A CONSTRUÇÃO DO OBJETO CIENTÍFICO NA INVESTIGAÇÃO EMPÍRICA
PROFESSOR JACQUES A. L. MARRE CURSO DE PÓS-GRADUAÇÃO PÓS-GRADUAÇÃO EM SOCIOLOGIA RURAL UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL
Curso ministrado: SEMINÁRIO DE PESQUISA DO OESTE DO PARANÁ FUNDAÇÃO UNIVERSIDADE ESTADUAL DO OESTE DO PARANÁ CASCAVEL (PR), 16 A 18 DE OUTUBRO DE 1991
A CONSTRUÇÃO DO OBJETO CIENTÍFICO NA INVESTIGAÇÃO EMPÍRICA - MARRE, Jacques A.L.
SUMÁRIO
Introdução
3
O compromisso com a descontinuidade histórica
5
A construção do objeto 10 Introdução 10 A dialética ascendente da construção do objeto 10 Escolha do tema de pesquisa 11 A relação entre o tema escolhido e a abordagem teórica 13 Sistema de relações hipotéticas e processo observado 15 Relevância da construção teórica 18
Dialética descendente na construção do objeto
20
Dimensões operacionais e indicadores 21 Tipos de amostra 25 Dialética descendente e experimentação 27 Técnicas de codificação 29 O nível da interpretação 32
Meios dinâmicos da construção do objeto
33
A revisão da literatura 33 A dúvida bachelardiana 36 O conceito de erro 37 A retificação 37
Conclusão Bibliografia
39 40
2
A CONSTRUÇÃO DO OBJETO CIENTÍFICO NA INVESTIGAÇÃO EMPÍRICA - MARRE, Jacques A.L.
SUMÁRIO
Introdução
3
O compromisso com a descontinuidade histórica
5
A construção do objeto 10 Introdução 10 A dialética ascendente da construção do objeto 10 Escolha do tema de pesquisa 11 A relação entre o tema escolhido e a abordagem teórica 13 Sistema de relações hipotéticas e processo observado 15 Relevância da construção teórica 18
Dialética descendente na construção do objeto
20
Dimensões operacionais e indicadores 21 Tipos de amostra 25 Dialética descendente e experimentação 27 Técnicas de codificação 29 O nível da interpretação 32
Meios dinâmicos da construção do objeto
33
A revisão da literatura 33 A dúvida bachelardiana 36 O conceito de erro 37 A retificação 37
Conclusão Bibliografia
39 40
2
A CONSTRUÇÃO DO OBJETO CIENTÍFICO NA INVESTIGAÇÃO EMPÍRICA - MARRE, Jacques A.L.
A CONSTRUÇÃO DO OBJETO CIENTÍFICO NA INVESTIGAÇÃO EMPÍRICA
PROFESSOR JACQUES A. L. MARRE
INTRODUÇÃO Pesquisar empiricamente supõe que se possa delinear um objeto científico distinto dos objetos sociais construídos pelo senso comum, pela atividade sociológica espontânea ou pela opinião pública. Mas como construir esse objeto? Apoiando-nos em Bachelard, Koyré, Canguilhem e Foucault, tentaremos mostrar como – como – através de duas dialéticas combinadas, uma ascendente e outra descendente – descendente – oo objeto de pesquisa se conquista e se constrói, numa ruptura em relação ao saber imediato. Tal construção, todavia, não é definitiva; necessita-se conservar uma dúvida a respeito dela e da problemática das relações teóricas e operacionais que a delimitam. Essa dúvida constante permite detectar os erros e retificar o conhecimento, assim como obter melhores resultados. Ora, para construir os objetivos científicos como sistemas de relações rigorosas e operacionalizáveis, faz-se necessária uma sucessão de atos e etapas hierarquizados. Para sintetizar melhor a análise, classificamos os atos hierarquizados e as etapas em dois processos dialéticos concatenados. Chamou-se o primeiro processo de dialética ascendente; o segundo, de dialética descendente, sendo que essas duas dialéticas são relativas ao esforço qualitativo que o pesquisador empreende para desvendar o real e ex pressar, através do trabalho científico, um conhecimento aproximado do mesmo. mes mo. Antes de operar a descrição dessas duas dialéticas, sugere-se que esse trabalho não tem como base nem a filosofia marxista, nem a filosofia positivista, mas um certo racionalismo aplicado, desenvolvido por Bachelard, Koyré, Canguilhem e parcialmente Foucault. Referiu-se a problemática da descontinuidade do pensamento científico como lugar em que o cientista não somente se interroga, mas vive as rupturas tanto epistemológicas quanto conceituais e operacionais, mediante as quais um objeto científico novo se constrói.
3
A CONSTRUÇÃO DO OBJETO CIENTÍFICO NA INVESTIGAÇÃO EMPÍRICA - MARRE, Jacques A.L.
A referência à descontinuidade não é apenas casual. Procuram-se nela, pelo contrário, os ensinamentos e as experiências do recomeço, que são para qualquer cientista a marca de seu trabalho; ao mesmo tempo, procura-se o abandono das grandes filosofias lineares ou da identificação demasiado passiva do sujeito pesquisador com um objeto que teria em si mesmo seu significado, independente do trabalho teórico que o ilumina no momento de sua captação. Na seção referente à dialética ascendente, procura-se evidenciar que não há objeto científico construído sem uma ruptura com os objetos sociais produzidos pela opinião pública ou imediatamente pela sociedade ou diversos segmentos da mesma. É na própria ruptura que se escolhe e se conceitua o tema, sabendo que essa escolha e essa conceituação do tema de pesquisa escolhido estão relacionadas com um ponto de vista teórico que ilumina o tema. Esse mesmo ponto de vista contribui, portanto, para determinar o conteúdo e as propriedades do objeto. A questão básica não está em construir o objeto científico em si mesmo, mas em construí-lo dentro de um sistema de relações e de conceitos teóricos. Estes permitem sustentar que, na realidade, o tema científico ou o objeto perdem muitas das propriedades que pareciam ter à primeira vista, para adquirir outras que a sua s ua relação r elação com o quadro qu adro teórico teó rico lhes confere. Daí a idéia de conceber todo esse processo dialético ascendente, em termos de uma transformação qualitativa a ser operada sobre o objeto. Na segunda parte, a idéia é investigar a dialética descendente; ou seja, o modo pelo qual a primeira conceituação e o estabelecimento de relações hipotéticas se transformam não somente em dimensões operacionais, indicadores e índices, mas também em uma sucessão de atos hierarquizados, que visam: a) ao estabelecimento de uma amostra, relacionada com o conteúdo teórico; b) a uma codificação que de pende da teoria; e finalmente c) a uma u ma interpretação, a qual é também permeada pelo ponto p onto de vista teóte órico. Todas essas fases, encadeadas uma na outra, formam na realidade a dialética descendente. Essa dialética não é autônoma nem separada da primeira; pelo contrário, as duas formam, com os diversos atos qualitativos que as compõem, uma espécie de totalidade. Tenta-se nessa totalidade descrever como se vai da realidade para a teoria e da teoria, para voltar aos dados experimentais. Finalmente, uma última parte mostra que qualquer construção na realidade não é nem definitiva nem dogmática, embora possa e deva ser sistemática e rigorosa. Na prática, ela não existiria sem uma revisão aguda da literatura, que a situa numa tradição teórica, a qual tem sua história feita de rupturas e recomeços. Analisar a relação entre o objeto científico a construir e a revisão da literatura é também uma preocupação importante.
4
A CONSTRUÇÃO DO OBJETO CIENTÍFICO NA INVESTIGAÇÃO EMPÍRICA - MARRE, Jacques A.L.
Acrescentaram-se ainda três conceitos básicos de Bachelard, os quais explicitam como uma pro blemática deve ser não n ão somente vivida, mas refletida. O primeiro conceito diz respeito à dúvida que se exerce sobre todo o processo de construção. Não se trata de uma dúvida filosófica que questiona a totalidade, mas de uma dúvida que vigia tanto a epistemologia sobre a qual a construção se faz, como os conceitos, as escalas e os atos operacionais diversos, os quais são, na perspectiva de Koyré, Bachelard, Bourdieu, “teoria materializa materializada”. da”. O segundo conceito diz respeito ao erro que está contido na construção do objeto. Não há construção que não seja ao mesmo tempo luta contra obstáculos. O fato de não perceber bem todos os obstáculos a serem vencidos determina que qualquer construção de objeto contém uma margem de erro. Finalmente, o terceiro conceito se relaciona com a retificação. Quem descobre novos obstáculos, descobre concomitantemente os erros cometidos. Há necessidade de reconsiderar tanto a problemática construída como seus resultados. Colocar esses três conceitos e a revisão da literatura como auxiliares indispensáveis da construção do objeto não é complicar a vida do cientista, mas é atrair sua atenção sobre a provisoriedade das suas construções e a historicidade do desenvolvimento científico, que se faz sempre através de um conhecimento aproximado (“connaissance approchée”). É também também atrair a atenção sobre a luta incessante dos pesquisadores pela conquista do “real”, por pr oblemáticas oblemáticas novas que serão sempre marcadas por uma descontinuidade dos seus conteúdos em relação às anteriores, mas também por uma tentativa honesta de aperfeiçoar os métodos, os conceitos, as técnicas operacionais, capazes de fazer avançar a lógica da descoberta do real.
5
A CONSTRUÇÃO DO OBJETO CIENTÍFICO NA INVESTIGAÇÃO EMPÍRICA - MARRE, Jacques A.L.
I - O COMPROMISSO COM A DESCONTINUIDADE HISTÓRICA Até agora, fomos levados a pensar a pesquisa sociológica de natureza empírica dentro de duas filosofias da história: a filosofia marxista e a filosofia que se poderia chamar de positivista. Dir-se-ia que, no primeiro caso, acreditava-se na sucessão dos modos de produção, nas leis da história, nos conceitos relativos a sujeitos coletivos, como a burguesia, as classes, a igreja. Sob as aparências, essas forças ou sujeitos coletivos agiam, um pouco como a “energeia” (dynamis) dos objetos aristotélicos. No segundo caso, a filosofia positivista não predeterminava a sucessão dos eventos. Ela era muito mais em pírica. Acreditava-se na reconstrução metodológica de um dado, que tinha em si sua própria significância temporal. O que importava não era a teoria, mas a reconstrução ou talvez a restauração do próprio fato na sua complexidade. Metodologia, nesse caso, significa um processo dissociado da teoria. A crença no significado de uma fato social não precisa de teoria, senão de um certo positivismo. São essas as duas filosofias que têm guiado a pesquisa empírica nas duas últimas décadas. Ora, essas duas concepções filosóficas da história, uma de natureza determinística, outra de tendência pragmática têm sido criticadas desde os anos 30, por historiadores e filósofos da ciência, como Koyré, Bachelard, Canguilhem e Popper. Esses autores têm mostrado que o pensamento científico que fez progredir a ciência procede pouco a partir das filosofias mencionadas acima. Pelo contrário, esse pensamento científico deixou de lado tanto o aspecto determinístico da história como o pragmatismo do positivismo, preocupado em restaurar os fatos. Dir-se-ia que a filosofia da ciência, subjacente à atividade da pesquisa empírica, leva em conta o que se poderia chamar de descontinuidade. O cientista (e mais ainda o pesquisador empírico) é antes de tudo aquele que recomeça. É aquele que, para fazer progredir a ciência, renuncia às grandes filosofias do devir histórico, para se instalar na descontinuidade, na ruptura, no corte epistemológico a ser operado. Foucault, entre eles, nos lembra esse posicionamento, ou seja, essa nova atitude, quando escreve que “nessas disciplinas chamadas história das idéias, das ciências, da filosofia do pensamento e da literatura, nessas disciplinas que, apesar do seu título, escapam em grande parte ao trabalho do historiador e aos seus métodos, a atenção se deslocou, ao contrário das vastas unidades descritas como épocas ou séculos, para fenômenos de rupturas. Sob as grandes descontinuidades do pensamento, sob as manifestações maciças e homogêneas de um espírito ou de uma mentalidade coletiva, sob o devir obstinado de uma ciência que luta apaixonadamente por existir e se aper feiçoar desde o seu começo, sob a persistência de um gênero, de uma forma, de uma disciplina, de uma
6
A CONSTRUÇÃO DO OBJETO CIENTÍFICO NA INVESTIGAÇÃO EMPÍRICA - MARRE, Jacques A.L. atividade teórica, procura-se agora detectar a incidência das interrupções, cuja posição e natureza são aliás bastante diversas.” (Foucault, 1987: 4)
Foucault, sem pretender caracterizar todos os tipos de interrupções, analisa rapidamente quatro delas. Desse modo, sua consideração da história não está mais no longo período de Braudel ou na reconstrução de um tipo de história ocorrencial, mas está numa leitura quase que diagonal dessas grandes continuidades. Vejam-se, a seguir, algumas dessas interrupções, para se ter uma idéia mais clara daquilo que é não somente a descontinuidade, mas igualmente o compromisso do cientista com essa descontinuidade. A primeira descontinuidade que Foucault analisa diz respeito aos atos e liminares epistemológi-
cos descritos por Gaston Bachelard, os quais “suspendem o acúmulo indefinido dos conhecimentos, quebram sua lenta maturação e os in tr oduzem em um tempo novo , os afastam da sua origem empírica e das suas motivações iniciais e os purificam das suas cumplicidades imaginárias; prescrevem desta forma para a análise histórica não mais a pesquisa dos começos silenciosos, não mais a regressão sem fim em direção aos primeiros precursores, mas a identificação de um novo tipo de r acionali dade e dos seus efeitos múl tiplos” (Foucault, 1987:4, grifo nosso).
De tempo em tempo, para Bachelard e para Foucault, a racionalidade recomeça; um novo tipo de racionalidade emerge, que retifica o anterior, o purifica dos seus aspectos ou cumplicidades imaginárias. É como se o cientista estivesse recomeçando a pensar ou, pelo menos, reaprendendo a pensar a partir de novos atos e limiares epistemológicos. O compromisso de qualquer pesquisador moderno é com esse recomeço, com essa descontinuidade histórica, que é também, no caso de Bachelard, uma descontinuidade epistemológica. Dir-se-ia que se trata, para cada um de nós, de abandonar, de se despojar da filosofia da ciência relacionada com os grandes períodos, que nos era familiar, para encontrar o lugar onde as rupturas e o tempo novo que as acompanha vão ocorrer e nos envolver. Repete-se: o compromisso do cientista é com essa ruptura. Sem dúvida, poder-se-ia perguntar: o que, além das transformações epistemológicas, vai ocorrer nessas descontinuidades e rupturas, vivenciadas por cada cientista? Canguilhem, com outros, nos dá um princípio ou um começo de resposta. Na própria ruptura ou descontinuidade, deslocamentos e transformações de conceitos ocorrem. Constata-se que o importante na ciência não é a história contínua de um conceito, seu refinamento progressivo ou sua racionalidade crescente, mas a história dos seus diversos campos de constituição e de validade, a de suas regras suces-
7
A CONSTRUÇÃO DO OBJETO CIENTÍFICO NA INVESTIGAÇÃO EMPÍRICA - MARRE, Jacques A.L.
sivas de uso, a história dos meios teóricos múltiplos em que foi realizada e concluída a elaboração desse conceito. (Foucault, 1987: 5) Veja-se por exemplo o conceito de classes, como o mesmo se modificou. De que maneira ele é usado até 1870 pelo Marx tardio ou o “Velho Marx”, na sua concepção antecipada da revolução russa camponesa, através da dialetização do Mir, que Shanin nos apresenta no seu artigo sobre o velho Marx. O próprio Marx sugere que a passagem do Modo de Produção Feudal para o socialismo não precisa incluir o estágio ou modo de produção capitalista, mas que o Mir, como entidade comunal e autosubsistente de produção, pode ser dialetizado e tornar-se uma unidade importante e coletiva de produção agrícola para a sociedade industrial nascente (Shanin, 1984. Texto traduzido do inglês por Mário Riedl, a ser publicado pela Editora Hucitec). A própria concepção da história, como história de luta de classes, encontra-se nesse caso modificada, pelo fato de não existir uma classe patronal ou muito pouco dela. Poderia se perguntar: que uso descontínuo os cientistas sociais brasileiros têm feito de conceito de classes ao longo das últimas três décadas? Sem dúvida encontrar-se-iam deslocamentos e transformações. Não houve continuidade de uso, mas, pelo contrário, tentativas de validá-lo, relacionando-o por exemplo com o conceito de marginalidade social (Kovarick, 1968), com o conceito de Estado, que em Marx era pouco elaborado. Dito de outro modo, a história do pensamento brasileiro condicionou deslocamentos e transformações de certos conceitos. Descontinuidades e rupturas ocorreram. Praticaram-se elaborações diversas dentro de um campo de constituição que validava ou pelo menos tendia a validar tais criações, numa sociedade altamente polarizada como a brasileira. Enquanto nos Estados Unidos havia e há um pensamento que procura desenvolver um marxismo analítico, no Brasil a tendência tem sido pelo menos de articular conceitos teóricos com situações empíricas e históricas como as da marginalização e favelamento, ou da exclusão do campesinato do campo, transformando-o em “bóia-fria” (D’Incão de Mello, 1974). Insiste-se menos sobre a dialética conflitiva das classes opostas do que sobre uma dinâmica de exclusão ou de uso temporário das mesmas. Até que ponto, visualizando o futuro, o trabalho será tão importante para o capital como foi no passado? Não serão os mecanismos que institucionalizam a informatização, responsáveis por mais exclusão do trabalhador, ou seja, da “classe” oper ária? O cientista de hoje é aquele que não somente registra transformações conceituais, como a transformação dos atos epistemológicos que as acompanham. Na prática, o seu compromisso com a descontinuidade não é somente registrar, mas aprofundar os diferentes tipos de modalidades de essas rupturas existirem, para fazer desse passado, já vivido e praticado pelos cientistas anteriores, um presente criativo
8
A CONSTRUÇÃO DO OBJETO CIENTÍFICO NA INVESTIGAÇÃO EMPÍRICA - MARRE, Jacques A.L.
que se incorpora a seu modo de pensar, e determina, de um certo modo, novas investigações conceituais e teóricas, novas problemáticas e novas adequações científicas, capazes de elucidarem a caminhada histórica da sociedade em que vivemos. Sem dúvida, os dois tipos de rupturas mencionadas acima não são exaustivos. Conviria mencionar ainda outras formas de rupturas, como aquelas referentes às escalas micro e macroscópicas, dadas por uma leitura da história da ciência. Altera-se o modo pelo qual os acontecimentos analisados se distribuem, assim como mudam as condições dessa distribuição. Os cientistas consideram a distribuição dos fenômenos de um modo variável. Antes de a noção de inconsciente emergir no saber científico, a distribuição dos fenômenos se fazia dentro de uma escala onde o cógito cartesiano ou o sujeito transcendental kantiano eram as categorias básicas. Mas basta que o conflito de inconsciente emerja para que haja novas classificações dos feitos e fenômenos observados, segundo escalas que levam em conta os fenômenos relativos ao inconsciente e ao domínio da consciência. O mesmo ocorre nas ciências físicas, com a emergência da física quântica. No campo das ciências sociais, a equipe dos Durkheimianos se preocuparam em reorganizar, por exemplo, os suicídios dentro de um tipo de escala nominal macroscó pica: suicídios altruístas relacionados com sociedades altamente integradas; suicídios egoístas oriundos de uma desintegração histórica ou de uma anormalidade; finalmente o suicídio anômico, resultante de uma ausência de organização dos processos sócio-econômicos na sociedade industrial do fim do século XIX. Basicamente trata-se de avaliar dentro dessa escala nova a força variável das correntes “suicidógenas”, em oposição às correntes regeneradoras. Ora, se considerarmos a criação modificada dessas escalas no tempo, ver-se-á que elas corres pondem a um momento de ruptura na história do pensamento social. Dir-se-ia que são manifestações de uma descontinuidade que ocorreu entre o modo pelo qual os problemas eram anteriormente formulados pela filosofia social e pelos partidos políticos, e o modo pelo qual eles vêm a ser elaborados pelo pensamento sociológico principiante do início do século XX; e, no caso citado, pela própria escola Durkheimiana. Na realidade, no caso dos Durkheimianos, a questão radical aqui colocada diz respeito ao modo pelo qual a “taxa de morte” se distribui. Deseja-se saber se há sociedades que são capazes de regularem melhor no tempo essa taxa de morte, e como se faz essa regulagem. Numa sociedade como a nossa, que assassina os Sem-Terra ou os que lutam pela terra, ou que ainda desprestigia a vida através do salário mínimo, dos extermínios de menores, da esterilização forçada das mulheres, constata-se que vivenciar a descontinuidade que criou essas escalas passadas não é assunto a ser relegado pelos cientistas, mas, pelo
9
A CONSTRUÇÃO DO OBJETO CIENTÍFICO NA INVESTIGAÇÃO EMPÍRICA - MARRE, Jacques A.L.
contrário, é assunto a ser considerado com seriedade, a fim de proceder a criações de novas escalas similares ou análogas, adaptadas às nossas condições do tempo presente. Essas escalas terão fundamentos epistemológicos e teóricos. Não nascem da simples observação, elas implicam um modo de ver conceitual e existencial, objetos atuais e relevantes. Um outro tipo de descontinuidade mencionada por Foucault diz respeito a: “as unidades arquitetônicas dos sistemas, nas quais se analisa bem menos a descrição das influências, das tradições, das continuidades culturais, mas muito mais as coerências internas, axiomas, cadeias dedutivas de compatibilidade” (Foucault, 1987). Nesse tipo de análise, mostra-se como determinados momentos históricos,
para se afirmarem, têm necessidade de encadear, capitalizar, tornar coerentes determinados processos, sem os quais o sistema como um todo não funcionaria. Tal ou tais reconstruções arquitetônicas são visíveis hoje em fenômenos como os da computação. A própria palavra “compatibilidade” diz respeito à possibilidade de determinados computadores ou softwares serem capazes de articular-se com outras redes ou não. Mas o mesmo fenômeno existe no processo de declínio dos dois mundos, Oeste e Leste. No declínio da oposição, simbolizada pela destruição do muro de Berlim, procura-se agora, em cada área, os processos de reorganização sócio-econômica que sejam compatíveis e capazes de desempenhar um processo de reconstrução. Não se trata tanto de respeitar as tradições históricas quanto de reorganizá-las, de redefini-las como, por exemplo, no interior do Mercosul, ou no interior da Europa. É preciso tornar compatíveis elementos que entre si podem constituir relações ou um todo arquitetural. Ora, tais tipos de descontinuidades estruturais têm sido analisados por cientistas e tornaram-se hoje objeto não somente de conhecimento mas de vivência. Procura-se, nessas análises, mais do que informações. Procuram-se descobrir lições estratégicas referentes a processos reorganizacionais. Procura-se no fundo reaprender a vida, reaprender a pensar. Sem um compromisso do cientista com a riqueza de todas essas situações múltiplas, feitas de tensões descontínuas, de rupturas, de esforços criativos, o presente do pesquisador é vazio. Assim ele não incorpora as lições da história. Porém, tornando presente a riqueza tanto teórica quanto empírica dessas experiências de descontinuidades, ocorridas no passado, investe-se, na atualidade contemporânea da ciência, uma profundidade e uma riqueza de conhecimentos que aumenta a capacidade de não somente conhecer mas de problematizar a nossa própria história ou segmentos parciais da mesma. Aumenta-se a capacidade de perceber uma multiplicidade de situações históricas nas quais estamos imersos.
10
A CONSTRUÇÃO DO OBJETO CIENTÍFICO NA INVESTIGAÇÃO EMPÍRICA - MARRE, Jacques A.L.
Para empregar as expressões de Bourdieu, sem rigorosamente identificar-nos com o conteúdo da definição teórica por ele formulado, dir-se-ia que o compromisso do cientista com a descontinuidade, as rupturas, as recriações ou transformações conceituais é, na verdade, um compromisso com a trajetória da experiência científica. Esse compromisso aumenta o capital cultural de quem pesquisa. Não se trata mais de continuar a pensar os grandes períodos, como o período colonial, escravocrata, a República Velha, mas trata-se de descobrir, sob o solo dessas grandes continuidades, os fenômenos de rupturas, os momentos de deslocamentos dos conceitos, os limiares epistemológicos novos, a criação de escalas novas de distribuição dos fatos. O compromisso com a descontinuidade é um modo de ler a história, de prestar atenção à diversidade e às variabilidades subjetivas de manifestações, aos investimentos que o pensamento científico fez nelas para que a vida pudesse continuar a existir, e de entregar o conteúdo dessa riqueza às gerações futuras. O compromisso com a descontinuidade é um compromisso com um lugar onde a ciência aprende a se constituir. É dessa aprendizagem que necessitamos para construir novos objetos científicos que estão relacionados com os problemas colocados pelo presente histórico, irreversível, no qual se está imerso. Cabia, portanto, esse longo preâmbulo, para situar melhor a relação do cientista com a experiência histórica do passado, com a finalidade de iniciar uma melhor apreensão da história atual. Mas cabia também essa longa apresentação sobre a descontinuidade, para sugerir que a aquisição do saber, isto é, do conteúdo vivenciado e conceitual das descontinuidades passadas, tem um preço: o de renunciar e de
se despojar das concepções um tanto míticas de história, demasiado presentes ao espírito humano, sob a forma de amplos períodos, sem que seja percebida toda a trama das rupturas que animam esses mesmos amplos e contínuos períodos. Renunciar a essas filosofias amplas, como também renunciar ao espírito demasiado positivista e imediato, o qual não reconstrói uma dinâmica, mas apenas restaura; renunciar a tudo isso, para poder construir objetos científicos novos, eis o preço a ser pago. Veja-se que não se trata de uma tarefa fácil. Mas se aceitarmos praticar essa renúncia, para enriquecer o capital cultural de cada um, ao mesmo tempo que o capital social da comunidade dos cientistas, pela revivência, rememoração e assimilação do conteúdo das descontinuidades anteriores, talvez haja nessa luta a criação, não apenas de uma atitude, mas de um desejo profundamente científico e operacional de ingressar em áreas muito novas, como a da metodologia interdisciplinar, ou na elaboração de no-
11
A CONSTRUÇÃO DO OBJETO CIENTÍFICO NA INVESTIGAÇÃO EMPÍRICA - MARRE, Jacques A.L.
vas epistemologias ou deslocamentos de conceitos. Talvez até estar-se-á preparado para, senão dialetizar todo o campo teórico da ciência social, pelo menos para compreender como as noções de campo de poder, de campo enunciativo (Foucault) não têm surgido do acaso, mas justamente desse esforço de reencontrar a vida do pensamento, enriquecida pelas experiências passadas. Dir-se-ia que o que o conhecimento das descontinuidades nos sugere é a substituição de uma história unilinear por uma concepção da história em diagonal, onde o nascimento de novos enunciados e de novos limiares epistemológicos vão apreendendo a riqueza da experiência humana e ao mesmo tempo sua dialetização. Não se quer com isso lançar o descrédito sobre um passado prestigioso, mas apenas sugerir uma volta à vivência do tempo presente. Nada melhor do que o passado e a riqueza apreendida das descontinuidades e rupturas para efetuar e tornar operacional essa consciência e essa conversão. Não seria então o compromisso com a descontinuidade a melhor maneira de os cientistas se prepararem para a construção de objetos científicos? Pelo menos é o que se desejou sugerir; possa a mensagem ser suficientemente clara para sugerir a conversão que todo cientista pode fazer, para viver não apenas o seu século, mas o momento presente, com o máximo de capital cultural assimilado, dando-lhe não apenas subsídios, mas fornecendo-lhe um dinamismo criativo que o insere e possa-o tornar capaz de responder a algumas das grandes questões características do seu tempo, no campo da teoria e da metodologia da pesquisa.
II - A CONSTRUÇÃO DO OBJETO 2.1 - Introdução Na primeira parte da reflexão tentou-se apresentar como e por que uma consideração das descontinuidades e rupturas históricas na história do pensamento científico é relevante. Tentou-se sugerir quão indispensável e pedagógico é fazer a assimilação, a revivência e rememoração dessas descontinuidades para a transformação atual do pensamento científico. Sugeriu-se também que o capital cultural assimilado, dialetizado através do conhecimento dessas descontinuidades, é o passo anterior, quase que necessário à construção do objeto científico. Ninguém parte totalmente do nada, mas cada um de nós se insere numa história que já produziu seus frutos científicos com os instrumentos e as técnicas da sua época. Conhecer melhor não apenas o produto, mas igualmente as descontinuidades em que se criou esse pro-
12
A CONSTRUÇÃO DO OBJETO CIENTÍFICO NA INVESTIGAÇÃO EMPÍRICA - MARRE, Jacques A.L.
duto, é na realidade apreender o ofício de pesquisador. Desvendar a história das suas práticas é sem dúvida alguma preparar-se para a construção de novos objetos. O objetivo do trabalho aqui empreendido, nessa parte agora, não consiste mais numa rememoração ou numa assimilação, mas na tentativa de elucidar como se pode construir um objeto científico. Sem dúvida nenhuma, supõe-se um certo conhecimento do passado e das práticas tanto teóricas quão operacionais da ciência. Mas como o fazer científico é também um recomeço ao mesmo tempo crítico do passado e criador de novos produtos, o objetivo dessa parte consistirá em sugerir o processo pelo qual a construção de um objeto científico se realiza. Sugere-se aqui que essa construção procede a partir de uma dupla dialética: a) uma dialética
ascendente, que vai da apreensão do tema empírico para sua construção, dentro de um quadro de hipóteses teóricas não somente válidas, mas igualmente relevantes; b) uma dialética descendente que, partindo da elaboração teórica efetuada no primeiro processo da dialética ascendente, tenta pelo contrário torná-lo não somente operacional mas suscetível de uma demonstração ou de uma verificação empírica. É a descrição desses dois processos dialéticos, ascendente e descendente, que nos permitirá tentar dar conta da melhor maneira possível do modo pelo qual o processo de construção do objeto funciona ou pelo menos se configura, dentro do conhecimento científico, distinto e diferente do conhecimento vulgar ou do senso comum.
2.2 - A Dialética Ascendente da Construção do Objeto Construir um objeto científico não é simplesmente identificar ou adotar uma questão colocada pelo senso comum, os partidos políticos ou a opinião pública, e depois refletir metodologicamente sobre o modo de apresentar essa questão. É preciso primeiro conscientizar-se do fato de que os objetos científicos são diferentes dos objetos sociais produzidos pela sociedade ou, como, diz Bourdieu, pela sociologia espontânea do senso comum ou da opinião pública. Bourdieu não nega que determinadas questões ou problemas constituídos pela sociedade sejam importantes, mas salienta também que objetos sociais aparentemente insignificantes podem tornar-se problemas e objetos científicos importantes a serem construídos: “O que conta, escreve Bourdieu , é, na realidade, a construção do objeto, e a eficácia de um método de pensar nunca se manifesta tão bem como na sua capacidade de constituir objetos socialmente insignificantes em objetos científicos ou, o que é o mesmo, na sua capacidade de reconstruir cientifica-
13
A CONSTRUÇÃO DO OBJETO CIENTÍFICO NA INVESTIGAÇÃO EMPÍRICA - MARRE, Jacques A.L. mente os grandes objetos socialmente importantes, apreendendo-os de um ângulo imprevisto” (Bourdi-
eu, 1989:20). Assim, tanto os objetos sociais insignificantes para a sociedade como os objetos sociais importantes são apreendidos de um modo diverso pela ciência. A questão inicial que se coloca no processo de uma dialética ascendente constitutiva dos objetos científicos é saber como ocorre a primeira etapa dessa construção. Ora, ela ocorre através da escolha de um tema de pesquisa.
2.2.1 - Escolha do tema de pesquisa. A dialética ascendente como escolha do tema. Qualquer manual de pesquisa refere a escolha do tema como sendo um dos momentos importantes de uma investigação empírica e sobretudo como um dos momentos importantes iniciais da construção do objeto. Por que esse momento é importante e como ele se realiza? São duas questões que convém tratar em profundidade. Primeiro, escolher um tema é caracterizar um determinado processo como relevante para uma investigação, ou seja, discernir - não apenas no fato de observá-lo ou de ver a sua importância salientada pela sociedade - um assunto digno de estudo; mas muito mais: perceber, talvez ainda de maneira confusa, que o objeto em estudo ou o processo tem relação com determinados valores. Na realidade, raramente um processo ou um objeto de estudo é escolhido por si mesmo e em si mesmo, isolado de qualquer sistema de valores. Se a escolha é estudar o processo de produção da representação sindical ou ainda a geração de determinadas tecnologias agrárias diversas (produção de maçãs ou de uva), raramente o faremos simplesmente por conhecer só e somente o processo. Weber nos lembra que dificilmente se poderia fazer abstração dos valores mais íntimos da personalidade do pesquisador, na sua escolha de um tema (Weber, 1958: 44). Mas o fato de esse ato envolver valores próprios a uma personalidade e relativos a sua concepção da vida, não quer dizer que o tema escolhido não seja objetivo. Pelo contrário, pode ser dotado de um significado altamente valioso não somente para o indivíduo que o escolhe, mas igualmente para outros que adotam ou simplesmente reconhecem aquele sistema de valores. Weber vai até dizer que “uma coisa é segura em qualquer circunstância: quanto mais universal seja o problema em questão, isto é em nosso caso, quanto mais amplo seja seu significado cultural, tanto menos ele será capaz de uma resposta extraída do material de um saber empírico e tanto maior o papel dos axiomas pessoais últimos da fé e das idéias valorativas” (Weber, 1958: 45-6). Notar-se-á quanto do indivíduo e do sistema de valores ao
qual ele pertence está engajado na escolha de um tema científico relevante. Não é possível dizer, portan-
14
A CONSTRUÇÃO DO OBJETO CIENTÍFICO NA INVESTIGAÇÃO EMPÍRICA - MARRE, Jacques A.L.
to, que se pode fazer uma escolha neutra; pelo contrário, pode-se afirmar que a escolha do tema se faz porque está relacionada com um sistema de valores e com as convicções últimas do indivíduo que o escolhe, e é assim que adquire um significado valorativo determinado. Eis, portanto, uma das razões da escolha de um tema. Mas o como se escolhe é igualmente importante. Na maneira de escolher, procede-se através de uma ruptura. Não há tema escolhido pelo pesquisador que o seja do mesmo modo que o senso comum o valoriza. Pelo contrário, para que um processo de escolha possa ser considerado científico, há necessidade para o cientista de se distanciar, de criticar e avaliar o modo pelo qual a opinião pública, o senso comum ou os partidos políticos tratam da questão. Ciência, ou melhor, prática da investigação empírica, não é de maneira alguma identificação com essas diversas problemáticas assinaladas pelo senso comum ou pela opinião pública. É possível que, no modo de delimitar o tema escolhido, algumas observações feitas pelo senso comum ou pelos meios diários de comunicação social sejam levadas em conta, mas elas serão a tal ponto criticadas, avaliadas e classificadas, que a própria dinâmica do senso comum ou da sociologia espontânea – que serviu de base à elaboração dessas observações – será negada dialeticamente. De modo algum, o cientista é uma voz que presta sua voz ao partido, à opinião pública, para solucionar os problemas no modo pelo qual o partido ou a opinião pública querem que sejam solucionados. Pelo contrário, há necessidade de uma ruptura bastante acentuada entre o modo pelo qual os temas são escolhidos pelos políticos e o modo pelo qual os mesmos temas ou outros são escolhidos pelos cientistas. Durkheim, no momento em que fundava a Sociologia com a equipe de colaboradores que escreviam na Revista L’Année Sociologique, nos lembra que, do mesmo modo que os políticos, o cientista é preocupado com a prática, a solução dos problemas práticos. Durkheim não é oposto a essa maneira de fazer Sociologia. “Nossa pr eocupação constante, escreve ele , ao contrário, era visivelmente de orientá-la de tal maneira que pudesse chegar até a prática. São problemas que a sociologia vai forçosamente encontrar no termo das suas pesquisas... Mas, continua Dur-
kheim , o papel da Sociologia, deste ponto de vista, deve justamente consisti r numa l ibertação com relação a todos os partidos, não tanto opondo uma doutrina as doutrinas, mas principalmente fazendo os espíritos adotarem, diante de tais questões, uma atitude especial que somente o contato direto das coi sas vai dar a ciência” (Durkheim, 1984: 125). Essa atitude é a atitude do cientista que escolhe seus pro-
blemas segundo um itinerário mental diverso do senso comum ou dos partidos. Escolher um tema é portanto um momento de ruptura, que Durkheim considera como uma libertação. A ciência e, a fortiori, o cientista que escolhe um tema, não se subordinam a um partido, a uma
15
A CONSTRUÇÃO DO OBJETO CIENTÍFICO NA INVESTIGAÇÃO EMPÍRICA - MARRE, Jacques A.L.
opinião, mas se libertam deles, o que alhures não quer dizer que se trata de algo neutro, uma vez que valores foram engajados na escolha. A questão que se coloca é saber como se dá essa ruptura. Ora, Bourdieu, referindo-se a Mauss (e por detrás a Durkheim), sugere que o cientista não se liberta das atitudes dos partidos políticos ou da opinião pública formada pelos meios de comunicação, senão através do uso de técnicas. E elas são variadas. A “definição provisória” usada pelos Durkheimianos é uma delas. Veja-se, por exemplo, como o senso comum define normalmente o suicídio e como Durkheim o define: Durkheim o define como o produto social variável de um meio ou efervescente ou anômico. A conotação sociológica que se organiza no processo da definição é bastante diferente do modo pelo qual a polícia ou o serviço de ocorrências caracterizam o suicídio. Giddens a esse respeito é claro. Ele escreve que a Sociologia não deve considerar o suicídio como um agregado de atos individuais, mas como um fenômeno padronizado, histórico; e Giddens, citando Durkheim, lembra bem o conteúdo do suicídio tal como é obtido pela técnica da definição provisória, que é ao mesmo tempo uma técnica de ruptura com a observação imediata e com a problemática elaborada pelos órgãos públicos que registram as ocorrências: “Se os suicídios ocorridos dentro de uma sociedade dada, durante um período de tempo, são tomados como um todo, verifica-se que essa totalidade não é simplesmente uma soma de unidades independentes, um todo coletivo, mas ela é, ela mesmo um novo fato sui generi s , com sua própria unidade, individualidade e conseqüentemente sua pró pria natureza” (Citado por Giddens, 1974: 7).
Através dessa definição provisória, o cientista se encontra realmente diante de um processo novo, já muito elaborado, e cujo conteúdo difere bastante do conteúdo obtido pela observação imediata. O processo de dialética ascendente que foi usado para chegar ao conteúdo da noção de suicídio usou a técnica da definição provisória. Weber usaria o seu “tipo ideal” e Marx, seu método, que passa do plano da o bservação concreta para a construção das determinações. De qualquer modo, a conclusão é a mesma; escolher um tema é já construí-lo qualitativamente de um modo diverso do senso comum ou da reflexão dos políticos. Não se quer dizer com isso que o processo dialético ascendente já terminou; um segundo aspecto importante deve ser mencionado: o da relação entre o tema e a abordagem teórica.
16
A CONSTRUÇÃO DO OBJETO CIENTÍFICO NA INVESTIGAÇÃO EMPÍRICA - MARRE, Jacques A.L.
2.2.2 - A relação entre o tema escolhido e a abordagem teórica Quando se considera a história da ciência como um todo, verifica-se que nenhum objeto relevante do ponto de vista científico foi constituído somente a partir da observação imediata e pura do processo em si mesmo. Pelo contrário, essa observação imediata, da realidade dada na sensibilidade, tende a ser relativizada, para introduzir no modo de observar um ponto de vista teórico, que modifica substancialmente a percepção e a constituição do conteúdo empírico do objeto a ser investigado. Não se trata apenas aqui de referir o objeto a valores que orientaram sua seleção, mas de mostrar que a construção qualitativa do mesmo não ocorre sem a inserção do cientista dentro de um quadro teórico de referência, que lhe fornece um ponto de vista muito diferente da observação imediata. Consideram-se a seguir alguns exemplos. Quando Galileu (1564-1642) desejou e se empenhou no século XVII em analisar a queda dos corpos, ele não se limitou a observar o fenômeno como qualquer um de nós o faria. Não foi dessa maneira que procedeu. Galileu descobriu a constante de aceleração dos corpos em queda livre porque introduziu no fenômeno a ser observado um ponto de vista teórico. Koyré, depois de ter mostrado como Mersenne e Riccioli fracassaram rotundamente no modo de reproduzir as experiências de Galileu, afirma que na “investigação científica, a abordagem direta não é nem a melhor nem a mais fácil: Não se pode atin gir os fatos empíricos sem o recurso à teoria” (Koyré, 1966: 273). Sem dúvida, a teoria necessita ser
também operacionalizada, mas o que se deseja aqui afirmar é que Galileu foi capaz de fazer a descoberta da constante, graças à introdução de um ponto de vista teórico na observação. Renunciou às perspectivas da observação imediata precisa, baseadas nos pressupostos da física teórica aristotélica. Em oposição, adotou a posição teórica de Copérnico, o qual tinha negado a idéia aristotélica de que a terra era imóvel e o centro do mundo, para afirmar pelo contrário que girava ao redor do sol. Acrescentou a essa perspectiva a idéia de vácuo e a noção de uma natureza matematizável ( mathesis). Galileu não apenas adotou essa posição teórica mas também procurou fazer suas avaliações experimentais dentro dessa perspectiva, ela borada em termos matemáticos. Dito em outras palavras, Galileu e depois dele Huygens abordam a queda dos corpos a partir de um ponto de vista teórico e substituem desse modo a abordagem baseada na observação imediata. Sem dúvida, a demonstração matemática do fenômeno observado é muito mais complexa e, de um certo modo, nessa exposição, falsifica-se tanto a representação teórico-matemática do fenômeno observado, como a descoberta da constante universal de aceleração dos corpos em queda livre, quando se sugere apenas a relação entre a queda de um corpo e a concepção teórica de Copérnico, adotada por Galileu e Huygens. Mas o objetivo permanece claro. Trata-se de mostrar que não existe ciência e
17
A CONSTRUÇÃO DO OBJETO CIENTÍFICO NA INVESTIGAÇÃO EMPÍRICA - MARRE, Jacques A.L.
experimentação dos fatos empíricos sem uma relação desses com uma abordagem teórica. Koyré chegara mesmo a concluir que “não somente as experiências válidas são fundadas sobre uma teoria, mas os meios que permitem de realizá-las não são eles mesmos nada mais senão uma teoria encarnada” (Ko-
yré, 1966: 278). Bachelard repetirá a mesma afirmação dizendo que a experimentação é teoria materializada; Bourdieu, retomando essa tradição, afirmará que a demonstração empírica na realidade é uma teoria em ato (Bourdieu, 1975: 224). Para nós, na perspectiva ascendente e dialética de uma construção do objeto, o que se deseja salientar é justamente a introdução de um ponto de vista teórico no processo de construção do objeto. O passo que consiste em introduzir na observação uma perspectiva teórica, na realidade, é ao mesmo tem po a negação de qualquer observação imediata e sua substituição qualitativa por um modo novo de perceber o fenômeno ou processo ou fato observado. Não se vêem as mesmas coisas no fenômeno observado, se essa observação é feita a partir da observação imediata ou a partir de um ponto de vista teórico. Conta-se uma história a respeito de Einstein. Ele teria dito que sua maior preocupação teria sido de saber como o mundo poderia lhe aparecer se ele fosse sentado sobre um raio de luz. Sem dúvida a história pode não ser verdadeira, mas o que é verdade é que de fato, no modo de Einstein observar os fenômenos e movimentos dos objetos físicos, a relação desses com uma velocidade padrão, a da luz, estava incluída. Novamente percebe-se por detrás da história a necessidade de relacionar o planeta observado a um ponto de vista teórico que substitui a observação imediata e auxilia a perceber no mesmo propriedades ou características que de outra maneira não poderiam ser alcançadas e conceituadas. Sem dúvida, objetar-se-á que tudo isso pertence à física ou no máximo ao domínio das ciências exatas da natureza; mas que, na prática, as ciências da cultura são diferentes. Todavia, basta olhar os clássicos para perceber que a sua conceituação dos fenômenos ou processos a serem conceituados não depende de maneira alguma da observação imediata, mas, pelo contrário, de uma observação a ser levada a efeito a partir de uma abordagem teórica. Weber não analisa o espírito do capitalista senão na sua relação com a religião protestante. Durkheim não analisa nem as formas elementares da vida religiosa, nem o suicídio, nem o socialismo, senão na sua relação com meios efervescentes históricos ou anômicos e anormais. Na realidade, Durkheim usa uma concepção da história, que François Simiand já defendia. No fim do Século XIX e início do Século XX, o problema de uma história científica se colocou com muita força em oposição a uma história de simples eventos cronológicos. Em todos esses autores a construção do objeto científico procede não a partir de uma observação imediata do fato, tal como poderia ser
18
A CONSTRUÇÃO DO OBJETO CIENTÍFICO NA INVESTIGAÇÃO EMPÍRICA - MARRE, Jacques A.L.
recebido por nossa sensibilidade, mas pela introdução de um ponto de vista teórico, que modifica sensivelmente o conteúdo e as propriedades que se devem observar no tema escolhido. Dir-se-ia que, na medida em que progride a elaboração desse ponto de vista teórico ou a dedução das suas implicações, tam bém se transforma a percepção e a conceituação do objeto. Dito em outras palavras, poder-se-ia perguntar se a construção do objeto não passa justamente pela elaboração de um sistema de relações que vão se tornar hipóteses e dar toda a relevância ao fenômeno observado.
2.2.3 - Sistema de relações hipotéticas e processo observado Na seção anterior descreveu-se como a dialética ascendente da construção do objeto necessita incluir uma abordagem teórica do objeto a ser pesquisado. Sugeria-se que a construção dessa relação entre abordagem teórica e objeto científico a ser observado modifica substancialmente o conteúdo conceitual do objeto; ou seja, nos faz descobrir, no mesmo, propriedades ou características que de outro modo não se chegariam a perceber. Mas a questão agora é saber se não se poderia prosseguir na dialética ascendente da construção do objeto científico e a abordagem teórica adotada em cada pesquisa empírica. Dito de outro modo, não basta dizer que se optou por um determinado quadro teórico referencial que permite substituir o ponto de vista da observação imediata; convém ainda acrescentar a idéia de que é possível estabelecer um certo número de relações teóricas entre o objeto, considerado à luz do quadro teórico de referência, e o conteúdo desse objeto escolhido. Tratar-se-á a seguir desse aspecto da construção dialética ascendente. A primeira modalidade a considerar diz respeito à possibilidade de usar o conteúdo da teoria, ou seja, de testar diretamente uma proposição teórica, supondo que a formulação da mesma seja suficientemente ampla. Nesse caso a teoria já está elaborada e quase que se adota a perspectiva Popperiana. Podese, por exemplo, tomar da teoria a proposição freudiana: de que todos os sonhos são desejos de realidade. Nesse caso ver-se-á que o ponto de vista teórico já indica o que se procura no material empírico. De um certo modo, se o material empírico se apresentar como tendo as propriedades ou características de desejos de realidade, a hipótese teórica será corroborada. Convém evidentemente explicitar o que se entende por “desejos de realidade” ou seja quais são as propriedades ou características básicas desses dese jos e se nós as encontramos em todos os sonhos. Caso se descubra um tipo de material empírico que não
19
A CONSTRUÇÃO DO OBJETO CIENTÍFICO NA INVESTIGAÇÃO EMPÍRICA - MARRE, Jacques A.L.
apresenta as propriedades ditas no enunciado teórico, ter-se-á, através do experimento, uma falsificação da teoria. No que diz respeito à construção dialética ascendente, a relação assim formulada ou o conjunto de relações entre objeto e teoria são na realidade proposições formuladas teoricamente por antecipação. São proposições capazes de veicular e expressar as propriedades de determinado material empírico evidentemente de um modo hipotético. A segunda modalidade na construção do objeto refere-se à teoria, mas não diretamente ao conteúdo das proposições teóricas, senão aos pressupostos teóricos. Dito em outras palavras, tem-se de um lado um objeto empírico e um conceito expressando-o pelo menos provisoriamente. Do outro lado temse o foco central da abordagem teórica. Pode-se tratar de uma abordagem classista como dizem os anglosaxãos, ou ainda de uma perspectiva de Foucault, ou de Bourdieu, oriunda dos pressupostos das respectivas teorias de cada um. Veja-se que cada conjunto de pressupostos teóricos referente a cada autor é um modo de conceber a realidade empírica. Enquanto que o uso dos pressupostos marxistas ou neomarxistas leva o pesquisador a considerar seu tema em termos de luta de classes, de exploração ou até de proletarização do homem do campo, os pressupostos da teoria de Foucault o levarão a analisar o tema escolhido em termos de enunciados históricos e lingüísticos capazes de revelar um limiar de existência dentro de um espaço associado a eles, capazes igualmente de prescrever posições aos agentes envolvidos ou ainda capazes de serem relacionados positivamente ou conflitivamente com domínios e poderes que se exercitam num espaço colateral. Dito em outras palavras, a partir dos pressupostos teóricos e da matriz de observação sugerida por esses pressupostos, pode-se construir um sistema de relações teóricas que, de um lado, decorrem dos pressupostos; e, de outro, envolvem ou determinam as propriedades do objeto empírico a ser analisado. Um exemplo fará melhor compreender essa perspectiva construtiva de um sistema de relações, tais como Bachelard e Bourdieu o sugerem. Suponhamos que o pesquisador esteja interessado na geração de tecnologias agrícolas novas (=y), a sua pergunta teórica não é mais a respeito do objeto científico definido pelo menos provisoriamente. A sua questão dentro do processo de uma dialética ascendente se relaciona com o sistema de relações teórico-hipotéticas que o farão compreender como o processo de geração de tecnologia é determinado e quais são as propriedades que o mesmo adquire nesse quadro de referência teóricas.
20
A CONSTRUÇÃO DO OBJETO CIENTÍFICO NA INVESTIGAÇÃO EMPÍRICA - MARRE, Jacques A.L.
Ora, para dar resposta a essa questão, ele poderá sugerir, dentro de uma abordagem teórica oriunda dos pressupostos da teoria de Foucault, que o enunciado “geração de tecnologia”, como limiar novo de existência dentro de determinados municípios, depende na realidade de micro-poderes circulando entre o espaço próprio do enunciado (y) e o espaço colateral (x). Tratar-se-ia de uma primeira relação básica x - y. Mas a construção do sistema de relações dentro do processo dialético ascendente não pára nesse nível. Terá que mostrar como pode ser explicitada essa primeira relação genérica entre a presença de micro-poderes (=x) e o enunciado prescrevendo uma geração de tecnologia. No momento em que o pesquisador enfrenta essa questão, ele então estará obrigado a não somente aprofundar a teoria, mas a formular relações secundárias. Dito em outras palavras, ele poderia dizer que, se a geração de tecnologias depende de micro-poderes (x - y), esses, por sua vez, podem (e tendem a) procurar no espaço correlato um tipo de associação ou de aliança que reforça o dinamismo da geração de tecnologia. Esse tipo de aliança pode ser dado operacionalmente através de outros enunciados relativos a limiares de existências interessadas na geração. O desencadear de tais alianças entre micro-poderes de um espaço próprio à referida geração de tecnologia e micro-poderes de um espaço associado, onde se exercem outros domínios, reforça de um certo modo a geração de tecnologia, mas ao mesmo tempo suscita resistência, conflitos, daí uma terceira relação: a de mostrar que o dispositivo de aliança na prática é correlativo de uma emergência de conflitos que vão opor resistência ao processo de geração e à ação dos micro-poderes investindo em efetivar esse processo. Tem-se, portanto, já um modelo com uma relação central e duas hipóteses secundárias, uma que diz respeito a um dispositivo de alianças, outra que diz respeito à presença de conflitos. Estamos aqui sempre agindo segundo os pressupostos teóricos de Foucault. A questão todavia é saber como a geração de tecnologia poderá ocorrer pelo menos hipoteticamente ao nível teórico, ou seja: como os agentes, os atores, poderão se constituir sujeitos dessa geração de nova tecnologia. Cabe, então, formular uma quarta relação relativa à procura de uma aliança maior, dentro dos micro-poderes locais e do dispositivo de aliança, com um conjunto de outros poderes que pertencem a um espaço mais amplo que o do lugar onde a tecnologia seria gerada. Nesse caso, então, chega-se a uma quarta relação, que evidencia como micro-poderes locais e dispositivos de alianças, como o espaço colateral associado, se esforçam em tecer relações que reforçam seus domínios respectivos, para enfrentar os conflitos e fazer circular uma maior intensidade de poder e de saber na tela de relações estabelecidas. Dito de outro modo, pode-
21
A CONSTRUÇÃO DO OBJETO CIENTÍFICO NA INVESTIGAÇÃO EMPÍRICA - MARRE, Jacques A.L.
se descobrir em termos concretos que os micro-poderes; a saber, de cientistas, ou de fornecedores de tecnologias que não existem dentro do próprio espaço municipal onde queriam gerar tecnologia nova, mas igualmente onde encontravam uma oposição. No total, tem-se uma relação central e três secundárias, as quais podem ser transformadas em hipóteses teóricas. É suficiente para isso formalizar seu conteúdo dizendo que: I - geração de tecnologia (y) depende da presença de micro-poderes (x) (preocupados localmente com esse problema). II - Mas que micro-poderes que começam a atuar tecem relações com micro-poderes de um es paço colateral, estabelecendo um dispositivo de aliança (formal ou informal). III - O estabelecimento do dispositivo de aliança tende a fazer surgir conflitos oriundos de poderes já constituídos, institucionalizados. IV - A superação dos conflitos se efetua na medida em que os micro-poderes próprios à geração de tecnologias e os do dispositivo de aliança estabelecem relações positivas com os micro-poderes de um espaço externo bem maior do que aquele onde se pretende gerar a tecnologia. V - Em definitivo, é a relação de associação entre micro-poderes locais, dispositivo de aliança e micro-poderes de um espaço maior que permite neutralizar o conflito e desenvolver a geração de tecnologias. Essas cinco hipóteses formais sugeridas abstratamente são o que Bachelard chamaria uma totalidade sintética a priori. Elas não são diretamente proposições tiradas da teoria, mas são (com todas as reservas necessárias de serem apenas um exemplo) elaboradas a partir dos pressupostos da teoria. Não são ainda operacionalizadas. Mas se pode perceber que o processo de geração de tecnologia nova está na realidade na dependência de micro-poderes que devem estar em força suficiente para, de um lado, superar conflitos e, do outro, gerar a tecnologia. Poder-se-ia refinar o modelo, mostrando que a relação micro-poderes/geração de tecnologia gera uma primeira forma de saber; que essa primeira forma de saber se intensifica e tende a se tornar qualitativa no momento do estabelecimento dos dispositivos de aliança e que, por sua vez, esse saber associado ao poder se opõe ao saber detido pelos poderes constituídos; mas que, finalmente, a superação dessa oposição poderia ocorrer no momento em que os micro-poderes locais e o dispositivo de aliança se unem aos poderes de um espaço externo e ao saber do mesmo, para investi-los no processo de geração de tecnologias.
22
A CONSTRUÇÃO DO OBJETO CIENTÍFICO NA INVESTIGAÇÃO EMPÍRICA - MARRE, Jacques A.L.
Nesse caso, o sistema de relações seria um pouco mais complexo e mais próximo dos pressupostos da teoria de Foucault, onde saber e poder estão intimamente associados. Chegado a esse ponto do processo dialético ascendente, através do qual o objeto se constrói contra o saber ou a representação imediata do objeto, torna-se evidente que, no próprio objeto empírico, haverão de se identificar as propriedades que resultam das relações estabelecidas no nível teórico. No caso do exemplo acima citado, a geração de tecnologia, se ela depende do saber e de micro poderes associados, terá, como conteúdo, propriedades que resultam desse saber e desse poder. Não é por acaso, por exemplo, que no RS, em Bento Gonçalves, ao lado da produção da uva se criou e se gerou uma tecnologia capaz de construir sobretudo móveis de cozinha, sob a forma de uma setor autônomo. Na realidade, os micro-poderes dos artesões toneleiros, capazes de fazerem barris para o vinho, associados aos conhecimentos dos funileiros e serralheiros, produziram não somente um setor industrial relativo a móveis, mas sobretudo um tipo de móvel que tinha aceitação no mercado dos anos 70, devido à forte explosão demográfica e à transferência de muitos jovens para a cidade. Mas, do outro lado, como o setor principiante se articulou com um espaço maior, tanto para escoar a produção, como para aperfeiçoá-la, um saber técnico foi aperfeiçoando o nível e tornando-o aceitável e comerciável dentro de um espaço maior de mercado. Na prática, o produto atual resulta de micro-poderes e saberes acumulados e sintetizados, mas capazes de se integrar nos saberes dos primeiros artesões. Talvez até seja possível demonstrar que a taxa crescente da produção tem uma relação com o nível qualitativo e talvez quantitativo das transformações dos saberes, associado à formação dos micro poderes e sua institucionalização tanto organizacional como empresarial. Será que com esse exemplo sempre parcialmente inadequado se mostrou que da escolha de um tema se pode chegar à construção de um sistema de hipóteses teóricas, através de uma dialética ascendente? Pelo menos é o que se pretendeu sugerir. Falta todavia perguntar-se: qual é a relevância de tal construção?
2.2.4 - Relevância da construção teórica De fato não se pode avaliar um problema de pesquisa senão quando todo o processo ascendente tenha sido pelo menos formulado hipoteticamente. A dialética que preside a essa formulação deve ser de tal modo sugerida que, uma vez formuladas as hipóteses e os objetivos de cada uma delas – que anteci-
23
A CONSTRUÇÃO DO OBJETO CIENTÍFICO NA INVESTIGAÇÃO EMPÍRICA - MARRE, Jacques A.L.
pam os resultados – , o próprio autor se encontrará diante da necessidade de perguntar: é o problema formulado relevante? Poderá até formular perguntas anexas, como a de saber se não somente é relevante mas viável e operacionalizável, ou ainda se, pelos resultados que se espera obter através dos objetivos traçados, se poderá chegar a conclusões importantes, capazes de ser generalizáveis para além do caso estudado. Sem dúvida, formular todas essas perguntas é até certo ponto iniciar uma avaliação que pode ser auxiliada por colegas de pesquisas ou outros pesquisadores que trabalham na área. Acredita-se que a relevância depende muito da capacidade de o autor sugerir a adequação da sua problemática construtiva às necessidades do ambiente social. Mas tais sugestões são sempre relacionadas com a teoria. Alguns critérios podem ajudar a traçar melhor a relevância. Primeiro, pode-se perguntar até que ponto o tema assim elaborado responde a determinadas questões concretas e práticas da sociedade histórica em que se vive; ou seja, mostrar como ele se insere no processo de desenvolvimento, respondendo a determinadas questões práticas, e como ele se articula com essas questões, esclarecendo-as ou fornecendo subsídios operacionais para solucioná-las. De qualquer modo para isso levar-se-ão em conta as pro priedades do tema que a abordagem teórica permitiu formular. Segundo, pode-se perguntar pelo quadro das hipóteses teóricas formuladas e o poder operacional das mesmas, se o estudo empreendido traz alguma contribuição, aperfeiçoamentos, esclarecimentos em relação não somente à teoria vigente mas às conclusões já alcançadas. Dito de outro modo, e talvez de maneira mais simples, toda investigação empírica é um acontecimento histórico que vai ocorrer e que supõe uma soma de conhecimentos já adquiridos por pesquisas teóricas e empíricas anteriores. A pro posta se relaciona e se situa em relação a esses conhecimentos anteriores. Será que ela os aperfeiçoa, torna-os mais operacionais, ou será que inova? Dito de outro modo, convém expressar o modo pelo qual ela se situa em relação a todos esses conhecimentos e resultados obtidos, quer seja do ponto de vista teórico, quer empírico. Finalmente, uma terceira questão diz respeito à viabilidade não apenas econômica, mas igualmente em termos de recursos humanos, tempo, infra-estrutura. Muitas pesquisas no Brasil, pelo fato de serem informadas ou constituídas a partir de pressupostos teóricos formulados em condições sociológicas e históricas diferentes das nossas, tendem a sugerir problemas que implicam o uso de não somente altos custos, mas recursos humanos dos quais não se dispõe. Há necessidade portanto de se formular a
24
A CONSTRUÇÃO DO OBJETO CIENTÍFICO NA INVESTIGAÇÃO EMPÍRICA - MARRE, Jacques A.L.
questão da viabilidade da elaboração proposta nesse nível da elaboração, a fim de proceder a uma reavaliação crítica de todo o processo dialético ascendente e incluir as modificações necessárias. Respondidas as três perguntas mencionadas, não se deve acreditar que a construção do objeto terminou. Há necessidade de proceder a uma dialética descendente, que normalmente se costuma chamar de metodologia, e que é relativa a procedimentos e técnicas de coleta de dados.
III - DIALÉTICA DESCENDENTE NA CONSTRUÇÃO DO OBJETO Supõe-se que tenhamos percorrido todo o percurso anterior, ou seja, que se tenha feito uma primeira avaliação da importância do problema assim formulado. A questão que se coloca na análise da dialética descendente, agora, é saber como transformar o problema formulado em uma seqüência de atos operacionais, de tal forma que se permita a concretização e a viabilidade empírica da investigação. A questão não é fácil de solucionar porque ela implica, como Bachelard o expressou, que aquilo que foi objeto de raciocínio ascendente, na realidade não se afastou do real; pelo contrário, pode ser experimentado ou demonstrado através de técnicas e procedimentos que de um lado se adequam ao esquema teórico das hipóteses formuladas e, de outro, possibilitam a demonstração, corroboração ou verificação empírica dessas hipóteses teóricas. Dito de outro modo, com a formulação das hipóteses dentro de um quadro teórico, tem-se mostrado que a realidade empírica não é imediatamente observável e observada, mas que a observação se fará através do ponto de vista teórico, adaptado na elaboração das hipóteses. Se as hipóteses pressupõem uma perspectiva marxista de abordagem do real, haverá necessidade de encontrar e escolher o método e as técnicas tanto de amostra como de verificação, que possibilitem a demonstração dessas hipóteses baseadas nos pressupostos da teoria marxista. Se, pelo contrário, as hipóteses foram formuladas com base nos pressupostos de Foucault, o qual trabalha com linguagem e enunciados, haverá necessidade de formular uma dialética descendente que leve em conta procedimentos, métodos, amostras capazes de trabalhar com esse material empírico, oriundo de uma coleta de dados que visa antes de tudo à coleta de um material referente a dados de linguagem (histórias de vida, material biográfico em geral). Nem todas as técnicas e métodos são adequados a qualquer elaboração e formulação do problema. Convém lembrar
25
A CONSTRUÇÃO DO OBJETO CIENTÍFICO NA INVESTIGAÇÃO EMPÍRICA - MARRE, Jacques A.L.
que técnicas e métodos experimentais, para Bachelard e Bourdieu, são, respectivamente, teoria materializada para o primeiro (Bachelard, 1968) e teoria em ato ou disseminada numa série de atos epistemológicos e hierárquicos, para o segundo (Bourdieu, 1978: 224). A dialética descendente da formulação do problema consiste justamente nessa transformação do problema teórico em problema operacionalizável, partindo das hipóteses teóricas já estabelecidas no processo dialético ascendente anteriormente descrito. Antes de analisar o processo dialético descendente da formulação de um problema, esclarecemos a seguir um pressuposto básico: o da não dissociação entre teoria e metodologia. Pode-se sem dúvida distinguir a parte teórica de um projeto, elaborada com a ajuda de uma revisão da literatura, da parte mais metodológica a ser elaborada na dialética descendente de um projeto de pesquisa. Mas distinguir não é dissociar ou separar. Não há a teoria como algo externo que se colocaria numa forma nominalista na introdução, como é o caso do trabalho de Znaniecki e Thomas em Polish Peasant (1928). Não há também restauração rigorosa de um processo de cultura da pobreza através de uma metodologia que permite a reconstrução orgânica dos fatos ligados a essa cultura, sem que haja teoria ou teorias dando suporte à restauração efetuada. A perspectiva de Bachelard, Koyré e Bourdieu supõe a integração da teoria, sendo que a primazia é sempre da razão teórica que sugere formas de experimentação. Essa tradição vem de Galileu, que inventa planos inclinados para tentar mostrar como, através da variação desses planos e suas inclinações, a aceleração dos corpos em queda livre como constante universal, na realidade, não se entende sem uma relação com hipóteses teóricas, cujos pressupostos são baseados, de um lado, na teoria Coperniciana e, do outro, na filosofia Platoniciana, a qual sugere que a realidade material que afeta nossos sentidos pode ser matematizada, ou seja, transformada em idéias matemáticas. Bachelard, Bourdieu e outros não fazem nada mais do que retomar essas perspectivas. Sem dúvida não desejam dizer necessariamente que todo o universo do mundo social pode ser matematizado, mas sugerem sobretudo que não se pode separar a metodologia da teoria. Bourdieu escreve que a separação atual que existe entre teoria e metodologia não é fecunda e conduz a duas abstrações.Pelo contrário, escreve Bourdieu, “penso que se deve recusar completamente esta divisão em duas instâncias separ adas, pois estou convencido de que não se pode reencontrar o concreto combinado duas abstrações”
(Bourdieu, 1989: 24). Se isso for verdade, haverá necessidade de mostrar como, no processo de dialética descendente, se pode alcançar uma descrição dos métodos, técnicas e procedimentos de coleta dos dados que não seja
26
A CONSTRUÇÃO DO OBJETO CIENTÍFICO NA INVESTIGAÇÃO EMPÍRICA - MARRE, Jacques A.L.
uma metodologia separada, mas pelo contrário uma teoria materializada numa sucessão de atos sucessivos, capazes de apreender a realidade empírica que o quadro de relações teóricas sugere. Iniciar-se-á pela formulação das dimensões operacionais e pelos indicadores. Mostrar-se-á, em segundo lugar, como sugerir uma amostra adequada e com que critérios. Tratar-se-á de apresentar qual a relação das técnicas de coleta dos dados com as hipóteses e, finalmente, como constituir uma codificação que distribua os dados segundo as hipóteses formuladas ou os conceitos presentes nessas hipóteses. Tentar-se-á então sugerir uma modalidade de relatório. Cada um desses pontos não é exaustivo, mas se situa no caminho da dialética descendente da construção do objeto. Veja-se, portanto, a primeira etapa dessa dialética descendente: a formulação das dimensões operacionais e dos indicadores.
3.1 - Dimensões Operacionais e Indicadores Na dialética ascendente, terminou-se por um quadro de hipóteses que incluía relações entre um tema escolhido, definido provisoriamente, e um ou vários conceitos das hipóteses teóricas. A questão central agora a ser analisada é mostrar que o tema escolhido e as relações hipotéticas formuladas contêm um certo número de dimensões operacionais. Essas são como que um efeito ou uma conseqüência do modo pelo qual os conceitos teóricos e explicativos agem dentro desse tema, determinando-lhe propriedades. Retomando uma analogia que Mauss toma da Física, sabe-se que um metal aquecido se caracteriza por uma dilatação. Dito em outras palavras, a dilatação é um efeito do aquecimento. Há uma relação entre os dois fenômenos. Do mesmo modo, se variarem as causas ou os conceitos teóricos pelos quais são expressos, teremos efeitos variados. A questão central da dialética descendente consiste em identificar no tema as dimensões operacionais que são um efeito das causas hipotéticas, as quais devem ser igualmente operacionalizadas. Um exemplo, ainda que não seja da Física, permitirá melhor captar esse processo de operacionalização. Chamar-se-á de dimensões operacionais o modo pelo qual se imagina que um conceito teórico possa ser concretizado na realidade empírica. Weber realiza essa operacionalização, criando seus “tipos ideais”. Estes não são outra coisa do que uma acentuação e sistematização coerente de determinadas características do processo ou dos processos empíricos estudados. Veja-se como ele procede. Abrem-se duas colunas, uma referente à ética protestante, outra referente ao espírito do capitalista empreendedor. Constrói-se uma dinâmica operacional que acentua de um modo sistemático o comportamento ético do
27
A CONSTRUÇÃO DO OBJETO CIENTÍFICO NA INVESTIGAÇÃO EMPÍRICA - MARRE, Jacques A.L.
protestante, que deseja ser salvo e para isso realiza obras (trabalhos) que Deus abençoe, as quais por sua vez, em sendo um sucesso, levam o crente à prática do ascetismo e a uma nova disponibilidade de escutar o chamado de Deus, aprofundando a sua vocação. Fazendo novas obras, ele novamente tem sucesso, e é levado a praticar mais a humildade e o ascetismo religioso; a dinâmica é temporal e dura até a hora da morte, para o fiel que acredita na salvação. Ao lado dessa dinâmica religiosa, Weber constrói uma dinâmica econômica necessária à sobrevivência. Nessa, o trabalho é valorizado, porque o indivíduo que quer ser salvo não pode ser passivo na sua resposta a Deus. Não pode praticar mais a mendicância. A ética protestante lhe sugere o trabalho. Portanto, o indivíduo investe no trabalho econômico suas aptidões e capital, se os tiver. Calcula racionalmente os lucros possíveis que serão frutos dessa ação econômica. Tem esperança de êxito. Se o sucesso vier com os lucros, o que ele fará? Weber nos diz que, no espírito do capitalismo, o agente econômico não usa os lucros para viver na riqueza, mas continua tendo uma vida frugal e modesta. Os valores da vida religiosa informam sua ação econômica. O que fazer então com os lucros? Ele os investe, e a dinâmica econômica recomeça. Aptidões pessoais e lucros são investidos; e, com novo cálculo racional, uma chance de outros lucros é possível. Uma tabela permite recapitular essa dupla dinâmica correlacionada, da vida religiosa e da vida econômica. Os dados serão procurados para demonstrar essa relação hipotética e teórica entre conceitos operacionais que são, na prática, um desdobramento da relação abstrata entre ética protestante e espírito do capitalismo. Uma tabela permite visualizar melhor essas dimensões:
Tabela I Ética Protestante 1) O indivíduo crente quer ser salvo. A importância do conceito de predestinação. Deus chama os predestinados. 2) Resposta ao chamamento de Deus pela fé e ação na fé. 3) Realização de obras: esperança de ser abençoado pelo seu trabalho. 4) Êxito no trabalho: sinal da sua relação de amor com Deus e de ser um predestinado. 5) Humildade, ascetismo. 6) Disponibilidade para novamente escutar o chamamento de Deus e recomeçar a agir.
Espírito do Capitalismo 1) Ação econômica para a sobrevivência pelo trabalho. 2) Investimento de aptidões no trabalho, empreendimento capitalista. 3) Cálculo racional dos lucros, esperança de obtê-los. 4)Sucesso do empreendimento econômico ou lucros. 5) Frugalidade, modéstia. 6) Disponibilidade dos lucros para reinvestimentos.
28
A CONSTRUÇÃO DO OBJETO CIENTÍFICO NA INVESTIGAÇÃO EMPÍRICA - MARRE, Jacques A.L.
Todo esse trabalho de construção do objeto em Weber é anterior à própria pesquisa empírica. Só depois de ter construído as duas dinâmicas correlativas uma da outra ele pode se perguntar que tipos de dados procurar para demonstrar ou verificar essa relação. Os dados não existem em si mesmo, fora do sistema das dimensões operacionais, mas a procura dos mesmos é guiada concretamente por essas dimensões operacionais relacionadas entre si, tanto verticalmente quanto horizontalmente. A explicitação da metodologia weberiana pode ter sido longa, mas importa ressaltar que os clássicos da sociologia procedem desse modo, com variações que decorrem das suas escolhas filosóficas e teóricas. Poderá se encontrar em Durkheim um esquema análogo, sugerindo que as taxas coletivas de suicídios variam quando se faz variar historicamente a dinâmica de integração (efervescência) ou desintegração (anomia) social. Numa dimensão histórica, descobre-se que sociedades altamente integradas, quer seja por valores, quer seja por razões diversas, têm baixas taxas de suicídio, e os suicídios são al-
truístas. Em oposição, as sociedades históricas, com certo nível de desintegração, têm tendências à prática de um suicídio egoísta. Não há suporte para o indivíduo. Um terceiro tipo, próprio das sociedades industrializadas mas igualmente com instituições econômicas pouco integradas, determina um modo de suicídio que é fruto das variações econômicas e falências industriais. Trata-se do suicídio anômico. A maneira de construir o sistema de relações, entre conceitos teóricos específicos de determinados tipos de sociedade e tipos de suicídios, é diferente de Durkheim para Weber e vice-versa; mas uma coisa eles têm em comum; o suicídio, suas propriedades altruístas, egoístas, anômicas estão em relação com os tipos de integração efervescente ou anômica (entropia) das sociedades. De qualquer modo, esses exemplos sugerem que um determinado modelo de relações teóricas abstratas, ou seja, formuladas ao nível dos conceitos teóricos, pode ser desdobrado em dimensões operacionais. Cada dimensão operacional de um determinado conceito ou cada conjunto de dimensões operacionais integradas entre si, manterá relações variáveis com outro conjunto de dimensões operacionais de um outro conceito. Pode-se continuar o desdobramento lógico e chegar aos indicadores quantitativos, até os índices, se for o caso. Tudo isso dependerá de a pesquisa ser qualitativa ou não. Um exemplo pode ser dado na seguinte tabela, referente à relação entre status sócio-econômico (SSE) e educação. Trata-se, nesse caso, de um desdobramento que tende para a quantificação pura e simples dos conceitos teóricos. Suponha-se que haja uma relação quase óbvia entre status sócio-econômico dos pais e nível de educação dos filhos, mas que essa relação possa ser atenuada, modificada, pelo fato de existir em deter-
29
A CONSTRUÇÃO DO OBJETO CIENTÍFICO NA INVESTIGAÇÃO EMPÍRICA - MARRE, Jacques A.L.
minadas cidades ou municípios um acesso maior ou menor dos estudantes a cursos diurnos e noturnos. Primeiro, se afirma a relação teórica: status sócio-econômico dos pais determina nível de educação
dos filhos. Posso colocar o desdobramento dos conceitos teóricos dentro de uma tabela, a qual se insere na dialética descendente. Com essa tabela, está-se construindo uma possibilidade de adaptar os nossos conceitos teóricos à realidade empírica a pesquisar.
Tabela II* Relação entre Status Sócio-Econômico e Educação Conceitos teó- Definições ricos
Dimensões
Indicadores
Índices
provisórias operacionais
Status sócio-
Posição
Prestígio
1) Pontos obtidos numa De SSE = V1 + V2
econômico
ocupada na
escala quantitativa de
dos pais (SSE)
estratifica-
prestígio = V1
+ V3
ção social Renda
2) Valor dos rendimentos em Cr$ = V2
Tempo de es-
3) Nº de anos de escola
tudos
= V3
Educação dos
Conjunto de Tempo de es-
4) Nº de anos de escola De educação = V4
filhos
conhecimen- cola dos filhos
dos filhos = V4
+ V5
tos adquiri-
dos no determinado tempo Nível de conhe- 5) Pontos no teste de cimentos
conhecimentos = V5
*Nota: Quadro construído a partir da Teoria da Modernização, que vigorou dos anos 50 aos 70. Foi testada nos Estados Unidos, no Brasil e na Índia, mas não vingou, quando se testaram seus enunciados.
30
A CONSTRUÇÃO DO OBJETO CIENTÍFICO NA INVESTIGAÇÃO EMPÍRICA - MARRE, Jacques A.L.
Trata-se de um tipo de teoria muito bem formulada logicamente, mas que não consegue captar a com plexidade do real. A construção acima obedece ao mesmo movimento dialético descendente. Primeiro, achar a hi pótese teórica, usando uma teoria. Segundo, tentar menos deduzir do que desdobrar e imaginar os processos operacionais que permitem captar a realidade empírica tanto do SSE quanto da educação. Ora, essas dimensões operacionais são, respectivamente, o tempo de escola dos pais, o prestígio, a renda, para o primeiro conceito teórico. Para o segundo, que é referente à educação, tem-se novamente o tempo de
escola dos filhos, e o conjunto dos conhecimentos. Os indicadores são termos que têm a probabilidade de medir quantitativamente as dimensões operacionais. Podem ser diferentes de meio social para meio social. No caso de exemplo no qual se quer medir a educação formal, o indicador da dimensão operacional “tempo de escola” é o número de anos de estudo. O indicador quantitativo capaz de medir a dimensão operacional de conjunto de conhecimento é um teste de conhecimentos graduado, composto de perguntas que supõem um nível de formação cada vez mais alto, para serem respondidas. O aluno que res ponde somente às questões mais simples, como identificar certas palavras pela leitura, obtém os pontos mínimos da escala, e aquele que responde a todas as perguntas com dificuldades crescentes, pode obter o máximo de pontos. Veja-se que, nesse caso, quem responde às primeiras perguntas básicas do teste de conhecimento deve ser também quem tem um número mínimo de anos de escolaridade formal. O contrário é também verdade: quem tem alto número de anos de escola deve ser também aquele que tem alto nível de pontos no teste de conhecimento. Nesse tipo de construção do objeto, através de um sistema de dimensões operacionais interrelacionadas, a coerência entre elas deve ser muito forte, para captar com o máximo de probabilidade a realidade empírica a ser investigada. Também esse tipo de construção, uma vez que os dados são coletados através de questionários, permite a construção de índices. No caso citado, pode-se construir um índice de SSE e um índice de educação. Nesse caso, com programas de computadores, pode-se estabelecer uma correlação estatística R1 entre as variáveis quantitativas relativas ao status sócio-econômico e as variáveis quantitativas relativas à educação. Seja qual for o modo de operacionalizar um modelo de conceitos teóricos relacionados no processo da dialética ascendente, a transformação desse modelo em conceitos operacionais (na dialética
31
A CONSTRUÇÃO DO OBJETO CIENTÍFICO NA INVESTIGAÇÃO EMPÍRICA - MARRE, Jacques A.L.
descendente) permite evidenciar que há uma relação entre as dimensões operacionais de um conceito teórico e as de um outro conceito teórico, relacionadas ao nível teórico. Toda essa descrição do processo de operacionalização dos conceitos teóricos em conceitos operacionais e indicadores (até índices, se for necessário), se situa no caminho da dialética descendente, que vai do teórico à realidade empírica. Todavia, a dialética descendente não pára no nível da operacionalização; quando essa última está efetivada, convém perguntar que tipo de amostra se pode fazer e através de que técnicas se poderão coletar os dados.
3.2 - Tipos de Amostra Uma amostra é função de um certo modo da problemática colocada. Ela não é necessariamente um cálculo estatístico. Ela pode ser qualitativamente escolhida. De qualquer modo, a sua magnitude ou diversificação está relacionada com o campo da realidade empírica que se deseja investigar. Examinamse aqui apenas dois casos de amostra: as escolhidas qualitativa ou quantitativamente. Na amostra qualitativa, pode-se designar um certo número qualitativo de documentos, atas, dossiês históricos, referentes ao período estudado e a uma quantidade de instâncias, instituições ou organizações. No caso de Max Weber e do seu estudo sobre a relação entre a ética protestante e o espírito do capitalismo, os documentos são referentes à realidade empírica de cada um dos conceitos teóricos e das suas respectivas dimensões operacionais. Weber trabalha com documentos históricos, culturais, religiosos e econômicos. Esses são fáceis de achar quando o sistema é operacionalizado. Há, todavia, outros tipos de amostras qualitativas. Recentemente, com o retorno das análises biográficas, histórias de vida, tem-se levantado o problema da amostra conveniente a essas análises. Bertaux, por exemplo, no seu estudo sobre os padeiros na França, não planeja de maneira alguma uma amostra quantitativa. Porém, ela tem que ser representativa e válida em relação ao universo que o mesmo estuda. Ora, Bertaux – e alhures muitos outros autores, como Aspasia Camargo, Elizabeth Gelin (1974) – usa dois conceitos básicos: o da diversificação da amostra e o da saturação. Veja-se primeiro a temática da pesquisa. Bertaux parte de um ponto de vista marxista-althusseriano e tenta reconstruir o universo empírico dos padeiros artesões, que são legião na França. Localizam-se na esquina de cada quarteirão e, desde seis ou sete horas da manhã, vendem pão quente, feito a partir de uma base artesanal, assim como o meia-lua e outros tipos de pães. A questão que se coloca para Bertaux é a de escolher um certo número
32
A CONSTRUÇÃO DO OBJETO CIENTÍFICO NA INVESTIGAÇÃO EMPÍRICA - MARRE, Jacques A.L.
de histórias de vida a partir das quais ele poderá reconstruir a dinâmica histórico-estrutural de um grupo social bem caracterizado e e em luta contra as grandes indústrias de fabricação do pão. Na prática, sua escolha não é pesquisar apenas os padeiros, mas considerar o campo sócioeconômico dentro do qual a fabricação do pão se realiza, desde o momento em que um operário se casa e compra um ponto de venda num determinado quarteirão. Ora, para recompor todas as relações do grupo social dos padeiros, Bertaux usa o conceito de “diver sificação” da amostra, ou seja, coleta histórias de vida junto tanto daquele que vende em pontos de venda de padaria, quanto dos que vendem junto aos padeiros. Também recolhe histórias de vida com chefes de Sindicatos dos Padeiros, que retratam as lutas. Na prática, através da diversificação, do conteúdo das histórias de vida, Bertaux multiplica não apenas os discursos mas os temas, os processos estruturais que animam a fabricação do pão, as lutas; sem uma amostra diversificada, cujos temas são analisados após cada coleta de cada história de vida, não haveria possibilidade de reconstruir o universo diversificado de todas as relações individuais e estruturais, assim como dos principais fatos e conflitos de um determinado período. Mas com a diversificação da amostra e o acúmulo de temas próprios ao campo sócio-econômico dos padeiros, chega-se a uma segunda característica dessa amostra: a saturação. De fato, depois de um determinado número de histórias de vidas coletadas, os temas abordados pelos primeiros tornam-se repetitivos. De certa maneira, a dinâmica e o conteúdo dos discursos que as histórias de vida desvendam não traz mais novidades. Recolheuse de certa maneira a linguagem que envolve tanto fatos estruturais como conflitos e relações com políticas de preços relativos à venda do pão etc. O universo e a dinâmica da vida dos padeiros, sejam eles estruturais ou conflitivos, emerge através dessa amostra, cujos critérios básicos são a diversificação ini-
cial dos entrevistados no campo pesquisado, para obter uma multiplicação dos temas e um aprofundamento da sua riqueza. O acúmulo desses mesmos temas se faz através de um certo número de histórias de vida que tendem, pouco a pouco, a se repetir; ou seja, a sugerir que, a partir dos testemunhos qualitativos e dados quantitativos, a amostra pode ser considerada como tendo captado o universo das ações, preocupações e conflitos de um grupo social determinado, de um modo representativo e válido. A satu-
ração se expressa na repetição. Não houve, nesse caso, nem determinação do percentual numérico a ser pesquisado, nem cálculo estatístico amostral. Todavia, houve, dentro das histórias de vida coletadas, apreensão válida da ação de um grupo social determinado: os padeiros, no caso citado.
33
A CONSTRUÇÃO DO OBJETO CIENTÍFICO NA INVESTIGAÇÃO EMPÍRICA - MARRE, Jacques A.L.
Eis um tipo de amostra! A técnica para designá-la se situa no caminho da dialética descendente da construção do objeto. A própria técnica é sugerida pelo ponto de vista teórico que orienta a análise. Esse ponto de vista não visa à reconstrução pura e simples de histórias de vida, cuja justaposição e devolução apresentariam, como no caso de Oscar Lewis, uma cultura da pobreza. Não se trata de restaurar apenas o fato social original dos padeiros, num discurso recolhido, e de devolver integralmente esse discurso à sociedade. A perspectiva da análise de Bertaux sobre os padeiros é outra. Ele quer reconstruir uma dinâmica histórico-estrutural empírica, cuja estruturação será guiada por hipóteses teóricas. A dinâmica histórica da realidade empírica contida nas histórias de vida coletada será subordinada à dinâmica reconstrutiva das hipóteses teóricas. A construção e a escolha da amostra, através dos conceitos de diversificação e saturação, tem como finalidade possibilitar essa subordinação de uma realidade empírica coletada a um esquema teórico, que vai permear e ordenar toda a análise empírica realizada. Eis o que pode ser dito de um modo suscinto para o primeiro tipo qualitativo de amostra, no que diz respeito a sua relação metodológica e técnica com a teoria. No que diz respeito à amostra quantitativa calculada sobre a base de um universo estatístico, a problemática, se não é idêntica, é análoga. A amostra não é relativa a uma única pergunta do questionário, na perspectiva da construção do objeto, mas relacionada com as hipóteses teóricas, as quais indicam se a amostra tem que ser aleatória, estratificada, longitudinal etc. Ela não surge apenas da necessidade de saber quantas pessoas devem ser pesquisadas para se ter uma representatividade boa. A questão não se reduz a isso. Ela se relaciona com o quadro das hipóteses teóricas e das relações estabelecidas conceitualmente nessas hipóteses. É em função desse quadro das hipóteses e do conteúdo teórico das mesmas, que se deve decidir se a amostra estatística será simples, aleatória, estratificada etc. Dito em outras palavras, a técnica ou as técnicas de estabelecimento da amostra são técnicas que estão relacionadas com a teoria. É neste sentido que técnicas e procedimentos diversos são, para Koyré, Bachelard, Bourdieu, sucessivamente: teoria encarnada, para o primeiro (Koyré, 1966); teoria materializada, para o segundo (Bachelard, 1968); teoria em ato, para Bourdieu (Bourdieu, 1978: 224). Será que com as técnicas qualitativas ou quantitativas de amostragem tem-se alcançado o fim da dialética descendente da construção do objeto científico? A resposta é não. Cabe analisar ainda o modo de reconstruir os dados coletados, através de várias técnicas de coleta subordinada ao quadro teórico. Rapidamente, passar-se-á em revista a codificação, o experimento, a interpretação, no sentido de mostrar
34
A CONSTRUÇÃO DO OBJETO CIENTÍFICO NA INVESTIGAÇÃO EMPÍRICA - MARRE, Jacques A.L.
que também são etapas qualitativas necessárias à construção do objeto, mas situadas no caminho da dialética descendente.
3.3 - Dialética Descendente e Experimentação A codificação dos dados em função da teoria não é suficiente. Torna-se necessário submeter os dados a um controle experimental. Os tipos de experimentos que se pode estabelecer são variados. Há experimentos extremamente abstratos, outros de natureza quantitativa; e terceiros que, usando uma metodologia comparativa, permitem fazer distinções importantes e aprofundar a descoberta de uma invariância, de uma constante, de uma tendência. Shanin, na sua apresentação do Velho Marx, apresenta um controle experimental aparentemente abstrato, mas suficiente para valorizar sua interpretação de Marx. Depois de ter mostrado como o Velho Marx “pós-Capital” abandona a redação dos volumes planejados, Shanin salienta o dinamismo segundo o qual Marx apreende não somente o Russo mas domina a literatura Russa de tradição populista. Mostra como seu pensamento evoluiu, sugerindo que não é necessário para a Rússia dos anos 70 do século XIX atravessar o estágio capitalista dos sucessivos modos de produção. Pelo contrário, ele afirma que a Rússia do fim do século XIX poderia alcançar o estágio socialista, dialetizando a comuna russa chamada MIR. O que é interessante aqui não são as idéias de Marx, mas o ponto de vista da dialética descendente. Shanin apresenta a perspectiva nova de Marx, usando como controle experimental o pensamento de Engels (1820-1895). Shanin mostra como o pensamento de Marx progride, assimilando a cultura Russa, e como Engels, seu melhor amigo, continua defendendo, mesmo depois da morte de Marx, as idéias de “O Capital”. O teste experimental se faz mediante a comparação dos dois pensamentos. Enquanto um progride, outro estagna. Ora, tal controle não é uma técnica elaborada em si mesmo e por si mesmo, mas se inscreve dentro de concepção interpretativa e teórica da obra de Marx. Dito de uma outra maneira, reencontra-se nesse nível a relação entre teoria materializada numa técnica de controle e o próprio objeto estudado, isto é, o desenvolvimento do pensamento marxista na última fase de vida do próprio Marx. Outros experimentos podem ser relacionados com a teoria. Falou-se da geração da tecnologia como objetos de estudo. Podem-se construir processos diversos de tecnologias importantes geradas em diversos municípios. Por exemplo, Vacaria com a maçã, Bento Gonçalves com os móveis, Livramento com o vinho Almadém, Horizontina com a fábrica de tratores e implementos agrícolas. Em todos esses casos, o processo de geração tecnológica existiu, mas de modo variado. Pode-se construir uma metodo-
35
A CONSTRUÇÃO DO OBJETO CIENTÍFICO NA INVESTIGAÇÃO EMPÍRICA - MARRE, Jacques A.L.
logia experimental e comparativa dos diferentes processos de geração a partir de um ponto de vista mais teórico-descritivo, como o de Foucault. Nesse caso, a própria geração de tecnologia se realiza através de uma formação discursiva que tem seus enunciados próprios, mas dispersos em cada município. Através da documentação, das análises de histórias de vida, podem-se reconstruir os enunciados dispersos, mas igualmente classificar o conteúdo das mesmas, no sentido de mostrar como envolvem instâncias institucionais, posições que variam de município para município. O objetivo central é tentar elucidar a presença senão de uma constante, pelo menos de uma tendência comum, ainda que diferenciada, no processo de geração de tecnologia em municípios rurais. Há portanto necessidade de organizar um experimento, mediante o qual se possam visualizar as dinâmicas diferenciadas do processo de geração de tecnologias e o que elas têm em comum. É preciso confrontar as dinâmicas de geração de tecnologia em cada municí pio; daí o método comparativo. Em primeiro lugar, pode-se destacar ou reconstruir o próprio processo de geração em cada município, com os enunciados recolhidos nas histórias de vida, e relacioná-lo com seu espaço próprio. A curva do processo vai variar, assim como o tamanho do espaço social envolvido em cada município. Pode-se, em segundo lugar, reconstruir o espaço com o espaço colateral: grandeza, tamanho, extensão. Em terceiro lugar, pode-se mostrar quais são os poderes que conflituam em cada município, com o espaço gerador da tecnologia. Na quarta parte, tenta-se captar com que alianças externas o espaço gerador da tecnologia se relaciona para superar os conflitos em cada município. Na prática, pode-se construir para cada município uma dinâmica de geração de tecnologia com seu espaço correlacionado e externo, que lhe possibilita implantar a tecnologia pensada. A questão básica é saber se num experimento desses se pode chegar, não talvez à descoberta de uma constante própria a qualquer processo de geração, mas à elucidação de uma tendência generalizante para os quatro municí pios. Ora, tal elucidação não pode ser efetivada sem um controle rigoroso de todos os elementos, agentes, instâncias envolvidas na formulação dos enunciados geradores da implantação de tecnologia nova. Mas igualmente pode-se dizer que a construção do experimento depende do próprio ponto de vista teórico adotado, a partir do qual se tenta obter uma certa individualidade dos enunciados dispersos, geradores da tecnologia nos quatro municípios. Depois de ter analisado no tempo como os enunciados são diferentes e dispersos, tanto ao nível de cada município como ao nível das diferenças existentes entre eles, é preciso procurar a “episteme” que os une, ou seja, a regra que possa unificar essa dispersão de enunciados, e reuni-la numa formação discursiva, incluindo posições e repetitibilidade de algo de um para outro
36
A CONSTRUÇÃO DO OBJETO CIENTÍFICO NA INVESTIGAÇÃO EMPÍRICA - MARRE, Jacques A.L.
município. Seria até necessário tentar descobrir se, num nível de profundidade bastante forte, não haveria um ritmo ou ritmos idênticos ou compatíveis dos enunciados, que os unem para que exista um processo gerador, ainda que este possa envolver agentes diversos e posições variadas desses agentes. No fundo, trata-se da ação simbólica, do momento criativo que, para efetivar uma geração tecnológica, se expressa de maneira diversa mas profundamente enraizada numa linguagem comum e no próprio movimento dessa linguagem, através de enunciados rítmicos, raros, envolvendo a existência de homens, de relações associativas ou conflitos e construção de uma tecnológica nova. Veja-se nesse caso como, sob o olhar da teoria, o experimento é conduzido. Em nenhum momento se deixa a teoria de lado, mas ela é subjacente a toda a prática operacional e age em cada ato sucessivo da montagem do experimento e do método comparativo usado. Se, realmente, há muitas diferenças nos municípios, mas se há uma espécie de episteme comum a toda essa geração, ainda que seja expressa em ritmos próprios a cada município, mas compatíveis entre si, dir-se-ia que se pode esperar elucidar uma tendência: a de saber como de fato, apesar das diferenças na geração, a descoberta de um ritmo comum nos conduz quase que à expressão de uma “quase constante” rítmica, sem a qual a tecnologia não seria gerada e sem a qual os enunciados, como eventos raros, não poderiam ocorrer. Não se diga que esse tipo de experimento pode ser facilmente concretizado. Apenas diga-se que a sua elaboração não depende de uma dissociação da teoria e da metodologia, mas muito mais da materialização da teoria numa metodologia experimental. Trata-se de uma etapa qualitativa na dialética descendente.
3.4 - As Técnicas de Codificação As técnicas de codificação dos dados são múltiplas e diversificadas. Codificar um questionário fechado para obter, classificar e organizar respostas quantitativas não é a mesma coisa que codificar uma história de vida, na qual a pessoa entrevistada se refere a fatos, acontecimentos vividos por ela e seu gru po, dentro de um processo histórico estrutural típico. Na própria palavra expressa pela pessoa entrevistada, as declarações ou argumentações subjetivas de uma história de vida misturam-se com fatos objetivos. Será portanto necessário tentar codificar as duas faces da vida experienciada: a face interna, íntima ou subjetiva, e a face externa com seus dados, fatos e verbalizações objetivas. Talvez a grande redescoberta da pesquisa atual seja justamente de ter dado novamente a palavra ao entrevistado. Mas torna-se mais
37
A CONSTRUÇÃO DO OBJETO CIENTÍFICO NA INVESTIGAÇÃO EMPÍRICA - MARRE, Jacques A.L.
difícil codificar um conteúdo que se expressa livremente numa narrativa, ou na face interna da narrativa da história de vida. Duas tendências de codificação se apresentam. A primeira parte da realidade objetiva da entrevista ou história de vida. Considera essa como um dado que em si tem seu significado. Elaboram-se portanto técnicas de interpretação. Pode-se então distinguir na entrevista o que é introdução ou resumo
sumário introdutório, isto é, uma frase recapitulativa do conteúdo do texto. Segundo, pode-se analisar o próprio texto, dividindo o mesmo em parágrafos. Chamar-se-á essa fase de segmentação. Terceiro, pode-se considerar o conteúdo da dinâmica do texto sob o ângulo da narrativa dos fatos, da argumen-
tação utilizada e da padronização teórica. São três níveis que aparecem numa história de vida: o indivíduo conta, narra; o indivíduo argumenta, explica as suas posições faz as suas reflexões próprias, íntimas sobre a sua vida, seu grupo, a estrutura social. Finalmente o indivíduo insere determinados padrões teóricos presentes em ciências diversas. Numa entrevista realizada junto a migrantes, a dinâmica apresentada por eles historiava fatos sucessivos, empregos diversos. Argumentavam a respeito da separação das suas mulheres e filhos. Algumas vezes introduziam o caráter exploratório da relação que existia entre eles e os patrões sucessivos. Na prática, nesse último nível, já sugeriam como suas experiências de trabalho eram na realidade espoliadas, exploradas. Passavam de um nível da narrativa para o nível da teoria marxista vulgarizada. Através de técnicas diversas, pode-se reconstruir de um certo modo a história de vida de cada um dos indivíduos e estabelecer um quadro comparativo. A perspectiva ou a tendência desse tipo de interpretação é, a partir do fato ou processo da própria história, restaurar esse processo individual e coletivo e até estrutural. Pode-se até, no próprio processo de restauração do fato, construir conceitos teóricos capazes de generalizar um pouco, ou seja, seguir parcialmente a escola de Chicago (1925-1935). Veja-se que, nesse caso, o caminho da restauração do conteúdo é rigorosamente indutivo. A questão é: chega-se a uma generalização ou à elucidação de uma tendência mais geral através desse caminho indutivo, muito técnico e somente teórico a posteriori? Popper já nos assinalou que, da observação de 99 cisnes brancos, não posso concluir a existência de que “todos os cisnes (100%) são brancos”. Pode haver um cisne negro por aí... Da restauração de 10 a 15 histórias de vida comparadas não posso concluir uma generalização (Popper, 1974), chegar a uma constante ou a uma elucidação mais universal. O caminho que se propõe, na perspectiva da construção do objeto na fase de uma dialética descendente, é bem diverso. Estabeleceu-se, no momento extremo da dialética ascendente, uma série de
38
A CONSTRUÇÃO DO OBJETO CIENTÍFICO NA INVESTIGAÇÃO EMPÍRICA - MARRE, Jacques A.L.
relações, com hipóteses e objetivos correlacionados. Agora, trata-se de relacionar estas com o material empírico: as histórias de vida, por exemplo. Dito de outro modo, podem-se considerar as histórias de vida e outros documentos relativos a coleta de dados, do ponto de vista não do pesquisador e das suas técnicas, mas do ponto de vista do
foco teórico, ou seja do sistema de relações hipotéticas estabelecidas provisoriamente a priori. Supõe-se, por exemplo, a coleta de dez ou quinze histórias de vida relativas à narração do modo pelo qual uma determinada tecnologia foi gerada em diversos municípios rurais. Fala-se aqui de uma tecnologia importante (maçã, implementos agrícolas, fabricação de vinho). As histórias de vida das pessoas envolvidas nesse processo expressam testemunhos qualitativos. Para codificar o conteúdo, como se procederá? Não se procederá somente a partir da aplicação das técnicas anteriormente utilizadas, mas a partir dos conceitos teóricos chaves expressos nas hipóteses; sem dúvida, se respeitará rigorosamente o conteúdo das narrativas recolhidas. Mas a codificação, antes de tudo, procede a partir do foco da teoria ex pressa nas hipóteses. Se esse foco teórico é de Foucault, isso sugere que se deve em primeiro lugar procurar, na linguagem das histórias de vida, enunciados que revelam os micro-poderes em ação; colocarse-á em relevo esses enunciados raros. Procura-se-á configurar o espaço a eles associado. Tentará se desvendar qual é o espaço colateral relacionado com o espaço associado. Aprofundar-se-ão os conflitos individuais e estruturais narrados e presentes nos dois espaços, até descobrir a estratégia ou as estratégias usadas pelos agentes para superar os conflitos e finalmente gerar a tecnologia nova estudada. Tal perspectiva codificadora do conteúdo das narrativas não parte apenas das técnicas. Não dissocia as técnicas da teoria, mas olha o conteúdo das narrativas coletadas, ou as histórias de vida, do ponto de vista da teoria, e articula as técnicas operacionais de codificação a essa teoria, no sentido de fazer como que o próprio processo de codificação seja uma teoria em ato. Pode ocorrer que a teoria sugira a necessidade de inventar técnicas operacionais de codificação mais adequadas como tabelas, procedimentos novos de classificação. Neste sentido, o pesquisador deverá recorrer ao arsenal disponível já experimentado nas rupturas e descontinuidades das quais se falou na 1ª parte. Pode ser que também seja obrigado a criar novas técnicas. De qualquer modo, a teoria deverá sempre informar a codificação criativa. “Se eu raciocino, diz Bachelard , eu experimento. Se eu experimento, eu raciocino” (Bachelard, 1974).
Em ciência não se quer apenas comprovar determinados fatos, mas visa-se descobrir relações, elucidar tendências com o material empírico esclarecido pela teoria. À lógica da prova, substitui-se a lógica da
39
A CONSTRUÇÃO DO OBJETO CIENTÍFICO NA INVESTIGAÇÃO EMPÍRICA - MARRE, Jacques A.L.
descoberta científica, a qual implica demonstração experimental, mas também focos teóricos para iluminar fatos ou temas escolhidos e analisar as propriedades relacionadas dos mesmos através de técnicas operacionais subordinadas à teoria. Sem teoria, não haveria uma lógica da descoberta diferente da lógica do senso comum. Acredita-se aqui que, na dialética descendente da construção do objeto, o que é importante não é a dissociação das técnicas de codificação da própria teoria, mas, pelo contrário, a materialização da teoria em atos técnicos hierarquizados, o que a insere no processo de codificação e, portanto, de experimentação. Através dessa materialização ou encarnação, a teoria se enriquece de caracteres operacionais que a tornam bem mais qualitativa. Esse qualitativo não é, porém, o qualitativo abstrato da síntese hegeliana, mas o qualitativo concreto da ação técnico-experimental. Esta introduz um rigor no modo de ordenar o material empírico e mostra como em última análise esse mesmo material empírico, quando é lido com a perspectiva da teoria, revela um significado que não era imediatamente presente na sociologia espontânea do senso comum ou da opinião pública imediata. Poder-se-ia evidenciar como cada uma das técnicas utilizadas no experimento, como os sistemas de coordenadas, as tabelas de duplas entradas, as medidas de ritmos dos enunciados e compatibilidade dessas medidas entre si - formam um conjunto técnico de procedimentos que, como totalidade específica da pesquisa empreendida, não existe senão na sua relação com a teoria usada para selecioná-los e organizá-los. Apenas se elucidaria melhor o que foi dito anteriormente. Mas o trabalho lógico dessa organização coerente acrescentaria pouco. Prefere-se passar para o terceiro nível da dialética descendente: o nível da interpretação.
3.5 - O Nível da Interpretação A interpretação no nível da dialética descendente também será relacionado com toda a teoria. O ponto de vista teórico, com os conceitos usados, terá que perpassar todos os capítulos, desde a colocação do problema, até os capítulos interpretativos, passando pela metodologia usada. Não há um único momento em que se abandona a teoria científica. Ela não é apenas subjacente a toda a construção do objeto: ela é a alma da dialética ascendente e descendente da construção do objeto, até a interpretação. Ela é o foco que ilumina a demonstração empírica das relações.
40
A CONSTRUÇÃO DO OBJETO CIENTÍFICO NA INVESTIGAÇÃO EMPÍRICA - MARRE, Jacques A.L.
Era preciso que isso fosse dito, para salientar claramente o quanto o trabalho científico não é a penas aplicação de um método ou somente a reconstrução de um fato, seja ele histórico ou simplesmente um corte vertical de cunho substancialista. Todavia, para reconstruir o processo dialético ascendente e descendente da construção do objeto, sem dúvida duas questões se colocam. A primeira diz respeito à maneira pela qual se vão obter as informações e conhecimentos teóricos e operacionais necessários a essa construção; isto é a revisão da literatura. A segunda se relaciona com a peculiaridade, generalidade ou provisoriedade da construção do objeto, obtida na combinação das duas dialéticas. Tratar-se-á dessas duas questões no último capítulo: isto é, o capítulo referente à avaliação do objeto construído pela concatenação das duas dialéticas. Chamar-se-á esse capítulo de “Meios dinâmicos da construção do objeto”.
IV - MEIOS DINÂMICOS DA CONSTRUÇÃO DO OBJETO A primeira das questões referidas acima diz respeito à modalidade pela qual se concatenam as duas dialéticas. Trata-se da revisão da literatura. Essa desempenha um papel central.
4.1 - A Revisão da Literatura Geralmente, nas teses de mestrado, há um capítulo sobre a revisão da literatura. Algumas vezes, não se sabe muito bem por que ele está sendo apresentado; pois, quando se faz uma leitura da parte em pírica do trabalho, não se nota de maneira alguma como a interpretação dos dados se relaciona com esse capítulo, relativo à literatura revisada. Na perspectiva da “construção do objeto”, assinalada e apresentada anteriormente, a revisão da literatura é capital. Sem ela, nem a dialética ascendente (desde a escolha e conceituação do tema até as hipóteses e os objetivos) seria colocada. Também ela é importante para a elaboração da dialética descendente, pois é na revisão da literatura que se descobrem os conceitos operacionais, as técnicas e procedimentos estatísticos usados em outras pesquisas. Não há projeto de pesquisa sem uma boa revisão da literatura. Por isso, deseja-se fazer algumas considerações a respeito da mesma.
41
A CONSTRUÇÃO DO OBJETO CIENTÍFICO NA INVESTIGAÇÃO EMPÍRICA - MARRE, Jacques A.L.
Em primeiro lugar, a revisão da literatura é um modo pelo qual não somente se escolhe melhor um tema que é do interesse do pesquisador; mas a revisão da literatura é também a própria escolha que se faz de uma corrente teórica relacionada com o tema escolhido. Ela é, diga-se, o momento em que o pesquisador deixa de pensar em termos de senso comum, de sociologia espontânea, para se inserir numa tradição sociológica, numa corrente de pensamento teórica com a qual ele tem afinidade e dentro da qual ele tenderá a inserir todo o seu comportamento de pesquisador, vivenciando de maneira intensa o conteúdo dessa teoria, os valores que ela implica, e a concepção do mundo que ela sugere através dos seus conceitos teóricos e pressupostos axiomáticos. Isso não quer dizer que o pesquisador entre numa camisa de força. Pelo contrário, ele se abre a uma visão e percepção diferente dos objetos. Essa visão ou concepção teórica tem seus limites, mas pelo menos ela permite abandonar o chão demasiado positivista da percepção dos objetos, dados na sensibilidade imediata. A teoria é, senão um deslumbramento, pelo menos uma colina, ou o ponto alto do qual se percebe melhor a realidade empírica. A teoria realmente científica existe somente em função dessa realidade empírica. Tem pouca validade em si mesmo, se não é testável ou se não pode ser experimentada. Primeiro ponto, portanto: inserir-se numa tradição teórica com a possibilidade de desenvolver a mesma através de deslocamentos de conceitos e técnicas, criação de escalas, como Bachelard, Foucault, Koyré e Ganguilhem o observaram (Foucault, 1987). O segundo momento dessa revisão da literatura é caracterizado pela leitura que se faz da mesma. A teoria é necessária para a colocação do problema de pesquisa, pelo menos para formular a relação mais fundamental através da qual e sem a qual não há construção do objeto científico. É preciso, portanto, saber ler a teoria, comparar os problemas colocados, discernir as diferentes correntes de uma mesma tradição teórica. Na corrente marxista, há os ortodoxos, mas há os terceiros-mundistas que usam a teoria marxista de maneira diversa e há os redefinidores de certos aspectos do marxismo, como Shanin, Bourdieu. Um problema de pesquisa não está formulado simplesmente pelo fato de o pesquisador se interessar por tal ou tal questão e de justificar esse interesse. A formulação é mais difícil; ela implica um discernimento das problemáticas vizinhas, das implicações que o uso da teoria tem na formulação do pro blema, etc. Supondo que, mediante a revisão da literatura, se conseguisse formular o problema, a elaboração das hipóteses e dos objetivos a partir dos pressupostos teóricos não é um trabalho que se faz piscando um olhar sobre o programa da TV e lendo um comentário superficial de Marx, Habermas, Foucault ou de qualquer outro autor teórico.
42
A CONSTRUÇÃO DO OBJETO CIENTÍFICO NA INVESTIGAÇÃO EMPÍRICA - MARRE, Jacques A.L.
Pelo contrário, há necessidade de ir até os elementos nucleares da teoria, tal como Lakatos o sugere, e daí redescobrir quais são as relações básicas a partir das quais outras relações teóricas são elaboradas. Popper, na Lógica da pesquisa científica, descreve num capítulo o que é teoria e como de uma teoria dada, mesmo sendo matemática, não se pode tirar tudo, mas somente aquilo que os axiomas e postulados básicos possibilitam exaurir (Popper, 1974: 76). A construção das relações hipotéticas está condicionada a essa descoberta ou ao prolongamento dessa descoberta, tentando modificar o desenvolvimento da própria teoria, como Bachelard e Ganguilhem o mostram; o primeiro, ao nível epistemológico; o segundo ao nível dos deslocamentos a serem efetuados nos conceitos (Foucault, 1987: 5). Existem três critérios razoáveis que permitem guiar o jovem pesquisador, tanto na sua leitura das obras teóricas necessárias à formulação do seu problema de pesquisa, como na descoberta dos conceitos operacionais passíveis de utilização nas leituras mais empíricas. O primeiro critério se relaciona com o que diz o autor teórico. É preciso saber o que o autor deseja expressar, pelo menos da maneira mais aproximada possível, se é verdade que nunca, como Foucault diz, se pode encontrar a intuição originária do próprio autor e as condições em que brotou da vida. É preciso, dir-se-ia, captar a tese do autor, e o argumento ou os argumentos centrais. Mas isso não é suficiente; cabe uma segunda pergunta. Convém desvendar como ele diz, ou seja, quais são os procedimen-
tos metodológicos, conceitos operacionais, as técnicas que ele usa e como os concatena com uma teoria, para chegar ao resultado final, no caso de uma obra empírica revisada. No caso de uma obra teórica, o mesmo cuidado, a mesma pergunta, relativa a “como” a mensagem é entregue ao leitor, deve ser feita. Pois é na comparação dos aspectos “metodológicos”, tanto no nível teórico como operacional, que se descobrem os deslocamentos e as diferenças de conteúdos conceituais entre um autor e outro. Além disso, a análise do método teórico ou operacional de um autor fornece ao pesquisador uma gama de informações técnicas e conceituais, das quais necessitará para organizar sua pesquisa, tanto no momento da dialética ascendente do projeto como no momento da dialética descendente, de cunho mais operacional e técnico. Se não há leitura metodológica e operacional de um ou vários autores, não haverá inserção do pesquisador numa tradição teórica e experimental específica. Finalmente, existe uma terceira pergunta. Supõe-se que o pesquisador chegou a descobrir um certo número de conceitos teóricos relacionados com o tema empírico que é o objeto construído da sua
43
A CONSTRUÇÃO DO OBJETO CIENTÍFICO NA INVESTIGAÇÃO EMPÍRICA - MARRE, Jacques A.L.
pesquisa. Supõe-se que essas relações sejam relativamente bem consolidadas operacionalmente. Cabe ainda mostrar a posição que ocupam na tradição ou na corrente teórica escolhida, ou em oposição a outras correntes teóricas próximas. Ora, não se pode mostrar isso, senão instaurando um debate que é pró prio da revisão da literatura. O debate será entre o que o autor diz e como ele diz, em oposição à posição do pesquisador adotada na formulação do seu projeto. Confronta-se uma leitura teórica ou empírica determinada com a formulação do problema e com param-se os argumentos usados na formulação própria, com os argumentos das teorias revisadas. Na prática, a questão de debate é a seguinte: não se trata de fazer uma apresentação da revisão da literatura em si mesma e por si mesma, mas de contrapor os argumentos teóricos revisados aos argumentos teóricos que justificam as hipóteses da pesquisa, partindo daqueles que se negam, para pouco a pouco reforçar os que sustentam ou corroboram a argumentação usada na formulação do problema. Assim, a própria pesquisa projetada adquire uma base teórica maior. Na realidade, no fim da revisão da literatura, o leitor necessita ser convencido de que aquilo que será testado empiricamente não somente é válido, mas também não repete pesquisas já feitas. Pelo contrário, trata-se de um debate que mostra onde e como se situa a pesquisa empírica que se pretende fazer, dentro da corrente teórica abordada. Dito em outras palavras, a revisão da literatura é o momento onde melhor se justifica a pesquisa empreendida, colocando-a no seu justo lugar na tradição teórica que se adotou. Colocando nesses termos a revisão da literatura, nota-se que a mesma tem uma função extremamente relevante no trabalho de pesquisa. Ela fornece relações básicas ou sugere outras que são próximas. Segundo, ela possibilita descobrir focos diversos de abordagem teórica dos objetos empíricos, assim como conceitos e métodos operacionais de tratamento. Finalmente, ela é o parâmetro variado e variável de argumentos, a partir dos quais se pesa e se avalia o próprio esboço provisório da pesquisa, com seu conjunto de relações teóricas e procedimentos operacionais. Sem essa avaliação e essa recolocação da pesquisa dentro de uma corrente teórica e experimental, não haveria como julgar da consistência do modelo elaborado previamente. Não haveria como verificar se de fato a investigação empreendida é importante e válida. Mas com esse debate teórico instaurado na revisão da literatura, a construção do objeto, sua dialética ascendente e descendente (operacional) estão como que impregnadas de considerações diversas que se opõem a ela ou a justificam.
44
A CONSTRUÇÃO DO OBJETO CIENTÍFICO NA INVESTIGAÇÃO EMPÍRICA - MARRE, Jacques A.L.
Em suma, isso quer dizer que não há pesquisa científica válida sem que haja uma inserção séria da mesma nos discursos teóricos e operacionais que a circundam e nos quais ela tem que construir o seu espaço próprio, diferenciando-se parcial ou totalmente das outras. Convinha salientar isso, para evitar pensar que uma pesquisa empírica é um ato a-histórico. Pelo contrário, ela é parte da própria continuação da história da ciência. Ela é a parte que, de um modo descontínuo, faz com que essa história continue. Ela é também o instrumento provisório e aproximado pelo qual a realidade empírica terá seus segredos desvendados. Tais reflexões poderiam levar a concluir que, assim montada e elaborada, a pesquisa projetada tende a ser irrefutável, um tanto dogmática pela concatenação que existe entre a hierarquização dos atos teóricos que caracterizam a dialética ascendente da formulação de uma problemática e os procedimentos operacionais e técnicos que caracterizam a dialética descendente. Parece que a totalidade assim apresentada implica uma construção difícil. Pelo menos é uma crítica que se faz a esse tipo de elaboração científica. Na realidade, o que se procura mostrar é que a construção de um objeto “supõe também que se tenha, como escreve Bourdieu , uma postura ativa e sistemática. Para romper com a passividade empirista, que não faz senão ratificar as construções do senso comum, não se trata de propor grandes construções teóricas vazias, mas sim de abordar um caso empírico como a intenção de construir um modelo que não tem necessidade de se revestir de uma forma matemática ou formalizada para ser rigorosa, de ligar os dados pertinentes de tal modo que eles funcionam como um programa de pesquisas que põe questões sistemáticas apropriadas para receber respostas sistemáticas; em resumo, trata-se de construir um sistema coerente de relações que deve ser posto à prova como tal. Trata-se de interrogar o caso particular constituído, em caso particular do possível, como diz Bachelard, para retirar dele propriedades gerais ou invariantes que só se denunciam (revelam) mediante uma interrogação assim conduzida”
(Bourdieu, 1989: 32). A noção de sistematização de um modelo, aqui sugerido por Bourdieu, na formulação da problemática, não pode deixar de ser salientada; mas com ela importa também concluir essa apresentação por três conceitos essenciais a Bachelard. O primeiro diz respeito à dúvida; o segundo, ao erro incluído em qualquer uma dessas sistematizações; e, finalmente, terceiro: à retificação.
45
A CONSTRUÇÃO DO OBJETO CIENTÍFICO NA INVESTIGAÇÃO EMPÍRICA - MARRE, Jacques A.L.
4.2 - A Dúvida bachelardiana No que diz respeito à dúvida, Bachelard lembra que qualquer problemática que alcança uma formulação através de um sistema de relações é subordinada a um constante questionamento. Não se trata de uma dúvida universal a respeito da vida, ou de ser céptico ou de questionar filosoficamente a totalidade do real. Bachelard coloca a dúvida no interior da problemática que se constrói. A dúvida universal tenderia nessa perspectiva a inibir o processo. Perguntar-se-ia demais e não se chegaria à constituição da problemática. “Em vez da parada causada pela Dúvida Universal, Bachelard considera a constituição da problemática” (Bachelard, 1988: 130). A dúvida está relacionada com a problemática e a sistemati-
zação das duas dialéticas. Mas Bachelard tem um outro modo de considerar essa dúvida. Sabe-se que, através da problemática formulada, se chegará a resultados. Ora, não são os resultados que serão questionados, uma vez que serão obtidos porque eles são subordinados a técnicas e procedimentos que dependem da teoria. Bachelard sugere mais uma vez que se devem avaliar os dados na sua relação com a problemática formulada. É sobre essa relação problemática com os resultados que a dúvida e a avaliação podem ser feitas. Sem dúvida, tal avaliação pode já iniciar quando uma primeira sistematização é efetivada; ou seja, quando se formulou uma problemática e se esperam resultados a partir dessa problemática. Mas a dúvida continua no decorrer de todo o trabalho de investigação. Sempre se avalia a relação polar entre “pr oblemática/resultados antecipados”, ou últimos resultados. Essa avaliação nutrida de dúvida vigilante deve ser tão forte que ela continua durante toda a pesquisa. “Não é uma coisa, escreve Bourdieu , que se produz de uma assentada, por uma espécie de ato teórico inaugural”. O programa de observações que se realiza
aos poucos, continua Bourdieu, “não é um plano que se desenhe antecipadamente, à maneira de um engenheiro: é um trabalho de grande fôlego, que se realiza pouco a pouco, por retoques sucessivos, por toda uma série de correções, de emendas, sugeridas porque se chamam o ofício, quer dizer, esse conjunto de princípios práticos que orientam as opções ao mesmo tempo minúsculas e decisivas” (Bourdieu,
1989: 27). Para fazer esses retoques, esses ajustamentos, sem dúvida precisa-se considerar o sistema de relações construídas, não como um todo sistemático fechado, dogmático, mas algo como que “caracterizado por um aspecto provisório análogo a definição provisória do tema em Durkheim, Mauss, Simiand e outros”.
46
A CONSTRUÇÃO DO OBJETO CIENTÍFICO NA INVESTIGAÇÃO EMPÍRICA - MARRE, Jacques A.L.
Precisa-se também ter a consciência de que qualquer sistematização contém erro e pode ser retificada. São os conceitos de erro e de retificação, inerentes à construção dos objetos científicos, segundo Bachelard, Bourdieu e outros.
4.3 - O Conceito do Erro Pelo conceito do erro, Bachelard quer dizer que qualquer construção de um sistema de relações na realidade é direcionado. Ele busca apreender a realidade. Mas não se apreende essa realidade sem incluir distorções na problemática tanto teórica quanto operacional. Não se capta a complexidade da realidade senão por um conhecimento que encontra obstáculos. A dificuldade de discernir, de desvendar o conteúdo desses obstáculos, tende a fazer com que a procura do real que o sistema de relações elaboradas apresenta contenha uma parte de erro. “Por vezes, escreve Bachelard , ficamos deslumbrados perante um objeto eleito; acumulamos as hipóteses e os sonhos; formamos assim convicções que possuem a a parência de um saber. Mas a fonte inicial é impura. A evidência primeira não é uma ve rdade fundamental” (Bachelard, 1984: 129).
Na realidade “uma pesquisa sem obstáculos, por mais prolongada e minuciosa que seja, não é um problema”, no sentido de um sistema de relações capaz de apanhar a realidade (Guillet, 1977: 63). É
preciso inserir a consciência dialética em toda a trama da construção, no sentido de “um espírito que se constrói no trabalho sobre o desconhecido, buscando no real aquilo que contradiz conhecimentos anteriores” (Bachelard, 1984: 128).
Ora, tal atitude implica que seja efetuada uma caça contínua dos erros presentes na construção. Esses erros não são outra coisa do que obstáculos que não foram desvendados ou ao largo dos quais se passou, sem percebê-los. Bachelard vê esses obstáculos sobretudo ao nível epistemológico. Mas Canguilhem os discerniria na construção dos conceitos e deslocamentos que ocorrem nos mesmos. Já Durkheim os colocaria na definição provisória e na construção de escalas etc. De qualquer modo, o erro não é permanente no sentido estático, mas caracteriza parcialmente a construção do sistema de relações. Daí um último conceito: o de retificação constante.
47
A CONSTRUÇÃO DO OBJETO CIENTÍFICO NA INVESTIGAÇÃO EMPÍRICA - MARRE, Jacques A.L.
4.4 - A Retificação A retificação em Bachelard é constante. Não há construção de um sistema de relações que não seja suscetível de retificação. A retificação se opera em dois níveis. No nível de uma primeira formulação, a qual necessita ser retocada, como Bourdieu o declarou acima. Dito em outras palavras, é preciso vigiar constantemente tudo o que se faz, adaptar, ajustar melhor. Isso é um primeiro nível de retificação. O segundo nível diz respeito à sucessão das pesquisas. Para Bachelard, raros seriam os sistemas que se poderia aplicar, repetir sem retoques, uma vez que o conhecimento é apenas aproximado e histórico. Bachelard não gostaria da “ciência normal” de Kuhn. Isso não quer dizer que a verdade seja relativa, mas apenas que a conquista que fazemos dela se faz historicamente por etapas. Não se pode na ciência pretender a descoberta de uma essência definitiva, de um realismo definitivo. Precisa-se retificar o que não era adequado, para melhor aproximar-se da realidade, da complexidade. Ela está aqui, mas não é fulgurante. A Bíblia diz que morreríamos se estivéssemos na presença de Yaweh. Na Ciência, nada existe de imediatamente fulgurante, mas necessita-se de uma paciência de Jó para aproximar-se da verdade conhecida em termos científicos, através de sucessivos sistemas de relações. De um para o outro, necessita-se retificar, melhorar o conteúdo das relações. É preciso aprender algo da realidade que se conceitua e se experiencia. Se conceituar, para Bachelard, é já experiência, e se conceituar não existe sem as técnicas e os procedimentos metodológicos que lhe são subordinados, diria-se que reconceituar é reaprender a aprofundar a experiência do real. Retificar, nesse caso, é um processo inerente ao trabalho científico. Retificar o sistema de relações dentro de uma mesma pesquisa, ou entre duas pesquisas sucessivas, não é outra coisa do que amar a vida, nos aproximarmos dela pela razão, quer se trate de uma planta, rochas, relações humanas, estrelas... Retificar, no fundo, talvez seja algo próximo da própria conversão diante de um objeto. Bachelard dizia que, de um certo modo, não somos nós que fazemos a escolha do objeto, mas ele que nos escolhe, no sentido de que sempre ele tende a impor a sua verdade a nossas conceituações. Essas, portanto, necessitam de retificações. Foucault, no seu discurso inaugural, no Collège de France, tomava a palavra para falar dos seus estudos sobre as formações discursivas, sobre a linguagem. Mas, no momento que tomava a palavra, afirmava ao mesmo tempo que “gostaria de ser retomado por ela”. Entre Bachelard e Foucault há o mesmo espírito científico. Não é fácil construir um objeto. É preciso apreender a recomeçar, sabendo que nesse recomeço, sempre descontínuo em relação ao anterior, algo se conquista contra o saber imedi-
48
A CONSTRUÇÃO DO OBJETO CIENTÍFICO NA INVESTIGAÇÃO EMPÍRICA - MARRE, Jacques A.L.
ato, vulgar, ou de senso comum. Pelo menos é essa a esperança do cientista. Possa o mesmo continuar essa luta e descobrir pouco a pouco que nela a ciência se faz.
CONCLUSÃO O objetivo dessas palestras foi apresentar a construção do objeto, mostrar como ele se distancia e se afirma em oposição ao senso comum, à sociologia espontânea, através da construção de um sistema rigoroso de relações que são sempre sujeitas a erro e, portanto, a retificações. Salientou-se como se realiza a construção desse objeto, destacando duas dialéticas: a dialética ascendente e a dialética descendente, esta ligada ao processo de operacionalização; enquanto a primeira, aos seus aspectos teóricos. Também, acredita-se ter sugerido que as duas dialéticas combinadas necessitam de uma vigorosa revisão da literatura, para introduzir o tema escolhido dentro de um debate científico e teórico, onde o sistema de relações vai construir o seu espaço. Sem esse debate teórico, que se trava e se configura entre o sistema de relações que está sendo construído e a própria teoria já existente, não há como avaliar se a investigação empreendida, avança, recua, se repete ou se situa em oposição às pesquisas anteriores. Desejou-se também mostrar que toda essa construção devia ser subordinada constantemente a três tipos de conceitos que caracterizam atitudes de consciência do cientista. O primeiro é a dúvida de que qualquer construção seja a última verdade. Pelo contrário, trata-se de um conhecimento aproximado. O segundo diz respeito ao erro, que esconde obstáculos que não foram desvendados. O terceiro diz res peito à necessidade de sempre retificar o que está sendo feito, para não ser apenas mais exato mas mais perto do real, porém empenhado a ser retomado pela força e energia que emana dele e tornar-se capaz de superar as conceituações anteriores, criando melhores conceituações e operacionalizações. Tal é, em parte somente, algo do trabalho do cientista. Trabalho belo, pela arte implicada na construção do objeto. Trabalho sério, pela honestidade com a qual se criam novos objetos. Trabalho válido, pelo fato de objetivar, de desvendar e devolver para a sociedade algo que sem saber ela procurava através das opiniões comuns.
49