma vasta série de atos de subversão, sabotagem e propaganda, interveio nas eleições italianas de 1948 para impedir uma vitória comunista. No mesmo ano, os homens de Stalin mostraram-se ainda mais determinados a preservar seus ganhos territoriais de 1945, autorizando um violento golpe contra democratas tchecoslovacos. Ambos os lados formavam amplas alianças um contra o outro. Em abril de 1949, a Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) formalizou a proteção militar americana da Europa Ocidental, imenso alívio para europeus obcecados pela retórica agressiva e pelas divisões de tanques a leste do que Churchill chamou de “cortina de ferro”. Só o tamanho das forças do Exército Vermelho já significava que não havia necessidade de uma resposta imediata, mas, mesmo assim, o Pacto de Varsóvia foi assinado em 1955. Contudo nenhum dos dois lados considerava a possibilidade de dirigir uma ação militar um contra o outro. Isso tinha menos a ver com qualquer sentimento residual entre aliados da época da guerra do que com o medo da bomba atômica dos Estados Unidos e com a exaustão do lado russo — eles tinham perdido noventa vezes mais gente do que os americanos — e também com um breve período de otimismo em Washington, onde se supunha que a nova ONU pudesse relegar a guerra a mero tema de estudo de historiadores. O primeiro grande teste desse receio recíproco veio com a tentativa de Stalin de provocar uma mudança na Alemanha dividida. Ele tentou estrangular o pequeno enclave de Berlim Ocidental, bem dentro da comunista “República Democrática Alemã”, impedindo-o de receber qualquer tipo de suprimento. Seu objetivo era, provavelmente, reabrir a divisão da Alemanha e quem sabe criar um paístampão neutro, muito embora continuasse estranhamente convencido de que os alemães acabariam preferindo passar para oHouve lado comunista. Não agudo, funcionou, de umamas ponte-aérea maciça e prolongada. um confronto caraporém, a cara,graças entre àosmanutenção antigos aliados, a União Soviética recuou na primavera de 1949 e Berlim Ocidental continuou aberta, um ímã de valores democráticos, para onde, constrangedoramente, moradores do leste fugiam em grandes números. Foi do outro lado do mundo que a luta de verdade começou. Dessa vez a Europa foi poupada da posição de linha de combate e zona de máximo perigo. No fim da guerra, porém, a Coreia ficou com forças do Exército Vermelho no norte e forças dos Estados Unidos, como parte do impulso antijaponês, no sul. Apesar de as duas superpotências terem retirado suas tropas e concordado em dividir a península meio a meio, isso deixou um regime de direita no sul e outro agressivamente comunista, encabeçado por Kim Il Sung, no norte. Em 1950, ele convenceu Stalin de que seria capaz de tomar todo o país rápido. Quase conseguiu, e foi só graças a um desembarque comandado pelos Estados Unidos, atrás do front comunista, que a maré da batalha virou. Porém, Mao — cuja história veremos adiante — interveio, e trezentos mil “voluntários” chineses entraram pela fronteira e forçaram os americanos a recuarem, numa retirada humilhante. Combatendo sob a nova e pouco familiar bandeira das Nações Unidas, tropas americanas, britânicas e australianas por fim rechaçaram as forças maoistas. Washington poderia, é claro, ter utilizado bombas atômicas, mas preferi não fazer isso e sofreu um sangrento e prolongado período de guerra de trincheiras. Por quê? Dificilmente terá sido por causa da ameaça de uma rápida represália soviética. Sabemos hoje que pilotos russos estavam presentes nos céus da Coreia, e os russos já tinham sua própria bomba (graças a espiões no Ocidente) desde o ano anterior, embora ainda não estivessem em posição de travar com eficácia uma permuta nuclear. Foi, em primeiro lugar, porque os Estados Unidos não queriam criar um precedente. nãoUnidos. deveriaSeser levianamente só para os se russos vingar cedo num ou conflito que não afetava o futuro A dosbomba Estados erausada para ser usada dessaoumaneira, tarde fariam o mesmo. Por isso a Guerra da Coreia, muito sangrenta, terminou com um empate técnico perto da linha
onde tinha começado e com o estabelecimento de dois regimes que se tornariam caricaturas de seus patrocinadores — um rígida e violentamente stalinista, o outro turbulentamente capitalista. A partir de então, os Estados Unidos e a União Soviética competiram numa frenética corrida armamentista, que envolvia não apenas ogivas nucleares, mas também submarinos, mísseis balísticos intercontinentais, satélites, aviões de espionagem e silos ocultos. Ao mesmo tempo cada lado buscava, incansavelmente, aliados pelo mundo inteiro para apoiar e países que pudesse atrair para sua órbita, incentivando e apoiando guerras e ditaduras na África, na Ásia e na América do Sul. Os Estados Unidos adotaram uma intervenção agressiva na América do Sul e América Latina, respaldaram o xá do Irã e a parte meridional da antiga Indochina francesa, então chamada de Vietnã, bem como tentando — quase sempre sem êxito — cortejar países árabes. A União Soviética concentrou-se em seus próprios satélites europeus e em duas relações cada vez mais difíceis. A mais importante era a relação com sua aliada impetuosa, a China; e a outra, com o país comunista mais autônomo da Europa, a Iugoslávia de Josip Broz Tito, que se libertara do nazismo sem ajuda soviética e não via motivo para se prostrar diante de Moscou. Os dois países tornaram-se parte de um movimento mais amplo, que mostrou que, apesar das aparências de dominação de superpotência abrangendo e ameaçando o globo inteiro, nem os Estados Unidos nem a União Soviética eram tão fortes como se supunha. Países com líderes que tivessem autoconfiança suficiente conseguiam esquivar-se com êxito entre o Urso e a Águia e até mesmo jogar um contra o outro. Na Indonésia, em 1955, Iugoslávia e China estavam entre os países que se reuniram para formar o Grupo dos Não Alinhados. Havia também a Índia, agora uma república socialista, mas ainda dentro da eCommonwealth Britânica, decididaNasser, a ter boas comas avelhas Rússiapotências e também com o Ocidente, o Egito, cujo líder nacionalista, logo relações humilharia imperiais, França e Grã-Bretanha, mas ao mesmo tempo menosprezaria a ajuda americana em favor da russa. Quando a França deixou a estrutura de comando militar da Otan, em 1966, tendo reconhecido a China maoista, ela também se tornou mais uma potência não alinhada do que parte integrante do bloco ocidental. Na África, iniciou-se uma longa e, na maioria das vezes, trágica luta pela lealdade de antigas colônias. Será que essas novas repúblicas preservariam laços afetuosos com seus colonizadores europeus ou se proclamariam repúblicas populares, mandando seus melhores e mais talentosos filhos estudar marxismo-leninismo em Moscou? Entre os grupos anticolonialistas do continente, africanistas combatiam marxistas, enquanto governos ocidentais preferiam fazer vista grossa a despotismos de partido único, à corrupção e a coisas piores — o ditador local podia ser um desgraçado, mas era “nosso” desgraçado. Isso permitiu o regime de ditadores como Idi Amin em Uganda, Mobuto Sese Seko no Zaire — antigo Congo Belga — Hastings Banda em Malaui e Daniel arap Moi no Quênia. Do lado soviético, o monstruoso Mengistu Haile Mariam da Etiópia e os bizarros e incompetentes marxistas do MPLA de Angola e da Frelimo de Moçambique contavam com o apoio de Moscou — sem nenhum grande entusiasmo, mas simplesmente porque a Guerra Fria precisava ser travada em toda parte, por qualquer lasca de solo calcinado e por qualquer criança faminta e desconfiada. Em Angola, os Estados Unidos tinham apoiado a guerrilha nacionalista rival, Unita, porém, como o observador africano Richard Dowden afirma com mordacidade: “Era difícil ver o que Angola tinha dado à União Soviética, além de pesadas dívidas e sol no inverno para seus generais.”41 A velocidade da descolonização, que catapultou para o poder em toda a África grupos e indivíduos que não tinham tido tempo nem apoio para se preparar, também foi parte da história da Guerra Fria. Não se tratava apenas de governos europeus, de Lisboa a Bruxelas e de Londres a Paris, fugindo porque já
lhes faltava a força de vontade para preservar suas antigas colônias contra movimentos negros de libertação. Era também porque, concentrando-se na ameaça comunista, eles não tinham estômago para travar guerras contra procuradores de Moscou e preferiam entender-se com governantes “pró-Ocidente”, na esperança de que as transações comerciais prosseguissem, enquanto a política no novo país ficava em segundo plano. O confronto Leste-Oeste permitiu que a África do Sul do apartheid mantivesse a Grã-Bretanha e os Estados Unidos, durante muito tempo, como descontentes “amigos neutros”, graças ao seu veemente anticomunismo. A Guerra Fria permitiu que Robert Mugabe, o destruidor do Zimbábue, recebesse lições de marxismo, apesar de ter a princípio rechaçado seu rival, Joshua Nkomo, que era ostensivamente próMoscou. Para completar a triste história de desgoverno, corrupção, racismo, tortura e desperdício na África do século XX, muitos dos incontáveis milhões de vidas africanas arruinadas nesse período devem ser somados ao verdadeiro custo da Guerra Fria. Ambos os lados, em meados dos anos 1950, tinham novos líderes que se esforçavam para descobrir maneiras de lidar com o equilíbrio de terror. Nos Estados Unidos, Harry Truman, um presidente determinado que, apesar disso, fora fortemente influenciado pelo idealismo de Roosevelt, cedeu a vez para o antigo comandante militar de Roosevelt, “Ike” Eisenhower. Para começar, pelo menos, ele tinha uma atitude mais agressiva para com o possível uso de armas nucleares. E depois de Eisenhower, em 1961, viria um jovem democrata, John F. Kennedy, que utilizava uma retórica altissonante sobre o destino global dos Estados Unidos como campeão do mundo livre, que seria quase imediatamente posto em confronto com Moscou. Esses que dois subira líderesnaencontraram em Nikita um novo líder(esoviético decidido, um genuíno operário época de Stalin e queKhrushchev agia com impetuosidade certa aspereza pessoal). No começo do governo de Khrushchev, a União Soviética ainda estava atrás do Ocidente na questão dos mísseis, mas já começava a diminuir a distância. O lançamento para o espaço do primeiro míssil balístico intercontinental da Rússia e de seu satélite artificial, Sputnik, em 1957, foi um choque terrível para políticos ocidentais. Khrushchev acreditava que métodos soviéticos na ciência e na economia poderiam levar a União Soviética a ultrapassar os Estados Unidos. Ao mesmo tempo, ele desejava criar uma atmosfera menos impregnada de terror em seu país, denunciando os crimes e o culto da personalidade de Stalin num discurso secreto para o Congresso do Partido Comunista — embora não permanecesse secreto por muito tempo. Mas os que supunham que uma atmosfera um pouco mais liberal implicava um abrandamento da disposição de Moscou para reter seus satélites “socialistas” foram brutalmente desenganados em 1956, quando tanques soviéticos esmagaram uma rebelião e vinte mil pessoas morreram. Em 1962, Khrushchev e Kennedy é que empurraram o mundo para mais perto do que nunca da aniquilação nuclear. A causa foi Cuba, cuja revolução marxista, sob Fidel Castro, os americanos tinham tentado em vão derrubar numa malfadada invasão na baía dos Porcos. Khrushchev achou que despachar para a ilha e instalar mísseis russos era uma boa ideia, tanto para proteger seu novo aliado caribenho como para ameaçar os Estados Unidos, que também tinham mísseis de médio alcance apontados para a União Soviética, sobretudo na Turquia. Foi um momento muito “quente” da Guerra Fria: os russos tinham testado uma bomba maior, lançado Yuri Gagarin como o primeiro homem no espaço, enquanto seus aliados da Alemanha Oriental isolaram Berlim Oriental com o famoso muro, projetado para deter um dilúvio emigrantes. estado alemão-oriental tinha encolhido em dois de cidadãos.) Essesdeatos sugeriam(Oque o comunismo estava mais que nunca bem milhões aparelhado e determinado. A determinação era real, mas a rigor a União Soviética continuava muito atrás dos americanos na capacidade de seus mísseis. Em Cuba, Khrushchev esperava fortalecer o prestígio soviético e incentivar
revolucionários latino-americanos. Kennedy, também, buscava esse efeito. Avisou aos russos que, se seus navios de aprovisionamento, carregados de foguetes extras para Cuba, se extraviassem para além de certa linha, seriam atacados. Insistia, também, que as bases existentes fossem demolidas. Torpedear navios russos significaria guerra total. Depois do ultimato de Kennedy, o mundo aguardou, ansioso. No último minuto, Khrushchev recuou, e as bases de mísseis foram desmontadas, o que pareceu uma grande vitória do presidente dos Estados Unidos. E foi — mas seu homólogo no Kremlin acabo conseguindo boa parte do que pretendia, especialmente a remoção de mísseis americanos na Turquia e a aceitação de que o regime marxista de Fidel Castro chegara para ficar. Foi instalada uma “linha direta” entre os líderes americanos e soviéticos. Ainda haveria momentos muito perigosos. Um deles foi o surto de combates entre tropas chinesas e russas na fronteira, em 1969, e o outro, o mais sangrento, o mais doloroso fracasso dos Estados Unidos na Guerra Fria, a guerra para rechaçar o comunismo no Vietnã. O conflito, que também se espalhou para o Laos e o Camboja, durou de 1965 a 1975 e demonstrou, cabalmente, que bombardeios aéreos são incapazes de destruir forças guerrilheiras. Mas, depois da crise cubana, Washington e Moscou reconheceram que foi preciso retroceder no último momento, numa situação em que um minúsculo erro de cálculo poderia acabar com a história humana. Ao Tratado de Interdição de Testes Nucleares seguiram-se o Tratado de Não Proliferação Nuclear em 1968, e as primeiras conversações sobre limitação de armas estratégicas, ou SALT 1, em 1972, limitando o número de mísseis balísticos. Outro tratado, proibindo a defesa contra mísseis nucleares, mostrou que a doutrina de “destruição mútua assegurada”, ou MAD — desejada por Oppenheimer em seus momentos menos inflexíveis — agora era política oficial. Chegara o período de coexistência consentida, chamado de “détente durante o qual os dois sistemas tentaram viver lado a ladoFria numenfim mundo dividido. Naem época parecia um”,interminável estado de paralisação e equilíbrio, a Guerra transformada Paz Congelada, ou, para usar outra metáfora, era como se dois lutadores pesos-pesados, exaustos, tivessem se atracado, num abraço apertado, ambos incapazes de se desvencilhar ou derrubar o adversário. Embora aparentemente mais segura do que a fase anterior de competição agressiva, a Paz Congelada também se revelou uma ilusão, porém mais por causa do que acontecia dentro de cada lado do que entre eles. Na verdade, nenhum sistema político é estático. Atrás da Cortina de Ferro, embora o sistema soviético se equiparasse à Otan em armamentos — na verdade, ele investia muito mais —, a economia soviética jamais produziu o crescimento da riqueza capaz de convencer o povo de que era de fato uma sociedade melhor, de que a repressão e a monotonia da vida valiam a pena. Khrushchev tinha sido responsabilizado e pagara caro por Cuba, assim como por fracassos internos, quando foi afastado do poder, em 1964; mas o novo regime de velhos, encabeçado por Leonid Brejnev, espreguiçava-se sobre uma sociedade que começava, visivelmente, a estagnar. O esmagamento da rebelião na Tchecoslováquia em 1968, saudado como a “Primavera de Praga”, mostrou ao mundo quanto o comunismo era de fato popular entre seu próprio povo. Mas foi no Ocidente que o novo espírito de amotinação e rebeldia contra velhos líderes primeiro estremeceu as estruturas. A sangrenta guerra dos Estados Unidos no Vietnã, que exigia o recrutamento de ovens para o exército, provocou protestos internos. Tanto o democrata Lyndon B. Johnson como o republicano Richard Nixon se esforçaram para achar uma fórmula que combinasse suas estratégias militares e as demandas de um país mais jovem, inchado pelos b“aby boomers”, produto do aumento da taxa de natalidade logo depois da guerra. Um historiador da Guerra Fria, John Lewis Gaddis, ressalta o fato de governos que as matrículas nas faculdades e universidades triplicaram entre 1955 1970:Guerra “O que os não previram foi que mais jovens e mais americanas instrução, quando combinados come uma Fria empatada, poderiam ser uma receita para insurreição. [...] Foi uma coisa que nunca tinha acontecido: uma revolução que transcendia nacionalidades, voltada contraestablishments de qualquer ideologia.”42
Protestos contra o Vietnã sacudiram Berlim, Paris e Londres, mas foi nos Estados Unidos, propriamente, que o prestígio político dos guerreiros da Guerra Fria sofreu danos mais severos. Mais o menos na mesma época, chegaram à arena pública provas mais deletérias de operações sigilosas da CIA na Guatemala e no Chile, onde elas ajudaram a derrubar um governo de esquerda livremente eleito. Se líder, Salvador Allende, morreu como milhares de outros, muitos após terríveis torturas. Isso parecia desmentir por completo a alardeada superioridade moral das democracias. Jovens radicais adotaram como ícones e heróis os inimigos que seus líderes combatiam — Fidel Castro, Che Guevara, Ho Chi Minh e Mao —, e uma onda de esquerdismo propagou-se pelos campi. Em nenhum lugar esse radicalismo avançou a ponto de mudar a liderança ocidental — nem mesmo na França, onde os “eventos” de 1968 alcançaram sua dimensão mais espetacular. Mas ficou provado que détente “ ” não significava estabilidade. * ** No fim, o lado soviético é que viria abaixo, muito mais rápida e dramaticamente do que analistas ocidentais tinham previsto. Sob Nixon, antes que as escutas ilegais e as mentiras derrubassem sua presidência, os Estados Unidos tinham posto fim à velha inimizade com a China de Mao, aumentando, com isso, o sentimento de paranoia e cerco em Moscou. Uma liderança cada vez mais velha, provas cada vez mais claras de fracasso econômico e de abastança ocidental provocavam descontentamento. A anuência declaração de direitos humanosdo incentivou dissidentes que divulgaramrussa paraa ouma mundo notícias mundial da repressão e brutalidade sistema soviético. Os internos, escritos de Alexander Soljenítsin foram particularmente influentes. Na Polônia, operários de estaleiros protestaram e a eleição de um polonês, Karol Wojtyla, como papa João Paulo II, em 1978, foi seguida de cenas de grande entusiasmo coletivo, quando ele visitou sua terra natal, para horror dos governantes ateístas. E a União Soviética, ao invadir o Afeganistão no ano seguinte, para proteger um governante marxista cliente seu, enredou-se numa guerra sangrenta e onerosa. Os Estados Unidos, astutamente, responderam apoiando guerrilheiros islâmicos — pelo menos na época pareceu astuto. A queda da União Soviética não foi provocada por canhões, de fato, mas pelo custo dos canhões, quer dizer, dos mísseis. Um novo presidente americano, o bem-disposto e aparentemente simplista ex-ator Ronald Reagan, ordenou a construção de um sistema de defesa contra mísseis russos — sua “iniciativa de defesa estratégica”, que, por envolver rastreamento por satélite e, em deferência a um filme popular, foi logo apelidada de “Guerra nas Estrelas”. A União Soviética e a Otan vinham se enfrentando numa nova rodada de competição nuclear desde 1977, quando os novos mísseis russos SS20 ameaçaram a Europa Ocidental e os Estados Unidos responderam baseando ali seus próprios mísseis Pershing e de cruzeiro. Para os russos, tentar igualar esse novo sistema proposto foi economicamente nefasto — impossível. A retórica cada vez mais desdenhosa e belicosa de Reagan sobre o “império do mal” mostrou que os Estados Unidos tinham um líder que já não temia a ameaça russa. Muitos achavam essa atitude uma loucura, mas ela coincidiu com uma sequência de líderes constrangedoramente idosos e de mandato curto no comando daquele império, primeiro o doente terminal Yuri Andropov, de 1982 ao começo de 1984, e depois Konstantin Chernenko, que mal parecia estar vivo. Haveria ainda momentos perigosos, enquanto o sistema soviético tropeçava nas pernas. Entretanto, com a chegada de Mikhail Gorbachev a União Soviética enfim tinha um líder com vigor e autoconfiança para discutir o desarmamento com Reagan. Seus três encontros de cúpula em 1986-1987 os prepararam
para uma relação radicalmente nova. Até mesmo a superbelicosa primeira-ministra da Grã-Bretanha, Margaret Thatcher, demonstrou simpatia por Gorbachev, “um homem com quem se pode conversar”. Internamente, porém, Gorbachev parecia não ter uma estratégia de longo prazo. Sabia que era preciso mudar e que o sistema soviético estava condenado à ruína, mas esperava que de alguma forma comunistas moderados pudessem reter poder enquanto aqueles vastos territórios se tornavam politicamente mais abertos e economicamente liberais. Suas políticas de abertura e reconstrução (glasnost e perestroika) não contemplavam uma guinada real em direção à economia de mercado e ao capitalismo do tipo que o Partido Comunista Chinês na época estava adotando. O que Gorbachev pretendia era evitar um confronto global, talvez até acabar com a Guerra Fria. O que pretendia para a União Soviética não estava tão claro. O decisivo ano de 1989 trouxe a resposta. Começando pela Hungria, que se recusou a manter funcionando sua Cortina de Ferro com a Áustria, os europeus do leste simplesmente romperam relações — e Gorbachev nada fez para impedir. A Polônia, onde o movimento independente Solidariedade, chefiado pelo ex-operário de estaleiro Lech Walesa, tinha aberto caminho para outros, realizou eleições para a Câmara Baixa — que viu o Solidariedade tomar o poder. Alemães do leste começaram a votar com as rodas, arrumando suas coisas nos pequenos automóveis Trabant e rumando através da Hungria para a Áustria — e para a liberdade. Depois de dias de confusão em Berlim Oriental e nenhum respaldo de Moscou a qualquer repressão, o muro foi aberto, e alemães em estado de êxtase começaram a passar por ele — e depois a dançar sobre ele, antes de derrubá-lo. Os comunistas búlgaros cederam e anunciaram eleições livres. Em Praga, vastas manifestações abateram o espírito dos comunistas tchecos e uma “revolução de veludo” instalou na presidência o antigo dissidente e dramaturgo Vaclav Havel. Na Romênia, um dos mais cruéis e peculiares fimnão nãoconseguiu foi tão pacífico. ditador Nicolae Ceausescu mandou tropas dispararemsatélites contra assoviéticos, multidões,omas esmagar Oa revolta. Ele e a esposa foram rapidamente capturados, julgados e fuzilados. O ano seguinte assistiu à reunificação da Alemanha e ao começo do colapso da própria União Soviética, enquanto os países bálticos se separavam. Gorbachev foi vítima de um golpe de linhas-duras indignados, que, porém, logo descobriram que o colapso que ele (com sua sábia inação) tinha presidido era irreversível. O Exército negou-lhes apoio e um novo líder surgiu — o alcoólatra exibicionista Boris Yeltsin, que desafiou publicamente os conspiradores subindo num tanque diante do prédio do parlamento russo. Yeltsin, a rigor, foi quem dissolveu a União Soviética, observando, com um olhar bondoso, enquanto vastos países como a Ucrânia anunciavam sua independência. * ** A Guerra Fria terminou porque uma filosofia de governo e economia, o marxismo tal como praticado na União Soviética, fora desastrosamente reprovado no teste da realidade. A União Soviética tinha — a Rússia tem — grandes recursos naturais, incluindo petróleo, gás, madeira e vastíssimas extensões de terras excelentes para agricultura. Apesar de ter começado tarde, parecia uma boa candidata a ter êxito em sua industrialização, de uma espécie que teria melhorado imensamente a vida material de seu povo, que, pelos padrões internacionais, era bem instruído. Mas seu sistema de empresas estatais monopolísticas, dirigidas a partir do centro e enredadas numa teia de medo, corrupção e preguiça criada pelo governo comunista, resultava em desperdício, escassez, cinismo e desespero. No fim, havia pouca coisa para assegurar a lealdade do povo, além das lembranças do heroísmo da Grande Guerra Patriótica, que os jovens russos achavam bem menos impressionante do que seus pais. Libertados do mesmo sistema, os países do Leste Europeu, que não perderam tempo em pedir ingresso na
União Europeia, mostraram que, após duas gerações de repressão, a iniciativa e a energia podem ressuscitar com notável rapidez. Já o destino da própria Rússia foi bem pior. Nunca teve uma cultura democrática, passando quase imediatamente da autocracia czarista para a ditadura marxista. Enquanto consultores ocidentais chegavam para promover, por altos honorários, a rápida privatização de empresas e aplicar uma terapia de choque de livre mercado, bem como ajudar na criação de novos partidos, a Rússia viveu um período terrível de preços nas alturas, desemprego e venda de patrimônio por uma nova classe de “oligarcas”, alguns deles verdadeiros barões ladrões. Quando a velha elite comunista assumiu nova identidade e voltou como um grupo de nacionalistas dedicados, prontos para lidar com os novos e vaidosos super-ricos de Moscou e de São Petersburgo (recém-rebatizada), os russos comuns ficaram com o pior dos dois mundos — políticos cínicos, autocratas e repressores e uma ideia distorcida do capitalismo na sua encarnação mais selvagem. Quem perdeu a Guerra Fria? Eles. Deng e seu filho — Renascimento chinês Não raro os países são grandes demais ou pequenos demais. A história da China no século XIX e na primeira metade do século XX é o caso mais óbvio. Para um ocidental, ela pode parecer uma barafunda incompreensível e interminável de guerras, rebeliões, golpes e colapsos. Houve tentativas de modernização — incluindo a introdução de ferrovias, sistemas de telégrafo e barcos a vapor — nas últimas décadas da imperial dinastia quando Qing eaquela o estabelecimento de constituições modernas e de parlamentos aparentemente modernos dinastia desmoronou, pouco antes da Primeira Guerra Mundial. A história moderna da China apresenta uma série de reformadores extraordinários, tentando arrastar um vasto império de camponeses e proprietários de terras para a era da humanidade urbana industrial. Mas parece que a tarefa era excessivamente difícil. A terra era grande demais, suas partes constituintes, demasiado díspares e muito pouco interligadas. Entre os que travaram essa luta estão figuras impressionantes, que mereciam ser mais conhecidas na atualidade. Uma delas é Li Hongzhang, o grande articulador da última fase da China imperial, que desenvolveu a indústria e planejou restituir-lhe a independência e o poder real. Outro é Yuan Shikai, rígido filho de agricultor que fez carreira no Exército e adquiriu enorme influência, até ser presidente da República Chinesa. E há,filho é claro, figuras mais Sun Yat-sen, vezes colaborador rival de Yuan, e outro de agricultor, queconhecidas, em geral écomo reconhecido comopor fundador do modernoe nacionalismo chinês. Por fim há Chiang Kai-shek, líder do nacionalista Kuomintang, reformador do sistema bancário, da língua, da educação e das comunicações da China, mas também ditador corrupto e, no fim das contas, ineficiente. Cada um deles era tão poderoso e ambicioso, para seu país, como Roosevelt, Churchill ou Mussolini. O problema, porém, é que todos foram destruídos pela escala da tarefa e pela alcateia de inimigos que rondavam a China. Li Hongzhang morreu derrotado em 1901, depois de negociar um humilhante e nefasto tratado de paz com a Rússia, a França, a Grã-Bretanha e o Japão, na esteira do Levante dos Boxers e da captura de Pequim. Yuan Shikai tornou-se cada vez mais ditatorial, até se proclamar imperador, em 1912, quando o país foi mais uma vez humilhado pelo Japão. Deposto, deixou a China se estraçalhando sob as garras de chefes militares rivais. Sun Yat-sen, cuja reputação até hoje continua excelente na China e em Taiwan, tornou-se, não obstante, um líder cada vez mais militarista e ditatorial. Morreu de câncer em 1925 enquanto a China ainda era destruída pelos chefes de clã, e seu governo Kuomintang controlava apenas o sul. Chiang Kai-shek, apesar das alianças com os comunistas da Rússia e também com os
Estados Unidos, jamais conseguiu governar a China continental de forma eficaz — novamente durante uma época de catástrofe militar nas mãos dos japoneses e quando a insurgência comunista chinesa se tornava irresistível. Esses regimes tinham sido incapazes de impor uma autoridade central efetiva. O que isso produziu não foi uma China de aldeias pacíficas, harmoniosas e autônomas e cidades livres de uma Pequim arrogante, mas uma China de ilegalidade, medo, terror e insegurança. No imenso interior rural, milhões de chineses continuavam a plantar e comer arroz, a cuidar de animais, a seguir as tradições religiosas, a fofocar, altercar, viver e morrer sem tomar muito conhecimento da cidade grande mais próxima, muito menos da política nacional. O mesmo se poderia dizer de camponeses em todas as partes do mundo durante a primeira metade do século XX, da Córsega à Islândia, da Turquia ao Chile. Mas a incapacidade de construir um sistema moderno unificado de moeda, tributação, comunicação o poderio militar deixou o povo da China à mercê de proprietários de terra e de bandidos locais, de invasores estrangeiros, de extremistas religiosos, com pouco ou nenhum apoio quando a fome chegava o os chefes militares atacavam. O número de mortos durante os últimos anos da dinastia Qing e nos quarenta anos de governo republicano não comunista na China é impossível de computar com exatidão, mas estima-se que foi muito alto. Numa das poucas aldeias que sobreviveram à destruição de costumes e tradições nas mãos da Guarda Vermelha de Mao, existe uma torre de vigia usada pelos aldeões para vasculhar os campos à procura de bandidos. Foi construída em 1918. Nada disso era novidade para os chineses. A Rebelião Taiping, de 1850-1864, iniciada por fanáticos quase cristãos que tomaram boa parte da China meridional e central, resultara em vinte milhões de mortos, estimativas, o que fazfoidela dos episódios maismostrou catastróficos da história O Levante segundo dos Boxers, em 1898-1901, umum desastre militar que ao mundo quantodoa mundo. China da dinastia Qing era fraca. A tomada da Manchúria e as invasões da China setentrional e litorânea pelos aponeses resultaram em sucessivos massacres, dos quais o Estupro de Nanquim, em 1938, quando cerca de duzentos mil civis foram assassinados e oitenta mil mulheres estupradas, é apenas o mais notório. O número de mortos chineses na caótica luta da Segunda Guerra Mundial foi estimado em vinte milhões, superando de longe qualquer outro país, exceto a União Soviética. Em torno desses sinistros picos estatísticos estão as montanhas denteadas de inumeráveis rebeliões locais de sociedades religiosas e secretas, generais muçulmanos e chefes de clã regionais. Acrescentemse décadas durante as quais a noção de uma China única era apenas cultural e linguística (e esta, apenas quase única), e não política. Os relatos em primeira mão de epidemias de fome que levavam ao canibalismo, de aldeias esvaziadas de crianças e animais e o implacável rastro de fotografias de pouca definição mostrando cenas de decapitação de rebeldes infelizes ou de soldados do governo capturados — para não mencionar a vingança infligida por estrangeiros na forma de templos incendiados e centros de cidade devastados — vêm acrescentar mais detalhes desagradáveis do que a maioria dos leitores estaria disposta a tolerar. Dessa forma, apesar de o governo de Mao Tsé-tung e do Partido Comunista Chinês depois de 1949 ter produzido a maior catástrofe humana do século XX, é impossível compreendê-lo sem lembrar o que veio antes. O anseio chinês de unidade e ordem não é um capricho político obscuro. Quanto maior a população e mais espalhado e variado o território, mais difícil impor unidade e ordem. Desde que os manchus derrubaram a dinastia Ming, em 1644, os governantes chineses não só tiveram que se preocupar com o gigantesco interior do país, sua costa imensamente longa, Moedas, mas comlínguas, vastos pântanos territóriose meridionais e orientais ocupados por com mongóis, tibetanos e muçulmanos. montanhas produziram divisões internas que mesmo um país de tamanho mais modesto teria tido dificuldade para superar.
Embora o Japão também tenha acabado de forma desagradável, depois de confrontar, sem êxito, a ascendente superpotência americana, seu rápido progresso no fim do século XIX e começo do século XX, sob os imperadores Meiji, mostrou o que era possível fazer num país comparativamente pequeno e unido, com uma autoridade central forte. Como os japoneses, os chineses tinham tentado importar técnicas militares ocidentais, construir ou comprar navios de guerra couraçados, modernizar sua burocracia e abrir seu sistema educacional. Mas os líderes chineses — fossem imperiais ou republicanos — simplesmente não tinham o controle ou a autoridade para produzir resultados. E repetidas vezes foram humilhados por líderes de fora que tinham ambos. Isso resultou numa impaciência maníaca entre os intelectuais chineses, sobretudo da esquerda, que enfim encontrou expressão no governo de Mao, com suas diretrizes abruptas para a industrialização a todo vapor. Os governantes da China nunca estiveram em sintonia com o povo. Houve, e há, um número excessivo deles, espalhados por um vasto território. Tanto imperadores quanto marxistas, isolados atrás de altos muros em Pequim, precisariam se esforçar muito para ver as consequências de suas políticas na China real. Em 1901, a imperatriz viúva Cixi, mulher extraordinária que foi a verdadeira fonte de poder no país por quase meio século, viu-se frente a frente com a China real quando fugia de Pequim, prestes a ser invadida por exércitos ocidentais. Como estava seu povo? Encontrou vítimas da fome que tinham 43 comido de tudo, cães, gatos, folhas e cascas de árvore, e agora comiam umas às outras. A diferença foi que, quando Mao finalmente viu os resultados de suas epidemias de fome, de propagação muito mais ampla do que a que tinha matado dois milhões de pessoas na época de Cixi, ficou muito contente. * ** A China de Mao tem óbvias semelhanças com a história da União Soviética da fase inicial, abrangendo também uma área vasta e dividida, com um centro fraco. Mao, como Stalin, chegou ao poder armado de uma doutrina, o marxismo-leninismo, que prometia um paraíso terrestre sem diferenças de classe, depois que uma quantidade suficiente de inimigos burgueses fosse morta. Era uma arma filosófica sem trava de segurança moral. Ao longo dos anos 1920, Moscou tentou fomentar uma revolução mundial e viu no caos da China um território muito promissor. O Kuomintang Nacionalista, no poder no período de 1927-1945, era bastante de esquerda em sua retórica e tinha uma base bem grande para ser o parceiro preferido dos russos. Dessa maneira, por muitos anos, o ainda minúsculo Partido Comunista Chinês teve ordem para cooperar com — e infiltrar-se entre — os nacionalistas. Líderes do Kuomintang iam a Moscou ouvir e aprender. Porem, quando Chiang Kai-shek deu uma guinada para a direita, no fim dos anos 1920, e começou a persegui-los, os comunistas se viram obrigados a recuar para o noroeste, para o território ermo perto da fronteira russa. O Kuomintang pressionou-os mais e mais, até que, em 1934, um importante exército comunista foi cercado e levado à beira da aniquilação. O recuo desesperado através de terreno inóspito, para se juntar a outras forças Vermelhas, fico conhecido como a “Longa Marcha”. Na realidade, foi uma série de marchas, uma retirada fugindo do exército nacionalista. Seu maior impacto político foi elevar Mao, que tinha caído em desgraça, a líder de fato dos comunistas da China. Desde então tem sido usada como parte do mito maoista de fundação, uma história de esconderijos em encostas de morro, heroicas travessias de rios e desesperadas batalhas em montanhas, um mito cujos detalhes estão provavelmente soterrados sob uma avalanche de cartazes, filmes e desejos de sucesso reprimidos. O Museu Nacional da China na praça Tiananmen, em Pequim, em frente
ao mausoléu de Mao, tem no centro uma sala de pinturas épicas sobre a Longa Marcha. Do ponto de vista técnico pelo menos, algumas são muito boas. Stalin acompanhou Mao atentamente desde seus primeiros dias de líder guerrilheiro em Xangai, contudo por muito tempo evitou fazer uma escolha. Não só apoiou Chiang Kai-shek, mas manteve o filho de Chiang em Moscou como refém. Quando Chiang foi sequestrado por um rival e Mao quis matá-lo, Stalin interveio e o salvou. Quando os japoneses atacaram a China, em 1937, era do maior interesse de Stalin que tanto comunistas como nacionalistas deixassem de lado suas diferenças e se unissem contra os invasores. Mao, porém, jogando suas cartas com implacável frieza, manteve distância. Com um exército menor e menos treinado do que o de seus rivais, governando por meio do terror e do expurgo, Mao cuidadosamente construiu uma posição, fortalecendo sua base no noroeste da China, enquanto os invasores e os nacionalistas travavam combates no litoral e nas planícies. Apesar de quase destruídos logo depois da Segunda Guerra Mundial, os exércitos comunistas chineses sobreviveram graças ao apoio de Stalin. O envolvimento deles na luta contra os japoneses veio tarde. Mao sempre tivera a intenção de liquidar Chiang Kai-shek, mas depois de ter enfraquecido bastante os aponeses. Agora, centenas de aviões, tanques e peças de artilharia, centenas de milhares de metralhadoras e fuzis, provenientes de japoneses capturados e de estoques alemães, foram entregues a Mao pelos russos. Treinamento militar — oferecido em parte, aparentemente, por antigos soldados aponeses — veio no pacote, assim como tropas coreanas e soldados chineses que tinham lutado do lado aponês na Manchúria. Os russos também ajudaram a consertar ferrovias e pontes chinesas. Em troca, Mao enviava alimentos para a Rússia. Num estranho eco da decisão tomada por Stalin nos anos 1930asdeterríveis exportarepidemias grãos para Ocidente de de comprar instalações industriais, isso para de ofome russas,a afim troca alimento por indústria feita porcontribuindo Mao deflagrocom crises de fome em seus próprios territórios. Quando as forças de Chiang se juntaram à guerra total, em 1947-1948, os comunistas deviam uma grande soma aos russos, coisa que Mao jamais reconhece publicamente.44 Os nacionalistas acabariam caindo, como resultado de comando militar medíocre, de corrupção generalizada e da exaustão de um movimento que vinha lutando contra os japoneses havia dez longos anos. Os soldados de Mao usavam táticas de terror, forçando, por exemplo, os moradores da cidade de Changchun a passarem fome, e provocaram, segundo estimativas, trezentas mil mortes para conseguir sua rendição. Chiang Kai-shek retirou-se para a ilha de Taiwan, onde seus sucessores, pelo menos em tese, até hoje se consideram o legítimo governo de toda a China. o
A proclamação da República Populardedapessoas. China por Mao Tsé-tung, 1 de outubro de 1949, oe a converteu no governante de 550 milhões Enquanto o Ocidenteem já se recuperava da guerra Europa e a América se compraziam numa abundância material e numa liberdade individual que a humanidade jamais conhecera, os chineses padeciam o terror e a fome. Essa situação não terminou em cataclismo, mas em concessões que acabaram criando o gigante econômico que é a China hoje. Como e por que isso aconteceu é uma história complicada e trágica, com lances de heroísmo. O principal responsável por livrar a China do maoismo foi um diminuto e bravo ex-seguidor de Mao, Deng Xiaoping. Levando em conta o impacto do país que ele criou, Deng pode muito bem ter sido o ser humano mais influente da última parte do século XX. Mas, antes de estudarmos para onde ele conduziu a China e por que fez essa grande guinada, precisamos entender de onde ele tirou a China. As capturas territoriais e os expurgos políticos de Mao no começo dos anos 1950 mataram três milhões de pessoas. Muitas foram levadas ao suicídio — na cidade de Xangai tanta gente se jogou de 45 telhados que alguns prédios altos ficaram conhecidos como “paraquedas”. Mas isso foi só o começo. Dois autores, Jung Chang e Jon Halliday, afirmam que o sistema de prisões e campos de trabalhos
forçados estabelecido por Mao, imitando o sistema de gulag soviético, pode ter matado 27 milhões. Ao contrário da União Soviética, porém, os assassinos de Mao preferiam que o terror fosse visto e ouvido. Muitas execuções eram realizadas publicamente, perante multidões obrigadas a assistir: o efeito psicológico de Mao sobre os chineses foi sem dúvida ainda maior que o de Stalin na psique russa. A grande ambição de Mao era fazer da China uma superpotência mundial, de preferênciaa superpotência mundial. Para tanto, seria preciso transformar um país de camponeses num gigante industrial. Ele pretendia fazer isso em poucos anos, tirando dos camponeses quantidades cada vez maiores de alimento para trocar por know-how soviético e criando grandiosos sistemas industriais e de irrigação. Nada disso era srcinal: também foi tomado de empréstimo de Stalin. Mas, em 1950, Stalin já tinha a bomba atômica, bem como status de imperador soviético, e saíra vitorioso de uma guerra mundial. Mao decidiu que para ultrapassar Stalin precisava copiá-lo numa escala maior e numa velocidade ainda mais alucinada. Os resultados vieram em escala maior, sem dúvida. O chamado Grande Salto para a Frente, que em parte criou e em parte coincidiu com os quatro anos de fome, de 1958 a 1961, matou 38 milhões de pessoas, segundo estimativas, a maior matança seletiva da história. Mao não demonstrou, absolutamente, piedade alguma ou sequer grande interesse. Com certeza sabia o que estava acontecendo, porque até mesmo funcionários subservientes do partido apresentavam relatórios. As posses de terra de camponeses foram coletivizadas para que o Estado pudesse ficar com mais alimentos. Ele costumava zombar dos camponeses, chamando-os de gananciosos e preguiçosos, ameaçando reduzir mais ainda suas rações. Dizia que os cadáveres serviriam para fertilizar a terra. As pessoas recebiam ordem para derreter todo o metal que tinham fabricar e depois alimentarplanejamento, fornalhas de quintal. Canais, barragens e reservatórios gigantescos forampara construídos sem qualquer tão malfeitos que muitos desabaram, provocando desastres humanos e ambientais. Uma das ideias mais lunáticas de Mao foi reduzir o desperdício de alimentos acabando com todos os pardais da China. Para isso, todo mundo deveria fazer barulho para que os pássaros não pudessem pousar nunca e morressem de cansaço no céu. Funcionou o suficiente para ajudar na propagação de pragas de que os pardais se alimentavam. Esses espasmos de frenética atividade coletiva eram criados porque Mao não perdia de vista a ideia de tornar a China todo-poderosa. Primeiro, dizia, a China controlaria o Pacífico com uma imensa marinha e, depois, finalmente, o mundo. Mao tinha ambições planetárias. Falava em criar um “comitê de controle da terra” com um plano maoista único e uniforme para toda a humanidade. Os custos disso para os próprios chineses eram irrelevantes. Chang e Halliday citam uma declaração de Mao em Moscou, em 1957, quando disse estar preparado para sacrificar trezentos milhões de chineses — mais ou menos metade da população do país àquela época — pela vitória da revolução mundial. Sua ânsia de ajudar os norte-coreanos na guerra contra o Ocidente, enviando dezenas de milhares de soldados chineses para lutar, e seu entusiasmo pelo uso de armas nucleares sugerem que a declaração não era brincadeira. * ** Maio de 1968 foi um mês de turbulência. No Ocidente, a revolução hippie, a era de “paz e amor” e do “flower power ”, era contestada por revoltas estudantis. Em Pequim, vivia Deng Pufang, brilhante aluno de física de da 25 China, anos. Sua foranainusitadamente abençoada. Como filho mais velho da de capital, um dos ao líderes comunistas foravida criado bela e exclusiva área de Zhongnanhai, no centro lado da Cidade Proibida. Era onde Mao Tsé-tung e outros altos líderes comunistas viviam, no que já foi descrito como “um mundo encantado de lagos, parques e palácios, onde Marco Polo passeou e Kublai
Khan construiu seu lugar de recreação; onde imperadores e imperatrizes, concubinas e eunucos passavam suas horas de lazer”.46 Mas Deng Pufang estava num estado lamentável. Fora espancado por “Guardas Vermelhos” até virar uma massa ensanguentada. O pai fora denunciado como “simpatizante do capitalismo” e os filhos já tinham sido forçados a delatá-lo publicamente. O jovem jazia em poças de sangue no piso de concreto de um antigo dormitório universitário arrebentado, no quarto andar. A janela fora arrancada. Os agressores tinham dito a Deng Pufang que ele jamais sairia vivo daquele quarto — a única saída era a janela. Deng Pufang disse que, em desespero, pulara, o que não era incomum. Uma das táticas usadas pela Guarda Vermelha era “suicidar”, palavra que significava uma mistura de se matar e ser morto. O fato é que ele foicuidados encontrado mutilado pavimento, com apara coluna esmagada. terteve sidoacurado, recebesse médicos, mas,noquando foi levado o hospital por Poderia passantes, entrada se barrada — o filho de um simpatizante do capitalismo não tinha direito a tratamento de saúde. Deng Pufang foi abandonado, para que cuidasse de si como pudesse, num piso úmido com outros pacientes mutilados. Incrivelmente, sobreviveu. Paraplégico, aprendeu a tecer cestos de arame para ganhar o dinheiro da comida. Durante um ano, os pais não tiveram a menor ideia do que lhe acontecera. O pai era Deng Xiaoping. Homem enxuto e vigoroso, que tinha comandando exércitos comunistas na vitória final contra os nacionalistas em 1948-1949, ele fora um dos camaradas de Mao na Longa Marcha. Na verdade, Deng tinha sido um dos seus favoritos — Mao o chamava de “o homenzinho”. Como Mao, Deng vinha de uma família de agricultores relativamente abastada, de um remoto rincão da China rural, e fora criado numa grande casa coberta de palha a quilômetros de distância da estrada mais próxima. A China do começo do século XX era, como vimos, um lugar politicamente complicado e perigoso. O pai de Deng era um respeitado reformista político e também um aliado do chefe de clã local, o que, naquele lugar e naquele momento, não era de todo paradoxal. Seu filho inteligente, lembrado pelos colegas de brincadeiras como particularmente bom em cambalhotas, foi estudar na cidade mais próxima com um professor radical, que preparava alunos para viajarem ao exterior dentro de um programa de estudos sino-francês. Em 1920, Deng tomou um navio para a França, onde o dinheiro para os estudos acabou. Em Paris, trabalhou no salão das fábricas da Schneider e Renault, em restaurantes, sobrevivendo à base de leite e croissants. No convívio com outros pobres imigrantes operários, começou a absorver as ideias revolucionárias que circulavam na Europa naquela época, e em 1925 tornou-se comunista, conhecendo Zhou Enlai, em comando Mao, revolucionário que também estava Paris. Após uma visita Moscou, Dengfuturo voltousegundo para a China já como de perfeito e logo em mergulhou no submundo da a política de Xangai e da revolta guerrilheira. Depois dessa iniciação, ingressou nas forças de combate de Mao durante a Longa Marcha. Após a vitória de Mao, revelou-se seguidor leal e implacável, primeiro em Sichuan, sua província natal, e, mais tarde, em 1952, em Pequim, como membro da camarilha governante. Deng tinha apoiado os brutais expurgos de “direitistas” e a loucura do Grande Salto para a Frente. Ficou conhecido como o menino-prodígio de Mao e, em 1955, era membro do politburo e o quarto homem mais poderoso da China. Deng, portanto, não era nenhum liberal. Mas eram tempos de desespero. Quando a Revolução Cultural estava em andamento, as políticas adotadas por Mao já o tinham convertido no maior assassino da história humana. Pelo começo dos anos 1960, a destruição econômica e humana provocada pelo Grande Salto para a Frente era tão espetacular que até a camarilha de Mao admitia que não dava para continuar assim. Numa enorme conferência, em 1962, de sete mil delegados do Partido Comunista, a política de tomar alimento e outros bens essenciais para exportar e investir tudo em fábricas e armamentos foi drasticamente reduzida — em direta contradição com tudo aquilo que Mao defendia.
Os camponeses tiveram permissão para voltar a cultivar a própria terra. A fome começou a ceder. Na nova atmosfera liberal, Deng, um dos primeiros agentes da mudança política, citava o dito de um camponês para quem não importava se o gato era preto ou branco; se pegasse o rato, era um bom gato. Essa expressão de pragmatismo econômico era coisa que Mao há muito tempo censurava. Deng parecia querer dizer que a opção entre capitalismo ou marxismo era menos importante do que o crescimento. O freio de mão na política tinha, na verdade, sido imposto a Mao pelos que o cercavam — Zhou Enlai, o presidente chinês Liu Shaoqi e o próprio Deng. O maoismo parecia estar em retirada. A Revolução Cultural, desencadeada em 1966, foi a resposta de Mao. Apesar de ter começado em torno de uma questão que parecia menor — uma peça histórica representada em Xangai, que Mao considerou um ataque pessoal —, sua intenção era virar a sociedade chinesa pelo avesso. Não pela primeira vez, Mao usaria a destruição criadora para se fortalecer contra os inimigos. Quatro seguidores extremistas, incluindo sua esposa aterradora, Jiang Qing, ex-atriz de Xangai, comandaram o assalto contra todas as formas de autoridade abaixo da do próprio Mao. Os jovens — fossem estudantes de qualquer nível ou operários de fábrica — e qualquer pessoa que desempenhasse uma função básica o trabalhasse como auxiliar de escritório podiam ser recrutados como “Guardas Vermelhos”. Estimulados por cartazes violentos e escabrosamente ultrajantes e organizados em destacamentos que eles próprios formavam, usando as braçadeiras vermelhas que os distinguiam, eles destruíam salas de aula e escritórios, aterrorizavam professores e burocratas e, numa orgia de violência de quadrilha, com frequência se voltavam uns contra os outros. Escritores, artistas e muitas vezes pessoas que apenas usavam óculos eram detidos, tinham a cabeça raspada multidões aos gritos. de idade eram obrigados a usar bonés dee eram burro,denunciados cartazes depor madeira pendurados no Homens pescoço eemulheres eram espancados, às vezes até morrer. Muitos se matavam. Filhos denunciavam pais, alunos denunciavam professores. Na primeira fase, estimase que meio milhão de pessoas morreram, mas alguns autores calculam que o total de mortos durante a década em que durou a Revolução Cultural, de 1966 a 1976, chegou a três milhões — e isso em assassinatos deliberados, com frequência públicos, e não em consequência da fome ou de políticas equivocadas. Um estudo estima um número muito maior, cerca de vinte milhões. A Gangue dos Quatro jurou derrotar os “quatro Velhos”. Queriam dizer “Velho Pensamento, Velha Cultura, Velhos Costumes, Velhos Hábitos”. Na prática, isso significava que qualquer coisa ou pessoa associada à tradição chinesa deveria ser destruída — templos, práticas religiosas de todas as espécies, cerimônias de casamento e festivais tradicionais, livros insubstituíveis, pinturas, esculturas e edifícios antigos foram atacados. O entusiasmo voraz de hoje pela compra de objetos de arte chinesa antiga em leilões ocidentais se deve, em parte, à escassez de objetos culturais chineses depois da Revolução Cultural. Nem mesmo os revolucionários franceses mais violentos, tentando eliminar o calendário e a religião do ancien régime , ou os leninistas de Moscou tinham tentado cavar um fosso divisório tão profundo entre o passado e o presente. Foi essa a tempestade que desabou sobre a família de Deng Xiaoping e do presidente Liu Shaoqi. Mao — bem a salvo de tudo, numa propriedade distante de Pequim — tinha mandando os Guardas Vermelhos “bombardearem o centro”. Numa festa do seu 73o aniversário, ele fez um brinde à “guerra civil total em todo o país”. Como resultado, o complexo de líderes de Zhongnanhai logo foi cercado por um vasto acampamento de rebeldes com megafones e faixas de protesto. Em o1 de janeiro de 1967, pessoas que trabalhavam para a central telefônica dos líderes comunistas e que passaram a se denominar “equipe de combate” invadiram e denunciaram Liu e Deng. Atrás, veio o pessoal de escritório, agora transformado em “Regimento da Bandeira Vermelha”. Seguiu-se um brutal jogo de gato e rato, com a humilhação pública de líderes que eram obrigados a ficar em “posição de avião”, com os braços por cima e por trás
da cabeça, e numerosas reuniões de “autocrítica”. Liu se mostrou duro de roer. Depois de levar uma surra particularmente severa, seus filhos pequenos foram trazidos para verem o presidente e a esposa sofrerem. Com setenta anos e sofrendo de diabetes e pneumonia, ele aguentara três anos de agonia e humilhações, recusando a rebaixar-se diante de Mao, até finalmente morrer. Deng, talvez por causa de sua proximidade com Mao durante os anos da Longa Marcha, não foi tão maltratado. Mao anunciou que ele “não deve ser liquidado com um só golpe”. Mas, depois de preso, foi destituído de todas as funções. Em outubro de 1969, ele e a esposa foram exilados de Pequim — onde, sem que soubessem, o filho Pufang ainda jazia no chão de uma cela de concreto, sem receber tratamento médico — e mandados para Jianxi, no sul. Ali, passaram a levar uma vida simples, cortando lenha para servir de combustível, cultivando hortaliças para comer e trabalhando numa oficina de conserto de tratores. Deng, ao que parecia, ainda era um bom operário, popular entre os colegas, e passava boa parte do tempo caminhando para manter a forma e lendo compulsivamente. Ele e a esposa estavam desesperados para se juntar a Pufang, que por fim foi morar com eles no verão de 1971, ainda num estado terrível. Deng, que não tinha sido muito presente como pai durante seus longos anos de soldado e líder, massageava o filho diariamente, para tentar trazer alguma vida de volta às pernas, virando-o a cada duas horas para evitar feridas. Em Pequim, a Revolução Cultural galopava em direção ao caos. Assim como a violência revolucionária da França culminara na execução da maioria dos líderes na guilhotina e assim como os velhos bolcheviques da Rússia tinham acabado com balas enfiadas na nuca, os líderes chineses começaram a se desentender. Lin Biao, que fora nomeado sucessor de Mao, tramou um golpe e foi descoberto. Ele para e a família de avião. Deng, que foraa inimigo de de Lin, teve permissão voltar amorreram Pequim enum foi misterioso lentamente desastre reabilitado. Recusou-se, porém, participar autocríticas muito convincentes, fingindo-se de surdo nas reuniões do partido e temperando suas autoanálises com muito sarcasmo. Mao tinha decidido que a avaliação correta da Revolução Cultural (e do Grande Salto para a Frente) é que ela fora “70% positiva, 30% negativa”. Deng, apesar da insistência da Gangue dos Quatro, pedi licença para discordar. A essa altura, Mao estava muito doente, com uma rara enfermidade das células nervosas. Zhou Enlai, muito amado na China, morreu antes dele, em janeiro de 1976. Zhou, antigo camarada de Deng, protegera-o em sua desgraça e talvez lhe tenha salvado a vida. Mas agora a Gangue dos Quatro retomou os ataques a Deng, considerando-o seu principal inimigo. Na morte, Zhou voltaria a protegê-lo — e realizaria seu feito mais notável, pois, depois de morrer, Zhou extinguiu a Revolução Cultural e sepultou o maoismo. Foi assim. A Gangue dos Quatro não quis muita manifestação de luto. Zhou tinha sido maleável, mas moderado, não um deles. O povo da China parecia abrigar outros sentimentos. Já houve sinais de rebelião contra a Revolução Cultural em Sichuan, que precisou ser fechada para visitantes estrangeiros, e em Xangai. Em Nanquim, houve funerais em memória de Zhou Enlai e em Wuhu surgiram cartazes denunciando a Gangue dos Quatro como “chatos espalhadores de boatos” e chamando Jiang Qing de “cobra venenosa, mulher diabólica!”. O mais extraordinário, porém, foi o que aconteceu aquele ano na praça Tiananmen, no coração de Pequim, o vasto espaço aberto na cidade velha por ordens de Mao e palco do massacre de 1989. No mês de abril foi realizado um velho festival chinês dedicado às almas dos que partiram. Com o advento do comunismo, o festival fora oficialmente redefinido como um momento relembrar os Primária mártires revolucionários. Zhou podia estar sendo “esquecido”, mas ospara alunos da Escola Cow Lane não se deixaram tapear. Foram à praça e puseram uma coroa de flores. A coroa foi retirada de imediato, mas alunos do secundário apareceram em seguida. E depois operários de fábrica, empregados
de escritório, estudantes de outras escolas e universidades, até mesmo soldados. Essas coroas de flores ficaram lá. Em muitas delas, apareceram slogans denunciando a Gangue dos Quatro nos termos mais rudes. Uma dizia o seguinte sobre Jiang Qing: Você deve estar maluca Por querer ser imperatriz Dê uma olhada neste espelho E veja o que de fato é!47 A Gangue fatode estava cada vez mais horrorizada. No—diao do próprio festival, de abril, calcula-se quede cerca dois olhando, milhões de pessoas foram para a praça maior protesto desde5 que os comunistas assumiram o poder em 1949. Seria o início de um levante geral? A multidão e as faixas foram removidas, e a Gangue continuou a esbravejar contra Deng e até em resposta a um terremoto, que tinha matado 250 mil pessoas, chegando a exigir que a cidade atingida, Tangshan — como se tivesse culpa do que aconteceu —, se redimisse intensificando seus ataques à “linha revisionista contrarrevolucionária” de Deng Xiaoping.48 Mas o que a multidão da praça Tiananmen tinha demonstrado era que a anarquia orquestrada da Revolução Cultural agora repugnava a China, e quando Mao morreu, em setembro de 1976, a Gangue logo foi presa no que, a rigor, se configurou como um golpe dos moderados. Jiang Qing, que demonstro admirável insubordinação no tribunal, acabou se matando. Deng continuava, oficialmente, em desgraça, mas um ano depois estava mais uma vez reabilitado e já em processo de assumir o poder real. Foi mais esperto do que Hua Guofeng, que Mao designara se sucessor, e incentivou as críticas à Revolução Cultural na “Primavera de Pequim”, de 1976. Deng nunca foi um liberal. O protesto e o massacre da praça Tiananmen, que viriam depois, mostraram quanto podia ser implacável, quando se viu espremido entre os estudantes que exigiam direitos civis de um lado e, do outro, os maoistas sinistramente de esquerda ainda no partido. Mas abriu a China à influência externa, revogou as políticas extremistas que tinham causado tanta miséria e preparou o país para seguir os passos econômicos dos “Tigres Asiáticos” à sua volta. Ele demonstrou uma espécie de bravura à qual talvez não se dê a devida importância, a bravura do sobrevivente determinado, do homem que abaixa a cabeça e segue em frente, sem nunca de fato se submeter a ninguém, sempre de olho naquilo que considera essencial. É a vitória da tartaruga. Deng construiu a China moderna a partir das ruínas do maoismo, esperando, no decorrer dos dramas e dos desastres, que seu momento chegasse — jamais cedendo, jamais capitulando, mas evitando sempre o último e letal confronto. A China de hoje, a China de Deng, continua, em certo sentido, um lugar frio, insensível. Apesar dos superlativos que possam ser aplicados ao seu crescimento, ao seu poderio industrial, às suas vastas cidades novas e ao seu consumismo desenfreado, ainda é um país onde os trabalhadores mais pobres são maltratados, onde crianças podem ser atropeladas por motoristas que dão ré e passam por cima para não terem que pagar despesas de hospital e onde a bondade de estranhos é mais rara do que em qualquer outra parte. Salvo que esta história tem um desfecho. Deng Pufang, o filho que foi jogado pela janela e fico paralítico, que quase morreu e foi amorosamente cuidado no exílio pelo pai, sobreviveu. Tornou-se um filantropo e um militante apaixonado, estabelecendo o Fundo de Previdência para os Deficientes Físicos da China. Foi um dos organizadores da triunfantemente bem-sucedida Olimpíada de 2008, em Pequim. Figura reverenciada presa a uma cadeira de rodas e um líder de outro tipo, ele também traz uma
mensagem dos dias mais sombrios dos anos 1960. O pai conduziu a China à prosperidade, e, na China de hoje, do milagre econômico e do crescimento alucinado, a mensagem de bondade e de dedicação do filho tem exatamente a mesma importância. Jihad Se alguém dissesse aos líderes americanos nos anos 1970 que eles venceriam a Guerra Fria, mas que o grande problema que enfrentariam em seguida no exterior seriam as guerras de religião, eles muito provavelmente teriam reagido com um riso nervoso de descrença. Alguns talvez pensassem tratar-se de uma referência a Israel. Depois que os nazistas assassinaram seis milhões, o apoio americano a um Estado judeu na Palestina fora decisivo — mas também uma provocação. A indignação de muçulmanos árabes desapossados depois de 1948 e de seus defensores no Oriente Médio tinha sido insuficiente para impedir o desenvolvimento de um forte Estado israelense, uma espécie de Estado-fortaleza com respaldo americano. Mas isso, somado à sujeição do Ocidente ao petróleo do Oriente Médio e, portanto, a regimes pró-ocidentais, porém não democráticos, atraiu para os Estados Unidos o ódio de muitos muçulmanos. Durante a longa luta contra os soviéticos, isso parecia irrelevante. O mundo islâmico era militar e economicamente fraco — e ainda é. Israel, sempre que atacado, repelia seus inimigos sem dificuldades. E os sequestros de avião por terroristas eram irritações menores, não eram? Olhando para trás, o primeiro sinal aziago tinha surgido já em janeiro de 1979, no Irã, quando um golpe contra o regime do repressivo xá Mohammad Reza Pahlavi, respaldado pelo Ocidente, culmino numa revolução islâmica. Os americanos foram humilhados. Logo ficou claro que depois de tanto tempo concentrados na ameaça soviética, os governos ocidentais estavam espetacularmente ineptos para lidar com o islamismo ressurgente. Nos oito anos de conflito entre os dois rivais, que começou em 1980 e resultou em um milhão de mortos, os Estados Unidos e seus aliados decidiram ficar com a sórdida ditadura de Saddam Hussein no Iraque a apoiar o aiatolá Khomeini no Irã. A doutrina do “inimigo do me inimigo é meu amigo” raras vezes foi tão dramaticamente desmentida. Dois anos depois do fim da guerra com o Irã e afundado em dívidas, Saddam invadiu o pequeno Kuwait, rico em petróleo. Tropas americanas, britânicas e de outros países foram obrigadas a irem à guerra para ejetá-lo de novo — mas, respeitando estupidamente resoluções da ONU, não prosseguiram até a capital, Bagdá, para tirá-lo do poder. Esse constrangimento foi completado pelos erros do Ocidente no Afeganistão. Como vimos, os Estados Unidos responderam à invasão russa de 1978-1979 respaldando grupos islâmicos radicais, incluindo grupos da Arábia Saudita, na guerra de guerrilha de dez anos contra o exército russo. Ao proceder dessa forma, os americanos fortaleceram e fomentaram uma militância islâmica ainda mais ampla, representada pelo severamente repressivo Talibã no Afeganistão e pelos jihadistas mundiais da Al-Qaeda. Esta organização terrorista foi formada em 1988 e comandada por Osama bin Laden, filho de um magnata saudita do ramo da construção, com um ardente ódio contra ocidentais. Bin Laden queria que o governo saudita usasse seus guerrilheiros contra a invasão iraquiana do Kuwait e ficou furioso quando um país muçulmano preferiu ajudar os infiéis americanos. Bin Laden mudou-se para o Sudão e de lá para o Afeganistão, não fazendo nenhum segredo de suas esperanças de que houvesse uma campanha geral contra os americanos. Era como se Washington não pudesse levar a sério uma ameaça representada por inimigos inspirados por sentimentos religiosos. Isso era estranho, sobretudo levando-se em conta que o apoio americano a
Israel era, em si, uma causa religiosa, apaixonadamente promovida não apenas por judeus americanos, mas também por cristãos evangélicos americanos. O desprezo pelo materialismo americano manifestado por radicais muçulmanos tinha seu equivalente no desprezo cristão pelo atrasado islã. Enquanto isso, as guerras nas fronteiras de Israel lhe deram inimigos no Irã, no Iraque, na Síria e no Egito. Dois dos principais gritos de guerra de Bin Laden para mobilizar os extremistas muçulmanos eram a libertação da Palestina e a destruição do Estado judeu de Israel, ambições que o Irã também partilhava. Para a mente islâmica, os Estados Unidos e Israel estavam inextricavelmente ligados e o Ocidente era, em essência, hostil aos muçulmanos. Provas disso vieram, em parte, da fragmentação da Iugoslávia em pequenos países — incluindo a predominantemente muçulmana Bósnia-Herzegovina — com sua insistência em antigas diferenças. O resultado foram cenas horríveis, que lembravam aos americanos e aos europeus o genocídio nazista. A expressão facial do presidente George W. Bush quando foi informado dos ataques da Al-Qaeda às torres gêmeas do World Trade Center, em Nova York, em 11 de setembro de 2001, foi uma imagem definidora: a última superpotência do mundo ouvia a notícia de que a história, afinal, não tinha terminado. Os ataques terroristas em Nova York e Washington, que mataram quase três mil pessoas, nessas duas cidades e na Virgínia e na Pensilvânia, foram meticulosamente planejados e executados. Provocaram uma onda de raiva e orgulho patrióticos nos Estados Unidos. Uma rápida campanha militar dos Estados Unidos e aliados no Afeganistão, onde Bin Laden e sua organização tinham suas bases, derrubou o regime talibã que lhes dera guarida. Foi o começo de uma longa guerra, que ainda não terminou e na qual o Ocidente, com a ajuda de aliados locais, tentou e não conseguiu subjugar a resistência afegã e criar um Estado democrático. A corrupção e ao impopularidade do regime de Cabul e a facilidade com que ose combatentes talibãs escapavam para Paquistão pela fronteira tornaram impossível para americanos europeus ganharem a guerra, ainda que Bin Laden tenha sido finalmente localizado dentro do Paquistão e morto em 2011. Significativa, também, foi a decisão do presidente Bush e seus aliados, com Tony Blair, da GrãBretanha, à frente, de invadir o Iraque por ter ignorado resoluções da ONU sobre desarmamento. Blair enfrentou grandes manifestações contra a guerra, enquanto aliados como a França protestaram com veemência contra a invasão. Mais tarde, ficou claro que Saddam Hussein não tinha as armas de destruição em massa que Bush e Blair alegaram que tinha e que ele provavelmente cometeu um erro de cálculo ao julgar que estaria mais seguro se achassem que as possuía. De qualquer maneira, um intenso bombardeio a Bagdá começou em março de 2003, levando a uma rápida vitória contra o exército de Saddam. Ele, que já fora o menos ruim dos amigos de Washington, acabou perseguido, capturado e enforcado. Raramente, porém, o êxito no campo de batalha criou tantas dificuldades. A desordem generalizada, seguida por uma brutal guerra civil, obrigou Estados Unidos, Grã-Bretanha e outros países a manterem um grande número de soldados no Iraque até 2011. Pavorosos abusos de prisioneiros, a incapacidade, demonstrada pela Coalizão de reduzir a violência sectária e uma crise caótica de refugiados debilitaram a autoridade moral que as forças ocidentais invocavam no começo do conflito. As estimativas sobre o número de civis iraquianos mortos variam muito, de 150 mil a mais de seiscentos mil. As guerras do Afeganistão e do Iraque foram êxitos no campo de batalha e fracassos estratégicos. Lembraram ao mundo que nem mesmo a superpotência supostamente dominante pode fazer o que quer e que invadirOcidental culturas (ee terras) alheias paradaimpor a democracia é uma ideia Funcionou na Alemanha no Japão depois Segunda Guerra Mundial, mas arriscada. aqueles países já tinham passado por alguma experiência democrática prévia e estavam militarmente arrasados depois de um conflito global. Além disso, preocupavam-se mais com a ameaça de hegemonia soviética do que de
hegemonia americana. Mais genericamente, as experiências afegã e iraquiana contestaram a ideia de que o mundo inteiro estaria convergindo para um único sistema político-econômico ou seria capaz de convergir. Em vez do fim da história, continuamos a ouvir sobre guerras de culturas ou de “choques de civilizações”, incluindo religião. Em partes do Ocidente onde vivem grandes populações muçulmanas, como Inglaterra, Holanda e França, detectava-se um novo gume de suspeita. Em partes do mundo muçulmano, como Iraque, Paquistão e Egito (mesmo depois da derrubada do ditador Mubarak) que tinham populações cristãs, essas minorias se sentiram mais ameaçadas. Com a abertura de um grande e secreto centro de detenção americano para suspeitos de terrorismo na baía de Guantánamo, em Cuba, empregando a tortura e adotando leis de segurança mais severas, ficou claro que a “guerra contra o terror” tinha causado grandes danos às sociedades abertas — e também aos seus mais altos ideais. Dilemas sobre como lidar com perigosos críticos islâmicos levaram o Ocidente a lidar mais uma vez com problemas levantados, mas nunca resolvidos, pelo julgamento de Sócrates em Atenas. Ostentação Tivesse o Ocidente pelo menos continuado a dominar economicamente, já seria alguma coisa. Mas, em 2009, a República Popular da China passou a contribuir com mais de metade do crescimento econômico global. A China hoje não faz nada de novo. Está passando pela mesma mudança do campo para a cidade, primeiro a manufatura para industrial, a mais sofisticada, que ocorreu com a Grã-Bretanha leste dos para Estados Unidos na básica, primeiradepois revolução e com o Japão, a Coreia e Taiwan depois dae o Segunda Guerra Mundial. As horrendas condições de trabalho nas fábricas, o desfrute estridente da abundância material pelos privilegiados nas cidades e certa negligência com a poluição enquanto o país se lança inteiro e a todo custo no esforço do crescimento — tudo isso já foi visto antes. É a conhecida troca de uma coisa por outra mais valiosa. Há apenas três diferenças. A primeira é que a China é governada por homens que se dizem comunistas. A segunda é que é um país muito grande. E a terceira é que tudo acontece à velocidade da luz. No ano de 2025, espera-se que a China tenha 219 cidades com mais de um milhão de habitantes, em comparação com 35 na Europa.49 Seu crescimento afetou praticamente todos os cantos da Terra. A China está se empanturrando de minerais e de terras na África, na Mongólia, na América Latina e na Austrália. Sua manufatura de baixo custo tem saciado o Ocidente de artigos baratos, ajudando a destruir indústrias manufatureiras ocidentais. Em consequência, dispõe de um vasto baú de moeda estrangeira que, como diz o escritor Jonathan Fenby, “daria para comprar toda a Itália ou toda a dívida soberana de Portugal, Irlanda, Grécia e Espanha na posição de 2011, mais o Google, a Apple, a IBM e a Microsoft, mais todos os imóveis de Manhattan e de Washington e mais as cinquenta franquias do segmento esportivo mais valiosas do mundo”.50 Em 2010, a China teve um superávit de 273 bilhões de dólares em suas relações comerciais com os Estados Unidos. Não há exemplo significativo na história de potência econômica velada que não se transformasse numa potência política e quase sempre militar. Desde que disponham de uma força militar inchada tecnicamente avançada, conseguem preservarnoseu predomínio um XX. bom Está tempo depois de perder a evantagem econômica. Foi países assim com a Grã-Bretanha começo do século sendo assim agora com os Estados Unidos. Mas o custo é muito alto: energia e riquezas que poderiam ter sido usadas para recarregar uma economia estão sendo empregadas em compromissos externos. A economia
americana ainda é quatro vezes maior que a da China, porém os índices de crescimento chinês estão diminuindo a distância com rapidez impressionante. Estudos recentes sugerem que a China talvez ultrapasse os Estados Unidos já em 2020 e trinta anos depois sua economia seja duas vezes maior que a americana.51 O poder da China, portanto, mudará imensamente o mundo. Seus líderes ainda reivindicam a soberania sobre Taiwan, bem como sobre pequenas ilhas no mar do Sul da China, e se recusam a reconhecer protestos sobre abusos de direitos humanos dentro do país ou no Tibete. O crescimento da sua Marinha tem produzido marolas de inquietação regional, da Austrália e das Filipinas ao Vietnã e à Índia. As maiores dores de cabeça dos governantes comunistas da China, que já não se apresentam como frente tão unida como no passado, são internas e incluem a necessidade de níveis de crescimento constantemente altos, para manter satisfeita uma população mais afirmativa e mais voltada para o consumo, desafios à censura oficial, ameaças de poluição e as dificuldades de diversificar a economia. Proclamam sempre intenções pacíficas. Porém o poder econômico traz consigo poder político. Sempre trouxe, e à medida que os fundos de riqueza soberana chineses penetram mais fundo na vida corporativa ocidental, americanos e europeus percebem, com desconforto, que não sabem muito bem onde o governo chinês termina e o setor privado chinês começa. A China é também fator preponderante do grande desequilíbrio capitalista que veio depois da Guerra Fria. O Ocidente relaxou. Fez muito pouco e gastou demais, num processo para o qual muito contribuiu a deliberada desvalorização da moeda chinesa. A fragilidade do capitalismo ocidental de hoje foi demonstrada pela primeira vez na crise bancária de 2008, em essência não muito diferente da de 1929. Então, como antes, banqueiros vinham usando inéditas e mal compreendidas maneiras de emprestar mais dinheiro, incluindo entre seus clientes compradores de imóveis, que contavam com a alta dos preços para quitar suas dívidas. Complexos algoritmos usados para avaliar riscos significavam que apenas um número reduzido de pessoas, mesmo nos bancos relevantes, sabia o que estava fazendo. Isso poderia ter perdurado por muito tempo, em períodos de crescimento sempre positivo, mas, apesar de novos e importantes produtos eletrônicos geradores de renda, o boom não refletia uma força econômica subjacente. Os Estados Unidos compravam produtos baratos da China e viviam, a rigor, de crédito chinês. Quando, em 2007, a bolha imobiliária americana estourou, muitos bancos descobriram que estavam alicerçadas em ativos, obrigações colaterais de débito (CDOs) que nem de longe valiam o que se supunha. Grandes empresas faliram, e uma onda de fracassos inundou os Estados Unidos e a Europa, sendo necessárias operações onerosas por parte da Grã-Bretanha, da Irlanda e dos Estados Unidos para socorrer bancos. Só a ação rápida dos principais governos evitou uma recessão abrupta e generalizada, embora o Ocidente tenha mergulhado num período de baixo ou nulo crescimento e líderes políticos tenham perdido autoridade. Fizeram o que deveriam fazer, pois por trás da crise houve muita falta de presença de espírito e de iniciativa política. Nos Estados Unidos e em países europeus, com destaque para a Grã-Bretanha, os magnatas de um mundo financeiro desregulado tinham intimidado o resto do mundo. Velhas salvaguardas que mantinham a atividade bancária tradicional separada de formas mais arriscadas de investimento tinham desaparecido. A regulamentação era “de leve”. Banqueiros recebiam salários e bônus astronômicos sem provocar muitos comentários. Os políticos pareciam muitos felizes por receberem impostos oferecidos por um setor financeiro sem restrições, gastando-os em coisas que o eleitorado queria e sem fazer muitas perguntas. Enquanto isso, as economias ocidentais pareciam desequilibradas. Havia muito menos manufatura.
Tanto governos como indivíduos tinham aprendido a aumentar as dívidas, a gastar agora e pagar depois. A política econômica tinha quase desaparecido do debate político. Dessa maneira, quando o período de bonança acabou, veio o de prestação de contas e de angústia. Nos Estados Unidos, entre os republicanos, isso levou a um recrudescimento de uma retórica de livre mercado agressivamente antiestatal. Na Europa, países inteiros cambaleavam à beira da falência e corriam risco de saírem da zona do euro. Houve tumultos em Atenas, Londres e Madri, e protestos em Wall Street. Nada disso dava uma forte impressão de vitória do Ocidente. E o triunfo na Guerra Fria, que fez Washington dar cambalhotas de alegria diante do que chamava de novo mundo “unipolar” (conceito inexistente em geometria, imagine em política), foi seguido de uma dolorosa ressaca política. O predomínio da economia do Ocidente transferia-se para a China. A forma de capitalismo à Wall Street, tão na moda, sofreu um colapso nervoso. E, muito longe de não terem mais inimigos, os Estados Unidos e seus aliados eram desafiados no mundo inteiro por seguidores de uma religião antiga que parecia rejeitar todo o projeto de modernidade desenvolvido no século XX, mas que não poderia ser derrotada no campo de batalha. Alguma surpresa nisso tudo? O capitalismo financeiro sempre viveu de bolhas e colapsos. Onde quer que consigam se juntar, empresas ou indivíduos ricos, quando regulados de forma inadequada, conspiram contra o público. Adam Smith já nos avisara. As falhas deviam ser procuradas dentro das mesmas estruturas de democracia representativa que supostamente constituíam o grande trunfo do Ocidente: políticos que gastam dinheiro demais em campanha para serem duros com banqueiros e passam tempo demais preocupados com geopolítica para cuidarem da saúde de suas próprias economias. Os eleitores queriam artigos de baratos e crédito fácil, era muitoimensamente confortável dar-lhes Por de fim,Estado, a filosofia do capitalismo mercado moderno, embora superioro àque doexigiam. socialismo era estreita e sem base histórica. Colocava o consumismo num pedestal, ao mesmo tempo que subestimava instintos humanos de longo alcance, como a inquietação espiritual, o tribalismo e o medo. Mas eles não tinham desaparecido. A máquina pensante52 Em 11 de maio de 1997, houve um acontecimento em Nova York que merece ser lembrado num futuro distante. Alguém que era um bom candidato ao título de homem mais inteligente do mundo foi derrotado por um computador. Garry Kasparov é tido por muitos como o maior jogador de xadrez de todos os tempos, tão bom como o grande mestre que pertence a uma categoria à parte, só dele. Seria ocioso dizer que Kasparov jogava como uma máquina. Possuía memória assombrosa e um grande sentido de estratégia, mas também era corajoso e impulsivo. Judeu armênio reflexivo e belicoso, criado no mundo tenso e enérgico do xadrez soviético, tornou-se o número um do planeta com apenas 22 anos e manteve o título pela maior parte das duas décadas seguintes, até se aposentar, em 2005. Kasparov já tinha enfrentado máquinas. Em Hamburgo, em 1985, jogou partidas simultâneas contra 32 programas de xadrez e venceu todas. Quatro anos depois, numa partida em Nova York, a IBM desafiou-o com seu computador Deep Thought. Kasparov tinha avisado que, se perdesse, seria “desagradável” para a raça humana. Queria “ser o homem que salvou o orgulho humano”. Ganhou o jogo em duas horas e meia. Sete anos depois, a equipe da IBM apareceu com uma nova máquina, Deep Blue. Na Filadélfia, em 1996, Kasparov perdeu um jogo, mas voltou e ganhou a partida. Em seguida, veio a revanche anunciada com estardalhaço da mídia. Numa torre de Manhattan, o Equitable Center, a mídia mundial assistia ao que os dois lados descreviam como uma batalha épica entre o cérebro humano e o novo poder da
computação. Cartazes espalhados pela cidade mostravam Kasparov olhando fixamente para a frente, com a legenda: “Como é que se faz um computador piscar?” A revistaNewsweek trouxe uma capa berrante: “A última resistência do cérebro.” Será que tudo foi apenas exagero comercial? Nem tanto. Desde que o xadrez se espalhou pelo mundo a partir de suas srcens na Índia nos anos 500, primeiro através da Pérsia e do mundo muçulmano, e depois para a Europa, é reconhecido como um jogo especial, que testa ao máximo a memória e a capacidade de planejamento humanos. É frequente e naturalmente comparado à matemática: o cérebro bom em xadrez costuma ser bom em matemática. Mas o jogo também exige uma espécie de gênio que não pode ser reduzida a regras. É uma severa prova de lógica, mas sempre foi cercado de uma mística que os jogos de carta e outros jogos de tabuleiro, incluindo o rival chinês do xadrez, o Go, não têm. Feng-Hsiung Hsu, um dos cientistas responsáveis por Deep Blue, diz que desde os anos 1940 os teóricos da computação sonhavam com uma máquina capaz de jogar xadrez. Um dos pioneiros da Inteligência Artificial disse nos anos 1950: “Quem conseguir desenvolver uma máquina de xadrez bem53 sucedida dará a impressão de ter penetrado no âmago do esforço intelectual humano.” Kasparov concordava, mas estava disposto a provar que a máquina só conseguia jogar como máquina e que, em certo nível importante, era estúpida e não emanava qualquer energia criativa. O primeiro jogo pareceu confirmar a confiança de Kasparov — ele venceu fácil. O segundo jogo foi um momento decisivo. Para quem não joga xadrez, talvez seja difícil compreender a importância dessa partida, mas ela foi importante. Kasparov decidiu sacrificar um peão para ficar numa posição melhor posteriormente. Programas de jogo de xadrez são projetados para aproveitar vantagens de curto prazo e, portanto, Deep Blue deveria ter dito a seus jogadores não humanos que comessem o peão de Kasparov. Era o que ele esperava. Computadores jogam xadrez não por intuição, mas dando uma pontuação ou um número a todos as jogadas possíveis, depois examinando todos os movimentos possíveis do adversário, em seguida todas as possibilidades próprias de jogada e assim por diante. Fácil? O número de possíveis combinações de movimentos numa partida de xadrez é maior do que o número de átomos no universo. Enxergar apenas alguns lances adiante já requer poderes extraordinários de computação. Em vez disso, enxadristas humanos usam seu senso de padrões e a psicologia. Mas agora Deep Blue se comportava como um jogador humano (e muito bom). Depois de ficar algum tempo no que seus criadores chamaram de “modo pânico de execução”, a caixa de metal do tamanho de uma geladeira se recusou a comer o peão de Kasparov. Preferiu fazer outra mexida tática de longo alcance. Não estava ogando como máquina. Kasparov parece ter ficado amedrontado com a aparente intuição do computador. Pouco depois, reconheceu a derrota e saiu contrariado, balançando a cabeça. Na realidade, o computador tinha cometido um erro numa jogada posterior e Kasparov poderia ter empatado, em vez de perder — coisa que o deixou perplexo quando soube depois. Com base nisso, diz que não chegou realmente a perder a partida. Nos jogos seguintes, empatou três e perdeu o último, jogando tão mal que a rigor nem poderia ser considerado uma competição. Na entrevista depois da partida, perguntaram a Kasparov se a equipe da IBM tinha trapaceado, se houvera “algum tipo de intervenção humana durante o jogo”. Ele disse que isso o fazia lembrar a partida de futebol em que o jogador argentino Maradona marcara um gol contra a Inglaterra, em 1986, usando a mão para enfiar a bola na rede, mas, como o juiz não percebeu, afirmou: “Foi a mão de Deus.” A equipe de cientistas da IBM, que estava ao lado dele no palanque, ficou furiosa com a insinuação. Acharam que muitos anos de trabalho duro estavam sendo denegridos por um mau perdedor. As controvérsias sobre o episódio jamais acabarão. Kasparov tinha pedido com insistência cópias impressas de tudo que o computador estava fazendo, mas a equipe da IBM negou, achando que isso lhe daria uma vantagem
injusta, incluindo em partidas futuras. Depois do jogo, Deep Blue foi desmontado e guardado. Nunca mais foi usado. Há outra questão importante relativa ao tipo de disputa que ali se realizava. Seria de fato homem contra máquina? Kasparov sofria de cansaço, preocupação, raiva e desconfiança, coisas de que o computador, usando poderes de computação muito mais vastos do que qualquer outro com que Kasparov á se defrontara, não padecia. Portanto, nesse sentido, era. Kasparov tinha ego. O computador, não. Apesar disso, Deep Blue era também criação de cérebros humanos, que descreviam sua batalha enxadrística com preocupação paternal. Feng-Hsiung Hsu escreveu que a disputa “foi, a rigor, entre homens em dois papéis diferentes: homem como ator e homem como fabricante de ferramentas. [...] Deep Blue não é inteligente. É apenas uma ferramenta muito bem fabricada que apresenta comportamento inteligente num campo limitado”. Embora Kasparov tenha perdido a partida, acrescentou, com um toque felino, que só ele tinha inteligência verdadeira: “Deep Blue jamais teria inventado acusações tão criativas.” 54 Mais tarde Kasparov quase concordou: Deep Blue era uma grande façanha, afirmou, mas “uma façanha humana dos membros da equipe da IBM [...] Deep Blue só era inteligente como um relógio despertador programável é inteligente. Não que eu me sinta melhor perdendo para um relógio despertador de dez milhões de dólares”.55 Além de cientistas da computação, nada menos que seis grandes mestres de xadrez tinham trabalhado nos programas: Kasparov estava enfrentando não apenas uma corporação (a IBM saiu-se tremendamente bem com a publicidade, recuperando o prestígio que vinha perdendo para a nova garotada do Vale do Silício), mas também uma montanha de conhecimento humano acumulado e de preparação. Dito isso, a possibilidade de máquinas igualarem e ultrapassarem a inteligência humana em muitos campos é obviamente real, o que acontece à nossa volta o tempo todo. A combinação da vida imaginativa de bilhões de seres humanos através da internet é a mais inegável transformação da nossa existência pela tecnologia nos últimos tempos. Mas a Inteligência Artificial, ou IA, talvez venha a se mostrar muito mais significativa num futuro próximo. Grandes avanços que permitem que as máquinas “vejam” (um dos problemas mais intratáveis) e respondam à linguagem natural humana estão ocorrendo. Novas descobertas sobre como o cérebro humano químico-biológico processa informações e sobre como isso pode ser imitado por futuras gerações de computadores são temas muito debatidos nas universidades e nos laboratórios. A expressão atônita de Kasparov quando Deep Blue fez sua jogada decisiva deve, portanto, serde lembrada como um momento especial história humana. O sonho máquinas capazes de rivalizar com na a inteligência humana é antigo, mas só veio a se tornar um tema científico sério nos anos 1950, graças aos avanços na ciência da computação e, em menor grau, na compreensão do cérebro. Alan Turing, brilhante cientista e pioneiro da computação que teve papel decisivo na organização do tempo montada pela Grã-Bretanha durante a guerra em Bletchley Park (que decifrou os códigos alemães), ficou fascinado pelo assunto. Antes da guerra, trabalhara em teoria da computação. Em 1936, tinha apresentado uma proposta que se tornou conhecida como “máquina de Turing”, que lia símbolos numa longa tira para fazer cálculos matemáticos. Nessa época, cartões perfurados e válvulas eram o que havia de melhor em matéria de tecnologia, mas a guerra tende a estimular a invenção, e as máquinas “Colossus” de Bletchley Park usadas para decifrar códigos nazistas costumam ser vistas como os primeiros computadores propriamente ditos, no sentido de serem programáveis e digitais, além de elétricos. Em 1950, Turing propôs seu famoso “teste de Turing”. O teste pressupunha que, se um julgador conversasse com um ser humano e com um computador (com as identidades disfarçadas através de um teclado) e não fosse capaz de dizer quem era quem, o computador passava. Segundo ele, essa era a
resposta sensata, mensurável, à pergunta sobre se as máquinas poderiam pensar ou adquirir consciência. Ele não viveu para ver os avanços que viriam em seguida. Turing era gay e em 1952 foi condenado por “atentado violento ao pudor” com outro homem e obrigado a aceitar a castração química como parte do castigo, além de perder a credencial para trabalhar em projetos do governo. Morreu envenenado com cianeto, provavelmente um ato de suicídio, em 1954. Dois anos depois foi realizada uma conferência em Dartmouth College, New Hampshire, onde Marvin Minsky, um dos pais da IA, e John McCarthy, o cientista da computação que cunhou o termo, conduziram discussões sobre linguagem natural, programação de computador e lógica matemática. Foi um momento decisivo para a nova disciplina. Naquela época, o otimismo de gente como Minsky e McCarthy ia muito além do possível. Com o estímulo de escritores de ficção científica como Arthur C. Clarke, previu-se, no fim dos anos 1950 e nos anos 1960, que a inteligência artificial estaria entre nós pelos anos 1970 e 1980. O próprio Turing tinha se concentrado no xadrez como valioso sistema de teste para a IA, devido à sua lógica complexa e à configuração de suas formas. Em 1958, dois importantes cientistas da Carnegie Mellon University, em Pittsburgh, tinham previsto que, em 1968, um computador digital seria o campeão mundial de xadrez.56 O que os impedia de avançar era a falta de poder computacional — a lentidão física das máquinas disponíveis. Mas era nisso que eles trabalhavam. Depois que os transistores substituíram as velhas válvulas, o problema era juntá-los e alimentá-los em número suficiente. Transistores são semicondutores básicos que controlam o fluxo de sinais eletrônicos, o que faz deles, portanto, os componentes essenciais da computação digital. A primeira geração usava fios de cobre e era relativamente lenta. Muita gente tentava resolver o problema, contudo em geral se atribui seu progresso a um empregado da Texas Instruments chamado Jack Kilby. Em 1958, ele aplicou elementos de transistor a fatias de germânio, um semimetal à base de carbono, conectando-os por meio de finos fios de ouro a um oscilador e amplificador. Logo ficaria provado que o silício funcionava melhor, mas tinha nascido o “chip” — em essência, pedaços de areia que depois de cozidos e fatiados são insculpidos com luz ultravioleta e gás para se transformarem em interruptores elétricos. Em 1965, Gordon Moore, cofundador da Intel Corporation, disse que a humanidade agora veria duplicar a cada ano o número de transistores que cabiam num circuito, e, apesar de ter sido amplamente criticado por essa explosiva previsão exponencial, os fatos demonstraram que não estava tão errado. Nos anos 1970, microprocessadores inteiros eram acondicionados num único chip. Isso foi essencial para a máquina de jogar xadrez da equipe da IBM, que começou com uma placa de circuito de seis mil transistores. O que podemos esperar, de agora em diante? Os entusiastas confiam muito na ideia de aceleração, de crescimento exponencial — a noção de que o progresso tecnológico é multiplicado por um número constante, em vez de apenas ser acrescido de um número constante (como no crescimento linear). A diferença é entre uma linha estável que sobe muito lentamente e outra que começa devagar e de súbito vira para cima, numa linha quase vertical de “decolagem”. Um gráfico do crescimento da população humana durante o período de tempo descrito neste livro mostra coisa parecida. A lei de Moore sobre o poder de computação faz o mesmo. De modo mais geral e não científico, boa parte da forma subjacente da história contada aqui é de crescimento exponencial — os milênios de caça-coleta, seguidos pela relativa velocidade da revolução agrícola e pela disparada cada vez mais veloz através de vilarejos, cidades, impérios e tecnologia industrial. O cientista e escritor Ray Kurzweil popularizou a frase “a Singularidade” — dignificada, como Deus, por uma inicial maiúscula —, que ele define como o tempo em que o ritmo da mudança é tão rápido e profundo que a vida humana é transformada. A ideia veio de um matemático e escritor de ficção científica chamado Vernor Vinge, que audaciosamente escolheu o ano 2030 como o momento em que “a
superinteligência dos computadores” fará surgir a Singularidade, levando a uma época em que grandes redes de computadores podem despertar como superinteligência humana. A linguagem é quase religiosa e ainda pode srcinar uma nova religião ou um novo culto. Kurzweil proclama “um evento transformador despontando na primeira metade do século XXI”. Como um buraco negro que altera os padrões da matéria e da energia, “essa iminente Singularidade em nosso futuro está mudando cada vez mais todas as instituições e todos os aspectos da vida humana, da sexualidade à espiritualidade”. A cultura popular tem sido rápida para captar as possibilidades mais sombrias desse fenômeno para a liberdade humana. Shakespeare escreveu suas peças históricas em parte como advertência para as plateias Tudor sobre o futuro, os criadores hollywoodianos de O exterminador do futuro, Blade Runner, Matrix e muitos outros filmes estão advertindo as plateias do século XXI sobre os possíveis resultados do crescimento exponencial da inteligência dos computadores. A fusão do humano com o fabricado pelo homem significa que as pessoas podem ultrapassar os limites de seus corpos frágeis, biológicos — não só em termos de duração da vida, mas também de qualidade de pensamento. “Nosso pensamento”, escreve Kurzweil, “é extremamente lento: as transações neurais básicas são milhões de vezes mais lentas do que os circuitos eletrônicos contemporâneos. Isso torna nossa largura de banda fisiológica muito limitada, em comparação com o crescimento exponencial da base geral do conhecimento humano. [...] A Singularidade nos permitirá transcender nossas limitações de corpo e cérebro.” 57 Há muitos céticos que sustentam que máquinas continuarão a ser ferramentas úteis para a humanidade, talvez dentro em breve dirigindo nossos carros e trens, limpando nossas casas, assim como as máquinas de hoje já substituem operários nas fábricas ou pesquisadores, mas jamais adquirirão consciência nem ameaçarão o controle humano do planeta. Jack Schwartz, matemático americano, argumentou, com veemência, que computadores não podem, como os cérebros, pegar “informações mais ou menos desorganizadas” e usar estruturas internamente organizadas para gerar ações e pensamentos no mundo real. Mas ele também nos adverte de que, se a IA estiver de fato acontecendo, “como o quase monopólio humano de todas as formas mais altas de inteligência tem sido um dos fatos mais básicos da existência humana ao longo da história passada deste planeta, essas novas realidades sem dúvida criariam uma nova economia, uma nova sociologia e uma nova história”.58 Embora os cientistas discutam com vigor sobre o significado de “consciência” — será alguma coisa a mais do que redes neurais muito integradas e sofisticadas lidando com informações? —, a sugerida Singularidade toca profundamente a compreensão que o homem tem de si mesmo. As tecnologias nunca são emcasa seusconcertos efeitos, nem previsíveis. Os primeiros telefones foram propostos aparelhos paraneutras ouvir em de música clássica, enquanto os primeiros entusiastas da como internet a viam como uma biblioteca acadêmica de alcance mundial, em vez de um espaço para redes sociais, política o pornografia. Alguns cientistas começam a se dedicar à questão de saber se é possível programar a inteligência artificial ou das máquinas para ser sábia, assim como para aprender e se replicar. O principal tema subjacente desta história tem sido o descompasso entre o crescimento da capacidade técnica da humanidade para moldar o mundo (no qual a IA é mais uma etapa de um processo iniciado com o cultivo de cenouras mais grossas, a invenção da pólvora e das máquinas a vapor) e a ausência de desenvolvimento na capacidade política da humanidade para governar bem a si mesma. Em geral, o bom governo leva ao avanço técnico, uma vez que liberdade de expressão, leis de patente confiáveis, capacidade de gerar lucros e garantia de segurança pessoal costumam incentivar inventores. Mas o inverso não é necessariamente verdade: o avanço técnico não produz virtude política. O mau governo, quer signifique opressão, um incauto entusiasmo pelo consumismo hoje sem pensar nas gerações futuras, quer signifique simples corrupção, é bem mais generalizado, e os frutos tecnológicos do bom governo tendem a cair nas mãos erradas.
Garry Kasparov jogou, pensou e perdeu aquele jogo em 1997 como um ser humano temperamental e imperfeito. Feng-Hsiung Hsu tinha razão: Kasparov perdeu não para uma máquina, mas para seres humanos que fabricam ferramentas, tão humanos quanto ele, tão apaixonados quanto ele. Depois eles puderam desmontar o computador que tinham criado com o único objetivo de vencê-lo e deixá-lo de lado. Mas como as armas nucleares, ou como a internet, os maiores avanços tecnológicos não podem ser facilmente desmontados e postos de lado. Eles são entregues à perigosa e incerta arena da política. Por isso é bom saber que Kasparov, depois de se aposentar do xadrez, mergulhou de corpo e alma na causa da reforma política em sua Rússia natal, onde se tornou um crítico franco, aberto e aparentemente destemido do governo autoritário do presidente Putin. Um belo campo cheio de ge nte No fim dos anos 1300, um escriturário do interior da Inglaterra, William Langland, teve uma visão sobre a população humana do mundo ou, como ele diz em seu poema cristão, “Piers Plowman”, “um belo campo cheio de gente”. Jamais poderia ter vislumbrado quanto esse campo ficaria cheio. Em sua época, havia talvez duas vezes mais gente no mundo do que quando Jesus Cristo nasceu. Desde 1950, a população cresceu até cem vezes mais rápido do que depois da invenção da agricultura e dez mil vezes mais rápido do que antes disso. Agora chega a sete bilhões, sete vezes mais do que no início da revolução industrial. É uma grande conquista humana. Os que dizem que há gente demais, que há experiências de vida individual demais, acabam imaginando um jeito de eliminar outros bilhões de seres humanos (raramente eles próprios, ou suas famílias) — uma visão genocida que supera qualquer governante maníaco descrito neste livro. O enorme aumento da população no último século, e que prossegue neste, é um problema causado pelo êxito — de programas de vacinação e água tratada, da “revolução verde” na agricultura. Sem esta última, que envolve mecanização, novas variedades agrícolas, irrigação e fertilizantes (depois de 1940), estima-se que a humanidade precisaria de um pedaço extra de terras aráveis do tamanho da América do Norte para se alimentar. Dito de outra maneira, dois bilhões de pessoas só estão vivas por causa dela. Apesar disso, a maioria dos observadores acha que tantos bilhões de seres humanos são demais para o planeta sustentar indefinidamente. Precisamos de tanta água, consumimos tanta energia à base de carbono e ocupamos tanta terra para nos alimentarmos que a biosfera não tem condições de aguentar. De longe, o problema mais conhecido é a mudança climática, o efeito do brusco aumento da quantidade de dióxido de carbono na atmosfera. É causado basicamente pela queima de combustíveis fósseis, e, como numa estufa, isso impede que o planeta se resfrie com a eficiência necessária, provocando, em consequência, o aumento das temperaturas. Quanto e exatamente com que efeito, não se sabe. Um aumento nos padrões climáticos “extravagantes” e imprevisíveis talvez seja uma das consequências. Examinando as possíveis projeções, dá para ver que ou se trata de um problema exageradamente enfatizado, solucionável com formas mais verdes de gerar energia, ou é uma catástrofe iminente, que pode fazer deste o último século humano. Mas o consenso científico inclina-se para a opção mais alarmante. Outro visionário inglês, o cientista James Lovelock, pioneiro numa forma de pensar sobre a Terra como entidade viva (isto sempre foi uma metáfora), fala por muita gente que se apavora com os possíveis efeitos. Ao contrário de Langland, Lovelock fala de um planeta sofrendo de “uma febre trazida por uma doença contagiosa chamada humanidade”.59
A mudança climática é apenas o mais discutido dos efeitos do grande salto nos números humanos. Embora o planeta seja rodeado de água, relativamente pouco dessa parte líquida é doce e acessível de imediato aos seres humanos para cultivar alimentos, beber e tocar indústrias. Há severa escassez de água em muitas partes do mundo, sobretudo na Ásia e na África, com mais e mais gente sugando de rios que não aumentam de volume — ou que, devido à construção de imensas represas, diminuem. A qualidade do solo é outro problema imediato. Solo é onde a crosta de rocha de 130 quilômetros de espessura se encontra com a atmosfera — onde a geologia se encontra com a biologia. É muito fina e absolutamente preciosa. O historiador J. R. McNeill descreve-a muito bem: “Consiste em partículas minerais, matéria orgânica, gases e uma multidão de minúsculas coisas vivas. É uma pele fina, de profundidade raramente acima da cintura, em geral bem abaixo. O solo leva séculos ou milênios para se formar. E vai sempre acabar no mar, levado pela erosão. No intervalo entre formação e erosão, é básico para a sobrevivência humana.”60 Depois das descobertas de Haber e outros (já mencionados) na maior parte do mundo, a degradação dos solos chegou a um ponto em que mesmo o uso intensivo de fertilizantes é incapaz de melhorar sua produtividade. Na África, a produção de alimentoper capita tem caído desde 1960. Na China, cerca de um terço das terras aráveis foi abandonado por causa da erosão. E há os problemas de desflorestamento e extinção de espécies. Os seres humanos sempre destruíram florestas, ou porque precisavam de madeira (um problema para os gregos antigos, os nazca e os aponeses, como já vimos), ou para expandir suas terras de agricultura. A Europa Setentrional já foi coberta de árvores. Mas o desflorestamento do século XX foi particularmente drástico, removendo talvez metade do que restava, e concentrou-se em áreas tropicais, sobretudo nas florestas úmidas sulamericanas do Amazonas e do Orinoco, além de na África Ocidental e na Indonésia. A importância das florestas para manter a saúde da atmosfera e resolver o problema do carbono agora é muito bem compreendida. Porém essas florestas úmidas contêm altíssima proporção de plantas, insetos e espécies animais em perigo de extinção, que por sua vez podem guardar muitos segredos úteis para a sobrevivência humana. Se, como muitos cientistas preveem, cerca de 30% das espécies existentes forem extintas no próximo século, isso será um imenso fenômeno planetário, outro erro cometido pelo macaco inteligente. Dois últimos problemas devem ser acrescentados a essa litania de misérias. A pesca excessiva e a acidificação dos oceanos estão causando um desastre ambiental que seria um escândalo mundial se pudéssemos ver claramente abaixo das ondas — um desastre que afeta uma importante fonte de alimento. Some-se a isso a poluição atmosférica nas megacidades, que predominam cada vez mais como habitação humana (mais de metade da espécie agora vive em cidades), que tem causado imensa perda de vidas, embora geralmente entre os mais velhos e mais fracos. McNeill calcula que quarenta milhões de pessoas morreram em consequência da poluição atmosférica no século XX, o equivalente às baixas das duas guerras mundiais somadas, ou mais ou menos o mesmo número de vítimas da pandemia de gripe de 19181919. Como outros problemas, trata-se aqui de um “fracasso do êxito”, neste caso provocado pelo advento dos carros, das viagens aéreas e de um estilo de vida mais rico em termos materiais. Muitos dos mais afetados pela poluição migraram de aldeias e vilarejos para as cidades, preparados para viver em bairros pobres ou favelas simplesmente a fim de poder explorar as maiores oportunidades da vida urbana. Em todo o globo, a mudança do campo para as cidades (mais dramática na China e na Índia) é a maior migração da trajetória humana. * **
Para terminar esta história, senti-me muito tentado a escolher um assunto que não fosse “o meio ambiente”. Advertências sobre catástrofe global pendem sobre nossa cabeça em toda parte, entristecendo-nos a imaginação. Apesar disso, a quadruplicação da humanidade no último século é certamente a maior notícia de todas. Os novos problemas que isso apresenta não podem ser contrabandeados para outras reportagens, ou relegados. É a prova final de um dos grandes temas deste livro, a extraordinária inteligência técnica da humanidade. É o ponto alto da cura que começou com o fogo e os machados de mão, estendeu-se através da seleção de gramíneas e da domesticação de animais, avançou para as máquinas a vapor e para a vacinação e mais além. Mas também nos coloca diante do segundo tema óbvio, que é a longa defasagem em nosso progresso político e inteligência social. Só melhorando podemos resolver os fracassos do êxito. A notícia não é de todo ruim, de forma alguma. Voltemos a Steven Pinker, que em The Better Angels o Our Nature [Os melhores anjos de nossa natureza] mostrou que a probabilidade de morrermos de forma violenta é menor do que nunca. No geral, as primeiras sociedades tinham índices de homicídio muito mais altos do que as que vieram depois. Houve quem criticasse seus argumentos sobre índices de mortalidade em sociedades de caçadores-coletores (tratadas no início deste livro), mas suas provas estatísticas a partir dos tempos medievais têm aceitação mais geral. A redução de homicídios veio em parte porque, à medida que os Estados aumentavam de tamanho e diminuíam de número, havia menos guerras entre eles. Em parte, também, isso reflete os movimentos humanitários dos tempos modernos, desde as campanhas do Iluminismo contra a escravidão e a tortura até a crescente intolerância atual com a violência doméstica. À medida que aprendemos como vivem os outros e que vivemos em sociedades mais estreitamente vigiadas e povoadas, parece que ficamos menos violentos e mais bondosos. Ou, para resumir, a civilização funciona. Qualquer um que tenha lido com cuidado relatos da vida nas cidades em séculos anteriores, ou notou a frequência de assassinatos e assaltos em tantos livros que chamamos de “literatura clássica”, sentirá a força disso. As democracias ao estilo ocidental não se propagaram da maneira que os otimistas pós-1989 previram, mas a maior parte do mundo é mais ordeira, mais contida e regulada, do que nunca. (Fumantes, aventureiros e outros costumam dizer que é ordeira demais.) Se dizemos que o primeiro dever do governo é proteger a vida dos cidadãos, é porque a política certamente evoluiu de modo impressionante. A isso podemos acrescentar alguns notáveis sucessos em escala global em desarmamento, em levar criminosos à Justiça e em tratar de problemas específicos, como a proibição de gases CFC (que afinam a camada de ozônio). Mediante acordos internacionais do fim dos anos 1970 a 1995 houve uma redução de 80% nesses gases e abolição total nos principais países. A ONU é uma organização lenta, pomposa e geralmente irritante, mas sua Declaração Universal dos Direitos Humanos ainda representa um modelo básico, em torno do qual a maior parte do mundo se reúne, pelo menos em teoria, e pouca gente gostaria, de fato, de vê-la desaparecer. Enquanto países brigam por fontes de água, discutem desflorestamento, calotas polares e oceanos e se esforçam para adotar formas mais verdes de energia, tratados internacionais se tornam a política essencial do novo século. Alguns fracassam, como a reunião de cúpula da ONU em Copenhague, em 2009, para tratar de mudanças climáticas. Alguns sistemas supranacionais, como a União Europeia, não conseguiram se consolidar numa cultura democrática. Mas somos parte de uma família humana muito mais interconectada e mutuamente consciente do que em qualquer outra época desde a grande migração África. Também temos pelo da menos algumas das habilidades de que precisamos para lidar com problemas causados por nosso êxito. O aquecimento global é uma preocupação profunda, mas provavelmente não será nossa ruína. Pode ser contido. Lovelock não está sozinho como importante pensador “verde” que
defende a energia nuclear como essencial para reduzir as emissões de carbono. Resta saber se a moda atual de fazendas de energia eólica é uma mania passageira, mas há um conjunto cada vez maior de alternativas para o carvão e o petróleo. A energia solar é uma grande promessa. A fusão nuclear, embora ainda não seja uma tecnologia viável, também tem grande potencial. Igualmente distantes no futuro, embora sem dúvida a serem levadas em conta, são as tecnologias conhecidas como “geoengenharia”, que incluem a colocação de aerossóis refletores ou quebra-luzes no espaço para resfriar o planeta. Isso exigirá grandes acordos internacionais, uma vez que diferentes países seriam afetados de maneiras distintas. Mas a história sugere que, com tantos recursos e cérebros concentrados em formas alternativas de energia, progressos hão de vir. Quaisquer alienígenas que tivessem olhado para baixo e apostado na criatividade humana não teriam perdido muito dinheiro até agora. Há outra razão para otimismo moderado: onde as sociedades enriqueceram e a educação feminina avançou, as taxas de natalidade caíram. Em sociedades agrícolas, onde músculo humano era riqueza, mas a mortalidade infantil era alta — ou seja, ao longo da maior parte de nossa história social —, o mais sensato era ter o maior número possível de filhos. Contudo aprendemos depressa, e, à medida que a mortalidade infantil caía, a contracepção ficava mais acessível e as mulheres tinham mais oportunidades, esse “instinto” foi logo revertido. Dessa forma, o rápido crescimento populacional, que deve persistir por outros quarenta anos, pela simples juventude de muita gente hoje viva, deverá tomar suavemente a direção oposta. Aqui, porém, está o problema. A população hoje cresce nos lugares errados. Quando lemos sobre a fome na Etiópia, vale a pena saber que a população etíope cresceu de cinco milhões no começo do século XX paradeoitenta milhões hoje —terá e deverá dobrarmais até meados desteA século, quando de se que calcula que o número humanos na África aumentado um bilhão. probabilidade populações humanas caiam não benignamente, por opção, mas pela guerra, pela doença e pela fome ainda é alta. Os países com população mais jovem — dezenas de milhões de homens jovens, muitos deles desempregados — são os que mais correm risco de ter um futuro violento. A verdade é que, para lidar com os fracassos do êxito, precisaremos utilizar tudo que estiver ao nosso alcance: as rápidas soluções científicas e técnicas, os acordos internacionais — e mudanças de comportamento e expectativa. Martin Rees, astrônomo real da Grã-Bretanha, acha que a humanidade navegará por corredeiras durante duas gerações, um tudo ou nada durante o qual teremos 50% de chance de sobreviver. Mas também afirmou, em suas Palestras Reith de 2010 para a BBC, que falar de uma população mundial ideal não tem sentido porque não podemos conceber com segurança quais serão o estilo de vida, a dieta, os padrões de viagem e as necessidades de energia das pessoas depois de 2050. O mundo não poderia nem de longe sustentar a população atual se todo mundo vivesse como os americanos... [porém] mais de dez bilhões de pessoas poderiam viver, sustentavelmente, com alta qualidade de vida, se todos adotassem uma dieta vegetariana e viajassem pouco, mas interagissem através da superinternet e da realidade virtual. Isso pode ser improvável e impalatável, mas os pais de hoje no Ocidente são a primeira geração a ter receio de que os filhos tenham uma vida mais magra, se bem que com menos desperdício, do que a deles. É plausível pensar em uma população mundial mais ou menos tamanho da de hoje ouglobal, maior,além e uma vasta série de correções científicas, como as mencionadas para do enfrentar o aquecimento de alimentos geneticamente modificados, ajudarão o planeta a aguentar. O que não é plausível é a noção de
uma população maior desfrutando das novas liberdades de usar carro, viajar de avião e consumir alimentos vindos de todas as partes do globo que muitos de nós desfrutamos agora. Mas, fora o precedente desolador dos anos entre as duas guerras, as democracias não tiveram de lidar com nenhum período em que a vida material ficasse significativamente mais pobre. Seus sistemas partidários, ciclos eleitorais e retórica política estão de tal maneira voltados para a promessa de dias melhores que é difícil imaginar a alternativa. Há outras maneiras de viver uma vida útil e feliz, como os povos demonstraram ao longo da história. Uma dedicação maior à vida da família e da comunidade, à vida espiritual, à educação e às artes — que foi como vivemos nos períodos de trégua — é parte da história. Infelizmente, nossa prontidão para acreditar nas promessas de demagogos e nossa ganância, nossa capacidade de raiva e violência também são parte da história. Às vezes se traduz Homo sapiens como “homem inteligente”. Somos um macaco mais inteligente, um macaco muito mais inteligente, embora estejamos em situação delicada. Mas uma tradução melhor é “homem sábio”. Para isso, ainda nos falta um pouco.
1. Deusa suméria da fertilidade: até a evolução do monoteísmo com um único Deus entre os hebreus, famílias de deuses, que costumavam incluir uma deusa da fertilidade, eram quase universais.
2. Inscrição de Ugarit, onde hoje é a Síria. A escrita do alfabeto moderno — a que você está lendo agora — desenvolveu-se entre o comércio e as viagens marítimas do povo de Canaã, chamado de fenício pelos gregos.
3. Cabeça de machado Shang: essa foi a primeira dinastia historicamente confirmada da China, uma cultura de guerreiros montados em carruagens acusada pelas gerações seguintes de incesto, canibalismo e gosto por canções pornográficas.
4. Temos no herói Gilgamesh o primeiro personagem com nome na literatura mundial.
5. Casal se abraçando encontrado em Çatalhüyük, na Turquia: uma das primeiras cidades do mundo, onde as pessoas viveram em um relativo estado de igualdade por milhares de anos.
6. A civilização minoica, de Creta, praticava salto em touros e fazia belas artes, mas era muito mais sanguinária e violenta do que os seus primeiros arqueólogos imaginaram.
7. Poreram voltalimpas, de 3000 a.C., as Órcades tinham prontas uma daspara maisseavançadas Grã-Bretanha: as casas de pedra descobertas em Skara Brae aconchegantes e parecem adaptaremsociedades aos dias denahoje.
8. Uma taça de ouro de Troia: ela não pertenceu mesmo ao rei Príamo de Homero, mas Troia existiu de verdade, e é quase certo que sua guerra tenha sido um evento histórico.
9. Um acessório de Ur, 2600 a.C.: as culturas mesopotâmicas geraram cidades, impérios e religiões famosos, mas muito da arte desapareceu.
10. Dados de Mohenjo-Daro, onde hoje é o Paquistão: uma antiga civilização ribeirinha no Indo que pode ter srcinado grande parte da cultura indiana atual.
11. Pintura da vila de trabalhadoras perto do vale dos Reis, no Egito. Tanto artesãos quanto Faraós tinham suas tumbas decoradas; e também ficamos sabendo de suas fofocas.
12. Sidarta, que se renomeou como o Buda, está entre os pensadores mais radicais da história; um produto do momento das mudanças tumultuosas pelas quais a Índia passou em seu tempo.
13. Taça de vinho Erlitou: mesmo os primeiros objetos chineses pouco pareciam com algo que pudesse ser feito no Ocidente.
14. A Babilônia, com suas gloriosas construções esmaltadas e jardins suspensos, deve ter admirado e horrorizado os hebreus levados como cativos.
15. Um colar de ouro pertencente ao rei Creso da Lídia: seus ourives reais cunhavam moedas puras e confiáveis que se espalharam pela Ásia, o que srcinou a expressão “rico como Creso”.
16. O cilindro de Ciro: não é bem a primeira declaração universal de direitos humanos, mas Ciro, o Grande, foi um novo tipo de consolidador de império.
17. Sócrates morreu ao beber veneno — um mártir da liberdade de expressão, mas também uma ameaça genuína à democracia ateniense. Ainda não superamos o desafio que ele deixou para as sociedades abertas.
18. Confúcio, ou Kongzi, foi o filósofo conservador mais influente da história: sua influência na política cultural chinesa é tão grande quando a da Grécia Antiga sobre o Ocidente.
19. Persépolis era decorada com vários murais de pedra, alguns registrando o cotidiano, outros de um sadismo repugnante.
20. Uma moeda de ouro de Alexandre III, “Alexandre, o Grande”, que se tornou uma batedeira cultural sangrenta, misturando os gregos e os asiáticos.
21. Ao levar a mensagem cristã aos não judeus, incluindo a própria Roma, Paulo foi o verdadeiro fundador do cristianismo como religião global.
22. O povo nazca, do sul do Peru, constituía-se de artistas brilhantes e excelentes engenheiros. Mas cometeu um erro que se provou fatal.
23. O imperador bizantino Justiniano: os bárbaros podiam ser combatidos, mas a fome e a praga, não, assim como a reconstrução da glória de Roma.
24. O emir de Córdoba consulta seus conselheiros: a al-Andalus muçulmana foi um centro de aprendizado e sofisticação urbana de humilhar o cristianismo.
25. O líder mongol Gêngis Khan tem potencial para ser a figura mais influente da história, mas a história seria mais feliz se ele nunca tivesse nascido.
26. O atlas catalão de 1375 exibe o mansa Musa, rei do Mali, em seu trono, como um monarca europeizado; na verdade, ele era melhor que isso.
27. Ivã, o Terrível — cujo nome também é traduzido como Ivã, o Poderoso —, foi o governante que expandiu a Rússia até a Sibéria, mas também instituiu a tradição de uma autocracia cruel e centralizadora que a assola até hoje.
28. Hideyoshi foi o grande fundador do Japão do Tokugawa, reinou no mesmo período que a rainha Elizabeth I e é comparável a ela em muitos sentidos.
29. O imperador inca Atahualpa, assassinado pelos espanhóis: seu ouro acabou ajudando a economia em ruínas da Espanha.
30. A mania das tulipas na Holanda gerou uma bolha econômica que fez toda a Europa rir. Mas a Holanda aprendeu e voltou a prosperar, ao contrário de alguns dos seus críticos.
31. A chegada do tabaco do Novo Mundo e a moda do fumo no século XVII horrorizaram os governantes de Londres ao Japão.
32. “Sim, se move.” O bruto e tagarela Galileu de Pisa, nascido no momento certo para entender o sistema solar, mas no lugar errado para explicar como ele funciona.
33. Timur entrega sua coroa a Babur, em 1630: Babur foi o verdadeiro fundador do império mogol, que produziu pensadores radicais e construções gloriosas, mas tudo acabou sendo destruído por uma guerra incitada por intolerância religiosa.
34. Luís XIV, o “Rei Sol”, era o modelo da governança absolutista — uma teoria idiota decorada com belos palácios e indivíduos extravagantes.
35. Guilherme e Maria, o rei holandês e sua esposa, que se transformaram nos monarcas britânicos após a invasão em 1688 — mas só depois de aceitar a supremacia do Parlamento.
36. O Iluminismo foi dominado pelos franceses e pelos britânicos: Voltaire e sua senhora são banhados pela luz da razão de Isaac Newton.
37. A máquina semeadora de Jethro Tull foi um dos inventos que transformaram os britânicos nos fazendeiros mais bem-sucedidos do mundo e prepararam o campo para a revolução industrial.
38. Mas o que eles bebiam? Os rebeldes de Boston, ao lançarem no mar o chá tributado, ficaram com infusões de ervas e chá contrabandeado durante seus protestos contra o império britânico.
39. O aborígene australiano Bennelong, sequestrado pelos britânicos para se tornar tradutor: ele virou uma espécie de viajante no tempo, indo da Idade da Pedra para a era industrial.
40. Toussaint L’Ouverture: o idealista escravo liberto cujos sonhos com a república foram devastados por Napoleão.
41. Divulgada, e não criada, pelo dr. Guillotin, essa era a mais democrática máquina mortífera, tratando reis, aristocratas e plebeus da mesma forma.
42. A coroação de Napoleão como imperador em 1804 marcou o fim da França revolucionária: Beethoven ficou tão indignado que riscou o nome do corso da dedicatória da sua terceira sinfonia.
43. O jovem Tolstói foi de um dono de terra viciado em jogo e esbanjador a um apaixonado amigo dos servos russos... e escrevia uns livros quando dava.
44. A Revolução Russa em 1825; mas os decembristas, que queriam deixar a Rússia mais europeia, falharam e foram executados ou mandados para a Sibéria.
45. O bombardeio do Forte Henry, no Tennessee: a Guerra Civil Americana, que criou o colosso dos Estados Unidos modernos, foi o conflito mais importante do século XIX.
46. John Wilkes Booth, assassino de Abraham Lincoln, logo foi pego; mas no Sul esse ator frustrado tornouse um herói por matar “o tirano”.
47. A perspectica chinesa: durante Segunda Guerra do Ópio, entre 1856 e 1858, eles não tiveram chance contra a infantaria e os navios armados britânicos.
48. O rei Leopoldo II tinha o mais puro desprezo pelos belgas — “país pequeno, gente pequena” — e construiu um império particular na África, com resultados trágicos.
49. Nenhuma nação conduziu a segunda revolução industrial com a mesma verve que os alemães: Karl Benz demonstra seu triciclo motorizado em 1886.
50. O fundador da potência soviética; mas Lenin foi levado ao poder, quase que literalmente, pelos alemães, que o enviaram para a Rússia em um trem lacrado.
51. Hitler deixou bem claro para o mundo o que queria fazer, mas o mundo se recusou a acreditar.
52. Mao, cinco anos antes de se tornar o líder mais mortífero que a China — e o mundo — já viu.
53. De braços dados: mas a rejeição de Muhammad Ali Jinnah a um único sucessor ao Raj britânico significou uma inimizade jurada entre o seu Paquistão e a Índia de Gandhi.
54. Robert Oppenheimer, o cultuado cientista liberal que acabou calculando em que altura a sua bomba poderia queimar até a morte o maior número de homens, mulheres e crianças civis.
55. Margaret Sanger: a proletária radical que fez mais pelas mulheres do século XX do que qualquer político, independentemente de gênero.
56. O sucesso de Castro ao derrotar a invasão patrocinada pelos Estados Unidos da baía dos Porcos, em Cuba, foi parte do prelúdio da crise dos mísseis que levou o mundo à beira da aniquilação.
57. Protestantes em Boston, 1970: “Ho, Ho, Ho Chi Minh.” Os estudantes dos Estados Unidos e da Europa que deram as costas à geração de seus pais encontraram novos heróis nos revolucionários marxistas do Oriente.
58. A crença frívola do Ocidente de que a história inevitavelmente rumava para o liberalismo sofreu um forte abalo quando o Irã se tornou uma militante teocracia islâmica em 1979.
59. Praga, 1989: o colapso do império soviético foi notoriamente rápido e quase pacífico também.
60. A estátua do ditador iraquiano Saddam Hussein é derrubada após a invasão conduzida pelos Estados Unidos, mas o que decorreu da libertação também foi horrível.
61. Em 1997, Garry Kasparov, talvez um dos maiores jogadores de xadrez que o mundo já viu, disputou contra um supercomputador da IBM numa partida denominada como “a última resistência do cérebro”.
NOTAS
Introdução 1. GILMOUR, David. The Pursuit of Italy . Londres: Allen Lane, 2011, p. 33. 2. CivilizationWilliam . Londres: Allen Lane,Web 2010, p. 43. 3. FERGUSSON, MCNEILL, J. R.Niall. e MCNEILL, H. The Human . Nova York: W. W. Norton, 2003, p. 4. 4. Ibid., p. 7. Parte um: Do calor para o gelo 1. FLANNERY, Tim.Here on Earth. Melbourne: Text Publishing Company, 2010, cap. 4. 2. OPPENHEIMER, Stephen. Out of Eden . Londres: Constable, 2003, p. 343-6. 3. PAGEL, Mark. Wired f or Culture: Origins of the Human Social Mind . Londres: Allen Lane, 2012, p. 216-17. 4. STRINGER, Chris. The Origin of Our Species . Londres: Allen Lane, 2011, p. 245. 5. FAGAN, Brian.Cro-Magnon . Londres: Bloomsbury Press, 2010. 6. STRINGER, Chris. Op.cit., p. 242. 7. BROWN, Cynthia Stokes.Big History. Nova York: W. W. Norton, 2007, p. 52. 8. FLANNERY, Tim. Op.cit., citando GROVES, C. Perspectives P. in Human Biology , 1999, “The Advantages and Disadvantages of being Domesticated”; e HENNEBERG, M. “Decrease of Human Skull Size in the Holocene”, Human Biology 60, p. 395-405. 9. Teoria de Steven Mithen, citada em FAGAN, Brian. Op.cit. 10. Ver, por exemplo, KEELEY, Lawrence H. A guerra antes da civilização . São Paulo: É Realizações, 2012. 11. LEBLANC, Steven A. com REGISTER, Katherine.Constant Battles: Why We Fight. Nova York: St Martin’s Griffin/Macmillan, 2004. 12. Ver DIAMOND, Jared. Armas, germes e aço , cap. 5; e WELLS, Spencer. Pandora’s Seed: The Unforeseen Cost of Civilization . Londres: Allen Lane, 2010. 13. DIAMOND, Jared. Op.cit., p. 139. 14. WELLS, Spencer. Op.cit., p. 37-41. 15. HODDER, Ian. Catalhoyuk: The Leopard’s Tale . Londres: Thames & Hudson, 2006. 16. CASTLEDEN, Rodney. The Stonehenge People . Londres: Routledge, 1987. 17. 18. Ibid. LEICK, Gwendolyn.Mesopotâmia: A invenção da cidade . Rio de Janeiro: Imago, 2003. 19. Ibid. 20. MORRIS, Ian. Why the West Rules: For Now . Londres: Profile Books, 2010, p. 206. 21. ROBERTS, J. A. G.A History of China . Basingstoke: Palgrave Macmillan, 2a ed., 2006, p. 3. 22. FONG, Wen (org.). The Great Bronze Age of China . Londres: Thames & Hudson, 1980, p. 70. 23. SILVERMAN, David P. (org.). Ancient Egypt. Londres: Duncan Baird, 2003. 24. Ver Dr. MURNANE, William. In: SILVERMAN, David. Op.cit. 25. O melhor livro sobre Deir el-Medina é o de Morris Bierbrier, The Tomb-Builders of the Pharaohs . American University in Cairo Press/British Museum, 1982. 26. GERE, Cathy.Knossos and the Prophets of Modernism. Chicago: University of Chicago Press, 2009, páginas iniciais. 27. WAUGH, Evelyn.Labels , 1930, citado por Mary Beard em sua crítica de GERE, Cathy. Op.cit., em . Parte dois: Em favor da guerra 1. Esta informação é baseada em muitas fontes secundárias, incluindo as mais óbvias, Heródoto e Tucídides, mas também FOX, Robin Lane. The Classical World. Londres: Penguin, 2005; SEALEY, Raphael.A History of the Greek City States, 700-338 BC. Berkeley:
University of California Press, 1976; e DAVIES, J. K.Democracy and Classical Greece. Fontana, 1978, mais ROBERTS, J. M.History of the World. Londres: Penguin, 2007; e MCNEILL: William. World History. Nova York: Oxford University Press, 1998. 2. ALEXANDER, Caroline.A guerra que matou Aquiles influenciou bastante este pensamento. 3. Ibid. 4. Ver WOOD, Michael.In Search of the Trojan War . Londres: BBC Books, 2005, p. 182. 5. ALEXANDER, Caroline. Op.cit., p. 13. 6. SACKS, Jonathan.The Great Partnership: God, Science and the Search for Meaning . Londres: Hodder & Stoughton, 2011, cap. 4, 7. 7. Ver SMITH, Mark S. The Early History of God: Yahweh and the Other Deities in Ancient Israel . Grand Rapids: Eerdmans, 2002, cap. 1. 8. ARMSTRONG, Karen.A Bíblia: Uma biograf ia.. Rio de Janeiro: Zahar, 2007. 9. Ver MONTEFIORE, Simon Sebag.Jerusalém: A biograf ia . São Paulo: Companhia das Letras, 2013. 10. Ver GERSHEVITCH, Ilya.The Cambridge History of Iran , v. 2, 1985, Cap. 7, p. 392ss. 11. Todas as citações de Heródoto foram retiradas da edição da Penguin, traduzida para o inglês por Aubrey de Sélincourt em 1954. 12. FOX, Robin Lane.The Classical World . Londres: Allen Lane, 2005, p. 61. 13. DAVIES, J. K. Democracy and Classical Greece. Londres: Fontana, 1978, p. 88. 14. GUHA, Ramachandra.India after Gandhi. Basingstoke: Macmillan, 2007, p. 115-16. 15. A história é relatada em KEAY, John. India Discovered. Londres: HarperCollins, 2001, cap. 1. 16. KEAY, John,India: A History . Londres: HarperCollins, 2002, p. 24ss. 17. Ibid., p. 35. 18. Ver THAPAR, Romila.The Penguin History of Early India . Nova Déli: Penguin Press, 2002, cap. 5; e LING, Trevor.The Buddha . Middlesex: Temple Smith, 1973, p. 66ss. 19. KEAY, John. Op. cit., p. 64. 20. Ver GERNET, Jacques.A History of Chinese Civilisation . Cambridge: Cambridge University Press, 1992, p. 41ss. 21. KEAY, John.China: A History . Londres: HarperPress, 2008, p. 53. 22. ARMSTRONG, Karen.A grande transformação . São Paulo: Companhia das Letras, 2008. 23. SCHWARTZ, Benjamin.The World of Thought in Ancient China . Cambridge: Belknap Press, 1985, p. 56. 24. JENSEN, Lionel M. “The Genesis of Kongzi in Ancient Narrative”. In: WILSON, Thomas A. (org.). On Sacred Grounds... the Formation of the Cult of Conf ucius . Harvard East Asian Monographs 217, 2002. 25. CHIN, Annping.Confucius: A Life of Thought and Politics . New Haven: Yale University Press, 2008. 26. CONFÚNCIO. Os analectos . Porto Alegre: L&PM, 2000. 27. ARMSTRONG, Karen. Op.cit. 28. PLATÃO. Phaedo, na tradução para o inglês de Benjamin Jowett, 1892, republicado em muito boa hora pela Sphere Books em 1970. 29. STONE, I. F. O julgamento de Sócrates . São Paulo: Companhia das Letras, 2005. 30. Ibid. 31. MCNEILL, William H.A World History . Oxford: Oxford University Press, 1998, p. 148. 32. Ver FOX, Robin Lane.Alexander the Great. 2006. 33. ARRIAN. Anabasis Alexandri (Vida de Alexandre), livro VII, parte 4. Parte trê s: A e spada e a pena 1. SCHEIDEL, Walter (org.).Rome and China: Comparative Perspectives . Nova York: Stanford/Oxford University Press, 2009. 2. Ver ADSHEAD, S. A. M. “Dragon and Eagle”,Journal of South-East Asian History , v. 2, outubro de 1961. 3. HILL, John. The Peoples of the West , 2004. Tradução para o inglês doWeilüe de Yu Huan: ver . 4. THAPAR, Romila. The Penguin History of Early India . Nova Déli: Penguin Books, 2002, p. 321. 5. GUHA, Ramachandra. India after Gandhi . Basingstoke: Macmillan, 2007, p. 378-9. Também estou em dívida com Toby e Saurabh Sinclair pela ajuda neste trecho. 6. QIAN, Sima apud KEAY, John.China: A History . Londres: HarperPress, 2008, p. 89, e em vários outros lugares. 7. Ver, por exemplo, as visões concorrentes de Derk Bodde, ep.a75-6. novaTrata-se evidência citada em MAN,naJohn. The Terracotta . Nova York: Bantam, 2007, p. 118-19; e KEAY, John. China: A History mais de diferenças ênfase do que de Army um fato. 8. MACCULLOCH, Diarmaid.A History of Christianity. Londres: Allen Lane, 2009, p. 70-1. 9. CANTOR, Norman. The Sacred Chain: A History of the Jews . Nova York: HarperCollins, 1995, p. 61.
10. SAND, Shlomo.A invenção do povo j udeu. São Paulo: Benvirá, 1a ed., 2011. 11. Ibid. 12. Devo a Mary Beard por ter me colocado nisso, embora ela não tenha nehuma responsabilidade sobre meus preconceitos antirreligião romana! 13. FOX, Robin Lane.The Classical World . Londres: Allen Lane, 2005, p. 306. 14. No entanto, Mary Beard descreve isso como “pura fantasia grega”. 15. BAGNALL, Nigel. The Punic Wars. Londres: Pimlico, 1990, cap. 1. 16. Ver CUNLIFFE, Barry. The Ancient Celts. Oxford: Oxford University Press, 1997; e JONES, Terry e EREIRA, Alan.Barbarians . Londres: BBC Books, 2006. 17. FOX, Robin Lane. Op.cit., p. 379. 18. MORRIS, Ian. Why the West Rules: For Now . Londres: Profile Books, 2010, p. 296-7. 19. Ibid., p. 306. 20. ARMSTRONG, Karen.The First Christian: St Paul’s Impact on Christianity . Londres: Pan Books, 1984, p. 45. 21. Atos 9: 3-5. 22. FREEMAN, Charles.A New History of Early Christianity . New Haven: Yale University Press, 2009, p. 210. 23. Para mais sobre o assunto ver WATSON, Peter.The Great Divide . Londres: Weidenfeld & Nicolson, 2012. 24. Minha informação é retirada de SILVERMAN, Helaine e PROULX, Donald.The Nasca . Londres: Wiley-Blackwell, 2002; e MOSLEY, Michael. The Incas and Their Ancestors: The Archaeology of Peru . Londres: Thames & Hudson, 1992. 25. NICKELL, Joe. Unsolved Mysteries . Lexington: Kentucky University Press, 2005. 26. Ver o trabalho de David Beresford-Jones do McDonald Institute for Archaeological Research, Universidade de Cambridge. 27. ROBINSON, J. Armitage.The Passion of St Perpetua . Cambridge: Cambridge University Press, 1891; e FREEMAN, Charles. Op.cit., p. 205. 28. WOODS, David. “On the Death of the Empress Fausta”,Greece & Rome , v. xlv, p. 70-83. 29. FREEMAN, Charles. Op.cit., p. 237, citando Eusébio. 30. HOLLAND, Tom. In the Shadow of the Sword. Londres: Little, Brown, 2012, p. 40-1. 31. Ver KENNEDY, Hugh.The Great Arab Con quests . Londres: Weidenfeld & Nicolson, 2007, p. 56. Parte quatro: Além da miscigenação confusa 1. NORWICH, John Julius.The Popes: A History . Londres: Chatto & Windus, 2011, cap. V. 2. KEAY, John.China: A History , p. 231. 3. MORRIS, Ian. Why the West Rules: For Now . Londres: Profile Books, 2010, p. 337. 4. DAVIES, Norman. Europe: A History. Oxford: Oxford University Press, 1996, p. 222ss. 5. Citado por LYONS, Jonathan.A casa da sabedoria . Rio de Janeiro: Zahar, 2011. 6. Ibid., cap. 3. 7. Ibid. Eu me baseei bastante neste livro para escrever sobre al-Khwarizmi e Averróis. 8. CLEMENTS, Jonathan.The Vikings. Londres: Robinson, 2005, p. 103. 9. HOSKING, Geoffrey.Russia and the Russians . Londres: Allen Lane, 2001, p. 31. 10. CLEMENTS, Jonathan. Op.cit., p. 12-13. 11. SHEPARD, Jonathan em PERRIE, Maureen (org.).The Cambridge History o f Russia , v. 1, p. 54-6. 12. MACCULLOCH, Diarmaid.A History of Christianity. Londres: Allen Lane, 2009, p. 507. 13. GOODWIN, A. J. H. “The Medieval Empire of Ghana”,The South African Archaeological Bulletin , v. 12, no 47, p. 108-12. 14. LEVTZION, Nehemia.Ancient Ghana and Mali . Nova York: Holmes & Meier, 1980, p. 125-6. 15. Ver CHAMI, Felix e MSEMWA, Paul. “A New Look at Culture and Trade on the Azanian Coast”, Current Anthropology , v. 38, no 4, p. 673ss. 16. AL-UMARI, citado em HOPKINS, J. F. P (org. e trad.).Corpus of Early Arabic Sources for West African History . Cambridge, Cambridge University Press, 1981, p. 266-8. 17. BATTUTA, Ibn, citado em HOPKINS, J. F. P. Op.cit., p. 283ss. 18. FAGE, J. D. A History of West Africa . Nova York: Cambridge University Press, 1969, p. 24. 19. Ver, por exemplo, READER, John.Africa: A Biography of the Continent . Londres: Penguin, 1997, que também forneceu a fonte que utilizei sobre a dificuldade de estimular camelos.
20. KHALDUN, Ibn, citado em OLIVER, Roland (org.).The Cambridge History of Africa , Cambridge: Cambridge University Press, v. 3, 1977, p. 379. 21. OLIVER, Roland (org.). Op.cit., v. 3, p. 391. 22. FERNANDEZ-ARMESTO, Felipe.Civilisations . Londres: Pan Books, 2000, p. 98. 23. Ivan Hrbek em OLIVER, Roland (org.). Op.cit., p. 90. 24. READ, Charles Hercules, citado em Neil MacGregor.A história do mundo em 100 obj etos . Rio de Janeiro: Intrínseca, 2013. 25. Ver MAN, John.Genghis Khan: Life, Death, and Resurrection . Nova York: Bantam, 2004, p. 34. 26. Ibid., p. 15-17. 27. KEAY, John.China: A History , p. 357. 28. Ver FIGES, Orlando.Natasha’s Dance . Londres: Penguin, 2002, cap. 6. 29. MORRIS, Ian. Op.cit., p. 392. 30. MAN, John. Op.cit., p. 137. 31. HUMBLE, Richard.Marco Polo. Londres: Weidenfeld & Nicolson, 1975, p. 209. 32. WOOD, Frances. Marco Polo foi à China? Rio de Janeiro: Record, 1997. 33. GASCOIGNE, Bamber.The Dynasties of China . Londres: Robinson, 2003, p. 128. 34. BERNSTEIN, William J.Uma mudança extraordinária . Rio de Janeiro: Campus, 2009. 35. WOOD, Frances. Op.cit. 36. Ibid. 37. Ver NORWICH, John Julius.A History of Venice . Londres: Penguin Books, 1983, p. 215-16. 38. Ver MORRIS, Ian. Op.cit., p. 396-8. 39. Ver ACEMOGLU, Daron e ROBINSON, James A.Por que as nações fracassam: As srcens do poder, da prosperidade e da pobreza. Rio de Janeiro: Campus, 2012. 40. Ver NORWICH, John Julius.Byzantium: The Decline and Fall . Nova York: Viking Books, 1995, p. 17; e HERRIN, Judith. Byzantium. Penguin Books, 2007, p. 250. 41. NORWICH, John Julius.Byzantium: The Early Centuries. Londres: Penguin Books, 1990, p. 25. 42. NORWICH, John Julius.Byzantium: Decline and Fall . Nova York: Viking, 1995, p. 182; e a citação anterior é de Nicetas Choniates, em NORWICH, John Julius.Decline and Fall, p. 179. 43. JIAHUA, Zhou. “Gunpowder and Firearms”. In:Ancient China’s Technology and Science . Chinese Academy of Sciences, Foreign Language Press, 2009, p. 185-9. 44. Ver HERRIN, Judith. Byzantium . Londres: Allen Lane, 2007, p. 142. 45. Ver NORWICH, John Julius.Byzantium: The Apo gee , p. 323; e NORWICH, John Julius.Byzantium: Decline and Fall , p. 420. 46. NORWICH, John Julius.Byzantium: Decline an d Fall , p. 429. 47. The Notebooks of Leonardo da Vinci . Oxford: Oxford World Classics, 2008. 48. Ver GILMOUR, David.The Pursuit of Italy . Londres: Penguin, 2011, cap. 3. 49. Para uma boa explicação sobre isso, e sobre o sistema dos ateliês, ver RUBIN, Patricia Lee e WRIGHT, Alison. Renaissance Florence:
The Art of the 1470s . Londres: National Gallery Publications, 1999. 50. VASARI, Giorgio. Lives of the Artists . Londres: Penguin, 1965, p. 233. 51. Ver o ensaio de Martin Kemp e Jane Roberts emLeonardo da Vinci. Londres: South Bank Publications/Hayward Gallery, 1989. Parte cinco: O mun do s e e xpande 1. WILSON, James. The Earth Shall Weep . Nova York: Grove Press, 1998, p. 20, trabalhando com base nos números fornecidos por Russell Thornton. 2. WILSON, James. Op.cit., p. 21. 3. THOMAS, Hugh. Rivers of Gold . Londres: Weidenfeld & Nicolson, 2003, p. 63 e notas em Toscanelli. 4. Ibid. p. 124. 5. Ver CANTOR, Norman.The Sacred Chain . Nova York: HarperCollins, 1995, p. 190. 6. Ver os que primeiros capítulos de ACEMOGLU, Daron e ROBINSON, James A.Por que as nações fracassam. Rio de Janeiro: Campus, 2012, segue esse argumento em mais detalhes. 7. MORRIS, Ian. Why the West Rules: For Now . Londres: Profile Books, 2010, p. 460-3. 8. LANDES, David. The Wealth and Poverty of Na tions . Cambridge: Massachusetts Harvard University Press, 1998, cap. 12.
9. BENECKE, Gerhard.Society and Politics in Germany, 1500-17 50 . Londres: Routledge & Kegan Paul, 1974. 10. Sobre Gutenberg, ver FUSSEL, Stephan.Gutenberg and the Impact of Printing . Aldershot: Ashgate, 2005, trad. Douglas Martin; sobre Lutero e impressão, ver ROBISHEAUX, Thomas.Rural Society and the Search f or Order in Early Modern Germany . Durham: Duke University Press, 1989. 11. MACCULLOCH, Diarmaid. Reformation. Londres: Allen Lane, 2003, p. 152. 12. PASLEY, Malcolm.Germany: A Companion Guide to Social Studies . Londres: Methuen, 1972. 13. MACCULLOCH, Diarmaid. Op.cit., p. 160. 14. Estes números são de DAVIS, Robert C. “Counting Slaves on the Barbary Coast”. In: Past and Present, v. 172, ago. 2001, e do seu Christian Slaves, Muslim Masters . Basingstoke: Palgrave Macmillan, 2003. 15. Citado em OSTROWSKI, Donald. “The Growth of Muscovy”. In: PERRIE, Maureen (org.). The Cambridge History of Russia , v. 1, 2006, p. 227. 16. SEMYONOV, Yuri.The Conquest of Siberia . Londres: George Routledge & Sons, 1944, p. 11. 17. SKRYNNIKOV, R. G., citado em WOOD, Alan.Russia’s Frozen Frontier . Londres: Bloomsbury Academic, 2011, p. 28. 18. RHODES, Neil (org.) et al.King James VI and I: Selected Writings . Aldershot: Ashgate, 2003. 19. FARRINGTON, Antony (org.).The English Factory in Japan . Londres: British Library, v. 1, 1991, p. 296. 20. Ver MASON, R. H. P. e CAIGER, J. G.A History of Japan . Tuttle Publishing, 1997; e HALL, John Whitney (org.). The Cambridge History of Japan, v. 4, 1991. 21. MORRIS, Ian. Op.cit., p. 451. 22. Citado em FARRINGTON, Antony. Op.cit., p. 75. 23. NEAL, Larry. The Rise of Finan cial Capitalism . Cambridge: Cambridge University Press, 1990, cap. 1. 24. Para preços comparativos, ver DASH, Mike.Tulipomania. Londres: Victor Gollancz, 1999, p. 123, 183. Nesta parte me baseei principalmente neste livro e no de GOLDGAR, Anne.Tulipmania. Chicago: University of Chicago Press, 2007. Para uma visão geral da república holandesa do período, nenhum livro superou The Embarrassment of Riches de Simon Schama (Knopf, 1987). 25. DASH, Mike. Op.cit., p. 134. Parte seis: Sonhos de liberdade 1. RESTON JR., James. Galileu: Uma vida . Rio de Janeiro: José Olympio, 1995. 2. Ibid., p. 74. 3. HEILBRON, J. L. Galileo . Oxford: Oxford University Press, 2010, p. 358. 4. Citdo em JARDINE, Lisa.Going Dutch . Londres: HarperPress, 2008, p. 56-7. 5. RODGER, N. A. M.The Command o f the Ocean . Londres: Allen Lane, 2004, p. 151. 6. Ver STARKEY, David.Crown and Country . Londres: HarperPress, 2010, p. 394. 7. HEILBRON, J. L. Op.cit., p. 258. 8. KEAY, John.India: A History , p. 251. 9. p. 322. 10.Ibid., Ver PEARSON, Roger.Voltaire Almighty. Nova York: Bloomsbury, 2007, cap. 13. 11. Ibid. 12. Todas essas histórias podem ser encontradas em PEARSON, Roger. Op.cit. Uma esplêndida introdução ao mundo e também à vida de Voltaire. 13. CLARK, Christopher. Iron Kingdom: The Rise and Downfall of Prussia . Londres: Penguin Books, 2006, cap. 7; a descrição da execução de Katte vem da mesma fonte. 14. Ibid., cap. 8. 15. FERLING, John. Independence: The Struggle to Set America Free. Nova York: Bloomsbury Press, 2011, cap. 2. 16. Números fornecidos pela Economic History Association/Jenny B. Wahl. 17. TAKAKI, Ronald. A Different Mirror. Londres: Little, Brown, 1993, p. 31. 18. Ibid., p. 45. 19. p. 45. 20. Ibid., Ver KENEALLY, Thomas.Australians: Origins to Eureka . Sidney: Allen & Unwin, 2010, p. 127. 21. DIAMOND, Jared. Armas, germes e aço . Rio de Janeiro: Record, 2001. 22. TENCH, Watkin.A Complete Account of the Settlement at Port Jack son (publicado na internet pelo Projeto Gutemberg).
23. KENEALLY, Thomas. Op.cit., p. 18. 24. WILLIAMS, Glyndwr (org.).Captain Cook’s Voyages. Londres: Folio Society, 1997, p. 125. 25. Ver GOTT, Richard.Britain’s Empire: Resistance, Repression and Revolt . Londres: Verso, 2011, p. 84. 26. HOLMES, Richard.The Age of Wonder . Londres: HarperPress, 2008, p. 37. 27. GATRELL, V.The Hanging Tree . Oxford: Oxford University Press, 1994. 28. GOTT, Richard. Op.cit., p. 85. 29. Ver SMITH, Keith. “Bennelong among His People”. In: Absrcinal History , 33, p. 10. 30. TENCH. Op.cit. 31. JAMES, C. L. R. Os negros jacobinos . São Paulo: Boitempo, 2000, cap. IV. Embora tenha sido escrito pelo West Indian Marxist em 1938 e contenha algum material hoje obsoleto sobre o brilhantismo de Lênin e a iminente revolução africana, continua sendo um relato essencial e uma pesquisa excelente sobre a revolta do Haiti. 32. REDIKER, Marcus. O navio negreiro . São Paulo: Companhia das Letras, 2011. 33. WHITE, Matthew. Atrocitology . Edimburgo: Canongate, 2011, p. 161. 34. JAMES, C. L. R. Op.cit., p. 140. 35. Ibid., p. 197. 36. ALLEN, Arthur. Vaccine. Nova York: W. W. Norton, 2007, p. 36-49. 37. Para esses e outros números ver CHASE, Allan.Magic Shots. Nova York: W. Morrow, 1983, p. 42-9. 38. Ibid. Parte sete: O capitalismo e seus inimigos 1. MCNEILL, J. R. Something New Under the Sun: An Environmental History of the Twentieth-Century World Norton, 2000, cap. 3.
. Nova York: W. W.
2. R. Op.cit., cap. 5. Revolution . Nova York: W. W. Norton, 2011, p. 60. 3. MCNEILL, APPLEBY, J. Joyce. The Relentless 4. WATSON, J. Steven.The Reign of George III . Oxford: Oxford University Press, 1960, p. 33. 5. APPLEBY, Joyce. Op.cit., p. 80-3, e MOKYR, Joel,The Enlightened Economy: Britain and the Industrial Revolution 1700-1850 . New Haven: Yale University Press, 2009, cap. 1. 6. MOKYR, Joel. Op.cit., cap. 1. 7. HILL, Christopher. The Century of Revolution, 1602-1715 . Edimburgo: Edinburgh University Press, 1961, p. 32; também citado em Appleby, p. 40. 8. HERMAN, Arthur. The Scottish Enlightenment . Londres: Fourth Estate, 2001, p. 142. 9. LORD, John. Capital and S team Power . Londres: 1923, cap. IV. 10. Ver HERMAN, Arthur. Op.cit., p. 306. 11. Por LORD, John. Op.cit. 12. a obra Joel. brilhante de Jenny 13. Ver MOKYR, Op.cit., cap. 7.Uglow sobre eles,The Lunar Men . Londres: Faber & Faber, 2002. 14. Ver FREEZE, Gregory L.Russia: A History . Oxford: Oxford University Press, 1997, p. 201. 15. Esta história é brilhantemente contada em FIGES, Orlando.Natasha’s Dance . Londres: Allen Lane, 2002, p. 96ss. Esse é um guia indispensável para a época e, ao contrário de tantos livros sobre os russos, é muito bem escrito. 16. BARTLETT, Rosamund.Tolstói: A biografia . São Paulo: Biblioteca Azul, 2013, cap. 6. 17. FIGES, Orlando. Op.cit., p. 238. 18. Ver WILSON, A. N.Tolstoy. Londres: Hamish Hamilton, 1988, p. 334. 19. SANDBURG, Carl. Abraham Lincoln: The War Years, v. IV. Nova York: Harcourt, Brace, 1939, p. 176-7. 20. Ibid., v. III, p. 441. 21. MITGANG, Herbert.Abraham Lincoln: A Press Portrait. Chicago: Quadrangle, 1971, p. 476-8. 22. Ver MCPHERSON, James M.Drawn with the Sword: Ref lections on the American Civil War . Oxford: Oxford University Press, 1996, II, cap.Esmond. 5. 23. parte WRIGHT, An Empire for Liberty. Oxford, Blackwell, 1995, p. 472-3. 24. WRIGHT, Esmond. Op.cit., p. 466. 25. REYNOLDS, David.America: Empire of Liberty. Londres: Allen Lane, 2009, cap. 6.
26. Citado em MCPHERSON, James M. Op.cit., cap. 1. 27. GENOVESE, Eugene D.The Political Economy of Slavery . Nova York: 1965, citado em MCPHERSON, James. Op.cit., cap. 1. 28. BRANDS, H. W. American Colossus. Nova York: Random House, 2010, p. 145-6. 29. Estes detalhes foram retirados de RAVINA, Mark.The Last Samurai: The Life and Battles of Saigo Takamori . Hoboken: John Wiley, 2004, o primeiro e os últimos capítulos. 30. Um bom relato da história dos samurais pode ser encontrada em DUNN, J.Everyday Life in Traditional Japan . Londres: Tuttle Publishing, 1969, cap. 2. 31. YASHUSHI, Aizawa, citado por GORDON, Andrew.A Modern History of Japan . Nova York: Oxford University Press, 2009, p. 20-1. 32. RAVINA, Mark. Op.cit., Cap. 1. 33. RAVINA, Mark. Op.cit., p. 196. 34. Ver TURNBULL, Stephen.Samurai: The World of the Warrior. Oxford: Osprey Publishing, 2003, cap. 9. 35. HOCHSCHILD, Adam. O fantasma do rei Leopoldo . São Paulo: Companhia das Letras, 1999. Meu relato se baseia tanto nesse livro quanto no de READER, John.Africa: A Biography of the Continent. Londres: Penguin, 1998. 36. Os relatos de Lin e as primeiras fases da Primeira Guerra do Ópio foram retirados de HANES III, W. Travis e SANELLO, Frank. The Opium Wars. Naperville: Sourcebooks, 2002; e BEECHING, Jack. The Chinese Opium Wars. Nova York: Harvest/HBJ, 1975. 37. Ver KEAY, John.China: A History . Londres: HarperPress, 2009, p. 446-9. 38. TUCHMAN, Barbara. The Zimmermann Telegram. Nova York: Viking Press, 1958, p. 107. 39. Ibid., p. 108. 40. Ibid., p. 183-7. 41. Ibid., p. 200. 42. Ver CLARK, Ronald W.Lenin: The Man behind the Mask . Londres: Faber & Faber, 1998, p. 196-210. Parte oito: 1918-2012: Noss os tempos 1. GROSSMAN, Vasily.Everything Flows . Londres: Vintage Classics, 2011, p. 220. 2. PINKER, Steven. The Better Angels of Our Nature . Londres: Allen Lane, 2011, p. 195. 3. Ver HAGER, T.The Alchemy of Air. Nova York: Harmony Books, 2008, citado por CHARLTON, Andrew, Man-Made World , ensaio sobre as consequências da conferência sobre mudanças climáticas de Copenhague, 2010. 4. FLOOD, Charles Bracelen. Hitler: The Path to Power. Londres: Hamish Hamilton, 1989, p. 589. 5. BULLOCK, Alan. Hitler: A Study in Tyranny . Londres: Hamlyn, 1952/1973, cap. 3. 6. HITLER, Adolf. Minha luta . São Paulo: Centauro, 4a ed., 2005. 7. Ibid. 8. KERSHAW, Ian. Hitler. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. 9. KEMP, Martin.Christ to Coke . Nova York: Oxford University Press, 2011, p. 74. 10. KERSHAW, Ian. Op.cit., p. 127-9. 11. BULLOCK, Alan. Op.cit., cap. 3. 12. HITLER, Adolf. Op.cit., p. 128. 13. Ibid., p. 596-7. 14. SNYDER, Timothy.Terras de sangue: A Europa entre Hitler e Stalin . Rio de Janeiro: Record, 2012. 15. KERSHAW, Ian. Op.cit., p. 270. 16. GRAY, Madeline.Margaret Sanger: A Biography of the Champion of Birth Control. Nova York: Richard Marek, 1979, p. 37. 17. Ver FIELDS, Armond.Katharine Dexter McCormick . Westport: Praeger, 2003, cap. 20. 18. KATZ, Esther (org.).The Selected Papers of Margaret Sanger . Champaign: University of Illinois Press, v. 3, 2010, p. 265. 19. ASBELL, Bernard.The Pill. Nova York: Random House, 1995, p. 121. 20. JÜTTE, Robert. Contraception: A History . Cambridge: Polity, 2008, p. 210. 21. ASBELL, Bernard. Op.cit., p. 169. 22. HASTINGS, Max. Inferno: O mundo em guerra 1939-1945 . Rio de Janeiro: Intrínseca, 2012. 23. KERSHAW, Ian. Op.cit., p. 656. 24. SNYDER, Timothy. Op.cit. 25. Ibid. 26. HASTINGS, Max. Op.cit.
27. Ibid. 28. BIRD, Kai e SHERWIN, Martin J. American Prometheus: The Triumph and Tragedy of J. Robert Oppenheimer. Alfred Knopf/Atlantic Books, 2009, p. 287-9. Muito do que digo sobre Oppenheimer foi retirado dessa excelente biografia. 29. Ibid., p. 296, 314. 30. Ibid., p. 314. 31. Ibid., p. 323. 32. ADAMS, Jad. Gandhi: Ambição nua . São Paulo: Geração Editorial, 2012. 33. KEAY, John.India: A History . Londres: HarperPress, 2000, p. 486. 34. ADAMS, Jad. Op.cit. 35. ADAMS, Jad. Op.cit. 36. Ver LAPPING, Brian.End of Empire. Londres: Granada, 1985, p. 24ss. 37. Ver ROBERTS, Andrew.A History of the English-Speak ing Peoples Since 1900 . Londres: Weidenfeld & Nicolson, 2006, p. 12. 38. KEAY, John.India: A History , p. 450-1. 39. Ibid., p. 475-6. 40. ADAMS, Jad. Op.cit., p. 229. 41. DOWDEN, Richard.Africa: Altered States, Ordinary Miracles . Londres: Portobello Books, 2008, p. 84. 42. GADDIS, John Lewis.História da Guerra Fria . Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006. 43. Ver FENBY, Jonathan.The Penguin History of Modern China , 2009, p. 92. 44. Ver CHANG, Jung e HALLIDAY, Jon. Mao: The Unknown Story . Londres: Jonathan Cape, 2005. 45. Ver ibid., p. 342. 46. SALISBURY, Harrison E.The New Emperors: China in the Era of Mao and Deng . Londres: Little, Brown, 1992, p. 3-4. 47. De MACFARQUHAR, Roderick e SCHOENHALS, Michael.Mao’s Last Revolution . Cambridge: Harvard University Press, 2006. 48. EVANS, Richard.Deng Xiaoping and the Mak ing of Modern China . Londres: Hamish Hamilton, 1993. 49. FENBY, Jonathan.Tiger Head , Sn ak e Tails . Londres: Simon & Schuster, 2012, cap. 1. 50. Ibid., cap. 1. 51. JACQUES, Martin.When China Rules the World . Londres: Penguin Books, a2ed., 2012, p. 518. 52. Esta parte foi sugerida por Chris O’Donnell, um dos pesquisadores da BBC e produtores assistentes History de of the World , e se deve em grande parte a ele. 53. HSU, Feng-Hsiung. Behind Deep Blue . Princeton: Princeton University Press, 2002, p. 4. 54. Ibid., p. ix-x. 55. KASPAROV, Garry.New York Review of Book s, 11 fev. 2010. 56. Ver CREVIER, Daniel. AI: The Tumultuous Search for Artificial Intelligence . Nova York: Basic Books, 1993. 57. KURZWEIL, Ray. The Singularity Is Near . Londres: Duckworth, 2009, cap. 1. 58. Citado em NILSSON, Nils J. The Quest for Artificial Intelligence . Redwood City: Stanford University Press, 2010, versão para a internet, p. 647. 59. LOVELOCK, James. A vingança de Gaia. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2006. 60. MCNEILL, J.R., Something New Under the Sun . Nova York: W. W. Norton, 2000, cap. 2.
BIBLIOGRAFIA
Histórias ge rais Das histórias gerais que li, duas, escritas por historiadores britânicos, destacam-se pela excepcionalidade: a enorme e magistral History of the World, de J. M. Roberts, publicada pela Penguin (usei a edição de 2007) eThe Times Complete History of the World, de Richard Overy, publicada em 1978.Civilisations (Pan Books, 2000), de Felipe Fernandez-Armesto, vívida e inspiradora como sempre. A história do mundo em 100 objetos (Intrínseca, 2013), de Neil MacGregor, esteve comigo durante todo o caminho até as etapas finais deste projeto, fornecendo um exemplo aterrador de como escrever sobre um campo tão amplo com inteligência e erudição. O historiador americano William Hardy McNeill, cuja obraWorld History utilizei, na edição de 1998 da Oxford University Press, é um titã quando se trata de narrar a história geral. Eu realmente recomendo The Human Web , escrito em coautoria com J. R. MacNeill (W. W. Norton, 2003). J. R. MacNeill é também autor de Something New Under the Sun , uma excelente obra da história ambiental da humanidade do século XX, lançada em 2001 na série The Global Century Series. E, para se ter uma visão geral, recomendo bastanteBig History, de Cynthia Stokes Brown (W. W. Norton & co, 2007). Praticamente todo mundo, concordando com tudo o que ele diz ou não, foi influenciado pelo trabalho de Jared Diamond, cujasArmas, obras germes e aço , Colapso e O terceiro chimpanzé são leituras essenciais. Escrita por Ian Morris, um dos grandes defensores da grandehistória,Why the West Rules: For Now (Profile, 2010) também é essencial. E fui bastante influenciado pelos livros The Better Angels of Our e (Canongate, 2011), de Matthew White. Outras recomendações de obras gerais Nature (Allen Lane, 2011), de Steven Pinker, Atrocitology são Why Nations Fail (Profile, 2012), de Daron Acemoglu e James A. Robinson eThe Origins of Political Order (Profile, 2011), de Francis Fukuyama. Livros utilizados e citados A lista a seguir não contém todos os livros em parte ou integralmente lidos para este volume — outros podem ser encontrados nas notas —, mas inclui os que considerei especialmente úteis. Em um projeto deste alcance, é provavelmente inevitável que muitos trabalhos de grande prestígio e importância sejam deixados de lado ou esquecidos: se acontecer de algum dos autores dessas obras fazer a crítica deste livro, neste caso, estou especialmente constrangido. ASBELL, Bernard. The Pill. Nova York: Random House, 1995. ADAMS, Jad. Gandhi: Ambição n ua . São Paulo: Geração Editorial, 2012. ADSHEAD, S. A. M. “Dragon and Eagle”,Journal of South-East Asian History , v. 2, out. 1961. ALEXANDER, Caroline. A guerra que matou Aquiles: A verdadeira história da Ilíada . Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2014. ALLEN, Arthur. Vaccine. Nova York: W. W. Norton, 2007. APPLEBAUM, Anne. Gulag: Uma história dos campos de p risioneiros soviéticos . Rio de Janeiro: Ediouro, 2004. APPLEBY, Joyce. The Relentless Revoluti on: A History of Capitalism . Nova York: W. W. Norton, 2011. ARMSTRONG, Karen. The First Christian: St Paul’s Impact on Christianity . Londres: Pan Books, 1984. ______________. A Bíblia: Uma biografia. Rio de Janeiro: Zahar, 2007. ______________. A grande transformação: O mundo na época de Buda, Conf úcio e Jeremias . São Paulo: Companhia das Letras, 2008. AXWORTHY, Michael.Iran: Empire of the Mind . Londres: Penguin, 2008. BAGNALL, Nigel. The Punic Wars. Londres: Pimlico, 1990. BAINTON, Roland H. Here I Stand: A Life of Martin Luther . Londres: Pierce & Smith, 1950. BARTLETT, Rosamund.Tolstói: A biografia. São Paulo: Biblioteca Azul, 2013. BEECHING, Jack. The Chinese Opium Wars. Nova York: Harvest, 1975. BEEVOR, Anthony.Berlim 1945 : A queda . Rio de Janeiro: Record, 2004. BENECKE, Gerhard. Society and Politics in Germany, 1500-17 50 . Londres: Routledge & Kegan Paul, 1974. BERNSTEIN, William J.Uma mudança extraordinária . Rio de Janeiro: Campus, 2009. BICKERS, Robert. The Scramble for China . Londres: Allen Lane, 2011. BIERBRIER, Morris. The Tomb-Builders of the Pharao hs . The American University in Cairo Press, 1992. BIRD, Kai e Martin J. Sherwin. American Prometheus: The Triumph and Tragedy of J. Robert Oppenheimer. Nova York: Alfred Knopf/Atlantic Books, edição de bolso, 2009.
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SOBRE O AUTOR
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ANDREW MARR nasceu em Glasgow, Escócia, e se formou em letras pela Universidade de Cambridge. Com uma longa carreira no jornalismo político, foi colaborador de diversos veículos como The Scotsman, The Independent, The Daily Express e The Observer. De 2000 a 2005 foi editor de política da BBC. É roteirista e apresentador de vários documentários para a TV sobre história, ciências e política e está à frente de programas semanais nas rádios BBC e Radio 4.
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