Resenha do livro: O Trato dos Viventes. A Formação do Brasil no Atlântico Sul, de Luiz Felipe de Alencastro, São Paulo, Companhia das Letras, 2000, 525 páginas. Resenha elaborada por João Marcelo Larrubia
Mais do que escrever um livro sobre a história do período colonial vivido pelo Brasil, Luiz Felipe de Alencastro mostra a importância de não analisá-lo como uma época reclusa ou apenas ligando-o às rédeas metropolitanas: é preciso enxergar além. É preciso enxergar um mundo ultramarino no qual a América portuguesa se incluía. A formação do Brasil e o sentido da colonização, vertentes delicadas dos estudos históricos brasileiros e, às vezes, evitada pelos historiadores, são lidadas pelo autor, atual professor titular da cátedra de História do Brasil da Universidade de Paris-Sorbonne e organizador do volume 2, Império – A A corte e a modernidade nacional, de 1997, da História da vida privada no Brasil, que procura mostrar como o “Brasil se formou fora do Brasil”.
De início, o autor aponta como formou-se a colonização: ela não era um processo já pronto, mas sim um resultado de aprendizado dos colonos. Em seguida, mudando de margem atlântica, a análise vai à África, focando nas rotas comerciais das caravanas, e como elas foram vencidas pelas caravelas, a partir de análises materialistas e de ideologias cristãs. A "transmigração" negreira do atlântico-sul novamente endossa o coro da impossibilidade de separação das costas atlânticas. Este "miolo negreiro" tinha como centro a capital lusa e Alencastro parte a mostrar como se articulava essa Lisboa com o tráfico de escravos, passando por banqueiros, asientistas e perseguições a cristãos-novos, e apresenta mais uma face ao processo, quando cogita o "comércio triangular trian gular negreiro". A sociedade escravista brasileira não se ocupava somente do trato negreiro. Para não negligenciar esse aspecto importante, o autor apresenta a escravidão indígena na América portuguesa. O interesse na preservação das sociedades indígenas passava por vários aspectos, desde um aliado em potencial aos assédios estrangeiros ao novo mundo, potencializados pela fraca presença militar, até a opção ideológica de evangelização. Em seguida, a evangelização negra é tratada por Luiz Felipe de Alencastro, que traz à tona a teoria fundamentadora de Padre Antônio Vieira: só os negros cristãos conheceriam o resgate eterno do Paraíso. Os outros, vivendo no paganismo na África, estavam condenados ao Inferno¹. As invasões holandesas e seus conflitos, que dominam a próxima parte da análise, são um ponto alto na análise de Alencastro: a presença presenç a holandesa no nordeste nord este da América Portuguesa Portugues a e em Angola, acionou os colonos de modo que ficou provado que sem um lado não existia o outro. Protagonizado pelos fluminenses – surgindo a figura do paulista como "anti-metropolitano" e "anti-jesuíta", um quase vilão na construção deste mundo Atlântico – , o movimento brasílico inicia a retomada de Angola assim como a expulsão holandesa do nordeste. Fechando o desenvolvimento, o último capítulo tem como foco a "Angola Brasílica", fruto do universo do
Atlântico-Sul, e a maneira com que foram impostos os interesses luso-brasílicos na África. Ao finalizar, a pergunta é retomada: o que Luiz Felipe de Alencastro quer dizer com a “Formação do Brasil no Atlântico Sul”? Talvez queria compartilhar da idéia de Charles R. Boxer², que alega a existência de um imperium português. Talvez queira também mostrar que é
preciso abrir os olhos para entender o Brasil como parte integrante de um processo e não como uma vítima da vontade lusitana. É claro que a metrópole teve a chance de exercer seu papel, e assim o fez, mas, assim como Portugal, Angola e Brasil também foram agentes históricos. E de tal maneira, formou-se um mundo entre essas partes. Simbiose, desenvolvimento mútuo que, inegavelmente, foi possível pela mentalidade lusa de governo e todos os entremeios sucedidos nos três séculos de colonização. Desta maneira, fica ainda mais inteligível o processo de formação do Brasil como "de um império a outro", conforme as idéias da Wilma Peres Costa³. Por tudo isso, a obra de Luis Filipe de Alencastro é indispensável para, além do entendimento da formação brasileira, perceber e entender as relações humanas no tempo e espaço, de forma conjunta, o que é o cerne da análise historiográfica atual.
___________________ ¹ ALENCASTRO, Luiz Felipe de; O Trato dos Viventes. Formação do Brasil no Atlântico Sul. São Paulo: Companhia das Letras. 2000. Pág. 183. ² BOXER, Charles R.; O Império Marítimo Português . São Paulo: trad. port., Edições 70. 2001. ³ COSTA, Wilma Peres (org); De um Império a outro: Formação do Brasil, séculos XVIII e XIX . São Paulo: Hucitec. 2007.