Reflexões modernas sobre o amor
José Ortega y Gasset Publicado originalmente em Neue Zurcher Zeitung, Zuri ch, 17/10/1935.
Publicação em português: Revista “Inteligência – Mensário da opinião mundial” , São Paulo, Ano I, nº 12, dez. 1935.
Durante os dois últimos séculos, falou-se muito de amores e muito pouco de amor. Todos os
períodos da história a começar pelo clássico grego possuíram uma ou outra grande teoria emocional. Somente os dois séculos passados deixaram de tê-la. As velhas teorias emocionais não são já suficientes. A ideia do amor, segundo Thomaz de Aquino, decalcada dos gregos, é obviamente falsa. Para ele, o amor e o ódio são duas formas do desejo, do apetite. O amor é o desejo de alguma coisa boa por ser e enquanto é boa. O ódio é uma resistência, uma atitude de repulsa para o que é mal assim suposto. Esta confusão entre o desejo e o apetite, por um lado, e a emoção, pelo outro, embaraçam toda a psicologia do passado, até o século dezoito. O desejo de um objeto é, afinal, o desejo de possuí-lo, e a posse significa, de uma maneira ou outra, que o objeto entra no circulo de nossa vida e se torna assim parte de nós mesmos. D'aí, morrer o desejo por si próprio, uma vez satisfeito. Ele desaparece com a própria satisfação. O amor, por outro lado, é uma insatisfação eterna. O desejo possui um caráter passivo, e neste sentido, quando eu desejo uma coisa, quero que ela venha a mim. Torno-me um centro de gravidade e espero que as coisas caiam na minha direção. O amor, por outro lado ainda, é essencialmente atividade. Aquele que ama sai de si mesmo para o objeto amado e vive nele. O amor é, talvez, a mais sublime tentativa que a natureza faz para se elevar acima do individual e de si mesma para atingir a outrem.
Quando tenho um desejo, experimento atrair o objeto a mim. Quando amo sou atraído por ele. Tentemos definir para nós mesmos o ato de amar, examinando-o como o entomologista examina o inseto, que segura na ponta de um alfinete. No seu primeiro estágio, o amor assemelha-se ao desejo, porque é provocado por determinada pessoa ou coisa externa a nós mesmos. A alma perturba-se e sente-se docemente ferida por um dardo que vem do próprio objeto. Tal estímulo tem uma direção centrípeta: vem do objeto até nós. Mas o ato de amar não principia senão depois que essa experiência, ou esse estímulo começam a operar. Da ferida aberta pelo dardo provocante do objeto flui o amor, que se torna ativo em relação ao objeto. A direção que ele segue esta em oposição direta àquela em que se move o estímulo ou o desejo. Vai do amante para o amado, de mim para outrem, em direção centrífuga. Esta característica da gente sentir-se em espiritual movimento em relação ao objeto amado, este incessante impulso interior de cada um para com os outros é fundamental no amor e no ódio. Como eu distingo entre setas duas emoções, vê-lo-emos já, mas o ponto essencial não é que sejamos materialmente movidos para o objeto amado, que procuremos a sua proximidade corpórea ou a sua presença física, que procuremos, enfim, achar-nos perto e junto dele fisicamente. Todos estes atos exteriores provêm inteiramente do amor e do que provoca o amor, mas nada tem que ver com a essência do amor e devem considerar-se completamente alheios ao estudo que estamos tentando fazer. Tudo quanto digo se relaciona com o ato de amar, enquanto experiência interna, como qualquer coisa que sucede na alma. O homem não pode atingir a Deus a quem ama, de uma maneira física, entretanto chamamos amor o ir para ele. Quando se ama, perde-se toda a paz interior toda a segurança, virtualmente desertamos de nós mesmos para entrar no objeto amado. Este processo incessante de movimento para outrem chama-se amor. O amor suporta o tempo. Não se ama numa sucessão de momentos, que não têm extensão, numa sucessão de pontos, que flamejam e se apagam como as centelhas de uma bobina de indução. Ama-se o objeto amado constantemente. E aqui descobrimos
uma nova característica do amor. Ele é uma torrente, um fluxo de matéria espiritual, um rio que nasce incessantemente dentro de nós. Se fosse possível encontrar uma metáfora que tornasse perfeitamente claro meu pensamento, diria que o amor não é uma explosão, mas um fluxo permanente, uma emanação espiritual, que sai do amante para o ser amado.