MAURICE
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TEORIAS DO VALOR E DISTRIBUIÇÃO DESDE ADAM SMITH Tradução de
ÁLVARO DE FIGUEIREDO
EDI EDITORI TORIAL AL PRESE PRESENÇA NÇA PORTUGAL
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LIVRARI LIVRARIA A MART MARTIINS FO FONT NTEES BRASIL
BIBLIOTECA DE TEXTOS UNIVERSITARIOS 1. O MU NDO ND O DE ULISSE UL ISSE S, por H. I. Finley 2. A ID E IA DE HISTORIA, por R. G. Collingwood 3. TEO RIAS DA AR TE , por por Arnolã Hauser 4. 5. 6.
O REN ASCIM ENTO ITA LIA N O , por por Jacob BurcJchardt O SUICÍDIO, por Emile Durkheim A L IN G U IST IC A DO DO SÉCULO SÉCULO XX, por Georges Mounin
7. 8.
GE OG RAF IA HU M AN A I, por por Max Derruau GEO GRA FIA HU M AN A II, por por Max Derruau
9. BAR ROC O E CLAS SICISM O I, por Victor Taipié 10. UR BA NIS M O CON TEM PORÂ NEO , por Hans Mausbach 11. BARR OCO E CLA SSIC ISMO H, por Victor Tapié 12. PRO BLE MA S DE INV ES TIG AÇ ÃO EM SOCIOLOGIA URBANA, por Manuel Gastells 13. CONCEITOS FUNDAMENTAIS DA LINGUISTICA, por André Martinet 14. A INVESTIGAÇÃO NAS CIÊNCIAS SOCIAIS, por João Ferreira de Almeida e José Maduretora Pinto 15. CA PIT AL ISM O E MO DER NA TE O R IA SOCIAL, SOCIAL, por por Anthony Giddens 16.
MOD ALIDADES DE PEN ETR AÇÃ O DO CA PITA LISM O NA AGRICULTURA, por Eduardo de Freitas, João Ferreira de Almeida e Manuel Villaverde Cabral 17. TEO RIAS DO VA LO R E DISTRIBUIÇÃ O DESDE DESDE AD AM SMITH, por Maurice Dobb
Este livro acabou de se imprimir em Março de 1977 para EDITO RIAL
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NOTA DE AGRADECIMENTO
Será evidente para todos os leitores, em especial do Capítulo 3 deste livro, o muito que o autor deve ao esclarecimento de Ricardo, proporcionado pela inter- pretação de Piero Sraffa, na sua extraordinária edição de The Works and Correspondence of David Ricardo, há vinte e poucos anos — para não falar da obra mais recente de Sraffa, que está resumida (sem dúvida que imperfeitamente) no Capítulo 9. Pela leitura e comentário crítico acerca de alguns aspectos do Capitulo X, o autor está igualmente muito reconhecido a Maurice Cornforth e à Senhora Krishna Bharadwaj, e, também por isso, e ainda por ter examinado alguns trechos da parte final do livro, ao Dr. D. M. Nuti; e também a John Eatwell, por me ter permitido conhecer algumas ideias ainda não publicadas acerca da teoria do equilíbrio geral. Desejo ainda acres- centar que os absolvo a todos de qualquer responsabilidade nos erros e opiniões que neste livro se encontram. M. D.
1. INTRODUÇÃO:
A PROPÓSITO DE IDEOLOGIA. I
Nos tempos recentes, tem-se acentuado o debate em torno daquilo a que se chama o elemento «ideológico» da teoria económica (como da teoria social em geral). Ao entrar neste debate, na fase actual, seria fastidioso começar por uma genealogia e procurar uma definição original e precisa do termo. A este respeito, bastará dizer, por agora, que embora o conceito se relacione muito com a «falsa consciência» hegeliana, que serve para ocultar ao homem a visão de si próprio e das suas condições de existência, não vai ser tomado neste sentido, e ainda menos para exprimir exclusivamente o elemento enga nador em pensamento (sentido em que alguns o têm utilizado). O conceito referir-se-á principalmente ao cunho de relatividade histórica das ideias, quer considere este apenas um elemento ou aspecto das mesmas, quer se entenda que este as caracteriza inteiramente. Mas essa relatividade histórica pode abranger quer a visão total quer a visão parcial,* e é talvez isto o que constitui * Oskar Lange, Political EoonomyI Ed. ingl (Varsóvia e Londres,, 1963) Vol. I, pp. 327-30. Numa «Nota sobre ideologia e tendências em investigação económica», International Social Sciences Journal (UNESCO), Boi. XVI, N.° 4, 1964, p. 525, Oskar Lange escreveu: «As influências ideológicas nem sempre conduzem à degenerescência apologética da ciência social. Em certas condições, podem ser um estímulo de investigação verdadeiramente objectiva.» 9
a verdadeira natureza da situação, desafiando por con seguinte qualquer separação analítica radical. Será este de qualquer modo, o significado que teremos sobre tudo em mente nas considerações que se seguem. Talvez seja desnecessário acrescentar que sempre que se utilizar a palavra «ideologia», esta se referirá necessariamente a um sistema completo de pensamento, ou a um conjunto coordenado de convicções e ideias que formam uma estru tura, ou grupo, a nível superior, de conceitos relacionados, para chegar a noções, análises, aplicações e conclusões mais específicas e particulares. Deste modo, a palavra relacionar-se-á geralmente com certas actividades e polí ticas, mas não necessariamente em termos simples e ime diatos; e para aqueles que conduzem a discussão ao nível mais elevado (ou mais genérico), a relação pode não ser sempre inteiramente consciente, e ainda menos explícita. Na acepção mais geral, uma ideologia constitui ou implica uma posição filosófica, no nosso contexto actual uma filo sofia social, desde que a isto se não dê um significado excessivamente formal ou metodológico. No domínio da economia política ou da teoria econó mica, o papel da ideologia (e, por implicação, a sua defi nição) tem sido tratado de maneiras diversas. Primeira mente, tem sido considerado em oposição à ciência, como conjunto de postulados morais e daquilo a que se chama «juízos de valor». Deste modo, é um elemento exterior introduzido na investigação objectiva e «positiva», que, embora penetre inevitavelmente na maior parte das ideias que se têm a respeito de questões práticas, merece ser depurado mediante uma análise mais rigorosa e uma definição mais precisa. É assim que a afirmação de que os factores de produção, num mercado de con corrência, têm os seus preços determinados segundo a sua produtividade marginal ou incremental, é por vezes posta em contraste com a afirmação de que as pessoas deveriam ser remuneradas de acordo com o seu contri buto para a produção, e esta última afirmação é posta de parte como intromissão não científica. As teorias sobre a determinação da repartição efectiva do rendi mento são igualmente confrontadas com os postulados
sobre as formas ideais de repartição do rendimento. Por vezes, enquanto se mantém este contraste entre um ele mento ideológico e um elemento científico, numa teoria ou doutrina, alargam-se as fronteiras do elemento ideológico, para incluir outras categorias de afirmações além das puramente morais: encontramos tais categorias com a designação, por exemplo, de afirmações «metafísicas»,* que não têm lugar numa teoria científica, visto não poderem ser verificadas ou postas de parte; apesar disso, desempenham a função de persuadir pessoas a adoptar certas atitudes e realizar certas actividades. Joseph Schumpeter, que entre os economistas moder nos, trouxe talvez a mais séria e completa contribuição para esta discussão, assumiu uma atitude algo diferente — talvez se possa dizer menos simplista — sobre
* Assim, a Professora Joan Robinson, em resposta à pergunta, «quais são os critérios que distinguem uma proposição moral de uma proposição científica», respondeu dizendo: «se uma propo sição ideológica for tratada de maneira lógica, ou se dissolve num ruído completamente destituído de significado ou se trans forma numa argumentação em círculo vicioso». Há aqui, ao que parece, uma assimilação destas proposições às concepções «meta físicas», as quais, ainda que «não destituídas de conteúdo» e «não pertencentes ao reino da ciência, são no entanto neces sárias à ciência», além de «terem desempenhado», nelo menos nas ciências sociais, «um papel importante e talvez indispensável». «Quer a ideologia possa ou não ser eliminada do mundo do pensa mento nas ciências sociais, o facto é que ela é indis pensável no mundo de acção da vida social.» A noção clássica de «valor» é aqui classificada como «uma das grandes ideias metafísicas em economia» (Joan Robinson, Economic Philosophy (Londres, 1964) pp. 7-9, 29 seg.). Cf. também a rejeição total da noção clássica (especialmente ricardiana) de «valor real», por ser «metafísica», em Gunnar Myrdal, The Political Element in the Development o/ Economic Theory, trad. P. Streeten (Londres, 1953) pp. 62-5. Ver, por outro lado, como comentário a este ponto, R. L. Meek, Economics anã Ideology and other Essays (Londres, 1967) pp. 210-15. 11
este assunto.* Aquilo que ele destacou com justeza e cha mou acertadamente «visão» — visão da forma com plexa da realidade e da natureza dos problemas que se põem à humanidade em qualquer situação histórica dada — é inevitavelmente ideológico. Deste modo, a ideo logia «penetra no autêntico rés-do-chão, no acto cognitivo pré-analítico», e com o próprio começo da teoria «mediante o material proporcionado pela nossa visão das coisas»; «[sendo] esta visão, quase por definição, ideológica», visto que «dá corpo à imagem das coisas, tal como nós as vemos».** A razão alegada parece ser menos a da perspec tiva historicamente condicionada do observador, inevita velmente limitada pelo tempo e lugar e posição na socie dade, do que a da atitude emocional que leva os homens a formar imagens agradáveis de si próprios e dos seus pares — o facto de «a maneira como vemos as coisas dificil mente se distinguir daquela como desejamos vê-las» (embora se acrescente que «quanto mais honesta e simples for a nossa visão, mais perigosa é para a eventual emer gência de qualquer coisa a que se possa atribuir validade geral»). E daqui conclui Schumpeter que, embora «Econo mia Política» e «Pensamento Económico» em geral*** tenham quase inevitavelmente de ser ideologicamente condicionados, a «análise económica» propriamente dita pode ser tratada como independente e objectiva — um
* Schumpeter começa por negar que a ideologia deva rada com «juízos de valor»; «os juízos de valor dum revelam frequentemente a sua ideologia, mas não ideologia» (History of Economic Analysis (Nova Iorque 1954) p. 37).
ser equipa economista são a sua e Londres,
** Ibid. pp. 41-2. ** * Economia Política é definida como «certos princípios unifica dores (normativos), por exemplo os princípios do liberalismo económico, do socialismo, etc.», que conduzem à defesa «dum con junto completo de políticas económicas»; Pensamento Económico é «a soma de todas as opiniões e desejos relativos a assuntos económicos, especialmente os relacionados com a política do Estado... que, em qualquer tempo e lugar dados, flutuam no pensamento público» (ibid., p. 38).
núcleo concreto de técnicas formais e instrumentos, que são dirigidos por padrões e regras supra-históricas, discuti dos e avaliados independentemente, e a respeito dos quais se pode compor uma história separada para responder sem ambiguidades a questões como «e em que sentido houve ‘progresso cientifico’ entre Mill e Samuelson».* Este ponto de vista schumpeteriano, com as restrições e muitas reservas que lhe são feitas, está claramente associado à visão mais grosseira e directa da «caixa de ferramentas» da análise económica, considerada (pelo menos na sua forma moderna) puramente instrumental, ocupada com técnicas que podem ser apli cadas a uma grande variedade de fins e situações. Neste sentido, não se interessa por juízos normativos; e não se ocupa dos objectivos específicos em análise — seja para esclarecer os problemas dum monopólio lucrativo, seja para explicar os problemas dos planeadores duma economia socialista. Esta concepção do papel do economista puro tem sido ajudada, naturalmente, pela voga das afirmações e métodos matemáticos em economia, que vai mesmo ao ponto de purificar o conteúdo de noções, elementos ou relações que não podem ser quantificados e expressos num sistema de equações. Acerca deste propósito de separar a técnica econó mica do seu produto, é certamente apropriado dizer apenas isto: Ou a «análise» de que fala Schumpeter é uma estrutura puramente formal, sem qualquer relação com problemas económicos ou conjuntos de questões para as quais é concebida como resposta (ou como contribuição para a resposta) — caso em que constitui um conjunto de proposições ou afirmações sem qualquer conteúdo económico—, ou então é um sistema lógico elaborado
* Ibid., pp. 38-9. Numa diposição de espírito análoga, o Professor
J. J. Spengler afirmou confiadamente que «sejam quais forem os efeitos da ideologia, tendem a perder importância à medida que a economia se aperfeiçoa e atinge autonomia científica» (em R. V. Eagley (ed.) Events, Ideólogy and Economic Thaory (Detroit, 1968) p. 175). 13
para ser o veículo de certas afirmações acerca de activi dades ou fenómenos económicos. Se se der o primeiro caso, não poderá ser identificada com a historia das teorias económicas do tipo daquelas que examinaremos adiante; visto que estas teorias, conforme notaremos, têm muito que ver com a afirmação económica, mesmo que em nível razoavelmente geral. Se se der o segundo caso, certamente que não pode ser separada das respostas às questões que inclui, e, portanto, da forma real (ou suposta) dos problemas económicos a cujo tratamento se destina — e isto por muito «rarefeita» ou abstracta que a estrutura da afirmação possa ser. Neste caso, não se pode pretender que seja «independente» do conteúdo e significado económico das proposições que são (como o próprio Schumpeter admite) condicionadas ideologicamente, e daqui resulta que não pode ser con siderada supra-ideológica. A análise teórica e a gene ralização são sempre construídas a partir da classificação, no sentido de se utilizar aquilo que foi classificado pri meiro como as suas unidades materiais ou meios de conta gem ; e o que é a classificação, senão um esquema de limi tes entre objectos descontínuos, que por sua vez derivam do modelo estrutural apreendido (ou que se pensa ter-se descoberto) no mundo real? O próprio Schumpeter torna isto evidente na definição que nos dá de «Visão» — «aquilo que surge primeiro... em qualquer tentativa científica»: e acentua, «antes de iniciarmos um trabalho analítico de qualquer espécie, temos de destacar primeiro o conjunto de fenómenos que desejamos investigar, e adquirir ‘intui tivamente’ uma primeira noção do modo como se agrupam, ou, por outras palavras, daquilo que se nos afigura, do nosso ponto de vista, serem as suas propriedades fundamentais.» * Dizer isto não é negar que se possa fazer um estudo separado de teoria económica apenas no seu aspecto analítico, e mesmo escrever uma história deste aspecto
* 14
Schumpeter, History of Economic Analysis, pp. 561-2.
per se, concebida como o aperfeiçoamento dum aparelho técnico (como se poderia escrever a historia de qualquer outra técnica).* Mas o que é duvidoso é que, se se fizesse esse estudo, ele pudesse ser considerado um estudo de uma secção separável e definível da própria matéria: isto é, como um conjunto de proposições ou afirmações para cujo suporte o esquema analítico foi concebido. Neste caso, teríamos, ao que parece, uma questão completamente dife rente. Claro que não é fácil separar uma apreciação sobre a análise enquanto instrumento, de um juízo de valor sobre o seu papel no quadro de uma aplicação específica. Mas seguramente que há uma diferença, e uma diferença crucial, entre uma discussão sobre a sintaxe e a que incide sobre o conteúdo de afirmações particulares modeladas em qual quer forma sintáctica dada. O que é muito discutível é se em economia, ou em qualquer ramo de ciência social, se se prestar atenção ao conteúdo económico duma teoria como distinto da sua estrutura analítica, qualquer parcela da teoria pode manter a independência e neutralidade que se atribui (com alguma razão) à própria análise formal:**
* E de supor que isto tivesse que ver com questões como as de tempo e oportunidade, quando o cálculo diferencial começou a ser utilizado como veículo de exposição económica, talvez com discussões quanto à sua adequação para certos usos e inadequação para outros; e o mesmo se diga em relação à utilização de «equações diferenciais», distintas da álgebra diferencial ou matricial; talvez também o conceito de elasticidade e a geometria de certos tipos de curvas e os tipos de teoria para os quais são relevantes. Mas convém lembrar que nas técnicas podem estar implícitos certos axiomas que escondem um certo conteúdo filosófico (cf. a nota da página 17). ** No entanto, existe a opinião que fo i expressa, por exemplo, pelo Professor F. A. Hayek, de que as proposições da teoria económica têm um carácter universal e necessário semelhante ao de «proposições sintéticas a priori»; isto porque os objectos que constituem a matéria das ciências sociais «não são factos fí sicos», mas sim conjuntos «constituídos» por «categorias familiares aos nossos próprios pensamentos». Daido que as leis ou princípios económicos não são regras empíricas, é de presumir que tenham, de acordo com esta posição, independência e neutralidade, 15
Esse conteúdo pode ser constituído por certo tipo de afir mações sobre a forma e funcionamento de processos eco nómicos reais, por muito genéricas ou particularizadas que tais afirmações pretendam ser. Deve ser seguramente este o caso, a menos que se esteja a fazer referência a um país completamente imaginário; e então teremos a análise concebida não como instrumento ou ferramenta, mas como um quadro ou um mapa. Na sua formação, a «visão» de Schumpeter tem essencialmente de entrar; a afirmação de que a teoria a envolve como relicá rio, enquanto «imagem» ou «mapa», depende intei ramente e está relacionada com essa «visão»*, e esta, como o próprio Schumpeter tão acertadamente acentua, está sempre relacionada com certo momento e situação social no processo da história. Não há aprecia ção de teoria econômica, e menos ainda qualquer exame histórico de sistemas de teorias, que pareça justificavelmente negar ou ignorar esta relatividade. Um «modelo» matemático pode ser (e deve ser, inter alia ) examinado no seu aspecto puramente formal, como estrutura com patível. Ao mesmo tempo, enquanto teoria económica, a sua própria estrutura é relevante para a afirmação que faz acerca da realidade — para a sua qualidade diagnostica. Preferindo uma estrutura à outra, o criador do modelo não só está a preparar um suporte ou estrutura dentro do qual o pensamento humano pode
tanto no conteúdo como na forma. Cf. citação e comentário a este modo de ver em Studies in the Development of Capitaltsm2 do autor (Londres, 1946) p. 27, n. . Talvez fosse qualquer coisa semelhante a isto o que Marshall teve em mente quando falou (em relação à base teórica do Comércio Livre) de «verdades económicas tão certas como as da geometria» ( Offioial Papers de Alfred Marshall (Londres, 1926) p. 388). * Pode supor-se, na verdade, que era esta a implicação da afirmação de Schumpeter que citámos, segundo a qual a ideologia «penetra no verdadeiro rés-do-chão, no acto cognitivo pré-analítico», acrescentando: «O trabalho analítico começa com o material pro porcionado pela nossa visão das coisas, e esta visão é ideológica quase por definição» ( History of Economic Analysis, p. 42). 16
operar, como também está a pôr em evidência certos factores e relações e a excluir outros ou a colocá-los na sombra;* e ao agir assim, pode julgar-se que está a distorcer ou esclarecer a realidade, proporcionando desta maneira uma base segura ou não para a inter pretação e previsão — é talvez mais provável que esteja a esclarecer certos aspectos ou facetas escondidas da realidade, ou certas situações que surgem à mente, ao mesmo tempo que está a eclipsar, ou a ocultar com pletamente, outros aspectos, facetas ou situações. Isto não significa, evidentemente, que qualquer distorção ou par cialidade desse tipo faça parte da intenção consciente do criador do modelo, que na realidade pode tê-lo escolhido por razões puramente formais, porque o considerou intelectualmente engenhoso ou esteticamente agradável. Mas na medida em que é influenciado pelas suas impli cações económicas — isto é, na medida em que está a pro curar ser um economista — a forma e projecção desse mo delo serão influenciadas pela sua visão do processo eco nómico, e pelas condições sociohistóricas que determinam e limitam a sua imagem mental da realidade social, sejam elas quais forem. No entanto, se algumas afirmações económicas, pelo menos as de nível mais geral, forem susceptíveis de ex pressão puramente matemática, a «imagem» da realidade económica a que dão corpo poderá parecer de carácter demasiado abstracto para sofrer, em grau considerável, o efeito de influências «ideológicas», e menos ainda para conter qualquer desvio ou parcialidade específica. Por isso, o conteúdo e a forma das afirmações podem ser aqui qualificados como «ideologicamente neutros» e «supra-históricos», pelo menos num grau suficiente para que qualquer elemento historicamente relativo seja pouco importante e justificadamente ignorado na sua elaboração. Tem-se dito frequentemente que um sistema de equações
* Mesmo a escolha da técnica pode não ser isenta de implicação material (p. ex., continuidade). 2
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simultâneas não é per se portador de implicação causal. Esse sistema não faz mais que descrever uma situa ção como um conjunto de inter-relações: uma situação composta por um grupo de elementos interiormente rela cionados e tratados isoladamente, falando em termos de comparação, daquilo que lhes é exterior, pelo menos na medida em que não entram em interacção. Mas não faz mais do que isto. No entanto, uma descrição deste tipo não chega a ser uma explicação, no sentido de descrever a situa ção como um processo económico que opera de uma certa maneira e sobre o qual é possível agir.* Para o conseguir, o sistema de equações deve dizer-nos algo mais; e este «algo mais» tem quase inevitavelmente uma forma causal, quer se trate duma interacção mútua complexa dum conjunto de variáveis, quer do tipo mais simples da ligação causal unidireccional.** Isto acontece muito correntemente, de facto, mesmo com aquilo que o leigo afirma serem * Neste contexto, convém não nos esquecermos da afirmação de Wittgenstein: «Na vida... usamos proposições matemáticas uni- camente para passarmos de proposições que não pertencem às mate máticas para outras que também não pertencem às matemáticas» (Tractatus logicophüosophicus (Londres, 1922) p. 169). ** Afirm ou-se que «a formulação de relações causais em termos de interdependência funcional é precisamente o objectivo das ciências mais avançadas, que passaram além dos conceitos impre cisos de causa e efeito» (T. W. Hutchison, The Significance anã Basic Postulates of Economic Theory (Londres, 1938) p. 71). Por outro lado, Mario Bunge afirmou que «a descoberta das inter-acções nem sempre esgota os problemas de determinação, a não ser que esteja em jogo uma simetria extrema», e que, por exem plo, «a interpretação corrente da mecânica dos quanta não põe de lado as causas e os efeitos, mas sim a sua rígida liga ção causal» (o que se chama «indeterminação quântica» e é «uma consequência da hipótese idealista inerente ao positi vismo moderno»). Acrescenta-se que «uma interpretação causal duma forma matemática... não pertence aos símbolos matemáticos, mas sim ao sistema de relações que ligam os signos com as entidades.... físicas, químicas, biológicas em questão. Por vezes, essa interpretação não é apresentada explicitamente, mas considera-se aceite» (Mario B|unge, Causality (Cambridge, Mass., 1959) pp. 14, 76-7, 164). 18
sistemas puramente formais, que descrevem uma cadeia de inter-relações e nada mais; estando implícita uma ordem, de determinação, desde o momento em que algumas das variáveis são consideradas como exogenamente determinadas a partir do exterior do sistema, ou então como constantes, e, portanto, especificadas como dados (implícita ou explicitamente), sendo as outras dependentes das relações internas do sistema ou «incóg nitas» que aguardam uma solução.* Isto é certamente verdadeiro quanto ao sistema walrasiano de equilíbrio geral, apesar de afirmações (ou pelo menos implicações) feitas por vezes em contrário. O próprio Walras, como veremos adiante, não hesita em falar de «forças [que] são a causa primeira e as condições da variação dos preços», ou dos preços dos serviços produtivos de factores como sendo «determinados no mercado de produtos».** No caso dos «modelos» dinâmicos que desempenharam um papel
* Cf. F. Zeuthen, Economic Theory and Method (Londres, 1955) p. 23: «Se temos uma ciência económica especial, é porque existe uma ligação particularmente intensa no ciclo de fenómenos que são geralmente denominados económicos, de maneira que numa grande parte da obra de investigação, estes podem ser vantajosa mente considerados como variáveis mutuamente interdependentes, ao passo que uma série doutros fenómenos... são influenciados em menor medida pelos fenómenos económicos, e podem portanto ser tomados, com uma aproximação muito razoável, como dados». Cf. também o Professor Gautam Mathur, que correctamente se ocupou de acentuar a invalidade da afirmação de «que num sistema de equilíbrio não há relações causais, porque tal situação é descrita por um conjunto de equações simultâneas.» Esta inter pretação é incorrecta, porque «qualquer equação que descreve uma relação económica tem um ou dois sinais de direcção, que não nos preocupamos em escrever, mas que não podemos perder de vista quando analisamos a solução de equações simultâneas» (Planning for Steady Growth (Oxford, 1965) p. 70). ** L. Walras, Elements of Pwe Economics, ed. W. Jaffé (Londres, 1954, pp. 146-8, 422. R. Bentzel e B. Hansen («On Recursiveness and Interdependency in Economic Models», Review of Economic Studies, Vol. XXn, 1954-5, pp. 153 seq.) argumentaram que a aparente «interdependência» (unicamente) dum sistema walrasiano 19
tão importante nas teorias de crescimento modernas, o sistema de inter-relações é interpretado como a descrição da interacção entre variáveis de tipo particular e com certa direcção; o que tem significado considerável para a estabilidade ou instabilidade do equilíbrio para que tende o sistema. A interpretação particular que confere à teoria o seu carácter essencial e as suas implicações práti cas, resulta da introdução de hipóteses adicionais (por vezes imputando valores particulares e variáveis particula res) que não faziam parte do esquema na sua forma pri mitiva. Por outro lado, a simples definição daquilo que constitui a própria esfera de inter-relações relevantes (e portanto os limites dum sistema teórico) pode ser funda mental, conforme veremos: fundamental por distinguir vias diferentes para localizar as influências determinantes. Associada à noção de teoria económica como estru tura puramente formal, enquanto teoria de equilíbrio ge ral, temos a do papel «conciliador» dessa análise econó-
«só surge porque o sistema é um sistema de equilíbrio estático» e «um sistema de equilíbrio estático só exprime as c ondições de equilíbrio dum sistema dinâmico não especificado, isto é, de repetição 'de si próprio». Esse sistema «é um mo delo derivado... As suposições sobre equilíbrio estático podem quando muito ser hipóteses especiais e nunca serem aceites como uma razão ge ral de interdependência» (pp. 160-1). Cf. tam bém J. L. Simon, «The Concept of Causality in Economics», Kyklos, Vol. XXIII, 1970, Fase. 2, pp. 226-44, que a propósito diz que «em economia, uma afirmação que é deduzida da estrutura da economia sistemática e com ela é compatível e está logicamente relacionada, tem muito mais probabilidades de ser considerada causal do que uma afirmação que se mantém isolada, sem ligações lógicas com o corpo da teoria económica. Isto deve-se ao facto de a ligação teórica proporcionar uma base para crer que as condições secundárias necessárias para a afirmação ser verdadeira não são de natureza restritiva, e que a probabilidade de correlações espúricas não é grande» (p, 241). Analogamente, P. W. Bridgeman, em The of Modem Physics (Nova Iorquet 1928) fala de «conceito de causalidade» como «conceito relativo, visto englobar todo o sistema no qual os acontecimentos sucedem», e se aplicar «a sub-grupos de acontecimentos separados do conjunto de todos os aconteci mentos», (pp. 83, 91). 20
mica generalizada, em relação a teorias opostas (e menos gerais) que agitaram anteriormente escolas rivais. Ulti mamente, este ponto de vista tem sido bastante discutido, pelo menos em certos círculos; ponto de vista que serve, evidentemente, qualquer exame crítico da historia do pensamento económico. Um exemplo desta atitude é a série de tentativas feitas, logo que apareceu a General Theory de Keynes, para apresentar as diversas afirmações e conclusões da doutrina keynesiana e pré-keynesiana como dependentes de diversos valores ou «formas» impli citamente atribuídos a certos parâmetros ou relações fun cionais generalizadas (e nalguns casos a hipóteses implí citas de independência). Deste modo, a Teoria Geral da Teoria Geral representaria as doutrinas adversas como casos especiais das formas de afirmação mais gerais e «verdadeiras». Contudo, a «conciliação», neste caso, parece não ter representado muito mais que a afirmação de que um tipo de mecanismos caracteriza um tipo de situação, e outro tipo de mecanismos conviria a uma situação diferente (por exemplo, quando algum factor de «reforço» especial bastava para manter o pleno emprego e/ou a plena utilização da capacidade). Talvez um exemplo mais pertinente seja a sugestão recentemente feita (na se quência do renovado interesse pelo ponto de vista clás sico) de que não há oposição real entre as tradicionalmente opostas teorias do valor de Ricardo e de Marx, por um lado. e de Jevons e da escola austríaca, por outro: em qualquer sistema de equações de equilíbrio geral (por exemplo, do tipo walrasiano), as despesas de trabalho e os coefi cientes de substituição dos consumidores (ou utilida des marginais) terão de ser incluídos, e, adequada mente interpretados, deverão acentuar a influência de terminante de umas ou outros.* Uma maior formalização
* Cf. a afirmação de Leif Johansen, «Marxism and Mathematical Economics», em Monthly Review (Nova Iorque) Janeiro de 1963, p. 508: «Para bens que podem ser reproduzidos em qualquer escala... é muito fácil demonstrar que um modelo completo não 21
do problema é assim identificada com uma maior neutrali zação, na medida em que se tratar duma intrusão de ordem ideológica, e é considerada, consequentemente, como exem plificando o progresso científico na matéria que Schumpe ter procurou encontrar no seu exame histórico da evolução da análise económica per se. Se este progresso das téc nicas analíticas envolveu alguma restrição dos limites da matéria, em relação aos que generosamente traçaram os pioneiros clássicos, é caso para aplaudir e não para lamentar: quando muito foi um esforço bem compensado, pelo que se ganhou em rigor científico. Tudo quanto se pode dizer resumidamente, penso eu, a respeito de um corpus supostamente «neutro», é que ao ser cuidadosamente formulado e anali sado, se revelará muitíssimo escasso em conteúdo con creto: isto é, a sua aparente neutralidade resulta de conter muito pouco em matéria de afirmações concretas sobre situações económicas, ou os processos e suas manifestações — tão pouco, talvez, que será muito duvidoso classificá-lo como teoria económica, no sentido de teoria que explica a acção e o comportamento social. Para merecer esta quali ficação, deverá ser estruturado de maneira a mostrar como certos efeitos ou acontecimentos são determinados; e um sistema de equilíbrio definido em termos de um
inclui preços determinados pela teoria do valor do trabalho, mesmo que se aceite uma teoria de necessidade secundária do comporta mento do consumidor»; e a sua discussão deste ponto num artigo, «Some Observations on Labour Theory of Value and Marginal Utilities», Economics of Planning, Vol. 3, N.° 2, Setembro de 1963, p. 89 seg. (onde a passagem da Monthly Review é citada). Aqui a implicação é que tanto as quantidades de trabalho como as secun dárias entram nas equações que determinam o equilíbrio. Mas notamos ainda que o Professor Johansen chama a atenção para o facto de que, embora os preços estejam relacionados com despesas-trabalho (sendo-lhe proporcionais quando as composições do capital são iguais), «as funções de necessidade secundária interferem nos preços..., apenas para determinar as quantidades a produzir e consumir dos diferentes bens». 22
conjunto de equivalências ou identidades, pode não ser mais que uma série de tautologías.* Duvidar da posição ocupada por um corpus de teoria aparentemente «neutro» deste tipo, não é o mesmo que negar a existência de certas generalizações de alto nível que se aplicam a uma variedade de situações insti tucionais diferentes. Os escritores marxistas, por exemplo, têm sempre concordado que há afirmações gerais, e até «leis», que se aplicam a todos os modos de produção ou sistemas socioeconómicos, ou pelo menos a todos os sistemas que contêm como característica comum a produção de bens para venda num mercado, e portanto alguma forma de divisão de trabalho e troca.** Igualmente, para escolher um exemplo de «modelos de crescimento» modernos (tal como o modelo de von Neumann), há certas inter-relações entre quantidades em crescimento económico que se aplicam a qualquer sistema económico, dado apenas um mínimo de hipóteses comuns quanto a preços e flexibilidade de preços, possibilidades técnicas e elas ticidade da oferta. Mas isto não implica que se trate apenas de juízos analíticos sobre um (indefinido) equilí brio de variáveis inter-relacionadas: se assim fosse, con forme vimos, o seu significado na prática seria insigni ficante, e, mesmo como estrutura possibilitando juízos * Como, por exemplo, o Dr. L. Pasinetti demonstrou serem as teo rias de lucro do tipo Irving Fisher (em termos de «taxa de remune ração do capital») (Economic Journal, Vol. XXIX, N.° 315, Setembro de 1969, pp. 508 seg., e especialmente pp. 511, 525, 529). ** Oskar Lange, por exemplo, na sua Political Economy, Vol. I (Varsóvia, 1963), depois de distinguir entre «leis técnicas e de equilíbrio da produção» e «leis de comportamento humano» e «leis de interacção das acções humanas», e acentuar que as primeiras têm «a mais ampla aplicação na história», fala de «leis económicas comuns» que se aplicam «a diversas formações sociais», além de «leis económicas específicas duma formação social dada» ( i b i ã pp. 58-68); citando a este respeito o comentário de Engels ao Vol. III de Capital, no qual se diz que, visto que «a troca de bens surge no período anterior à história escrita», «a lei do valor reinou entre cinco e sete mil anos». Cf. também a carta de Marx a Kugelmann de 11 de Julho de 1868. 23
mais concretos, seriam provavelmente pouco esclarece dores. Uma restrição deste tipo não se aplica, com cer teza, à espécie de juízo genérico a que temos estado a referir-nos, sobre situações de troca ou relações estru turais em crescimento, o que não nos impede de falar em termos causais de factores que afectam os coeficientes de preços de equilíbrio ou condicionem o processo de cres cimento. Deve acentuar-se uma vez mais, para evitar qual quer possibilidade de má interpretação, que não temos qualquer intento de negar a existência, em teoria eco nómica, de lugar para juízos de complexa interdependência mútua ou recíproca, além dos juízos mais familiares de relação causal simples e directa, do tipo «dado A, resulta B» ou «A é condição necessária e suficiente para que suceda B». A questão é (como já acentuámos) que estas afirmações, na medida em que definem a natureza da interdependência, se referem à forma e disposição de situações e processos reais, dependendo assim, pelo menos até certo ponto, da «visão» que se tem destes, não sendo de modo nenhum puramente formais ou a priori. Curiosamente, aquilo que dissemos aplica-se a grande parte da análise pura subjacente à teoria da «optimização» (com as suas filiações com a economia normativa, con forme veremos daqui a pouco), assim como a juízos de equilíbrio geral do tipo walrasiano. Tomemos como exemplo qualquer afirmação de que certas variáveis estão inter-relacionadas, tal como a sim ples afirmação de que o nível de output presente, a taxa de crescimento do Output e a quantidade de inputs de tra balho do sistema são interdependentes. B verdade que esta afirmação não implica uma direcção de dependência, que é inteiramente recíproca. Mas logo que se introduz a hipótese (por exemplo, por postulado ou conhecimento daquilo que constitui a situação geral ou «modo de apre sentação» do problema) de que se duas das quantidades do nosso exemplo forem tomadas como dadas, no sentido de serem tratadas como variáveis independentes (ou deter minadas exogenamente), a outra estará determinada ipso facto (isto é, torna-se variável dependente). Assim, 24
se a força de trabalho é tomada como um factor dado em qualquer momento, como característica da situação demográfica (juntamente com o imperativo político do seu pleno emprego), haverá, para qualquer nível dado de output final presente, urna certa taxa de crescimento que é a máxima possível; de maneira que, se também se considerar necessário um certo nível de output presente (como dado histórico ou em virtude da neces sidade dum certo nível mínimo de salários ou con sumo reais), a taxa de crescimento máxima provável é de terminada como resultante. Se, juntando uma quarta va riável à situação, na forma duma opção entre métodos de produção alternativos (ou técnicos), se indicar uma dada taxa de crescimento como o objectivo político (viável) duma economia planeada, segue-se que existe uma certa escolha óptima de métodos de produção no sentido duma que maximizará o nível de output (e por tanto de consumo) de maneira compatível com a manu tenção do objectivo pretendido (ou, alternativamente, maximiza a taxa de crescimento possível com qualquer nível dado de consumo). Assim, uma transição dum simples juízo de dependência mútua para um teorema de optimização exige, por um lado, a pressuposição de qualquer objectivo normativo (a «função objectiva»), e, por outro lado, de alguma restrição (ou restrições) como característica aceite de situações reais, por exemplo, certos recursos económicos disponíveis para a produção (visto que sem limites para estes não valeria a pena economizar a sua utilização, e portanto não haveria problema económico a resolver). O essencial, nesta questão, é que esta transição se realiza (ou pelo menos se inicia) assim que se preenche o esquema com quaisquer características adicionais duma situação real. Quando isto acontece, implica imediatamente certas indicações de direcção da dependência. Mais ainda, este «preenchimento do esquema» pode ser feito quase inconscientemente, e ser, portanto, inexplícito, porque a, mente humana é capaz de pensar situações globais, mesmo quando tem a intenção de abstrair apenas certas características dessas situações e tratá-las isoladamente. 25
Portanto, as diferenças que pode apresentar o aspecto duma situação global, dependentes de diferenças de «visão» e perspectiva, podem tornar-se cruciais. Temos estado a falar de teoria económica como descri ção da estrutura e funcionamento duma sociedade baseada na troca, acentuando em especial a questão da interde pendência de preços e mercados diferentes. Escusado será dizer que isto é uma base fundamental para uma política, por indicar aquilo que esta pode e não pode fazer, e por meio de que instrumentos pode prosseguir este ou aquele objectivo. Mas as teorias do equilibrio per se são pouco elucidativas sobre qual a política objectiva a praticar, na gama de alternativas possíveis; e é evidente que as alternativas existem, apesar do determinismo implicado na formulação de «leis económicas» pelos economistas. Esta preocupação com os fins políticos, e com os meios disponíveis para os atingir, representa a tradição nor- mativa em economia, que os positivistas pretenderam pôr de parte como elemento estranho e uma intrusão na teoria económica enquanto disciplina científica, que se ocupa (assim se diz) de afirmações positivas acerca daquilo que é e não daquilo que deve ser. Apesar disto, tem alcançado cada vez mais respeito e atenção em décadas recentes, certamente como reacção à crescente pressão de problemas relacionados com a intervenção do Estado na esfera económica, actualmente cada vez mais conscien temente concebida, em virtude do planeamento económico da economia como um todo. Na realidade, no actual desenvolvimento da teoria, os elementos «positivo» e «normativo» mostram-se dificilmente separáveis e ten dem a confundir-se. Por outro lado, tem-se registado um progresso correspondente na esfera das técnicas de análise muito formalizadas.* Esta análise utiliza os métodos de tratamento de «problemas extremos», como se lhes chama,
* Um escritor húngaro, referindo-se ao modelo de von Neumann («que não é um modelo de optimização, mas sim de equilíbrio») e ao modelo 'de Leontief (que «também é uma estrutura descritiva-causal», afirma que «de facto, os membros individuais deste grupo
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para prescrever as condições de maximização, seja qual for a quantidade económica tomada como a «função objectiva». Na escolha desta, a técnica de maximização per se, é, evidentemente, neutra; mas a sua interpretação económica e as suas implicações empíricas serão crucial mente afectadas por ela. Evidentemente, na escolha e utilização do maximizante, entram facilmente em jogo, e de maneira decisiva, as influências ideológicas de que falámos. II
Na história real do pensamento económico há provas abundantes do condicionamento histórico da teoria eco nómica, tratada como um sistema mais ou menos social mente integrado, em qualquer momento, como tentaremos mostrar adiante. Visto que se trata essencialmente duma ciência aplicada, intimamente associada a juízos e ava liações de sistemas e políticas reais, não há motivo para grande surpresa: de facto, seria mais surpreendente não se encontrar nenhum vestígio desse condicionamento social. Por outro lado, isto é verdadeiro mesmo quanto ao pensamento económico mais abstracto, e quanto aos sistemas mais formalizados, que ao serem examinados acabam por exprimir de maneira surpreendentemente directa a realidade económica, e exerceram influência considerável na política real (quando não a alteraram).
de modelos podem ser igualmente interpretados — independente mente das suas estruturas originais — como modelos de equilíbrio descritivos-causais ou de optimização teleológica. Entre estes as pectos não há qualquer contradição». Em programação linear, é explícita a conexão da «inter-relação entre o programa de actividade óptima e os preços sombra que lhe correspondem», como soluções principal e dual do problema (A. Bródy, «The Dual Concept of the Economy in Marx’s Capital», Acta Oeconomica (Budapeste) Tomo 2, Fase. 4, 1967, p. 311). 27
Isto levanta a questão de saber como e porque deve ser assim: a forma e os modos deste condicionamento social e histórico do pensamento abstracto. Não se pretende negar que o tipo de factor subjectivo ao qual Schumpeter se refere (emoções, desejos, con vicções) seja uma parte da explicação, e que, visto os economistas estarem sujeitos às fraquezas correntes da carne e do espírito humano, se encontre em muitos casos, senão na sua maioria, como ingrediente importante a colorir a visão de certos pensadores. O que pode ser nega do, na minha opinião, é que seja este o único ou o principal modo de condicionamento. Na verdade, podemos afirmar que se trata da forma menos interessante de condiciona mento das relações sociais sobre o pensamento. Mais fun damental, embora talvez mais difícil de identificar em casos particulares, é a medida em que o pensamento é moldado pelos problemas decorrentes dum certo contexto social.* Este contexto é em si próprio uma mistura e inter acção complexa de ideias e sistemas de pensamento aceites (que com toda a probabilidade são em parte constituídos por elementos metafísicos e hipóteses não verificadas, e exercem uma forte acção como tendências conser vadoras inatas) com os problemas apresentados pelos acontecimentos e situações práticas correntes. Deste modo, a generalização aceite e a prática corrente estão em permanente confronto. Mas, nesta confrontação, seria um erro conceber aquilo a que chamamos «prática», conce* Gf. Gunnar Myrdal: «Raras vezes, ou talvez nunca, o desen volvimento da economia tem aberto por si próprio novas perspec tivas. A deixa para a reorientaçâo permanente do nosso trabalho tem vindo normalmente da esfera da política.» (Asicm Drama (Londres, 1968) Vol. I, p. 9) «Os cientistas sociais estão numa posição invulgar, visto que o objectivo dos seus estudos e as suas próprias actividades se encontram no mesmo contexto. Porque estes estudos são por sua vez actividades socialmente condiciona das... Os economistas tentaram sempre abstrair a sua investigação do contexto social para a situarem num domínio supostamente «objectivo»... Esta tentativa torna os economistas ingenuamente inocentes das suas próprias determinantes sociais» (ïbicL., Vol. XXI, App. 3, p. 1941). 28
biãa como qualquer coisa de independente e animista> como formulando problemas que o pensamento contemplasse como observador passivo. Há sempre um elemento subjec tivo no processo do conhecimento, não apenas no sentido de que a acção e a experimentação desempenham um papel fundamental, mas também no de que uma e outra são precedidas e moldadas pela formação de conceitos. Os pro blemas correntes são criados tanto pela acção humana ins pirada no pensamento, exercida sobre uma situação exis tente, como pela própria situação objectiva (e mutável); e neste sentido pode dizer-se que estão conátantemente em contradição. Os problemas que surgem deste modo consti tuem então o ponto de partida para a formação dum novo sistema de pensamento e de novos conceitos e teorias; e, nesta medida, elas estão sempre relacionadas com um certo contexto histórico. Estes conceitos e ideias mutáveis representam em parte um comentário ou interpretação — uma «reflexão», se preferirmos utilizar uma analogia mais passiva — da situação objectiva a partir da pers pectiva particular em que é observada. Mas visto que as ideias e os conceitos herdados, ao operarem como meio de refracção, modificam esta perspectiva e a resultante visão da situação, as ideias novas são sempre, ao mesmo tempo, uma crítica de ideias antigas que formam a herança do pensamento; portanto, estas ideias novas são neces sariamente moldadas em parte pela relação antitética em que se encontram com as ideias antigas, e também pelo facto de serem afirmações empíricas sobre a reali dade. Por esta razão, o debate suscitado pelo desejo de determinar se as ideias têm uma genealogia própria, ou, pelo contrário, «reflectem» sempre a realidade objectiva corrente, pode ser insatisfatório e uma causa de desilusão. O que geralmente se esquece é que, na medida em que as ideias são postas em confronto com os problemas, e estes se referem (implícita ou explicitamente, e senão directa, pelo menos indirectamente) a uma actividade potencial, o processo de crítica e desenvolvi mento dificilmente pode deixar de ser influenciado pelo meio social (ou ponto de referência no complexo de 29
relações sociais) do indivíduo ou «escola» que formula o problema. A acção social ou económica, pelo menos, só pode ser concebida em relação a algo de concreto, seja instituição, pessoa, grupo social, classe ou organi zação; e para que a interpretação dos problemas seja operacional, deverão ter alguma referência implícita deste tipo. Esta estrutura de pensamento herdada, dentro da qual (ou em reacção contra a qual), os problemas reais são formulados, e contra cujo fundamento — ou por vezes nos seus próprios termos — surge o debate teórico, inclui neces sariamente hipóteses e afirmações gerais simultaneamente analíticas e sintéticas. Estas, formando uma «teia con ceptual» (como se lhe chamou) ou conjunto de categorias conceptuais ou «caixas», em cujos termos o nosso pensa mento funciona,* são fundamentais tanto para a forma como os problemas são moldados como para os métodos e instrumentos concebidos para os solucionar. Na formação de noções gerais deste tipo, é difícil excluir completamente o raciocínio por analogia. Na realidade, é di fícil conceber que qualquer coisa que pretende ser uma imagem geral da sociedade, e, portanto, relevante para a sociedade tomada globalmente e para a modificação de toda a sua estrutura (o que é diferente de descrever certos aspectos e facetas suas), possa deixar de incluir pro-
* Cf. T. S. Kuhn, The Structure of Scientific Revolutions (Inter- national Encyclopaeãia of Unifieã Science (Chicago) Vol. II, n.° 2, 1962), pp. 5, 148. Este autor usou o termo «paradigma» para esse grupo ou série de noções geraist ou «modos de ver o mundo»; e em referência às ciências naturais, fala da sua aquisição como sendo, na verdade, «um sinal de maturidade no desenvolvimento de qualquer domínio científico» ( ibid., p. 11). Estes paradigmas «adquirem o seu estatuto porque têm mais êxito que os seus concorrentes na resolução de alguns problemas que o grupo de práticos considerou prementes»; ao mesmo tempo, «a investigação normal-científica é orientada para a articulação dos fenómenos e teorias que o paradigma já proporciona» (ibid., pp. 23-4). Cf. tam bém, do mesmo autor, The Copernican Revolution (Harvard, 1957) especialmente pp. 3-4, 261-3.
posições, explícitas ou implícitas, de maior alcance que aquelas que o Professor Popper poderia admitir como «sintéticas» e «científicas». Estas representam uma visão (necessariamente imperfeita, mas não completamente des tituída de valor interpretativo) daquilo que é global mente a sociedade e do modo como funciona, visão em cuja formação têm de entrar, inevitavelmente, elementos subjectivos ou a priori de todos os tipos. Estes elementos não são intemporais; nem podem ser simplesmente ava liados por quaisquer padrões absolutos. Mas isto não quer dizer que não possam ser discutidos racionalmente, e que não haja critérios de crítica e avaliação, pelo menos segundo o seu maior ou menor grau de realismo. Têm de ser julgados como aproximações (apenas); e pode haver boas razões para considerar uma aproximação mais válida que outra, e ao mesmo tempo sustentar que há uma explicação sociohistórica para o aparecimento duma certa aproximação num determinado momento (em cujo sentido este é «historicamente relativo).* Quando se fala dessas estruturas conceptuais, convém talvez acentuar duas coisas, mesmo admitindo que o conjunto da questão é controverso. Longe de ser supér flua, parece difícil pôr de parte qualquer estrutura geral deste tipo, mesmo para o mais rígido pensador empírico, e, de qualauer modo, menos nas ciências sociais que na cosmologia. Ela é necessária, quanto mais não seja como base para sugerir e escolher problemas para uma ul terior investigação, e portanto para orientar essa investi gação e para ordenar uma massa de observações empíri cas que, sem conceitos e hipóteses mais gerais descrevendo
* Cf. mais geralmente a este respeito D. Bohm, Causality and Chance in Modem Physics (Londres, 1957) pp. 164-70. «Não pode mos realmente conhecer todas as relações recíprocas em qualquer tempo finito, por mais longo que este seja. Não obstante, quanto mais aprendermos acerca delas, mais saberemos acerca da matéria em processo de formação, visto que a sua totalidade é definida por todas essas relações... O carácter essencial da investigação científica é a sua deslocação para o absoluto através do estudo do relativo, na sua inexaurível multiplicidade e diversidade» ( ibid■, p. 170). 31
algum modelo de relações, pareceria descoordenada e inexplicável. Ao contrário de afirmações mais parti culares, essa estrutura conceptual não é facilmente veri ficável ou rejeitável. De facto, o que aqui poderia parecer relevante não é tanto o ser ou não afirmada numa forma potencialmente «verificável» ou «falsificável» (o critério de Popper), mas sim o seu grau de generalidade, que a afasta da possibilidade real de rejeição empírica.* Ê esta generalidade que a torna especialmente propensa à introdução de uma influência de ordem ideológica. Quan do ela existe, quase nunca é fácil notá-la, e menos fácil ainda combatê-la e anulá-la. Neste aspecto, razões lógicas e psicológicas acentuarão a necessidade dum conceito gené rico— ou então, contribuem para a sua rejeição: não apenas num sentido de coerência lógica, mas também no sentido mais amplo da sua «adequação». Já dissemos, de facto, que «a observação nunca é absolutamente incom patível com um esquema conceptual»;** e que podem coexistir por algum tempo esquemas estruturais opostos (por exemplo, os de Ptolomeu e Copérnico na cosmologia), cada um com o seu grupo de discípulos e defensores.***
* O próprio Professor Popper acentuou que a possibilidade de falsificação é «uma questão de grau», tendo as afirmações meta físicas «um grau zero de possibilidade de falsificação». Mesmo estas «podem ter ajudado..., a pôr ordem na imagem que o homem formou do mundo, e nalguns casos conduziram a uma previsão acertada» (K ar l R. Popper, The Log ic of Scien tific Discovery (Londres, 1959) pp. 112, 116, 278). ** T. S. Kuhn, The Copernican Revolution (Harvard, 1957) p. 75. * * * Cf. ibiã., p. 39: « A história da ciência está atravancada com as relíquias de esquemas conceptuais que já foram fervoro samente acreditados e que depois foram substituídos por teorias incompatíveis. Não há possibilidade de provar que um esquema con ceptual é definitivo. Mas, precipitada ou não, esta adesão a um esquema conceptual é um fenómeno comum nas ciências, e parece ser indispensável, porque lhe confere uma função nova e da maior importância. Os esquemas conceptuais são com pletos; as suas consequências não estão limitadas ao que já é conhecido... A teoria transcenderá o conhecido, tornando-se 32
No domínio das ciências sociais, a controvérsia entre teorias gerais antagónicas pode ser notoriamente inconcludente e posta de parte; a sua conclusão, quando se verifica, fica a dever-se tanto à mudança da moda inte lectual ou das hipóteses geralmente aceites, como à estrita lógica da argumentação. Falando do efeito mais directo de determinadas situa ções em teoria económica: é bastante evidente — tão evi dente que parece ser um exemplo muito simples — que não é possível desenvolver uma teoria monetária antes de sur gir uma economia monetária de qualquer espécie; do mesmo modo, a maioria das modernas dificuldades a respeito da teoria monetária, e a controvérsia quanto à sua interpreta ção adequada (por exemplo, quanto à influência exercida pela oferta de moeda sobre o resto da economia e a eficácia de certas actuações de bancos centrais), dependem do crescimento moderno de substitutos da moeda, instru mentos de crédito e outros meios de pagamento. Um «modelo» de equilíbrio geral duma economia não tem probabilidade de surgir até o crescimento das rela ções de mercado e da mobilidade económica ter atingido o nível de desenvolvimento que começaram a ter na Inglaterra de meados do século dezanove: sem isso, a própria noção de interdependência de todos os preços dificilmente seria apreendida por nós.* Parece neces sário pelo menos um certo grau de desenvolvimento primeiro e antes de tudo um instrumento poderoso para predizer e explorar o desconhecido. Terá influência no futuro e no passado da ciência.» * Pode dizer-se, talvez) que esta noção já estava latente, pelo menos, em Smith e Ricardo; mas, se assim foi, não tomou a forma da interdependência e determinação mútua, walrasianas, mas sim da influência de alguns preços sobre outros. Embora o germe das no ções de inputoutput estivesse presente (como agora se admite) no Quadro de Quesnay, a noção de interdependência era apenas embrionária e funcionava exclusivamente por meio de troca entre agricultura e manufacturas. Por outro ladot esta noção embrionária, e isto é bastante significativo, parece ter tido pouco ou nenhum efeito no pensamento económico (salvo através da sua influência em Marx) durante um século ou mais. 33
destas condições, antes de a noção dum nível geral de salários ou lucros, tal como a encontramos em Adam Smith, poder ser formulada. Analogamente, foi preciso atingir um certo nível de técnica mecânica na indústria, para os pro blemas especiais relacionados com o capital fixo serem reconhecidos e merecerem atenção (e embora Ricardo tivesse acrescentado um capítulo especial a respeito de Má quinas ã sua terceira edição, trata-se de uma reflexão que ocorre tardiamente; e o seu tratamento geral do lucro permaneceu vulnerável à crítica de Marx de que não pro cedera à apreciação do papel daquilo a que este último cha mou «capital constante»), O próprio conteúdo dos termos, muito especialmente o de lucro em relação a capital, pode modificar-se, e na sua modificação reflectir relações e insti tuições em transição.* Algo semelhante sucede sem dúvida, de um modo geral, com as relações e conexões que os pensadores consideram relevantes e significativas. Embora a possibilidade de desemprego como resultado crónico da «insuficiência de procura efectiva» tenha sido men cionada durante muito tempo «no mundo subterrâneo dos heréticos», é um facto notável, e muito signifi cativo, que esta ideia tivesse sido menosprezada, e só graças à crise económica mundial de 1929-31 acabasse por ter aceitação académica. Até então, a Lei de Say teve uma aceitação praticamente incontestada: uma prova bem evidente, sem dúvida, de como o preconceito, a tra dição e a aceitação dos nossos desejos como realidades transformados em abstracções, podem cegar tão forte mente a visão humana, mesmo perante a evidência. Muito menos possibilidades de penetrar na ortodoxia académica teve a noção marxista de rendimento do ca pital como fruto de exploração, e da relação salário-
* Cf. G. L. S. Tucker, Progress anã Profits in British Economic Thought 16501850 (Cambridge, 1960) p. 74: «À primeira vista, pode parecer que se manteve uma discussão particular durante um longo período de tempo; ao passo que, na realidade, sob as simples similaridades verbais, podem ter surgido novos signi ficados que alteram toda a natureza do ponto em debate.» 34
-lucro como relação de antagonismo e não de participação. É quase evidente por si só, que a questão dificilmente se poderia pôr até ter aparecido, juntamente com a criação dum proletariado, um mercado livre de trabalho assala riado; e mesmo então, do ponto de vista da classe dominante, o que chamava a atenção e se afigurava significativo era a liberdade, e não a privação de meios. Apesar daquilo que formos levados a esperar a priori, a história da economia política, desde o seu início, fornece abundantes provas de como a formação da teoria econó mica esteve estreitamente (e mesmo conscientemente) associada à formação e defesa duma determinada política. Embora as doutrinas da escola clássica fossem muito abstractas, especialmente na forma que lhes foi dada por Ricardo (a quem Bagehot chamou «o verdadeiro fun dador da Economia Política abstracta)», estiveram muito estreitamente relacionadas com problemas práticos do seu tempo, conforme veremos. Por outro lado, apreciar esta re lação, e observar essas teorias à luz dos problemas políticos a que procuravam responder, é um elemento essencial para compreender a sua intenção e o seu objectivo prin cipal. Assim, a verdadeira estrutura da Riqueza ãas Nações de Adam Smith é formada e moldada pela sua preocupação com as políticas mercantilistas e as teorias em que se fundamentavam. Sabe-se que Malthus apresen tou o seu Ensaio sobre a População como resposta às opiniões optimistas (e ao tempo radicais) de seu pai, acerca das possibilidades de progresso material e duma futura sociedade igualitária de felicidade humana.* A pri meira vez que Ricardo apareceu publicamente como econo mista, formulando uma teoria monetária e do comércio ex terno, foi no papel de crítico da política do Banco de Ingla
* Cf. J. M. Keynes, Essays in Biography (ed. Londres, 1961) p. 98, citando como fonte o Bispo Otter (amigo de Malthus e editor da segunda edição póstuma dos Princípios de Malthus); e cf. Memória de Robert Malthus na ed. de 1836 dos Princípios de Malthus, pp. XXXVIII-XXXIX. 35
terra durante a Querela da Barra de Ouro, e os germes das suas teorias do valor e distribuição surgiram numa publi cação de Fevereiro de 1815,* preparatória do debate desse mesmo mês na Câmara dos Comuns sobre a nova Lei do Trigo, e destinado a estabelecer o fundamento teórico da livre importação de cereais. John Stuart Mill expôs nos seus Princípios de 1848 certas doutrinas (acentuando especialmente o seu modo de «aplicação social») que têm de ser consideradas no âmbito da sua anterior defesa do «radicalismo filosófico» na década de 1820, com a Westminster Review; e se é certo que considerou o seu System of Logic amplamente relacionado com a exposição duma perspectiva empírica de conhecimento, em oposição «à perspectiva apriorística alemã do conhecimento» huma no, como «o grande suporte intelectual de doutrinas falsas e más instituições»»** algo de semelhante é ainda mais ver dadeiro na forma como concebeu a Economia Política. Escritores como Senior e Mountifort Longfield, ao sabor da maré de uma primeira reacção contra as teorias de Ricardo, manifestaram de modo evidente (e Longfield muito explicitamente),*** preocupação pelas perversas pretensões dos sindicatos e procuraram apresentar uma justificação do Lucro, em resposta à crítica socialista incipiente. Edwin Cannan fez o seguinte comentário sobre
* An Essay on The Influence of a low Price
a Economia Política clássica: «Entre todas as ilusões a respeito da historia da economia política británica, nenhuma é maior que a convicção de que a economia da escola e período de Ricardo teve um carácter quase completamente abstracto e desligado do concreto.» Acerca dos economistas do século dezanove em geral, afirma: «Com eles, na grande maioria dos casos, os objectivos práticos foram predominantes... (e) a relação íntima entre a economia e a política do período de Ricardo... pro porciona uma chave para numerosos enigmas».* Mas ao focar problemas concretos, não haverá dife renças de grau, e na realidade diferenças de tipo, suficien tes para impossibilitar que se diga de modo geral que as teorias dum certo período definem a sua tendência social? Alguns pensadores, naturalmente, têm mais consciência que outros de problemas contemporâneos particulares, quer em virtude dos seus contactos ou experiência, quer porque a preocupação com directrizes políticas se adapta às suas inclinações e ao seu modo particular de vei as coisas. Outros, por sua vez, embora menos (ou igual mente) cônscios da cena contemporânea e das suas par ticularidades, podem sentir maior interesse por sínteses de ideias e por uma «generalização de alto nível» — pela elegância formal de sistemas e teoremas de novo estilo, preocupando-se pouco com os corolários e direc-
* History of the Theories of Production anã Distribution in English Political Economy from 17961848, 2.1 ed. (Londres, 1903) pp. 383-4. Especificando, Oannan diz-nos (p. 391) que «para base duma exposição contra as Leis do Trigo, teria sido difícil encontrar algo mais eficaz que a teoria da distribuição de Ricardo»; e que, quanto a Malthus, ao publicar a sua primeira edição do Ensaio sobre a População, «teve em vista... obter apoio, senão contentamento, com a ordem de coisas existente, e impedir a adopção de experiências apressadas» como a Revolução Francesa (p. 384). J. K. Ingram atribuiu a grande reputação de Ricardo, no seu tempo, pelo menos em parte a «um sentido do apoio que o seu sistema deu aos industriais e outros capitalistas no seu crescente antagonismo em relação à antiga aristocracia dos senhores da terra» (A History of Political Economy, 2.“ ed. (Londres, 1907) p. 136). 37
trizes que deles se podem deduzir. Conforme já sugeri mos, esse contraste — ou, talvez melhor, essa diferente forma de seleccionar e conceber os problemas — não de pende necessariamente do grau de abstracção das teorias em causa. Embora em certa medida seja verdade que teo remas que têm em vista uma «generalização de alto nível» devem fazer, pela sua própria natureza, abstracção da multiplicidade de pormenores particularizados, isto não significa de modo nenhum que aqueles que têm uma relação íntima com a prática e se apoiam nela, ten dam necessariamente para uma forma menos abstracta. A razão residirá possivelmente no facto de a sua própria concentração em certos delineamentos e facetas da cena global (a fim de lhes dar relevância operacional) poder envolver uma selecção e abstracção doutros aspectos, e portanto a apresentação da realidade numa perspectiva especial (e em certo sentido «irreal»), Ricardo, e talvez também Walras, parecem ser exemplo disto no que diz respeito à teoria económica. Não há muitos indícios de que o crescente formalismo da teoria económica nas décadas recentes tenha diminuído a intromissão de questões ideo lógicas na discussão económica (por exemplo, a respeito da estabilidade ou instabilidade de modelos de cres cimento).* Nesta questão de centro de interesse, e portanto do modo de selecção e abstracção, houve uma diferença fundamental tão crucial para a forma como os pro blemas são vistos e interpretados, que lhe confere uma importância essencial na classificação e apreciação de teorias. Um método de análise possível é abstrairmo-nos das características específicas dum sistema ou instituição particular (ou «modo de produção», no estilo marxista), e
* Isto apesar do que Oskar Lange denominou a recente «pro fis sionalização da ciência económica» (Political Economy (Varsóvia e Londres, 1963) Vol. I, pp. 314-15), que lhe parece «impelir o pensamento económico para lá dos limites das perspectivas e interesses do meio social de que surgiu» — pelo menos até certo ponto. 38
concentrarmos a atenção nas características que são co muns a todos, ou pelo menos a alguns, sistemas distintos, e que nesta medida são supra-históricos. Se uma teoria adap tada deste modo a partir do que é «universal», for apresen tada como algo mais que um prolegómeno.* implicará que na interpretação causal de acontecimentos, estes ele mentos são em certo sentido primários, e que aquilo que é peculiar ao complexo institucional especial é secundário. Por outras palavras, a forma e o ângulo de generalização, conforme aquilo que selecciona para pôr em destaque e aquilo que deixa ficar na sombra, não pode deixar de ter influência, não só nas atitudes e convic ções humanas, e portanto na actividade social (por exem plo, conforme se pretende uma «engenharia social» ou uma mudança institucional radical), mas também no diagnós tico intelectual de problemas sociais e económicos parti culares. Não pode deixar de ser ideológica neste sentido. Porém, uma análise que parte do carácter historicamente mutável do objecto das ciências sociais, e concentra a atenção naquilo que, na situação contemporânea apre ciada, é historicamente contingente, terá implicações con trárias. Qualquer destes tipos de análise pode revelar-se evidentemente incapaz de fornecer uma interpretação in teiramente convincente ou frutuosa; deste modo — prova velmente o único como os teoremas das ciências sociais podem ser verificados — será rejeitado pela experiên cia. O que é mais provável acontecer, pelo menos
* Pode parecer que qualquer teoria sociohistórica gera l tenha de ser deste tipo, incluindo a marxista, visto que esta procura chegar a conclusões genéricas sobre diversas sociedades históricas e seus movimentos. Isto pode ser verdadeiro. Mas. nesse caso, estas teorias podem ou não concentrar a atenção sobre peculiaridades que têm importância específica para o funcionamento específico de qualquer sociedade em particular; a teoria marxista distingue-se por destacar precisamente a influência específica das «relações sociais» de produção que definem qualquer modo de produção (e troca) particular. Neste sentido, é ela própria uma maneira de apresentar, não só os elementos comuns, mas também as dife renças. 39
durante algum tempo, é coexistirem os dois tipos de interpretação e haver conflito entre as suas implicações no domínio da acção e da experiência, possivelmente sem que a verdadeira natureza das suas diferentes formas, de conceber a realidade se torne completamente perceptí vel ve l (vis (v isto to que não é invul inv ulgar gar suceder que que uma uma hipótese fundamental dum teorema se mantenha implícita e ig norada até ser exposta pela discussão intensiva e crítica polémica). Mesmo quando esta diferença de visão é cla ramente estabelecida e apercebida, os modos de ver opos tos podem encontrar defensores sinceramente convictos, porque exprimem separadamente a perspectiva segundo a qual as diferentes classes sociais observam o complexo social de relações interactuantes e mudança. Por conse guinte, continuam lado a lado como escolas antagónicas. O exemplo mais marcante do contraste que temos es tado a descrever (ao (a o qual voltaremos voltare mos daqui daqui a pouco) pouco) é a divergência entre o tipo de teoria, que abrange a maior parte das teorias puramente de «troca» ou de mercado e que molda o problema económico em termos de factores «naturais» ou universais,* e as teorias que, acentuando relações sociais de produção e/ou distribui ção de rendimento, atribuíram preponderância a factores «institucionais» e apresentaram os problemas económicos duma forma essencialmente «institucional». Escusado será dizer que a análise de Marx em O Capital, com «uma aná lise crítica da produção capitalista» como subtítulo do seu volume inicial, pertence a este segundo tipo. Veremos que já antes John Stuart Mill compreendera o signi ficado deste tipo de divergência bastante para afir mar, em contradição com os seus predecessores, que se gundo o seu modo de ver, enquanto as «leis de Produção» eram naturais e universais, as leis de distribuição, pelo con trário trá rio,, eram «parcialm «parci almente ente de instituição hum humana, ana, um uma vez
* Cf. J. B. Clark, The Distribution of Wealth (Nova Iorque, 1899> p. 37: 37: « A própria lei [de distribuição] é unive universal, rsal, e, e, portanto, portanto, «natural» ». 40
que o modo como a riqueza é distribuída, em qualquer sociedade depende dos regulamentos ou usos que nela prevalecem»:* neste sentido, estavam historicamente re lacionadas com instituições de propriedade e nelas enrai zadas. Com a geração que se seguiu a Mill, e o interesse que atribuiu a uma teoria de procura de relações de troca e a uma uma derivação da distri distribuição buição do rendimento (por (p or in termédio termé dio de preços de facto fac tore res) s) destas relações de troca, o interesse retrocedeu de facto para uma descrição do problema económico na sua essência, tal como é determi nado pelas condições universais e supra-históricas de qualquer sociedade de troca, sejam quais forem as suas relações sociais particulares, estrutura de classe e institui ções de propriedade. Assim, o modo de conceber a natureza da mudança histórica — a sua estrutura, sequência e meca nismo nismo caus causal al — influ in fluirá irá na maneira de fi f i x a r os limites li mites permitidos e as formas admissíveis de generalização, a fim de que as projecções abstractas e teoremas resultan tes sejam relevantes para os problemas reais e as políticas viáveis. Como exemplo análogo, mas bastante diferente, pode mos considerar a oposição que sempre tem havido entre teoristas teori stas que que consideram que que qualquer revelaç rev elação ão provém da da construção de modelos teóricos do mais alto nível de abs tracção, e os que são suficientemente impressionados pela multiplicidade e diferenças concretas para negarem a essa generalização abstracta tudo o que não seja um papel obscurantista. obscurantista. Um U m exemplo recente deste último tipo encon encon tra-se no estudo sobre a pobreza e o subdesenvolvimento na Á sia si a do Sul Sul pelo Profes Pro fesso sorr Gunnar Gunnar Myrdal, que, ue, ao ao acentuar acentuar as peculiaridades institucionais das economias que inves tiga, põe de parte as categorias usuais do economista, considerando-as irreais e inaplicáveis, e preferindo, para formular a sua crítica, os modelos semi-matemáticos de crescimento tão em voga nas discussões sobre o desen volvimento e planeamento a partir da segunda guerra * J. S. Mili Mi li,, Principies of Politicul Economy (Londres, 1848) Vol. I, p. 26. 41
mundial.* mundial.* A questão da relevânci rele vância a e aplicabilidade, aplicabilidade, admi admi tindo que algum critério simples e directo exista, está muito longe de ser facilmente determinável. Presumivel mente, a questão poderia ser verificada a muito longo prazo, contando-se o número de corolários ou directrizes das diferentes escolas que parece terem «resultado» na prática, e condecorando a escola que tivesse somado maior número. Entretanto, a escolha entre uma e outra dificilmente pode deixar de ser influenciada pelas regras e directrizes particulares que as duas escolas tenham apre sentado, como implicações das suas respectivas teorias e pontos de vista, e pela atitude do observador em relação às mesmas. Por exemplo, pode considerar-se que as directri zes políticas políti cas em questão questão serão serã o plausíveis plausíveis (ou não plausí plausí v e is) is ) com outros funda fundamen mentos, tos, e o facto fact o de elas parecerem resultar também de algum teorema geral pode ser consi derado como um reforço da suposição inicial. Juízos for mulados nesta base — retrocedendo pragmaticamente de directrizes direct rizes políticas para conceito conceitoss genéricos básicos básicos — devem quase inevitavelmente ser influenciados por consi derações «ideológicas» e inclinações. Uma longa experiên cia parece comprovar esse facto.
* O Profes Pro fessor sor Myrdal Myrd al escreve, escreve, por exemplo: «Os modelos modelos econó econó micos estereotiparam toda essa via de pensamento a que cha mamos a concepção ocidental ou moderna, e por sua vez, influen ciaram muito os planos planos e a discussão discussão sobre a planificação planifica ção do desenvolvimento nos países da Ásia do Sul... Este tipo de pensamento por modelos, tem deturpado sistematicamente o modo como o planeador vê a realidade, duma maneira que serve por igual as conveniências e interesses de conservadores e radi cais... Observar que os modelos são selectivos, abstractos e logi- camente completos, e quantificáveis, é expor as suas limitações: não são gerais, mas sim parciais; podem ser difíceis de quantificar... Também Tam bém faci fa cilit lita a o fact fa cto o de não se dar a devida devid a importância importâ ncia à relevância e realismo,, surgindo ambiguidades pelas diversas interpretações possíveis das premissas logicamente formuladas. Quando os modelos são «aplicados», a sua natureza selectiva, e, portanto, arbitrária, é geralmente esquecida... Em geral, a aplicação aos países subdesenvolvidos da Ásia do Sul de conceitos que podem 42
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Com essas diferenças entre tipos de generalizações está relacionada (mesmo que não seja imediatamente evi dente) a difícil questão de como distinguir e classificar este papel ideológico, se for efectivamente legítimo falar de teorias sociais com carácter ideológico. Escusado será dizer que, em literatura polémica, o emprego de etiquetas tais como a de «apologética» para descrever esta ou aquela escola de escritores, segundo a sua proveniência social e tendência, tem estado longe de ser claro ou consequente. Sabe-se que Marx falou da escola de economia política clássica (ter ( termo mo que ele próprio próprio criou) criou ) como como de «escola «esc ola burguesa». Mas não pretendeu de modo algum pôr de parte par te as suas suas doutrina doutrinas, s, por serem completamente completamente negativas e produt produto o de «fals «fa lsa a consciência»: consciênc ia»: de facto, facto, de destacou elogiosame elog iosamente nte o avanço que que o seu pensamento pensamento reprerepresentou e a visão científica de que deram provas quanto à natureza da sociedade económica (embora dentro «dos limites para além dos quais ‘o seu pensamento’ não podia passa pa ssar»). r»).** Mesm Mesmo quan quanto to ao período período posterior a 1830, do do
ser apropriados para par a países países desenvolv desenvolvidos idos,, conduz conduz àquilo àquilo que os filósofos chamam chamam «erros de categoria ca tegoria»» — atrib atribui uind ndo o a uma uma cate cate-goria atributos apropriados a outra... Pode ser mais seguro trabalh trab alhar ar sem modelo, modelo, do que que utiliz uti lizar ar um modelo deturpado deturpado ou defeituoso» (Asian Drama (Londres, 1968) Vol. III, pp. 1942, 1944, 1962). * Cf. O Prefácio de Marx à Segunda Edição do Volume I de O Capi- tal, ed. Moore e Aveling (Londres, 1886) pp. XXI-XXIII. É aqui que o autor fala fa la de Economia Polític Po lítica a «que se mantém mantém ciência ciência apenas apenas enquanto a luta de classes continua latente ou se manifesta somente em fenómenos isolados e esporádicos», e de Ricardo como «o último grande representante» da escola clássica; refere-se também ao , período entre 1820 e 1830 como «not «n otáv ável el na Ingl In glat ater erra ra pela activiact ivi\ \ j dade dade científica no domínio domínio da Economia Polític Po lítica». a». Foi Fo i o período período r _^Y_/ de depois de 18 1830 (quando (quan do « a luta lu ta de classes cl asses assumiu, assumiu, práti pr ática ca \/\ e teoricamente, teoricamente, formas form as cada vez ve z mais evidentes evidentes e ameaça ame açadora doras») s») aquele que, na sua opinião, «dobrou a finados pela economia burguesa científica» e introduziu, «em vez da autêntica investigação científica, a má consciência e a malévola intenção da apologética». 1 Antes Antes disto, descreveu Ri Rica card rdo o (no Grundrisse) como «o economista por po r excelê exc elência ncia da produção (o que, em Marx, era um grande elogio); e na Theorien über den Mehrwert, falou da «importância científica»,
qual falou como de «economia vulgar», teve o cuidado de discriminar, e de modo nenhum tratou todos os econo mistas como «campeões a soldo» ou «massa reaccionária homogénea» homog énea» (dizendo (dizend o de de John Stuart Mill Mil l e outros com como o ele, por exemplo, que «seria um grande erro classificá-los juntamen juntamente te com com o rebanho rebanho de apologistas apologistas econ económ ómico icoss vulgares»).* Mais perto dos nossos dias, deve a Teoria Geral de J. Maynard Keynes ser considerada como uma crítica do (então existente) capitalismo, ou uma «teoria apologética do capitalismo monopolista», como se afigurou a alguns escritores marxistas do tempo;** e se se adoptarmos este último ponto de vist vi sta a como como deveremos comparar as suas afirmações com as de parte da obra de Schumpeter, ao dar uma justificação dinâmica do monopólio, que se revelou tão influente? Ainda mais re centemente, surgiu também o tipo de problema posto por um economis economista ta soviético soviét ico (que escreveu a res peito do centenário de O Capital), que se pode dis tinguir tin guir entre econo economia mia política polít ica propriamente dita (no sentido clássico clássico e marxis mar xista) ta) e econom economia ia aplicada genera lizada, a qual, aceitando as bases socio-institucionais da sociedade, pode produzir modelos teóricos sobre a estrutura mecânica e funcionamento da economia que têm validade objectiva, e, portanto, implicitamente dis tintos da «apologét «apolo gética ica burguesa» (citando-se com como o exem exem plo grande parte da teoria macroeconômica, especial mente os modelos de crescimento).*** Parece-nos válida
e grande valor histórico da teoria de Ricardo», apesar dos seus defeitos (Theprien, ed. Kautsky (Berlim, 1923) Vol. II, pp. 4 -5 ; trad. ing. por G. A. Bonner e Emile Burns, Theories of Surplus Value: Selections (Londres, 1951) pp. 203-4). * Capital, Vol. I. ** Cf. interalia, o manual soviético de Political Economy, ed. ing. (Londres, 1957), pp. 393-4; e uma apresentação um tanto menos violenta deste ponto de vista, Fundamentals of MarxismLeninism,. ed. O. Kuusínen, trad. ing. (Londres, 1961) pp. 338-9. ** * V. Afanaseyev, Voprosi Ekonomiki, N.° 7, 1967, pp. 14 seq.. 44
uma distinção entre o papel ideológico duma teoria que formula um certo tipo de justificação do sistema exis tente, e, portanto, enfraquece a crítica e desvia a revolta (ou, no caso contrário, que profere uma condenação do status quo) e uma análise teórica que apenas produz alguns corolários corolár ios políticos polít icos (por (p or exemplo, no que que diz res peito à política orçamental) para os governos utilizarem em contingências particulares («engenharia social», num certo contexto ad hoc e limitado). No entanto, não parece nada nada fácil faze fa zerr a delimitação entre estes estes dois tipos de teo teo ria e um estudo aparentemente objectivo das condições gerais do equilíbrio de mercado (estático ou dinâmico). O sistema walrasiano constitui um bom exemplo deste tipo de estudo. Este exemplo pode parecer sugerir que a resposta de pende de o último tipo de teoria ser ou não passível de in terpretação normativa, e de certas conclusões normativas serem ou não explicitamente deduzidas, como de facto sucedeu com o sistema walrasiano, a partir do momento em que se lhe aditou o teorema da maximização da utilidade em condições de livre concorrência. Não se pode negar que esta é uma via em que a análise formal pode ter, e tem tido, implicações apologéticas. Mas será a única via? Em caso afirmativo, talvez se possa atribuir a aná lise formal per se a uma intrusão de ordem normativa; o facto de um tipo de análise conduzir, mais do que outro, a esse tipo de tratamento (por exemplo, atribuindo à uti lidade um um papel fundamental) é «acid «ac iden enta tal» l» no que que diz respeito à análise per pe r se se. Adoptar este ponto de vista, con tudo, seria menosprezar aquilo que anteriormente se acen tuou; designadamente que a análise teórica, pelo menos numa teoria social como a economia, tem inevitavelmente a sua história causal. Tipos diferentes de história causal podem ter implicações diversas no domínio daquilo que possível realizar e alcançar por meio de política e acção é possível social; ela é, por conseguinte, relevante, e até fundamen tal, para estabelecer estabelecer alternativas alter nativas viáveis viá veis — se, de facto, existe qualquer alternativa viável para a estrutura socio económica existente — e isto inteiramente dentro dos limites do raciocínio «positivo» e wão-normativo. Pode 45
citar-se o simples contraste entre o tratamento keynesiano e pré-keynesiano dos determinantes do nivel de rendimento e emprego, que essencialmente consistiu em o primeiro afirmar que a ordem de determinação causal era: inves timento tim ento —> —> poupan poupança ça (por (p or intermédio do efe e feit ito o multipli multipl i cador de uma alteração de investimento, no rendimento) ;* enquanto a teoria pré-keynesiana tinha tratado o inves timento como determinado e limitado pela poupança, por intermédio da influência desta na taxa de juro. Não é preciso alongarmo-nos alongarmo-nos demasiado demasiado sobre sobre a influência impor tantíssima desta modificação teórica na política polít ica (em (em. especial, quanto a técnicas práticas e meios para combater o desemprego e influir no nível de actividade). Mesmo assim, podemos dizer que este tipo de alteração de sequência sequência caus causal al (den (dentr tro o daquilo que que Mar arx x denominaria a «esfera «esf era de circulação») circulaçã o») não não modificou modificou fundamental- fundamental- mente a imagem conceptual de como funcionava um sistema capitalista. Mais importante, nesta questão, é o contraste entre teorias que analisam o modo de determi nação dos preços, ou das relações de troca, através e por meio das condições de produção (custos, coeficientes de outros)) e as que consideram principalment princi palmentee a input e outros procura como ponto de partida. Sem dúvida que tem sido este o contraste mais mar cante e distintivo entre os dois principais sistemas rivais do pensamento económico no século dezanove e de en tão para cá; uma distinção que é velada por tentativas puramente formais para os «conciliar», ou para inter pretar em termos exclusivamente formais as diferenças entre ambos. Por outro lado, o contraste torna-se mais profundo do que parece à primeira vista, porque, conforme veremos, envolve uma diferença nas «fron teiras» da questão, ou nos factores e influências incluídos
* Cf. a descrição mais completa do modelo causal subentendido pela Teoria Geral de Keynes em Mathur, Steady Growth, p. 71. Também Tam bém A . Tustin, The Mechanism of Economic Systems (Londres, 1958) pp. 4, 7 seq., sobre «uma sequência de dependência» no sistema keynesiano. 46
no círculo das influências relevantes ou dos factores deter minantes. Para os economistas clássicos, e especialmente para Marx, o estudo da Economia Política e a análise do valor de troca partia necessariamente das condições socioeconómicas que moldavam as relações de classe da sociedade. Adam Smith considerava importante dis tinguir entre o «primitivo e rude estado da sociedade que precede a acumulação de bens e a apropriação da terra», e a sociedade de classes depois de «terem sido acumulados bens nas mãos de pessoas privadas»; enquanto Ricardo considerou «as leis que regulam» a distribuição como «o principal problema da Economia Política», uma vez que explicavam os principios segundo os quais «o produto da térra é dividido entre três classes da comu nidade, designadamente o proprietário da terra, o dono dos bens ou capital necessário para o seu cultivo, e os trabalhadores cujo esforço permite ela ser cultivada».* Pode dizer-se que para eles a Economia Política era uma teoria de distribuição antes de ser uma teoria de valor de troca: seguramente Ricardo, conforme veremos, ideou a sua teoria do lucro antes de ter aperfeiçoado a sua teoria do valor como fundamento e estrutura da primeira. Mais deliberada e explicitamente, Marx acentuou sempre a distinção entre os processos e relações essenciais na sociedade humana e o reino das aparências; identificando troca, ou circulação de bens-dinheiro, com o segundo, e relações sociais de produção com os primeiros. A con centração da atenção na troca per se, isolada do seu contexto sociohistórico, foi fonte de «falsa consciência» e teorização ilusoria. Marx afirmou na sua polémica contra Proudhon: «Em princípio, não há troca de produtos, mas sim troca de trabalhos que competem na produção. É do modo de troca de forças produtivas que depende
* Adam Smith, An Inquiry into the Nature and, Causes of the Wealth of Nations, 4.“ ed., completa num volume (Londres, 1826) Livro I, Cap. V I p. 51; D. Ricardo, On the Principles of Political Economy and Taxation, Prefácio; Works and Correspon- dence of Ricardo, ed. Sraffa (Cambridge, 1951) Vol. I, p. 5. 47
o modo de troca de produtos.»* A mesma ideia surge de novo na sua referência ao «fetichismo dos bens», no Capital : «Urna determinada relação social entre os ho mens assume aos seus olhos a forma fantástica duma rela ção entre coisas»;** e ainda em Teorias sobre a mais valia (referindo-se à vulgãrõkonomie pós-ricardiana): «a existência do rendimento', tal como surge apa rentemente, está separada das suas relações internas e de todas as ligações. Assim, a terra torna-se a fonte de renda, o capital a fonte de lucro, e o trabalho a fonte de salários.*** Os limites da questão por ele traçados não foram, consequentemente, arbitrários: foram consi derados, coerentemente com a sua interpretação do desen volvimento histórico, indispensáveis para englobar todos os factores necessários para qualquer explicação com pleta e substancial. Em oposição a esta forma de abordar a questão, a me todologia introduzida pela «revolução jevoniana», e mais sistematicamente formulada por Menger e pela «escola aus tríaca», procurou deduzir uma explicação do valor de troca das atitudes de consumidores individuais para com os bens como valores de uso que proporcionam a satisfação de necessidades individuais. O significado deste ponto de vista não é (como correntemente se tem pensado) apenas o pôr-se em destaque o extremo oposto duma cadeia de acontecimentos ou processos interdependentes. Em vez disso, existem duas consequências fundamentais deste modo de abordar o problema. Em primeiro lugar, tratou indivíduos, a sua estrutura de necessidades e as escolhas e substituições resultantes, como os dados últimos e independentes do problema económico: estes eram os átomos últimos do processo de troca e do comportamento de mercado, para além dos quais a análise não ia (por exemplo, não se ocupava, e de facto não podia ocupar-se, * Misère de la Philosophie (ed. 1847) p. 61. ** O Capital, Vol. I. *** Theorien über den Mehrwert, ed. Karl Kautsky (Berlim, 1923) Vol. HI, pp. 521-2. 48
do condicionamento ou interdependência social de desejos e reacções comportamentais dos indivíduos). Em segundo lugar, deduziu uma teoria de repartição inerente ao processo de fixação de preços — como fixação de preços de «factores originais» ou serviços produtivos de acordo com o papel que desempenhavam na criação de bens que, em primeiro ou segundo grau, eram de uti lidade para consumidores finais. Na concepção de Menger, conforme veremos adiante, havia uma hierarquia simples de «bens de primeira ordem» e «bens de ordem superior»; os valores dos segundos dependiam dos primeiros de maneira simples, conforme o seu papel no processo unidi reccional pelo qual bens ou serviços de «ordem superior» eram produtivamente transformados em bens de con sumo e valores de uso finais. Isto, e não a utilização do dispositivo formal de incrementos marginais, foi o ponto capital da nova tendência do último quartel do século dezanove (uma razão pela qual a designação de «marginalismo» para descrever esta tendência é mal aplicada). Antecipando a discussão nos capítulos seguintes: talvez seja particularmente digno de nota o facto de esta inclusão de uma teoria de repartição dentro da teoria da formação dos preços, como conjunto constitutivo do conjunto mais amplo de processos de mercado, vistos como um todo inter-relacionado, ser discutível num as pecto importante. Uma estrutura de procuras de mercado só pode ser deduzida de desejos, preferências e reacções comportamentais de consumidores, desde que se admita que os mesmos dispõem de um determinado rendimento monetário.* Daqui resulta que uma repartição inicial
* N a formulação de Walras, por exemplo, de « ranaté » como «a causa do valor de troca», isto surge como a «quantidade possuída» inicial dos bens que são objecto de troca. (W alra s salienta, na Leçon 14, que os preços se mantêm sem alteração quando há redistribuição de quantidades entre possuidores, se (mas só se) «o valor da soma das quantidades possuídas por cada uma destas partes (na troca) se mantém a mesma».) Recorre-se (não de modo completamente convincente, temos de acrescentar) à «lei dos 4
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de rendimento entre indivíduos está implícita no processo geral da formação de preços, no sentido de que deve ser incluida como uma das determinantes da estrutura de procura a partir da qual os preços (incluindo os preços dos factores produtivos) são deduzidos; o processo total de fixação de preços está relacionado com esta distri buição postulada. Por outras palavras, uma teoria da distribuição se for concebida como uma teoria de preços deduzidos de serviços ou factores produtivos, não pode ser independente da repartição de rendimento inicial como premissa essencial.* A consequência importante, mas muito raramente notada, desta oposição entre o modo clássico de abordar o problema e o moderno, resulta imediatamente daquilo que foi dito: designadamente, que no primeiro, a reparti ção do rendimento é tratada como resultante de instituições sociais (por exemplo, posse da propriedade) e relações sociais, ao passo que no último é determinada pelas condições de troca. No primeiro caso, é determinada do exterior, e, no segundo, do interior do processo dos preços de mercado (Marx exprimiria o primeiro afirmando que as condições sociais e as forças de classes eram mais fundamentais que as relações de troca).** Classica grandes números» para supor que esta condição será geralmente satisfeita quando as transacções se fazem num mercado de con corrência. * Tomemos um exemplo extremamente simples: suponhamos uma economia de dois bens, sendo x um bem necessário relativamente barato (comparado com a sua utilidade) e y um bem de luxo relativamente caro, consumido apenas por quem tem rendimentos elevados. O facto de a procura de x provir de grupos de baixo rendimento (e inversamente a procura de y provir dos que têm rendimentos altos) tenderá, ceteris paribus, para manter o preço de x baixo (e de y alto) e, analogamente, o preço de qualquer que seja o factor (por exemplo* o trabalho) mais intensivamente utilizado na sua produção. ** £ certo que Marx tratou os salários (e portanto, dada a produtividade, a mais-valia) como governados pela lei geral do valor: isto é, pelo «valor da força de trabalho». Mas a sua própria definição de «valor da força de trabalho», e portanto a taxa 50
mente, a repartição do rendimento (por exemplo, o coeficiente salário-lucro) era uma pré-condição da forma ção de preços relativos. Em contrapartida, na teoria pós-jevoniana e austríaca, a teoria da repartição do rendimento é deduzida como parte do processo geral de formação de preços — como um sistema de equações fazendo parte do sistema total de equações do equilíbrio de mercado (embora não sem circularidade, conforme vimos, na medida em que tem de presumir-se uma repar tição inicial do rendimento traduzindo' as necessidades ou preferências dos consumidores em termos de procura de mercado). Assim, a repartição do rendimento surge como algo independente das instituições de propriedade e das relações sociais: como algo supra-institucional e supra-histórico, pelo menos no que diz respeito à distribui ção do rendimento entre factores. Veremos adiante que isto é a substância e essência da crítica da teoria de produtividade marginal na discussão moderna (a polé mica contra a chamada escola «neo-clássica»); embora a discussão, em si mesma, tenha tratado principalmente de questões formais (de coerência e análogas). Conforme um escritor afirmou recentemente: «A teoria das relações de produção pretendeu ser independente das instituições da sociedade; isto é, as relações entre homens eram tratadas como irrelevantes para uma explicação da re partição. Marx teve o mérito de ver que esta separação não é válida, mesmo no mundo da pura lógica, e o significado desta distinção no caso de mais de um bem de capital tem sido sublinhado pelos críticos modernos das parábolas neo~clássicas.»*
de mais-valia, dependiam de hipóteses sociohistóricas, ao passo que qualquer desvio do preço corrente da força de trabalho em relação ao seu valor dependia do equilíbrio das forças de classe (por exemplo, força dos sindicatos). Ver Capítulo 6. * Professor G. C. Harcourt, «Som e Cambridge Controversies in the Theory of Capital», Journal of Economic Literature, Vol. VH, N.° 3, Junho de 1969, p. 395. 51
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Para resumir, a que conclusão podemos chegar? Para sermos breves diremos que a distinção que Schumpeter tentou estabelecer entre Economia como análise pura e como Visão do processo económico, em que entram inevitavelmente tendências e matizes ideológicos, não pode ser sustentada, a menos que a primeira se limite à estrutura formal, unicamente de afirmação econó mica, e não à teoria económica como afirmação substancial sobre as relações reais da sociedade económica; visto que na formulação desta última, e no próprio acto de julgamento do seu grau de realismo, não podem deixar de entrar a intuição histórica, a perspectiva e a visão social. Por esta razão, é possível caracterizar e classificar teorias económicas, mesmo as mais abstractas, conforme o modo como descrevem a estrutura e raízes da sociedade econó mica, conforme o significado desse modo de descrever para o julgamento histórico e a prática social contem porânea. Com efeito, proceder deste modo é parte essencial da interpretação intelectual das teorias em questão, e do seu lugar na história das ideias; e sem essa apreciação, algo essencial faltaria na nossa compreensão de teorias par ticulares, tratadas isoladamente e vistas exclusivamente em termos da sua estrutura lógica interna — e a fortiori na nossa compreensão do desenvolvimento do pensamento económico. Neste sentido, a avaliação histórica da teoria e do seu desdobramento é fundamental para qualquer apre ciação completa da própria teoria, se se considerar que esta é a relação (e implicações) das estruturas formais com a realidade, assim como a análise das estruturas for mais per se. Enquanto a última pode ser tratada como realização técnica pura e simples, a primeira, que se ocupa fundamentalmente da relevância •— quer uma teoria tenha significado ou não — e viabilidade geral como teoria social, não pode ser tratada dessa forma. A avaliação e interpretação histórica da doutrina económica tem consistido vulgarmente em examinar os problemas reais que as doutrinas particulares preten52
diam esclarecer. Claro que isto é um elemento de inter pretação, talvez um ponto de partida essencial, que de qualquer modo permite utilizar uma pista sugestiva. Mas temos de reconhecer que não é mais que um ponto de partida; e nalguns casos, pode não haver qualquer sinal visível de que a formulação concreta dum problema tenha precedido a invenção teórica na mente dum inovador intelectual. A interpretação histórica, por outras palavras, precisa de ser concebida de um modo mais amplo, e em certo sentido menos literalmente. Neste aspecto, é bom ter em conta que o desdobramento e desenvolvi mento do pensamento não deve ser concebido, por um lado, como uma série de respostas largamente descontínuas (ou estruturas para respostas) a problemas que são diferentes, em cada geração sucessiva, dos da geração precedente, nem, por outro lado, como elaboração linear dum conjunto básico de conceitos, por adaptação sucessiva destes a problemas decorrentes do contacto com o mundo real. Novos conceitos e estruturas formais são tanto fruto do desejo de responder às inadequações (e, por tanto, de contradizer ou «negar») dos seus predecessores, no que diz respeito à relevância e realismo destas, como da necessidade de proporcionar as respostas mais simples e imediatas para problemas contemporâneos, mesmo que estes (por exemplo, preços de cereais em 1815 ou desem prego na década de 1930) reforcem a tendência para reconsiderar a adequação da estrutura conceptual tradicional. É muito comum a contestação da ideia antiga começar pela apresentação de hipóteses previamente laten tes, subjacentes ao formalismo antigo ou aos seus co rolários convencionais — hipóteses, possivelmente, sobre a situação global de que depende, ou a respeito da indepen dência (ou alternativamente da contingência específica) de algum ou alguns dos seus factores, ou ainda sobre o valor de certos parâmetros que, ao serem examinados, se reve lam fundamentais para o moãus operanãi do modelo. Como consequência disto, é provável que se tente, não apenas pôr de parte e substituir estas hipóteses particulares, mas também construir uma imagem radicalmente diferente da situação global e explorar as implicações que daqui 53
resultam; e isto ainda que uma predilecção do inovador pelo paradoxo não favoreça a procura de casos em que novos teoremas mostrem relações ou proporcionem coro lários precisamente opostos aos antigos. É possível que isto seja apenas outra maneira de dizer o que já foi dito: que conceitos e teoremas novos têm de ser vistos, simultaneamente, como elaborados em resposta a outros mais antigos (e portanto, neles funda mentados)— como avaliação crítica da sua capacidade para desempenhar a função para que foram criados — e como reflexo duma mudança de experiência humana e de problemas e conflitos implícitos na actividade social hu mana, que é, por sua vez, motivada pelo uso de noções abstractas aplicadas a seres' humanos em geral, aos seus artefactos e a «coisas».
54
2. AD AM SMITH I A preocupação fundamental dos primeiros econo mistas do tempo de Adam Smith era a noção do interesse individual como força motriz da economia. A partir daqui formulava-se o conceito geral de um sistema econó mico impelido por uma energia que lhe era própria, e estudavam-se os seus movimentos, modelados por leis económicas específicas que a economia política clássica revelou e estabeleceu numa obra sem paralelo. Tal como na conhecida frase de Hegel, «das acções dos homens resulta algo diferente daquilo que eles conscientemente quiseram e pretenderam». A ideia da força potencialmente criadora do interesse individual relembra os «vícios privados vir tudes públicas» da Fábula das Abelhas, de Mandeville (apesar de Adam Smith ter rejeitado a ideia como «total mente perniciosa»*); é este, evidentemente, o núcleo substancial no interior da casca metafísica da «mão invi sível» de Smith; e a própria Teoria dos Sentimentos Morais assenta nesta mesma ideia, ao explorar o tema da motiva ção humana, que era o núcleo central da ordem burguesa auto-actuante.** Esta demonstração da existência de
* A razão apresentada era a de que essa ideia «parece afastar completamente a distinção entre vício e virtude» (Theory of Moral Sentiments, l l . a ed. (Edimburgo, 1808), Vol. II, p. 290). ** Wesley Mitchell disse aparentemente que «o sistema de eco nomia de qualquer pessoa deve ser baseado na sua concepção da natureza humana, tácita ou expressa, enquanto o seu sistema 55
um mecanismo nos negócios dos homens, com o qual era incompatível a interferência não esclarecida do soberano ou estadista, foi a inovação fundamental do pensamento humano sobre a sociedade, substituindo essencialmente o pensamento antigo baseado no «direito natural», e não continuando-o, como por vezes se tem afir mado.* Segundo Lord Robbins, embora Smith «utilize muito frequentemente a terminologia de Naturrecht», os seus «argumentos são muito coerentemente de carácter utilitarista».** Aquilo que existe de impressionantemente novo no «princípio da Liberdade Natural», que enunciou logo em 1749, é a afirmação empírica de que (na paráfrase de Schumpeter) «a livre interacção de indivíduos não pro duz caos, mas sim um sistema ordenado que é logicamente determinado»*** — um sistema que, por conseguinte, pode ser enunciado em termos racionais. É certo que se falou muito, ao tempo, da «ordem natural», e que isto favo recia um antigo apreço pelos dispositivos artificial-
de teoria económica consistir no raciocínio sobre aquilo que as pessoas farão». E prosseguiu referindo-se à «forte influência» de Bentham «no desenvolvimento da teoria económica», que atribuiu «ao facto de ter formulado muito mais explicitamente e com maior clareza que outro qualquer, a concepção de natureza humana que predominava entre os seus contemporâneos» (W esley C. Mitchell, Lecture Notes on Types of Economic Theory (N ov a Iorque 1949) I, pp. 90-1). * Po r exemplo, para Gunnar Mydal em The Political Element in the Development of Economic Theory (Londres, 1953), o valor era «geralmente identificado com o preço ‘justo’ ou ‘correcto’, o justum pretium », e a teoria da lei natural «era o ponto de partida da teoria do valor do trabalho e da doutrina do liberalismo económico» (pp. 60, 71). Noutro lugar, define «a essência desta filosofía» da lei natural como «uma identificação directa da teleología e da cau salidade» (Value in Social Theory¡ ed. por Paul Streeten (Londres, 1958) p. 206). Schumpeter fala do utilitarismo de Bentham como «apenas mais outro sistema de lei natural» (History of Economic Analysis, p. 132). ** The Theory of Economic Policy in English Classical Political Economy (Londres, 1952) p. 48. *** History of Economic Analysis, p. 185. 56
mente elaborados pelo homem. Mas a verdadeira finali dade desta suposta ordem natural (usando as palavras de Dugald Stewart na Memória de Adam Smith) era «permitir que cada homem, contanto que respeite as regras da justiça, lute pelo seu próprio interesse à sua própria maneira, e aplique a sua indústria e o seu capital na mais livre concorrência com os seus concidadãos.»* Por outro lado, foi especialmente característico de toda a escola, o facto de a sua principal preocupação ter sido a política económica. Esta preocupação precedeu e determinou as suas ideias acerca da ordem económica, tanto quanto foi consequência delas e dos seus corolários. Numa orientação análoga, os Fisiocratas, a escola francesa dos économistes do século dezoito, debruçaram-se sobre a transformação das políticas tradicionais dos governos em matéria de comércio e tributação;** e, com este objectivo, elaboraram o conceito duma «ordem econó mica». De certa maneira, fizeram isto mais «objectivamen te» que Smith e a escola inglesa, visto que se preocuparam menos com a natureza e motivação humanas e dirigiram a sua atenção para a estrutura ou sistema de relações comerciais—para uma fisiologia da sociedade económica— com processos e regras próprias às quais a política gover namental deve adaptar-se, quando não subordinar-se.*** * Biographical Memoirs, ed. por Sir William Hamilton (Edim burgo, 1858) p. 60. J. K. Ingram disse do «sistema de liberdade natural» de Smith que «esta teoria, evidentemente, não é apresen tada explicitamente por Smith como fundamento das suas doutrinas económicas, mas é realmente o substrato secreto em que elas assentam» ( History of Political Economy (Londres, 1907) p. 91). ** Isto resulta claramente da discussão entre Mirabeau e Quesnay, que converteu o primeiro à Pisiocracia, embora a questão imedia tamente em causa fosse a política populacional (c f R. L. Meek, The Economics of Physiocracy (Londres, 1962) pp. 16-18). *** Cf. Philosophie Rurale, de Quesnay: «Se os moralistas e filósofos não basearem as suas ciências na ordem económica, na agricultura, as suas especulações serão inúteis e ilusórias. Serão médicos que só considerarão os sintomas e ignorarão a doença. Aqueles que nos descrevem a moral do tempo, sem irem até às causas; são apenas especuladores e não filósofos» ( cit. ibid., p. 69). 57
Citando o Professor Meek: «Os Fisiócratas partiram da hipótese de que o sistema de troca através do mercado, cuja análise era o seu objectivo principal, estava sujeito a certas leis económicas objectivas, que funcionavam inde pendentemente da vontade do homem e podiam ser racio nalmente conhecidas. Estas leis governavam a forma e o movimento da ordem económica, e, portanto... a forma e o movimento da ordem social como um todo.»* O que existia de peculiar na sua maneira de abordar o problema, era o facto de terem considerado como ponto fundamental a questão da fonte e explicação da existência de um produto líquido ou excedente, e terem tomado, como fulcro do seu sistema, uma resposta a esta questão. Postularam (pro vavelmente como observação empírica) que só a produção na agricultura podia proporcionar um produto líquido ou excedente. Pode presumir-se que a prova fosse a existên cia de toda uma classe de proprietários de terra que dela vivia exclusivamente, sob a forma de renda da terra; daqui resultava que, desta maneira, e neste caso por excellence, a Natureza mostrava a sua bondade para com o homem. «A mais-valia surge como uma dádiva da natureza (Marx).** Noutros domínios da actividade económica humana, os inputs produtivos manufacturados (para usar a terminologia moderna) podiam substituir-se a si próprios, mas, em geral, nada mais podiam fazer: neste sentido, eram stérile e não productif.*** A consequência lógica foi o famoso imposto único. Se a actividade agrícola era a fonte do excedente de que dependiam o Estado e a aristocracia, isto implicava que tudo o que
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Ibid., p. 19.
** Theories of SurplusValue, Parte I, trad. Emile Bums (Mos covo, s.d.) p. 51. *** Como não tinham uma teoria do valor, não fo i introduzida nenhuma distinção entre produtividade física e de valor (como ob serva Schumpeter, History of Economic Analysis, p. 238). 58
restringisse essa actividade devia ser condenado como socialmente pernicioso. É o caso das restrições ao comércio e da tributação pesada de agricultores e comerciantes, que enfraqueciam as fontes dos avances foncières, 'primi- tives e annuelles de que dependia o nível desta actividade produtiva. Este, por sua vez, era o ponto fundamental da sua análise do fluxo circular de troca (hoje talvez se lhe chamasse um «modelo») representado no famoso Tableau Êconomique de Quesnay. («Cantillon e Quesnay tiveram esta concepção da interdependência geral de todos os sectores e todos os elementos do processo económico, no qual — como Dupont realmente disse — nada se man tém isolado e todas as coisas permanecem unidas.»*). A isto acrescentou-se, numa relação bastante lógica, uma noção paralela àquela que vimos ser característica de es critores ingleses do século dezoito: a de que os interesses dos indivíduos, quando prosseguidos livremente, serviam o bem público, e isto pela «magia» da concorrência, que numa «sociedade bem ordenada» assegura que «cada homem trabalhe para outros, enquanto crê que está trabalhando para si próprio». No entanto, não se procurava demons trar logicamente esta suposição; apelava-se para «prin cípios de harmonia económica» outorgados ao mundo pela benevolência divina.** No que se refere à «dívida» que Smith terá con traído para com a Escola Francesa, com a qual contactou durante a sua viagem pela França e Suíça em 1764-6, talvez seja mais verdadeiro ter exis tido uma geração de ideias paralela e independente, em vez de dependência duma fonte original única. Sabemos agora que muitas das noções características desenvolvidas por Smith na Riqueza das Nações estavam presentes, pelo menos em embrião, nas suas lições anteriores a 1764. Sucedeu assim, por exemplo, não só com a ideia de a divisão do trabalho ser limitada pela dimensão do comércio mas
Ibiã., p. 242. ** Cf. Meek, Economics of Physiocracy, p. 70.
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também com a do papel benéfico do interesse individual, traduzido no seu expressivo aforismo segundo o qual «não é da benevolência do carniceiro, cervejeiro ou padeiro que podemos esperar o nosso jantar, mas sim do facto de eles procurarem o seu próprio interesse. Podemos apelar, não para o seu espírito humanitário, mas sim para o amor que têm por si próprios, e nunca lhes falemos das nossas necessidades, mas sim das suas vantagens.»* O contacto com as ideias francesas pode de facto estar na origem (além de reforçar a sua fé na liberdade económica) da sua noção de capital como «adiantamento» no tempo — quer dizer, adiantamento da produção, ou, pelo menos, do seu acabamento: uma noção que continha implicitamente todos os elementos essenciais da teoria do capital posteriormente desenvolvida, na medida em que esta tratou o ponto fulcral do problema do capital e do seu investimento, como rotação no tempo. De qualquer modo, a noção de capital constituído fundamentalmente por adiantamentos de salário aos traba lhadores impregnou toda a Economia Política clássica na Inglaterra.** Adam Smith parece ter partilhado a mesma ideia quando, nas suas primeiras lições, afirmou que «cada comércio exige uma certa quantidade de alimento, vestuá rio e habitação para ser realizado» e que «o número de pes soas que são empregues deve ser proporcional a essa quantidade».*** Embora expressamente em desacordo com o princípio fundamental do sistema fisiocrático de que só
* Weàlth of Nations, completa num volume (Londres, 1826) p. 21. ** Esta ideia teve como consequência a sua própria concepção (e dos seus sucessores da Escola Clássica), muito menos do que nos economistas modernos, do capital como factor de produção separado mas indissociável do trabalho; e quando Ricardo, por exemplo, falou da produtividade decrescente de quantidades suces sivas de capital aplicadas na terrat não a considerava dis tinta (como a teoria da produtividade marginal moderna) da produ tividade de quantidades sucessivas de trabalho aplicadas na terra. *** Lectures on Justice, Police, Revenue anã Arms by Adam Smith, reported by a Student in 1763, ed. Edwin Cannan (Oxford, 1896) p. 181. 60
a agricultura proporcionava um proãuit net, admitia a existência de «dois excedentes» na agricultura. «Com efeito, os agricultores e os trabalhadores agrícolas, para além da quantidade de bens que os mantém e emprega, reproduzem anualmente um produto líquido, uma renda livre para o proprietário da terra. Deste modo, tal como um casamento que produz três filhos é seguramente mais produtivo que outro que produz apenas dois, tam bém o trabalho dos agricultores e trabalhadores agrícolas é mais produtivo que o dos comerciantes, artífices e fabri cantes.»* Provavelmente, a ideia de Smith, que examina remos adiante, acerca da relação do interesse do pro prietário da terra com o interesse social geral, estaria ligada a este aspecto. II
Enunciar as «leis naturais» desta ordem económica capaz de se regular a si própria, foi a preocupação domi nante da economia política clássica. Enquanto Quesnay concebeu um fluxo ou circuito de trocas, que faziam viver a sociedade, Smith compropôs a existência de forças de mercado, estabelecendo «valores naturais» pela acção da concorrência na oferta e na procura. Esses «valores naturais» constituíram termos de comparação ou normas com os quais todos os «preços artificiais», estabelecidos por interferências e obstáculos assumindo a forma de regulamentações legais, «privilégios exclusivos das cor porações, estatutos de aprendizagem» e monopólios po diam ser contrastados. Por outro lado, os «preços de mercado», dependentes das condições particulares e ad hoc da oferta e da procura num dado lugar e período de tempo (e «regulados pela relação entre a quantidade realmente apresentada no mercado e pela procura daqueles... a que podemos chamar com pradores válidos»), tendiam, com o tempo e em con dições de liberdade, para o nível «natural»; mas num mundo incerto ou imperfeitamente livre, nunca coincidiam *
Wealth of Nations, p. 634. 61
com este. «O preço natural... é, na realidade, o preço central, para o qual os preços de todos os bens tendem continuamente.»* Já nas primeiras lições esta concepção estava completamente formada: «qualquer política que tende a fazer subir o preço de mercado acima do preço natural, tende a diminuir a abundância pública»; «todos os monopólios e privilégios exclusivos das corporações, por mais louvável que possa ter sido a intenção inicial da sua instituição, têm o mesmo mau efeito» que «os impostos sobre exportação e importação» que «também embaraçam o comércio».** A melhor política é, de longe, a de «deixar as coisas seguir o seu curso natural». E esta afirmação, tão genérica, não apresenta nenhuma prova minimamente fundamentada. No entanto, não se trata de uma afirmação metafísica, como não o era a noção de «valor natural» per se (o facto de o equilíbrio que ela definia ser hipotético não a torna metafísica), ainda que tivesse um certo cunho metafísico em virtude da terminologia, que, sem dúvida, lhe conferiu muito maior impacto numa audiência contemporânea (e noutras subsequentes) — uma audiência que estava impregnada de noções metafísicas acerca do ius naturalis. Quando se tratou de dar uma definição mais precisa deste valor natural e sua determinação, Adam Smith pouco mais teve para dizer além de que o preço do equi líbrio era estabelecido no devido momento pela concor rência, através das operações de oferta e procura —- e que para ele «tendem constantemente os preços de todos os bens». O «preço natural» dum bem é definido como sendo igual à soma das «taxas naturais dos salários, lucro e renda», que, por sua vez, são definidas como «taxas correntes ou médias» dos salários, lucro ou renda predominantes nas «circunstâncias gerais da socie-
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Ibid., p. 61. Lectures... by Adam Smith, ed, Cannan, pp. 178, 236.
dade» em determinado momento: por outras palavras, determinadas pelas condições gerais de oferta e pro cura de trabalho, capital e terra, que governam res pectivamente as três «Partes componentes do Preço dos Bens», nas quais, «em qualquer sociedade, o preço de qualquer bem acaba por se desdobrar por si próprio numa ou noutra ou em todas estas três partes». Torna-se evidente como «a quantidade apresentada no mercado deve, em qualquer momento, ser quase igual à procura efectiva», ou, inversamente, como «alguma das partes com ponentes do seu preço, deve subir acima do preço natural», ou, como alternativa, descer abaixo deste, e de que modo isto influenciará a oferta subsequente, adaptando-a ao nível da procura. Isto implica que a justificação da con corrência, com as suas oscilações frequentes e por vezes amplas tendentes a igualar os preços de mercado e natu ral, «seja o próprio ajustamento da quantidade total de indústria anualmente utilizada para apresentar qualquer bem no mercado, à procura efectiva».* A sugestão duma teoria do valor natural do trabalho, surge tanto na discussão do «preço real e nominal» (de que voltaremos a ocupar-nos) como na abertura do Capí tulo VI do Livro I, «Das Partes Componentes do Preço dos Bens». Mas cedo verificamos que isto só se aplica «àquele primitivo e rude estado da sociedade que precede a acumulação de bens e a apropriação da terra». Então, «a proporção entre as quantidades de trabalho necessá rias para adquirir diferentes objectos... será o único factor capaz de constituir uma norma de troca recíproca... Neste estado de coisas, todo o produto do trabalho pertence ao trabalhador; e a quantidade de trabalho correntemente necessária para adquirir ou produzir qualquer bem é o único factor que pode regular a quantidade de trabalho que este bem deve normal-
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Weatth of Nations, pp. 53, 58-65. 63
mente comprar, ou por ela ser trocado.»* Mas, «assim que se acumula capital nas mãos de certas pessoas, algumas destas utilizá-lo-ão naturalmente em pôr a tra balhar pessoas industriosas, a quem fornecerão materiais e subsistência, a fim de obterem um lucro com a venda do seu trabalho, ou com aquilo que o seu trabalho acres centa ao valor dos materiais». «O valor que o trabalhador acrescenta aos materiais desdobra-se em duas partes», salários e lucros. «Nestas circunstâncias, o produto total nem sempre pertence ao trabalhador. Em muitíssimos ca sos, este tem de partilhá-lo com o proprietário do capital que o emprega.» Segue-se que «no preço dos bens... os lu cros do capital constituem uma parte componente comple tamente diferente dos salários de trabalho, e regulada por princípios muito diferentes». Por outro lado, a pro porção destas duas componentes pode variar muito entre as diferentes linhas de produção.** Conforme tem sido frequentemente observado, sugere-se aqui uma teoria do lucro «deduzido»; tanto o lucro como a renda são implicitamente considerados como dedu ções daquilo que é, «naturalmente», ou «originalmente», o produto do trabalho.*** O que não passa duma sugestão no caso do lucro, torna-se bastante mais explícito quando se chega à terceira componente, a renda da terra, com
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Ibid., p. 51. Ibid., pp. 52, 53.
*** Ê de notar que Marx tratou isto como um conceito de mais-valia, pelo menos em embrião — e a teoria de Ricardo ainda o fez em maior grau: como uma «teoria de mais-valia que, evidente mente, existe na sua obra, embora não defina a mais-valia como dis tinta das suas formas particulares, lucro, renda, juro». A propósito, elogia Adam Smith (o seu «grande mérito») pelo seu sentido histó rico ao considerar (muito melhor que Ricardo) que «com a acumu lação de capital e o aparecimento da propriedade da terra... surge algo de inédito» ( Theories of Surplus Valué, Parte I, trad. E Burns (Moscovo, s.d.) pp. 83-6, Parte II, trad. Renate Simpson (Moscovo, 1968; Londres, 1969) p. 169). 64
a observação de que «os senhores da terra, como todos os outros homens, desejam colher onde nunca lavraram, e exigem uma renda mesmo para o seu produto natural». (E acrescenta: « A madeira da floresta, a erva do campo, e todos os frutos naturais da terra, que, quando esta era propriedade comum, custavam ao trabalhador apenas o incómodo de os colher»; ao passo que agora tem de «pagar para os colher; e tem de ceder ao dono da terra uma porção daquilo que colhe ou produz com o seu trabalho».)* Se de facto foi intencional, essa teoria da «dedução», poderia ser interpretada de modo plausível no âmbito de certa teoria do «direito natural». O que estaria certamente de acordo com o quadro geral em que Adam Smith a colocou. Mas também poderia ser inter pretada num sentido histórico-comparativo, como uma teoria incipiente da exploração, vista como relação social, num sentido análogo ao de Marx.** Smith apresenta-nos assim uma teoria dos preços que pode ser caracterizada (segundo a descrição feita por Sra ffa)*** como uma «Teoria da Soma» — uma soma (meramente) de três componentes primárias do preço. Também tem sido considerada como uma simples Teoria do Custo de Produção; neste aspecto foi transmitida ao longo do século dezanove e tomou-se conhecida nos manuais sobre esse assunto. Smith deduziu dela um corolário que, depois de examinado, pode ser um elemento para a
* Riqueza das Nações, p. 53. ** Fo i neste sentido que Bortkievicz se referiu mais tarde a uma teoria do lucro «deduzido», preferindo esta designação à de «explo ração». O próprio Marx, conforme vimos, tratou a teoria de 'Smith, neste sentido, como uma teoria da mais-valia, embora sem a atribuir ao aparecimento histórico da força de trabalho como um bem em si mesmo. ** * Introdução Geral ao vol. I de WOrks and Correspondence of David Ricardo, ed. P. Sraffa (Cambridge, 1951) p. XXXV. Marx falou do modo de determinação do valor natural de Smith «pela adição dos preços naturais dos salários, lucro e renda» (TheoHgs of SurplusValue, Parte I p. 95). ■5
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contestação desta teoria de adição-mais-oferta-e-procura, como explicação adequada do valor. Segundo esse corolá rio, ao qual se atribuiu importância considerável, um im posto sobre bens essenciais, ou mais particularmente sobre alimentos, teria um efeito mais profundo que outros impostos, visto que, fazendo subir o nível dos salários (monetários), acabaria por aumentar os preços de todos os bens. Isto significa que «o preço monetário dos cereais regula o de todos os outros bens de produção doméstica».* O que implica que quando os cereais sobem, tudo sobe; mas logo surge a pergunta: «sobe em termos de quê?» Esta pergunta viria a ser feita, como veremos, por Ricardo, e iria constituir o trampolim da crítica de Ricardo ao tratamento do valor por Adam Smith. No entanto, só no quinto capítulo do Livro I Adam Smith parece relacionar, pela primeira vez, valor de troca e trabalho, em ligação com aquilo a que ele chama «a medida real» do valor de troca, «ou em que consiste o preço real de todos os bens», como podemos ler no título do capítulo. Para evitar um equívoco que não tem sido raro, é necessário acentuar que neste capítulo o autor se ocupa, não da causa ou «regra» (isto é, princípio) do valor, mas sim do padrão de medida em cujos termos os valores dos bens e as alterações por eles sofridas podem ser avaliados de forma apropriada. Embora estes dois aspectos estives sem intimamente associados no pensamento do tempo, sendo o segundo, em especial, considerado uma chave para o primeiro (conforme veremos também com Ricardo), são questões distintas e separáveis, e foi deste segundo aspecto que Adam Smith se ocupou imediatamente neste ponto. Depois de observar que o valor de troca dum bem é «mais frequentemente avaliado pela quantidade de dinheiro, do que pela quantidade de trabalho ou de qualquer outro bem que possa ser obtido em troca», prossegue pondo em relevo que o dinheiro é em si mesmo variável (como se viu com a inflação da época
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Riqueza das Nações, p. 470.
Tudor), pois depende das variações da quantidade de tra balho necessária para a mineração do ouro e da prata. «Tal como uma medida de quantidade, tal como o pé natural, a braça ou a mão-cheia, que variam constantemente na sua própria quantidade e nunca podem medir rigorosamente as outras quantidades, também um bem cujo valor varia constantemente nunca pode ser uma medida rigorosa do valor doutros bens.» Tendo excluído o dinheiro, o autor volta a recorrer ao trabalho como único padrão possível; e a razão que apresenta tem um interesse con siderável. Ê que «quantidades iguais de trabalho, em qualquer momento e lugar, podem ser tidas como de igual valor para o trabalhador. Nas condições normais de saúde, força e disposição de espírito, com um grau normal de habilidade e destreza, sacrifica sempre a mesma porção do seu conforto, liberdade e felicidade... Só o tra balho, portanto, nunca variando no seu próprio valor, é o padrão último e verdadeiro pelo qual pode ser avaliado e comparado o valor de todos os bens, em qualquer momento e lugar. É o seu preço real; o dinheiro é apenas o seu preço nominal.»* Talvez, traduzindo isto na termino logia de Marshall, se pudesse dizer que equivale a afirmar que o trabalho constitui o custo real final implicado na actividade económica, e, portanto, o único padrão satisfa tório em cujos termos podem ser medidos os valores mutá veis de todos os bens, incluindo os metais preciosos como bem monetário. No parágrafo do qual se extrai esta passagem, Adam Smith parece fazer muito claramente a distinção entre a quantidade de trabalho necessária para a produção dum bem, e o preço pelo qual esse trabalho será trocado no mer cado (ou aquilo que Marx, conforme veremos, iria denomi nar o preço da força de trabalho). Segundo o autor «o preço que ele (o trabalhador) paga deve ser sempre o mesmo, qualquer que seja a quantidade de bens que recebe em troca. A quantidade de bens comprada não
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Ibiã., p. 37.
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é, evidentemente, sempre a mesma; mas é o seu valor que varia, e não o do trabalho que os compra. Em qual quer momento e lugar, é caro aquilo que é difícil de obter, ou o que é adquirido à custa de muito trabalho; e é barato o que se pode obter facilmente, ou com muito pouco trabalho.» No parágrafo seguinte, afirma: «Mas embora para o trabalhador a quantidades iguais de trabalho cor responda sempre o mesmo valor, para a pessoa que o emprega, no entanto, essas quantidades têm um valor variável. É igualmente variável a quantidade de bens que ele utiliza para as comprar, e para ele o preço do trabalho parece variar como o de todas as outras coisas... Na rea lidade, contudo, são os bens que são baratos num caso, e caros no outro.»* Contudo, surpreendentemente, noutro ponto do mesmo capítulo encontramo-lo referindo-se à «quantidade de trabalho que ele (um bem) lhe permite comprar ou ter à sua disposição», como sendo a «medida real do valor de troca de todos os bens»: isto é afirmado, efectivamente, no parágrafo inicial desse capítulo.** B nesta base que Ricardo critica a sua confusão, aparente, do preço do trabalho (isto é, dos salários pagos) com a quantidade de trabalho necessária para produzir um determinado pro duto, o que resultou, portanto, numa flutuação entre um padrão de trabalho disponível e um padrão de trabalho in corporado. (Segundo Ricardo, Smith, «que tão rigorosa mente definiu a fonte original do valor de troca», «criou outro padrão de medida do valor... não a quantidade de trabalho aplicada na produção dum objecto, mas sim a quantidade que pode render no mercado: como se estas duas expressões fossem equivalentes».)***
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Ibid., pp. 37-8.
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Ibid., p. 35.
*** Works and Correspondence of David Ricardo, ed P. Sraffa, Vol. I, pp. 13-14.
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i)
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De facto, pode considerar-se que, dentro dum con texto de padrão ou medida, esta noção de trabalho disponí vel é paralela à noção de salário como determinante do valor, no sentido de «parte componente dum preço», que nós vimos ter sido adoptada por Smith como base do seu corolário acerca do papel dominante dos cereais (enquanto bem-salário) na formação dos preços de todos os outros bens. Evidentemente, as duas medidas, que iriam ser intensamente discutidas entre Ricardo e Malthus, dariam resultados idênticos se (mas só se) os salários se mantivessem constantes como proporção do valor total produzido (o que significa que as oscilações de salário ao longo do tempo estão ligadas a mudanças na produtividade do trabalho) .* Pelo contrário, dentro de um contexto de regra ou princípio causal para a formação do preço ou do valor de troca, uma teoria dos salários e uma teoria do trabalho incorporado serão equivalentes (ignorando a renda) se (mas só se) a proporção entre trabalho e capital, e portanto a proporção entre salários e lucro, for uniforme em todas as linhas de produção.
* Tomemos um exemplo simplificado: suponhamos que em certa data um alqueire de cereal custa 3 unidades de trabalho a produzir, e, um século depois, apenas 2 unidades. Medido em termos de trabalho incorporado, o cereal baixaria um terço ao longo do século. Suponhamos que os salários na primeira data consistiam em 1/4 de alqueire por unidade de trabalho. Isto significaria que três quartas partes do produto total teriam de ser destinados a salários, ficando um quarto disponível para o lucro (ignorando a renda); em termos de trabalho disponível um alqueire teria igualado 4 unidades, Se o salário-cereal se tivesse mantido sem alteração (isto é, a 1/4 de alqueire por unidade), na data posterior só metade do produto seria gasto em salários e metade ficaria livre para lucro; e em termos de trabalho disponível como medida, o cereal teria ficado inalterável. Para o cereal descer um terço em termos de trabalho disponível, assim, como em termos de trabalho incorporado, o salário-cereal deveria ter subido durante o período de 1/4 para 3/8 de alqueire, isto é, metade, ou tanto quanto a produtividade tivesse aumentado (o que significaria que a divisão proporcionada do produto em salário e lucro teria perma necido constante). 69
Não se pode dizer que Adam Smith tivesse feito muito uso desta concepção de uma medida de valor em termos de trabalho, em qualquer dos sentidos a que faz alusão. Visto que a questão está directamente relacionada com o problema da divisão proporcionada do produto, seria talvez de esperar que conduzisse a alguma discussão deste assunto, na forma de uma mais ampla investigação do problema da distribuição. No entanto, para falar com propriedade, não é isso que acontece. O que encontramos como consequência da investigação sobre as Partes Componentes do Preço de Bens, são duas proposições relacionadas que se referem à tendência de duas destas componentes (salários e lucros) para a uniformidade entre diferentes empregos e indústrias, e a determinação do nível geral de cada um deles por condições de oferta e procura de trabalho e capital, respectivamente. As «cir cunstâncias que determinam naturalmente» a taxa de salários e a taxa de lucros, assim como as suas diferenças «nos diversos empregos de trabalho e capital», formam a matéria dos capítulos seguintes (VIII, IX e X ) , seguida de um estudo separado da Renda da Terra. Ê no primeiro destes capítulos que — para além das observações conheci das sobre o facto de a «melhoria das condições das classes inferiores da população» ser uma vantagem («inevitavel mente, não pode ser florescente e feliz uma sociedade cujos membros, na sua imensa maioria, são pobres e miseráveis»)* e sobre a superioridade dos patrões em ma téria de poder de negociação mantendo-se «sempre numa espécie de combinação tácita, mas constante e uniforme, para que os salários do trabalho não subam acima da sua taxa actual»** — se encontra uma afirmação geral,
* Riqueza ãas Nações, p. 80. Além disto, argumenta-se (contra riamente a um modo de ver comum nos séculos dezassete e dezoito) que abundância e bons salários são favoráveis à indústria e pro dutividade: «onde os salários são altos, encontraremos os traba lhadores mais activos, diligentes e expeditos, do que quando são baixos» (p. 83). ** Ibiã., p. 69. 70
mais clara, a respeito de os salários dependerem sobretudo da taxa de variação verificada na procura de trabalho; estando esta, por sua vez, dependente da taxa de acumulação do capital. «A procura da queles que vivem dos salários... aumenta necessariamente com o aumento do rendimento e capitais de cada país, e não pode aumentar sem este... Não é a grandeza real da riqueza nacional, mas o seu aumento constante, que provoca um aumento nos salários. Por conseguinte, não é nos países mais ricos, mas sim nos mais florescentes, ou naqueles que estão a enriquecer mais depressa, que os salários são mais altos.»* E tam bém: «Merece ser sublinhado que é no estado pro gressivo em que a sociedade avança... mais do que quando adquiriu a totalidade das suas riquezas, que a condição dos trabalhadores pobres... parece ser mais feliz e mais confortável. Ela é difícil num período estacionário, e mise rável num período de declínio. O estado progressivo é na realidade o estado feliz e vigoroso para as diferentes classes da sociedade. O período estacionário é monótono, o de declínio é melancólico.»** Esta posição de destaque que se confere à taxa de variação, em vez de ao nível de procura, está relacionada, e na realidade até resulta de um modo de considerar a população como tendente a acompanhar qualquer aumento de procura e salários («se esta procura for constantemente crescente, a remuneração do trabalho deve necessariamente incentivar o casamento e a multipli cação dos trabalhadores»), até que «a multiplicação exces siva» da mão-de-obra ultrapasse esta procura, ao primeiro sinal de afrouxamento do seu aumento, e assim «faça de novo descer o seu preço [do trabalho] para a taxa apro priada que as condições da sociedade exigiam». «Deste modo», conclui-se, «a procura de homens, como a de outros bens, regula necessariamente a produção de ho
* Ibid., p. 71. ** Ibid., p. 83. 71
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mens; acelera-a quando ela é demasiado lenta, e detém-na quando se torna excessiva.»* Quanto ao lucro, também é afectado pelo «estado de progresso ou declínio da riqueza social», mas de maneira oposta. «O aumento de mercadorias, que faz subir os salários, tende a fazer baixar os lucros. Quando as mercadorias de muitos fabricantes ricos são colocadas no mesmo ramo de negócio, a sua concorrência mútua tende naturalmente a fazer baixar o lucro; e quando há um aumento análogo de mercadorias nos diferentes negócios realizados na mesma sociedade, a mesma con corrência deve produzir o mesmo efeito em todos».** O resultado pode ser uma descida dos preços de muitos bens, ainda que a subida de salários provoque a subida do preço de outros. Esta explicação dada por Smith para uma taxa de lucro decrescente com o progresso, foi também matéria para uma crítica ulterior de Ricardo, que, evidentemente, a considerava um exemplo muito claro da inadequação das explicações baseadas na oferta-e-procura em que Smith (e na sua peugada, Malthus em parti cular) tanto se apoiava. De qualquer modo, sob a forma em que foi apresentada, a conclusão baseava-se numa genera lização contestável daquilo que frequentemente acontece num só ramo de negócio, relativamente ao macro-nível de todos os negócios. No que diz respeito a diferenças de salários e lucros em diversos empregos (diferenças coerentes com o «preço natural», e não desvios deste), a forma como as tratou corresponde à conhecida teoria das vantagens líquidas iguais. No início do Capítulo X encontramos a afirmação clara e inequívoca de que «pelo menos numa sociedade... onde houvesse perfeita liberdade, e onde cada homem fosse perfeitamente livre de escolher a ocupação que se lhe afigurasse apropriada, e de a trocar... o conjunto das vantagens e das desvantagens dos diferentes empregos
* Ibid., pp. 81-2. ** Ibid., p. 89. 72
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de trabalho e capital deveria, em ramos vizinhos, ser perfeitamente igual ou tender continuamente para a igualdade». Ê óbvio que, «se existisse no mesmo ramo qualquer emprego consideravelmente mais ou menos van tajoso que os restantes, tanta gente se aglomeraria nele, no primeiro caso, e tanta gente sairia dele, no segundo, que as suas vantagens depressa voltariam ao nível dos outros empregos».* Como resultado, os salários e lucros tenderiam continuamente para serem desiguais, exactamente na medida necessária para com pensar, na balança das vantagens e desvantagens, outras diferenças que não o ganho pecuniário. Cinco «circuns tâncias principais» foram depois indicadas como res ponsáveis por esses desvios dos ganhos monetários: o «carácter agradável ou desagradável dos próprios empre gos», a facilidade ou dificuldade da aprendizagem no ramo, a constância ou inconstância do emprego, o grau de responsabilidade atribuído ao ofício em questão e o grau de incerteza de êxito. Contudo, conforme a segunda parte do capítulo sublinha, «a política da Europa, não favorecendo uma completa liberdade, dá origem a outras desigualdades muito mais importantes»; e, implicitamente, essa política é condenada. Nas páginas consagradas à terceira componente do preço, encontramos uma curiosa contradição. A renda aparece como uma componente, num sentido diferente do das outras duas: tão diferente, de facto, que faz duvidar da sua capacidade para desempenhar o papel que lhe é atribuído como explicação parcial ou determinante do preço.** «A renda entra, portanto», escreve o autor, «na composição do preço dos bens, de maneira diferente dos salários e do lucro. Salários e lucro, altos ou baixos, deter-
* Ibiã., p. 99. ** Cf. a referência de Marx a «esta contradição» em Theories of Surplus Value, Parte 2 (Londres, 1969) Cap. XIII, p. 321. Claro que Ricardo tinha apontado a sua incompatibilidade com uma explicação do preço em termos de uma soma de três «componentes». 7 3
minam preços altos ou baixos; as rendas altas ou baixas, são o seu efeito.»* A isto o autor acrescenta que «a renda da terra... é naturalmente um preço de monopólio. De modo nenhum está em proporção com o que o proprie tário possa ter gasto com a melhoria da terra, ou como que pode receber dela; mas sim com aquilo que o agricultor lhe entrega.» É apenas nas três últimas páginas deste capí tulo,** depois duma extensa digressão histórica sobre moeda e preços, que pela única vez se aborda o aspecto da distribuição a que Ricardo iria atribuir tão grande importância: designadamente, a relação entre as receitas (ou rendimentos) das «três grandes e originais ordens constituintes de toda a sociedade civilizada», e de cada uma destas, separadamente, com «o interesse geral da so ciedade». Esta relação, tal como a que se estabelece entre o interesse individual e o geral, é de harmonia geral e não de conflito, no que diz respeito aos senhores da terra e aos trabalhadores. Visto que a renda da terra sobe «de cada vez que aumenta a riqueza real da sociedade», o interesse dos proprietários («a primeira daquelas três grandes ordens») «está estrita e inseparavelmente ligado ao interesse geral da sociedade». O mesmo sucede com o interesse dos assalariados, «estritamente ligado ao inte resse da sociedade, tal como o dos primeiros», visto que os salários «nunca são tão altos como quando a procura de trabalho cresce continuamente». Deste modo, o inte resse dos assalariados, assim como o dos proprietários de terras, foi identificado com o progresso da acumulação de capital. A excepção, extremamente curiosa à primeira vista, é o interesse dos «mercadores e donos de manufacturas»,
* Riqueza ãas Nações, p. 144. ** Ibid., pp. 244-7. O comentário de Cannan é que «a teoria da distribuição de Adam Smith... é inserida... como simples apên dice ou corolário da sua doutrina sobre os preços» (History o] Theories of Production and Distribution 2.“ ed. (Londres, 1903) p. 186). 74
que vivem do lucro. Acerca desta terceira ordem, observa-se que «a taxa de lucro, ao contrário da renda e dos salários, não sobe com a prosperidade nem desce com a decadência económica da sociedade. Na verdade, é naturalmente baixa em países ricos e alta em países pobres, e é sempre mais alta nos países cuja degradação económica é mais rápida. O interesse desta terceira ordem não tem, portanto, a mesma conexão com o interesse geral da sociedade que o das outras duas.» 'Note-se, todavia, que o fundamento para a condenação, ou pelo menos para a prevenção contra esta terceira classe ou ordem social, é a sua ten dência para patrocinar medidas destinadas a limitar a concorrência; já que «alargar o mercado e restringir a concorrência é sempre do interesse dos negociantes... um grupo de homens cujo interesse nunca coincide exacta mente com o do público, que geralmente convém enganar e até oprimir, e que por conseguinte, em muitas ocasiões, tem enganado e oprimido».* Mais adiante, fa lando de direitos aduaneiros protectores, o autor refere-se à «mesquinha ganância, ao espírito monopolizador dos mercadores e donos de manufacturas, que nem são nem devem ser os governantes da humanidade... o seu interesse é... directamente oposto ao da grande maioria das pessoas».** Estas palavras são severas, e têm sido muitas vezes citadas para demonstrar que Smith não pode ser acusado de fornecer «expressão teórica aos interesses essenciais da classe dedicada aos negócios»,*** ou de ser, em qualquer sentido, um porta-voz do capitalismo industrial. Na reali dade, elas são-no, em qualquer significado simples e di recto da palavra «porta-voz». O contexto histórico da Riqueza das Nações foi certamente mais complexo do
* Wealth of Nations, pp. 246-7. ** Ibid., pp. 456-7. ** * A descrição é a de Sir Erich Roll, em A History of Economic Thought, l,a ed. (Londres, 1937) p. 152; cf. Robbins, English Classical Political Economy, pp. 20-2. 75
que pode estar implícito numa frase deste tipo. Bm primeiro lugar, no tipo de juízo de valor que citamos, o autor teve sem dúvida em mente toda a rede de regulamentações restritivas incorporadas no Sistema Mer cantilista, que representava, no seu modo de ver, um interesse mercantil individual e regional e constituía um obstáculo ao processo geral de acumulação de capital e ex pansão industrial. O que não era incompatível com a defesa do sistema nascente (ou mesmo, implicitamente, da classe de capitalistas industriais que foram simultaneamente os seus pioneiros e os seus beneficiários finais) contra o inte resse sectorial dos «mercadores e donos de manufacturas», onde estes constituíssem obstáculo a um objectivo mais vasto. Em segundo lugar, convém recordar que Smith escre veu exactamente nos primórdios, senão na véspera, da Re volução Industrial, mais de quarenta anos antes de Ricardo. Escreveu num momento em que os «donos de manufactu ras» eram principalmente identificados com meio-comerciantes, meio entrepreneur, que «se serviam» do sistema de artesanato doméstico (ou quando muito, daquilo que Marx denominaria «manufactura», em oposição a «maquino-fac tura»). Por outro lado, escreveu num século em que se fa ziam alguns dos mais notáveis progressos em matéria de investimento capitalista e de novos métodos produtivos no domínio da agricultura, mais que na indústria. A sua dou trina só pode ser apropriadamente compreendida como re flexo dum período de transição, cujos problemas consistiam essencialmente em desbravar o terreno para o investimento e a expansão industrial, que ele identificava com a supres são da regulamentação impeditiva e regionalmente pro tectora no interesse da concorrência acelerada e de mer cados mais amplos. Pode notar-se, a propósito, que este modo de trata mento da distribuição, em termos do efeito do progresso sobre os rendimentos das classes, foi novo na Riqueza ãas Nações e aparentemente não teve paralelo nas lições ante riores. Pode ser (como sugeriu Cannan) que o autor tivesse sido influenciado neste aspecto pelo seu contacto com os Fisiócratas, em especial pelo Tableau Economique de Quesnay. Nas LÁçõesi encontramos apenas algumas 76
observações esparsas, como « A repartição da riqueza não está de acordo com a do trabalho... Assim, aquele que suporta o maior peso é o que tem menos vantagens.»* u i
O principal objecto da crítica de Adam Smith, como se sabe, foi a doutrina (ou «sistema de economia política») da Escola Mercantilista. O princípio fundamental dessa escola ou sistema, segundo Smith, çonsistia numa falaciosa identificação da riqueza com a moeda, e na suposição de que «acumular ouro e prata em qual quer país era a maneira mais fácil de o enriquecer». Considerou esta falsa doutrina como o maior obstáculo a uma extensão das vantagens da Liberdade Natural à esfera do comércio externo e interno, arrastando consigo todas as vantagens da concorrência e da baixa de preços e a ampliação progressiva da divisão do trabalho com o consequente aperfeiçoamento das forças produtivas. Isto excede os limites que se fixou a este estudo, na medida em que abrange a teoria do comércio externo. Mas sentimo-nos tentados a fazer aqui um comentário geral. O núcleo teórico do seu ataque à doutrina mercantilista, parece estar resumido na teoria da distribuição dos metais preciosos pelo comércio, e foi provavelmente deduzido, nos seus fundamentos, de David Hume. Já em 1752, num livro de ensaios reunidos sob o nome de Discursos Polí- ticos, este autor, ao escrever «Of the Balance of Trade», tinha incluído uma passagem notável acerca da conexão entre os fluxos de numerário para dentro e para fora dum país e a balança das suas importações e exportações. Essa passagem é a seguinte :
* Lectures by Adam Smith, ed. E. Cannan, 2." ed. (Londres, 1903) p. 163. Edwin Cannan comenta: «Ê evidente que Smith tomou dos fisiócratas a ideia da necessidade dum esquema de distribuição, e que acrescentou o seu próprio esquema... à sua prévia teoria dos preços» (Introdução do Editor, ibiã., p. XXXI). 77
«Suponhamos que quatro partes de todo o dinheiro da Inglaterra eram aniquiladas numa noite, e que, no que diz respeito a numerário, a nação era reduzida à mesma condição que nos reinados dos Henriques e Eduardos; qual seria a consequência? Não deveria o preço de todo o trabalho e bens baixar em proporção, e tudo ser vendido tão barato como era naqueles tem pos? Quem poderia então concorrer connosco em qual quer mercado estrangeiro, ou ultramarino, ou vender produtos ao preço que a nós permitiria um tal lucro? Em muito pouco tempo, portanto, isto deveria devolver-nos todo o dinheiro que perdemos, e elevar-nos ao nível de todas as nações vizinhas; onde, de pois de termos chegado, perdemos imediatamente a vantagem do baixo custo do trabalho e dos bens, e o consequente afluxo de dinheiro é detido pela nossa abundância e saciedade.» Depois de expor o caso contrário («Suponhamos tam bém, que todo o dinheiro da Inglaterra era multi plicado por quatro numa noite»), o autor conclui: «Ora, é evidente que as mesmas causas que cor rigiriam estas exorbitantes desigualdades, caso surgis sem miraculosamente, devem impedir que aconteçam normalmente, e devem manter para sempre, em todas as nações vizinhas, o total de moeda aproximadamente proporcional à arte e indústria de cada nação. Toda a água, onde quer que entre em comunicação, mantém-se sempre ao mesmo nível. Perguntem aos naturalistas a razão; eles vos dirão que, se o seu nível subisse num lugar qualquer, o aumento de gravidade consequente provocaria um desequilíbrio que a faria baixar, até o seu peso ficar contrabalançado; e que a mesma causa que corrige a desigualdade, quando esta acontece, deve evitá-la sempre.»* * Political Discourses (Edimburgo, 1752) pp. 82-4, em David Hume, Writings on Economics, ed. E. Rotwein (Londres, 1955) pp. 62-4. 78
Ê sem dúvida esta a passagem a que Adam Smith parece ter-se referido nas suas primeiras lições, quando afirmou que David Hume «demonstra de maneira muito engenhosa que o dinheiro deve manter-se sempre aproxi madamente proporcional à quantidade de bens em cada país; que sempre que o dinheiro se acumula acima da quantidade correspondente de bens em qualquer país, o preço destes sobe necessariamente; que este país tem de vender a preços mais baixos no mercado internacional, e, consequentemente, o dinheiro tem de sgir para outras nações».* A Riqueza das Nações, no capítulo dedicado ao «Prin cípio do sistema comercial ou mercantil» (Capítulo I do Livro IV ), contém o seguinte panegírico do comércio externo: «Confere um valor aos seus produtos exce dentes, trocando-os por outras coisas, que podem satisfa zer uma parte das suas necessidades, e aumentar o seu bem-estar. Graças a ele, a pequenez do mercado interno não impede que a divisão do trabalho, em qualquer ramo particular da arte ou manufactura, seja levada até à máxima perfeição. Abrindo um mercado mais amplo a qualquer parte do produto do seu trabalho que exceda o consumo interno, incita-os a aumentar os seus poderes produtivos e a ampliar o mais possível a sua produção anual, aumentando assim o rendimento real e a riqueza da sociedade. O comércio internacional presta per manentemente estes grandes e importantes serviços a todos os países em que é praticado. Daqui re sulta grande benefício para todos.» E acrescenta, ata cando o mito da exportação de excedente: «Importar o ouro e a prata que podem ser necessários em países que não têm minas, é, sem dúvida, uma parte da acção do comércio externo. No entanto, é uma parte muitíssimo insignificante dessa acção. Um país que pratique o comér cio internacional apenas nessa base, dificilmente teria ocasião de fretar um navio durante um século.»** * Lectures by Aãam Smith, ed. Cannan, p. 197. ** Wealth of Nations, p. 411. 79
Não se deve deixar de observar, contudo, que antes de chegar à Conclusão da sua crítica do Mercantilismo, o ata que se generalizou para além de considerações sobre comér cio internacional e repartição dos metais preciosos. Neste Capítulo (V III do Livro I V ), há uma afirmação muito citada e que é perfeitamente actual: «O consumo é o único fim e objectivo de toda a produção; e o interesse do produtor deve ser tido em conta apenas na medida necessária para promover o interesse do consumidor.» E acrescenta: «Pelo contrário, no sistema mercantil, o interesse do consumidor é quase sempre sacrificado ao do produtor; e parece ter em vista a produção, e não o consumo, como o fim e objecto últimos de toda a indús tria e comércio.»* Foi essencialmente esta a «mensagem» da Riqueza, das Nações ao mundo da concorrência que estava a nascer. Restam duas últimas questões, às quais pensamos dever dedicar alguma atenção, pelo menos para que o tratamento de Adam Smith não fique incompleto: a sua noção e uso da distinção entre trabalho «produtivo» e «improdutivo», e a definição, intimamente relacionada com esta distinção, de Rendimento Líquido em oposição a Rendimento Bruto. Ao ocupar-se do trabalho produtivo, Smith rejei tou inicialmente a afirmação fisiócrata de que o trabalho na indústria era estéril, ou improdutivo. Pretendia reservar a designação «improdutivo» para «servos domésticos» e servidores (quer de casas aristo cráticas quer do governo) que prestavam os seus serviços directamente ao seu senhor ou patrão. Estes serviços eram pagos a partir do «rendimento», numa transacção que devia ser classificada de «consumo» e não de «produção»: por um lado, não era seguida ou completada por qualquer venda ulterior para realizar um lucro. «O trabalho dos servos domésticos (ao contrário do que sucede com os artífices e manufactureiros) não perpetua a
* 80
IUd., p. 620.
existência do fundo que os mantém e emprega. A sua manutenção e emprego fazem-se sempre à custa dos patrões, e o trabalho que fornecem não é de natureza a retribuir essa despesa. Esse trabalho consiste em ser viços que geralmente acabam no próprio momento em que são prestados, e não se fixa ou realiza em qualquer bem vendável. Foi tendo isto em consideração que... classifiquei os artífices, os manufactureiros e os merca dores, entre os trabalhadores produtivos, e os servos do mésticos entre os estéreis ou improdutivos.»* Mas ao explicar em que consistia a diferença entre «artífices, manufactureiros e mercadores», por um lado, e «servos domésticos», por outro, Adam Smith está longe de ser claro. Introduz aqui duas definições distintas, embora em grande medida sobrepostas, que envolvem (como Marx observou) certas contradições ou, pelo menos, não comportam qualquer delimitação clara entre os produtivos e os improdutivos. Aparece primeiro a noção de trabalho produtivo como aquele que, não só substitui as despesas directas de produção, incluindo os seus próprios salários, como rende um lucro ou excedente sobre e acima destas des pesas (ou, em terminologia moderna, em excesso do valor de todos os inputs). Esta noção é essencial mente a mesma que a dos Fisiocratas; e Marx viria a chamar-lhe «a definição correcta».**
* Jbid., p. 635. Cf. a interpretação (e adesão a) de Malthus do «trabalho produtivo» de Smith como «trabalho que se realiza a si próprio na produção ou valor aumentado de... objectos materiais» (Principies of Political Economy (Londres, 1820) p. 30). ** Theories of SurplusValue, Parte I, trad. Emile Burns (Mos covo, s.d.) p. 148: «Trabalho produtivo, no seu significado para a produção capitalista, é o trabalho assalariado que, trocado pela parte variável do capital... não só reproduz esta parte de capital i(ou o valor da sua própria força de trabalho), como também produz mais-valia para o capitalista... E trabalho produtivo unicamente aquele que produz um valor superior a si próprio». Cf. também Capital, Vol. X (ed. Moore and Aveling), p. 517: 81
Em segundo lugar, aparece a noção implícita na passagem que acabámos de citar, de trabalho produtivo incorporado num «bem vendável», com um valor de troca próprio, e que geralmente apto a ser revendido: isto em oposição a «serviços que geralmente acabam no próprio momento da sua realização». As atenções concentraram-se principalmente sobre este ponto, cujo comentário e dis cussão têm vindo a desenrolar-se até aos nossos dias (incluindo a discussão sobre a função dessas categorias nos países socialistas). Este significado já desponta na primeira menção de trabalho produtivo e improdutivo, re lacionada com a Acumulação de Capital no Capítulo III do Livro II, ainda que como uma ambiguidade de inter pretação. A frase inicial deste capítulo afirma que «há uma espécie de trabalho que constitui um acréscimo ao valor da matéria sobre que se aplica; e há uma outra que não tem esse efeito. O primeiro, pelo facto de pro duzir um valor, pode ser chamado produtivo... O tra balho dum servo doméstico, pelo contrário, não realiza qualquer aumento de valor.»* Depois de afirmar que «um homem enriquece empregando uma multidão de manufactureiros, e empobrece mantendo uma multidão de servos domésticos», este parágrafo inicial do capítulo termina com novas referências ao trabalho que se fixa em «certa matéria ou bem vendável», em contraste com «serviços [que] geralmente acabam no próprio momento da sua realização, e raramente deixam algum vestígio de valor atrás de si». É razoável supor que Adam Smith não encon trou contradição entre as duas definições, porque não considerava possível existir lucro ou mais-valia a não ser quando o trabalho em questão produzisse um bem ven dável. Sem dúvida que as duas noções coincidem em grande parte. Mas, como Marx também observou,
« A produção capitalista não é apenas a produção de bens, ê essen cialmente a produção de mais-valia... Só é produtivo o trabalhador que produz mais-valia para o capitalista, e assim trabalha para a auto-expansão do capital.» * W&alth of Nations, p. 311 82
os actores, músicos, mestres de dança, cozinheiros e prostitutas podem criar um excedente ou lucro para um patrão, se forem empregados por «um empresário de teatros, concertos, bordéis, etc.»* Do mesmo modo, «um escritor é um trabalhador produtivo, não na medida em que produz ideias, mas na medida em que enriquece um editor». O fulcro da questão, diz Marx, é uma «relação social de produção», e não «a especialidade particular do trabalho» ou «o valor de uso particular em que este trabalho especial é incorporado»; precisamos de «uma definição de trabalho que provenha, não do seu conteúdo ou do seu resultado, mas da sua forma social particular.»** No que se refere à distinção feita por Adam Smith entre Rendimento Bruto e Líquido, é evidente que ele tam bém tinha em mente a noção fisiocrática de produit net como um excedente que provém da actividade económica. Mas a definição apresentada é algo diferente. Conforme o definido no Capítulo II do Livro II, o Rendimento Líquido parece ter inicialmente o significado «moderno» aceite (isto é, rendimento nacional): designadamente, o produto ou rendimento bruto («a produção total anual da terra e do trabalho» dum país) menos o capital consumido para
* Theories of SurplusValue, Parte X, pp. 160-4. O autor acrescenta: « A cozinheira do hotel produz um bem para a pessoa que, como capitalista, comprou o seu trabalho, o proprietário do hotel; o consumidor de costeletas de carneiro tem de pagar o seu trabalho, e este trabalho devolve ao proprietário do hotel (além do lucro) o fundo com o qual ele continua a pagar à cozinheira. Pelo contrário, se eu comprar o trabalho duma cozinheira, para que ela cozinhe carne, etc.; para mim... então o trabalho dela é improdutivo, apesar do facto de este trabalho se fixar a si mesmo num produto material e poder também (no seu resultado) ser um bem vendável* como sucede de facto com o proprietário do hotel» (ibid., p. 161). ** ibid., pp. 153, 154, 156. Marx escreve em O Capital: «Só é produ tivo o trabalhador que produz mais-valia para o capitalista, e assim trabalha para a auto-expansão do capital..., A produção de mais-valia tem sido sempre considerada pelos economistas políticos clássicos, como o traço distintivo do trabalhador produtivo» ( Capital, Vol. I (trad. Moore and A velin g), p. 517).
produzir esse produto, «as despesas para manter, primeiro o seu capital fixo e depois o seu capital circulante».* Não se esclarece que isto é intencionalmente diferente do excedente do genre fisiocrático; embora a interpretação de «manter o capital circulante» intacto leve depois a conside rar que «o capital circulante duma sociedade, neste aspecto, é diferente do de um indivíduo». Apesar de alguma falta de clareza em torno desta interpretação (num capítulo dedicado principalmente a um estudo da actividade bancária e do papel moeda), explica-se que a intenção é incluir no «rendimento líquido» aquilo que os habitantes dum país gastam com «a sua subsistência», assim como com «as suas conveniências e divertimentos»: o conjunto daquilo que faz parte «das suas reservas para consumo imediato», «sem prejuízo do seu capital». Um modo de levantar a questão de possíveis diferen ças de interpretação consiste em perguntar se se deve entender que manter o capital circulante intacto significa, a uma escala global (ou nacional), manter intactos apenas stocks de matéria-prima ou de bens em transformação, ou se inclui também na noção de capital circulante alguma es pécie de fundo de subsistência ou de fundo de salários na cional. Deverá um stock de bens-salário acabados, corres pondente à força de trabalho empregue durante um deter minado ciclo de produção, ser deduzido antes do cálculo do excedente, tal como os stocks de matérias-primas e pro dutos não acabados ? Em diversas passagens, Adam Smith parece negar que tenha em conta o primeiro tipo de dedução. Pode tomar-se para exemplo o caso agrícola simples, que certamente tanto Smith como os Fisiócratas tinham em mente, de um produto cereal homogéneo, que também desempenhava o papel de capital, e um ciclo de co-
* Wealth of Nations, p. 267. Convém lembrar, a propósito, que tai como a maioria dos escritores clássicos, ele admitia tacitamente a hipótese dum ciclo anual de produção (como o ciclo das colheitas) com uma única rotação de capital circulante durante o período de produção (cf. P. Saffra, Production of Commodities by Means of Commodities (Cambridge, 1960) pp. 3, 10). 84
lheita anual; e ter, em microcosmos, este tipo de exemplo simplificado: Capital constituído por 20 unidades de cereal, dividido em: í 10 de semente de cereal \ 10 salários de subsistência Produto Bruto (isto é, a colheita anual) 40 unidades. Poderia então fazer-se a pergunta: o Produto Líquido será constituído por ( a ) o lucro do agricultor depois de substituir as 20 unidades de capital necessárias para proporcionar semente e os salários de subsistência para o ano seguinte (isto é, um excedente de 20), ou por (6) o lucro do agricultor juntamente com os salários dos seus trabalhadores (isto é, 30 unida des, que é a diferençaentre a colheita bruta e ofundo de semente de cereal necessário para semear no ano seguinte) ? Segundo a primeira interpretação, a definição de Adam Smith em termos de se manter o capital circulante intacto, se entendermos que este inclui salários e semente, parece conduzir ao mesmo resultado que a noção fisiocrática. Mas este resultado poderia ser considerado aci dental.* Só a segunda interpretação permite realmente considerar o «rendimento líquido» como idêntico ao fundo de consumo potencial tanto dos capitalistas como dos assa lariados, segundo a intenção expressa de Adam Smith. Nesta medida, o «rendimento líquido» de Smith é um conceito diferente do produit net fisiocrático e da «mais-valia» marxista. Verificaremos que Ricardo considerou inequivoca mente o primeiro sentido de excedente: isto é, como Lucro (e também Renda) depois de pagar os Salários; e criticou
* Adam Smith parece reconhecer que, pelo menos quanto a salários, o capital circulante numa sociedade de troca deveria ser conservado principalmente na forma de moeda; e numa certa passagem diz: «A moeda é, portanto, a única parte do capital circulante duma sociedade, cuja conservação pode provocar uma 'diminuição do seu rendimento líquido» (Wealth of Nations, p. 269). 85
a propósito Adam Smith, porque este «exagera cons tantemente as vantagens que um país obtém principal mente a partir dum rendimento bruto elevado».*
* Works and Correspondence of Ricardo, ed. Sraffa, Vol. I, pp. 347, 348, 422. A definição foi delimitada numa nota de pé de página, na pág. 348 (e a sua intenção foi ulteriormente clari ficada), ná medida em que nos salários está contido mais «do que as despesas de produção absolutamente necessárias»: «nesse caso, uma parte do produto líquido do país é recebida pelo trabalhador». 8 6
3. DA VID RICARDO i
Na sua notável obra sobre o Philosophic Radicalism, Halévy chama a atenção para o pesar manifestado por James Mill, num artigo publicado na The Edinburgh Review de Outubro de 1808, perante «a grande dificuldade com que as salutares doutrinas da economia política são propagadas neste país»; acrescentando que entre 1776 e 1817, «não se publicou na Inglaterra um único tratado completo de economia política. Adam Smith permaneceu a única autoridade, e foi pouco escutado.»* As opiniões de Mill a respeito da propagação doutrinária podem ter sido ambiciosas, ou escritas num momento de pessimismo, mas é um facto que não existiu durante este período nada que se parecesse com um «tratado completo» sobre a matéria. (Apesar de o Manual ** de Bentham de 1793-5 ter sido publicado, e ainda que fosse mais extenso do que é na realidade, não teria preenchido essa lacuna, porque tra tou de política e não de teoria económica.) Isto não signi fica que no campo da economia política não tenha havido uma actividade e uma vivacidade consideráveis, con* Elie Halevy, The Growth of Philosophic Radicalism, trad. Mary Morris (Londres, 1928) pp. 264-5. O artigo de Mill intitulava-se «Money and Exchange». ** Cf. Jeremy Bentham’s Economic Writings, ed. W. Stark (Lon dres, 1952) Vol. I, pp. 223-73. 87
forme o demonstra a publicação de panfletos sobre pro*blemas particulares. Entre estes podemos citar Britam Independent of Commerce de William Spence, de 1808, e a réplica de James Mill, em Commerce Defended, no mesmo ano; este último é principalmente memorável pela sua defesa da «Lei de Say», proposta pela primeira vez no Traité d’Économie Politique de J. B. Say, cinco anos antes. O ano de 1798, por outro lado, tinha visto sur gir o Essay on Population de Malthus; ao passo que, na primeira década do novo século, não eram raros os artigos sobre questões de economia política na The Edin burgh Review, que vieram a tornar-se assunto de discussão entre os cognoscenti* A discussão da política monetária e da baixa de preços motivada pela guerra, na época da Con trovérsia do Ouro, forneceu ensejo para a primeira apa rição pública de Ricardo; entretanto, os debates par lamentares sobre a Lei do Trigo, de Fevereiro de 1815, iriam provocar uma verdadeira eflorescência de panfletos nesse mesmo mês, durante o qual a teoria da renda foi aperfeiçoada, e, no que diz respeito a Ricardo,, se completaram os fundamentos da sua teoria do lucro e da tendência deste para decrescer com o progresso¡ da acumulação de capital. O período de que Marx falaria como «notável pela actividade científica no domi nio da Economia Política», e urna época em que «foram. disputados magníficos torneios»,** estavam próximos. O que na realidade podemos afirmar é que até 1817, o ano dos Principios de Ricardo, não houve nada a que fosse possível chamar um sistema teórico único de economia * A partir de 1802, estes «artigos iniciais» «proporcionaram frequentemente um assunto agradável para meia hora de conversa, quando não estávamos ocupados com os negócios» na Bolsa, a Ricardo e ao seu amigo Hutches Trower (Carta de Ricardo a Trower de 26 de Janeiro de 1818, em Works anã Corresponãence of David Rioardo, ed. P. Sraffa Vol. VII, p. 246, e cf. Vol. VI, p. XXIII). ** No Prefácio do Au tor à Segunda Edição (24 de Janeiro de 1872),, Capital, Vol. I (trad. Moore and Av elin g), p. X X I L
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política, mesmo como esboço preliminar. Uma caracterís tica da Riqueza das Nações era o seu carácter não sistemá tico quanto a teoria. Houve até quem considerasse esse facto como uma das suas maiores virtudes: tinha capaci dade para ser muito esclarecedor, porque se ocupava am plamente com a história e com situações particulares, e não fazia um esforço excessivo para atingir uma unidade con ceptual. Não há dúvida de que continha aperçus brilhantes, peças de teoria elegantemente apresentadas, comentários muitíssimo convincentes e juízos sobre políticas e sistemas particulares de pensamento, como o «mercantil» e o «agrí cola». Mas faltou-lhe uma teoria da distribuição, no verdadeiro sentido do termo, e aquilo que apresentou como teoria dos preços ou do valor (na forma da adição das três componentes) era logicamente incompleto — mantendo-se isolada a distinção entre preço de mercado e preço natural e o seu princípio de vantagens líquidas iguais e as suas sólidas contribuições nesta matéria. Com Ricardo, no entanto, surge algo de bas tante diferente: uma teoria integrada do valor, do lucro e da renda; com aspectos ou elementos que têm algo da limpidez e precisão duma demonstração matemática, à qual se juntou de forma convincente um corolário de política. Sabe-se que entre 1809 e 1811, o interesse de Ricardo por problemas económicos se centrou especialmente em questões de moeda e preços e na sua conexão com as varia ções da taxa de câmbio. A sua visão destas questões formou-se durante o processo de crítica à política do Banco de Inglaterra durante a guerra: o Banco foi acusado de res ponsabilidade na emissão excessiva de notas, à qual se atribuiu o prémio corrente do ouro (em termos de notas) e a queda do valor cambial da libra em Hamburgo, Amesterdão e outros centros financeiros europeus. Esta crítica surgiu pela primeira vez num artigo anónimo publicado no Morning Chronicle em Agosto de 1809 (se guido por duas cartas, em Setembro e Novembro) e foi posteriormente desenvolvida num panfleto intitulado «O Preço Alto do Ouro, uma Prova da Desvalorização das No tas de Banco», em 1810. Depois da publicação do Relatório> 89
da Comissão do Ouro, escreveu mais três cartas ao Morning Chronicle (em Setembro de 1810), apoiando as suas conclusões (que «não podem deixar de convencer quem não se encontre demasiado deformado por precon ceitos»).* No decurso desta discussão sobre o preço em esterlino da barra de ouro, foram enunciados os elementos essenciais da Teoria Quantitativa da Moeda e daquilo que viria a chamar-se a Teoria da Paridade do Poder de Com pra das trocas internacionais. Ê da publicação do panfleto muitíssimo pertinente, de Fevereiro de 1815, Um Ensaio sobre a Influência de um Preço Baixo do Trigo nos Lucros de Capital, mostrando a inconveniência das restrições à importação, que datam realmente os elementos essenciais da sua teoria do valor e distribuição. Este panfleto, conforme vimos, foi publi cado no mesmo mês que outros sobre a mesma questão, escritos por Malthus, West (a autoria indicada na página de título era apenas «Um Membro do Colégio Universitário, Oxford») e pelo Coronel Robert Torrens. Os Princípios de Economia Política e Tributação, publi cados dois anos mais tarde, constituíram um desenvolvi mento e elaboração pormenorizada das ideias elementares apresentadas no Ensaio, quando da discussão dum ponto concreto e de grande valor prático. O Ensaio de 1815 principia apresentando um enun ciado da famosa teoria da renda diferencial, que se tornou conhecida como «Teoria da Renda de Ricardo». Na reali dade, Ricardo reconhece a influência do panfleto de Mal thus aparecido três semanas antes, An Inquiry into Rent, sobre essa teoria, e, conforme Sraffa salien tou,** o que parece ter acontecido é que Ricardo com preendeu que a teoria exposta por Malthus completava a sua própria teoria sobre os lucros. Anteriormente, tinha estudado a noção da diminuição da retribui ção no sentido de uma decrescente produtividade * Works and Correspondence, ed. Sraffa, Vol. Ill, pp. 15-153. ** Na sua nota sobre «Essay on Profits», em Worus and Cor- respondence of Ricardo, Vol. XV, pp. 6-8. 90
marginal do trabalho, à medida que a produção agrícola se amplifica (ou intensifica). De facto, disto dependia não só o preço dos cereais em relação aos bens manu facturados, mas ainda o lucro (do agricultor e também do fabricante e do comerciante). Por conseguinte, pode dizer-se que Ricardo tinha no espírito o esquema funda mental duma teoria da renda, mas não lhe introduzira realmente a noção de renda como excedente, juntamente com o seu modo de determinação, até ter lido o panfleto de Malthus. O panfleto que West publicara onze dias antes e que enunciava fundamentalmente a mesma teoria da renda baseada na produtividade marginal decrescente na agricultura, não tinha sido lido por Ricardo quando escreveu o Ensaio* Notemos que ao expor a sua concepção da renda como o produto excedente da terra infra-marginal (ou al ternativamente, de aplicações infra-marginais do trabalho) onde a produtividade era maior na margem, Ricardo teve perfeitamente consciência da existência de uma margem intensiva e de uma margem extensiva. De qualquer modo, isto era completamente evidente na altura em que escreveu os Princípios, onde se refere em termos gerais à renda como «sendo sempre a diferença entre a produção obtida pelo emprego de duas quantidades iguais de capital e tra balho** e dependente da «desigualdade da produção obtida a partir de quantidades sucessivas de capital aplicadas à mesma terra ou a uma nova terra».*** Independente * Ibid., Vol. I, p. 71 passim. Cf. M. Blaug, Ricarãian Economics (N ew Haven, 1958) pp. 12-13. ** Ibid. Vol. I, p. 71 passim Cf. Blaug, Ricarãian Economics, pp. 12-13. *** Ibid, p. 83. Diz também (p. 80) que «nao é necessário que a terra deixe de ser cultivada para reduzir a renda: para conseguir esse efeito, basta empregar quantidades sucessivas de ca pital na mesma terra com diferentes resultados até poder excluir a que der menor resultado». Sobre a opinião de Torrens de que a renda nem sequer precisa de rendimentos decrescentes para existir (o que de facto se chamaria escassez), cf. Lionel Robbins, Robert Torrens and the Evolution of Classical Economics (Londres, 1958), pp. 42-3. 9 1
I
mente do modo como fosse explicada — quer o seu au mento fosse atribuído à aplicação de maior quantidade de trabalho e capital a uma superfície de terra dada e existente, ou a uma extensão do cultivo a uma terra nova de qualidade inferior — mantinha-se sem alteração a ideia de que era «uma criação de valor, no sentido em que eu entendo esta palavra, mas não uma criação de riqueza», e de que este aumento era «sempre o efeito da crescente riqueza do país, e da dificuldade em alimen tar a sua população, cada vez maior»;* e quando J.-B. Say objectou que «terra sem renda» era algo que não existia, Ricardo pôde replicar que esse facto não era relevante, visto que sempre houve unidades de capital e trabalho que não produziam renda na margem intensiva de todas as terras.** A sua teoria dos lucros foi em muitos aspectos mais importante para a estrutura essencial da sua dou trina. Esta, tem interesse observá-lo, formou-se antes mesmo do Ensaio e foi enunciada, antes da sua teoria do valor, inteiramente em termos de produto. Segundo Sraffa, também podia ter sido enunciada num esboço pre parado um ano antes, que não sobreviveu mas foi descrito numa carta como «escritos sobre os lucros de Capital», que parece ter mostrado a Malthus e a Hutches Trower.*** Era essencialmente uma teoria do excedente, mais clara e explicitamente que a teoria da «dedução» de Adam Smith. Segundo ela, os Lucros dependiam da diferença entre o produto do trabalho na margem do cultivo e o custo desse trabalho; ambos eram expressos em Cereal. Por conseguinte, o Lucro era expresso como simples pro porção produto/salários: uma proporção que diminuía à medida que a margem se ampliava e o produto de um * Works and Correspondence of Ricardo, Vol. X, pp. 399, 77. ** Ibid., pp. 412-13n. Schumpeter fala de «leitores superficiais» que pensam que a teoria exige a existência de «terra sem renda» (History of Economic Analysis, p. 675n). ** * Introdução ao Vol. I 'de Works and Correspondence of Ricardo^ P. XXI. 92
dia de trabalho diminuía. Como podemos ver numa carta de Junho de 1814, a sua teoria estava resumida na afir mação de que «a taxa de lucros e juro deve depender da proporção de produção destinada ao consumo necessário para essa produção».* No Essay on Profits de 1815, afirma que «os lucros gerais do capital dependem inteira mente dos lucros da última fracção de capital aplicada na terra». De Quincey diria mais tarde que «ele (Ricardo) foi o primeiro que possibilitou a dedução dos salários a partir da renda — e portanto a dedução dos lucros a partir dos salários... numa fórmula concisa, pode dizer-se dos lucros — que são as sobras dos salários.»** A esta Teoria Cerealífera do Lucro (poderemos chamar-lhe assim) estava inicialmente ligada a noção de que os lucros da agricultura determinavam os lucros gerais. Não podia haver duas taxas de lucro diferentes na indústria e na agricultura, coerentemente com a «lei» de (ou tendência para) uma taxa de lucro uniforme. Visto que a razão entre o lucro e os salários na agricultura era determinada pelas condições de produção desta (e por ser uma proporção de produto era invariante em relação a qual quer alteração do preço do cereal), o impacto da adaptação tinha de recair sobre os preços dos produtos fabricados, até que, em consequência destas alterações de preços, a mesma taxa de lucro fosse obtida nos produtos fabricados e na agricultura. A única possibilidade de alterar a taxa de lucro na agricultura (que representa a relação entre out put de cereal e input de cereal em semente e salários), era modificar a margem de cultivo. Assim, quando
* Ibid., p. XXXII; Vol. VI, p. 108. Cf. também a referência ulterior nos Princípios, citada na página 98. ** T. de Quincey, The Logic of Political Economy (Edimburgo ■e Londres, 1844) pp. 203, 204. Isto é severamente posto em contraste com a «velha e antiquada doutrina» (isto é, de Smith). (O contexto mostra claramente que, quando se referia à dedução de salários a partir da renda, tinha em mente a alteração de salários monetários (ou o «valor dos salários») resultante de alterações na margem € no valor do cereal, e que ao referir-se a renda queria dizer, neste ponto, a teoria da renda no seu conjunto.) 93
um crítico sustentava (como fez Malthus na sua corres pondência com Ricardo em 1814-15), que uma expansão do comércio, especialmente do comércio externo, podia aumentar a taxa geral de lucro, tinha necessariamente de demonstrar como poderia tal expansão modificar os lucros da agricultura modificando a margem. Na concepção de Ricardo estava implícita, eviden temente, a hipótese de que os salários eram pagos em termos de cereal — uma teoria de subsistência, ou pelo menos (em terminologia marshalliana) de preço de oferta, de salários-cereal pagos independentemente.* Ricardo con siderou obviamente a procura de cereal em qualquer mo mento, e portanto a posição da margem agrícola, enquanto determinada pela dimensão da população trabalhadora (presumivelmente com uma procura de bens essenciais muito pouco elástica).** Por deferência para com os argumentos de Malthus, Ricardo modificou mais tarde a sua opinião anterior de que os lucros agrícolas determinam de maneira absoluta os lucros gerais: pelo menos até ao ponto de admitir que os traba lhadores não consumiam apenas cereal, mas também alguns bens manufacturados. Apesar disso, no entanto, manteve o ponto fundamental da sua posição principal, de que os lucros gerais não podiam divergir da proporção de cereal produzida para os salários-cereal consu midos durante a sua produção na margem agrícola, ainda que em certas circunstâncias, no processo de ajustamento, a posição desta margem pudesse sofrer certa modificação. Consequentemente, com esta restrição, continuou a sustentar que os lucros eram determinados * No seu Capítulo «Sobre os Salários» encontra-se a famosa, refe rência ao facto de «o preço natural do trabalho, mesmo calculado em alimento e bens essenciais... variar em momentos diferentes no mesmo país, e diferir muito concretamente em diferentes países», segundo «os hábitos e costumes do povo» (ao que acrescentou, na 2." Edição, uma referência a uma passagem com o mesmo sentido do Essay on the Externai Com Trade, de To rrens ):. Works anã Correspondence of Ricardo, ed. Sraffa, Vol. I, pp. 96-7. ** Cf. Blaug, JRicardian Economics, pp. 22-3. 94
pela relação entre produto e salarios, na margem da agricultura. Quando adaptou esta teoria do lucro à teoria da renda enquanto regulada por diferenças na produtividade do trabalho sucessivamente aplicado à terra, ou a terras de qualidade diferente, aproximou-se muito de concluir (embora isso não tenha sido afirmado explicitamente) que o lucro e a renda eram duas espécies do produit net fisiocrático. De qualquer maneira, eram conside rados antagónicos no sentido de que qualquer aumento da renda se fazia à custa do lucro e representava mera mente uma transferência de rendimento líquido. Conforme se pode ler no Ensaio: «Desse modo, a renda é em todos os casos uma parte dos lucros anteriormente obtidos na terra. Nunca é uma nova criação de rendimento, mas sempre uma parte de um rendimento já criado.» E prosseguia, expondo a essência da sua teoria nestas duas frases fundamentais: «Os lucros do capital só diminuem porque nem sempre se pode encontrar terras igualmente bem adaptadas para produzir alimentos; e o grau de baixa dos lucros, e o aumento das rendas, dependem inteiramente da maior despesa feita com a produção. Se, portanto, para lelamente ao aumento em riqueza e população dos países, se pudesse acrescentar-lhes novas parcelas de terra fértil, os lucros nunca diminuiriam, nem as rendas subiriam com cada aumento de capital.»* O quadro no seu conjunto era este: em virtude da crescente produtividade do trabalho na margem, à medida que o cultivo se ampliava, os lucros tendiam a diminuir, enquanto o capital se acumu lava e a população aumentava com esta acumulação. Desta forma se dava a explicação que faltava na teoria de Adam Smith da tendência para um lucro decrescente (que ele atribuíra, em termos de oferta e procura, a uma maior concorrência). Simultaneamente, as ren das subiam, transferindo assim o que anteriormente *
Works and Gorrespondence of Ricardo, ed. Sraffa, Vol. IV, p. 18. 95
tinham sido os lucros do agricultor (ou fabricante) para as algibeiras do proprietário da terra.* Tendo estabelecido deste modo, em termos genéricos, o antagonismo de interesses entre propriedade fundiária e capital industrial («o interesse do proprietário rural é sempre oposto ao interesse de qualquer outra classe da comunidade»),** prosseguiu tomando para exemplo os direitos de importação de cereais então em vigor, que criticou de maneira especial. Estes direitos provocavam inevitavelmente o aumento das rendas, porque aumenta vam a procura, o custo e o preço do cereal produzido no país; ao mesmo tempo, tinham como inevitável consequên cia adicional a baixa do lucro (perante um determinado nível de salários-cereal). Inversamente, a abolição destes direitos, a fim de permitir a entrada de cereal estrangeiro mais barato, aumentaria o lucro, e, deste modo, promoveria a acumulação de capital. O obs táculo a esta medida tão vantajosa era o interesse dos * Ricardo teve o cuidado de moderar essas afirm ações acres centando «no caso de não haver melhoramentos». Houve quem afir masse que o efeito dos melhoramentos, visto de uma forma dinâmica, mais do que compensaria qualquer tendência desse tipo. Mas Edwin Cannan teve provavelmente razão ao manter que «sem dúvida nenhuma Ricardo, como West e Malthus, acre ditava que os rendimentos da actividade agrícola diminuíam realmente no curso da história, apesar de todos os aperfeiçoa mentos» (History of the Theories of Proãuction and Distribution, 2.a ed. (Londres, 1903) p. 166). ** Works and Oorrespondence of Ricardo, ed Sraffa, Vol. IV, p. 21. Mais tarde, na primeira edição dos seus Princípios (Londres, 1817), p. 66n, apresentou a sua tese contra a posição de Adam Smith como segue: «Ao tratar da reprodução da renda como uma impor tante vantagem para a sociedade, o Dr. Smith não tem consciência de que ia renda é o efeito de um preço elevado, e que aquilo que o senhor da terra ganha desta maneira, ganha-o à custa da comunidade em geral. Não há para a sociedade nenhum ganho com a reprodução da renda; há apenas uma classe que ganha à custa doutra classe» ( Works and Correspondence, Vol. I, p. 77n). Schumpeter pôs de parte a teoria da renda de Ricardo, por «não ser necessária nem suficiente para um ataque contra o interesse rural» ( History of Economic Analysis, p. 675n). Facto curioso: referir-se-á ele a sua estrutura formal ou ao seu conteúdo substancial? 96
proprietários de terras em manter as rendas. O panfleto termina com um ponto de discussão fundamental. Os me lhoramentos na agricultura e as importações de cereal diminuem o custo da cultura do cereal e tendem, portanto, a fazer baixar os preços do cereal e as rendas. A oposição a estas descidas do preço e da renda deveriam, logicamente, implicar uma oposição àqueles melhoramen tos. «Se os interesses do proprietário de terras fossem suficientemente importantes para nos induzir a não apro veitarmos todos os benefícios que adviriam da importa ção de cereal a baixo preço, deveriam também influenciar-nos no sentido de rejeitar todos os melhoramentos na agricultura e nas alfaias agrícolas; porque é inevi tável que o cereal se torna mais barato, as rendas diminuem, e a possibilidade do proprietário de terras pagar impostos será durante algum tempo, pelo me nos, tão dificultada por esses melhoramentos como pela importação de cereal. Para sermos coerentes, deve ríamos, através duma só lei, impedir os melhoramentos e proibir a importação.»* II
Possivelmente, foi ao generalizar a sua primitiva teoria «agrícola» do lucro que Ricardo verificou a necessidade de fundamentar a sua teoria numa teoria do valor desenvol vida. Enquanto tudo pudesse ser expresso em termos de ce real, tanto o produto como o capital, e portanto o exce dente, poderiam ser traduzidos na mesma unidade física. Mas assim que foi obrigado a defender (contra Malthus, por exemplo) a ideia de que os lucros noutros domínios eram regulados pela taxa de produto excedente na agricul* Works and Correspondence, Vol. IV, p. 41. Malthus viria mais tarde a opor-se a esta afirmação de que os melhoramentos faziam baixar a renda. Mas Ricardo manteve essencialmente o seu ponto de vista, embora admitindo que a longo prazo os proprietários de terras poderiam beneficiar, na medida em que os melhoramentos permitissem um aumento de população e este aumento de popula ção provocasse um aumento da procura de cereal e fizesse subir as rendas. 7
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tura, teve de introduzir uma teoria do valor para demonstrar como os preços daqueles outros bens se alteravam quando o custo do cereal em trabalho aumen tava. Malthus replicara a Ricardo que os lucros gerais podiam igualmente sofrer a influência dos preços eleva dos dos produtos manufacturados, devidos a uma forte procura dos mesmos, por exemplo, uma intensa procura de exportações, na mesma medida em que seriam influen ciados «pelas forças naturais da última terra utilizada para cultivo». Nos seus próprios Princípios (Capítulo V, Secção IV ) escreveu que «os lucros dependem dos preços dos bens, e da causa que os determina, designadamente a relação oferta-procura»; ao passo que «a teoria de Ricardo sobre os lucros se baseia inteiramente na cir cunstância de a massa dos bens se manter ao mesmo preço, enquanto a moeda continua a ter o mesmo valor, seja qual for a variação de preço do trabalho... Nada podemos deduzir [conclui o autor] sobre a taxa de lucros a partir de um aumento dos salários monetários, se os bens, em vez de se manterem ao mesmo preço, forem diversamente afectados.»* Ao utilizar a Teoria do Valor Trabalho com esta finalidade, Ricardo estava de facto a substituir Cereal por Trabalho, em cujos termos passou igualmente a exprimir o produto, os salários e o excedente. O lucro era agora concebido como o excedente, ou diferença residual, entre a quantidade de trabalho necessária para manter a força de trabalho e o total da força de trabalho: na termino logia dos Princípios, dependia da «proporção do trabalho anual do país... destinada ao sustento dos trabalhadores».** Esta era uma forma mais geral (porque assente em menos hipóteses restritivas) para a afirmação já citada de que * T. R. Malthus, Principles of Political Economy considered with a view to their practical application (Londres, 1820) pp. 326-7, 334. Cf. também a carta de Malthus a Ricardo) de 23 de Novembro de 1814: «a questão está em saber se a agricultura tem sempre o papel determinante, e eu certamente diria que não tem» (Worfcs anã Correspondence of Ricardo, ed. Sraffa, Vol. VI, p. 153). ** Worles anã Corresponãence of Ricarão, ed. Sraffa, Vol. I, p. 49. 98
o lucro dependia da «proporção entre a produção e o consumo necessário para essa produção», sendo tanto a produção total como o consumo necessário medidos em termos do trabalho necessário para os produzir. Posta assim em termos de valor, a proposição de que os lucros descem por causa duma decrescente produti vidade de trabalho expressa em cereal, passa a traduzir-se desta maneira: os lucros descem por causa do valor crescente do cereal, e portanto dos salários, relativamente a outros produtos. Na verdade, na exposição do Ensaio encontramos já esta teoria do valor em embrião, embora os fundamen tos da teoria do lucro, tal como da renda, fossem ainda enunciados na forma «agrícola» mais primitiva. Assim, no ponto em que afirma que se produz necessariamente uma simultânea queda dos lucros e subida das rendas, devido ao decréscimo dos rendimentos da terra à medida que se alarga a produção de cereal, acrescenta: O valor de troca de todos os bens sobe à medida que aumenta a dificuldade da sua produção. Logica mente, se surgirem novas dificuldades na produção de cereal, devido ao facto de se tornar necessária maior quantidade de trabalho, enquanto o mesmo não sucede para produzir ouro, prata, tecidos, etc., o valor de troca do cereal aumentará forçosamente, em relação àqueles bens... Nesse caso, o único efeito sobre os pre ços do aumento da riqueza, independentemente de todos os melhoramentos, na agricultura ou nas manufacturas, é provocar a subida dos preços das matérias-primas e do trabalho, deixando todos os outros bens aos seus preços correntes, e a descida dos lucros gerais em consequência do aumento geral de salários.* Frequentemente, a intenção duma doutrina torna mais evidente quando comparada com aquilo a que pretende opor-se. Neste aspecto, uma nota de pé de *
I b i d . , Vol. rv, pp. 19-20.
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página que se encontra pouco depois da passagem acima citada, é esclarecedora: pode mesmo afirmar-se que é fundamental para compreender o significado que Ricardo atribuía à sua própria teoria do valor. Nessa nota de pé de página, escreve: «Admitiu-se que o preço do ce real regulava o preço de todas as outras coisas. Isto afigura-se-me um erro. Se o preço do cereal sofrer a influên cia da subida ou descida dos próprios metais preciosos, então os preços dos bens também serão afectados, mas isto sucede porque o valor do dinheiro varia, e não porque se altera o preço do cereal. Penso que o preço dos bens não pode materialmente subir ou descer, enquanto o dinheiro e os bens se mantiverem nas mesmas propor ções, ou melhor, enquanto o custo de produção de ambos, determinado em cereal, se mantiver o mesmo.»* A teoria a que Ricardo se refere, segundo a qual os preços do cereal determinam os outros preços (porque quando o cereal sobe, os salários monetários têm de subir paralelamente, para manter o salário-cereal constante, o que por sua vez faz subir outros preços), era a de Adam Smith. Aquilo a que Ricardo opunha a sua Teoria do Valor do Trabalho, era manifestamente a Teoria do Valor do Salário de Adam Smith (ou aquilo que atrás referimos como a Teoria da Adição);** a qual conside rava o valor dos bens regulado inter alia pela quantidade de salário que a sua produção custa (juntamente com as respectivas quantidades das outras duas «partes componen tes do preço»). Segundo as palavras da secção inicial do Capítulo Sobre o Valor, das segunda e terceira edições dos Princípios de Ricardo: «O valor de um bem, ou a quantidade de qualquer outro bem pelo qual seja tro cado, depende da quantidade relativa de trabalho neces sária para a sua produção, e não da importância paga por esse trabalho.»
Ibiã., p. 2 1 . ** Ver Capítulo 2.
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Reflectindo um pouco, torna-se evidente que a teoria demasiado imprecisa de Adam Smith conduz a uma conclu são absurda: que os valores de todas as coisas podem subir simultaneamente, sempre que uma das «componentes» sobe por qualquer razão, quer isto seja devido a uma subida do custo de subsistência, como no caso presente, quer, mais geralmente, devido ao jogo da oferta e da procura. O que sugere a pergunta: em que termos sobem todos os valo res? Se monetariamente, então isto equivaleria à depre ciação da moeda («dizer que o preço dos bens sobe sig nifica que a moeda baixou em valor relativo; porque é em relação aos bens que o valor relativo do ouro é ava liado»). Mas tomando para padrão o bem-moeda, essa depreciação só pode ter lugar se o próprio custo de produção do bem-moeda descer, ou se subir o custo da generalidade de bens que não o bem-moeda. Quanto ao possível efeito sobre este último de uma subida de salá rios, segundo Ricardo, se o ouro fosse extraído no interior do país em questão, esse efeito sobre o ouro não seria diferente do efeito sobre outros bens, e os seus valores relativos manter-se-iam sem alteração. No caso de o ouro ser extraído no estrangeiro e importado: «Nesse caso, se o preço de todos os bens subisse, o ouro não poderia vir do estrangeiro para os comprar, mas sairia do país para ser utilizado com vantagem na compra dos bens estrangeiros relativamente mais baratos. Torna-se claro que a subida dos salários não fará aumentar o preço dos bens, quer o metal de que é feita a moeda seja produzido no país ou no estrangeiro.»* Podemos portanto considerar a sua refutação da teoria de Smith como tendente a incluir a própria moeda no conjunto dos bens em geral, e, em consequência, pos tulando que o preço de qualquer bem ou grupo de bens só pode subir se se tornar necessária maior quantidade
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Works and Correspondence of Ricardo, ed. Sraffa, Vol. X, p. 105. 101
de trabalho para o produzir, relativamente à que é neces sária para produzir uma onça de ouro. Esta proposição (acerca da «invariabilidade do valor dos metais pre ciosos»), segundo as palavras de Ricardo numa carta a James Mill, «é a âncora-mestra sobre a qual todas as minhas proposições são elaboradas».* Quando escreveu o Capítulo sobre o Valor, nos Princípios, Ricardo começou coerentemente por desenvol ver a sua própria argumentação teórica refutando a teoria de Smith. Começou por criticá-lo pela sua con fusão entre quantidade de trabalho e trabalho disponível como medida de valor. Em seguida, desenvolveu a ideia de que o valor dum bem depende «da quantidade rela tiva de trabalho necessária para a sua produção», «e não da maior ou menor importância paga por esse trabalho».** Toma depois o conhecido exemplo de Smith do castor e do veado («se matar um castor custa em geral duas vezes aquilo que custa matar um veado, um castor devia naturalmente ser trocado por dois veados, ou valer dois veados») e afirma que o princípio que se pretende explicar através deste exemplo, de que o trabalho «é realmente a base do valor de troca de todas as coisas, excepto daquelas que não podem ser transformadas pela acção humana, é uma doutrina da mais alta importância em economia política». Critica-o ainda por continuar a referir-se ao maior ou menor valor de um bem, consoante, «não a quantidade de trabalho aplicada na produção de qualquer objecto, mas sim a quantidade que ela pode obter no mercado». Alargando o exemplo do castor-veado, de modo a abranger o caso em que «fosse necessário [ao caçador]
* Citado na Introdução de Sraffa ao Vol. I de Works and Cor- respondence, p. XXXIV; cf. Vol. VI, p. 348 (Carta de 30 *de Dezembro de 1815). ** Era este o texto do título da 'Secção I deste Capítulo na 2.aEdição (na primeira edição, o Capítulo não está dividido em secções).
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para matar a caça» capital na forma de alguma arma, mostrou que o seu uso não impugnava necessariamente esse princípio (como Adam Smith dera a entender): os preços comparados do castor e do veado «estariam em proporção com o trabalho real aplicado, tanto na formação do capital como na destruição dos animais»; isto não é afectado pelo facto de «os instrumentos necessários para matar o castor e o veado poderem pertencer a uma classe de homens, e o trabalho empregue na sua des truição poder ser fornecido por outra classe», ou pelo facto de aqueles que proporcionam o capital «se apoderarem de metade, um quarto ou um oitavo do produto obtido», visto que «quer os lucros do capitalista fossem maiores ou menores... quer os salários de trabalho fossem altos ou baixos, teriam idêntica função em ambas as uti lizações».* Deve notar-se que o autor estava aqui a admitir implicitamente que as proporções em que o capital era utilizado (ou aquilo a que Marx chamaria a «composição orgânica do capital») eram iguais nas diversas linhas de produção consideradas, quer na caça do castor e do veado, quer na pesca de peixe, quer na caça doutras espécies, quer na fabricação de meias. O que ele pretendia mostrar era que «a acumulação de capital... nas mãos de pessoas particulares» e «a apropriação da terra» não invalidavam per se (como Smith afirmara)** o princípio da troca proporcional ao trabalho aplicado na produção. Deve notar-se também que a importância atribuída àquilo que já vimos o autor designar como «a âncora-mestra» da sua posição explica a sua preocupação, exposta numa secção adicional da sua terceira edição,*** por uma «me dida invariável» de valor e pelas condições necessárias para garantir a invariabilidade desse padrão: questão à * Ibid,., Vol. I, pp. 23-4; e cf. a sua própria explicação categórica deste ponto^ numa carta a Mill( cit. ibid., pp. XXXVI-XXXVII. ** Ver Capítulo 2, p. 45. * * * Acrescentado na 3.“ edição, onde deu origem à Secção V I deste capítulo. 103
qual voltaremos. Ao concluir a sua exposição sobre o valor, que acabamos de resumir, escreve: «Se tivéssemos um padrão invariável, pelo qual pudéssemos medir as varia ções de outros bens, verificaríamos que o extremo limite até ao qual poderiam subir de modo permanente, seria proporcional à quantidade de trabalho adicional neces sária para a sua produção, e que só poderiam subir se aquela quantidade aumentasse.»* Contrariamente à afirmação de Adam Smith, uma subida de salários não daria origem a uma subida geral dos preços: em vez disso, provocaria uma redução dos lu cros, e isto na medida necessária para restabelecer o equi líbrio. De Quincey viria a resumir como se segue o ponto de vista de Ricardo sobre a relação entre salários e lucro. «Pode dizer-se dos lucros — que são as sobras dos salários: qualquer acto de produção proporcionará tanto lucro... quanto os salários aplicados nesse acto permitirem que so beje... Mas não será o preço, pelo contrário, predetermina do pelos salários e lucros, conjuntamente ? Não, essa é a ve lha doutrina fora de moda. Mas a nova economia mostrou que todo o preço é determinado pela quantidade propor cional de trabalho produtivo, e apenas por ela... Qualquer alteração que modifique as relações existentes entre salá rios e lucros terá necessariamente origem nos salários: qualquer modificação que insensivelmente afecte os lucros, deverá ser sempre considerada como registo e medida de uma anterior alteração de salários.»** Muitos leitores deste Capítulo Sobre o Valor, senão a grande maioria, ficam surpreendidos quando logo em seguida surge o que se lhes afigura uma afir mação em contrário, assim resumida no título da Secção IV da terceira edição: «O princípio de que a quantidade de trabalho aplicada na produção dos bens
* Ibid., p. 29. ** Thomas de Quincey, The Lo gic of Politioal Economy (Edimburgo e Londres, 1844) pp. 204-5. No seu Prefácio* tinha falado na «revolução realizada nessa ciência por Ricardo».
determina os seus valores relativos, consideravelmente mo dificados pela utilização de máquinas e outro capital fixo e durável.»* E prossegue dizendo que «as ferramentas, utensílios, edifícios e máquinas utilizados nos diferentes ramos de actividade podem ter graus de durabilidade diversos, e a sua produção pode requerer diferentes quan tidades de trabalho... e as proporções, em que o capital é investido em ferramentas, máquinas e edifícios, pode igualmente ser combinada de modos diversos». Apresentou assim «outra causa, além da maior ou menor quantidade de trabalho necessária para produzir bens, das variações dos seus valores relativos» — acrescentando (surpreenden temente, à primeira vista): «esta causa é a subida ou descida do valor do trabalho».** Para muitos, esta refe rência a uma segunda «causa» do valor, sobretudo pelo relevo que lhe é conferido na terceira edição, surge como uma contradição e prova dum afastamento duma teoria «primitiva» cuja elaboração iniciara ao tempo do Ensaio, em direcção a algo como uma Teoria do Custo de Produ ção, em que viria a transformar-se mais tarde nesse sé culo,*** e que não diferia essencialmente da teoria das «partes componentes do preço, de Adam Smith. * Worits anã Corresponãence of Bicarão, ed. Sraffa, Vol. I, p. 30. ** Ê este o texto do parágrafo em questão, na terceira edição (ibiã., p. 30). Nas edições anteriores o texto era diferente: «Além da alteração do valor relativo dos bens* ocasionados pelas variações da quantidade de trabalho necessário para os produzir, estão também sujeitos a flutuações provocadas por uma subida de salários, e a consequente queda dos lucros, se os capitais fixos utilizados forem de valor 'desigual, ou de desigual dura ção» (ibiã., p. 53). ***Como exemplo desta interpretação, cf. Erich Roll, A History of Economic Thought, l . a ed. (Londres, 1938) p. 185: «Vemos mais uma vez, que a diferença entre preço e valor devida à exis tência de diferentes estruturas de capital estava a orientar Ricardo, não para a distinção entre valor e preços de produção que Marx eliaborou( mas sim para uma teoria do valor do custo de produção»; e a referência na p. 181 a «alterações na lei do valor, que parece ter considerado com crescente preocupação, e à qual concedeu cada vez mais espaço em edições sucessivas». Interpretação análoga foi apresentada por Cannan e Hollander, e insinuada por Marshall. 105
Após a publicação da famosa Introdução de Sraffa, sabemos agora que há pouco ou nenhum fundamento para esta interpretação, e que a situação é realmente diferente. Foi depois da publicação do Ensaio sobre o Lucro e enquanto escrevia os Princípios} que Ricardo fez a «descoberta» do «curioso efeito», como ele escreveu, duma subida de salários sobre os produtos industriais em que era utilizada uma parte relativamente importante de capital fixo: designadamente, que essa subida de salá rios fazia realmente descer os preços desses produtos (em virtude da consequente queda dos lucros). Foi isto que constituiu a base da referência por nós citada a uma «segunda causa» (aquilo que na primeira edição surge como referência ao facto de o valor relativo dos bens estar «igualmente sujeito a flutuações provocadas por uma subi da de salários, e a consequente queda dos lucros, se os capi tais fixos utilizados forem de valor desigual, ou de desigual duração»).* Mas, em vez de considerar isto como uma con cessão, entendeu tratar-se duma descoberta sua que vinha reforçar a sua argumentação contra Adam Smith; e assim a declarou triunfalmente nos seus Princípios de 1817. Uma subida de salários, além de não provocar a subida dos preços dos bens, fazia realmente baixar os preços de alguns deles.** Deste modo, o efeito secundário de
* Cf. Works anã Correspondence of Ricardo, ed. Sraffa, Vol. I, p. 53. ** «Verificamos então que proporcionalmente à quantidade e dura bilidade do capital fixo utilizado em qualquer tipo de produção, os preços relativos dos bens em que esse capital é utilizadoi variarão em sentido inverso ao dos salários; descerão quando os salários subirem. Verificamos ainda que nenhum bem sobe em preço abso luto, apenas porque os salários sobem; que os bens nunca sobem, a não ser que se lhes aplique trabalho adicional; mas que todos aqueles em cuja produção entra capital fixo, não só não sobem com uma subida de salários, mas também descem de modo abso luto» (Principies of Political Economy anã Taxation (Londres, 1817) pp. 41-2; Works anã Correspondence, ed. Sraffa, Vol. I, pp. 62-3). 106
desiguais proporções de capital, longe de limitar e enfra quecer o corolário anti-Smith do seu princípio do valor, serviu paradoxalmente para o reforçar. Não nos sur preende, dadas as circunstâncias, que tivesse considerado a sua causa primeira (quantidade de trabalho) como «nunca suplantada» pela «segunda causa» (variação nas proporções e durabilidade do capital), «mas apenas modi ficada por ela.»* Na realidade, o elemento de paradoxo neste «curioso efeito» — a conclusão de que os preços não subiam e que os produtos obtidos por meio do capital fixo desciam (confor me é dito na primeira edição de 1817) dependia da hipótese de que o seu padrão invariável, ou moeda, em cujos termos se mediam os preços dos bens, era produzido por um «tra balho isolado». Quatro anos depois, na terceira edição, alterou a sua definição de padrão estabelecendo que este era «produzido com uma proporção dos dois tipos de capi tal, muitíssimo próxima da quantidade média utilizada na produção da maioria dos bens»; assim, nestes termos, ao subirem os salários, alguns produtos subiriam de preço (aqueles «em cuja produção se tinha utilizado me nos capital fixo que a média em que o preço era avaliado» e/ou com mais rápida rotação de capital fixo e circulante), enquanto outros (aqueles em que entrava uma parte maior de capital fixo) desceriam; o nível de preços da média mantinha-se sem alteração, conforme exija o seu corolário anti-Smith ( como lhe chamamos).** Deste modo aproximou-se mais, convém notá-lo, do ponto de vista que Marx adoptou na sua teoria dos Preços de Produção do Volume 3 de O Capital.
* Ibiã., Vol. I, p. XXXVII, e Vol. Vn, p. 377 (Carta a Mill, de 28 de Dezembro de 1818). ** Ibiã., Vol. I, pp. XXXIX, XLII-XLIV, pp. 43, 63. Na 2.“ edição acrescentará, por deferência para com Torrens, «o diferente número de vezes que o capital circulante pode circular» às outras duas espécies de variação do capital, a que chamara «diferenças de durabilidade do capital fixo» e «irregularidade nas proporções em que as duas espécies de capital podem ser combinadas». 107
O lugar ocupado nesta exposição pela noção de «um padrão invariável» explica a sua preocupação em encon trar a forma apropriada para definir urna medida inva riável de valor, assim como a íntima conexão, no seu pensamento, entre os dois problemas da medida e da causa ou principio do valor. A relação entre ambos, tal como ele a via, está claramente expressa na frase inicial da secção «Sobre uma medida invariável do valor» (Secção V I na terceira edição): «Quando os bens variam em valor relativo, seria conveniente ter meios para apurar quais os que desceram e quais os que subiram em valor real, e isto só será possível comparando-os um após outro com alguma medida padrão, de valor invariável, que não esteja sujeita a nenhuma das flutuações que afectam outros bens.»* Prossegue alegando que «é impossível dispor dessa medida, porque não há nenhum bem que não esteja sujeito ás mesmas variações que aqueles cujo valor deve ser determinado». Mas enquanto, no que respeita «ao fundamento real do valor de troca», não há alteração no seu ponto de vista, tornam-se cada vez mais evidentes a hesitação e a dúvida na sua busca de uma definição precisa das condições necessárias para garantir a invariabilidade desse padrão. Na sua ter ceira edição, parece ter admitido que a invariabilidade de um padrão não era somente impossível de realizar na prá tica, mas também de descobrir como princípio. A razão que apresenta é que, mesmo supondo que «seja sempre necessá ria a mesma quantidade de trabalho para obter a mesma quantidade de ouro, o ouro continuará a não ser uma medi da de valor perfeita, pela qual se possam avaliar rigorosa mente as variações de todos os outros bens, porque na sua produção não entrariam precisamente as mesmas combina ções de capital fixo e circulante que nas outras coisas; nem a durabilidade do capital fixo seria a mesma; nem necessi taria do mesmo espaço de tempo, antes de ser posto no mer cado». Sendo assim, só poderia «ser uma medida de valor
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I b i d . , p. 43.
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perfeita para todas as coisas que fossem produzidas preci samente nas mesmas circunstâncias que ele próprio, mas não para quaisquer outras». Dessa forma, parecia estar-se perante um dualismo de duas entidades incomensuráveis, trabalho e tempo (isto é, o período de tempo durante o qual o trabalho era «adiantado», ou, alternativamente, arma zenado) : foi neste contexto que fez a perspicaz obser vação de que todas as diferenças de capital podem redu zir-se a diferenças de tempo.* Era forçoso contentar-se, portanto, com «uma aproximação tão grande quanto pode conceber-se teoricamente de uma medida padrão de valor»: designadamente, «o ouro considerado como bem em cuja produção entram proporções dos dois tipos de ca pital, tão próximas quanto possível da quantidade média utilizada para a maioria dos bens».** E, todavia, conside rou tão importante esta procura dum valor absoluto, que passou o último Verão da sua vida numa intensa corres pondência com Malthus sobre a questão da medida de valor (a seguir à publicação do panfleto deste último, com aquele nome), e as últimas semanas de vida a escre ver diversos esboços incompletos de um caderno sobre «Valor absoluto e Valor de Troca?».*** Segundo a sua própria confissão, numa última carta a Mill, «pensara bastante no assunto, ultimamente, mas sem muito pro gresso».** **
* «Todas as excepções à regra geral são abrangidas por esta regra de tempo» (i bi ã., Vol. V III, p. 193. Carta a McCulloch, de 13 de Junho de 1820). Cf. também: « A dificuldade da questão consiste, pois, em que as circunstâncias de tempo em que se fazem adiantamentos são tão diversas que é impossível encontrar qual quer bem susceptível de tornar-se uma medida não sujeita a ex cepção» (ibid., Vol. IV, p. 370). ** Ibid., Vol. I, p. 45. ** * Publicados pela primeira vez (depois de encontrados juntamente com várias cartas a Mill entre alguns papéis da família Cairnes, na Irlanda), ibid., Vol. IV, pp. 361-412. ****
Ibid., p. 359, e Vol. IX, p. 387. 109
Actualmente, esta busca duma medida ideal ou padrão invariável pode afigurar-se curiosa, ou até destituída de significado: tanto que muitas vezes é posta de parte como problema inexistente, ou como apenas uma forma antiquada do conhecido «problema do número-indice». É possível que a posição ocupada na controvérsia económica dos últimos anos por questões de medição de capital e da influência da repartição nos preços, contribua para que a preocupação de Ricardo mereça uma atenção mais compreensiva. Devemos também a Sraffa a revelação da verdadeira natureza do problema de Ricardo. Através dele sabemos que aquilo que perturbava Ricardo era o facto de a dimensão do produto nacional parecer alterar-se quando mudava a sua repartição entre as classes. «Mesmo que nada tenha ocorrido para o alterar na totalidade, pode haver modificações aparente s devidas apenas a uma mu dança da medida. Esta deve-se ao facto de a medida ser estabelecida em termos de valor e os valores relativos te rem sido modificados em virtude duma alteração na repar tição entre salários e lucros.» Se Ricardo tivesse estado principalmente interessado em saber «porque é que dois bens produzidos pela mesma quantidade de trabalho não têm o mesmo valor de troca», esta necessidade não teria constituído problema para ele. Mas como a sua principal preocupação incidia sobre efeito de uma subida ou descida de salários — sobre uma «alteração», mais do que sobre uma «diferença»— era fundamental para a sua análise «encontrar uma medida de valor que fosse invariante em relação a mudanças na repartição do produto; porque, se uma subida ou descida de salários, por si só, produzisse uma alteração no valor do produto social, seria difícil determinar rigorosamente o seu efeito sobre os lucros».*
* Introdução do Editor a Works and Correspondence of Ricardol Vol. I, pp. xlviii-xlix. Para a solução apresentada pelo próprio Sraffa, ver Capítulo 9. 110
I I I
O primitivo interesse de Ricardo pela Repartição como «o principal problema da Economia Política», é provavelmente demasiado conhecido para precisar de ser relembrado, tal como o principal corolario dinâmico dedu zido da sua Teoria da Repartição, sob a forma duma previsão condicional do futuro. E, no entanto, tem sido suficientemente mal interpretado para que não seja com pletamente ocioso acentuar alguns dos seus aspectos. Um objecto inicial de incompreensão foi a sua utilização das proporções relativamente a partes do rendimento su jeitas a alteração, e daí a interpretação de certas das suas afirmações. Escusado será dizer, as categorias de rendimento que tomou para matéria do seu estudo não foram adoptadas arbitrariamente como categorias abs tractas de factores produtivos instrumentais; foram esco lhidas como correspondentes às três principais classes da comunidade, como ele (e outros economistas do tempo) as via. Neste aspecto, seguiu na peugada de Adam Smith; e aqui, na base da sua estrutura, foi introduzido um dado sociológico importante. (Nas páginas iniciais, muito folheadas, do seu Prefácio: «A produção da terra — tudo o que deriva da sua superfície pela aplicação conjugada de trabalho, máquinas e capital, é repartida entre três classes da comunidade; a saber, o proprietário da terra, o dono da reserva de bens ou capital necessário para o seu cultivo, e os trabalhadores por cujo esforço ela é cultivada.») Quando dizia que estas fracções aumen tavam ou diminuiam (e a direcção dos seus movimentos relativos era a sua principal preocupação), referia-se em geral a um aumento ou diminuição daquilo a que chamava «valor real», em termos de uma moeda invariável: por ou tras palavras, em termos da quantidade de trabalho neces sária para produzir a parte em questão. Neste ponto, os seus juízos mantiveram-se firmemente dentro da categoria do valor (absoluto), medido pela quantidade de trabalho. Com uma determinada escala de produção, avaliada em termos de utilização do trabalho, isto era, consequente11 1
mente, o mesmo que afirmar que a proporção do valor total produzido que entrava na fracção em questão, tinha au mentado ou diminuído; e é neste sentido que devem ser compreendidas as suas referências ao facto de uma su bida de salários dar origem a uma queda dos lucros. Assim, a frase «valor real dos salários», que hoje nos soa estranhamente, é definida por Ricardo como «a quan tidade de trabalho e capital aplicados na sua produção»: os salários devem ser avaliados deste modo, «e não pelo seu valor nominal em casacos, chapéus, moeda ou cereal».* Em relação com isto e no que se refere à partilha da renda, o problema de saber se esta tenderia a subir proporcionalmente ao aumento da acumulação de capital e da população apresentava uma certa ambiguidade; e por isso, tem-se afirmado por vezes que para Ricardo a renda subiria, não apenas de modo abso luto, mas relativamente ao lucro e salários, ou propor cionalmente ao produto total.** Ê certo que esteve muito perto de afirmar que as rendas subiriam, não apenas como parte do excedente total, e portanto à custa do lucro, mas também como fracção do todo. No Ensaio de 1815 fala da renda «num país progressivo» como «não apenas * Ibid., Vol. I, p. 50. Nas suas Notas sobre Malthus, escreve: «Creio que é um grande erro afirmar que os salários desceram, quando se concordou em que o trabalhador ‘obteve uma maior proporção do valor da produção total obtida por uma determinada qu-antidade de capital’ . O valor, penso eu, é medido em proporções» ( i b i d Vol. II, p. 138). Esta linguagem^ em particular, foi asperamente criticada por Bailey (entre outros), como «linguagem estranha» e «uma sin gular deturpação dos termos» (A Critical Dissertation on the Nature, Measure and Causes of Value (Londres) 1825) p. 50); e Malthus referiu-se a ela como «esta invulgar utilização de termos comuns que tornou a obra de Ricardo tão difícil de ser compreendida por muitas pessoas» (Principles of Political Economy, considered with a view to their practical application (Londres, 1820) p. 214). Malthus utilizou as expressões de Smith «salários reais» e «renda real» para indicar «poder de trabalho disponível, e as coisas neces sárias e convenientes da vida». ** O Professor M. Blaug, por exemplo, parece interpretá-lo neste sentido ( Economic Theory in Retrospect (Londres, 1964 e 1968) p. 111). 112
crescente em absoluto», mas também «crescendo proporcio nalmente ao capital aplicado na terra», e afirma que «o proprietário da terra não só obtém maior produção, como uma parte mais importante na partilha». Na primeira edi ção dos Princípios, este «duplo benefício» para o proprietá rio da terra é sublinhado, e é feita referência à «parte pro porcional de produto em bruto pago ao proprietário da terra como renda» como sendo crescente.* Perante a crítica de Malthus (nos seus próprios Princípios) ao facto de ter tratado a renda em termos de proporções, Ricardo admitiu, nas suas Notas sobre Malthus, que «a linguagem que empregara no que respeita a proporções pode não ter sido tão clara como deveria», e que visto ter cometido o erro de afirmar** que «a proporção do produto global que cabe ao dono da terra» aumenta, desejava «corrigir a passagem», substituindo a expressão proporção por «por ção», «ou, se a mantivesse, devia referir-se à proporção do produto obtido nas terras mais férteis».*** De acordo com isto, entre as suas revisões, da terceira edição dos Princí- pios, Ricardo incluiu uma alteração no Capítulo sobre a Renda, emendando «proporção do produto global» para «proporção do produto obtido com um dado capital em qualquer exploração agrícola dada».**** Parece claro, por tanto, que Ricardo tivesse em mente o produto da terra cultivada anteriormente, quando falava da fracção de renda crescente e a margem de cultivo era ampliada. Um olhar sobre qualquer diagrama da renda, num manual ele mentar, provará que ele tinha razão, mas que também é perfeitamente possível que a renda, como proporção do produto global, da terra cultivada anteriormente e da terra cultivada de novo, desça quando a margem de
* Ed. I of Principles (Londres, 1817), p. 76; Worts and Cor- respondence of Ricardo, ed. Sraffa, Vol. I p. 83. **
Isto é precedido pela afirmação: «N ão sei onde disse isto.»
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Ibid., Vol. II, p. 197; cf. Introdução do Editor ao Vol. I, p. Ivi.
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Ibid., Vol. I, p. 83. 113
cultivo aumenta.* É claro que de um modo geral nada se altera na sua exposição sobre a renda e o lucro, pelo facto de a renda como parte relativa subir ou descer, ao contrário do que alguns terão pensado. Na sua previsão a longo prazo (baseada, conforme vimos, na hipótese de importações de cereais insignifi cantes, ou pelo menos restritas) entra a noção do estado estacionário, que, com aspectos ligeiramente diferentes e com diversos graus de destaque, ocupou um lugar impor tante em boa parte das obras do período clássico. Se quisés semos descrever a cena em tons trágicos, poderíamos sentir a tentação de falar dum fantasma espreitando por cima da linha do horizonte; a possibilidade de ele se erguer no horizonte seria uma preocupação constante, sempre que se considerassem os efeitos a longo prazo de medidas políticas. O progresso da acumulação de capital seria o objecto constante e a garantia de prosperidade material para a comunidade em geral e para todas as classes. Adam Smith concebeu o seu «estado progres sivo... na realidade o estado que permite a alegria e o bem-estar para todas as diferentes classes da sociedade» (em contraste com o qual, «o estacionário é monótono e decadente»). Este estado progressivo, «quando a so* O aumento ou di depende da forma da curva de custos. Como é evidente, o custo absorve pro porcionalmente mais (e a renda equi valentemente menos) em condições de produção de custo elevado perto da mar gem, do que em terra mais fértil; enquanto o grau em que sobem as rendas desta última, depende da rapidez com que o custo (e portanto o preço) sobe à medida que a margem é ampliada. Assim, no diagrama ao lado, utilizando uma curva •de custos em linha recta, o triângulo renda mantém-se em proporção constante com o’ total; enquanto a renda como parte do produto da terra tmtiga OA, sobe proporcionalmente quando o cultivo aumenta para OB e o preço aumenta de modo equivalente de OP, para OP,; cf. B|laug; Ricardian Economics, p. 110, onde, no entanto, se utilizam curvas de produtividade média e marginal. 11 4
ciedade avança para novas aquisições, mais do que tendo alcançado a plena prosperidade», surge quando «as condições dos trabalhadores pobres, da grande parte do povo, parecem ser as mais felizes e as mais confortá veis».* Ricardo, com tendência para uma visão dinâ mica pessimista, manteve firmemente a possibilidade-— desde que não houvesse comércio livre, e «não obstante a tendência dos salários para se ajustarem à taxa natu ral» — de o preço de mercado do trabalho, «numa socie dade em progresso, durante um período indefinido, lhe ser constantemente superior; porque só depois de o impulso que um aumento de capital dá a uma nova procura de trabalho produzir efeito, poderá outro aumento de capital produzir o mesmo efeito». Esta possibilidade será reforçada se as circunstâncias permitirem que «um suple mento à alimentação e vestuário dum país... seja reali zado com o auxílio de máquinas, sem qualquer aumento, e mesmo com uma diminuição absoluta da quantidade pro porcional de trabalho necessária para produzi-los». Então, na realidade, «a condição do trabalhador beneficiará muito»; e se acontecesse haver «uma abundância de terra fértil: nesses períodos a acumulação seria frequentemente tão rápida, que a remuneração dos trabalhadores não pode ria aumentar com a mesma rapidez que o capital». Há tam bém uma alusão a outra influência favorável, a que mais tarde John Stuart Mill daria muita importância: que «o preço natural do trabalho», estando dependente «dos hábi tos e costumes do povo», deve ser modificado por altera ções tendentes a elevar o nível dos últimos. A este respeito escreveu (na sua segunda edição): «Os amigos da huma nidade não podem deixar de desejar que em todos os países as classes trabalhadoras apreciem o conforto e as distrac ções, e que sejam estimuladas por todos os meios legais, nos seus esforços para os obter. Não pode haver melhor garante contra uma população excessiva.»** * Wealth of Nations, p. 83. ** Works and Correspondence of Ricardo, ed. Sraffa, Vol. I, pp. 94-5, 98, ICO. 115
Apesar disto, no entanto, o quadro mais geral ou provável que terá visto nas circunstâncias que então predominavam em Inglaterra, era o da população ten dendo a ultrapassar a acumulação de capital, e «à medida que a população aumenta, os preços dos bens de primeira necessidade subirão constantemente, porque será preciso mais trabalho para os produzir». Se os salários monetá rios, nestas circunstâncias, subissem de forma a compen sar total ou parcialmente o trabalhador, «os lucros do fabricante diminuiriam necessariamente», e surgiria uma tendência para desincentivar uma ulterior acumulação. Embora o estado estacionário («do qual, creio, ainda esta mos muito longe») só seja explicitamente mencionado no contexto das Leis dos Pobres e do seu efeito sobre a população, parece claro que ele o via como o destino último dessa «tendência natural dos lucros para diminuírem», que constantemente ameaçava pre judicar o «estado progressivo», especialmente em vir tude das restrições à importação. Embora «contro lada de tempos a tempos», em virtude de aperfeiçoa mentos na maquinaria agrícola e de descobertas na ciência da agricultura, esta tendência, muito antes de ter atingido o seu limite, «terá impedido toda a acumulação, e quase todo o produto do país, depois de pagos os trabalhadores, será propriedade dos donos de terras e dos beneficiários de dízimas e impostos».* Não tem sido raro rejeitarem-se estas tendências dinâmicas apontadas por Ricardo, opondo-as a aconteci mentos reais da segunda metade do século dezanove. Esse pessimismo — não só no seu caso, mas também todo aquele gerado à volta do debate sobre um «estado estacionário»— foi posto de parte como uma curiosidade na história do pensamento, ou mesmo como um exemplo salutar do resultado a que se chega quando se seguem até ao fim «extensos encadeamentos de raciocínio dedutivo», como aqueles que Marshall** aconselhava os economistas a * Ibid., pp. 101-2, 109, 12C-1. ** Principies of Economics, 7.“ ed. (Londres, 1916), p. 781. 116
evitar. Essa crítica, porém, parece ser menos que razoável no caso de Ricardo: de facto, a comparação da sua «previ são» com acontecimentos reais, num século que iria ser o cenário do livre comércio inglês e de uma revolução nos transportes terrestres e marítimos, é pouco apropriada quando se tem em conta a sua menção explícita de «impedi mentos à livre importação», no contexto das tendências des critas. Pode dizer-se que, nos Princípios, estes impedimen tos à importação são muito pouco sublinhados como condi ção ; e que, visto não serem devidamente colocados no centro do quadro, dão a impressão de serem apenas uma in fluência reforçadora, que se limita a afectar o calendário da «tendência natural» descrita, a qual se manifestaria em qualquer caso, embora mais lentamente, se essa influência não se fizesse sentir. Parece claro, no entanto, segundo o seu próprio ponto de vista, que as Leis sobre os Cereais fo ram relevantes, senão mesmo fundamentais, no contexto da sua previsão dinâmica. Na exposição feita no Ensaio, foram-no de maneira evidente; e a sua relevância mo tivou a afirmação de Edwin Cannan citada no Capítulo I, de que para «base de uma exposição contra as Leis sobre os Cereais, seria difícil encontrar algo mais eficaz que a teoria da repartição de Ricardo».* As importa ções livres, segundo o seu modo de ver, foram a compensa ção essencial para os rendimentos decrescentes—essencial para manter afastado o fantasma do retorno a um estado estacionário. Escrevendo em 1819, e referindo-se «à escassez, e consequente alta do custo dos alimentos e outros produtos fundamentais» como «o único obstáculo» ao crescimento da riqueza e da população, «por tempo inde finido», declara: «Deixemos que estes (isto é, alimentos e produtos fundamentais) sejam fornecidos do estrangeiro em troca de bens manufacturados, e será difícil determinar o limite em que deixareis de acumular riqueza e obter lucro com a sua aplicação.» E acrescenta: «Esta é uma questão da máxima importância para a economia polí-
*
E. Cannan, op. cit., p. 391. 117
tica».* Um ano depois, escrevendo a Trower, afirma: «Preconizo o comércio livre dos cereais fundamentando-me no facto de que, sendo o comércio livre e os cereais bara tos, os lucros não descerão, por muito importante que possa ser a acumulação de capital. Se nos limitarmos aos recursos do nosso próprio solo, penso eu, a renda acabará por absorver a maior parte do produto que resta depois de pagos os salários, e, consequentemente, os lucros serão bai xos.»** Esta interpretação das suas próprias intenções nos Princípios (referia-se à «errónea exposição» no livro de Malthus) afigura-se-nos decisiva. Até aqui não nos referimos expressamente ao lugar ocupado pela teoria da população, de Malthus, no sistema de Ricardo, embora isto esteja implícito naquilo que já foi dito. Basta esclarecer que Ricardo aceitou intei ramente esta teoria, e ficou grato ao amigo e par ceiro do jogo epistolar. Esta teoria proporcionou a Ricardo um fundamento para uma teoria da oferta de salários. Per mitiu encontrar um mecanismo de ajustamento da oferta pelo qual os salários, ou «preço de mercado» corrente, se ajustavam ao «preço natural do trabalho»; sendo este definido como «o preço necessário para que os trabalhadores possam subsistir e perpetuar a sua raça, sem aumento nem diminuição».*** Por outras palavras, o preço do trabalho era regulado pelo seu próprio custo de produção, no sentido de um nível de salários que bas
* Contribuição para a Encyclopaedia Britmmica, Works and Correspondence of Ricardo, ed. Sraffa, Vol. IV, p. 179. Cf. Prof. M. Blaug: «O ‘pessimismo’ atribuído a Ricardo dependia inteiramente da manutenção da pauta de importação dos produtos essenciais... a noção de estado estacionário iminente foi quando muito um instrumento útil para assustar os defensores da protecção... [f o i] uma ficção metodológica» (Ricardian Economics, pp. 31-2). ** Works and Correspondence of Ricardo, ed. Sraffa, Vol. VIII, p. 208(Carta a Trower, 21 de Julho de 1820). Cf. também «Notas sobre Malthus», ibid., Vol. I I ± p. 222; «mas eu acrescentei que não será assim se se puder obter alimentos baratos provenientes do estrangeiro». *** 118
I bi d ., Vol. I, p. 93.
tasse para manter uma dada população trabalhadora (ou uma população que aumenta aproximadamente ao ritmo da acumulação de capital — nunca ficou bem escla recido qual das possíveis alternativas). Vimos que esta noção de um dado, ou independentemente determinado nível de salários-cereal, constituía a base dessa teoria dos lucros, conforme foi inicialmente formulada. Mas tam bém vimos que não lhe deu uma grosseira interpreta ção de subsistência física, como alguns imaginaram, e, por isso, a rejeitaram com certa ligeireza. «Os hábi tos e os costumes» faziam parte daquilo que era con vencionalmente «necessário» em qualquer tempo ou lugar. Assim, no seu Capítulo Sobre os Salários, encontra-se esta passagem muito citada: «Não se deve entender que o preço natural do trabalho, mesmo que calculado em alimen tos e bens essenciais, é absolutamente fixo e constante. Va ria em momentos diversos no mesmo país, e difere muito concretamente em países diferentes. Depende essencialmen te dos hábitos e costumes do povo. Um trabalhador inglês consideraria o seu salário abaixo da sua taxa natural e muitíssimo escasso para sustentar uma família, se não lhe permitisse comprar qualquer outro alimento além de bata tas, e viver numa habitação melhor que um casebre de adobe; e no entanto, essas exigências moderadas são muitas vezes consideradas suficientes em países onde ‘a vida humana é barata’ e as necessidades do homem facilmente satisfeitas.»* Era assim acen tuada a importância deste elemento social ou convencional, nos momentos em que o preço de mercado do trabalho subia acima do preço natural, de que «dependerá» «a permanência» desta subida e no qual «os amigos da huma nidade» podiam pôr as suas esperanças como «garante contra uma população excessiva». Ê difícil terminar uma descrição da teoria de Ricardo sem uma referência à sua discussão com Malthus * Ibid., Vol. I, pp. 96-7. A isto acrescentou na 2.“ edição uma nota de pé 'de página para exprimir a sua gratidão para com Torrens. 119
sobre a causa de «excessos» e a possibilidade de sobreprodução geral. Quanto a isto, Ricardo baseava-se naquilo que veio a chamar-se a Lei de Say, enquanto Malthus tem sido saudado como precursor da doutrina do século vinte que, indo contra aquela Lei, atribui importância ao nível de procura efectiva. Tal como Sismondi, Malthus adoptava a este respeito aquilo que seria considerado durante um século ou mais a heresia do subconsumo. Uma parte importante das «Notas sobre Malthus» de Ricardo é ocupada por este tema. Malthus principia expondo o caso em que uma «parci mónia» por parte dos capitalistas é utilizada para empregar trabalhadores adicionais (em comum com Ricardo, tem em mente o caso em que o capital é constituído exclusi vamente por capital circulante, e todo o novo capital é consequentemente aplicado em salários e matérias-pri mas, com os quais são criados novos postos de trabalho). «É sem dúvida possível, através da parcimónia», diz, «dedicar imediatamente uma parte do produto de qual quer país mais vasta do que o habitual, à manutenção de trabalho produtivo; e é verdade que os trabalhadores assim empregados são consumidores.» Mas... o consumo e a procura ocasionados pelas pessoas empregadas no tra balho produtivo nunca podem, por si sós, constituir um motivo para a acumulação e aplicação de capital; e quanto aos próprios capitalistas, juntamente com os proprietários de terras e outras pessoas ricas, terão acei tado, por suposição, serem parcimoniosos, e privarem-se das suas conveniências e luxos usuais para econo mizarem o seu rendimento e aumentarem o seu capi tal. Nestas circunstâncias, pergunto eu, como é possível supor que a maior quantidade de bens obtida com um maior número de trabalhadores produtivos encontre com pradores, sem que se dê uma tal descida de preços que os seus valores desçam abaixo dos custos de pro dução.»* Isto quase poderia ser uma passagem de * Rev. T. R. Malthus, Principies of Political Economy (Londres, 1820) pp. 352-3. Alguns parágrafos adiante1 exprime este modo 120
J. A. Hobson ou qualquer outro teórico do subconsumo (ou sobrepoupança); mas, no entanto, não surge como linguagem especificamente keynesiana (à primeira vista, pelo menos), visto que a parcimónia adicional é imediatamente equilibrada por um investimento adicional. A preocupação parece incidir sobre o efeito produtivo do investimento adicional, que não é acompanhado por qual quer expansão da procura (o que lhe dá um certo sabor kaleckiano). Referindo-se a Say e à sua «Lei dos Mercados», Malthus prossegue afirmando que, embora alguns es critores muito avisados tenham pensado» que não pode haver uma sobreprodução geral ou abundância de todas as coisas, porque, como «os bens são sempre trocados por bens, metade destes abastecerá o mercado para a outra metade», mesmo assim, na sua opinião, «não é de modo algum verdadeiro... que os bens sejam sempre trocados por bens. A grande massa dos bens é directa mente trocada por trabalho.» Portanto, «é perfeitamente evidente que esta massa de bens, comparada com o tra balho pelo qual será trocada, pode perder valor devido à abundância, tal como qualquer bem perde valor em virtude dum excesso de oferta».* A este respeito, parece preocupar-se com uma subida dos salários reais como efeito dum aumento da taxa de acumulação, com uma consequente diminuição dos lucros. Isto pode pare cer estranho, vindo da pena do autor do Ensaio sobre a População (como, na verdade, J. B. Say observou).** de ver ainda mais vincadamente: «um grande aumento do pro duto. .. com as necessidades diminuídas pela parcimónia, tem de fo r çosamente ocasionar uma grande descida do valor calculado em trabalho, de modo que o mesmo produto, embora possa ter custado a mesma quantidade de trabalho que antes, já não poderá exigir a mesma quantidade; e tanto o poder de acumulação como o motivo para acumular serão fortemente limitados» ( i b i d p. 355). * Ibid., pp. 353-4. ** L/etters to Mr. Malthus on several subjects of Political Economy anã on tTie Cause of Stagnation of Gommerce, por J.-B. Say (trad. John Richter, Londres, 1821) p. 30. 121
No entanto, a sua atenção concentra-se principal mente na insuficiência da procura de bens. «Nunca poderá existir uma procura de trabalho produtivo com um objec tivo de lucro, a não ser que o valor da produção obtida seja superior ao do trabalho que a realizou. Não se pode utilizar novos braços em qualquer espécie de indústria, apenas em consequência da procura da sua produção ocasionada pelas pessoas empregadas.»* Visto que uma taxa de acumulação excessivamente rápida se tornava pos sível, havia vantagem na existência duma classe de «consumidores não produtivos», como se lhe afigurava ser o caso da aristocracia agrária. A sua procura com pensaria a excessiva parcimónia dos capitalistas, e assim estabelecer-se-ia um equilíbrio económico e social. O autor conclui que «nenhuma nação tem possibilidade de enri quecer graças a uma acumulação de capital, resultante duma permanente baixa do consumo; porque, como essa acumulação ultrapassa em muito aquilo que se pretende, a fim de satisfazer a procura efectiva de produtos, uma parte destes depressa perderia o seu uso e o seu valor, deixando de constituir riqueza».** Ricardo, o que não causa surpresa, replicou com a própria teoria de Malthus sobre a população. Em pri meiro lugar, negou que a parcimónia, quando equilibrada por um investimento de capital circulante adicional, pu desse causar qualquer insuficiência de procura (a não ser que o investimento fosse mal orientado): as «necessidades dos consumidores» seriam simplesmente «transferidas, jun tamente com o poder de consumir, para outro grupo de consumidores»; «o poder de consumir... não é supri mido, mas sim transferido para o trabalhador».*** Em segundo lugar, o aumento dos salários será uma situação temporária, a não ser que o custo da subsistência em tra* T. R. Malthus, Princvples of Political Economy (Londres, 1820) pp. 348-9. ** Ibid., p. 370. ** * «No tes on Malthus», Works and Correspondence of Ricardo, ed. Sraffa, Vol. II, pp. 309, 311.
balho tenha aumentado. Nas circunstâncias consideradas, «a necessidade fundamental seria a de uma certa quanti dade de população». Embora admitindo que «a popula ção não aumente ao mesmo ritmo que os fundos destina dos a utilizá-la», haveria um controlo da acumulação, que seria temporariamente limitada até se restabelecer o equilíbrio populacional. Entretanto, «a condição do tra balhador seria então mais feliz», visto o seu poder de consumo ter aumentado. É certo que «os lucros baixariam devido à subida dos salários», mas «só continuariam assim até a população aumentar e o valor do trabalho voltar a descer».* O ponto de vista de Malthus sobre a procura efectiva e o papel benéfico duma classe de «consumidores não produtivos», já tinha sido exposto no princípio do século pelo Conde de Lauderdale, por quem Malthus foi prova velmente muito influenciado (como certamente o foi quanto às suas opiniões sobre as Leis dos Cereais), mesmo apesar de afirmar que «Lorde Lauderdale parece ter ido tão longe ao reprovar a acumulação, como outros escritores a recomendá-la».** Embora a opinião deste último sobre as desvantagens da parcimónia, con forme veremos, fosse expressa mais energicamente que por Malthus, qualquer análise em relação com esta afirmação foi muito incipiente. Além de ser um «instigador e defensor da Lei dos Cereais», tão vantajosa para o interesse do pro prietário de terras, veio a tornar-se «um destacado defen sor... da política Tory extremista» na Câmara dos Lordes.*** Malthus, embora mais cauteloso como pensador e mais moderado na afirmação das suas opiniões, simpa tizava nitidamente com as ideias de Lauderdale sobre
* Ibid., pp. 303, 318. ** Malthus, Principles of Political Economy, p. 352n. ** * Morton Paglin, Malthus and Lauderdale: the AntiRicardian Tradition (Nova Iorque, 1961), p. 90. Anos antes, tlnha sido um Whig, adepto de Charles James Fox.
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questões fundamentais, e manteve sempre um certo pendor conservador. Isto pode ser mais revelador para explicar o desacordo entre ele e Ricardo, do que a ideia de que Malthus tendia a esperar «efeitos imediatos e temporá rios», enquanto Ricardo contava com os resultados a longo prazo e mais permanentes de uma alteração económica (conforme ele próprio declarou).*
* Numa carta a Malthus de 24 de Janeiro de 1817, Works and Correspondence of Ricardo, ed. Sraffa( Vol. VII, p. 120. 124
4. A REACÇÃO CONTRA RICARDO i Nos anos que se seguiram à morte de Ricardo, publicaram-se numerosas críticas à sua doutrina, que se acumularam de tal maneira e tiveram um tal impacto que, ainda antes do fim da década, haveria razões para nos perguntarmos se o respeito pela sua doutrina con tinuaria a ser tão grande como em meados do século dezanove, se não fosse a defesa leal (e divulgação tam bém) das suas principais ideias por John Stuart Mill. De facto, em 1831, o Clube de Economia Política procedeu à discussão da questão (apresentada por Torrens) de «se alguns dos princípios primeiramente sugeridos» na obra de Ricardo, eram «agora considerados correctos»; Torrens afirmou, na discussão, que «todos os grandes princípios da obra de Ricardo foram sucessivamente abandonados, e que todas as suas teorias sobre o Valor, a Renda e o Lucro eram agora geralmente consideradas erróneas».* * Political Economy Club: Centenary Volume, Vol. V I (Londres, 1921) pp. 35, 36, 223. A questão posta por Torrens foi discutida em 13 de Janeiro, e novamente a 14 de Abril. Segundo Mallet, na segunda discussão, contudo, «foi geralmente aceite que... os seus (de Ricardo) princípios são correctos quanto ao essencial. Nem as suas Teorias sobre o Valor nem as suas Teorias sobre a Renda e o lucro são correctas, de harmonia com os próprios termos das suas proposições; mas são-no em principio» ( ibid .: p. 225). Cf. também Blaug, Bicardian Economics, pp. 62-3; Meek, Economics 125
Evidentemente, já em vida de Ricardo existiam cor rentes de pensamento antagónicas. Muitíssimo concreto e sem rodeios no seu conservantismo, foi, conforme vimos, o Conde de Lauderdale, pensador económico de relevo, que se bateu ousadamente contra a maré cheia do Smithianismus i. Além de ser politicamente proteccionista, pelo menos no que se refere às Leis sobre os Cereais, tinha a preocupação dominante de denunciar a «funesta paixão pela acumulação, que falsamente tem sido considerada virtude», e de demonstrar «toda a extenção do mal que pode advir da indulgência para com ela». O mal era «a diminuição de valor» que «se produzirá... nos artigos em que a parcimónia dará origem a uma sublimação da pro cura», daí advindo, «analogamente, uma diminuição da produção do país».* Isto significava que «a acumula ção de capital deve ter sempre os seus limites».** Outro alvo da sua crítica foi a concepção de Smith do lucro como dedução, cujas implicações ideológicas ele compreendeu de modo perspicaz. Contrariamente a essa ideia, via a origem do lucro na capacidade de o and Ideology and Other Essays (Londres, 1967) pp. 67-8; e para um modo 'de ver antagónico, cf. as observações de Lionel Robbins, The Evolution of Modem Economic Theory (Londres, 1970)) p. 59. O Professor Meek observa que «Marx viu o ano de 1830 como assina lando o fim da economia «ricardiana» — e, de facto, não só da eco nomia «ricardiana» mas também da economia «clássica» e até da economia «científica». A partir daíx os cientistas foram obrigados a ceder o passo aos profissionais» ( i b i d p. 52). Foi em referência a estas tendências posteriores a 1830, que Marx criou o termo vulgarõkonomie. * Conde de Lauderdale, An Inquiry into the Nature and Origin of Public Wealth (Edimburgo, 1804) pp. 218, 220, 248. Neste sentido, pode parecer que não fez mais do que proclamar uma opinião de simples subconsumo. Acrescenta, de facto, que a formação dum fundo de acumulação teria permitido uma «riqueza real que se dissiparia» (devido à queda da procura» (antes deste fundo de acumulação... poder com toda a probabilidade ter trans formado... o rendimento em capital» ( i b i d p. 249), o que alguns talvez considerem como uma antecipação do raciocínio keynesiano sobre poupança e investimento e o efeito imediato duma modi ficação da tendência para consumir. ** Ibid., p. 265. 126
capital «fornecer uma quantidade de trabalho, que de outro modo seria realizado pela mão do homem; ou na realização pelo capital de uma quantidade de trabalho que está para além do alcance do esforço pessoal do homem.* Embora Malthus, conforme vimos, tivesse certamente sido influen ciado por ele, preferiu no entanto o papel de defensor da tradição de Smith, nos pontos em que Ricardo atacara a Riqueza das Nações e dera às suas dou trinas fundamentais um cunho mais radical. Isto é evidente não só na tenaz defesa que Malthus fez da avaliação do valor pelo «trabalho disponível», de Adam Smith, mas também no seu hábito de conceber ques tões de valor de troca dentro de um contexto geral de oferta-procura (tal como Adam Smith tinha feito na sua «Teoria das Componentes Aditivas»). Em nenhum caso isto foi mais evidente que no seu modo de tratamento da teoria dos lucros.** E no entanto, na altura em que a reacção contra Ricardo estava no auge, estas diferenças passaram a ser consideradas secundárias e o próprio Malthus, dentro duma visão mais ampla, próximo do ponto de vista ricardiano.*** * Ibid., pp. 161 seg. Prossegue referindo-se a «cinco modos... pelos quais o capital se habilita a um lucro». ** Po r exemplo, a afirmação de Malthus, resumida quase no fim do seu Capítulo «sobre os Lucros do Capital»: «Apenas vemos metade do problema se falarmos exclusivamente duma subida de salários sem nos referirmos a uma descida dos preços dos bens. Os seus efeitos sobre os lucros podem ser precisamente os mesmos; mas no último caso, em que não se trata de considerar o estado da terra, torna-se imediatamente aparente como os lucros dependem dos preços dos bens, e da causa que os determina, a saber, a oferta em relação à procura» ( Principies of Political Economy (Lon dres, 1820) p. 334). *** Isto pode ter sucedido porque Bailey aderiu às críticas de Mal thus no seu ataque contra Ricardo, e Malthus replicou, conforme veremos, rejeitando desdenhosamente o panfleto de Bailey. O Dr. Robert M, Raunere no seu ensaio sobre Bailey, refere-se «ao facto de tanto Ricardo como Malthus se terem tornado crescentemente adeptos dum valor que não era relativo» e de Malthus «acreditar, tal como Ricardo, que o ‘valor’ se manteria constante se o custo não variasse» ( Samuel Bailey and the Classical Theory of Value (Harvard, 1961) p. 66 e cf. p. 119). 127
O avolumar de críticas a Ricardo, nos anos que se seguiram à sua morte, foi motivado principalmente pelas suas teorias do valor e do lucro; em segundo lugar, pela sua teoria da renda, pelo menos tanto quanto esta era apresentada de modo a considerar os interesses do proprie tário da terra opostos ao interesse social. O professor R. L. Meek explicou a veemência e rápido êxito destas críticas pelo facto «de a maioria dos economistas estarem muitís simo conscientes da perigosa utilização que alguns escrito res radicais estavam a dar aos conceitos de Ricardo»*; en tre estes escritores incluía-se Thomas Hodgskin, em espe cial, e mais tarde outros «socialistas ricardianos». Embora McCulloch, em meados da década de 1820, se tivesse encarregado de uma série de lições anuais em honra de Ricardo (e publicasse mais tarde uma colecção de obras do mesmo autor), era, por formação e inclinação, incapaz de levar por diante a tarefa de replicar de forma efectiva a estas críticas; isto porque era mais um jor nalista e divulgador fluente (e inteligente) do que um pensador subtil ou original. Por outro lado, com o correr
* Meek, Economics and Ideology, p. 70. O trabalho de Hodgskin, Dabour Defended against the Olaims of Capital, foi publicado em 1825, e a sua Popular Political Economy em 1827, época em que tinha grande influência nos círculos ligados ao Instituto de Mecânica. A opinião 'de James Mill sobre as ideias de Hodgskin, expressa numa carta a Brougham, era que «se viessem a difundir-se, subverteriam a sociedade civilizada» (cit. Robbins, The Theory of Economic Policy in English Classical Political Economy (Londres, 1952) p. 135). De todo o grupo de economistas deste período, desde Bailey até Longfield, disse o Professor M. Blaug: «E signi ficativo que os escritores que atacaram as opiniões dos «teóricos do trabalho» — Scrope, Read e Longfield — também foram alguns dos primeiros que propuseram a teoria do lucro pela abstinência. A este respeito, as inovações teóricas dos «economistas britânicos menosprezados» não deixaram de estar relacionadas com a luta de classes depois de 1830... E se preferirmos considerar a teoria do valor do custo do trabalho como o cerne da economia ricardiana, seremos conduzidos a verificar que a influência vital de Ricardo terminou na década de 1830» ( Ricarãian Ecpnomics, pp. 224-5). 128
do tempo, foi-se afastando cada vez mais da posição de Ricardo. O primeiro e talvez o mais influente dos ataques contra Ricardo, foi a obra de Samuel Bailey, de 1825, um negociante de Sheffield com certa importância naquela cidade, que mais tarde entraria, inter alia, numa crítica filosófica muito forte, que incluiu uma crítica da teoria do Bispo de Berkeley. A sua polémica contra Ricardo tomou a forma de um ensaio de 200 páginas, intitulado Uma dissertação Crítica sobre a Natureza, Medida e Causas do Valor: principalmente em referência aos trabalhos de Ricardo e seus adeptos, que primeiro foi publicado anonimamente, e considerado por alguns econo mistas do século como uma notável antecipação de noções modernas. Embora Torrens cedo o aprovasse (na dis cussão do Clube de Economia Política, em 1831), Seligman classificou Bailey entre os «Economistas Britânicos Me nosprezados».* O alvo principal da sua crítica foi a noção ricardiana de valor absoluto, e com esta, a noção de padrão inva riável. Bailey era um relativista convicto, e começou por definir o valor como sendo constituído apenas por aquilo a que Ricardo tinha chamado «valor relativo» ou «valor de troca». «Valor», disse, «indica... não algo de positivo ou intrínseco, mas unicamente a relação de reci procidade de dois objectos como bens permutáveis... indica uma relação entre dois objectos», portanto «comporta[ndo] uma noção de distância».** Seguia-se que «o próprio termo valor absoluto implica a mesma espécie de absurdo que distância absoluta», e que a busca por Ricardo de um valor invariável para padrão não tinha sentido, visto ser impossível definir ‘valor invariável’. «A minha tese é que, se as causas que afectam qualquer bem se mantiverem sem alteração, o seu valor não permanecerá
* Economic Journal, Vol. X III, 1903, pp. 352-5. ** A Criticai Dissertation, pp. 4-5. :9
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invariável, a não ser que as causas que afectam a totali dade dos bens continuem sem alteração relativamente a ele.»* Apresentando esta noção de valor puramente relativa (e negando qualquer outra), falou, a propósito, em «valor, no seu sentido último», como significando a «est:ma em que qualquer objecto é tido. Indica, para falar com exactidão, um efeito produzido na mente.»** (Esta observação, escusado será dizê-lo, fez com que fosse sau dado como um progenitor da Revolução Jevoniana.) *** De Quincey é alvo de um ataque especial por ter exposto a teoria de Ricardo, e até Malthus o é, por ter apadrinhado a noção de valor «invariável, absoluto, natural» (em Medida do Valor), em oposição a valor «nominal ou re lativo». No que se refere à sua teoria do lucro, pouco contribuiu para além da afirmação de que os lucros indicam «apenas uma parte ou proporção de bens», e uma subida dos lucros só pode significar que «o ganho do capitalista é proporcio nalmente superior ao capital aplicado»; donde conclui que quando os lucros são definidos deste modo, «a propo sição de que quando o trabalho sobe, os lucros descem necessariamente, só é verdadeira quando essa subida não se deve a um aumento do seu poder produtivo» (refere-se, é claro, a salários como «salários reais» no sentido de Smith-e-Malthus, e não de salários como proporção, ou «o valor real dos salários» no sentido de Ricardo). Voltando à questão do valor, afirma que o custo de produção, que o regula em condições de concorrên cia, «pode ser... uma quantidade de trabalho ou uma quantidade de capital», e conclui, de acordo com Torrens, que como causa próxima influindo na mente dos capita listas, «a quantidade de capital aplicada é a causa que determina o valor do bem produzido».**** * Ibid., p. 20. ** Ibid., p. 180. ** * Cf. Rauner, Samuel Bailey, pp. 5-7. **** Bailey, A Critical Dissertation..., p. 201. 130
Uma pequena curiosidade no seu modo de tratamento do valor é uma referência ao monopólio. Distingue-se entre dois tipos principais, um «no qual há apenas um interesse», outro «no qual há interesses separados». No primeiro, o monopolista pode ter interesse em reter parte da oferta. Mas no segundo caso, não será assim: mesmo que «esteja protegido por um privilégio exclusivo (por exemplo, uma concessão ou uma indústria com grandes custos iniciais) ou não tenha de preocupar-se com a concorrência pública», «é obrigado... a fornecer a maior quantidade de bens que puder, até ao ponto em que o preço médio lhe renda um lucro maior que qualquer aplicação corrente do capital».* Prossegue incluindo nesta última categoria a maioria das situações de curto prazo (como seriam hoje classificadas) e a maioria dos desvios temporários do preço de mercado em relação ao custo de produção. «Todos os bens que ne cessitam de um período de tempo considerável para a sua produção, estão sujeitos a ser uma vez por outra incluídos na classe de artigos que devem o seu valor a este segundo tipo de monopólio, por uma súbita alteração da relação entre a procura e a oferta. Daqui resulta aquilo a que os economistas chamam valor de mercado». Se a procura aumentar, «os possuidores dos bens desfrutarão de um mo nopólio temporário», ao passo que se a procura diminuir, terão a desvantagem de serem «forçados a colocar toda a sua oferta no mercado, devido à concorrência».** E termina apresentando aquilo que pode virtualmente ser considerado como um terceiro tipo de monopólio: «o caso em que a concorrência não pode aumentar, excepto provocando um aumento de custo». A renda é assim tratada como um exemplo de «valor de monopólio», devido à escassez de terras de fertilidade superior, e «resulta [nte] do lucro extraordinário obtido pela posse dum instrumento de produção protegido, até certo ponto, da concorrência».***
* IUd., p. 187. ** Ibiã., pp. 188-9. ***
Ibid., pp. 185, 195-6. 131
A Dissertação de Bailey foi citada por Torrens, que manifestou a sua aprovação e considerou como decisiva pela sua crítica da Teoria de Ricardo Sobre o Valor, na já mencionada discussão no Clube de Economia Política;* e no mesmo ano, Coteri, que também foi muito influenciado por Bailey, referiu-se lacónicamente a «alguns ricardianos, que ainda subsistem».** A Dissertação foi duramente tra tada, no entanto, por um articulista na Westminster Review de Janeiro de 1826 (que parece ter sido James Mili,*** embora o artigo tenha sido atribuido ora ao pai ora ao filho). Malthus replicou com alguma aspereza nas suas Definições de Economia Política, de 1827, onde se refere a Bailey acusando-o de aplicar a sua própria definição de valor «para julgar a veracidade de várias pro posições sugeridas por diversos escritores, que, segundo ele próprio diz, usaram o termo num sentido muito dife rente». O trabalho é prontamente rejeitado como «caracte risticamente calculado para retardar o progresso da ciência que deveria ter procurado promover».**** Malthus pros segue defendendo o uso de uma distinção entre valor rela tivo e valor absoluto, afirmando que «a comparação de um bem, quer com a massa dos outros bens, quer com o custo de produção elementar, é essencialmente distinta da com paração com um bem particular... é fundamental para a linguagem da economia política que sejam distingui dos por termos diferentes». A isto acrescenta que «nada é mais comum que o uso dos termos real, positivo e absoluto, em oposição a relativo, quando os primeiros ter mos se relacionam com algum objecto mais geral, parti cularmente com algo que é considerado um padrão».****"
* Diário de Mallet cit. em Political Economy Club: Centenary Volume, Vol. VI, p. 223. ** Cf. Cotterill, An Examination of the Doctrines of Value (Londres, 1831) p. 8. *** Cf. Rauner, Samuel Bailey, pp. 149-57. ** ** t . R. Malthus, Definitions m Political Economy (Londres, 1827), pp. 145, 201-2. ***** Ibid., pp. 148-9, 151. 132
Marx, o que não causa surpresa, referiu-se a esta obra como «não tendo valor positivo»; ao passo que Schumpe ter, não há muito tempo, a saudou como «uma obra prima de crítica».* Observe-se que como rejeição da Teoria de Ricardo Sobre o Valor, esta obra teve menos peso do que lhe atribuíram os seus admiradores contemporâneos e modernos, e que ficou aquém da sua finalidade. Definir va lor como valor relativo, ou valor de troca, não é per se uma refutação daqueles que, procurando encontrar uma base ou «causa» deste valor de troca, a procuram no custo de produção (ou, de facto, em qualquer outra coisa), e a definem por meio dum termo distintivo, seja ele valor «natural», «real» ou «absoluto». Neste ponto a réplica de Malthus foi, não há dúvida, inteiramente justa. O que tem de ser demonstrado é que nenhum conceito deste género pode ser sustentado coerentemente. Embora isto esteja implícito na Dissertação de Bailey, não se pode afirmar que esteja demonstrado. No que diz respeito a realismo, de modo algum é suficiente apresentar uma noção «metafísica» que deva ser considerada (tal o «valor natural» de Smith) como existente apenas em certas condições hipotéticas — a não ser que todas as conclusões a que se chegue por raciocínio dedutivo tenham de ser rejei tadas segundo esta orientação. II
O afastamento da teoria ricardiana do lucro, a favor de algo semelhante às teorias modernas, está associado principalmente aos nomes de Mountifort Longfield e Nassau Senior, em obras que foram publicadas com dois anos de intervalo uma da outra, em 1834 e 1836. Ambas são constituídas, total ou parcialmente, por
* Marx, Theorien über den Mehrwert, ed. Karl Kautsky (Berlim, 1923) Vol. I I I p. 146; Schumpeter, History, p. 486. 133
lições proferidas respectivamente em Dublin e Oxford. O primeiro, nas Lições de Economia Política, expôs algo aparentado com uma teoria da produtividade marginal dos lucros (os lucros deviam-se à produtividade adicional ex traída do trabalho quando o capital era investido em máquinas); o segundo, nos seus Elementos de Economia Política, propôs a sua conhecida teoria do lucro como recompensa duma abstinência, que implica uma interpre tação dualista do «custo real», determinante do valor, como constituído por trabalho mais abstinência. Schum peter diz de Longfield que «produziu um sistema que se teria mantido de pé em 1890» e «antecipou o essencial da teoria de Bõhm-Bawerk.* Senior merece, provavelmente, que o mencionemos em primeiro lugar, visto que teve realmente prioridade na ma téria; as suas lições foram proferidas antes de 1830. Nomeado para a nova cadeira de Economia, criada em Oxford em 1825, por um prazo de cinco anos, voltou a ocupá-la mais tarde, de 1847 a 1852. As lições que proferiu durante o primeiro período em que regeu a Cadeira constituíram a base dos seus Elemen- tos de Economia Política, publicados no mesmo ano que a segunda edição póstuma dos Princípios de Malthus. A partir de 1830, como membro do Partido Whig, foi o seu conselheiro nas questões económicas, e membro da conhecida Comissão da Lei dos Pobres de 1832-4. A sua conhecida «violenta oposição ao sindicalismo», como se lhe chamou,** prova que de modo nenhum desconhecia ou era indiferente às implicações sociais das suas teses.***
* Schumpeter, History, p. 465. ** Po r Sir Erich Roll, A History of Economic Thought (Londres, 1938) p. 351. ** * Pa ra a ulterior reacção de Senior à revolução de 1848 em França, e a importância que atribuiu, neste acontecimento, às ideias socialistas surgidas entre a classe trabalhadora, cf. Robbins, The Theory of Economic Policy in English Classical Political Economy (Londres, 1952) p. 136. 134
Acerca de Abstinência, postula apenas que ela deter mina e explica o Lucro. «O lucro é a remuneração duma abstinência, e esta o adiamento da satisfação», ao mesmo tempo que o capital «deve a este fenómeno a sua exis tência e conservação». Noutro ponto defende que Trabalho e Natureza são as únicas forças produtivas primárias, mas que «necessitam da cooperação dum terceiro Prin cípio Produtivo para completa eficiência. Ao Terceiro Princípio... daremos o nome de Abstinência», que «está na mesma relação para o Lucro que o Trabalho para os Salários».* No entanto, admite uma restrição, ao afirmar que o Capital tende constantemente a aproximar-se da Terra (e, logicamente também, o Lucro da Renda) por perder a sua mobilidade assim que é investido em bens duradouros. Do mesmo modo (apresentando um raciocínio diferente) «para todos os fins úteis, a distinção entre lucro e renda cessa assim que o capital proveniente dum dado rendimento se torna, quer por doação, quer por herança, propriedade duma pessoa a cuja abstinência e esforços não deve a sua criação. O rendimento que provém de uma doca ou molhe ou canal, é lucro nas mãos do construtor original. É a recom pensa da sua abstinência ao aplicar capital para fins de produção, em vez de obter com ele satisfações imediatas. Mas nas mãos do seu herdeiro, tem todos os atributos da renda. É para ele a dádiva da fortuna, e não o resultado dum sacrifício».** Talvez não seja de surpreender que esta restrição tenha tido tão pouco re levo entre aqueles que, acompanhando Sénior, «justi ficaram» o lucro e o juro em termos de abstinência
* An Outline of the Science of Political Economy (Londres, 1836) pp. 58-9. ** Ibid., p. 129. Prossegue declarando que se esse rendimento ou propriedade herdados fossem considerados como «a recompensa da abstinência do proprietário, por não vender a doca ou o canal, gas tando o seu preço para satisfação própria», então «a mesma obser vação pode aplicar-se a todas as espécies de propriedade transferivel»i e à maioria das rendas deveria chamar-se lucro. 135
(ou «adiamento», palavra menos sugestiva para designar a mesma coisa) e procuraram assimilar o lucro e os salários como pagamentos de «custos reais»; porque a restrição anula em grande parte essa justificação (ou explicação — chame-se-lhe o que se quiser) .* O comen tário de Edwin Cannan vem aqui a propósito: «Nas comu nidades civilizadas modernas e ricas, a propriedade her dada é muitíssimo mais importante que a propriedade adquirida pela poupança de pessoas vivas.»** Ao discutir os salários, Senior parte duma Teoria da Subsistência, defendendo que o salário depende «da importância do Fundo destinado ao sustento dos Tra * Schumpeter sugere ( History, p. 926) que a teoria da absti nência e a daquilo que ele classifica de «limitação» (o facto de a oferta de capital ser limitada em vez de indefinidamente expansível) são realmente idênticas. Mas na realidade não é este o caso, ou, pelo menos, não tem necessariamente de o ser. Afirmar que a reserva de capital tem uma dimensão limitada em qualquer momento, por causa desta ou daquela restrição da taxa de investimento, é uma coisa: não seria contraditório- com tratar-se o lucro como análogo à renda. Pelo contrário, «explicar» o lucro em termos de «custo real» só faz sentido se houver alguma conexão íntima e directa entre o incorrer neste «custo real» e o acréscimo de lucro como rendimento (uma explicação que não convence particular mente quando todas as quantidades de qualquer reserva de capital existente, menos as marginais, foram o resultado de decisões de poupança e investimento no passado). Não ter isto em conta, é seguramente um indício de preocupação exclusiva com a técnica formal da análise económica. BõhrrvBawerk admitiu que «Lassalle tem em grande parte bas tante razão para estar contra Senior, quando declara que a existên cia e a dimensão do juro de modo nenhum correspondem inevitavel mente à existência e ao momento em que se realiza um «saci-ifício de abstinência»; e atribuiu a popularidade da teoria de Senior «não tanto* ã sua superioridade como teoria, mas ao facto de ter surgido no momento próprio para apoiar o juro contra os severos ataques que lhe tinham sido feitos» ( Capital rnid Interest, trad. W. Smart (Londres, 1890) pp. 277, 286). ** History of Theories of Production anã Distribution, 2." ed. (Londres, 1903) p. 198. Afirmou anteriormente que Senior tinha sim plesmente considerado ponto assente que o lucro era a recompensa dum sacrifício «e não procura provar isso» (p. 197), ei mais adiante, afirma que a sua teoria «não nos leva realmente mais longe que a tese de que o capital é o resultado da poupança» (p. 214).. 136
balhadores, relativamente ao número de Trabalhadores a sustentar.* Até aqui, podemos classificá-lo como defen sor duma simples Doutrina de Fundo de Salários. Mas em seguida põe restrições ou amplia esta afirmação geral em diversos aspectos. (Simultaneamente, de facto, tem o cuidado de declarar incompatível com a sua própria teoria a ideia de «que a Taxa de Salários depende apenas da proporção entre o número de Trabalhadores e a quantidade de Capital no país».)** Quanto à im portância do Fundo, depende, em primeiro lugar «da produ tividade do trabalho na produção directa ou indirecta dos bens utilizados pelo trabalhador», e, em segundo lugar, «do número de pessoas directa ou indirectamente empre gadas na produção de coisas para o uso dos trabalhadores, relativamente ao número total de famílias trabalhado ras».*** Até aqui pode parecer que se mantém bastante próximo de Ricardo, que, conforme vimos, tratou os lucros como sendo determinados pela produtividade do trabalho na produção de bens-salário em relação ao nível dos salários reais, ou, alternativamente, pela proporção da força de trabalho necessária para produzir bens-salário. É signifi cativo, contudo, que Sénior visse essa proporção como de terminando, não os lucros em relação aos salários, mas, pelo contrário, a procura de trabalho em termos reais. Por outro lado, ao explicar como é determinada a sua segunda proporção, exprimiu-a inversamente à de Ricardo: é deter minada pelas «Causas que Desviam Trabalho da Produção de Bens para o uso das Famílias Trabalhadoras»: isto é, «I Renda. II Tributação. III Lucro». Por outras palavras, em vez de 03 Lucros serem determinados «pelo que sobeja dos salários», conforme De Quincey afirmou**** (tendo a produtividade em conta, por influenciar a importância des-
* Senior, Outline of Political Economy, p. 154. ** Ibid., p. 154. Ver a este respeito Marian Bowley, Nassau Senior and Classical Economics (Londres, 1937) pp. 197-200. *** Senior, Outline of Political Economy, p. 174. **** Git. acima, p&g-inas 70, 79. 13T
tas «sobras»), o Lucro é tratado (juntamente com a Renda) como antecipadamente determinado, e os Salários, ao que parece, como o resíduo depois de feitas estas deduções pré vias.* Isto está na tradição de Adam Smith, num sentido; com a diferença pouco importante de que o Lucro é expli cado (embora não de maneira completamente clara) pela Abstinência. Respondendo à interrogação sobre o que determina a taxa de lucro, introduz a noção de «período médio de adiantamento de capital» — o tempo durante o qual os salários têm de ser adiantados; e como explicação para as diferenças internacionais de salários, apresenta a interessante sugestão (em Three Lectures on the Cost of Obtaining Money, 1830) de que estas são devidas a diferen ças de valor, em termos de metais preciosos, de bens expor táveis produzíveis por um trabalhador médio durante um período dado, depois de considerada a dedução do lucro, segundo a taxa de lucro e o «período de adiantamento». Quanto ao Valor, Senior parece ter seguido em grande parte J.-B. Say e Lauderdale ao tratá-lo como dependente da Utilidade, condicionada por uma limitação de oferta e transferibilidade; acrescentando que essa limitação era «de longe a mais importante». « A utilidade», escreve, «não indica nenhuma qualidade intrínseca às coisas a que chamamos úteis, exprime apenas as suas relações com os trabalhos e prazeres da humanidade.» Alguns saudaram-no como antecipador da Lei da Utilidade Decres cente, pela sua afirmação de que «não só há limites para o prazer que os bens de qualquer tipo podem proporcionar, como também o prazer diminui, numa proporção rapida mente crescente, muito antes desses limites;... dois artigos do mesmo tipo raramente proporcionam duas vezes o mesmo prazer que um».** Há também quem veja um vislumbre de modernismo na sua afirmação de que, en * O professor M. Bowley diz a respeito da tentativa de Senior para determinar salários residualmente, que esta «não teve êxito» (Nassau Senior, p. 185). ** Senior, Outline of Poíiticál Economy, p. 11. 138
quanto «os nossos desejos buscam não tanto a quantidade como a diversidade», o desejo de diversidade «é pouco importante em comparação com o desejo de qualidade».* Mountifort Longfield foi um Juiz irlandês, nomeado em 1932 para a Cadeira de Economia Política no Colégio da Trindade, em Dublim, pelo arcebispo Whately. As lições em questão foram proferidas em 1833 e publicadas no ano segui seguinte nte.. No seu Prefá Pr efácio cio (p. vn) vn ) exprime a sua sua preo cupação em provar «como é impossível regular salários em geral, quer através de acordo com os trabalhadores, quer por texto legislativo»; de modo que é evidente o seu interesse, senão preocupação, com a nascente «questão Trabalhista». Trabal hista». Com Como é igualm igualmen ente te clara a sua sua rejeição rejeiçã o das ideias de Ricardo, pelo menos no que respeita à teoria dos lucros. Abre a sua discussão sobre os Lucros, atacando a afirmação de Ricardo de que a taxa de lucros só pode ser incluída no âmbito da baixa dos rendimentos da terra, que, elevando o custo de subsistência, faz subir os Salários. Começa Começa por considerar o capital capit al investi i nvestido do com como capital fix fi x o em máquinas ou ferramentas aperfeiçoadas como auxi liar do trabalho. O lucro do capital primeiramente inves tido desta forma, tenderá a ser regulado pela «quantia que pode ser paga pela utilização de qualquer máquina» e isto «pela sua eficiência no auxílio às operações do trabalhador». Isto estabelecerá aquilo a que ele chama o «limite máximo» do lucro. Mas «o seu limite inferior é determinado pela eficiência do capital que, sem impru dência, é aplicado da maneira menos eficiente», a cujo nível a concorrência tenderá a reduzir todo o lucro do capital fixo.** Daqui conclui que os aumentos de capital, per se, se, «tendem a diminuir a taxa de lucro», mesmo «sem um. aumento da população», e a fazer subir os preços dos cereais. Os lucros do capital circulante «têm de ser regulados regulados pelos pelos lucro lucross do do capital capital fi f i x o » . * * * A sua * Ibiã., pp. 11-12. ** M. Longfield, Lectures on Political Economy (Dublim, 1834), p. 188. * * * Ibid., p. 198. 139 13 9
noção de «eficiência marginal» do lucro (tal como é, essen cialmente) está resumida na afirmação seguinte: «Em qualquer caso, os lucros do capital serão sempre regulados por aquela parte que for forçoso aplicar com a menor eficiência, no auxílio ao trabalho».* É evidente que temos aqui um número bastante grande de esboços preliminares da teoria económica do fim do século. Quanto aos «salários do trabalhador», estes «depen dem do valor do seu trabalho e não das suas necessidades». Tal como como Sen Senior ior,, defen defende de que os salários salários reais «depe «depend ndem em inteiramente da taxa de lucros e da eficiência do trabalho na produção dos artigos em que os salários do trabalho são geralmente ga gast stos os».* ».*** O notável corolário deduzi deduzido do con con siste na afirmação reconfortante de que «a quantidade de lucros e salários está confinada a limites que o poder da legislatura não pode ampliar, por qualquer exercício directo da sua autoridade. Neste ponto, a legislação e o acordo podem causar prejuízos, mas não podem praticar o bem».*** E na sua décima-primeira e última lição, condensa condensa o resultado resultado dos seu seuss estudo estudoss (que (que «n «não ão serão, assim o espero, desagradáveis para os espíritos benevo lentes») na afirmação acerca das leis económicas que citámos citámos no Capítu Capítulo lo I . * * * * A isto acres acresce centa nta a obse obser r vação: «Descobriremos que todas as causas que enfra quecem qualquer fonte de riqueza têm origem no vício ou na irreflexão.»***** As leis da produção e da reparti ção, aparentemente, não são apenas feitas de matéria, são também de origem divina. No que se refere ao Valor, Longfield prestou igual mente mais atenção à utilidade do que tinha sido cos tume, pelo menos em Inglaterra. «O valor de qualquer artigo depende da procura e da oferta e... indirectamente, * Ibid., p. 193. ** Ibid., pp. 206, 212. * * * Ibid. p. 159. *» ** y er acima acima,, página 36n. ***** 140
Ibid., pp. 222-3.
o custo de produção de qualquer bem, assim como a sua utilidade tem efeito sobre o seu preço.»* Fala de «intensi dades de procura» variáveis, e conclui que «o preço de mer cado é regulado pela procura que, sendo a de menor inten sidade, mesmo assim conduz a compras reais. Se a oferta existente for mais do que suficiente para satisfazer toda a procura igual ou superior a um certo grau de intensidade, os preços descerão, para se adaptarem a uma procura menos intensa.»** Isto é certamente um prenúncio duma L e i da da Utilida Util idade de Decrescente Decrescente Jevoniana. Jevoniana. , O sucessor de Sénior, após a primeira passagem deste pela Cadeira de Economia Política em Oxford, foi Richard Whately, a quem por sua vez sucedeu W. F. Lloyd, em 1831. Tanto Whately como Lloyd publicaram as suas lições (essa publicação, publicação, aliás, era er a uma uma das condições condições da ocupação da Cadeira); o primeiro em 1831, com o título Lições Preliminares de Economia Política, o segundo em 1834, intitulando-as Uma Lição sobre a Noção de Valor. As opiniões de ambos foram análogas às de Sénior e às do seu colega de Dublim; e ambos são geralmente classificados entre o grupo dos economistas da reacção anti-ricardiana, que antecipou algumas das principais ideias da «Revolução Jevoniana» que se produziria qua renta anos mais tarde. Whately, cujas ideias gerais podem ter influenciado Sénior***, sugeriu o termo «Cataláctica» como nome mais apropriado para a Economia Política, acentuando o facto de esta se ocupar principalmente com o mecanismo da Troca (a «esfera de circulação» de Marx, que este considerou como pertencendo mais ao «fenómeno» que à «essência»). W. F. Lloyd foi sem dúvida o mais importante dos dois como descobridor do princípi prin cípio o da da utilidade margina mar ginall (o papel que muitos lhe atribuíram): considerou o valor como «sig «s ign n ifica ifi cafn fndo do]] indubitavelmen indubitavelmente te um um sentim sentimento ento da men mente te,,
* Ibid., p. 110. ** Ibid., p. 113. * * * Cf. Schumpeter, Economic Analysis, p. 484. 141
que se apresenta sempre na margem de separação entre necessidades satisfeitas e não satisfeitas», e explicou que «um aumento de quantidade acabará por esgotar, ou sa tisfazer até ao máximo, a procura de qualquer objecto de desejo específico».* Outros autores pertencentes a este período, embora não a este grupo, grupo, mostrara mos traram m ainda ainda mais claramente (con (co n forme o Profess Prof essor or Meek fez notar) no tar) grande pre preoc ocup upaç ação ão com as implicações sociais da doutrina ricardiana à qual se opunham.** Samuel Read referiu-se energicamente àquilo que ele considerava implícito na teoria de Ricardo (que «o trabalho trabalho é a únic única a fonte font e de de riqueza rique za») ») como como «um erro prejudicial e fundamental» no âmago do seu sistema.*** Poulett Scrope, autor dos Princípios de Economia Política de 1833, referiu-se às obras da Escola Ricardiana (na qual incluía incluía Malthus Malthus e W hate ha tely ly)) como como «não «nã o proporcio nando qualquer resposta capaz de satisfazer o espírito de um homem com uma educação elementar, vulgar senso comum e honestidade, que nelas procure alguma justi ficação para a imensa disparidade de fortunas e circuns tâncias que saltam à vista por todos os lados. Pelo con trário, estas obras, segundo me parece, contêm muitas contradições e erros óbvios e inculcam muitos princípios falsos e perniciosos».**** Noutro ponto da mesma obra
* A Lecture on the Notion of Value (Londres, 1834), pp. 9, 16. ** Of. R. L. Meek, Studies in the Labour Theory of Value (Londres, 1956) pp. 124-5: «Alguns dos adversários de Ricardo (Scrope, Read e Longfield, por exemplo) parecem ter compreendido bastante bem aquilo que estavam a fazer: o que principalmente per igosa sa das doutrinas de Ricardo*, os preocupava era a natureza perigo mais do que aquilo que eles julgavam ser a sua falsidade.» Cf. também: « A sua sua orientação fundamental... foi fo i determinada determinada pela convicção de que aquilo que era socialmente perigoso não poderia ser verdadeiro». (Meek Economics and Ideology and Other Essays, p. 71). ** * Samuel Samuel Read, An Inquiry into the Natural Grounds of Right to Vendible Property or Wealth (Edimburgo, 1829), p. XXIX. *** * Prefácio Prefácio a Political Economy for Plain People, cit. Meek, Economics and Ideology, p. 71. 142 14 2
(Poli (P olitic tica a l Economy Economy fo r Plain People People) ) fala fa la de uma uma «errónea «erróne a hostilidade para eom o Capital» e do «Direito ao Lucro sobre o Capital» mencionando Hodgskin e a sua «explora ção dos trabalhadores».* Nos seus Princípios, menciona especificamente aqueles que «bradam contra o capital como o veneno da sociedade, e contra o facto de os pro priet pr ietári ários os do capital capital cobrarem o juro juro deste, deste, como como um um abu abuso so,, uma uma injustiça, uma uma exploração exploraç ão dos dos trabalha traba lhadore dores»; s»; e acusa a teoria do trabalho de não reconhecer o lucro como compensação pelo «tempo durante o qual o proprietário do capital permitiu que este estivesse aplicado».** Não causa surpresa ele ter apresentado a noção de absti nência (independentemente de Senior, ao que que parece) parece ) como explicação explicação para a existência existência do do lucro.*** lucr o.*** A caracterização de Marx, ao falar de «má consciência e perverso desígnio de apologética», terá sido tão exagerada como estas? u i
O grupo de economistas de que temos estado a falar tem sido algumas vezes apresentado, não como demolidor do ricardianismo ricardi anismo com como sistema (ou desejoso disso), diss o), mas como dedicado, no seu conjunto, à tarefa de conciliar e «ap «aperf erfeiç eiçoa oar» r» — aperfeiçoar os defeitos e unilateraliunilateralidades da doutrina ricardiana, bastante à maneira como mais tarde, e com mais esforço, Marshall afirmou fazer. Deste modo Senior, conforme dissemos, «procurou conci liar Say eRic eR ica a rdo» rd o».* .*** **** Falan Falando do de de Longfield, Schu Schum mpete peterr afirmou com a maior cautela que este «não deixou de manter contacto com os ensinamentos ricardianos» e teve
* Political Economy for Plain People (Londres, 1833); (2.“ ed., 1873) pp. 103, 105. ** Principles of Political Economy (Londres, 1833), p. 150. * * * Schumpeter Schumpeter fala fa la mesmo mesmo da «Teo «T eo ria ri a do do Juro Juro por meio de uma uma abstinência de Scrope-Senior» ( History of Economic Analysis, p. 659). * * ** Erich Roll, Roll, History of Economic Thought, p. 341. 143
ainda o cuidado de atribuir a estes «uma análise bastante perfeita, acessível e sem qualquer ruptura violenta».* É sem dúvida verdade que as ideias novas, quando apre sentadas pela primeira vez, aparecem muitas vezes (talvez mais do que aquelas aquelas que que não aparecem) na form for ma de sim ples extensões duma estrutura conceptual existente, ou mesmo como tentativas para conciliar esta estrutura com noções ou observações anteriormente consideradas con trad tr adit itór ória iass (como (como suced sucedeu eu com os epiciclos epiciclos e o sistema ptolomaico). Só ulteriormente as novas ideias ou obser vações encontrarão expressão mais convincente, como elementos ou relações fundamentais duma estrutura con ceptual completamente nova, que desafia a antiga na sua integralidade. Assim sucedeu com o novo sistema teórico do período posterior a 1870, associado neste país ao nome de Jevons. No entanto, interpretar retrospectivamente as ideias anteriores de um Bailey, Sénior ou Longfield sobre a utilidade ou a produtividade margi nal, ainda imperfeitas e a necessitar de formulação mais geral, como simples tentativas para aperfeiçoar ou continuar o ricardianismo, conciliando-o com os seus crí ticos, é ser muito menos que justo para com a sua novidade e o seu papel crítico e eventualmente disruptivo. Poucas dúvidas devem restar, perante as provas existentes, de que o grupo associado a Sénior (incluindo Longfield) se afastou muito conscientemente das doutrinas mais características de Ricardo, e especialmente daquelas (como a sua teoria do lucro e o relevo que atribui à relação antagónica entre salários e lucro e entre lucro e renda) que consideravam socialmente perigosas e portanto inde fensáveis. Mesmo que limitemos a nossa atenção, tal como Schumpeter, ao esquema analítico das doutrinas, é óbvio que houve, de modo geral, duas tradições completamente dis tintas e antagónicas no pensamento económico do século dezanove, no que se refere à ordem e modo de determina
*
Schumpeter, History of Economic Analysis, p. 464.
144
ção de fenómenos de troca e distribuição de rendimento. Uma destas tradições, inspirada em Adam Smith, tratou o valor de qualquer bem como determinado pela soma das várias despesas ou custos envolvidos na sua produção ; des pesas estas que dependem dos pagamentos necessários de térra, capital e trabalho, e das respectivas quantida des exigidas pela produção do bem em questão. A deter minação destes pagamentos necessários era incluida numa estrutura geral de oferta e procura, e em Adam Smith era tratada como o problema da taxa geral de lucros, taxa de salários e renda da térra, que, conjuntamente, constituíam as «partes componentes do preço». Diversos autores consideraram uma ou outra destas componentes como «residual» no conjunto global, no sentido de que rece bia o que restava do produto total após a realização de certas partilhas pré-determinadas. Vimos que para Adam Smith o rendimento da propriedade (isto é, lucro e renda) aparecia como uma dedução prévia, num contexto que sugeria moderadamente uma teoria da explo ração (pelo menos muitos assim pensaram, incluindo Bortkievicz). Isto parecia implicar uma explicação dos salários como resíduo; embora este estivesse sujeito a um mínimo ( «há uma certa taxa abaixo da qual parece impos sível reduzir, durante um tempo considerável, os salários correntes mesmo das mais baixas espécies de trabalho»); a possibilidade duma subida acima deste mínimo era (tal vez um pouco contraditoriamente) condicionada por um «aumento dos fundos destinados ao pagamento de salá rios»; o que dava origem a «uma concorrência entre patrões, que faziam ofertas uns contra os outros, a fim de angariarem trabalhadores, e assim desfaziam voluntaria mente a combinação natural dos patrões para não subirem os salários.»* Foi este tipo de concepção, esquematizado por Smith de uma forma mais leve e sugestiva que rigorosa, que os economistas do grupo Senior-Longfield, durante as décadas de 1820 e 1830, procuraram desenvolver naquilo que viria a * tu
Adam Smith, Wealth of Nations, pp. 70, 71. 145
ser conhecido como Teoria do Valor do Custo de Produção. Deste modo passou por John Stuart Mili (embora incon gruentemente, sob a influência de Ricardo) até Alfred Marshall; e deste modo foi posteriormente associada a uma teoria do custo real concebida subjectivamente (fa zendo lembrar «a faina e fadiga» de Adam Smith) e conse quentemente susceptível de ser utilizada como fundamento duma teoria do lucro, para além duma teoria dos salarios. (Havia muito que Coterill comentara, bem simplesmente: «há dois ingredientes no custo de produção, salários e trabalho... e lucros do capital».)* A renda da térra conti nua a ser, nesta perspectiva, visto não haver custo real, um excedente residual, embora concebido subjectivamente, cor respondendo á utilização das dádivas da natureza (para além das anteriores possibilidades de utilização alternati vas) . Tinha-se extraído assim o ferrão à ideia de o lucro ser uma «dedução prévia» do produto do trabalho, uma vez que o capital e o trabalho foram colocados ao mesmo nivel como factores de produção com responsabilidade conjunta, quan do não co-igual, pelo produto. Por outro lado, a noção global de certas formas de rendimento como «deduções prévias» e outras (ou outra) como «resíduos», perdeu importância, tornou-se até sem significado, dada a intro dução subsequente da noção de «determinação simul tânea»; sendo esta aplicada tanto à atribuição do preço de diversos factores produtivos, como aos respecti vos papéis das condições de oferta e das condições de procura (com as diferenças estabelecidas por Marshall referentes à questão do tempo, com a sua conhecida distinção entre a hipótese de curto prazo ou de longo prazo, em que pode haver alterações de oferta adaptáveis). Ê só nas últimas e mais sofisticadas versões na linha da tradição da oferta-procura-e-partes-componentes-do-preço, especialmente naquelas que põem principal mente em relevo as influências da procura, que encon tramos uma consideração bastante essencial, que já ante-
* 146
Cotterill, Doctrines of Value, p. 22.
riormente focámos e à qual voltaremos mais tarde. Consiste ela em que a estrutura teórica de determinação assenta in teiramente no processo de troca (ou naquilo que hoje cor rentemente se designa por processo de formação dos preços); preços do produto e repartição do rendimento são assimilados e integrados num sistema de determinação mútua ou simultânea de preços de produto e preços de factor em inter-acção. Isto foi especialmente verdadeiro, conforme veremos, com a Escola Austríaca, para a qual a noção de «custo real» é substituída por uma hipótese de ofertas ãuãas de diversos factores, com uma consequente determinação da procura de todos os preços (e, a pro pósito, a noção de excedente, aplicada tanto à renda como ao lucro, perde neste contexto todo o significado). Isto não foi apenas uma peculiaridade do tratamento austríaco: faz parte do sistema de Walras e dos que dele derivaram. Mesmo que (como com Marshall) se retenha o custo real subjectivo como uma determinante, na margem, das ofertas de capital e trabalho, dá-se inevitavelmente maior importância às condições de procura (e suas determinantes subjectivas), relativamente às quais a Teoria do Custo de Produção passa inevita velmente para segundo plano. O único modo como as con dições de produção interferem neste processo essencial mente de troca ou de mercado, é sob a forma de «coefi cientes técnicos», que definem as possibilidades de com binação de factores, e aquilo a que hoje correntemente se chama uma «função de produção» que estabelece a gama de coeficientes técnicos alternativos. Condições e relações sociais, ou instituições como o tipo de propriedade, estão completamente ausentes;* sendo efectivamente con sideradas como destituídas de qualquer papel determinante e irrelevantes para o resultado. Isto significa, naturalmente,
* Poderá admitir-se que estas influenciem a repartição do rendimento pessoal¿ por contraste com a distribuição entre factores; mas se tal suceder, haverá o risco (como veremos adiante) de intro duzir uma circularidade prejudicial no sistema 'de repartição regulado pela procura. 147
que um conceito como «exploração» ou mais-valia (ou mesmo algo mais moderado, que implique um antagonismo de rendimento a longo prazo de tipo ricardiano) não tem lugar nem sentido, visto que a sua validade assenta em algo que se refere a relações de preço articuladas com alguma característica da estrutura institucional (e se nada a respeito das relações de preço normais depende do fundamento social ou institucional, estas relações de preço só podem reflectir as necessidades do problema económico per se, e. g. o esquema das raretés de Walras, que se manterão idênticas seja qual for o sistema institu cional, uma vez que exista livre troca). A intervenção do monopólio é, evidentemente, outra questão (e este é um as pecto da situação de mercado); e é característico do pen samento «moderno» que o termo «exploração», quando chega a ser utilizado, seja aplicado num sentido completa mente diferente, para qualificar algum desvio de relações de preço «normais», devido à existência de um elemento monopolista ou «imperfeição» de mercado.* A segunda grande linha de tradição também partiu de Smith, embora na forma quase hegeliana de cer tas doutrinas ou teses de Smith invertidas (e por tanto convertidas) por Ricardo. Primeiro, a peculiar teoria do valor de Smith (com a sua distinção polarizada entre «o primitivo e rude estado» e a sociedade capitalista desenvolvida) foi remodelada por Ricardo, a fim de trans formar as condições de produção, e em particular as quan tidades de trabalho empregues na produção, na determi nante básica tanto na sociedade capitalista como na socie dade pré-capitalista. Deste modo rejeitou a Teoria das Com ponentes Aditivas, e, por implicação, rejeitou igualmente a possibilidade de tratar a esfera de relações de troca como «sistema isolado», e fundamentou firmemente a explicação destas relações de troca em condições e circunstâncias
* Cf. o uso do termo por Pigou, para designar o pagamento de trabalhadores por menos que o equivalente do seu produto líquido marginal (A. C. Pigou, The Economics of Welfare (Londres, 1920) p. 511 et seq.). 148
de produção. Em segundo lugar, fosse qual fosse a razão que o levou a considerar a repartição como o problema central, o seu instinto, ao fazê-lo, foi indubitavelmente correcto, e o seu modo de tratamento da distribuição fundamental. Viu que esta tinha de ser explicada em termos que lhe são característicos, e não como resultado de relações de troca oferta-procura, conforme Smith fizera. Esta teoria, de qualquer modo, foi incapaz de pro porcionar resultados precisos, na forma um tanto vaga como Malthus e Smith a formularam. Por outro lado, para Ricardo, uma resposta ao problema da repartição era uma condição necessária e prévia para calcular o efeito duma alteração de salários sobre os preços (tanto gerais como individuais): por outras palavras, para cal cular as «modificações» dos preços relativos provocadas por diferenças de condições técnicas de produção com uma influência particular sobre a utilização do capital fixo. (Conforme notámos acima, o «efeito curioso» de um au mento de salários sobre os preços de bens produzidos com uma quantidade desproporcionada de capital fixo foi ino vação sua, e tratada por ele como reforço da sua própria posição, e não como concessão à de Adam Smith.) No que diz respeito à repartição, apenas é possível constatar que Ricardo ampliou e desenvolveu a curta secção consagrada a este assunto na Riqueza das Nações. Mas esta ampliação continha um elemento adicional fun damental: a introdução, implícita senão expressa, de um dado social ou institucional nas condições socio-económicas que definem o nível de salários reais. Em Ricardo, este aspecto não foi definido cuidadosa ou completamente: pareceu basear-se numa ideia malthusiana de aumento da população, embora tivéssemos observado que ele teve o cuidado de incluir o elemento «hábito e cos tumes» na sua noção de necessidades de subsistência num certo momento ou em qualquer país. Mas foi esta forma de apresentar a repartição e as suas determinantes que abriu a porta pela qual Marx introduziu na teoria económica essas fundamentais «relações sociais de pro dução», e, em particular, o aparecimento historicamente condicionado dum proletariado, como fulcro da sua teoria 149
da mais-valia. Uma das principais consequências residiu (mais explicitamente, talvez, em Ricardo que em Marx) em que, sendo o nível de salários reais tomado como estabe lecido deste modo, as condições de produção na indústria ou indústrias produtoras de bens essenciais para assala riados desempenhavam um papel crucial na determinação da proporção entre lucros ou excedentes e salários, e por tanto (dadas as despesas de trabalho necessárias em várias linhas de produção) dos valores de troca relativos. A pro porção fundamental era a do produto de um dia de traba lho para os salários de um dia de trabalho, ou, a uma escala global, a fracção da força de trabalho total necessária para produzir bens de subsistência, ou de primeira necessidade, destinada a essa força de trabalho. Foi um economista russo pouco conhecido, W. K. Dmitriev, no final do século, quem parece ter sido o primeiro a apreciar e formular concisamente a novidade distintiva da estrutura analítica e modo de tratamento do problema por Ricardo—-algo que tinha ficado apa gado e esquecido entre as revisões e reinterpretações que entretanto tinha sofrido. Respondendo a uma crítica a que nos referiremos adiante,* Dmitriev mostrou que a essência da teoria de Ricardo podia ser esquematizada na equação seguinte aplicada a um caso simplificado de dois produtos, na qual um deles, A, é imput da sua pró pria produção e da de B. Dmitriev escreveu-a deste modo:
N ax (1 + r ) % A
N
B
a
A
ax (1 + r)* a
B
na qual Y é a proporção de preço de A para B; o salário-real por unidade de tempo de trabalho é a unidades de bem-salário A ; o preço por unidade de A é a?a ,
*
Ver Capítulo 7.
150
N a e N b são o número de unidades de trabalho neces sárias para produzir respectivamente uma unidade de A e B; r é a taxa de lucro e t o tempo durante o qual o trabalho é adiantado (ou período de produção). Isto, logicamente, assemelha-se muito ao caso ricardiano da agricultura, que produz cereal como bem-salário e pro dutos manufacturados. Dmitriev mostra seguidamente que se pode derivar r directamente de N e t na indústria de bem-salário, desde que se conheça a (o salário real). N, t e a são parte dos dados na equação acima mencio nada; N e t dependem das condições técnicas de produção de A e não é necessário determinar primeiro o preço de A, antes de se poder derivar r. Com esta equação simples, basta determinar, no caso de dois produtos, a proporção de preço de A para B, dados os N e os t e a * Foi contra todo este modo de abordar uma teoria do lucro que a escola Senior-Longfield reagiu tão forte mente — não apenas contra ele com instrumento analítico inadequado (o qual, tal como muitos outros críticos de Ricardo, provavelmente não compreenderam inteira mente), mas contra as suas mais amplas implicações e corolários. Reagindo desta forma, seriam levados quase ine vitavelmente (e acabariam por se lhe juntar) na onda da outra tradição, antagonista, que vinha de Smith, reforçan do-a desse modo. Se de facto for justo considerá-los «reno
* Essais Bconomiques, V. K. Dmitriev (trad. Bernard Joly, Paris, 1968) p. 47 e cf. pp. 38, 45. Cf. também,, sobre Dmitriev e a teoria do lucro ricardiana, P. Garegnani, II Capitale nelle teorie ãella Distribuzione (Milão, Í960) pp. 3-34, 54-9. O próprio Dmitriev observa que se tem frequentemente atribuído «importância exa gerada» à afirmação de Ricardo a respeito da relação inversa entre lucro e salários, quando «o principal mérito da teoria do lucro de Ricardo não está nisto, mas sim em estabelecer as leis que determinam o nível absoluto de lucro» (op. cit., p. 45n). Foi, no entanto, a primeira afirmação que os anti-ricardianos conside raram socialmente perturbadora. Pode notar-se, a propósito, que na equação acima, a inclusão de xa é rigorosamente desnecessária no caso de dois produtos, visto que as quantidades em questão podem ser expressas em unidades físicas do bem-salário A. 151
vadores» ou «conciliadores», esse termo deve realmente re ferir-se ao seu papel no desenvolvimento desta tradição smithiana, e não do ramo ricardiano. Foi o que veio a suce der, conforme veremos, com J. S. Mill, apesar das inibições impostas por piedade filial; de modo que a sua eventual influência foi definir e desenvolver, não a tradição ricardiana, mas sim a corrente antagonista que eventualmente a suplantou; isto foi ocultado na altura (e mais tarde) pela sua insistência em que estava a defender e renovar a dou trina de Ricardo. Esta última reapareceria, quase no fim do período de Mill, em Marx, que a adoptou e desenvolveu à sua própria maneira dialéctica. E pouco surpreende a facto de ulteriormente ter sobrevivido naquilo a que Keynes cha mou «o mundo subterrâneo dos heréticos», e de ter sido menosprezada pela élite académica, como infeliz progeni tora de Marx — para só reaparecer na década de 1960, na forma daquilo a que se chamou «neo-Ricardianismo», um movimento minoritário associado a uma crítica da dou trina ortodoxa. Talvez tenha aqui lugar uma observação final, quase entre parêntesis, aludindo a outro problema que tem muitas vezes obscurecido a verdadeira natureza da doutrina de Ricardo. Deve estar razoavelmente esclarecido, com o que expusémos, que um sistema que determina a re partição em termos de troca e preços resultantes, tem de ser constituído, de uma maneira ou outra, e considerando a possibilidade de diversos graus de importância, em termos de oferta e procura;* mas au contraire no sistema ricar diano, que explica a troca em termos de repartição e esta em termos de produtividade e condições de pro dução numa indústria ou sector de indústria (dado o salário real), não têm lugar as relações de oferta e procura — pelo menos, até alcançar movimentos em preços relativos, e em particular dos preços de mercado smithianos. Em diversas ocasiões, Ricardo, em contro * Escusado será dizer que «escassez» é essencialmente uma noção de oferta-procura. 152
vérsia com a posição de Smith e Malthus, criticou e rejeitou explicações em termos de «oferta e procura»; e por ter tomado esta atitude, Ricardo foi por sua vez criticado por incompreensão grosseira do facto de que para cortar são precisas as duas metades da «tesoura» de Marshall. Schumpeter, por exemplo, escreveu o se guinte: «Assim, para Ricardo, a questão principal era a quantidade de trabalho versus oferta e procura... O verdadeiro inimigo era a teoria da oferta e da procura, que 'se tornou quase um axioma em economia política, e tem sido a fonte de muito erro’ (Cap. 30, terceiro parágrafo)... Isto implica, evidentemente, que Ricardo não se apercebia da natureza e do lugar lógico, em teoria económica, do aparelho de oferta e procura, e que aquela se lhe afigurou uma teoria do valor distinta e contrária à sua. Isto honra-o pouco como teórico. Porque logica mente o seu próprio teorema de valores de equilíbrio só pode ser sustentado, na medida em que é possível sê-lo, em virtude da acção recíproca da oferta e da procura.»* Ê uma estranha acusação, somente explicável por uma incompreensão fundamental (e de modo nenhum iné dita). Ricardo não teria negado, evidentemente (mais do que Marx,** que Schumpeter incui igualmente na sua crí tica) , que no contexto do preço de mercado e das suas varia ções e ajustamentos as alterações das relações de oferta e procura actuam como causas próximas dos movimentos de preços. O que Ricardo tinha em mente era o uso da noção de relações de oferta e procura por Smith, no seu sistema como um todo — como veículo e estrutura de determi nação. Ricardo utilizava-a como uma etiqueta para a teoria antagonista do valor e repartição, a qual ele combatia. Significativamente, Malthus, por sua
* Schumpeter, Economic Analysis 2 pp. 600-1. ** Fala-se bastante de oferta e procura no capítulo sobre «Preços de Mercado e Valores de Mercado» no Vol. II I de O Capital, e também no Capítulo 3 de WageLabour anã Capital, que se refere a «concorrência entre compradores» e «concorrência entre vende dores» e ao efeito destes, separadamente, sobre o preço. 153
vez, usou-a como frase genérica em oposição ao sistema de Ricardo. Escreveu nos seus Princípios que «os dois sistemas, um dos quais explica os preços da grande massa dos bens pelo custo da sua produção, e o outro explica os preços de todos os bens, em todas as circunstancias, permanentes e temporárias, pela relação entre oferta e procura, embora tenham necessariamente entre si um grande número de afinidades têm uma origem essencialmente diferente e devem, portanto, ser cui dadosamente diferenciados». Concluía afirmando a sua convicção de «que o grande princípio da procura e da oferta entra em acção para determinar aquilo a que Adam Smith chama preços naturais, e bem assim os preços de mercado».* A este respeito, o comentário de Ricardo foi: «O autor esquece a definição de preço natural de Adam Smith, ou não diria que a procura e a oferta podem determinar o preço natural. O preço natural é apenas outro nome para custo de produção. Quando qualquer bem é vendido pelo preço que retribui os salários do tra balho consumido com ele, e também proporciona renda e lucro à taxa corrente no momento, Adam Smith declara que aquele está ao seu preço natural. Ora estes encargos manter-se-iam iguais, quer os bens tivessem muita ou pouca procura, quer se vendessem a um preço de mercado alto ou baixo.»** Não confirmará este comen tário de Ricardo que ele considerava os salários e o lucro como determinados independentemente e antes do preço de mercado ou mesmo do valor natural?
* Malthus, Principles of Politioal Economy (Londres, 1820), pp. 73, 75. ** «Notas sobre Malthus», WorTcs and Correspondence of Ricardo, ed. Sraffa, Vol. II* p. 46. Acrescenta que «o preço de mercado dependerá da oferta e da procura» e «a oferta será finalmente determinada pelo... custo de produção» (ibid., p. 47). Cf. também o Capítulo XXX dos seus Principles (.ibid., Vol. I, p. 382), que se intitula «Sobre a Influência da Procura e da Oferta nos Preços». 154
5. JOHN STUART M ILL I
à primeira vista, é muito difícil colocar J. S. Mili (1806-73) numa hierarquia de descendência, especial mente em relação aos dois ramos ou tradições de que falámos no último capítulo. Num aspecto, Mill foi um descendente em linha recta de Ricardo, e, de acordo com as suas próprias afirmações e convicções, foi ao mesmo tempo defensor da doutrina daquele economista contra os seus críticos, e seu colaborador. Sem dúvida que a certa altura foi considerado o representante da ortodoxia ricardiana; e entre 1848 e Marshall, os seus Principies of Politi cal Economy with some of their applications to social phi losophy tiveram um lugar único como manual so bre o assunto. Bagehot aludiu à sua «influência mo nárquica» sobre os seus contemporâneos, e afirmou que, a partir de então, todos os estudantes «passaram a ver a questão com os olhos de M ill»; acrescentando que «viam em Ricardo e Adam Smith aquilo que ele lhes dizia que vissem».* Sendo filho de James Mill, amigo íntimo de Ricardo — por cuja instigação este tinha escrito os seus Princípios de 1817 e entrado para o Parlamento — John Stuart, quando jovem, conhecera Ricardo pessoal
* Num artigo a propósito da sua morte, publicado em The Eco- nomist, em 17 de Maio de 1873 (N .° 1551) pp. 588-9. 155
mente, visitara Gatcomb Park e dera passeios com ele; por outro lado, estudara Economia Política com o pai (quando tinha 13 anos), lendo o texto dos Princípios de Ricardo como base. Ao mesmo tempo, era por índole um sistematizador e sintetizador (alguns diriam ecléctico); e no Prefácio do seu próprio livro de 1848, declara que o seu objectivo é escrever um tratado que contenha «os mais recentes progressos que tenham sido feitos na teoria». «Muitas ideias novas, e novas aplicações das ideias», escreveu, «têm sido extraídas das discussões dos últimos anos... e parece haver razões para que o domínio da Economia Política seja inteiramente revisto, quanto mais não seja com o objectivo de incorporar os resultados destas especulações e de os harmonizar com os princípios anteriormente estabelecidos pelos melhores pensadores da matéria.» Tomou acertadamente como modelo A Riqueza das Nações, em vez dos trabalhos de Ricardo, visto que «a qualidade mais característica» dessa obra de Adam Smith tinha sido «associar invariavelmente os princípios e a sua aplicação», o que «implica uma gama muito mais vasta de ideias e questões, do que numa economia política considerada como ramo de especulação abstracta.» «Para fins práticos», acrescentava Mill, «a economia política é indissociável de muitos outros ramos da filosofia social» — uma verdade que «Adam Smith nunca perde de vista».* Estes sentimentos poderiam indicar que a sua devoção ia para o tipo de abordagem e para a tradição de Adam Smith, em qualquer das suas inter pretações, e que a sua defesa da doutrina de Ricardo contra os seus críticos não foi mais do que um acto de piedade. De qualquer modo, quando se observa Mill retrospec tivamente, torna-se bastante claro que, em muitos aspectos, a sua própria obra esteve muito mais próxima
* J. S. Mill, Principles of Political Economy, with some of their applications to social philosophy (Londres, 1848) Vol. I, pp. XXI, IV. 156
de Marshall que de Ricardo; e que, no referente à sua teoria do valor, em vez de continuar e aperfeiçoar Ricardo, manteve no essencial a posição de Smith onde aquele a atacou. Veremos que, de qualquer maneira, acabou por chegar a uma Teoria do Custo de Produção que era essencialmente a Teoria das Componentes Aditivas de Smith, por um lado inspirando-se parcialmente em Sénior e mesmo em Say, e, por outro lado, procurando conciliar o resultado com algumas propostas de Ricardo. Schumpeter fala da «linha Smith-Mill-Marshall» e recusa-se a incluir J. S. Mili na escola de Ricardo, baseando-se no facto de «a economia dos Princípios [de 1848] já não ser ricardiana». Fundamenta e desenvolve esta opinião franca e firme como se segue: «Isto é obscurecido pelo respeito filial e também, independentemente disto, pela própria convicção de J. S. Mili de que estava apenas a modificar a doutrina ricar diana. Mas esta convicção era errada. As suas alterações atingem fundamentos da teoria, e, mais ainda, evidente mente, da perspectiva social. O ricardianismo certamente que significou mais para ele do que para Marshal... No que se refere aos Princípios de Marshall, o ricardianismo pode ser posto de parte, sem que a sua falta seja notada. No que se refere aos Principios de Mili, podia ser aban donado sem que a sua falta se fizesse sentir muito.»* Visto que John Stuart (nascido em Pentonville, Londres, em 20 de Maio de 1806, filho primogénito de James Mili) escreveu uma autobiografia na idade avan çada, não há necessidade de recordar qualquer dos curio sos pormenores da sua educação e das influências que nele se exerceram, mesmo quando estes pormenores são importantes para a compreensão das suas ideias. Além da educação intensiva, dada pelo pai, podemos destacar como principais influências sobre a sua atitude e ponto de vista sociofilosóficos, após a adolescência, a Sociedade Utilitarista e a fundação da Westminster
*
History of Econ omic Analysis, pp. 529, 530. 157
Review. A primeira foi um pequeno grupo (nunca teve mais de dez membros), «composto por jovens com as mes mas ideias acerca de princípios fundamentais», que come çaram a reunir-se em casa de Bentham no Inverno de 1822-3, e assim continuaram durante bastante mais de três anos. Poi «a primeira vez que alguém se intitulou Utilitarista». Mais ou menos ao mesmo tempo (em 1823), Bentham fundou a Westminster Review, como órgão radi cal «para fazer frente aos grupos do Edinburgh e do Quarterly»; e John Stuart colaborou nesta nova revista com frequentes artigos e análises. (O pai contribuíra para o primeiro número, com um artigo que criticava o Partido Whig, e a Edinburgh Review como seu principal órgão literário.) Acerca do «Radicalismo Filosófico» (como veio a ser chamado) do grupo de jovens agru pados à volta da Westminster, John Stuart (que era um deles) escreveu o seguinte: «O seu modo de pensa mento não era caracterizado pelo Benthamismo, em qual quer sentido que tenha relação com Bentham como chefe e guia, mas sim por uma combinação do ponto de vista de Bentham com o da economia política moderna e com a metafísica de Hartley.»* Defendiam a limitação de nas cimentos entre a população trabalhadora preconizada por Malthus, como «único meio de obter uma melhoria nas suas condições económicas»; e em política, sustentavam o governo representativo e a liberdade de discussão. Mill re fere-se à sua «ilimitada confiança» no governo representa tivo e na liberdade de discussão em política, como armas contra o domínio da classe minoritária: «quando a legisla tura já não representar um interesse de classe, tomará como objectivo o interesse geral». Fala também a seu res peito e dos amigos, em relação à linha da Westminster Review, mencionando como um dos seus objectivos princi pais libertar «o radicalismo filosófico da mancha do Ben thamismo sectário... para proporcionar uma base mais am pla e um carácter mais livre e aberto às especulações radi
*
Autobiography (Londres, 1837), p. 105.
158
cais; para provar que existia uma filosofia radical mais per feita e completa que a de Bentham, embora reconhecendo e incorporando tudo aquilo que de Bentham é perma nentemente válido». Um exemplo daquilo a que hoje se chamaria o ponto de vista «de compromisso» destes jovens radicais, entre os quais se encontrava Stuart Mill, é a sua própria referência, que já citámos no Capítulo I, ao seu Sistema de Lógica de 1843, como «um manual... onde todo o conhecimento se fundamenta na experiência», em oposição «ao modo germânico ou a priori de conceber o conhecimento e as faculdades de aquisição do mesmo», que serviram de «importante base intelectual de doutrinas falsas e más instituições».* Depois de 1828, Mill pôs de parte as actividades jornalísticas e embrenhou-se em estudos e trabalhos mais profundos, que incluíram, em 1830-1, os cinco ensaios (publicados mais tarde, em 1844) intitulados Ensaios sobre Algumas Questões Não Resolvidas de Economia Política dos quais falaremos em breve. Deste período datou também a influência mais notável na sua vida, que acabaria por transformá-lo num «socialista» a seu modo: a saber, o seu encontro (em 1830) com a Senhora Harriet Taylor, que veio a casar com ele vinte e um anos mais tarde, três anos após a publicação dos seus Princípios de Economia Política. Esta influência da futura mulher na sua obra (que, como observa Leslie Stephen, «se tornou popular num sentido em que nenhuma obra sobre o mesmo assunto tinha sido popular desde a Riqueza das Nações»)** foi suficientemente importante para aqui ser mencionada, quanto mais não seja à maneira de um parêntesis. Segundo as próprias palavras de Mill, tal influên cia conferiu ao livro o seu «tom geral, pelo qual se distin gue de todas as exposições anteriores sobre Economia * Autobiography, p. 225. ** Leslie Stephen, The English U tilitarians (Londres, 1900) Vol. Ill, p. 53. Prossegue relatando que nas décadas de 1850 e I8601, «urna vasta escola considerou Mill um oráculo quase infalível». 159
Política»; esse tom consiste «principalmente na dis tinção apropriada entre as leis da produção de riqueza, que são leis reais da natureza, dependentes das proprie dades dos objectos, e os modos da sua Repartição, que, den tro de certas condições, dependem da vontade humana». Outros economistas, na sua opinião, confundiam ambas «sob a designação de leis económicas... incapazes de serem derrotadas ou modificadas pelo esforço humano».* Por outras palavras, considerou a Repartição do Rendimento como produto de instituições sociais modificáveis — como relativa do ponto de vista «institucional» e histórico, e não «natural» ou universal. Esta confissão explícita foi certamente uma antecipação, tanto em relação àquilo que estava subentendido nos seus predecessores, como relativamente ao que mais tarde viriam a ser as teorias de «imputação», de que falaremos daqui a pouco. Marx referiria este aspecto como uma razão pela qual «seria muito errado classificar [os que pensavam como J. S. Mili] entre o grupo de vulgares apologistas econó micos»,** embora para Marx, evidentemente, uma afirma ção como aquela fosse uma indicação inadequada da liga ção entre Repartição e relações sociais de produção. Mais especificamente, Mill fala assim da modifi cação da sua filosofia social sob a influência da mulher: «Fui [anteriormente] um democrata, mas de modo nenhum um Socialista.» Depois, falando dele próprio e da mulher: «O nosso ideal de aperfeiçoamento final ultrapassou muito a Democracia e classifica-nos decidi damente sob a designação geral de Socialistas... Pusemos a nossa esperança num tempo em que a sociedade já não esteja dividida entre ociosos e diligentes.»*** Nos Princípios, estas novas opiniões «foram promulga das menos clara e completamente na primeira edi ção, bastante mais na segunda e de uma forma
* Principles of Political Economy, p. 246. ** Capital, Vol. I (ed. Aveling and Moore), p. 623n. *** Autobiography, p. 231. 160
inequívoca na terceira». O capítulo que Mili atri buiu inteiramente à mulher, e ao qual se referiu como tendo «maior influência sobre as opiniões que tudo o mais», intitulava-se «O Futuro Provável das Classes Tra balhadoras». Este não existia «no primeiro esboço do livro».* Termina, bastante moderadamente para o modo de ver dos nossos dias, mas radical no tempo em que foi escrito,** preconizando uma espécie de partilha dos lucros e a comparticipação. Pode acrescentar-se que quando se apresentou, em 1865, como candidato ao Parlamento por Westminster, o fez como Liberal — mas o mesmo fizeram nessa altura os tradeunionistas que se candidataram ao Parlamento. Depois de ter perdido o lugar de deputado, em 1868, não voltou a apresentar candidatura, mas deu apoio e dinheiro e George Odger e a outros tradeunionistas que se candidataram ao Parlamento. II
Das doutrinas que caracterizaram Mill, julgamos con veniente falar em primeiro lugar da sua teoria do lucro, antes de mencionar o seu modo de tratamento do valor, a respeito do qual pouco há a dizer. Na realidade, o seu tratamento da primeira questão é em muitos as pectos uma chave para a segunda (tal como sucedeu com Ricardo). O lucro foi o assunto do quarto e mais signi ficativo ensaio da sua obra anterior, Ensaios sobre Algu
Ibid., p. 245. ** Este capítulo incluit inter alia, afirmações directas e radicais tais como: «Não posso considerar provável que elas (as classes trabalhadoras) se contentem permanentemente com a condição de trabalho a troco de salários como fim supremo. Trabalhar às ordens e para proveito de outrem, sem qualquer interesse no trabalho — o preço deste ajustado pela concorrência... não é, mesmo que os salários sejam altos, um estado satisfatório para seres humanos com uma inteligência educada, que deixaram de se considerar naturalmente inferiores àqueles a quem servem» ( Princi ciples, Yol. I I (2.a ed., 1849) p. 324. *
11
161
mas Questões Não Resolvidas, onde expõe o que dizia ser uma reafirmação da teoria de Ricardo, e que se apresenta completamente rieardiano na forma. Na teoria de Ricardo, conforme vimos, os Lucros dependiam inteiramente dos Salários, no sentido de constituirem a diferença entre o valor dos salários pagos pelo trabalho e o valor do produto deste; por outras palavras, dependiam dos salários reais como proporção do valor produzido, quando ambos são expressos em termos do trabalho necessário para os produzir. Esta, na opinião de Mill, era «a forma mais perfeita sob a qual a lei dos lucros parece ter sido até agora apresentada» e «a base da verdadeira teoria dos lucros».* Traduz isto na sua própria terminologia, tornando-o equivalente à afirmação de que os lucros dependem «do custo de produção dos salários»; mas prossegue, destacando que parte do requisitos para a produção (por exemplo, «ferra mentas, materiais e edifícios») é constituída por produtos do trabalho despendido no passado. Portanto, «o seu valor global não se decompõe nos salários dos trabalhadores por quem foram produzidos», mas é parcialmente constituído por lucro destinado aos capitalistas que adiantaram estes salários do trabalho despendido no passado.** Isto é expli cado através dum exemplo que a alguns causou perplexi dade e foi considerado curioso. Ê afinal uma forma notavel mente simples de expor a questão. Consiste na comparação
* Essays on Some Unsettled Questions (Londres, 1844) pp. 94-5, 98. Marx, talvez um tanto injustamente, critica Mill neste ponto, por não se aperceber de que, embora isto seja verdadeiro quanto à taxa de mais-valia, não o é necessariamente quanto ao lucro e à taxa de lucro ( Theorien über den Mehrwert, ed. Karl Kautsky (Berlim, 1923) Vol. II, pp. 230 seq.). Mas se é verdadeiro quanto ao lucro ou mais-valia como proporção para os salários, então é também presumivelmente verdadeiro, ceteris paribus, quanto ao seu derivado, a proporção do lucro para o capital total. É certo que se este último varia, a taxa de lucro, ceteris paribus, será afectada; mas isto, na realidade* é precisamente o objecto do exemplo de Mill. ** Mill, Essays on Some Unsettled Questions, p. 98. 162
entre dois casos em cada um dos quais 100 homens, tra balhando durante um ano e recebendo um alqueire de trigo cada um como salário, produzem 180 alqueires como produto final. No primeiro exemplo, parte do tra balho, o de 40 homens, é despendido no ano anterior para produzir semente e ferramentas «que atingem o valor de 60 alqueires»; e no segundo ano com a ajuda deste «capital fixo e semente», 60 homens tra balham para conseguir o produto final de 180 alqueires. No segundo exemplo, todo o trabalho, a saber o de 100 homens, é gasto no ano corrente, e visto que não é apoiado por um capital fixo a sua produtividade é inferior, e este trabalho de 100 homens (em vez de 60) rende o mesmo produto final de 180 alqueires. E no entanto, embora o dispêndio total de trabalho nos dois casos seja idêntico, e também o custo em salários, a taxa de lucros no primeiro caso é de 50 por cento /
180— (60 de semente e ferramentas* + 60 salários
\
\
1,
120 /
180 — 100 \
e no outro caso é de 80 por cento ( = ------------ ) • sendo ^
\
100
/ ’
a diferença resultante dessa parte do capital (20 alqueires) que, no primeiro caso, representava o lucro sobre os salá rios adiantados no ano anterior. Sendo assim, «a teoria de Ricardo é imperfeita», porque «a taxa de lucro não depende exclusivamente do valor dos salários, no seu sen tido, a saber, a quantidade de trabalho»; do mesmo modo, o «custo de produção dos salários», do qual os lucros dependem, deve ser interpretado de ma neira a incluir no «custo de produção» os lucros adiantados e, igualmente, os salários adiantados. E con
* O valor da semente e ferramentas produzidos no ano anterior é constituído por 40 alqueires, correspondentes aos salários de 40 homens empregados nesse ano e (à taxa de lucro em vigor) 20 alqueires de lucro do capital adiantado nesse ano em salários. 163
clui: «O princípio ricardiano de que os lucros não podem subir a não ser que os salários desçam, é estritamente verdadeiro, se por salários baixos ele entende não apenas aqueles que são o produto duma quantidade de trabalho menor, mas também os que são produzidos por menor custo, calculando conjuntamente trabalho e lucros ante riores.»* Como se deverá considerar esta correcção? Em que medida representa ela um desvio da teoria ricardiana? Ao longo deste ensaio, como se poderá notar, Mill ocupou-se da taxa de lucro, e o foco parece ter sido desviado do modo de determinação do lucro total, ou do lucro como uma proporção de qualquer valor produzido dado (e por tanto como uma proporção dos salários),** que era prin cipal preocupação de Ricardo, para a proorção entre este lucro e o caital adiantado. A emenda de Mill significa pôr em relevo, muito correctamente, que tendo o capital fixo em linha de conta, esta proporção será tanto menor, ceteris paribus, quanto maior for a proporção do capital fixo para o capital circulante, ou quanto maior fôr o período de tempo durante o qual as despesas de produção, ou o trabalho, tiverem de ser adiantados; uma questão que Ricardo parece nunca ter exposto, e até ter ignorado, presumivelmente porque não se preocupava muito com o lucro como uma proporção do capital total. Formalmente, esta emenda pode ser considerada análoga à crítica de Marx do facto de Ricardo ter ignorado o chamado «capital constante» como factor na determinação da taxa de lucro, ou, alternativamente, ter considerado iguais o lucro e a mais-valia. Mill poderia ter afirmado que
* Ibid., p. 104. ** Deve notar-se que, com a hipótese implícita de Ricardo de um ciclo de colheita anual e de capital constituído por adiantamentos de salários, a taxa de lucro era a mesma que a proporção entre o lucro e os salários e não constituía problema uma diferença entre as duas. (A semente seria aqui uma restrição, eviden temente, se fosse considerada como um adiantamento de capital e não apenas como um dedução do produto bruto no fim de cada ano.) 164
o princípio de Ricardo, segundo o qual os lucros dependiam do valor dos salarios, era absolutamente verdadeiro quanto a lucros totais■, ou quanto à quantidade de lucro proporcio nada por um dado valor total produzido; mas que quando expresso como proporcional ao capital dependia, natural mente, da importancia do capital total, e este, por sua vez, da quantidade de capital fixo utilizada na produção (relativamente ao dispendio corrente em salarios). Mas de facto não o fez; preferiu concluir que o «custo de pro dução dos salários» de Ricardo deve ser considerado como constituido por «duas partes», salários e «os lucros daque les que, em qualquer fase antecedente da produção, adian taram qualquer porção desses salários»; e o modo de trata mento do seu exemplo pode ser tomado como implicando que o tempo durante o qual o trabalho é adiantado influencia não apenas a taxa de lucro (por influenciar a porção do capital a adiantar), mas também a importância do lucro total disponível. Mais tarde, nos seus Princípios, introduz a noção de um lucro mínimo que permita aos capitalistas continua rem a acumular capital e a investir na indústria, tendo já adoptado, nessa altura, o ponto de vista de Sénior sobre o juro como recompensa de uma poupança, e a noção do lucro como sendo (ou incluindo) os «salários de direcção».* Embora tente conjugar estas ideias com a sua versão, um tanto nebulosamente corrigida, do princípio de Ricardo de os lucros dependem do «custo de produção dos salários».** a teoria resultante está muito mais perto da teoria de Mar shall sobre o «lucro normal», do que qualquer outra. O tratamento por Mill da teoria do valor*** é pre cedido por esta afirmação confiante: «Felizmente para * Principies, Vol. I (Londres, 1848) Cap. XV, pp. 477-9. ** Neste ponto, Mill interpreta esta noção como «a parte propor cional dos trabalhadores» e afirma que «os lucros dependem dos salários», no sentido de que os lucros «dependem do custo do trabalho » ( ibiã., pp. 492-3). ** * No seu capitulo «Sobre o Va lor» no Livro III , Cap. I, ibiã., pp. 513 seq. 165
o escritor actual ou futuro nada ficou por esclarecer a respeito das leis do valor; a teoria sobre esta ques tão está completa.»* Neste ponto, volta a garantir que nada mais pretende do que ordenar, ampliar um pouco e reformular Ricardo. O que de facto faz, é voltar à teoria das «componentes aditivas do preço», de Adam Smith, e, na sua reformulação da mesma, colocá-la muito perto da teoria de Marshall sobre o «valor nor mal» a longo prazo. A teoria do lucro de Ricardo é tradu zida para a afirmação de que os lucros dependem do «custo de produção dos salários», de modo a incluir os lucros cor respondentes ao tempo durante o qual os salários foram adiantados em custo de produção. Mill prossegue afir mando que «as coisas, normalmente, são trocadas umas pelas outras proporcionalmente aos seus custos de produ ção», e explicitando que o custo de produção significa salários mais lucro sobre a quantidade de capital aplicada conjuntamente com o trabalho, a uma taxa cuja expec tativa estimule os capitalistas a continuar produzindo. «Se considerarmos como produtor o capitalista que faz os adiantamentos, a palavra Trabalho [na teoria de Ricardo] pode ser substituída pela palavra Salário: aquilo que o produto lhe custa são os salários que teve de pagar.» Mas visto que o capital é «o resultado de uma abstinência», segue-se que «o produto, ou o seu valor, deve ser suficiente para remunerar, não apenas todo o trabalho necessário, mas também a abstinência de todas as pessoas por quem foi adiantada uma remuneração das diferentes classes de trabalho. A recompensa da abstinência é o Lucro».** «Como regra geral, existe uma tendência para que as trocas se efectuem entre si por um valor que permita a cada produtor recuperar o custo de produção graças ao lucro corrente... A influência latente pela qual os valores dos bens se adaptam, a longo prazo, ao custo de produção, é a variação que de outro modo
* Ibid., p. 515. ** Ibid, pp. 540, 546. 166
ocorreria no campo da oferta do bem.» No capítulo «Do Custo de Produção» (Capítulo III do Livro I II), conclui no «estilo de metáfora»: «a procura e a oferta tendem sempre para um equilíbrio, mas a situação de equilíbrio estável é aquela em que os bens são trocados uns pelos outros segundo os seus custos de produção, ou, de acordo com a expressão que utilizámos, em que eles estão no seu Valor Natural».* Assim, num sentido formal, continua a manter uma base ricardiana para a sua estrutura smithiana renovada, admitindo que os lucros dependem, inter alia, dos salários, na sua interpretação corrigida e alterada desta afir mação. Mas, visto que considera o lucro como tendendo sempre para o nível mínimo em que remunera exactamente «a abstinência» e «o trabalho de direcção» e nada mais (salvo a assunção do risco), e não podendo descer abaixo deste nível sem prejudicar a oferta, a afirmação ricar diana parece perder oportunidade. Schumpeter salientou que a sua concepção de valor está completamente de acordo com a crítica de Bailey em relação a Ricardo, e não deixa lugar para o que quer que seja com a natureza de «valor absoluto». «A energia com que insistiu no carácter relativo do [Valor] aniquilou com pletamente o Valor Real de Ricardo e reduziu outros ricardianismos a inocuidades insípidas.»** Vendo o resul tado dum ângulo diferente, foi Cairnes quem comentou que Mill tinha transferido a perspectiva «para o ponto de vista limitado e parcial do patrão capitalista», estrutu rando a sua teoria em termos de despesas de produção, em vez de em termos de qualquer forma de custo real, quer *
ma., pp. 534-5, 539.
** Schumpeter, History of Economic Analysis, p. 603. Trata-se, evidentemente, duma referência à afirmação 'directa de Mill (Prin- cipies, Vol. I, p. 543) de que «o valor de um bem não é um nome para uma qualidade inerente e substantiva duma coisa propriamente dita mas significa a quantidade de outras coisas que podem ser obtidas em troca dela. O valor de uma coisa deve ser sempre entendido relativamente a alguma outra coisa ou a coisas em geral.» 167
objectiva quer subjectivamente concebido.* Não há dú vida que, até certo ponto, este comentário é justificado e indica a afinidade entre o tratamento de Mill e o de Smith. Mas como crítica é, com certeza, secundário relativamente ao facto de, na teoria de Mili, a determinação ricardiana da proporção lucro-salário ser substituída pela noção de um «nível mínimo» de lucro, que, para não ser apenas uma caixa vazia, tem provavelmente de basear-se em «propensões para acumular» um tanto vagas e contingentes, por parte dos empresários. Ill
Em terceiro lugar e para concluir, a doutrina mais conhecida entre as que são características de Mill é provavelmente a do Fundo de Salários: sem dúvida devido à sua dramática retratação da mesma perante a crítica de W. T. Thornton no livro On Lábour (que pode tê-lo convencido das utilizações reaccionárias que a doutrina permitia).** Esta, em resumo, defendia que os salários globais eram limitados pelo fundo de capital existente, sobretudo pela parte do mesmo destinada (de forma não explicada) a pagar salários. Dado este total, obti nham-se os salários por cabeça pelo simples processo de o dividir pela população trabalhadora que pretendia em prego. Esta perspectiva dos salários «pagos a par tir do capital» considerado como adiantamento de salários, e portanto «condicionados pelo capital», é aquilo a que Marshall chamou a «forma vulgar da teoria do Fundo de Salários»: uma forma em que «não
* J. E. Cairnes, Leading Principles of Political Economy Newly Expounded (Londres, 1874) p. 53. ** Três anos antes, na verdade, numa carta a Henry Fawcett (de 1 de Jan. 1866), discordara do capítulo deste autor sobre salários e afirmara: «Penso que poderia demonstrar que um aumento de salários à custa dos lucros não seria impraticável segundo os verdadeiros princípios da economia política» (The Letters of J. S. Mill , ed. H. S. R. Ellio t (Londres, 1910), Vol. I I p. 52). 168
pode ser defendida».* Como tal era prima em primeiro grau, por um lado, da doutrina que muitos julgaram implí cita na economia política clássica, segundo a qual a indús tria (e portanto, a longo prazo, também a população) é condicionada pelo capital, e, por outro lado, doutra tese litigiosa de Mill, que defende que «a procura de bens não é procura de trabalho» (isto é, que não é o rendimento gasto em consumo que cria emprego, mas sim o rendimento in vestido como adiantamento de salários para o trabalho). A expressão mais sucinta da sua, doutrina, nos Princípios, é a seguinte : «Os salários, portanto, dependem da relação entre a procura e a oferta de trabalho; ou, como muitas vezes se diz, da proporção entre população e ca pital. População significa aqui apenas o número de pessoas da classe trabalhadora, ou melhor, daqueles que trabalham em troca de um salário; e por capital, entende-se apenas capital circulante, e nem mesmo o capital cir culante total, mas a parte deste que é despendida na compra directa de trabalho... Os salários (quer dizer, a taxa geral) não podem subir, a não ser mediante um aumento dos fundos utilizados para contratar trabalhadores, ou uma diminuição do número de trabalhadores que pre tendem ser contratados.»** E também: «Visto, portanto, que a taxa de salários resultante da concorrência reparte o fundo total de salários por toda a população trabalha dora, se a lei ou a opinião geral conseguir estabelecer salá rios acima desta taxa, alguns trabalhadores ficarão desem pregados.»*** * A. Marshall, Principies of Economics (Londres, 1916) p. 823. ** Mill Principies, Vol. X, Livro II, Cap. XI, «Of Wages», pp. 401,’ 402. Ibiã., p. 426. Isto é precedido pela afirmação: «É um erro *** supor que a concorrência apenas mantém os salários baixos. Permite igualmente que se mantenham elevados... Os salá riossó podem descer devido à concorrência até ser viá vel que todosostrabalhadores obtenham uma parte na repartição do fundo de salários. Se descem abaixo deste ponto, uma porção de capital manter-se-á sem aplicação por falta de trabalhadores e terá lugar uma contra-concorrência por parte dos capitalistas, subindo então os salários» (ibiã., pp. 425-6).
169
Esta teoria, exposta com a simplicidade e força dum truísmo aritmético, convinha manifestamente como argu mento convincente contra o tradeunionismo, que se dizia ca paz de influenciar o nível geral de salários. Leslie Stephen jeitou-a como «uma afirmação idêntica: o fundo de sa lários significa simplesmente os salários, e a taxa destes é dada pelo total pago dividido pelo número de pes soas.»* Esta rejeição, embora seja um comentário justo a algumas das versões menos aperfeiçoadas da doutrina,** parece ser excessivamente radical, visto que Mill e os seus discípulos mostram claramente que não têm a intenção de definir o fundo como salá rios totais, mantendo, em vez disso, que estes, e por tanto o seu nível médio, eram condicionados por uma entidade determinada independentemente, denominada Fundo de Salários. A refutação implicava que se provasse
*
The English Utilítarians (Londres, 1900) Vol, III, p. 216.
** Pode ser um comentário válido, por exemplo, à afirmação da Senhora M. G. Fawcett de que «os salários dependem da pro porção entre o fundo de salários e o número de trabalhadores. Se esta proporção se mantiver sem alteração, a taxa média de salários não pode subir» ( Political Economy for Beginners (5.a ed., Londres, 1880) p. 102); talvez também à afirmação do Prof. Henry Fawcett: «O capital circulante dum país é o seu fundo de salários. Logicamente, se desejarmos calcular o salário monetário médio recebido por cada trabalhador, temos apenas de dividir a quantidade deste capital pelo número de trabalhadores. B por isso evidente que o salário monetário médio não pode ser aumen tado a não ser que o capital circulante aumente ou o número de trabalhadores diminua» (Economic Position of the British La bourer (Cambridge e Londres, 1865), p. 120). Quanto a Sidgwick, considerou que da maneira como foi formulado por Mill, «seria o mesmo que dizer que um quociente só pode ser aumentado se se au mentar o dividendo ou diminuir o divisor», mas que «o que Mill quis realmente dizer foi que... a quantidade de riqueza aplicada ao pagamento de salários é principalmente determinada... pela pou pança» (The Principies of Political Economy, 2.a edição (Londres, 1887) p. 299). A isto acrescenta mais adiante a observação de que «os bens consumidos por trabalhadores assalariados não estão separados por uma linha definida daqueles que são consumidos por outras classes» (ibiã., p. 305). 170
não existir essa entidade independente e pré-determinante; o que Thornton de facto fez ao pôr a pergunta: «Existe realmente esse fundo? Existe alguma porção específica do capital de qualquer indivíduo em particular, que deva necessariamente ser despendida no trabalho?* A retratação de Mili (na qual, segundo Marshall, «cedeu demasiado, e exagerou a dimensão do seu pró prio erro»)** foi feita na análise do livro de Thornton in cluída na Fortnightly Review de Maio de 1869. Foram estas as suas palavras: «Não há nenhuma lei natural a que seja inerente a impossibilidade de os salários subirem até ao ponto de absorverem não só os fundos que ele [o empresá rio] tinha pretendido aplicar na condução do seu negócio, mas também tudo aquilo que destina às suas despesas privadas para além das necessidades vitais. O limite real da subida é a consideração prática da medida em que ficaria arruinado, ou seria induzido a abandonar o negócio, e não o limite inexorável do Fundo de Salários.» Mas embora negada por um dos seus principais repre sentantes,*** a doutrina, com todas as suas implicações, estava destinada a persistir sob outras formas, quer na de um «fundo de subsistência» de Bõhm-Bawerk, quer nalguma versão da doutrina da produtividade marginal. Já citámos a opinião de Marshall de que havia um sentido em que podia ser considerada verdadeira. Wicksell sublinharia que a teoria austríaca do capital substituiu, de facto, a relação simples W = C/L da teoria do fundo de salários, por
Lwt
*
W. T. Thornton, On Labour (Londres, 1869) p. 84.
** Marshall, Principies, p. 825. *** O seu discípulo, J. E. Gairnes, não parece te r abandonado a doutrina, embora numa carta a Mili se manifestasse aparente mente 'de acordo com o artigo da Fortnghtly Review (The Letters of J. S. Mill, ed. Hugh S. R. Elliot, Vol. II, p. 207). 171
em que 0 é um fundo de bens de subsistência para trabalhadores, w o salário e t a duração do período de produção; juntamente com a relação ulterior p = w + + t ( dp/ãt ) para determinar t (sendo p a produção anual por trabalhador), ou então, para determinar t, com a condição de wt (p + w) : ----2
ser um máximo.* Não é necessário lembrar que um aspecto em que Mill foi inteiramente tradicional, e não fez nenhuma alteração na doutrina aceite, foi na sua fé na «Lei de Say». Neste ponto foi claro e não fez qualquer concessão: «uma sobre-oferta geral, ou excesso de todos os bens acima da procura, na medida em que a procura consiste em meios de pagamento, fica assim demonstrado ser uma impossibilidade... Ê por demais evidente, que a pro dução cria um mercado para a produção.»** Não se pode concluir uma análise das opiniões de Mill sobre economia, sem uma breve referência ao juízo conciso que expressou a respeito do «estado estacionário». A noção de um estado desse tipo, em que a acumulação de capi tal se suspenderia, figura, conforme já vimos, nas obras de Smith e Ricardo, mas tinha sido tratada por eles como pertencendo de certo modo ao futuro, e, segundo Ricardo, continuaria a pertencer enquanto o livre comércio de ce reais e os aperfeiçoamentos da agricultura permitissem compensar a tendência dos lucros para diminuir e manter sem redução a taxa de lucro. A atitude de Mill nesta maté ria foi assinalada por duas peculiaridades. Primeiro, con siderou o «estado estacionário» ali mesmo ao virar da * K. Wicksell, Value, Capital and Rent (Londres, 1954) pp. 145-6. « A grande importância» da teoria de Bõhm-Bawerk «consiste em parte no facto de nesta teoria se apresentar pela primeira vez um substituto real da obsoleta teoria do fundo de salários, que diversos autores tentaram derrubar com críticas baratas, sem serem capazes de substituí-la por outra melhor» (p. 145). ** Principies of Political Economy, Vol. I I (2.“ ed., 1849), p. 94. 172
esquina — quando muito para daí a poucos anos; o seu advento só era adiado por factos como emprés timos públicos, exportação de capital e desperdício deste em virtude de má gestão. Em segundo lugar, conside rou a chegada do «estado estacionário» com muito menos pessimismo que os seus antecessores, porque esperava que daí surgisse a possibilidade de melhorar a repartição do rendimento. «Não posso considerar o estado estacio nário do capital e da riqueza com a genuína aversão geralmente manifestada para com ele por economistas políticos da escola antiga.»* Sustentou que, se não hou vesse exportação de capital e desperdício deste e emprés timos governamentais para gastos improdutivos, factos que não se pode confiar que continuem indefinidamente, apenas uns anos mais de acumulação de capital à taxa existente (desde que «investido anualmente em emprego realmente produtivo no interior do país») bastariam para reduzir os lucros ao nível mínimo em que cessa o incentivo para mais investimento. Os lucros, na sua maneira de ver, estavam «quase a chegar ao mínimo», e o país, portanto, «mesmo à beira do estado estacionário».** Podia encarar isto com serenidade de espírito, visto que sustentava que se «devia privilegiar uma melhor repartição do ren dimento e uma ampla remuneração do trabalho como os verdadeiros objectivos», em vez dum «simples aumento da produção», ao qual geralmente «se atribuía» uma «importância excessiva».*** Embora tal aspiração possa hoje parecer moderada, era, de facto, uma doutrina radical muito ousada, numa época em que era opinião geral que a única maneira eficaz de remediar a pobreza seria deixar os pobres morrer de fome («o rico no seu castelo, o pobre ao seu portão»). Esta melhoria da repartição do rendimento, no entanto, não seria possível se a população continuasse
* ibid., p. 310. ** Ibid., pp. 289, 290. *** Ibid., p. 315. 173
a aumentar numa proporção malthusiana: estava condi cionada pela difusão de «hábitos frugais de vida» entre as classes trabalhadoras, que ele esperava haveriam de resultar da sua crescente independência e educação. Dada a difusão destes «hábitos frugais», o resultado seria que «a população decresceria gradualmente, em rela ção ao capital e emprego».* Se pretendessemos fazer uma descrição completa das realizações da análise de Mill, seria cometer uma omissão deixar de discorrer sobre a sua contribuição para a teoria do comércio internacional, em que foi o primeiro a combinar uma teoria da procura recíproca com os custos comparados ricardianos, a fim de demonstrar como os ganhos do comércio eram partilhados entre os países interessados (só estes podendo definir os limites no interior dos quais teriam de situar-se os termos de troca). Por outro lado, ao desenvolver esta ideia, intro duziu a noção de elasticidade da procura, embora não lhe desse um nome nem a definisse de maneira precisa. No caso do presente trabalho, cujo tema assenta em teorias do valor e repartição, e principalmente nas rela ções internas dum sistema económico fechado, talvez seja desculpável não se abordar essas questões.
*
Ibiã., p. 322.
174
6. K AR L MARX i
Vimos já que alguns críticos da escola pós-ricardiana tentaram desenvolver a teoria de Ricardo, especialmente a parte referente à teoria do lucro, no sentido de criticar o próprio Capital. Refiro-me a escritores e panfletistas como Thomas Hodgskin, William Thom pson, J. F. Bray e John Gray, denominados «Socialistas Ricardianos»; apesar desses autores pertencerem à esfera que Keynes apelidaria, um século mais tarde, de «mundo subterráneo dos heréticos», o significado das suas teorias não passou despercebido aos economistas eruditos de Dublin e Oxford. Se bem que a sua influência se fizesse principalmente sentir nos Institutos Mecânicos e nos inci pientes sindicatos e confrarias radicais, não atingindo os claustros das universidades antigas, autores como Scrope e Read temiam mesmo assim essa influência potencial.*
* Cf. a referência de G. Poulett Scrope (cit ada atrás na p. 42) às pessoas que «bradam contra o capital como o veneno da sociedade e... a exploração dos trabalhadores», com uma nota de pé de página referente a Hodgskin (Londres, 1833), p. 150), e uma referência à linguagem de Hodgskin, quando este nos fala de «exploração dos trabalhadores» e de «hos tilidade injustificada para com o (in (Londres^ 1833; segunda edição 1873), pp. 103, 105);
(.Principies of Politicál Economy
for Plain People
Capital»
Politiaal Economy 175
Hodgskin desenvolveu o seu conceito completo de exploração a partir da teoria da «harmonia natural» das leis naturais, de Smith;* criticava Ricardo deste ponto de vista e de modo particular a sua teoria dos salários e da renda. O seu argumento de que o trabalho tinha direito a toda a produção, e de que tanto o lucro como a renda eram subtraídos ao trabalho, era essencial mente uma doutrina do direito natural, como geralmente se pensa ser também a teoria da mais-valia de Marx, se bem que erradamente.** O direito natural à propriedade do fruto do próprio trabalho opunha~se ao direito de propriedade «legal ou artificial», que consiste na apropriação do produto do trabalho dos outros. Este autor refere-se ao Capital como «absorvendo toda a produção de um país, à excepção do indispensável à subsistência do trabalhador, e a produção excedente da terra fértil», fala-nos da «natureza absorvente do juro composto» e, numa passagem muito conhecida, escreve ainda: «Estou certo... de que até que o triunfo do trabalho seja completo; até que só o trabalho produtivo seja fonte de riqueza, e a ociosidade empobreça; até que se implante soli damente a admirável máxima “aquele que semeia há-de colher” ; até que o direito de propriedade se baseie nos princípios da justiça, e não nos da escravidão... não pode nem há-de haver paz na terra e amor entre os homens.»*** Dois anos após a publicação do Lábour Defenãeã foram
An Inquiry into the Grounds of Right to Vendible Property Ricardian Economics * Cf. E. Halévy, Thomas Hodgskin (Londres 1956), pp. 58-9, Samuel Read, (Edimburgo, 1829), esp. pp. XXX-XXXI. De uma maneira , pp. 140-50. mais geral, cf. Blaug,
64-6, 80. ** Halévy, falando da «verdadeira origem psicológica da teoria do valor do trabalho», diz-nos que «Hodgskin, que é simultaneamente um economista e um filósofo, encontra em Locke a verdadeira origem da teoria do valor do trabalho» p. 181).
(ibid., * * * Labour Defended against the Claims of Capital, or the Unproductiveness of Capital Provedi by a Labourer (Londres, 1825),
pp. 7, 23, 32. 176
publicadas as suas lições no Lonãon Mechanics Instituticm (de que fora um dos fundadores), com o tíutulo de Popular Political Economy. No ano seguinte ao da morte de Ricardo, William Thompson, em An Inquiry into the Principies of the Dis tribution of Wealth, deduziria já do postulado de que o trabalho é o único factor activo criador de riqueza, o direito do trabalho a toda a produção. Na sociedade tal como é, esse direito foi obliterado por um sistema de «tro cas desiguais» que resultou na apropriação de parte do pro duto do trabalho por aqueles que detêm o poder e vanta gens económicas. Mesmo abstraindo da grande injustiça desse sistema, que atenta contra a ideia da «felicidade máxima», de Bentham, este sistema tem ainda a desvanta gem de privar o trabalho de quase todo o incentivo (o que torna necessário o trabalho obrigatório): razão pela qual era inimigo da produção de riqueza. G. D. H. Cole, na sua introdução à reedição de 1922 do Labour Defended de Hodgskin, afirmou o seguinte acerca de Hodgskin e Thompson: «Hodgskin, em Labour Defended, e William Thompson, no seu Inquiry into the Principies of the Distribution of Wealth (1824) e em La- bour Rewarded (1827), foram os primeiros a formular com clareza uma crítica da classe trabalhadora e uma inversão do sistema económico ricardiano. As concepções construti vas de ambos diferiam, porém, muitíssimo. Thompson era um socialista cooperativista da escola de Robert Owen; Hodgskin era um anarquista filosófico, na tradição de Wil liam Godwin. Porém, as deduções que um e outro fizeram dos postulados de Ricardo são muito semelhantes.»* Anteriormente, em 1821, Piercy Ravenstone (que pode ser considerado um tradicionalista conservador, mais do que um socialista ricardiano, como é por vezes classificado)** propusera já uma teoria da «dedução» ou * Introdução a Thomas Hodgskin em Labour Defended against the Claims of Capital (Londres, 1922), p. 12. ** O Professor M. Blaug refere-se a ele como «o primeiro dos chamados socialistas ricardianos» 12
(Ricardian Economics, p. 141).
177
«apropriação» dos rendimentos da propriedade, que se aproxima em muitos pontos das ideias de Thompson e Hodgskin. Referira-se igualmente à «pretensão do proprie tário de terras» como estando na «base de todos os tipos de propriedade, que tão rapidamente se multiplicaram com o progresso da civilização»; dela «derivam as pretenções do dono de manufacturas, do comerciante, do capita lista». «Desse momento em diante, o trabalho deixa de ser livre. Nenhum homem pode exercer as suas faculdades sem pagar para obter licença para o fazer. Não pode fazer uso dos seus membros sem partilhar o produto do seu trabalho com aqueles que nada contribuem para o êxito dos seus esforços. O exercício do trabalho é efecti vamente proibido, tanto nas manufacturas, como no campo; o trabalho tem de pagar em toda a parte a taxa que lhe permite o seu exercício... O trabalhador tem de comprar permanentemente a licença para se tornar útil.»* Encontramos uma observação muito semelhante em Ri chard Jones, que é neste sentido um outro precursor de Marx, e, ao escrever sobre a renda, afirma que «no estado actual de progresso da sociedade humana, a renda tem ge ralmente a sua origem na apropriação do solo, feita numa época em que a maioria das pessoas se via obrigada a cultivá-la em quaisquer condições, sob pena de morrer de fome; e... permanecem escravizados... à terra por uma necessidade avassaladora; a necessidade que os obriga a
* P. Ravenstone, A Feio Doubts as to the Correctness of some opinions generally entertaineã on the subjects of Population and Political Economy (Londres, 1821), pp. 199-200. O autor diz-nos que, do ponto de vista histórico* «a renda e a escravidão não podem coexistir, são modalidades diferentes de atingir a mesma fina lidade... A escravidão é a consequência natural da propriedade num país pouco povoado, como também é a renda em países de população mais abundante» (p. 211). Diz-nos ainda que «o fundo para a manutenção dos ociosos, é constituído pelos excedentes da produção realizada por aqueles que trabalham» (p. 233). 178
pagar uma renda... é completamente independente de toda a diferença de qualidade da terra que ocupam, e não seria
abolida ainda que aquela fosse sempre igual.»* Se bem que se não possa considerar que estes autores constituam uma escola de teoria económica, não podemos deixar de observar que no continente, além do socialismo utópico de Saint-Simon e Fourier, que pregavam a igual dade e a harmonia natural dos homens que cooperavam como produtores, havia ainda a referir, em França, Proudhon, o autor de Qu’estce que la Propriété e inventor da frase «A propriedade é um roubo», e os seus discípulos. A frase citada era a réplica de Proudhon ao direito à pro priedade através do trabalho, defendido por Locke, e uma confirmação dos dois aspectos do direito de proprie dade que Ravenstone e Hodgskin tinham sublinhado. Prou dhon era no entanto um «distributivista», tanto quanto (ou talvez mais) um socialista: certo comentador referiu-se a ele como «sendo no fundo sempre um camponês».** Exer ceu uma influência mais anarquista do que socialista, em consequência de as duas ideias centrais da sua doutrina serem a de liberdade individual e igualdade; combatia o comunismo e o Estado autoritário, procurando uma solu ção para os males derivados do juro sobre o capital num sistema de crédito universal sem juros, organizado através de um Banco de Crédito Mútuo.*** Na Alemanha, devemos mencionar ainda o economista Rodbertus, com a sua teoria da mais-valia e da renda (que Marx viria a criticar num capítulo bastante longo de Theorien über den Mehrwert ) ,
An Essay on the Distribution of Wealth
* Rev. Richard Jones, (Londres, 1831), p. II. Marx atribuía a «um sentido da distinção histórica entre faltava «a todos os economistas ingleses Stuart» ( (Berlim, 1923), p. 450).
Jones o mérito de possuir os modos de produção» que desde os tempos de James Vol. III, ed. Karl Kautsky
Theorien über den Mehrwert, ** Alexander Gray, The Socialist Tradition (Londres, 1946), p. 256. *** Schumpeter classifica-o como anarquista e diz-nos que «a crí tica virulenta de Marx » ( Mispre de la Philosophie, 1847) fora «plena mente merecida, se bem que incorrecta em certos aspectos» (History of Economic Analysis, pp. 457-8). 179
para não falarmos já de um autor um pouco posterior, Eugen Dühring,* com a sua «teoria da força», que havia de despertar a ira de Friedrich Engels. Foram estes os precursores de Das Kapital de Marx, ou pelo menos os chamados «antecipadores» da sua teoria da mais-valia.** Além de Rodbertus e Proudhon, Marx criticaria também em pormenor, nas Theorien über den Mehrwert, as teorias de Ravenstone e Hodgskin; de modo particular as de Hodgskin, pois classifica os dois fascículos deste autor atrás citados como «incluídos entre os pro dutos mais significativos da economia política inglesa».*** Estes dois autores, se bem que se distinguissem mais pela sua intuição e bom-senso do que por uma análise rigo rosa, e que a solução que propusessem fosse incompleta, contribuíram para a descoberta de um factor importante, que os economistas ortodoxos não tinham sabido ver. Uma das falhas das suas teorias consiste em não terem conseguido demonstrar como é que as «trocas desiguais» ou a «mais-valia» podiam ser conciliadas com a «concorrên cia perfeita». II
Marx tem sido mais incompreendido e mais diver samente interpretado que qualquer outro economista de renome. O facto não é de estranhar, se tivermos em conta os aspectos ideológicos importantes implícitos tanto nos pontos positivos como nos pontos polémicos das suas doutrinas. Ê igualmente o mais contestado e refutado de todos. Bõhm-Bawerk, que pelo menos
* Trata-se dum contemporâneo de Marx, e não dum precursor; nascera em 1833 e viveu até 1921,, e a polémica de Engels data do fim da década de 70. ** Vide Alexander Gray, Socialist Tradition , pp. 257, 262. *** Theorien, ed. Karl Kautsky, (Berlim, 1923), Vol. Ill, p. 313 (a análise desse grupo de autores considerado globalmente ocupa as páginas 281-381). 180
o levou a sério (considerando que existia nele «a mesma mistura de méritos positivos e negativos que encontramos também no seu prototipo Hegel», e que ambos merecem a designação de «génios filosóficos»), anunciou aquilo a que dava o nome de «a destruição do sistema de Marx» (na sua obra polémica de 1896 intitulada Zurn Abschluss des Marx schen Systems ) , pronunciando simultaneamente a profecia duvidosa de que «o sistema Marxista não tem qualquer futuro.»* Marshall considerou-o um pensador tendencioso que falseou deliberadamente as teorias de Ricardo.** Edgeworth avaliou «o impacto das teorias de Marx» como «meramente emocional».*** Keynes, quando se digna reparar em Marx, considera-o como uma luminária no mundo sombrio dos heréticos, mas que tem menos para nos ensinar do que um reformador monetário relativa mente desconhecido como Silvio Gesell;**** e Samuelson qualificou-o de «um pós-ricardiano de pouca importância» — e de «auto-didacta».***** Ludwig von Mises é ainda mais categórico, na sua afirmação de que «O marxismo vai contra a lógica, contra a ciência e contra a própria actividade do pensamento»;****** enquanto um historiador inglês do pensamento económico falou, a pro pósito de Marx, de «uma exibição pedante de conheci mentos», de «uma patinagem artística em gelo pouco espesso, uma subtileza que se aproxima por vezes peri gosamente do sofisma», dizendo ainda que «nunca se viu
* Vide p. 158. ** Principles, sétima ed. (Londres, 1916), p. 503. ** * F. Y. Edgeworth, Papers relating to Political Economy (Lon dres, -925), Vol. Ill, p. 275 (observação que consta de uma crítica ao Karl Marx de Achille Loria e ao Revival of Marxism de J. S. Nicholson). **** J. M. Keynes, General Theory of Employment, Interest and Money (Londres, 1936), p. 355. **** * W ages and Interest: Marxian Economic Model’s, American Economic Review, Vol. X LV II, núm. 6, Dezembro de 1957, p. 911. ****** Socialism, trad. J. Kahane (Londres, 1936), p. 17. 181
em letra impressa um tal milagre de confusão, um exem plo tão supremo da maneira como não se deve racio cinar».* Com mais respeito e melhor compreensão da doutrina de Marx, Joseph Schumpeter fala-nos da «tota lidade da visão» de Marx, que «se afirma em todos os pormenores e está precisamente na origem do fascínio intelectual que exerce sobre todo o partidário ou inimigo que se dedique ao estudo da sua obra»; e considera Marx como «o único grande discípulo de Ricardo».** Em certo sentido, Marx foi sem dúvida um discípulo de Ricardo; e é por essa razão que dele se afirma por vezes, num sentido especial, quase hegeliano, de Aufhebung, que foi «o último dos economistas clássicos».*** O que podemos concluir com toda a certeza é que se situava numa linha de descendência directa de Ricardo, e que a sua versão e interpretação da doutrina desse economista foi confirmada pelo material novo incluído na edição de Piero Sraffa Works and Correspondence de Ricardo, que tão copiosamente citámos no capítulo 3. Schumpeter explica-nos do seguinte modo a sua referência ao «discípulo de Ricardo»: «Ricardo é o único economista
The Development of Eoonomic Dootrime
* Sir Alexander Gray, (Londres, 1931), pp. 300-2.
History of Economic Analysis, Economic Doctrine and Method
** Schumpeter, pp. 384, 596. Cf. tam bém J. Schumpeter, (Londres, 1954), p. 72: «considerava-se a si próprio como um continuador de Ri cardo»; e também pp. 119-22: «N a época em que fo i publicado o seu primeiro volume [de Marx], não havia na Alemanha ninguém que lhe pudesse ser comparado em vigor de pensamento ou em conhecimento teórico.» *** A escola de Economia Política Clássica era um termo cunhado pelo próprio Marx para descrever o sistema teórico de Adam Smith e Ricardo e dos seus contemporâneos mais imediatos — um período «notável em Inglaterra pela actividade científica no domínio da Economia Política», em que «se travaram torneios magníficos» e em que «a luta de classes está latente»j «manifestando-se apenas em fenómenos isolados e esporádicos» (Prefácio do autor à Segunda Edição de Vol. I, 1872: na ed. ingl. (trad. Moore and Aveling) p. XXII).
Das Kapitál,
182
que Marx considerou um mestre... Marx utilizou o método de Ricardo: adoptou o esquema conceptual de Ricardo, formulando os problemas em função das formas em que ele os definira. Sem dúvida que alterou essas formas, e que chegou a conclusões muito diferentes. Fê-lo, porém, partindo sempre de Ricardo, e criticando-o. A crítica de Ricardo foi o método que adoptou na sua obra puramente teórica».* Se pretendermos atingir uma perspectiva correcta da teoria económica de Marx, e partipularmente dos seus elementos originais, devemos considerá-los no quadro da sua concepção geral da evolução histórica, da qual Das Kapital pretendia ser uma aplicação particular. Temos ainda de analisar as origens especificamente hegelianas dessa concepção, a fim de compreendermos os cambiantes mais subtis das referidas doutrinas. Como se sabe, a dialéctica como padrão estrutural da evolução começou em Hegel, a partir do Ser abstracto como Inte ligência ou «Espírito». Para Marx, pelo contrário, a dialéctica da evolução radica na Natureza e no Homem, como parte integrante daquela. Se bem que faça parte da Natureza e esteja sujeito ao determinismo das leis naturais, o Homem, como ser consciente, distingue-se pela sua capacidade de se poder opor à Natureza — subor * Schumpeter, History of Economic Analysis, p. 390. E evidente que Marx tinha a maior consideração por Ricardo, apesar de criticar as suas limitações e de as ter ultrapassado: vide a sua referência a Smitht de quem afirma que não conseguiu, contra riamente a Ricardo, «elaborar uma visão teórica uniforme e completa dos fundamentos gerais e abstractos do sistema capita lista»; falando-nos, por outro lado, do «grande significado histórico da obra de Ricardo para a ciência... Relaciona-se intimamente com o serviço que prestou à ciência económica, o facto de Ricardo ter descoberto e proclamado a contradição económica entre as classes — que se manifesta nas suas relações intrínsecas — sendo assim analisadas e expostas, na ciência económica, as raízes da luta e do processo de desenvolvimento históricos» (K . Marx, Theories of Surplus Value: a selection, trad. G. A. Bonner e Emile Burns (Londres, 1951), pp. 129, 203-4; Karl Marx, Theories of Surplus Value, Parte I (Moscovo, s. d.), p. 86; Parte I I (Moscovo, 1968), p. 166). 183
dinando-a a ele e transformando-a de acordo com as suas próprias finalidades. Ê esta a única função da actividade produtiva do homem, do trabalho humano, diferenciando o homem de todas (ou quase todas) as outras criaturas vivas; e por essa razão as formas variadas e sucessivas da actividade produtiva, e de modo particular as relações cons tituidas entre os homens em sociedade, no exercício dessa actividade, formam o pano de fundo da história humana. Uma das principais características desta dialéctica entre o Homem e a Natureza, uma condição sine qua non do desenlace progressivo da mesma, foi a invenção e utilização de instrumentos produtivos, que eram simulta neamente materializações duradouras do trabalho e ajudas ao trabalho produtivo -— instrumentos «que o tra balhador interpõe entre ele e o sujeito do seu trabalho, e que lhe servem como condutores da sua actividade»;* são esses instrumentos que fazem do trabalho produtivo um processo colectivo e social, constituindo a principal razão da divisão do trabalho. «Na produção, os homens não só actuam sobre a natureza, como ainda uns sobre os outros. Só podem produzir colaborando de certa ma neira e trocando entre si as suas actividades respectivas.» E ainda: «Actuando assim sobre o mundo exterior e modificando-o, modifica simultaneamente a sua própria natureza.»** Daí a importância das forças produtivas para a compreensão da história humana, se bem que apenas em conjunção estrita com as relações sociais entre os homens no decurso da produção associadas estas forças produtivas (uma interpretação puramente tecnológica, que alguns têm criticado, por considerarem que empobrece e distorce o conceito). A explicação da divisão da história humana em vários períodos e da evolução da mesma residiria, pois, nos vários modos de produção, que se caracterizariam não só pelas formas técnicas, pela divisão
* Capital, Vol. I (trad. Moore and Aveling), p. 158. ** Ibid., p. 157. 184
do trabalho e as trocas, como ainda pelas diferentes formas de «relações sociais de produção» entre os seres humanos e entre as classes. Uma concepção histórica deste tipo, ao ser aplicada a um sistema económico determinado, terá forçosamente de o considerar do ponto de vista das condições de pro dução, incluindo factores socioeconómicos como a pro priedade ou não propriedade dos meios de produção, e os respectivos efeitos desses factores sobre a situação e comportamento dos vários grupos sociais ou classes. Deste modo, não só se define imediatamente a ordem da de terminação — condições e relações de produção que deter minam relações de troca — como ainda se definem os limi tes do campo de estudo (como já dissemos), que é assim mais vasto e diferente daquele que geralmente é analisado na teoria económica concebida como o estudo das «leis do mercado» (ou concebida a fortiori como o estudo formal da «adaptação de meios escassos a dadas finalidades», numa frase de Lord Robbins citada com muita frequência há quarenta anos atrás). O ponto de vista em questão ex plica igualmente a importancia atribuída ao Trabalho como actividade produtiva do homem, que Marx colocava no fulcro da sua doutrina. Este ponto de vista implica uma definição virtual da actividade produtiva,* e, cor relativamente, de apropriação ou exploração, no sentido de anexação ou recepção de parte dos frutos da produção, por aqueles que não contribuíram cora qualquer actividade produtiva e que não participaram pessoalmente no pro * «P rodutiva» não é o termo' adequado, na medida em que pode ser aplicado em contextos diferentes a tudo aquilo cuja presença ou ausência possa causar uma diferença na quantidade produzida; vide a afirmação de Marx de que «seria errado afirmar que o trabalho que produz valores de uso é fonte da riqueza por ele produzida, ou seja, de riqueza material» (.Critique trad. S. W. Ryazanskaia (Londres, 1971), p. 36), Mesmo L. Rogin (The Meaning and Validity Economic Theory (Nova-Iorque, 1956) p. 338) atribui à teoria de Marx a premissa de que «o trabalho vivo é a ünica fonte de outpv.t, de valor acrescentado». Para o sentido em que Marx emprega o termo «trabalho produtivo», vide atrás, Gap. 2, notas das pp. 81 e 83.
a única
of Political Economy,
of
185
cesso de produção per se. O conceito de «exploração» não é uma ideia «metafísica» ou um juízo ético (e ainda menos «um mero ruído»), como se tem afirmado por ve zes:* trata-se de uma descrição factual de uma relação socioeconómica, comparável à descrição, muito exacta, que Marc Bloch faz do Feudalismo, quando nos diz que se trata de um sistema no qual os senhores feudais «viviam do trabalho dos outros homens». Se a história for considerada como uma sucessão de modos de produção diferentes, caracterizados desde o início da era histórica até aos nossos dias por essa apropriação, é natural que comecemos por perguntar quais foram os meios e instru mentos políticos, militares, legais, económicos que a permitiram. Ao apreender a analogia existente entre as condições sociais vigentes no século XIX e ou tras formas anteriores de sociedades de classes, Marx não podia deixar de iniciar a sua análise pelo estudo da apropriação no sistema capitalista e de como se tomava possível, numa sociedade em que todos os fenómenos económicos eram regulados por relações con tratuais livres, que a concorrência no mercado assegu rasse, segundo os economistas, que a troca se realizasse sempre entre equivalentes, considerados segundo os «valo res naturais» smithianos. E se esta se efectuava sempre, ou predominantemente, entre equivalentes, donde surgia en tão o excedente? Há quem tenha afirmado que o conceito de explora ção, e portanto também o de mais-valia, teriam derivado da proposição de que os bens são trocados de acordo com as quantidades de trabalho que repre sentam, recorrendo talvez a uma doutrina lockeana do «direito natural», segundo o qual o trabalho implicaria * Po r ex., Prof. M. Blaug: « M ar x perde-se no problema pura mente metafísico de determinar se o capital é estéril ou produtivo, se o juro ou o lucro constituem uma paga por serviços prestados ou rendimentos roubados aos trabalhadores»* falando-nos dos «argu mentos emocionais de Marx no que se refere à natureza da mais-valia» (Economic Theory in Retrospect (Nova-Iorque, 1962; Londres, 1964), pp. 243, 247. 186
o direito da posse do seu próprio produto. Deste ponto de vista, a lei do valor seria uma premissa e a mais-valia uma consequência. Podemos afirmá-lo em relação aos socialistas ricardianos, que partiram de uma ou outra das seguintes premissas: ou que o trabalho dá direito à posse de todo o seu produto, ou que só o trabalho cria «valor» (se bem que nem sempre estabeleçam uma distinção clara entre o valor de uso e o valor de troca). Ora era precisamente neste ponto que Marx discordava das teorias ricardianas, considerando-a sugestivas, mas inadequadas; e não podemos de modo algum aplicar a afirmação às doutrinas de Marx. A analogia entre o capitalismo e as outras formas anteriores de sociedade, no que se refere à apropriação de um excedente por parte daqueles que não contribuíam com qualquer actividade produtiva, era para ele um dado histórico; uma observação extraída da experiência social. Era essa analogia com casos em que a apropriação dos excedentes do tra balho ou da produção se traduzia claramente em termos políticos ou era sancionada pela lei ou pela força militar, sendo reconhecida como tal, que Marx tentava sublinhar quando falava de uma forma especificamente capitalista de exploração. O problema especificamente económico consistia, não em provar essa analogia, mas em conci- liar essa afirmação com a lei do valor; em explicar como é que tal podia suceder na esfera da concorrência dos economistas, qual era a «mão invisível» que fazia com que tudo fosse trocado pelo seu «valor natural». No seu Valor, Preço e Lucro, Marx diz-nos em linguagem corrente: «Para explicar a natureza geral dos lucros, temos de partir do teorema de que, em média, os bens são vendidos pelo seu valor real, e que os lucros são obtidos vendendoos pelo seu valor... Se não for possível explicar o lucro a partir desta suposição, não é possível explicá-lo de maneira nenhuma.»*
* Valuet Price •and Profit, de Karl Marx, ed. Eleanor Aveling (Londres, 1899), pp. 53-4. Em itálico no original . 187
A teoria do valor tal como Marx a encontrava em Ri cardo era, pois, incompatível com este propósito. Nessa teoria atribuía-se uma importância primordial ao Trabalho como actividade produtiva do homem, sendo o valor de troca explicado a partir do trabalho. Marx começou por tanto por expor, no primeiro volume de O Capital, a sua teo ria da mais-valia, partindo do principio de que os bens são trocados pelos seus valores (isto é, proporcionalmente ao trabalho que representam); fazia-o não apenas para simplificar, mas sobretudo para demonstrar a origem e a persistencia da mais-valia no caso mais flagrante. O ponto de vista adoptado permitia-lhe ainda localizar nos factos e nas relações de produção a origem da mais-valia (contra riamente a William Thompson, com a sua teoria das «tro cas desiguais»), Marx tinha uma consciência clara daquilo que fazia e das limitações do caso que analisava, conforme no-lo demonstra uma afirmação que faz no volume I: «Se na realidade os preços divergem dos valores, teremos de começar por reduzir os primeiros aos últimos, ou seja, de considerar que essa diferença é acidental, a fim de poder mos observar os fenómenos em toda a sua pureza, e para que as nossas observações não sejam desvirtuadas por circunstâncias perturbadoras, que nada têm a ver com o processo em questão.»* Não foi só por uma questão de simplicidade e de adequação aos seus propósitos, que Marx considerou os Valores em termos de Trabalho, seguindo assim as pi* Capital, Vol. I, trad. Moore e Aveling- (Londres, 1886), p. 144. Uma alternativo de explicação deste ponto de vista seria dizermos, com Oskar Lange (num dos seus primeiros artigos que «Marx elaborou a sua teoria do valor primeiramente para um einfache WarenproduJct» [produção de bens simples], só mais tarde introduzindo uma «pequena modificação... não essencial do seu ponto de vista» ( ‘Marxian Economics and Modern Economics’, Review of Economic Studies, Vol. II, 1934-5, p. 198). Temos de observar que a «produção de bens simples» implica a propriedade dos meios de produção pelos seus produtores, de tal modo que, havendo embora mobilidade de trabalho e de meios de produção entre as várias indústrias, não haverá «mobilidade de capital» diferenciada, no sentido moderno do termo. 188
sadas de Ricardo; tinha ainda uma outra razão formal para o fazer. A maioria dos comentadores de Marx, à excepção talvez dos mais recentes, não parecem, porém, tê-la entendido. Como dissemos já, o ponto de vista que adoptara obrigava-o a partir do postulado de uma determinada taxa de exploração ou de mais-valia (ou de razão lucro-salário, nos termos de Ricardo), uma vez que esta era anterior à formação dos valores de troca ou dos preços, e que não podia logicamente ser deduzida destes. Por outras palavras, era necessário exprimi-la em termos de produção, antes de introduzir a circulação ou a troca. Como seria então possível exprimir a taxa de mais-valia como um dado inicial? Não era satisfatório exprimi-la em termos que seriam por sua vez relativos a alterações na própria razão. Era possível exprimi-la em termos de um único bem, por exemplo o Trigo, tal como o fez Ricardo inicialmente, transformando assim essa razão numa razãoproduto, não afectada pelas variações dos valores de troca ou dos preços. Caso essa noção já tivesse sido inventada, poderia também utilizar-se qualquer coisa como o conceito de bem-padrão compósito de Sraffa, que adiante analisare mos. Porém, para os propósitos imediatos de Marx era muito mais conveniente não tomar como referência um único bem, mas antes exprimir a mais-valia em termos de Trabalho; como de resto o fizera já Ricardo para determi nar a razão lucro-salário com base na margem da indústria de bens-salário. A taxa de exploração podia assim ser ex pressa como uma razão entre duas quantidades de trabalho (médio), o que revelava simultaneamente a origem da mais-valia. Se os bens eram trocados em proporção ao trabalho despendido, as alterações dessa taxa não podiam afectar per se os valores de troca relativos, e as alterações destes últimos também não podiam actuar sobre a razão de exploração, quando esta assim fosse expressa. A categoria do Valor (Trabalho), ou a «apro ximação» do Volume I, traduzia assim um conceito 189
essencial, que de outra maneira não poderia ter sido introduzido.* Dado o facto de a análise económica apresentar hoje em dia um carácter tão exclusivamente quantitativo, atrevemo-nos a acrescentar um outro comentário, que esperamos não constitua uma repetição daquilo que está já implícito nas nossas afirmações anteriores. Se bem que Marx estivesse pelo menos tão interessado como Ricardo em demonstrar a existência de uma relação quantitativa entre as condições de produção e os valores de troca ou preços reais (quanto mais não fosse porque, de outro modo, existiria uma lacuna entre a análise em termos de valor do primeiro volume e os fenómenos de mercado reais), procurava igualmente demonstrar o aspecto qualitativo ou relacional dos fenómenos econó micos, particularmente no que se refere à repartição dos rendimentos. Considerava que este aspecto era cruciai para a compreensão do carácter específico e do funcio namento do tipo capitalista da sociedade de classes. Pre tendia patentear a «essência oculta» e a «forma interior» que se ocultava sob «aparências exterio res» superficiais, sob a «aparência de mercado» das coisas. É por essa razão que há quem tenha afir mado que a teoria de Marx deve ser vista como uma
* A o argumento 'de que a L ei do Va lor era uma «primeira aproximação» baseada em postulados simplificados, replica o Professor Samuelson que «a ciência e a economia modernas estão cheias de primeiras aproximações simplificadas, mas toda a gente admite que possam ser inferiores às segundas aproximações, pelo que as abandonamos quando são contestadas» (The Collected Economic Papers of Paul A. Samuelsonz Vol. I (Cambridge, Mass., 1966), ed. J. E. Stiglitz, p. 348). Esta resposta irónica pode ser válida para os casos em que a «primeira aproximação» não contenha nada de essencial que não possa ser expresso igualmente bem e com a mesma facilidade noutros termos. Não pode, porém, ser aplicada aos casos em que exista na primeira aproximação algo que não apareça já nas outras aproximações, ou que nelas não possa ser expresso com a mesma facilidade (por exemplo, a primeira aproximação pode servir para sublinhar um aspecto mais geral e menos particular). 190
«sociologia económica», e não como análise económica, no sentido moderno e mais restrito do termo. Oskar Lange exprimia algo de muito semelhante, afirmando que «a supe rioridade da economia marxista» reside na sua «especi ficação exacta dos dados institucionais que distinguem o Capitalismo do conceito mais geral de uma economia de troca», permitindo assim «a definição de uma teoria da evolução económica» que a teoria económica vulgar ignora.* Era este o aspecto que Marx sublinhava na sua análise do nível de Valor, no volume I, e foi também essa a sua grande contribuição para a ciência económica. O facto de a análise ser feita em função da categoria de Valor, pressupunha a aceitação de determinados postula dos implícitos, do género daqueles que Ricardo definira no início do seu capítulo sobre o Valor, se bem que cedo tenha renunciado a eles. Esses postulados consis tiam numa uniformidade no que se referia aos as pectos específicos das condições de produção das indústrias constituintes ou linhas de produção (po deríamos considerar igualmente que o autor ignora mo mentaneamente a ausência de uniformidade, detendo-se na configuração global —- ou ainda que se refere a uma situação de mobilidade de trabalho entre as indús trias, mas em que ainda não existia mobilidade de capital no sentido moderno). Essa uniformidade pode ser expressa em termos da razão capital-trabalho,** ou naquilo a que Marx daria o nome de «composição orgânica do capital», ou ainda (de uma forma diferente), considerando que se parte do princípio de que todo o capital consiste em adian tamentos de salário feitos aos trabalhadores, adianta mentos esses que têm lugar em todas as linhas de
* Politioal Efíonomy, pp. 196, 201. As palavras «economia de troca em geral» são a tradução do einfache a que nos referimos numa nota anterior (p. 188), sendo a tradução mais usual a de «produção de bens simples». ** Incluindo os períodos de circulação do capital circulante e a durabilidade do capital fixo.
Warenprodukt
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produção por períodos de tempo idênticos.* Em terminolo gia moderna, poderíamos afirmar que, dado o interesse do autor nesse estádio pelo quadro macroscópico e pelo padrão geral de repartição e troca, considerava possível e legítimo esse grau de abstracção. Os pormenores das relações microscópicas, com as suas complicações adicionais, que incluíam divergências entre os preços indi viduais e os valores (divergências essas que, ao nível microscópico, se revestiam indubitavelmente de grande importância), eram para o autor de importância secun dária,** e só mais tarde seriam analisadas. Considerava-as portanto, do mesmo modo que Ricardo, como modi ficações secundárias do princípio central. A resposta de Marx ao problema da reconciliação da mais-valia com a prevalência da «lei do valor» era muito simples, uma vez que o problema já tinha sido equacionado, e é hoje muito conhecida. Baseava-se numa distinção, a que atribuía importância crucial, entre trabalho e força de trabalho. Definia esta última, em O Capital, como «a energia transferida para um organismo humano através da matéria nutritiva» e como «o agregado das capacidades físicas e mentais de um ser humano, que este põe em acção sempre que produz um valor de uso de qualquer espécie».*** A «maté ria nutritiva» indispensável à reposição da energia despen dida no trabalho era o input material do trabalho humano; e a existência e montante da mais-valia dependiam do facto de o primeiro valor ser inferior ao valor «criado» como output pelo trabalho que sustentava. Referia-se à dife rença entre um e outro, como sendo a diferença entre «o
* Eln termos da equação de Dmitrie v que citámos na p. 150, equivale à uniformidade dos í. ** Desde que, obviamente, sejam suficientemente pouco impor tantes para não influírem nas generalizações formuladas a nível macroscópico. *** G
tempo de trabalho necessário» (o input ) e o tempo de trabalho total realmente gasto na produção.* Esta diferença era muito semelhante à diferença de Ri cardo entre «produção e o consumo necessário a essa produção». Por outro lado, essa diferença só era possível — e neste ponto foi introduzido o dado histórico ou institucional de importância crucial — devido à exis tência de um proletariado despojado de terras e de quais quer outras formas de propriedade, e cuja subsistência dependia portanto da venda da própria força de trabalho em troca de um salário. (A outra condição da constituição da mais-valia seria a existência de excedentes de força de trabalho para além da que era comprada e em pregue.) «As condições históricas da sua existência [do Capital]», escreve Marx, «não consistem na sim ples circulação da moeda e dos bens. Ele só pode surgir quando o possuidor dos meios de produção e subsistência encontra no mercado o trabalhador livre que pretende vender a sua força de trabalho.»** Por outras palavras, a força de trabalho devia tornar-se um bem vendido no mercado, e vendido pelo seu valor, de
* Neste ponto pode fazer-se a seguinte pergunta: quando se diz que os inputs criam mais outputs do que o necessário para a sua reposição, considerando que reside aí a fons et origo dos excedentes da produção, porque não há-de ser também esse o caso em relação a outros inputs que não o trabalho neste caso, porque é que se atribui tanta importância a uma diferença deste tipo, em estreita ligação apenas com o trabalho? A resposta (que pela reflexão se torna evidente) é que quando se fala da maisvialia como categoria da distribuição' dos rendimentos, a diferença atribuída ao trabalho como um input é condição necessária para atingir tal resultado. O Professor M. Morishima (Marx’s Economics: A Dual Theory of Value and Growth (Cam bridge, 1973) ) pôs o problema nos seguintes termos: «a exploração dos trabalhadores pelos capitalistas é a condição necessária e suficiente para a existência de um conjunto de preços não-negativos -e para que a taxa de salários apresente em todas as indústrias lucros positivos», designando esta proposição pelo nome de «O teo rema marxista fundamental». **
Ibid., p. 148. 193
acordo com as «regras do jogo» da concorrência.* Aquilo a que Marx dava o nome de «taxa de mais-valia» (a razão entre a mais-valia e o salário adiantado, ou o preço de compra da força de trabalho) dependia, quando considerada dum ponto de vista global, da proporção entre a força de trabalho empregue e a força de trabalho total necessária à produção da subsistência dessa força de trabalho. Era essa a taxa de exploração que estava na raiz tanto da estrutura da repartição dos rendimentos (e de modo particular da repartição entre proprietá rios e não-proprietários) como da estrutura dos preços relativos. Em consequência do que acabamos de referir, a repartição dos rendimentos passava a ser interpretada como o produto historicamente relativo de um dado con junto de condições históricas ou institucionais. Esta teoria, tal como a de Ricardo, tem sido com batida com o argumento de que Marx se baseia numa teoria de salários de subsistência, que não pode portanto ser aceite nas condições actuais.** Podemos responder de dois modos. Em primeiro lugar, que Marx, tal como o fi zera Ricardo antes dele, declarava expressamente que não atribuía ao «valor da força de trabalho» um sentido de subsistência meramente física: a definição prática daquilo que era considerado como «necessário» em qual quer época e lugar incluía «um elemento histórico e mo ral».*** Por outro lado, o trabalho especializado, «a força de trabalho de um tipo especial exige uma educação * Na famosa lição reeditada com o título de WageLabour and Capital (Londres, 1933, pp. 26-7), referiu-se ao «custo de produ ção da força de trabalho» e ao «custo da existência e procriação do trabalhador» como «fixando o salário mínimo». ** O Prof. N. Kaldor, por exemplo, na sua conferência de Pequim de 1956, defendeu que «o esquema marxista é válido... para os primeiros estádios do desenvolvimento capitalista» apenas (o Capi talist Evolution and Keynesian Economics’, Essays on Economic Stability and Growth (Londres, 1960), pp. 243-58). *** Capital, Vol. I (trad. Moore e Aveling) p. 150. Acrescenta ainda as seguintes palavras: «o que constitui uma contraposição ao caso dos outros bens». «O número e o grau das chamadas necessidades, 194
ou treino especial, que custa por sua vez um valor equiva lente em bens, de maior ou menor montante. O montante desses bens varia de acordo com o carácter mais ou menos complexo da força de trabalho. As despesas feitas com essa educação... entram pro tanto no valor total gasto na produção.»* Os elementos «convencionalmente necessários» de Marshall** estão portanto incluídos aqui; poderíamos mesmo concluir que a teoria da subsistência de Marx não se resume a esta, mas pode considerar-se uma teoria dos salários ■ «oferta-preço», segundo a expressão de Marshall. Em segundo lugar, Marx referia-se inicialmente a um mercado de trabalho «puro», caracterizado pela concorrência perfeita e pelo ajustamento individual dos preços. Admitia portanto que o preço da força de trabalho podia vir a ser mais elevado do que o seu verdadeiro valor (ou tornar-se-lhe infe rior, em determinadas circunstâncias), e não ape nas temporariamente, mas permanentemente, na me dida em que as condições desse mercado «puro» da força de trabalho fossem alteradas ou perturbadas. A este respeito, considerava o ajustamento colectivo de sa lários negociado pelos sindicatos como uma influência transformadora potencialmente importante, e «toda a combinação de empregados e desempregados», nos sindi catos, como «perturbadora» da «acção harmoniosa» da lei
tal como as formas de as satisfazer, são por sua vez o produto da evolução histórica, dependendo logicamente, em grande medida, do grau de civilização do país, e mais particularmente das condições em que se constituiu a classe dos trabalhadores livres, dos hábitos e do grau de conforto de que esta usufrui.» (citando Torrens e Thornton). Sublinha esse mesmo aspecto na sua famosa lição Value1 Price and Pro fit, ed. Eleanor Aveling (Londres, 1899), pp. 85-8. *
Capital,
Vol. I, pp. 150-1.
** A. Marshall, Principies of Economics, 7.a ed. (Londres, 1916), p. 70: coisas de tal ordem que «para as obter, o homem e a mulher médios estão prontos a sacrificar certas outras». 195
da oferta e da procura.* Numa situação generalizada de ajustamento colectivo de salarios, como a que viria a caracterizar, no século seguinte, os países industriais avan çados, surgia pois um novo elemento institucional; e para calcular a taxa de mais-valia, tornar-se-ia necessário ter em conta essa influência.** Resta-nos ainda referir o papel primordial que Marx atribuía, na sua teoria da mais-valia, à existência do chamado «exército de reserva industrial». En quanto a teoria dos salários de Ricardo se baseava na lei da população de Malthus — no postulado da exis tência de uma oferta de trabalho muito elástica, por razões malthusianas — Marx repudiava em absoluto tal postulado, afirmando a existência crónica e re-criação periódica (através de inovações técnicas tendentes a pou par trabalho, inovações suscitadas por qualquer tendência para a elevação dos salários que acarretasse uma dimi nuição da mais-valia) de uma reserva constituída por uma reserva de trabalho excedente. Tratava-se de «uma lei da população característica do modo capitalista de pro dução».*** Era este o factor que desempenhava a função, crucial para o sistema, de refrear a tendência para uma elevação dos salários proporcional à acumulação crescente
* Capital, Vol. I (trad. Moore e Aveling), p. 655. Esta especificação) incluída no fim da secção onde se fala do «empobrecimento absoluto», tem sido ignorada pela maior parte dos comentadores de Marx. Na sua argumentação contra «Citizen Weston», que .citámos já, afirma que os trabalhadores «'devem unir-se para lutar por uma subida dos salários», e que essa luta pode ser até certo ponto coroada de êxito (Value, Price and Profit, p. 12). ** Deverá então fixar-se, para propósitos formais um determinado nível de salários reais (ou uma certa quantidade de mais-valia a acrescentar ao salário adicional ao «valor da força de trabalho»), Cf. Observações no Cap. 9 sobre a fórmula adoptada por Sraffa. *** Capital, Vol. I, p. 645. Acrescesta: «Na realidade, todo o modo de produção histórico específico tem as suas próprias leis da po pulação, historicamente válidas apenas dentro dos seus limites. A lei abstracta da população só existe no caso das plantas e dos animais, e apenas na medida em que o homem nela não tenha interferido.» 196
do capital,* fornecendo a resposta à pergunta: se há uma diferença entre o valor da força de trabalho e do seu pro duto, porque é que essa diferença não desaparece a longo prazo, com o progresso e expansão do próprio sistema? Uma situação em que os excedentes de mão-de-obra desa parecessem, e prevalecesse o pleno emprego, seria de grande instabilidade para o modo de produção capitalista, que provavelmente lhe não poderia sobreviver.** Após ter enunciado a sua teoria da mais-valia, que considerava como uma consequência da diferença entre o valor da força de trabalho como tal, enquanto vendida como um bem, e o valor do seu produto, Marx passou a classificar em dois tipos genéricos os processos de aumento da taxa de mais-valia. O primeiro, que se reves tia de uma certa importância nos meados do século XIX, consistia no aumento da Mais-Valia Absoluta, através de um prolongamento do dia ou da semana de trabalho, de tal modo que «o excedente do tempo de trabalho» da força de trabalho existente aumentasse de modo absoluto e rela tivamente ao «tempo de trabalho necessário» (gasto na reposição do valor da força de trabalho ou dispendio em salários). O segundo tipo consistia no aumento da Mais-Valia Relativa, através da redução do «tempo de trabalho necessário» proporcionalmente ao tempo de tra balho total, sobretudo através do aumento da produtivi dade do trabalho no sector da produção de bens. Observe-se que só o aumento da produtividade no sector da produção de bens de consumo pode ter este efeito; o aumento da pro dutividade noutros sectores só tem o efeito de reduzir outro tanto o valor do respectivo produto, mantendo-se o valor da força de trabalho inalterado.*** Se bem que, contraria* Dessa forma «a subida dos salários só se pode processar dentro de certos limites que... deixam intactas as bases do sistema capitalista» (ibiã., p. 634). ** A menos que fosse implantado qualquer tipo de «Estado Cor porativo» servil, ou pelo menos o controlo legal dos salários. *** Cf.: « A taxa geral de mais-valia é portanto afectada, em última análise, pela totalidade do processo apenas quando o aumento 197
mente a Ricardo, Marx não acreditasse na possibilidade deu ma tendência a longo prazo de diminuição dos lucros (no sentido histórico), é possível que o facto de a agricul tura pesar tanto no sector da produção de bens de con sumo, apesar da pequena ou nenhuma influência que os métodos industriais modernos nelas exerciam, tenha le vado Marx a atribuir um peso relativamente fraco a esta tendência em certos contextos (ou seja, a baixa da taxa de lucro), quando seria de esperar que a tivesse consi derado de maior importância. Ill
Só no terceiro volume Marx se refere aos casos específicos ocasionados pelas diferenças na «composição do capital» entre as várias indústrias (e àquilo a que dá o nome de «período de renovação do capital variável»).* Procede ao tratamento desta matéria introduzindo a cate goria de «Preços de Produção», que divergem dos «Valo res» da análise do primeiro volume devido à necessidade da uniformidade da taxa de lucro sobre o capital — aquilo que qualificou jocosamente de «comunismo capita lista inconsciente» — pois caso contrário o capital ten deria a emigrar das indústrias de baixa taxa de lucro para as de elevada taxa de lucro, até que, em virtude da concorrência que assim se estabeleceria, se vol tasse a atingir a desejável igualdade. A taxa de mais-valia (ou razão entre a mais-valia e as despesas ■da produtividade do trabalho se processou naqueles sectores de pro dução relacionados com os meios de subsistência necessários, embaratecendo os bens incluídos nessa rubrica, que são assim elementos do valor da força de trabalho» ( i b i d p. 308). * Marx estabelecera previamente (Vol. II , trad. E. Untermann, ed. Kerr (Chicago, 1925)_ pp. 336 e seguintes) uma distinção entre a «ta xa simples de mais-valia» (ta xa de excedente para salários despendidos durante um único ciclo de produção) e a «taxa anual», que era igual à primeira multiplicada pelo número de vezes que o capital variável despendido em salários rodava no decurso do ano. Era esta última que interessava à formação da taxa anual de lucro (cf. Vol. HE, trad. Untermann, ed. Kerr (1909), pp. 87-91). 198
em salários), não é portanto uniforme nas várias indús trias. Introduzira já anteriormente a distinção entre Capital Constante e Capital Variável, que considerava mais exacta do que a distinção tradicional entre Capital Fixo e Capital Circulante; sendo o Capital Variável o capital adiantado sob a forma de salários na compra directa da força de trabalho, e o Capital Constante o capital investido em inputs de bens, quer de ma térias primas, combustíveis e componentes, quer de intrumentos duradouros e de estruturas, geralmente clas sificados como capital fixo. (A linha divisória entre os dois tipos de capital variará de acordo com o grau de integração vertical da indústria.) Enquanto a taxa de mais-valia era designada pela razão s/v, a taxa de lucro era s/(v + c), sendo v e c res pectivamente o capital variável e o capital constante.* A razão c/v constituía a composição orgânica do capital. Marx definia os Preços de Produção como o Preço de Custo (igual ao custo dos salários mais os elementos do capital constante que entravam no output)** adicionados à taxa de lucro médio ou normal do capital investido.*** Daí que, em função da taxa simples de mais-valia, ou razão de exploração a que nos referimos, a taxa de lucro será tanto mais elevada quanto mais curto for o período de renovação do capital variável, e será tanto mais baixa quanto mais alta for a razão entre o capital constante e o capital variável, ou a «composição do capital». O primeiro caso será equivalente à «durabili dade do capital circulante» de Ricardo, e o segundo às «proporções do capital» e «durabilidade do capital fixo», do
* Cf. «a mais-valia calculada em função do capital variável é a taxa de mais-valia. A mais-valia calculada em função do capital total é a taxa de lucro... A taxa de lucro pode permanecer inal terável e contudo representar taxas de mais-valia diferentes.» ( C a p i t a Vol. III, trad. Untermann, ed. Kerr (Chicago, 1909), p. 55). ** No caso dos elementos duradouros, era só a parte depreciada desse stock que entrava em linha de conta no Preço de Custo. *** Ibid., p. 186. 199
mesmo autor. * Consequentemente, quando a compo sição do capital era superior à média (e/ou a rotação do capital variável inferior) a concorrência, exprimin do-se sob a forma de «migração» do capital, provocaria uma subida dos preços de produção acima dos valores, ao passo que, no caso contrário, estes seriam mais elevados do que os preços de produção. Ricardo exprimira o efeito das diferentes proporções e durabilidades do capital em termos do efeito diferencial de uma subida de salários sobre os preços; Marx exprime-o em termos de diver gência entre os preços de produção nos casos individuais e os valores.** É no mesmo contexto e imediatamente a seguir (na Parte III do Volume III), que Marx nos expõe a sua solução para o problema clássico da chamada tendência para a descida da taxa de lucro. Essa solução tem sido muito discutida e interpretada de maneiras diversas, tanto no que se refere ao movimento dinâmico a longo prazo do sistema, como à interpretação das crises económicas periódicas. Se as diferenças de composição orgânica do capital entre as várias indústrias fossem responsáveis por uma «redistribuição» da mais-valia entre as mesmas, proporcionalmente ao capital, poder-se-ia supor que as alterações dessa composição explicariam as alte* Marx ignorou durante quase toda a sua análise dos Preços de Produção o efeito deste factor, empregando um «modelo de eapital-trabalho» e adoptando o postulado simplificado!- de que o capital constante era renovado uma vez por ano (uma hipótese muito clássica, como Snaffa o sublinhou). Cf. ibid., p. 183: «postulamos, por uma questão de simplificação, que o capitai constante é sempre transferido uniformemente e por inteiro para os produtos anuais dos capitais referidos». Três páginas adiante (p. 186), sublinha que quando se pretende calcular os preços de produção, tem de se calcular a taxa de lucro «sobre o capita! total investido (e não apenas consumido)». ** O preço de produção «é, no fundo, aquilo a que Adam Smith chama preço natural, Ricardo preço ãe produção ou custo de produção, e os fisiócratas pri x nécéssaire, pois é a longo prazo uma das condições prévias da oferta» (ibid., p. 233; em itálico no original).
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rações a longo prazo da taxa de lucro. Enquanto Ricardo recorrera a uma diminuição dos lucros como explicação, Marx considerava o aumento da razão entre o capital constante e o capital variável, e de modo parti cular entre o capital fixo e o trabalho assalariado, como um efeito das inovações técnicas, que contribuem assim para a descida da taxa de lucro implicada por uma dada taxa de mais-valia. Após ter feito esta afirmação, passa a enumerar uma lista de «causas compensatórias», que incluíam o aumento da «mais-valia relativa» (em conse quência do aumento de produtividade rias indústrias de produção de bens de consumo) e o «embaratecimento dos elementos do capital constante». Além desta, não há qualquer outra referência à possibilidade de o progresso da técnica dar origem a invenções que possam «poupar capital» ou «poupar trabalho» (o progresso da técnica, tal como se verificava no século xix, processava-se no sentido do segundo caso); não há tão-pouco qualquer referência à força relativa de futuras «tendências» ou «contra-tendências».* É provável que Marx, tal como os outros economistas do início e meados do século XIX, partisse do princípio de que se tratava de uma tendência da época, que exigia uma explicação; e procedia a análise tendo em conta esse aspecto, abstendo-se de formular previsões dogmáticas. Não sabemos se a considerava ou não como um dos factores causadores das crises perió dicas. Anteriormente, afirmara que quando a acumulação de capital excede a oferta de força de trabalho, reduzindo a um baixo nível o exército industrial de reserva (como tende a acontecer nos períodos de prosperidade), o investi mento pára até que uma subida de salários provoque uma descida dos lucros; o que nos leva a crer que tenha
* Fa z apenas a afirmação muito vaga de que «o aumento da taxa de mais-valia... não invalida a lei geral. Implica apenas que essa lei se transforme numa tendência ou seja, numa lei cuja acção é retardada, impedida ou enfraquecida por influências com pensatórias» ( Capital, Vol. 113* trad. Untermann, ed. Kerr (1909), p. 275).
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considerado esse fenómeno como uma razão plausível e suficiente para que o período de prosperidade termine. Marx «admitira» (conforme afirmam os críticos) no Volume III que no sistema capitalista a troca se efectuava aos Preços de Produção, o que, segundo Bõhm-Bawerk, constituiria a «Grande Contradição» que está na base do sistema marxista.* Este autor escreverá, referindo-se ao Volume III: «Não considero que haja neste ponto uma explicação ou reconciliação de uma contradição, mas ape nas a contradição em si. O terceiro volume de Marx contradiz o primeiro. A teoria da taxa média de lucro e dos preços de produção não pode ser conciliada com a teoria do valor. Creio que todo o pensador lógico será desta opinião.» Conclui: «Não tenho qualquer dúvida. O sistema marxista tem um passado e um presente, mas não tem um futuro duradouro.»** É certo que Marx nunca demonstrou de maneira satisfatória a relação entre os Preços de Produção e os Valores, ou a maneira como aqueles «derivavam» destes; na ausência de uma tal demonstração, não havia bases lógicas para afirmar que os primeiros eram determinados pelas condições de pro dução e pelas relações sociais de produção que analisara no Volume I. Os exemplos aritméticos a que recorre para demonstrar essa relação não são satisfatórios, na medida em que a transformação em Preços de Produção só é aplicada aos outputs, e não aos inputs (pelo que se serve da mesma taxa de lucro que aplicara já na situação de valor). Se bem que Marx se mostrasse consciente de que a sua solução era incompleta e se referisse à natureza real do problema, nunca chegou a apresentar exemplos*** mais
ZumAbschluss des Marxschen System, 1896; trad. ingl. de Alice M. Macdonald* Karl Marx and the Glose of his System (Londres, 1896). ** Ibid., pp. 64, 218. ** * Cf. Marx, Capital, Vol. III, p. 194: «Ora, o preço de produção *
de um determinado bem é o seu preço de custo para o comprador, e esse preço pode ser integrado no de outros bens e tornar-se num elemento dos seus preços... Há sempre uma possibilidade de 2 0 2
desenvolvidos — talvez devido ao facto de o Volume III não ter sido acabado, e muito menos revisto. Parece, além disso, professar a opinião de que os preços totais serão iguais aos valores totais, e, por outro lado, de que o lucro total será igual à mais-valia total: condições que são incompatíveis, a não ser em circuns tâncias excepcionais.* Discussões posteriores do «Problema da Trans formação» (conforme é designado) demonstraram, no entanto, que a polémica lúcida de Bõhm-Bawerk era demasiado superficial para atingir a essência do pro blema (que parece ter compreendido mal) e que os Valores e os Preços de Produção não são necessaria mente contraditórios, ainda que assim o pareçam. Ou seja, estes últimos podem ser deduzidos dos primeiros (ou das condições de produção, incluindo os dispêndios de tra balho expressos pelos Valores, mais a taxa de explo ração fundamental). Uma vez que tanto os inputs, incluindo a força de trabalho, como os outputs devem
erro, se postularmos que o preço de custo dos bens de qualquer esfera particular é igual ao valor dos meios de produção nela consumidos.» Cf. também Vol. III, ed. Kautsky (Berlim, 1923), pp. 200-1, 212. Vol. i n , pp. 185 e seguintes. Diversos autores têm * observado que do ponto de vista dos propósitos de Marx, a igualdade das diferentes relações entre a situação de valor e a situação de preço era o factor essencial. O professor Meek, por exemplo, sugere que o que Marx pretendia expor era que «depois da conversão dos valores em preços, a proporção fundamental da qual dependia o lucro podia ainda ser determinada em função da análise do Volume I » — particularmente a proporção entre o total e os salários totais: uma igualdade que existe quando «a composição orgânica do capital nas indústrias de produção de bens de consumo é igual à média social» (Meek, p. 154). Cf. também A. Emmanuel, trad. de Brian Pearce, Londres, 1972, pp. 390 e seguintes. Parece no entanto que a possibilidade de verificação dessa condição particular será de importância secundária relativa mente à possibilidade de deduzir relações de preço das relações de valor ou situações de valor. Conhecidas estas últimas, serão as primeiras realmente importantes?
Theorien über den Mehrwert,
Capital,
output
anã lãeology anã Other Essays, XJnequal Exchange,
Economías em geral 203
ser expressos em termos de preços, e uma vez que a taxa de lucro será provavelmente afectada por essa conversão,** ambos os factores devem ser tratados si multaneamente e segundo a sua interdependência, isto é, resolvendo um sistema de equações simultâneas. O primeiro a demonstrar que era possível proceder dessa forma, adaptando as equações de Dmitriev (a que nos referimos já) foi Bortkievicz. Bortkievicz empregou um modelo tri-sectorial: um sector produtor de bens de con sumo, outro de elementos de capital constante e o terceiro de bens de luxo, consumidos pela mais-valia. Postulando condições estáticas e um investimento líquido igual a zero (a «reprodução simples» de Marx), segue-se que a oferta de output de cada um dos sectores ou departamentos da indústria é necessariamente igual à procura da mesma por parte da soma dos rendimentos significativos correspondentes aos três sectores (nas tabelas a soma das colunas tem de ser igual à soma das filas significativas; isto é, o preço total dos bens de consumo é igual à soma dos salários pagos nos três sectores). Um pormenor curioso desta solução, que tem suscitado muitas críticas, é o facto de apresentar a taxa de lucro como dependente exclusiva mente das condições de produção (particularmente da com posição do capital, dada a taxa de mais-valia) nos sectores de produção de bens de capital e de bens de consumo. As circunstâncias do terceiro sector, aquele que pro duz bens de luxo para o consumo capitalista, não são signi ficativas. («A taxa de lucro, dada uma determinada taxa de mais-valia, depende exclusivamente da composição orgânica do capital nos Departamentos I e II»). Para Bortkievicz «este resultado não é surpreendente do ponto de vista da teoria do lucro que considera que
** A s excepções a esta regra são: o caso em que não existe capital constante numa indústria de produção de bens de consumo, mas apenas capital variável (isto ét o caso ricardiano simples),, aquele em que a taxa de lucro na situação de preço é igual à taxa de mais-valia, e o caso referido pelo Professor Meek na nota anterior. 204
a origem deste reside no ‘excedente de trabalho’»,* con firmando aquilo a que, inspirando-se em Adam Smith, ele chama uma «teoria da dedução» do lucro. «Se é certo que o nivel da taxa de lucro não depende em nada das condições de produção dos bens que não entram em linha de conta para os salários reais, deveremos procurar a origem do lucro na relação de salários e não na capacidade de desenvolvimento da produção por parte do capital. Pois se essa capacidade fosse significativa, não ha veria explicação para o facto de cert;as esferas da produção não serem relevantes no que se refere ao problema do nível de lucro.»** Podemos estabelecer por tanto um paralelo muito estreito com Ricardo, o qual, como já vimos, considerava que o Lucro era exclusiva mente determinado pelas condições na indústria de bens de consumo (agricultura). Dado que Ricardo não consi dera o capital fixo no que se referia à produção de bens de consumo, tratando o capital como exclusivamente constituído por «adiantamentos de salários» (o «capital variável» de Marx), na sua teoria a taxa de lucro deri vava unicamente das condições no sector da produção de bens de consumo, sendo portanto idêntica à taxa de mais-valia. Creio que a demonstração de Bortkievicz podia ser aplicada a um número de indústrias muito superior aos três sectores ou indústrias por ele considerados. O Dr. Francis Seton provou mais recentemente a possibi lidade de aplicação da demonstração de Bortkievicz ao caso de n indústrias; concluindo que o facto demonstra a solidez da «superstrutura lógica» da teoria de Marx.***
Karl Marx and the Glose of his System by E. von BõhmBawerk anã BohmBawerk’s Criticism of Marx by Rudolf Hilferding, ed. Paul M. Sweezy (Nova-Iorque, 1949), p. 209. ** L. von Bortkievicz, ‘Value and Price in the Marxian System’, International Economic Papers, no. 2, p. 33. Neste caso, os bens *
Apêndice a
de luxo são aquilo a que Sraffa chama (como veremos mais adiante) os bens «não-básicos». ** * F. Seton, ‘The Transformation Problem’ , Vol. 24, 1956-7, pp. 149-60. (Este autor exprime igualmente o seu desacordo com a definição de lucro como
Studies,
Review of Economic 205
A mesma demonstração está implícita nas equações de Sraffa, nas quais os preços derivam das condições de produção (sob a forma de registo das quantidades de todos os inputs, incluindo a força de trabalho, neces sários para a produção de n outputs), que analisaremos mais adiante.* A discussão deste aspecto da questão, tal como de toda a estrutura formal da teoria de Marx em geral, tem sido muito restrita e confinada a um pequeno número de especialistas; e, de um modo geral, tem despertado pouco interesse entre os discípulos e intérpretes de Marx. Estes últimos têm-se interessado quase exclusivamente por aquilo que ele escreveu a respeito das crises eco nómicas — assim como pela aplicação mais lata das suas ideias às relações internacionais, no que se refere à exportação de capitais e ao imperialismo. Será portanto oportuno mencionarmos aqui, em traços gerais, os termos dessa discussão, se bem que estejam para além dos limites que a nós próprios nos impusemos. Marx expõe a sua concepção dos dois tipos principais de indústria e procede à análise das relações estruturais entre ambos no fim do segundo volume de O Capital, antes de abordar o problema do preço e do valor. Este capítulo da análise de Marx tem despertado muito interesse do ponto de vista do problema das causas das crises perió dicas, e, mais recentemente, do das relações estruturais do crescimento económico (o modelo Feldman, etc.). Marx começa por analisar o caso da «reprodução sim ples» (investimento líquido igual a zero), não pelo inte resse do mesmo em si, mas porque essa análise serve de introdução ao estudo da «reprodução em expansão», fruto da exploração.) Esta solução fora já sugerida por Kenneth May, ‘The Structure of Classical Value Theories’, Review of Econo- mic Studies, Vol. 17, num. 42, 1949-50, pp. 60-9, que considera o problema da transformação como «um problema meramente formal», observando simultaneamente que «não é solúvel unica mente em termos de agregados» (por exemplo, o caso dos três sectores). *
Vide Secção IX do Capítulo 9.
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em que uma parte da mais-valia é dedicada ao desenvol vimento de um ou outro dos dois tipos de indústria, ou ao de ambos simultaneamente. No primeiro caso, a condição de equilíbrio é a de que o capital constante do Departamento n (produtor de bens de consumo) seja igual ao capital variável (ou antes, à despesa total em salários do período em questão) e à mais-valia do Depar tamento I (que produz meios de produção, ou bens de capital). A condição de equilíbrio para a reprodução em expansão era análoga, mas menos simples (assim, obrigava, em cada departamento, a uma distinção entre a parte da mais-valia consumida e a parte investida, e dentro desta última, entre a que era investida como capital constante e a que era investida como capital variável).* A definição destas condições tem sido con siderada por alguns (por exemplo, Tugan-Baranowski) como uma resposta aos «sub-consumistas», como Malthus e Rodbertus, e como implicando a tese de que não há qualquer obstáculo fundamental à acumulação contínua de capital, pelo que, quando se verificam crises, é porque existe um desequilíbrio entre o desenvolvimento relativo dos dois sectores. Marx pensava, no entanto, que um tal «equilíbrio», concebível embora, só ocasionalmente se
* Cf. Marx, Capital, Vol. II, pp. 591 e seguintes; e também Oskar Lange, Introãuction to Econometrics, segunda ed. (Varsóvia e Londres, 1962), pp. 214-18, que representa essa condição como C2 + m2 = V¡ + m, + m, , em que os índices representam respectivamente os Departamentos I e II , sendo m a mais-valia consumida, e m e m a mais-valia investida respectivamente no capital variável e constante. O Professor Lange sublinha a relação entre este esquema e o de Leontief* sugerindo que «a análise de Leontief..., foi inspirada pela teoria marxista da reprodução e pela prática de equilibrios materiais na União Soviética» (ibid., p. 218). (Uma das limitações que se podem apontar aos exemplos aritméticos de Marx é que são expressos em termos de valor e não de preço.)
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poderia verificar na realidade, a não ser «por acaso»;* e enumerava uma série de razões que contribuíam para excluir a possibilidade de esse equilíbrio vir a ser atingido, ou para a ruptura periódica do mesmo. Alguns dos seus discípulos, e entre eles Rosa Luxemburgo, cri ticavam porém esses esquemas, alegando que não era neles atribuído o devido relevo ao problema da «reali zação» da mais-valia, no sentido de realização, através da venda no mercado, e que isso implicava um perigo crónico para o processo da «reprodução em expansão», que deriva ria da ausência do incentivo externo fornecido pelos novos mercados (ou mercados em expansão constante).** Marx refere-se muito por alto a esse problema, em determinadas passagens muito condensadas do fim do Volume I I (que pouco mais são do que notas). Parece porém referir-se (aparentemente) à reprodução em expansão de taxa pro- gressiva, e não de taxa constante (se bem que, se a pri meira é impossível, seja lícito perguntarmo-nos como poderá ter início a reprodução em expansão). Formula, em relação a esse caso, a seguinte pergunta: como é que os capitalistas das indústrias de produção de bens de consumo, que anteriormente encontravam o seu mercado no consumo realizado com a mais-valia, podem dispor dos seus outputs ? e, se não podem concretizar a sua mais-valia sob a forma de dinheiro, como conseguirão continuar a investir? Se não pretendem fazê-lo, a oferta dos meios de produção baixará por seu turno (ou, pelo menos, não continuará a expandir-se ao ritmo previsto). No úl
* Marx, Capital, Vol. IX, p. 578: «Estas condições dão origem a movimentos anormais, implicando a possibilidade de crises, uma vez que o equilíbrio é um acidente nas condições reais desta produção.» ** Em relação com isto, cf. a demonstração de Kalecki de que o crescimento equilibrado de Harrod tende constantemente a descer para o crescimento zero, demonstração que referimos nas pp. 291-2. Para os comentários deste autor ao debate Tugan-Baranowski versus Luxemburgo, cf. M. Kalecki, Selected Essays on the Dynamics of the Capitalist Economy, 19331970 (Cambridge, 1971), pp. 146-55.
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timo parágrafo do Volume II (ponto em que o manuscrito acaba bruscamente), podemos ler, como resposta a este enigma, que a expansão do investimento só pode ocorrer na medida em que os bens de consumo supérfluos forem exportados em troca de mais ouro proveniente dos países produtores de ouro.* Ê óbvio que uma exportação dos excedentes financiada por uma exportação de capitais desempenharia as mesmas funções. Porém, a ausência de excedentes para a exportação, o impasse referido por Rosa Luxemburgo manter-se-ia. Neste ponto, devemos observar que Marx rejeitava decididamente aquilo a que se viria a dar o nome de «Lei de Say»; sublinhando que o processo de circulação de B-D-B (Bens-Dinheiro-Bens) — ou antes, segundo a expressão que utilizava, D-B-D’, sendo D’ > D — não era uma corrente automaticamente contínua, podendo sempre ser interrompida por uma poupança de D, que não era então reconvertida em B (isto é, um aumento temporário da poupança, ou liquidez). Marx não ignorava o problema da «realização», como no-lo prova a seguinte afirmação: «As condições da exploração directa e as da realização da mais-valia não são idênticas. São logicamente dife rentes no tempo e no espaço. As primeiras têm como único limite a força produtiva da sociedade, as segundas são limitadas pelas relações proporcionais das várias linhas de produção e pela capacidade de consumo da sociedade.» Acrescenta ainda que «o mercado tem, pois, de se expandir continuamente.»** Os Volumes II e III ficaram incompletos, como dissemos já, não tendo sido revistos pelo próprio Marx, se bem que a sua redacção datasse dos meados da década de 1860 (isto é, antes do Volume I ter sido revisto e publicado). Quando Marx morreu, em 1883, deixou uma série de notas e capítulos incompletos, que Engels ordenou e publicou posteriormente, o Volume II em 1885 e o Vo-
* Capital, Vol. II, pp. 595-6, 610. ** Capital, Vol. III, pp. 286-7. 209
lume m em 1894. Engels escreve no Prefácio ao Volume II que esse material era «fragmentário» e incompleto, e es crito numa «linguagem por polir», na «linguagem que Marx empregava nos seus rascunhos, ou seja, num estilo descui dado, cheio de expressões e frases coloquiais, por vezes rudes e humorísticas... As ideias eram apontadas à medida em que iam surgindo no cérebro do seu autor... A con cluir os capítulos havia apenas algumas frases incoe rentes, assinalando os passos de deduções incompletas.» «E, finalmente», acrescentava Engels, «havia ainda essa famosa letra que o próprio Marx nem sempre era capaz de decifrar.» Estava projectado um quarto volume, que con sistiria em todas as notas que Marx deixara para uma história crítica do pensamento económico.* Engels não chegou porém a editar esse volume, pois a morte não lho permitiu. Foi Karl Kautski que o compilou e publi cou em 1905, com o título de Theorien über den Mehrwert. O manuscrito da obra foi parar à posse do Instituto Marx-Engels-Lénine de Moscovo, que, não considerando satisfatória a edição de Kautsky, publicou na década de 1950 a sua própria edição da obra.**
* Consistindo num manuscrito de mais de 1400 páginas inquarto, escritas entre Agosto de 1861 e Junho de 1863 (segundo Engels). Uma selecção de textos da edição de Kautsky (principalmente sobre os Fisiócratas, Adam Smith e Ricardo) foi publicada em inglês com o título Theories of Surplus Value: Selections (trad. G. A. Bonner e Emile Biurns, Londres, 1951). ** A primeira parte, publicada por Dietz Verlag, Berlim, é datada de 1956.
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7. A «REVOLUÇÃO JEVQ NIANA » i
Jevons completou a reacção contra Ricardo que men cionámos anteriormente, como se pode deduzir do facto de geralmente se associar o seu nome a uma revolução no pensamento económico;* e se bem que Menger seja mais representativo desse corte com a tradição elássica, Jevons tinha aparentemente uma consciência mais clara do seu papel na reorientação do «carro da ciên cia económica», que Ricardo dirigira tão perversamente «num mau sentido».** O facto de a sua obra ter sido publi cada poucos anos após o primeiro volume de Das Ka pital, pode levar-nos a considerá-la como uma réplica directa ao livro de Marx, inspirada pela contem plação dessa descendência tardia de Ricardo,*** tal como * Stigler, utilizando uma expressão pouco feliz, chama-lhe «o precursor da economia neoclássica», ao mesmo tempo que considera a teoria de Menger como «muito superior à de Jevons» (G. J. Stigler, (Nova York, 1946), pp. 13, 135). ** Prefá cio da 2.“ edição (1879) da sua Jevons era particularmente adverso a Mill, não só a respeito da sua teoria económica mas também quanto às suas ideias sobre a lógica. Keynes fala da «violência da aversão de Jevons por Mill, levada quase até à morbidez». ( nova ed. (Londres, 1951), p. 297). ** * Cf. John Maurice Clark: «A s foram desenvolvidas depois de Marx; a sua relação com as
nomy.
ção
Production and Dístribution Theories Theory of Political Eco Essays in Biography, teorias marginais da distribui211
as inovações da escola Senior-Longfield tinham sido ins piradas pelas conclusões mais insatisfatórias dos «socia listas ricardianos». No entanto, não há prova de que Jevons tenha tido essa intenção consciente, ou mesmo, que tenha tido conhecimento da obra de Marx: uma vez que esta última fora publicada em Hamburgo e era rela tivamente desconhecida, é muito pouco natural que Jevons tenha tido oportunidade de a ler, e de qualquer modo as ideias fundamentais de Jevons datavam de pelo menos dez anos antes (provavelmente da época da sua estadia na Austrália) e tinham já sido expostas numa comuni cação à British Association, em 1862. O caso dos austríacos era diferente, particularmente o de Wieser e de Böhm-Bawerk, que tinha conhecimento não só da obra de Marx, como também da propaganda lassalleana, estando mesmo até certo ponto obcecado pelas potencialidades das mes mas. A simultaneidade das datas de publicação destas novas ideias paralelas, que viriam a imprimir um carácter e uma direcção inéditos ao pensamento eco nómico do último quarto do século, tem sido frequente mente sublinhada e é realmente digna de nota. A Theory of Political Economy de Jevons foi publicada em 1871, e os Grundsätze de Menger vieram a lume no mesmo ano; os Elements de Walras apareceram em 1874.* A obra de doutrinas do socialismo marxista é tão patente que leva a pensar que o desafio do marxismo actuou como estímulo para a busca de explicações mais satisfatórias. As teorias marginais atacam pela base a mais-valia marxista, ao proporem como fundamento do valor a utilidade, em vez do custo do trabalho, e proporcionam um substituto para todas as formas da doutrina da exploração, marxista ou outras, através da teoria de que todos os factores de produção... recebem remunerações baseadas nas suas contri buições específicas para o produto conjunto» ( ‘Distribution’ em 1931; reeditado em (Filadélfia, 1946), pp. 64-5). * Walras referiu-se, no Prefácio da sua 4.“ edição (de 1900), à «teoria da troca baseada na proporcionalidade dos preços e da intensidade das últimas necessidades satisfeitas», afirmando que esta teoria «foi desenvolvida quase simultaneamente pelos tra balhos de Jevons, Menger e os meus próprios» p. 44). Ê claro que não se deve deixar de mencionar H. H. Gossen, muito
Encyclopaedia of Social Sciences, Income Distribution
Readings in
(Méments,
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Wieser e Bõhm-Bawerk foi publicada na década de 1880. O Professor Shackle referiu-se nos seguintes termos às inovações conjuntas desses autores: «Nos 40 anos pos teriores a 1870 elaborou-se uma Grande Teoria ou Grande Sistema de Economia, em certo sentido completo e auto-suficiente, apto a responder, nos seus próprios termos, a todos os problemas que podiam ser formulados de acordo com esses mesmos termos... Esta teoria, na sua beleza e perfeição notáveis... parecia derivar dessas qua lidades estéticas o selo da sua própria autenticidade e da sua supremacia sobre a inteligência dos homens.»* Em termos gerais, podemos dizer que esta alte ração na estrutura e nas perspectivas da análise económica se caracterizava por dois aspectos principais. Em primeiro lugar, no que se refere às influências e determinantes causais, deixou de ser atribuída uma importância primor dial aos custos de produção, resultantes das circunstâncias e condições de produção, para se pôr em relevo a procura e o consumo final; sendo colocado o acento tónico na capa cidade, por parte dos bens produzidos, para contribuir para a satisfação dos desejos e das necessidades dos consu midores. Esta alteração de ponto de vista contribuiu para imprimir uma direcção individualista ou atomista ao pensamento económico moderno —- que se dedica essen cialmente à micro-análise dos comportamentos e acção de mercado individuais e à generalização económica baseada nesses micro-fenómenos. Sabemos já que tal se tornou possível devido à descoberta (através da aplicação do cálculo diferencial) do conceito de acréscimos margi nais de utilidade — o «grau de utilidade final» de Jevons—que permitiu superar os obstáculos que outros tinham anterior: em particular a sua obra de 1854, da qual se fará, menção mais adiante. Jevons, no Prefác io da sua 2.a edição, reconheceu elegantemente que Gossen «o antecipou completamente quanto aos princípios gerais e método da teoria económica» (2." ed , Londres, 1879, p. X X X V ); e também Walras lhe prestou home nagem num artigo publicado no Journal des Économistes, em 1885. * G. L. S. Shackle, The Years of High Theory (Cambridge, 1967), pp. 4-5.
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encontrado ao pretender sublinhar a importância do valor de uso smithiano, dada a dificuldade que havia em esta belecer uma relação entre o valor de uso e o valor de troca. Foi esta minimização do custo e da produção, a favor da influência da procura e da utilidade do consumo, que deu origem à alteração que deve ser descrita em termos de desvio no sentido de uma Teoria Subjectiva do Valor. Numa passagem muito frequentemente citada, do iní cio da sua obra, Jevons escrevia: «Uma reflexão e uma análise aturadas levaram-me a adoptar o ponto de vista inédito de que o valor depende inteiramente da utilidade. As opiniões predominantes colocam o trabalho, e não a utilidade, na origem do valor... O trabalho determina frequentemente o valor, mas só de forma indirecta, fazendo variar o grau de utilidade do bem através de um aumento da oferta.»* No prefácio, explica que «tentei nesta obra considerar a Economia como o Cálculo do Prazer e da Dor»; e sublinha a analogia com «a ciência da Mecânica Estática». No prefácio à segunda edição (de 1879), renova o seu ataque a Ricardo, referindo-se às «hipóteses confusas e absurdas da Escola Ricardiana», e acrescentando que «os nossos economistas ingleses têm vivido num mundo idealizado». No parágrafo a rema tar a obra, escreve: «Ê uma contribuição positiva interromper a repetição monótona de doutrinas duvidosas correntes, mesmo que se incorra no risco de um novo erro.»** Keynes refere-se à sua Tlneory como «o primeiro tratado que expõe de forma completa uma teoria do valor baseada em avaliações subjectivas» e «o princípio mar ginal.»*** Em segundo lugar, e em consequência do que aca bamos de dizer, aquilo a que podemos chamar os limites * The Theory of Political Economy (Londres, 1871), p. 2. ** Ibid., p. 267 (2." ed. 1879, p. 277). *** Essays in Biography, 2.“ ed. (Londres, 1951), p. 284. E acres centa: «O primeiro livro moderno de economia, mostrou ser sin gularmente interessante para todos os espíritos lúcidos que abor daram o assunto pela primeira vez». 214
da matéria, tal como a sua estrutura de relações e dependencias causais, foram significativamente alte rados, se bem que ao tempo se não compreendesse até que ponto. O sistema de variáveis económicas e a sua área de determinação foram virtualmente identificados com o mercado, ou com o conjunto de mercados inter-relacionados que constituem a esfera de troca. O que acabamos de referir pode não nos parecer notável à primeira vista, pelo menos na medida em que a teoria económica consiste na teoria do valor, que, pela sua natu reza, seria essencial e necessariamente composta por rela ções de troca. Porém, há neste ponto uma implicação que afecta a relação entre a repartição e a troca e que é menos óbvia, acarretando consequências fundamentais para a totalidade do campo de estudo. No sistema de deter minação adoptado por Ricardo, e a fortiori e mais expli citamente na perspectiva de Marx, a repartição era considerada como anterior à troca num sentido essencial: ou seja, as relações de preço e os valores de troca só podiam obter-se após ter sido postulado o princípio da repartição do produto total. Os factores determinantes da repartição eram, como já vimos, iden tificados com as condições de produção (as condições de produção de bens de consumo de Ricardo; as «relações sociais de produção» de Marx, introduzidas do exte rior do mercado, na sua qualidade de bases socio-históricas dos fenómenos da troca). Per contra, a nova orientação da análise económica reduzia o problema da repartição ao preço atribuído aos inputs indispensá veis por um processo de mercado determinando simulta neamente o sistema inter-relacionado dos inputs e dos outputs. Além disso, a repartição (ou o que dela restava como capítulo independente da análise económica) não só era determinada a partir do interior do mercado ou pro cesso de troca, como o era igualmente sob a forma dos preços derivados de certos bens intermediários ou factores produtivos: a determinação era considerada como sendo imposta pelo mercado dos produtos finais, e daí, em última análise, pela estrutura e intensidade 215
da procura dos consumidores. Jevons* não chegou a desen volver explicitamente este ponto, pois limitou-se a levar a cabo apenas metade da «revolução» marginal. Este aspecto do problema torna-se porém evidente com Menger, quando este se refere aos bens de «primeira ordem» e de «ordem superior», sendo os preços dos segundos derivados dos preços dos primeiros, pelo processo de «imputação» (Zurechnung ) , por outras palavras, de certo modo em função da produtividade marginal dos bens do produtor em termos dos bens do consumidor. Mesmo no sistema walrasiano, esta derivação era perfeitamente explícita. O próprio Walras o acentuou quando escreveu: «Embora seja certo que os serviços produtivos são comprados e vendidos nos seus próprios mercados especiais, os preços destes serviços, não obstante, são determinados no mercado de produtos.»** Evidentemente, este apareci mento da determinação unidireccional deve-se aos econo mistas austríacos (e também Walras, quanto ao essen cial) terem simplificado o seu problema admitindo que se partia de ofertas dadas de factores produtivos, cujos «serviços» entravam no processo de troca por um «preço de aluguer». É esta, de facto, a base daquilo que viria a ser a elegante redução do conceito de custo à noção esbatida e contingente de «custo de oportunidade» (isto é, o custo de oportunidades produtivas antecedentes, destinadas a criar utilidades). Mas, se se puser de parte esta hipótese de ofertas de factor dadas, a diferença que daí resulta está apenas em substituir, à maneira marshalliana, uma série de «escalas de ofertas de factores» vagamente definidas e concebidas subjectivamente, de um realismo e independência contestáveis (contestáveis por dependerem de algum tipo de «custos reais» de repar
* T. W. Hutchison, A Review of Economic Doctrines, 18701929 (Oxford, 1953), p. 44. Conforme acentua o Professor Hutchison, Jevons chegou quase a aplicar o seu conceito marginal aos bens ou factores do produtor. Cf. também Léon Walras, Elements of Pure Economics, trad. W. Jaffé (Londres, 1954), p. 45. ** Ibid., p. 422. 216
tição relativa de «esforços e sacrifícios»).* Efectua-se então a determinação mútua, por meio de um equilíbrio de condições marginais na oferta de serviços ou factores produtivos, assim como em relação à procura dos consu midores. Foi este o espectro do chamado «ricardismo» que subsistiu no sistema de Marshall. No entanto, curiosamente, a repartição, à qual Ricardo tinha atribuído esse predomínio, embora per dendo agora importância, ou até enfraquecendo de todo, continuou a pretender uma certa prioridade, mesmo no novo esquema conceptual. Esta ocorrência foi muito minimizada, a tal ponto que se poderia pensar que esta pretensão passasse despercebida, embora fosse impossível não dar por ela. Tratava-se da sua prioridade de influência na formação da estrutura da procura do con sumidor, através da mediação entre a utilidade ou satisfação da necessidade do consumidor individual e a sua expressão sob a forma de poder de compra no mercado, e, portanto, de impulso real de mer cado. Conforme se mencionou no nosso Capítulo I, teve de postular-se, consequentemente, certa reparti ção de rendimento preexistente, para que pudesse ser considerada como determinada por um processo de formação de preços na esfera da troca de mer cado. Uma vez reconhecido, este facto prejudicou as elegantes linhas gerais da imagem conceptual, senão mesmo a sua consistência interna — ainda que talvez se pudesse sustentar (quando muito de maneira dis cutível) que, para fins práticos, a diferença decorrente de admitir-se esta influência de retorno não tinha geral mente grande importância, salvo nalguns casos especiais. Wieser, por exemplo, compreendeu bem esta interfe rência da repartição no modo de derivação do valor de troca a partir da utilidade, à maneira da Escola Austríaca. Na sua obra Natural Value, escreveu: «O preço dum bem nunca exprime completamente o valor de troca que repre * O termo «sacrifícios» referia-se à «abstinência» de Sênior, ou aquilo a que Marshall, de uma forma mais neutral chamou «espera».
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senta para o seu possuidor. Este valor depende ainda da «equação pessoal» do dinheiro, para o possuidor... A «equa ção pessoal» do dinheiro é indispensável em qualquer economia, para podermos repesar uns em relação aos ou tros, os bens avaliados segundo os seus valores de troca... Cada acto isolado de troca depende disto.» E também: «Na formação do valor de troca introduz-se um segundo elemento, o poder de compra. Em valor natural, os bens são avaliados apenas segundo a sua utilidade mar ginal; em valor de troca, são avaliados segundo uma combinação de utilidade marginal e poder de compra... O valor de troca, mesmo quando é considerado perfeito, é, passe a expressão, uma caricatura do valor natural: perturba a sua simetria económica, ampliando o que é insignificante e diminuindo o que é importante.»* Mas não se pode dizer que Wieser seguisse a lógica desta afirmação, e menos ainda que resolvesse a dificuldade por ela criada. De um modo geral, os seus colegas e discípulos também não atacaram a dificuldade.** Uma consequência importante do novo esquema con ceptual, foi que a separação que Mill tentou traçar entre o carácter institucional e de relatividade histórica da repartição, por um lado, e o carácter «natural» das leis da produção, por outro, voltou a esbater-se, se bem que não tenha desaparecido por completo. Admitira-se que diferenças ou alterações institucionais podiam modificar o regime de repartição do rendimento entre pessoas (por exemplo, influindo sobre a quantidade de propriedade na posse de diversos indivíduos); mas o regime geral de repartição entre factores (o que significava, essencialmente, entre capital e trabalho) não * P. von Wieser, Natural Value, ed. W. Smart (edição de 1956) pp. 49-50, 62. ** Sir Erich Roll faz o seguinte comentário: «Embora analiticamente superior a tentativas análogas... a doutrina de Wieser assenta na hipótese, comum a todas elasl de que é possível conceber um valor social subjectivo. Esse conceito, como é evidente, é inevitavelmente auto-contraditório» (A History of Economia Thought (Londres, 1938) p. 402). 218
podia ter essa influência, dada a relação entre as ofertas relativas de factores e os seus usos produtivos, ou o seu papel na produção e, portanto, na sua procura. Sendo assim, na teoria económica não podia haver lugar para qualquer caracterização de relatividade institucional, do coeficiente rendimento-propriedade, por exemplo, ou do coeficiente lucro-salário: estes coeficientes eram catego rias puramente económicas, no sentido de dependerem da natureza da situação económica existente e do pro blema económico per se. Dum ponto de vista ideológico, este foi sem dúvida o resultado mais importante da mudança de orientação: isto é, pela imagem que proporcionou do sistema econó mico, dos seus problemas e imperativos, e, portanto, pela possibilidade de ajuizar da correcção ou incorrecção dos diagnósticos correntes dos males sociais. A alteração ficou associada, conforme notámos, ao traçado de diferen tes linhas de delimitação do «sistema económico», tratado como «sistema isolado»; de forma que os problemas acerca da posse de propriedade ou das relações e conflitos de classe eram considerados exteriores ao domínio do economista, nã oinfluenciando directamente, pelo menos em aspectos importantes, os fenómenos e relações com os quais a análise económica estava relacionada, e pertencendo, em vez disso, aos domínios do historiador econó mico ou do sociólogo. Um problema como a proveniência da mais-valia, sobre o qual falámos no capítulo anterior, nem sequer podia ser apresentado dentro dos termos estabelecidos da análise económica. No entanto esse facto não era explícito; era posto de parte por não ter signifi cado ou cair fora dos limites da matéria. Houve outras consequências que vieram a ser tema de discussão ideológica; mas, globalmente, fo ram de importância secundária. A alusão de Jevons à Mecânica Estática, por exemplo, como analogia apro priada para a metodologia da nova economia, revelou-se profética; como resultado do facto de considerar seria mente esta analogia, a análise económica passou a preocupar-se com situações de equilíbrio em condições de concorrência; e na medida em que estas situações 219
eram de equilíbrio completo, presumia-se virtualmente o pleno emprego de todos os serviços ou factores de produção produtivos.* Assim, a possibilidade de equilibrios múltiplos (por exemplo, em vários níveis de emprego) pouca atenção mereceu, se é que não foi completamente ignorada (isto é, até à década de 1930 praticamente). Da mesma forma, foram ignoradas as considerações dinâmicas; embora o método da mecânica estática pudesse adaptar-se ao tra tamento dos problemas da chamada «estática compara tiva», não podia ser aplicado à estabilidade ou instabili dade das vias de movimento, e portanto a flutuações ou à mudança como processo.** Outro resultado, logicamente consequente ou não, foi que a transferência do centro da investigação para a análise do equilíbrio parcial deu origem a uma concentração de esforços naquilo que viria a ser deno minado «microeconomia», com exclusão ou quase aban dono da mais ampla concatenação de interdependências e efeitos, muito importantes para a formação das macro-relações mais vastas, mas também muito frequente mente escondidos por detrás duma cláusula ceteris paribus e esquecidos depois. (Podemos citar como exemplo o engenhoso dispositivo simplificador de Marshall, que consistiu em admitir como constante a utilidade mar ginal do rendimento, e considerar que quaisquer efei tos mais amplos daquilo que estava a acontecer, podiam ser tomados como uma «segunda ordem de pequenas quan tidades»; juntamente com a hipótese análoga, na esfera * Já que, se existisse um excesso não utilizado de qualquer factor, a concorrência faria descer o preço para zero, e se existisse uma elasticidade da procura, o excedente seria absorvido. ** Cf. Sir John Hicks, Value and Capital (Oxford, 1939) pp. 115 seg\, 302, que conclui duvidando de que «um estado estacionário... seja concebível, mesmo como caso especial»; também na sua obra Ca- pital and Growth (Oxford, 1965), pp. 15 seg\: «os economistas estão tão habituados a esta hipótese de equilíbrio, que têm tendência para considerá-la um ponto assente», e no entanto «há formas de mercado, não necessariamente destituídas de realismo ou de importância, em que a simples existência de equilíbrio é duvidosa, mesmo num mercado simples, ou talvez mais que duvidosa».
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da oferta, de preços de factores dados, a qual permitiu utilizar a noção duma oferta a longo prazo ou curva de custos duma indústria). Isto representou, sem sombra de dúvida, um empobrecimento da economia (como passou a chamar-se, em vez de economia política), o qual só foi seriamente contestado na década de 1930, ou mesmo depois, com a obra de Keynes e o desvio das atenções, após a segunda guerra mundial, da estática jevoniana para a teoria do crescimento. Um subproduto especial da nova estrutura e meto dologia, que iria produzir corolários de nítida tenãenz ideológica, foi o hábito da optimização. Este hábito nasceu da união da utilidade com a técnica dos incrementos e decrementos marginais, o que, por sua vez, levou direc tamente à consideração de problemas extremos. Efectiva mente, alguns autores identificaram virtualmente a mu dança introduzida por Jevons com o privilegiar das condi ções de «atribuição»* (simultaneamente das despesas dos consumidores entre os produtos finais e dos recursos pro dutivos entre os usos produtivos, via uma escolha e actuação das empresas); uma vez que a noção de maximi zação estava implícita na forma de estruturar o problema. Não era difícil concluir que o suposto comportamento maximizante (de utilidade em relação aos consumidores e de lucro em relação aos entrepreneurs) tinha como resultado que em condições de concorrência em todos os mercados, o valor (líquido) produzido era maximi zado. Por meio dum prodígio de agregação, isto era traduzido na afirmação de que o agregado social de utilidades era maximizado — tradução ilícita, pois já vimos que a relação entre valores e utilidades, e, consequen temente, a soma das últimas, depende da repartição do rendimento (mais um exemplo de que a «prioridade» desta se impõe por si própria). Este facto foi inicialmente indi cado por Jevons, ao afirmar que «na medida em que isto é compatível com a desigualdade da riqueza em todas as * Cf. Hutchinson, Economic Doctrines, pp. 42, 44, com as suas referências à «fórmula da atribuição maximizante».
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comunidades, todos os bens são repartidos por meio de troca, de modo a obter-se o máximo benefício».* Talvez o seu mais conhecido enunciado a nível social seja o de Walras, segundo o qual, «com a produção num mercado regulado pela concorrência... asconsequências da livre concorrência... podem resumir-se em que assim se atinge, dentro de certos limites, a utilidade máxima»;** ao que se seguia o óptimo modificado e contingente (mas não menos influente) associado ao nome do seu sucessor, Pareto. Embora na altura sujeito à crítica de personalidades de relevo tais como Marshall e Wicksell (este último contestou rudemente Pareto, afirmando: «A doutrina de Pareto não traz nenhuma contribui ção»***), este corolário optimizante, ao qual voltare mos quando adiante falarmos da «Economia do Bem-Estar», veio a exercer uma grande influência como jus tificação dum régime de concorrência perfeita e de mer cado livre. Fomos de opinião que reduzir a repartição à formação dos preços dos serviços ou factores produtivos, teve como resultado excluir as circunstâncias sociais dos indivíduos (ou grupos sociais) associadas à oferta destes «serviços» — até ao ponto de perder de vista a própria existên cia destes indivíduos. Quando muito, estes eram visí veis, num plano distante, como entidades envoltas em sombra e fantasmagóricas, sem verdadeiro conteúdo social ou até sem definição clara e distinta. O caso extremo apresentou-se quando se postularam ofertas de factores dadas, correspondendo a repartição apenas à formação dos preços de n inputs de factores (caso em que nem mesmo se podia considerar uma taxa de lucro uniforme, visto que a sua formação implica alterações apropriadas nas ofertas de bens de capital individuais). Neste ponto, a ilusão de que a repartição se integra completamente * Jevons; Theory of Political Economy, ed. 1871, p. 134. ** Walras, Elements of Pure Economics, pp. 125, 255. ** * K. Wicksell, Lectures on Political Economy (Londres, 1934) Vol. I, p. 83.
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no processo de troca atingiu o seu ponto culminante. O conceito de ofertas de factores variáveis, governadas por alguma escala de pregos de oferta, reintroduziu a posição dos indivíduos por detrás das ofertas, pelo menos até ao ponto de relacionar as suas acções e motiva ção com os factores-serviços. Mas essa relação foi de facto simulada, concebida para permitir um certo grau de atribuição do valor dos serviços aos indivíduos. Assim, «abstinência» ou qualquer noção análoga desempenhou a função de relacionar (ou, quando não de relacionar explici tamente, pelo menos de esbater a distinção entre) o efeito produtivo daquilo que é possuído e do seu possuidor legal. A forma extrema deste conceito foi a interpretação apre sentada por J. B. Clark para produtividade marginal: esta significava que cada factor, e por implicação os respon sáveis pela sua oferta, recebiam o equivalente da sua «con tribuição» para a produção: «a própria lei», disse Clark, «é universal, e, portanto, ‘natural’».* Embora esta afirmação viesse depois a ser refutada nesta forma pro posta por Clark,** manteve-se uma certa implicação de atribuição (e ainda mais de inevitabilidade), mesmo em compêndios não populares, até ao ponto de o factor e o seu fornecedor (ou proprietário) estarem relacionados por qualquer conceito do tipo «abstinência» ou «es pera». Raramente se pensou que fosse necessário indicar que a propriedade era o primeiro requisito para apre* J. B. Clark, The Distribution of Wealth (Nova Iorque, 1899), p. 46. Cf. também pp. 7, 47, 323-4n.; 325. ** G. J. Stigler, Production and Distribution Theories (Nova Iorque, 1946), p. 297: «apresentou aquilo que ficou conhecido como uma ‘ingénua ética da produtividade’ — a sua teoria de produti vidade marginal continha simultaneamente uma prescrição e uma análise..., Clark foi um alvo feito de encomenda para as diatribes dum Veblen». No entanto, Clark não foi o único partidário desta concepção. Conforme salienta Ian Steedman, também Jevons falou de «leis naturais» que regulavam a repartição entre lucros e salários, e implicavam a inutilidade dos sindicatos e uma harmonia essencial entre capital e trabalho ('Jevon’s Theory of Capital and Interest’, The Manchester School, Março de 1972, pp. 48-9).
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sentar oferta, e que deste modo, uma vez mais, a repar tição e as suas determinantes sociais, entravam como con dição prévia pelas traseiras, A nível puramente formal, poucas dúvidas podem res tar de que os novos métodos e o novo contexto, com a sua analogia matemática, quando não forma matemática, tive ram como resultado uma maior precisão e rigor de análise. Neste sentido — aquele a que Schumpeter atribuía predominância — a análise económica per se pode bem dizer-se que avançou. Os instrumentos de dissecação da discussão económica tornaram-se mais penetrantes — se foram ou não utilizados para dissecar muito profunda mente, isso é outra questão. Pelo menos no que diz respeito aos fenómenos de mercado, não há dúvida de que a penetra ção da análise se tornou maior e que passou a haver maior subtileza na compreensão da formação dos preços e das va riações dos preços de mercado (incluindo, mais tarde, a compreensão de situações de desequilíbrio e de flutuações em torno do equilíbrio). Apesar das falácias associa das ao seu uso, mesmo a apresentação de problemas de atribuição em termos de problemas de extremos e de maximização teve a sua importância, e não se lhes pode negar uma aplicação frutuosa. Por exemplo, inspirou, se é que não gerou, a técnica especial da programação linear, com a sua evidente relevância para questões de planifi cação. Isto não significa aceitar a opinião de Schumpeter, segundo a qual o progresso na análise «pura» constituiu a característica importante da mudança, e que o seu carácter ideológico mais não foi que acidental. Na realidade, é o contrário que é verdadeiro. Além disso, estas realizações formais devem ser postas em confronto com a abertura de algumas vias falsas, e, relativamente a problemas mais fundamentais, com uma atenção pouco esclarecedora vol tada para aparências superficiais e ilusórias. A polémica contra a tradição ricardiana anterior, e ainda mais contra o sistema marxista, cuja porta Ricardo foi acusado de ter aberto, não se limitou a rejeitar por parte de Jevons (contra a qual Marshal protestou, 224
dizendo que era demasiado irreverente e iconoclasta).* A maior parte dos argumentos são tão conhecidos que não carecem de repetição, pois figuraram cor rentemente em compêndios elementares durante várias gerações (como a afirmação de que, ao ignorar a influên cia da procura, qualquer tipo de teoria do custo é incapaz de determinar preços em condições em que o custo varia com a quantidade produzida). Mas há uma acusação especial à qual aludimos acima, no Capítulo 4, que talvez mereça ser aqui repetida devido à sua aparente sub tileza e pelo facto de ter vindo simultaneamente de Walras e de Jevons. Trata-se do facto de a teoria de Ricardo ter procurado «determinar duas incógnitas com uma só equação», ao sugerir que o preço é determinado pelos salários mais os lucros (quando se exclui a renda), considerando ao mesmo tempo o lucro como excedente de valor produzido acima dos salários.** Esta crítica conforme vimos, embora potencialmente válida contra a teoria da «soma de componentes» de Smith, resulta de um erro flagrante por parte de Ricardo, tal como salientou Dmitriev. Em réplica, já por nós citada, Dmitriev escreveu o seguinte (passagem que transcre vemos in extenso, porque toda esta questão há muito vem sendo mal compreendida):
* Principies, App. I, p. 817. Para Marshall, Jevons «tratou duramente Ricardo e Mill», devido ao seu «desejo de sublinhar um aspecto do valor ao qual eles não tinham dado suficiente atenção». A afirmação de Jevons de que «o valor depende apenas da utilidade», afigurou-se a Marshall «não menos parcial e parcelar, e muito mais enganadora do que aquela em que Ricardo frequente mente caiu, devido a um laconismo descuidado, relativa ao facto de o valor depender do custo de produção». ** Cf. Walras, Elements of Pure Economics, p. 425. Walras referes e sobretudo à «teoria inglesa » e não propriamente a Ricardo; mas a referência é bem evidente. «É claro», escreve Walras, «que os economistas ingleses ficam completamente desconcertados com o problema da determinação do preço.» Jevons fez censura idêntica à tentativa «radicalmente falaciosa» de derivar «duas quantidades desconhecidas de uma equação»! e a referência a Ricardo é aqui mais evidente (Theory of Political Economy, p. 258). 15
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Uma só equação não é suficiente para determinar duas incógnitas. Desta forma, estamos aparentemente encerrados num círculo vicioso: para definir o valor, temos de saber a dimensão do lucro; e o próprio lucro depende da dimensão do valor. Parece que não há outra saída que não seja tornar a dimensão do valor, ou do lucro, dependente de condições situadas fora da esfera da produção: foi a um processo deste género que A. Smith recorreu... colocando o nível de lucros dependente da oferta e procura de capital. Mas esse processo significa admitir a inconsistência da própria teoria das despesas de produção. O mérito imortal de Ricardo consiste precisamente na sua brilhante solução deste problema, que parecia insolúvel. Dmitriev prossegue mostrando que a originalidade de Ricardo consistiu em «ser o primeiro a apontar que entre as equações de produção existe uma que possibilita a determinação directa de r [lucroJ (quer dizer, sem recurso a outras equações). Esta equação é-nos proporcionada pelas condições de produção de a [o bem-salário], ao qual as despesas com todos os pro dutos, na análise final... são redutíveis.»* Há uma questão suscitada a propósito que certamente estará na mente de muitos, mesmo entre aqueles que tendem a aceitar a crítica da ortodoxia pós-jevoniana. Ainda admitindo as falhas e deficiências acima men cionadas, sucederá realmente que nada é, ou pode ser dito a respeito da estrutura das relações de troca, e que nada de importante para o conhecimento eco nómico foi afirmado pela sofisticação semi-matemática do século decorrido após Jevons? Não existirão real mente algumas afirmações sobre as inter relações de preços dentro do círculo da troca, com aplicação geral a todos os tipos de sociedade de troca, mesmo que não possam desempenhar o papel, que lhes * V. K. Dmitriev, Essais économiques (Paris, 1968), pp. 46-7. Ver acima p. 150. 226
é atribuído, de permitir elaborar uma teoria da deter minação da repartição do rendimento, e, a partir daqui, uma teoria satisfatória do valor e repartição no sentido clássico? Dado um certo padrão walrasiano de raretés, não será verdade que se torna em certo sentido «neces sário» um certo padrão de preços; e, se assim for, não será essa «necessidade» supra-institucional ? Esta pergunta é evidentemente pertinente, e não pode ser iludida pelos críticos da doutrina moderna. Se se puder fornecer uma resposta em termos gerais, parece que deverá fundamentar-se numa distinção entre diferentes categorias de afirmações sobre fenómenos económicos. Quando se fala em termos daquilo a que Marx teria cha mado a categoria de «preço de mercado» (à qual ele pró prio só chega a meio do seu terceiro volume), é certo que se podem fazer várias afirmações a respeito das relações oferta-procura; e porque o seu número é bastante restrito, assim como o seu significado numa pers pectiva mais ampla, «macro», não decorre daí que não pos sam ter importância em certos contextos especializados. A questão está em que, para se fazerem essas afirmações, é necessário tomar um certo número de coisas como dadas (por exemplo — para considerar o caso extremo — em todas as afirmações a respeito de situações de «curto prazo» ou quase curto prazo marshallianas): dados que são variáveis dependentes doutro nível de análise, mais «profundo». Para explicar menos, mais tem de ser postulado independentemente. Isto, se for bem compreendido, equi vale (ou é análogo) àquilo que o Professor Hicks pretende quando fala de «equilíbrio restrito», ao qual se chega restringindo o número de escolhas «em aberto».* Fun damentalmente, é por isso que as afirmações relativas à oferta-procura não podem, por razões que considerámos, incluir (ou ir tão longe como) uma teoria de repartição propriamente dita; nem este género de teoria de deter minação da procura pode proporcionar uma resposta ade quada ao tipo clássico de problema de valor (única razão *
Capital anã Growth (Oxford, 1965), pp. 25-6.
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pela qual a designação de «neoclássica» que lhe é aplicada não é apropriada, e pode até ser enganadora). No que se refere à repartição, já dissemos, de facto, que se deve postular alguma repartição de rendimento para conferir significado ao «padrão de procura», e, portanto, fazer qualquer afirmação geral ao nível global dum tipo de oferta-procura. Uma forma de explicar o significado de con textos nos quais são aplicáveis relações de troca determinadas pela procura, pode ser a seguinte. Supo nha-se que todos os inputs produtivos foram ob jectos naturais disponíveis num certo momento em certas quantidades determinadas pela natureza.* Quais quer relações de troca dentro do sistema reflectiriam, evi dentemente (e seriam explicáveis em termos de) bens di versos e estritamente limitados visàvis o padrão de procura de produtos finais produzidos a partir de diferentes combinações de inputs. Mas então, obvia mente, o processo de produção que geralmente se con cede (fora dum mundo completamente automatizado) não existiria. Poder-se-ia modificar então as condições para incluir o trabalho como um input entre objectos naturais (por exemplo, trabalho de colheita, adaptação, organização); e continuar a ter o mesmo modo de relacionação no que se refere à troca de objectos naturais, e entre estes e os outros (consumidos) finais: os primei ros funcionariam como rentenguter , que exige mum preço proporcional ao papel que desempenharam no processo de transformação em produtos finais e à procura relativa dos produtos em que tiveram uma importância pri mordial. Poderia dizer-se, de facto, que existe aqui uma certa analogia com os problemas aos quais se aplica a técnica da programação linear: o problema de distribuir os objectos naturais (escassos) entre os usos produtivos e a sua combinação óptima para cada uso — um óptimo que é definido em termos de «uma função objectiva», inter pretada em geral como uma série de usos finais conve*
Po r exemplo, os meteoritos de Marshall.
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nientemente ponderados. Neste aspecto, poderia con siderarle, de maneira não muito rigorosa, mais como uma técnica do que como uma explicação teórica da realidade. De facto, a analogia com a programação linear pode ser utilizada neste ponto, pre cisamente porque, como se sabe, esta técnica de análise é aplicável a alguns problemas duma economia so cialista, quer a nivel particular quer a nível geral, assim como a uma economia capitalista, e, nesta medida, deve referir-se a aspectos ou relações supra-institucionais. Essa analogia pode ter pelo menos esta vantagem: apre senta usos finais que é necessário postular arbitraria mente a partir do exterior do sistema, quer na forma dum dado plano de output (por exemplo, Kantorovitch), quer (se for baseada numa procura de mercado explícita) na da postulação implícita de urna dada repartição de rendimento. Per contra, na medida em que se atribui à activi dade humana um papel primordial no processo produtivo, e em que inputs reprodutivos (produto do próprio pro cesso produtivo) substituem objectos naturais escassos, os fúndamenos do problema económico tornam-se diferentes, em primeiro lugar porque a questão da existência e pro veniência de um excedente de valor pode ser agora apre sentada de um modo relevante,* e em segundo lugar por que a proporção de qualquer valor-produto dado atribuída aos salários (e assim contabilizada), e o modo de repar tição do excedente ou diferença entre ambos, será uma determinante fundamental da estrutura de preços resul tante. Mas, se se puder construir um modo formal de deter minação, em termos de relações de escassez («escassez» * A razão pela qual essa questão não teria cabimento no nosso caso hipotético anterior, é que, evidentemente, as «rendas», ou preços de escassez, de meios ou inputs naturalmente escassos, aumentariam no sentido do nível de preço dos outputs, ou, se alguns destes inputs puderem ser mais rendosos como output do que o exigido como inputs, depressa deixarão de ser bens (naturalmente limitados) escassos . 229
definida e medida em referência ao conjunto de usos finais), e esse modo de determinação puder fornecer al guma informação, numa situação de meios ou inputs determinados naturalmente, porque não haveria ele de servir igualmente em situações análogas, em que qualquer conjunto de n meios ou inputs, embora não de pendentes de limitações naturais, são, não obstante, deter minados de qualquer outro modo quanto às suas ofertas? Por outro lado, não poderão as relações de preço-escassez assim deduzidas, aplicar-se não só a produtos mas também a estes meios ou inputs ? Na verdade, isto é perfeitamente possível; mas, conforme vimos ao refe rirmo-nos aos austríacos, sujeito à condição restritiva de que o conjunto de n meios ou inputs exista previamente como dado. A restrição é considerável. Exclui todas as si tuações em que estas ofertas têm probabilidades de altera ção (isto é, como efeito de «fudback» dos seus preços), e uma análise sujeita a esta restrição não pode pronunciar-se quanto às razões e meios por que estas alterações se produ zem ou quanto aos seus efeitos — motivo pelo qual falamos das situações em que essa teoria se pode aplicar como «situações de quase curto prazo». É evidente que daquilo que essencialmente é uma teoria de curto prazo se não pode esperar que resolva problemas de «longo prazo» (por exemplo, a respeito de situações de equilíbrio que envolvam uma taxa de lucro uniforme).* Procura-se fugir a esta restrição tentando agrupar estes n meios ou inputs em grupos de factores mais vastos, e relacionar as alte rações de oferta dos primeiros com as situações dos segun dos: uma fuga que tem as suas dificuldades específicas (que consistem na necessidade de postular algumas enti dades distintamente estranhas, na realidade metafísicas, como «factores» genéricos), que hoje vão sendo conhe cidas e às quais voltaremos a referir-nos. Pode observar-se, a propósito, que qualquer dos dois modos de tratar o problema (e mais manifestamente no segundo) implica que as combinações partieula*
No entanto, ver adiante> no final deste capítulo.
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res de inputs, ou técnicas escolhidas dependem dos (e variam com) os preços dos factores ou inputs esta belecidos pelas relações de preço resultantes do sistema em geral. Isto, por sua vez, implica a noção duma «função de produção», ou duma escala de substituição de factores que defina todas as diferentes combinações de factores ou inputs que possam produzir o mesmo output (sendo esta curva de substituição «objectiva» no sentido de se basear Unicamente em dados técnicos, num certo estado de conhe cimento técnico). Esta noção duma «função de produção» inclui grandes dificuldades, conforme verificaremos daqui a pouco, quando chegarmos às discussões travadas nos últimos anos. Se este modo de tratar o problema for posto de parte, é postulado, então, um conjunto de n processos ou métodos de produção possíveis para cada indústria; mas embora o processo ou método escolhido em qualquer momento dependa da proporção salário-lucro (e da resul tante estrutura de preços dos produtos utilizados como inputs), por razões que se tornarão evidentes não se ve rificará a obrigação que existe no primeiro caso (em que os grupos de factores e as suas ofertas relativas desem penhavam um papel primordial), de considerar estes processos alternativos ordenados de modo particular. II
Anteriormente a Jevons, muitos parecem ter acre ditado que o «valor de uso» de Adam Smith não podia ser quantificado. Portanto, apesar da referência de Bentham a graus de intensidade de prazer e dor, e apesar das sugestões de Say e outros que se lhe seguiram, não houve tentativa sistemática para o introduzir como deter minante (distinto de condição) do valor de troca. O ele mento novo em Jevons, que actuou como factor decisivo, foi evidentemente ter destacado «o grau final da utilidade» e tê-lo equiparado ao valor de troca. Isto revelou que apenas era necessário tratar diferenças de utilidade, dife renças relativamente pequenas, como quantitativas, na medida necessária para serem comparáveis em termos de maior ou menor. A comparação dessas diferenças, 231
disse Jevons, era feita pelas pessoas nas suas acções diárias, e, por conseguinte, avaliavam-se as intensidades dos seus sentimentos a partir das suas acções. «É a partir dos efeitos quantitativos dos seus sentimentos que deve mos avaliar as suas quantidades respectivas.» Não se pensava que houvesse qualquer necessidade de comparar utilidades totais. Jevons escreveu: «Raramente, ou nunca, podemos afirmar que um prazer é um múltiplo doutro em quantidade, mas o leitor que criticar cuidadosamente a teoria que se segue, observará que raramente envolve a comparação de quantidades de sentimento que difiram muito em quantidade... Nunca procuro avaliar o prazer total obtido com a compra de um bem; a teoria apenas exprime que, quando um homem comprou o suficiente, obtém o mesmo prazer com a posse de mais uma pequena quantidade ou com o preço monetário desta.»* Já antes escrevera: «Parece-me que a nossa ciência tem de ser matemática, simplesmente porque trabalha com quantidades. Sempre que as coisas tratadas variem em grandeza, as leis e relações devem ser de natureza matemática.»** No seu terceiro capítulo, Jevons expõe a sua teoria do valor de maneira mais pormenorizada. Iniciando este capítulo com a afirmação de que «prazer e dor são sem dúvida os objectos últimos do Cálculo da Economia», prossegue: «Satisfazer as nossas necessidades até ao máximo com o mínimo de esforço... por outras palavras, maximizar o conforto e o prazer, é o problema da Econo mia»; define Utilidade (citando Say e Bentham) como «a qualidade abstracta pela qual um objecto serve os nossos fins, e se inclui na categoria de bem»; adiante escreve que «a utilidade, embora seja uma qualidade dos objec tos, não é qualidade inerente. Poderia ser descrita mais rigorosamente, talvez, como uma circunstância de coisas resultante da relação destas com as necessidades hu* Jebons, Theory of Political Economy (Londres, 1871), pp. 13-14, 20. ** Ibid., p. 4. 232
manas».* Propõe a lei da utilidade decrescente (cha mando-lhe Lei de Variação da Utilidade: «a utilidade não é proporcional ao bem »), distinguindo entre a utilidade total e a utilidade dum incremento adicional e estabe lecendo uma curva de utilidade do tipo familiar. «O grau de utilidade» é definido como «o coeficiente diferencial de utilidade considerado como função de x [a quanti dade do bem em questão], e constituirá, por sua vez, outra função de x »; este grau decresce à medida que a quan tidade dum bem aumenta, até se chegar próximo da «satisfação ou saciedade» dos nossos apetites.** No capí tulo seguinte (Da Troca), pressupõe que «o coeficiente de troca de quaisquer dois bens será o inverso dos graus finais de utilidade das quantidades de bem disponíveis para consumo depois de efectuada a troca.*** Os Capí tulos V, VI e VII do livro tratam das Teorias do Trabalho, da Renda e do Capital. Na segunda edição, formulou abreviadamente a curiosa reafirmação da sua teoria,**** que viria a merecer um severo comentário de Marshall: O custo de produção determina a oferta A oferta determina o grau final de utilidade O grau final de utilidade determina o valor. A este respeito, Marshall, que tinha analisado o livro de Jevons com pouca generosidade (Keynes diz «mesqui nhamente») no número de Academy de Abril de 1872, fez o seguinte comentário:***** «Se de facto esta série causal existisse, não poderia haver grande mal em omitir as fases intermédias e afirmar que o custo de pro dução determina o valor. Porque, se A é a causa de B, que é a causa de C, que é a causa de D, então A é a causa de D. Mas, na verdade, não existe tal série.» Depois de propor o seu próprio ponto de vista sobre a «mútua deter * Ibid., pp. 44-5, 52. ** Ibid., pp. 53 seq., 61. *** Ibid., pp. 95-6. **** Theory of Political Economy (Londres, 1879), p. 165. ***** Marshall, Principies, Appendix I, p. 818. 233
minação» do «preço de oferta, preço de procura e quan tidade produzida» (que considera a maior de todas as objecções» à fórmula defendida por Jevons), termina in vertendo a ordem da proposição de Jevons («pode fazer-se uma sequência um tanto menos falsa que a sua»): A utilidade determina a quantidade que deve ser fornecida A quantidade que tem de ser fornecida determina o custo de produção O custo de produção determina o valor, porque determina o preço de oferta necessário para que os produtores continuem o seu trabalho* Mas esta questão de conferir uma importância rela tiva às influências sobre a oferta e a procura (ambas, no geral, subjectivamente concebidas) era realmente se cundária em relação às outras características da mudança anteriormente discutidas. O que Marshall realmente defen dia contra Jevons era a linha de tradição que vai desde as «componentes de preço» de Smith até às «despesas de pro dução» de Mill, a teoria do valor natural, mais do que a teoria ricardiana na sua interpretação corecta. Jevons não expôs explicitamente uma teoria geral da repartição em termos análogos (isto é, de determinação da utilidade), conforme já vimos. No entanto, declara que o valor do Trabalho «deve ser determinado pelo valor do produto, e não o valor do produto pelo do trabalho», sem explicar como é que isto se consegue. Mas não ataca directamente o problema de que, a haver procura conjunta de factores, no sentido de serem utilizados em proporções fixas (e proporções que se mantêm uniformes em diversos usos), não é possível essa dedução de preços dos factores a partir de preços do produto. Tal dedução depende do facto de variarem as proporções em que os fac tores são utilizados (e manterem-se continuamente variá veis ■— ao longo duma curva de substituição ou «função de produção»), ou então (conforme veremos quando nos * Iibid., pp. 818-19. 234
ocuparmos dos austríacos), de as proporções em que os factores são combinados, mesmo sendo fixas em cada utilização, serem não-uniformes entre as diversas uti lizações. A excepção (bastante vasta) àquilo que expusemos sobre Jevons e a repartição refere-se ao capital; e a sua Teoria do Capital despertou um interesse suplan tado apenas pela sua análise da relação entre incre mentos de utilidade e preço. Neste ponto, Jevons introduz aquilo que sem dúvida constitui essencialmente a noção de produtividade marginal, tratando-a como determinante da taxa de juro. Isto processa-se em ligação com o seu modo especial de conceber o capital, constituído pelo adiantamento da subsistência dos trabalhadores. Neste ponto mantém-se na linha de tradição clássica, e admite que, «nesta matéria», está «fundamentalmente de acordo com Ricardo». Uma tal noção de capital como «adianta mento» implica uma dimensão temporal — o período de tempo durante o qual o adiantamento é feito, ou «período de produção», como viria a ser designado. «O capital, segundo o meu ponto de vista», escreve, «não é mais que o conjunto dos bens necessários paru manter trabalhadores de qualquer tipo ou classe a trabalhar». «Os meios correntes de sustento constituem capital na sua forma livre ou não investida. A única e importante fun ção do capital é permitir que o trabalhador possa aguar dar o resultado de qualquer trabalho de longa duração — estabelecer um intervalo entre o início e o fim dum empreendimento... O capital apenas nos permite despender trabalho antecipadamente.»* A possibilidade de alarga mento do «intervalo médio entre o momento em que o tra balho é executado e o seu resultado final ou objectivo rea lizado», não é tratada apenas como uma das funções do capital; é considerada por Jevons como «a única utilização do capital».** Esse alargamento (do qual fala como um «aperfeiçoamento») aumenta a produtividade. Logo, o * Theory of Political Economy (Londres, 1871), pp. 214 seg. ** Ibiã., pp. 217, 220.
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capital tem duas dimensões: trabalho e tempo. Em pri meiro lugar, podemos considerar a quantidade de trabalho investida: por exemplo, o trabalho de um dia, em certa data. Depois, o período de tempo durante o qual o traba lho investido é «fechado à chave» ou adiantado: por exemplo, durante um ano ou alguns anos, ou apenas du rante um mês. O produto destas duas dimensões classifica-o ele como «a soma de investimento do capital», em con traste com «a soma [de capital] investido». Assim, uma libra pode ser investida durante cinco anos, ou cinco libras podem ser investidas durante um ano; ambas são iguais a cinco libras-ano em «quantidade de investimento».* Explica isto através do famoso triângulo, em que o eixo horizontal representa a duração, a linha vertical a soma investida numa data dada, e a área total repre senta a entidade bidimensional, a «quantidade de inves timento» total durante todo o período. Se se investirem £10 durante cada um de dez anos, a «quantidade investida» no final desse período será £ 100, mas a «soma do investimento» (total) será igual a £550 (número que se aproxima de £500, ou metade da área total de í x o trabalho investido durante o período, à medida que os intervalos entre actos de investimento sucessivos se encurtam e o investimento se torna virtualmente um processo contínuo).
t Diagrama jevoniano da quantidade de «investimento » (ou «período de produção») *
IM d ., pp. 221-8.
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O juro do capital, segundo esta teoria, é «a taxa de aumento da produção» resultante do incremento proces sado durante este período de adiantamento (ou período de produção), expressa proporcionalmente a todo o produto; ou, designando por F t o produto de uma dada quantidade de trabalho adiantada durante o tempo t e supondo que F t aumenta com t: dF t 1
ãt
Ft
Assim, «a taxa de juro varia na razão inversa do período de investimento».* Isto era obviamente equivalente a de terminar a taxa de reembolso do capital pela produtivi dade marginal correspondente ao alongamento do período de produção.** Jevons é ainda recordado, naturalmente, como escritor vigoroso no seu modo de tratamento de questões práticas, por exemplo a variação de valor do ouro, as «flutuações comerciais», a teoria dos números índices, e, sobretudo, o Problema do Carvão, sobre o qual escreveu em 1865 um panfletoque obteve grande êxito. Na épocaestes tra balhos atraíram mais as atenções que a novidade da sua teoria económica. Manteve também opiniões firmes a respeito da política de laissezfaire e do problema dos salários (ver o seu State in Relation to Labour de 1882). Ao contrário dos seus contemporâneos continentais, de * Ibid., pp. 237-8. Deve notar-se que o aumento da quantidade de investimento = d t. Ft, de modo que a expressão acima, é equivalente ao aumento do produto como proporção para o aumento da quantidade de investimento. Sobre isto, como explicação possível e com interesse^, ver adiante, p. ••Um tanto surpreendentemente, o professor Stigler considera que «Jevons não se afasta muito dá teoria clássica. A sua concepção do capital e da taxa deste, é basicamente a mesma que encontramos na doutrina do fundo de salário»; a principal diferença está em «que a doutrina clássica pressupõe um período de produção fixo (um ano )» (Production and Distribution Theories, p. 29). Por «teoria clássica», o autor designa evidentemente Ricardo tal como é interpretado por Mill. 237
quem nos ocuparemos em breve, a sua influência aca démica foi limitada e as suas ideias teóricas pouco de terminantes enquanto viveu. A sua primeira formulação da sua nova teoria, numa comunicação à Associação Britâ nica em 1862, foi ignorada; e embora fosse nomeado para uma cadeira no Colégio de Owen, em Manchester, no ano de 1866, recusou-se a ensinar as suas próprias ideias du rante os dez anos que aí permaneceu, preferindo transmitir aos seus alunos os ensinamentos das doutrinas tradi cionais de Mill. Keynes refere-se a ele como «um professor hesitante e sem êxito».* Quando foi publicado, o seu livro teve poucas críticas, que não foram entusiastas (houve uma análise de Marshall, que já mencionámos, e uma crítica hostil de Cairnes); e apenas quatro anos após a nomeação (em 1876) para a cadeira do University College, Londres, pediu a demissão por razões de saúde e morreu afogado dois anos depois, quando tomava banho na costa sul, apenas com 46 anos de idade. Schumpeter observa que Jevons deixou poucos ou nenhum discípulo pessoal: «na Inglaterra, nunca lhe prestaram o devido preito... a sua originalidade nunca foi reconhecida como deveria».** O comentário de Keynes sobre Jevons (comparando-o com Marshall) é digno de nota. «A aptidão de Jevons para expor as suas ideias, para as atirar para o Mundo, grangeou-lhe a sua grande posição pessoal e a sua incontestada capacidade para estimular outras mentes.
*
J. M. Keynes, Essays in Biography (nova ed., 1951) p. 307.
** 'Schumpeter, History of Economic Analysis, p. 826. Também se refere a Jevons como alguém que foi «sem dúvida um dos econo mistas mais genuinamente originais», embora «a sua capacidade de realização não estivesse ao nível da sua visão». O Prof. Lionel Robbins disse a seu respeito: «Desde a sua morte, tem sido universalmente reconhecido como uma das mais proemi nentes figuras da história do pensamento económico»; acrescen tando: «N ão fez escola. Não criou nenhum sistema» ( ‘The Place of Jevons in the History of Economic Thought’, Manchester School, Vol. VII, N.° 1, 1936, p. 1). 238
Cada uma das contribuições de Jevons para a Economia foi como que um panfleto.»* ni Num livro publicado no mesmo ano que o de Jevons, Cari Menger (um funcionario público que dois anos mais tarde seria nomeado para urna das duas cadeiras de Eco nomia Política da Universidade de Viena) apresentou uma teoria quase paralela, mais geral, mas sem o aspecto mate mático que caracterizava a de Jevons (aquilo a que o Pro fessor Stigler chamou a sua «repelente formulação mate mática»).** Tal como Jevons, Menger expôs uma teoria subjectiva do valor, partindo da finalidade do consumidor e considerando que os bens do consumidor («bens de primeira ordem») derivam o seu valor da sua aptidão para satisfazer as necessidades humanas. Conforme vi mos, Menger prossegue deduzindo o valor dos bens do produtor («bens de ordem superior») do contributo destes para a produção daqueles bens que satisfa zem directamente as necessidades humanas; esta de dução é um processo que veio a ser conhecido por «im putação» Zurechnung a cada input, da diferença que a sua presença (ou ausência) inflige à produção. O fulcro dessa imputação é o chamado Princípio da Perda: o valor de um cavalo para um agricultor, é aquilo de que este fica privado se deixar de ter o cavalo. Essencialmente, pode ver-se nisto a noção de produtividade marginal, embora sem que este termo seja propriamente utilizado e sem que se penetre nas subtilezas quase matemáticas que viriam a associar-se a esta noção. No entanto, Menger teve o cuidado de distinguir entre os casos de proporções fixas e variáveis de inputs ou factores na produção. Para o primeiro caso (proporções fixas), enunciou o princípio de que o valor de um input ou factor retirado * Essays in Biography (Londres 1933), p. 211 (nova éd., 1951, P. 174). ** Stigler, Production and Distribution Theories, p. 135.
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era igual à perda total de produto resultante, menos o pro duto resultante da utilização dos inputs ou factores complementares em aplicações alternativas dos mesmos. No segundo caso (proporções variáveis), este valor era igual à diferença infligida ao produto pela retirada de urna unidade do input ou factor, depois de o que restava deste e outros factores ter sido novamente disposto e combinado da melhor forma. Tal solução, conforme veremos bre vemente, suscita diversas dúvidas, e pode até dizer-se que envolve uma contradição. Voltando aos «bens de primeira ordem»: Menger acen tuou que a satisfação das necessidades é tanto mais possí vel quanto maior for a quantidade disponível dum bem, e que um consumidor maximiza a sua satisfação em qualquer momento, distribuindo o seu rendimento de modo a que a necessidade satisfeita na margem seja igual em todas as direcções («as mais importantes de todas estas necessidades concretas que não são satisfeitas têm igual significado para todos os tipos de necessidades, e, por conseguinte, a satisfação de todas as necessidades concretas tem o mesmo nível de importância»). B bem claro o sentido geral desta afirmação. Mas não está enunciada de forma precisa, uma vez que não indica clara mente qual a unidade em cujos termos as necessidades satisfeitas (ou deixadas insatisfeitas) são medidas e uniformizadas. Ê evidente que esta afirmação tem sentido ou não, conforme se admite que a uniformização se realiza em termos de unidades físicas de cada bem (alqueires de trigo, metros de tecido ou garrafas de vinho) ou de unidades de rendimento monetário gastas nestas diversas mercadorias. A segunda interpretação equivale, portanto, a falar, não de uniformizar a satisfação da necessidade, ou utilidade marginal, de bens, mas de tornar a sua utilidade marginal (em termos de uma unidade física de cada bem) proporcional aos seus preços. A clareza relativamente a esta interpretação não é apenas um preciosismo, é relevante para a questão de saber se uma tal afirmação pode ser ampliada ou condensada de forma a aplicar-se a um grupo enquanto distinto de indivíduos tomados separada mente. Se os rendimentos monetários forem desiguais (de 240
tal modo que as utilidades marginais desses rendimentos monetários individuais sejam desiguais), qualquer tenta tiva para ampliar a referida afirmação é meramente fala ciosa — embora a falácia esteja longe de ser inédita. Quando esta afirmação é ampliada a um grupo, para além dos indivíduos, de novo observamos que só é inequí voca se se tiver introduzido qualquer hipótese sobre a repartição de rendimento. Talvez seja bom explicar que uma característica do modo de análise de Menger, e da sua escola em geral, foi que, no referente a necessidades e a bens de «ordem superior» utilizados como inputs na produção, se acentuou o facto da complementaridade, e ainda o facto de se ter de trabalhar com unidades finitas {Teílquantità ) , não com infinitésimos (o que está relacionado com a antipatia desta escola pela «matematização» da teoria, à maneira de Jevons e Walras). O significado desta atitude revela-se no modo especial como esta escola interpretou a noção de «valor imputado» ou produtividade marginal. Menger (que viveu até depois da primeira guerra mundial) foi considerado o pai da Escola Austríaca, visto que os representantes mais conhecidos desta escola, Wieser e Bõhm-Bawerk, que haveriam de desenvolver a sua teoria, em especial no que se refere à «imputação» como uma teoria de repartição e a teoria do capital, foram seus discípulos pessoais. Efectivamente, Menger teve mais êxito que Jevons no que respeita a ser apreciado e exercer influência enquanto vivo; embora se duvide de que tal tivesse sucedido, especialmente tendo em conta a oposição latente da poderosa Escola His tórica Alemã (com a qual, já idoso, travou pro longada polémica), sem a ajuda e a actividade literária dos seus dois principais discípulos, que chamaram a aten ção para as doutrinas de Menger com os seus próprios trabalhos, durante a década que se seguiu. Mas antes de nos ocuparmos das suas contribuições (em certos aspectos mais interessantes que as do mestre), cabe dizer uma veram os seus respectivos livros em 1871, mas que Jevons nem Menger conheciam, ao que parece, quando escrepalavra acerca desse precursor alemão que nem Jevons 16
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reconheceu, conforme vimos, quando foi publicada a se gunda edição do seu próprio livro. Já em 1854, Hermann Heinrich Gossen publicara um livro com o título «Desenvolvimento das Leis da Acção Humana e dos con sequentes Princípios do Comércio Humano», no qual era apresentada uma teoria semi-matemática do prazer e da dor, com uma noção de saciabilidade de necessidades ou utilidade decrescente (a sua «lei principal») e o princípio de que a tentativa de maximizar o prazer acabará necessariamente por tornar equivalentes os incrementos finais de todas as satisfações (ou, mais correctamente, conforme vimos, dos incrementos finais do rendimento monetário gasto na aquisição de diversas satisfações). Este princípio foi aplicado, por analogia, a bens utilizados na produção (a que chamou «bens de terceira classe») e ao trabalho; e como o trabalho envolvia uma noção de desutilidade, o equilíbrio na produção implicava uma com pensação da desutilidade do trabalho adicional contra a satisfação adicional resultante do fruto desse trabalho. O valor depende inteiramente da relação entre o objecto e o sujeito.* No entanto, Gossen tratou a utilidade enquanto porta dora de uma relação linear com a quantidade, de modo que as curvas de procura nos seus gráficos são sempre linhas rectas. O que é notável, mas talvez não completamente sur preendente, é o facto de a obra de Gossen ter permanecido quase desconhecida e sem exercer influência, até ser publicamente reconhecida por Jevons em 1879. Foi Friedrich von Wieser quem se esforçou por desen volver mais rigorosamente, como teoria geral, o Prin cípio da Perda, de Menger (a palavra Zurechnung é, de facto, sua), além de procurar desenvolver uma teoria do valor de troca a partir duma teoria dos preços (ou «valor natural»), elaborada no contexto duma troca individual ou intercâmbio entre parceiros ou grupos comerciantes; enquanto que E. von Bõhm-Bawerk é conhe* Sobre Gossen, cf. Erich Roll, History of Economic Thought (Londres, 1938), pp. 371-3. 242
eido pela sua teoria do capital e juro, em que segue as linhas mestras de Jevons. Esta última teoria foi expres samente concebida como réplica à teoria da mais-valia de Marx. Na realidade, a crítica das doutrinas socialistas foi preocupação predominante para a maioria dos repre sentantes da Escola Austríaca (e também para Pareto, de quem falaremos adiante); e a teoria da imputa ção foi desenvolvida por Wieser como réplica à tese socialista (deduzida, segundo o seu ponto de vista, da Teoria do Valor do Trabalho) de que q rendimento pro veniente da propriedade representava «exploração» de trabalho. Ambos estes autores, juntamente com Pareto, poderiam ser considerados apologistas conscientes do sis tema vigente — e Schumpeter, de facto, apelidou Bõhm-Bawerk de «Marx burguês».* As duas obras mais conhecidas de Wieser foram publicadas na década de 1880: a primeira, Über den Ursprung und ãie Hauptgesetz des wirtschaftlichen Wer thes («Origem e Lei dos Valores Económicos»), em 1884, e a segunda, Der Natürlichen Wert (traduzido por C. A. Malloch e publicada por William Smart em 1893, com o título «Valor Natural») em 1889. O Princípio da Perda de Menger, imputando ou deduzindo os valores dos bens de produção dos valores dos bens de consumo, é desenvolvido em função duma teoria de produtividade marginal, ainda que numa versão especial sua — que, «com uma pequena diferença, era a produtividade mar ginal» de Schumpeter.** A teoria baseava-se na igualdade do preço dum bem de produção (em condições de concor rência) e daquilo que ele chamava a sua «contribuição produtiva» (a que também chamou «contribuição margi nal» ou «produto marginal»). Já nos referimos ao facto de os austríacos utilizarem unidades finitas e darem particular importância à com plementaridade. Isto não foi acidental: resultou da rejei ção de qualquer classificação geral de factores produ* Schumpeter, History of Economic Analysis, p. 846. ** Ibid., p. 915. 243
tivos, preferindo tomar cada tipo de ínput como um bem do produtor independente, a avaliar pelo pro cesso de imputação; e estes últimos bens tinham de ser tratados em termos da unidade física própria de cada um, o que podia implicar, especialmente no caso de capital fixo, grandes unidades indivisíveis e elementos de complementaridade significativos. Wieser começa por demonstrar que o Princípio da Perda de Menger, quando aplicado a esses casos de complementaridade, resultaria em que os valores de todos os factores complementares excedessem o valor da produção* (isto é, quando os primeiros são avaliados do modo sugerido por Menger, o valor igual ao produto total da «melhor» combinação menos o produto dos outros factores da combinação quando aplicados numa utilização alternativa, imedia tamente abaixo da melhor). Quando Wieser ad mite que as proporções podem geralmente variar e não são de modo nenhum, fixas, tem também como ponto assente que quaisquer variações (finitas) fora da com binação, que permitam «a maior compensação possível», * Na Inglaterra, foi P. H. Wicksteed quem estudou o chamado «pro blema da adição» e procurou prová-lo com o auxílio do Teorema de Eulerj com a condição de a função de produção ser «homogénea e do prime’iro grau» (ou linear): por outras palavras, desde que prevale cessem os custos constantes ou reembolsos constantes à escala ( Coor- dination of the Laws of Production and Distribution, Londres, 1894). Wicltsell (e também Walras) apoiaram a conclusão de Wicksteed com base em que, ainda que existam necessariamente ordens de pro dução (de uma empresa) nas quais predominem rendimentos cres centes ou decrescentes à escala, a hipótese de um equilíbrio de concorrência exigia que a empresa em equilíbíio de concorrência produzisse ao custo mínimo (e, portanto, na proximidade imediata do ponto de equilíbrio do custo constante). Isto pode parecer pôr de parte as «economias externas». A Pr of. Joan Robinson, no entanto, demonstrou que o ponto em discussão era puramente formal, uma vez que mesmo existindo economias externas (e a indústria estando sujeita, por esta razão, a rendimentos crescentes à escala) era ao produto marginal para a empresa (e não para a indúústria) que o preço dum factor era igualado, em equilíbrio de concorrência (Joan Robinson, «Euler’s Theorem and the Problems of Distribution», The Economic Journal, Setembro de 1934, pp. 398 seg.; reeditado em Collected Economic Papers (Oxford, 1951), PP. 1-18).
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terão um efeito prejudicial sobre o produto; e, consequen temente, apresenta uma solução destinada a ser o caso mais seguro em que as proporções são absolutamente fixas (uma consideração que o Professor Stigler parece não ter em conta, na sua concisa rejeição da réplica de Wieser). Este princípio alternativo de imputação proposto por Wieser, exigia, no entanto, a pressuposição de que estas proporções, embora existindo factores ou inputs combinados em proporções fixas em cada utilização, são diferentes entre diversas utilizações. Os preços dos inputs resultam então das diferenças de coeficientes técnicos e de preços de produtos no sistema considerado globalmente. Isto foi exemplificado da seguinte forma, num caso simplificado de três factores e três produtos. Designando por x,y ez, os valores unitários dos três factores ou inputs, dois dos quais são utilizados em cada indústria, e escreven do os valores dos produtos (que se presumem pré-determinados no mercado de bens de consumo) do lado direito de cada equação, o autor apresentou assim as três equa ções dos três produtos:
x + y — 2x + 3s = 4?/ + 5z =
100,
290, 590.
«Em vez de uma equação x + y = 10, temos agora três equações e três incógnitas, e o valor de x, y e z pode ser determinado resolvendo as equações (neste caso, obtêm-se respectivamente os valores 40, 60 e 70). «A con tribuição produtiva, portanto, é a porção derendimento que corresponde ao trabalho do elementoprodutivo indi vidual no rendimento total da produção. A soma de todas as contribuições produtivas coincide exactamente com o valor do rendimento total.»* Esta engenhosa solução tem, no entanto, várias limi tações. Em primeiro lugar, devem existir pelo menos tan tos produtos finais como bens de produção independentes, *
Natural Value, ed. W. Smart (Londres, 1893), p.
88 .
245
cujos preços têm de ser determinados. Isto não seria uma condição limitativa grave, se se estivesse a trabalhar com factores de produção agrupados em poucas classes ou poucos grupos principais, à maneira clássica. Mas quando é necessário determinar separadamente os preços de bens de produção fisicamente distintos — cada metal, o combustível ou máquina-ferramenta ou o tipo de traba lho ou de terra — esta limitação pode tornar-se muito mais grave. Em segundo lugar, alguns críticos (por exemplo Stigler) observaram que, visto que os preços dos produtos são tomados como dados, isso implica que as procuras fi nais são infinitamente elásticas, de modo que os preços dos produtos não são alterados por ajustamentos de output. Esta objecção não é tão insuperável como tal vez pareça à primeira vista, desde que se possa pos tular uma condição de equilíbrio (por exemplo, igual dade de custos e receita) capaz de permitir um ajus tamento mútuo dos preços dos produtos e output e dos preços dos bens de produção no processo de procura do equilíbrio. Wieser foi de facto responsável pela noção que viria a ser conhecida como custo alternativo ou custo de oportunidade — a possibilidade de utilização dum input em qualquer uso afectada a sua disponibilidade, e, portanto, o seu custo de obtenção para usos alternativos e opostos — de forma que dificilmente pode ser acusado de ter ignorado a repercussão dos preços dos bens de produ ção no output, e, portanto, nos preços dos produtos. Em terceiro lugar, existe uma dificuldade maior: aquilo a que se pode chamar um dilema quanto à hipótese a formular sobre as ofertas de factores, ou sej a— o que é que do lado da oferta se deve tomar como dado?* Voltamos assim a uma questão difícil e * Em rigor, se tivermos coeficientes fixos 2 a oferta relativa de factores não pode influenciar o resultado (c/. Stigler, Production anã Distribution Theories, p. 178). Mas se se considerar este caso como mais «relevante», e existir na prática alguma possibili dade de variação, as ofertas de factores, logo que são introduzidas, tornam-se um elemento considerável e será preciso postular algo a seu respeito.
246
importante, à qual já aludimos de maneira preliminar na primeira parte deste capítulo: trata-se duma dificul dade que qualquer teoria de determinação da procura que trabalhe com bens de capital ou inputs separa dos deve enfrentar. Se se admitir a hipótese de que a oferta de vários bens de produção individuais é um dado constante, estamos diante daquilo a que, em termos marshallianos, podemos chamar uma teoria de curto prazo (ou quase curto-prazo). O valor de um bem de produção duradouro, por exemplo uma peça de máquina, é dedu zido como uma «quase-renda», e será diferente para dife rentes tipos de capital fixo. Como já observámos, não aparecerá nenhuma taxa de lucro uniforme nas diversas componentes do capital fixo. Se, pelo contrário, admi tirmos como hipótese a existência duma constância re lativa apenas a um agrupamento mais amplo de factores (por exemplo, o capital), no interior do qual as ofertas relativas de bens particulares têm a possibilidade de variar, sujeitas unicamente à constância quantitativa do género no seu conjunto, entramos então no problema, agora conhecido, de como atribuir ao capital um significado quantitativo independente — uma dificuldade que volta remos a encontrar (numa perspectiva um pouco diferente) para o caso de Walras, e examinaremos de forma mais pormenorizada em relação a discussões e críticas que têm surgido recentemente. Talvez convenha notar, a propósito, que se se tra balhar com incrementos infinitesimais e uma variação con tínua, como veio mais tarde a tornar-se habitual, a solução de Wieser e o Princípio da Perda de Menger podem considerar-se coincidentes, mesmo no caso das proporções fixas. Há, no entanto, uma certa perda de realismo quando assim se procede, visto que todos os problemas relaciona dos com indivisibilidades* estão ipso facto excluídos. Em
* Po r exemplo, uma importante categoria dentro duma economia externa relacionada com uma economia do abastecimento de pro dutos subsidiários ou de maior especialização, cujo custo marginal divergiria consequentemente do custo médio.
247
termos de variação contínua a posição pode resumir-se como segue. No caso das proporções fixas, o valor de um factor é determinado pela sua utilidade em usos alternati vos. No caso das proporções variáveis (isto é, variáveis em cada indústria), as quantidades dos diferentes factores ou inputs que podem ser substituídas umas pelas outras, a fim de se obter a mesma quantidade adicional do produto, devem ser de igual valor (isto é, os seus preços = ao coe ficiente dos seus produtos marginais). Para preencher a lacuna existente na «imputação» de Menger-Wieser, no que respeita à teoria dos lucros, foi ela borada a conhecida teoria do juro do capital, que constituiu a contribuição especial de Eugen von Bõhm-Bawerk para o trabalho da Escola Austríaca. Esta teoria seguiu as linhas mestras de Jevons, e, formulada e apresentada com pro fundidade teutónica, concentrou-se na noção de um período de produção como a essência quantitativa do «capital» como factor produtivo. A sua obra em dois volu mes, Kapital und Kapitalzins, foi igualmente publicada na década de 1880; o seu primeiro e histórico volume, Geschichte und Kritik em 1884, e o segundo, Positive Theorie, em 1889.* A sua intenção de rever sistemati camente esta obra, à luz da discussão e críticas que susci tou, foi impedida por quinze anos de ocupações par lamentares, durante os quais ocupou por três vezes o cargo de ministro das Finanças; só em 1905 voltou aos trabalhos académicos como professor em Viena (nesse intervalo foi apenas professor honorário, tendo dirigido somente um ou outro seminário). Esta revisão da sua obra e a sua réplica às críticas a que deu origem ainda não estava ter minada quando da sua morte, dez anos mais tarde, em 1914. A sua conhecida (e que, durante muitos anos, conservou grande influência) crítica de Karl Marx foi escrita du rante o seu período de trabalho parlamentar, em 1896.**
* A edição inglesa, preparada por W. Smart, fo i publicada em 1890 e 1891, respectivamente. **
248
Ver acima, Cap.
6,
II.
Dissemos que a sua teoria do capital, que iria cons tituir a teoria austríaca do capital tal como a conhecemos, teve importantes afinidades com a de Jevons. Ao conside rar o conceito de um período de produção como essência do capital, estava a acentuar a potencialmente elevada produtividade do trabalho quando associada a proces sos de produção «mais demorados» ou «mais indirec tos»; resultando a taxa de juro da produtividade adicio nal devida ao prolongamento deste período de tempo. «O facto de os métodos indirectos conduzir,em a resultados mais consideráveis que os directos, é uma das teses mais importantes e fundamentais de toda a teoria da produ ção». Uma das afinidades entre a sua Teoria e a de Jevons foi ainda o considerar o capital como essencialmente cons tituído por adiantamentos de subsistência aos trabalha dores: isto é, como basicamente redutível a um fundo de subsistência. O aumento da produtividade com prolon gamento do período de produção seria, em geral, proporcio nalmente decrescente em relação ao prolongamento: por ou tras palavras, a produtividade marginal do prolongamento tenderia a diminuir. Para uma quantidade de trabalho dada, qualquer aumento de capital provoca necessariamente o prolongamento deste período (um período maior, ceteris paribus, exigindo mais capital em virtude do aumento da dimensão temporal). Daqui resultava, segundo um conhecido raciocínio, que para uma taxa de salários e uma oferta de capital dadas, era possível, em média, uma certa duração do período de produção; e a concor rência asseguraria (concorrência, entenda-se, de empre- sários em busca de capital que permitisse prolongar o pe ríodo) a igualdade entre a taxa de juro e a proporção entre o produto adicional obtido graças ao prolongamento do período e o capital adicional necessário para tal (a «quan tidade de investimento de capital» de Jevons). Isto pode igualmente exprimir-se do seguinte modo: dada a oferta de trabalhadores concorrentes no mercado de em prego (trocando o seu trabalho pela subsistência) e também a oferta de capital em busca de investimento, o nível de salários, a extensão do período de produção e a taxa de juro, eram determinados mútua e simulta 249
neamente. «Numa comunidade, o juro será tão elevado quanto o fundo nacional de subsistência for baixo, quanto o número de trabalhadores empregados por este fundo for grande, e quanto as receitas excedentes asso ciadas a qualquer outra ampliação da produção conti nuarem a ser elevadas.»*' Mas o que é que determina a quantidade de capital em busca de investimento? Se não houvesse qualquer restrição a este, não haveria limite superior para o período de produção nem limite inferior para a taxa de juro, que tenderia a baixar até zero. É neste ponto que Bõhm-Bawerk insere a sua teoria do capital no esquema da Teoria Subjectiva do Valor, formulando a sua famosa «subavaliação subjectiva de bens futuros em comparação com bens actuais». Desta noção derivam todas as expli cações subsequentes do juro em termos de «preferência de tempo» ou «desconto de tempo» (por exemplo, a de Irving Fisher). Pode dizer-se que foi isto que proporcionou à escola austríaca as suas hipóteses sobre a oferta, no que se refere à oferta de «poupanças», e, portanto, à oferta de capital em busca de investimento num dado momento. Para esta «subavaliação subjectiva de bens futuros», o autor apresenta «três fundamentos», que têm sido objecto de muita (e por vezes maçadora) discussão — dis cussão em que, desculpar-nos-ão, não entramos. O primeiro fundamento foi apresentado da seguinte maneira: «O primeiro grande motivo de diferença na ava liação de bens presentes e futuros está nas diferentes circunstâncias de necessidade e abundância no presente e no futuro.» Por outras palavras, o futuro tem a proba bilidade de ser mais abundante que o presente e de pro porcionar um maior rendimento real; de qualquer modo isto é aplicável à comunidade em geral, ainda que indi vidualmente as esperanças comparadas do presente e do futuro possam variar (pois alguns indivíduos esperarão
* The Positive Theory of Capital, trad, de W. Smart (Londres, 1891), p. 401. 250
diminuições de rendimento, enquanto outros prevêem um aumento). Em segundo lugar, «a bens que se destinam a satis fazer as necessidades do futuro atribuímos um valor que é realmente menor que a verdadeira importância da sua futura utilidade marginal», em virtude duma imagi nação imperfeita que subestima as necessidades futuras, ou da falta de força de vontade para resistir à atracção de necessidades presentes, insuficiência que é reforçada pela curta duração da vida humana. Evidentemente que se trata aqui duma diferença irracional de avaliação ao longo do tempo, e houve quem negasse este modo de ver.* Em terceiro lugar, atribui-se uma «superioridade téc nica dos bens presentes sobre os bens futuros», visto que os primeiros estão disponíveis para serem investidos em métodos indirectos de produção mais pro dutivos. Argumentou-se convincentemente que esta razão não é de facto independente das do primeiro fun damento, constituindo a base real da esperança num rendimento futuro mais elevado, da qual depende esta primeira razão para subavaliar o rendimento futuro em relação com o rendimento presente.** Resumindo, Bõhm-Bawerk explica: «Tento demons trar que os factos técnicos de produção que descrevo como a maior produtividade dos métodos de produção de dispên dio de tempo, proporcionam um fundamento parcial para avaliar como superiores os bens presentes, cuja posse per mite a utilização desses métodos de dispêndio de tempo mais produtivo. Deste ponto de vista, os factos técnicos e * «Os bens presentes devem ter um ágio, como legítim a conse quência do facto constante de os bens presentes serem mais úteis e desejados que os bens futuros, e nunca existirem nem serem propostos com abundância ilimitada. Este ágio torna-se assim organicamente necessário» (ibid.x p. 336). «Se houver permuta entre bens presentes e futuros, a existência de qualquer ganho é um fenómeno inteiramente normal e, na realidade, economicamente necessário» (ibid., p. 361). ** Quanto aos «Tr ês Fundamentos», ver ibid., Livro V, Caps. XX, UI, IV, pp. 249 seg. 251
psicológicos coordenam-se desde o início.»* E, reunindo os diversos elementos da sua teoria, conclui: «A relação entre necessidade e satisfação no presente e no futuro, a subavaliação de prazeres e dores futuras, e a vantagem técnica apresentada pelos bens presentes, têm como consequência que, para a imensa maioria dos homens, o valor de uso sub jectivo dos bens presentes é maior que o de bens análogos futuros.» Esta relação de avaliação subjectiva reflecte-se posteriormente no mercado como «maior valor de troca objectivo e preço de mercado mais elevado dos bens presentes».** Durante as três décadas que se seguiram, poucas questões dividiram os teóricos da Economia mais niti damente que esta forma de considerar o capital e determinar a taxa de juro. Esta teoria teve grandes admiradores e críticos violentos. Entre os primeiros pode contar-se Knut Wicksell, embora tivesse também formu lado algumas críticas a seu respeito: com as suas próprias modificações e aditamentos, aceitou sem dúvida a noção de período de produção e afirmou que «nesta teoria propor ciona-se, pela primeira vez, um substituto real da obsoleta teoria do fundo de salários».*** Über Wert, Kapitál und Rente, publicado em 1893, foi a sua própria formulação e defesa da doutrina austríaca. Entre as críticas, talvez a mais corrente tenha sido a de negar que a noção de um período de produção correspon da a qualquer coisa de real no papel do capital na produção (caso que corresponderia a considerar a clássica noção de capital como «adiantamentos para o trabalho», embora in terpretada, sem relevância para o problema). Afirmou-se, por exemplo, que em equilíbrio estático, não havendo investimento, a produção e o consumo são sempre simul tâneos. Com uma quantidade constante de bens de capital * Geschichte (4.a ed.) pp. 301-2; cit. T. W. Hutchison, A Review of Economic Doctrines, 18701929 (Oxford, 1953), p. 169. ** Positive Theory, trad. W. Smart (Londres, 1891), p. 281. ** * K. Wicksell. Value, Capital and Rent, trad. S. H. Frowein (Londres, 1954), p. 145. 252
(com composição de idade constante), uma certa frac ção desta quantidade é substituída em cada ano por traba lho correntemente aplicado; e pode entender-se o output corrente como produzido pelo trabalho correntemente aplicado para produzir estes bens de capital de substitui ção, sem recorrer a uma noção de trabalho aplicado em datas anteriores para produzir originariamente os diversos artigos do stock existente de bens de capital em serviço. Isto afigura-se uma afirmação válida, quando se está dentro do contexto de equilíbrio estático. O que esta afirmação passa em claro, enquanto crítica duma teoria da formação de capital, é que, logo que se introduz investi mento líquido no esquema e há modificações na existência de capital, não pode deixar de ser considerada a ideia de que o aumento da existência leva necessariamente tempo, e esta consideração é imediatamente relevante quando se pergunta porquê o capital existente é o que é e não pode ser tão grande em relação ao trabalho e aos factores naturais que chegue ao ponto de atingir a «saturação de capital» e reduzir a produtividade mar ginal do capital a zero.* Não surge assim de novo algo pelo menos idêntico à noção de um período de produção, e não parece que a noção de adições ao output final, produ zidas apenas pelo trabalho corrente, já não é suficiente? Mais grave, e aparentemente também mais funda mental, é a crítica de que ao «período de produção» se não pode atribuir um significado quantitativo claro. Nesse caso, não se pode igualmente atribuir significado à sua constância (por exemplo, ao calcular a pro dutividade marginal de factores que não o capital), ou ao facto de um período ser maior que outro, e, por tanto, não se pode atribuir um significado inequívoco a um aumento no período, e, por conseguinte, na quantidade de capital. Quando alguns críticos afirmaram que a noção * Cf. a afirmação de Schumpeter (retomando Bohm-Bawerk): «se o capital físico proporciona não só receitas, mas também recei tas líquidas, deverá existir algo que o impeça de ser produzido até ao ponto em que os seus ganhos não são mais do que a reposição
do seu custo»
(History of Economic Analysis,
p. 926).
253
implicava inevitavelmente um retrocesso infinito, Bõhm-Bawerk replicou replicou (e justificadame justif icadamente) nte) que que a partir par tir de de certo ponto os inputs de trabalho relevantes se tornam tão pequenos que são negligenciáveis, mesmo quando multi plicadas pelo tempo decorrido; e contentou-se com medir (e comparar) o seu período «médio» como a média arit mética simples dos inputs de trabalho de várias dadatas multiplicados pelo tempo decorrido.* Mas a verda deira dificuldade é mais profunda. Não podemos ficar por uma média aritmética simples, visto isso não ser compatível (quando traduzido em termos de valo va lor) r) com diferentes investimentos que obtêm a mesma taxa de lucro (a qual qual é exigida exig ida pelo equilíbrio equ ilíbrio da concorrê concorrência ncia,, com mobilidade de capital a longo prazo). No entanto, logo que se aplica o juro composto, na ponderação dos inputs de trabalho de diversas datas, torna-se evidente que um período de produção com um certo esquema de tempo de inputs de trabalho pode apresentar-se «maior» que outro (com um esquema de tempo dife rente ren te)) com uma uma certa cer ta taxa tax a de juro, e «men «m enor or»» com outra taxa. Por outras palavras, à medida que a taxa de juro se modifica, diferentes esquemas de tempo de inputs de trabalho podem mudar de lugar relativamente à ordem com que se apresentam no escalonamento dos «períodos de produção» segundo as suas respectivas «extensões».** Vol taremos a este problema, com implicações mais amplas, no contexto da discussão e crítica da chamada doutrina «neoclássica» das décadas recentes. Finalmente, temos a terceira corrente de inovação associada com Léon Walras e com aquilo a que por vezes * Positive Theory of Capital, trad. W. Smart (Londres, 1891), pp. 88-9. ** Pa ra uma uma crítica idêntica sobre sobre as noções noções jevonianas de «quanti «qua nti dade de investimento» e «tempo médio de investimento» (e da sua afirmação de que a taxa de juro está na razão inversa do período médio de investimento), cf. Ian Steedman, ‘Jevons’ Theory of Capital and Interest’, The Manchester School, Março de 1972, pp. 31 seg., onde se apresentam argumentos de que «a teoria de Jevons não propõe nenhuma explicação da taxa de juro».
254
se chama chama Escola de Lausana (outras (out ras vezes Escola Escol a Matemá tica, para a distinguir dos Austríacos). Walras, que foi mencionado por Marshall apenas três vezes nos seus Prin- cípios, e ainda assim só de passagem, é considerado por Schumpeter como «o maior de todos os economistas», por que «o seu sistema de equilíbrio económico, reunindo a qualidade de criatividade ‘revolucionária’ com a qualidade de síntese clássica, é o único trabalho dum economista que se pode comparar às realizações dos físicos teóricos».* E no entanto, «os economistas seus contemporâneos foram na maioria maiori a indiferentes ou ou hosti ho stis». s».** ** A síntese síntese dos dos vá vá rios aspectos da nova abordagem de um sistema mate mático de dependência mútua é seguramente a sua mais importante import ante contribuição — ma mais is do que novidade de ênfase ênfase ou de exposição. Mas apesar da sua preocupação com o formalismo matemático, vimos que reconhecia que a inter pretaç pre tação ão económica e as implicações causais causais do seu seu sistema eram análogas, quanto ao essencial, às de Jevons ou Menger:*** particularmente a dedução dos preços dos produtos a partir das necessidades do consumidor e do valor dos ser*
History tory of Econo Econom mic Aimlysis, ysis,
Schumpeter, p. 827. ** p. 829. ** * N o Prefácio Pre fácio à 4.a edição edição dos dos Walras refere-se «à teo ria da troca baseada na proporcionalidade entre os preços e as »¿ como tendo sido «elaborada quase simultaneamente por Jevons, Menger e eu próprio» ed. W. Jaffé (Londres, 1954), p. 44). Diz ainda que «os economistas austríacos estabeleceram exacta mente a mesma relação entre o valor de e o valor de que foi estabelecida por mim» p. 45). Que não era contrário à interpretação causal das suas equações, é evidente em afirmações como: «se é certo que e valor na troca são dois fenómenos concomitantes e proporcionais, também é certo que a p. 145), ou no sua refe é a causa do valor na troca» rência a «determinantes de preço subjacentes» p. 146, e p. 307). No entanto, Pareto viria a discordar da afirmação de Walras com base em que a determinação mútua (por um sistema de equações simultâneas) devia ser posta em oposição à causalidade simples: «Pode afirmar-se que qualquer economista que procure a do valor mostra que nada compreendeu do fenómeno sintético do equilíbrio económico»; é esta «dependência mútua
Ibid.,
Êléments, sidades das últimas necessidades satisfeitas (Elements of Pure Economics, Proãukte Produktivmittel (ibid., rareté rareté (ibid., (ibid.,
inten-
cf.
causa
255
viços dos bens de capital e factores a partir da sua utiliza ção produtiva na criação de bens de consumo. Conforme Walras disse, em Éléments d'Economie Politique, de 1874: «Em última análise, as curvas de utilidade e as quantidades possuídas constituem os dados necessários e suficientes para a formação de preços correntes ou de equilíbrio.» «O valor provém da escassez». E opõe este ponto de vista aos de Smith e Ricardo: «a teoria que pro cura a origem do valor no trabalho é uma teoria des tituída de significado, e não apenas demasiado restrita, é uma afirmação mais gratuita que inaceitável».* E ainda: «Os preços de equilíbrio são iguais aos coeficientes dass raretés», definidos como «as intensidades das da últimas necessidades satisfeitas pelos possuidores dos bens».** O princípio de que os preços em equilíbrio final devem igualar o custo de produção, juntamente com o prin cípio da produtividade marginal, permite uma determi nação simultânea de preços de produtos e preços dos servi ços produtivos (isto é, de bens ou factores de produção). Nesta determinação entram os «coeficientes técnicos» walrasianos que definem os inputs necessários para produzir uma unidade de quantidade dum produto dado, que inicialmente considerou, por uma questão de sim fix os, demonstrando por plicidade, como coeficientes fixos, este meio que a sua solução de equilíbrio geral era possível possíve l mediante mediante esta hipótese. Mas ulteriorme ult eriormente nte (na sua terceira edição de 1896), ampliou a solução ao caso dos coeficientes variáveis, tratando os coeficien tes escolhidos como funções dos preços dos serviços pro dutivos, baseado na hipótese de se escolher o método
de fenómenos económicos que toma indispensável o uso da Mate mática; a lógica comum pode servir perfeitamente para estudar quaisquer relações de causa a efeito» (Manuel (Paris, 1909), pp. 246-7). * Walras, Elements of Pure Economics, pp. 143, 202. ** Ibid., pp. 143, 145. Acrescenta que «o valor na troca, tal como o peso, é um fenómeno relativo; enquanto a rareté, tal como a massa, é um fenómeno absoluto» (p. 145). 256 25 6
do menor custo de produção, em qualquer conjunto dado de preços de serviços produtivos. No entanto, tal como sucedeu com Menger e Wieser, o sistema walrasiano deparou com o problema da defi nição de «dado» no lado da oferta. Admitiu-se como parte dos dados da situação histórica que, em condições de equicos jlíbrio estático, estavam presentes em certas quantida des bens de capital específicos; os serviços produtivos cor respondentes a estes bens de capital eram avaliados da forma usual, conjuntamente com os coeficientes téc nicos e os preços dos produtos. Os bens duradouros de capital valorizavam-se pelo processo de capitalização da avaliação de mercado dos seus serviços produtivos respectivos por unidade-período. Mas daqui não podia resultar nenhuma teoria do lucro: os referidos serviços produtivos eram determinados como quase-rendas marshallianas, e não havia razão para a avaliação de certos bens duradouros implicar qualquer relação estreita com o seu custo de reprodução. Para vencer esta dificuldade, Walras, num contexto menos estático, recorreu a um mercado de poupanças, que as dirigia para um inves timento em novos bens de capital de avaliação rela tivamente alta em comparação com o seu custo. Desta forma, havendo uma modificação das quantidades e (portanto das raretés) de diversos bens de capital, gerava-se uma tendência para uma taxa de remuneração uniforme (por intermédio do valor dos seus serviços produtivos proporcionalmente ao seu próprio valor e custo) .* Devido ao modo como este problema foi discutido na década de 1930, chamou-se a isto uma teoria de «fundo de empréstimo».** Mas visto que a taxa de lucro tinha sido antes de mais considerada de modo a conferir significado ao valor e custo dos bens de capital, este modo de raciocinar pareceu merecer contestação quanto a poder estabelecer, não apenas apenas uma uma tendência para par a a uniformidade de taxas de remuneração, mas ainda um nível único Ibid., pp. 267-306. ** F. A. Lutz, The Theory of Interest (Dordrecht, 1967), p. 81. *
17
257
determinado desta taxa de remuneração do capital, num equilíbrio a longo prazo.* Efectivamente, enquanto base para uma teoria do lucro, este recurso a um mercado de «poupança» torna-se tanto mais curioso e contestável quanto mais o analisarmos. Poderiam apresentar-se mais críticas a este modo de conceber o problema em questão, expostas em termos aná logos. Se a situação for tratada em termos de bens de capi tal concretos (pondo de parte o género de «capital» como factor supostamente escasso), no caso de estes bens serem reprodutíveis, não deve justificar-se a existência de qual quer taxa de lucro positiva em condições rigorosamente estáticas,** Se todos os inputs além do trabalho forem inputs produzidos, como surge a «escassez» específica
Cf.
Capit apitale ale nelle nelle Teo eoririee deli delia Di Distrí stríbuzion buzionee
P. Garegnani, I I (Milão, 1960), pp 112-21. Wieksell considerou a teoria de Walras, neste ponto, «seguramente incorrecta» e baseada «em hipóteses incorrectas», «não podendo portanto ser considerada definitiva» (porque lhe falta o conceito de Jevons-Ephm-Bawerk, de um período de produção e da produtividade marginal que resulta do prolongamen to deste período) ( Value (Londres, 1954), p. 167). Mais adiante salientou que «é fútil pretender — como Walras e os seus adeptos — deduzir o valo v alorr dos dos bens bens de capital c apital dos seus seus próprios custos de produção ou reprodução; porque, de facto, estes custos de produção incluem e juro... Portanto, estaríamos condena dos a andar em circulo» ( trad. E. Classen (Londres, 1934) Vol. I, p. 149). No mesmo contexto, cha mou a atenção para a consideração fundamental (embora sem desenvolver as suas implicações, salvo no que respeita a uma anomalia pouco importante) de que, «embora o trabalho e a terra sejam avaliados nos termos da sua própria unidade o capi tal, pelo contrário... é considerado, em linguagem comum, uma quantia de Por outras palavras, cada bem de capital em particular é avaliado por uma unidade alheia a si próprio» ( p. 149). ** A este este respeit respeito, o, a apreciação de Keynes: «Estou certo de que a procura de capital é estritamente limitada, no sentido de que não seria difícil aumentar o de capital até um ponto em que... a remuneração conjunta de bens duradouros durante o seu período de existência... apenas cubra os seus custos de trabalho de produção um prémio de risco e os custos de especialização e supervisão» (Londres, 1936), p. 375). *
, Capit apital and and Rent
capital
Lectures Le ctures on Politi olitical cal Eco Econ nomy, técnica...
valor de troca.
ibid
cf.
stock
mais
258 25 8
(General eneral Theory Theory
que se supõe ser a origem do lucro? Se se admitir de ma neira coerente hipóteses de equilíbrio completamente está tico, a produção no sector de bens de capital da economia tenderá a ampliar-se, até o output destes bens es tar por si próprio adaptado à necessidade dos mesmos; necessidade esta que consiste na substituição corrente do stock de máquinas, etc., existente (equilíbrio), em indústrias que produzem para o consumidor (numa escala determinada determinada pela pela procura procura final fin al)) e no próprio sector de de bens de capital. Com a completa adaptação da oferta destes bens à procura dos mesmos para fins de subs tituição corrente, já não existirá qualquer razão para os seus preços permanecerem acima do custo original da sua própria substituição corrente (ou depreciação).* De qualquer forma, será esta a situação de equilíbrio estático com coeficientes fixos: isto é, com uma só técnica dispo nível em cada indústria. Mas não deixará de ser assim se se puser de parte a hipótese de coeficientes fixos? Cada indústria estará então perante um conjunto completo de técnicas alter nativas (o «-espectro» da Prof. Joan Robinson); e à medida que que o lucro (ou ju j u ro) ro ) descer descer,, mais equipame equipamento nto de capital intensivo, cada vez mais caro, se tornará economicamente viável. Perante estas (possivelmente infi nitas) possibilidades de «aprofundamento», não reapare cerá a «escassez» de bens de capital, viste que os recursos produtivos existentes vão estabelecer um limite à pos sibilidade de ampliar mais o «aprofundamento» do pro cesso, e, portanto, à medida em que se poderá recorrer aos tipos de equipamento capital-intensivos mais atraen tes, embora caros? Deste modo, aparecerá uma
* N o pensamen pensamento to de Walras, Walra s, esta possibilidade podia ter sido sido excluída, admitindo a hipótese de a poupança descer até zero antes de se ating at ingir ir esta posição — por outras palavras, a hipótese de um preço de oferta de poupança positivo. Mas esta hipótese afigura-se demasiado fraca para nela assentar uma teoria de determi nação do lucro, especialmente nas condições modernas de poupança colectiva em grande escala, sob a forma de reservas das sociedades anónimas. 259
taxa de lucro positiva que reflecte esta escassez num dado momento. Mas aquilo que se nos oferece agora não é já um estado estacionário com investimento lí quido nulo: no decorrer do processo de «aprofundamento», haveria uma situação de progressiva alteração caracteri zada por investimento e crescimento positivos. O seu resultado a longo prazo, no entanto, voltará a ser um equilíbrio estacionário com lucro nulo, mesmo que o pe ríodo seja excepcionalmente longo. Não havendo progresso técnico, o processo de «aprofundamento» acabará por ser completo. Uma saída possível será (que classificaríamos talvez de neo-walrasiana) o recurso a algum ou todos os «três fundamentos» de Bõhm-Bawerk e colocar o desejo de au mentar stocks de bens de capital na dependência da dimi nuição subjectiva de bens futuros relativamente aos bens presentes. Esta redução de tempo subjectivo constituiria a base de uma taxa de remuneração positiva que os diver sos bens de capital deveriam necessariamente obter para serem produzidos inicialmente, ou mantidos em uso em certas quantidades, e, portanto, a base de uma taxa de equilíbrio positiva (e uniforme) do juro. Sem dúvida, quase não seria preciso acrescentar que tal explicação sub jectiva, embora evitasse as dificuldades associadas à noção de capital como factor de produção,* partilharia do defeito inerente a qualquer teoria partindo das pre ferências ou reacções de comportamento dos indiví duos: designadamente, abstraindo de todas as influências sociais sobre os desejos e comportamentos individuais, e ignorando a natureza de distribuição relativa de qual quer conjunto dessas preferências ou acções individuais. Convém lembrar, por outro lado, que em sistemas de * Seria licito perguntar se tal explicação poderia fugir ao tipo de crítica formulada pelo Dr. L. Pasinetti contra a explicação de Fisher (em Economic Journal, Setembro de 1969, pp. 508-29), segundo a qual os próprios valores dos bens de capital se modificariam quando houvesse alterações da taxa de lucro (em particular quando vários bens de capital distintos se com binassem numa linha de produção). 260
equilíbrio deste tipo, pode surgir um conjunto de identi dades com valor pouco ou nada explicativo.* Seja qual for a lógica dos estados estacionários, a maioria dos economistas tem razões para não apreciar tentativas deste género, e recusar a consideração de qual quer conceito mais abstracto que um equilíbrio de longo prazo marshalliano, com investimento líquido positivo e «crescimento lento». Com um «equilíbrio em movimento» deste tipo, a «escassez» walrasiana, aplicada a bens de capital em geral, pode parecer relevante — caso contrá rio a acumulação prolongada de capital não teria sen tido. Mas no que se refere à explicação do lucro em termos de «escassez» walrasiana, passamos a estar agora na outra face do dilema. Uma imputação do tipo de Menger é pelo menos plausível, na medida em que a produção reveste a forma de um processo em linha recta de inputs dados que são transformados em outputs finais. Mas assim que introduzimos crescimento e investimento líquido pro longados, uma parte significativa do processo produtivo deve ter, em vez disso, a forma de um arco de círculo, com outputs que são novamente aplicados como inputs novos,** antes de terem podido apresentar-se como bens de consumo finais. Ê difícil compreen der como e porque, nestas circunstâncias, a dis tribuição de rendimento deveria ser determinada pelo modelo de procura dos consumidores, e não por caracterís ticas do processo de crescimento (e do modelo de pro dução adequado a este). Segundo um modelo teórico de crescimento de von Neumann, agora conhecido, sendo o salário real constante (dado), o crescimento é maxi mizado quando os preços atingem o nível em que a taxa
*
Ver acima, páginas 21-23.
** Parte destes apresentar-se-ão, sem dúvida; como bens de salário por trabalho utilizado adicionalmente — na medida em que o emprego esteja em expansão — mas outra parte (output do sector de bens de capital) corresponderá a matérias-primas, componentes e máquinas novas, etc., para equipar novos processos de produção que estão a começar a ser utilizados. 261
de lucro é igual à taxa de crescimento.* A taxa de lucro é aqui independente tanto do esquema de consumo final,** como do stock de capital existente ; e sendo independente de ambos, é evidente que qualquer tipo de explicação em termos de proporções de factores ou escassez relativa de factores, deixa de ter relevância.*** O sucessor de Walras na Universidade de Lausana, Vilfredo Pareto, desenvolveu a teoria da procura do consumidor em termos de «curvas de indiferença» de Edgeworth, apresentando as curvas de procura como deduzidas destas. Ao mesmo tempo, resumiu o problema do equilíbrio geral numa frase muito citada, em que este resulta do conflito entre os desejos e os obstáculos à sua satisfação (ou seja, obstáculos que surgem em vir tude de certas circunstâncias de produção e da limitação das
Review
* J. vou Neumann, ‘A Model of General Equilibrium’, of Econpmic Studies, Vol. X III, N.° l t 1945-6, pp. 1-9. Se houver um consumo a partir do lucro, a taxa de lucro, segundo as hipóteses do modelo de Neumann^ excederá a taxa de crescimento; esta será equivalentemente menor que o seu máximo potencial (perante o nível de salário real dado) e a parte do lucro no output total será equivalentemente maior. Por outras palavras, as extra vagâncias capitalistas no consumo beneficiam os capitalistas como classe, mas prejudicam a economia (contrariamente à tese Lauderdale-Malthus). Ver adiante pp. ** Note-se que isto diz respeito ao padrão de procura relativa de diversos bens (e do seu grau de satisfação), e não à procura total de output. É evidente que o lucro só pode ser obtido mediante a venda do output, e deve neste sentido ser limitado pela procura total (investimento mais despesa de não assalariados). Isto também não é incompatível com o facto de a proporção do lucro para os salários ser igual à proporção do excedente para o tempo de trabalho necessário (desde que este seja interpretado como trabalho gasto na produção de bens-salário). Mas qualquer destas afirmações é completamente diferente dum tipo de dedução walrasiana de preços de factores relativos, a partir da procura. *** O Prof. Sir John Hicks sugeriu a possibilidade de uma posição (aparentemente pragmática) de compromisso: «Não sustentarei que a teoria da repartição de factores é aquela que se expõe em termos de funções de produção e elasticidades de substituição, mas não abandonarei por completo essa teoria. A luz que lança sobre o problema prático pode não ser muito brilhante, mas 2 62
ofertas de factores).* Reuniu este trabalho em duas obras principais, o Cours ã’Economie Politique de 1896 e o Manuel de 1909. É geralmente considerado como o primeiro que explicitamente separou a teoria da procura das suas raízes no hedonismo e no utilitarismo: definindo Utilidade (ou Ofelimidade, como preferia chamar-lhe) apenas como «Desejabilidade» — a qualidade de ser desejado por um consumidor, independentemente da aptidão para propor cionar satisfação real e contribuir para o bem-estar do con sumidor. Neste sentido, tratou-a como uma grandeza pura mente ordinal, e, além disso, como algo que não era comparável entre indivíduos, e que, portanto, não pode ser adicionado com vista a formar um total para um grupo ou para a sociedade. Além disto e do mérito do maior realismo de admitir coeficientes fixos ao tra tar dos problemas de produção e da determinação dos preços de factores («os coeficientes são parcialmente constantes ou quase constantes e parcialmente variá veis»),** e de algumas incursões em problemas aplicados, pouco mais fez do que traduzir o sistema de Walras para uma forma mais acessível. Mais tarde, transferiu o seu interesse para a Sociologia, sobre a qual escreveu um tratado. O contraste e oposição entre a «interdependência» matemática do sistema walrasiano e aquilo que tem sido classificado como a «genética causal» dos austríacos (ou seja, a maior importância atribuída por estes a relações directas de causa a efeito) foi especialmente posta em também não é muito brilhante a luz lançada pela teoria do Equilíbrio do Crescimento. Uma e outra ser-nos-ão, pelo menos, de alguma utilidade. ( Capital anã Growth (Oxfordt 1965), p. 172). Esta conclusão parece basear-se na ideia de que é possível ter uma pluralidade de verdades parcelares e que admiti-lo tem uma justificação pragmática. Mas dificilmente poderemos avançar sem cairmos em incertezas e contradições (a menos que as duas teorias sejam conciliáveis). * Cf. Manuel ã’Êoonomie Politique (trad. A. Bonnet, Paris, 1909), pp. 150 seg. ** Ibid., p. 636. 263
destaque por Pareto; há nisto uma certa analogia com a atitude de Marshall em relação a Jevons (embora de modo geral Marshall evitasse métodos matemáticos e fosse a favor dum método de estudo de «equi líbrio parcial«). Neste aspecto, Pareto conseguiu ser plus royáliste que le Roi, e foi ao ponto de reprovar certas afirmações do seu predecessor, que, no seu entender, estavam excessivamente impregnadas do modo de ver «causal».* Nesta ênfase exclusiva da dependência mú tua, parece ter sido tão parcial como foram Jevons ou os austríacos em sentido contrário, quando descreveram situações ou processos segundo sequências causais unidireccionais demasiadamente simples. Não há dúvida que, em certa medida, este contraste pode ser explicado pela preo cupação com diferentes níveis de abstracção. Mas talvez o que expusemos no nosso primeiro capítulo seja suficiente para sugerir que a dicotomia é irreal, pelo menos no que se refere à matéria económica, e que, desde que a um sistema como o walrasiano se dá uma interpretação económica — e a fortiori uma aplicação económica — surge necessariamente uma determinação de alguns factores por outros. Na realidade, parece ter sido assim que o próprio mestre viu a questão; e numa interpretação dessas, desa parece seguramente qualquer diferença substancial entre o seu modo de abordar o problema e o dos austríacos ou o de Jevons.
* P o r exemplo, a passagem a que já nos referimos, nos pp. 307-8/ e o comentário de Pareto em p. 246n.
Manuel,
264
Eléments,
8.
RECOMEÇO DO DEBATE i
Segundo o Professor Shaekle, a década de 1920 foi o começo da «Idade da Tormenta», a seguir à «Idade da Tranquilidade... através da grande divisória que foi a guerra de 1914-18».* Para a maioria dos econo mistas da época, as principais inovações teóricas surgidas a partir de então parecem ter sido a chamada «revolução keynesiana» (que eclipsou a «jevoniana») e as Teorias do descimento na década de 1940, que tentavam proporcio nar, através de uma dinâmica económica, algo que com pensasse a anterior concentração no equilíbrio estático. Estes desenvolvimentos foram corrente e sucessivamente considerados como um novo desvio das atenções dos fenó menos «microscópicos» para os fenómenos «macroscópi cos», com os quais os clássicos se tinham principalmente preocupado — para uma preocupação com conjuntos e com relações conjuntas, em vez duma preocupação com pro dutos particulares e os seus preços individuais. Os dois acontecimentos sucederam-se com bastante rapidez, sem contudo terem ligação, visto que interesses mais amplos estavam implícitos na preocupação keynesiana com os níveis de output conjunto e emprego conjunto; e era fácil e óbvia a passagem do estudo das determi * G. L». 'S. Shackle The Years of High Theory (Cambridge, 1967), p. 289. 265
nantes do nível de output numa perspectiva macros cópica, para o estudo das causas da modificação do nível de output. A estas duas correntes, alguns certamente deseja riam acrescentar mais duas, que se lhes afiguram igual mente merecedoras de referência. Em primeiro lugar, a nova teoria da «concorrência imperfeita» e «concorrência monopolista» (associada especialmente aos nomes de Joan Robinson e Edward Chamberlin)* merece ser con siderada como um marco notável no âmbito das décadas de entre as duas guerras, E foi sem dúvida um marco, pelo interesse que despertou entre os economistas aca démicos, na época, e pelo tempo e atenção que lhe foram dedicados.** A sua história foi-nos transmitida de forma muito completa pelo Professor Shackle,*** e de nada serviria repetir aqui o seu admirável relato. No entanto, pode dizer-se desta corrente que, embora im* H en ry Sidg wic kt ao enumerar as suas «restriçõe s e excepções» ao laissezfaire, tinha chamado a atenção para o caso muito comum em condições de concorrência, no qual «cada produtor crê que pode ganhar mais, globalmente, mantendo elevado o preço dos seus serviços em vez de o baixar, para atrair clientela»; associando isto ao comércio de retalho e à «clientela criada ou relações de negó cio» e com o «desperdício social» da publicidade (The Principies of Political Economy 2.“ ed. (Londres, 1887), p. 411). Podemos con siderar a teoria da concorrência imperfeita como um desenvol vimento e generalização deste caso.
,
** Pode dizer-se que se desenvolveu principalmen te a partir de uma discussão na década de 1920, em volta do problema dos lucros crescentes, particularmente em Cambridge e nas páginas do The Economic Journal — uma discussão por veze s refe rida como «caixas económicas vazias». Esta discussão levantou a questão: como será a existên cia de economias de escala sendo internas à empresai compatível com a existência de uma (aparente) concorrência? Cf. R. P. Harrod, «Theory of Imperfect Competition Revisited», Economic Essays (Lon dr es( 1952), p. 174: « A ‘L ei dos Lucros Crescentes’ desempenhou um papel importante nas origens do pensamento sobre a concorrência imperfeita.» *** Shackle, Ye,ars of High Theory, Caps. 3-6. Este autor principia muito acertadamente esse relato e marca como data do início da discussão, a do famoso artigo de Sraffa no The Economic Journal, em 1926, que designa por «O Manifesto Sraffa de 1926» (ibid., p. 12). 266
portante em si, pouco influenciou o corpus geral da teoria económica como esquema analítico e conceptual. Num aspecto, designadamente quanto às implicações políticas da teoria, foi completamente devastadora: vibrou um golpe fatal na doutrina do laissezfmre, na medida em que esta assentava na natureza «opti mizante» dum regime de preços de concorrência — o que levou muitos a oporem-se firmemente à conclusão de que os preços resultantes dum mercado «imperfeito» divergiriam significativamente dos preçog num mercado de concorrência perfeita.* Uma das conclusões mais inquietantes entre as que surgiram (em virtude do tra tamento dado por Chamberlin às despesas de venda, com as quais se relacionavam o nível e a elasticidade da procura) foi talvez a afirmação de que se admitirmos que a publicidade e a técnica de vendas têm influência no mercado, pouco se pode concluir em definitivo acerda da determinação de preços, e menos ainda sobre os «preços normais», visto que a procura se tornou em grande me dida o domínio do «publicitário» e dos chamados «con selheiros ocultos». Começou-se por considerar a concor rência imperfeita como uma teoria de formação de pre ços a nível microscópico de certas indústrias e certos mercados de produtos. Deu-se pouca atenção** ao seu significado à escala macroscópica. Quanto ao seu signi ficado para a teoria da repartição, coube a Kalecki desen volver este ponto como contribuição distintiva; assunto a que voltaremos quando nos ocuparmos deste autor, noutro contexto. Em segundo lugar, travou-se uma grande discussão (a julgar, por exemplo, pelo espaço ocupado em jornais) em torno do desenvolvimento daquilo que veio a ser chamado «economia do bem-estar» (e até «a nova economia do * Cf. Harrod, Economic Essays , pp. 139 e seg. ** Fo i excepção o capítulo de Joan Robinson, « A World of Monopolies», no Livro X do The Economics of Imperfect Competition (Londres, 1933). 267
bem-estar»),* como aplicação especial, senão mesmo um ramo especial, da análise económica. Esta discussão foi estimulada por uma tendência neo-paretiana para negar a possibilidade de comparações interpessoais de estados mentais, e portanto da utilidade do bem-estar, e para eliminar da economia normativa as considerações respeitantes à repartição do rendimento. Este novo ramo de aplicações normativas (ou «optimizantes»), tem para a economia, na sua relação co ma formulação de políticas, pelo menos uma importância potencial, que faz com que mereça alguma atenção. Os economistas que atribuem um valor especial (como Schumpeter) ao aperfeiçoamento de técnicas formais de análise, desejariam certamente acentuar ainda a cres cente voga da economia matemática e da econo metria a partir da segunda guerra mundial. Esta voga foi em parte estimulada pelo trabalho de pioneiro de Leontief, ao analisar as entradas-saídas; mas também pode ser considerado um regresso e ampliação da tradição de pioneiros como Cournot, Jevons, os pouco (ou menos) conhecidos Auspitz e Lieben e Dmitriev, e, sobretudo, de Walras. Talvez esta corrente tivesse surgido mais cedo se não fosse a influência marshalliana (nos paí ses de língua inglesa pelo menos) que diminuía o valor da formulação matemática, considerando-a inadequada, de um modo geral, para os problemas estudados em eco nomia. Até hoje, as opiniões têm divergido muito sobre até que ponto isso é apenas um refinamento formal ou em que medida é uma contribuição substancial para o conhecimento económico — ou, na frase de Wicksteed, um «reagente que precipita as hipóteses mantidas em solução na verbosidade das nossas comuns investigações».* * Finalmente (e cronologicamente mais recente), tem surgido com crescente vigor uma crítica da teoria econó* Cf. G. J. Stigler, «The New Welfare Economics», American Economic Review, Vol. X X X III , N .° 2, Junho de 1943, p. 355. **
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An Essay on the Coordination of the Laws Distribution (Londres, 1894)t p. 4. P. K. Wicksteed,
mica nas suas dimensões pós-jevonianas e esquema concep tual, especialmente como teoria da repartição, à qual dedicaremos atenção exclusiva no próximo e último capítulo. Esta crítica ganhou maior impulso recentemente, em especial a partir de 1960. Àqueles que estão fora do alcance desta crítica, ou não foram por ela con vencidos (e nestes pode incluir-se a grande maioria dos economistas transatlânticos), a atenção que aqui se lhe dedica pode parecer excessiva. Mas esta atenção está pelo menos de acordo com a interpretação que adoptámos para as tendências doutrinárias anteriores (em especial as clássicas); e a coerência deve ser aqui (pelo menos em parte) a sua justificação ou a sua desculpa. A «revolução keynesiana» dificilmente pode ser com parada com a revolução jevoniana, apesar de o seu autor afirmar que «as questões em debate têm uma importância que não pode ser exagerada».* Em primeiro lugar, o seu efeito no esquema conceptual geral da teoria económica foi menos profundo, não obstante o seu significado quanto a implicações políticas na condução de uma economia capitalista moderna. Mais evidente e directamente que no caso anterior, reflectiu problemas e acontecimen tos contemporâneos: designadamente, a deflação, as reduções de salários e o desemprego da década de 1920 e a crise económica mundial e o acentuado desempre go verificados em 1929-32. Aquilo que a modificação dou trinária ilustra especialmente bem é a intensidade com que a teoria existente, transformada em dogma, pode exercer um efeito paralisante no pensamento hu mano e na visão das coisas, cegando perante as ver dades mai sevidentes ditadas pela experiência e anulando até a capacidade para fazer as perguntas apropriadas (ver a conhecida referência no Prefácio da General Theory * J. M. ILeynes, General Theory of Employment, Interest and Money (Londres, 1936), p. VI. O autor não afirma que o seu livro iria revolucionar a teoria económica, mas sim que «revolucionaria em grande medida... a maneira como o mundo pensa sobre os pro blemas económicos» (Carta a Bernard Shaw, cit. em R. F. Harrod, Life of J. M. Keynes (Londres, 1951), p. 462). 269
à «demorada luta do autor para se libertar — uma luta para se libertar dos modos de pensamento e expressão habituais», isto é, fugir às velhas ideias «que se ramificam, para aqueles que tiverem uma formação como a maioria de nós. em todos os recantos das nossas mentes»). As ideias implícitas nesta grande modificação foram reconhecidamente muito simples, embora tivessem tido uma espécie de efeito de choque nas mentes formadas nos hábitos de pensamento tradicionais. Nada fizeram para desafiar ou perturbar a teoria (pós-jevoniana) do valor e repartição existente e pode dizer-se que evoluíram no interior desta como esquema geral. Só desafiaram a doutrina tradicional num ponto fundamental: a hi pótese de uma única posição de equilíbrio estático, com pleno emprego de todos os recursos produtivos dispo níveis como condição necessária.* Embora na prática diversas fricções possam impedir que seja atingido esse equilíbrio num determinado momento, sopunha-se que o sistema tinha uma tendência inerente para ele; como o corolário implícito de que a política devia ser orientada para modificar ou afastar as fricções, mais do que para qualquer outro tipo de inter venção. A justificação para esta hipótese era que em qualquer outra situação, que não aquela, os preços relati vos do sistema (incluindo os preços de factores) tenderiam a modificar-se, e essa modificação, fosse grande ou pe quena, bastaria para desviar o output e o emprego em direcção ao equilíbrio:** daqui o corolário de que a existên cia de indícios de desemprego permanente seria a prova de que os salários eram demasiado altos (um corolário da * Keynes interpretou isto como significando que «a utilidade do salário... equivale à desutilidade marginal» do trabalho, a um dado nível de emprego, e, simultaneamentej que o salário é «igual ao produto marginal do trabalho», excluindo assim a possibilidade de «desemprego involuntário» tal como interpretou esse termo (General Theory, pp. 5 seg.). ** Foi esta hipótese que Oskar Lange examinou criticamente, no seu importante (mas, na época, mal apreciado) estudo, Priee Flexibility anã Employment (Bloomington, Indiana, 1944). 270
teoria de Pigou que Keynes atacou particularmente). Contra este ponto de vista, a nova teoria afirmou a possibilidade de se atingir o equilíbrio em qualquer nível de output e emprego (isto é, emprego de trabalho e de equipamento produtivo); sem qualquer tendência necessá ria dos preços relativos para variar em tal situação, nem, no caso de tal variação se verificar, sem a reacção corres pondente do lado da produção e do emprego. Evidentemente, isto era voltar à controvérsia entre Ricardo e Malthus em torno dos problemas da «superabun dância» e à interpretação tradicional da «Ley de Say» como significando que um estado de sobreprodução geral era impossível, porque, normalmente, «a oferta cria sempre a sua própria procura».* O próprio Keynes re conheceu que estava a repetir os passos desta antiga que rela, e procurou reabilitar Malthus (e também outros heréticos de igual tendência, como J. A. Hobson) como alguém que tinha visto a verdade e a tinha defendido contra Say e Ricardo (o que teve a desvantagem ocasional de o levar a confundir o ponto de vista tradicional, que estava a atacar, com a «escola clássica»). Esta referência à Lei de Say e seus corolários específicos poderia induzir-nos a colocar a nova doutrina no cacifo da «teoria do ciclo económico», como explicação especial para o facto de a de pressão se poder tornar crónica — na frase de Schumpeter, um tipo novo de «teoria do colapso» («embora a ‘teoria do colapso’ de Keynes seja completamente diferente da de Marx, tem em comum com esta uma característica impor tante: em ambas, o colapso é motivado por causas ine rentes ao funcionamento do mecanismo económico, e não pela acção de factores exteriores a este»).** Mas
* Cf.:
«O ponto essencial desta crítica keynesiana (da economia ortodoxa) pode ser resumido a uma simples rejeição absoluta daquilo que veio a ser conhecido como a Lei dos Mercados de Say» (Paul Sweezy em Science and Society (Fali, 1946) reeditado em Seymour Harris (ed.), The New Economias (Nova Iorque e Londres, 1947-8), p. 104).’ ** Seymour Harris (ed.), New Economics, p. 94.
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relegá-la assim para um departamento especializado da matéria, seria não conferir a devida importância à sua generalidade e ao seu significado como crítica da teoria aceite do equilíbrio de mercado a nível macroscópico. O argumento de que «a oferta cria a sua própria pro cura» é justificado pelo facto de que todo o rendimento ou é consumido ou é investido, e, portanto, de uma forma ou doutra, é gasto como procura para a produção quer no mer cado de bens de consumo quer no mercado de bens de capi tal (ou de trabalho). Era este o sentido da afirmação de Ricardo: «Nego que as necessidades dos consumidores di minuam em geral por uma questão de parcimónia—elas são transferidas, com o poder de consumir, para outro conjunto de consumidores.»* Isto correspondia a defender que o in vestimento era sempre igual à poupança: que se esta au mentasse ou diminuísse, provocaria de alguma forma esotérica uma modificação do investimento na mesma di recção e numa quantia equivalente; e isto independente mente do facto de aqueles que faziam poupanças e os que investiam serem as mesmas pessoas (por exemplo, algum antigo capitão da indústria da era Victoriana) ou pessoas completamente diferentes. Para o senso-comum, isto era uma afirmação estranha, senão mesmo monstruosa. O ren dimento nunca era «entesourado»? A economia individual nunca tomava a forma de reserva de dinheiro ou aumento dos depósitos bancários? A observação do dia a dia indicava que isto sucedia muitas vezes, De quem era a varinha mágica que ordenava que cada au mento dos depósitos bancários ou de reservas fosse exactamente compensado por um aumento de investimento nos negócios? A resposta dos economistas a estas per guntas, nem sempre explicitamente formulada, era que as taxas de juro constituíam o mecanismo de equilí brio. Tal como qualquer outro preço no mercado, podia interpretar-se o juro variando como a intersec ção duma escala de oferta de poupanças e duma escala * Notes on Malthus, Vol. II de Works and Correspondence, ed. Sraffa, p. 300. 272
de procura; a segunda dependia do desejo ou von tade dos entrepreneurs de tomarem de empréstimo fundos a fim de financiarem o investimento. Se o desejo de poupar aumentasse perante qualquer taxa de juro dada, isso equi valeria a uma deslocação da escala de oferta para a direita. Se a procura de empréstimos não se alterasse, isso implicaria um ponto de intersecção numa taxa de riam até serem encorajados novos empréstimos, e, portanto, mais investimento. A igualdade da poupança e de investimento, embora não se verificasse em cada mo mento no tempo, existia como tendência para o equi líbrio, que operava continuamente e de forma bas tante rápida, em presença de um mercado de capital e de crédito desenvolvido. Foi exactamente este fulcro da Lei de Say que veio a tornar-se o ponto central do ataque de Keynes contra aquilo a que preferiu chamar a doutrina «clássica». Negou que a taxa de juro pudesse ser considerada como determinada pela oferta e procura de poupanças, ou como um mecanismo por meio do qual as modificações do de sejo de poupar exercessem uma influência causal, em sentido restrito, no nível de investimento. Não pode ria ser assim porque a quantia poupada era função, não só de parcimónia, da repartição do rendimento e da taxa de juro, mas também do nível de rendi mento global; e este não podia ser considerado indepen dente da quantidade de investimento (e, portanto, do nível de produção e emprego). Se as duas equações que definem respectivamente as escalas de oferta e procura não fossem independentes, o modo de ver tradicional da determinação das taxas de juro seria falacioso.* Esta rejeição do papel fundamental da taxa de juro como equilibradora da poupança e do investimento condu * Cf. R. F. Harrod em Seymour Harris (ed.) New Economics, pp. 593-4: «Parece-me que o ponto mais importante na análise de Keynes, é a ideia de que é ilegítimo pressupor o nível de rendi mento na comunidade independente da quantidade de investimento decidida. Não se obtém qualquer resultado válido pondo de parte «esta ideia.» 18
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ziu directamente à teoria keynesiana das determinantes de emprego. Dada a «propensão para o consumo», e portanto a fracção de qualquer rendimento que será gasta por consumidores individuais (da qual depende a dimensão do «multiplicador» de R. F. Kahn), o nível de output e emprego será função do investimento. Consoante o nível em que o investimento (e também o consumo) se encontra, o nível de produção e de emprego pode assumir quase qual quer valor entre zero e produção total. De qualquer modo, já não existe um nível único para o qual o sistema tende necessariamente. Na medida em que o investimento é constituído por investimento privado, man ter-se-á regulado pela «eficiência marginal do capital» (lucratibilidade prevista), modificada, por um lado, por «expectativas» (fortemente influenciadas por uma «dispo sição para os negócios» e sentimentos análogos), e, por outro lado, pelo custo do dinheiro emprestado, designada mente pela taxa de juro em vigor. No que respeita ao in vestimento público por organismos governamentais, estas considerações podem não ser adequadas, e o seu volume deve ser postulado como variável independente. Desta forma, inverteu-se a ênfase causal da teoria: em vez de qualquer modificação da poupança se traduzir num desvio equivalente do investimento, este passou a ser a variável independente e (por intermédio das modifi cações de rendimento) o volume da poupança a variável dependente.* * No Treatise on Money, publicado seis anos antes, já se sugeria algo semelhante. O excesso ou deficiência de investimento, em comparação com a poupança, desempenhava o papel principal na determinação dos lucros das empresas e nas alterações do nível de preços. No entanto, na General Theory, poupança e investimento foram considerados sempre essencialmente iguais (a primeira constituía a diferença entre rendimentos individuais e de empresas e aquilo que era dispendido no consumo; o segundo* a diferença entre a produção total e os bens de consumo vendidos; as modificações dos stocks eram automaticamente incluídas no investimento). Por tanto, as modificações do investimento produziam uma alteração na produção e rendimento, «até» a poupança sofrer alteração equivalente (quanto maior a tendência para a poupança, menor era o multiplicador do investimento, e inversamente). 274
Que sucedia então à taxa de juro: se tinha perdido o seu papel de equilibrar a poupança e o investimento, onde é que se colocava e como era determinada? E aqui surgiu a segunda novidade. O juro era virtualmente transformado numa taxa monetária — algo que sofria a influência, por um lado, da política monetária (que condiciona por sua vez a oferta de dinheiro disponí vel), e, por outro lado, da atitude geral para com a moeda como algo digno de ser retido (enquanto depósito bancário, por exemplo), de preferência a outros activos (por exemplo títulos). Era esta a famosa «pre ferência pela liquidez» -— uma preferência fortemente determinada por expectativas (ou incertezas) quanto a fu- turas alterações das taxas de juro (e portanto das cotações dos títulos: por exemplo, quando se retinham títulos, pode ria haver ganhos ou perdas de capital consequentes, cujo efeito poderia anular o do juro a receber como rendimento dos títulos). Para não deixar a porta aberta aos puros «teó ricos monetários» da depressão e dos ciclos económicos, su blinhava-se que havia uma importante limitação à influên cia que a política monetária per se exercia no sentido de fazer descer a taxa de juro: a famosa «armadilha da liqui dez», quando a escala de preferências pela liquidez se tor nava muito (no limite, infinitamente) elástica. Desta forma, punha-se em destaque o estímulo directo ao investi mento, incluindo o aumento do investimento público, como política específica para remediar a depressão e o desem prego. Pode observar-se que embora isto constituísse uma teo ria da depressão, perfeitamente adaptada dentro do contex to de discussão em que Malthus e todos os adeptos do subconsumo tinham escrito, apresentava a possibilidade duma estagnação crónica ou de longa duração, à medida que o impulso do investimento privado enfraquecesse. Este foi um aspecto da questão (a chamada Tese da Estagnação — firmemente contestada por muitos)* especialmente * Um exemplo notável, mas não o único, na América, foi o Professor T. McCord Wright. 275
por Alvin Hansen desenvolvido nos Estados Unidos, tendo em mente as circunstâncias das décadas de 1920 e 1930; e provocou a referencia de Schumpeter, que citá mos, a urna certa afinidade com a explicação das crises por escritores marxistas. O próprio Keynes, como é obvio, pouca simpatia manifestou pelas implicações sociais ou os meandros destes últimos: apesar de uma certa inclinação para épater les bourgeois e apadrinhar heré ticos, não foi além da posição de um liberal intervencio nista, atento às necessidades do seu tempo; e a sua aversão pelas ideias socialistas aumentou, em lugar de diminuir, ao longo da década de 1930. A implicação polí tica a que conduzia a sua nova teoria era, no seu próprio entender, a necessidade (e viabilidade) de uma política coordenada de «pleno emprego» por parte do Governo, combinando a despesa ou o investimento público e uma política fiscal ou orçamental; as proporções exactas desta mistura deveriam ser decididas tendo em conta a experiência prática, esclarecida pelos novos con ceitos. Outros podem considerar que a sua teoria foi mais longe; é difícil decidir, em bases simplesmente apriorísticas, de que lado está a razão. E que dizer sobre o argumento pré-keynesiano de que a «flexibilidade dos salários» (que significava na prática uma redução de salários) bastaria sempre para diminuir o de semprego, aumentando as margens de lucro e estimulando maior produção e mais investimento? A resposta de Key nes foi também uma rejeição desdenhosa e iconoclástica. Como é que se podia conceber que o nível de preços não desceria, se descessem os salários? Com toda a proba bilidade, ambos desceriam pari passu, e então o pretenso efeito estimulante seria nulo. Podia dizer-se que esta probabilidade se baseava no conceito de concor rência num mercado de compradores, que, a curto prazo, alinhava preços e custos (marginais) iniciais,* ou na * Ou então, no caso de concorrência imp erfeita ou monopólio, nivelando receita marginal e custo marginal, continuando o preço a estar na mesma relação proporcional com o segundo, tal como antes. 276
hipótese de que a procura de não assalariados seria sufi cientemente inelástica,* a curto prazo, de tal modo que qualquer reacção que esta procura pudesse produzir numa descida de preços inicial envolveria um lapso de tempo durante o qual (a não ser que a propensão para consumir tivesse aumentado de modo geral) os rendimentos não provenientes de salários** depressa baixariam, tanto quanto o nível de preços. A possibilidade de alguma influência positiva sobre o investimento, através da pe quena porta traseira da procura de transacções com a finalidade de reter dinheiro, e, a partir dáí, sobre as taxas de juro (mas se assim fosse, porque não chegar ao mesmo resultado simplesmente pela expansão da oferta de moeda?) seria a única concessão que estava disposto a fazer aos seus críticos. Ao chegarmos a Michael Kalecki, cuja crítica da doutrina anteriormente aceite seguiu linhas muito aná logas, encontramos categorias de pensamento que lem bram muito mais a discussão marxista do chamado «pro blema da concepção». A sua obra, de facto, poderia ser considerada como uma formalização desse «pro blema da concepção»; e, excepto quanto à sua apresenta ção rigidamente formal e matemática, os marxistas pode riam sentir-se num mundo familiar. Uma fonte da sua inspiração é nitidamente Rosa Luxemburgo;*** e como o primeiro enunciado da sua teoria antecedeu em três anos (sendo no entanto completamente independente) a Gene- ral Tlneory, os economistas poderiam ter feito referência (e alguns fizeram-na) a uma «revolução kaleckiana». Mas os seus primeiros trabalhos foram publicados prin* Kalecki, de quem falaremos imediatamente a seguir, propôs explicitamente que «o consumo pessoal dos capitalistas é relativa mente inelástico» (Studies in the Theory of Business Cycles 193339 (Varsóvia e Oxford, 1966)> p. 3). ** De qualquer modo, os dos beneficiárias dos lucros. =s** Eie reconheceu-o no seu Prefácio de ibid., p. X, onde fala de «urna certa afinidade» com as teorias de Rosa Luxemburgo. 277
cipalmente em língua polaca* e não tiveram qualquer influência imediata no debate travado nos países anglo-saxónícos, assim como nos países europeus.** Kalecki partiu de uma posição notavelmente simples, e apesar disso chegou a conclusões aparentemente paradoxais. Utilizou um modelo simplificado de duas classes, assalariados e capitalistas (os primeiros gas tando todo o seu salário e os segundos fazendo todo o investimento), no qual os lucros (brutos) que os capitalistas como classe podem realizar num sis tema fechado, dependem da quantia que esta própria classe gasta em consumo e investimento bruto. (P = C + A, em que C representa bens consumidos por capitalistas e A representa acumulação bruta de capital — apenas isto e nada mais!)*** Aplicando isto ao mecanismo dos ciclos económicos, admitiu que a acumulação ou o investimento variava com a taxa de lucro do capital esperada: uma taxa (e portanto motivação para investimento ulterior) que variaria positivamente com o próprio investimento, mas negativamente com o stock de capital existente, cuja própria razão de troca dependia (sujeita a um atraso temporal de curta duração) da actividade do investimento no passado recente (ou, numa crise súbita, do desinves timento). Num período de aumento de actividade, decor rido um certo tempo, a segunda influência — aumento da quantidade de equipamento — provoca uma queda «na taxa de aumento da actividade de investimento, e, numa fase ulterior, dá origem a um declínio nas encomen das de investimento.» A partir daqui, a súbita prosperidade está destinada a ter uma vida curta. Quando o investi* Excepto um artigo na Revue ã’Éoonoinie Politique, Março-Abril de 1935. ** Essa influência só se manifestou em 1939, depois de terem sido publicados, em língua inglesa, os seus Es&wys in the Theory of Ecotiomic Fluctuations. ** * Depois divide C numa parte constante Bo e numa parte pro porcional ao lucro bruto, que designa por i P t de modo a que P = Bo + 1 ? + A.
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mento decrescente atinge o ponto em que já não cobre a substituição normal, o stock de capital começa também a declinar, o mecanismo passa a funcionar em sentido con trário e forma-se uma depressão acumulativa até à descida da taxa de lucro parar. Conforme escreveu adiante: «A tragédia do investimento é que provoca crises por ser útil. Sem dúvida que muitas pessoas considerarão isto paradoxal. Mas o que é paradoxal não é a teoria, é a economia capitalista.»* Na brochura que publicou em 1933, em, língua polaca, explicou este mecanismo do seguinte modo: «Um au mento de encomendas de investimento dá origem a um aumento da produção de bens de investimento que é igual à acumulação bruta. Isto, por sua vez, causa novo aumento da actividade de investimento... No entanto, após algum tempo... decorrido a partir do momento em que as encomendas de investimento excederam o nível das necessidades de substituição, o volume de equipa mento começa a aumentar. De início, isto reduz a taxa de aumento da actividade de investimento, e, numa fase ulterior, provoca uma descida nas encomendas de in vestimento.»** Mais adiante, no mesmo ensaio, procura es clarecer possíveis dúvidas quanto ao seu modo ge ral de abordar o problema: «A conclusão de que o aumento do consumo dos capitalistas provoca por sua vez um aumento dos seus lucros, contradiz a convicção geral de que quanto mais se consome menos se poupa. Este ponto de vista, correcto em relação a um capitalista isolado, não se aplica à classe capitalista em geral. Se alguns capitalistas gastam dinheiro, quer em investimento quer e mbens de consumo, esse dinheiro passa para outros capi talistas sob a forma de lucros. O investimento ou o con sumo de alguns capitalistas proporciona lucros a outros. * Essays in the Theory of Economic Fluctuations (Londres, 1939), p. 149. ** Studies in the Theory of Business Cycles 193S1939 (Varsóvia e Oxford, 1966), pp. 10-11. 279
Os capitalistas, como classe, ganham exactamente tanto quanto investem ou consomem, e se — num sistema fechado — deixassem de consumir e construir, não pode riam fazer dinheiro. Deste modo, os capitalistas em conjunto determinam os seus próprios lucros pela amplitude dos seus investimentos e consumos pessoais. De certa forma, são «donos dos seus destinos»; mas o modo como os «dominam» é determinado por factores objectivos, de forma que as flutuações do lucro se afigu ram ao fim e ao cabo inevitáveis.»* Mais adiante expôs em termos análogos uma teoria monopolista da repartição, muito engenhosa (em bora também simplificada),** segundo a qual a pro- porção dos lucros para os salários dependia do «grau de monopólio» existente no sistema em geral (o que deter minava a possível adição de lucro bruto aos custos primá rios que os capitalistas podiam impor), e o output, em prego e lucro totais dependiam dos factores de procura acima mencionados. Algo que muito contribuiu para confe rir simplicidade a esta análise, foi o facto de o autor ter trabalhado com uma curva de custo a curto prazo em forma de L invertido. O autor considerou-a a mais realista para qualquer situação de equipamento técnico dada, em qualquer empresa ou indústria. (O próprio tratamento da utilização do equipamento abaixo da capacidade como uma situação normal, também pode ser considerado como uma conjectura adequada a uma situação de monopólio.) Daqui resultava que até ao ponto de funcionamento a plena capa cidade, se agia sujeito a um custo constante (inic ial); o output era determinado pela intersecção da curva (com inclinação negativa) da receita marginal (relevante para qualquer monopolista parcial) com esta curva de Ibid.f p. 14. ** Ac erca do monopólio, escreve: «O monopólio parece estar profundamente enraizado na natureza do sistema capitalista: a livre concorrência, como hipótese, pode ser útil na primeira fase de certas investigações, mas como explicação do estado normal da economia capitalista é simplesmente um mito» (Essays m the Theory of Economic Fluctuations (Londres, 1939), p.41). *
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custo horizontal, e o preço pelo preço de procura corres pondente àquele nível de output. Desenvolvendo estas teses, Kalecki expôs (e muito cedo, em 1939) considera ções análogas às de Keynes sobre o efeito das reduções de salário sobre o emprego. Uma vez que os preços erain determinados da forma que acabámos de descrever, como adição aos custos iniciais segundo o grau de mono pólio predominante, os preços desceriam sempre na mesma proporção que os salários.* O output e o emprego não só não teriam tendência para aumentar, como também poderiam diminuir se o grau de monopólio aumentasse (e sugeria que essa era a tendência que se manifestava numa crise súbita). Sustentou que a cons tância dos salários reais e da parte dos salários na produ ção total, durante o ciclo económico (assim como ein períodos mais longos), constituía a base empírica segura da sua teoria. Evidentemente, o monopólio, e a política de preçcs monopolista, é um factor a ter em conta em quaquer explicação da repartição que se ajuste ao mundo capitalista moderno. Alguns encontraram motivo para crítica no facto de Kalecki utilizar a noção de que o poder monopolista está representado pelo ramo descendente da curva de procura posta perante o vendedor (e, portant<>, * Esta conclusão estava em contradição com a ideia clássica (por exemplo* de Ricardo — e retomada por Marx na sua conhecida defesa da acção sindical para aumentar os salários em Value, PrU# and Profit) de que se os salários subissem, os lucros desceria^ mantendo-se inalterado o nível médio dos preços. Isso acontecli, evidentemente, porque pressupunham a existência de um padrêo de bem-moeda, isto é, um padrão de ouro (ver adiante, Capítulo 5, página 101-103). Em linguagem keynesiana, era possível aos traba lhadores, através de negociação dos salários monetários, determinar, ou influenciar, os seus salários reais. Assim que se põe de par% um sistema de bem-moeda, todavia, o nível de preços já nÊ0 é ditado (e mantido) pelo valor do ouro em relação a outros benj; pode variar de acordo com vários factores, incluindo a políti
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da curva de receita marginal sua derivada). Reconhece-se que isto é uma simplificação excessiva, que omite (ou de algum modo subordina) certos aspectos como o chamado «monopsónio» e o simples poder de contratação em mer cados de factores, em especial o mercado de trabalho. Por outro lado, será possível tratar o monopolio e a fixa ção de preços em monopolio, noutros termos que não os das condições de mercado, e, portanto, do estado da pro cura? Não se estará aqui inevitavelmente dentro da cate goría de «preços de mercado»; Se assim for, dificilmente se pode tomar como base para urna crítica o facto de a questão dever ser tratada nesses termos. Até que ponto poderá constituir urna base suficiente para uma teoria geral da repartição e emprego, distinta de qualquer teoria aã hoc (por exemplo, do problema da concepção e das flutuações do investimento), é outra questão. Mas nesse caso pode acontecer que, como alguns sustentaram,* não seja possível nenhuma teoria do monopólio geral, espe cialmente para situações que se aproximam do «oli gopólio». A formulação keynesiana das determinantes do em prego tem por vezes provocado críticas, porque está expressa em termos de «tendências» psicológicas; isto será menos marcado, talvez, no caso de influências que afectam o investimento empresarial, do que no caso do consumo pessoal (em que é apenas uma forma de esta belecer uma relação entre consumo e rendimento, ou o seu recíproco, a «lacuna das poupanças»).** Certa mente que isto não proporciona uma teoria da repar* Cf. Paul M. Sweezy, The Theory of Capitalist Development (Nova Iorque, 1942), pp. 270-1: «Não se descobriram quaisquer leis gerais razoáveis do preço de monopólio, porque não existe nenhuma... A teoria do preço monopolista depressa se transforma numa lista de casos especiais, cada qual com a sua solução particular.» ** Cf.: «Todos os resultados keynesianos importantes derivam de escalas de comportamento económico e não de relações definidas entre observáveis» (Lawrence R. Klein, The Keynesian Revolution, 2.“ ed. (Nova Iorque, 1966), p. 131).
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tição: na realidade, não se pretende que assim seja — a menos que se pressuponha que a proporção lucro-salário depende da forma de uma escala de oferta a curto prazo (ou curva de custos) de output (e portanto, da relação entre custo médio e custo marginal); e nesse caso seria puramente uma teoria de curto prazo, e não uma teoria de longo prazo. Poder-se-ia dizer, no entanto, que isto carecia de relevância para o ponto imediatamente em discussão. A noção de eficiência marginal do investimento como determinante deste, relacionada como estava com uma taxa corrente de investimento e com expectativas futuras, poderia de facto sugerir que a teoria tradicional do lucro, como teoria de equilíbrio estacionário, não deveria ser posta em questão e remodelada. E, no entanto, este aspecto da General Theory continua, segundo todas as probabilidades, a ser o seu ponto mais vulnerável. li Discutiu-se bastante, nos anos que se seguiram à publicação da Teoria Geral, sobre se a teoria apre sentada nesta obra era verdadeiramente dinâmica ou continuava a mover-se dentro dos limites de hipóteses estáticas. Alguns afirmaram que o lugar atribuído ao fac tor expectativa, na determinação do equilíbrio, a fazia ul trapassar os limites destas últimas hipóteses.* Harrod, no entanto, entendeu que isto «não é suficiente para tornar uma teoria dinâmica», visto que esta se ocupa funda mentalmente de taxas de crescimento do output e do rendimento como variáveis desconhecidas.** Seja como * O Prof. J. R. Hicks definiu dinâmica como um estudo «em que cada quantidade deve ser datada» (Value anã Capital (Oxford, 1939), p. 115). Se os outputs e/ou os preços, em datas futuras, devessem sempre ser postulados a fim de determinar o equilíbrio, parece que esta condição estaria preenchida. ** Ro y Harrod em Econométrica, Janeiro de 1937, reeditada em Seymour Harris (ed.), New Econíomicsí pp. 604-5; cf. também pp. 41-2, 162, 238-9. Cf. ainda Paul Samuelson: um «sistema dinâmico» é «qualquer conjunto de equações funcionais quet junta 283
for, as discussões suscitadas pela General Theory sobre os níveis de output variáveis, depressa chamaram a atenção para as taxas de crescimento e a sua deter minação, estabilidade ou instabilidade. O que sem dúvida encerrou a discussão, reforçando a mudança de orien tação, foi a crescente importância atribuída às taxas de crescimento comparadas de diferentes países no período do pós-guerra, e às causas das mesmas. Já em 1939, Harrod, naquilo que se veio a afirmar como um artigo que vinha abrir uma nova via de investi gação,* apresentara a sua Equação Fundamental daquilo a que chamaria o «crescimento garantido» — uma equa ção de «extrema simplicidade» (como ele próprio a definiria) e que era «truística» no sentido de ser «necessariamente verdadeira», por definição dos seus termos. Mas o seu contributo mais importante consistiu em várias perguntas significativas, sobre a questão da sua estabilidade ou instabilidade inclusivamente, e da sua relação com aquilo a que, por contraste, chamou a «taxa de crescimento natural». Inspirada pela discussão das teorias do ciclo eco nómico, a equação de Harrod valeu-se conjuntamente daquilo que em breve seria chamado o «princípio da aceleração» e da relação keynesiana designada «multi plicador». O próprio autor reconheceu ter-se inspirado na noção já apresentada no Treatise on Money de Keynes, de 1930, segundo a qual a relação entre a quanti dade de rendimento poupada e a quantidade aplicada (por entrepreneurs) em investimentos como adições ao capital real (ambos tratados ex ante, segundo a terminologia da Escola de Estocolmo), era a causa primeira de tendencias para a expansão ou contracção na economia (por intermente com condições iniciais (no sentido mais geral), determinam como soluções certas incógnitas, em função do tempo» ( Collecteã Economic Pcupers of Paul A. Samuelson, ed. J. E. Stiglitz (Cambridge, Mass.) vol. I, p. 565). * Em The Economic Journal, Março de 1939, pp. 14-33. Isto foi rea firmado após a guerra* nalgumas lições reeditadas como Towarãs a Dynamic Economics (Londres, 1948), Lição Três, pp. 63 seg. 284
médio do seu efeito sobre os pregos e lucros). A «taxa de crescimento garantido» foi definida como «a taxa de crescimento que, a produzir-se, deixará todas as partes convencidas de que não produziram nem mais nem menos do que a quantidade correcta», ou, por outras palavras, «as deixará num estado de espírito que as levará a fazer encomendas que manterão a mesma taxa de crescimento».* A sua equação era Gw — s/C, sendo s a proporção de rendimento poupado, enquanto C representava o coefi ciente capital-OMÍptíí, ou «o valor de bens de capital necessário para a produção de um aumento unitário do output». Assim, a taxa «era conjuntamente determi nada pela tendência para poupar e pela quantidade de capital exigida por considerações tecnológicas e outras por cada aumento unitário de output».** A razão por que esta noção teve um efeito tão sur preendente ( provocando uma espécie de «revolução men tal», como o seu autor chegou a afirmar), foi devido à tese de que uma via de crescimento definida por esta equação era muitíssimo instável, no sentido de que qualquer afasta mento em relação à equação, em vez de ser «auto-corrector», desenvolveria uma tendência cumulativa) pelo me nos dentro de certos limites), para um maior afastamento na mesma direcção. «Assim, no campo dinâmico, temos uma condição contrária à que é válida no campo estático. Um desvio do equilíbrio, em vez de ser auto-corrector, será auto-agravante. G w representa um equilíbrio em
The Economic Journal, Março de 1939, p. 16. ** Ibid., p. 23. Se introduzirmos o investimento e o rendimento ex plicitamente (designando investimento por I, poupança total por S e rendimento por y ), a equação acima pode ser considerada equivalente a: *
X
I
S
¿±X
X
o que equivale à igualdade keynesiana de investimento e pou pança ex post. 285
movimento, mas muitíssimo instável.»* Os fundamentos disto são facilmente compreensíveis se concebermos C intei ramente em termos de capital produtivo; o que quer dizer que a situação pode ser expressa em termos de variações de s t o c k s de matérias-primas e produtos em via de fabrico, e da reacção dessas variações na produção. Qualquer desvio da taxa de crescimento real acima Gw , provocará uma redução de s t o c k s abaixo do normal: isto estimulará novas encomendas, com o objec o que, consequentemente, tivo de restabelecer os s t o c k s f estimulará novo crescimento de o u t p u t . Inversamente, um desvio para baixo de Gw provocará um aumento involuntário dos s t o c k s acima do normal, o que tenderá a diminuir a produção no período subsequente, devido a uma diminuição da procura de bens para st o c k . Desta forma, o auto-reforço da «sobreprodução é uma conse quência da produção abaixo do nível garantido.»** A «taxa natural de crescimento» (ou Gw) foi defi nida, inversamente, como a «taxa máxima de crescimento permitida pelo aumento da população, a acumulação de capital e o progresso tecnológico».*** O significado funda mental da relação entre G w e Gn era o seguinte: se o primeiro excedesse o segundo (por exemplo, devido a uma elevada taxa de poupança), haveria uma tendência persistente para a depressão com desemprego crónico. Deste modo se forjava uma corda para o arco dos adeptos do subconsumo, e se admitia como possível (e com preensível) a ideia da estagnação do estado da economia. Pelo contrário, se a taxa garantida se mantivesse abaixo da taxa natural, haveria probabilidades de se verificarem desvios para cima, capazes de provocar séries de situações inflacionárias e de surto económico. De qualquer modo,
*
I b i d . , p. 2 2 .
** I b i d . , p. 24. *** Ibid., p. 30. 286
«não há qualquer tendência inerente para estas taxas coincidirem».* Mais ou menos na mesma época em que Harrod profe riu as suas lições do pós-guerra (embora na sequência do seu artigo anterior à guerra), o Professor Domar, na Ame- rican Economic Review de Maio de 1947, exprimia es sencialmente a mesma relação, sob uma forma que superficialmente poderia parecer diferente. A essência e implicações dos dois pontos de vista eram de facto muito semelhantes; e, consequentemente, muita,gente passou a referir-se à fórmula de Harrod-Domar como se se tratasse do produto dum trabalho conjunto. O que Domar pro curou sobretudo acentuar, foi aquilo que designou como o «carácter dual do investimento»: gerava aumento de rendimento (por intermédio do efeito multiplicador), ao mesmo tempo que, por outro lado, provocava um aumento de capacidade produtiva. O primeiro representava o lado da procura, o segundo o lado da oferta (ou da oferta potencial). Dada a tendência para poupar, apenas uma taxa de crescimento se manteria automaticamente, no sen tido de que a nova capacidade criada era contrabalançada por um crescimento equivalente da procura. Eis a sua fórmula: 1
A I . ----- = Icr, OC
ou então AI
-------- =
oc c r ,
I * Ibid., p. 30. Foi dentro desta concepção que o Prof. J. R. Hicks elaborou a sua teoria do ciclo económico, baseando-se nas tendências «explosivas» do sistema para a expansão e contracção (conforme o valor dum coeficiente fundamental, que designa por «o coeficiente de Investimento ■— a proporção entre o investimento induzido e a variação de output que o provocou»), contidas entre um «chão» e um «tecto». A expansão que atingia o tecto era retardada; este retardamento iniciava um processo de depressão. O «chão» (ascendente) era constituído pelo chamado «investimento autó nomo» que tendia a aumentar ao longo do tempo (The Trade Cycle (Oxford, 1950) ). 287
em que oc representa a tendência para poupar (e portanto representa a pro 1/ oc é o multiplicador» keynesiano) dutividade do investimento, o inverso do coeficiente capitaloutput de Harrod; e I designa o investimento. E acres centa: «A fórmula mostra que não é suficiente que, em termos keynesianos, as poupanças de ontem sejam investi das hoje, ou, como frequentemente se diz, que o investi mento compense a poupança. O investimento de hoje deve necessariamente exceder sempre a poupança de ontem. Uma simples ausência de entesouramento não será sufi ciente... A economia tem de expandir-se continuamente». E ainda: «Numa sociedade capitalista privada em que oc não possa variar facilmente, só será possível alcançar um nível mais elevado de rendimento e emprego, num determinado momento, mediante maior investimento. Mas este, como instrumento criador de emprego, vê os seus benefícios limitados em virtude do seu efeito cr. A economia encon tra-se perante um dilema difícil: se hoje não se fizer um investimento suficiente, hoje haverá desemprego. Mas se hoje se fizer um investimento suficiente, será necessário um investimento ainda maior amanhã... No que se refere ao desemprego, o investimento é ao mesmo tempo a cura do mal e a causa de males futuros ainda maiores.»* A implicação ideológica de uma teoria que definia uma via de crescimento equilibrado unicamente para sublinhar que este era caracterizado por uma «instabilidade de fio de navalha», é perfeitamente clara; e por esta razão, não é de surpreender que muitos economistas, especial mente americanos, tivessem feito grandes esforços para (pelo menos) atenuar as suas nocivas implicações. Isto foi possível principalmente através da demonstração (como fizeram Robert Solow nos Estados Unidos e Trevor Swan na Austrália)** de que a referida instabilidade depende * Evs ey D. Domar, Essays in the Theory of Growth (Nova Iorque, 1957), pp. 92, 101. ** Of. R. Solow, « A Contribution to the Theory of Economic Growth», Quarterly Journal of Economics, Fev. 1956; T. W. Swan, «Economic Growth and Capital Accumulation», The Economic 288
da hipótese de um C constante (coeficiente capital-owí put ) . O modelo poderia ter mais estabilidade, afirmou-se, se se admitisse uma hipótese mais tradicional quanto à flexibilidade de métodos técnicos (e portanto no valor de C) perante variações de preços de factores, especial mente da proporção entre lucro e salário. Isto equivalia a introduzir novamente a noção de «função de produção», que desempenhara um papel fundamental na teoria da produtividade marginal, e à qual voltaremos a referir-nos no capítulo seguinte. Assim remodelada, a, «taxa garan tida» de Harrod tenderia, a longo prazo (pelo menos), a convergir para a sua «taxa natural», ou taxa máxima; e o sistema tenderia, a partir daí, a crescer á taxa máxima possível, compatível com o crescimento da população e o progresso técnico. Um coeficiente de poupança grande ou pequeno (o s de Harrod), não influiria sobre a taxa de crescimento, por muito paradoxal que isto possa pare cer à primeira vista: apenas afectaria o nível de out- put e de consumo em qualquer altura, tornando-o respectivamente alto ou baixo. O mecanismo pelo qual se obtinha este resultado, era o seguinte. Consideremos o caso em que a taxa garantida de Harrod, Gw, está acima da sua taxa natural, Gn .. Sendo assim, o alto nível da primeira, criando escassez de trabalho, fará subir os salários, e salários mais altos provocarão uma transição para técnicas de capital mais intensivas (e, por conseguinte, um nível de output mais elevado por cada homem empregado). Esta modificação da técnica fará, portanto, descer Gw ao aumentar o C da fórmula de Har rod. Ê também possível que o eixo da repartição do ren dimento, ao deslocar-se do lucro para os salários, faça des cer o coeficiente de poupança médio, s * e que isto seja Recorda Nov. 1956. O Prof. Solow escreveu: «Se se abandonar a hipótese... de proporções fixas, a noção de fio da navalha do equilíbrio instável parece desaparecer simultaneamente. Na ver dade, não admira que essa forte rigidez numa parte do sistemo acarrete falta de flexibilidade noutra» ( loc. cit., pp. 65-6). * Este efeito foi principalmente sublinhado na teoria do Pro fessor Kaldor, e foi tomado em consideração, conforme veremos, 19
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mais um contributo para fazer descer Gw. Produzir-se-á uma série de alterações contrárias no caso oposto, estando Gw abaixo de Gn: o emprego crescente provocará a des cida dos salários reais, o que incitará a uma passagem para técnicas de capital menos intensivas, e fará diminuir o C da fórmula de Harrod. Este ataque à tese da instabilidade, no entanto, acaba por ser menos convincente do que pôde parecer à primeira vista. De facto, presta-se a uma objec ção bastante simples. A série de adaptações em ques tão (alteração dos preços de factores e a reacção des tes sobre as técnicas aplicadas) representa um efeito a longo prazo (ou série de efeitos). Para que tais adap tações se processem, será necessário que o crescimento real se mantenha à taxa garantida, durante um período de tempo apreciável. Mas se a via de crescimento real da economia é muitíssimo instável, tal como a expo sição de Harrod a descreve, não é provável que se man tenha em Gw durante muito tempo, e ao divergir deste por qualquer razão, acabará por se afastar ainda mais. Na si tuação em que Gw > Gn » não poderá igualar Gn durante mais que um período de tempo muito curto, e terá, por conseguinte, uma tendência pronunciada para se desviar, numa direcção descendente, para a estagnação com desem prego. Uma vez que isto tenha acontecido, este movimento descendente terá precisamente o efeito contrário daquilo que o mecanismo estabilizador exige.* na da Professora Joan Robinson (embora esta acentuasse antes o efeito das alterações da repartição do rendimento direc tamente sobre o investimento). * Cf. M. Dobb, «Modern Western Theories of Economic Growth», Acta Oeconomica (Akademiai Kiadó, Budapeste) 1966, Tomo I, Fase. 3-4, p. 382; também A. K. Sen, «Interest, Xnvestment and G row th»/ Growth Economics, ed. Amartya Sen (Londres, 1970), pp. 227-31: «Para que a teoria do crescimento tenha alguma rele vância para a política, não poderá passar sem uma função de inves timento, e, se se atentar bem no problema, será fácil reconhecer que qualquer coisa que reduza o equilíbrio de «fio de navalha» entre Gn e Gw tenderá a sublinhar o equilíbrio de «fio de navalha» entre G e G w . Em geral, oculta-se a dificuldade trabalhando 290
Em ligação com o modelo de Harrod e as suas impli cações, não devemos deixar de mencionar outra crítica que lhe foi dirigida, de um ângulo muito diferente (na realidade, oposto): uma crítica em que pouco se repa rou, feita por Kalecki em The Economic Journal, de Março de 1962. Contrariamente à crítica de Solow-Swan, que acu sava Harrod de ter exagerado a instabilidade do cresci mento, a de Kalecki procurou mostrar que o modelo de Harrod era insuficientemente dinâmico: que a taxa tendencial de crescimento que parecia tet, era meramente efémera e tendia sempre a recair numa posição estática de crescimento nulo, a não ser que postulasse um fluxo permanente de inovações que conferissem flutuabilidade ao sistema. Num certo sentido, isto pode ser considerado uma ampliação pessimista da «instabilidade» de Harrod, sob a forma da afirmação de que a instabilidade numa direcção decrescente é mais provável que o contrário, e que, uma vez iniciado o declínio do crescimento, não há ponto de paragem antes de zero. Isto resulta da visão de Kalecki, já exposta nas suas obras anteriores, incluindo os seus Studies in Economic Dynamics de 1943,* sem uma função de investimento independente nos modelos de crescimento. Isto é uma esquiva...» Aparece por vezes o conceito de «normalidade», para diminuir a instabilidade a de Gw (isto é, a expectativa de que Gw se mantenha porque acabou por ser considerado «normal»), Mas o Professor Sen mostra que isto não pode ser admitido como hipótese, quando Gw (o que sucede necessariamente se estiver a deslocar-se em direcção a Gn ). «O absurdo da hipótese de G ser constantemente igual a G w », pode verificar-se quando se compreende que está necessariamente implicado «um aumento da taxa de juro que o crescimento e uma diminuição que o desincentiva» ( p. 229). * Cf.: «Embora o crescimento da população ou o aumento da produtividade sejam condição necessária para a expansão do a longo prazo, quando não há grandes reservas de trabalho disponíveis estes factores não parecem desempenhar um papel importante na do movimento tendencial. Segue-se que uma população crescente e uma maior produtividade do trabalho podem vir a causar desemprego a longo prazo, se não forem apli cadas forças que o absorvam» ( (Londres, 1943), pp. 88-9),
curto prazo
varia
estimula ibid
output
indução
Studies m Economic Dynamics 291
acerca da dependência de decisões de investimento em rela ção ao lucro actual, que por sua vez dependia do investi mento empreendido (mais o consumo capitalista) no pas sado imediato. Visto que o investimento teve como resul tado (decorrido um certo lapso de tempo) expandir a capacidade produtiva, só haveria procura suficiente para compensar esta capacidade (e permitir que com ela se rea lizasse lucro) se o investimento se expandisse continuamen te (mantendo assim o equilíbrio entre a procura e a cres cente capacidade produtiva). Sem a intervenção de qual quer factor especial de «impulso» haverá, por conseguinte, uma tendência crónica para o investimento enfraquecer por falta de incentivo, e, uma vez enfraquecido, para de clinar cumulativamente em direcção a zero. A partir daí, o seu mecanismo cíclico, a que já nos referimos, actuará em torno de uma linha tendencial de cresci mento zero. Kalecki escreveu: « A ‘taxa de crescimento de Harrod’ é efémera, no sentido de que qualquer desvio em relação a ela torna o sistema estacionário — isto é, sujeito a flu tuações cíclicas, mas sem qualquer rumo próprio... O sis tema não pode sair do impasse constituído por flutuações em torno de uma posição estática, a não ser que se processe um crescimento económico gerado pelo impacto de factores semi-exógenos, por exemplo, o efeito de inovações no investimento... Os factores semi-exógenos, tais como as inovações, permitem ao sistema capitalista sair do impasse do estado estacionário e expandir-se a uma taxa que depende da importância destes factores.»* Inspirada por Harrod, mas tendo exercido uma influência própria comparável em discussões subsequentes,
* «Observations on the Theory of Growth», The Economic Journal, Março de 1962, pp. 134, 150. Kalecki acrescentou o seguinte comentá rio: «Fizeram-se algumas tentativas para conferir estabilidade ao movimento tendencial de Harrod, introduzindo-se hipóteses espeficiais adicionais. Estas hipóteses afiguram-se-me muitíssimo arti ficiais e não realistas. Na verdade, obscurecem o problema tão perspicazmente apresentado por Harrod em vez de o resolverem » (p. 134). 292
foi a obra da Professora Joan Robinson, The Accumulation of Capital, de meados da década de 1950. A sua in tenção foi também apresentar as condições para um crescimento uniforme a uma taxa constante (aquilo a que ela chamou condições de «idade do ouro»); mas, tal como Harrod, sublinhou a instabilidade a que teria de fazer face um crescimento uniforme, e especificou com maior particularidade os diversos escolhos e obs táculos que levam o sistema que funciona segundo aquilo a que ela chama «as regras do jogo capitalista», a enfraquecer o caminho da depressão, do desemprego e da estagnação crónica, ou, pelo contrário, a explodir numa inflação cumulativa. Apesar desta ênfase, no entanto, a sua análise inclui um ou dois mecanismos esta bilizadores potenciais que faltam no modelo de Har rod: em particular, a tendência das variações dos salá rios reais para provocar modificações no «espectro das técnicas». Assim, se a oferta de trabalho aumentar mais lentamente do que a acumulação de capital, isto pode conduzir a uma subida de salários reais e fomentar con sequentemente uma mudança para técnicas que permitem poupar mais trabalho; e inversamente, no caso de a oferta de trabalho aumentar mais rapidamente que a acumulação de capital. Por outro lado, uma variação dos salários reais pode afectar a própria taxa de acumu lação: se, por exemplo, o aumento da oferta de trabalho exceder a capacidade produtiva, a diminuição das taxas de salários monetários resultante pode «tornar o custo de reprodução de bens de capital inferior ao seu custo histórico e induzir assim algum investimento adicional.»*
* Accumulation of Capital (Londres, 1956)t p. 197. Salienta-se, no entanto, que «um movimento de descida dos salários monetários devido a um excesso de trabalho a longo prazo assume a forma de uma descida de salários durante os períodos dos mercados de com prador, não compensadas por subidas durante os mercados de vende dor. O efeito duma descida de salários é sentido, portanto, quando constitui menor estímulo do investimento, e o mecanismo que tende para ajustar a capacidade produtiva ao trabalho disponível é muito mais fraco estando a economia sujeita a flutuações de procura
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Mas embora se indique a possibilidade dessas reacções de equilíbrio, também se demonstra que elas não sur gem necessariamente como resultado. O resultado real pode variar com as circunstâncias e particularmente com a forma como os planos de investimento das empresas reagem às variações dos salários monetários. Deve notar-se que no modelo da Professora Robinson, os lucros (e com estes os salários reais) são determinados em primeiro lugar pela taxa de investimento (como em Kalecki); e consequentemente, o lucro e os salários reais não podem ser influenciados a não ser que a taxa de investimento o seja (ou então aquilo que é designado por consumo de rendeiro). Embora este modo de abordar o problema tenha sido claramente influenciado, conforme dissemos, por Harrod, as suas ideias têm diversas afinidades com as de Rosa Luxemburgo. Essas afinidades, tanto com Rosa Luxemburgo como com Marx, são muito evidentes num artigo que a Professora Robinson escreveu para o The Economic Journal de Março de 1952, intitulado «The Model of an Expanding Economy», do que no livro publicado quatro anos mais tarde e no qual a autora evita mencionar qualquer daqueles dois autores. Neste artigo, escreveu: «O significado de uma proposição depende muito daquilo que nega. Neste aspecto, o modelo é bilateral. Por um lado, prova que não há qualquer impossibilidade lógica inerente na concepção dum sistema capitalista de expansão contínua — contradiz o ponto de vista de que o capitalismo deve inelutavelmente declinar. Por outro lado, o modelo mostra que são necessárias certas condições especiais para que a expansão seja con tínua, e, deste modo, contradiz a opinião de que o capitado que em condições de idade do ouro. Isto reforça muito a con clusão de que uma insuficiência de procura de trabalho em relação à oferta, tem muito menos probabilidade de ser auto-correctora que uma insuficiência de oferta relativamente à pro cura» (ibid p. 197).
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lismo tem, em geral, uma tendência automática para prosseguir.»* Na mesma linha de descendência, embora sui generis, esteve um modelo de crescimento uniforme, proposto pelo Professor N. Kaldor pela primeira vez no The Eco nomic Journal de Dezembro de 1957, e mais tarde publi cado nos seus Essays on Economic Stability and Growth, de 1960 (e ulteriormente apresentado numa versão nova, alguns anos depois).** Pode dizer-se que este modelo responde principalmente a um tipo de problema diferente do das outras teorias que mencionámos. Em bora sublinhe a convergência e a estabilidade, ocupa-se não tanto com a estabilidade na taxa de crescimento, como com certas características do processo de crescimento, especialmente a pretensa estabilidade a longo prazo no coeficiente capital-OMtpwí e a parte do lucro no rendi mento nacional (para a qual se pretende que existe uma forte prova empírica). Mas, de um modo geral, entra na categoria das teorias que conciliam as taxas de cresci mento «garantida» e «natural», demonstrando a existência duma tendência a longo prazo para convergirem: neste caso, por mútua interacção. Segundo esta teoria, o crescimento é um produto conjunto de duas tendências: a dos entrepreneurs para inovarem, aumentando assim a produtividade, e a sua ten dência para acumularem ou investirem. O coeficiente capitaloutput dependerá dos papéis respectivos desempenha dos por estas duas tendências: isto é, das intensidades res pectivas da inovação técnica que origina um aumento da produtividade, e do aumento de capital. Se uma destas duas tendências excede a outra, entram em acção forças que aceleram, ou, alternativamente, que retardam o investi mento; e é por meio deste mecanismo «compensador» que actua a tendência a longo prazo para um coeficiente capitaloutput estável. * The Economic Journal, Margo de 1952, pp. 42-3. ** N. Kaldor e J. A. Mirrlees, «A Ne w Model of Economic Growth», The Review of Economic Studies, Vol. XXIX, N.° 3, pp. 174-92.
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Isto é representado por um diagrama que se tornou muito conhecido, em que os eixos representam a taxa de au mento de capital por trabalhador e por unidade de tempo / dC }\, medida na abcissa, e a taxa de aumento I —1 . ----\ C, dt / de output por trabalhador e por unidade de tempo / í d° \ I ----- . ----- I , devido a aperfeiçoamentos, sendo esta úl\ O t dt J tima medida na ordenada. O estado da economia em qual quer momento, no referente à taxa de crescimento da pro dução, dependerá principalmente do «dinamismo técnico» dos seus entrepreneurs — a sua vontade e capacidade para inovar, que é expressa no gráfico por uma curva (T... T ’) designada «função do progresso técnico». Conforme esta curva está acima ou abaixo, assim a taxa de crescimento é grande ou pequena. O investimento, por outro lado (representado no gráfico por uma deslocação para a direita), dependerá do nível de lucro e da relação existente entre volume de vendas, ou output, e a capacidade produ tiva do equipamento existente. Assim, se uma das duas tendências principais exceder a outra, entrarão em acção forças destinadas a acelerar ou retardar (conforme o caso) a taxa de investimento, até o processo de crescimento con junto convergir na linha de 45 graus, que representa uma proporção constante entre crescimento do output e cresci mento do capital, e portanto um coeficiente capital output constante. Suponhamos, por exemplo, que estamos situados sobre a curva T .. ,T' à esquerda do gráfico: nesta posição, output estará a aumentar em relação à capacidade produtiva existente, e consequentemente existirá um incen tivo para aumentar a taxa de investimento, ou, por outras palavras, para uma deslocação ao longo da curva T...T’ para a direita. Este incentivo será reforçado pelo aumento do lucro resultante de uma taxa de investimento superior;* * No modelo de Kaldor, a parte do lucro no rendimento total é função do investimento, dada a tendência para a poupança 29S
J_ dc C,' dt
O gráfico de Kalãor da «Função do Progresso•Técnico»
e a deslocação para a direita ao longo da curva T...T’ continuará até se atingir o ponto P, onde a curva inter cepta a linha de 45 graus a partir da origem e as taxas de aumento de output e de capital são iguais. Produzir-se-ia um movimento em sentido inverso se se estivesse si tuado em qualquer ponto à direita de P: neste caso, haveria uma deslocação em direcção a uma taxa de inves timento menor (visto que a capacidade produtiva crescia em relação aos lucros; conforme ele próprio escreve, «a taxa de remuneração do capital depende apenas da taxa de crescimento económico e da repartição dos rendimentos dos capitalistas entre consumo e poupança, e é independente de tudo o mais» (Essays on Economic Stability anã Growth (Londres, I960), p. 287). Os salários são um resíduo, dependendo da produtividade (isto porque se considera os lucros ajustados à procura, através de alterações de preços, mantendo-se os salários monetários inal teráveis perante essas modificações). 297
mais rapidamente que o cmtput), e com ela uma dimi nuição do lucro, reforçando a diminuição do investimento. É natural que se tenha observado que, ao contrário do modelo Harrod-Domar, este não explica realmente a taxa de crescimento em si — ou, na medida em que possa ser afirmado que o faz, explica-a dum modo e num sentido completamente diferentes,* que nada têm a ver com a sua estabilidade ou instabilidade. O nível real da curva T...T’ no gráfico, e portanto a taxa de crescimento, depende daquilo que é designado por «dinamismo técnico» da economia — algo que também não é completamente expli cado. Contrariamente a Harrod, Kaldor não considera o crescimento como dependente do coeficiente de poupança: este influencia principalmente o nível de lucro (que varia na razão inversa da poupança) e apenas indi rectamente a taxa de crescimento (por intermédio do efeito do lucro sobre o investimento).Conforme nos explica o autor: «O principal elemento accionador, no processo do crescimento económico, é a capacidade para absorver as alterações técnicas combinada com o desejo de investir capital em empreendimentos industriais.»** Quanto à rela ção entre o seu modelo e o de Harrod, Kaldor escreveu: «As implicações do nosso modelo, segundo a terminologia de Harrod, podem ser resumidas na afirmação de que o sis tema tende para uma taxa de equilíbrio de crescimento em que as taxas «natural» e «garantida» são iguais, visto que qualquer divergência entre as duas porá em acção forças que tenderão a eliminar a diferença; e estas
* Assim, embora diversas teorias considerem o crescimento depen dente daquilo que se considera como entidades estatisticamente mensuráveis, por exemplo o volume de investimento, a sua inten sidade de capital e o coeficiente de poupança* esta teoria explica-o por uma qualidade do sistema mais v ag a e menos tangível — a sua «tendência para inovar» ou aumentar a produtividade, por meio de uma técnica aperfeiçoada ou de métodos de trabalho racionalizados. ** 298
Essays on Economic Stability and Growth, p. 270.
forças actuam em parte através de um ajustamento da taxa ‘garantida’.»* Pela ênfase atribuída ao «dinamismo técnico» do en- trepreneur, a teoria de Kaldor pode ser tida como apresen tando algumas afinidades com a de Schumpeter (que con siderou o entrepreneur capitalista como peça central do desenvolvimento enquanto inovador par excellence). Isto confere-lhe aparentemente um aspecto conservador (na me dida em que entrepreneur está implicitamente identificado com empresas capitalistas). Por outro lado, negando qual quer papel à hipótese tradicional de «conhecimento técnico constante» em teoria estática (e portanto à noção de «fun ção de produção»), considera-se a si próprio um iconoclasta no que se refere à teoria tradicional de Repartição da Produtividade Marginal. No seu artigo ulterior, intitu lado «A New Model of Economic Growth» (escrito em colaboração com J. A. Mirrlees), escreveu: «O modelo é keynesiano no seu modo de funcionamento (as despesas empresariais são primárias; os rendimentos, etc., são secundários) e fortemente «ão-neoclássico no sentido de que os factores tecnológicos (produtividades marginais ou coeficientes de substituição marginal) não desem penham qualquer papel na determinação dos salários e lucros. Ê evidente que uma «função de produção» no sen tido de relação de um só valor, entre uma certa quantidade de capital, K , a força de trabalho N e de output Y (tudo no tempo í), não existe, Tudo depende da história passada, de como o conjunto de bens de equipamento que constituem K foi identificado.»** Talvez valha a pena mencionar, antes de pôr de parte este assunto um teorema novo e intrigante que foi difun dido pela literatura dos modelos de crescimento, mas tem, no entanto, uma relação evidente com conceitos * Ibid.,
p. 285. Observa ainda que no seu modelo, «a hipótese de uma dada tendência para poupar... não define um papel garan tido único, mas é compatível com qualquer número de taxas garan tidas, conforme a repartição do rendimento». ** Review of Economic Studies, Vol. XXIX, N.° 3, p. 188.
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de valor e repartição. Talvez se deva falar de dois teoremas distintos, que nem por isso deixam de estar relacionados. O primeiro, e talvez o mais impressionante à primeira vista, conhecido por Teorema da Não-Substituição, pode ser atribuído ao Professor Paul Samuelson. Segundo este teo rema, com um factor escasso, o trabalho, e sendo todos os outros inputs reprodutíveis, a técnica óptima (ou conjunto de técnicas em várias indústrias) é independente da pro cura (e portanto dos outputs comparados de diferentes produtos).* Por outras palavras, não há, nestas circuns tâncias, nenhum método de produção de cada produto mais eficiente que todos os outros, nem um nível de custo único independentemente da escala de output: conforme escreveu o Professor Hicks, ao explicar as suas implicações, «o sistema de Leontief produz sob custo constante, mesmo que os métodos sejam (em princípio) variáveis» e que «a escolha do método (seja) independente da procura».** O segundo teorema, denominado «Regra de Ouro» ou «Teorema Neoclássico», afirma que, em condições dinâ micas, só quando todo o lucro é investido, e nenhum é aplicado no consumo, será possível escolher o conjunto de técnicas que maximiza a produção total, no sentido de permitir que o consumo seja máximo para qualquer taxa de crescimento (ou vice-versa).*** Este teorema pode *
Collected Elementary
P. Samuelson, «A New Theorem on Nonsubstitution», ed. J. E. Stiglitz (Cambridge, Mass., 1966) Vol. I* p. 520. também R. M. Goodwin, (Cambridge, 1970), pp. 28, 81. Conforme veremos adiante, o mesmo se aplica aos preços, visto que a existência dos chamados «rendimentos constantes à escala» está implícita na hipótese de um factor escasso (sendo todos os outros , uma vez que podem ser libremente reproduzidos, avaliados em custo e preço com base neste factor). ** J. R. Hicks, «Lin ear Theory», Dezembro de 1960, p. 703. ** * Joan Robinson, « A Neo-Classical Theorem», Vol. XXIX, N.° 3, Junho, 1962, pp. 210-14. tam bém Goodwin, pp. 80-1: «Este resultado... tem sido designado por Regra de Ouro, porque torna o consumo tanto quanto possível sujeito
Papers of Paul A. Samuelson, Cf. Economics fromtheHigher Standpoint inputs
The Economic Journal, Review of Economic Studies, Cf. Elementary Economics fromthe Higher Standpoint, 300
considerar-se derivado de dois postulados da moderna teoria do crescimento: (a ) que uma condição para o crescimento (equilibrado) máximo é a taxa de lucro ser igual à taxa de crescimento; ( b ) que o lucro total é igual à soma do investimento mais o consumo capitalista (donde se segue que, visto o crescimento ser função do primeiro, a taxa de lucro excederá a taxa de crescimento segundo o grau em que o consumo, abstraindo dos lu cros, for positivo). O Dr. M. Nuti utilizou isto muito inteligentemente para postular uma segunda e «mais subtil forma de exploração» em regime capitalista: «o menor nível médio de consumo por cabeça associado a uma esco lha técnica sub-óptima, sempre que o consumo abstraído dos lucros impede o cumprimento da regra de ouro».* ui Talvez fosse difícil justificar o tratamento da Eco nomia do Bem-Estar (sob a designação de «Nova Econo mia do Bem-Estar»), dentro da orientação que seguimos, não fora o invulgar significado ideológico deste ramo «nor mativo» da teoria económica. Estas inovações estão relati vamente afastadas da teoria do valor e da repartição, de que nos ocupámos até aqui; e embora tenha dado origem a uma literatura própria muito abundante, a Economia do Bem-Estar constitui hoje em dia (em manuais e programas de cursos) apenas um sector ou capítulo especializado. No entanto, o espaço ocupado pela sua discussão na literatura moderna, prova sem dúvida a crescente impor tância atribuída a conclusões «optimizantes» na teoria económica em geral, e pode justificar que se lhe dedique aqui alguma (embora passageira) atenção.
à taxa de crescimento. É uma consequência directa da análise de von Neumann, com a diferença que, enquanto nesta o consumo é dado e a taxa de crescimento maximizada, aqui o crescimento é dado e o consumo maximizado.» * «Capitalism, Socialism and Steady Growth», The Economic Journal, Março, 1970, p. 54.
301
Em relação a isto, a linha de delimitação entre «an tigo» e «novo» passou a ser chamada «negação da possibi lidade de comparações interpessoais». No entanto, isto não era completamente inédito, pois de facto fora abordado sessenta anos antes, não só por Pareto mas também por Jevons. Na década de 1930, con tudo, essa negação tomou-se rapidamente moda, espe cialmente na América; e foi por vezes justificada pelo desejo de finalmente pôr termo ao utilitarismo do século dezanove. Uma outra razão, não menos importante, ou talvez a principal, não é, contudo, difícil de encontrar: os escritos anteriores (a Pigou) sobre o Bem-Estar, dedu ziram da «Lei da Utilidade Decrescente» o princípio de que quanto menos o produto nacional fosse repartido em ter mos de desigualdade, oeteris paribus, tanto maior seria a soma total resultante de utilidade ou bem-estar.* Estas conclusões pronunciadamente igualitárias, que constituí ram uma das duas propostas formuladas em The EconomAcs of Welfare, foram manifestamente mal recebidas e causa ram embaraço em certos círculos. Era reconfortante poder dispor dum sistema de economia de bem-estar do qual fosse possível excluir questões embaraçosas em matéria de repar tição; e a «Nova» Economia do Bem-Estar (que se vanglo riava de rigoroso positivismo) remodelou-se de forma a tornar irrelevante e desnecessária a intrusão de ques tões desse género. No entanto, esta falta de vontade, ou incapacidade, da Nova Economia do Bem-Estar para se pronunciar em matéria de repartição do rendimento, acabaria por se tomar o seu calcanhar de Aquiles. O perigo que ameaçava esta nova abordagem do problema estava em que, recusando-se a comparar ou reu nir utilidades individuais, podia pôr de parte a possibili dade de comparar um produto total com outro (algo que se * Isto constituiu a segunda das duas principais propostas, ou princípios, da economia do bem-estar de Pigou. Segundo a primeira, a utilidade resultante dum certo montante de rendimento nacional seria maximizada se os recursos fossem distribuídos de forma a igualar o produto líquido marginal social, de recursos em todos os usos. 302
tornava evidentemente necessário para se poder discutir a maximização duma produção total e procurar propor condi ções de «eficiência» económica nesses termos). Foi para resolver esta dificuldade e restabelecer a distinção entre qustões de repartição (que eram postas de parte) e questões de produção (que podiam ser mantidas) que o Professor Kaldor elaborou o seu Princípio da Compensação. Sem dúvida que era sempre possível dizer, pelo menos em princípio, no caso de qualquer modificação económica, como por exemplo a revogação das Leis dos Cereais, se aqueles que iriam ganhar com a mudança poderiam ou não compensar os que iriam perder com essa mudança, e ficar em condições ainda melhores que as originárias. Se isto fosse possível, poderia considerar-se o resultado da modifi cação como significando um aumento de produção total ou rendimento nacional, e inversamente. Assim, a possibilidade de compensação acima referida passou a constituir a definição dum aumento de o u t p u t total, sem neces sidade de recorrer a qualquer soma de utilidades indi viduais.* Infelizmente, verificou-se que o Princípio da Compensação, como solução da dificuldade teórica (e não como teste prático, sem dúvida aplicável em muitos casos reais), implicava algumas contradições bastante importantes.** Tendo adoptado a não comparabilidade de utilidades individuais de Pareto, os novos economistas do bem-estar continuaram a utilizar a sua noção de um óptimo que passou a ser conhecido por «óptimo de Pareto».
* Tudo o que era necessário era definir a compensação como incluindo cada um dos perdedores «na mesma curva de indife rença», tal como antes da modificação, podendo a quantia necessá ria para isto ser calculada em termos de pagamentos monetários ou rendimento. ** Cf . N. Kaldor, «Welfare Propositions and Interpersonal Comparisons of Utility», The Economic Journal, Setembro, 1939, pp. 549-52; reeditado nos Essays on Value and Distribution (Londres, 1960), pp. 143-6. Os problemas em questão e o debate subsequente são discutidos em Economies and Economies cialism (Cambridge, 1969), Caps. 5 e 6, do autor do presente livro.
Welfare
the
of So 303
à primeira vista, esta noção é bastante atraente. Foi definida como uma situação em que, tomando como dado o rendimento monetário ao dispor de cada um, ninguém poderia obter uma melhoria de condições sem que por isso outro indivíduo (ou outros indivíduos) pas sassem a uma situação pior. (Na realidade, isto não era uma situação única — havia inúmeras dessas situações, uma para cada diferente repartição de ren dimento monetário.)* Que mais se poderia esperar de uma política, definível em termos económicos puramente objectivos, independentes do modo de repartição, e por tanto capazes de serem utilizados como critério positivista, wertfrei, de eficiência económica? Neste sentido foi bem aceite, senão quase universalmente, por autores de manuais de economia. Aqueles que ainda se preocupa vam com os problemas da repartição desigual teriam o cuidado de chamar a atenção para o facto de aqui se tratar de algo completamente diferente da «equidade», a qual era outro problema que devia ser considerado nos seus próprios termos, dentro do seu próprio contexto; e, ao mesmo tempo, mostravam a sua satisfação pela oportunidade que lhes era oferecida por este conceito de Pareto, de se limitarem, enquanto economistas, a questões de eficiência económica pura e simples. Esta situação poderia ter-se mantido assim, e até eximir-se a qualquer crítica, se não fosse a armadilha que significava para aqueles que eram incapazes ou não estavam dispostos a distinguir entre uma condição necessária e uma condição suficiente para um óptimo. Definir uma condição (ou condições) que é neces sário satisfazer para se obter qualquer óptimo completo (por exemplo, a tangência da curva de preços com uma curva de indiferença de cada consumidor, ou a igualdade de taxas de substituição de factores em todas as linhas de produção), é da maior importância para qualquer * Todos os pontos ao longo da «Curva de Contrato» de Edgeworth (pontos de tangéncia de curvas de indiferengas)1 eram óptimos de Pareto.
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teoria da optimização. Mas o mesmo sucede com qualquer postulado sobre o modo como o rendimento é repartido entre indivíduos como uma condição neces sária; e, na sua falta (e vimos que foi deliberadamente excluído pela «nova» economia do bem-estar), estas con dições, denominadas condições de Pareto, são real mente insuficientes para caracterizar uma posição como óptima. Uma situação em que tais condições são satisfeitas pode ser inferior a muitas outras situações em que isso não ■sucede. É de presumir que todos os economistas o reco nheçam ao serem postos perante o problema (de facto, estão então em condições de replicar que sempre o sou beram). De qualquer maneira, isto é uma verdade que muitos esquecem com surpreendente frequência, e de modo nenhum apenas as estrelas de pequena grandeza, conforme vão mostrar dois exemplos que se seguem. A dificuldade parece surgir logo que um óptimo de Pareto é identificado com um equilíbrio alcançado sob concorrência perfeita ou comércio livre; e logo surgem a falácia e a confusão. O exemplo mais vulgar consiste em raciocínios do tipo seguinte. Se os consumidores forem racionais e puderem gastar livremente os seus rendimentos monetários, distribuirão a sua despesa entre diferentes bens de forma que o coeficiente das taxas margi nais de substituição (ou coeficiente das utilidades margi nais), seja igual ao coeficiente dos seus preços (isto é, a tangência da curva de preços à curva de indiferença que constitui um óptimo de Pareto, quando aplicada ao mercado de retalho do consumidor). Isto é o mesmo que afirmar que os consumidores estão geralmente numa posição em que nenhum deles pode melhorar a sua própria situação, dados os preços que ele e o seu rendimento monetário defrontam — o que é adiantar algo mas, evidentemente, não muito. É tentador concluir daqui* que, com a condição de * Uma vez que isto significa que é indiferente a cada consumidor que um pouco mais de um dos dois bens, digamos o bem A, ou do outro bem, B, seja produzido àquele mesmo preço, já que uma unidade monetária de A e B é de igual utilidade na margem de despesa. 20
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o coeficiente de preços ser também igual ao coeficiente de custos marginais na produção, as quantidades de quais quer dois bens A e B produzidas maximizam o bem-estar social. E no entanto esta conclusão é falaciosa, visto que a condição acima mencionada, embora verdadeira para cada consumidor separadamente, não pode ser generali zada. Qualquer generalização (por exemplo, numa curva de indiferença colectiva) depende da repartição do rendi mento monetário, no sentido de que a utilidade marginal de despesa (ou a utilidade marginal do rendimento) será diferente conforme o rendimento dos indivíduos, e qual quer processo de generalização envolverá uma ponde ração dos diversos indivíduos de acordo com estas dife renças.* E no entanto, foi precisamente numa falácia assim que «os novos economistas do bem-estar» caíram, ao tenta rem demonstrar a natureza óptima dos resultados da con corrência perfeita num sistema de mercado livre. Uma vez que alguns podem não acreditar nisto, daremos dois exemplos de modo nenhum negligenciáveis. O Pro fessor R. Dorfman, num livro sobre Preços e Mer- cados tentou demonstrar como se segue a vantagem da chamada soberania do consumidor num «mercado livre»: «Dado que todos os consumidores compram aos mes mos (ou pelo menos quase aos mesmos) preços, todos eles terão a mesma taxa marginal de substituição entre cada par de bens. Portanto, justifica-se a afirmação de que na comunidade existe uma taxa marginal de subs tituição entre cada par de bens, e que esta é igual ao coeficiente dos respectivos preços... [Portanto] vemos que em equilíbrio de concorrência, cada recurso produtivo é utilizado de tal maneira que se fosse canalizado para um artigo diferente não produziria bens a que os consu midores atribuíssem maior valor que aos normalmente produzidos; cada recurso é utilizado segundo o desejo * Ou — se a lógica da negação de comparações interpessoais nos impedir de falar dessas diferenças — devemos manter-nos com pletamente silenciosos a respeito dessa generalização. 306
dos consumidores.»* A conclusão, escusado será diz^r, é um completo non sequitur.** Isto aplica-se igualmente a um argumento apresentado num manual muito difundido, em que colaborou o mesmo autor (com os Professores Samuelson e Solow).*** Faz-se aqui referência á dupla proposição de que «cada equili brio de concorrência é um óptimo de Pareto» e «cada óptimo de Pareto é um equilíbrio de concorrência», como constituindo «o teorema fundamental» e «a espinha dorsal da economia do bem-estar»; donde se conclui que um equi librio de concorrência é sempre superior a um equilibrio de não-concorrência.**** Isto peca manifestamente por atribuir ao conceito paretiano de um óptimo, como condi ção necessária mas não suficiente, uma implicação maior do que se pode logicamente esperar que ele contenha. Além destes temas mais gerais de optimização do bem-estar (alguns talvez preferissem o termo «melhoria»), que incluem necessária e obviamente as questões ideo lógicas, a exploração desta matéria envolveu ainda diver sas questões mais específicas. Entre estas inelui-se
cmd
* R. Dorfman, Prices Markets (Nova Jersey, 1967), p. 91. * * Por vezes, este tipo 'de conclusão é defendido com base no argu mento de que o autor pressupõe a existência de qualquer mecanissno político, ou ãeux ex machina, sob o nome de «transferências de quantias globais» de rendimento monetário, pelo que a repar tição do rendimento se torna «ideal» (e assim se mantém perante qualquer ajustamento de preços); o que parece equivalente a sugerir que existe uma Terra de Sonho onde o equilíbrio de concorrência pode ser óptimo. Este artifício é depois usado para permitir ao escritor em questão a conclusão de que é meritório (senão mesmo obrigatório), por exemplo, tornar os coeficientes de preços iguais aos coeficientes de custo marginal, mesmo em situações em que se torna evidente que a repartição está longe de ser «ideal». ** * R. Dorfman, P. Samuelson e R. Solow, (Nova Iorque, 1958). pp. 409-12. Segundo as palavras aqui utilizadas, este **** teorema «fornece o argumento de bem-estar fundamental contra o monopólio, contra os impostos indirectos e contra as pautas aduaneiras». comentário a este respeito, pelo autor do presente livro, p. 6Qn.
and Economic Analysis Ibid.,
Linear Programming
Cf. Welfare Economics anã the Economics of Socíalism, passim.
¿07
a discussão de certas «excepções» em matéria de laissez faire (independentemente, i. e. da questão da reparti ção) : em particular, a discussão sobre indústrias com ren dimentos crescentes na década de 1920, suscitada pelos conhecidos capítulos referentes ao assunto na clássica obra de Pigou, Economics of Welfare. Inclui-se também o conhecido (e de maior peso ideológico) debate do período entre as duas guerras, sobre a possibilidade de cálculo eco nómico numa economia socialista, levantado em grande parte por um artigo muito citado e um livro do austríaco von Mises, de começos da década de 1920 (que negou essa possibilidade), e que prosseguiu, no que respeita aos eco nomistas de língua inglesa, principalmente na década de 1930. Foi no contexto deste último debate que se desen volveu grande parte da discussão sobre custo médio versus custo marginal, como base da formação de preços; e como a discussão Jevada a cabo durante a década de 1920 sublinhara o papel das «indivisibilidades» como causa da divergência entre custo marginal e custo médio, estes dois debates podem ser considerados igualmente responsáveis por uma série de análises ulteriores de casos particulares (por exemplo, transporte, electricidade), onde a existência de uma indivisibilidade criava problemas especiais que duma forma ou doutra envolviam um conflito entre o «lucro total» e a tentativa para cobrir o custo total no preço de mercado. Mas fazer tais incursões especiali zadas no domínio da economia aplicada seria aqui despro positado, e temos de resistir à tentação.
308
9. UMA DÉCADA DE FORTE CRÍTICA I Ê sempre difícil determinar a data do aparecimento dum conjunto de ideias ou linha de pensamento em par ticular, e isto é talvez ainda mais difícil quando se trata duma reacção crítica contra uma doutrina tradicional e um sistema integrado de conceitos relacionados. Qual quer inovação doutrinária tem os seus precursores, os seus pioneiros desconhecidos e na altura ignorados, con forme vimos que sucedeu com a «revolução jevoniana». Em geral, o momento fundamental do processo teórico surge como uma síntese, uma «mediação» ou «superação» de uma crítica prévia e mais parcial ou de «partidas em falso» e tentativas incompletas para explorar determinada nova perspectiva ou ângulo de abordagem do problema. A verdadeira novidade pode ser a apresentação dum novo problema, ou a apresentação de problemas antigos sob uma forma nova, tanto quanto a descoberta duma solução con vincente. Contudo, não é geralmente difícil identificar o ponto de viragem essencial quando se examina o passado, mesmo que na altura o seu significado possa ter passado despercebido. O ressurgimento do interesse pelos economistas clás sicos da era ricardiana pode ter sido paralelo ao desvio da análise para problemas «macroscópicos», dos quais já falámos, ao mesmo tempo que era lançada uma nova luz sobre a doutrina ricardiana, com a edição de Works and Correspondenoe of Daviã Ricardo por Piero Sraffa, no iní 309
cio da década de 1950 (são de assinalar especialmente as novas interpretações da teoria do lucro de Ricardo e da sua procura de uma medida de valor invariável, modesta mente incluídas na Introdução Geral do editor).* A crítica explícita à teoria pós-jevoniana e pós-austríaca da distribuição em termos de produtividade marginal ou pro cura derivada, começou a surgir pela mesma altura (isto é, na década de 1950), pela voz e pela pena da Professora Joan Robinson, ao pôr em questão o conceito de Capital como grandeza independente do rendimento de bens de capital concretos, que habitualmente era aplicado através do conceito conjunto. Esta linha de crítica culminou com a sua obra Accumulation of Capital, de 1956, do qual já falámos no contexto das teorias do crescimento, e onde aquela autora pôs de parte a noção duma «função de produção» contínua (a favor da noção dum «espectro de técnicas»), juntamente com a de capital como grandeza.** Esta autora continuou a usar o termo «neo-clássico» para designar a teoria da repartição ortodoxa derivada
Works and Correspondence of David Ricardo, ed. P. Sraffa, Vol. I (Cambridge, 1951 ) L pp. XIII-LXII. ** Cf. esp. Cap. II , « A Avaliação do Capital». É aqui sublinhado *
que enquanto nas condições de qualquer «idade do ouro», com uma taxa de salários e de lucro dadas, «o valor do capital em termos de bens tem um significado inequívoco», «não é de modo nenhum óbvia a forma como os de capital devem ser comparados co mos que pertencem a economias de idade do ouro, em que as taxas de lucro, ou as técnicas de produção, ou umas e outras, são diferentes.» Neste caso, «a avaliação dum de bens de capital é em princípio insolúvel» ( ., pp. 114-17). Por outro lado, a comparação entre a produtividade de diferentes técnicas ou tipos de combinação de bens de capital, e portanto um planeamento dos graus de mecanização, «só tem um significado exacto para economias num estado de investimento líquido igual a zero» p. 119). também Joan Robinson, « A Função de Produção e a Teoria do Capital», Review Vol. XXI, N.° 2, 1953-4, pp. 81-106, reeditado em Papers, Vol. 2 (Oxford, 1960) (a função de produção «tem sido um poderoso instrumento de instrução mal orientada»i p. 114); e «Acumulação e a Função de Produção», Setembro, 1959, pp. 433-42.
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ibiã
(ibiã.,
310
Cf.
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of Economic Stuãies, Collected Economic ibid The Economic Journal,
de Jevons e dos Austríacos,* e tornou-se um crítico destacado dessa doutrina (para a qual «contra-clássieo» fosse talvez o termo mais de acordo com a nossa inter pretação e mcapítulos anteriores). De facto foi em resposta a este desafio que o Professor James Meade escreveu a obra NeoClassical Theory of Growth, em 1961. A autêntica linha de separação da discussão crítica, que dividiu as correntes de opinião mais antigas e mais novas, foi sem dúvida o aparecimento (em 1960) do livro pouco volumoso mas fundamental de Piero Sraffa, intitu lado Production of Gommodities by Means of Commodities; não só porque esta obra deu início a uma espécie de escola entre a mais jovem geração de economistas — revelando uma tendez que poderia ser descrtia como «retorno ao es tudo de Ricardo e Marx» — , mas também porque provocou um debate famoso, embora restrito, em meados da década de 1960, que tem sido geralmente designado por debate da «múltipla mudança de técnicas». O sub título deste livro, era bastante significativamente, «Pre lúdio a uma Crítica da Teoria Económica». Um comen tador da moderna controvérsia sobre a teoria do capital referiu-se ao livro como a um guia («pelo menos em espi rito») do ataque à teoría e método marginal.** O Professor Meek, ao analisar o livro um ano após a sua publicação, afirmou que podia ser considerado «simplesmente um modelo teórico não ortodoxo... concebido para resolver o problema tradicional do valor de uma forma nova», ou «como um ataque implícito ã análise marginal moderna», ou ainda «como uma espécie de magnífica reabilitação * No artigo de 1953-4^ o termo foi usado aparentemente num contexto keynesiano: «O sistema neo-clássico baseia-se no postulado de que, a longo prazo, a taxa de salários reais tende para um situação em que toda a mão-de-obra disponível será empregue» ( Gollected Economic Papers, Vol. 2, p. 126). Foi igualmente utilizado alguns anos antes por outros escritores, por exemplo( Stigler (1946), cif. acima, p. 211. ** G. C. Harcourt, «Some Cambridge Controversies on the Theory of Capital», Journal of Economic Literature, Vol. VII, N.° 3, Junho de 1969, p. 386. 311
da concepção clássica (e até certo ponto marxista) de certos problemas fundamentais relacionados com o valor e a repartição».* Já aludimos ao problema de conceber o Capital como grandeza, no âmbito da teoria da produtividade marginal. Talvez não seja necessário adiantar mais nada a este respeito, além da curta recapitulação alargada que se segue. A noção de uma função de produção é um traço característico da teoria tradicional da forma ção dos preços dos factores de produção. É geral mente representada por uma curva que traça as diver sas combinações de factores possíveis a partir dum certo estado de conhecimento técnico; cada ponto desta curva representa um método técnico de produção, com a res pectiva combinação de factores. Na verdade, não se pode conceber a adição de mais uma unidade de um factora uma quantidade constante de outro (ou outros) sem mo dificar a proporção em que os factores estão combinados e passam dum ponto dum «isoquanto» para um ponto contí nuo doutro. Em qualquer ponto da curva, o coeficiente de substituição de factores (ou o seu inverso, o coeficiente de produtividades marginais) deve ser igual, em equilíbrio de concorrência, ao inverso do coeficiente dos preços de factores, visto que só essa será a combinação mais lucrativa que o entrepreneur poderá escolher. Daqui resulta que, se os preços relativos de factores se modificarem, a técnica mais lucrativa, ou de custo mínimo, sofrerá uma modificação correspondente; e, em qualquer função de produção bem ordenada, à medida que os salários sobem e os lucros diminuem, a técnica tenderá a mudar para uma orientação mais «intensiva de capital», para uma combinação de factores que utilize mais capital e menos trabalho. A não ser que bens de capital heterogéneos sejam redutíveis a uma quantidade de Capital única, é difícil' *
Scottish
«Mr. S raffa’s Rehabilitation of Classical Economics», Junho, 1961: reeditado em R. L. Meek (Londres, 1967), p. 161.
Journal of Political Economy, Economics and Ideology and Other Essays 312
perceber como se poderá atribuir algum significado a uma série ordenada de proporções Capital-Trabalho deste tipo (ou, o que vem a dar no mesmo, à afirmação de que um método técnico representa maior quantidade de capital por homem-hora na produção, que outro método). Isto é sempre possível, evidentemente, avaliando bens de capital individuais aos seus preços correntes; mas essa avaliação, conforme vimos diversas vezes,* pressupõe uma taxa de lucro ou de juro, visto que a avaliação de insta lações ou equipamentos duradouros se faz geralmente pelo cálculo da capitalização das suas receitas (ou «rendi mento») à taxa de juro corrente. O planeamento de diver sos métodos técnicos pode ser, portanto; influenciado por modificações da própria taxa de juro ou de lucro. Poi para evitar esta dificuldade (cuja existência é bem reconhecida) que Bõhm-Bawerk introduziu o seu «período de produção», como entidade composta de trabalho e tempo. Mas isto não superou realmente a dificuldade, salvo no caso simples em que os inputs de trabalho eram uniformes durante o período:** noutros casos mais complexos, o ordenamento de diversos períodos, como também vimos, pode ser dife rente com uma taxa de juro daquilo que é com outra. Os defensores da teoria da produtividade marginal adoptaram vários dispositivos para conferir plausibilidade, quando não realidade, à noção de Capital como entidade mensurável. Isto tomou por vezes a forma duma hipótese do tipo «se»: o postulado duma substância primária en quanto constituindo o substrato ou origem de todos os bens de capital. Isto foi diversamente descrito em termos de conjuntos de construções, de argila maleável, de massa de vidraceiro e assim por diante: chamaram-lhe «a hipótese
* Acima, páginas 246-7 e 257-8 e notas. ** Cf. a referência de Bõhm-Bawerk a «métodos de produção em que a despesa em forças originais é repartida por igual durante todo o período» (e a «extensão absoluta» e a «média» conduzem ao mesmo resultado quando utilizadas como medidas) em Positive Theory of Capital, ed. W Smart, p. 90.
313
da maleabilidade».* Essa hipótese, escusado será dizê-lo, é perfeitamente arbitrária, e a intenção com que é utilizada está longe de ser sempre séria. A Professora Joan Robinson falou de «ectoplasma» a fim de acentuar o carácter metafísico de qualquer substância assim pos tulada.** Com intuito mais sério, o Professor Samuelson introduziu a parábola de uma «Função de Produção Subs tituta», à qual voltaremos a referir-nos. O Professor procurou ladear a dificuldade afirmando que as teses principais da teoria podiam ser de molde a tomá-las independentes de qualquer avaliação do capital. Isto assu miu a forma de definição da «taxa de rendimento social» sobre o investimento num sistema socialista de modo par ticular,*** e a da demonstração de que esta taxa deve ser igual à taxa de juro. «Uma propriedade importante da taxa de juro tem sido mal apreciada: no entanto, a taxa de juro é realmente determinada, na medida em que prevalecem o pleno emprego e a formação de preços de concor rência, e é um rigoroso padrão de avaliação do rendimento social da poupança.**** * P. ex., a «hipótese da perfeita maleabilidade da maquinaria» do Prof. J. E. Meade («todas as máquinas são iguais (não passam duma tonelada de aço)» (Londres 1961), pp. 5-6). ** Nã o é invulgar em economia certas teses terem precur sores. Poderíamos considerar esta tese um eco retardado da de Pierc y Ravenstone: « [ o capita l] tem unicamente uma existência metafísica... é como o éter subtil dos antigos filósofos... Não é menos útil para os nossos economistas do que aquele era para os filósofos. Serve para explicar seja o que for que não possa ser explicado doutra maneira qualquer»
Growth
(A neoClassical Theory of Economic
(A Few Doubts as to the Gorrectness of some opinions generally entertained on the subjects y (Londres, 1821), p. 293). 10/ Population and Political Econom *** Esta constituía a taxa do consumo adicional (futuro) por ano, resultante do investimento para a quantia inicial e inevitavel mente irrecuperável para tornar este investimento possível; sendo ambas avaliadas pelo conjunto de preços relativos a uma dada taxa de juro (e portanto determinadas simultaneamente com a última). ** ** R Solow, «The Interest Rate and Transition between Techniques», ed. C. Feinstein, (Cambridge, 1967),. pp. 30-9. A isto replicou-se que imaginar
Socialism, Capitalism and Economic Growth
314
Uma propriedade evidente do tipo de função de produção, ou relação de substituição de factores, que já descrevemos, é que, quando a taxa de juro diminui, a quantidade de capital utilizada por cada homem na produção deve aumentar: por outras palavras, técnicas mais «intensivas de capital» devem ser uni formemente substituídas por técnicas mais «intensi vas de trabalho». Se isto não acontecer uniforme mente, e ao longo de toda a gama de escolha técnica repre sentada pela curva de substituição, é evidente que há algo muito errado em toda a noção de uma «função de produ ção» — e, igualmente, na noção de capital como entidade quantitativa independente que pode ser substituída, em quantidades definidas, por outros factores de produção. Foi precisamente esta propriedade fundamental que foi posta em questão, como consequência do trabalho de Sraffa, Pro ãuction of Commodities by Means of Commodities. Sobre a natureza geral do sistema constituído por esta obra e em especial sobre a sua relação com o sistema clássico, acrescentaremos algo mais adiante. Num certo sentido, a sua rigorosa demonstração da possibilidade daquilo que veio a ser designado por «dupla mudança de técnicas», com modificações no coeficiente dos preços de factores, surgiu como um corolário casual dessa obra. Mas representou, talvez, a sua mais importante contribuição individual para uma «Crítica da Teoria Económica», e deu origem a um debate que um dia, sem dúvida, será cele brado. Esta possibilidade de «mudança» significa que, quando os salários sobem e os lucros descem, uma certa técnica A relativamente intensiva de trabalho, inicial mente utilizada, pode ser substituída por uma técnica B, uma definição e torná-la equivalente a algo, nada diz a respeito do modo como a última (neste caso a taxa de juro), é determinada. Of. A. Bhaduri, «On the Significance of Recent Controversies on Capital Theory: a Marxian View», The Economic Journal, Setembro, 1969; L. L. Pasinetti, «Switches of Technique and the ‘Rate of Return’ in Capital Theory», The Economic Journal, Se tembro, 1969.
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mais intensiva, de capital; mas, a um nível de salários ainda mais elevado (com uma taxa de lucro correspon dentemente menor), a técnica A pode voltar a ser a de menor custo e consequentemente substituir B. Para quem esteja imbuído da tradição moderna, tal possibi lidade afigura-se um paradoxo inacreditável. Para um economista moderno, acostumado como está a pensar em repartição do rendimento como derivada das relações de preços dos produtos finais, a ideia de que as pró prias relações de preços estão fortemente relacionadas com essa repartição, mudando com cada alteração no coeficiente lucro-salário, pode parecer estranha ou mesmo discrepante. E, no entanto, é precisamente essa relativi dade de preços na repartição do rendimento, que esta possibilidade de «mudança», anteriormente ignorada, ilustra. Por esta razão, talvez não devesse parecer tão obscura ou surpreendente para quem conheça Marx (ou até Ricardo), visto que equivale a desvios dos «preços de produção» marxista em relação aos «valores» — em especial, os preços de inputs e de inputs dentro daque les outputs — quando os salários se modificam e com estes a taxa de mais-valia (ou o coeficiente lucro-salário). Para melhor esclarecer as razões deste paradoxo aparente, pode representar-se a situação de produção do modo seguinte. O custo e o preço final de um bem podem ser concebidos como a soma de uma série vertical de fases de produção desdobradas retrospectivamente no tempo, sendo cada fase constituída por um input de trabalho mais inputs de bens (máquinas, matériasprimas, componentes), que são produtos dalguma fase anterior; tendo cada uma o seu input de trabalho a res pectiva data, indicada na série vertical. Trata-se daquilo a que Sraffa chamou «Redução a Trabalho Datado». É evidente que tudo depende, no que se refere ao efeito das modificações das taxas de juro sobre os preços, da forma como estes termos de trabalho estão distribuídos no tempo. Consideremos em primeiro lugar o caso de dois bens, um com maiores inputs de trabalho totais, mas agrupados em datas recentes, e o outro com me nores inputs de trabalho totais situados em datas 316
distantes. Com salários baixos e juro alto, o primeiro pode ficar mais barato, apesar da sua folha de férias maior. Se os salários subirem e os juros descerem, o segundo será mais vantajoso em dado momento, em virtude da sua menor folha de férias: uma vantagem que se esperará aproveitar seja qual for a subida de salários e a descida do juro. Este é o caso ortodoxo, ao qual pode adaptar-se uma função de produção corrente. Em segundo lugar, podemos supor um caso em que um bem tem todos ou a maior parte dos sçus inputs de trabalho aplicados numa data intermédia, tendo o outro uma parte do trabalho numa data muito distante e o grosso deste numa data bastante recente. B perfeitamente pos sível que o segundo bem tenha uma vantagem de preço em níveis intermédios de juro e salários, mas o primeiro será preferido (porque mais barato), tanto a níveis de muito altos (com salários baixos), como a níveis de juro muito baixos (com salários correspondentemente eleva dos) . A razão é, naturalmente, a possibilidade de diferen ças no efeito composto das modificações da taxa de juro sobre o custo comparado de inputs em datas muito distan tes e intermédias. O exemplo de Sraffa para este caso é o do vinho e da arca de madeira de carvalho velha.* Mais concisamente, poderíamos dizer que neste último caso o resultado depende das diferentes proporções do tra balho e de outros inputs nas diferentes «camadas» do pro cesso de produção vertical. Sraffa explicou esta situação do seguinte modo. «Os movimentos de preços relativos de dois produtos dependem não só das respectivas «proporções do trabalho e dos meios de produção pelos quais são produzidos, mas também das «proporções» em que aqueles meios foram eles próprios produzidos, e ainda das «proporções» em que os meios de produção daqueles meios de produção foram produzidos, e assim por diante. O preço relativo de dois produtos pode consequentemente modificar-se, se os salários descerem, numa direcção * Sraffa, Production of Commodities by means of Commodities, p. 37. 317
oposta àquela que seria de esperar com base nas suas respectivas «proporções»; além disso, os preços dos seus respectivos meios de produção podem modificar-se de maneira a inverter a ordem dos dois produtos quanto a proporções maiores e menores.»* A relevância destes factos para o problema da quan tidade de capital foi imediatamente sublinhada: designada mente, «a possibilidade de apoiar-se nas tentativas feitas para encontrar no «período de produção» uma medida independente da quantidade de capital que pudesse ser uti lizada, sem argumentos em círculo, para a determinação de preços e de fracções na repartição». A viabilidade do tipo de caso que considerámos «parece concludente na demonstra ção da impossibilidade de reunir os «períodos» pertencentes às diferentes quantidades de trabalho numa grandeza única que pudesse ser considerada representativa da quantidade de capital. As inversões na direcção do movimento dos preços relativos (quando os salários se alteram), perante métodos de produção inalterados, não podem ser conci liadas com qualquer noção de capital como quantidade mensurável independente da repartição e dos preços.»** O debate subsequente foi iniciado por uma tentativa, que partiu de Harvard, de demonstrar a impossibilidade da ocorrência duma «remudança» num sistema de pro dução» completo (isto é, no qual n bens são produzidos por diversos métodos alternativos), enquanto distinto dum único ramo industrial.*** Esta «impossibilidade» depressa foi negada, verificando-se que envolvia um erro matemá tico, tendo-se ficado a dever este trabalho a L. Pasinetti e também a P. Garegnani.**** No seu artigo no * **
Ibid., p. 15. Ibid., p. 38.
The Quartely Journal of Economics,
** * D. Levhari, Vol. LXXIX, Fevereiro, 1965. ** ** L. Pasinetti, «Changes in the Rate of Pr ofit and Switches of Techniques», Vol. LXXX , N.0 4, 1966, pp. 503 seg.; P. Garegnani, «Switching of Techniques», Vol. LXXX, N.° 4, Novembro, 1966, pp. 554 seg.
Quartely Journal of Economics, terly Journal of Economics, 318
Quar-
Quarterly Journal of Economics, o segundo generalizou a questão da seguinte forma: «O capital, para se tornar o factor cujo preço de serviço é a taxa de juro, deve ser em última análise concebido como o valor, em qualquer unidade, dos bens de capital; e o valor de qualquer bem de capital, tal como o valor de qualquer outro produto, modifica-se com a repartição». Segue-se que «a própria possibilidade de ordenar as técnicas segundo as propor ções de capital para trabalho se nos escapa completamente, e que a ordem pode mudar à medida que os preços e a repartição se modificam». Aprofundando a sua análise, mostra depois que nem sequer é válida a afirmação de que, no caso de haver um ponto de mudança entre duas técni cas, «a técnica para a qual vamos mudar, quando o juro baixa, é sempre aquela — sendo os bens de capital de ambas as técnicas avaliados aos preços do ponto de mudança — cujo valor de capital por homem é mais elevado. Esta pretensão não tinha qualquer fundamento. Quando a taxa de juro diminui, a mudança pode fazer-se a favor da técnica que exige bens de capital cujo valor por homem é menor, e não maior.»* Segundo ele, «a aceitação desta realidade era de grande alcance». Da «subida da pro porção entre capital e trabalho na economia, quando o juro desce, deduziram-se ‘funções procura’ para o ‘capital’ (isto é, ‘poupança’) e para o trabalho... e daí, em especial, a explicação do juro (lucros) pela escassez de ‘capital’ e como recompensa duma ‘espera’. É difícil ver como se pode manter esta elaborada estrutura, quando se apura que a sua premissa é inexistente.»**
ibid.,
* Garegnani, pp. 562, 564. ** Ibid., p. 565. O Professor Garegnani adoptara já anterior mente uma atitude crítica análoga contra Bõhm-Bawerk, Wicksell e Walras no seu (Milão, 1960). a referência a «uma terceira revolução... iniciada há alguns anos pela ‘Escola de Cambridge’» e à demonstração por Garegnani da insustentabilidade da teoria marginal em Paolo Leon, (Baltimore, 1967) pp. 4-6: «B impossível estabelecer o que é a produtividade marginal técnica 'do factor capital conjunto, a não ser que seja expressa em termos de valor, ou em preços dados.»
Cf.
11 capitale nelle teorie delia distribuzione
Structural Ohange and Growth in Capitalism
319
Poderíamos perguntar se esta pretensa dificuldade na teoria do capital não seria susceptível de superação graças à chamada «Função de Produção Substituta», imaginada pelo Professor Paul Samuelson, presumindo que foi apretada com esta intenção.* Mas, na realidade, esta enge nhosa «parábola» apresenta os resultados que lhe são atribuídos sob certas condições, que excluem ipso facto situações em que se tornaria possível o tipo de mu danças de preços relativos que criam o fenómeno de «remudança». É de facto curioso descobrir que esta hipó tese implícita vem a ser precisamente aquilo que no sistema de Marx determina a igualdade entre «preços de produção» e «valores» e é suficiente para evitar qualquer divergência entre ambos: designadamente, «as iguais com posições de capital» entre indústrias, ou coeficientes uni formes entre meios de produção e trabalho directo, em todas as linhas de produção. Foi também demonstrado pelo Professor Garegnani, primeiro, que a curva que representa todas as relações possíveis entre a taxa de juro e os salários (máximos possíveis) de todas as técnicas pos síveis (a que Samuelson chamou «Fronteira de Preços de Factores») pode, na realidade, ser côncava ou convexa na origem, e, no caso de concavidade, nunca poderia ser uma função de produção do tipo aceite;** em se gundo lugar, que a função de produção de Samuelson só pode realmente existir quando todas as fronteiras indivi duais, cada qual relativa a uma técnica particular, forem linhas rectas,*** o que implica que a proporção entre bens de capital e trabalho seja a mesma nas indústrias princi-
* P. A. Samuelson, «Parable and Realism in Capital Theory; The Surrogate Production Function», Vol. XXXIX, N.° 3, Junho, 1962, pp. 193-206; reeditado em ed. J. E. Stiglitz (Cambridge, Mass., 1966), Vol. I, p. 325. ** Visto que indicaria que o produto marginal do capital com um aumento de capital por homem. ** * A convexidade da curva «envolvente» está implícita nesta condição mais restritiva aplicada às curvas individuais.
Reviewof Economic Studies, The Collected Papers of Paul A. Samuelson, cresceria 320
pais «de modo que os valores relativos» dos bens em ques tão «sejam constantes quando a divisão do produto entre salarios e juro se modificar». A sua conclusão é que «a função de produção substituta de Samuelson» não é senão aquela de cuja existência, neste tipo de economia, nenhum crítico jamais duvidou.»* ii
Aparte os seus corolários especiais, o que é parti cularmente impressionante (alguns diriam revolucionário) no sistema de Sraffa considerado no seu conjunto, é a rea bilitação do tratamento por Ricardo e Marx de proble mas do valor e da repartição partindo da produção; com o consequente resultado de que os preços relativos são independentes do modelo de consumo e de procura. Efectivamente, foi o facto de «ignorar a influência do conjunto de bens desejado pelos consumidores» e de «não ter em conta a composição da procura do consu midor» que impressionou Sir Roy Harrod na sua aprecriação do livro, e que ele considerou injustificado.** * P. Garegnani, «Heterogeneous Capital, the Production Function and the Theory of Distribution», The Review of Economic Studies, Vol. XXXVII, N.° 3, Julho, 1970, pp. 407 seg. Cf. também Joan Ro binson e K. A. Naqvi, «The Badly Behaved Production Function», Quarterly Journal of Economicsl Vol. L X X X I N.° 4; 1967, pp. 579 seg. O Professor G. C. Harcourt fez o seguinte comentário: « A tra dição neo-clássica, tal como a cristã, crê que se podem contar verda des profundas por meio 'de parábolas. As parábolas neo-clássicas pretendem esclarecer crentes e não crentes a respeito das forças que determinam a repartição do rendimento entre recebedores de lucros e recebedores de salários... e a escolha de técnicas 'de produção associadas a este processo.» Em seguida, referindo-se ao tipo de parábola de Samuelson, conclui: «Mesmo como parábolas, devem ser expurgadas 'da moral bíblica... ainda que sem dúvida continuem a ser contadas nos comentários e lições das escolas dominicais, durante muito tempo» (loc. cit., pp. 387-8; e cf. mais geralmente, para um resumo lúcido e comentário do debate, pp. 389-93). ** The Economic Journal, Dezembro, 1961, pp. 784, 785. Em Junho seguintet Sraffa publicou uma Nota no mesmo jornal para demons trar que a crítica se baseava numa incompreensão: não no sentido 21
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Já observámos que o facto de a procura não surgir como determinante era igualmente uma característica do modelo de von Neumann; e que esta característica do mo delo provocou uma perplexidade semelhante, quando apa receu pela primeira vez. A peculiaridade, neste último caso, era de modo geral atribuída, embora erradamente, ao facto de se tratar dum modelo de crescimento e de todos os outputs serem inputs, incluindo os bens-salários, que eram implicitamente tratados (como em Marx) como sim ples substituição do trabalho despendido no processo de produção (sendo os lucros inteiramente aplicados como novo investimento). Por conseguinte, não havia nenhum consumo capitalista nem nenhuma procura de luxo dis criminatória. Não tem sido raro os modelos matemá ticos, a partir de então, apresentarem, sem estas restri ções específicas, as mesmas características gerais de pre ços directamente derivados das condições de produção e não influenciados pelo modelo de consumo. Assim, um ano após a publicação de Production of Commodities by Means of Commodities, um economista americano apre sentou um sistema formal que conduzia à seguinte conclu são: «Temos de concluir que os coeficientes de preços são determinados pelas condições tecnológicas de produção; sobretudo, as considerações de «oferta e procura» que estão no centro da habitual teoria económica do preço parecem não ter qualquer papel importante... Acen tuamos uma vez mais... que, considerando o papel quase evanescente desempenhado pela preferência do consumidor na precedente análise,* estamos perante provas muito convincentes contra a teoria da utilidade marginal (ou, mais precisamente, contra o seu significado especial)»** de que a procura desempenhava de facto um papel no sistema de Sraffa, mas de que a alegação feita por Sir Roy estava errada, uma vez que uma alteração das quantidades produzidas afectaria os preços nos termos da própria teoria de Sraffa ( Eco- nomic Journal, Junho, 1962, pp. 477-9). * Isto é, da determinação de preço e lucro. ** Jacob T. Schwartz, Lectures on the Mathematical Method in Analytical Economics (Nova Iorque, 1961), pp. 26, 34. 322
Mais adiante, o mesmo autor resumiu «a conclusão indicada neste caso», na frase: «a taxa de lucro p não é deterinada com êxito pelas teorias waliasianas da consideração de coeficientes de produç&o, funções de utilidade e assim por diante. O que a nossa análise mostra, de facto, é que a determinação da taxa de lucro não é apenas uma questão económica, mas sim um problema sócio-político... Assim, justifica-se um cep ticismo inicial a respeito da análise clássica do equilíbrio .. A determinação walrasiana desta taxa é contestável.* Já em capítulos anteriores,** em relação com a defesa do sistema de Ricardo por Dmitriev, fizemos referência à sua demonstração de que os lucros, e portanto os preços relativos, podem ser imediatamente determinados lo£0 que são conhecidos o salário real e as condições de pro dução (despesas de mão-de-obra e as datas da sua realização). Também se mencionou que, embora as con dições de produção possam ser expressas em termos de trabalho datado (atribuindo portanto um esquema tempo ral à produção), podem igualmente ser expressas em ter mos de produção simultânea, através de um sistema de equações de inputoutput, sendo o trabalho um dos inputs (evitando desta forma qualquer problema de infinito retrocesso). Eis o que essencialmente se pode dizer sobre o método adoptado por Sraffa. Se na equação de Dmitriev*** subs tituirmos os termos de trabalho (os N ) pelas quantidades do bem-salário (A ) necessárias durante a produção de cada bem, teremos seguramente o núcleo do sistema de Sraffa. As equações de preços, no Capítulo II de Production of Commoãities by Means of Commoãities, fornecem uma série de produtos que também são inputs, * Ibid., pp. 196-7. Cf. também o método e resultados análogos do Dr. R. M. Goodwin, Elementary Economics from the Higher Standpoint (Cambridge, 1970) (e esp. o capítulo adicional aditado às edigões francesa e italiana dessa obra). ** Capítulos 4 e 7. *** Acima, página 150.
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alguns dos quais sob a forma de meios de subsistência para trabalhadores; sendo a equação de preço de cada produto constituída pela soma das diversas quantidades de input multiplicadas pelos seus diversos preços, adicionando o produto da taxa de lucro por essa soma. Por conseguinte, estas equações têm a seguinte forma:* (A p a
(A p
+ B p a
(A p Tc
a
+ B p
+ ... b
+ Bp a
Jc b
K p ) (1 + r) = Ap a
Jc
a
+ ...
K p ) (1 + r) = Bp
+ ...
K p ) (1 + r) = Kp 1c
1c
fe
Há Jc equações para os k produtos, todos eles apare cendo como inputs nuns ou noutros produtos ou como outputs ; e as k equações independentes bastam para determinar as k1 relações de preços e a taxa de lucro. O autor considera «básicos» estes produtos; e acentua que somente as condições de produção de «básicos» desem penham um papel na determinação dos preços e da taxa de lucro. Se houver produtos que não desempenhem um papel produtivo como inputs (designados «não básicos» ou «de luxo»), «estes produtos não participam na determinação do sistema. O seu papel é puramente passivo. Se uma nova fórmula reduzisse para metade a quanti dade dos meios de produção necessários para produzir uma unidade de um bem de luxo deste tipo, o preço do próprio bem seria alterado para metade, mas não haveria outras consequências; as relações de preço dos outros produtos e a taxa de lucro manter-se-iam sem alteração.»** Num capítulo ulterior, explica-se que cada uma das equações de preço de que temos falado pode ser subs tituída por uma série de termos de trabalho, cada qual com a sua data apropriada. Isto é designado por «Redução * Sraffa, Production of Commodities by Means of Commodities, p. 6. ** Ibid., pp. 718.
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a quantidades de trabalho datadas»; e as suas formulações são expressões essencialmente equivalentes à mesma situação de produção, vista de diferentes ângulos ou em diferentes perspectivas, conforme o caso. A equação de redução para cada bem é então constituída por uma série de termos de trabalho, cada qual multiplicado pelo salário, adicionando-se a este a taxa de lucro do período que decorrer entre a data do input de trabalho em questão e o aparecimento do produto final. A equação de preço, para o produto A, teria então esta forma:
L w + L a
w{ l
a 1
+ r) + ... L a n
w(l
+ r ) n + ... = Ap . a
Isto significa que há dois modos principais de deri vação dos preços a partir das condições de produção: dois modos que, conforme dissemos, são essencialmente equivalentes. Em primeiro lugar, os preços podem ser derivados descrevendo a produção em termos de des pesas de mão-de-obra por unidade de output, com um período de tempo associado a estas despesas. * Segundo, podem ser derivados descrevendo a situação em termos de bensinputs totais por unidade de out- put; caso em que tanto a taxa de lucro como os preços são determinados simultaneamente como resultantes. No primeiro caso, o nível de salários reais deve ser explicitamente postulado em termos de custo de mão-de-obra ou de produto, e no segundo caso este deve ser incluído como um dos bensinputs. Acrescente mos que, com capital fixo duradouro no modelo, a pri meira alternativa não pode ser seguida sem a postu lação ex catheára dum princípio de depreciação, visto que os outputs de diferentes períodos de tempo, ou datas,
* Este último torna-se evidentemente necessário, visto que a taxa de lucro entra na determinação do preço. 325
são produtos conjuntos do equipamento duradouro em questão.* O facto de o nível de salários dever ser postulado independentemente, como um dado neste modo de determi nação do preço («considerado como constituído por neces sidades específicas determinadas por condições fisioló gicas ou sociais independentes dos preços ou taxa de lucros»),** significa que estamos de novo na metodologia e no ponto de vista do sistema (verdadeiramente) clás sico. Não se faz qualquer tentativa de dedução de uma teoria da repartição a partir do interior do círculo de trocas; e no abandono desta tentativa verificamos uma inversão da ordem ou esquema de determinação pré-jevoniana: os preços derivam (ou dependem em parte) das condições de repartição, em vez de esta derivar da estru tura de preços, tratada, por sua vez, como resultante da procura. Ê certo que ao utilizar um sistema de equa ções, se trabalha com um caso de mútua determina ção; mas isto, conforme vimos, não nega nem exclui indicadores de direcção para a determinação em qualquer teoria substancial; e o que aqui importa é que, entre as con dições dadas do problema, ou dados postulados, um dado social é introduzido do exterior (ou, como alguns podem preferir que se diga, debaixo) do processo de mercado.*** Assim, os limites da economia como matéria são ipso facto traçados de forma diferente e mais ampla: de modo a incluir condições sociais, institucionais e historicamente
* E por esta razão — por necessitar, no caso de capital fixo, de deduzir um princípio de depreciação consequente, para que o sistema de determinação seja completo — que Sraffa adopta o primeiro dos dois modos de derivação de preços. Sem capital fixo (isto é, no caso puro de «capital circulante») os dois métodos podem ser seguidos indiferentemente e utilizados como alternativas. ** Ibid., p. 33. ** * ibid.: «A taxa de lucro, como coeficiente, tem um significado independente de quaisquer preços, e pode ser «dada» antes dos preços serem fixados. Ê consequentemente susceptível de deter minação a partir do exterior do sistema de produção...» 326
relativas, em permanente modificação e modificáveis, que eram excluídas da economia de tradição pós-jevoniana. As implicações ideológicas dessa diferença, que já comentá mos num capítulo anterior, são, evidentemente, amplas e muito importantes. É a esta luz, parece-me, que devemos considerar um aspecto do sistema de Sraffa — ou talvez devessemos dizer, o seu modo de expor o sistema — que a alguns lei tores pode parecer intrigante. Inicialmente, o trabalho é tratado em pé de igualdade com os inputs materiais, avaliado enquanto input por um salário de subsistência, «no mesmo pé que o combustível para os motores ou as ra ções para o gado». Nesse caso, o excedente tem o mesmo significado que a mais-valia de Marx ou o rendimento lí quido de Ricardo. Em seguida, para permitir que os salá rios «possam incluir uma parte do produto excedente», o autor adopta o expediente de «tratar todo o salário como variável», excluindo-o de entre os inputs e considerando os bens-salários, consequentemente, não como «básicos» mas sim como «não básicos». O rendimento líquido está então em conformidade com a definição convencional de rendi mento nacional, que compreende salários e lucros. No en tanto, o salário continua a ser indicado explicitamente nas equações de determinação de preço, sendo nelas introduzido juntamente com as quantidades de trabalho utilizadas nas diversas indústrias (em vez de aparecer como input de subsistência necessário). Na realidade, esta alteração é introduzida por razões de conveniência formal, porque facilita a definição de lucro máximo no âmbito do Bem Padrão e demonstra o efeito duma mudança do coeficiente salário-lucro nos preços relativos; e, em princípio, esta modificação não tem outras implicações. (Como o próprio autor afirma, uma «interpretação mais adequada, embora não convencional, do salário», pode facilmente ser encon trada à custa de um circunlóquio adicional.) Mas isto pode ser visto como um artifício para manipular situações em que a contratação colectiva alcançara uma importância sig nificativa no mercado do trabalho e os sindicatos tinham conseguido influenciar a mais-valia no interesse de salários mais elevados. Se tivermos de encontrar uma analogia mar327
xista, poderá ser esta: o conceito marxista do valor da força de trabalho podia ser considerado no contexto do capita lismo «puro», com a força de trabalho vendida em situação de concorrência por lance individual. A contratação colec tiva, logo que se desenvolveu, introduziu um elemento novo na situação; e, consequentemente, o preço da força de tra balho já não corresponde necessariamente ao seu valor, mas pode aumentar à custa da mais-valia. Para fins teóri cos, tem de adoptar-se agora como dado o grau e a influên cia no mercado da organização do trabalho, visto que esta determina que parte daquilo que no caso «puro» era a mais-valia está agora incluída no salário.* Um conceito destinado a resolver o problema que, conforme vimos, foi fundamental (e insolúvel) para Ri cardo, ocupa no sistema de Sraffa um lugar central: o de um «padrão invariável», ou medida de valor, que se mantenha invariável perante modificações no coefi ciente lucro-salários. Ricardo procurou-o no Trabalho como o seu Valor Absoluto; mas descobriu que era difícil utilizar esta simplificação, na medida em que as propor ções de capital (a «composição orgânica do capital» de Marx) eram diferentes para cada indústria. A importante contribuição de Sraffa foi ter resolvido este problema graças ao chamado «Bem padrão»:** escolhendo (hipo teticamente) um bem, ou conjunto de bens, com as pro priedades necessárias, de modo que se este fosse esco lhido como moeda, ou numéraire, as avaliações realizadas nesses termos seriam invariantes para as alterações de re partição em dois aspectos fundamentais. Primeiro, se os salários forem definidos em termog desse padrão, existirá uma relação linear entre as alterações de salários e as alte rações de lucro resultantes (e em sentido oposto). É isto que de facto sucede, quer o lucro seja expresso em termos
* Ver adiante No ta à Secção I I do Capítulo 9. ** Pode observar-se que isto é descrito como «uma construção pura mente auxiliar». «Portanto, deveria ser possível apresentar os elementos essenciais ‘do mecanismo estudado, sem ter de recorrer a este mecanismo.» (ibid p. 31.) 328
do sistema padrão ou, pelo contrário, em termos do sis tema real. Em segundo lugar, «a razão entre o produto líquido e os meios de produção manter-se-á a mesma, quaisquer que sejam as variações verificadas na repar tição do produto líquido entre salários e lucro.»* Numa linguagem corrente e popular, esta medida padrão é constituída por um bem produzido em certas condições médias de produção. Mas que condições médias ? Numa análise mais minuciosa, apercebemo-nos de que a definição de tais condições é menos simples do que pode parecer à primeira vista, em virtude de razões conhecidas dos práticos da análise do inputoutput. Se quiséssemos um bem individual real, as características requeridas seriam as que se seguem: A chave para a alteração dos preços relativos em consequência duma alteração d e salários, está na d e s i gualdade de proporções em que o trabalho e os meios de produção são empregados nas diferentes indústrias. É evidente que se as proporções fossem as mesmas em todas as indústrias, não poderiam dar-se alterações de preços, por maior que fosse a diversidade da composição em bens dos meios de produção nas diferentes indústrias. Porque em cada indústria, o mesmo montante deduzido dos salários renderia exactamente o necessário para pagar os lucros sobre os seus meios de produção, a uma taxa uniforme, sem necessidade de alterar os preços existentes.** O que deve consequentemente ser procurado é uma «proporção rigorosa» entre trabalho e meios de produ ção, de modo que, se fosse possível encontrar um bem produzido dentro desta proporção, o seu preço seria inva riante perante uma alteração de salários, visto que qual quer alteração dog mesmos corresponderia exactamente à importância que seria necessário adicionar ou subtrair * **
I bi d ., Ib i d .,
p. 21. pp. 1213. 329
7
ao lucro para se obter a nova e uniforme taxa de lucro. Esta «proporção rigorosa», deve notar-se, teria de ser aplicada a cada «camada» na cadeia vertical de produção: à produção dos próprios meios de produção e à dos meios utilizados por sua vez para produzir os primeiros, e assim por diante. A definição desta proporção fundamental é então reduzida a dois «coeficientes ‘puros’ alternativos entre quantidades homogéneas... designadamente o coeficiente entre a quantidade de trabalho directo e indirecto empre gue, e o coeficiente entre o valor de produto líquido e os meios de produção». Um «bem compósito» padrão é então definido como um protótipo escolhido entre os existentes, de forma que «os diversos bens estejam representados entre os seus meios de produção, nas mesmas proporções em que o estão entre os seus produtos»; ou então, um conjunto de bens ordenado «em tais proporções que a composição em bens do conjunto dos meios de produção e a do produto correspondente sejam idênticas».* Reflec tindo sobre isto, reconheceremos que a proporção entre o produto líquido, ou excedente, e os meios de produção, ou inputs, deste sistema, tem um significado único, sus ceptível de expressão em termos de produto, tanto quanto no caso do produto único, o Cereal, de Ricardo, simul taneamente como input e output. A relação com o «Valor Absoluto» de Ricardo** é apresentada de forma muitíssimo engenhosa, tomando uma quantidade de trabalho como padrão alternativo mas equivalente. «Uma medida mais tangível para os pre ços dos bens... é ‘a quantidade de trabalho que pode ser adquirida pelo produto líquido padrão’.» Esta quantidade é dada «ao fixarmos a taxa de lucros, e, sem neces sidade de conhecermos os preços dos bens, estabelece-se uma paridade entre o produto líquido padrão e a quan tidade de trabalho que depende apenas da taxa de lucros; * Ibid., pp. 16-17, 26. ** Mas também, e curiosamente, com a medida de Malthus, «trabalho ao dispor». 330
e os preços dos bens resultantes, são indiferentemente considerados como expressos quer no produto líquido pa drão, quer na quantidade de trabalho que no nível dado da taxa de lucros sabemos ser-lhe equivalente». Quando os salários se modificam, e com eles (inversamente) os lucros, esta quantidade de trabalho-padrão também muda no mesmo sentido. A conclusão é que «todas as propriedades dum ‘padrão de valor invariável’... se encon tram numa quantidade de trabalho variável, a qual, no entanto, varia segundo uma regra simples, independente dos preços». Esta quantidade de trabalho que funciona como uma unidade de medida «aumenta de grandeza quando o salário diminui, isto é, quando a taxa de lucro aumenta, de maneira que, em virtude de ser igual ao trabalho anual do sistema quando a taxa de lucro é zero, aumenta sem limite à medida que a taxa de lucro se aproxima do seu valor máximo».* Assim, aquilo que era considerado um problema fun damental de política económica no tempo de Ricardo, foi resolvido século e meio mais tarde. Sem uma solução, não seria possível distinguir, no caso de «qualquer flutuação de preço em particular, se esta provém das peculiaridades do bem que está a ser medido, ou das do padrão de medida».** Mas há uma reflexão suscitada por esta notável realização, que a muitos pode parecer de interesse mais geral do que os pormenores da própria solução. É o facto de este problema ter sido du rante tanto tempo inteiramente incompreendido, ao ponto de se negar a sua existência como problema real, e a causa desta incompreensão e menosprezo. A causa * Ibid., p. 32. A quantidade de trabalho em questão va ria como a equação 1 w
R’ R’ — r
em que R’ é a máxima taxa de lucro possível (quando o salário é zero) e r é a taxa real. **
Ibid., p. 18. 331
era evidentemente a mesma que a da cegueira perante a possibilidade de «remudança» de métodos produtivos: a incapacidade dos economistas pós-ricardianos para apreciar a dependência da estrutura de preços em relação à repartição, e a sua preocupação (pelo menos a partir de Jevons e dos Austríacos) com a dependência -in vertida da repartição relativamente a uma estru tura de preços determinada pela procura. Parece estar mos perante mais um exemplo (se for necessário) dos desvios de pensamento provocados pelas estruturas con ceptuais, quer herdadas quer adquiridas — uma estru tura ou «imagem» que, como sugerimos no começo deste livro, poderia estar imbuída de ideologia, ou até ser por ela instigada e inspirada. Ainda é cedo para termos alguma certeza sobre o que virá na sequência de tudo isto; manter silêncio é preferível a cair na tentação de especular sem base em fundamentos seguros. Mas seja qual for a maneira como decorrer a futura análise e discussão, certamente que só pode trazer um esclarecimento da crítica animada da última década, quer esteja destinado a ser principalmente negação e derrota, quer mediação e transcendência para nova síntese. De qualquer modo, pode dizer-se que a discussão da década de 1960 foi sem qualquer dúvida um ponto de viragem. Quanto mais não seja porque aquilo que tinha sido amplamente aceite como uma ortodoxia dos manuais de estudo foi profundamente abalado, e porque se fez reviver uma tradição mais antiga e posta de parte, nada poderá voltar a ser como antes. NO TA AO § n DO CAPITULO NOVE Para concluir, talvez devamos fazer referência (virtual mente, como nota de fim de página àquilo que foi dito) a uma reflexão que pode ter surgido da leitura da secção anterior. Alguns julgarão suficiente que apenas se diga que um postulado referente ao nível de salários reais (ou alternativamente, a proporção entre excedente e salários) é introduzido «do exterior», como dado sociológico (depen dente, por exemplo, do estado das relações de classe 332
em determinado tempo e lugar). Outros, no entanto, podem sentir-se insatisfeitos com isto, ao ponto de con siderarem o caso como petição de princípio, e sentirem a necessidade de «fechar o modelo» introduzindo uma explicação mais explícita das forças que determinam a repartição do produto total entre lucro (ou rendimento de propriedade) e salários. Embora numa fase anterior do capitalismo possa ter sido legítimo aceitar que os salários fossem determinados em situação de concorrência por algo de semelhante ao «valor da força de trabalho» de Marx, e que o excedente fosse consequentemente tratado como um resíduo, não será que essa abordagem da ques tão (que sem dúvida teve o mérito de incluir a força de trabalho, e portanto, os salários, no círculo das relações de valor) perde a sua relevância logo que o capitalismo se desenvolve para além da sua primeira fase de concor rência? Não será que perde relevância e plausibi lidade numa fase de capitalismo monopolista, com empre sas monopolistas (ou oligopolistas) com força para transferir uma subida de salários para os preços, e pôr em vigor algo como uma margem de lucro ou coeficiente de excedente mínimo? Alguns poderão tender para sustentar que, nessas circunstâncias, os salários reais, e não os lucros, são determinados como resíduo. Uma acusação deste género parece ter inspirado a recente afirmação do Dr. Nuti a respeito da «relação entre a taxa de salário real e a taxa de lucro descoberta por Sraffa e antes dele pelo economista russo Dmitriev». Isto, observa ele, «proporciona uma base para o conceito de luta de classes na determinação das partes relativas». Mas acrescenta: «infelizmente, no entanto, não existe uma maneira simples de fechar o seu sistema, quer dizer, de determinar até que ponto a relação salário-lucro é real mente definido e como o é em qualquer sistema econó mico» ; e isto por duas razões. Em primeiro lugar, porque «a taxa de salário real não pode ser considerada como determinada exogenamente, tal como no pensamento clás sico, fixada a um nível de subsistência em condi ções de oferta de trabalho elástica». Em segundo lugar, «não pode ser directamente determinada pela 333
luta de classes... porque, depois de Keynes, somos forçados a reconhecer que a contratação de salá rios determina os salários monetários, enquanto a taxa de salário real é determinada pelo comportamento do nível de preços».* Esta última objecção é convincente, e, jun tamente com a primeira, pode induzir-nos a pensar que o capitalismo moderno, com o seu elevado grau de concen tração e monopólio, exige que, ao explicar-se a repartição, se tenha em conta factores que estabeleçam um lucro mínimo, em vez de, como anteriormente, estabelecerem um mínimo para os salários. De outro modo (pode perguntar-se), não se colocarão os críticos da teoria ortodoxa da repartição, numa posição tão vulnerável como a daqueles que criticam e procuram derrubar? Vimos que KalecM apresentou uma explicação da repartição precisamente deste tipo, e tendo, evidentemente, a situação do capitalismo moderno em mente. Segundo ele, a parte dos lucros no output (bruto), era determinada pelo grau de monopólio, que conferia à empresa ou entre- preneur o poder necessário para aumentar o custo primário por meio de um aumento de preço.** Seja qual for o nível dos salários monetários, a proporção entre os preços e estes salários (e portanto o salário real e a margem de lucro) dependerão do poder das empresas para faze rem subir os preços — algo que varia na razão inversa da quantidade de concorrência efectiva. Parece que o capitalismo, através de meios como estes, adquiriu * D. M. Nuti, «Vu lga r Economy in the Theory of Income Distribution», Science and Society (Nova Iorque), Vol. XXXV, N.° 1, Primavera de 1971, p. 32 (trata-se duma comunicação apresentada à primeira Conferência de Economistas Socialistas em Londres, em Janeiro de 1970). ** Se pudermos imaginar todas as empresas integradas vertical mente, de forma a incluir a produção de todos os factores não-trabalho, isto equivalerá a um aumento do custo de salários. Na medida em que as empresas também têm um grau de monopólio no mercado de trabalho^ como compradores, estão em condições de exercer uma pressão de cima para baixo sobre salários monetá rios: nesta medida, o aumento não é completamente explicável pela subida de preço. 334
o poder de negar a crescente influência do sindicalismo sobre os salários monetários, e a capacidade para tolerar condições em que o exército industrial de reserva já não pode desempenhar o seu papel «estabilizador» inicial. Há algumas dificuldades formais no seio desta teoria, relativas à medida em que o grau de monopólio tem de ser apropriadamente definido. O próprio Kalecki interpretou isto em termos da inelasticidade da curva de procura (e portanto a proporção entre procura-preço médios e receita marginal e custo marginal e médio). Mas como se processará a transferência do nível dum certo pro duto em especial, para o nível macroscópico da economia em geral; e que conteúdo real terá a noção, se essa transfe rência puder realizar-se satisfatoriamente?* Uma dificul dade mais concreta é o facto de que, por implicação, o au mento seria igual a zero, em condições de concorrência perfeita. Se a mais-valia for unicamente criação do mono pólio, a sua existência parece ser contestável, nas condi ções de concorrência «normais» consideradas pelos econo mistas clássicos e por Marx. Esta objecção seria pouco importante se a teoria fosse declaradamente consagrada ao capitalismo monopolista em si mesmo; poderia admi tir-se uma explicação alternativa da mais-valia adequada a uma fase anterior e de concorrência do sistema, em condições de uma reserva de mão-de-obra e de oferta de trabalho elástica.** * Kalecki sugeriu que isto poderia ser feito de um modo simples, calculando uma média das margens brutas estabelecidas nas diver sas indústrias (pela inelasticidade das suas diversas curvas de pro cura e pelo seu estado de oligopólio), «utilizando como medida os valores de vendas respectivos» (Studies in Economic Dynamics (Londres, 1943), p. 11). Neste ponto, a 'dificuldade consiste em que, ao introduzir-se o elemento oligopólio, se tem de trabalhar com aquilo a que se chamou uma «curva de procura imaginada». ** A resposta do Prof. Kalecki a este tipo de objecção, foi que «a concorrência perfeita» constitui «uma hipótese muitíssimo irrea lista, não somente para a presente fase do capitalismo, mas até para a chamada economia capitalista de concorrência dos séculos passados: sem dúvida que esta concorrência era sempre muito imperfeita. A concorrência perfeita, quando se esquece o seu ver 335
Alternativamente, e com uma intenção um pouco dife rente, pode dizer-se que, embora a explicação marxista clássica para o aparecimento da mais-valia continue a ser aplicável tanto ao capitalismo moderno como à sua fase anterior, a influência do monopólio intervém como ele mento extra na fase de capitalismo monopolista — uma influência que lembra formas de exploração características de estádios de desenvolvimento pré-capitalista. Uma dificuldade análoga aplica-se à teoria pós-keynesiana, segundo a qual a parte do lucro no rendi mento nacional depende da taxa de crescimento da eco nomia, juntamente com a tendência dos capitalistas para a poupança (ou, alternativamente, o consumo). Pa rece poder deduzir-se daqui que em condições estáticas, com acumulação de capital nula (a «reprodução simples» de Marx) os lucros poderiam ser nulos. No entanto, isto só poderia suceder se os capitalistas se recusassem persis tentemente não só a investir, mas ainda a gastar os seus rendimentos (potenciais): a mais-valia deixaria então de se formar, simplesmente porque não poderia ser «rea lizada», ainda que existissem condições favoráveis à sua «criação». Contra isto como teoria de repartição do rendi mento, o Dr. Nuti objectou convincentemente que a relação postulada «é uma relação necessária que deve sempre exis tir para o equilíbrio macro-económico entre grandezas ex post. Neste sentido não pode ser considerada falsa, e, por tanto, não constitui fundamento para uma teoria da deter minação das partes da taxa de lucro e rendimento, especial mente a curto prazo».* De qualquer forma, a teoria, quando dadeiro estatuto de modelo utilizável, torna-se um mito perigoso» (Selected Essays on the Dynamics of the Capitalist Economy ( Cambridge, 1971), p. 158). * Nuti, Science and Society, p. 33. A versão da teoria do Professor Kaldor publicada em «Alter native Theories of Distribution» ( Review of Economic Stcdies, 1955-56, N.° 2), está isenta, no entanto, desta crítica, visto que contém um mecanismo (nomeadamente, adaptações apropriadas do nível de preços) por meio do qual se consegue realizar o ajustamento do lucro. Mas isto implica que os assalariados sejam passivos perante uma alteração do nível de preços e que os planos de investimento também não sejam afectados. 336
interpretada como uma relação necessária ex post, ¿em pouca relação com grandezas ex ante, às quais é de pre sumir que se faça referência quando se fala de «tendên cias» como determinantes.* Uma outra hipótese plausível é que uma taxa mínima de lucro seja de algum modo estabelecida por certo tipo de mecanismo de decisão quase-político ou institucional. Isto é uma interpretação plausível, talvez, de uma su gestão dada por Sraffa, quando propõe que no sis tema a taxa de lucro poderia ser postulada como variável independente, em vez do salário real: a pri meira «pode ser determinada do exterior do sistema de pro dução, principalmente através do nível das taxas monetá rias de juro».** Estas seriam provavelmente fixadas, em termos gerais, pelo Banco Central, quer actuando por sua própria iniciativa quer como um instrumento da política monetária governamental. Se estivermos inclinados para ver a política do Estado como um instrumento ou reflexo dum interesse de classe, ou de grupos de pressão poderosos no interior da classe dominante, teremos tendência para considerar a política monetária uma forma de manter (mais ou menos conscientemente),*** em benefício dos deten tores de capital no seu conjunto, a parte de lucro nas receitas da produção que as circunstâncias existentes permitirem. Ê certo que de vez em quando as taxas de juro podem descer, na prossecução duma «política monetária barata», como em tempo de guerra ou de depressão económica, ou sob a influência de relações económicas
* Em primeiro lug ar uma «tendên cia para consumir», quando inerente para uma classe, implica um certo rendimento e a sua repartição; e estes podem modificar-se entre a situação inicial (com as expectativas que motivam as tendências) e o resultado final (quer dizer, ex post).
** Sraffa, Production of Commodities by Means of Commodities,
p. 33. * **
Em certa medida, talvez «consc ient em en te e sob a influência
do que se tornou tradicional. 22
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internacionais.* (Em ocasiões de excesso de capacidade, por exemplo, pode ser de interesse colectivo para os beneficiários dos lucros descer as taxas de juro e lucro, se por este meio puder ser aumentada a despesa em inves timento e portanto a capacidade produtiva.) Mas o próprio facto de a ideia duma taxa a longo prazo «normal» ter resistido com tanta persistência, mesmo aparentemente, em períodos conturbados, vem apoiar a convicção de que a finalidade convencional da política bancária é estabelecer um mínimo substancial para a parte do lucro.** Finalmente, antes de deixarmos estas questões, resta-nos mencionar uma dificuldade que alguns sen tem em postularem os salários reais como variável independente, se isto for feito (como em Marx) em termos de valor (isto é, de trabalho) ou em termos do Bem Padrão de Sraffa. No primeiro caso, objecta-se que os bens-salário não são de facto comprados pelos trabalhadores pelos respectivos valores, mas sim pelos seus preços de pro dução;*** no último caso, objecta-se que o consumo real dos trabalhadores talvez não seja relativo ao Bem Padrão, mas sim a um conjunto de bens completamente diferente. Em qualquer dos casos, o postulado perde conteúdo essencial. Esta dificuldade, no entanto, torna-se mais aparente que real, desde que se esteja dispos to a aceitar a noção dum dado padrão de vida cons tituído por um conjunto de diversos bens-salário, con siderados equivalentes por cada família de trabalhadores típica, e a interpretar «um dado nível de salários reais» neste sentido. Neste caso, uma definição em termos dum membro dum conjunto equivalente (quer em termos de trabalho necessário para produzi-lo quer de Bem * Por exemplo, uma excessiva acumulação de reservas de ouro ou divisas estrangeiras. ** Como sucede também com a aparente constância da parte do lucro no rendimento total, que Kalecki expressamente acentcou ao expor a sua teoria do monopólio, *** Cf. Arghiri Emmanuel, Unequal Exchange, trad. do francês por Brian Pearce (Londres, 1972), Ap. V, esp. pp. 397, 407.
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Padrão) manterá o seu significado quando traduzida para outro membro do mesmo conjunto de equivalentes. Apenas podemos concluir, no momento em que escre vemos, que essas explicações alternativas da repartição no nosso mundo do século vinte estão sub juãice na discussão económica corrente, e que esta (ou mesmo a sua elaboração) ainda não atingiu, até aqui, um ponto que permita um juízo final, e ainda menos falar dum consenso. Pode isto não ser satisfatório como nota final; no entanto, parece-nos inevitável. Pelo menos, pode ser uma indicação de que a economia política não é um texto acabado e continua aberta à moldagem cria dora da controvérsia, com a qual tanto se enriqueceu no passado. Na verdade, talvez isto seja mais verdadeiro hoje que há meio século, quando Keynes escreveu sobre «os princípios gerais de pensamento, que os economistas ac tualmente aplicam a problemas económicos», como se se tratasse de um corpus de teoria aceite.*
* No seu Prefácio de Editor às primeiras obras da «Cambridge Economic Handbook Series» — embora tivesse acrescentado que «mesmo a respeito de questões de princípio, ainda não há completa unanimidade de opinião».
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