ESTILÍSTICA DA LÍNGUA PORTUGUESA
POR EXPRESSO DESEJO DOS EDITORES, ESTA OBRA É NUMERADA E RUBRICADA PELO AUTOR
M. RODRIGUES Lapa
ESTILÍSTICA DA LÍNGUA PORTUGUESA 11.a
EDIÇÃO
REVISTA PELO AUTOR Composição e impressão COIMBRA EDITORA, LDA
1984 .
1. O VOCABULÁRIO PORTUGUÊS
1. Palavras reais e instrumentos gramaticais. - Consideremos este pequeno trecho literário de Trindade Coelho, em Os Meus Amores: «A esse tempo, no céu alto e lavado, a estrela-d’alva fenecera por fim, e o horizonte começava de carminar-se ao de leve.»
Se observarmos o papel que as diferentes palavras desempenham no discurso, logo verificamos que umas são mais importantes do que as outras. São as principais portadoras da ideia ou do sentimento, traduzem a realidade com mais viveza, despertam enfim imagens mais fortes. Claro que isso dependerá um pouco do observador; mas qualquer de nós, por diferente que seja, verá naquele período literário as seguintes palavras ou expressões principais, que vão agora impressas a itálico: A esse tempo, no céu alto e lavado, a estrela-d’alva fenecera por fim, e o Horizonte começava de carminar-se ao de leve. Se quiséssemos levar mais longe a exploração, verificávamos que entre estes termos principais se poderia fazer ainda uma redução, omitindo os menos importantes e deixando ficar apenas aqueles em que recai plenamente o sentido do trecho: Céu... estrela... fenecera... horizonte... carminar-se.
Com um pouco de boa-vontade, conseguimos ainda apreender o significado da frase, reduzida agora à sua expressão mais simples. Vejamos as fases dessa operação simplificadora. Primeiramente despojámos o trecho de artigos, preposições, conjumções, verbo auxiliar (começava), locuções adverbiais, excepto uma (A esse tempo), que nos pareceu de algum valor expressivo e lógico. Por fim, querendo levar a selecção ao maior apuro, só deixámos ficar substantivos e verbos. Que se deve concluir de tudo isto? Que as palavras se encontram subordinadas a uma escala de valores expressivos. Que há palavras reais, fumdamentais, que levam em si toda a responsabilidade do sentido da frase, e que há instrumentos gramaticais, encarregados de estabelecer a ligação entre as ideias. As palavras reais (também chamadas lexemas) são o substantivo, o adjectivo, o verbo e, por vezes, o advérbio, o numeral e o pronome, conforme o papel que desempenham no discurso. Os instrumentos gramaticais (também chamados morfemas) são constituídos por todos os outros elementos de relação e precisão:
artigos, preposições, conjumções e, por vezes, advérbios, numerais e pronomes. com absoluto rigor, poder-se-ia dizer, como vimos, que lexemas são apenas os substantivos e os verbos: o substantivo designando o agente da acção, o verbo exprimindo a própria acção. com efeito, a ligação do agente com o acto realizado ou a realizar constitui a forma mais simples, mais primitiva do pensamento. Exemplo: Rei ordena, Deus pumirá, etc. Na vida prática, esta divisão em lexemas e morfemas tem várias aplicações. O carácter vertiginoso da nossa 7
civilização impõe-nos a economia das palavras para se não perder tempo... e dinheiro. Na vida dos negócios há por vezes necessidade de fazer condensações enérgicas, limitando as palavras ao máximo, sem quebra de clareza do pensamento. O homem de acção, o político, o chefe civil ou militar não arredondam a frase para dar ordens. As palavras reais têm neles um carácter incisivo, quase dispensam os instrumentos gramaticais. Um dia, o escritor português D. Francisco Manuel de Melo, antigo soldado, escreveu a um jovem parente, que partia para a guerra. O seu estilo adquiriu então o laconismo, a concisão disciplinada duma ordem militar: «Ide com Nosso Senhor. Lembrai-vos sempre dele e de quem sois. Falai verdade. Pergumtai pouco. Jogai menos. Segui os bons; obedecei aos maiores. Não vos esqueçais de mim. E sede embora Plínio Júnior; que, se tudo isto fizerdes, ainda sereis mais. Deus vos leve, defenda e traga. Torre, sábado.» Há porém na vida social uma esfera de actividade, em que a destrinça entre lexemas e morfemas adquire particular importância: referimo-nos à técnica do telegrama. O telegrama terá de encerrar o maior laconismo - as palavras custam dinheiro! - dentro da maior força expressiva : faz pois avultar a palavra real à custa do instrumento gramatical. Um exemplo tirado de A Ilustre Casa de Ramires, de Eça de Queiroz: «Capítulos romance recebidos. Leitura feita amigos. Entusiasmo! Verdadeira obra-prima! Abraço!»
Este telegrama contém tudo quanto é fumdamental, e só tem substantivos, um adjectivo (verdadeira) e duas formas verbais com fumção de adjectivos (recebidos, feita). Se o
quiséssemos sobrecarregar com instrumentos gramaticais, teríamos: «Recebi os capítulos do teu romance. Fez-se uma leitura aos nossos amigos. Foi enorme o entusiasmo, e todos o classificaram de verdadeira obra-prima. Envio-te um grande abraço». Ficaria talvez mais completo, porventura mais elegante; mas nada adiantava ao sentido fumdamental, e o autor deste desenvolvimento pagaria quase o triplo da taxa que pagaria, se o mandasse sob forma abreviada, verdadeiramente telegráfica. Sendo o Português, por natureza, descomedido em palavras, como todos os povos do sul, a Direcção dos Correios, no seu interesse, pôs um travão ao chorrilho de frases que enchiam os simples cartões de visita, preceituando um máximo de cinco palavras (morfemas e lexemas) para essas fórmulas de cortesia, como sejam agradecimentos e felicitações. Não há dúvida que a ordem embaraçou muita gente; mas teve pelo menos a vantagem de chamar a atenção para o valor das palavras. Agora, quando quisermos responder a um cartão de boas-festas, teremos de nos cingir a uma frase destas, em que há apenas um morfema: FULANO... retribui, agradecido, os amáveis cumprimentos.
Isto não quer dizer, evidentemente, que preconizemos o estilo telegráfico para as redacções dos nossos leitores. De modo nenhum; mas faz-lhes sentir a importância dos vocábulos e adverte-os de um perigo: a multiplicação inútil das palavras que nada acrescentam ao sentido. No bom estilo não se diz nem de mais nem de menos; diz-se o que é preciso, na medida exacta do que se pensa e sente, com vigor e com clareza. E, pecar por pecar, antes pecar por sobriedade do que por inútil sobrecarga de palavras. 2. A fantasia das palavras. - As palavras reais distinguem-se, como vimos, pela sua força expressiva. Despertam a imagem das coisas mais energicamente; e essa imagem viva ilumina o pensamento, dispensando outros acessórios de que se serve a frase logicamente constituída. As palavras suscitam em nós as imagens das coisas a que se referem; mas como essas coisas podem revestir vários aspectos, cada um de nós apreende na palavra o seu aspecto pessoal, aquele que particularmente lhe interessa. Por exemplo, a palavra sino pode evocar diferentes imagens, conforme as pessoas que a ouvirem: o campónio terá uma representação sonora; outro, o filho do sineiro, sentirá na palavra o movimento do puxar da corda e do voltear do sino (imagem motriz); enfim, o serralheiro terá a representação visual do objecto. A estes três tipos de imagens, sonora, motriz, visual, outras se poderiam talvez ainda acrescentar. Já se tem afirmado que numa simples palavra se pode resumir todo o universo. Quer isto dizer que um vocábulo pode suscitar uma infinidade de imagens e ideias que abranjam todos os domínios do pensamento e da vida. Vejamos, por exemplo, a pequenina palavra
lar. Poderá apresentar-nos a imagem concreta da casa, do seu conforto ou desconforto material, ou ainda a noção espiritual, sentimental, do lugar onde vive a família. A primeira representação pode repartir-se em várias imagens subsidiárias: a construção da casa, a sua situação, a paisagem em redor, a luz ou sombra de que é banhada, etc. A segunda representação levar-nos-á a considerar: o nosso nascimento, os afectos ou desafectos da nossa infância, a nossa educação, a harmonia ou desarmonia entre os membros da família, etc. E estas representações familiares poderão ainda suscitar, por associação, sentimentos de carácter social: o desabrigo das pessoas que vivem em barracas, a miséria dos que não têm eira nem beira, etc.
10
É neste sentido que se diz que numa palavra se podem conter todos os fenómenos da vida. O seu poder evocador não conhece limites. Vemos pois que, em volta de cada palavra ou, para melhor dizer, de certas palavras, se estabelece uma atmosfera fantasiosa e sentimental que constitui o seu valor expressivo. Há, evidentemente, palavras mais evocadoras do que outras. O bom escritor saberá aproveitá-las, para suscitar mais vivas e variadas imagens. Mas uma coisa é necessária a quem deseja conhecer a fumdo a sua língua e utilizá-la para fins artísticos: pensar e sentir as palavras como se elas fossem feitas de novo, e evocar o objecto a que se referem com a maior frescura e vivacidade possível. Vamos dar o resultado de uma série de experiências feitas por outros e feitas por nós em pessoas da nossa família. Mais uma vez se insiste no carácter puramente pessoal de tais provas. O resultado poderá variar conforme as pessoas. Designamos por A, B, C, D os indivíduos que se submeteram às experiências. Ao ouvir as palavras que se seguem, produziram-se nesses indivíduos as seguintes imagens, simples ou complexas. A primeira é a imagem mais forte, espontânea. a) Chave: A: imagem visual (uma chave grande de metal amarelo). B: » auditiva (o ruído do abrir da porta). C : » visual (vê sobretudo a parte superior, redonda). D: » » + imagem, táctil (sente a chave nos dedos). b) Chuva: A: imagem visual (poeira escura levantada) + imagem olfactiva (cheiro da terra). B: imagem térmica (arrepio de frio). C: » visual (cordas de água) + imagem auditiva (ruído abafado de chuva no chão). D: o mesmo complexo de imagens que em C. ESTILÍSTICA DA LÍNGUA PORTUGUESA 11
c) Avião: A: imagem visual (vê um avião no écran dum cinema). B:
»»
(vê um selo de correio aéreo: é um filatelista).
C:
»»
+ imagem auditiva (ruído do motor).
d) Gás: A: imagem visual (vê um fumo acinzentado). B:
»»
e motriz (bombardeamento, gente a correr) -f-
imagem olfactiva (cheiro a gás). C : imagem auditiva (escapar ruidoso do gás). D: azulada) + imagem olfactiva (cheiro do gás).
»
visual (chama
e) Veludo: A: imagem visual (cor preta). B:
»»
»
»
+ imagem táctil (sente-o nas pontas
dos dedos). C: imagem visual (cor preta) + imagem táctil (sente-o nas mãos). f) Serpente: A: imagem visual (vê só a cabeça e língua, com malhas redondas de cores várias, sobretudo amarelo e verde). B: imagem visual (corpo inteiro) + imagem motriz (o rastejar). C: ruído) + imagem visual.
»
motriz e auditiva (movimento e
g) Limão: A: imagem visual (forma e cor amarela). B:
»
gustativa (sente o gosto ácido do limão) + imagem visual
(vê a árvore com o fruto). C: imagem visual + imagem gustativa + imagem táctil.
Escolhemos de preferência substantivos, como despertadores da fantasia por aludirem com mais viveza ao objecto; mas é bom de ver que os verbos (por ex. bater, abrir, picar, etc.) e adjectivos (por ex. áspero, doce, fino, etc.),
12 M. RODRIGUES LAPA
pelo seu carácter mais ou menos concreto, também podem sugerir imagens. 3. A para fantasia. - Se observarmos o resultado das experiências acima exposto, vemos que predominam largamente as imagens visuais, como é próprio de objectos materiais; e que estas, como é natural em coisas tangíveis, andam não raro ligadas a imagens tácteis. Vemos ainda mais: a imagem alude geralmente ao objecto, representa-o directamente, em um ou outro dos seus aspectos. Há porém excepções, e essas oferecem grande interesse. Por vezes, a fantasia transcende para além do objecto e dá representações que pouca ou nenhuma relação têm já com ele. Vimos acima um curioso exemplo deste fenómeno, a que se chama parafantasia: ao ouvir a palavra avião, a B representou-se-Ihe um selo de correio aéreo; ao ouvir chave, não viu logo o objecto, imaginou ouvir abrir uma porta. Mais algums casos de parafantasia: E, quando ouve a Fulano proferir a palavra maçã vê a macieira com folhas, sem maçãs; em vento vê terra; em sino vê o adro duma capela; em seda, vê o bicho e fios em baba. F, quando ouve o vocábulo vento, tem logo a imagem ora de um barco, ora de um moinho. G, à palavra música, tem a imagem de um baile; em leite, vê a tijela do leite; em ponte, ouve um comboio atravessando a ponte; à palavra maçã, vê um livro de aritmética, onde havia algums pequenos problemas sobre maçãs. Repare-se nesta particularidade: umas vezes vê-se a árvore em vez do fruto, a terra em vez do vento que a agita, a causa (bicho-da-seda) em vez do efeito, o continente (tigela) em vez do conteúdo (leite). É a explicação dum fenómeno que tem aplicação literária e é conhecido pelo nome de linguagem figurada. As palavras abstractas, como é natural, não sugerem tantas representações. Todavia, a sua forma sonora, jumta ao ESTILÍSTICA DA LÍNGUA PORTUGUESA 13
seu sentido, gera por vezes uma imagem de cor. Para Ramalho Ortigão, saudade era uma palavra azul, rancor uma palavra vermelha. É aquilo a que se chama audição colorida: a correspondência imaginada entre o som e a cor. A estas correspondências, a estas inter penetrações dos vários sentidos, que assumem aspectos extraordinariamente interessantes, dá-se o nome geral e científico de sinestesias. Desempenham papel importante na literatura e são conhecidas desde o século xvm, pelo menos. Foi Filinto Elísio quem, nesse tempo, chamou a atenção para a cor dos vocábulos. Um dia, um senhor impertinente, dado à ironia, encontrou numa ode do poeta uma dessas sinestesias e disse-lhe, com um risinho: - Pois a alegria é loura? Tão alva e loura como a morte é pálida. Ao que o escritor retorquiu imediatamente:
- V. Ex.a é que me parece loura no caso... Para se entender o trocadilho, é necessário dizer que loura tinha, na época, o sentido de «parvo», «palerma». Claro que nem todos produzirão com igual frescura e presteza as imagens que andam ligadas às palavras. Quando os anos aumentam e a inteligência se desenvolve, as imagens das coisas vão enfraquecendo, tomam-se por assim dizer desbotadas. As palavras dificilmente despertam já a fantasia. Nessa altura, para avivar o poder da imaginação, o homem tem ainda o recurso da obra de arte, cujo segredo consiste na sábia escolha dos meios de expressão, com que se chamam novamente à luz essas imagens meio apagadas. 4. Valery Larbaud e o vocabulário português. - O notável escritor francês Valery Larbaud, espírito cosmopolita, meteu-se a aprender português, da primeira vez que esteve entre nós. Encheu-se de simpatia pela nossa terra, pela doçura da nossa gente, e quis aprender a língua para melhor
14
M. RODRIGUES LAPA
surpreender a nossa alma. Aprendeu-a, como ele dizia, com o esforço apaixonado com que se obtém o amor duma mulher. E contou-nos, de modo encantador, a sua experiência do vocabulário português. É sem dúvida interessante observar as reacções dum estrangeiro superiormente culto, como Larbaud, perante as palavras mais correntes da nossa língua. Vamos dar o resultado das suas impressões, publicadas no Divertimento filológico. O escritor francês, no primeiro contacto com a língua escrita e falada, sentiu logo a doçura e a graça de certos vocábulos: 1. Só. A palavra exprime, na sua concisão desesperada, o extremo da solidão e do abandono. Quando se lhe acrescenta o diminutivo -zinho, Larbaud nota que o sufixo não é apenas lógico, exprime ainda admiravelmente a atitude do espírito dobrado sobre si próprio, na solidão. 2. RAPARIGA. O escritor compara o vocábulo português aos correspondentes espanhóis e italiano: rapaza, muchacha, ragazza; todos sugerem o ruído alegre de estudantas, saindo da escola, na rua, às gargalhadas: mas rapariga faz mais ruído que qualquer dessas palavras. No português do Brasil, já desde o século xvni, ao que parece, o vocábulo foi tomando coloração pejorativa. Houve contudo resistência literária a essa deturpação. Num romance de Aluízio Azevedo, O Cortiço, ainda é usado no puro sentido português. Em Lima Barreto (Clara dos Anjos, l.a ed., pág. 179) dá-se o mesmo. Érico Veríssimo, representando a última defesa da formosa palavra, em consonância certamente com seu falar regional, emprega-a no bom sentido (Olhai os lírios do campo, 18.a ed.: «Chamou a secretária, uma rapariga magra, de ar cansado», pág. 136). 3. GAROTA. Também é bonita a palavra e própria para as raparigas do povo duma grande cidade. Diz Larbaud ESTILÍSTICA DA LÍNGUA PORTUGUESA 15
com graça que, se casasse com uma portuguesa, lhe chamaria garota, num impulso de terna familiaridade, de amorosa falta de respeito. 4. RAINHA. A palavra tem na sua forma sonora e gráfica o quer que seja de exótico: traz no vestido um perfume da Ásia. 5. MENINA. O termo é encantador, com um ar antigo, afidalgado. Já um outro estrangeiro, o alemão Link, que visitou Portugal nos fins do século xvm, dizia que a expressão minha menina era a mais doce que se encontrava em qualquer língua. 6. BONECA. O escritor deu-se ao cuidado de evocar os termos que significam boneca em outras línguas europeias e encontrou mais beleza: em primeiro lugar no vocábulo italiano
bámbola, logo a seguir nas palavras portuguesa e espanhola- boneca e mumeca, que competiam em formosura expressiva. 7. MEDONHO. A palavra impressionou vivamente Larbaud. Há qualquer coisa de repugnante, infame e horroroso nesta palavra, que nos comunica o seu estremecimento, a sua náusea. 8. BEIRA-MAR. Para o escritor francês era uma das palavras mais poéticas do seu conhecimento: vasta, sonora, grandiosa, oceânica. 9. SAUDADE. Larbaud define a impressão que lhe dá a famosíssima palavra: um céu nublado entre distantes zonas luminosas.
16 M. RODRIGUES LAPA
Outras palavras que o impressionaram agradavelmente: namorar, namoro; doente, doença; voo, dor, cor, carvalho, orvalho, cotovia, imenso, devagar, janota, ficar, poupar, meigo, brinco, brincadeira, Todos aqueles que aprendem uma língua nova recebem impressões desta natureza: o sentido conhecido ou entrevisto da palavra conspira com a imagem sonora e dá-nos uma espécie de ilusão. Os escritores que lidam muito com os vocábulos estão particularmente sujeitos a estas ilusões. Têm a tendência para considerarem a palavra em si própria, bela por si mesma, liberta das prisões da frase, que lhe fixam um sentido e lhe diminuem o poder de fantasia. Os que se dedicam à arte de escrever trazem na memória um armazém de termos expressivos. Para esses a palavra existe em estado puro, cheia de ressonâncias e mistérios. E é sempre útil, como dissemos, pensar e sentir de novo as palavras, isoladamente, na curiosa contemplação das imagens que despertam. 5. A palavra-frase. - Porém, logo a seguir, deverá fazer-se, como correctivo, o exercício contrário. Verdadeiramente, o vocábulo isolado não existe senão para os artistas. A palavra existe como parte de um todo, incorporada no contexto, e aí adquire o seu significado especial. Entregue a si própria, já o vimos, assume os mais diversos aspectos, carrega-se de tons variados, segumdo o indivíduo que a ouve ou profere. Aprisionada na escrita, limitada e esclarecida pelos outros elementos do discurso, a palavra recebe de cada vez e momentaneamente a sua verdadeira significação. Um exemplo: Quando dizemos ou ouvimos: Que RAPARIGA! - o vocábulo final, por assim dizer isolado, desperta vivamente a imaginação, como se o pronunciássemos ou ouvíssemos sozinho. Por isso vemos nesse termo as mais variadas representações : podemos considerar as qualidades morais da moça, ESTILÍSTICA DA LÍNGUA PORTUGUESA 17
a sua honestidade, a sua coragem, etc., ou as qualidades físicas, a formosura, a graça do andar, etc. Também nesta frase: A RAPARIGA que vês trabalha na fábrica o vocábulo nos parece mais desbotado de colorido, menos capaz de dar imagens, mas certamente mais preciso no seu significado, devido aos elementos em que está inserido. 6. A significação das palavras. - Consideremos esta palavra corrente - cabeça. O primeiro sentido que acode, estando a palavra isolada, é o seu sentido mais geral, a sua significação física e primitiva: a cabeça é a parte superior do corpo humano. Um linguista não deixará de registar com satisfação o facto: há certa lógica em que o sentido actual do vocábulo não divirja do que tinha há mais de mil anos. Mas, se a palavra mantém um significado preciso,
que lhe dá o mais frequente emprego, adquiriu também, com o uso, uma série de sentidos subsidiários, que diferem mais ou menos do sentido etimológico: etimologia é o estudo da origem das palavras, a fixação da forma e do sentido primitivos. Vejamos essas diversas significações, registando apenas as que são mais usuais: 1. A cabeça é a parte superior do corpo. 2. Toda a gente o louva: é uma grande cabeça. 3. Sabia de cabeça todos os versos do poema. Ele vinha à cabeça de todos os concorrentes. Essa vila é a cabeça da comarca. 6. Pagaram dez tostões por cabeça. 7. Feriu-se na cabeça do dedo. 8. O cabeça da conspiração foi aprisionado. 9. Isso não tem pés nem cabeça. 10. Deu-lhe agora na cabeça fazer versos. 11. Cada cabeça, cada sentença. 12. Então, perdeu por completo a cabeça. 2 - Estilística
3. 4. 5.
18 M. RODRIGUES LAPA
Se quiséssemos averiguar o significado da palavra nos vários contextos em que está metida, teríamos este resultado: 1. 2. 3.
4. 5. 6. 7. 8. 9. 10. 11. 12. Sentido principal: parte superior do corpo. talento, inteligência. _____ de memória, de cor. à frente, na parte superior. capital. indivíduo, pessoa. extremidade, ponta. chefe, pessoa principal. sentido claro. capricho, fantasia.
homem, personalidade. razão, serenidade.
Como se originaram as várias significações da palavra ? Partiu-se do sentido original e viuse na cabeça a parte superior, a extremidade, o ponto principal dum corpo; ou então encarou-se o facto pelo seu lado intelectual e viu-se na cabeça a sede do pensamento e da imaginação. Daqui se originou toda essa vegetação de significações diversas, a que se dá o nome de polissemia, e que é estudada numa disciplina filológica chamada Semântica. Como vemos, e aqui melhor do que em outro lado, a palavra só adquiriu o seu verdadeiro sentido quando engastada na frase. Só há verdadeiramente no discurso a palavra-frase. Por isso os bons dicionários trazem os vários matizes de significação dos vocábulos inseridos no seu devido contexto, isto é, têm um exemplo para cada variedade semântica. Sem isso, não prestarão bons serviços. Em muitos dos nossos dicionários não aparecerá o quadro que damos acima, a propósito de cabeça. E algums nem sequer trazem a locução, tão corrente, perder a cabeça, por ser considerada, aliás sem razão, um galicismo. ESTILÍSTICA DA LÍNGUA PORTUGUESA 19
Em conclusão: poderemos afirmar que há tantas palavras quantas as significações. Em gramática, chamam-se homónimas as palavras que têm forma igual, mas se distanciam pelo sentido. Exemplo: pena tem pelo menos, quatro significados: a) A pena admirável daquele escritor; b) O pássaro deixou cair uma pena; c) Foi condenado a pena maior; d) É pena que não vás! O sentido diverso é dado, já pela natural evolução das palavras, já porque nos dois primeiros casos o vocábulo tem uma origem (do latim pinna) e nos dois últimos tem outra (do latim poena). Em cabeça todos os exemplos têm a mesma origem; mas o resultado vem a ser o mesmo: aqueles doze casos citados são tidos por quem fala ou escreve como palavras de sentido diferente. 7. O instinto etimológico. - A exploração do sentido originário das palavras faz parte, como dissemos, duma disciplina chamada etimologia. Essa operação é de indiscutível importância para a ciência da linguagem e até para a história das civilizações, porque à origem das palavras podem prender-se factos históricos e sociais de grande interesse. Mas uma coisa é ciência, outra coisa estilo. Quando escrevemos ou falamos, pouco ou nada nos importa o sentido passado dos vocábulos, a sua história; só apreendemos da palavra aquilo que é actual. E demais, esse sentido etimológico, se fosse aproveitado, lançaria uma extraordinária confusão sobre os fenómenos da linguagem. Algums exemplos vão elucidar o leitor. Suponhamos que alguém, conhecedor do grego, escrevia: «O povo italiano é um povo hipócrita.i> Queria ele dizer com a sua, fumdado na etimologia ( = actor), que os italianos são naturalmente actores, gostam da exibição
espectacular. Como porém a palavra tem hoje um sentido muito diferente, o mal-fadado helenista arriscava-se a não ser compreendido e a coisa ainda
20 M. RODRIGUES LAPA ESTILÍSTICA DA LÍNGUA PORTUGUESA 21
pior l a ser incomodado pelas autoridades consulares ou diplomáticas italianas, por ofensas a um país estrangeiro. Outro exemplo: Quando apelidamos alguém de marechal, ligamos à palavra uma altíssima significação honorífica: o ponto mais alto da hierarquia militar. O etimologista, enfronhado em seus estudos, vê as coisas de outro modo: sem perder de vista o significado actual, sobe à origem e observa com um sorriso que a palavra, em seus começos, queria apenas dizer isto, bem modesto por certo: encarregado da cavalariça! Finalmente, consideremos a palavra coitado, tão portuguesa, tão representativa do nosso brando modo de ser. Quando a proferimos, aludimos a alguém que é pobre, ou infeliz, a quem a vida não corre bem. Pois a palavra, na sua origem, no tempo dos trovadores, aplicava-se especialmente ao namorado que curtia dores por sua dama. Vão lá pensar hoje nisso, quando se avista um mendigo andrajoso, a quem se diz, dando esmola: Coitado, tome lá! Vemos pois que as palavras têm um curioso romance histórico. É instrutivo conhecê-lo, sem dúvida; mas numca devemos esquecer a obrigação em que estamos de empregar a palavra no seu sentido actual. O motivo por que os filólogos, os gramáticos, os homens muito eruditos escrevem mal é geralmente este: não têm presente e fresco o sentimento da língua de hoje. As palavras evocam-lhes representações passadas, conformes à sua etimologia. De modo que, quando escrevem, é um passeio constante pelos domínios da antiguidade. A sua maneira de escrever traz por isso mesmo um cheiro a bafio. É um estilo pretensioso e avelhentado, muito em voga nas academias. Contudo, para uma coisa é útil o conhecimento da etimologia e da história das palavras: para a leitura inteligente dos autores antigos. Quando Fr. Luís de Sousa escreve: «Da imbecilidade de sua natureza não desconfiava, porque conhecia suas forças» - notamos que imbecilidade está ali no sentido etimológico, latino: «fraqueza». Seria erróneo atribuir à expressão o significado actual: «parvoíce». Quando um outro grande clássico, D. Francisco Manuel de Melo, escreve a respeito das suas Cartas familiares: «por todas cintila o queixume, apesar da modéstia, que procura embaraçá-lo e desmenti-lo» - teremos de atribuir a modéstia o significado antigo de «medida», «temperança no sofrimento», «resignação». Os bons dicionários deveriam trazer todas estas significações, mas por vezes falham. E as edições dos Clássicos deveriam ser cuidadosamente anotadas e apontar estas variações semânticas. Se assim fosse, o leitor poderia efectivamente compreender os nossos autores antigos, apreciá-los e aproveitá-los no que têm de aproveitável, sem perigo de assimilar um
estilo que já não é de nossos dias.
2. O VOCABULÁRIO PORTUGUÊS
No capítulo anterior vimos como uma palavra muda de significação, conforme os diferentes contextos em que anda agrupada. Vamos ver agora como um conceito, uma ideia, admite várias palavras para se exprimir conforme os seus variados aspectos. 1. Pluralidade dos meios de expressão. -Perguntemos, por exemplo, a um amigo o que significa a palavra inteligente. Logo nos responderá, sem hesitar, procurando explicar o termo por outros vocábulos ou locuções de sentido semelhante : •-• É o mesmo que esportes, hábil, entendedor das coisas, que as compreende bem, que lhes penetra o sentido, que tem olho, etc. Claro que cada uma destas expressões tem o seu valor, mas todas se agrupam no espírito em volta da ideia geral, que as compreende a todas: inteligência. Portanto, quem escreve e quem fala tem à sua disposição, para traduzir exactamente o pensamento, séries de palavras, ligadas por um sentido comum, que acodem ao espírito, para as necessidades de expressão. Quando se evoca uma delas, sucede geralmente como quando se colhem cerejas: vêm as outras atrás. A estas palavras ou modos de dizer, ligados entre si por uma noção comum, dá-se o nome de sinónimos. ESTILÍSTICA DA LÍNGUA PORTUGUESA 23
Estamos vendo a extraordinária importância do seu estudo e da sua prática para a técnica da redacção. com efeito, a arte de escrever repousa essencialmente na escolha do termo justo para a expressão das nossas ideias e dos nossos sentimentos. Por outras palavras: só escreveremos bem, quando, na série sinonímica, escolhermos a palavra ou o grupo de palavras que melhor se ajustam àquilo que queremos exprimir. É nessa escolha que reside, em grande parte, o segredo do estilo. 2. Há ou não sinónimos ? - Se entendermos por sinónimos as palavras que têm sentido semelhante, parecido, é evidente que existem sinónimos. Agora, se considerarmos, como fazia supor a gramática antiga,, que sinónimos são as palavras que têm o mesmo sentido, em breve nos convenceremos de que isso é impossível. Podem uma mesma ideia, um mesmo acto, um mesmo objecto ter nomes diferentes; esses nomes não são, não podem ser exactamente equivalentes, como não são nem podem ser equivalentes as folhas da mesma árvore. Poder-se-á objectar com isto: há nomes de plantas, utensílios, produtos vários, que adquirem diferente nomenclatura, conforme as terras do País. Por exemplo, para designar as agulhas do pinheiro em Portugal: caruma, sarna, branza, bicos, picos, etc. É certo; mas por isso mesmo que se repartem por terras diferentes, cada sítio ou região adopta um só vocábulo em prejuízo dos outros, geralmente desconhecidos. A mesma coisa designa-se geralmente por uma só palavra, em certa região e em certo meio. Pode, ao princípio, dar-se o caso de duas ou mais palavras designarem o mesmo objecto. E um momento fugaz; logo o espírito reage para destruir o perigoso equilíbrio, introduzindo
cambiantes de sentido, promovendo a diversificação. As formas divergentes. -A este respeito, é omito elucidativo o tratamento dado pela língua às formas chamadas
24 M. RODRIGUES LAPA
divergentes. Chamam-se formas divergentes as palavras oriundas de um mesmo termo (latim, árabe, grego, etc.), que se diferençaram depois, por motivo da evolução fonética. Estão neste caso, entre outras: aveia - avena; areia - arena; bola - bula; cadeira - cátedra; caldo - cálido; cheio-pleno; chorão - florão; catar - captar; crosta - crusta; delgado - delicado; ensosso - insulso; inteiro - íntegro; lagoa - lacuma; meigo - mágico; ração - razão; solteiro - solitário; traição - tradição, etc. Admitindo que estas palavras tivessem sido algum tempo sinónimas - não o seriam, porque uma reinava nos meios cultos, outra nos meios populares - logo se diferençaram de diversa maneira, como se está vendo. Em algums casos, o termo literário adoptou um sentido especializado, ex.: arena, cátedra, crusta, íntegro. Noutros casos foi o termo popular que se desviou do sentido originário, ex.: bola, chorão, catar, meigo, ração, solteiro. Pelo que diz respeito à intensidade das diferenças entre os dois sentidos, observamos que a divergência vai do mínimo ao máximo. Em cheio-pleno, a diferença é insignificante, podendo até dizer-se que as duas palavras acusam o mesmo sentido. Simplesmente, uma é usada na linguagem corrente (cheio), outra na linguagem literária - e não sempre (pleno). Esta última tem um ar falso, pretensioso, que, por isso mesmo, é do agrado dos principiantes. Enfim, são termos usados em circumstâncias diferentes e basta esse facto para os tomar desiguais. Através de variantes intermediárias, as formas divergentes alcançaram o máximo de desvio semântico (isto é, de sentido) em traição - tradição. É quase incrível que uma mesma palavra pudesse ter gerado acepções tão diversas; mas o caso deu-se, como vamos ver. Tradição foi um velho termo de carácter jurídico, cujo significado era: «entrega, transmissão de qualquer coisa a outrem.» Na passagem do latim para o português, o vocábulo perdeu aquele d entre ESTILÍSTICA DA LÍNGUA PORTUGUESA
vogais e começou de significar outra coisa: «a entrega, a transmissão dum segredo íntimo, militar, político, ou duma fortaleza, vila, etc.». Vê-se pois como da simples ideia fumdamental de «entrega», «transmissão», se engendrou o significado moral de «traição», «infidelidade», «deslealdade». Traição poderia definir-se como «entrega desleal». Tradição também seguiu o seu rumo, também tomou um sentido moral. Passou a significar «a transmissão de factos históricos, sistemas, lendas, etc., de idade em idade, sem prova autêntica ou escrita, provindo da transmissão oral ou de hábitos inveterados». Copiamos a definição dada por Cândido de Figueiredo no Pequeno Dicionário da Língua Portuguesa. Como vemos, e não obstante uma complicada evolução semântica, lá está bem visível ainda a ideia originária de «transmissão».
Em conclusão: poderemos formular esta regra, de acordo com os mais recentes investigadores da linguagem e do estilo: «Dois fenómenos de expressão numca são exactamente iguais». O leitor está vendo as consequências deste princípio. Não se pode ir ao dicionário escolher mais ou menos à toa os significados, como fazem geralmente os principiantes. O facto dá origem a verdadeiros contra-sensos. Cada palavra, em dado momento, é portadora de um sentido, que adquire especial relevo no contexto. Não pode pois baralhar-se com as outras. A arte do estilo consiste em escolher, nesses grandes armazéns de palavras que são os dicionários, os termos justos, que hão de dar forma e cor aos nossos pensamentos. 3.
Como nascem os sinónimos. - É bom de ver que
nem todos os conceitos se prestam de igual modo à produção de sinónimos. De um modo geral, as palavras concretas prestam-se menos às variações sinonímicas. Se procurarmos no dicionário os equivalentes de tinteiro, água, chave, calças, porta, veremos que estes termos não têm propriamente sinónimos. Os dicionaristas contentam-se com a sua definição
26 M. RODRIGUES’LAPA
por meio de perífrases e acrescentam algumas locuções em que a palavra tem cabimento, com um sentido mais ou menos diferente. Por exemplo, para tinteiro, o Pequeno Dicionário apresenta apenas isto: «Pequeno vaso para conter tinta de escrever. Utensílio de escritório com um ou mais vasos para tinta de escrever.» Realmente o vocábulo não se presta a mais; identifica-se por si próprio, conhece-se pela própria representação que sugere, sempre a mesma: um recipiente para tinta. Outras palavras há, concretas embora, que implicam variadas formas, que vão do termo técnico, científico, até às expressões mais baixas da gíria popular: apêndice nasal - nariz - penca - ventas; - abdómen - ventre - barriga -pança, etc. Vemos pois que há noções pobres e noções ricas, na linguagem; umas contentam-se com uma só palavra, outras, sugerindo novas representações em tomo do objecto ou da ideia primitiva, geram uma família numerosa de sinónimos. Compreende-se que um dos principais geradores de sinónimos seja a variedade do emprego da mesma coisa, segundo os diferentes meios sociais. Para prova disso, dá-se geralmente este exemplo: o dinheiro recebido em troca da prestação de serviços tem variadíssimas designações, conforme a escala social da pessoa que o recebe: honorários, ordenado, mensalidade, soldo, pré, salário, féria, etc. Seria extremamente reparável e incorrecto dizer-se: 1. O major recebeu o pré. 2. O salário do ministro é grande. É que as palavras evocam os meios sociais em que são geralmente empregadas, e não se pode confundir o seu uso, sem nos expormos a graves mal-entendidos. O termo pré lembra logo o ambiente militar dos soldados e sargentos, salário sugere uma classe especial: a dos pequenos serviçais. ESTILÍSTICA DA LÍNGUA PORTUGUESA
27
Isto é, as palavras e os sinónimos, são um espelho da sociedade: também se dividem em classes. No campo diz-se: comer uma tigela de CALDO ; na cidade: comer um prato de SOPA. Vem. a dar na mesma; mas o caldo sugere o campónio, a sopa é própria do homem da cidade. 4. O eufemismo. - Este mesmo sentimento das conveniências sociais leva-nos muitas vezes a atenuar a dureza e a franqueza de certas expressões, que evocam imagens grosseiras ou desagradáveis. Certos termos que exprimem a morte, o furto, a embriaguez, a idiotia, a mentira, etc., requerem eufemismos, isto é, meios expressivos que adoçam a brutalidade ou a inconveniência social desses termos. Para o homem, nada mais terrível do que a morte. Pois bem, na vida social, o vocábulo que define a ideia pura - morrer, é suavizado pelos seguintes eufemismos: falecer, expirar, decidir, acabar, perecer, ir para o céu, finar-se, fechar os olhos, entregar a alma a Deus, passar-se, etc. Tudo expressões que procuram atenuar a fealdade do horrível transe. E quando se anuncia no jornal a morte de alguém, pessoa católica e de bom-tom, a sua família não escreve, seca e trivialmente, morreu, mas sim um longo circunlóquio eufemístico: Foi Deus servido chamar à sua
divina presença Fulano de tal. O emprego do eufemismo também caracteriza certas camadas sociais. A um homem da plebe que comete um fui to, as gazetas não hesitam em exprobrar ao ladrão, ao gatumo, o roubo que praticou; mas se um homem da alta sociedade cometeu o mesmo crime, então os redactores adoçam servilmente a frase e escrevem: desvio de fumdos, fraude, alcance, etc. O povo observou perfeitamente esta injustiça e fez sobre ela um provérbio admirável: «Quem rouba um pão, é ladrão; quem rouba um milhão, é barão». Um homem do povo não se embriaga; isso é próprio da gente fina; o plebeu embebeda-se, e, empregando termos de gíria popular, toma a carraspana, o pifão, o pileque, fica
28 M. RODRIGUES LAPA
grosso, colhe a trompa (gíria galega), etc. Se num salão aristocrático se ouvissem estes nomes, as senhoras corariam de indignação; se numa viela de Alfama, em Lisboa, alguém pronunciasse o vocábulo embriagar, era apupado e escarnecido- caso verdadeiramente o entendessem. O conselheiro Acácio, a famosa caricatura de Eça de Queiroz, conhecia bem o valor do eufemismo e empregava-o constantemente. Diz dele o escritor: «Numca usava palavras triviais; não dizia vomitar, fazia um gesto indicativo e empregava restituir». Até os ladrões entre si usam o eufemismo, como aquele ratoneiro duma novela de Castelao, que suavizou o termo roubar em apanhar: «Certa noite de caminho propuxo Barrote que fossen apanhar uas galinhas». - Os dous de sempre, l.a ed., pág. 60. Pode portanto dizer-se que há na linguagem uma dissimulação, uma espécie de hipocrisia o reflexo de todas as atenuações, transigências e desigualdades que a vida social, como está constituída, nos impõe. 5. As séries sinonímicas. - Vejamos agora praticamente o problema da significação dos sinónimos, os seus matizes diferenciais. Para estudar os sinónimos temos os dicionários vulgares, que trazem, após a definição, os vocábulos ou expressões equivalentes; mas como as palavras adquirem no contexto as significações mais diversas, segue-se que a consulta dos dicionários correntes não serve para o estudo dos sinónimos. O facto de esses dicionários não trazerem o vocábulo inserido na frase ainda agrava a questão, tomando a consulta perigosa para o principiante. Um exemplo: Procuremos no Pequeno Dicionário, de Cândido de Figueiredo, a rubrica deixar. Vemos que a palavra tem as seguintes significações: separar-se de; lançar de si; largar, pôr de lado; abandonar; permitir; cessar; resistir; adiar; ceder; omitir. Note-se, de passagem, que resistir é erro tipográfico, em vez de desistir. Assim vem na l.a ediESTILÍSTICA DA LÍNGUA PORTUGUESA 29
cão do Novo Dicionário do mesmo autor. Os modernos revisores dos dois dicionários não deram pelo erro, que assim se foi radicando e passando a outros, estando contudo já corrigido na 10.a edição. Reparando para o sentido daqueles diferentes termos, verifica-se que existem várias séries de significações, digamos, várias séries sinonímicas, isto é, grupos de palavras subordinadas a um sentido comum: 1. Deixar, separar-se de, largar;
4.
Deixar, adiar;
2. Deixar, permitir; 5. Deixar, ceder; 3. Deixar, cessar, desistir; 6.
Deixar, omitir.
Isto é, verdadeiramente a palavra deixar, tal como a encontramos nos pequenos dicionários, admite em si seis séries sinonímicas pelo menos. Se procurarmos num dicionário grande, admitirá muitas mais. Note-se que se há séries nitidamente diferenciadas como a l.a e a 6.a, a 6.a e a 2.a, a 3.a e a 2.a, já não sucede o mesmo com a l.a e a 5.a Entre ceder e largar pode haver uma relação de significado, e entre desistir (3.a), adiar (4.a) e largar (l.a) também não será muito difícil achar uma ideia comum, se nos aplicarmos a isso. Por consequência, os dicionários correntes não são um instrumento cómodo para a pesquisa dos sinónimos, porque baralham as séries e não enquadram o termo no seu contexto, onde alcança a verdadeira significação. Para remediar esse mal fizeram-se os dicionários de sinónimos. Aí aparece efectivamente a série, e dentro da série o sinonimista engenha-se em descobrir as diferenças de sentido. O dicionário de sinónimos mais celebrizado que temos é o velho Dicionário dos sinónimos, poético e de epítetos da língua portuguesa de Roquete e Fonseca. Tem tido muitas edições em Portugal e Brasil. É um instrumento antiquado, incompleto, que padece dos defeitos de toda essa
30 M. RODRIGUES LAPA
espécie de tratados: a preocupação da etimologia e do uso clássico da língua, sem ter em conta o seu uso corrente, popular. É uma construção artificial, de reduzido valor, e que não é útil meter nas mãos de principiantes. Mal por mal, antes os dicionários comums. Muito melhor do que ele temos agora o Dicionário de Sinónimos de Antenor Nascentes, que pode prestar bons serviços ao estudioso, quando manuseado com discernimento e sem espírito de rigor sistemático. 6. Valor sentimental e intelectual das palavras. - Em
presença das coisas, o nosso espírito reage da seguinte maneira: ou as percebe ou as sente. Quase sempre estas duas operações, a percepção e o sentimento andam ligadas, mas, por via de regra, em proporções diferentes. Praticamente há objectos que despertam mais a nossa inteligência, outros que chocam mais a nossa sensibilidade. Assim também as palavras: umas têm uma dominante afectiva, outras uma dominante intelectual. Vejamos um exemplo: 1. O lavrador deixou a casa e encaminhou-se para o trabalho. 2. Os filhos, cheios de fome, abandonaram a casa paterna. Ligados por um conceito comum, «a separação», aqueles dois verbos deixar e abandonar não têm o mesmo valor. No primeiro caso, a separação fez-se normalmente, sem sobressalto afectivo; tarefa de todos os dias, feita a frio, mal iria ao lavrador se, de cada vez que deixava a casa, se pusesse a chorar de saudade ou de mágoa. No segumdo caso, o verbo abandonar está já penetrado de sentimento, tem uma sobrecarga afectiva que não tinha o outro: os filhos deixaram a casa paterna com desespero, com dor e raiva. Há ESTILÍSTICA DA LÍNGUA PORTUGUESA 31
pessoas - os puristas da língua - que se erguem ainda hoje contra o emprego do verbo abandonar, por ser um galicismo. É certo que o vocábulo nos veio do francês, mas há séculos que é usado na língua, e corresponde, como acabámos de ver, a uma necessidade de expressão. Deixar não significa o mesmo que abandonar. É isto que os puristas não vêem. Logo, numa série de sinónimos há palavras que exprimem sobretudo uma ideia, outras que exprimem sobretudo um sentimento. É tarefa delicada, por vezes, a discriminação destes dois elementos; não raro, é até impossível fazer essa distinção; mas esse esforço é indispensável a quem queira escrever bem. Vamos dar normas e exemplos, que auxiliarão o interessado nesse trabalho. 7. O termo identificador. - Vejamos estas frases:
a) O lutador ergueu-se, belo como uma estátua.
b) Eram duas raparigas, qual delas a mais formosa. c) Simples e linda, a noiva saía da igreja. a
Laura trazia um bonito vestido de seda azul.
Temos aqui uma série sinonímica, que poderíamos aumentar consideravelmente. Belo, formosa, linda, bonito são palavras realmente umidas por um idêntico sentido. Aquela que reumir o conceito comum a todas as outras, que puder substituir-se a todas elas sem grande prejuízo de significação, é chamada em Estilística o termo identificador. A esse termo fumdamental, que traduz a ideia pura, condensada, se referem todos os outros. É pois da maior conveniência saber fixar sempre numa série o termo identificador, trabalho aliás não muito difícil, porque o termo identificador é, por via de regra, o termo geral, o mais abstracto.
32 M. RODRIGUES LAPA
Não é, efectivamente, muito custoso determinar nesta série uma noção fumdamental: - o conceito de beleza, que abrange todos os outros: formosura, lindeza e boniteza. Se quiséssemos, poderíamos substituir os adjectivos das alíneas b), c), d) pelo termo identificador: o sentido não sofria prejuízo de maior, embora ficasse mais desbotado, menos expressivo: b) Eram duas raparigas, qual delas a mais bela. c) Simples e bela, a noiva saía da igreja. d) Trazia um belo vestido de seda azul. Se quisermos fazer o mesmo com os outros exemplos, vemos que o sentido já não fica tão bem; e teríamos até um efeito cómico, se disséssemos: «O lutador ergueu-se, bonito como uma estátua». Por consequência, é defeito empregar umiformemente, em todos os casos, o termo mais geral; e maior defeito é ainda baralhar o emprego das palavras dentro da série sinonímica. Os principiantes são naturalmente inclinados a isso. Procuremos agora definir o diferente significado dos elementos da série. Nem precisamos de recorrer aos dicionários para não lançarmos confusão no nosso espírito. No primeiro exemplo, belo sugere-nos a ideia de perfeição e de harmonia de formas, e também uma certa confiança serena na própria força. No segundo exemplo, formosa evoca apenas a perfeição da forma física. No terceiro exemplo, linda já se carrega dum forte matiz sentimental; não é só beleza física, é também mimo, ternura, delicadeza da alma. Enfim, bonito representa a ideia de beleza, diminuída, descida ao plano das coisas familiares. É também um termo afectivo, mas mais de andar-por-casa. Quanto ao uso dos vocábulos, notamos que belo é vagamente literário, embora represente ESTILÍSTICA DA LÍNGUA PORTUGUESA 33
a ideia geral; formosa é vocábulo que só se emprega em literatura; lindo pertence à língua corrente, e bonito propriamente à linguagem familiar, onde adquire, a par da ideia de beleza, um certo matiz de bondade. Exemplo: «Os meninos bonitos não fazem coisas dessas». 8. Diferenças quantitativas e qualitativas. - Consideremos esta frase: «O companheiro tomou-se enfadonho, aborrecido, odioso». Aquela série de adjectivos está colocada segundo uma ordem lógica, a própria lógica dos sentimentos: a aversão foi-se desenvolvendo numa ordem crescente: primeiro, uma vaga antipatia, depois, um pronumciado desafecto, por fim um ódio declarado. Claro que não poderíamos inverter a ordem dos adjectivos, que têm valores quantitativos diferentes.
Vejamos agora esta de Fr. Luís de Sousa: «Não havia em todo aquele grande povo senão medo, desordem, terror e confusão». Há nela duas séries sinonímicas, artisticamente entrelaçadas: a) medo - terror; b) desordem -confusão. Se observarmos o efeito produzido pelos termos de uma e doutra, notaremos que a impressão vai crescendo de intensidade. Na verdade, terror é um vocábulo mais intensivo que medo, Confusão mais intensivo que desordem. Logo, quem sabe escrever não mistura arbitrariamente os sinónimos. Suponhamos que inverteríamos naquela frase a ordem dos termos sinonímicos: «Não havia em todo aquele grande povo senão terror, confusão, medo e desordem». Incorreríamos na censura de não saber escrever, pondo o termo intensivo antes do outro. O efeito estilístico perder-se-ia totalmente. Há casos ainda mais complicados, em que a disposição das palavras obedece a certas exigências expressivas do discurso
34
M. RODRIGUES LAPA
seguinte. Veja-se este passo de D. Francisco Manuel de Melo: «Estar um cidadão em sua casa dormindo, regalado, seguro e quieto, em noite tempestuosa de dezembro, e, a troco de uma pequena migalha de prata e ouro, estar o miserável pescador lutando com a morte duas marés inteiras, para lhe trazer de madrugada o guloso besugo ou o pintado salmonete!» A ordem decrescente dos adjectivos justifica-se aqui pela antítese que se segue: l.a - noite tempestuosa, miséria, desconforto; 2.a - luta contra a morte; 3.a-a azáfama, a canseira de pescar duas marés inteiras e de lhe trazer o peixe a casa. Vemos pois que a ordem dos vocábulos foi determinada apropriadamente pela ordem dos elementos seguintes que lhe são opostos. Enfim, repare-se nesta frase de Ferreira de Castro: «A vida só existia através do seu desespero, do silêncio e dos remorsos; dos remorsos, do silêncio e do desespero». A repetição dos mesmos elementos na ordem inversa procura dar, e dá realmente, um efeito expressivo; um círculo vicioso, uma repetição constante de coisas, em que a alma se sentia abafar. A linguagem popular conhece o processo, como se vê daquele dito chistoso: «ao almoço me dão pêras, ao jantar pêras me dão, à merenda pão com pêras, à ceia pêras com pão». O escritor não fez mais do que transpor para termos de arte um modo expressivo empregado pelo povo. Nem sempre, contudo, numa série de palavras de igual categoria, se trata de uma ordem ascendente ou descendente. Exemplo disso, o seguinte verso das Cartas Chilenas (ix, 352), a famosa sátira luso-brasileira do século xvm, da autoria de Tomás António Gonzaga: Resistem, gritam, ferem, matam, prendem. Alude-se a soldados que não obedeciam às ordens dos juizes, desrespeitando e agredindo os oficiais de justiça que ESTILÍSTICA DA LÍNGUA PORTUGUESA
35
os iam prender. O primeiro editor, Luís Francisco da Veiga, entendeu alterar assim a ordem dos termos: «resistem, gritam, ferem, prendem, matam». Estaria assim regularizada, efectivamente, a ordem ascendente da série; mas o autor o que quis dizer foi isto, «matam ou prendem», não se tratando pois, em toda a extensão, de uma ordem ascendente. É de notar que as diferenças quantitativas podem ter um carácter meramente intelectual, como uso - abuso, mar - oceano, ribeiro - rio. Não intervém nestas séries o sentimento. Mas já em surpreendido -
espantado, dócil-humilde, pensar - cismar, etc., facilmente vemos que o segumdo vocábulo, o termo intensivo, tem uma dose maior de sentimento. No geral, o que predomina nas séries é a intensidade afectiva; e é isso que verdadeiramente importa para a Estilística. Isto, pelo que diz respeito aos caracteres quantitativos da expressão. Há porém uma noção qualitativa que não tem menor importância. É sabido que, quando nos referimos às coisas, actos, ideias, lhes damos um valor que eles em si podem não ter, mas que referimos quase sempre a nós próprios. Por exemplo, vão três amigos ao teatro ver uma - É escapatória. Acode o terceiro: - Acho uma coisa insípida. peça. Ao sair, exclama um:É admirável! Diz o outro: O primeiro referiu-se à peça de um modo «melhorativo», o terceiro de um modo «pejorativo». O segumdo colocou-se em um meio-termo, sofrivelmente neutral. É assim o nosso poder de apreciação: tendemos para achar boas ou más as coisas, segumdo nos causam prazer ou desgosto. E este facto necessariamente se há-de reflectir na linguagem. Suponhamos que Fulano vê o seu figadal inimigo, vestido a primor e montado num soberbo cavalo. Diz logo em tom de mofa para o vizinho: - Ali vai aquele pedante, escarranchado na sua pileca! Deu um sentido pejorativo às suas representações (pedante em vez de bem vestido, escarranchado por montado, pileca em lugar de cavalo), levado pelo seu sentimento pessoal.
36 M. RODRIGUES LAPA
A língua está cheia destas expressões, que encerram numa série sinonímica valores melhorativos ou pejorativos: leito - catre; lábio - beiço; religioso - beato; fino - manhoso; económico - avarento, etc. É claro que as séries podem conter mais palavras, e várias delas podem ter um sentido mais ou menos pejorativo. Exemplo: palácio - solar •-vivendacasa -pardieiro - casebre-choupana-tugúrio-barraca. A propósito justamente de casa escreveu Eça uma página cheia de graça, por ocasião da visita que o Imperador do Brasil fez a Herculano em 1872. Os jornais noticiaram o caso e, para acentuarem a honra prestada pelo soberano ao austero historiador, diminuíram a habitação deste a proporções ínfimas, empregando pejorativos literários, que têm aqui um efeito desnaturai e cómico: «Sua Majestade Imperial visitou o Sr. Alexandre Herculano. O facto em si é inteiramente incontestável. Todos sobre ele estão acordes, e a História tranquila. No que porém as opiniões radicalmente divergem é acerca do lugar em que se realizou a visita do Imperador brasileiro ao historiador português. O Diário de Notícias diz que o Imperador foi à mansão do Sr. Herculano. O Diário Popular, ao contrário, afirma que o Imperador foi ao retiro do homem eminente que... O Sr. Silva Túlio, porém, declara que o Imperador foi ao tugúrio de Herculano (ainda que linhas depois se contradiz, confessando que o Imperador esteve realmente na íebaida do ilustre historiador que...). Uma correspondência para um jornal do Porto afiança que o Imperador foi ao aprisco do grande, etc. Outra vem todavia que sustenta que o Imperador foi ao abrigo desse que... Algums jornais de Lisboa, por seu turno, ensinam que Sua Majestade foi ao albergue daquele que... Outros contudo sustentam que Sua Majestade foi à solidão do eminente vulto que... E um último mantém que o imperante foi ao exílio do venerando cidadão que... Ora, no meio disto, uma cousa terrível se nos afigura: é que Sua Majestade se esqueceu de ir simplesmente à casa do Sr. Herculano!»- (Uma campanha alegre, n, 87-88).
9. Os efeitos evocativos. - Pelos exemplos apresentados até aqui, já temos visto que as palavras sinónimas podem ESTILÍSTICA DA LÍNGUA PORTUGUESA 37
evocar certas formas de vida e actividade, certos meios sociais. Por exemplo, alguém diz para um doente: - Então, vai melhor dos seus achaques? Aquela palavra não é a usual, em casos semelhantes. Costumamos dizer padecimentos, doenças, sofrimentos. A expressão, desusada, produz em nós certo efeito. Lembramo-nos de que ouvimos o termo a pessoas velhas, que já o encontrámos em livros antigos. Trata-se pois de um vocábulo antiquado, usado na literatura. O seu emprego choca-nos, evocando logo em nós um ambiente conservador e certa afectação literária. É a isto que se chama o «efeito por evocação» das palavras. Esse efeito pode ser de natureza variada, como é de calcular. Vejamos estas quatro frases:
a) O pobre homem morreu cheio de sofrimento. b) Às dez horas, o mariola esticava o pernil. c) O estadista expirou com o pensamento no seu país. d) Faleceu ontem o Sr. José dos Santos Abreu. No primeiro exemplo, morreu é o termo usual e também o termo identificador, aquele que traduz a ideia geral, menos expressiva, por assim dizer. No segundo exemplo, pasmamos do atrevimento da expressão; sentimos imediatamente que esticar o pernil é um termo de gíria popular, que evoca esferas inferiores da população. No terceiro exemplo, expirar aparecenos como um vocábulo literário, só usado nos livros. Enfim, no último exemplo, faleceu dá-nos a impressão de um meio burocrático, jornalístico. A palavra, que tem carácter eufemístico, é empregada em estilo correcto, cerimonioso e levemente afectado. Uma das coisas que melhor denumciam o aprendiz de estilo é o desconhecimento desta lei importante, que consiste em empregar as palavras que condigam com o ambiente
38 M. RODRIGUES LAPA ESTILÍSTICA DA LÍNGUA PORTUGUESA 39
psicológico ou social. Suponhamos esta frase: «Eurico, nas solidões do Calpe, não esquecia a mulher de quem gostara um dia». Aquele gostar introduz no discurso uma nota quase cómica, porque, sendo um termo familiar, de andar-por-casa, não se pode aplicar à paixão devoradora dum romântico tal como Eurico. Se as palavras evocam o meio social, claro está que não poderemos pôr na boca dum campónio que conta um acidente, uma expressão como esta: «Quando o pedregulho caiu, fiquei um momento perturbado-». O que ele certamente diria era azoinado, aparvalhado, etc., palavras que correspondem aos seus hábitos linguísticos. Note-se ainda que há também tendência de quem fala para se aproximar do entendimento daquele que ouve. Um cavador foi agradecer a um doutor um acto de generosidade. O doutor não lhe diz, se souber falar: - Penhorou-me a sua amabilidade; repito, porém, nada tem que me agradecer. Isso diria a um seu igual, em estilo epistolar, literário. Ao pobre homem, para que ele compreendesse bem, diria mais ou menos isto: - Ó homem, muito obrigado pela sua atenção, mas nada tem que me agradecer, valha-o Deus! 10. Os dicionários analógicos. - Acabámos de ver palavras que apresentam vários aspectos duma mesma noção; mas é natural que cada um dos elementos duma série sinonímica sugira por seu turno outras palavras, com que tem ou pode ter certas afinidades. Entra em jogo a chamada associação de ideias, que desempenha um papel importante no mecanismo do nosso espírito e portanto na técnica da expressão. Os vocábulos belo, amor, frio, morrer, são conceitos abstractos, que se identificam e esclarecem no nosso espírito por meio da noção contrária :feio, ódio, calor, viver. Estas palavras, que designam o contrário ou a face oposta das coisas ou ideias, chamam-se antónimas. Estão implícitas nos termos abstractos, como que fazem parte da sua definição. O povo diz com graça e com uma certa verdade: - Que vem a ser bonito? - É aquilo que não é feio. Fugindo da complicação das definições, sempre delicadas, define um termo pelo seu contrário. E procede com certa razão: a maneira mais prática de definirmos o belo e o feio é pô-los a par um do outro. De modo que o princípio da analogia leva a considerar numa palavra em primeiro lugar o seu contrário; depois, todos os termos que se lhe ligam por associação de ideias. Para não sairmos da noção de belo, fixemos desde já o antónimo feio e vejamos os vocábulos e locuções mais correntes que se ligam aos dois termos: BELO Expressões substantivas: beleza, formosura, graça, encanto, atractivo, lindeza, boniteza, amabilidade, elegância, boa aparência, boa parecença, perfeição, majestade, Adónis, Narciso, narcisismo, Vénus, Helena, garridice, louçania, querubim, gentileza, donaire, etc.
Expressões verbais: ser belo, brilhar, luzir, resplandecer, aformosear, florescer, embelezar, alindar, enfeitar, adornar, ornar, parecer bem, transformar se de feia lagarta em linda borboleta, estar que nem um palmito, estar mesmo um amor, - um primor etc_ Expressões adjectivas: belo lindo, bonito, gentil, garrido, esPecioso, loução, vistoso, bem proFEIO Expressões substantivas: fealdade, monstruosidade, enormidade, deformidade, desproporção, má aparência, má catadura, suj idade, imumdície, Polifemo, Vulcano, Sileno, Quasímodo, diabo, bruxa chimpanzé, bode, sapo, osga, mostrengo, bicho, urso, macaco, estafermo, aleijão, etc. Expressões vetbais: ser feio, ter má aparência,-má catadura, fazer caretas, ter a pele engelhada, ser um aleijão, ser estropiado; deformar, aleijar, estropiar, sujar, lambuzar, borrar, besumtar, deturpar, sarapintar, enfarruscar, ser feio como um bode,-como o diabo, etc. Expressões adjectivas: feio, sem beleza, desengraçado, hediondo, feio de meter medo, caricatural,
40 M. RODRIGUES LAPA
amores, etc. rado, etc.
Se fizermos isto para todas as representações fumdamentais que possam arrastar outras ideias e por consequência outras formas de expressão, teremos feito um «dicionário analógico», ou «ideológico». São de grande benefício para o escritor, que por vezes procura a expressão mais adequada. Tê-la-á à sua disposição nesses repertórios, quando bem elaborados. Só em 1936, apareceu um dicionário desses para a nossa língua, com certo desenvolvimento. É o Dicionário analógico Aã língua portuguesa, do P.e Carlos Spítzer (Porto Alegre, Livraria do Globo). Adopta uma sistematização muito discutível e embaraçosa para o estudioso e inclui, sem discriminação, os idiotismos portugueses e brasileiros, o que pode levar a algumas confusões. Mais claro, embora menos completo, é o Vocabulário analógico saído um pouco antes, da autoria do lexicólogo brasileiro Firmino Costa, o qual dá por vezes a abonação literária das expressões. Ultimamente, em 1950, foi publicado também no Brasil, o Dicionário analógico, de Francisco Ferreira dos Santos Azevedo. Padece dos mesmos defeitos, mas é talvez mais prudente e criterioso na escolha de termos de idêntico significado. As duas colunas sobre belo e feio foram em grande parte aproveitadas de Spitzer; mas não incluímos algums termos nele contidos, por abusarem um pouco do conceito da analogia: careca, calvo, bexigoso, vermelhaço, cabelo de fogo, desaire, etc. É evidente que, a propósito de feio, se podem ESTILÍSTICA DA UMGUA PORTUGUESA 41
menos naturais, íomfa nos bons diários anatogicos.
3.
O VOCABULÁRIO PORTUGUÊS in 1.
História e fisionomia do vocabulário português. -
A grande maioria, poderemos dizer a quase totalidade das palavras usuais portuguesas, provém do latim; não daquele latim polido, empregado pelos escritores da Roma imperial, mas da língua plebeia das tabernas e alfurjas, falada por soldados, por colonos e pequenos mercadores. Foram estes elementos da população romana que introduziram a sua língua na Península Hispânica, nos momentos da invasão e da conquista. Era a língua dos vencedores: ficou sendo pouco a pouco a língua dos vencidos, porque trazia consigo o prestígio duma grande civilização. A língua portuguesa, como afinal as outras línguas aparentadas, tem portanto, como se vê, uma origem bem humilde, caracteristicamente popular. Não nasceu em berço doirado. Esse latim popular, que, mais tarde, por transformações de vária ordem, deu o português, era, como toda a linguagem plebeia, um instrumento de comunicação social, tosco, abreviado e sobretudo concreto. Usava um vocabulário em muitos pontos distinto do latim literário. Por exemplo, para designar «boca», dizia bucca e não ore; para «cavalo» dizia cábállu e não équu; para «casa» dizia casa e não dómu; para «grande» dizia grande e não mágnu. ESTILÍSTICA DA LÍNGUA PORTUGUESA 43
Estamos vendo a importância deste facto: a escolha feita pelo latim vulgar ainda hoje vale para a língua comum. Efectivamente, em linguagem despretensiosa dizemos boca, cavalo, casa, grande; mas para os seus derivados já usamos ou podemos usar os termos literários: oral, equestre, doméstico, magnitude. Durante algum tempo foi essa língua a usual na Península; mas o conquistador, por meio de escolas, foi derramando logo na terra conquistada o conhecimento da cultura latina, dos seus grandes escritores: de modo que, em breve, se deu um facto corrente em todos os idiomas: o lusitano começou a empregar duas línguas-uma, quando falava, outra, quando escrevia. Sempre que um povo se adianta na cultura, essa distinção é inevitável. Veio depois a grande arremetida dos bárbaros germânicos. A Península é outra vez invadida e assolada. Mas os germanos possuíam uma civilização inferior; dominando pelas armas, deixaram intacta a velha cultura, imprimindo-lhe leves modificações, sobretudo no campo do direito. A língua continua a mesma; porém o vocabulário foi acrescido de um certo número de palavras, que denumciavam as preocupações guerreiras dos conquistadores. Termos de guerra, sobretudo, ou coisas aparentadas com a guerra, foi quanto a língua adquiriu com a invasão dos germanos: agasalhar, albergar, arreio, baluarte, banir, barriga, bradar, brandir, dardo, elmo, escaramuça, esgrimir, franco, galope, garbo, gastar, guerra, grinalda, luva, marchar, orgulho, raça, roubar, sala, tirar, trepar, etc. Como vemos, a maioria destes vocábulos tem uma fisionomia acentuadamente militar. A acumulação dos rr parece dar-lhes a sonoridade dum tinir de armas; a natureza violenta e selvática
dos germanos espelhou-se nas predilecções do seu vocabulário. Três séculos depois, a Península sofre nova invasão: a dos árabes. A civilização dos árabes era talvez superior à
44
M. RODRIGUES LAPA
cristã; não puderam porém conquistar toda a Ibéria. Ao norte, no Cantábrico, ficou um reduto cristão, de onde partiu, com implacável tenacidade, a guerra da reconquista. Tem-se hoje como certo que a maioria dos árabes sofreu logo de início e cada vez mais a influência da cultura e até da língua românica; mas não é menos verdadeiro que alguma coisa devia ficar da longa dominação islâmica. O vocabulário português de origem árabe denumcia bem em que medida se exerceu entre nós a influência dos sarracenos, que introduziram na Península novidades referentes à agricultura, indústria, ciências e artes, jogos, comércio, administração, etc. Eis algums dos vocábulos mais usuais de origem árabe: açorda, alambique, álcool, alecrim, alfaiate, algarismo, alqueire, armazém, arroba, arrobe, azul, fatia, garrafa, mesquinho, oxalá, xadrez, xarope, etc. Pelo sentido destas palavras verificamos que o domínio da civilização árabe foi grande, pelo que respeita aos aspectos materiais da vida; mas dificilmente se encontrará na lista uma palavra abstracta, exceptuando a interjeição oxalá, que exprima ideias ou sentimentos da alma. Até mesmo aquele mesquinho parece ter sido ao princípio uma palavra concreta e significar «mendigo», «pedinte». Logo, a requintada cultura árabe não tocou na estrutura da língua; limitou-se a enriquecer o vocabulário de palavras que traduzem geralmente as aquisições da técnica e os gozos terrestres da vida. Outras influências vieram depois enriquecer o nosso vocabulário. Acima de todas coloca-se a da língua francesa, que, por ser a expressão duma apurada cultura, logo de início, nos primeiros tempos da fumdação de Portugal, se fez sentir entre nós. Numca devemos esquecer que o primeiro chefe de Portugal foi um nobre francês, o conde D. Henrique de Borgonha, e que franceses ou gente afrancesada combateram por Portugal logo nos primeiros tempos da nossa existência de nação livre. Esses soldados franceses, ESTILÍSTICA DA LÍNGUA PORTUGUESA 45
depois da guerra, estabeleciam-se no reino e nele constituíam família. Muitas das povoações da Estremadura e Ribatejo foram colonizadas por eles, então designados sob o nome geral de Francos. 2. O estrangeirismo; os galicismos. - Quando quisermos estudar o problema dos galicismos, assim se chamam os termos ou locuções afrancesadas que abumdam na nossa língua, devemos ter sempre presente o que acabamos de dizer: a verdade é que a nossa própria liberdade tem uma raiz francesa. Não é pois de estranhar que, acompanhando nós através dos séculos, com maior ou menor intensidade, o prestígio da cultura francesa, tenhamos recebido na nossa a marca da sua língua. O problema é sobretudo um problema de ordem moral, que deve ser posto desta maneira: a influência duma cultura como a francesa, onde predominam a razão e a claridade, só pode ser benéfica para nós, com uma condição: que, em vez de nos escravizar ao estilo francês, estimule e clarifique as energias do nosso portuguesismo. E, na verdade, é assim que ela tem operado entre nós. Dois exemplos: no século xui tivemos uma escola magnífica de poesia lírica. Foi a França que lhe deu o impulso inicial; a língua dos nossos trovadores acusa naturalmente um ou outro galicismo; mas essa influência estrangeira fez rebentar as fontes do nosso lirismo nacional, que se desentranhou em obras admiráveis. Outro exemplo: no
primeiro quartel do século xix dá-se entre nós o movimento literário do Romantismo, sob o impulso de ideias que vieram de França, da Inglaterra e da Alemanha. Pois esse empurrão estrangeiro nada mais fez do que dar à nossa literatura uma orientação profumdamente nacionalista e humana. São disso prova as grandes figuras literárias de Garrett e Herculano. Contudo, a nossa facilidade de imitação e aceitação de
M. RODRIGUES LAPA
modas estrangeiras pode conduzir-nos a excessos. E, de facto, sempre que surge uma vaga de francesísmo, há um período de imitação desordenada, efervescente. Logo depois se estabelece o equilíbrio, e na língua só ficam, por via de regra, os vocábulos que oferecem qualquer novidade. É inútil e até grotesco berrar contra isso. A adopção dos estrangeirismos é uma lei humana e particularmente portuguesa: constitui como que uma fatalidade, devida aos intercâmbios das civilizações. A língua, especialmente o vocabulário, só tem a lucrar com isso. O ponto está em que essa imitação não exceda os limites do razoável e não afecte a própria essência do idioma nacional. Já atrás, no capítulo 2, nos referimos ao galicismo abandonar, que hoje está integrado definitivamente na língua e não é positivamente nela um «verbo-de-encher», como demonstrámos; corresponde a uma necessidade de expressão sentimental, que nenhum dos sinónimos preenche tão bem. Bastava isso para justificar o seu emprego. É essa, com efeito, a grande lei que rege ou deve reger a adopção de estrangeirismos: deverão ter acolhimento, quando correspondam efectivamente a necessidades de expressão. Vejamos algums exemplos. A palavra bibeloí (leia-se bibelô) designa aqueles objectozinhos de arte, jarras, estatuetas, figuras, caixas, etc., com que embelezamos os aposentos da nossa casa. O termo sugere três ideias fumdamentais: o pequenino, o gracioso, o artístico. A moda dos bibelôs veio-nos de França, e é um produto com que a arte francesa adornava os salões fúteis e delicados do século xvm. Introduzida a moda e portanto o objecto em Portugal, veio com ele o nome, pois era coisa desconhecida entre nós. Assim se originam os estrangeirismos. Pretendem os puristas, gente no geral pouco compreensiva e virada sempre para o passado, substituir esta palavra por outras, com sentido mais ou menos semelhante. No ESTILÍSTICA DA LÍNGUA PORTUGUESA 47
fumdo, é a velha e errónea concepção do sinónimo. Já vimos que não há nem pode haver palavras com valor absolutamente igual. Procuram pois esses legisladores da república linguística substituir com vantagem o francesismo por palavras como: galantarias, bugigangas, brincos, brinquedos, objectos, artefactos, /utilidades. Um até, o professor brasileiro Carlos Gois, no seu Dicionário de galicismos, pretendeu substituí-lo pelo termo tetéia, que em luso-brasileiro significa mimo, brinquedo. Um pouco de inteligência e de bom senso mostra-nos logo o ridículo e malfumdado de tais substituições. Nenhuma daquelas palavras é capaz de exprimir o conjumto de sugestões contido no vocábulo bibelô. O termo bugiganga é talvez o que mais se aproxima; mas contém uma ideia um pouco pejorativa de «coisa insignificante e não artística», que o distancia infinitamente de bibelô. A. diferença entre os dois termos resulta claramente de um trecho de Fernando Namora, que nos representa o escultor Vasco Rocha, esperando sua
amante Jacinta num quarto mobilado, cedido a esta por sua amiga Bárbara. Enquanto aguardava a amante, estava ele «revendo e fixando as particularidades de cada bibelô, como se estivesse a desafiar e a exercitar a memória, propondo-se reconstituir de olhos fechados os pormenores mais ínfimos (um dos bibelôs, o campino, partira-se pela faixa vermelha que lhe cingia a cintura, num daqueles gestos desastrados de Jacinta, e fora colado com a perícia de um falsário - «vê se ela não dá por isso, senão tem para aí uma solipanta» -, para que Bárbara, ciosa da sua feira de bugigangas, não reparasse no estrago»). - Os clandestinos, 2.a ed., pág. 81. O sentido pejorativo de bugigangas é ainda reforçado por aquele nome, feira, que o antecede: era um objecto de quinquilharia, sem valor. Uma outra palavra, que a moda francesa impôs ao nosso vocabulário: coquete, para designar a mulher que
48 M RODRIGUES LAPA
veste bem e gosta de agradar. Tinha a língua, no seu velho fumdo, uma bonita palavra que designava quase a mesma coisa: garrida (garridice). Esse vocábulo foi caindo em desuso e passou umicamente a empregar-se como qualificativo de cor. Exemplo: «um vestido de cores garridas», isto é, berrantes, vistosas. Já o grande escritor português Almeida Garrett, que era um janota, dizia a respeito deste termo: «A palavra coquete não é portuguesa; mas não há remédio senão aceitá-la e dar-lhe carta de naturalização, desde que a cousa se aforou tanto entre nós.» Pode portanto quem quiser empregar a palavra garrida para qualificar a mulher janota e galante. Simplesmente, o vocábulo produz em nós certo efeito evocativo: conduz-nos a um mumdo antigo, de que estamos já desabituados. Soa como um arcaísmo, e perde nisso parte da sua força expressiva. É pena, talvez; mas é assim. Um terceiro caso, o anglicismo lanche. Se disséssemos na cidade merenda em vez de lanche, como pretendem os puristas, cometeríamos uma falta de gosto, que nos tomaria ridículos. É que merenda evoca um ambiente rural, é quase uma expressão técnica das fainas do campo. Não serve portanto para a gente da cidade. Há porém casos em que o estrangeirismo representa uma inovação escandalosa e indesejável, por absolutamente desnecessária. Está, por exemplo, muito em voga a forma estrangeira feminina massiva, do francês massive: «O partido socialista tem uma representação massiva no Parlamento». É um decalque disparatado, por desconhecer a forma correcta portuguesa, maciça, ou talvez melhor, na antiga ortografia, massiça, por se referir a massa = multidão. Note-se que os nossos maiores estilistas, que se nutrem principalmente de literatura e ideias francesas, estão cheios de pecados contra o purismo do vocabulário. O próprio Camilo Castelo Branco, que é um formidável vernaculista, ESTILÍSTICA DA LíNGUA PORTUGUESA 49
e que tanto bramava contra o emprego dos estrangeirismos, abumda neles. Dois exemplos apenas: 1. «O destro jardineiro tira prodigiosas flores, redobrando e rajando as pétalas, que abrolhavam, anos antes, singelas, bem que formosas, na mesma tige» (Dispersos, m, 485). 2. «O que no ano passado corria despercebido escutou-se agora atentivamente (Dispersos, m, 325). A palavra tige é um despropositado galicismo, por «haste», «caule», «pé»; e atentivamente está por «atentamente». Sem dúvida, para Camilo, num momento dado, tige não exprimia a mesma coisa que «haste», «caule».
No Brasil, Machado de Assis também não evitou os galicismos reprochar e reproche: «Ambos tinham que reprochar ( = censurar) um ao outro. O casamento absolvia-os» (laia Garcia, pág. 142). E teve até a coragem de justificá-los em nota do seu livro Papéis Avulsos, pág. 265. Abonando-se com Morais e Silva, não os considerava galicismos, e deunos as razões pessoais do seu emprego: «Resta a questão de eufonia. Reproche não parece mal soante. Tem contra si o desuso. Em todo o caso, o vocábulo que lhe está mais próximo no sentido, exprobração, acho que é insuportável. Daí a minha insistência em preferir o outro, devendo-se notar que não o you buscar para dar ao estilo um verniz de estranheza, mas quando a ideia o traz consigo». Em Eça de Queiroz e Fialho de Almeida, os pecados de francesia são frequentíssimos e por vezes até censuráveisVejam-se estes dois exemplos em Eça: 1. «Saíram enfim do hotel a fazer esse passeio a Sitiais» (Os Maias, i, 295). 2. «Estendeu a mão; mas o primeiro aperto foi gôche e mole» (Os M aias, i, 225). 4 - Estilística
50 M. RODRIGUES LAPA ESTILÍSTICA DA LÍNGUA PORTUGUESA 51
No primeiro, fazer um passeio substitui desvantajosamente «dar um passeio», português de lei. Eça de Queiroz sentia mais força expressiva no verbo «fazer» e adoptou o modelo francês. No segundo, deu ao termo francês gaúche forma portuguesa; não se lembrou de um adjectivo português que traduzisse a ideia. Os puristas dão, como sinónimo de gaúche: canhestro, desajeitado, acanhado, azambrado, esquerdo, zambro, lorpa, bisonho, etc. Seria de mau gosto e ridículo substituir goche por «canhestro», forma já desusada; precisamente os repertórios de galicismos insistem nesse velho termo; mas poder-se-ia evitar o francesismo, usando palavras bem portuguesas, como: atrapalhado, desajeitado, desastrado, ou o afrancesado, mas já unanimemente admitido, embaraçado. Em Fialho de Almeida: 1. «levando em pós de si o olhar fetichizadoi> (O País das Uvas, 214). 2. «as mãos - uma maravilha de finura e esquisitice» (O País das Uvas, 140). No primeiro exemplo dá-se o caso engraçado de se imitar a forma francesa, quando o francês já tinha imitado a forma portuguesa. Efectivamente, os franceses tomaram o vocábulo fetiche do português feitiço; e é na verdade estranho que se adopte esse galicismo, tendo na nossa língua a bela palavra enfeitiçado. No segundo exemplo, aquele esquisitice está por encanto, delicadeza, e, nessa acepção, é também um galicismo. A palavra existiu e existe em português corn o sentido de «coisa invulgar, estranha». Há portanto no estrangeirismo, e muito particularmente no galicismo, dois casos a considerar: a adopção de vocábulos, e o emprego de construções ou de grupos fraseológicos que contrariam a natureza da língua. Os primeiros são geralmente menos graves: porque, ou ficam no idioma, por representarem uma necessidade, e passam, nesse caso, a vestir a rtuguesa: af)ím(lonar> atitude, sofá, boné, desporto, túnel, turismo, embaraçar, etc., ou são repudiados pela língua, corno coisa que não serve e só teve moda passageira no falar corrente ou no livro de um ou outro escritor (ex. goche, Os segundos, que constituem propriamente um decalque da construção estrangeira, são mais perigosos, porque podem envolver uma desnaturação mais grave da forma de pensar portuguêsmente. Pertencem a este grupo certas locuções como: fazer a honra, fazer o conhecimento com alguém, fazer um passeio, ter lugar (por «efectuar-se, realizar-se»), de maneira a, enquanto que, o emprego abusivo da preposição em (vestido em seda), o uso irregular do gerúndio, etc. A seu tempo trataremos alguns destes casos, nos seus devidos lugares.
Não vá o leitor concluir de tudo isto que nem Camilo, nem Machado, nem Eça, nem Fialho conheciam bem o português, pois que o desfeavam com máculas de estrangeirismos. O emprego do estrangeirismo limita-se, por via de regra, nesses escritores, a casos de vocabulário, o qual eles procuram colorir com auxílio do termo estrangeirado. A expressão portuguesa tinha para eles, no momento da composição, qualquer coisa de desbotado e corriqueiro, que não correspondia já às necessidades do estilo. Ou bem ou mal, é o próprio sentimento da arte e a curiosa procura do termo exacto que os leva a empregar os estrangeirismos. No mais, a sua língua é portuguesíssima de lei; e as suas audácias expressivas, se tiveram inconvenientes, também tiveram as suas vantagens. Em estilo, como no jogo, é preciso arriscar alguma coisa para se ganhar. Concluamos pois. O estrangeirismo é um fenómeno natural, que revela a existência de uma certa mentalidade comum. Os povos que dependem económica e intelectualmente de outros não podem deixar de adoptar, com os produtos e ideias vindas de fora, certas formas de linguagem
52 M. RODRIGUES LAPA
que lhes não são próprias. O ponto está em não permitir abusos e limitar essa importação linguística ao razoável e necessário. Contido nestes limites, o estrangeirismo tem vantagens: aumenta o poder expressivo das línguas, esbate a diferença dos idiomas, tomando-os mais compreensivos, e facilita, por isso mesmo, a comumicação das ideias gerais. Uma coisa é necessária, quando o estrangeirismo assentou já raízes na língua nacional: vesti-lo à portuguesa. Os estrangeirismos mais em voga (blusa, chalé, interesse, clube, túnel, coquete, abandono, lanche, etc.) estão já incorporados no idioma, havidos e sentidos como portugueses. Aquelas palavras são empregadas por nós como se fossem nossas. Já outras, como vagom = vagão, furgom, etc., não estão ainda bem nacionalizadas. Lá chegaremos. Note-se que há um grande escritor português, Teixeira-Gomes, em cujas obras se nacionalizam deliberadamente os estrangeirismos: bulevar, bibelô, sofá, pompadur, abajur, etc. O estudioso terá talvez empenho em consultar algum repertório de estrangeirismos. Temo-los, numerosos, entre nós. Aqui lhe damos a lista dos principais: Cândido de Figueiredo, Estrangeirismos; Carlos Gois. Dicionário de galicismos; Silva Bastos, Estrangeirismos; Vasco Botelho de Amaral, Dicionário de dificuldades da língua portuguesa (o mais recente e completo). A consulta de tais livros pode ter seus perigos para o principiante. Feitos com a preocupação exagerada do purismo clássico, com duvidoso discernimento e, por vezes, acentuado mau gosto, dão, para traduzir ideias modernas, termos antiquados, aproximações e perífrases, como se a preocupação de quem deseja escrever bem não fosse a busca do termo justo, lapidar, breve. Para o aprendiz de redacção o melhor ainda é a prática de escrever com liberdade e os conselhos e correcções dum mestre experimentado. 3. O neologismo. -- Apesar da abnndância do vocabulário, a língua necessita constantemente da criação de novas ESTILÍSTICA DA LíNGUA PORTUGUESA 53
formas expressivas. Esses novos meios de expressão, inventados por quem fala e escreve um idioma, são chamados neologismos. O estrangeirismo, já o vimos, provém deste desejo, absolutamente legítimo e altamente fecumdo, de novas criações. Por necessidade, preguiça, comodidade ou gosto artístico, o escritor, não tendo em casa expressão idónea, vai buscá-la às línguas estrangeiras. Logo, os estrangeirismos não são mais do que uma das formas do neologismo. Todavia, o termo usa-se mais para designar as palavras novamente criadas na língua: seria melhor dizermos «afeiçoadas», porque a criação absoluta, total, é raríssima. Já o vamos ver da seguinte lista, que compreende algums dos neologismos mais em voga actualmente: aclimar, aclimatar, actuação, adentro de, amarar (= pousar na água), aperceber-se de (- notar), a quando de (= por ocasião de), ascenso, aterragem, avião, chefia, chefiar, eclodir, enfrentar, extremista, focalizar (uma questão, um ponto literário), homenageado, ideológico, imiscuir-se, metragem, senfilismo, solucionar, vincar, zigue-zaguear, ensimesmar-se, silenciar, mentalizar, contactar, impacto, conscientizar, desfasamento, etc. Verificamos que o neologismo compreende palavras novas, mas formadas dentro dos processos
usuais na língua, ex.: amarar, enfrentar, metragem, etc., ou palavras já existentes, mas às quais se dá novo sentido: aperceber-se de, focalizar, vincar, etc. Nenhuma delas, porém, é palavra no vinha em folha; prova de que a língua não cria, mas propriamente transforma, com material de que já dispõe. Não discutimos agora se todos estes neologismos têm direito a incorporar-se no idioma. A história das palavras é muito caprichosa, também está sujeita a modas passageiras; mas quase se pode garantir que a maioria delas subsistirá. Há, é claro, além destes neologismos de uso geral, as criações individuais de cada escritor. Fialho de Almeida, sobretudo, foi um grande rebuscador de neologismos, que
54 M. RODRIGUES LAPA
por vezes tirava do fumdo provincial e da linguagem técnica: nuvezinhado, nevrostizar, chafra-nafra, transfazer-se, independeníizar, voriilhões, emotival, etc.; mas destes, pouquíssimos ficaram. Note-se que a linguagem científica e as necessidades da propaganda comercial são hoje os maiores propulsores da criação de neologismos. Basta ler um prospecto farmacêutico para se ver a enorme vegetação de termos científicos modernos: cefalàlgia, otite, hidroterapia, dermatose, edema, etc. No mumdo comercial, a importância do neologismo é ainda maior, porque do nome do produto depende em parte o êxito da sua venda. Forja-se pois um nome vistoso e sonoro. Dizia o grande linguista Brumot, com graça: «A melhor maneira de compreender o que é a criação verbal é reparar num muro coberto de anúncios ou na última página dum jornal de informações». Os literatos têm ainda um último recurso para forjar neologismos: recorrem ao latim e até mesmo ao grego. Dão assim nobreza a certas expressões mais gastas e triviais. Algums exemplos: 1. «Em toda essa magna série de trabalhos domina a composição» (Teixeira-Gomes). 2. «Os gemidos do filho eram mais dolentes e crebros» (Trindade Coelho). 3. «Intermináveis teorias de mulheres gentis» (Venceslau de Morais). 4. «Quando a procissão acedeu à capela, apartaram-se os anjinhos» (Aquilino Ribeiro). Nestas quatro frases, magna está por «grande», crebros por «frequentes», teorias por «filas», «séries», acedeu por «chegou». Nestes casos, o emprego da palavra nobre confere certa majestade à frase; mas o seu poder expressivo dimiESTILÍSTICA DA LÍNGUA PORTUGUESA
nui para o leitor médio, pouco familiarizado com o termo clássico, latino. Curioso é o emprego da palavra fugace neste passo de Lima Barreto: «Sentou-se e quis começar uma modinha sobre a glória, essa coisa fugace, que se tem e se pensa que não se tem» (Policarpo Quaresma, 128). A forma fugace, por fugaz, não se deve apenas a um propósito de latinização do vocábulo; é também evidente nela uma intenção rítmica, um arredondamento fónico mais ajeitado à prommcia brasileira. 4. O arcaísmo. - Como temos visto, a criação linguística consiste principalmente em utilizar para novos fins o material existente. E como esse material anda arquivado nos dicionários, quem escreve tem à sua disposição uma quantidade grande de vocábulos com idêntico significado. Muitos desses vocábulos já morreram. Têm porém aos olhos de muitas pessoas certo encanto, o suave aroma das coisas velhas. Evocam um mumdo distante, e a imaginação ama por vezes refugiar-se nessa atmosfera do passado. Para o escritor que procura fazer ressurgir a vida de antigos tempos, essas
ressurreições do vocabulário são necessárias, porque, pelo seu poder fortemente evocativo, ajudam a dar a chamada «cor local». Estas restaurações, obrigadas ou volumtárias, pouco importa, da linguagem antiga, são chamadas arcaísmos. O seu estudo e a sua história são na verdade muito interessantes e altamente elucidativos para o aprendiz de redacção, ao qual importa distinguir, na linguagem, entre o que é vivo e o que está morto. Há na história de todas as línguas um período, naturalmente curto, em que, a par do vocábulo usual, ainda se
56 M. RODRIGUES LAPA
não perdeu totalmente a consciência do termo velho, que vai desaparecendo. Efectivamente, as palavras não morrem de um golpe. Vão sendo pouco a pouco abandonadas, em benefício de termos novos, até que perecem e ficam sepultadas no seu cemitério próprio, que são os dicionários. Mas sucede também que o arcaísmo pode iludir o seu destino e permanecer na língua com um sentido especial. Três exemplos desta especialização de sentido são os termos nojo, britar, escudeiro. Nojo significava na linguagem antiga «pesar»; britar designava «partir», «quebrar»; escudeiro era o pajem que levava o escudo do fidalgo. As três palavras subsistem ainda hoje na língua, nas seguintes locuções: «andar de nojo», isto é, «de luto»; «britar pedra»; enfim, escudeiro é ou foi o criado de mesa de certas casas fidalgas da província; substituiu o escudo pela bandeja e travessas, com que servia pacificamente os seus patrões. Pode dizer-se que nojo e escudeiro estão a desaparecer, se é que já não desapareceram, definitivamente do uso vivo da língua; a primeira já cedeu de há muito o lugar ao sinónimo luto, tinha a desvantagem de poder estabelecer confusão com nojo = «repugnância»; a segumda, usada por Eça de Queiroz no seu romance A Cidade e as Serras (16.a ed., págs. 38, 45, 47, 57), limitada a certas casas nobres provincianas, não resistirá muito tempo à onda de modernismo, que tudo avassala, até mesmo os costumes da aristocracia; britar, a terceira, continuará possivelmente a dizer-se, enquanto houver britadores de pedra - o que não será por muito tempo, dado o emprego geral dos maquinismos a substituírem a mão do homem. São pois três palavras condenadas, mais ou menos moribumdas. Apesar disto, os escritores têm arte de as fazer ressurgir nos livros, como dissemos. Se alguém pronumciasse, ao pé de nós: «O meu lápis 6riío«-se-me»; ou: «Sinto muito nojo pelo mal que lhe sucedeu», possivelmente riríamos às gargalhadas com a impertinência do arcaísmo. Já não rimos, ESTILÍSTICA DA LÍNGUA PORTUGUESA 57
porém, se acharmos os termos escritos, em lugar próprio, para darem a atmosfera do tempo antigo: «O nobre escudeiro, cheio de sanha e nojo, britou as portas do paço do rico-homem». Nesta curta frase temos nada menos de seis arcaísmos, que a literatura alberga ainda, mas que a língua corrente repudiou já quase por completo. No turbilhão lexical que é a língua de Aquilino Ribeiro, forjada de todos os elementos possíveis e tirada muitas vezes do velho fumdo popular, lá aparece o arcaísmo britar: «Uma martelada imprudente cortou a corda, e três homens vieram britar-se nos abismos rochosos da torrente» (Volfrâmio, 166). Já o primeiro gramático da língua portuguesa, Fernão de Oliveira, observava, em 1536, que o arcaísmo dava vontade de rir. Por isso, os autores o empregam não raro com fins vaga ou declaradamente jocosos. É, quando bem utilizado, um elemento de humorismo. Veja-se esta frase de
Fialho de Almeida: «Um, d’olhares mortiços, cujo gastrálgíco aspeito dizia um poeta desempregado». Aquele aspeito, por «aspecto», dá-nos uma impressão de cómico, acentua o contraste entre a literatura e a vida, o sonho e a realidade. Também Teixeira-Gomes pretende o mesmo efeito, ao empregar o arcaísmo terribil na seguinte frase: «Terribil foi, e perigosíssima, a luta em que se envolveram aqueles três animais». É possível ainda que, na mente do escritor, o adjectivo terribil equivalesse a um superlativo, andando
58 M. RODRIGUES LAPA
por isso nele aliadas as noções de intensidade e de humorismo. É isto mesmo que se verifica nestes versos de Carlos Drummond de Andrade, o grande poeta brasileiro: «Senhor! Senhor! / quem vos salvará / de vossa própria, de vossa terrlbil ’f estremendona / inkomumikhassão ?» (Impurezas do branco, 2.» ed., pág. 7). Érico Veríssimo, no seu romance Música ao longe (3.a ed., pág. 83) representa-nos Leocádio, um velho misterioso e ridículo, dizendo isto: «- As meninas andam loucas por mim; eu é que não lhes dou fiúza. - Clarissa arregalou os olhos. Fiúza! Mais uma palavra misteriosa. Seu Leocádio é uma delícia!» Aquele fiúza (= confiança) é uma velha palavra do português medieval, ainda usada em algums falares do Rio Grande do Sul e de Minas Gerais. O escritor gaúcho soube tirar dela, pelo contraste das gerações, um belo efeito de mistério e de humorismo. Que o vocábulo também se usa no falar caipira de São Paulo parece provar-se por este passo do romance Briguela, do escritor David Antumes; mas aqui é usado sem matiz irónico: «pegou a mexer com as ideias, na fiúza de que uma delas servisse de candieiro para a sua dúvida» (págs. 67, 145). Já que falamos de arcaísmos paulistanos, convém averbar a forma imos, em lugar de vamos, no romance regionalista de João de Sousa Ferraz, Aguapés flutuam na ribeira, 3.a ed., 1977, pág. 127. E, finalmente, Carlos Drummond de Andrade, ao tratar a figura de D. Quixote, usa intencional e humoristicamente outro arcaísmo, giolhos = joelhos, definindo deste modo o cavaleiro da triste figura, que pretendia ressuscitar os ideais da cavalaria andante: «De giolhos e olhos visionários / me sagro cavaleiro andante» (Impurezas do branco, 2.a ed., pág. 63). O emprego do arcaísmo passou dos bons autores para os plumitivos de baixa categoria. «Como sói (= costuma) dizer o vulgo» é ainda hoje um cliché arcaizante, que se vê não raro na pena de jornalistas provincianos ou aprendizes ESTILÍSTICA DA LÍNGUA PORTUGUESA 59
de redacção. Adrede, quiçá com o sentido respectivamente de «propositadamente» e «talvez», também são usados em estilo pretensioso. Quando não empregados com sentido humorístico, revelam geralmente incultura e mau gosto por parte de quem os escreve. Um caso curioso, não propriamente de incultura mas de muito mau gosto, foi o que se passou com dois escritores políticos do Liberalismo português, Manuel da Silva Passos e João Bernardo da Rocha. O primeiro escrevia o arcaísmo pêra em vez de para, o segumdo usava a forma poêr, ainda mais arcaica, em lugar de pôr. Por isso, foram postos a ridículo pelos seus adversários miguelistas, que lhes chamavam respectivamente «Pêra de ignorância presumçosa» e «João Poêr». - Apud Oliveira Martins, Portugal Contemporâneo, 6.» ed., i, 228. É portanto conveniente ter especial cuidado com o emprego dos arcaísmos. Evocando um mumdo antigo, tendem a tomar ridículo o que se escreve e a pessoa que os utiliza. E isso é de algum modo justo, porque em estilo, como em tudo, somos obrigados a ser homens do nosso tempo. A prática e o bom gosto evitarão esses despropósitos.
4. O VOCABULÁRIO PORTUGUÊS
IV 1. O jogo das palavras. - O homem com tudo brinca, nas suas horas de desenfado; até com as palavras, que dão forma ao seu pensamento. Conta-se uma anedota curiosa, que vai pôr o leitor em frente de um equívoco involumtário de expressões: «Viera para a aldeia um médico, já idoso. O seu primeiro doente foi um lavrador que se queixava de fortíssimas dores nas costas. O doutor receitou-lhe uma pomada, para friccionar as cadeiras com força, à noite e de manhã. Passados oito dias, encontrando o doente, diz-lhe o médico: - Então, como tem passado ? Já não tem dores ? - Ai, Sr. doutor, as cadeiras estão muito lustrosas, mas eu estou na mesma! - Ora essa!
Como aplicou você o remédio que lhe receitei ?
- Olhe, Sr. doutor, - respondeu o lavrador - todas as noites e todas as manhãs esfrego com quanta força tenho as cadeiras da minha sala. Estão lindas, estão: mas as dores ainda me não passaram. O médico soltou uma gargalhada e disse-lhe: - Oh! homem, não são as cadeiras da sua sala, mas as ESTILÍSTICA DA LÍNGUA PORTUGUESA 61
cadeiras do seu corpo, os quadris, que você deve mandar esfregar! O aldeão compreendeu, assim fez e daí a pouco estava curado». É por essas e por outras que no português popular do Brasil já se usa, neste caso não cadeiras mas escudeiras (= quadris), para evitar confusões. Vemos por aqui em que consiste o jogo de palavras, também chamado trocadilho: deu-se um equívoco entre os dois sentidos diferentes do mesmo vocábulo, de que ia resultando mal para o pobre lavrador, sem culpa de ninguém. É o tipo mais frequente -• o trocadilho entre homónimos. Aqui porém, o jogo de palavras foi inconsciente. O campónio ignorava que «cadeiras» pudessem ter aquela significação que lhes atribuía o médico. Pode contudo jogar-se com as palavras de modo propositado e até para fins malévolos. No tempo das guerras liberais, por ocasião do cerco do Porto, os pregadores miguelistas diziam ao povo ignorante das aldeias que o liberal D. Pedro comia crianças assadas. E para prova desse crime abominável liam do alio do púlpito um número da Crónica Constitucional, onde se referia que Sua Magestade comia a cada jantar um pequeno assado. Faziam por sua conta e com fins de propaganda política o trocadilho, alterando a natureza gramatical e o sentido dos dois elementos: pequeno, de adjectivo passava a substantivo com significação de «criança»; assado, de substantivo passava a adjectivo-particípio.
É claro que o modo de dizer, a entoação, desempenhavam papel preponderante na formação do equívoco. Só o jeito especial de pronumciar, carregando no termo pequeno, podia iludir os ouvintes. A semelhança morfológica dos homógrafos também serve naturalmente para o fabrico dos trocadilhos. Há no acto m do Frei Luís de Sousa de Garrett um belo exemplo desse jogo
62
verbal. O romeiro pressente que o seu velho aio já não é 0 mesmo para ele: como que lhe pesa da sua vida, um tropeço na felicidade daquela casa. E põe-se a jogar amargamente com as duas formas de pesa e pesa, hoje fumdidas numa só, mas diferenciadas ainda no tempo de Garrett. Ouçamo-los: TELMO - Há de me pesar da vossa vida? (A parte) Meu Deus, parece-me que menti... ROMEIRO - E por que não, se já me pesa a mím dela, se tanto me pesa ela a mim? Umiformizar, como se tem feito, a grafia da palavra é destruir a ironia pumgente desse trocadilho, tão de propósito imaginado por Garrett. Além destes, os escritores usam ainda outros processos para fazerem o jogo verbal. Um deles é a utilização do arcaísmo para efeitos de trocadilho. O sentido arcaico de uma palavra, por ser coisa velha e pouco usada, tem certa graça cómica. Por isso os escritores o empregam. Um exemplo: «Não sou de parecer que V. M. deixe agora o seu convento para ir às Caldas, que, ainda que haja achaque que o peça, não é esse o achaque em que eu aconselhara a jornada». Nesta frase, o seu autor, Fr. António das Chagas, joga com os dois sentidos do vocábulo: o significado corrente de «doença, moléstia» e o sentido antiquado de «pretexto, ocasião». O mesmo fez o venerável Fr. Luís de Sousa, sem fins humorísticos, mas para simples brilho da frase: «Quis o Senhor mostrar quanto se paga de uma determinada e verdadeira conversão, e quão bem a pagai). Aqui jogou com o sentido usual «recompensar, retribuir» e com a significação antiquada do verbo reflexo pagar-se de = agradar-se de. Nos dicionários populares correntes não vem esta última, acepção do vocábulo, por ser já inteiramente desusada ;^ mas só compreenderá o trocadilho quem tiver presente o significado do arcaísmo. ESTILÍSTICA DA LÍNGUA PORTUGUESA
Uma outra fonte de trocadilhos é a exploração do signifcado etimológico da palavra. Por exemplo, o vocábulo Melancolia, de origem grega, significa propriamente «bílis ara» Tanto bastou para que D. Francisco Manuel de ”leio o grande escritor já nosso conhecido, imaginasse este ’oeo’verbal: «A melancolia, ainda que negra, não dá boa tinta ao que se escreve». E o P.6 António Vieira, um mestre em trocadilhos, estoutro, no qual se joga com o sentido etimológico da palavra douto: «Quem não é dócil não pode ser douto, antes a mesma docilidade é um sinónimo de ciência». Ainda serve para fabricar trocadilhos a diferença de sentido que existe entre a palavra simples e a palavra composta. Sobre os dois termos sentir e consentir engenhou Fr. António das Chagas um curioso jogo vocabular: «Anime-se e dê muitas graças a Deus por sentir as suas tentações; porque o senti-las é bom, c só o consenti-las é mau». E na última guerra civil de Espanha, o escritor Umamumo, referindo-se a um dos partidos em luta, dizia, jogando com as palavras: «Vencereis, mas não convencereis». Por vezes trata-se de uma falsa composição, como neste exemplo dum escritor gongórico: «Não queira estar sempre como menina no leite dos espirituais deleites». De facto, o termo deleite não é um composto de leite, como parece à primeira vista.
Se tal sucede com os compostos, é natural que o mesmo se dê com os derivados ou falsos derivados, como se vê neste trecho duma carta de Latino Coelho a um seu amigo: «Já adivinhas que fumdei uma Trappa na Rua dos Poiais de • Bento, onde, se não há trapos, há pelo menos trapeiras, e nesta cidade onde não há trapos religiosas mas há trapalhões e rapeiros políticos e trapalhadas de tal ordem, como tu as deves imaginar». si .Jlnalmente, como o vocábulo perde às vezes a sua § de esperar que surja
cação PróPria inserido na frase, é
64 M. RODRIGUES LAPA
o trocadilho, pelo confronto dos dois sentidos. Por exemplo: «Não se me dá já que me não dêem bom pago do que faço». O grupo fraseológico dar-se de, equivalente a importar-se com, é aproximado do verbo dar no seu significado puro; daí resulta um engraçado equívoco. Deste teor é o trocadilho de Aquilino Ribeiro: «Convencer o mestre-de-obras é, de facto, um bico-ãe-obra». Isto, pelo que respeita propriamente ao sentido, à significação interior do vocábulo; mas o trocadilho pode nascer de um simples equívoco de pronúncia, ter carácter, por assim dizer, exterior, meramente fonético. Um exemplo, neste diálogo: -- «Minha senhora, eu queria a mala (= amá-la). - Que diz ?! - exclama a senhora, cheia de indignação. O senhor é muito atrevido! - Não sei porquê: desejo a mala, de que me ia esquecendo. -- Ah! a mala... Está bem: tem-na ali ao canto. Leve-a». Estes trocadilhos fumdados em equivalências fonéticas têm carácter mais grosseiro, mais artificial. Ouvimo-los - pois são feitos sobretudo para o ouvido - nas representações populares de comédia e revista, com sentido por vezes bem picante. Dos exemplos apresentados vemos que o trocadilho constitui um jogo verbal, que pode, em certas circumstâncias, dar vivo realce ao pensamento. Os maiores escritores empregam-no, e houve épocas em que ele foi particularmente estimado. Camões, o maior de todos, cultivou-o em todas as suas modalidades. Mas não se segue daqui que aconselhemos o trocadilho para enfeitar a redacção dos nossos leitores. Em bom estilo deverá partir-se do pensamento para as palavras e não das palavras para o pensamento. Se lhe demos cabimento, é porque o consideramos um dos fenómenos mais curiosos da língua escrita, um forte espertador do sentimento ESTILÍSTICA DA LÍNGUA PORTUGUESA 65
verbal, que atinge por vezes nas mãos do escritor uma graça diabólica, como se pode ver neste passo de Camilo: «Vieira de Castro criou inimigos; mas o jovem escritor voeja tão alto que não pode por ora enxergá-los cá em baixo. Notem que enxergá-los não deriva de enxerga, nem sequer é sinónimo de albardá-los». 2. A língua falada e a língua escrita. - De quanto temos dito sobre as palavras, com certeza ficou esta importante noção: que o homem emprega ou pode empregar diferentes vocabulários, segumdo a situação em que se encontra. O operário não fala como o intelectual, nem este como o campónio, embora todos se entendam, porque assim tem de ser, para bem da vida em comum. Mas até mesmo o homem culto tem à sua disposição línguas diferentes, conforme a diversidade das situações em que se vê empenhado. Se encontra um amigo íntimo, um camarada de escola, emprega uma linguagem livre, salpicada aqui e ali de termos populares de forte expressividade. Se lida com
pessoas de cerimónia, emprega um vocabulário e uma construção de frases já mais cuidados. Enfim, se é escritor e se se senta à mesa de trabalho, já a frase e as palavras são mais rebuscadas, menos correntes, menos naturais. Vejamos um exemplo destas três situações num mesmo indivíduo: 1. «Meu rico, não fosses trouxa! Muitas vezes te disse que tivesses cuidado com aquele tipo. Não fizeste caso, e agora ferrou-te o cão. Toda a gente dizia que ele era um caloteiro de marca!». 2. «Meu caro senhor, foi demasiado confiado. Avisei-o muitas vezes de que deveria desconfiar desse homem. Não me quis crer e agora vê o seu dinheiro perdido. Era voz corrente que ele numca pagava as suas dívidas».
66 M. RODRIGUES LAPA
3. «Fulano exprobrou ao amigo a sua imperdoável confiança. Dissera-lhe muitas vezes que se arreceasse daquele indivíduo. Mas o amigo não lhe dera ouvidos e agora sofria os resultados da sua imprudência. Na verdade, toda a gente proclamava a insolvência daquele homem». No primeiro exemplo, a linguagem é viva, trepidante, afectiva como a conversação. Empregam-se termos de gíria popular, locuções da linguagem corrente: meu rico, trouxa, tipo, ferrar o cão, caloteiro de marca. No segumdo exemplo, esses vocábulos desaparecem por completo, porque a atmosfera agora é outra. A linguagem toma-se fria e correcta como a conversação entre pessoas de cerimónia, que evitam naturalmente os termos considerados baixos e os sobressaltos do sentimento. Enfim, no terceiro exemplo estamos já em outro clima. Põe-se em linguagem literária o caso, e o vocabulário ressente-se disso. Aparecem agora termos e locuções que não são de uso corrente, ou são menos usuais: exprobrar, arrecear-se, dar ouvidos, na verdade, proclamar, insolvência. Por conseguinte, a língua culta é, por natureza, distinta da língua falada. O escritor empenha-se a traduzir para «mais belo» (pelo menos assim o julga) as expressões vulgares e um pouco gastas, de tanto uso, da linguagem de todos os dias. Esse trabalho de transposição é muito delicado e nele reside a marca do verdadeiro escritor. Como quer que seja, a missão da língua literária é depurar, enriquecer com a experiência individual, e disciplinar a língua do povo; e, ao mesmo tempo, adaptála às múltiplas necessidades do homem civilizado. Sem isso, não pode haver cultura e muito menos literatura. Compreende-se bem que, quanto mais culto se é, mais a língua escrita tende a diferençar-se da língua falada. O homem do povo, que mal sabe escrever, quase redige como fala. Eis aqui, para amostra, um certificado de pobreza ESTILÍSTICA DA LÍNGUA PORTUGUESA 67
passado por um regedor minhoto em favor de Miquelína Rosa. Vem nos Serões da Província de Júlio Dinis e pertence à novela O espólio do senhor Cipriano: «Eu Bento maria do portal, regidor de esta freguesia atesto im como, maquilina, rosa, martins, solteira, de esta Cidade, não tem, aberes para fazer as despesas do íntero do seu irmom cepreano cujo consta ter dinheiro. Mas o quê certo é que por morte se não incontrou i se é berdadeiro o dito do bulgo o debe ter, nalgum iscondrijo, que ainda se não inchergou. E por ser berdade o que Açupra, atesta e mo diserom pessoas diganas para mim de todo o creto, pacei esta que juro. «Dada em esta Cidade a 12 de Janeiro de... Bento maria do portal.» O regedor, taberneiro de profissão, fez como soube, coitado. O documento acusa o formulário habitual das certidões administrativas: atesto em como, e por ser verdade o que supra atesto, etc. A pontuação é incrivelmente desordenada; a fala do Minho distingue-se no modo de proferir as desinências -ao, -am: irmon, diserom, e ainda na alteração do v em b: aberes, berdadeiro, bulgo, debe, berdade. Enfim, a construção da frase revela, pela sua irregularidade, a
incultura do autor. Quanto ao vocabulário, note-se o termo administrativo e literário vulgo, que o taberneiro escreveu para conferir importância ao documento. Não era palavra do seu uso; vocábulo corrente e regional era enxergar, a que o regedor deu uma grafia bárbara. Em suma: a certidão traduz a desordem da linguagem falada, mas revela o esforço do homem do povo para dar certo lustre ao estilo. É o que faz habitualmente quem escreve. Quem está diante duma folha de papel sente semte Uma dificuldade, uma responsabilidade. A consciência
68 M. RODRIGUES LAPA
diz-nos que se não deve escrever inteiramente como se fala; mas também nos previne dos perigos que há em nos afastarmos demasiado dessa linguagem natural, que traz em si todas as energias da alma. 3. A gíria. - Chama-se gíria, como vimos, ao conjumto de expressões de tipo popular, usuais na linguagem corrente e despretensiosa, e sobretudo frequentes nas esferas menos cultas da população. É reparável, nas pessoas de bom-tom, empregarem termos de gíria; mas, como há diferentes graus de gíria, admite-se geralmente o uso da mais inocente no trato quotidiano e familiar. É, como se vê do primeiro exemplo que apresentamos no capítulo anterior, um meio expressivo, cheio de vivacidade, bem adequado à linguagem falada, saltitante e dinâmica. A gíria pode oferecer contudo outras modalidades e abranger a linguagem de certos meios especiais: colégios, prisões, oficinas, casernas, ambientes fadistas, etc. Quando assim é, chama-se propriamente calão. O calão é pois, de certo modo, a gíria com carácter mais reservado, mais secreto; ao passo que a gíria propriamente dita não passa de uma forma exagerada da linguagem familiar. Nem sempre é fácil distinguir a gíria do calão. Veja-se o trecho seguinte tirado de A Ronda da Noite do escritor Bourbon e Meneses, em que abumdam essas duas formas de linguagem: «José Francisco pôs na orelha a ponta do último brejeiro, inclinou para a nuca o chapéu já sem forma, e, tomando um dos copos, em frente do Plácido, que empumhava o outro, fez o brinde sacramental : - Lá vai à sua, sor Plácido! O Plácido parecia outro: até já tinha as mãos finas, que nem um fidalgo. De vez em quando aparecia ali pelo carvoeiro, que, pelos modos, também era da corda, e, como ele, tinha muita aceitação nos democráticos. Mas na «Brasileira» é que era vê-lo, a discutir ESTILÍSTICA DA LíNGUA PORTUGUESA
69
política. E tinha importância! Então não o toscara lá, uma vez, com um militar graúdo, desses que trazem peles no casabeque, galões largos na manga, coronel ou major, com toda a certeza ? Pois então! Lembrandose disto, baixou um pouco a voz, por mor de dois tipos que estavam jogando o liques, e interrogou: - Ó sor Plácido, é verdade que arrebenta hoje uma fita? Então, o Plácido, depois de indicar com um trejeito os jogadores - «rapazes fixes, cá dos nossos»! - explicou, muito ufano: Os íalassas tinham tudo preparado para sair. Mas a rapaziada dos grupos sabia tudo. Era em casa duma condessa que reumia o «comité» dos monárquicos. Um cabo da marinha, o Daniel - isso é que era um cara direita! -fizera-se c’os traidores, até pusera bentinhos no pescoço e cantara tudo à rapaziada dos grupos. Eles tinham a coisa bem preparada, isso tinham! No quartel do 16 até já estava uma bandeira azul e branca, toda de seda, para ser «alvorada» logo que a fita arrebentasse... Ah! mas os grupos não estavam a dormir! Eles até sabiam quem é que tinha bordado a bandeira! Uma tipa, toda beatona, amiga dum papa-hóstias da Sé...
De trás do balcão, o Constantino, cofiando o bigode e o rancor, observou: - Sempre quero ver se desta vez se faz a limpeza! Ponham-se com paliativos... O Plácido protestou com veemência. Não, desta vez, acabava-se-Ihe com a raça! Quem viesse com águas mornas, truca! arreava-se-lhe logo! Tudo quanto fosse jesuíta havia de ser corrido dos empregos. E esta era uma grande medida, porque havia para aí muito republicano à brocha. E citava: Olha o Vicente marceneiro, um «sacraficado»! O Clemente, - coitado! - que levou um tiro em Monsanto e anda prai aos paus... E outros».
O trecho está todo salpicado de gíria e calão lisboeta, que são geralmente as palavras e locuções impressas em itálico. Entre aspas colocámos o galicismo «comité» e os termos «alvorada» e «sacraficado», que são propriamente adulterações fonéticas, em uso na linguagem popular. Os restantes casos pertencem à gíria; e é indispensável conhecê-la, se quisermos penetrar o significado perfeito do trecho. Para uso dos nossos leitores que habitam em lugares onde não chegou o conhecimento da gíria lisboeta, que vai
70 M. RODRIGUES LAPA
alastrando por todo o País, aqui damos um pequeno vocabulário referente ao trecho: 1. brejeiro: cigarro forte. Outros termos sinónimos de gíria: paivante, pandilha. 2. sor: senhor. É contracção popular de «senhor». 3. ser da corda: pertencer ao mesmo grupo, compartilhar das mesmas ideias. 4. toscar: ver, avistar. 5. graúdo: de alta posição. 6. por mor de: por causa de. 7. tipo: indivíduo, sujeito. 8. fita: perturbação da ordem, motim, revolução. 9. fixe: seguro, de confiança. 10. talassa: homem de convicções monárquicas. 11. sair: romper as hostilidades, sair para a revolução. 12. cara direita: rapaz bom, firme. Sinónimo de gíria: cara-umhaca. 13. fazer-se com: meter-se com, insinuar-se como agente provocador. Em gíria ainda tem outro significado - fazer a corte, ter relações amorosas: «O magala andava feito com a sopeira». cantar: contar, denumciar. papa-hóstias: beato, muito frequentador da igreja. fazer a limpeza: pôr no são, fazer a depuração. acabar-se-lhe com a raça: destruir, aniquilar para sempre. vir com águas mornas: aconselhar a clemência, a brandura. arrear: dar pancada.
corrido: expulso. à brocha: em dificuldades.
Sinónimo de gíria:
14. 15. 16. 17. 18. 19. 20. 21. à rasca. 22.
andar aos paus: andar desempregado, em miserável situação.
ESTILÍSTICA DA LíNGUA PORTUGUESA 71
Se considerarmos com atenção este vocabulário, logo vemos que não há fronteiras perfeitamente definidas entre a língua corrente, a gíria e o calão. Todas elas se compenetram, mais ou menos. Como termos correntes poderíamos separar: graúdo, tipo, sair, cara direita, fazer a limpeza, acabar-se com a raça, vir com águas mornas. As expressões sor e por mor de são propriamente resultantes duma contracção fonética: senhor = sor; por amor de == por mor de. A segumda, pelo menos, deve ser originária da província. Como gíria poderíamos talvez separar: brejeiro, toscar, fita, fixe, talassa, fazer-se com, papa-hóstias, arrear, corrido, à brocha. No calão propriamente dito, como linguagem mais especializada, poderíamos incluir: ser da corda, cantar, andar aos paus, que parece pertencerem à língua dos vadios, fadistas e ladrões. Mas, como dissemos, não se podem traçar limites absolutamente seguros. A língua giriática está ainda por recolher e estudar com profumdidade. Alberto Bessa publicou em 1901 um vocabulário, a que deu o título de A gíria portuguesa. Presta serviços, embora esteja esgotado; mas é curioso ver o quanto a gíria tem variado de então para cá. Fenómeno de linguagem, e de linguagem vivíssima, está em transformação constante. Um exemplo: o termo trouxa é usado em gíria actual com o significado de «parvo, simplório». Está muito espalhado por todo o Portugal: os soldados que estão ums meses na capital se encarregam de levar essa linguagem para as suas remotas aldeias. Pois Alberto Bessa regista a palavra como calão de gatumo, com o significado exclusivo de «cabeça». De então para cá o vocábulo adquiriu valor diferente, como se está vendo. Foi possivelmente a imagem do pobre provinciano, que chega a Lisboa de trouxa às costas e com ar aparvalhado, que criou a nova significação da palavra. Ela já está devidamente arquivada, com o seu sentido actual, no mais completo repositório de gíria portuguesa moderna, que é o Dicionário de calão (1959), da autoria de Albino Lapa.
72 M. RODRIGUES LAPA
Por conseguinte, o conhecimento da gíria é indispensável para quem escreve e para quem lê. Quem escreve não pode representar um carroceiro ou um simples homem do povo falando como um marquês. Os homens têm a linguagem do seu meio, da sua profissão. Dize-me como falas, dir-te-ei o lugar que ocupas na sociedade. Por outro lado, o leitor que desconheça o vocabulário giriático pode encontrar sérias dificuldades na interpretação de livros que conduzam aos meios sociais em que se fala essa linguagem. O romance moderno realista procura justamente dar ao vivo o falar das suas personagens, reforçando com isso a evocação do ambiente. 4. O provincianismo. - Quando falamos em «povo», não podemos razoavelmente circunscrever este termo à população que habita nas cidades, onde se desenvolvem, por via de regra, a gíria e o calão. O povo das aldeias também fala a sua língua, que, na escolha do vocabulário, na alteração fonética da palavra e na construção da frase, se afasta não pouco do idioma da cidade. Os dicionários correntes não trazem todos esses termos e locuções; mas os escritores mais impregnados de vida regional colhem às mãos-cheias nessa abundante e pitoresca seara de modismos provincianos. No vocabulário de Camilo nota-se a influência do falar minhoto, o de Fialho está cheio de alente] anismos, e no de Aquilino Ribeiro transparece o falar da Beira. Vejamos um pequeno trecho deste último escritor, tirado da novela O burro do senhor seu dono: «Ouça, senhor juiz, eu vinha do Castelo com... os potes do leite vazios, quando arriba da Corujeira, ao atravessar a sombra dos soutos, o safado do corpo me pediu sesta. Caía uma caloraça, que o chão deitava lume. E vai, tirei o aparelho ao animal, que parecia tão agravado como eu e assim espontaria mais a seu gosto ervas e estevas, que para ali crescem à desmedida. Estendi-me ao comprido - o burro era um borrego, a mansidão em pessoa, tanto mais que ESTILÍSTICA DA LÍNGUA PORTUGUESA 73
lhe haviam cortado os vícios de novinho - e pus-me a olhar para o fumdo do chapéu, que era de palha e havia prantado decima da cara, por via das moscas. Ora, mal comecei a dar voltas aos negalhos, em menos de avemaria dormia como um santo. Acordei com o sol a queimar-me a testa que nem brasa viva. Lanço olhos em redor, burro que é dele? Iria para a loja o alma de Barzabum?»
Como se vê, os termos regionais dão colorido especial à fala do homenzinho. Os vocábulos e locuções em itálico evocam certo meio popular e provinciano. Um homem da cidade não falaria assim. Logo, quem escreve é levado naturalmente a pôr na boca das personagens a língua que lhes é própria. E muitas vezes até os escritores não se desprezam de empregar no seu estilo pessoal muitos desses modos de dizer provincianos, tão cheios de força expressiva. A linguagem popular, quer citadina, quer regional, é sempre uma preciosa mina para quem souber cavar nela com acerto. Essa escolha deverá ser feita sempre com bom senso e bom gosto, de modo que os provincianismos não sejam tantos nem tão cerrados de sentido que possam dificultar gravemente a compreensão do texto. 5. O vocabulário usual. - Vamos fazer um exercício que mostrará ao leitor a extensão do vocabulário corrente, maior ou menor segumdo as pessoas, mas muito reduzido, se o compararmos à totalidade das palavras portuguesas registadas nos dicionários mais completos. Escolhemos a Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira e limitamo-nos aos vocábulos que vão de atento a aterrado. São ao todo 40 nomes comums. Dessas palavras só uma meia dúzia, ou pouco mais,
pertencem à linguagem de todos os dias. São elas: atento, atenuado, atenuante, atenuar, aterradamente, aterrado. E, se ainda considerarmos que atenuado, atenuante e aterrada mente são propriamente derivações de atenuar e aterrado, verificamos com surpresa que a meia dúzia se reduz a três: atento, atenuar, aterrado. Três palavras de uso comum,
74 M. RODRIGUES LAPA
não há dúvida, mas com valor desigual: sentimos perfeitamente que atenuar é palavra mais literária que as outras duas. Os restantes vocábulos podem dividir-se nos seguintes grupos: 1. Palavras conhecidas, mas de emprego menos frequente: atenuação, atenuadamente, atenuador, atenuar-se, atenuafivo, atenuável, aiequi (até aqui, - expressão apenas oral); 2. Palavras pouco conhecidas ou antiquadas: atericiado, atericiar, atericiar-se, atermado, atermar, atermar-se;
3. Palavras desconhecidas com carácter regional: atequipêra, aterlondrar; 4. Palavras técnicas, geralmente desconhecidas: aterandra, aterantera, ateríceros, atereba, aterina, aterinídeos, atérix, atermal, atermancia, atermaneidade, atérmano, atérmico, aterolépsis, ateroma, ateromasia, ateromatoso, aíeropogão, aterosperma, aterospérmeas.
Feito este exame de consciência lexical, reconhecemos a nossa ignorância em matéria de vocabulário; mas em breve nos consolamos, se repararmos nisto: os termos cujo sentido nos escapa são os que têm carácter técnico muito especial (terminologia da botânica, da zoologia e da medicina), os de natureza regional, e enfim os vocábulos antiquados, de circulação restrita. Ao leitor sucederá o mesmo que sucedeu a nós. Não se desespere com a sua ignorância das «palavras difíceis». Por via de regra, são absolutamente inúteis para o estilo, que deve evitar sempre o palavrão técnico, arrevesado e inexpressivo. O manejo acertado do vocabulário usual é que verdadeiramente importa. A esse, sim, deverá dedicar a mais escrupulosa atenção. 5. FRASEOLOGIA. O CLICHÉ
1. Os grupos fraseológicos. - No capítulo i, a propósito do significado das palavras, vimos os vários sentidos em que se emprega o termo cabeça. Contudo, em certos casos, nota-se claramente que esse vocábulo só adquire o seu verdadeiro significado quando em ligação com outros elementos do contexto. Por exemplo, nesta frase - O homem perdeu por completo a cabeça - é impossível separar o elemento cabeça do artigo e do verbo: perder a cabeça forma um todo, uma estrutura, que não se pode decompor nas suas partes. Se nos déssemos a esse trabalho de análise minuciosa, chegaríamos a um absurdo: com efeito, nós podemos perder um lenço, um documento, mas não podemos perder, com vida, a cabeça, a parte superior do corpo. Só em sentido figurado o poderemos admitir. No outro exemplo, referido no mesmo capítulo, temos: «Deu-lhe agora na cabeça fazer
versos». O sentido não está só concentrado em cabeça. O vocábulo, por si só, pouco ou nada representa. O que vale verdadeiramente é o conjumto, a locução dar na cabeça a alguém, para designar um capricho súbito, momentâneo. Sem sairmos desta palavra, vejamos ainda outro exemplo: «o Francisco é um cabeça no ar». O espírito apreende logo o grupo cabeça no ar como formando uma umidade de pensamento, equivalente a «estouvado», «tonto», «leviano». Quando pronumciamos ou ouvimos essa locução, não tomamos à letra esse modo de dizer, vendo uma cabeça andando pelos ares. Todos os elementos do grupo
76 M. RODRIGUES LAPA
concorrem para nos darem uma ideia única; as partes componentes sacrificam o seu significado individual em benefício do conjumto. Tanto assim é, que a própria locução é considerada um nome masculino: a palavra cabeça até perde, ou pode perder, a favor do grupo, o seu género feminino. Temos pois, nos exemplos referidos, a confirmação dum facto já várias vezes apontado: as palavras não levam vida isolada, dependem mais ou menos umas das outras. E assim como nas nações os indivíduos perdem um tanto da sua personalidade em prol do bem comum, também na linguagem os vocábulos perdem a sua fisionomia, quando aparecem integrados numa locução. O nosso pensamento não se faz tanto por palavras como por frases; e como o homem tende a economizar o seu esforço, acha vantagem em que as palavras lhe ocorram por grupos, para as suas necessidades de expressão. E mais vantagem ainda, quando esses grupos já vêm formados desde o passado da língua, em. frases feitas. Chamamos portanto grupos fraseológicos, idiotismos, frases feitas ou locuções estereotipadas a esses conjumtos de palavras, em que os elementos andam mais ou menos intimamente ligados, para exprimirem determinada ideia. A designação de grupo fraseológico é mais geral, a que melhor convém; as duas últimas já presumem certo grau de cristalização, que nem todos os grupos possuem, como veremos. 2. Séries e umidades fraseológicas. - A ligação entre os elementos do grupo pode ser mais ou menos íntima. Há grupos que se formam de momento, e logo após não deixam vestígios; outros que resistem um pouco mais; outros, enfim, que formam um todo compacto, inalterável. Vamos ver exemplos que demonstram os vários graus de coesão entre as partes do grupo: 1. O José tem um cavalo. 2. O João tem automóvel. ESTILÍSTICA DA LÍNGUA PORTUGUESA 77
3. Esse homem tem fortuna.
4. Tem cuidado, não vás lá! 5. Ninguém tem nada com isso. 6. Foi ter com ele à festa. No primeiro exemplo, o verbo ter, com o sentido normal de «possuir», conserva independência em relação a cavalo. No segumdo exemplo, essa autonomia já foi afectada um pouco. A falta de artigo contribui sem dúvida para ligar mais o verbo ao substantivo; ter automóvel tende em nosso espírito para formar certa umidade de pensamento, porque ao facto simples da posse anda ligada uma ideia acessória de suficiência, de abastança. No terceiro exemplo, o verbo ter fortuna já não nos causa embaraço: é evidentemente uma locução fraseológica, imposta pelo uso vivo da língua, que corresponde no nosso espírito a «ser rico». Contudo, reparando bem, ainda os dois elementos, ter e fortuna, não perderam por completo a sua independência. Ter ainda conserva o significado próprio de «possuir».
No quarto exemplo já se não dá o mesmo: os dois vocábulos estão mais estreitamente soldados; e se cuidado guarda ainda um pouco da sua significação, o verbo ter já variou de sentido. Tanto assim, que por vezes se substitui por «tomar»: toma cuidado. No quinto exemplo, a locução - não tem nada com isso - é extremamente confusa, se nos dermos à pachorra de analisar um por um os seus elementos. Parece faltar ali qualquer coisa. Efectivamente, o grupo deverá ser uma condensação dum outro mais explícito: não tem nada que ver com isso. Agora está mais claro; mas, ainda assim, o idiotismo só atinge a perfeita significação, considerado no seu conjunto; os elementos de que se compõe por si só pouco nos dizem. Enfim, no sexto exemplo alcança-se o cúmulo da extravagância
78 M. RODRIGUES LAPA
e do absurdo: ir ter com significa «dirigir-se a um lugar, com tenção de se reumir a outra pessoa». O milagre da língua consegue exprimir sinteticamente, por três palavrinhas, esta ideia complicada. E o mais extraordinário é que o realiza perfeitamente, através de uma ligação quase inacreditável, como é a daqueles três vocábulos. Os grupos em que a coesão dos termos é apenas relativa chamam-se, em Estilística, séries fraseológicas. Estão neste caso os n.os 2 e 3 dos exemplos acima referidos. Aqueles em que essa coesão é absoluta são conhecidos por umidades fraseológicas. Entram nessa categoria os n.os 4, 5 e 6. Convém todavia observar que os limites entre uma e outra categoria nem sempre se definem com perfeita nitidez. O exame das locuções estereotipadas conduz-nos portanto a esta conclusão, que não deixa de ser curiosa: não há dúvida que o homem diz, quando fala e quando escreve, coisas perfeitamente absurdas. O que lhe vale é não atender às palavras isoladas, mas à estrutura, à locução fraseológica. E a sua desculpa está em que não foi ele quem inventou esses modos de dizer: encontrou-os feitos, para designar coisas certas e comums, e utiliza-os, porque lhe poupam muito trabalho. A vida é assim constituída: pela herança passiva e cómoda do passado e pela criação activa e por vezes revolta do presente. Estas duas forças presidem a todo o trabalho da linguagem, como temos visto e veremos ainda neste capítulo. 3. Vestígios arcaicos nos grupos fraseológicos. - Se as locuções estereotipadas são uma herança do passado, necessariamente haverão de conter arcaísmos, quer de vocabulário, quer de construção. Suponhamos este grupo -- estar de viseira caída. Percebemos muito bem o sentido geral da frase: «estar com ar carrancudo, zangado». Esse termo transporta-nos à Idade Média, à época em que os cavaleiros se vestiam de ferro e cobriam o rosto com a viseira. Quando ESTILÍSTICA DA LÍNGUA PORTUGUESA 79
a viseira estava caída, era sinal de que o guerreiro, não decerto sorridente, se aprontava para a luta. Aqui está, em miúdos, explicado o sentido da locução. Mas quem fala ou escreve não precisa de ir à história para apreender-lhe o significado. Esse significado, afectando todos os elementos do grupo, apresenta-se ainda ao espírito de um modo bem preciso. É possível porém que o idiotismo, pelo seu carácter arcaico, não dure muito tempo. Hoje já ums lhe preferem «estar de carranca», «estar trombudo», que são mais populares e menos literários. Outro exemplo: fazer alarde de alguma coisa. Todos sabemos que a frase significa «exibir, ostentar com afectação e vaidade». Mas aquele vocábulo alarde é-nos um pouco estranho, embora o encontremos no verbo derivado alardear. O dicionário diz-nos que alardo (é esta a forma primitiva da palavra) era a revista anual que se fazia às tropas, para verificar do seu número, do estado dos homens e das armas que traziam. Nessa parada, que conduz também à Idade Média, o peão e o cavaleiro exibiam com orgulho as suas armas e as suas pessoas. Se o leitor, curioso de se instruir, quiser formar ideia de um alardo medieval, não tem mais que ler a soberba página literária, escrita por Fernão Lopes sobre o alardo da Valariça, em tempo de D. João I (x). Nos dois exemplos, que apresentamos, ainda com boa vontade se poderia considerar o vocábulo arcaico como susceptível de se libertar do contexto. Na verdade, o historiador ou o romancista histórico podem
perfeitamente escrever: «O cavaleiro, pondo a viseira, preparava-se para a refrega». Já um pouco mais difícil será alguém escrever: «O excessivo alarde de imaginárias prendas desagradou ao pai do noivo». É que o vocábulo alarde, irresistivelmente, (1) Nos Quadros da Crónica de D. João I. Colecção de «Clássicos do Estudante» de Sá da Costa Editora.
80 M. RODRIGUES LAPA
chama a si o v>o fazer, com que está intimamente soldado. Dificilme; poderá andar à solta. Essa imposalidade de libertação aparece, por exemplo, no grupo Teológico, nitidamente arcaizante, à guisa de, já nosso conhEcido, ou na locução desta guisa, ainda usada, por exenplo, em Euclides da Cumha. Aqui, todos os elementos sãde tal forma solidários, que não podem separar-se. No tipo de D. João I ainda se podia escrever: «de muitas guisc&e diz esta sentença». Guisa é um velho substantivo por;uês, de origem germânica, que significava «maneira, ido». Se fôssemos a dizer ou a escrever hoje qualquer ca como isto - «Não gosto das guisas de Fulano» - era ia gargalhada geral, e o pobre que tal dissesse ou esciesse arriscava-se a ser internado numa casa de saúde, mvém aliás frisar que a locução à guisa de = «à maneiras», já é de uso muito restrito, puramente literário e muito conectado. Por isso, se usa muitas vezes com fins humorístico! Em outros os essa impossibilidade de separação ainda é mais evidentoorque a palavra que forma o núcleo do grupo é de origemcerta e significado obscuro. Tomemos por exemplo esta loção, ainda hoje muito popular: andar numa fona. Tem, conse sabe, a significação de «andar numa roda-viva, sem ccansar, à lufa-lufa». Que significa aquele elemento fona? egumdo os dicionários, fona é a faúlha que se desprendlo lume e volita no ar, já apagada e em forma de cinza.0 termo parece ter origem germânica; teria vindo do tico fon = lume. O certo é que, salvo nalgum recanto rovinciano, ninguém hoje o emprega, a não ser inserido iruele grupo fraseológico. Aquilino Ribeiro porém chamou-ce novo à vida, desenterrando-o do léxico beirão: «Optarapela caçoila, resguardada das fonas pelo testo» (Volfrâmt 197). Outras locuçõess sinónimas de andar numa fona também conservam arcaísmos: andar num virote e andar num badanalESTILÍSTICA DA LÍNGUA PORTUGUESA gl
Virote era a pequena seta que despediam os besteiros na Idade Média. Se supuséssemos que uma pessoa pudesse andar às cavalitas num desses instrumentos de atirar, facilmente imaginamos que andasse bem ligeira. Assim se explicará talvez a locução. O termo badanal, existente na outra, não tem significado claro; hoje ninguém o emprega isoladamente. Supõe-se que seja termo hebraico, usado nos Salmos bíblicos. Como também badana designa uma tira pendente da roupa sacudida pelo vento, dessa imagem de confusão movimentada poderia ter resultado a expressão. É uma hipótese; ao certo ninguém sabe bem o que seja. O mesmo fenómeno de arcaísmo, impenetrável ou quase, se dá com outras locuções: de cor, a toda a brida, a trouxe-mouxe, nem chus nem bus, de bom grado, à toa, de lês a lês, à puridade, dar azo a, ter o mau sestro de, ao léu, etc. Não compreendemos o vocábulo isolado, nem é preciso: basta que compreendamos o sentido global da locução. Só esse tem importância. A demasiada insistência etimológica, como vimos, pode levar-nos a despropósitos. O passado da língua só tem valor, quando vivo ainda e aplicado ao presente. Na verdade, de que serviria ao aprendiz de redacção vir alguém dizer-lhe que o vocábulo cor é um velho galicismo e significa coração, conhecimento, consciência? Poderia ser para ele até um motivo de embaraço, porque a locução não tem hoje valor
sentimental e refere-se simplesmente a uma operação de memória. A não ser que lhe apontássemos para o verbo recordar, que ainda está ligado, pela forma e por um dos significados, a esse arcaísmo venerável. 4. Séries verbais. - Dos exemplos citados temos visto que o verbo desempenha papel importante na formação das locuções. A maior parte das vezes um verbo simples pode substituir-se por um grupo fraseológico, portador do mesmo significado: «decidir» = tomar a decisão de; «vencer» - alcançar vitória sobre; «acreditar» = dar crédito a; «combater» = dar 6 - Estilística
82 M. RODRIGUES LAPA
combate a, etc. O verbo dar presta-se sobretudo a isso, como já notou com finura Caldas Aulete no seu Dicionário, o mais completo para o estudo fraseológico da língua. Nestas perífrases ainda aparece a palavra derivada ou primitiva, isto é, ainda se joga, no fumdo, com a mesma família vocabular : decidir - decisão; vencer - vitória; acreditar - crédito; combater - combate; mas o verbo dar emprega-se ainda com outros nomes, formando uma série perifrástica: dar pontos = coser; dar esperanças = prometer; dar indícios = revelar; dar às pernas = correr, etc. Como vemos, esta constituição de formas perifrásticas tem um duplo valor: permite variar o estilo, evitando repetições, e adoça ainda a crueza de certos verbos simples. A perífrase vale como uma espécie de eufemismo: não há dúvida de que tomar a resolução é menos brusco, menos violento do que resolver; dar crédito atenua um pouco a ideia de acreditar. A pessoa fina, de boa sociedade, não diz com rudeza: O senhor mente! - mas emprega uma série verbal eufemística: O senhor falta à verdade! A delicadeza leva muitos a dizerem deitar fora a comida, em vez do mais franco e brutal vomitar. As séries verbais são ainda curiosas por outro aspecto: basta uma ligeira alteração na série, a presença ou ausência duma preposição, dum artigo, a troca de um dos elementos, para o sentido mudar às vezes por completo. Vejamos estas séries: deitar à terra e deitar por terra, metidas numa frase: 1. O lavrador deitou à terra a semente. 2. O lutador deitou por terra o adversário. O sentido, como se vê, é totalmente diferente, e bastou para isso a simples troca da preposição. Suponhamos agora estas duas séries: dar motivo e dar por motivo. O acrescentamento da preposição dá à série ESTILÍSTICA DA LÍNGUA PORTUGUESA 83
um significado bem diverso, como se vê destes dois exemplos: 1. Isso deu motivo a que ele o pusesse fora de casa. 2. Faltou, dando por motivo a sua pouca saúde. No primeiro exemplo há uma relação de consequência («dar motivo» = ter como consequência), no segumdo uma relação de causa («dar motivo» = dar como causa). Ainda um terceiro exemplo, que mostra como a presença do artigo dá menos coesão à série: 1. 2. Vê se dás o lugar a teu irmão.
O caso deu lugar a que desconfiassem dele. No primeiro exemplo, a relação entre os três elementos da série é bastante frouxa, quase conservam a sua independência. No segumdo, o desaparecimento do artigo trouxe como resultado uma perfeita coesão do grupo. É uma verdadeira umidade fraseológica. 5. Os dicionários e a fraseologia. - É precisamente neste capítulo da fraseologia, muito importante, que os dicionários correntes deixam mais a desejar. O mais celebrado de entre eles e o mais moderno dos grandes dicionários, o de Cândido de Figueiredo, é muito pobre em grupos fraseológicos, o que constitui grave defeito, porque é nessas locuções que se imprime o chamado génio da língua. Como repositório de fraseologia, interpretada com acerto e inteligência, nada há que possa substituir entre nós o Dicionário Contemporâneo de Caldas Aulete. Há também, do lado brasileiro, o Tesouro da fraseologia brasileira de Antenor Nascentes, que pode prestar serviços, embora não seja completo. Compreende-se, até certo ponto, a razão por que os
84 M. RODRIGUES LAPA
dícionaristas evitam os grupos fraseológicos: é devido à extrema dificuldade da sua arrumação e até às vezes da sua determinação. Em que rubrica, por exemplo, se deve meter a locução vir a talho de foice? Em teoria, poderíamos pô-la em qualquer das três - vir, talho, foice, pois o sentido por todas se espalha, atingindo até as pequeninas preposições. Nas locuções arcaizantes a dificuldade ainda é maior. Assim, Cândido de Figueiredo, no Pequeno Dicionário regista cor e, sem mais explicações, manda ver de-cor. Ora, seria talvez mais rigoroso interpretar â locução na rubrica cor; por outro lado, isso não deixava de ser estranho, porque o termo cor há muitos séculos que desapareceu do uso da língua e só se conservou naquele idiotismo. É portanto nos dicionários analógicos onde os grupos encontram melhor guarida. Aí não se olha à forma, mas sim ao sentido. Nos «Dicionários analógicos» já citados por nós há grande abumdância deles; mas a mistura indiscriminada de idiotismos portugueses e brasileiros pode tomar difícil, como já dissemos, esse instrumento de consulta. 6. Séries usuais de intensidade. - Há uma outra categoria de grupos f raseológicos, que tem muita importância para o estilo: são os grupos usuais ou séries usuais de intensidade. Suponhamos que alguém está muito doente. A nossa tendência é para dizermos invariavelmente: «Fulano tem uma grave doença», ou então: «Fulano está gravemente doente». Os dois elementos doença-grave mantêm a sua autonomia, mas, por força do hábito, andam aqui ligados, para nos darem determinada representação. Alguém chora desesperadamente, diante de nós. Queremos qualificar a intensidade desse choro. Vem-nos logo à ideia um casal de palavras: choro convulsivo. Esses dois termos andavam associados no nosso espírito e acudiram prontamente à chamada. Para o caso contrário, dá-se o mesmo: «Fulano ria às gargalhadas-». A locução está prontinha ESTILÍSTICA DA LÍNGUA PORTUGUESA 85
desde o tempo dos nossos avós, é expressiva, é cómoda, não temos mais que aplicá-la. Suponhamos agora que, numa roda de tagarelas, surge inopinadamente um facto que obriga a calar toda a gente. Não se ouve o zumbido de uma mosca, como é costume dizer. Se quisermos qualificar aquele silêncio, em linguagem fortemente literária, podemos escrever isto: «Fez-se na sala subitamente um silêncio sepulcral». Também poderíamos dizer silêncio profundo; mas aquele sepulcral dá uma nota mais intensiva, porque evoca o silêncio medonho dos cemitérios. O que se dá com o substantivo e o adjectivo, dá-se naturalmente com o adjectivo, com o verbo e o advérbio. Vejamos, por exemplo, esta série usual, que serve para as três categorias: 1. Sentiu com a notícia um abalo profundo. 2. Ficou profundamente abalado com essa notícia. 3. A triste notícia abalou-o profundamente. Repare-se bem agora para estes grupos usuais: ums são mais naturais do que outros. Quem tiver um
pouco de experiência e de gosto, logo distinguirá entre estas duas locuções: grave doença e silêncio sepulcral. A primeira série é corrente, impõe-se invariavelmente ao nosso uso; a segumda tem carácter literário, cheira a romantismo fúnebre, é exagerada, pretensiosa. Poderíamos substituí-la por outras locuções, menos pomposas e triviais. Por exemplo: a) Fez-se na sala subitamente um grande silêncio. b) »
»
» » » silêncio religioso.
c) »
»
»»»
»
constrangido.
d) De repente, tudo na sala ficou no mais absoluto silêncio.
86 M. RODRIGUES LAPA
A frase é susceptível de muitas outras variações, se quisermos evitar o emprego dessas séries, pretensiosamente literárias, safadas pelo muito uso, a que se dá o nome de clichés, chapas, chavões. Para fugir precisamente à trivialidade do cliché, já Eça tinha escrito: «Houve um silêncio côncavo, hostil» (A Capital, 215); Rodrigues Migueis descobriu o adjectivo cavernoso (Fez-se na sala um silêncio cavernoso), Aquilino Ribeiro usa «silêncio de chumbo», «silêncio atrido», «silêncio absoluto e infesto»; e um grande escritor brasileiro, Graciliano Ramos, consegue belo efeito com um adjectivo banal, grande, posposto ao substantivo: «E a viagem prosseguiu, mais lenta, mais arrastada, num silêncio grande» (Vidas secas, 2.a ed., pág. 9). Também usou, no mesmo romance, o adjectivo comprido, mas com menor poder de sugestão: «No silêncio comprido só se ouvia um rumor de asas». José Lins do Rego, num trecho de paisagem natal, experimenta o adjectivo bom, produto afectivo da saudade: «As cabreiras amarelas, e o bom silêncio da estrada, quebrado de quando em vez pela enxada do pobre tinindo em alguma pedra escondida no roçado» (Doidinho, 6.a ed., pág. 156). Enfim, o escritor galego Méndez Ferrin descobre os adjectivos sólido e duro para a qualificação intensiva do substantivo: «Um silêncio sólido e duro ergueu-se como ua muralha» (O crepúsculo e as formigas, pág. 67). 7.
O «Dicionário poético» de Cândido Lusitano. - No
tempo da renovação arcádica, em 1765, foi publicada em Lisboa uma obra em dois volumes, com o seguinte título: Dicionário poético para uso dos que principiam a exercitar-se na poesia portuguesa. Obra igualmente útil ao orador principiante. Seu autor era Francisco José Freire, alcumhado poeticamente de Cândido Lusitano. Foi homem de sólidos conhecimentos linguísticos, e deixou-nos umas RefleESTILÍSTICA DA LÍNGUA PORTUGUESA
xões sobre a língua portuguesa, que ainda hoje se lêem com algum proveito. Por esse tempo, em que os poetas mendigavam com sonetos as migalhas que caíam das mesas dos fidalgos e dos conventos abastados, julgava-se que a língua era uma construção mais ou menos fixada pelo bom uso. Para se escrever bem, nada mais era necessário que seguir à risca o exemplo dos antigos, escolhendo no espólio das formas herdadas o que mais conviesse a cada um. Logo, um repositório que coleccionasse esse dizeres clássicos seria bem-vindo e faria, se não poetas de génio, ao menos escritores correctos. O Dicionário de Cândido Lusitano pretendeu alcançar esse fim. É um vocabulário de sinónimos e de séries usuais. São estas as que mais interessam ao nosso caso. Vejamos um exemplo. Sob o nome silêncio, o autor dá os seguintes adjectivos, que andam ou podem andar ligados a esse substantivo : Alto, profumdo, longo, secreto, fiel, fido, amigo, mudo, tácito, taciturno, nocturno, soporífero, plácido,
tranquilo, sábio, judicioso, cauto, acautelado, prudente, honesto, modesto, reverente, respeitoso, oportumo, discreto, ignorante, ignaro, estulto, estólido, fátuo, néscio, insano, intempestivo, indiscreto, obediente, paciente. _,
Vê-se logo o carácter convencional da série. Tirante alto, profundo, longo, nocturno, plácido e mais um ou outro, aqueles adjectivos estão ali um pouco forçados. Não constituem, em ligação com o substantivo, grupos usuais propriamente ditos. O autor propumha-os, para aliviar em tudo a tarefa do aprendiz das musas. O que mais nos impressiona hoje, ao lermos esse Dicionário, é a alteração que se fez, de então para cá, na escolha das séries usuais. As palavras também seguem a moda e também passam com ela. Na lista de Cândido Lusitano não vem o adjectivo sepulcral. Ainda não estava em uso, só veio depois com o Romantismo, que teve certa inclinação
88 M. RODRIGUES LAPA
para o macabro. Também achamos de menos nela certos adjectivos empregados pelos escritores modernos, como augusto, religioso, absoluto, fino. Em compensação, Eça de Queiroz aproveitou o adjectivo alto, registado ao começo da lista, tirando dele belo efeito, por já não estar em uso: «A noite fazia um silêncio alto, duma melancolia plácida» (O Primo Basílio). Em batalha não vem encarniçada, em base não vem essencial, fundamental, em entusiasmo não se mencionam os adjectivos que formam hoje a série: delirante, indescritível. Enfim, os vocábulos dúvida, dor, noite, odor, sede desconhecem ainda os qualificativos que hoje costumam acompanhá-los: cruel; cruciante, pumgente; luarenta, enluarada; capitoso, inebriante; inextinguível. É assim: a linguagem está sempre em constante movimento, como a própria vida. 8. Camilo e as séries usuais. - Camilo, com o seu grande conhecimento da língua, não podia deixar de ver o que o grupo usual e o cliché têm de estafado e trivial. Numa crónica de 1858, observa o grande escritor com muita graça o problema das chapas consagradas: «Obriga-se o cronista a manter invariáveis os seguintes adjectivos, quando vierem usados para os seguintes substantivos : Prelado será sempre virtuoso; cantora será sempre mimosa; jornalista será sempre consciencioso; jovem escritor será sempre esperançoso; patriota será sempre exímio; negociante será sempre honrado; calumiador será sempre infame. As maneiras de quem dá um baile serão sempre amáveis; os convidados sairão sempre penhorados. O folhetinista será sempre espirituoso; o poeta será sempre inspirado. Os irmãos terceiros serão sempre veneráveis. Os sócios de qualquer coisa mercantil serão sempre acreditados. Os meninos recêmnascidos serão sempre robustos. As viúvas serão sempre inconsoláveis ESTILÍSTICA DA LÍNGUA PORTUGUESA 89
Se o ricaço der doze vinténs aos inválidos, este feito será sempre um rasgo filantrópico, e a fortuma dele será sempre abençoada. Não haverá baile que não seja animado, nem jantar que não seja lauto, nem serviço que não seja abumdante, ou profuso, para variar. Nenhum homem rico terá amigos que não sejam numerosos. Todas as firmas da praça comercial serão sempre respeitáveis. O voto de qualquer parvoinho será sempre ilustrado; e mais depressa morrerá o cronista do que deixará de ser eloquente o discurso de qualquer Cícero fanhoso. Todo o casamento será próspero. Ninguém poderá morrer que não fique sendo bom cidadão, bom pai, bom marido, e terá tudo de bom». (CAMILO CASTELO BRANCO, Dispersos, m, 202-204.)
É natural que falte na lista o adjectivo ilustre, dado que o escritor nela mencionado era novato. A série está hoje tão aviltada, que se nomeia um homem de letras do nosso tempo, o qual, desgostoso do cliché, exigiu que os jornais o tratassem não por ilustre, mas por eminente ou egrégio escritor. Também do lado brasileiro temos a observação excelente dum grande criador de estilo, Monteiro Lobato, referida aos chavões de Bernardo Guimarães: «No Concerto dos nossos romancistas, onde Alencar é o piano querido das moças e Macedo a sensaboria relambória dum flautim piegas, Bernardo é a sanfona. Lê-lo é ir para o mato, para a roça •-• mas uma roça adjectivada por menina de Sion, onde os prados são amenos, os vergéis floridos, os rios caudalosos, as matas
viridentes, os píncaros altíssimos, os sabiás sonorosos, as rolinhas meigas. Bernardo descreve a natureza como um cego que ouvisse contar e reproduzisse as paisagens com os qualificativos surrados do mau contador. Não existe nele o vinco enérgico da impressão pessoal. Vinte vergéis que descreva são vinte perfeitas, invariáveis amenidades» (Cidades Aortas, 7.a ed., pág. 11).
90 M. RODRIGUES LAPA ESTILÍSTICA DA LíNGUA PORTUGUESA
E um outro escritor brasileiro, Mário de Andrade, viu ainda melhor o caso: «Quando o romancista repete sem temor as mesmas palavras, mar verde, canto triste, e ajumta a palavra doce a dezenas de substantivos, as palavras tendem a perder o valor qualificativo e plástico, formam legítimas entidades sonoras e rítmicas sem sentido consciente específico, da mesma forma que os nomes de cidades e pessoas» (Empalhador de passarinho, pág. 127). 9. O cliché. - O emprego abusivo do cliché caracteriza quase todos os principiantes em trabalhos de estilo. Essas séries vocabulares ficaram-lhes no ouvido, através de más leituras, de carácter romântico, muitas vezes. Por preguiça mental enxertam esses grupos na redacção, que adquire um jeito pretensioso e falso, e diminui, é claro, de força expressiva. O estilo é uma permanente criação pessoal. Não aconselhamos o estudioso a evitar por completo as séries usuais, o que seria aliás difícil; e também é verdade que, em certos contextos, um escritor de marca pode dar-Ihes vida nova; mas prevenimo-lo contra o emprego assíduo do cliché, muleta ridícula de preguiçosos, duma trivialidade insuportável. Ver com os seus próprios olhos, sentir com os seus próprios sentidos deverá ser a divisa de todo o aprendiz de redacção. Suponhamos que esse aprendiz queria escrever uma fantasia árabe, descrever uma noite no deserto. O pobre rapaz numca saiu da sua pátria. A apagada imagem do deserto veio-lhe de algumas leituras de terceira ordem e talvez de alguma fita de cinema. com este material de segumda mão, desprovido de experiência, sem ninguém que o oriente, escreve talvez uma coisa parecida com isto: branda e suave da Lua. As estrelas, como milhões de pirilampos, estão disseminadas pela quietude misteriosa do firmamento. E no silêncio sepulcral do deserto, apenas cortado pela brisa rumorejante e dolente dos oásis, tudo parece contemplar o céu, meditando no enigma do infinito. Algumas poucas árvores frondosas erguem as copas altaneiras, como que orando a Deus pela solidão atroz que as envolve. Naquela noite alguém lhes faz companhia. É uma caravana. As tendas espalham-se pelo oásis, sob a abóbada das ramagens. Tudo parece dormir. Somente a Lua é cada vez mais brilhante e mais bela, fazendo da areia do deserto um manto branco de virgem a perder de vista nos horizontes longínquos».
Tudo neste trecho soa a falso - a falsidade das coisas que não são vistas nem sentidas directamente por nós. Os clichés são em número infinito, como as areias daquele deserto postiço: noite encantadora - o luar banha - raios argentinos - areal imenso - claridade branda da Lua - silêncio sepulcral - brisa rumorejante - contemplar o céu - meditar no enigma do infinito - árvores frondosas a erguer as copas - solidão atroz que as envolve - manto branco de virgem - horizontes longínquos. Uma série de locuções estafadas, de imagens corriqueiras, que, por isso mesmo, nos não produzem a menor impressão artística. A gente sorri-se do inexperiente autor, que procurou fazer estilo, seguindo precisamente o caminho contrário: não nos pôde dar os resultados da sua própria experiência, por não tê-la, e reproduziu apenas o que anda na boca ou nos bicos da pena de toda a gente. O efeito foi desastroso. «Noite encantadora! O luar banha com os seus raios argentinos o areal desértico e imenso. Tudo brilha e refulge sob a claridade
6. A FORMAÇÃO DAS PALAVRAS Já vimos, a propósito do neologismo, que só dificilmente se consegue criar palavras novas. A criação, na língua, se criação se pode chamar, faz-se sobretudo por transformação do material já existente ou sua utilização para outros fins expressivos. É essa transformação e os seus vários processos que vamos estudar em seguida. 1. A composição. - Repare-se nestes termos de uso comum: couve-flor, mão-cheia, verde-negro, porta-voz, recém-nascião, alçapão, louva-a-deus. Não é difícil de observar o processo de composição destas palavras: Em couve-flor, o segumdo substantivo determina o primeiro; é como se disséssemos: «couve com forma de flor», «couve florida». Efectivamente, nada mais próprio do que chamar couve-flor a esse legume apreciado. Os olhos do povo viram bem: entre todas as couves do couval só aquela se parecia com uma flor. E ficou assim designada. Há outra, repolhuda e oblonga. O povo chama-lhe pitorescamente coração-de-boi. Também é um nome composto. Em mão-cheia, temos intimamente ligados um substantivo e um adjectivo. Estamos vendo a origem da composição. Ao princípio, dir-se-ia: «Tinha as mãos cheias de flores». Depois, pela frequência do emprego e um pouco de imaginação, os dois termos fizeram corpo um com o outro e começou a dizer-se: «Atirou-lhe mãos cheias de flores». Os dois nomes andam hoje inteiramente soldados; a tal ponto que já mão-cheia se diz e escreve simplesmente mancheia. ESTILÍSTICA DA LÍNGUA PORTUGUESA 93
1 Em verde-negro jumtaram-se dois adjectivos para qualificar um dado colorido. As cores têm matizes complicados; por isso se compreende que, para a sua determinação, se haja de empregar uma mistura de adjectivos. Aquele verde-negro, como expressão de certa tonalidade, já hoje corre sob a forma de verdinegro. O vocábulo porta-voz dá-nos o exemplo da combinação, frequentíssima, do verbo com o substantivo. Note-se que o primeiro elemento-poria - não é português. Veio-nos da língua francesa e significa traz, leva. Porta-voz, à letra, quer dizer «traz a voz» e, em seguida, «o que exprime a opinião». Exemplo: «Esse jornal é o porta-voz do partido republicano». Em recém-nascido dá-se a ligação dum advérbio com um particípio passado. Recémnascido quer dizer «nascido recentemente». Paia a sua combinação com o particípio, o advérbio teve de sofrer uma forte redução, ficou mais curto. Este processo de composição, do advérbio ou preposições (ex. sobremesa) com os nomes, também é muitíssimo
empregado na nossa língua. A palavra alçapão compõe-se, embora não pareça, de dois elementos verbais: alça, do verbo alçar, isto é, «levantar» ; e pão, forma actualizada dum antigo pom, que significa «põe, abaixa». A forma arcaica era pois alça-pom, que se transformou em alçapão, como os demais nomes assim terminados : coraçom - coração. Deu-se isto, aproximadamente, no tempo do rei D. Duarte de Portugal. Enfim, o último exemplo, louva-a-deus, que designa, como se sabe, o interessante bichinho dos campos que parece postar-se em oração, com as hastes erguidas, já é, por assim dizer, um grupo fraseológico. Aliás, a evolução destas palavras compostas faz lembrar a das locuções fraseológicas: as partes de que se compõem perdem o seu próprio valor em benefício do conjumto.
94 M. RODRIGUES LAPA
2. Compostos perfeitos e imperfeitos.-Reparemos agora para esses vocábulos que enumerámos e comentámos. A coesão entre os elementos formativos varia de ums para outros. Em couve-flor, os dois termos quase conservam a sua autonomia, em proporções iguais, o que é natural, tratando-se de dois substantivos. Em porta-voz, é o último elemento, voz, que chama mais a atenção e tem, por assim dizer, a responsabilidade da imagem. Em alçapão os dois elementos aglutinaram-se de tal modo, que a palavra é indivisível, sugere uma única representação e se comporta para todos os efeitos, como uma palavra simples. A esta espécie de composição costuma chamar-se composição perfeita, à outra imperfeita.
Todos os compostos tendem, mais ou menos, para a composição perfeita, e a língua costuma consagrar o facto, soldando os dois elementos numa palavra só. É o que está sucedendo ou já sucedeu commão-cheia~mancheia;verde-negro -- verdinegro; águaardente - aguardente; passa-poríe - passaporte, etc. Note-se que essa aglutinação traz, por via de regra, no falar português, uma ligeira alteração na pronúncia do vocábulo. Efectivamente, o termo passaporte nem sempre se pronumcia como passa-porte. O primeiro elemento, menos autónomo, tende a perder a sonoridade das suas vogais. É a sorte de todas as palavras proclíticas: mais um sacrifício das partes a favor do conjumto. Compreende-se agora porque poderá haver hesitações na grafia de algumas palavras compostas, como Alentejo, bendito, benfazejo, Benfica, benvindo, Bonfim, enquanto, etc. Os reformadores da ortografia portuguesa, em 1911, pronumciaram-se de um modo geral sobre a necessidade de não fazer excepções e escrever sistematicamente n antes de consoante que não fosse 6, p ou m. Mas o certo é que o Vocabulário Ortográfico de Gonçalves Viana, que, como se sabe, foi o relator da Comissão Ortográfica e seu vulto preponderante, regista ESTILÍSTICA DA LÍNGUA PORTUGUESA 95
a maior parte daquelas palavras com as seguintes grafias: alemtejano, bemdito, bemfazejo, bemvindo, emfim, emquanto. É que o caso da vogal e era diferente, porque formava, ou podia formar, no falar lisboeta, em contacto com a consoante nasal, um dítongo nasal êi (= ai), que seria sinalado pela consoante m (em). Que significa isto? Que as realidades estão acima das teorias, e que meia dúzia de sábios, sentados a uma mesa, não podem contrariar as forças vivas da linguagem. Nesse tempo, aqueles compostos ainda não constituíam uma só umidade de pensamento. Ainda hoje não estão perfeitamente aglutinados, não são compostos perfeitos. Quando se diz bemvindo, o espírito ainda apreende na palavra duas ideias justapostas: a de bem + vindo, facto que a própria pronúncia traduz pelo ditongo nasal bãi no falar lisboeta, e se acentua com o
emprego do hífen, como sucede nos cartazes de propaganda de algumas firmas comerciais na estrada de São Paulo ao Rio de Janeiro: «Seja bem-vindo ao Rio». Nem todas estão porém no mesmo caso: em alentejano, enfim, o processo de aglutinação está mais adiantado; mas já em outros termos, como Benfica, benfazejo, há ainda quem os escreva, e com alguma razão, com m. Só quando se perder a consciência da sua composição, o que não estará talvez longe, será obrigatório escrever com n. Até lá, neste período de vacilações, as duas formas são aceitáveis e correspondem a certas preferências ou disposições individuais. É isso que os gramáticos nem sempre compreendem, porque o seu ideal é o espectáculo de uma língua imutável, sem excepções. Um deles, Costa Leão, autor dum útil Prontuário Ortográfico, defende as grafias com n e dá para Bonfim a seguinte razão: «Nos compostos Bonfim e Bonjardim, a vogal nasal on = om do primeiro elemento, bom, lê-se como em bondade, não havendo, portanto, motivo para se não seguir a regra, mudando o m em w». A realidade lin-
96 M. RODRIGUES LAPA
guística, como se vê, não foi bem interpretada, porque a duplicidade da grafia provém da duplicidade semântica, duma «visão» mais ou menos nítida dos elementos da composição. Por isso talvez se justifiquem ainda as formas Bomfim e Bomjardim, a par de Bonfim e Bonjardim. 3. Os compostos literários e científicos. - Afora estes compostos orgânicos, que se formam com a prata-da-casa, a língua possui ainda meios extraordinários de composição de palavras, que lhe fornecem o latim e o grego. A esses antigos idiomas vai buscar um sem-número de elementos, com que fabrica novas palavras, por justaposição. Vejamos algums casos, tirados ou imitados do latim: agridoce, altissonante, alvinitente, artimanha, aurifulgente, barbirruivo, boquiaberto, cabisbaixo, carnívoro, curvilíneo, florilégio, floricultura, fratricídio, grandíloquo, herbívoro, lanifício, noctívago, petrificar, rarefazer, silvicultura, velocípede, ventríloquo, vermífugo, etc. A maior parte destes vocábulos são bem conhecidos e de fácil compreensão. O processo de justaposição é quase sempre o mesmo: os dois nomes são ligados um ao outro pela vogal i. Contudo, não são palavras da linguagem corrente, exceptuada uma ou outra, mais em voga: artimanha, cabisbaixo, carnívoro, lanifício. Não há dúvida, portanto, que estes compostos alatinados são sentidos por nós como palavras de uso especial e não corrente. Os compostos formados por via do grego têm carácter ainda mais restrito, técnico e científico, como vamos ver: aristocracia, autómato, braquicéfalo, cacofonia, cromografia, democracia, estenografia, filosofia, iconoclasta, megalomania, neurastenia, paquiderme, pirilampo, pirotécnico, plutocracia, taquigrafia. ESTILÍSTICA DA LÍNGUA PORTUGUESA 97
Tivemos o cuidado de escolher, entre todos os compostos gregos, os mais usuais. Ainda assim, é manifesto que se trata de formação literária, não popular. Se palavras como autómato, democracia, filosofia, pirilampo, já são do domínio corrente, isso deve-se ao seu frequente emprego na vida actual; mas sempre estas palavras são tidas como não familiares. Dirá o leitor: - Mas, então, é necessário saber grego e latim para conhecer o português? Não é, felizmente. Os dicionários usuais trazem a etimologia das palavras; de modo que os compostos literários são divididos e explicados nos seus elementos de formação. Por exemplo, em democracia são ainda perfeitamente sensíveis os dois termos: demos, povo, e kratia, poder, governo - isto é, «governo exercido pelo povo». O primeiro elemento entra em outras palavras de carácter científico, como demografia, demopsicologia; o segumdo em aristocracia, plutocracia. As boas gramáticas darão ao estudioso a significação dos elementos formativos das palavras compostas e derivadas, de origem latina e grega. O Dicionário de afixos e desinências do professor brasileiro Carlos Gois traz tudo isso por ordem alfabética; mas nada vale como a prática e o uso consciencioso do dicionário. A experiência habilitará a compreender esses elementos greco-latinos, sem precisão de saber as respectivas línguas. Aliás, esses termos gregos e latinos, quando são raros e de emprego especial, têm pouca ou
nenhuma importância para o estilo. Tirado da sua esfera, que é geralmente a erudição e a ciência, o palavrão técnico dificilmente convém numa página de literatura. É uma construção mais ou menos artificial; não desperta nem o sentimento nem a fantasia, que são, como temos dito, os principais domínios da Estilística. Contudo, um escritor do século xvm, Filinto Elísio, julgou dar relevo ao seu estilo, forjando compostos à custa 7 - Estilística
98 M. RODRIGUES LAPA
do grego e do latim. Como era homem de mau gosto, saíram-lhe coisas arrevesadas como estas, que a língua justamente repudiou: «septí-cole Roma», «flamívomo alento», «regos frugíferos», «ebrifestante sumo», «ali-poiente cisne», etc. 4. A composição abstracta. - Os compostos correntes, formados pelo povo, ou adoptados francamente por ele, têm, por via de regra, carácter concreto. O povo não sabe lidar com abstracções e tende sempre a dar forma concreta às suas ideias. Já os literatos tendem mais para o abstracto, perdendo de vista muitas vezes as realidades concretas. Sobre o modelo popular de couve-flor imaginaram poder criar compostos abstractos, como amor-orgulho, beleza-novidade, beleza-espanto, parada-orgulho, vida-espírito, viãa-beleza, elegância-fio-de-prumo, etc. Estes exemplos são tirados do escritor Antero de Figueiredo, em cujo estilo se nota particular tendência para o composto abstracto. Sob o aspecto formal, a composição não levanta reparos; mas é discutível o efeito que produzem semelhantes criações; o que diz bem com palavras concretas, já não tem a mesma virtude com palavras abstractas. Vejamos dois exemplos: 1. Amamos com amor-orgulho o que é propriamente nosso. 2. Sou admiração ante a beleza-espanto dos formidáveis desfiladeiros. A maneira usual de escrever não é esta. Diríamos normalmente: Amamos com orgulhoso amor... -Fico admirado ante a beleza espantosa. E não é difícil notar que o emprego do adjectivo dá mais viveza e mais cor à imagem. O artista pretendeu dar maior intensidade à expressão; mas a justaposição dos dois abstractos não o ajudou. Essa aliança diminui, ao contrário, a força expressiva do composto. Em ESTILÍSTICA DA LíNGUA PORTUGUESA 99
couve-flor os olhos da imaginação pousam no objecto, vêem a couve e a flor. Em amor-orgulho a umião dos abstractos, longe de fortalecer, empalidece a imagem, gerando uma confusão entre os dois termos. Dois substantivos abstractos são dificilmente conciliáveis: prejudicam-se um ao outro, deixando inerte a fantasia. Há ainda, e esse recentíssímo, um outro tipo de composição, criado para explicar o sentido de certos termos mais ou menos misteriosos; desenvolve-se, pois, numa perífrase mais ou menos longa. Essa composição está representada no escritor brasileiro João Guimarães Rosa. Veja-se este exemplo, em que a palavra destino, anteriormente referida, é depois desenrolada numa longa explicação que lhe determina exactamente os contomos: «Então, o Major voltou a aparecer na varanda, seguro e satisfeito, como quem cresce e acontece, colaborando, sem o saber, com a direção-escondida - detodas-as-coisas-que-devem-depressa-acontecer». (Sagarana, 5.a ed., pág. 123). Note-se que há uma tendência, criada pela técnica e pelo jornalismo, para a formação de compostos, em que um dos elementos é mais ou menos abstracto: escola-modelo, navio-chefe, camionetafantasma, parada-monstro. Esses nomes, contudo, já têm um ponto de apoio na palavra concreta:
ainda assim, os dois últimos são de gosto duvidoso e parecem mais uma criação de momento, arriscada a não vingar. Há na língua, ocultamente, um sentimento de proporção e beleza, nem sempre infalível, mas que condena todas as inovações que vão de encontro ao seu génio. Curioso, a esse respeito, é o caso do composto - navio-mãe para designar o navio portador dos mantimentos. A composição, aparentemente absurda, explica-se por uma imagem, que nos representa a mãe a dar de comer aos filhos. É por isso que se não diz navio-pai. Esta justaposição do masculino e feminino vem de longe, pois já nos princípios do século xvii se chamava galeão-capitânia ao navio principal duma frota.
100 M. RODRIGUES LAPA
5. Os prefixos. - Outra maneira de formar palavras: coloca-se-lhes antes certos morfemas, a que se dá o nome de prefixos, destinados a modificar mais ou menos a significação primitiva. Antigamente, as palavras formadas por meio de prefixos entravam na categoria de palavras compostas, porque se via nessas partículas, com, contra, ante, etc., verdadeiros vocábulos, justapostos a outros. Logo, compadecer, contradita, alentejano, antepassado, eram de direito considerados como termos compostos. Como porém há prefixos com autonomia mais discutível - dês, ais, in, ré, etc., já hoje algums gramáticos consideram estas palavras, assim formadas, como derivadas por prefixação. As outras, formadas com auxílio de sufixos, partículas que se colocam depois, são derivadas por sufixação. O caso não tem a menor importância para o fim que pretendemos. O que importa é verificar a alteração semântica introduzida pelo prefixo, e ver se o vocábulo tem uma ou mais umidades. Assim, tomemos, por exemplo, a palavra desgraça. O termo comporta uma umidade de pensamento, sugere uma única imagem. O prefixo dês- passa despercebido, é como se pertencesse à primitiva palavra. Um erudito, é claro, vê as coisas de outro modo: decompõe a expressão dês + graça e explica, subindo às origens: «é a situação miserável de alguém que se encontra sem a graça de Deus». Vê pois duas umidades de pensamento no vocábulo: a ideia sugerida por graça (sentido mais ou menos religioso) e outra, negativa, suscitada pelo prefixo dês. Este instinto de decomposição, ou instinto etimológico, é já nosso conhecido e existe forçosamente em todo aquele que se entrega ao estudo e observação das palavras O trocadilho entre o simples e o composto, de que já falámos (sentir - consentir, vencer - convencer), não é mais que um dos aspectos dessa mesma tendência. Até onde chega esse instinto, num escritor de génio, poderá ver-se deste pequeno ESTILÍSTICA DA LÍNGUA PORTUGUESA 101
trecho de Camilo, alusivo a ums retratos de pouca naturalidade: «Os retratos, que o poeta legendário denominou transumptos, são verdadeiramente sumptos «tomados», trans - «além do verossímil humano. São más caras aquelas!» (Dispersos, in, 215). Camilo decompôs a palavra nos seus dois elementos latinos, transumptos, e com eles fez o jogo do seu espírito. Outro exemplo deste mesmo instinto de decomposição é-nos dado nesta frase de Teixeira-Gomes: «Ah! eu compadeço a dor das sereias!...» O verbo compadecer é reflexo. De modo que deveríamos dizer: «Ah! eu compadeço-me da dor das sereias...» Mas o escritor sentiu a composição do verbo, desdobrou-o em duas umidades semânticas e criou um novo modo de expressão, traduzindo de forma abreviada esta noção complicada: «eu padeço jumtamente com as sereias a sua dor». Outro exemplo ainda: Ferreira de Castro escreveu feitos impares (= extraordinários). Em vez do usual impares, esdrúxulo, que evoca uma operação aritmética, usou a palavra como grave, o que dá
realce ao prefixo negativo in- e à palavra pares. Isso só foi possível pelo desdobramento dos elementos constitutivos da expressão. O mesmo se deu com o adjectivo ímpio, que muitos escritores preferiram ler ímpio. O processo lembra o de Filinto Elísio, no século xvm, o qual, para acentuar mais a ideia de negação, escrevia: in-consolado, separando por hífen o prefixo da palavra, a fim de lhe dar maior relevo. Aos escritores de talento ou génio são permitidas estas liberdades de criação; o aprendiz de estilo terá de se limitar a um papel mais modesto e desenvolver as suas aptidões
102 M. RODRIGUES LAPA
dentro das realidades do idioma, sem alterar o valor das palavras, consagrado pelo uso. Mesmo dentro desta esfera terá inúmeras possibilidades de realizar a sua personalidade, sem atrevimentos excessivos, que o poderiam prejudicar. 6. Particularidades fonéticas da prefixação. - Algumas observações de natureza prática sobre prefixos: 1. A. Existem na língua algumas palavras começadas por a, uma espécie de prefixo a que se chama a prostétíco. A partícula foi principalmente usada na língua antiga: alagoa, arroído, alimpar, arrecear, alevantar, etc. De um modo geral, a língua moderna repudiou, como arcaizante, o a prostético, aliás em voga no linguajar plebeu de Portugal, Galiza e Brasil. Contudo, escritores actuais empregam-no, por vezes num tom vagamente humorístico, como neste passo de Teixeira-Gomes: «Pus-me a caminho, e logo o espírito se alimpou dos requentados azedumes». 2. ANTE, AN TI. Os dois prefixos têm significação diferente e origem diversa: ante vem do latim e designa anterioridade, precedência: anti vem do grego e exprime negação, antagonismo: antemuro, antepassado; antipático, anti-revolucionário. Quem não tem presente o valor destas duas partículas, é levado em algums casos a confumdi-las. Assim, há quem escreva erroneamente, seguindo por vezes um uso antigo: anticipar, antidatar, antidiluviano, etc. Corrija-se para antecipar, antedatar, antediluviano. 3. com. Antes de vogal e de /, m, n, e r, perde o elemento nasal (m): coevo, colaborar, comigo, conexão, correspondência. Ainda hoje há quem na leitura e até na escrita procure reconstituir a forma antiga: comigo, conrespondência. É o instinto etimológico em acção. Trabalho inútil: perdeu-se ESTILÍSTICA DA LÍNGUA PORTUGUESA 103
ia a consciência do prefixo, e as palavras são tidas como simples, de uma só umidade. Hoie, a forma com só se usa antes de b ou p: combatente, compaixão. Há para isso uma razão fonética: os fonemas b e b labiais, procuram ter ao pé de si um fonema da mesma natureza; por isso se conserva o m também labial. Já quando com tem a seguir outro fonema, adopta a forma con: confiança conterrâneo, convivência. 4. DÊS, DIS. Deu-se uma confusão entre os dois prefixos, cuja origem e evolução, aliás, ainda não estão suficientemente esclarecidas. No tempo dos Clássicos e ainda não há muito, escrevia-se indiferentemente disvelo ou desvelo, dispender ou despender, disculpar ou desculpar, dissemelhante ou dessemelhante, dispertar ou despertar, etc, O dicionarista Morais condenava as grafias disparar, disfavor, disvelo, dissaborido, dispertador, etc., que denumciavam, dizia ele, «uma afectação mulheril, por tentar amolecer a pronúncia do es em is». Hoje o prefixo ais está em recuo, vencido pelo seu concorrente. Deve porém dizer-se que nos primeiros livros de Oliveira Martins se nota predilecção acentuada por ele, como se vê pelas
formas desacompanhado, disenvolvimento, etc. Esse morfema, além do seu significado de «dispersar», «separar», é usado com preferência na linguagem técnica, com sentido piorativo: dispepsia = má digestão, dispneia = respiração difícil, etc. Tem, nestes casos, origem grega. 5. IN, EN (EM). Também com estes dois prefixos se dão certas confusões; mas, evitadas já pela escrita, afectam sobretudo a língua falada. O prefixo in, que, para efeitos fonéticos, segue as normas do prefixo com, tinha no latim as significações que conserva em português - ideia negativa: inútil, infeliz, impróprio, etc., e sentido de direcção, movimento para dentro: irromper, ingerir, implantar.
104 M. RODRIGUES LAPA
com este segumdo sentido, a linguagem corrente e popular converteu normalmente o in no prefixo en, em. Assim: embarcar, encovar, enterrar. De modo que o prefixo in é hoje empregado normalmente para formar antónimos e, com a segumda significação, palavras mais ou menos literárias: incorporar, imbricar, invólucro, incinerar, ingurgitar, intumescer. Não é pois de estranhar que, a pai destes termos, escrevamos ou possamos escrever as formas menos cultas: encorpar ar, embricar, envólucro, encinerar, engorgitar, entumescer. 6. PRÉ e PER. Houve também confusão entre estes dois prefixos, porque tanto pré como per podiam ter em latim significado superlativo. Assim, os Clássicos escreviam pertender, per ciar o. Ainda hoje é frequente esta confusão, como se pode ver nas duas formas, pergumtar e pregumtar, ambas toleradas não há muito tempo na ortografia oficial. 7. PRÉ e RE. Antes da reforma ortográfica de 1911, escreviam-se assim estes compostos: presentir, resaltar, resentir, etc. Contudo, pronumciavam-se com ss: é que se decompumha mentalmente o prefixo e a palavra simples, de muito conhecida que era. Já em preságio, a pronúncia oscila entre z e ss, porque, sendo o elemento ságio geralmente desconhecido, há tendência para ver na palavra uma só umidade de pensamento. No geral, o prefixo ré só aparece em palavras do fumdo antigo da língua. Escritores como Eça tentaram com ele novas criações, mas foram mal sucedidos: repenetrar, remergulhar, reenfiar, r eper correr, etc., são neologismos queirozianos, formados para evitar a perífrase «de novo», «outra vez», mas que a língua afinal veio a repudiar. 7. Os sufixos. - O estudo dos sufixos é mais importante ainda, em Estilística, que o dos prefixos. Estes acresESTILÍSTICA DA LÍNGUA PORTUGUESA 105
centam quase sempre à palavra simples uma ideia puramente intelectual: de lugar (antecâmara), de tempo (previsão), de companhia (concorrer), de negação (desfeito, impuro), de repetição (relembrar), etc. Pode, num ou noutro, haver um matiz ligeiramente afectivo, pois que os conceitos de negação, intensidade, etc., se acompanham não raro de movimentos da sensibilidade; mas, por via de regra, são instrumentos intelectuais e não propriamente afectivos. É nos sufixos que a descarga das paixões se dá com maior energia. Os sentimentos que vulgarmente agitam a nossa alma e que se resumem, afinal, no amor e na aversão que manifestamos de ordinário pelas coisas e pelas pessoas, reflectem-se perfeitamente em algums dos sufixos. É a esses que dedicaremos maior atenção. Suponhamos esta palavra - livro. Vejamos como algums sufixos a podem modificar sentimentalmente: 1. Lê este livrinho: contém preciosas lições. 2. Deu-lhe um livrito para ler nas suas horas vagas.
3. O pai repreendeu o filho por ler aquele livreco. 4. Na mesa, estava um livrório que ninguém lia. 5. Havia por toda a sala livralhada sem fim. 6. O seu saber para nada servia, era todo livresco. É curioso que, de todos os derivados de livro, mencionados pelos dicionários usuais, só dois não têm significado afectivo. São eles: livrete = livro pequeno, caderneta, e livreiro - o que trata com livros. Todos os outros têm, mais ou menos, valor sentimental. Daqui se vê a grande importância dos sufixos na nossa língua. Fomos sempre, em todos os tempos, homens sentimentais e escarnecedores. Os sufixos retraíam essa feição dupla e contraditória do nosso temperamento: delicadeza lírica e observação galhofeira e motejadora. No primeiro exemplo, o sufixo -inho deu à palavra não tanto um significado de pequenez, como mais ainda de
106 M. RODRIGUES LAPA
ternura. Livrinho pode não ser um livro pequeno, pode ser um livro com as dimensões vulgares; mas é certamente coisa querida e apreciada. É verdade que o sufixo -inho serve para formar diminutivos; mas a noção de pequenez anda ligada geralmente em nosso espírito à de ternura, simpatia, graciosidade. É com esse sentido que empregamos ordinariamente o morfema. Paizinho, mãezinha, não querem dizer «pai pequeno», «mãe pequena», mas pai e mãe muito queridos. Jaime Cortesão captou perfeitamente este alcance poético do sufixo, como representante das misteriosas delicadezas do nosso sentimento: «Língua lírica, franciscana, repassada de ternura e de piedade, nenhuma outra é mais rica de diminutivos carinhosos. Duma criança diz-se quase sempre criancinha; duma mulher idosa, uma velhinha; e aos pobres dá-se-lhes logo esmola chamando-lhes pobrezinhos. Já na «Crónica dos frades menores», do século xiv, se chama assim aos pobres. Língua crepuscular, de confidência, apta em sumo grau às meias tintas, criou essa palavra, cheia de fragilidade e mimo, para a mulher adolescente - menina; do crepúsculo matinal dirá a manhãzinha; e quando a tarde cai ou a noite se ensombra, a tardinha ou a noitinha». (O humanismo umiversalista dos portugueses, pág. 75).
Como somos, porém, gente apaixonada, e facilmente vamos de um extremo ao outro, não é de surpreender que o mesmo sufixo evoque em nós sentimentos depreciativos. A pequenez física pode traduzir insuficiência moral. Por isso o povo diz: «Homem pequenino, ou velhaco ou bailarino». Veja-se a seguinte frase: «O homenzinho não está bom de cabeça». O sufixo -inho (aquele z é uma espécie de consoante de ligação, um infixo) dá um tom pejorativo à representação, alude depreciativamente à pequenez moral. Enfim, essa partícula, nos seus diferentes empregos afectivos, é uma das mais características da língua portuguesa e que melhor exprime a susceptibilidade algo feminina do nosso temperamento. ESTILÍSTICA DA LÍNGUA PORTUGUESA 107
No segumdo exemplo, limito significa «livro pequeno», sem mais complicações sentimentais, como pedrita e jardinziío significam «pedra e jardim pequenos». Mas reparamos bem que o sufixo acusa certa tendência para nos introduzir em sentimentos de brandura ou depreciação. Em todo o caso, não tem o valor afectivo do seu parceiro -inho. Note-se que, para fugir ao matiz sentimental deste sufixo (-inho), actualmente usam-se outros processos de diminutivação, recorrendo até ao estrangeirismo: mini-jornal, mini-saia, kitchenete (= pequena cozinha). Deste último há uma variante metafórica muito graciosa, cozinha de boneca, que só tem o inconveniente da sua longuidão. O sufixo -eco do terceiro exemplo não ilude ninguém; livreco é um mau livro, pelo qual se nutre desprezo ou antipatia. O mesmo sentido pejorativo experimentamos em jornaleco, padreco (ou padreca), malandreco, revisteca, etc. Em livrório já temos um sentido aumentativo. Como tudo quanto é grande tende para o disforme, não é de estranhar que ande ligada aos sufixos aumentativos uma certa representação de fealdade, de grotesco. Livrório significará um «livro grande, mas de pouco valor». Para exprimir a ideia de grandeza pura, não temos sufixo, neste caso. Não podemos criar livrão; se formarmos o derivado livralhaz, lá metemos, por via dos morfemas -alho e -az, um sentimento pejorativo. Positivamente, os livros grandes não nos merecem grande respeito; efectivamente, a nossa literatura abumda em calhamaços que não são das suas coisas mais interessantes.
No quinto exemplo, livralhada suscita em nós uma ideia colectiva, sugerida pelo sufixo -ada, e outra, depreciativa, representada pelo morfema -alho. Logo, em princípio, o vocábulo livralhada contém três umidades semânticas: conceito de livro -f- de mau livro -f- de muitos livros. Praticamente sucede que o segumdo conceito, inserido entre os dois, está mais apagado. Valem sobretudo o primeiro e o terceiro.
108 M. RODRIGUES LAPA
Enfim, no sexto e último exemplo, introduzimos também um sentido desvalorativo, por meio do sufixo -esco. Evidentemente, «saber livresco» é sabedoria de pouco valor, extraída apenas dos livros e não da experiência da vida. Em palavras como grotesco, soldadesca, fradesco, pedantesco, etc., também se surpreende o mesmo intuito depreciativo. Já em principesco, cavalheiresco, dantesco, etc., se não dá o mesmo. Esta irregularidade de emprego provém talvez de que o morfema não é de origem nacional: veio-nos do italiano através do francês. Isto é uma leve amostra da extraordinária riqueza da nossa língua em sufixos expressivos. Há outros que dão à palavra cambiantes afectivos: -acho, -aço, -az, -ejo, -elho, -engo, -iço, -oco, -orro, -oia, -ote, -uco, -udo. São, para aqueles que conhecem os recursos da língua, um filão expressivo de primeira ordem. 8. O diminutivo na literatura. - De quanto fica exposto, vê-se o largo predomínio do sufixo diminutivo afectivo na nossa língua. Seria interessante acompanhar o emprego desse morfema expressivo através da literatura. Damos aqui apenas algums exemplos. Nos fins do século xv, princípios do século xvi, já Garcia de Resende empregava o sufixo -inho em tom de mofa, aludindo às escandalosas novidades do seu tempo em matéria de vestuário: Agora vemos capinhas, muito curtos pelotinhos, pois que tudo são cousinhas.
Não é a pequenez dimensional que exprime propriamente o sufixo; é o desdém do autor por essa moda estrangeirada, tão contrária aos velhos costumes portugueses. No século xvn foi falado o caso de certo frade que i ! í
ESTILÍSTICA DA LÍNGUA PORTUGUESA 109
pregou por diminutivos num mosteiro de freiras. Quis lisonjear o sentimento das damas, e nada mais natural, na verdade, do que falar-lhes numa linguagem afectiva, lardeada de diminutivos de ternura, próprios das mulheres. No século xvni, Bocage ataca um poeta menor, Belohior Curvo Semedo, conhecido poeticamente por Belmiro, usando à larga o diminutivo da chacota e pequenez artística: Jumto ao Tejo, entre os tenros Amorinhos, as belmíricas musas pequeninas para agradar a estúpidas meninas haviam fabricado ums bonequinhos. com eles os travessos rapazinhos, que são mui folgazões e mui traquinas,
armaram mil subtis alicantinas ’ ’ e os lançaram depois nums bispotinhos. Eis tágide louçã, de ebúrneo colo, a quem não vencerá, por mais que lute, o nosso Belmirinho, anão de Apoio, Surge d’água e lhe diz: - Filhinho, escute, olhe com que notícia hoje o consolo: é poeta do rei de Lilipute!
Passando para o século xix, vemos Garrett descrever assim as moças pretensiosas: «Há umas certas boquinhas, gravezinhas e esprimidinhas pela doutorice, que são a mais aborrecidinha coisa e a mais pequinha que Deus permite fazer às suas criaturas fêmeas» (Viagens na minha terra, ed. 1963, pág. 86). E António Nobre compor o seu curioso soneto diminutivo, dirigido a um seu condiscípulo, por alcumha o Misco: Fazes-me pena, ao ver-te. Andas rotinho, como que envolto em transparente véu: pouco me falta para te ver nuzinho, pouco te falta para andar ao léu!
M. RODRIGUES LAPA
Tens a batina, pálido Misquinho, cor da esperança... e tem a cor do breu... No entanto assim foi Cristo, em rapazinho, e hoje é o duque de Morny no céu! Por isso, ó flor ideal dos rapazitos, pacienciazinha, cose os farrapitos dessa batina. Toma a agulha e as linhas. Dar-te-ia, crê, meu lindo pequerrucho, uma das penas orientais - um luxo! se eu fosse Deus, o pai das andorinhas.
Aqui a terna amizade anda associada a um sorriso de doce ironia, que os diminutivos exprimem admiravelmente. É bem um produto do temperamento de António Nobre. Em Eça de Queiroz também encontramos o diminutivo utilizado em vários tons de significado. No trecho a seguir exprime a velhacaria, uma falsa, umtuosa doçura do negociante que quer impingir o seu produto. Trata-se do velho Abraão, judeu com loja de antiguidades, que pretende vender a Carlos da Maia um retrato de espanhola, a que ele chamou uma «maravilhazinha». Carlos ofereceu dez tostões. O judeu, «num riso mudo que lhe abria entre a barba grisalha uma grande boca dum só dente, saboreou muito a «chalaça dos seus ricos senhores». Dez tostõezinhos! Se o quadrinho tivesse por baixo o nomezinho de Fortumy, valia dez continhos de réis. Mas não tinha esse uomezinho bemdito... Ainda assim valia dez notazinhas de vinte mil réis... - Dez cordas para te enforcar, hebreu sem alma! - exclamou Carlos. E saíram, deixando o velho intrujão à porta, curvado em dois, com as mãos sobre o coração, desejando mil felicidades aos seus generosos fidalgos...». - Os Maias, ed. de 1945, i, 199.
O beato Libaninho, do Crime do Padre Amaro, fala por diminutivos, que dão aos seus dizeres um tom de efeminada ESTILÍSTICA DA LÍNGUA PORTUGUESA
hipocrisia: - Ai, sossega, leãozinho! Não te percas, filhinho! Por isso se diz, num romance de Érico Veríssimo: «Há coisinhas, palavrinhas, sorrisinhos, que ferem, que irritam, que fazem mal». (Clarissa, 3.a ed., pág. 48). No estranho e belo soneto de Camilo Pessanha, Singra o navio, também os diminutivos formam a atmosfera da poesia e lhe dão um tom de ironia profumda e macabra: Seixinhos da mais alva porcelana, conchinhas tenuemente cor-de-rosa, na fria transparência luminosa repousam, fumdos, sob a água plana. E a vista sonda, reconstrui, compara: tantos naufrágios, perdições, destroços! Ó fúlgida visão, linda mentira!
Róseas conchinhas que a maré partira... dentinhos que o vaivém desengastara... conchas, pedrinhas, pedacinhos de ossos...
O sorriso doloroso e cruel do poeta perante a ruína fatal de quanto é belo no mumdo traduz-se maravilhosamente no uso daqueles diminutivos de ternura desdenhosa. Enfim, no século xx, encontramos o sufixo arvorado em adjectivo, com o significado de «afectuoso», como se vê deste passo de Alves Redol, não se sabendo propriamente se é criação sua, ou se é transplante do falar ribatejano do autor: «Os tempos, porém, iam duros. Onde andava agora a doçura tradicional da nossa gente, tão brandinha, tão -inhazinha?» (Barranco de cegos, 3.a ed., pág. 407). Mas as manifestações de ternura caracterizam-se por sua intensidade e natural exagero. Era pois inevitável que também se apegasse ao sufixo um efeito superlativante. Os advérbios foram largamente afectados, na linguagem popular, por tal superlativação. Assim, o povo diz: «Ela mora per-
112 M. RODRIGUES LAPA
linho de minha casa». Como quem dissesse: muito perto de minha casa. E o mesmo processo se estendeu a outros advérbios, como agorinha, jàzinho, etc. Os escritores souberam aproveitar esses modos de dizer, como se vê neste passo de Machado de Assis: «Um deles, passando rentezinho com o Pestana, começou a assobiar a mesma polca». (Várias Histórias, ed. de 1955, pág. 69). E um escritor galego, Xavier Alcalá, numa crónica de jornal (El Ideal Gallego, 25/7/78), não duvidou colar o sufixo ao gerúndio para traduzir a marcha do tempo, que deslisa suave e incessantemente: «A vila vai morrendo, morrendinho». 9. A história de «carrilhanor». - É necessário que o estudioso possua o sentimento da língua e respeite, dentro dos limites do razoável, o seu génio. Evitará com isso incidir em erros e em disparates, como aquele de que lhe vamos dar conta. Há anos foram restaurados os célebres carrilhões de Mafra. Contrataram na Bélgica um artista, especialista em carrilhões, que os pôs a tocar boa música. Os jornalistas, perante a novidade da coisa, tiveram um momento de dificuldade. Como chamar ao homem? A palavra sineiro era simples de mais para designar aquela arte complicada, que exigia um músico profissional. Os nossos gazeteiros não hesitciram grandemente. Tinham a palavra francesa carrillonneur. Foram-se a ela e formaram esta lindeza, que chegou a ter certa voga nos jornais: carrilhanor. Este erro não tem perdão, porque denota preguiça mental e a mais grosseira ignorância do génio da língua. Um homem do povo numca seria capaz de formar semelhante desconchavo. Se lhe pergumtassem: - Olhe cá, como se chama o homem que trata e toca os carrilhões ? - responderia, sem hesitar: - Ora essa, chama-se o carrilhoeiro ! Teria mostrado com isso conhecer melhor o português que o pobre jornalista alfacinha, ignorante do idioma. Efectivamente, se ESTILÍSTICA DA LÍNGUA PORTUGUESA
113
a uma planta que dá feijões se chama feijoeiro, um homem que dá pregões se diz pregoeiro, aquele que trata de carrilhões deverá sem dúvida nenhuma chamar-se carrilhoeiro. Quer-se afidalgar um pouco mais o termo ? Chame-se-Ihe carrilhoneiro; assim pode ser, pois que ao que governa o leme ou o timão também se dá o nome de timoneiro. Enfim, tudo, menos aquele monstrozinho derivado à pressa do francês. 8 - Estilística
7.
O ARTIGO E OS NOMES 1. Valor estilístico do artigo. - É o artigo uma palavra pequenina, de aparência insignificante. Em realidade, tem grande valor expressivo, como veremos. Até poderíamos fazer dele um só capítulo, dada a abumdância do material. Preferimos contudo jumtá-lo aos nomes (adjectivos e substantivos), dos quais é praticamente inseparável. Vejamos estas duas f i ases: 1. Camões, grande poeta português, morreu pobre. 2. Camões, o grande poeta português, morreu pobre. As duas frases não têm igual valoi. Na segumda, aquele artigo teve como efeito lançar sobre a representação mais visualidade e mais familiaridade. Como quem diz: «Camões, o grande poeta que nós todos conhecemos e estimamos, morreu pobre». Se repararmos bem na frase, veremos que é essa a sua significação. Tudo isso se conseguiu por meio desse pequenino morfema. Outro caso interessante, embora já diferente: 1. F. ensina modeinos processos de leitura. 2. F. ensina os modernos processos de leitura. No primeiro exemplo, queremos significar que F. ensina algums processos modernos de leitura. No segumdo, que ESTILÍSTICA DA LíNGUA PORTUGUESA 115
ensina todos esses processos. No primeiro caso, a ausência do artigo conferiu à frase um sentido partitivo; já no outro, o emprego do morfema deu à representação um sentido totalitário. Vemos, portanto, só destes exemplos, que o artigo tem um valor estilístico que não é para desprezar de modo nenhum. 2. Noção geral do artigo definido. - Nos exemplos citados, o artigo tinha uma posição especial, pois estava imediatamente seguido do adjectivo e não propriamente do substantivo. Além disso, no primeiro grupo de frases encontrava-se em aposição, isto é, determinando um substantivo (poeta), qualificativo de outro (Camões). Vejamos agora três casos fumdamentais e simples do emprego ou omissão do artigo definido com um mesmo substantivo: 1. O homem é acanhado. 2. O homem é mortal. 3. Homem não é o mesmo que dizer herói nem santo.
No primeiro exemplo, referimo-nos a determinado indivíduo, dentro duma categoria superior que é o género humano. Contudo, estamos vendo esse indivíduo, concretamente, sem nos preocuparmos com o género a que pertence. É o homem «que ali está», «aquele homem». No segumdo exemplo, dá-se o fenómeno contrário: aludimos ao género, à soma dos indivíduos que compõem a humanidade, sem vermos corporeamente o indivíduo. Temos uma impressão de quantidade, de coisa colectiva, como se disséssemos: «Todos os homens são mortais». No terceiro exemplo, referimo-nos ainda ao género, à classe; mas a noção quantitativa do segumdo dá agora lugar a uma noção qualitativa. Efectivamente, aludimos mais à qualidade do que ao próprio ser, como se disséssemos: «As
116 M. RODRIGUES LAPA
fraquezas do homem nem sempre fazem dele um herói ou um santo». Logo, podemos de um modo geral dizer que o substantivo precedido do artigo definido se refere à coisa, ao objecto em si, considerado individualmente ou genericamente, como concreto ou como abstracto. Sem artigo, alude antes à ideia que formamos do objecto, à qualidade que lhe atribuímos. A diferença é sobretudo clara no 1.° e 3.° exemplos. No primeiro, o artigo conserva um valor de indicação, que lhe vem de ter sido antigamente pronome demonstrativo (Aquele homem é acanhado). No terceiro, como as qualidades em rigor se não apontam a dedo, omitiu-se o artigo. 3. A omissão do artigo definido. - Compreende-se que esta acentuação das qualidades dos objectos vá em geral acompanhada de um rebate de sentimento. Quase numca podemos realçar com serenidade as boas ou más qualidades de uma coisa; sempre lhe pomos um pouco do nosso afecto, da nossa paixão. Vejamos este exemplo: «Deixarás pai c mãe - diz a religião ao sacerdote». Poderíamos dizer de outras maneiras: o pai e a mãe, o teu pai e a tua mãe, um pai e uma mãe. Nenhuma delas possui a concisão enérgica, dramática, daquele modo de dizer, que acentua expressivamente, pela omissão do artigo, o valor daquilo que se deixa. Se invertermos a ordem dos elementos, a impressão será a mesma: ((Pai, mãe, esposa, filhos, - tudo deixou o pobre emigrante». O valor sentimental da omissão do artigo era reconhecido já dos antigos escritores. Eis como João de Barros se refere à morte do irmão de Vasco da Gama: «A morte do qual deu muita dor a Vasco da Gama, porque, além de perder irmão, tinha Paulo da Gama calidades pêra sentir sua morte quem dele tivesse conhecimento». É notável ESTILÍSTICA DA LÍNGUA PORTUGUESA 117
aqui o carácter intensivo, afectuoso, do nome irmão desprovido de artigo. Como os nomes se referem sobretudo à essência, à qualidade dos seres nomeados, a série de substantivos sem artigo produz em nós certo choque afectivo. É pois natural que nestas séries a própria pontuação acompanhe o carácter sentimental do discurso. É o que se vê neste passo de Eça de Queiroz: «E sentia nele realmente toda a alma de um Ramires, como eles eram no século xn, de sublime lealdade, mais presos à sua palavra que um santo ao seu voto, e alegremente desbaratando, para a manter, bens, contentamento e vida !» Repare-se nisto: se o substantivo sem artigo faz menção mais da qualidade que do objecto, tem dentro dele uma fumção de adjectivo, pois que compete sobretudo ao adjectivo a determinação do estado e da qualidade. É o que se dá neste caso: «Nessa tarde o Fidalgo da Torre, airoso no seu fato novo de montar, polainas de couro polido, luvas
de camurça branca, parou a égua ao portão da Feitosa». Vê-se perfeitamente o carácter adjectival daquelas duas frases não precedidas de artigo. com elas se qualifica a elegância do cavaleiro. E precisamente a ausência do morfema comumica à expressão certo tom entusiástico e admirativo, dá-lhe um timbre levemente sentimental. Em verdade, aqueles dois qualificativos parecem ser empregados até pelo próprio Fidalgo, contente de si próprio, remirando-se no seu donaire. O processo, como se vê, exige da parte do autor certo poder de simpatia, certa capacidade para entrar na pele das personagens que descreve. Efectivamente, se
118 M. RODRIGUES LAPA
puséssemos a preposição antes da frase, já se perderia o efeito: «com polainas de couro polido e luvas de camurça branca». A frase adquiria um sentido mais serenamente descritivo e pertencia agora exclusivamente ao autor. 4. Abusos no emprego dos artigos. - A utilização do artigo constitui uma das delicadezas da língua, e nem sempre se verifica acertadamente nos melhores autores. Veja-se este passo de Eça, escritor grande entre os grandes, o maior estilista português, presente sempre no nosso trabalho: «Dizia o diplomata, no seu português fluente, mas o acento bárbaro». O escritor português foi atrás da construção francesa e atraiçoou, desta vez, o génio da língua. Mais portuguêsmente, empregaríamos neste caso a preposição: «ãe acento bárbaro», ou «com o acento bárbaro», sendo, em todo o caso, melhor a primeira forma que a segumda. Vejamos estoutra frase: «Contou, as lágrimas nos olhos, o seu imenso infortúnio». Aqui também o emprego do artigo definido parece ter carácter afrancesado. Melhor diríamos em bom português: - ((.com lágrimas nos olhos»; todavia essa construção, com valor de adjectivo ou de advérbio, já criou raízes, abonada como anda pelos melhores autores, que ora empregam a preposição, ora simplesmente o artigo. É de António Vieira o seguinte passo, que legitima esse modo de escrever: «Vinha descorado, macilento, as faces sumidas, os olhos encovados, a cabeça derrubada para a terra». E já antes dele, Francisco de Morais, que andou por França, escrevera no seu Palmeirim de Inglaterra: «dizendo em voz alta, o rosto alegre e risonho». ESTILÍSTICA DA LÍNGUA PORTUGUESA 119
É talvez mais expressiva ainda a inversão dos elementos que põe o adjectivo em primeiro lugar, como neste passo de Ferreira de Castro: «um melro preto, trémula a cauda, olhava com desconfiança para todos os lados». Em vez do artigo definido, usa-se, mais raramente, nas descrições, o artigo indefinido. É também uma construção afrancesada, como se pode ver deste trecho de Guilherme Gama: «Entro na estalagem dando o braço à pequena Natália, essa rapariga boémia, pálida, de olheiras pintadas a bistre, um modo canalha no andar e no rir, e um génio em saber tirar-me do bolso todo o dinheiro das mesadas». O escritor brasileiro Jorge Amado jumta os dois processos, e pelo seguinte trecho logo se vê que o artigo indefinido é usado na descrição de costumes e estados morais: «E quando, por acaso, um navio largava, a terceira classe atestada de imigrantes, eles se
debruçavam todos no balaústre, uma inveja dos que, mais felizes, já partiam naquele navio, as mãos acenando tímidos adeuses, os olhos espichados na esteira do vapor». (Seara vermelha, 123). É bem visível no estilo moderno, sobretudo na descrição, certa repugnância pelas preposições, que marcam no geral relações lógicas, de inteligência e não de sentimento, entre as diferentes partes do discurso. A preposição com tem especial dureza, que desagrada a muitos escritores: por isso procuram afastá-la. O conhecimento científico da língua, a experiência e um pouco de bom gosto ajudarão o estudioso a escolher as melhores maneiras de exprimir-se, dentro das normas e feitio do idioma. Tresandam também a francês certos modos de escrever, nos quais se põe artigo nas exclamações. Exemplos: «O belo
120 M. RODRIGUES LAPA
espectáculo!» «A deliciosa tarde!» Será talvez melhor omitir o artigo, ou substituí-lo por que: «Que belo espectáculo!» «Que deliciosa tarde!» Já com as expressões de tempo, o uso do artigo sem preposição é perfeitamente legítimo e de boa tradição portuguesa. Veja-se este passo de Fr. Luís de Sousa: «Era mancebo; partia por fim de outubro, o tempo doentio». E ainda este, de Tomás António Gonzaga, o conhecido poeta do século xvm: «As frias tardes, irei contigo ao prado florescente». Hoje diríamos de preferência, nestes dois casos: «com o tempo doentio», ou «em tempo doentio», «Nas frias tardes». Mas ainda hoje são correntes estes modos de dizer e escrever: «Esteve cá o Verão passado»; «dormiu bem a outra noite». 5.
O artigo e os nomes próprios.
exemplos: Notemos estes dois 1. Maria não se esquece numca dos seus deveres. 2. A Maria estuda aplicadamente as lições. A diferença salta aos olhos: no primeiro caso, a pessoa nomeada, referida embora com amizade, envolve-se de certa distinção, toma-se mais distante; no segumdo caso, a pessoa, apontada mentalmente pelo artigo, toma-se mais familiar. De aí, certa atmosfera afectiva, que banha sobretudo os nomes próprios precedidos do artigo definido. Os estrangeiros notam esta tendência do português para sensibilizar os nomes das pessoas, dando-lhes um ar caseiro: o Gama, o Eça, o Camilo, etc. E não só os estrangeiros, também os portugueses a acentuam, naturalmente, como se prova destes dizeres de Miguel Torga: «Quando se diz «o Augusto», ESTILÍSTICA DA LÍNGUA PORTUGUESA 121
envolve-se logo o dono do nome num halo de intimidade, de estima, de respeito». (Pedras lavradas, l.a ed., 99). Contudo, a demasiada familiaridade com um homem pode trazer como resultado um aviltamento das suas qualidades. Por isso se diz hoje, não apenas com intimidade, mas com certo sentido displicente: o Camões, o Bocage, etc. No seu célebre soneto político a Eurico, personagem do romance de Herculano, Guerra Junqueiro escreveu: «Beija a Hermengarda, a tímida donzela». O verso ficaria talvez melhor sem aquele primeiro artigo; mas o autor quis dar à figura da irmã de Pelágio um aspecto familiar e cidadão. Aquele artigo definido é pois intencional e até irónico.
Suponha-se um repórter a fazer o relato de um julgamento. Se quiser verter um desprezo, tantas vezes injusto, sobre os desgraçados que respondem pelos seus erros, dirá assim: «O libelo termina dizendo que o José Fernandes e o Manuel Vicente são verdadeiramente culpados do furto dos cereais, pelo que pede a condenação dos réus». Estamos vendo qual o efeito deste modo de escrever. Os nomes sem artigo teriam uma distinção, imprópria de pobres réus de delito comum. Adornando-os de artigo, o jornalista carregou-os de intenção pejorativa, deu à expressão um cunho pessoal, de marcada malevolência. 6. O artigo nas enumerações. - Também nas enumerações o artigo desempenha importante papel expressivo. O desconhecimento do seu emprego pode mesmo dar motivo a equívocos. Veja-se esta frase: «Conferenciaram os chefes do exército alemão e italiano». Tal modo de dizer, «o exército alemão e italiano», poderia indicar um só exército, de alemães e italianos, reumidos sob uma bandeira. Para evitar equívocos, a língua dispõe do adjec-
122 M. RODRIGUES LAPA ESTILÍSTICA DA LÍNGUA PORTUGUESA 123
tivo composto: «o exército germano-italiano» ou «o exército ítalo-alemão». Se quisermos fazer a devida discriminação, diremos, com o artigo no plural: «os exércitos alemão e italiano», ou, repetindo o artigo: «o exército alemão e o italiano». Como se vê, a repetição do artigo nas enumerações acentua o valor de cada elemento da série, dá-lhe vida própria e distinta; se temos um só artigo para toda a enumeração, as diferenças de cada elemento são menos acusadas e só vale o todo. Nesta frase - «Os murros, bofetadas e pontapés choviam sobre o pobre homem» - temos uma representação global, um pouco confusa, das brutalidades a que foi submetido o homem. O nome, precedido do artigo (Os murros), posto à frente da série, assume grande importância, como chefe de fila. Portanto, o vocábulo portador da ideia fundamental ganhará em ser posto à frente da enumeração. Se quiséssemos avultar expressivamente, como que por ordem cronológica, salientando o seu valor, aquelas diferentes manifestações de brutalidade, diríamos: «Choveram então sobre o pobre homem os murros, as bofetadas e os pontapés». Esta repetição expressiva do artigo definido serve ainda para as séries de adjectivos, e produz belo efeito estilístico. Assim nesta frase: «O céu estava límpido: nem uma nuvem lhe desmanchava o vasto, o imaculado azul». A valorização dos adjectivos, um por um, por meio do artigo, toma mais luminosas e mais determinadas as duas representações. Teremos a prova disso, se não repetirmos o artigo e dissermos: «o vasto e imaculado azul». Perdeu-se o efeito, e as duas imagens apagaram-se e como se fundiram num todo. Resultou uma espécie de adjectivo composto, abstracto: vasfo-imaculado. Já vimos o fraco valor expressivo da composição abstracta. 7. O artigo indefinido.-A capacidade estilística do artigo indefinido está na imprecisão que dá às representações. Serve pois para traduzir a indeterminação e o mistério, como se vê por este trecho de Eça, em que se descrevem as hesitações dum arrendatário de aldeia: «O José Casco voltou ainda com a mulher; depois, num domingo, com a mulher e um compadre, - e era um coçar lento do queixo rapado, umas voltas desconfiadas em tomo da eira e da horta, umas demoras sumidas dentro da tulha, que tomavam aquela manhã de junho intoleravelmente longa ao Fidalgo». Ora a indeterminação e o mistério vão quase sempre acompanhados de movimentos da sensibilidade. É por isso que o artigo indefinido traduz muitas vezes os sobressaltos da alma, a intensidade obscura dos afectos. É um instrumento precioso para exprimir a complicação da alma moderna, o seu carácter impressionável. Os Clássicos empregavam-no com parcimónia; nós usamos e abusamos dele.
Suponhamos esta frase: «Para aproveitar a solidão favorável, apressou com um esforço a confidência que o comovia». Se disséssemos apenas «com esforço», não alcançaríamos o mesmo efeito. Aquele artigo dramatiza o caso, reforçando ao mesmo tempo a intensidade da representação. Eis porque esse morfema se emprega muitas vezes como uma espécie de superlativo. Exemplo: «Foi uma alegria, quando viu os pais». Entre o artigo e o nome subentende-se qualquer coisa como «grande», «enorme». A entoação com que se diz a frase contribui, é claro, para esse efeito superlativo; mas é bem visível que o morfema valoriza intensamente o nome a que se refere. Este emprego variado e subtil do artigo indefinido tem-se estendido irregularmente a outros casos, não autorizados
124 M. RODRIGUES LAPA
pelos puristas, que, sempre com os olhos nos Clássicos, desejariam ver a língua no estado em que a deixaram um António Vieira ou um Manuel Bernardes. Um Clássico escreveria assim: «Pareceu-me aquilo sinal de pesar». Nós introduzimos hoje mais energia na frase, dizendo, com o artigo: «Pareceu-me aquilo um sinal de pesar». Mas ainda há hoje escritores que, levados por um exagerado conceito do purismo, mantêm o uso clássico da língua, tomados de verdadeira fobia pelo artigo indefinido. Um deles é Ferreira de Castro, do qual há frases como estas: «O navio rumou de Humaitá para a margem direita, dobrando ponta onde outrora existira terra limpa». «Jucá Tristão dirigindo-se a homem cuja existência Alberto não havia notado, ordenou-lhe: - Ó Caetano, leve-os para o barracão velho!» A omissão do indefinido tem nestes casos o carácter de autêntica «doença do estilo», que o autodidactismo do escritor, aliás um dos nossos mais elegantes prosadores, talvez explique suficientemente. Acompanham-rio neste injustificado horror da partícula indefinida algums dos mais recentes escritores, entre eles Soeiro Pereira Gomes, autor de Esteiros, a quem pertence esta frase: «Depois de enganarem as bocas com naco de pão mais duro do que a tarimba, meteram-se ao esteiro». Já em outras circumstâncias, quando o substantivo está precedido de um adjectivo, se pode observar ainda o uso dos antigos escritores da língua, que geralmente dispensavam o artigo. Exemplo: «O estudioso tirará grande proveito da Estilística». Será este o modo clássico de escrever, o mais corrente ainda hoje. Há porém quem diga «um grande proveito», e esta construção parece destinada a vingar, por ter talvez mais poder expressivo. 8. O substantivo. - Já temos visto que o substantivo pouco difere do adjectivo; no fumdo, são dois aspectos duma mesma realidade linguística. A própria origem do nome tem ESTILÍSTICA DA LÍNGUA PORTUGUESA 125
mais de adjectivo do que de substantivo. com efeito, ao princípio, todos os seres foram designados por uma qualidade fumdamental que os caracterizava. Esse processo, usado na formação dos substantivos, vê-se ainda hoje nas alcumhas pessoais: o (José) Manco, o (Manuel) Canhoto, etc. Para designar um curso de água podem considerar-se duas noções fumdamentais: o próprio derivar da água, e nesse caso o objecto chamar-se-á corrente, torrente, cachoeira, etc., ou, visto de mais longe, o aspecto sinuoso das margens, das ribas, e nesse caso dar-lhe-emos o nome de rio, regato, ribeiro, etc. Isto seria na origem: hoje, a palavra rio suscita não apenas uma qualidade, mas a imagem total do objecto: o correr da água e o aspecto das margens. Primitivamente, aludindo a uma qualidade do objecto, era uma espécie de adjectivo; por fim, sugerindo-o integralmente, tomou-se verdadeiramente substantivo. Hoje, como que voltámos à primitiva concepção. A língua actual, de cumho impressionista, avulta a qualidade acima do objecto, faz da qualidade o próprio objecto. É assim que dizemos «o rubro das papoilas», «o idiota do rapaz», substantivando os adjectivos. E é ainda por esta tendência que dizemos «uma beleza de criança», «uma maravilha de seara», pondo o substantivo qualificante à frente do qualificado. Eis um trecho de Fialho de Almeida, como abonação literária do processo, aliás muito em voga na língua corrente: «Paço era vivo, com uma dessas caras picantes de Sevilha,
de narizito no ar, tinta cigana, profumdos olhos, e um apetite de dentes, que lhe tomavam o riso numa sinfonia de notas peroladas». Claro que os poetas modernistas não fazem caso da velha distinção entre substantivo e adjectivo. Um dos maiores, certamente o maior, Fernando Pessoa, escreveu: E dei meu gesto lasso às algas mágoas que há para além de sermos outonais...
126 M. RODRIGUES LAPA
Não se sabe aqui qual o nome que fumciona como adjectivo, e esta imprecisão acrescenta o mistério da sugestão poética. Já noutros versos do mesmo autor se emprega claramente o substantivo em lugar do adjectivo: «com que ânsia tão raiva / quero aquele outrora!» 9. Abstractos e concretos. - São abstractos os nomes que aludem às acções, aos estados, às propriedades: levantamento, silêncio, rapidez, etc. Dizem-se concretos aqueles que se referem à substância: papel, pedra, montanha, etc. Os primeiros escapam à experiência dos nossos sentidos; os segumdos são seres materiais, sobre que se podem exercer esses mesmos sentidos. Isto, em teoria; na realidade as coisas são mais complicadas. É que certos conceitos abstractos podem ter uma face concreta e, ao contrário, muitos nomes concretos se podem empregar em sentido abstracto. O nome beleza é, não há dúvida, uma palavra abstracta; mas se, ao pronumciá-lo ou ao escrevê-lo, eu tenho nos olhos a imagem de um retrato, ou de um mármore como o da Vénus de Milo, o substantivo adquire para mim um valor concreto. Era aliás o que faziam os antigos gregos e romanos: as ideias abstractas, tais como a beleza, o destino, a morte, etc., eram para eles de certo modo concretas, porque, ao pensá-las, tinham nos olhos as figuras da sua mitologia. Assim, para um romano, a noção de beleza andava ligada à visão duma estátua de Vénus, a morte sugeria-lhe um sem-número de imagens concretas: as Parcas tecendo o fio da vida, os reinos infernais de Plutão, etc. As ideias abstractas são susceptíveis, além disso, de manifestações concretas. Um indivíduo que tem sono, escabeceia, faz trejeitos, deita-se, ressona. Tanto basta para que o substantivo nos apareça menos abstracto, porque lhe andam ligadas estas manifestações corporais. O termo silêncio, sendo, como é, abstracto, se evoca em nós a noção contrária de ruído, o sossego das ramagens quietas, etc., toma-se por isso menos ESTILÍSTICA DA LÍNGUA PORTUGUESA 127
abstracto. Isto é, a abstracção dos nomes é coisa relativa, porque depende em parte do poder de fantasia dos indivíduos. Pelo contrário, muitas vezes os nomes concretos podem ser tomados não no sentido material e objectivo que lhes é próprio, mas em sentido espiritual, tomando-se por isso abstractos. Os substantivos sol, braço, sangue, são concretos; mas podem ser empregados em sentido figurado, equivalendo a ideias abstractas. É o que se dá nos seguintes exemplos: 1. A filha única era para ele o sol da sua vida. 2. António era o braço direito do seu pai. 3. Sentiam-se umidos pelos laços poderosos do sangue. É bem evidente aqui a transformação do termo concreto em abstracto: sol significa propriamente o «conforto espiritual», o «encanto»; braço o «apoio», o «sustentáculo»; sangue o «parentesco», a «estirpe familiar». É um processo da linguagem figurada, bem conhecido de todos. A estas transposições do concreto para o abstracto e vice-versa chamamos metonlmias.
O próprio uso do artigo pode ter importância para a discriminação entre abstracto e concreto: 1. Filho és, pai serás... 2. Chamou o filho e repreendeu-o. No primeiro exemplo, como vimos já, o nome sem artigo alude mais à qualidade, à essência, do que ao próprio objecto. Logo, o substantivo tem valor abstracto. No segumdo exemplo, em virtude do artigo, estamos vendo corporalmente a pessoa; logo, filho é um nome concreto. Os substantivos colectivos também podem ter uma face concreta, como vamos ver. Suponhamos, por exemplo, este nome: pinheiral. O vocábulo suscita em nós duas representações: a da quantidade global, - face abstracta; e a dos pinheiros, considerados mentalmente um por um, - face
128 M. RODRIGUES LAPA
concreta. Por outros termos: o colectivo possuí duas umidades semânticas, mais ou menos sensíveis, conforme os indivíduos: a ideia abstracta do todo e a visão concreta das partes. Os adjectivos também podem ser mais ou menos concretos ou abstractos. Quando dizemos - «O tempo está/mco» temos uma sensação física de frescura; mas quando dizemos - «uma lembrança fresca» - já o adjectivo, empregado em sentido figurado, de concreto passou a abstracto. É como se disséssemos «recente», «de pouco tempo». A linguagem literária moderna faz largo uso do substantivo abstracto, em sentido mais ou menos concreto. É uma criação de estilo. Vejamos este período: «E apenas Gonçalo empurrou timidamente a porta quase acuou no espanto e medo daquela aflição estridente, que se arremessava para ele e para a sua misericórdia». Trata-se de uma pobre mulher que foi pedir pelo seu marido, a ferros na prisão. Não vemos o objecto, a mulher; só sentimos concretamente a sua dor, que parece ter braços para suplicar e pernas para andar. O termo misericórdia também está tomado em sentido menos abstracto; mas aflição é já qualquer coisa que se vê, porque se «arremessa», e se ouve, porque é «estridente». O estilo moderno tem marcada predilecção por este processo, que consiste em pôr à frente o abstracto, o qual indica sem determinar e avulta a qualidade acima do próprio objecto. Veja-se este passo de Fialho de Almeida: «relvas picadas da vivacidade das corolas». Se escrevêssemos ao modo clássico «relvas picadas de corolas vivazes», poderíamos ser mais lógicos, mas éramos certamente menos expressivos. O abstracto, no esforço para se tomar concreto, adquire uma espécie de personalidade activa (a vivacidade das corolas picando as relvas). ESTILÍSTICA DA LÍNGUA PORTUGUESA 129
10. O género e o número. - Pouco interesse tem para o nosso caso a determinação do género e do número das palavras. Mas é necessário acentuar, tratando-se do género, uma das características do português: a constante preocupação sexual que se verifica no vocabulário. É natural que os animais se dividam quanto ao sexo: cão - cadela, leão - leoa, etc. A própria configuração do macho e da fêmea toma necessária a distinção morfológica. Mas o que é mais curioso é que essa mesma tendência se verifique nos objectos, nos seres insexuados. A par do masculino, a língua criou formas femininas num sem-número de substantivos: saco - saca, poço - poça, barco - barca, melão meloa, chouriço - chouriça, gancho - gancha, barraco - barraca, cesto - cesta, etc. Se examinarmos estas parelhas de substantivos, notaremos que, de um modo geral, o masculino representa maior grandeza no sentido do comprimento, o feminino maior grandeza no sentido da largura. O português viu nos objectos a imagem do homem e da mulher: o homem, mais forte, mais alto e esbelto; a mulher, mais baixa, mais larga, de curvas mais arredondadas. Ainda se pode ver nesta competição do macho e da fêmea, reflectindo-se nas próprias coisas, um dos caracteres fumdamentais da civilização portuguesa, que presume sempre, nas lides caseiras e no trabalho da terra, o esforço conjugado do homem e da mulher.
Quanto ao número, convém frisar que o artigo reforça a pluralidade. A falta de artigo desvanece a diferença entre os vários elementos do plural e tende para representar uma ideia colectiva. Vejam-se estes dois exemplos: 1. As flores do campo cheiram bem. 2. Flores do campo, que bem que cheiram! No primeiro caso, o olhar está a vê-las e portanto a determiná-las na sua variedade. No segumdo, a falta de artigo 9 - Estilística
130 M. RODRIGUES LAPA
obliterou a visualidade, e o plural, desacompanhado, perdeu-se um pouco no vago, ganhando certo matiz sentimental. É esta mesma tendência afectiva, a qual favorece os juízos apaixonados sobre os seres, que se verifica no tom depreciativo conferido muitas vezes ao plural sem artigo. Alguém, pessoa experimentada na vida, assiste a algums desmandos de gente moça. Vem-lhe aos lábios um sorriso meio irónico, meio indulgente, e diz: - Rapazes... A entoação desempenha na ironia papel importante, mas o plural tem nisso o seu quinhão. A mesma leve ironia transparece naquele conhecido verso de Cesário Verde: «Naquele piquenique de burguesas». Mas a demonstração mais convincente do caso está na lindíssima redondilha de Camões: Numa casada fui pôr os olhos de si senhores: cuidei que fossem amores, cies fizeram-se amor.
No fumdo, o que o plural sem artigo aqui exprime é a acentuação da qualidade em sentido pejorativo. É ainda curioso assinalar o efeito do plural em algums substantivos. Vejamos esta frase: «Lá em casa a família passava fomes».
,~
O plural dá ao substantivo dois valores expressivos: um de intensidade, outro de variedade. A impressão geral é de que a palavra fome, pluralizando-se, se tomou mais concreta. É esse, por via de regra, o resultado do plural nos nomes abstractos. A linguagem corrente conhece o processo: belezas, miudezas, festas, atenções, etc., tomam-se concretos, ou pouco menos, porque usados no plural. O exemplo mais expressivo desta concretização está no vocábulo galego alegrias, para a designação das entranhas do porco.
O gramático e dicíonarista brasileiro Morais e Silva ESTILÍSTICA DA LÍNGUA PORTUGUESA
131
entreviu o fenómeno, dando-nos esta regra no Epitome de gramática portuguesa, cap. iv: «Não admitem plural os nomes de qualidades habituais, senão usados pelos atos delas: as caridades que me fez; essas tuas paciências, etc.». Os escritores não fizeram mais que copiar o método da língua falada. Exemplo : «Aqueles arranjos confortáveis lembraram decerto a Leopoldina felicidades tranquilas». Aqui arranjos alude não apenas ao acto, mas aos objectos arrumados; felicidades desperta-nos sensações físicas e sentimentos de conforto; o termo anda fortemente apegado aos objectos que constituem o bem-estar. São, em suma, nomes abstractos tomados em sentido mais ou menos concreto. O escritor clássico conhecia já este processo, como se vê destes dois exemplos de Francisco de Morais e Fr. Luís de Sousa: «com piedades de vencido começou a pedir ao vencedor que o matasse». - «Se Deus não acudia com suas misericórdias, parecia impossível valerem-se contra tamanho poder». Os dois termos no plural sugerem imagens auditivas e visuais que o simples singular não comporta, por via de regra. Logo, são havidos como
substantivos concretos. Mais demonstrativo é ainda este passo do P.e António Vieira: «Perde-se o Brasil, Senhor, porque algums ministros de S. Majestade não vêm cá buscar o nosso bem, vêm buscar os nossos bens». O escritor jesuíta soube jogar com o diferente sentido do singular e do plural, com o abstracto e com o concreto, e produziu um trocadilho admirável, de forte e saborosa ironia.
r 8.
O ARTIGO E OS NOMES II 1. O adjectivo e a caracterização. - O adjectivo tem extraordinária importância na arte de escrever; sobretudo hoje, que há uma tendência para dar cor a tudo, às coisas e aos pensamentos. O bom escritor revela-se num grande número de qualidades; mas entre elas sobressai a de aplicar com precisão e pitoresco os seus adjectivos. Dizia um grande escritor francês, mestre na arte do estilo, que em tudo quanto se queira dizer não há senão um substantivo para o exprimir, um verbo para o animar e um adjectivo para o qualificar. É porventura demasiado radical esta sentença; mas tem um fumdo de verdade e deve estar presente ao espírito de quem queira escrever bem. O adjectivo é portanto o elemento fumdamental da caracterização dos seres; mas a Estilística tem uma noção muito mais larga do adjectivo do que a Gramática: para ela tudo quanto sirva para caracterizar, jeito de entoação, palavra ou frase, vale como adjectivo. Vejamos os casos principais de palavras ou locuções que podem assumir f umção adjectival:
1. Isto é que é um RAPAZ! A entoação aqui é o elemento caracterizador. Conforme a maneira de entoar, assim a frase significa bom ou mau rapaz. Aquele artigo indefinido, pelo seu carácter intensificador, auxilia essa fumção adjectivante. ESTILÍSTICA DA LÍNGUA PORTUGUESA 133
2. A í te mando esse LIVRECO. Na palavra livreco há duas representações: a de substantivo e a de adjectivo, a do objecto e a da qualidade: «livro mau». Portanto, certos substantivos expressivos trazem em si o elemento caracterizador; e os sufixos, como vemos, desempenham nisso importante papel: r óbito, cabeçona, casacório, etc. ,i
3. Manuela trazia um vestido LILÁS. O substantivo lilás qualifica outro substantivo (vestido). O caso é frequente com os nomes das cores. É uma construção afrancesada que vingou na nossa língua. O próprio substantivo composto pode servir de adjectivo, como se vê deste exemplo: «Essa rapariga tem a história mais planta-de-
estufa que eu conheço». Aquele composto significa «caseira», «modesta».
4. Avistámos ao longe um barco À VELA. A locução à vela, formada de substantivo precedido de preposição, é equivalente a um adjectivo: «barco veleiro». Esse qualificativo até se emprega já como substantivo, pois podemos dizer simplesmente «um veleiro». A qualidade deu nome à própria substância. Como vimos já, no capítulo anterior, o substantivo não carece de preposição para ter a capacidade de um adjectivo. Neste trecho, os substantivos e mais os qualificativos que os acompanham valem por autênticos adjectivos: «Surgiu então um rapaz alto, cabelo negro, rosto magro e olhos amortecidos, denumciando vida indolente». Por vezes, o substantivo encontra-se precedido do artigo, como nesta frase: «Nas árvores pousavam lindas pernaltas, o bico semi-oculto no
134 M. RODRIGUES LAPA
colo». Tudo processos de caracterização com o emprego do substantivo. 5. Deves ler livros QUE INTERESSEM.
Aqui, a oração de pronome relativo (que interessem) vale por um adjectivo: interessantes. É por isso que em gramática essas orações são designadas pelo nome de «adjectivas», e é por isso mesmo que se não justifica o uso da vírgula. 6. Os pequenos, CANTANDO, saíam da escola. Neste exemplo, o gerúndio cantando caracteriza ao mesmo tempo o sujeito (os pequenos), e nesse caso é um adjectivo, e o verbo (saíam cantando), e nesse caso equivale a um advérbio. As duas fumções compenetram-se aqui intimamente. Mas um escritor modernista como Fernando Pessoa tem artes de fazer do gerúndio um puro adjectivo, qualificador do substantivo, numa frase como esta: «Pelo grande cobertor não-cobrindo-nada das aparências». Já antes dele, o brasileiro Raul Pompéia tentara o recurso no seu livro O Ateneu: «Bem pouco, um resto desfeito de saudades para aquela inércia intensa, avassalando». São estas as maneiras principais de que a língua se serve para a caracterização; poderemos dizer que a noção de adjectivo recobre todos estes aspectos. Vamos agora assistir a esse trabalho de caracterização, realizado por um grande escritor. Suponhamos o seguinte trecho: «Numa sala encontrámos uma senhora; um lenço caía-lhe em bioco sobre a testa; e no fumdo dessa sombra negrejavam dois óculos». O passo é quase totalmente desprovido de termos caracterizadores, tirante aquele bioco e sobretudo aquele negrejar, donde ressalta já nitidamente a ideia de «negro». É assim ESTILÍSTICA DA LÍNGUA PORTUGUESA 135
que Eça de Queiroz completa o trecho, aviventando-o com adjectivos ou equivalentes locuções caracterizantes: «Numa sala forrada de papel escuro encontrámos uma senhora muito alta, muito seca, vestida de preto, com um grilhão de ouro no peito; um lenço roxo, amarrado no queixo, caía-lhe num bioco lúgubre sobre a testa; e no fumdo dessa sombra negrejavam dois óculos defumados». Aqui está como um grande escritor, pelo sábio emprego dos instrumentos de caracterização, descreve uma senhora beata. É de notar a cor sombria dada por esses elementos, com que se acentua a natureza arrevesada da personagem: escuro, preto, roxo, lúgubre, defumados. 2. Cautela com o emprego do adjectivo! - Toda a cautela é pouca no emprego do adjectivo. Dizia um grande escritor francês, Voltaire, que o substantivo e o adjectivo são dois inimigos figadais.
Queria ele significar que nada há mais censurável no estilo do que a acumulação supérflua dos adjectivos. Por isso o bom escritor deve insistir no emprego do substantivo expressivo, que contém já em si um elemento de caracterização. Evita sobretudo carregar a frase de adjectivos, como quem carrega um fardo. Foi nestes termos, mais ou menos, que Camilo Castelo Branco louvou um escritor do seu tempo: «O poeta esmera-se na escolha do substantivo, adopta o que lhe frisa mais espontaneamente a ideia, e dispensa-se de o arreatar em caravana de epítetos dissimulados em estéril pompa de retórica: sonoridades vazias». Para exemplo do que diz Camilo, veja-se este trecho duma escritora moderna, onde superabumdam os adjectivos que nada ou quase nada dizem: «Alumiado pela estrela rutilante da bondade excelsa, o reformador desceu aos antros tenebrosos e infectos onde a
136 M. RODRIGUES LAPA
humanidade se encharca em crime hediondo. Desse ambiente impiedoso de miséria repelente arrancou as almazinhas inocentes das crianças pobres, convertendo-as em elementos fecumdos e úteis à sociedade». Se quiséssemos mondar este trecho dos adjectivos que o atravancam, escreveríamos mais simplesmente assim, banidos os clichés e algums elementos supérfluos de caracterização: «Alumiado por excelsa bondade, o reformador desceu aos antros onde a humanidade se encharca no crime. Desse ambiente de miséria arrancou as pobres crianças, convertendo-as em elementos úteis à sociedade». Aquela vegetação de adjectivos qualificadores de antros, crime, miséria, parece-nos perfeitamente dispensável, porque essas palavras, eminentemente expressivas, caracterizam-se já por si próprias. O adjectivo trivial, espécie de cliché, nada acrescenta ao sentido. O trecho saiu simplificado, sem perder a significação. com certeza, ficou mais bem escrito. Outras vezes somos levados a empregar o adjectivo por um instinto artístico, uma tendência para o arredondamento e para a calafetação da frase. Parece-nos que ao substantivo falta um qualificativo; e, como a natureza é preguiçosa, em vez de escolhermos o bom adjectivo, o único que a circumstância requer, adoptamos um caracterizador banal, que serve para tudo: lindo, admirável, soberbo, enorme, etc. Sobretudo os aprendizes de estilo estão sujeitos a estes deslizes. Por preguiça, que é o pior inimigo do estilo, usam e abusam destas calafetações que nada exprimem. Um dos nossos discípulos, ao referir-se a um campanário de aldeia, escreveu: «No lindo campanário ouvem-se as badaladas que anumciam a missa...» Fizemos-lhe compreender que aquele adjectivo lindo nada significava ali, era um simples verbo-de-encher que não nos dava nenhuma das ESTILÍSTICA DA LÍNGUA PORTUGUESA 137
qualidades do campanário. com efeito, um campanário só por muito favor se pode qualificar por meio do adjectivo lindo. O alumo pensou melhor e corrigiu para vetusto. Aceitámos a emenda, que já definia um dos aspectos do campanário. Observámos-lhe porém que o termo, alatinado, nos parecia um pouco pretensioso, literário demais. Preferiríamos o termo corrente velho. Objectou-nos que vetusto lhe parecia melhor para designar uma igreja, que poderia vir a ser um dia monumento nacional. Aceitámos a razão como boa, por se fumdar numa preferência pessoal, digna de respeito. Mas não ficámos convencido, por acharmos um pouco forçada aquela transposição de velho para o latinismo vetusto. Infelizmente a série de sinónimos que se possa empregar aqui não é grande, nem fácil a escolha. Há contudo um termo que poderia servir e tem boa raiz popular - velhusco, se não admitisse uma coloração mais ou menos pejorativa, como se nota no uso que dele fez Machado de Assis para caracterizar uma casa velha e arruinada: «Gostou até de ver a casa velhusca, desbotada, em contraste com as borboletas tão vivas de há pouco» (Quincas Borba, pág. 271). Monteiro Lobato, grande criador verbal e grande humorista, tem gosto por essa forma, que emprega pelo menos duas vezes ern Negrinha. Convém advertir que o nosso alumo, católico praticante, desejava naturalmente dar certa dignidade à igreja da sua terra. De aí talvez a preferência por vetusto.
3. Substantivo vulgar e adjectivo literário. - As palavras vivem em famílias; e o que se dá na família dos humanos, dá-se também na família das palavras: nem sempre os componentes ligam bem entre si, porque há elementos que são ou se julgam mais do que os outros. Aquele adjectivo vetusto pertence à categoria desses pretensiosos. Destoa, entre os companheiros - velho, idoso, ancião, etc. pelo seu ar alatinado. Mas sempre teremos o recurso de o substituir, querendo, por outros menos pedantescos.
138 M. RODRIGUES LAPA
Há casos porém mais complicados: muitos substantivos não têm adjectivo que lhes corresponda (ex.: cimento, pau, Jaca, pano, etc.), sendo nós obrigados a um circumlóquio para arranjar o qualificativo. Outros vão buscar o adjectivo às línguas cultas, como são o latim e o grego. Fica assim existindo um adjectivo literário para um substantivo vulgar, um termo especial e um pouco arrevesado para um termo de uso corrente. Assim, «brinquedos de criança1» chamar-se-ão, em linguagem culta, «brinquedos pueris ou infantis»; um recado que é dito por boca chama-se «recado orah; uma picada que causa dor diz-se «picada dolorosa»; um remédio cujos efeitos vão até à raiz é dito «remédio radicah, à navegação que se faz no rio chama-se «navegação fluvial», e a um escritor que produz muitas obras «escritor operoso». Todo o homem culto ou que presume de tal é obrigado a conhecer estas famílias de palavras, com os seus elementos nobres. Para isso, como já declarámos, não é necessário saber latim nem grego. Basta possuir uma louvável diligência e uma certa experiência dos radicais. O bom uso do dicionário dará ao estudioso esta ciência fácil. Acha, por exemplo, a palavra piscoso, no grupo a piscosa Sesimbra. Logo reconhece na palavra um radical pise, que significa «peixe», e se encontra em outros vocábulos: piscatório, piscicultura, pisciforme, piscina. A falta do sentimento da língua conduziu, a propósito desta mesma expressão, a um erro curioso. Um editor de Os Lusíadas, em 1584, ao encontrar aquele grupo no texto (canto m, est. 65) deu a seguinte explicação, que se tomou ridiculamente célebre: «chama-se piscosa, porque em certo tempo se ajumta ali grande quantidade de piscos, para se passarem à África». Desde esse momento ficou essa edição conhecida pelo nome de «edição dos piscos». Logo, é útil ao aprendiz de escritor o estudo da formação das palavras; não para deslumbrar os outros com o ESTILÍSTICA DA LÍNGUA PORTUGUma/i
emprego do termo literário e técnico - esses vocábulos são precisamente os menos expressivos -, mas para enriquecer o seu pecúlio lexical e dar variedade ao estilo. 4. Valor intelectual e afectivo dos adjectivos. -Designando um atributo, uma qualidade, é natural que o adjectivo tenda sobretudo para a expressão intelectual, abstracta. Quando dizemos «história umiversal», temos a representação de uma «história que abrange os sucessos fumdamentais de todas as nações». O nosso sentimento não intervém no caso. A representação é puramente intelectual. Mas se dissermos: «Esse remédio tem fama umiversah, já introduzimos na ideia marcada pelo adjectivo um pouco de exaltação. A que devemos isso? Ao contexto, mas sobretudo ao substantivo que acompanha o adjectivo e que derrama sobre ele um pouco da sua alma. As palavras não vivem isoladas, temos nós repetido; aqui mais uma vez se comprova o facto. Não há dúvida que o substantivo fama comumica ao adjectivo umiversal um pouco do seu alvoroço e do seu entusiasmo. As duas palavras conspiram para nos darem uma sensação de intensidade, e esta vai sempre acompanhada de rebates de sentimento. Outro exemplo:
«O frade observou sempre o jejum
religioso). Aqui o adjectivo tem carácter puramente intelectual; «jejum religioso» significa apenas o jejum preceituado pela religião. O qualificativo é de natureza técnica. Digamos porém: «Fezse na sala um silêncio religioso». Agora, o adjectivo parece-nos impregnado de sentimento, e o termo adquiriu um sentido figurado e superlativo. Como vemos, trata-se de uma série usual de intensidade, cuja formação e significado já foram estudados num capítulo anterior. Por via de regra, quando o adjectivo assume coloração sentimental, resulta daí uma série usual intensiva. O reflexo do substantivo sobre o adjectivo nota-se ainda em certas locuções correntes. Quando dizemos «uma casa
140 M. RODRIGUES LAPA
azul», sabemos bem que a casa não é toda azul, mas apenas exteriormente pintada de azul. Em Lisboa, há um «Bairro Azul»: as casas não são pintadas de azul, como poderia parecer, mas apenas as portas, aros das janelas e persianas. Enfim, um «lápis azul» só tem de azul a parte com que se escreve. Parece-nos que estes exemplos são o bastante para convencer o leitor da íntima solidariedade que existe entre o substantivo e o adjectivo e da impossibilidade de separarmos estas duas categorias. 5. A posição do adjectivo. - Um facto importante de estilo, sobretudo em português, é a posição do adjectivo qualificativo. Muitas línguas, como o inglês e o alemão, têm umiformemente o adjectivo antes do substantivo; outras, como o francês, têm regras mais ou menos fixas para a sua colocação. Só o português e o espanhol admitem liberdades que dão a quem fala e escreve riquíssimas possibilidades de expressão. Vejam-se estas duas frases: 1. O rapaz pobre necessita de fazer economias. 2. O pobre rapaz ficou reprovado no exame. Ninguém, por menos experiente que seja da língua, hesita sobre o significado daquele adjectivo. No primeiro caso, o adjectivo pobre está empregado no seu verdadeiro sentido, define com precisão a qualidade do rapaz: «moço sem recursos». No segumdo caso, entramos já em outra esfera: o adjectivo está empregado com significação diferente; na verdade, aquele «pobre rapaz» pode ser agora um rapaz imensamente rico. E o adjectivo e toda a frase aparecem-nos impregnados de sentimento, de compaixão. Tudo isto se obteve com a colocação do adjectivo antes do substantivo. Podemos pois desde já enumciar esta regra de estilo português: quando o adjectivo está logo depois do substantivo, tende a conservar o valor próprio, objectivo, intelectual; ESTILÍSTICA
DA LÍNGUA PORTUGUESA
141
quando está antes, tende a embrandecer-se, adquirindo matização afectiva. Assim, «uma rapariga bela» pode não ser «uma bela rapariga», porque a primeira se distingue pela beleza física, a segumda pela beleza moral. Machado de Assis aproveitou esta duplicidade de sentido, jogando finamente com a posição do adjectivo: «a primeira é que eu não sou propriamente um autor defumto, mas um defumto autor, para quem a campa foi outro berço» (Memórias póstumas de Brás Cubas, ed. de 1955, pág. 11). No primeiro exemplo, defumto significa «efectivamente morto»; no segumdo, o adjectivo significará «esquecido», dando-se à frase este sentido: «mas um autor esquecido para o qual a celebridade só veio depois da morte». Esta variabilidade na colocação do adjectivo é própria de pessoas sentimentais e sonhadoras. O poeta, que vive mais na esfera do sentimento, tem tendência para pôr o adjectivo antes do substantivo. É um processo lírico. O poeta dirá de preferência «o verde prado», porque alude não à verdura em si própria, mas às emoções, ao prazer que lhe suscita a verdura do prado. Para ele, verde é um adjectivo mais ou menos abstracto. Um homem de prosa, observador exacto e
impassível, dirá antes «o prado verde», porque estabelece uma relação intelectual, não contaminada de sentimento, entre o prado e a verdura que em dado momento o caracteriza. Para ele, verde é um adjectivo mais ou menos concreto. O primeiro vê sobretudo com os olhos do coração - por isso vê mais turvo; o segumdo vê sobretudo com os olhos da cabeça - por isso vê mais claro. A visão do primeiro pode dizer-se mais moral, a do segumdo mais física e mais pitoresca. Por aqui se vê o extraordinário partido que podemos tirar da colocação do adjectivo em português. Tomemos agora mais estas duas frases: 1. A pátria, ingrata, não recebeu os ossos do herói. 2. Ingrata pátria, não possuirás meus ossos!
142 M. RODRIGUES LAPA
No primeiro caso, o substantivo (pátria) foi caracterizado a frio, com pouco ou nenhum alvoroço do sentimento. É a frase de um historiador, que narra impassivelmente, como é próprio do seu ofício, as ingratidões com que a pátria recompensa muitas vezes os serviços dos seus filhos. Experimentemos pôr o caso na boca de um desses heróis. É o nosso segumdo exemplo, que reproduz o dito célebre de Cipião Africano. A frase já vem túmida de sentimento e de amargura; é uma exclamação de dor que lhe sai da alma. O adjectivo foi para o lugar que lhe é devido nestes casos. Aqui temos o motivo por que nas exclamações, nas crises da afectividade, em que se exprime a admiração, o êxtase, a mágoa, etc., o adjectivo se coloca, por via de regra, antes do substantivo. Exemplos: Linda flor! Bela mulher! Soberbo espectáculo! Triste vida! Como vemos, o adjectivo anteposto ao substantivo forma com ele uma espécie de grupo fraseológico, em que ambos os elementos perdem um pouco do seu valor, em proveito do conjunto. Quando dizemos «o verde prado», «o loiro trigo», enunciamos uma noção geral, sem grande precisão, porque nem sempre o prado está verde e nem sempre o trigo é loiro. Estas posições sentimentais não são favoráveis geralmente à nitidez das ideias. Por isso, o grupo do adjectivo antes do substantivo tende a construir séries usuais de intensidade e clichés. Exemplos: grave acidente, prudente reserva, suave melodia, sábio professor, inspirado poeta, consumado artista. Donde se pode tirar esta conclusão: o adjectivo anteposto serve de exprimir as qualidades primitivas ou geralmente consagradas. Admitiu-se um dia que o prado deveria ser verde, que o professor deveria ser sábio, que o poeta deveria ser inspirado. Olhou-se ao permanente, ao absoluto e não ao relativo. E para esta invenção engenhosa da preguiça, de natureza pouco observadora e inclinada para o sentimental, escolheu-se um bom instrumento: a colocação do adjectivo antes do substantivo. ESTILÍSTICA DA LÍNGUA PORTUGUESA 143
6. O adjectivo empregado como substantivo. - Assim como o substantivo vai muitas vezes empregado como adjectivo, também este serve não raro de substantivo, tanto na linguagem corrente como na literária. É sabido que muitos substantivos foram ao princípio adjectivos (a corrente, a palhoça, o ouvinte, a festa, o Inverno, etc.) e que ainda hoje é vulgar dizermos: o sábio, o justo, um tímido, um preguiçoso, etc. Estes adjectivos são condensações de frases como esta: «um (homem ou rapaz) preguiçoso». Tomaram-se, ou podem tomar se independentes e substantivados, pela capacidade que temos em conceber a qualidade para além do próprio objecto. Este princípio tem curiosas aplicações em Estilística. Quando dizemos «o infeliz rapaz», consideramos, numa atmosfera sentimental, a infelicidade do moço. Não se ousou dizer, como locução equivalente, «a infelicidade do rapaz», mas adoptou-se uma construção, já citada por nós, que é um termo médio e um belo achado estilístico, muito frequente em linguagem familiar: «o infeliz do rapaz». Agora, aparece o adjectivo substantivado e menos dependente do substantivo, porque está separado dele pela preposição. Isto é, conserva a vantagem sentimental da posição, anteposto ao substantivo, e adquire maior relevo de significado. A linguagem literária a dotou o processo, frequente já nos Clássicos, como se vê desta frase de Fr. António das Chagas : «A mesma pena que na frieza nos espanta, no ardente do amor grande alegria nos dera». O escritor poderia ter escrito ardência; mas entendeu, e muito bem, que o emprego do adjectivo substantivo era mais expressivo.
Vejamos agora esta frase: «Fez-lhe sentir o tortuoso do seu procedimento». Poderíamos escrever «a tortuosidade»; mas o adjectivo precedido do artigo é mais expressivo, dá maior realce à qualidade. A acumulação dos sufixos naquele substantivo (-oso, -dade) desvanece a ideia central, rouba
144 M. RODRIGUES LAPA
energia à imagem. Aviso útil para aqueles que usam e abusam de termos extensos e não de boa escolha: tempestuosidade, engenhosidaãe, grandiosidade, sumpiuosidade, etc. Embora estas formações possam encontrar-se em algums bons autores (veja-se, por exemplo, odiosidade em Raul Pompéia, incisividade em Mário de Andrade, engenhosidade em Aquilino Ribeiro), o vocábulo muito extenso é sempre de evitar em bom português. Contudo, casos há em que a substantivação do adjectivo não pode passar sem reparo, por contrariar os hábitos do idioma. Veja-se este passo dum escritor moderno: «E ante os agradecimentos do comovido por aquela solicitude imprevista, Firmino entrou». A condensação é excessiva, quase brutal. Para uma boa compreensão, teríamos de dizer «do companheiro, comovidot>. Outra frase do mesmo escritor, que tem predilecção pelo processo: «Não contente com o laconismo, o loquaz insistiu». O adjectivo, alatinado, causa-nos impressão estranha, precedido do artigo. Se disséssemos popularmente «o tagarela», já o termo familiar, com fumção de substantivo, convinha perfeitamente ao discurso. A razão está bem de ver: loquaz é um adjectivo desbotado, de carácter literário; e ali o que convinha era um termo popular, fortemente pejorativo; logo, tagarela. 7. A gradação dos nomes. - É sempre possível conferir maior ou menor intensidade aos conceitos expressos pela maioria das palavras. A linguagem tem processos para traduzir esse fenómeno, e os escritores, por sua vez, também os vão inventando. A gradação dos substantivos é determinada geralmente por meio do adjectivo (processo analítico) ou por meio de sufixos aumentativos e diminutivos (processo sintético). Quando dizemos «casa grande», «casa pequena», definimos o grau de dimensão do objecto. O mesmo faremos se, em vez do adjectivo, empregarmos os sufixos: casarão, casita. Neste último caso, como vimos no capítulo 6, ESTILÍSTICA DA LÍNGUA PORTUGUESA 145
anda apegado à palavra certo valor sentimental, mais ou menos vivo, conforme o sufixo empregado. Também a repetição do nome produz um efeito de intensidade, que a linguagem familiar conhece perfeitamente e a literatura aproveita. Veja-se este passo: «No barranco iam-se acumulando caixotes, sacos e barris, barris, barris, a cachaça era morfina para a vida triste do seringueiro». A repetição do nome é um processo estilístico que serve para exprimir, com alvoroço do sentimento, a quantidade ilimitada. O redobro da palavra é sinal de energia psíquica e encontra-se sobretudo nas línguas primitivas. Se quisermos reforçar a impressão que em nós causam ums olhos negros, não temos mais que repetir o adjectivo: «Depois, fitaram-se em mim ums olhos negros, negros». Como vemos, a repetição do nome não só dá intensidade à representação, mas ainda a envolve de certo mistério e perturbação afectiva. Vejamos agora outro caso. Suponhamos este enumciado: «A rosa é a flor das flores». Queremos dizer que «a rosa é a mais bela de todas as flores». Tivemos arte de exprimir isso de forma muito condensada, repetindo o substantivo e pondo-lhe ao meio uma preposição. Este processo também é antigo. Encontra-se muito na Bíblia; e como a Bíblia é uma produção do génio hebraico, na parte que se chama o Velho Testamento, ficou a chamar-se a essa construção, poética e simplificadora, «superlativo hebraico». Podem tirar-se curiosos efeitos de estilo desse processo, como neste passo de Aquilino Ribeiro: «A vista repousava, bêbeda de luz, na confiança das confianças».
Machado de Assis mostrava já predilecção pelo superlativo hebraico: «pintou-lhe o chapéu baixo como a abominação das abominações», a ponto de o empregar até com os advérbios: «Numca dos numcas poderás saber a energia e obstinação que empreguei em fechar os olhos... Nada dos nadas veio ter comigo.» (Dom Casmurro, ed. de 1952, pág. 214). 10 - Estilística
146 M. RODRIGUES LAPA
Passemos propriamente ao adjectivo, que admite um grau comparativo e outro superlativo. No emprego do comparativo, salta aos olhos a diferença estabelecida no uso do comparativo de superioridade para pequeno em Portugal e no Brasil. Em Portugal diz-se correntemente mais pequeno. O brasileiro adoptou a forma menor, porque os gramáticos lhe incutiram o princípio da lógica no discurso: quem diz mais pequeno devia também dizer mais grande; assim, deverá dizer-se maior e menor. A introdução dessa forma literária e incolor, que fede a pedantismo de escola, foi uma vitória lamentável da abstracção sobre o pitoresco. Aliás, o povo, em Portugal e no Brasil, vai dizendo mais pequeno; e na Galiza até se diz e escreve mais grande. Assim, por exemplo, em R. Otero Pedrayo: «Espanha fíxose mais grande e f onda.» (Arredar de si, pág. 14). O galego, porém, soube criar uma forma concentrada, com que evitou decididamente as reclamações dos gramáticos: transformou mais grande em meirande: «Dum dos meirandes tolos poidéronse aduvinhar alguas cousas.» (R, Otero Pedrayo, O senhorita da Reboraina, pág. 158). Vejamos agora o valor estilístico do segumdo termo da comparação (que ou do que). Repáre-se nesta frase de um autor clássico: «Não há maior glória da que se alcança servindo a Deus.» A construção é elegante e sóbria. Apesar disso, a língua actual tende a substituí-la por estoutra: «Não há maior glória do que a que se alcança servindo a Deus». Ou ainda por esta: «Não há maior glória que aquela que se alcança servindo a Deus». A construção ganhou em clareza, mas perdeu muito em elegância e eufonia. Aquela repetição do que é extremamente dura e desagradável. A língua sacrificou desta vez a música à clareza. Antes de numerais parece mais elegante o emprego da preposição. «A quinta não vale mais de vinte contos» é, na verdade, mais bem-soante que «A quinta não vale mais que vinte contos». Contudo, a outros parecerá que o termo ESTILÍSTICA DA LÍNGUA PORTUGUESA 147
que dá mais energia e clareza à representação. A sua própria aspereza é um sinal de vigor: uma questão de gosto pessoal. Sobre o superlativo convém notar o seguinte. Os dois processos mais frequentes para exprimir a intensidade dos atributos e qualidades consistem em fazer preceder o adjectivo de um advérbio de quantidade (muito, extraordinariamente, extremamente, etc.) ou acrescentar o sufixo -íssimo ao adjectivo. Temos pois dois tipos de superlativos: muito rico e riquíssimo. De um modo geral, tem-se a impressão de que o emprego do sufixo imprime maior força intensiva à ideia. Assim, «um homem riquíssimo» parece-nos mais opulento que «um homem muito rico». Mas, é claro, a intensidade depende mais ou menos do emprego do advérbio: dizer «um homem prodigiosamente rico» equivale mais ou menos a dizer «um homem riquíssimos. É bem conhecida aquela curiosa personagem do romance Dom Casmurro, o José Dias, que empregava o superlativo absoluto simples a torto e a direito, a pontos de morrer com um superlativo na boca, lindíssimo, referido ao azul do céu. Segumdo o autor, Machado de Assis, «era um modo de dar feição monumental às ideias; não as havendo, servia a prolongar as frases». O certo é que esta mania da superlativação originou aquele pitoresco incidente narrado espirituosamente pelo autor a pág. 229 da ed. de 1952: «- Mamãe... ?
-• Não! não! Que ideia é essa ? O estado dela é gravíssimo, mas não é mal de morte, e Deus pode tudo. Enxugue os olhos, que é feio um mocinho da sua idade andar chorando na rua. Não há-de ser nada, uma febre... As febres, assim como dão com força assim também se vão embora... com os dedos, não; onde está o lenço? Enxuguei os olhos, posto que de todas as palavras de José Dias, uma só me ficasse no coração: foi aquele gravíssimo. Vi depois que ele só queria dizer grave, mas o uso do superlativo faz a boca longa, e, por amor do período, José Dias fez crescer a minha tristeza».
148 M. RODRIGUES LAPA
A linguagem popular, em busca de maior expressividade, desconhecendo os advérbios cultos (consideravelmente, prodigiosamente, excessivamente, etc.) e achando desbotado e froixo o advérbio muito, inventou curiosos processos superlativantes, que a literatura imita com vantagem. Assim: «um homem podre de rico», «um homem rico a valer», «um homem rico até mais não», «um homem rico à beça», «mulher gorda que nem», etc. Um dos mais curiosos está no uso do diminutivo para efeitos de intensidade, como se mostra neste passo de Aquilino Ribeiro: «A alcatifa da terra, que se antemostrara verde-verdinha, revestia-se a todo o longo do vale de mil tons furta-cores.» (A Casa Grande de Romarigães, 267). Os escritores místicos também tiveram de inventar formas superlativantes, porque a língua usual era débil demais para exprimir os paroxismos do seu amor de Deus. Veja-se este trecho de um deles: «Bendita e louvada seja eternamente aquela muito mais que além de infinita e entranhavelmente amável bondade». Acumulando advérbios e adjectivos numa sucessão quase delirante, conseguiram o efeito almejado. A par dos superlativos em -issimo, que a língua tolera, embora avessa, em princípio, a palavras esdrúxulas, aparecem também formas alatinadas em -imo e -érrimo; facílimo, humílimo, stibtílimo, paupérrimo, acérrimo, etc. Essas são puramente literárias e, mesmo dentro da literatura, de uso pouco frequente. São construções mais ou menos artificiais, sem grande fumção expressiva, enfim, quase valores mortos para a arte do estilo. Por isso mesmo não é de estranhar que as formas cm -érrimo, pelo que têm de invulgares e malsoantes, sirvam para fins humorísticos. «O baile esteve chatérrimo», dirão dois rapazes em estilo de gíria. Monteiro Lobato usou o sufixo em casos como estes: a) «vestidos de soleníssimas sobrecasacas e com solenérrimos tubos de chaminé reluzentes nas cabeças». (O Presidente negro, 2.a ed., 288); ESTILÍSTICA DA LÍNGUA PORTUGUESA
149
b) «escorregou e caiu, patenteando aos olhos arregalados da sala a infamérrima víscera de má morte». (Cidades mortas, 7.a ed., 105). Mário de Andrade também o empregou ironicamente: «todo cheio de manchas e galos duma tremendérrima sova de pau». (Macumaima, 2.a ed., 81). Não podia deixar de lhe aproveitar o chiste um outro escritor brasileiro de grandes recursos expressivos, Guimarães Rosa: «Mas agora, maior mais real, directo - no lugar amplo e sem outras formas um homem sozinho, bébedérrimo, Badu.» (Sagarana, 5.a ed., pág. 52). E, enfim, um escritor português Brás Buriti, serviu-se dele com abumdância e espírito jocoso: «E quem mo houvera de dizer a mim, neste tristérrimo fim de vida, avô de quinze netos». O inadequado do seu emprego, em adjectivos que só comportam o sufixo -issimo, já diz o bastante sobre o carácter humorístico da expressão. Note-se porém que o próprio superlativo em -issimo implica por vezes um sentido mais ou menos jocoso, como se deixa ver deste gracioso trecho de Camilo, em que o grande escritor rnete a ridículo o efeito pedantesco da palavra comprida, tão repugnante ao génio da nossa língua: «V. tomou-se um pouco suspeito ao meu José Mendes com o estilo libérrimo das suas cartas inconvenientíssimas. Desculpe-me os superlativos. Hoje dá-me para aqui a mania. Todas as vezes que a minha imaginação se ocupa de alguma cousa grande, o meu estilo é sempre de doze sílabas por palavra. Neste
momento, é a reminiscência gravissimamente pejada de atrocíssimas leituras que me dispara estas grandes palavras, que são o refúgio dos articulistas de fumdo, quando as ideias escassíssimas não lhe nutrem a columa e meia da política por empreitada». (Dispersos, n, 351).
Aborrecendo essa desinência esdrúxula, contrária ao génio da língua, o galego rural teve artes de a encurtar,
150 M. RODRIGUES LAPA
convertendo o -issimo em ismo, como em moitismo, santismo, longuismo, tremenáismo, etc.: «Quê engado o daquela capela gorecida no seo de sombra dum teixo grandismo!» (Anxel Fole, À lus do candil, 77). «Nestas foi cando se ouviu, ò lonxe, um berro tremendis.mo.-i> (E. Blanco-Amor, A esmorga, 118). «co’as espigas por riba da cabeça / no carreiro longuismo dos adeuses». (Díaz Castro, Nimbas, 60). Aliás, esta tendência equilibradora do galego já se praticava no francês e provençal arcaicos, onde essas terminações esdrúxulas também foram reduzidas a graves: grandisme, fortisme, saníisme, altisme. 9. OS PRONOMES
l. O pronome pessoal. - Um dos caracteres que distinguem a nossa língua, se a compararmos, por exemplo, com o francês, é o pouco uso do pronome pessoal, nas formas chamadas de sujeito: eu, tu, ele, ela, nós, vós, eles, elas. É que as terminações verbais são suficientemente claras para dispensarem a menção da pessoa. Vejamos este pequeno trecho: «Não conheço pessoalmente esse indivíduo de quem falas. Não sabemos quem é, donde vem. Mas podeis estar certos de que será recebido condignamente: os hóspedes foram sempre bem acolhidos nesta casa; sentados à mesa comum, fazem parte da família». Neste período não há um único pronome pessoal, nem é preciso. Experimentemos contudo pôr os respectivos pronomes : «.Eu não conheço pessoalmente esse indivíduo de quem tu falas. Nós não sabemos quem ele é, donde ele vem. Mas vós podeis estar certos de que ele será recebido condignamente: os hóspedes foram sempre bem acolhidos nesta casa: sentados à mesa comum, eles fazem parte da família». Se compararmos os dois trechos, logo vemos que o segumdo está por demais sobrecarregado de pronomes. E logo sentimos que o emprego do pronome chama mais vivamente a atenção para a respectiva pessoa. É um processo enfático.
152 M. RODRIGUES LAPA
Um indivíduo muito cheio de si empregará com mais frequência o pronome eu. Desse facto se derivaram até os termos egoísmo, egocentrismo, etc., todos formados do vocábulo latino ego, que quer dizer «m». A fala dum conselheiro Acácio, homem que a si mesmo concedia grande importância, tende para um abusivo emprego do eu, como se vê destes passos, em que outros, que não ele, omitiriam talvez o pionome: <(Eu peço ao meu Savedra que não tire desse facto ilações erradas. Os meus princípios são bem conhecidos.» - «Eu não quero entrar em discussões políticas: só servem para dividir as famílias mais umidas.» •«Porque eu entendi que era o meu dever dedicar um tributo à memória da infeliz senhora.» O abuso do pronome pessoal, eu ou me, está explicado graciosamente neste trecho de Monteiro Lobato: «- Muito bem, senhor Ayrton Lobo! Sempre contei com a sua presteza, quando o senhor me andava a pé. Agora, que se deu ao luxo de um automóvel, gasta-me vinte e tantos dias numa simples cobrança e aparece-we com essa cara de cachorrinho que me quebrou a panela! Me, me, me, me... tudo para aquele homem se relacionava egoisticamente à sua pessoa...» (O Presidente negro, 194). 2. Fórmulas de modéstia, majestade e cortesia. - Como o tratamento de eu inculca importância pessoal, por vezes vaidade e orgulho, a língua descobriu meio de contentar aqueles que desejam apagar-se na modéstia e na humildade, fornecendo-lhes o tratamento de nós, isto é, empregando a l.a pessoa do plural em vez da l.a do singular. A esse respeito, é curioso observar o que se passou com os documentos da chancelaria dos antigos reis portugueses. ESTILÍSTICA DA LÍNGUA PORTUGUESA 153
Quando os soberanos tinham o bom costume de ouvir os povos, convocando cortes, especialmente durante o período que vai de D. João I até D. Afonso V, usavam nos documentos um estilo de modéstia: Nós, el-rei, fazemos saber... A fórmula quadrava bem com o espírito mais ou menos democrático das instituições medievais; o rei era uma espécie de emanação da vontade geral, eia, por assim dizer, o que o povo queria que fosse. De aí se compreende a austeridade do tratamento que a si pióprio se dava, que não excluía aliás uma certa grandeza. com D. João in aparece o absolutismo real. O monarca não dá satisfação dos seus actos, porque supõe-se enviado de Deus na terra. Tudo lhe deve obediência. Esta nova concepção do orgulho da realeza já não podia suportar a fórmula antiga do nós. A provisão de 16 de jumho de 1524 mandou mudar a l.a pessoa do plural para a l.a do singular. Passou a escrever-se - Eu, el-rei, faço saber... Diz o cronista, percebendo perfeitamente a razão estilística, que assim se fez «por ser mais próprio e decente à majestade real». O mesmo se dá com quem escreve. Todo o escritor que deseje obscurecer a sua personalidade e fumdir-se em simpatia com os seus leitores, empregará o plural de modéstia - nós. É também o estilo dos oradores e professores, que pretendem com isso diminuir a distância que os separa dos
ouvintes. Os altos prelados da Igreja usam ainda nos seus diplomas o pronome nós. Originariamente devia ser um tratamento de humildade; o chefe eclesiástico solidarizava-se com os seus fiéis dentro duma comumidade, de que ele era o mais graduado. com o andar dos tempos, crescendo a Igreja em poder e bens temporais, aquela partícula pareceu não um designativo de humildade, mas de grandeza e majestade, recobertas embora sob uma aparência de modéstia. A esse plural, e nestes casos, se chama «plural de majestade». Eça chamou-lhe com ironia «plural de casta nobre».
154 M. RODRIGUES LAPA ESTILÍSTICA DA LÍNGUA PORTUGUESA
155
Veja-se pois como a língua sabe empregar a mesma fórmula para fins diferentes e até opostos. Como expressão de modéstia cerimoniosa temos ainda o emprego da 3.a pessoa. É o que fazemos nos requerimentos, dirigidos a pessoas que sabemos de hierarquia superior. Não dizemos: Eu, Fulano de tal... peço... Seria brutal e descortês; nivelar-nos-íamos com a pessoa a quem endereçamos a petição. Empregamos pois a 3.a pessoa, banindo aquele orgulhoso eu e pondo simplesmente o nosso nome: Fulano de tal... pede... A fórmula tem ainda esta vantagem: falando na 1.a pessoa, poderíamos meter no requerimento sentimentos de paixão e violência, descabidos e até comprometedores. A 3.a pessoa acautela melhor a objectividade e a serenidade do discurso. É um processo de retenção social, de cortesia, atenuação imposta pelo próprio interesse e pela vida em comum. 3. Um pronome perdido: «vós». - Praticamente, na linguagem de todos os dias, já não existe em português o pronome vós, salvo no falar de algumas regiões portuguesas do Norte e da Beira. Aqui ainda se emprega na 2.a pessoa do plural. Exemplo: «Vós não tendes juízo, rapazes». Nas outras regiões do País, sobretudo para o Sul, este modo de dizer soa como arcaísmo e é geralmente substituído por: «VocÊs não têm juízo, rapazes». Logo, podemos afirmar que a 2.a pessoa do plural está praticamente perdida em português e é substituída geralmente pela 3.a do plural. Antigamente vós também se empregava como tratamento de cerimónia, substituindo a 2.a pessoa do singular. Um poeta dirigia-se a uma dama e desfechava-lhe este galanteio: Vós sois men bem e meu mal. Hoje este modo de dizer está abolido. Os poetas preferem tratar mais democraticamente as suas inspiradoras por tu, encurtando a distância entre um e outro. Note-se porém que, em certas regiões nortenhas, não há muito, se dava o fenómeno inverso com os namorados. Quando o namoro estava pegado, rapazes e raparigas, que se tratavam normalmente por tu, começavam a tratar-se cerimoniosamente por vós, para dar a entender aos outros que não havia entre si familiaridades comprometedoras. Mais um exemplo, entre tantos outros já alegados, da influência dos costumes na linguagem. Vejamos algums dos casos correntes do tratamento da 2.a pessoa, que reveste formas variadas, conforme as circumstâncias, e emprega no geral a 3.a pessoa do singular: 1. Há certo conhecimento ou familiaridade entre os interlocutores. A forma empregada é você, que está muito generalizada e é a forma do tratamento familiar no Brasil, com excepção de algumas regiões, onde se diz tu. Na província portuguesa, esse tratamento é considerado pouco respeitoso (costuma dizer-se: «você é estrebaria») e substituído por vossemecê (no Brasil vosmicê, vancê) que é, afinal, a mesmíssima coisa, pois você não é mais que uma condensação de vossemecê, ambos provenientes de Vossa Mercê. 2. Há pouca ou nenhuma familiaridade entre os interlocutores. Nesse caso o tratamento assume aspectos variados, conforme a categoria das pessoas a quem nos dirigimos. A forma geral é, nestes
casos, o Senhor. Exemplo: «O Sr. é injusto para comigo». Para acentuar mais a cerimónia usa-se a forma V. Ex.a Exemplo: «F. Ex.a verá aquilo que lhe convém». Nota o professor Carlos Góis que a expressão Vossa Excelência é rara no Brasil, por se opor aos sentimentos democráticos do povo. Donde se poderia talvez concluir que a sua manutenção entre nós, portugueses, indica uma certa sobrevivência dos costumes antigos, próprios de uma sociedade decadente. Enfim, se as pessoas têm título, menciona-se-lhes a categoria, acompanhada ou não de Senhor. Exemplos: «Vai
ESTILÍSTICA DA LÍNGUA PORTUGUESA
157 156 M. RODRIGUES LAPA
acompanhar o Sr. Doutor até à porta».-«O Fidalgo tinha-me quinta».
! prometido o arrendamento da
Não vale a pena alongarmo-nos, citando outras formas de tratamento da 2.a pessoa, que as há, muito variadas e sempre mais ou menos acomodadas às circunstâncias e condição social dos falantes. O que importa relevar é o desaparecimento do pronome vós e a sua substituição por formas da 3.a pessoa. Sendo assim, é conveniente não misturar as formas pronominais do singular com o verbo no plural, como fazem certos principiantes. Um exemplo: «Peço ao Sr. a fineza de me enviardes a 5.a lição e corrigirdes os exercícios da 4.a». Quem assim escreveu esqueceu-se de que Sr. é forma pronominal da 3.a pessoa e confundiu-a com o cerimonioso e antiquado DÓS. Deu-se um cruzamento entre a forma antiga e a moderna, o que se deverá sempre evitar. 4. A fonética e os pronomes. - O pronome átono da 3.a pessoa, o, a, os, as, está sujeito a certas alterações, quando se encontra em posição enclítica. Para bom entendimento deste facto, é necessário advertir que a forma antiga deste pronome era Io, Ia, los, Ias, ainda hoje subsistente na linguagem, como vamos ver. Quando dizemos; Quem poderá fazê-lo ?, essa forma antiquada aparece-nos em toda a sua evidência. Não é difícil explicá-la, pelo }ogo das leis fonéticas. Ao princípio, nos primórdios da língua, dissemos fazer Io; depois, aquele r assimilou-se ao i e passou a dizer-se e a escrever-se fazêllo, tudo pegado. Em seguida, houve a simplificação, fazêlo; depois, a separação do verbo e do pronome: f azê-lo. Aqui temos os motivos fonéticos por que as grafias amal-o, perdel-o, partilo são erróneas e próprias de quem não conhece a razão histórica dos factos. O pronome Io aparece pois na esciita e na pronúncia, sempre que a forma verbal anterior acaba em r, s ou z: amá-lo (= amar-lo), tu ama-lo (- amas-lo), ele/á-io (= faz-lo). Raul Brandão até usa a forma popular nortenha qué-los explicável por uma anterior, quer-los: «se há montes, qué-los (= quere-os) subir e calcar sob os pés». (Os pobres, ed. 1906, pág. 117). Esses fonemas, r, s, z, assimilaram-se ao l do pronome seguinte e, por isso mesmo, se perderam, fumdindo-se nele. Sempre que não intervêm aqueles fonemas, em boa regra não se devia dar a assimilação, não aparecendo a forma antiga do pronome. Contudo, os factos zombam das leis, a prática sobrepõe-se à teoria. Hoje, tanto se diz - Tu deixaste-lo partir, como - Tu deixaste-o partir. Ambas as maneiras são usuais: a última é conforme à regra; a primeira tem defesa na analogia. Assim como se diz, segumdo a regra - Tu deixa-lo partir, assim se ficou dizendo, por analogia com a 2.a pessoa do singular do presente do indicativo - Tu deixaste-lo partir. Por aqui vemos como esse demónio que é a analogia, importantíssimo na linguagem, escainece das normas assentes pelos gramáticos. Foi esse mesmo princípio da analogia que levou um grande escritor brasileiro, Graciliano Ramos, de modo esporádico, a estender o processo assimilatório ao próprio artigo: «difícil imaginá-las (= imaginar as) f rações de pessoas, misturadas, decompondo-se num monturo». (Infância, ed. 1945, pág. 196). É aliás o processo do galego actual, retintamente popular: «Vai levá-lo neno ao médico».
Quando a forma verbal termina em fonema nasal, dá-se também um fenómeno de assimilação, mas ao contrário. Vejamos estes exemplos: «Quanto ao prisioneiro, guardam-no bem». - «Põe-nos aí todos». Aquele no e aquele nos são desfigurações do pronome l o, los. Agora foi o l do pronome que se assimilou à nasal anterior e se converteu em n. Há quem procure evitar na escrita esta assimilação, preferindo guardam-o, põe-os. Há casos desses sobretudo em Ramalho Ortigão: «Colocaram-o sobre uma cadeira». (As Farpas, viu, 312). É forçar a nota e ir contra um uso, que tem razões poderosas no próprio mecanismo da língua viva.
158 M RODRIGUES LAPA
Quando a palavra antecedente não é forma verbal, então é legítimo e até corrente não fazer a assimilação. Disse Camões num verso célebre: Quem não sabe a arte, não na estima. E já o rei D. Afonso X, o Sábio, escrevera, 300 anos antes: «prometeu de en orden na meter». (Cant. de Sta. Maria, 251, est. 2). Hoje, podendo dizer-se assim, escreve-se geralmente: não a estima; assim como se escreve sem o ver, em vez de sem no ver; bem o sei, em vez de bem no sei. Contudo, escritores há que empregam a forma popular. Por exemplo, Camilo: «Eu não no consentia a meu marido»; Lima Barreto: «Não haveria quem não nas atribuísse ao Conselheiro Acácio»; Raul Brandão: «Quem na via passar, de chalé a rastos»; e o moderno José Régio: «Os olhos das pequenas bem no diziam». 5. O pronome reflexo «si». - Segumdo as regras gramaticais, o pronome reflexo si há de referir-se sempre ao sujeito, quer esteja no singular, quer no plural. O uso vem de longa data. Dizia um poeta antigo português, do tempo do rei D. Manuel: 1. O cuidado que mais ousa e que mais confia em si. 2. Que mal-avindos cuidados me tomaram entre si! No primeiro e segumdo caso vemos perfeitamente as formas reflexas de ele, eles. Está tudo em regra: o pronome refere-se ao sujeito. Há casos porém complicados, que desafiam a lógica dos gramáticos. Suponhamos que alguém, muito infeliz, desafoga as suas desgraças e diz para outro: «O infortúnio fez de mim um triste farrapo humano. Nem mesmo a honra, tão estimada dos felizes, existe já para ESTILÍSTICA DA LÍNGUA PORTUGUESA
159
Este discurso chama-se directo; os pronomes estão naturalmente na l.a pessoa, c o que se diz tem o calor das coisas pioferidas pelo próprio, saídas directamente do coração. Se um outro quisesse exprimir a substância do discurso, modificaria o trecho neste sen f ido: «Declarou então que o infortúnio fizera dele um triste farrapo humano, que nem mesmo a honra, tão estimada dos felizes, existia já para ele». Neste discurso, chamado indirecto, introduzimos a conjumção integrante, os pronomes puseram-se na 3.a pessoa, e os tempos verbais passaram do perfeito para o mais-que-peifeito e do presente para o imperfeito. Perdeu-se o ardor sentimental do discurso directo; agora o narrador procura contar os factos objectivamente, com serenidade. Os escritores inventaram porém um curioso processo, que consiste numa mistura dos dois discursos. Suponhamos que esse infeliz está falando consigo mesmo, meditando nas suas desgraças. Então o narrador insensivelmente, tende a intrometer-se nos seus sentimentos, por um movimento de simpatia. Perde-se propriamente a noção de quem fala, se é o autor, se é o protagonista:
«O infortúnio fizera de si um tiiste farrapo humano. Nem mesmo a honra, tão estimada dos felizes, existia já para si». A este processo chama-se discurso semidirecto ou discurso indirecto livre. Diverge do discurso indirecto em não mencionar os verbos declarativos (dizer, declarar, etc.) e conjumções integrantes, e em usai as formas reflexas do pronome. Por ele temos a impressão de que quem fala ou medita se desdobra sobre si mesmo e narra e sofre ao mesmo tempo a acção. De aí, o emprego do reflexo. Esta construção tem sido condenada pelos puristas, como contrária às regras do pronome si, que se tem de refe-
160 M. RODRIGUES LAPA
rir sempre ao sujeito. Há ums anos atrás, a propósito de um prémio literário da Academia, foi censurado ao autor premiado o vicioso emprego desse pronome. Os senhores académicos não se lembraram de que numa oração de discurso semidirecto há propriamente dois sujeitos - o sujeito gramatical e o sujeito psicológico, que é o autor do discurso. Logo, o pronome verdadeiramente refere-se ao sujeito psicológico e tudo fica certo. Considere-se este passo do Amadis de Gaula, no qual o rei Lisuarte medita sobre os negócios da sua vida: «Bem sabia que, embora Amadis ficasse por seu filho e sua filha mui honrada com ele, ficaria também acima de si, do imperador de Roma, do Rei Perion e de todos os outros grandes senhores.» Se déssemos ouvido aos gramáticos, teríamos de escrever «acima dele»; mas daí resultaria um equívoco de sentido, que se evita perfeitamente, referindo o pronome ao sujeito psicológico, ao autor da meditação. Veja-se porém este trecho dum jovem escritor dos nossos dias: «O António Marques escutava-o, distraído. No livro de «cães» o seu nome tinha domínio. Mas a loja estava sempre aberta para si». Aqui devia escrever-se «para ele». A forma si só seria legítima, se se tratasse de discurso semidirecto; mas ainda assim compreendemos bem que o si resulta de um processo lírico - o atribuir-se ao António Marques a meditação sobre a sua sorte. 6. O pronome possessivo. - Um dos principais problemas que desperta o pronome possessivo é o de saber-se quando deve vir ou não acompanhado de artigo. Casos há em que o uso do artigo corresponde a um propósito expressivo muito claro. É o que se dá neste exemplo: 1. Este livro é meu.
2. Este livro é o meu. ESTILÍSTICA DA LÍNGUA PORTUGUESA
161
No 1.° exemplo insistimos na posse, portanto no possuidor, como se disséssemos: «Este livro pertence-me a mim». No 2.° exemplo, a presença do artigo tem como resultado chamar a atenção para o objecto possuído, fazendo supor a existência de outros objectos não pertencentes ao sujeito. Aqui, o possessivo fumciona propriamente como pronome. Vejamos algums casos em que fumciona como adjectivo. Um gramático brasileiro, muito distinto, o Prof. Said Ali, teve o cuidado de fazer uma estatística, de onde se prova a gradual frequência do artigo antes do adjectivo possessivo, desde os mais antigos escritores. Fernão Lopes só em 5 % dos casos usa o artigo definido, Camões em 30 %, Vieira em 70 % e Herculano em mais de 90 %. Logo, estamos habilitados a assegurar que uma frase como esta, que anteriormente a Camões se dizia geralmente assim: fez SUA oração e partiu logo, hoje se usa deste modo: fez Á SUA oração e partiu logo. Temos pois de admitir que, de um modo geral, a língua de hoje reconhece o emprego expressivo do artigo antes do adjectivo possessivo. Há excepções. Vê j amos as principais: l. Nos nomes de parentesco, sobretudo no mais íntimo, há tendência para omitir o artigo. Exemplos:
Meu pai censurou-me. - Minha mãe resignou-se. É possível que isso se deva ao costume de mencionarmos esses nomes no vocativo: ((Minha mãe, quando devo sair?» - Ó meu pai, já viu as horas?» Seria um caso de analogia: transferiu-se para os outros dizeres a prática usada no vocativo. Este emprego ainda constitui hoje um dos problemas intrincados da Estilística. O velho dicionarista Morais pronumciou-se sobre o caso, e a sua opinião merece ser registada, pelo que pode conter de verdade. Segumdo ele, omitia-se o artigo antes do adjectivo possessivo, quando o substantivo a que este se jumta significava uma individualidade única, que excluía outra de modo absoluto. Por isso se justificavam as locuções «teu pai», «minha mãe», etc. Não 11 - Estilística
162 M. RODRIGUES LAPA
tendo cada indivíduo senão um pai, o artigo seria dispensável, porque o pronome determinava por si mesmo o substantivo de uma forma exclusiva. Quando porém o substantivo tinha uma significação menos determinada ou menos exclusiva, já a frase se podia construir com ou sem artigo: «Venho de ou da minha casa». A opinião de Morais é fumdada sobre o que já dissemos: o artigo anteposto ao pronome tende a particularizar o objecto, a diferençá-lo dos outros. Quando dizemos «meu pai», não precisamos de particularizar uma pessoa que vale por si só, que é única; mas teremos de o fazer quando aludimos a uma entre outras. Por isso: «o meu irmão José». Queremos distinguir José de entre os outros irmãos. 2. Nos grupos fraseológicos tradicionais também se compreende a omissão do artigo: em poder de, em nome de, a cargo de, em minha opinião, em meu entender, por vontade de, etc. Se usarmos o possessivo, não poderemos, em boa linguagem, empregar o artigo. Assim, não diremos: - O limo está no meu poder, mas está em meu poder, não lançou-se aos seus pés, mas a seus pés. Os principiantes têm certa inclinação para infringir este preceito, baralhando as coisas. O pronome possessivo assume por vezes significações que pouco ou nada têm que ver com a posse. Vejamos os principais desses casos, que oferecem certa delicadeza estilística : 1. Pode denotar familiaridade e um certo sentimento de superioridade. O Conselheiro Acácio trata os seus amigos por o nosso, o meu. Exemplos: «O nosso Jorge opina pelo cozido». - «Não acha, meu bom Sebastião ?» Quando Acácio diz nosso, está em meio de um grupo de pessoas de que ele se supõe ser a figura mais relevante. Quando diz meu, o possessivo na l.a pessoa acentua a importância do sujeito, ESTILÍSTICA DA LÍNGUA PORTUGUESA
163
que consente descer a uma atitude de familiaridade. Na 3.a pessoa pode assumir valor idêntico e exprimir a ufania da propriedade condescendente: «O emigrado e Melchior constituíam a Artur uma pequena corte: gostava de os ver à sua mesa, bebendo-lhe o seu conhaque, cortejando-lhe a sua amante»-(A Capital, l.a ed., pág. 463). Note-se que o próprio Eça sublinha o possessivo para lhe atribuir esse matiz de significado. 2. Significa o acto ou sucesso habitual. melhor».
Exemplo: «O doente teve o seu ataque; mas agora está
3. Emprega-se na 2.a pessoa, na linguagem exaltada, significando que quem fala não tem culpa nos males que refere. Exemplo: «Repara na má educação do teu filho!» - dirá um marido irado para a sua mulher, a quem acusa de estragar com mimos a criança. 4. Usa-se em exclamações, com forte sentido recriminativo. Exemplos: Seu traste! - Sua desavergonhada! Meu mentiroso! 5. Equivale a um pronome ou expressão indefinida (algum, certo, aproximadamente, etc.). Exemplos: «Faz sua diferença». - «Terá os seus três metros». - «A obra tem seus defeitos». -
«Tenho as minhas dúvidas». 6. Exprime certa malícia e ironia familiares. Exemplo: «Vem cá, meu patriota, pensaste nas tuas responsabilidades ?». 7. Tem, para quem narra, um valor pitoresco, demonstrativo: «Voltavam à sua terra os meus cinco lutadores» (Garrett), isto é: os lutadores de que estou tratando, que mencionei acima. Parece haver aqui, com uma certa suficiência, uma leve sombra de humorismo. 8. Veja-se, enfim, este emprego curioso e anormal do possessivo seguido do infinito, em Fernando Pessoa: Pobre de anseios teu ficar nos bancos, olhando a hora como quem sorrisse...
164 M. RODRIGUES LAPA
A expressão equivale a uma frase exclamativa e procura, ao que parece, traduzir uma atitude extática. É como quem dissesse: «Como tu ficas, pobre de anseios, nos bancos... l» Os puristas condenam o abuso do possessivo como contrário ao génio da língua, da língua clássica, já se vê. Abusos são sempre de evitar; mas o seu emprego inteligente valoriza o estilo, porque o possessivo, com funções adjectivais, é, ou pode ser, um bom elemento de caracterização. Nada mais elucidativo, a esse respeito, do que observar as emendas que Eça de Queiroz introduziu no texto da novela Singularidades duma rapariga loura, publicada pela primeira vez em 1874: 1. «Foi neste ponto que Macário me disse com a sua voz singularmente sentida.» 2. «Mas isto bastou ao seu espírito tecto e severo para o obrigar a toma-la como esposa.» Os pronomes possessivos foram introduzidos depois, na edição definitiva, e não há dúvida que melhoraram estilisticamente o texto. 7. O pronome demonstrativo. - Também o pronome demonstrativo suscita curiosos problemas estilísticos. Apresentamos este caso, que se passou entre um gerente de firrna comeicial estrangeira e um seu secretário português. Redigiu este uma carta nos seguintes termos: «Dada a situação do parente de V. Ex.a, tenho a impressão de não lhe ser possível nem conveniente tomar uma colocação, onde só daqui a 4 anos estará realmente fixado, e mesmo nesta altura recebendo apenas um ordenado à justa para as necessidades mínimas da vida, em Lisboa». ESTILÍSTICA DA LÍNGUA PORTUGUESA 165
O gerente, lendo a carta do empregado português, teve dúvidas e alegou que a expressão «nesta altura» só poderia significar «no momento presente». O secretário respondeu que a construção era perfeitamente legítima, mas não deu razões que convencessem o homem de negócios, amante da lógica e da clareza. A verdade é que ambos tinham razão; o português tinha uma razão subtil, que escapava ao estrangeiro, não familiarizado com as delicadezas do idioma. Quando se enumcia um acontecimento futuro, a fantasia e o sentimento permitem determinar esse facto como já presente; o mesmo sucede com o passado, que a imaginação pode actualizar. No passo em questão, nesta altura presume os 4 anos já passados: o futuro tomou-se momentaneamente presente; daí, o justificado emprego do pronome esta, em lugar de essa, que também serve para o caso e talvez fosse mais claro. Simplesmente, o uso de essa é mais intelectual; o de esta obedece mais à fantasia que aproxima os objectos, afastados pela distância c pelo tempo. É muito curiosa a inversão que se dá dos valores de este e esse no falar e na escrita brasileira. Ora encontramos esse por este, como no seguinte passo de Jorge Amado (São Jorge dos Ilhéus, 5.a ed., pág. 273), bem representativo pela contiguidade do advérbio aqui: «fazia tudo para alegrar a vida da gente aqui, nesse deserto»; e neste de José Lins do Rego (Água-mãe, 4.a ed., 256): «Minha mãe,
a senhora é boa demais para ouvir essas coisas. A senhora não merece saber dessas misérias.» Ora se dá o contrário: este ocupa o lugar de esse, como se vê no mesmo romance (pág. 290), depois de um conto maravilhoso contado por Filipa ao seu neto, em que se fazia menção de um bálsamo que sarava as feridas: «Que bálsamo era este, mãe Filipa?» Tanto no primeiro como no segumdo caso, os usos do português de Portugal são contrários aos do português do Brasil; e tudo
M. RODRIGUES LAPA
se deve levar à conta da imaginação, que ora distancia ora aproxima as coisas de que se está falando. O pronome este, por significar maior proximidade do objecto, tem carácter mais pictural. É talvez devido a isso que os Clássicos o usavam até como advérbio de modo, segumdo se vê deste passo de Fernão Mendes Pinto: «Se o banquete é de mulheres... também o serviço pela mesma maneira é de mulheres e de moças virgens muito fermosas e muito ricamente vestidas, em tanto que por serem elas estas (= assim), se casam aqui com elas muitas vezes muitos homens nobres.» (Peregrinação, cap. 106). O demonstrativo desempenha também papel importante com referência a pessoas ou objectos mencionados anteriormente. Se é um só objecto, emprega-se de ordinário o pronome este ou mesmo. Exemplos: «Puxou tanto o prego, que este se desprendeu». - «Enviamos-lhe o artigo, após pedido do mesmo, feito por V. S. há 15 dias». Se são dois os objectos, usa-se este para o mais próximo, aquele para o mais distante. Exemplo: «Foram lá pai e filho: este com um cesto de pêras, aquele com um saco de nozes». Esta regra porém tem excepções. Por vezes usa-se este em vez de aquele, quando se atribui maior valor ao que está mais afastado. Vejamos o seguinte passo de Garrett: «Ao pé destes cinco e de altercação com eles - lá direi porquê estavam seis ou sete homens que em tudo pareciam os seus antípodas. Em vez do calção amarelo e da jaqueta de ramagem que caracterizam o homem do forcado, estes vestiam o amplo saiote grego dos varinos e o tabardo arrequifado siciliano de pano de varas. O campino, assim como o saloio, tem o cumho da raça africana; estes são da família pelasga: feições regulares e móveis, a forma ágil.»
Seria mais conforme à regra empregar aqueles, poi aludir aos varinos, mais afastados; mas a atenção do escritor ESTILÍSTICA DA LÍNGUA PORTUGUESA 167
e do leitor está posta sobre os varinos, são eles que estão no primeiro plano; logo, estes. Se são mais de dois, recorre-se a outros processos. Geralmente usam-se os ordinais, que também podem substituir este e aquele. Veja-se o trecho de Teixeira-Gomes: «O movimento da praia é contínuo e intenso: soldados de artilharia de umiformes e capacetes brancos; marinheiros de fardamento azul, simples, elegante e bem talhado: oficiais à paisana: e os malteses das comedorias, enroupados de linho sujo: os primeiro’; hirtos e desdenhosos; os segumdos engomados e escovados como se saíssem das mãos do alfaiate; os oficiais em flanelas cinzentas de turista; e os últimos com o seu ar calabrês de cabilas em traje europeu.»
Enfim, resta dizer que o demonstrativo também exprime outros valores, por vezes afectivos. Exemplos: ((Aquele André! que flor! que rapaz!» - ((Aquilo é que é teimoso!» - «Isto de negócio,
não é para todos». - «Isto são horas de fechar». - «Essa é que é essa/» Em particular, o pronome aquilo admite em muitos casos uma significação claramente pejorativa. Conhece-se o dito popular: «Aquilo, na minha terra, é...» E remata-se com um palavrão pouco limpo. Esta capacidade de alusão a fealdades, horrores e coisas pouco asseadas ressalta deste passo de Vitorino Nemésio, autor de Mau tempo no Canal: «Uma escada de cantaria, gradeada de ferro à maneira das sepulturas, descia do jardim a uma loja de arrumações. Ao fumdo uma pipa, caixotes, um avião. Quando Januário levantava a cabeça, do quarto para o lado do jardim, via aquilo.it Como quem dissesse, ironicamente: «via aquela linda coisa».
168 M. RODRIGUES LAPA
Em Mário de Andrade chega a apontar mentalmente o sexo feminino ou o acto da cópula: «quando esteve uma vez com a corda na garganta por causa do médico, pedindo aquilo, ou vinte bagarotes pela cura do pé arruinado» - (Os contos de Belazarte, 4.a ed., pág. 110). É possível que o significado piorativo de aquilo tenha resultado precisamente do seu emprego em tom irónico. Essa ironia, de carácter bem pumgente, aparece nitidamente neste passo do escritor clássico Diogo do Couto, ao narrar as desgraças do naufrágio da nau «S. Tomé», fáceis de evitar, se se tivessem tomado certas precauções, que ele aponta: «Mas os pecados taparam os olhos a todos para não entenderem isto e se perderem aqueles que nasceram para aquilo.» Por isto deve-se entender «as precauções que estou referindo»; por aquilo «os horrores do naufrágio atrás descrito». Machado de Assis oferece-nos um trecho curioso, em que ressalta flagrantemente o carácter desdenhoso do pronome: «À porta, parou um homem, entrou, e olhou com interesse para o retrato. O lojista reparou na expressão; podia ser algum miguelista, mas também podia ser um coleccionador... - Quanto pede o senhor por isto ? - Isto? Há de perdoar; quer saber quanto peço pelo meu rico Senhor D. Miguel?» (Esaú e Jacó, ed. de 1955, pág. 104). Também isso pode ser empregado com sentido pejorativo, como se vê deste trecho de Ferreira de Castro: «Libânio, ao passar jumto dele, cuspiu para o chão: - Vais comer isso? Aquele «isso» estava cheio de repugnância. Aniceto não respondeu» (A lã e a neve, 2.a ed. pág. 114). ESTILÍSTICA DA LÍNGUA PORTUGUESA 169
Claro que a atmosfera e a entoação desempenham neste caso um papel importante; são elas que imprimem à expressão o verdadeiro significado. Pode ainda o demonstrativo ser a tradução oral de um gesto e significar pequenez, como neste passo: «imóvel, sentado na tripeça, não falando um isto» (Mário de Andrade, Macumaíma, 74). Em isto, no sentido de «coisa ínfima», estamos vendo o gesto de indicar uma porção mínima do dedo; e assim se gerou um curioso processo de negação. 8. O pronome relativo. - É preciso cuidado com o emprego do que. Uma frase que tenha muitas destas palavras, quer se trate de pronomes relativos, quer de conjumções, é insuportável de aspereza e tem um ar contrafeito, que o bom estilo repele. O escritor cuidadoso da harmonia da frase sabe evitar essa impertinente repetição do que por várias maneiras. Suponhamos este enumciado: «Esteja certo de que trata com um amigo que tem vontade de lhe ser útil». Uma revisão escrupulosa, com
pente-fino, como dizia Eça de Queiroz, substituiria aquela oração relativa pelo adjectivo correspondente: «com um amigo desejoso de lhe ser útil». Assim, ficaríamos livres de um que. Outro processo é o de substituir que por quem, o qual, a qual. Este último pronome, além de evitar a monotonia, tem a vantagem de poder desfazer equívocos. Veja-se esta frase: Agora é o professor que afirma que o inspector é incompetente». Se modificarmos o relato, já a frase soa melhor: «... é o professor quem afirma que o inspector é incompetente». Uma frase de Venceslau de Morais: «Do nosso exame pode ser que resulte algum lampejo de verdade, o qual venha iluminar o caminho tortuoso de conjecturas.» O pronome que teria a desvantagem de repetir desagradavelmente o outro que e de criar um pequeno equívoco, por se poder referir tanto a lampejo como a verdade.
170
M. RODRIGUES LAPA
Por vezes, recorre-se à pontuação, para suprimir essa enfadonha partícula. Veja-se esta frase embaralhada de um aprendiz de redacção: «O mesmo se dá naquelas duas frases, em que eu julgo que na primeira se alude à personalidade moral, ao contrário do que sucede na segumda, em que se pretende avultar a forma física». Se quiséssemos lançar claridade e harmonia neste período, procederíamos assim: «O mesmo se dá naquelas duas frases: na primeira julgo que se alude à personalidade moral; na segumda, pelo contrário, pretende avultar-se a forma física». Baniram-se todos os pronomes relativos e só ficou uma conjumção integrante. Trabalhou bem o pente-fino. Outras vezes ainda, o escritor tem artes de substituir o que, empregando o demonstrativo. Veja-se esta elegância do estilo de Teixeira-Gomes: «A luz do dia, por fim, sempre côa pelas portadas das casas, alumiando suficientemente o interior dos pátios, vastos estes e cercados de galeria, à moda árabe.» Engenhosa maneira de dispensar o que, onde ele não era propriamente um estorvo (= que são vastos). Enfim, modos de substituir essa incómoda palavrinha, incaracterística e malsoante. Note-se que já no português arcaico se sabia evitar a dureza do que, substituindo-o pela conjumção copulativa, como se vê deste passo do Orto do Esposo: «Em Atenas havia um filósofo, e tinha consigo um seu discípulo.» Não vá porém o leitor estudioso cair numa espécie de superstição contra o que, evitando-o a torto e a direito, como aquele homem de quem nos fala Graciliano Ramos: repreendido pelo grande escritor de se exceder no uso malsoante da palavra, caprichou em escrever à mulher uma carta onde não se lia um só que (Memórias do cárcere, i, l.a ed., 77-78). Por vezes, pode ser um elemento expressivo, como nesta frase: «Aquele homem é engraçadíssimo: não se imagina que coisas que ele diz!» A língua antiga abusava do pronome relativo; mas um escritor de génio como Fernão ESTILÍSTICA DA LÍNGUA PORTUGUESA 171
Lopes também o sabia empregar para dar realce e intensidade à imagem, como nesta descrição do cerco de Lisboa: «Andavam os moços de três e quatro anos pedindo pão pela cidade por amor de Deus, como lhes ensinavam suas mães; e muitos não tinham outra cousa que lhes dar senão lágrimas que com eles choravam, que era triste cousa de ver.» E como nestes dois versos de Camões, nos quais a sucessão vertiginosa dos «quês» parece marcar a prontidão incondicional da entrega: «Assi que alma, que vida, que esperança / e que quanto for meu é tudo vosso.» O mesmo efeito expressivo procura José Régio no verso seguinte (Fado, l.a ed., 137), que transcrevemos em itálico: Vago na sombra e na bruma, se é homem, ou se é mulher difícil é de dizer
quem quer que é que a noite esfuma.
A energia que resulta para o discurso desta forte martelada do que, vê-se aliás destas expressões: «Tem de ficar». - «Tem que ficar». Estilisticamente, estas formas não são iguais. O que traduz melhor a intimativa do que o de. É como se déssemos um forte murro na mesa a apoiar a declaração. 9. O pronome interrogativo. - Ainda aqui nos aparece, como problema fumdamental, o emprego do artigo definido antes do interrogativo que. Os puristas geralmente condenam o uso do artigo, em frases como esta: «O que fazes tu aí?» bom português será, dizem eles:
172 M. RODRIGUES LAPA
este passo de Eça de Queiroz, em A Relíquia: «Pilatos considerou-o um momento, pensativo; depois, encolhendo os ombros: - «Mas, homem, o que é a verdade?» Se tirarmos o artigo, verificamos que a interrogação perde certo valor expressivo e a frase sofre um pouco no seu ritmo. Aliás, o emprego do artigo está hoje explicado, por uma questão de analogia. Começando a dizer-se - Vais lá fazer o quê P, é natural que se entrasse a dizer, contra o uso clássico: O que vais tu lá fazer? Em conclusão: possuímos felizmente dois meios expressivos para formular a interrogação directa. Usemos deles como bem nos parecer, tendo em conta apenas o benefício da expressão. 10. O pronome indefinido. - A própria denominação diz o suficiente sobre o tom de imprecisão e misteriosa vaguidão que caracterizam este pronome. Os grandes escritores têm ainda o poder de fugir aos consagrados esquemas gramaticais e, pelo uso de locuções, acentuarem o indefinido das coisas e das circumstâncias. É, por isso mesmo, uma expressão altamente adequada à poesia. Vejase este pequeno trecho de Machado de Assis: «Lua cheia, água quieta, vozes confusas e esparsas, algum tílburi a passo ou a trote, segumdo ia vazio ou com gente. Tal ou qual brisa fresca». (Esaú e Jacó, ed. de 1955, pág. 142). Que quer dizer aqui tal ou qual? O caso é delicado e presta-se a dúvida: justamente a indeterminação, a indefinição que pretende sugerir o autor. Sentimos porém que há nessa locução pronominal duas notações, pelo menos: uma de tempo («De vez em quando soprava uma brisa fresca») outra de qualidade e intensidade («A brisa era suavemente fresca»). De um modo condensado, hoje talvez um pouco rígido, o escritor brasileiro soube expressar o fluir vago, delicioso e poético da aragem numa bela noite de luar. ESTILÍSTICA DA LÍNGUA PORTUGUESA 173
A dúvida estilística mais importante que suscita hoje o pronome indefinido é o seu emprego e colocação em frases negativas. Nos primeiros tempos da língua, para esses casos usava-se o indefinido negativo nenhum, antecedendo o substantivo. Exemplo: «Não há nenhuma cousa de que sinta receio». É ainda hoje a forma popular e corrente. Como havia na frase duas negações (não e nenhuma) constituindo pleonasmo, os escritores, amigos da lógica e do que supumham ser elegância, começaram a favorecer o emprego de algum na frase negativa. E assim a frase foi modificada: «Não há alguma cousa de que sinta receio». Já no século xiv aparecem construções deste tipo em textos literários. Por exemplo, no Orto do Esposo escreve-se: «Nom lhe fazem algum embargo». - «A alma nom acha cumprimento em algua cousa». Em breve se verificou que o pronome precedendo o substantivo acentuava por demais a ideia afirmativa. Pôs-se depois, e conseguiu-se com esta deslocação um bom efeito expressivo: «Não há cousa alguma de que sinta receio». Aqui temos, em termos simples, como se deu a evolução. O emprego de nenhum tem carácter popular, o de algum, carácter moderno e literário. É bom usar os dois, conforme as circumstâncias e segumdo as preferências de momento. A língua é muito rica em meios expressivos. Saibamos empregá-los todos, a seu tempo, para dar variedade ao que escrevemos. Os puristas têm a ruim tendência para considerarem uma só forma correcta. Se nos convencermos do contrário, é meio caminho andado para chegarmos a escrever bem. E tiremos de tudo isto esta conclusão segura: a Estilística, preconizando a liberdade criadora, está muitas vezes em conflito com as regras
da Gramática, que se apoia nos ditames duma tradição empedernida
10. O VERBO
1. O verbo substantivo. - É bem conhecido de todos que certos substantivos, como o jantar, o dever, o agente, o ouvinte, o guisado, o cozido, etc., são formas verbais cristalizadas. Perdeu-se a noção do acto verbal; aquelas palavras são tidas como verdadeiros substantivos, sujeitando-se pois às regras que governam esta espécie de vocábulos. Esses antigos infinitivos e particípios têm, como qualquer substantivo, o seu plural: os jantares, três ouvintes, dois cozidos. Há porém casos em que a língua pode substantivar o infinitivo, sem que essa forma perca a sua natureza verbal. Vejamos este exemplo, que constitui um curioso provérbio popular: «Até ao lavar dos cestos é vindima». Aqui, lavar, sendo morfologicamente um substantivo, pois está precedido do artigo definido o, conserva o seu dinamismo verbal e corresponde mais ou menos a esta fórmula: «Até que se lavem}). Poderíamos substituir a forma infinitiva por um nome: - Até à lavagem; mas, se repararmos bem, a frase perde em energia e movimento: o simples substantivo não exprime tão bem o acto de «lavar». Os nossos escritores clássicos usaram largamente do infinito nominal. Veja-se esta frase de Vieira: «O polvo, com aquele não ter osso nem espinha, parece a mesma brandura.» Não podemos deixar de reconhecer a força, o pitoresco e o condensado desta expressão. O escritor moderno não escreve assim; parece assustá-lo o emprego da negativa e do adjectivo ESTILÍSTICA DA LÍNGUA PORTUGUESA 175
demonstrativo antes do infinito. Se hoje quiséssemos exprimir aquela ideia, diríamos de qualquer destas maneiras: 1. O polvo, pelo facto de não ter osso nem espinha, parece a própria brandura. 2. O polvo, faltando-lhe osso e espinha, parece a própria brandura. 3. O polvo, por ter falta de osso e espinha, parece a própria brandura. 4. O polvo, com aquela falta de osso e espinha, parece a própria brandura. Nada nos custará reconhecer que, a este respeito, a língua clássica levava vantagem à actual, e que é talvez para lamentar que perdêssemos esse modo de expressão, que o galego aliás ainda conserva, com a audácia expressiva de usar o infinito na forma pronominal: «Dispuxo que o agardaran ali hastra o primeiro derretêrese da neve.» (R. Otero Pedrayo, O senhorita da Reboraina, 115). Aqui, o infinito como que se incorpou com aquele e paragógico, para fazer as vezes de substantivo. Não há dúvida que o português do Brasil e Portugal, enfreado pela Gramática, ainda não chegou a este apuro de expressão. Ainda hoje, porém, sempre que o escritor quer representar o movimento, a acção contínua, usa o infinito substantivado, como neste passo de Eça de Queiroz: «pobre e subalterno, a sua vida é um constante solicitar, adular, vergar, rastejar, aturan. Se nos déssemos ao trabalho, inútil, de substituirmos os verbos pelos substantivos cognatos (isto é, da mesma família, da mesma raiz), arranjaríamos solicitação, adulação, rastejamento, mas ver-nos-íamos
embaraçados perante vergar e aturar que não têm substantivos derivados, pelo menos
176 M. RODRIGUES LAPA
na linguagem usual. Não iríamos improvisar desastradamente, como fazem algums desajeitados, um vergamento ou vergação, um aturamento ou aturação, que não têm uso corrente na língua. Mas, ainda que fossem permitidos, não substituiriam de modo nenhum o vigoroso e expressivo emprego do verbo substantivo, que tão bem sabe representar a mobilidade e continuidade da acção. A incompreensão deste facto tem levado a despropósitos, tanto mais lamentáveis quanto é certo tratar-se de actos oficiais. Nos letreiros da polícia portuguesa de trânsito já se lê: «É proibido o atravessamento pelas placas centrais». Como não podiam escrever travessia (aliás, empregado por Graça Aranha, em travessia da mata), porque o nome evoca coisas do mar, inventaram aquele monstrozinho. Não lembrou ao digno fumcionário policial qualquer coisa como isto, de muito melhor gosto e estilo: «É proibido atravessar (ou passar) pelas placas centrais». Esta formação de substantivos em -mento vem de longe. Já nos livros do infante D. Pedro e de Fernão Lopes, no século xv, encontramos encaminhamento, regamento, satisfazimento, tapamento, perdimento, apanhamento, desterramento, falamento, avisamento, etc. Nenhuma dessas derivações perdurou, por demasiado longas e contrárias ao génio da língua, que prefere, como se vc, as formas curtas: rega, apanha, desterro, etc. Contudo, Monteiro Lobato teve a coragem de propor formações como atrapalhamento, maravilhamento, empolgamento (Negrinha, 264-266). Temos pois que, além do seu valor estilístico, a substantivação do infinitivo é uma necessidade imposta à língua pela sua falta de nomes derivados. Vejamos ainda esta frase dum autor contemporâneo: «Não atires à face desse pobre cantor das ruas o fechar desapiedado da tua janela.» Hoje vai-se dizendo fecho entre nós; mas essa forma tem um inconveniente: exprime não só o alto de fechar mas ainda o próprio instrumento, a fechadura. ESTILÍSTICA DA LÍNGUA PORTUGUESA 177
Por isso, no Brasil se adoptou sem dificuldade o termo fechamento, como se vê em Raul Pompéia: «portas votadas a. fechamento para sempre» (O Ateneu, pág, 72). Poderemos recorrer, é certo, a um termo sinónimo - o encerramento; mas, como já dissemos num capítulo anterior, uma forma diferente importa sempre significado mais ou menos diferente, e a palavra derivada não pode cabalmente traduzir a acção expressa pelo infinito do verbo. Esta forma, não há dúvida nenhuma, é um poderoso recurso de estilo. Os românticos, e muito em especial Herculano, tiveram por ela verdadeira predilecção. Na verdade, se o infinito traduz a mobilidade, nada melhor do que essa forma para exprimir a agitação, a inquietude da alma romântica. Eis algums exemplos, colhidos no autor do Enrico: «Parecia envolto em fumdo pensar». - «Quem me responde por ele é o seu dormir profumdo». - «Então resta o fugir». - «Naquele rosto apenas se conhecia o viver no profumdar das duas r ugas frontais». - «Ele bem sabia que se seguia o morrer». Fernando Pessoa, o grande poeta modernista, também usou largamente dessa forma, em condensações atrevidas, que são o desespero do gramático: «Atravessa o eu não poder vê-la uma mão enorme». -«Abrem mãos brandas janelas secretas / e há ramos de violetas caindo / de haver uma noite de primavera lá fora / sobre o eu estar de olhos fechados...» «Alegra-me ouvir a chuva,
porque ela é o templo estar aceso». Não é usual a pluralização do verbo substantivo. Contudo, de quando em quando, aparece, como nestes exemplos : «era um homem de teres»; «ter os seus dares e tomares com alguém». Aqui porém já o sentido verbal aparece menos nítido; a fumção verbal cristalizou e arrefeceu em substantivo. O mesmo se não dá neste passo dum jovem romancista de nossos dias: «Na eira vai uma tempestade de fricções e estalidos, rodopiares e bateres, gritos e cansaços». Aqui já o infinito readquiriu a sua fumção verbal; mas poderia, talvez sem desvantagem, tomar a forma do singular, pre12 - Estilística
178 M. RODRIGUES LAPA
cedido do artigo indefinido: um rodopiar e bater. É certo porém que o plural toma mais concreta, mais pitoresca a representação. 2. O verbo transitivo e intransitivo. - Chama-se verbo «transitivo» todo aquele cuja acção recai ou transita para um objecto. Exemplo: «O alumo prepara as lições». Não poderíamos dizer apenas - O alumo prepara. Logo acudiria a pergumta: - Prepara o quê ? O verbo preparar não se basta a si próprio; requer logo após um complemento, que em Gramática se chama «objecto directo» ou «complemento directo». Já se dissermos: «A criança chora» - sentimos que a frase está perfeita, faz sentido claro; o verbo chorar basta-se a si mesmo, não exige nenhum complemento. A estes verbos que não precisam de transitar para um objecto e são por si só plenamente expressivos, dá-se o nome de «intransitivos». Isto é a teoria. Praticamente, a língua e os escritores não raro baralham estas categoiias. Quando se diz: «A criança chora-», o espírito apreende logo um objecto imaginário, que são as lágrimas. Poder-se-ia traduzir: «A criança verte lágrimas de mimo»; mas a língua, ou antes o escritor, não está com esse trabalho e diz directamente: «A criança chora lágrimas de mimo». Comete um pleonasmo (repetição de palavras com o mesmo sentido), que resulta aliás expressivo pela intensidade que imprime à representação. Vai ainda mais longe: chega a empregar como objecto directo um nome da família do verbo (substantivo «cognato»). Veja-se este exemplo de Fernão Lopes: «Quem vos tal cousa disse mentiu-vos mui grande mentira» (Crónica de D. João I, parte I, cap. 9), e ainda este, moderno e muito do uso literário: «O sábio viveu uma vida de modéstia». É na verdade mais expressiva do que se disséssemos, simplesmente: «O sábio viveu modestamente». A repetição de palavras cognatas realça a imagem verbal ESTILÍSTICA DA LÍNGUA PORTUGUESA 179
Também algums verbos transitivos podem ser empregados como intransitivos. O que importa, no caso, é a actividade do sujeito e não propriamente o objecto sobre que ela se exerce; por isso esse objecto não vem referido. Exemplo: «A mãe lia, o filho estudava, e a criada lavava no tanque». Os olhos do espírito estão directamente postos na acção e esquecemos momentaneamente o objecto directo, que é respectivamente «um livro», «as lições», «a roupa». O mais ilustre de todos esses verbos com dupla fumção é, sem dúvida, o verbo amar. Por isso mesmo, o escritor brasileiro Mário de Andrade intitulou deste jeito uma de suas mais cativantes novelas: Amar, verbo intransitivo. Trata-se de Carlos, um moço de 15 anos, a quem o pai arranjou uma preceptora alemã de 35 anos, para lhe ensinar alemão e o iniciar em sexologia. Carlos acabou por aprender a amar no corpo da professora; mas era um amor experimental intransitivo, que só podia ter sujeito e não objecto: este não passava de mero instrumento do amor. Há pois neste século apressado certa tendência para subentender o objecto directo, principalmente na linguagem dos negócios, em que importa sobretudo a acção. Quando o merceeiro nos diz: «Mandamos a casa», já sabemos de que se trata: quer significar que manda os géneros ao nosso domicílio. Quando um pintor faz anunciar «que expõe na Galeria Bobone», já sabemos «que expõe os seus quadros com intenção de os vender». É por este motivo que alguém já disse que a abundância dos verbos intransitivos é um indício de civilização, por trazerem subentendidos dentro de si todos os elementos que definem a acção, sem precisarem de complemento.
Se o intransitivo se basta a si mesmo, é porque tem mais poder de sugestão e mais energia expressiva. Os transitivos não possuem o seu colorido, a sua capacidade caracterizadora. Vejam-se apenas estes exemplos: «O rio murmura». - «O pinhal negreja ao longe». Por isso, o intransitivo
180 M. RODRIGUES LAPA
é preferido pelos escritores, quando desejam «pintar», como se vê perfeitamente neste soneto de Gonçalves Crespo, em que não há propriamente verbos transitivos:
Duas horas da tarde.
Um sol ardente
nos colmos dardejando e nos eirados. Sobreleva aos sussurros abafados o grito das bigornas estridente. A taberna é vazia; mansamente treme o loureiro nos umbrais pintados; zumbem à porta insectos variegados, envolvidos do sol na luz tremente.
Fia à soleira uma velhinha. lavoura.
O filho, no céu mal acordou da auiora o brilhe,”1 f saiu para os cansaços da
A nora lava no ribeiro, e os netos ao longe correm, seminus, inquietos, no mar ondeante da seara loura.
Mas os escritores não se satisfazem com esse laconismo, próprio dos homens apressados, e sentem por vezes prazer na operação inversa: revestir de complemento os verbos intransitivos, para tomar mais evidente, mais forte e colorida a acção. Esta trdnsitivização dos verbos é própria da poesia modernista. Diz um filólogo, que estudou este processo nos poetas simbolistas: «Uma poesia que aceita toda a espécie de secretas influências operantes nos fenómenos deve expandir ao máximo a força transitiva dos verbos: florir, dormir, morrer, chover, são para os simbolistas verbos referentes não apenas ao sujeito, mas verbos de acção que implicam modificações do mumdo exterior». Vê-se isso perfeitamente destes versos de Fernando Pessoa: «Sento-me ao pé dos séculos perdidos, / cismo o seu perfil de inércia e voo...» - «Eu já não sou quem era; / o que eu sonhei, morri-o.» - «O outono mora mágoas aos outeiros.» ESTILÍSTICA DA LÍNGUA PORTUGUESA
181
A história da língua mostra que muitos verbos, empregados antigamente como transitivos, foram pouco a pouco adquirindo a preposição antes do complemento. De transitivos directos tomaram-se transitivos indirectos - tal é a designação que se lhes dá em Gramática. No período arcaico e clássico eram perfeitamente normais construções como estas: 1. Não pôde resistir a força do inimigo. 2. Foge a vida turbulenta das grandes cidades. 3. O cidadão deverá obedecer escrupulosamente a lei. 4. Rogou-o que lhe mostrasse o direito caminho.
O uso brasileiro da língua conservou algumas destas construções transitivas, que o português já rejeitou: «assistir as aulas», «agradar a mãe», «perdoar o filho». Não é difícil ver um dos motivos, sem dúvida fumdamental, que determinaram o emprego da preposição: foi uma necessidade de clareza. O emprego transitivo do verbo criou uma ambiguidade de significação, que se mostra perfeitamente na primeira frase, a qual tanto poderá significar: «Não pôde resistir à força do inimigo», como, por uma inversão corrente na língua: «A força do inimigo não pôde resistir». Só a entoação poderia discriminar o verdadeiro significado da frase. Não bastava; a língua remediou o caso com o auxílio das preposições, que introduziram clareza no discurso. Hoje, invariavelmente, escrevemos e dizemos aqueles complementos regidos de preposições ou do pronome pessoal lhe (- a ele): à força, à vida, à lei, rogou-lhe. A esta inclinação para maior ênfase e clareza se deve provavelmente o curioso emprego do verbo amar na fala popular do Brasil, revertendo aliás a um uso antigo do português literário: «amai a Deus», ou à analogia com o verbo querer: «querer bem a alguém». É geralmente conhecido o conto gracioso de Monteiro Lobato (Negrinha, 7.a ed., págs. 117-
182 M. RODRIGUES LAPA
-134), no qual o autor nos refere a desventura dum pobre rapaz, que perdeu a namorada só por ter usado num bilhete que lhe mandou o feio solecismo: «Eu amo-/Ãe». O que parece significar isto: há coisas que se dizem, mas não se escrevem, sob pena de graves complicações. Casos há, contudo, em que subsistem as duas construções. A língua, que é uma hábil ecónoma, dá geralmente a uma e outra um matiz diferente de significação. Assim, «dispor o dinheiro» difere de «dispor do dinheiro». No primeiro caso entende-se que o dinheiro é «posto em ordem», no segumdo, que é «empregado, desembolsado». Quando se diz «apontar para o retrato», está-se vendo um dedo estendido na direcção do retrato; já em «apontar um erro» não vemos o dedo, compreendendo que o verdadeiro significado de apontar é aqui o de «referir», «mencionar». com o verbo cumprir dá-se também um caso curioso. Tanto se pode dizer, hoje como antigamente, «cumpri as minhas obrigações» ou «cumpri com as minhas obrigações». Quando porém se trata de quaisquer obrigações que não são inerentes ao indivíduo, que não dependem dele, não se usa geralmente a preposição com. Exemplo: «Cumpri as ordens que me foram dadas». 3. Verbos impessoais. - Há dois modos fumdamentais de apreendermos os fenómenos. Umas vezes impõem-se absolutamente à nossa consciência; experimentamos o fenómeno sem cuidar no que o motivou e no efeito que teve. Exemplos: Chove. Está calor. Faz vento, etc. É, como já vimos, uma actividade intransitiva; o verbo que exprime o fenómeno basta-se a si mesmo. Outras vezes somos levados a relacionar com o fenómeno a sua causa e o seu efeito, como quando dizemos: O vento agita as árvores. Aqui já temos um verbo que exprime a acção (agita), um agente que a realiza e que em Gramática se chama «sujeito» (o vento), e um objecto ou actuado sobre que recai a acção, chamado em ESTILÍSTICA DA LÍNGUA PORTUGUESA 183
Gramática «objecto directo» (as árvores). É um processo transitivo. A velha Gramática tinha dificuldades em admitir verbos sem sujeito, isto é, verbos impessoais. E aos verbos meteorológicos, chover, trovejar, amanhecer, etc., que são os mais puramente impessoais, buscava atribuir sujeitos que estariam subentendidos por processo elíptico. Assim, o sujeito oculto de trovejar, chover, etc., seria «Deus» ou o «Céu», de orvalhar seria a «manhã», etc. Pode ser que nos tempos da mitologia, em que tudo se referia a uma entidade divina, assim fosse. Hoje empregamos esses verbos de modo impessoal, sem os referir a nenhum agente. Compreendese que este facto deve dar ao verbo impessoal certa autonomia e também certo mistério, uma impressão de vago, que os artistas sabem aproveitar na sua composição. Comparem-se os dois dizeres: Vinha rompendo a manhã e Amanhecia. O primeiro, com o seu sujeito, é mais claro; o segumdo dá-nos todo o mistério, a poética vaguidão do romper do dia. Note-se que a nossa língua tem artes de tomar estes verbos pessoais, em sentido próprio e figurado. É uma excelente aquisição de estilo, porque esses verbos comunicam à frase o seu encanto poético. Algums exemplos: 1. Choviam as pedras lá de cima. 2. As janelas amanheceram cheias de flores. 3. A voz do tribumo trovejava cóleras sobre os ouvintes. 4. Os muitos anos nevaram-lhe a cabeça. Podíamos dizer, e com efeito já se vai dizendo e até preferindo: «De manhã, as janelas apareceram cheias de flores». Mas a forma amanhecer é mais curta, mais condensada e sem dúvida mais
sugestiva. Contudo, como a língua é um instrumento de comumicação, as formas desenvolvidas, analíticas, são mais claras, embora menos poéticas, e vão destronando as formas simples. O progresso é pouco amigo da fantasia dos poetas. Restam os verbos que, sem serem por natureza impessoais, podem usar-se desse modo. São muitos e variados.
184
M. RODRIGUES LAPA
Em primeiro lugar, um grupo de verbos, muito usuais, que podem empregar-se impessoalmente na 3.a pessoa (nesse caso são chamados «umipessoais»): haver, ser, fazer, dar, ir, ficar, estar, doer, admirar, lembrar, esquecer, etc. com o primeiro, há certa dificuldade em aceitar o seu carácter abstracto e impessoal, o que levou o brasileiro inculto a substituí-lo por ter; mas ainda aparece muita gente que, em vez do gramatical «.houve coisas», prefere dizer «houveram coisas». Lembre-se aqui aquela personagem do escritor Fernando Namora, a devota D. Quitéria, que presumia de bem falante: «Entre as pessoas letradas da vila contava-se que D. Quitéria, numa das recepções do paço episcopal, discutira em voz alta com outra senhora o emprego do há e do hão. D. Quitéria, por fim, pretendera esmagar a rival com exemplos concretos: - Então a senhora diz «há coisas» ou «hão coisas» ? - «Há coisas», evidentemente. •-• Pois diz mal: «coisas» é plural. «Contava-se que o bispo, ao ouvir o remate da conversa, concluíra para um abade que o acompanhava: --É estúpida, mas coerente.» (Fernando Namora, O trigo e o joio, 8.a ed., págs. 68-69).
com o último, esquecer, também há alguma coisa a contar. Quando o povo diz: «Não te esqueça de ires à fonte», fala português clássico, sem o saber. Emprega o verbo esquecer como impessoal, à maneira de Camões, que o usou assim naquele admirável soneto «Alma minha gentil». Escreveu o grande poeta: «Não te esqueça daquele amor ardente», dando um sentido especial à frase e insistindo mais sobre a acção e o objecto do que sobre a própria pessoa. Pois os editores julgaram que o insuperável artista se tinha enganado e pessoalizaram, deturpando-o, um verso, que só alcança o seu verdadeiro significado na forma impessoal. Rectificaram assim, desde a 2.a edição, de 1598: «Não te esqueças daquele amor ardente». Se ouvissem a voz do povo, que conserva ESTILÍSTICA DA LÍNGUA PORTUGUESA 185
a tradição da língua clássica, não cometeriam tão grande disparate. Outra forma de exprimir a impessoalidade é empregar com o verbo na 3.a pessoa do singular o pronome reflexo se. Exemplo: «Toda a noite se bailou no pavilhão enfeitado de murta». O sujeito está oculto por detrás daquele pronome se. Poderemos substituir a forma reflexa pela 3.a pessoa do
plural: «Toda a noite bailaram...’»; mas há uma pequena diferença: no primeiro caso parece que intervimos também na acção; no segumdo caso, a pessoa que fala ou escreve está distanciada do acto. A primeira forma é mais lírica, mais afectiva; a segumda mais narrativa, mais intelectual. Em ambas o sujeito é indeterminado; mas parece adivinhar-se ou pressentir-se com mais nitidez na segumda (os rapazes e as raparigas, de que anteriormente talvez se tivesse falado). Dissemos atrás que o verbo ser também se emprega impessoalmente. É o que sucede em frases como esta: «Era numa fresca manhã de primavera»; ou mesmo, sem preposição: «Era uma fresca manhã de primavera». Não se pode dizer que manhã seja sujeito de era. A frase tem carácter impessoal e corresponde, mais ou menos, a estávamos numa..., sentia-se uma, etc. Contudo, nenhuma destas expressões compostas traduz tão bem a impessoalidade como aquela forma do verbo ser. Os escritores aproveitaram habilmente para as suas narrativas este carácter vago e impreciso do verbo, apropriado aos jogos da fantasia. Veja-se este exemplo de Eça de Queiroz: «Para o fumdo do vale, clara também no luar, era a igrejinha de Craquede.» Se substituirmos essa forma por estava, distinguia-se, etc., a frase toma-se mais pessoal e perde-se o que há nela de fantasia e imprecisão. Um outro exemplo do mesmo grande artista, na descrição dum pesadelo: «Era, em tomo do leito, um heróico reluzir e retinir de ferros». Substituamos era por havia: lá se vai toda a
186 M. RODRIGUES LAPA
impressão de mistério, de confusão movimentada, que cor.stitui a poesia da frase. O mesmo se dá neste período de Jorge Amado (Seara vermelha, 241), em que a forma, aparecendo no fim da frase, tem um poderoso efeito evocador e é insubstituível por outro meio: «Apenas o sol descambava e o horizonte sobre o mar acendia-se em vermelho, as luzes elétricas brilhavam, e a noite já era». Guimarães Rosa emprega, com a mesma colocação, o verbo estar, num aumento notável de visualidade e de concretismo (trata-se de um burro): «Longe dos outros, deixado num extremo, no canto mais escuro e esquerdo do telheiro, Sete-de-Ouros estava». (Sagarana, 5.a ed., pág. 51). Aliás, o sentido originário de ser é «estar sentado», e estar, na língua antiga, queria dizer sobretudo «estar em pé, imóvel». Tal valor ainda é hoje patente em nomes como estátua, estaca, estadulho, etc. Por aqui se vê que o segumdo verbo abrange um campo visual muito mais preciso, como tudo quanto se deixa ver de alto a baixo. Os escritores têm disso consciência, embora os dois verbos andem hoje mais ou menos confumdidos. A diferença, muito nítida, entre ser e estar aparece perfeitamente neste trecho de D. João da Câmara, no qual o contista descreve a ansiedade dum avarento em busca do seu tesoiro escondido: «Era no alto da serra que o seu tesoiro fora escondido. Vinha aumentá-lo naquela noite, vinha palpá-lo... Subitamente estacou. Na clareira, no meio do pinhal, era a choupana do guarda... Deitou a correr pelo pinhal fora... a correr, a correr até ao alto da serra, onde se deixou cair extenuado ao pé dum enorme pinheiro manso... Era ali o seu tesoiro Começou a cavar, a cavar, até que finalmente o ferro bateu de encontro ao ferro... Ali estava o seu tesoiro! Seu! K olhava para o cofre com ternura, com uma lagrimazinha no olho.» (Contos, 2.a ed., págs. 46-49).
A forma era, nos três exemplos, traduz imprecisão, nebulosidade, distanciamento e a agitação do avaro à ESTILÍSTICA DA LÍNGUA PORTUGUESA 187
procura do dinheiro. Mas quando o tem à vista, então já essa presença, certa e palpável, se exprime pela forma estava. Um grande escritor brasileiro se encarregará de nos explicar, num formoso trecho, a diferença entre o é e o está, o primeiro tocado de absoluto e de eterno, o segumdo plantado no contingente, para regalo da vista. Monteiro Lobato vai um dia a Tarrytown, na América do Norte; e não pode reprimir a impressão de êxtase perante a deliciosa paisagem de fim de outono: « -Veja aquele grupo de árvores naquela mansão de esquina. Haverá nada rnais estonteantemente belo, em tarde bela assim ? Não está lindo, lindo ? A «miss» sorriu. - Mas sempre foi assim!... Não está lindo. É lindo. Disse e foi-se com um gracioso «good-bye». - Não está, é\... repeti comigo, procurando penetrar o sentido da resposta. Só mais tarde o percebi plenamente. Aquele grupo de árvores varia tanto de aspectos, que é sempre uma expressão de beleza. Estava naquele momento vestido com ipês de ouro e rubis. Depois, com a entrada do inverno, se despiria de todas as folhas para apresentar uma nova forma de beleza, profumdamente melancólica, na nudez da galharia sépia. Depois se recobriria de neve - e branquinha até nos mínimos ramúsculos, teria uma beleza de sonho. Depois rebentaria em folhas novas - e teria a beleza da esmeralda que nasce. Depois o verão truculento transformaria as esmeraldas tenras em verdes apopléticos - e teríamos o único tom de beleza a que
estamos afeitos nos países de «verão eterno». Tinha razão a «miss». Lobato, América, 6.» ed., pág. 93).
Não estava.
Era...»
(Monteiro
A diferença de significado entre os dois verbos foi correctamente explicada por Caldas Aulete no seu Dicionário (rubrica ser), quando nos diz que «ser se emprega quando a qualidade atribuída ao sujeito lhe é inerente e natural ou habitual, e o verbo estar no caso contrário». E um grande ensaísta espanhol, Salvador de Mariaga, foi mais longe: viu na diferença entre os dois verbos um rasgo característico do
188 M. RODRIGUES LAPA
homem hispânico: «a tendência para distingir o que é essencial do que é passageiro, entre o ser, que é permanente, e as circumstâncias, que somente estão». 4. Voz activa, passiva e reflexa. - Imaginemos este pequeno quadro: Dois camponeses passam por um antigo palácio, cujos donos estavam desde muito ausentes e que era guardado apenas por um velho criado. Nesse dia, as janelas apareceram abertas. Reparando nisso, um deles poderá exprimir o facto das seguintes maneiras, dizendo para o outro: 1. O criado abriu hoje as janelas. 2. As janelas foram abertas pelo criado. 3. Abriram as janelas do palácio. 4. Abriram-se as janelas do palácio. Estas quatro maneiras de exprimir uma determinada acção coincidem no fumdo, mas não são de modo nenhum equivalentes. Se não, vejamos: Na primeira frase, o camponês chama a atenção para o agente, que é o criado. O objecto (as janelas) fica mais na sombra. O que importa para ele naquele momento não são tanto as janelas como o criado que as abiira. Como que se subentende este movimento de curiosidade: para que teria ele aberto as janelas? Na segumda frase, já o objecto da acção aparece em primeiro plano e o agente em plano secumdário. Ao indivíduo que passou interessavam naquele momento sobretudo as janelas, que via abertas, contrariamente ao costume. Por isso pôs o objecto em primeiro lugar, construindo a frase na voz passiva. Na terceira frase, a atenção é reclamada para o acto em si. O sujeito é indeterminado, e a sua falta tem como resultado fortalecer a própria significação do verbo. O que importa sobretudo é o acto de abrir. ESTILÍSTICA DA LÍNGUA PORTUGUESA 189
Enfim, na quarta frase, a determinação das relações entre o sujeito, o verbo e o objecto é já menos precisa. A oração pode admitir duas significações: a) as janelas apareceram abertas por si, com a ajuda de algum elemento que se ignora - talvez o vento (significação reflexa); b) ou foram abertas por alguém, que não é determinado (significação passiva). Dava-se pois uma confusão, que a língua tratou de evitar muito simplesmente: em vez de pôr o verbo no plural, como mandam as regras, empregou-o no singular, como impessoal: Abriu-se as janelas. O pronome reflexo foi considerado equivalente a um pronome indefinido: «alguém», «uma pessoa». O processo é engenhoso e nada repugna à índole da língua; é também corrente no francês. Simplesmente, a construção, usada nas esferas populares, não está abonada pelos gramáticos, que a condenam. Um dia certamente entrará na Gramática: será o triumfo da clareza sobre a confusão. Por ora, ainda lá não chegámos. Devido a esta mesma confusão, não podemos hoje dizer: «Abril am-se as janelas pelo criado». Era
contudo essa construção perfeitamente usual em português clássico, pois abriram-se equivalia então a «foram abertas por alguém». Eis uma frase corrente entre os antigos escritores: «Descobriu-se essa ilha por um grupo de portugueses». Hoje teremos de dizer: «Foi descoberta essa ilha por um grupo de portugueses». Segumdo o uso actual, a conjugação reflexa serve para exprimir a passiva, mas não se há-de nomear o agente. Nessa conformidade, já podemos dizer: «Descobriu-se a ilha em 1502». Na linguagem oficial usa-se a voz passiva ou a voz reflexa com valor de passiva, porque as determinações legais dirigem-se a uma massa passiva orientada superiormente por um órgão activo, que se adivinha sempre presente: o Estado. Assim se justifica o carácter impessoal dessa linguagem, para a qual valem, mais que as pessoas, os actos praticados por elas. Para exemplo veja-se o art. 529.° do
190 M. RODRIGUES LAPA
Código Administrativo Português: «Sempre que um fumcionário administrativo deixe de comparecer ao serviço durante cinco dias, depois de expressamente ter manifestado a sua intenção de abandonar o cargo, será pelo seu imediato superior hierárquico levantado auto de abandono do lugar.» Não se diz «o seu superior levantará», porque pumha em evidência a pessoa do fumcionário, quando o que mais importa acentuar é o acto, a fumção. Do que fica exposto conclui-se que o emprego da voz activa, passiva e reflexa se não faz às cegas. Há razões delicadas que impõem o seu uso, conforme as circumstâncias. Quem possui o sentimento da língua dificilmente se enganará nessa manipulação dos ingredientes do estilo. Um exemplo: Eça de Queiroz põe um seu personagem a narrar episódios da meninice. Aos sete anos, o pequeno, já órfão de mãe, perdera subitamente o pai. Diz o escritor: «As janelas da frente da casa foram fechadas». Poderia significar o mesmo, recorrendo às formas indicadas nos n.os 3 e 4 dos nossos exemplos: a forma impessoal com o verbo na 3.a pessoa do plural -«fecharam as janelas»; e a forma reflexa •-((fecharam-se as janelas»; mas, se repararmos bem, o processo escolhido no caso pelo romancista é o mais apropiiado. Tratando-se de uma criança, convém chamar a atenção para as janelas, jumto das quais os meninos costumam brincar e donde observam o mumdo exterior. Por isso o sujeito, as janelas, foi posto à frente da frase. O emprego do particípio passado, fechadas, põe mais em evidência o sujeito. A natureza adjectiva desse particípio caracteriza, dá cor ao sujeito e parece até que à própria acção do verbo. Enfim, o emprego da voz passiva é aqui um processo de iluminar a frase, tomando mais visíveis e pitorescos o sujeito e o verbo: depois de «vermos» claramente as janelas, «vemos» claramente que se fecham. O mesmo não sucederia nos dois outros casos. No que respeita à voz reflexa propriamente dita, convém notar que a língua oferece também certas delicadezas. ESTILÍSTICA DA LÍNGUA PORTUGUESA
191
Algums intransitivos admitem a forma pronominal, para darem um novo matiz de significação ao acto expresso pelo verbo ou para acentuarem mais expressivamente a figura do sujeito. Vejamos estes dois exemplos: 1. O réu sorria, ouvindo aquelas acusações.
2. O pai sorria-se com as brincadeiras do filho. A diferença é um pouco subtil, mas existe efectivamente. A primeira impressão que nos deixam as duas frases é que na primeira o sujeito denumcia certo retraimento, está como fechado em si mesmo: c, evidentemente, uma consequência do verbo intransitivo, que não se expande num objecto. Na segumda frase, tudo aparece espontâneo e movimentado: o sorriso deixa de ser fechado, acaba-se o mistério, - vemos pai e filho em comumhão de alegrias. Tudo isto se conseguiu com a forma pronominal. Algums gramáticos chamam a este pronome reflexo «objecto directo de espontaneidade». É uma designação como qualquer outra; mas, enfim, traduz com certa verdade o que caracteriza principalmente o sujeito e a acção: espontaneidade, movimento sentimental, simpatia comumicativa, intimidade irónica, etc.
Os Clássicos tinham a compreensão deste valor expressivo da forma pronominal e usavam-na largamente. Os verbos ir-se, vir-se, partir-se, subir-se, ficar-se, descer-se, etc., adquiriam significado um pouco diferente dos simples ir, vir, partir, subir, ficar e descer. Um poeta queixoso de amores não dirá - «you por esses montes, suspirando»; mas, com mais dinamismo e patético «Vou-me por esses montes, suspirando». Por aqui se vê que a forma pronominal tem carácter afectivo e lírico, pois interessa mais vivamente o sujeito na acção. Por vezes, o sujeito acha-se tão absorvido no seu estado ou acção que não dá conta do que se passa em redor: é uma atitude de concentração e defesa. Os antigos escri-
192 M RODRIGUES LAPA
tores empregavam neste sentido algums verbos, principalmente estar. Veja-se esta frase: «Esíou-me quietinho no meu canto, sem saber o que vai pelo mumdo». Sentimos imediatamente que o pronome introduz na frase um movimento de alma, um interesse afectivo que o simples intransitivo não comporta. Em outros casos a voz reflexa é uma espécie de forma progressiva, pois acentua o prolongamento e a lentidão do acto, com um íntimo prazer da parte do sujeito, quando é nome de pessoa. O verbo morrer-se é particularmente empregado nesse sentido. Exemplo, tirado de Fialho de Almeida: «Tinha alinhavado este livro nos ócios da bela estação que se morria.» O simples morria era brutal, seco, peremptório; com o reflexo exprime-se a lentidão suave daquele findar de estação. Igual efeito conseguem o escritor brasileiro Eduardo Frieiro: «O infeliz africano morria-se de medo» - (O mameluco Boaventura, 2.a ed., 10) c o publicista galego Sílvio Santiago: «Por esta ponte passa um regueiro que se morre de sede»- (Vilardevôs, 50). Um escritor místico escreveu: «.Morra-se nessa grande saudade que sente». Quer significar com isso não a morte corporal, súbita, definitiva, mas um vagaroso e deliciado agonizar, um voluptuoso desfazer-se na saudade. 5. A elipse do verbo. - Circumstâncias há em que a frase se constrói ou pode construir sem verbo’ o valor sentimental das coisas, o repentino da sua visão dispensam perfeitamente esse instrumento gramatical Quando, diante dum belo panorama, exclamamos: «Admirável paisagem!» - produzimos uma oração afectiva, a que propriamente não falta o verbo nem precisa sequer de se subentender. Se disséssemos: «Esta paisagem é admirável!» - sobrecarregaríamos sem necessidade a frase e, reparando bem, não conseguiríamos o mesmo efeito sentimental, que se exprime tão energicamente por aquele grupo do adjectivo e substantivo. ESTILÍSTICA DA LÍNGUA PORTUGUESA 193
A este processo elíptico chama-se estilo de notas ou de diário. As coisas pintam-se e desdobram-se em série; é como o decorrer duma fita de cinema. Suponhamos que pretendemos descrever por este meio impressionístico uma viagem de Lisboa a Coimbra. Poderíamos registar assim as nossas impressões : «Manhã cinzenta. Partida de Lisboa. Os primeiros aspectos da campina ribatejana: touros, campinos de vara ao alto, searas infinitas. Depois, mutação de cenário: florestas de pinheiros verde-negros, outeiros. Uma aberta de luz: campos extensos de milho e arrozais. Enfim, o tufo espesso do Choupal. Coimbra, debruçada sobre o Mondego!» A omissão do verbo, muito do gosto do impressionismo, serve ainda para o simples descritivo dum quadro. É como que uma notação de cenário, como se pode ver neste trecho de Teixeira-Gomes: «Sala de prédio novo no pátio do Torci. Ornamentações «liberty» na sua clara tonalidade preferida, que fumde o verde mar em rosa pálido. Duas grandes janelas por onde se perspectiva a Baixa e um largo trecho do rio. A parede do sul cortada por três arcos envidraçados que dão para uma espécie de estufa rescendente».
A dispensa do verbo não é processo novo; é antes um modo primitivo de registar as impressões das coisas. Explica-se por três motivos principais: a) uma expressão dúbia ou incompleta do pensamento; b) uma certa tendência para a brevidade e para o menor esforço; c) e a influência poderosa dum choque sentimental. A primeira causa explica a chamada «reticência». Quando dizemos - «Eu ia lá, mas...» - o espírito procura preencher a lacuna e estabelecer a clareza do sentido. É como quem 13 - Estilística
194 M. RODRIGUES LAPA
dissesse: «Eu ia lá, mas não sei se volto; mas tenho receio de que me venha mal», etc. A mesma consciência da elipse aparece em formas de cortesia ou constrangimento social. Quando dizemos para um superior: - «Se V. Ex.a assim o deseja...» - temos plena consciência do que falta na locução e procuramos mentalmente completar: será feita a vossa vontade. Claro que nem sempre a consciência dessas lacunas é perfeitamente nítida, variando naturalmente de pessoa para pessoa. Exemplos da tendência para a brevidade elegante e para o menor esforço podem ser estas duas frases. Uma amostra de Vieira: «Vem-lhe a suceder no fim o que aos pegadores do mar». Subentende-se ali a forma verbal sucede, mas o espírito quase não tem consciência da sua omissão. Contudo, hoje preferimos a construção sem elipse: «Vem-lhe a suceder no fim o que sucede aos pegadores do mar». Suponha-se agora este diálogo: - «Sente calor ? - Eu não, e você ?» Aqui não há consciência da elipse. Seria até absurdo que se respondesse: - «Eu não sinto, e você sente P» Resta a terceira categoria, que é talvez a mais interessante para a Estilística: um abalo sentimental afecta toda uma frase e, por meio duma entoação mais ou menos exclamativa, dá-lhe o valor dum grupo fraseológico. Alguém vê o seu inimigo cair de um cavalo abaixo. Exclama, num repente desumano de vingança: - «Bem feito /» O sentido da exclamação pode traduzir-se por esta perífrase: «Mereceste o mal que te sucedeu, e estou muito contente com isso». Vemos um amigo que não esperávamos; logo lhe dizemos: «- Tu por aqui ?!» É como quem diz: «Estou admirado e contente de te ver por aqui». Tudo isto consegue a linguagem corrente, dispensando perfeitamente o verbo. Os escritores imitaram o processo, como se deixa ver deste trecho de Jorge Amado: «Vontade de poder escrever uma carta contando à tia Marta tudo aquilo, toda aquela alegria em tomo» - (Seara vermelha, 331). E ainda deste passo ESTILÍSTICA DA LÍNGUA PORTUGUESA 195
de prosa galega: «Adrián olhando nua carteleira pensou que xá os estrenos non tenhen a importanza doutro tempo. Pensamento d’escribir um ensaio encol do tema» - (Otero Pedrayo, Arredar de si, pág. 11). Como quem dissesse: «Acode-me o pensamento de...» Um dos que mais aplicação lhe deram foi sem dúvida Fialho de Almeida, em algums passos até de duvidoso gosto literário. Veja-se este exemplo: «mas o estudante não o podia aturar, mesmo ganas de lhe remendar os fumdilhos com lama da bota direita». A frase tem carácter afectivo; por isso se subentende com um pouco de esforço o verbo ter: «tinha mesmo ganas...». Mas, neste exemplo, a elipse espalha por toda a frase uma certa obscuridade: a sintaxe ficou de algum modo comprometida. Por isso, não é prudente imitar servilmente estes processos, mesmo quando abonados por grandes escritores.
11. O VERBO II 1. Verbos defectivos. - Assim se chamam os verbos a que faltam certas formas, quer por motivos de lógica, quer por motivos de eufonia. Os chamados verbos climáticos conjugam-se de ordinário na 3.a pessoa. Em boa lógica, não podemos dizer eu orvalho, tu orvalhas. No mesmo caso estão outros verbos impessoais. Ninguém irá dizer eu aconteço. Há a consciência nítida de que estes veibos, sendo desprovidos de sujeito, só podem usar-se na 3.a pessoa. O mesmo não sucede com outros verbos, que são defectivos por razão fonética, ou para evitar qualquer equívoco de sentido. Um comerciante em vésperas de falência não dirá: «Eu falo dentro de pouco tempo». Arranjará formas perifrásticas ou empregará outro verbo: you falir, terei de falir, receio falir, venho a falir, etc.; ou vou-me abaixo, abro falência, chamo credores, etc. De modo que o uso impõe que o verbo falir só se use nas formas que conservam a vogal i. Estão neste caso, segumdo a opinião dos gramáticos, os verbos abolir, adir, banir, colorir, delinquir, delir, demolir, descomedir-se, empedernir, extorquir, florir, redarguir, renhir, retorquir. Sucede porém que os escritores não querem que a Gramática seja obstáculo às suas necessidades de expressão, e criam formas como bane, carpe, carpem-sc, colore, dele, demolem, extorquem, redargue, retorque, etc. ESTILÍSTICA DA LÍNGUA PORTUGUESA 197
com um pequeno número de verbos os gramáticos são mais indulgentes e consentem que se usem também as formas terminadas em e. Assim: discernir, explodir, emergir, fulgir, ganir, latir, e poucos mais. Ora a verdade é que nada impedirá, sendo necessário, que um escritor use formas como discirno, expludo ou expluda, fulja, emirja, ou emerja. Dizia sobre estes casos Mário Barreto, filólogo brasileiro competentíssimo: «A morfologia não tem leis especiais para excluir de sua formação total nenhum dos verbos que se têm por defectivos. Nenhuma lei de estrutura se opõe a que se forme abole, colorem, pule, bane, dele, demulo. O empregá-los numa forma e deixar de empregá-los noutra é coisa que toca ao uso». Assim é, na verdade; tanto assim, que na lista de defectivos apresentada pelos gramáticos vemos constantes alterações e discordâncias. Deve notar-se, a este respeito, que no Brasil parece haver mais audácia no uso dos defectivos. Num jornal carioca lia-se ainda há pouco: «É indispensável que o Governo aja com energia»; e um escritor, António Callado, não hesita em escrever: «Eu you botar os camponeses na rua. O Governo não age, ajo eu»- (Quarup, 4.a ed., pág. 320). Em Portugal ainda se não chegou a este ponto, empregando-se naquele caso formas como actue ou proceda, paia evitar a confusão com haja, do verbo haver. A forma dele = (de ele) em vez de dele, explicava-se, segumdo uma reforma ortográfica portuguesa e outra brasileira, precisamente pela possibilidade de existir um homógrafo dele, 3.a pessoa do singular do presente do indicativo do verbo delir. Convém notar contudo que o povo parece ter preferência pela forma dile, embora pouco usada, naturalmente. Mas já um grande escritor clássico, João de Barros, não hesitou em quebrar o encanto desse verbo defectivo, usando a forma dilem: «E, tomada aquela massa, a dilem na água à maneira de polme». O exemplo mais frisante de como a língua tende a
198 M. RODRIGUES LAPA
repelir o princípio dos verbos defectivos é-nos dado pelo verbo precaver, muito usual. Os gramáticos não se entendem com a sua conjugação. A maior parte, entretanto, condena a conjugação deste verbo nas três primeiras pessoas do singular e na 3.a do plural do presente do indicativo e em todo o conjumtivo. Logo, não é aceitável dizer-se precavo, precavês, precavê, precavém, precava, etc. Mas a língua, considerando o verbo expressivo e repugnando-lhe a defectividade imposta pelos gramáticos, fez uma coisa curiosa: assimilou-o aos verbos ver e vir, com os quais nada tem, e conjugou-o nas formas que lhe faltam pelo modelo daqueles dois verbos. Assim, é comum hoje dizer-se precavejo, precavês, precavê ou precavenho, precavéns, precavém, etc. Um exemplo, tirado de um jornal da manhã: «A França precavém-se em Jibuti». Outro, extraído das obras de TeixeiraGomes: «Acho conveniente que se precavenha contra os impulsos da sua simpatia». Também se poderia dizer - e é talvez mais corrente - precavê-se e se precaveja. É uma questão de gosto pessoal. Os gramáticos bradam que essa conjugação é abusiva. Será; mas esses recursos da analogia são correntíssimos no idioma, e o que hoje se nos afigura abuso e extravagância, é amanhã norma aceita e bem-vinda. Aquelas formas representarão uma necessidade expressiva? Se assim é, ficarão na língua. Contudo, se as não quisermos usar, a língua tem substitutos para preencher as formas defectivas; usa neste caso os verbos precatar ou precatar-se, acautelar, prevenir, etc. Nada mais será preciso dizer sobre verbos defectivos do que estas palavras dum grande mestre da ciência da linguagem, Brumot: «Cada um de nós possui, para os verbos defectivos, a sua conjugação particular; é a média destes usos que constitui a norma de hoje». Não venham pois os gramáticos impor-nos arbitrariamente as suas listas verbais. Já sabemos o valor relativo que lhes devemos atribuir. ESTILÍSTICA DA LÍNGUA PORTUGUESA
199
O povo ou os escritores mostram gosto por uma forma; cai no uso, e o uso é que faz lei. 2. A fonética e os verbos. - As formas verbais ainda hoje estão sujeitas a certo número de erros e vacilações por parte daqueles que não dispõem de sólida instrução gramatical. A sugestão da pronúncia e o fenómeno da analogia são geralmente os culpados desses deslizes e incoerências, que se encontram muitas vezes na pena de gente culta. Não é raro vermos escritas as formas caiem, saiem, destrói em, atribulem, e até crêiem, lêiem, veiem. São 3.as pessoas do plural do presente do indicativo dos verbos cair, sair, destruir, atribuir, crer, ler, ver. As duas primeiras formas já se encontram aqui e acolá em obras de autores modernos. Efectivamente, na pronúncia normal já se faz sentir aquele i eufónico; mas na linguagem a pronúncia vai mais depressa do que a grafia. é possível que um dia seja norma o que hoje constitui uma falta, e passemos a escrever com i; é até o mais natural. Ainda não chegámos a isso, razão por que as únicas formas correctas são as que não têm a vogal eufónica: caem, saem, destroem, etc. Caso idêntico, mas por motivos diferentes, é o que vemos em grafias tais como passeiava, receiamos, estreiou-se, etc. Veja-se esta frase do contista Alberto Braga: «Havia mais de meia hora que eu passeiava na sala de espera». Estas erróneas escritas, frequentes aliás em autores passados, procedem de uma influência viciosa da 1.a pessoa do singular do presente do indicativo (eu passeio, eu receio, eu estreio). Ora é conveniente advertir que este i não pertence propriamente ao
verbo; foi uma vogal que se intercalou por motivos de eufonia. Antigamente, no tempo dos Clássicos, dizia-se e escrevia-se: passeo, receo, etc. Logo, só são legítimas as formas passeava, receamos, estreou-se, etc. Aqui nem sequer se ouve o i, na pronúncia normal, como no caso anterior; é pois de toda a razão banir o emprego dessa vogal.
200 M. RODRIGUES LAPA
Outra perturbação viciosa da analogia se verifica nas f01 mas erradas da 2.a pessoa do plural do pretérito perfeito - amasieis, vencêsteis, partísteis, que aliás só se emprega hoje em estilo retórico. Aquele i, que não pertence ao verbo, é devido à analogia com outras formas, como amais, amáveis, amásseis, que o possuem por natureza. O erro, que aparece ou apareceu em algums escritores de boa nota, é ainda hoje cultivado por muitos aprendizes de redacção. Isto são propriamente os erros; mas os verbos têm ainda flutuações no emprego de certas formas. Como dizer: desagua ou ãesagoa, enxagua ou enxagoa? Ambos os modos de dizer são legítimos; mas predominam, por efeito da analogia, as formas com u. Para muitos jovens estudantes da língua portuguesa será talvez novidade que o verbo apiedar se conjuga irregularmente nas formas em que o acento tónico deveria cair sobre o e. Assim, diz-se apiado-me, apiadas-te, etc., em vez do que seria regular: apiedo-me, apiedas-te, etc. Estas formas em a, um pouco mais eufónicas, não foram inventadas; a língua foi buscá-las à velha grafia apiadar, usual entre os mais antigos escritores do Classicismo. Contudo, mesmo essas formas são consideradas hoje malsoantes e substituídas por processos perifrásticos: ter piedade, ter dó, compadecer-se, etc. Outro motivo de hesitações está nos verbos em -ear e -iar. Segumdo a lógica, os verbos da segumda categoria deviam ter todos a vogal i nas formas do presente do indicativo e do conjumtivo. Assim: copio, alumias, aprecie, contraries, etc. Sucede porém que, por influência da conjugação em -ear, hoje dizemos odeio e não ódio, anseio e não ansio, remedeio e não remédio. Outros casos são ainda duvidosos e permitem a escolha dos interessados, segumdo o gosto particular. Podemos pois dizer, sem receio de palmatoadas, prémio ou premeio, diligencias ou diligenceias, evidencia ou evidenceia, gloria-se ou gloreia-se. Se é certo que parece haver entre nós ainda certa preferência pelas formas ESTILÍSTICA DA LÍNGUA PORTUGUESA 201
em -eia (negoceia, comerceia, incendeia), não é menos verdade que, para as palavras menos antigas, são as formas regulares as únicas usadas: acaricio, apropriam-se, distancia, contraria, etc. É natural que estas acabem por chamar as outras à regularidade, e tudo entrará nos eixos. No Brasil já se dá decisiva preferência às formas em -io, pois se prefere, por exemplo, sentencio a sentenceio. 3. O emprego dos tempos e modos. - É dos pontos mais delicados da sintaxe portuguesa o emprego dos tempos e modos dos verbos. Aqui, só nos cumpre tratar, de maneira prática, as questões fumdamentais que dependem não propriamente da Gramática mas da Estilística. Como princípio geral para o emprego dos tempos, seja dito desde já que o nosso espírito tende a tomar presentes, vividos actualmente, os factos que se deram no passado ou sucederão no futuro. A nossa imaginação e o nosso sentimento procuram referir tudo ao presente. Um exemplo: «Morreu o rei; o príncipe vai ao palácio e exige logo dos cortesãos o juramento de fidelidade». Por um verbo no perfeito (morreu) indicamos que se trata de um f acto passado; logo depois, para melhor o vermos, aproximamos de nós o passado e consideramo-lo presente; assim se justifica o emprego de vai e exige, em vez de foi e exigiu, como seria mais lógico. A este presente do passado costuma chamar-se «presente histórico». Temos boa amostra desse processo, que procura traduzir, de um modo pitoresco, o movimento e a vida, neste passo de Fr. Luís de Sousa: «No mesmo ponto que o piedoso prelado teve informação do que se passava, sem meter tempo em meio, deixou tudo:
sai de casa e põe-se a caminho para ir confessar a ferida». Vejamos agora um caso do futuro considerado como presente: «Amanhã chega o teu primo José; vais à estação esperá-lo». A fantasia e o sentimento aproximam de nós o facto futuro e incerto; a fantasia toma-o presente, o sentimento
202 M. RODRIGUES LAPA
toma-o coisa certa - nem por sombras se admite que haja algum estorvo para a vinda desejada do primo José. Logicamente, aquela frase deveria ser assim redigida: «Amanhã chegará o teu primo José; irás à estação esperá-lo». Como vemos, a linguagem viva zomba da lógica, porque nela constantemente se exercem as forças da imaginação e do sentimento, que constituem, por assim dizer, os elementos primordiais do nosso ser. Pelo que respeita aos modos, também a língua prefere aqueles que exprimem segurança e não incerteza da parte de quem fala. Na língua, como na vida, raro se deixa o certo pelo duvidoso. Este princípio geral vê-lo-emos aplicado mais adiante, com o modo do conjumtivo. 4. O perfeito e o mais-que-perfeito. - Em rigor, estes dois tempos não se devem confumdir. O primeiro serve para exprimir a acção passada, o segumdo a acção anterior a outra que já passou. Exemplos: 1. O mendigo chegou, faminto e cansado. 2. O mendigo chegou; já tinha andado seis léguas. 3. Todos se espantaram de que tivesse resistido tanto. No primeiro exemplo indicamos um facto absolutamente passado, por meio do perfeito chegou. No segumdo, representamos duas acções nitidamente diferenciadas no tempo: primeiro, o mendigo andou seis léguas, e só depois chegou a determinado ponto. No terceiro, aparecem igualmente diferenciados os dois tempos da narrativa; mas, em vez do modo do indicativo, empregou-se o do conjuntivo, porque a acção agora é imaginada por alguém e não simplesmente indicada, como no segumdo exemplo. Quando se trata porém de períodos longos, em que a sucessão dos tempos se não desenha com nitidez, o emprego dessas duas formas do perfeito leva por vezes a hesitações e ESTILÍSTICA DA LÍNGUA PORTUGUESA
203
até a erros. Veja-se este trecho de um autor dos nossos dias: «Padre Anselmo escapuliu-se, tão encolhido como entrara. O arquitecto ficara estupefacto. É certo que ele tomara todas as precauções e que a discrição do guarda fora adquirida bem cara.» Aquele mais-que-perfeito ficara não se justifica bem ali, usurpando o lugar do perfeito -ficou. Seria legítimo empregar ficara, se o arquitecto se tivesse espantado antes de o padre se ter escapulido; mas é precisamente o contrário que quer significar o autor. O uso de ficara dá-nos a impressão de que o autor, em vez de narrar objectivamente a acção, está a contá-la indirectamente a outrem. Vejamos, sobre isto, um exemplo: «O José Dias contou-lhe então o seu desastre:
- Fui regar a horta do Chico Gamelas; mas as travessas do poço estavam podres, e eu caí, bati com a cabeça numa pedra e estive vai-não-vai a afogar-me. Por sorte andava por ali o Firmino, que acudiu aos gritos e me tirou do poço.» Experimentemos pôr este dito do José Dias em discurso indirecto. Temos o seguinte resultado: «O José Dias contou-lhe então que fora regar a horta do Chico Gamelas; mas as travessas do poço estavam podres, e ele caíra, batera com a cabeça numa pedra e estivera vai-não-vai a afogar-se. Por sorte andava por ali o Firmino, que acudira aos gritos e o tirara do poço». Gramaticalmente, está impecável: todo o sucesso que se reproduza em discurso indirecto deve levar os verbos no mais-que-perfeito, porque há a noção de dois tempos passados: aquele em que fala ou medita a personagem, e o
204 M. RODRIGUES LAPA
outro, anterior, em que se passam os factos que refere. Quando porém a narração é longa, a diferença dos tempos como que desaparece, e as duas formas podem ser empregadas. Assim, no trecho anterior, já podíamos escrever, no último período: «Por sorte andava por ali o Firmino, que acudiu aos gritos e o tirou do poço». O emprego do mais-que-perfeito dá de princípio a noção dos dois tempos passados, depois já se dispensa, por não ser fácil para quem conta e para quem ouve ou lê manter essa diferenciação cronológica: tudo tende a esbater-se num mesmo tempo passado. Há contudo escritores que mantêm fidelidade ao uso do mais-que-perfeito mesmo nas narrações compridas. Um deles é Ferreira de Castro. É sabido o cuidado com que ele marca nos seus romances, até por meio de sinais gráficos, o uso do discurso indirecto e semidirecto. Os escritores antigos da Idade Média e do Classicismo empregavam muitas vezes o perfeito em vez do mais-que-perfeito, como se vê deste passo de Fernão Lopes: «taes i ouve que pensarom que eram alguus que nom veerom ao saimento»; e destoutro de João de Barros: «e por honra de sua ida lhe mandou Vasco da Gama entregar todolos mouros que tomou no zambuco». Onde se vê claramente que veerom está por tiinham viindo e tomou por tomara. O escritor moderno é mais rigoroso e sabe discriminar com maior clareza os tempos do passado. Contudo, a falta de cuidado ou um sentimento confuso das leis da língua tem levado algums escritores a empregarem inadvertidamente o mais-que-perfeito, em lugar do perfeito. O contrário não seria tão desastrado, pois, como vimos, este último pode fazer as vezes do primeiro. E o que acontece neste bocado de prosa de José Lins do Rego: «O seu editor viera prestar contas e Paulo o pusera para fora de casa. O homem se queixara na livraria: - O doutor Mafra estava meio fora de si. Parecia maluco. Pois BSTILÍSTKA DA LLNGUA PORTUGUESA
205
fora levar-lhe o dinheiro das três edições do seu livro e ele me recebera como um inimigo. Devia ser a morte do irmão.» (Água-mãe, 4.a cd., 195). Nos tempos sublinhados do discurso directo conviria pôr o perfeito em lugar do mais-que-perfeito, que ali se não justifica; foi por contágio do discurso indirecto que o grande romancista foi levado a usar tal tempo. Quando isto se dá em escritores da envergadura do autor de Fogo morto, natural é que se dê em romancistas de menor categoria. Veja-se este trecho dum autor dos nossos dias, em que o mais-queperfeito toma indevidamente o lugar do perfeito: «O primeiro movimento de Irene traduziu-se ein sacudir a mão de seu filho, como a querê-lo furtar à vista daquele homem. Mas logo se deteve, alquebrada. O fotógrafo, por um esforço heróico, balbuciara: - É V. Ex.a que quer tirar o retrato ? Irene, muito pálida, calara-se. Depois dissera: - Não sou eu-é o meu filho...
Álvaro Pestana, o fotógrafo, curvara-se e murmurara: ’ - Faz favor de se sentar!»
É manifesto que nos termos em itálico conviria empregar o perfeito e não o mais-que-perfeito, pois a narrativa progride sem retrocesso nem sobreposição de planos - prova de que aos jovens romancistas falta uma técnica não apenas gramatical mas estilística. Há porém casos complicados, como este de Camilo, que escreveu: «Dissera o Sá de Miranda que poetas tudo pumham em flores, e de frutos nada havia que esperar» - (Doze casamentos felizes, 8.a ed., pág. 73). Seria mais correcto Disse; mas aqui deve entender se: «Já tinha dito, em tempos, Sá de Miranda, antes de outros que disseram coisas semelhantes». Temos aqui um jogo subtil dos tempos: o mais remoto
206 M. RODRIGUES LAPA
(mais-que-perfeito) e o mais recente (perfeito), que nem sequer é assinalado. O uso indevido do mais-que-perfeito, sobre baralhar os tempos da narração, dá ao discurso um tom remoto e artificial. Essa impressão é ainda agravada pelo uso que os escritores fazem do mais-queperfeito simples, que é hoje, salvo em algumas regiões do falar provinciano, uma forma banida da língua corrente, a qual só conhece a forma composta, muito mais expressiva, devido à presença do imperfeito e do particípio adjectivo. Deve porém advertir-se que, na língua do Classicismo, esse modo e tempo adquiriu matizes delicados de significação, que devemos ter presentes, se quisermos bem interpretar os respectivos autores. Veja-se, por exemplo, este formosíssimo soneto de Camões: Doces lembranças da passada glória, que me tirou Fortuma roubadora, deixai-me descansar em paz ua hora, que comigo ganhais pouca vitória. 5 Impressa tenho n’alma a larga história deste passado bem, que numca fora; ou fora e não passara; mas, já agora, em mim não pode haver mais que a memória. Vivo em lembranças, mouro de esquecido 10 de quem sempre devera ser lembrado, se lhe lembrara estado tão contente. Oh, quem tomar pudera a ser nascido: soubera-me lograr do bem passado, se conhecer soubera o mal presente! * Evocação de um amor passado, que se obstinava a perdurar na memória, todo o soneto gira em tomo de subtis ESTILÍSTICA DA LÍNGUA PORTUGUESA 207
transposições de tempo e modo, que a língua clássica sabia exprimir pelo mais-que-perfeito simples. Damos o sentido (aproximado) dos diferentes passos do poema; e por aí se vê a extrema complexidade dessa forma verbal: 6, que numca fora = que oxalá numca tivesse existido; 7, ou fora e não passara = ou, a ter existido, numca tivesse passado; 10, devera = deveria; 11, se lhe lembrara = se lhe lembrasse; 12, pudera = pudesse; 13, soubera-me = saber-me-ia;
14, soubera = soubesse. 5. O imperfeito. - O perfeito marca de modo absoluto o fenómeno passado, sem relação com o presente nem com a pessoa que fala. É um tempo objectivo, sereno, próprio do historiador que narra as coisas sucedidas. Exemplo: «O príncipe morreu na guerra; deixou três filhos ainda meninos, que foram criados desveladamente pela princesa». Modifiquemos agora o período neste sentido: «O príncipe morreu na guerra ; deixava três filhos ainda meninos, que eram agora todo o cuidado da princesa». A primeira oração ainda representa friamente o passado; as duas outras receberam agora um tom diferente: como que nos transportamos ao passado, pela fantasia e pelo sentimento, e vivemos duradoiramente os sucessos. Enfim, temos um pé no presente, outro no passado. Mais um exemplo: «Chegámos ao cume do monte. Foi então um pasmo: em toda a volta erguiam-se outeiros verdejantes; regatos prateados e luzentes serpenteavam pelas encostas». Depois de mencionarmos o facto passado, com o auxílio do perfeito, queremos traduzir as impressões do caminhante, ao percorrer, um dia, esses lugares. Usamos o tempo da simpatia, que é o imperfeito. Foram os escritores modernos que descobriram os recur-
208 M. RODRIGUES LAPA
sos expressivos desta forma verbal, tão própria para o descritivo e para a narração. Os poetas e romancistas não são como os historiadores: encaram o passado como se fosse presente e tendem a viver nele com as forças da imaginação e do sentimento. Não são obrigados a uma rigorosa objectividade. De aí, a predilecção pelo «eterno imperfeito», como lhe chamaram. Dir-se-á: se usar o imperfeito é viver no passado, por um esforço de simpatia, pode substituir-se naturalmente pelo presente histórico, ao qual está reservado o mesmo papel. Em parte, assim é: por isso, algums escritores modernos como, por exemplo, Joaquim Paço d’Arcos em Ansiedade, empregam o presente como tempo de narração: «Os camions penetram, com estrondo, no túnel da estrada. O portão volta a fechar-se. Ecoam tiros para as bandas de Alcântara. A revolução está na rua». Mas o presente histórico não faz mais do que aproximar de nós o passado, como uma lente que nos faz ver melhor os objectos distantes. O processo tem carácter visual; não se intromete nele, por via de regra, o sentimento nem a fantasia. No imperfeito estes factores intervêm em larga escala, e o próprio acto, vacilante entre o presente e o passado, carrega-se de misteriosa imprecisão e dános uma como que impressão de interminável. Os dois tempos aparecem por vezes misturados, como neste passo de Eça de Queiroz: «Onofre, encostado ao parapeito, embebido na frescura e na paz do luar, sentia, naquele silêncio universal, o bater cansado do seu coração. Mas mesmo esses instantes de repouso os dava ao Senhor, - atribuindo somente à sua misericórdia o impulso que o arrancara dentre os homens e o lodo em que eles se debatem, o trouxera à pureza desta solidão, onde a eterna verdade se avista tão claramente, como aquela grande lua, lustrosa e consoladora» ( Últimas páginas, 6.a ed., pág. 194).
Estamos vendo o processo: o autor instalou-se no passado, partilhando os sentimentos de Onofre, mas sem quebrar ESTILÍSTICA DA LÍNGUA PORTUGUESA 209
por completo as ligações com o presente. Por isso empregou o imperfeito. Uma vez no passado, perdeu-se a consciência dos dois tempos, e tudo foi considerado actual. Daí o emprego do demonstrativo esta e do presente avista, que, em rigor, deviam ser substituídos por daquela e avistava. No português do Brasil, o imperfeito, contraposto ao presente, pode até adquirir um curioso significado de negação e dúvida, como neste passo de Érico Veríssimo: «Pensa que vai pescar um marido assim? Pescavas...})- (Clarissa, 3.a ed., 59). Em Portugal, num caso destes, diz-se antes: «É o pescas...» Compreende-se que a sugestão negativa resultou precisamente do choque entre um tempo claro como o presente e um tempo obscuro como é o imperfeito. Também no discurso chamado semidirecto o imperfeito desempenha papel importante. Já vimos, num capítulo anterior, em que consiste esse discurso, que serve para o monólogo interior e para reproduzir com viveza a fala das personagens. O autor põe-se na pele do orador, e ambos se encontram a contar o caso. Esta mistura estilística é obra do imperfeito. Veja-se este trecho, em que o parvo monumental que é o conselheiro Acácio é representado em dois discursos, o directo e o semidirecto. Trata-se do antigo Passeio lisboeta, ao domingo, que alguém dissera ser uma grande sensaboria: « - Não serei tão severo, Sr. Brito! - Mas parecia-lhe que, com efeito, antigamente era uma digressão mais agradável. •- Em primeiro lugar - exclamou com muita convicção, endireitando-se - nada, mas nada, absolutamente nada pode substituir a charanga da Armada!
- Além disso, havia a questão dos preços... Ah! tinha estudado muito o assumto. Os preços diminutos favoreciam a aglomeração das classes subalternas... Bem longe do seu pensamento lançar desdouro nessa parte da população... As suas ideias liberais eram bem conhecidas. - Apelo para a Sr.a D. Luísa!-disse.-Mas, enfim, sempre era mais agradável encontrar uma roda escolhida! E, enquanto a si, numca ia ao Passeio. Talvez não acreditassem, mas nem mesmo quando havia fogo de vistas! Nesses dias, sim, ia ver por fora das 14 - Estilística
210 M. RODRIGUES LAPA
grades. Não por economia! Decerto não. Não era rico, mas podia fazer face a essa contribuição diminuta. Mas é que receava os acidentes! É que os receava muito! Contou a história dum sujeito, cujo nome lhe escapava, a quem uma cana de foguete furara o crânio. E, além disso, nada mais fácil que cair uma fagulha acesa na cara, num paletot novo... - É conveniente ter prudência -• resumiu, compenetrado, limpando os beiços com o lenço de seda da índia, muito enrolado» (O Primo Basílio, 15.a ed., pág. 120).
6. O conjumtivo. - Se o modo do indicativo exprime a realidade do facto, considerado em relação ao passado, presente e futuro, o do conjumtivo exprime a sua possibilidade, com todas as consequências que essa atitude de incerteza pode trazer para o espírito do homem: o sentimento da dúvida, o desconhecimento, o desejo, a surpresa, a probabilidade, etc. De um modo geral, exprimindo o conjumtivo o acto concebido pelo espírito, adquire por isso mesmo um tom abstracto e intelectual, que o toma pouco estimado da linguagem corrente. Vejamos este exemplo: «Como o encontrasse a ler, não lhe disse nada». A construção está correcta: o nosso espírito quer significar não tanto o acto de ele estar a ler, como a razão, o motivo de ele estar lendo. Por isso a oração de como é chamada causal. Mas sentimos que a construção é demasiado abstracta e preferimos dizer de outra maneira, embora talvez sem o mesmíssimo sentido: «Como o encontrei a ler, não lhe disse nada»; ou: ((Encontrando-o a ler, não lhe disse nada»; ou ainda: «Encontreio-o a ler e não lhe disse nada». Do conjumtivo passou-se para o indicativo e do imperfeito passou-se para o perfeito. Ficou a ideia mais clara, perdendo embora um pouco da sua subtileza. Os Clássicos, que usavam mais do que nós o conjumtivo, talvez sob a influência da sintaxe latina, notaram o carácter intelectual desse modo e já procuravam substituí-lo. Umi exemplo de Fr. António das Chagas: «Acho-me destas bandas, e é provável que não hei de voltar a elas». A construção lógica seria antes volte. O escritor preferiu usar o ESTILÍSTICA DA LÍNGUA PORTUGUESA 211
futuro perifrástico, transformando uma dúvida numa espécie de certeza futura. O mesmo se dava com a locução é possível, que hoje todavia construímos sempre com o verbo no conjumtivo. O P.e António Vieira usava nestes casos o indicativo, quando queria acentuar a realidade do facto e exprimir, por contraste, a surpresa provocada: «É possível que os peixes ajudam à salvação dos homens, e os homens lançam ao mar os ministros da salvação ?» Hoje, diríamos ajudem e lancem, por um regresso à lógica e ao pensamento abstracto. Essa tendência para o conjumtivo, que diminui o pitoresco, a visualidade do estilo, aparece, por exemplo, na linguagem de TeixeiraGomes, com uma insistência surpreendente: «Depois do jantar, como suceda que procuremos um banco na praça «Gil Vicente.» - «Mas, porque em todas essas igrejas os mesmos variados estilos se encontrem representados». É uma das provas, e das mais curiosas, da ordenação lógica, do «classicismo» do seu estilo. Vejamos agora este modo corrente de dizer: «Se tem plantado essa árvore, já tinha ameixas para o ano!» O modo lógico, gramatical de dizer isto, seria: «Se tivesse plantado essa árvore, já teria ameixas para o ano!» Mas a linguagem familiar, que se move por razões que não são propriamente as lógicas, prefere às incertezas e hipóteses do conjumtivo e do condicional as realidades presentes do indicativo. Sempre a mesma tendência para reduzir passado e futuro ao presente, e transformar a dúvida mortificante em certeza consoladora. 7. O imperativo. - Há em português dois imperativos, ao contrário do que sucede em outras
línguas, como no francês e italiano: um imperativo positivo e outro negativo. Exemplo: - Vai depressa! - Não te demores ! - Vinde cedo! - Não venhais tarde! O primeiro é expresso por uma forma que corresponde praticamente à 2.a pessoa do singular e do plural do presente do indicativo, com um s a menos: acaba, acabai, resolve, resolvei, parte, parti. Este imperativo marca
212 M. RODRIGUES LAPA
uma ordem dada com energia. O outro é expresso pelo conjumtivo; e como este modo é um veículo de dúvidas e vacilações, compreende-se que a ordem proibitiva seja mais atenuada do que a ordem positiva, em que se manifesta fortemente a vontade do ordenante. Nas antigas línguas dava-se isso: as diferentes atitudes de quem fala eram traduzidas em modos diferentes. O português conserva com felicidade essa primitiva diferenciação. Porém a força da analogia e certa desatenção das subtilezas faz que não raro se ouça e até se escreva o segumdo imperativo com a forma do primeiro: -Não vinde tarde! - Não sede apressados! - Não crede nisso! É forma usual na língua popular brasileira, como se vê da cantiga: «Não tomai outros amores / sem saber meu fim primeiro». Camilo notou numa tradução do «Hamlet» de Shakespeare esta «bestialidade ingramatical», como lhe chama: «Sede razoável, não ide». O tradutor arrepelou-se diante da forma arcaica vades, ali devida, e cometeu um erro de gramática. Aliás, essa forma da 2.a pessoa do plural não se usa em estilo corrente e tem carácter antiquado. No estilo familiar substitui-se pela 3.a pessoa: - Não venham tarde! - Não sejam impacientes ! Também se verifica a tendência inversa: para atenuar a dureza do imperativo categórico, empregase o conjumtivo: «Sejas bem-vindo, meu querido amigo». Sente-se perfeitamente que a forma sejas é menos seca, mais doce e afectiva do que sê. É a isto que se chama o conjumtivo optativo, por traduzir um desejo da pessoa que fala. Quando a ordem é dada a um conjumto de pessoas indeterminadas, ou quando se quer diminuir a importância da pessoa a quem se fala, fazendo incidir a atenção sobre o acto em si, emprega-se o infinitivo. Exemplo: «Não abrir com o comboio em andamento». - «Boas novas vos trago. Alegrar, que é chegada a hora de vos irdes para o céu!» - «Vingar, rapazes! Fartar, vilanagem!» ESTILÍSTICA DA LÍNGUA PORTUGUESA 213
8. A «endorreia». - É assim que os puristas chamam ao abuso do gerúndio e ao seu uso pouco vernáculo, em frases como esta: «Recebeu uma caixa contendo roupa». A construção cheira a francesia, e é na verdade contrária aos usos da língua clássica e popular, que diria a frase mais portuguêsmente: «Recebeu uma caixa que continha roupa», ou «Recebeu uma caixa com roupa dentro». O problema consiste em saber se de facto o uso do gerúndio traz vantagem estilística sobre os outros processos. O argumento do «classicismo» não serve: não podemos nem devemos escrever hoje como no tempo de Fr. Luís de Sousa. No caso em questão, o primeiro modo proposto é estilisticamente inferior: a oração relativa com o imperfeito tem carácter artificial, sendo a construção, além disso, demasiado longa e malsoante. E ainda soaria pior, se outra relativa lhe acrescentassem: «Recebeu uma caixa que continha roupa, que a tia lhe mandara». Não há dúvida pois que o uso do gerúndio é em certos casos preferível à oração relativa, sobretudo quando não temos o recurso acertado, expressivo, das preposições. Não abusemos dele, mas não hesitemos em empregá-lo, sempre que o reconheçamos superior a outros modos de escrever. Tem um poder caracterizador semelhante ao adjectivo, como se vê deste passo de Eça de Queiroz: «Os
seus braços redondinhos descobriam por baixo, quando se erguiam, prendendo as tranças, fiozinhos louros f ris ando e fazendo ninho». Nenhum outro processo daria o colorido movimentado do gerúndio na caracterização do objecto. Para que havemos pois de banir da língua este instrumento expressivo, sob a acusação de que não era usado pelos nossos tresavós e nos veio directamente d o francês ? O que aliás não é inteiramente verdadeiro, pois se apontam exemplos dessa construção em autores como o P.e Manuel Bernardes e Alexandre Herculano. Para se avaliar até que ponto de exageração ridícula
214 M. RODRIGUES LAPA
pode levar o medo da «endorreia» acoimada pelos puristas, veja-se esta frase, dum autor brasileiro dos nossos dias: «Outras reformas realizadas nos últimos anos e versantes sobre questões financeiras». O infeliz vernaculista quis evitar o «galicismo» versando, que é o que convém na frase, e foi buscar um mostrengo arcaico, incompreensível e inadmissível para os hábitos da língua actual. 9. O particípio. - Sabido como há verbos com dois particípios, um regular, outro irregular, é ainda um problema de estilo o uso de um e de outro nas formas compostas. Como diremos: «O lavrador tinha matado o porco», ou «O lavrador tinha morto o porco ?» A Gramática ensina-nos que ambas as formas são correctas, mas que com os verbos ter e haver é mais usual o particípio regular. Compete à Estilística dar a razão do facto, que a Gramática raramente explica. Nos chamados particípios irregulares (morto, aceso, ganho, gasto, salvo, etc.), a forma verbal cristalizou, por assim dizer, num adjectivo. Uma vez concluída a acção, surgiu um estado que necessita de ser definido por meio dum adjectivo verbal. Por isso se diz: «O homem está morto». «O candeeiro ficou aceso». - «A tripulação foi salva». Morto, aceso, salva são verdadeiros adjectivos que caracterizam o sujeito. Já se dissermos: «Tinha acendido o candeeiro» - «Têm matado todas as perdizes» - o particípio regular dá-nos uma noção verbal, activa, do fenómeno realizado. Em resumo: com os particípios irregulares exprimimos sobretudo o estado; com os regulares traduzimos a acção. Os primeiros têm um carácter parado, estático; os segumdos são vivos e dinâmicos. Quando ouvimos dizer: «Tinha matado o porco», temos a representação súbita do acto e da complicada operação que se lhe segue. A outra forma, «Tinha morto o porco», não causa em nós o mesmo efeito e até se pode confumdir com outra, que nos dá uma ideia bem diferente: «Tinha o porco morto». Os escritores, sobreESTILlSTICA DA LÍNGUA PORTUGUESA 215
tudo os grandes, que têm o fino sentimento da língua, viram bem o caso. E um deles, apoiado no uso popular, não hesitou em empregar matado, contra as regras da Gramática, mas seguindo as da Estilística: «E foram os próprios animais que, matada a sede, retomaram a marcha». -• (Guimarães Rosa, Sagarana, pág. 178). Se escrevesse morta, o efeito não era o mesmo; aquele matada, com sentido progressivo, está em vez de tendo matado. Nota-se modernamente certa inclinação para as formas irregulares, mesmo quando empregadas com o verbo ter. É o caso de ganho, gasto, salvo, eleito, escrito. Parece haver certa preferência pelas dicções: tenho ganho, tenho gasto, tinha salvo, tinha eleito, tenho escrito. É naturalmente uma questão de analogia. A linguagem corrente, cuidada, menos sensível às delicadezas de significado e amiga das formas curtas, prefere o adjectivo para representar o estado e a acção; mas ainda nestes casos continua a ser correcto, quando intervém o verbo ter, o emprego do particípio regular. O povo analfabeto, com intuição profumda, dá-lhe preferência.
12. A CONCORDÂNCIA 1. O erro de concordância. - Uma das coisas que mais profumdamente distinguem a Gramática da Estilística é o conceito de erro: ao contrário do que sucede na Gramática, em Estilística não há propriamente erros, porque para os maiores desvios é achada uma determinante psicológica, natural. A Estilística tem por missão explicar, esclarecer; a Gramática sistematiza e impõe normas, muitas vezes com rigidez excessiva. A teoria da concordância, encarada sobretudo na sua evolução histórica, demonstra perfeitamente esta diferença fumdamental entre as duas disciplinas. Suponhamos que um aprendiz de estilo escreve uma frase destas: «Dá um aspecto interessante, os prédios com as janelas cheias de luz». Um gramático censura logo a frase e aponta a falta de concordância entre o verbo e o sujeito:--Aquele dá está errado: devia escrever-se dão. O técnico do estilo não se deixa levar por esse argumento, e procura, com base na psicologia, esclarecer aquela infracção. Quem assim escreveu como que antecipou a sua visão e considerou não os prédios na sua variedade, mas no seu conjumto. Daí, o emprego do singular pelo plural. Que essa operação é natural, prova-o o seguinte passo de Francisco de Morais, no Palmeirim de Inglaterra: «Por onde não é pouco de estimar as conversações virtuosas e de homens sábios». Aquelas conversações são tidas como um todo, de que se extrai qualquer coisa frutuosa. com esse todo, com essa coisa concorda aquele é. ESTILÍSTICA DA LÍNGUA PORTUGUESA 217
Vemos pois que, a quatro séculos de distância, coincidiram num mesmo processo de estilo o aprendiz e o escritor quinhentista. Deste modo, abonada como anda com um exemplo clássico, é provável que o gramático feche os olhos à irregularidade. Outro erro, muito frequente: «O emprego destes termos demonstram bom conhecimento da língua». Está-se vendo a origem do deslize: o verbo, em vez de concordar com o sujeito (emprego), foi atraído para o complemento determinativo no plural (destes termos). O gramático não deixará de censurar a construção, como errónea; só admite tal concordância, a que chama «atractiva», quando o sujeito for um nome colectivo, como por exemplo nesta frase: «Um bando de corvos pairavam sobre o cadáver». O estilista porém não sente dificuldades em provar que aquela construção era usual no período clássico e já vem do século xiv, como se vê deste passo do Orto do Esposo: «Em um monte há uas árvores de maravilhosa altura, e o fruito delas som de mui bom odor». Um exemplo apenas de Jorge Ferreira de Vasconcelos, escritor clássico bem conhecido: «Só a graça desses olhos venceram os brutos animais». Estas amostras, a que muitas outras se poderiam jumtar, dizem-nos com suficiente clareza que a concordância é um campo muito vasto, em que certas combinações da inteligência, da imaginação e da vontade andam constantemente em briga com a lógica gramatical. Daqui resulta constituir um dos capítulos mais discutidos do estudo da língua. Evidentemente, não podemos aceitar como bons todos os caprichos da fantasia; há necessidade duma certa ordem, duma razoável disciplina; mas não vamos também, em nome deste princípio, deixar de reconhecer os direitos do espírito criador e a beleza sugestiva de certas liberdades. No sistema da concordância dá-se precisamente o contrário do que sucede em outros domínios da
história do idioma: os exemplos da língua antiga autorizam as maiores
218 M. RODRIGUES LAPA
irregularidades da língua moderna. Qualquer dos exemplos de construção irregular por nós apresentados é verdadeiramente inofensivo, se o compararmos às audácias dos escritores bem vernáculos dos séculos xvi e xvn. Vejam-se apenas estas quatro frases, respectivamente de Heitor Pinto, João de Barros, Francisco de Morais e Fr. António das Chagas: 1. A formosura de Paris e Helena foram causa da destruição de Tróia. 2. Os povos destas ilhas é de cor baça e cabelo corredio. 3. Foi D. Duardos e Flérida aposentados no aposento que tinha o seu nome. 4. Pouco importa que tenha a casa cheia de pérolas e diamantes, se se não aproveita delas. Se atentarmos bem nestas frases e nas outras já apresentadas, vemos que esses desvios aparentes de concordância se explicam sobretudo por três motivos: um, que consiste em concordar as palavras não segumdo a letra mas segumdo a ideia; outro, segumdo o qual a concordância varia conforme a posição dos termos do discurso; e um terceiro, que traduz o propósito de fazer a concordância com o termo que mais interessa acentuar ou valorizar. A l.a e 2.a frases são um exemplo dessa concordância mental, a que se chama «silepse». Na primeira, como se trata de duas pessoas, consideram-se dois exemplos de formosura, e por isso se pôs o verbo no plural. Na segumda frase, temos em mente, para além do plural, a imagem colectiva, representada por a população, a gente. No terceiro exemplo, sentimos perfeitamente que o singular foi se deve apenas à sua localização no princípio da frase; se pusermos o verbo depois do sujeito, já não é possível essa construção: «D. Duardos e Flérida foram aposentados...». Enfim, na 4.a frase, hoje diríamos ESTILÍSTICA DA LÍNGUA PORTUGUESA
219
antes deles; mas o autor preferiu referir-se a pérolas, por ser para ele a palavra mais expressiva e poética. Que havemos de concluir de tudo isto ? Que o que hoje se afigura aos olhos do gramático um erro ou uma impropriedade foi largamente empregado pelos nossos melhores escritores clássicos. Camões, em tudo criador e genial, usou largamente de todas estas liberdades de concordância. É que, de um modo geral, o sistema da concordância tem evoluído de forma que se têm refreado as liberdades da silepse em benefício da concordância literal. Tem sido o triumfo da lógica sobre a imaginação. E resulta daí, não há dúvida, maior disciplina e maior clareza. Vamos ver como, na oficina de um grande escritor, se processa este trabalho de clarificação e melhoria do estilo. Na l.a versão da sua novela, Singularidades duma rapariga loura, em 1874, Eça de Queiroz escreveu: «e parecia a Macário que todo o céu, a pureza, a bondade das flores e a castidade das estrelas estava naquele claro sorriso». O autor, nas edições seguintes emendou para estavam, e teve boas razões para isso: aquele sorriso espelhava todos os elementos e não apenas o céu. É pois sempre lícito aos artistas escolher a concordância que melhor lhes parece. Os gramáticos, é
claro, reagem contra isto. Para eles, não devia haver liberdade de escolha, e é sempre lamentável que uma regra tenha excepções. Vejamos o que diz sobre isto o gramático brasileiro Carlos Gois, autor do mais completo tratado de concordância em português: «A língua portuguesa tende cada vez mais a umiformizar-se: procura pois estratificar as suas formas de dizer, fugindo ao sincretismo, que deve ser um fenómeno antes das línguas ainda em formação do que de um idioma já emancipado e construído». Estamos vendo aonde se quer chegar: ao ideal duma língua acabada, única, onde não haja essa pululação de formas e construções, esse «sincretismo», que tanto arrelia os
220 M. RODRIGUES LAPA
ordenadores das regras gramaticais. Ora a língua não acumula formas de dizer e escrever só por amor à variedade. Essas variantes traduzem outros tantos matizes do sentimento e da ideia. Não são portanto formas equivalentes, meios supérfluos de expressão. No dia em que atingíssemos o ideal (impossível) de uma língua perfeita, dissecada, sem excepções, teríamos matado a Arte. Ora, morrer por morrer, que morra antes a Gramática... 2. O verbo e o sujeito. - Mencionaremos apenas os casos mais interessantes da concordância do verbo com o sujeito: a) Sujeito colectivo. - Sempre que se nos depara um sujeito colectivo, podemos ter a respeito dele uma dupla representação: a do todo e a das partes de que se compõe. O termo floresta pode sugerirnos uma noção global, abstracta de quantidade: ou então podemos ver as árvores uma a uma, e teremos assim uma representação parcial, concreta, de qualidade. Estas duas operações desempenham papel importante na concordância do verbo com o sujeito colectivo, porque umas vezes interessa-nos mais chamar a atenção para o conjumto, outras para o seu desdobramento em partes. Diríamos hoje: «O povo pediu-lhe que se chamasse Regedor». No período antigo da língua, no tempo de Fernão Lopes, esta frase foi por ele assim construída: «O povo lhe pediram que se chamasse Regedor». O verbo pôs-se no plural, porque o sujeito, povo, era um colectivo. Hoje seria impossível esta concordância, por brigar contra a lógica; mas o grande escritor que era Fernão Lopes não via no povo uma entidade abstracta, antes qualquer coisa de muito concreto e de muito vivo, que fervilhava pelas ruas e praças de Lisboa, na ânsia de escolher um rei. A construção moderna, com o singular, é mais lógica, mais intelectual; a construção antiga é mais pitoresca, mais visual. Menos capaz de abstracções, o português de outros tempos tinha ESTILÍSTICA DA LÍNGUA PORTUGUESA
221
a tendência para pluralizar os seres colectivos. Afonso X, João de Barros, Camões, Fr. Luís de Sousa, para só citarmos os grandes, usaram largamente do processo, preferindo a concordância mental à morfológica e tirando disso curiosos efeitos expressivos, como se vê destes exemplos, que vão por ordem respectiva: «O convento levaron logo dali a moça». - «O sacerdote peça também ao povo que roguem a Deus pela alma do Infante». - «A fermosa e forte companhia / o dia quase todo estão passando». - ((Gente que faziam conta que tinham a presa certa». De João de Barros há outro exemplo curioso de concordância mental: «Ajumtou dous batéis pêra andar com fisga e arpões a eles (baleatos), o qual passatempo lhe houveram de custar a vida». O verbo pôs-se no plural, porque a atenção está fixada sobre os dois batéis. O passatempo era constituído por duas pescas diversas: a da fisga e a do arpão. A essa diversidade se refere o verbo no plural. Parecido com este é aquele caso do verso do Crisfal, que tem quebrado a cabeça aos comentaristas: «houve um pastor e pastora / que com tanto amor se amaram / como males lhe causaram / este bem, que numca fora». Devia ser causou; mas como bem se refere aos dois, o verbo concorda não com o termo abstracto no singular, mas com a imagem concreta dos dois personagens.
Na língua moderna - dissemos - esta concordância é impossível, o que não obstou a que Mário de Andrade assim escrevesse: «e o casal esqueceram que havia mumdo» - (Macumaíma, 56). Contudo, quando o sujeito colectivo está mais distanciado do verbo, já este se pode pôr no plural, à semelhança da construção antiga. Veja-se num exemplo de Garrett: «O resto do exército realista evacua neste momento Santarém; vão em fuga para o Alentejo». O primeiro verbo ainda se pôs no singular, por estar sob a influência próxima do colectivo; o outro já foi para o plural, tomando-se a imagem mais concreta e mais viva: agora já não é um grupo
222 M. RODRIGUES LAPA
umido e disciplinado, mas uma turba em desordem, mais ou menos dispersa, que se retira. Todo este efeito se conseguiu com aquele primeiro verbo no singular e com o segumdo no plural. O filólogo brasileiro Said Ali explicava o verbo no plural como um propósito nos escritores, que pretendiam impressionar pelo número elevado de indivíduos. Não é bem essa a razão, como se demonstra por aquele último exemplo. O autor, com o uso do plural, quer dar um efeito visual. O plural, dissociando o número, faz evidenciar as partes e cria o pitoresco. O exemplo de João de Barros, aduzido por Said Ali, ilustra bem o facto: «Vendo os nossos como a gente destas terradas andavam nadando por se acolher a terra». Como que estamos vendo os grupos dispersos de mouros, fustigados pelos portugueses, nadando aflitivamente em direcção à praia. b) Sujeito múltiplo. - Quando o sujeito se compõe de vários elementos justapostos, é de boa lógica que o verbo se ponha no plural: «O urso e o lobo são animais ferozes». No nosso espírito há a dissociação clara desses dois elementos. Esta regra geral sofre porém importantes excepções, todas elas subordinadas mais ou menos ao princípio já exposto: a tendência para associar ou dissociar as partes, a posição dos termos concordantes, e a intenção do autor em salientar um dos termos. Os gramáticos registam, ao todo, 16 excepções. Vejamos os casos mais representativos: Quando as partes do sujeito múltiplo forem expressões sinónimas ou formarem um todo indiviso, o verbo põe-se geralmente no singular. O conhecido passo de Camões comprova bem o caso: «Triste ventura e negro fado os chama neste terreno meu». Segumdo os gramáticos, é de rigor omitir o artigo antes do segumdo termo, como nesta frase de Diogo do Couto: «A mágoa e dor lhe ressuscitou o entendimento». Se puséssemos o artigo antes de dor, já os dois ESTILÍSTICA DA LÍNGUA PORTUGUESA
223
termos não ficavam bem sinónimos, e o verbo devia, em rigor, pôr-se no plural: «A mágoa e a dor lhe ressuscitaram o entendimento». com efeito, a fumção do artigo definido é a de particularizar o objecto; e para que dois ou mais elementos possam formar um todo, é necessário que não se acentuem as particularidades que os distinguem. Contudo, casos há em que essa particularização e a proximidade do verbo conspiram para dar ao último elemento um lugar marcante na frase. Então, já a concordância se pode fazer com ele. É o que sucede nesta frase do P.e António Vieira: «Que caia Simão, está muito bem caído; que morra, também estaria muito bem morto, que o seu atrevimento e a sua arte diabólica o merecia». Compete aos bons escritores construir a frase de maneira que esse elemento que determina a concordância e tem significado mais importante esteja colocado no lugar que lhe é devido. Mas nem sempre assim sucede. D. Francisco Manuel de Melo violou este princípio, no seguinte curioso passo do seu apólogo O escritório avarento sobre o poder do dinheiro: «e possa aquele curto interesse fazer maiores e menores homens aqueles que Deus e a Natureza fez iguais». A palavra de significação fumdamental é evidentemente para o autor o termo Deus, que devia pôr-se em segumdo lugar, próximo do verbo. Mas no estilo, como na vida, também há o sentimento das desigualdades. Seria pouco decente para um católico do século xvn pôr a Natureza à frente de Deus, além de que a frase resultaria muito pouco musical: «...aqueles que a Natureza e Deus fez
iguais». Uma outra série de considerações deveu influir no espírito do autor: os sujeitos Deus e a Natureza formam um todo, em que sobressai naturalmente a ideia de Deus, de que a Natureza era uma espécie de emanação, um símbolo. A doutrina religiosa do tempo impumha portanto a umidade dos dois conceitos, logo, o verbo no singular. Hoje diríamos antes fizeram, porque, com o gradual enfraquecimento da ideia de Deus,
224 M. RODRIGUES LAPA
os dois conceitos já são equivalentes e separáveis. É um exemplo curioso de como o ambiente espiritual pode actuar no processo da concordância. Suponhamos agora esta frase: «A astúcia e a coragem valeram-lhe de pouco». O verbo põe-se normalmente no plural. Mas se colocarmos o sujeito depois, já o verbo se põe em regra no singular, concordando com o elemento mais próximo: «De pouco lhe valeu a astúcia e a coragem». Também podemos dizer valeram; mas é mais natural, mais recomendável pôr o verbo no singular, sobretudo quando se trata de nomes abstractos. A explicação não é difícil: vindo o sujeito antes, somos levados a realizar uma operação de contagem, uma adição, pondo por isso o verbo no plural. No caso inverso, a forma verbal tem de ser fixada antes de se proceder à contagem e é naturalmente atraída pela forma do primeiro elemento do sujeito. Que isto é assim, prova-o o facto de, ainda que o segumdo elemento esteja no plural, o verbo concordar com o mais próximo, como se vê por este exemplo de Garrett: «Hoje mesmo estará em minha casa o tabelião, as testemumhas e os nossos parentes». Esta antecipação, própria da linguagem oral, impôs-se depois à linguagem escrita. É elucidativo verificar, a este respeito, que aquela frase de Garrett é tirada de uma das suas comédias. c) Sujeito - Pronome relativo. - Repare-se nas duas frases portadoras de duas concordâncias: «Sou um pobre homem que não faço mal a ninguém». - «Sou um pobre homem que não faz mal a ninguém». A filáucia gramatical pretende banir a segumda construção, só porque não é abonada por Camões e Bernardes; e assim se contraria o uso vivo da língua, para a qual as duas frases têm um valor estilístico diferente. O primeiro modo de dizer é mais enérgico e mais afectivo, por concentrar todo o interesse na primeira pessoa: é um processo lírico. A segumda construção, com o verbo na terceira pessoa, perde intensidade afectiva e ESTILÍSTICA DA LÍNGUA PORTUGUESA 225
toma-se propriamente narrativa. De modo que as duas concordâncias, não sendo equivalentes, deverão conservar-se e empregar-se conforme as circumstâncias. E assim se faz efectivamente, queiram ou não queiram os gramáticos. Um caso também muitas vezes debatido tem sido o da concordância de frases como esta: «Foi dos primeiros que chegou lá acima». Os gramáticos censuram esta forma e preconizam, conforme à boa lógica, o verbo no plural: «... que chegaram lá acima». Ora a verdade é que os Clássicos usaram também a primeira forma, como se pode ver destes dois exemplos de Fr. Luís de Sousa e de Manuel Bernardes: 1. Foi uma das primeiras terras de Espanha, que recebeu a fé de Cristo. 2. Uma das cousas, que derrubou Galba, foi tardar algum tanto. Tudo depende afinal em saber qual é o antecedente do pronome relativo: se uma, se o plural que se lhe segue. Vê-se bem que os dois escritores empregaram o verbo no singular, porque querem chamar mais vigorosamente a atenção para uma terra e para uma cousa; o plural faria com que essa terra e essa cousa se não distinguissem perfeitamente do grupo das outras, em cuja companhia vêm mencionadas. Este caso de dupla concordância dá-se em outras línguas. E a Academia Francesa
teve, em 1798, o bom senso de admitir o singular ou o plural em frases como esta: «A astronomia é uma das ciências que mais honra (ou honram) a humanidade». Seria a nossa capaz desta liberalidade ? d) Sujeito com o verbo no infinitivo. - Dizem os gramáticos que é indiferente o uso do singular ou do plural, em frases como estas: 1. As estrelas parecia sorrirem. 2. As estrelas pareciam sorrir. 15 - Estilística
226 M. RODRIGUES LAPA
A primeira construção é mais clássica, mais literária, a segumda mais popular e corrente, mais própria da língua falada. Estilisticamente, o emprego do verbo parecer no singular, sendo mais lógico, entorpece o valor da representação, toma-a mais abstracta e intelectualiza a frase; apenas o infinito pessoal dá vida à imagem. Na segumda frase, mais afectiva, aquele infinitivo impessoal lança um pouco de frialdade sobre a representação. Por isso há a tendência para se dizer: «as estrelas pareciam sorrirem», embora os gramáticos só admitam a construção, quando o infinitivo estiver a uma certa distância de parecer, como na seguinte frase de Herculano: «As aves aquáticas pareciam, nos seus voos incertos, ora vagarosos, ora rápidos, folgarem com os primeiros dias da estação dos amores». O certo é que escritores da envergadura dum João de Barros empregavam já no século xvi aquela concordância: «Vinham assi ordenados em fieiras que pareciam virem na ordem das procissões». Como diz Said Ali, que tratou magistralmente a questão, «a desinência pessoal no infinitivo deixa-nos como que ver os contomos e o desenho da imagem do sujeito». A este respeito, os gramáticos denumciam a impropriedade do infinitivo pessoal em frases como esta de Bernardim Ribeiro: «Vi as aves buscarem seus poisos». Ora a verdade é que a forma pessoal é muito mais expressiva, pelo que contém de visualidade, de pitoresco. Há como que um prolongamento da visão, que nos permite descer às particularidades do objecto em movimento, o que não se dá com o infinito impessoal, de uma secura abstracta, parada. e) Sujeito com o verbo pronominal seguido de infinitivo. - Os gramáticos costumam pronumciarse sobre a vernaculidade das duas frases seguintes: 1. Não se deve infringir as leis. 2. Não se devem infringir as leis. ESTILÍSTICA DA LÍNGUA PORTUGUESA 227
Preferem a segumda, para que não possa parecer que o se da primeira fumcione como sujeito. Ora é precisamente isso que se não pode nem deve evitar. O valor estilístico daquelas formas é hoje diferente: no primeiro caso chama-se a atenção, por meio do reflexo, para a pessoa, indeterminada, susceptível de infringir as leis; no segumdo caso, devido à concordância, a atenção recai toda no objecto - as leis. Não se pode pois banir uma forma em proveito da outra. O autor clássico Fr. António das Chagas escreveu: «De tão longe não se pode dar regras para a oração». Pôs o verbo no singular, poique quis expressamente realçar a impossibilidade do sujeito, inibido de dar conselhos por estar muito longe. É claro que aquele se, neste caso, queiram ou não queiram os gramáticos, fumciona como sujeito e equivale a um pronome indefinido: uma pessoa, um sujeito, a gente. O galego moderno soube conservar felizmente esse indefinido: «um (= uma pessoa) non debe infrinxir as leises», seguindo as pisadas do francês: «on ne doit pás enfreindre lês loís» e remoçando a antiga construção galego-portuguesa: «omen non deve...». Vem pois de muito longe esse emprego, não é galicismo, e introduz um matiz de significação que é das coisas mais felizes do idioma. Os gramáticos nada podem contra isso. 3. O adjectivo e o substantivo. - Segumdo a regra geral, o adjectivo concorda em género e número
com o substantivo. Nada mais lógico. A dificuldade aparece quando há mais de um substantivo de número e género diferentes, quando há mais de um adjectivo ou quando o adjectivo é um nome de cor. Vejamos esta frase: «Revelou actividade e energia desusada». Dizem os gramáticos que, em casos destes, tanto faz empregar o adjectivo no singular como no plural; mas que a concordância no singular é mais do génio da língua. Pode ser; mas o que importa é acentuar que as duas frases não são equivalentes em poder expressivo. Quando dizemos
M. RODRIGUES LAPA
«actividade e energia desusada», sentimos que o adjectivo só qualifica, por assim dizer, o substantivo que lhe está imediatamente próximo; se dissermos «actividade e energia desusadas», já o plural abrange por igual o grupo dos substantivos. Para evitar que o primeiro substantivo fique sem ser qualificado, a língua fá-lo geralmente preceder de um elemento de caracterização, o artigo indefinido: «Revelou uma actividade e energia desusada», E esse será, jumtamente com a forma do plural, o melhor estilo, por não deixar na sombra um dos elementos a caracterizar. Podemos pois tirar disto uma conclusão: será sempre melhor concordância aquela em que o adjectivo possa qualificar todos os substantivos a que diz respeito. Este princípio veiifica-se quando há dois ou mais substantivos no singular, de género diferente. Então, o adjectivo põe-se em legra no masculino do plural: «Tinha a cabeça e o tronco monstruosos». Não podemos dizer monstruoso, porque perdemos de vista a cabeça. Quando, porém, os substantivos são abstractos, o caso é já diferente. Tanto podemos dizer «Isso requer estudo e paciência demorados» como «Isso requer estudo e paciência demorada»; mas a concordância com o mais próximo (demorada) é ainda a mais corrente. Como explicar esta irregularidade ? Os gramáticos preceituam esta concordância, sempre que os substantivos são sinónimos («O furor e raiva humana»); mas aqui não se trata de termos sinónimos. A explicação só pode ser uma: dois nomes abstractos, desde que não sejam antónimos, tendem a formar no nosso espírito um todo indivisível. Ora a fumção do plural, como temos visto, é a de dissociar as partes, tomando-as mais concretas, mais visuais. Daí, o emprego do singular. Se há dois substantivos de género e número diferente, o adjectivo tende a concordar com o mais próximo. Os gramáticos citam os seguintes exemplos clássicos: «com pescoço e mãos velosas»; «o estudo e profissão monástica». O mesmo j ESTILÍSTICA DA LÍNGUA PORTUGUESA 229
se dá quando ambos os substantivos estão no plural: «terra e mares afastados», «mares e terras desconhecidas». Contudo, esta tendência clássica está muito longe de ser geral. Houve e há inclinação para pôr o adjectivo no masculino do plural, sobretudo quando um dos substantivos, embora não o mais próximo, está neste género e número. Assim, podemos dizer «estudos e profissão monásticos», «mares e terras desconhecidos»; mas fica sempre duvidoso se não há uma leve diferença de sentido entre estes vários modos de concordar. Na verdade, quando dizemos «por mares e terras desconhecidas», aludimos sobretudo à ignorância em que estamos das terras; se dizemos desconhecidos, pomos os dois nomes ao mesmo nível, quanto ao desconhecimento em que estamos de ambos. Esta atracção do mais próximo dá-se ainda quando o adjectivo está colocado antes dos substantivos. É um caso semelhante àquele do verbo antes do sujeito múltiplo: teremos de fixar antes de mais nada a forma do adjectivo, e, naturalmente, pomo-lo de acordo com o substantivo mais próximo; não temos tempo de fazer a contagem e a discriminação dos géneros. É o que se vê nesta frase de Garrett: «Informada a princesa e seu cortejo». Analisemos agora exemplos em que aparece o substantivo no plural e dois ou mais adjectivos no singular. Carlos Gois menciona as seguintes frases, de Camões e P.e Manuel Bernardes: «O quarto e quinto Afonsos». -• «Mui versado em línguas grega, hebraica, siríaca, caldaica». O gramático
brasileiro chama a esta sintaxe «ilógica», porque ofende a hierarquia gramatical, pondo o substantivo subordinado ao adjectivo. E abona-se com o povo, que não pratica essa concordância pretensiosa, com a qual os literatos cuidam realçar o estilo. O gramático brasileiro não viu bem a questão. Quando fazemos uma citação numérica de dois ou mais elementos, procedemos mentalmente a uma operação de somar, que conduz inevitavelmente ao plural. O plural
230 M. RODRIGUES LAPA
impõe-se ainda na primeira frase citada, por termos a ideia antecipada de se tratar de uma grande série. Recomendam os gramáticos do partido de Gois que se diga - «mui versado na língua grega, na hebraica, na siríaca, na caldaica» e «o quarto e o quinto Afonso». Mas, reparando bem, o significado das frases não é talvez o mesmo: a repetição do artigo no singular acentuou enfaticamente o valor das partes e diminuiu a importância do conjumto, que era porventura o que interessava ao autor. No que respeita aos nomes de cores, há que mencionar primeiramente o caso em que o adjectivo é nome de cor proveniente de substantivo. Carlos Gois cita exemplos de «expressões contractas», segumdo lhes chama: vestidos rosa, gravatas laranja, luvas pérola, meias salmão, laços malva, etc. Ora a verdade é que o uso do português não admite a maior parte desses casos de discordância, importados dos figurinos franceses. Os exemplos adiante citados dos impressionistas Guilherme Gama e Fialho de Almeida soam, por enquanto, como evitáveis galicismos: «um mar sossegado e rosa}~>; «gotas pérola vogando como algas de luz». Diremos, por via de regra: vestidos cor-derosa, gravatas cor-de-laranja, etc. Só se verifica a discordância, quando aplicamos nomes franceses: fitas grenat, meias beige, luvas marron, etc. Outro caso a considerar é o do adjectivo composto. De um inquérito a que procedemos nos meios femininos costureiros, verificámos que há muitas hesitações na concordância. Primeiramente, proferimos a frase no singular: Um vestido verde-garrafa. Depois dissemos: Dois vestidos... e a interrogada estabelecia a concordância. A forma do singular conservou-se umiformemente em nomes tais como rosa-velho, preto-azeviche, amarelo-torrado. O plural só apareceu sem hesitação em azuis claros, e isso talvez se deva a que a palavra não é considerada ainda composta. Houve contudo hesitação entre azul-escuro e azuis-escuros, verde-escuro e ESTILÍSTICA DA LÍNGUA PORTUGUESA 231
verdes-escuros; ficaram predominantemente no singular azul-ferrete, azul-celeste, azul-eléctrico, azul-safira, azul-marinho, azid-pavão; mas ainda aqui se ouvia de quando em quando azuis-celeste ou azuis-ceUstes, azuis-eléctrico ou azuis-eléctricos. Outros nomes em que houve hesitação: verdegarrafa ou verdes-garrafa, verde-azeitona ou verdes-azeitona, preto-carvão ou pretos-carvão. Quando o adjectivo se forma de dois elementos, dos quais o primeiro fumciona como advérbio, é com o segumdo que se faz a concordância. Neste caso, a cor resulta da combinação das duas tonalidades, como nestes exemplos de Herculano, Garrett e Eça: «ondas negro-azuis», «topos pardo-azulados das serras», «flores verãe-brilhantes», «barba castanho-escura». Assim, diremos «os ramos verde-negros dos pinheiros». O processo ainda foi aplicado por Garrett, numa combinação do físico e do moral: «olhos lânguido-azuis». Seguiu nisso o exemplo do seu mestre Filinto Elísio, que, nos fins do século xvm, preconizava o emprego das palavras compostas, para darem cor ao pensamento. Mas, ainda aqui, é lícito aos artistas preferirem a forma invariável. Teixeira-Gomes escreve: «As imensas rodas verde-negro das alfarrobeiras»; e Eça: «um ramo de rosas magenta-escuro, magníficas». Neste exemplo, o nome da cor parece invariável, a julgar pelo adjectivo seguinte. Aliás, no inquérito acima citado, ouviu-se frequentemente dizer: «dois vestidos verde-escuro». Érico Veríssimo segue o mesmo caminho, escrevendo: «roupa azul eléctrico». (Saga, ed. de 1958, pág. 212).
Este quadro permite formular uma regra, que tem contudo numerosas excepções. Sempre que no adjectivo composto vemos mais ou menos duas umidades de pensamento, há tendência para estabelecer a concordância: dos dois elementos, quando se trate de dois adjectivos, dos quais um dá a cor, o outro o matiz (azuis-claros); do elemento do fim, quando o primeiro adjectivo tem função adverbial (verde-
232 M. RODRIGUES LAPA
-negros). No primeiro caso, o processo de composição não é ainda perfeito, podendo escrever se azuis claros, sem hífen; no segumdo, há tendência para a composição perfeita, a tal ponto que já se pode escrever verdinegro. Quando porém o composto nos desperta uma única imagem, a forma do singular serve também para o plural. Claro que será permitido a quem quer ver uma umidade onde outros vêem duas. Em verde-garrafa, ums podem ter uma dupla representação: vêem o verde e uma garrafa; outros, mais sintéticos, jumtam as duas imagens numa só tonalidade. Por isso, os primeiros dizem, no plural, verdes-ganafãs, os segumdos verde-garrafa. 4. O nome predicativo. - Dão os gramáticos esta regra: Quando o sujeito é nome de coisa e o nome predicativo estiver no plural, o verbo ser concorda por atracção com o predicativo e não com o sujeito: «A surpresa eram os pêssegos». Mas não dão as razões do facto. Ora o motivo é simples: naquela frase e idênticas, o espírito não distingue claramente entre o sujeito e o nome predicativo e tem naturalmente tendência para pôr em sujeito o nome menos abstracto: «Os pêssegos eram a surpresa». Ainda mesmo que o sujeito e o predicativo sejam ambos nomes concretos, o que está no plural é por via de regra o mais concreto e é com esse que o outro concorda: «A cama são umas palhas». Que isto é assim, prova-se das frases seguintes, em que o verbo se põe no singular, porque o mais concreto está nesse número: «O pêssego é as delícias da rapaziada». - «Este rapaz é os meus pecados». A atenção, fixa no nome concreto, exige o verbo no singular. Quando a pessoa do verbo, no plural, se refere a um só indivíduo, costuma pôr-se o predicado no singular, como neste exemplo de João de Barros: «Antes sejamos breve que prolixo». O autor usou, no verbo, o plural de modéstia; mas o adjectivo não deve ser atingido por esse plural e deve ESTILÍSTICA DA LÍNGUA PORTUGUESA 233
logicamente referir-se à primeira pessoa do singular. Há porém uma lógica do pensamento e uma lógica da língua; e assim é que hoje aquela frase se pode construir com o predicativo no plural. Aliás, o adjectivo no singular destrói um pouco o efeito de modéstia do verbo no plural. Terá contribuído também para isto a circumstância de quem fala ou escreve se sentir solidário com as pessoas que ouvem ou lêem. Os gramáticos fazem reparo neste passo de Vieira, em que a concordância, dizem, se faz menos logicamente: «Somos chegados ao último sonho de Xavier». Ora o plural refere-se não só ao orador, mas ainda aos ouvintes, interessados na prédica. De modo que, coerência linguística, acentuação da modéstia e propósito de comumicabilidade, são motivos que concorrem hoje, mais ainda que outrora, para pôr o predicativo no plural. Sobre o nome predicativo do complemento directo também há alguma coisa a dizer. Reparemos nestas duas frases: 1. Os papéis que em sua mão tinha depositado. 2. Os papéis que em sua mão tinha depositados. • Na primeira frase, tinha depositado representa-se-nos como um acto simples, em que os dois elementos do verbo estão intimamente ligados; depositado é um particípio sem independência, referido ao sujeito: não tem que concordar com o complemento. Na segumda frase, ao contrário,
depositados já nos aparece exprimindo um estado, com a natureza de um adjectivo, desligado do verbo, submetido por isso à concordância com o complemento ao qual se refere. O sentido é hoje diferente; contudo, no tempo dos Clássicos era mais ou menos equivalente, notando-se preferência pela segumda forma, sempre que se queria chamar a atenção mais para o complemento do que para o sujeito. Em muitas edições dos Lusíadas, gramáticos incompreensivos adulteraram os seguintes admiráveis versos de Camões,
234 M. RODRIGUES LAPA
alusivos à penosa caminhada de Leonor de Sepúlveda pelo deserto africano: Os cristalinos membros e perclaros à calma, ao frio, ao ar verão despidos, despois de ter pisado longamente c’os delicados pés a areia ardente.
O que está na l.a edição é pisada; e é assim que deve ser, porque a forma feminina, verdadeiro adjectivo caracterizador, sugere a visão do areal imenso, que é precisamente o que o grande poeta quer pôr em relevo. 5. O ritmo. - O sentimento, por vezes obscuro, do ritmo também desempenha o seu papel na concordância. Veja-se, por exemplo, esta frase: «Papas de linhaça, é muito bom». Aquela pausa, indicada pela vírgula, desliga a relação lógica entre o sujeito e o verbo e dá tempo a que se considere «papas de linhaça» como um remédio usual, enumciado em sua generalidade abstracta, e por isso com o verbo no singular. Se tirarmos a vírgula, já não podemos manter a discordância: «Papas de linhaça são muito boas». Coisa idêntica sucede neste passo de Garrett: «As lágrimas era um rio». Dizem os gramáticos que a discordância se deve à atracção do verbo ser para o nome predicativo. Mas não há dúvida que a entoação desempenha nisso papel importante, talvez decisivo. Faz-se uma pausa grande, que se pode representar graficamente por meio de travessão ou reticências: «As lágrimas... era um rio». Essa paragem não só quebrou os laços da concordância, mas ainda favoreceu uma intensa representação colectiva (= isso tudo, esse grande choro). Uma frase de Vieira: «Hoje os pregadores são eu e outros como eu». O mais correcto, o mais normal seria dizer sou eu. Neste caso a parte ascendente da frase terminaria em preESTILÍSTICA DA LÍNGUA PORTUGUESA
235
gadores: «Hoje os pregadores / sou eu...». Mas Vieira procura outro efeito e por isso dá à frase outro ritmo: «Hoje os pregadores sãs / eu e outros como eu». Entoando assim, todo o interesse recai não sobre pregadores, mas sobre a parte descendente da frase: eu e outros como eu. É esse efeito expressivo que procura e alcança plenamente o grande orador. Logo, a frase deve ser assim pontuada: «Hoje os pregadores são: eu e outros como eu». Uma outra frase do mesmo escritor, que se esclarece à luz do mesmo princípio: «Do mesmo pai nasceu Isaac e Ismael». Hoje, sobretudo ao escrever, diríamos nasceram. Mas é bom não esquecer que Vieira proferia em público os seus sermões e usava o ritmo como um processo expressivo. Pronumciaria pois a frase: «Do mesmo pai nasceu: Isaac / e Ismael». com a pausa depois de Isaac, significaria que os dois filhos tinham nascido em tempos diferentes. De modo que a concordância só é legítima, em virtude do ritmo que a esclarece.
13. PALAVRAS INVARIÁVEIS I No número das palavras invariáveis contam os gramáticos os advérbios, as preposições e as conjumções. Convém no entanto frisar que os escritores nem sempre respeitam os ditames da Gramática e ousam por vezes tomar variáveis, pelo menos, os advérbios, empregando-os no plural. São rasgos de estilo que pretendem modificar a categoria das palavras, convertendo os advérbios em verdadeiros substantivos. Interessantes, a esse respeito, estes dois passos de Fr. António das Chagas: «Eu, vilíssima criatura, cujos antes não foram nada, cujos agoras são um pó, cujos depois hão de ser cinza». - «Não têm serventia os longes, apelemos para os pertos». O escritor místico poderia ter dito «cujo passado», «cujo presente», «cujo futuro»; mas, empregando os advérbios como substantivos, conseguiu muito melhor efeito, porque a representação adquiriu agora um tom simbólico e sentimental, a que não é estranha, bem entendido, a pluralização daqueles vocábulos. Noutro grande escritor, esse moderno, o brasileiro Mário de Andrade, também se brinca expressivamente com os advérbios, substantivando-os e pluralizando-os: «sentimentos em mim do asperamente», «e os perenementes da ligação mensal». O processo de substantivação culminou neste trecho de Cecília Meireles, no qual a grande poetisa brasileira, naobra-prima que é a Evocação lírica de Lisboa, chega a suprimir ESTILÍSTICA DA LÍNGUA PORTUGUESA 237
o artigo definido, para nos dar a misteriosa aliança que sentimos em Lisboa entre as sugestões da História e a vida simples e natural do Presente: «Ficas tão rico de antigamente, tão vencido por um amor de cancioneiro, por uma ternura conventual, dolorosa, - e ao mesmo tempo desejas sorrir, dançar, não pensar nada, ficar nessas praças, por esses jardins que são a imagem da vida, e por onde andam crianças como pequenas flores soltas, com laços nos cabelos, iguais a felizes borboletas aprisionadas.» (Revista «CnfeVzo», n.° 6 (1976), págs. 42-45).
com o advérbio longe fez-se mais; não só o empregaram - e ainda hoje o empregam -• como substantivo (veja-se esta frase de Eça, nas Prosas bárbaras: «Aqueles poetas abrem na alma longes surpreendentes»), mas até se lhe deu categoria de adjectivo; disso resultou uma das mais belas expressões da língua portuguesa, que é talvez para lamentar tivesse desaparecido. E conhecido aquele saudoso passo da novela sentimental de Bernardim Ribeiro: «Menina e moça me levaram de casa de meus pais para longes terras». Longe não equivale bem a distante; dá à distância um tom de indeterminação e sentimento, que o faz próprio dos lábios queixosos e dos corações magoados de saudade. com o seu recheio afectivo e com aquela entoação alongada da nasal, é, não há dúvida, uma das mais poéticas palavras da nossa língua, cujo valor semântico, como em tantas outras, não foi desgastado pelo tempo. O poeta galego Eduardo Pondal, usou-a nos Queixumes dos pinos: «O nobre peregrino... que ven de longes terras» (l.a ed., pág. 13). Também Aquilino Ribeiro soube ressuscitar o formoso vocábulo, empregando-o como adjectivo, na Estrada de Santiago: «Como romeiro que, volvendo enfadado de longe ermida, adormece a sonhar com o céu num poiso do caminho». Igualmente o fez Carlos Drummond de Andrade: «Peço apenas que te debruces sobre esta mesa, a cuja roda há dois meninos do mais longe
238 M. RODRIGUES LAPA
sertão». - (Contos de aprendiz, 2.a ed., pág. 32). E um poeta galego dos nossos dias, Uxio Novoneyra, adjectivou os dois antónimos, perto e longe, nestes versos: «ua cousa queda /, lonxe e perta, / na que todo está e nada se nombra» - (Os Eidos, 2.a ed., 1974 pág. 56). Aliás, o adjectivo ordinário é propriamente longínquo, forma literária pouco expressiva, que o brasileiro soube alterar em longinho: «Falava como mugem os touros amarrados, que vêem no presépio do morro do pasto as vacas tranquilas, ruminantes e tão longinhas». - (António Callado, Quarup, 4.a ed., pág. 424). O galego dispõe de lonxano, muito melhor: «Na sua testa reméxense as formas, as lembranças da lus e das cores da terra lonxana» - (Luís Seoane, Fardel de eisilado, 13); e do próprio substantivo lonxanía, belamente sugestivo: «o vagamumdo sinte a nostalxia das lonxanías e mira fixamente o mar» - (Rafael Dieste, Dos arquivos do trasno, l.a ed., 34). Também não há limites bem definidos entre a preposição, o advérbio e a conjumção. Quando dizemos: «com seres mais rico, não suponhas que me humilhas», empregamos uma preposição com fumções e significado de conjumção concessiva: «embora sejas mais rico...». Nestoutra frase: «Parece-me isto; agora, se tens opinião diversa, dize», aquele advérbio de tempo converteu-se numa conjumção adversativa, com sentido mais ou menos equivalente a «mas», «contudo». E José Lins do Rego não duvida fazer de embora um advérbio ou uma preposição, indo certamente atrás da sintaxe popular: «A amizade fora crescendo, embora as restrições da mãe»- (Água-mãe, 126). É por este motivo que não tem para nós grande importância a categoria, mas o verdadeiro significado da expressão e principalmente o matiz mais ou menos sentimental das palavras invariáveis. Por isso as não separamos em grupos inteiramente distintos, como faz a Gramática. ESTILÍSTICA DA LÍNGUA PORTUGUESA 239
1. Aspectos gerais do advérbio. - A Gramática ou o Dicionário fixam para cada advérbio um certo sentido; mas a linguagem oral e escrita está constantemente a refumdir esse significado original, imprimindo-lhe variações mais ou menos profumdas. Por exemplo, ora é um velho advérbio de tempo, um pouco sinónimo de agora. Encontramo-lo num verso de Sá de Miranda, que faz parte da carta ao seu irmão Mem de Sá: «Ora pôr peito à corrente!». Quer o poeta-filósofo dizer com aquela simples partícula: «E vá lá agora uma pessoa lutar contra tudo isto; é impossível!». O advérbio de tempo, sob a acção de uma descarga afectiva, tomou novos aspectos de significado e passou a traduzir sentimentos como a surpresa, o aborrecimento, a dúvida, etc. É o que se vê nas expressões correntes: «Ora esta /»«Agora h, esta última frequente no falar provinciano português e pronumciada agora! Se não tivéssemos em consideração o que acaba de ser dito, porventura teríamos interpretado mal aquele verso mirandino. O que se dá com o tempo, ccorre também com o lugar, com o espaço. O advérbio lá tem um sentido bem definido, de lugar mais ou menos distante, sem implicações sentimentais: «you lá no domingo». Suponhamos porém esta frase de Miguel Torga: «Estive entre a vida e a morte; lá vivi». A noção de lugar obliterou-se por completo; o que o escritor quer significar com o advérbio é isto: «a muito custo, com muitos esforços consegui viver». É um pouco o sentido do advérbio na frase corrente - Vá lá!, que marca uma concessão como que arrancada a custo. Já neste passo de Malheiro Dias, o mesmo advérbio tem um valor muito diferente: «Hei de ver o que tu fazes quando lá o teu te deixar!» Aqui o lá exprime depreciação, ironia, como quando dizemos: «-Não querem lá ver, o
homenzinho!» Mas onde o morfema atinge o seu mais alto grau expressivo é neste verso de Afonso Duarte, onde se sente um eco doutro verso
240 M. RODRIGUES LAPA
camoniano em louvor e saudade da paisagem coimbrã: «Eu posso lá morrer, terra florida!» É um reforço apaixonado da negativa, onde parece contudo insinuar-se um vago receio da morte. com o advérbio cá dá-se o mesmo, como se verifica neste trecho de Eça: «Vai você ver o que é um caldo de galinha feito cá pela senhora! Da gente se babar!» É evidente que o verdadeiro significado de cá não é o normal «aqui em casa»; o advérbio tinge-se de afectividade, como quem dissesse: «pela minha querida e competente (em culinária) senhora». Não sabemos, nem é fácil seguir a evolução ideológica dos advérbios, até darem este resultado: mas compreendemos que isso se deveu a embates sentimentais, e que as palavras ditas invariáveis não foram menos atingidas que as outras por esses choques afectivos. A língua ficou muito enriquecida com os novos valores semânticos; mas não há dúvida que o estudo e até a compreensão desses tons de significado apresentam muita dificuldade, pela sua excessiva condensação. É a parte da língua que oferece maior resistência ao estrangeiro. Uma boa amostra disso é o advérbio também. Originariamente era uma expressão comparativa, como se vê da velha Regra de S. Bento (ed. Burnam, cap. v): «lhe há de seer requerido conto tam bem da sua doutrina come da obediência dos seus discípulos». O seu sentido era «tanto». Seguidamente a palavra recuperou a sua autonomia e, com a liberdade, adquiriu valores que não tinha de antes. Essa evolução já se deixa ver nos fins do século xv, nestes dois versos do poeta Diogo Brandão: «espero firme de ser / na vida tam bem na morte». - (Cancioneiro de Resende, m, 51). Duma noção simplesmente quantitativa e comparativa passou-se a outra esfera em que já têrn cabimento os valores afectivos. São essas novas tonalidades, tomadas pela palavra hoje em dia, que vamos ver resumidamente a seguir. ESTILÍSTICA DA LÍNGUA PORTUGUESA 241
Digamos, desde já, que todos os exemplos apresentados pertencem à linguagem dialogai ou ao discurso semídirecto, que vem a ser quase a mesma coisa; é a linguagem viva, trepidante, sentimental por excelência. Veja-se este passo de O Primo Basílio: «Juliana pôs-se a tomar o seu caldo com vagar moribumdo. Joana consolava-a baixo: - Também, a Sr.a Juliana arrenegava-se por qualquer coisa». O advérbio não tem aqui o significado normal; não o teria, mesmo que não estivesse colocado à frente. Poderíamos substituí-lo aproximadamente por: «na verdade», «com franqueza», «realmente»; mas nenhuma destas locuções tem a espontaneidade, o calor de alma e até mesmo a complexidade de sentido daquele também. A palavra, proferida em tom vagamente exclamativo, marca uma atitude de oposição, de discordância amigável da parte de quem está falando. Insistimos no tom interjectivo da expressão, aliás já reconhecido argutamente por Caldas Aulete, no seu Dicionário, o qual insere exemplos do também exclamativo (entre eles: «Também, o pai sempre diz coisas!...») e nota com justeza o significado de desgosto, descontentamento ou estranheza. O ponto de exclamação traduz e acentua o carácter afectivo da palavra. É o que se vê neste exemplo, citado por Júlio Moreira, filólogo que se dedicou meritoriamente ao estudo da linguagem oral: «Aquele homem é muito abrutalhado com os cavalos: também, tem apanhado cada trambolhão!» Aqui descortina-se uma relação de consequência, expressa de um modo explosivo, sentimental: «tratava mal os cavalos, por isso é que dava muitos trambolhões». E como a relação de consequência anda estreitamente ligada à relação de causa, não é para estranhar que o
advérbio também exprima a causalidade, como nesta frase: «Grandes éguas! Também, o que eu as olho, o que as trato!» Como quem dissesse: «Não é isso muito de espantar, porque as olho e trato bem». Aparece ainda mais clara a relação de causalidade neste trecho de Raul Pompeia: «No recreio lõ -’ Estilística
244 M. RODRIGUES LAPA
companheiros vencidos pela arteira dinamite; as recostas por onde se aventura, cautelosamente, obrigam-no a dobrar-se em contínuas curvas rápidas e traiçoeiras; enquanto que o Douro, em baixo, promete-lhe risonhamente um delicioso banho, se por acaso ele escorregar ou tropeçar na via perigosa. K o colosso corredor, que só violou esta criatura bravia, sob a condição escrava de por ela ser domado eternamente, encolhe-se e toma na sua marcha infinitas precauções medrosas, arrastando-se humildemente, numa submissão manhosa e interesseira» (pág. 10).
Efectivamente, a profusão desse tipo de advérbio passa talvez as marcas; mas é preciso notar que essa predilecção era própria da época do realismo, e que um grande escritor como Eça de Queiroz soube explorar com mão de mestre a energia expressiva contida nesses advérbios. Uma frase sua: «Pouco a pouco a tarde caía. Vagarosamente rolávamos na sombra olorosa». Os advérbios são postos à frente e adquirem independência; dir-se-ia que são agora os elementos fumdamentais do discurso, encarregados de exprimir a lentidão daquele findar do dia e daquele passeio por entre as sombras. Para acentuar a autonomia da representação, o advérbio, posto ao princípio, é muitas vezes separado por vírgula: 1. Serenamente, Sião rebrilhava ao sol. 2. Subitamente, Topsius parara, abria os braços. 3. E imediatamente, um bando voraz de homens sórdidos envolveu-nos com alando. 4. Subitamente, alguém tocou no ombro do historiador dos Herodes. 5. Ternamente, ajudou a sentar o velho. 6. Vivamente, Rui agarra o braço do irmão.
A explicação deste processo de estilo não é difícil. O escritor impressionista, ao dar-se determinado fenómeno, tem logo a intuição do tempo e da qualidade, sente, numa reacção espontânea, involumtária, como o fenómeno se realiza, e só depois toma consciência do mesmo. Para traduzir esta atitude nada mais próprio do que pôr o advérbio à frente do período. A consequência desta deslocação já se ESTILÍSTICA DA LÍNGUA PORTUGUESA 245
deixa ver: o poder adjectivante do advérbio transmite-se ao sujeito, dando-lhe maior realce, mais visualidade. Basta compararmos as duas frases: 1. Rui agarrou vivamente o braço do irmão. 2. Vivamente, Rui agarrou o braço do irmão. Na primeira, o advérbio está na sua ordem lógica e refere-se ao predicado; a atenção está posta sobre a pessoa de Rui e logo em seguida sobre o acto que pratica. Na segumda frase, sentimos imediatamente o sacão violento, e logo a seguir pomos, com mais atenção, os olhos no sujeito, que o advérbio acabou também por caracterizar. Por isso é que uma frase como - {(Serenamente, Sião rebrilhava ao sol» admite, embora mais frouxa, estoutra forma: «Serena, Sião rebrilhava ao sol». Até mesmo quando a palavra invariável não é colocada à frente, o escritor tende a separar por meio de vírgulas a representação adverbial: 1. Entrou na choça, triumfalmente, com o assado que fumegava. 2. Ambos louvaram, ardentemente, o Senhor.
3. E o homem, lentamente, na treva caminhou para nós. 4. O magistrado pagou o chá, nobremente. 5. Mais tarde, no meu quarto, despindo-me, senti-me triste, infinitamente. 6. Algums legionários riram, crassamente. 7. Duas lágrimas caíram-lhe, silenciosamente. 8. O sol banhava-a, sumtuosamente!
Esta deslocação para a direita, que tem, como a outra, por efeito acentuar o valor expressivo do advérbio, quebrando as relações lógicas que o ligam ao verbo e ao adjectivo, foi depois usada por outros escritores, entre eles Venceslau de Morais, o impressionista das coisas do Japão. É dele esta frase: «Sucedem-se vendilhões de flores, espadanando os ramos artisticamente dos cabazes». A escrita lógica seria «espadanando artisticamente os ramos»; mas o
246 M. RODRIGUES LAPA ESTILÍSTICA DA LÍNGUA PORTUGUESA 247
escritor demora mais a atenção sobre o objecto e o acto, e o resultado é que, em vez de termos uma representação, temos duas ou três, além de um acréscimo de intensidade afectiva. O advérbio faz o efeito de um retardador, que nos deixa ver com mais nitidez o movimento e a forma. Devia estar propriamente entre vírgulas, o que pode ser descuido do editor ou até mesmo do autor. O mesmo processo usou Raimumdo Correia no seu soneto Banzo, que exprime a nostalgia do negro brasileiro, tirado à força da selva africana: Vai co’a sombra crescendo o vulto enorme do baobab... imensamente...
E cresce n’alma o vulto de uma tristeza imensa,
Ferreira de Castro, no propósito de autonomizar o advérbio, chega até a separá-lo por meio de travessão, que constitui pausa maior que a vírgula: «Lá em cima a ponte do comando, onde não se vislumbrava uma única figura; cá em baixo, as baleeiras, brancas, branquinhas, uma a seguir à outra - garridamente» (Eternidade, 4.a ed., 18). Esta suspensão autónoma do advérbio atinge admirável efeito poético nestes versos do escritor brasileiro Joaquim Cardoso (Poemas, 96): A minha casa amarela tinha seis janelas verdes do lado do sol nascente; janelas sobre a esperança paisagem, profumdamente. E o mesmo advérbio, com a mesma colocação, reaparece nos dois versos de Carlos Drummond de Andrade, em que ele evoca o finamente e «desligamento» do seu grande amigo e poeta Manuel Bandeira: após a desintegração da matéria é que se revela a pureza e profumdidade da poesia: «Agora
Manuel Bandeira é pura / poesia, profumdamente». (Impurezas do branco, 2.a ed., pág. 91). Reparemos agora neste passo, também de Eça de Queiroz : «Cruges respirava largamente, voluptuosamente». Segumdo os preceitos da escrita clássica, aquele período deveria constituir-se deste modo: «Cruges respirava larga e voluptuosamente». Como havia uma semiconsciência de que aquele elemento do fim era ou foi separável, procedeu-se a uma operação de economia, que é uma obra-príma de lógica: pôs-se o -mente no fim a servir para os dois adjectivos e ligaram-se os dois termos por uma conjumção copulativa. Mas que distância não vai de um a outro processo de estilo! Na frase clássica, é evidente a secura narrativa própria de um historiador que conta objectivamente o facto; na frase impressionística, tudo se envolve de um ar afectivo, a repetição do -mente produz uma sensação de intensidade, e o autor entra com simpatia na própria narrativa. É o que acontece neste trecho de Lima Barreto, em que se evoca um salão de festas dos velhos tempos. A partícula, três vezes martelada, como que traduz os lamentos de saudade duma época irreversível: «O soalho gemia, gemia particularmente, dolorosamente, angustia.da.mente... Que saudades não havia nesses gemidos dos breves pés das meninas quebradiças que o tinham
palmilhado tanto tempo!» (Recordações ao escrivão Isaías Caminha, 4.a ed., pág. 212). Consideremos agora esta frase: «Era, portuguésmente falando, um idiota chapado». O advérbio portuguêsmente reveste-se de um significado irónico, humorístico, que provém certamente da raridade da formação e do seu carácter arcaizante; com efeito, não dizemos, por via de regra, inglêsmente, francêsmente, etc. Tudo pois que vá contra o uso estabelecido causa em nós um abalo, que se pode converter num esgar de riso. Já vimos isso a propósito do arcaísmo. É esse mesmo tom irónico que encontramos neste passo de Fialho de Almeida: «Cantam sobretudo de noite os ,
248 M. RODRIGUES LAPA
Rouxinóis, quando as mais aves dormem burguesamente». Donde procede aqui a impressão humorística produzida pelo advérbio ? O escritor foi contra o uso comum, escrevendo burguesamente, quando devia empregar burguêsmente, à semelhança de cortesmente. Este desvio contra a norma explica o efeito cómico do advérbio, que não deixa de ser um curioso achado de estilo. Fialho escrevia burguesamente, mas sentia burguesa mente, com dois elementos bem separados, para acentuar bem a ironia. É que a consciência da originária separação dos dois termos ainda se não perdeu de todo e serve até para os jogos de palavras, como se vê deste passo de Camilo: «Vossemecê, que eu conheci em Lisboa, tomando capilés e traduzindo novelas para a «Biblioteca Económica de Eduardo Faria» (oh! infame mente!) quer-se hoje elevar às alturas da crítica». A impossibilidade gramatical de umir a terminação -mente a substantivos criou para a Estilística um novo processo de humorismo. Ê do mesmo Camilo esta frase: «Deixou, bem definido, o método de matar clister mente». Conhecem-se outras formações, como mulhermente, lucreciamente, sardanapalamente, etc., em que a intenção irónica ou depreciativa é evidente. Contudo, deverá dizer-se que a língua tentou antigamente essa formação adverbial sem valor humorístico. Foi inútil; apenas resultou disso o advérbio crimemente, em frases como esta de Castanheda: «O Governador o mandou prender para o castigar crimemente». Hoje não há vestígios dessa forma. Também não é corrente essa formação adverbial com adjectivos de cor; não se diz, por via de regra: brancamente, negramente, amarelamente, porque a terminação, de acordo com a sua origem, se ume a adjectivos que designem modos, estados, situações. A regra não vale para os artistas; e assim Eça de Queiroz não hesitou em escrever: «subordina... a figura do Direito às fábricas que fumegam, negramente^. - (Prosas bárbaras, ed. 1935, pág. 76). Do mesmo modo, o poeta ESTILÍSTICA DA LÍNGUA PORTUGUESA 249
galego de nossos dias, Ricardo Carbalho Calero, criou, num belo arrojo expressivo, o advérbio verdemente: «a esmeralda da terra, húmeda, brila verdemente». (Anxo da terra, 10). 3. O supletivismo adverbial. - O povo e os escritores, estes últimos quase sempre imitando o povo, têm artes de substituir os advérbios por locuções e processos de forte poder expressivo. Quase sempre isso sucede quando se quer dar à representação um tom intensivo, superlativante. Vejamos este exemplo da linguagem de todos os dias: «Ficou a tremer, a tremer, quando viu o médico». A repetição do verbo sugere a frequência intensiva das emoções. É um processo mecânico, primitivo, próprio da linguagem popular; mas como é eminentemente expressivo, um escritor clássico, Heitor Pinto, não duvidou empregá-lo num passo como este: «Semelhante ao fumo que sobe e sobe e enfim na maior altura se desfaz». E Fr. Luís de Sousa nestoutro: «Exclamava de maneira que fazia tremer e tremer o auditório». Se repararmos nestas frases, havemos de verificar que o seu carácter intensivo depende em grande medida do seu pitoresco, da sua visualidade. O valor superlativo entra-nos pelos olhos, se assim podemos dizer. Dos escritores modernos é talvez Ferreira de Castro quem mostra mais predilecção por este recurso de estilo: «Saíra do Pará a flotilha dos calhambeques; e navega, navega, entrara após muitas semanas a boca do Madeira». É como quem dissesse: «e navegando sempre, navegando
continuamente». Outro exemplo do mesmo autor: «Depois, ouviu-se o ruído do guincho, enrola, enrola, até o casco do navio estar prestes a roçar o barranco denegrido». Semelhante a este e também muito usado pelo povo é o processo que consiste em ligar as duas formas verbais por um que: «bate-que-bate», «fura-que-fura», «gira-que-gira». Aqui já a noção de intensidade anda mais estreitamente ligada à de movimento. Vejamos este exemplo de Guilherme
250 M. RODRIGUES LAPA
Gama: «O velho lavrador andava desde o amanhecer cava-que-cava». Que o autor, um impressionista, tem gosto por este jeito de escrever, vê-se ainda desta frase. «E os anjitos, famintos, rotos, quase nus, lá vão pede-que-pede pelas ruas». Como se disséssemos: «pedindo sempre», ou «pedindo aqui, pedindo acolá». Idêntico processo usou Mário de Andrade, ao escrever: «Macumaíma tremia que mais tremia»; e Machado de Assis entrou mesmo pelos domínios da onomatopeia, com o intuito de exprimir a intensidade e a pressa: «o alfaiate, que ali estava presente, e que entisicava, às noites, à luz de uma candeia, zás-que-darás, puxando a agulha». (Histórias sem data, 36). Igual a esta, mas sem o recurso à onomatopeia, é a locução adverbial usada pelo grande poeta galego Ramón Cabanillas: «Quero rubir os penedos, / canta que te cantarás», isto é: sempre cantando. (No desterro, l.a ed., pág. 15). Para traduzir uma ideia superlativa há ainda o recurso da imagem, da comparação. Um exemplo: «Está magra como isto - e mostrava um dedo». Também pertencem ao domínio das imagens, mas mais esbatidas e até por vezes indecifráveis hoje, dizeres como estes: «Está um frio de rachar». «Chove a bom chover». «Era estúpido como quê», «como uma porta», etc. O povo, na preocupação de reduzir a concreto a ideia abstracta de intensidade, inventou uma curiosa fraseologia, que compreendemos perfeitamente, mas que desafia por vezes a análise mais subtil. Resta um outro processo, já mais elaborado, que consiste em empregar verbos de sentido parecido ou contrário com advérbios de lugar, para traduzir a surpresa e o movimento, sobretudo o movimento retardado. Eis uma frase de Aquilino Ribeiro: «Tropeça aqui, escorrega ali, afocinha além, fugiam-lhe da boca pragas que fariam tremer os santos nos altares». As notações de lugar procuram exprimir os diversos tempos da acção e, para além do tempo, dão-nos o movimento e a forma: estamos vendo com os olhos do espírito ESTILÍSTICA DA LÍNGUA PORTUGUESA 251
o sujeito em atitudes sucessivas de tropeçar, escorregar e afocinhar. Também Ferreira de Castro usou largamente deste expediente estilístico: «Trilho quase imperceptível sobre folhas e raízes, dobra aqui, endireita ali, desaparece acolá sob galhos e lianas, ia ligando, no mistério da floresta, uma seringueira à outra».-«A pega, de cauda trémula, inquieta, saracoteava entre carumas e urgueiras, esconde aqui, surge ali». - «Manuel da Bouça levantou-se e, pisa aqui, arrasta ali o pé dolorido, atravessou o pinhal». Esta utilização de advérbios de lugar é, como se vê, um elemento de pitoresco na narração, e tem a sua origem nos paralelismos da linguagem corrente e popular, que adopta contudo formas mais simples: «Um pé aqui outro acolá, conseguiu enfim chegar a casa». 4. Notações adverbiais de cenário. - Sob este título, designou um celebrado filólogo alemão, Leo Spitzer, aquelas indicações de tempo, lugar e modo, que são empregadas apenas para suscitarem certo efeito, de contraste, de pai alelismo, etc. A «encenação», diz ele, consiste em fazer que a acção se exprima não de um modo simples, independente, mas em meio de todos os tons que vagamente
lhe correspondam na natureza ou no espírito do espectador». Um exemplo, tirado de Eça: «Recebeu a ordem do meu almoço, sem me olhar, num tédio resignado». A notação adverbial, ou complemento circumstancial, está precedida pela preposição em; mas é de notar que, antes de Eça, aquele complemento se construía com a preposição com. Vejamos a diferença entre as duas construções. Se escrevêssemos «com um tédio resignado», indicávamos claramente, objectivamente, uma circumstância de modo. Escrevendo «num tédio resignado», o modo está já ligado íntima e misteriosamente ao lugar e ao tempo, e tudo isso conspira para criar uma atmosfera sentimental, de intensidade emotiva. Passou a ver-se a figura mais indecisa e mais profumdamente envolvida em tédio.
252 M. RODRIGUES LAPA
Tal foi o partido que os escritores modernos tiraram das preposições. Esses instrumentos lógicos do discurso sofreram uma refumdição, ganharam uma poética indeterminação e uma energia afectiva, que fazem deles elementos preciosos para traduzir as misteriosas correspondências entre o homem e o seu ambiente. Desses elementos, a preposição em é, naturalmente, a mais largamente usada, porque, exprimindo relações de lugar, de tempo e modo, serve como nenhuma outra para criar uma determinada atmosfera. Veja-se este trecho: «A sala estava deserta, numa luz parda; os fogões flamejavam; e fora, no silêncio do domingo, nas ruas mudas, a neve caía sem cessar». O que mais se estranha neste passo é o emprego da preposição em com um substantivo tão imaterial como silêncio. Foi uma grande revolução estilística esta espécie de concretização do abstracto por meio das preposições. A expressão ganhou com isso um forte poder sugestivo e uma espécie de concentração sentimental. Vejam-se estas frases: «Postigos de casebres vão entreabrindo, na simplicidade rústica da vila, os seus mesquinhos olhos sonolentos». - «Os seus passos arrastavam-se mais incertos, na fadiga duma jornada penosa». - «Repousavam, na gravidade das lombadas de carneira, grossos fólios». Como se vê destes exemplos, a preposição dá uma nota decorativa, de ambiente; e o termo abstracto reforça ainda essa nota com uma noção de modo altamente caracterizadora. Além da preposição em, outras servem ainda para a representação de ambientes, sobretudo aquelas, é claro, que exprimem uma relação de lugar: «Os soldados marchavam penosamente, sob um calor asfixiante». Aqui, o emprego das preposições por e em não era tão apropriado, porque em soo sentimos e vemos os raios do sol caindo opressivamente sobre os soldados. Outro exemplo ainda, num livro de Jorge Amado: «Fechou os olhos sob as mãos de Virgílio no seu corpo».
DA LINGUA - (Terras do Sem Fim posição não marca a^ ’ fi >’ *” Uma noite de ame*. zir mais Precisament^ ^ ^ * Poderia ra exprimir a delícia d ’ com a P^ssao das w«os...
Para
só uma partícula em ^ T^0’ qUG VÍnha <*» baixo as noções de causa, lu £ ~T» te » confumdi^ Este emprego liter ’• A 1U Sob’ produz ainda um belo efeito 7 ^ ° P°V° Conhece Já vem dos escritores ^ -m os substantivos abstractos «todos ledos, sob a b *edlevais’ A&sim em Fernão Lopesfeito adeante>>_ (Cró^j^f’^ ^aram de leva/seu sob sigmfica <
P^te I, cap. 26). A Note-se também est
Cado com»viola gemia sob o f dti e?^ de Ferreira de Castro: «Uma a visão,
imprecisa) mas a»’ ° m°rfema acorda em nós as suas seduções e misteP°etlca duma noite de luar com todas de cima e embeleza tud0 l, ,T0 Um esPle^or que vem Vejamos o empreRo H
V
estilo cenográfíco. Um8 da P^posiçâo antónima, sobre, em ciosa assim, tão brancfSS° de E?a de Queiroz: «Era delisobre o fumdo azul do ^ tao Ioura’ duma linha tão pura tínhamos uma visão de ’ O/Ut°r escrevesse «no fumdo» duz em nós o efeito dg J°njumto; o emprego de sobre prolado e, emergindo dele TT Plan°S: um fumdo azumulher. A preposiçã0 iente’ a deliciosa figura de sentido literal; tem 2 0 pode ser tomada no seu intensivo. ’ ^ dlsso- um marcado carácter com as outras preiXK:; se poderiam dar exempL^3’ ”’ ^ mte’ etc” biUzar o valor destes Vrf meSma tendênda Pa tica como simpies instCTS’í1COnSíderados pela Gramá«’Dentos de relações lógicas.
14. PALAVRAS INVARIÁVEIS
II 1. Aspectos gerais da preposição. - A preposição é definida pelos gramáticos como um instrumento de ligação das partes do discurso. É pois um morfema indispensável para uma boa inteligência da frase, um elemento, digamos, de precisão lógica. Por aqui se compreende o elogio entusiástico dum gramático como Carlos Gois, que lhe chama «palavra admirável, verdadeiro cimento da frase, principal instrumento de clareza de um idioma». Digamos desde já que esta definição não é totalmente verdadeira. Em primeiro lugar, a preposição nem sempre liga dois elementos do discurso, pela simples razão de que é colocada muitas vezes à frente. Como sucede com o advérbio, os escritores realistas, nomeadamente Eça de Queiroz, têm marcada tendência para autonomizar o morfema, pondo-o em lugar de relevo, à frente do período. Algums exemplos apenas: 1. Do fumdo da choça rude... veio um lento gemido. 2. com infinita caridade e doçura o abraçou. 3. Na sua humilíssima humildade não se considerava nem o igual dum verme. 4. Entre duas pedras acendeu uma fogueira. 5. Sob a fronde, a buzina do porqueiro ressoava agora. 6. Através de toda a Itália, sem descanso, pregou o Evangelho eterno. 7. Para umir servos que penavam sob ESTILÍSTICA DA LÍNGUA PORTUGUESA
255 um amo fero, penetrava nas igrejas. 8. Pela abumdância e perpetuidade da oração, ele arrancava da sua alma as raízes mais miúdas do pecado.
Não diremos que uma frase como a primeira está deslocada por um mero capricho do autor, e que a forma regular lhe equivale perfeitamente: «Um lento gemido veio do fumdo da choça rude». O autor, que inspira este nosso livro, sabia muito bem o que escrevia e o que queria: desejava exprimir em primeiro lugar a circumstância, e só depois o acto e o sujeito. O mesmo que sucede no advérbio, como vimos: o que acode primeiro ao espírito é o modo, as circumstâncias em que o acto se realiza; só em seguida se toma consciência clara do fenómeno. O autor, deslocando a preposição, seguiu à risca os ditames da arte impressionista e conseguiu um belo efeito estético, pese embora aos princípios reguladores da Gramática. Também não é verdade que a preposição seja um liame indispensável para a inteligência do discurso. Veja-se este trecho de Trindade Coelho: «Ali se quedava a olhar o Tomé que o chamava, um grande riso de alegria nas feições amorenadas». O escritor omitiu a preposição com, e o sentido não deixou de se apreender, favorecido por aquela pausa marcada pela vírgula e pelo travessão. O processo, frequente, como vimos já, nos autores impressionistas, vem de longe, como se deixa ver destes dois exemplos de Francisco de Morais e Fr. Luís de Sousa: «O dia do seu enterramento, toda Constantinopla saiu coberta de dó, vestiduras negras e tristes». - «Deixou despachado um galeão, com ordem que partisse, entrada de outubro». No primeiro passo, pode entender-se a elipse da preposição com, ou de, que já estava anteriormente. No segumdo, subentende-se a preposição a ou em (à, na). Este último processo é ainda hoje usado nas expressões de tempo. É de Fialho de Almeida esta construção: «Paço Ximénez era o animal de luxo das mulheres, essa estação» (= nessa estação).
256 M. RODRIGUES LAPA
Enfim, resta dizer que a preposição nem sempre desempenha fumções rigorosamente lógicas; na linguagem corrente e na dos escritores insinuam-se continuamente valores afectivos, como passamos a ver de algums exemplos: 1. O livro está sobre a mesa. 2. A janela deitava sobre o jardim. 3. Sobre ser parvo, é ainda mauzinho. No primeiro exemplo, tudo é claro na representação: o sobre exprime uma relação de lugar que não dá margem a dúvidas e que é apenas do domínio da inteligência. No segumdo exemplo, já a preposição é largamente invadida pela fantasia. Mais lógico seria talvez dizer «deitava para o jardim», e é assim que se diz também correntemente; mas o emprego da preposição sobre dá uma incomparável sugestão poética: como que estamos vendo, de cima, da janela, o encanto florido do jardim. No terceiro exemplo, enfim, a preposição adquiriu um carácter moral; toda a relação de lugar se desvaneceu e, em lugar dela, temos agora uma forte impressão de intensidade, que, menos literariamente, o vulgo costuma exprimir por além de. Aqui temos como a fantasia e o sentimento suscitaram nas preposições matizes novos de significação, embora lhes fizessem perder um pouco daquela clareza lógica tão preconizada pelos gramáticos. Outros exemplos se poderiam apresentar desta escala de valores sentimentais que oferecem as preposições. Consideremos apenas a preposição por nos casos seguintes: 1. À volta, teve de passar por Coimbra. 2. É por tolices dessas que acontecem desastres. 3. Peço-te, faze isso por mim! No primeiro exemplo, a preposição por exprime simplesmente uma relação de lugar por onde, que chega até ESTILÍSTICA DA LÍNGUA PORTUGUESA
257
nós por via meramente intelectual. No segumdo exemplo, passamos do físico para o moral; a preposição agora traduz uma ideia de causa, mas sentimos que essa ideia está contaminada, perturbada por um sentimento de pesar. No terceiro exemplo, enfim, a preposição adquire já um tom inteiramente afectivo. É como se disséssemos «por amor de mim». A causa e o fim entrelaçaram-se num complexo sentimental, e resultou dessa amálgama um poderoso efeito expressivo. Se passarmos da linguagem falada para a escrita, também encontramos frequentemente aderências afectivas na preposição. Veja-se, por exemplo, este terceto camoniano, dum soneto já aqui citado:
Vivo em lembranças, mouro de esquecido de quem sempre devera ser lembrado, se lhe lembrara estado tão contente
O grande poeta sobrecarregou as duas preposições de valores sentimentais e intensivos, que poderíamos, mais ou menos, traduzir deste jeito: «Vivo inteiramente absorvido pelo bom amor de outrora; mas, ao mesmo tempo, sinto-me morrer, por me ver tão esquecido daquela...». Casos há em que a preposição anda disfarçada, em virtude da evolução linguística. Um desses casos - e dos mais curiosos - está nesta frase de Monteiro Lobato: «Mas, péla não termos hoje, é absurdo negarmo-nos direito à fisionomia. - (Ideias de Jeca Tatu, 7.a ed., 39). Isto traduzido em termos de linguagem corrente, significa: «Mas, pelo facto de a não termos hoje...». O escritor não fez mais do que ressuscitar a construção clássica, onde a forma de por aparece bem visível: «Mas, pola não termos hoje...». E com isso produziu uma síntese expressiva, que seria talvez ainda mais eloquente, se também conservasse a forma arcaizante pola, que existe ainda hoje em galego. 17 - Estilística
258 M. RODRigues LAPA
Vejamos agora, uma por uma, algumas das preposições fumdamentais que maior interesse apresentam para a Estilística. 2. A preposição «a». - Dizia um velho gramático, Evaristo Leoni, muito preocupado com as origens latinas da língua portuguesa, que a preposição a significa primordialmente «um movimento dirigido a um termo, como o da seta arremessada ao alvo». Efectivamente, é esse, em termos poéticos, o significado do morfema, que lhe vem, não há dúvida, do seu étimo latino - aã. Dessa noção de movimento visando um objectivo derivou naturalmente uma ideia de intensidade e um interesse afectivo, que ainda hoje subsistem nalgums casos. Quando Fialho de Almeida escreve - «E a torrentes a chuva» -, sentimos que a preposição exprime simultaneamente o modo e a intensidade. Também os Clássicos escreviam «amar a Deus», «querer a alguém», etc. A preposição traduzia o fervor apaixonado do sujeito em relação ao objecto. Pode ver-se belamente esse empenho apaixonado nos conhecidos versos do soneto camoniano: «mas não servia ao pai, servia a ela, / que a ela só por prémio pretendia». Um escritor como o P.e António Vieira, que conhecia profumdamente os segredos da língua, fez num dos seus sermões a distinção entre «crer em Deus» e «crer a Deus». Fumdado no sentido das preposições, Vieira mostrava que «crer em Deus» se limitava a crer pasbivamente na sua divindade; «crer a Deus» era um enérgico movimento de alma, que levava o cristão a crer na palavra de Deus e a aproximar-se amorosamente dele. Por isso dizia, explorando sabiamente o valor das duas preposições, que os homens do seu tempo ainda criam em Cristo, mas não criam a Cristo. (Cartas, m, 18). Os escritores modernos rejeitaram, no geral, essa construção, que se difumdira no período clássico e acabara por ESTILÍSTICA DA LÍNGUA PORTUGUESA 259
servir propósitos de ritmo e de clareza; mas o morfema ainda aparece em Aquilino Ribeiro e em Ferreira de Castro, em cujas obras é patente a influência do Classicismo. Veja-se do primeiro esta frase: «com delícia viu Tavarede a Mónica muito pálida». E do segumdo estoutra: «O drama intensificava-se, fazendo sorrir, de plena satisfação, a Caetano». A preposição já não tem valor afectivo; nestes exemplos é apenas um elemento de clarificação do sentido e de equilíbrio rítmico. Basta omitirmos esse pequenino a, para vermos o desastroso efeito que daí resulta. Os artistas modernos souberam dar à preposição matizes novos de significado, muitas vezes bem difíceis de analisar. Fernando Pessoa tem por esse morfema viva inclinação. Vejamos este verso seu: «Florir do dia a capitéis de Luz...». A preposição aqui não indica apenas o modo, que se traduziria talvez melhor escrevendo «em capitéis de Luz»; vai mais longe e, de acordo com o seu significado fumdamental, exprime o ponto até onde chega essa florescência do dia. Como se disséssemos: «o dia floresceu a tal ponto que se assemelha a capitéis de Luz». Já em outro verso do mesmo poeta, o sentido da preposição é pouco menos que enigmático : E, fluido a febres entre um lembrar de aras, o convés sem ninguém cheio de malas...
Não se sabe aqui bem se o morfema indica uma relação causal (de febres, por ter febres), ou de modo, ou de consequência. O que parece indubitável é o seu carácter intensivo, a sua veemência sentimental. 3. A preposição «com». - Toda a gente conhece a diferença que há entre estes dois modos de dizer: «um copo de água», «um copo com água». Pelo primeiro, entendemos um copo que serve para beber água, pelo segumdo um copo que
260 M. RODRIGUES LAPA
tem água dentro. No ponto de vista estilístico, o de traduz uma ideia de referência um pouco complicada; o com exprime uma sensação visual directa: estamos vendo a água dentro do copo. Mais ainda: «um copo de água» é uma espécie de grupo fraseológico em que há apenas uma umidade semântica; em «um copo com água» sentimos que há duas umidades, porque distinguimos perfeitamente os dois elementos - o copo e a água. Este facto tem aplicações na linguagem corrente e literária. Suponhamos esta frase: «O Alfredo estava lá, com as suas três filhas». Se disséssemos: «O Alfredo e as suas três filhas...», o efeito não era o mesmo: pai e filhas constituiriam um único quadro, um pouco desbotado. O com separa o grupo em dois quadros e faz jorrar luz sobre eles. A pausa, indicada pela vírgula, ajuda os olhos a f az ciem a separação e a verem melhor. Esse carácter visual da preposição com não podia escapar aos escritores realistas. Eça soube empregá-la profusamente, como elemento de caracterização e pitoresco, nos retratos e no descritivo: 1. Avistavam-no agarrado à bengala, com uma face macilenta, a barba desleixada e com um barretinho de seda enterrado melancolicamente até ao cachaço. 2. Luísa diante do espelho olhava-se, sorria com o seu sorriso quente, contente das suas linhas. 3. A costureira, vestida de preto, com um chapéu de fitas roxas, esperava sentada à beira da causeuse, com um olhar infeliz e o seu embrulho nos joelhos. 4. Assentou, pregou, alinhavou, falando baixo, com uma humildade triste e uma tossinha seca; e apenas ela saiu, de leve, com o seu andar de sombra, D. Felicidade começou logo a falar dele. 5. E imediatamente, com os olhos a reluzir de caridade e de amor, agarrou o afiado podão que pousava sobre o muro da horta. 6. E o domingo terminava, com uma serenidade cansada e triste.
No último exemplo, o artista poderia ter escrito «numa serenidade»; mas o efeito não era o mesmo: a preposição em ESTILÍSTICA DA LÍNGUA PORTUGUESA 261
suscitaria uma impressão decorativa, de cenário, e por toda a frase correria uma indefinida e enervante languidez. Escrevendo com, o escritor evitou essa moleza apagadora das imagens, separando mais nitidamente as representações. O morfema é como que um safanão que se dá a um dorminhoco para abrir os olhos e ver mais claro. É conhecido já o sentido de causalidade que por vezes oferece a preposição: «com o seu passinho miúdo, parecia uma arvela contente». A preposição é ainda um elemento de caracterização, exprimindo o modo de ser; mas sentimos que o morfema contém um significado acessório causal: «devido ao seu passinho miúdo, por causa do seu passinho miúdo». O alto valor expressivo da preposição está em reumir numa síntese perfeita estas diversas representações. A significação causal já vem de longe, na história da língua. Dois exemplos apenas, tirados da História trágicomarítima, nos quais é perfeitamente nítida essa ideia de causalidade: «E tomámos ao nosso caminho, de que numca nos virámos, com o grande desejo que tínhamos de chegar». - «Que, com o dinheiro que em um dia se fazia naquela água, ao outro houvesse quem a fosse buscar». Da relação primitiva de companhia é natural que se tivesse desenvolvido a de simultaneidade; duma relação de espaço passou-se para outra correlativa de tempo. É assim que vemos fumcionar a
preposição, já no período clássico, em frases como esta: «Então me disseram que me não agastasse, que eles queriam ir a terra, como logo foram, com me deixarem no seu batel arrecadado». Hoje, substituiríamos o com por uma construção de gerúndio: «deixando me, ao mesmo tempo». Mas estoutra frase quinhentista é perfeitamente actual: «Cada um se recolheu, esperando a tomada da manhã, com a qual passámos o rio». Aqui o com vale o mesmo que durante. Resta falar no sentido concessivo da preposição, de todos talvez o mais impregnado de afectividade. Essa signi-
262 M. RODRIGUES LAPA
ficação teria surgido de uma frase como esta: «Aqui onde me vês, com os meus sessenta, ainda sou capaz de te fazer frente h É um elemento de caracterização, traduzindo uma relação de modo; mas tem, além disso, um evidente significado concessivo, pois se poderia substituir a locução por «apesar dos meus sessenta». Já na língua arcaica e clássica, o morfema tinha tomado esse sentido. Na linguagem de D. Dinis, «com todo esto» significava «apesar de tudo isto»; e numa frase como esta do período clássico, vê-se imediatamente o significado concessivo da preposição: «Todos sabíamos que não tínhamos mais mantimento que só para vinte dias, com toda a estreiteza que se pudesse pôr». Para este matiz concessivo, sem ser indispensável, é contudo valiosa, como se vê dos últimos exemplos, a proximidade do pronome iodo. É mesmo provável que esse significado tenha surgido dessa vizinhança. A palavra contudo, hoje uma conjumção adversativa, foi originariamente uma expressão concessiva e escrevia-se separadamente: «com tudo» (= apesar de tudo). Aliás, o efeito desse pronome pode ver-se destas duas frases: 1. com o seu talento, conquistará os mais altos lugares. 2. com todo o seu talento, não passará da cepa torta. Em ambas a preposição exprime uma relação de meio; na segumda esse significado é acrescido de um valor concessivo, que o contexto, a proximidade do pronome todo e talvez certo jeito de entoação ajudaram a criar. Mais um exemplo, entre tantos outros que temos aduzido, de que a frase tem importância fumdamental na fixação do valor semântico da palavra. 4. A preposição «de». - No seu significado primitivo, a preposição de marca o lugar donde, a origem: «Saiu de 263
casa». - «É de boa família». E como a noção de causa anda estreitamente ligada à de origem, não é de estranhar que a preposição acabasse também por exprimir a causalidade, como nesta frase: «Até pulava de contente». Quando se segue um artigo ou pronome começado por vogal, a preposição fumde-se com eles, perdendo o e e formando uma só palavra: do, duma, daquele, dalgum, etc. Os escritores porém acham que, neste processo de elisão, a partícula perde um pouco do seu valor expressivo. Comparemos as duas formas: 1. Seu pai morreu duma apoplexia.
2. Seu pai morreu de uma apoplexia. A distinção é talvez um pouco subtil; mas, como os olhos desempenham também certo papel na linguagem escrita, sentimos, realmente, que a ideia de causalidade sobressai com mais viveza na segumda forma, em que a preposição aparece por inteiro. Outras vezes, os escritores evitam essas elisões um pouco brutais, com um propósito de clareza, como se mostra neste passo de Eça de Queiroz: «-- E eu venho ajudá-lo, primo! - disse ela, animada pelo seu próprio riso, pela alegria de aquele homem a seu lado». O autor não alude à alegria do homem - nesse caso teria escrito «daquele homem»; quer exprimir a alegria dela, por tê-lo a seu lado, nessa visão de sonho. Por isso manteve intacta a preposição. É por este mesmo princípio que as gramáticas aconselham a não fazer elisão antes do verbo no infinito. Assim, deverá escrever-se: «depois de o Governo ter caído» e não «depois do Governo ter caído». José Régio, de todos os escritores portugueses modernos, foi quem mais tenazmente pretendeu acentuar o valor expressivo autónomo do morfema, em casos em que o aspecto gráfico contradiz já muito o uso oral da língua: «ria de ele
264 M. RODRIGUES LAPA
como os outros»; «ãe ela não esperava tal estupidez»; «e ela gostava de ele»; «os namorados de roda de ela» - (Histórias de mulheres). E José Rodrigues Migueis vai ainda mais longe: coloca a preposição, desgarrada, no fim da frase, associada a outra e formando uma locução adverbial: «Porque a leitura fecumda, com o Amor, é privilégio da juventude, que deixaste passar à-espera-de /» - (Gente da terceira classe, pág. 223). O sentido será qualquer coisa como: «indefinidamente à espera de não se sabe o quê». Aliás, o processo parece ter origem popular, pois o vemos documentado neste passo de Guimarães Rosa: «Se o senhor não aceita, é rei no seu; mas, abusar, não deve-deh-(Sagarana, pág. 236). Além de causalidade, a preposição pode ainda ter um sentido de referência, já vulgar em latim. Quando escrevemos, em título, - «Das origens da poesia lírica portuguesa», significamos que vamos dissertar acerca desse tema; mas que, ou pelo assumto ainda mal esclarecido, ou pela insuficiência dos nossos recursos, o fazemos incompletamente e não de modo definitivo. Esta imprecisão da partícula havia de agradar aos escritores modernistas. É assim que parece empregá-la Fernando Pessoa nestes belos versos: Dorme sobre o meu seio, sonhando de sonhar... No teu olhar eu leio ^ um lúbrico vagar. Dorme no sonho de existir e na ilusão de amar.
Correntemente, dizemos «sonhar com alguma coisa»; quer dizer que, na inconsciência do sono, nos encontramos «com» essa coisa em circumstâncias imprevistas. Uma frase como «sonhando de sonhar» é muito mais poética, porque, numa como que névoa de irrealidade, se alude imprecisamente aos sonhos que se teriam a respeito de outros sonhos. É com ESTILÍSTICA DA LÍNGUA PORTUGUESA
265
este mesmo significado que Miguel Torga emprega a preposição : «Naquela vida sem ar e sem altura que fora a dele, a cavar e a fumegar-se de pós da Abissínia, o sonho da filha representava um infinito horizonte de ventura e de perfeição».
Trata-se de um pobre homem, condenado a moner, e cuja mulher está grávida. Idealiza o próximo filho, que queria fosse uma rapariga, como um cúmulo de beleza e perfeição. O escritor exprime de maneira sintética o devaneio do pobre cavador em volta da criança que estava para nascer, criando com a preposição de essa atmosfera de enternecido imaginar que convém à situação. A propósito deste emprego, cita Carlos Gois a frase de Garrett - «Quando foi de seu último namoro» - dizendo que o de é mero expletivo que nenhuma falta faz ao contexto. Ora não é bem assim: o de sugere, com imprecisão, mais coisas para além do contexto; vemos não apenas o namoro, mas as circumstâncias que o rodeavam. A preposição também serve para designar o fim, como se mostra na locução «casa de jantar» (= casa para jantar). Já um poeta do século xvin, João Xavier de Matos, a empregou nesse sentido: «é porque vai buscando / novos caminhos de me andar matando».
Fernando Pessoa, que mostrou singular predilecção pelo morfema, usa-o em passos como este: Fada maliciosa ou incerto gnomo fadado houvesse de não pretender m’eu intuito gloríola, com ter a árvore do meu uso o único pomo...
Em linguagem corrente, diríamos: «houvesse fadado, para que eu não pretendesse». generalização do
É uma
266 M. RODRIGUES LAPA
emprego do verbo servir, que tanto se pode construir com par a como com de: «serve para designar» ou «serve de designar». Compreende-se a intenção do poeta: o para designa um fim mais ou menos longínquo; por isso empregou o de para significar ao mesmo tempo a propriedade e o fim imediato. Como quem dissesse: «me tivesse imposto o fado de eu não pretender...». Outra inovação do mesmo escritor: iniciar com a preposição de uma porção de discurso equivalente a um adjectivo: «um dia igual aos outros, da eterna família de serem assim». Era impossível empregar um adjectivo que conviesse ao complicado da ideia; o poeta criou uma forma para exprimir o seu pensamento. É o que se dá nestoutro verso seu: «Arrumo melhor a mala com os olhos de pensar em arrumar». Se escrevesse «pensativos na arrumação», introduziria talvez mais clareza, mas não exprimiria o conjumto de sentimentos complicados que agitam a alma do poeta. A construção, por muito ousada que pareça, é afinal uma adaptação da forma corrente - «com olhos de ver», em que o de exprime, como já vimos de outro exemplo, a propriedade e o fim. Este conceito vago de propriedade aparece ainda em locuções como estas, de uso comum: «quinta das Amendoeiras», «fonte dos Castanheiros», etc. A preposição não marca uma relação de posse do segumdo elemento para com o primeiro, isto é, não são as amendoeiras que possuem a quinta, os castanheiros que possuem a fonte. O de aqui é um elemento de caracterização do primeiro nome e inicia uma locução equivalente a um adjectivo. É uma forma condensada de linguagem, que procura traduzir uma longa perífrase: «quinta que se caracteriza pelas suas grandes e belas amendoeiras». O poder sugestivo da preposição está em acrescentar à designação de propriedade um alto poder evocativo de força e de beleza. Isto mesmo se vê nesta frase de Eça: «Frei Genebro abençoou o velho, tomou o
l ESTILÍSTICA DA LÍNGUA PORTUGUESA 267
seu bordão, desceu a colina dos grandes carvalhos». Note-se a tendência para fazer acompanhar a preposição do artigo definido; é que este morfema, como vimos já, pelo seu carácter visual, é um forte elemento de pitoresco. Quando porém, se trata de nomes abstractos, a preposição aparece sem contaminação do artigo, o que é perfeitamente lógico, porque as coisas imateriais, como dissemos já, não se podem apontar a dedo. Tal é o caso de «olhar de piedade», «sorriso de ternura», etc. Estas construções, que parecem ter a sua origem no estilo bíblico, são equivalentes a adjectivos: «olhar piedoso», «sorriso terno», etc.
Vejamos por que motivo são preferidas as locuções preposicionais tanto no estilo literário como na linguagem corrente. Em primeiro lugar, quando se diz «olhar piedoso», o adjectivo exprime qualidade inerente ao ente visado, uma propriedade de sempre; se dissermos «olhar de piedade», significamos antes uma qualidade de momento. Depois, o de parece dar à representação uma espécie de grau superlativo, uma intensidade que se poderia exprimir nestes termos: «olhar cheio de piedade», «sorriso cheio de ternura». Esta nota quantitativa de superlatividade, sem exclusão doutras sugestões, aparece aliás noutros casos em que é empregada a preposição: «De contente, nem reparou que estava ferido» (= de tão contente...). -«Que de (= quantas) mentiras eu ouvi então!» Enfim, um grupo fónico como olhar / de pieda / de, pelo seu tom ascendente (2 + 3), parece ter mais consistência rítmica, menos monotonia do que o simples grupo do substantivo mais adjectivo: olhar \ piedo / só (2 + 2). Resta falar do caso em que a preposição é um instrumento de comparação, serve um processo metafórico. Quando dizemos «um riso de cristal», «dentes de neve», queremos significar que o riso se assemelha ao tinido dum cristal, que os dentes, de tão brancos, parecem neve. A partícula oferecia portanto, devido ao seu poder de sugestão, grandes possibilidades aos artistas, que logo inverteram a ordem dos
268 M. RODRIGUES LAPA
elementos e criaram uma forma eminentemente poética: «o cristal do seu riso», «a neve dos seus dentes». Um grande poeta simbolista, Camilo Pessanha, utilizou este processo num dos seus versos: Passou o outono já, já toma o frio... - outono do seu riso magoado.
Qual será o verdadeiro significado da preposição neste verso? Trata-se, não há dúvida, de um processo metafórico, e a preposição de serve para suscitar a imagem, que parece ser: «Oh! como o seu riso magoado me lembra a doce tristeza do outono!» 5. A preposição «em». - Já vimos como a preposição em desempenha um papel importante na descrição dos ambientes, no cenário que envolve os actos das personagens. Como, para os escritores realistas, é o ambiente que determina o modo de ser do indivíduo, não é de estranhar que no uso da preposição em se insinue muitas vezes, mais ou menos clara, uma ideia de causalidade: «O senhor, na excitação nervosa que lhe davam as insónias, irritava-se com o menor rumor». Há aqui, claramente, uma relação causal, que se costuma exprimir pelas locuções «por motivo de», «devido a», de grande rigor lógico. O autor, porém, em vez de nos dar abertamente a causa, prefere envolvêla numa atmosfera emocional. Daí, o emprego do em. Podiam multiplicar-se ao infinito, só em Eça de Queiroz, os exemplos deste emprego sentimental-causal da preposição em: 1. As mesmas flores com que ela, no seu arranjo e no seu gosto de frescura, ornava as mesas, depressa murchavam naquele ar abafado de febre. 2. Recuou, no espanto daquela caridade inesperada. 3. Na vaidade da sua intriga romântica, achava repugnante aquele sentimentalismo senil. 4. Estava muito infeliz, naquela hesitação entre os impulsos da concupiscência e as prudências da economia. ESTILÍSTICA DA LÍNGUA PORTUGUESA 269
Vemos pois que a preposição em adquiriu na literatma moderna um valor afectivo, uma intensidade emotiva que estava longe de possuir em antigos tempos. Esta refumdição sentimental, esta tendência para a interiorização aparecem como nota característica do estilo de Mário de SáCarneiro, o notável poeta modernista: «Roçam por mim, em longe, a teoria / dos espasmos golfados ruivamente». Se se dissesse, correntemente, «ao longe», além do absurdo que daí resultaria, a representação da distância era feita friamente de dentro para fora; «em longe» exprime, com veemência afectiva, a distância vista de fora para dentro. Este dinamismo sentimental, apoiado pelos outros elementos do discurso, é evidente em frases como esta: «Frei Genebro acudiu em grande dó». A preposição com traduziria mais claramente o modo, a maneira. Mas o escritor não pretende apenas exprimir o modo; quer ainda envolver de ternura caridosa e apressurada a figura de Frei Genebro; e consegue-o perfeitamente por meio da preposição em. Aliás, o processo é conhecido da linguagem popular. Um exemplo: «Comia no presumto como um danado». A preposição em exprime também aqui o alvoroço, o pressuroso interesse dedicado ao acto. Donde é lícito concluir que muitas das inovações apontadas por nós como sendo obia de literatos têm raízes profumdas na linguagem do povo.
15. PALAVRAS INVARIÁVEIS
in 1. As conjumções. - Também nas conjumções se dá o mesmo que nas preposições: a expressão oral está constantemente a substituir as formas gramaticais, dando-lhes matizes novos de significado e um cumho preferentemente sentimental. Vejamos esta frase, própria da língua escrita: «Não leve o chapéu, se lhe não agrada». A ligação entre as duas orações do período é perfeita, rigorosamente lógica: vem primeiro a oração principal, depois a subordinada, precedida da conjumção condicional se. Mas a língua corrente prefere a essa frieza intelectual, própria de gabinete, o alvoroço activo, próprio da vida em comum. E diz assim: «Não lhe agrada o chapéu ? Então não o leve!» Houve aqui um verdadeiro terramoto. Em primeiro lugar, desapareceu a ligação lógica, introduzida pela condicional se. A ordem dos elementos da frase foi invertida; e a entoação mudou por completo, passando de narrativa a interrogativa e exclamativa. Por toda a frase agora há um calor de alma, uma intensidade que não havia na primeiia. Um outro exemplo da linguagem escrita: «Não tira resultado, embora trabalhe muito». O carácter abstracto da forma concessiva e o verbo no conjumtivo não são muito do agrado da expressão oral. Por isso diz antes: «Trabalha ESTILÍSTICA DA LÍNGUA PORTUGUESA 271
como um moiro, mas não tira resultado». A frase tomou-se muito mais concreta e pitoresca com a introdução daquela imagem, e a ideia concessiva foi substituída por uma adversativa, expressa por mas, com o verbo no indicativo. Estas interferências do estilo oral têm muita importância, como vamos ver, no estudo das conjumções, limitado por nós quase exclusivamente às conjumções copulativas e adversativas, que são as que apresentam maior interesse para a Estilística. 2. A conjumção «e». - Pode dizer-se que a pequena partícula e tem para a Estilística a mesma importância que o artigo definido, tal é a variedade dos seus aspectos. Claro que não nos interessa aqui o aspecto lógico, propriamente gramatical, da conjumção, por de mais conhecido; importa sobretudo reconhecer e interpretar o seu valor afectivo. Escreveu o cronista Fernão Lopes a respeito de um traidor à causa portuguesa: «e el foi depois tomado e preso e arrastado, e decepado e enforcado» - (Crónica de D. João I, parte I, cap. 148). Só tem uma vírgula, para marcar uma pausa rítmica na linguagem do autor, que mete na pressa desvirgulada da frase a sua paixão nacionalista. Repare-se neste trecho de Teixeira-Gomes: «Vejo-a surgir, e correr e inclinar-se, com os olhos meio cerrados, e fugir e desfazer-se e desaparecer pelas sombras luminosas do arvoredo». Experimentemos tirar a conjumção e substituí-la por vírgulas, processo que a Gramática conhece pelo nome de coordenação assindética. Recebemos uma impressão diferente. Sem a partícula e, os períodos da acção são mais separados e mais lentos, vêem-se melhor, um a um. Mas não é isso o que o autor pretende; ele quer dar-nos o movimento ininterrupto, o entusiasmo vertiginoso daquele bailado e o contágio de que o próprio espectador se sente possuído. Por isso empregou a conjumção copulativa.
272 M. RODRIGUES LAPA
O processo não é novo, já vem do latim, e a linguagem popular e a infantil adoptam-no com predilecção, porque obedecem de ordinário a motivos de ordem sentimental. Quando os autores querem pôr na coordenação uma nota de intensidade afectiva, não têm mais do que imitar essa linguagem, como Paço d’Arcos neste trecho, que parece um conto popular contado a crianças: «Não pôde mais dominar a vida do alto da sua sacada de doente. Daí em diante foi a morte que o dominou. Os seus últimos dias foram uma longa e exaustiva luta com a morte; luta que teria sido mais piedoso não prolongar; mas o pai, que era médico, receitava; e a mãe, que era simplesmente mãe, implorava; e Roland, que não tinha a coragem de deixar morrer o condenado, ia para o quarto dele e lutava; e Dolores, que não tinha ainda a serenidade do país de opção, com os grandes olhos rútilos de lágrimas, fazia sofrer o John com as injecções; e vinha chorar para o corredor e quase não falava a Roland. E o John sofria tanto e eu não podia mais vê-lo sofrer. E ele queixava-se de que eu o esquecera e de que já quase não ia ao quarto dele. E um dia vieram os irmãos pequeninos para que o John os visse ainda uma vez. E o mais pequenino de todos pergumtou porque estava ali o John e não voltava para casa, para jumto deles. E a mãe, a disfarçar as lágrimas, disse-lhe, já no corredor, que o John não voltava para casa, porque ia para muito longe, para o céu... E os irmãos do John foram para a capela pedir para que ele fizesse boa viagem. E como tinham pena de se separar do John, começaram a chorar». (Neve sobre o mar, págs. 201-202).
O trecho começa por umas frases de narração objectiva, serena; mas o tema doloroso vai empolgando o autor, que acaba por traduzir por meio daquela copulativa patética a ansiedade que a todos dominava e a atmosfera de movimentado drama que envolvia as personagens daquele quadro de hospital. Que a acumulação da partícula e nos dá uma impressão de movimento e de exaltação passional, vê-se perfeitamente ainda por esta frase bem conhecida do Amor ESTILÍSTICA DA LÍNGUA PORTUGUESA 273
de Perdição: «E vai eu, entro em casa, you à cabeceira da cama, e trago uma clavina, e desfecho-lha na tábua do peito». É João da Cruz que fala, um homem do povo, todo instintos. No final do período, a copulativa costuma adquirir um significado um pouco diferente; mas ainda aqui se deixa ver um toque de sensibilidade. Nas enumerações do descritivo põe uma nota de remate mais ou menos afectiva: é como que uma síntese, uma conclusão do que foi dito: «A noite fazia um silêncio alto, duma melancolia plácida; o gás dos candeeiros parecia mortiço; a lua pumha nas fachadas brancas claridades vivas; uma clarabóia reluzia, a distância, como uma velha lâmina de prata; nada se movia; e instintivamente os olhos erguiam-se para as alturas, procuravam a lua branca, muito séria».
É evidente aqui o carácter lírico da conjumção. Primeiro, para se tomarem mais nítidas, as representações sucedem-se separadas por pontos-e-vírgulas; depois, no remate, a partícula cinge tudo num complexo sentimental e mostra-nos a lua como a síntese superior do silêncio e da luminosidade da noite. Por vezes, parece haver contraste entre a representação final e as que antecedem; é uma oposição aparente, - notando bem, havemos de encontrar um elo sentimental, que liga todas. Outro exemplo de Eça: «A folhagem verde-escura e polida dos arbustos de camélia fazia ruazinhas sombrias; pedaços de sol
faiscavam, tremiam na água do tanque; duas rolas, numa gaiola de vime, arrulhavam docemente; - e no silêncio aldeão da quinta, o ruído seco das bolas de bilhar tinha um tom aristocrático».
Ao primeiro relance, a copulativa parece ligar representações diversas e até discordantes, como é aquele ruído das bolas de bilhar, na verdade estranho após a descrição da paisagem. Há contudo uma base sentimental que promove 18 -’ Estilística
274 M. RODRIGUES LAPA
a umidade dessas impressões: Luísa está a rememorar o tempo do seu primeiro namoro com o primo Basílio, na quinta do tio, em Colares. Jogavam-se grandes partidas de bilhar numa sala que dava para o jardim. De modo que no espírito daquela mulher, sensível e mal formada, se fumdem numa só impressão a imagem romanesca da paisagem e a do ambiente confortável e aristocrático. Como se vê, há um elo de sentimento a umir aqueles contrastes. Esta capacidade afectiva já vem de longe, na história da língua. Os trovadores do século xm, que empregavam nas suas canções uma linguagem corrente, a linguagem da simpatia e do amor, usavam e abusavam dessa palavrinha nos seus cantares, em casos como estes: E porque me desamades, ai, melhor das que eu sei ?! E, amiga, direi-vos que mi avén: tantas vezes o mandei atender, que lho non posso mais vezes dizer.
A partícula não liga aqui orações nem elementos de oração; está posta à frente do período, exprimindo directamente a linguagem da alma, como uma espécie de interjeição. Note-se que, no primeiro exemplo, a poesia é iniciada por essa palavra, que assim cria uma atmosfera de mágoa contida, dispersa por todo o cantar. A linguagem familiar moderna conserva ainda como se fosse no tempo dos trovadores, o valor expressivo do e. Veja-se esta frase: «E levantei-me eu de madrugada para isto!» O morfema não tem fumção lógica, é apenas um elemento de intensidade afectiva. Como vemos dos exemplos apresentados, o seu domínio parece ser a linguagem exclamativa e interrogativa, precisamente aquela em que os valores emotivos mais se fazem sentir. Os escritores souberam aproveitar este carácter lírico da ESTILÍSTICA DA LÍNGUA PORTUGUESA 275
conjumção, que tão bem quadra com o nosso temperamento. São de Fr. Luís de Sousa estas duas frases, uma interrogativa, outra exclamativa: «Pois, meu padre Fr. Gil, e que há de ser de Mem Peres sem vós ?» «- Oh, mtu Deus, e quão penosa morte é esta!» E é de Fialho de Almeida estoutra, em que igualmente se evidencia o carácter interjectivo, de alvoroço sentimental, que traz em si o morfema: «E toda a noite ele cantava nos píncaros da árvore gigantesca!» Caso idêntico é aquele em que a partícula inicia uma oração de infinito, como nesta frase de Raul Brandão: «A rosa do dia a abrir, e a andorinha a entrarihar-se no azul». Aqui não há ponto de exclamação, porque a palavrinha desempenha uma fumção ao mesmo tempo lógica e sentimental: lógica, porque insinua uma relação temporal de simultaneidade: «no mesmo instante em que a rosa do dia se abre...»; sentimental, porque traduz a pressa, a alegria daquele voo de ave atirando-se para o céu azul. Há, embora o escritor não o tivesse registado graficamente, um tom de surpresa e de exclamação. Não acabam por aqui os aspectos, variadíssimos, que pode revestir a delicada conjumção. Em muitos casos tem um valor mais ou menos conclusivo: «O luar, entre dois farrapos de nuvens,
encheu o cofre de faíscas de oiro. E o avarento, em êxtase, fechou os olhos como encandeado por tanta luz!» Se escrevêssemos qualquer coisa como isto: «Por isso o avarento...», introduziríamos no discurso uma ideia bem definida de conclusão ou causa, que não é precisamente o que pretende o autor. Para ele, o causal, o conclusivo e o temporal confundem-se num mesmo sentimento. Ele não pretende estabelecer relações lógicas entre as partes do discurso; procura exprimir muito melhor essas relações, condensando-as num forte impulso afectivo, aqui bem frisado por meio da entoação exclamativa. O significado causal é mais claro neste passo quinhentista da História trágico-marítima: «Os mesmo cafres nos
276 M. RODRIGUES LAPA
disseram por acenos inteligíveis que aguardássemos ali e nos trariam mantimentos». Onde parece que a copulativa se poderia bem substituir pela conjumção causal pois; embora se pudesse também admitir, com menos probabilidade de acertar, a elipse de um que integrante, dependente de disseram: «e (disseram que) nos...». Esta construção já tem 700 anos, pois aparece numa cantiga do trovador João Rodrigues de Calheiros (Canc. da Vaticano,, 234): Disse-me a mi meu amigo, quando s’ora foi sã via, que non lh’estevess’eu triste, e cedo se tomaria.
Outras vezes, a partícula, jumtamente com outros elementos do discurso, insinua na frase um sentido condicional: «Semelhante gralha em livro meu, e suicidava-me». O escritor poderia dizer, mais logicamente: «Se encontrasse semelhante gralha em livro meu, suicidava-me». Era a expressão de uma hipótese encarada a frio. Mas essa hipótese causa de antemão um tal sobressalto, que a frase só traduzirá bem o ânimo do autor, se for logo de princípio construída de elementos afectivos. Assim se explica a omissão do verbo na primeira oração, que nos dá a hipótese transformada em surpresa, expectativa, ansiedade; e finalmente o emprego da partícula e, que nos dá uma nota conclusiva e sentimental, como de trágica fatalidade. Tudo, como vemos mais uma vez, processo para reduzir a sentimento fenómenos que são mais do domínio da inteligência. A surpresa é muitas vezes, a maior parte das vezes, marcada por um movimento de contrariedade. Não é pois de estranhar que a conjumção e sirva também para exprimir a surpresa desagradável e o contraste, a oposição com o que se disse anteriormente. Uma criada, surpreendida, abre a porta e exclama: «- O patrão a esta hora!... E a senhora que saiu!» Primeiro, exprime o espanto de ver o patrão em ESTILÍSTICA DA LÍNGUA PORTUGUESA 277
casa, a uma hora desacostumada; depois, sempre num grau altamente emotivo, a contrariedade de não estar a senhora. Este matiz adversativo é frequente também em trechos literários: «Pela ramaria andava um melro a assobiar. Um cheiro errante de violetas adoçava o ar luminoso. E Rostabal, olhando o sol, bocejava com fome». Primeiramente, a poesia e a suavidade da natureza; depois, em contraste violento, a fome daquele homem. Quase estaríamos tentados a pôr em vez do e um mas. Seria de casos como este que se teria passado para o sentido abertamente adversativo da conjumção e, que já vem desde os princípios da história da língua. O tipo de frase da língua corrente que abona esse emprego pode ser este: «Professar uma doutrina e praticar outra é uma indignidade». O valor adversativo da conjumção nasce do contraste chocante das duas atitudes postas a par. É por isso que, tendo aqui o e o significado de mas, o verbo se põe no singular (é) e não no plural (são), como nos demais casos em que não há contraste: «Dar aos pobres e sofrer resignadamente são virtudes cristãs». Este caso estilístico acha-se bem documentado nestes versos de Bernardim Ribeiro, em que a copulativa se toma adversativa, valendo por «mas afinal»;
Triste, que me parecia que, o meu gado remediado, comigo bem m’haveria; e estava-me ordenado estoutro mal que ainda havia!
Um exemplo que ilustra a aproximação de significado entre as duas conjumções está neste trecho de Eça, que ele refumdiu em segumda redacção: «A rapariga loira reparou naturalmente em Macário, mas naturalmente desceu a vidraça, correndo por trás uma cortina de cassa bordada». Na versão definitiva substituiu o mas pelo e. O sentido de oposição esbateu-se um pouco, e corre agora pela frase um frémito
278 M. RODRIGUES LAPA
de alvoroço, que é o que mais quadra com a natureza da personagem. 3. A conjumção «mas». - Também a partícula mas substitui por vezes a copulativa e, quando se quer mencionar uma ideia de oposição, numa atmosfera de exaltação sentimental. São conhecidos os seguintes versos de Cristóvão Falcão, estando preso: Meus olhos, de escuridade, já não vêem, já estão mortais; mas pêra que era ver mais, dês que vos eles não virom, dês que de vós se espedírom?
Certos críticos gramaticais acharam aquele mas mal empregado e substituíram-no por e. Ora a verdade é que, sobre se viciar desnecessariamente o texto, a conjumção mas tem uma força de oposição e um transporte passional superior ao da partícula e, neste caso. Que o mas posto à frente do período tem um carácter negativo, de firme oposição, vê-se no seguinte episódio. Antero de Quental publicou em 1865, nas Odes Modernas, um poema que vinha à frente do livro, A História, e que começava por essa adversativa: «Mas o homem, se é certo que o conduz...» Na polémica que se estabeleceu em volta da chamada «escola coimbrã», um dos defensores da estética tradicional, Manuel Roussado, não deixou de notar o tom provocante, protestatário, da primeira palavra do texto, e que o emprego dessa conjumção dava logo de princípio a atmosfera da poesia e do livro que esse poema iniciava: um racionalismo ousado, que se opumha por sistema às verdades tradicionais da monarquia, da sociedade e da igreja. Claro que quem se colocar no campo oposto também consegue o mesmo efeito; é o caso do título do livro de José Régio, Mas Deus é grande. ESTILÍSTICA DA LÍNGUA PORTUGUESA 279
Sempre que vemos o homem revoltar-se contra o seu destino, encontramos a conjumção mas, que então já o não é, mas uma espécie de advérbio, como o foi na sua origem (MAGIS = mais). Exemplo típico desta atitude é a frase corrente: «Mas eu é que já não posso com isto!» Basta tirar a partícula adversativa para se ver o que a frase perde em energia opositiva, em revolta declarada. Efectivamente, o emprego da partícula em actos de rebeldia pode ter resultado de circumstâncias como esta. Um pai tenta convencer um filho, teimoso e desobediente: - «Vem cá, José!» E ele responde desabridamente: - «Mas não you!» O mas, reforçado pela entoação, traduz bem o espírito de intransigente oposição do rapazinho. E como na esfera do sentimento se vai facilmente de pólo a pólo, não é talvez de estranhar que encontremos a adversativa numa significação de surpresa agradável, como nesta frase exclamativa: «Mas que belo quadro!» Talvez que estas expressões nascessem por analogia daquelas em que o mas está na sua verdadeira fumção adversativa: «Mas que tipo insuportável!» Ou então poderemos admitir que todo o movimento de surpresa pressupõe um mas: um indivíduo espera encontrar uma coisa, mas sai-lhe outra, ou agradável ou desagradável. A partícula traduz, como se vê, estes jogos complicados do espírito, estes contrastes difíceis de analisar porque repousam nas profumdidades do subconsciente. É o que se dá com o mas em sentido causal. Já Caldas Aulete notara esse significado na adversativa, em frases como esta: «Maltratei-o, é verdade, mas tive para isso razões». O matiz causal provém de que se subentende este pensamento oculto:
«Admiram-se de que eu o tivesse maltratado, mas, se o fiz, é porque tive para isso fortes razões». A partícula aqui traduz um movimento de oposição ao espanto manifestado anteriormente. E essa atitude de resistência procura dar a explicação, o motivo daquele procedimento. Daí, necessariamente, o insinuar-se na conjumção
280 M. RODRIGUES LAPA ESTILÍSTICA DA LÍNGUA PORTUGUESA 281
?l um valor acessório de causa, que poderia também ser expresso pela partícula pois, aliás com uma ou outra diferença de sentido: esse morfema acentuaria mais energicamente a relação causal. A causalidade do mas está, aliás, exemplificada num trecho clássico, que tem dado que fazer aos comentaristas. Referimo-nos à estrofe 47 da écloga Crisfal: Deus a dê ao seu Crisfal, por ambos contentes ter, e mais não lhe quero ver, mas já sei, pelo meu mal, o bem doutrem escolher.
Isto é: «não lhes desejo mais nada do que isto: é que já sei, pela experiência do meu infortúnio, conhecer qual é o bem dos outros». Epifânio da Silva Dias declarava que o mas não tinha aqui lugar, mas sim uma partícula causal, talvez pois. Sousa da Silveira, com base no carácter sentimental da linguagem da écloga, considera uma pausa de ponto final depois de ver. O mas seria devido a uma elipse: se suprirmos com palavras o que ela não disse, mas sentiu, veremos que tem lugar a conjumção mas: «sou infeliz, mas em compensação, já sei, etc.» Não deve ser assim: se alguma coisa se subentende, é depois do verso 2: «estranharão talvez que não lhes deseje maior bem; mas já sei que, para eles, é este o maior bem de todos: pertencerem um ao outro». Devido a uma espécie de cruzamento, o mas tem simultaneamente sentido adversativo e causal, facto aliás já registado no Dicionário de Caldas Aulete. Os escritores realistas souberam aproveitar nas suas narrações o elemento de surpresa e contraste inerente à partícula, empregando-a, tal como fizeram com o e, no começo do período. Um exemplo de Eça de Queiroz: «Nenhum dos judeus entrou - porque pisar em dia pascal um solo pagão era coisa impura diante do Senhor. Sareas anumciou altivamente ao tribumo que «algums da nação d’Israel, à porta do Palácio de seus pais, estavam esperando o Pretor». Depois pesou um silêncio cheio de ansiedade... Mas dois litores avançaram: e logo atrás, caminhando a passos largos, com a vasta toga apanhada contra o peito, Pilatos apareceu.»
Aqui ainda é sensível o valor adversativo do morfema, pela brusquidão do aparecimento dos litores, em contraste com a atitude reservada dos judeus; mas já no seguinte trecho, também de Eça, a partícula perde todo o carácter de conjumção e não passa de um
advérbio, com significado mais ou menos temporal: «Os jardins de Antipas estiravam-se por um último outeiro, até jumto ao túmulo de Helena, assoalhados, frescos, regados pelas águas doces de Enrogel. - Ah, Topsius, que cidade! - murmurei maravilhado. - Rabi Eliézer diz que não viu jamais cidade bela quem não viu Jerusalém! Mas ao nosso lado passava gente alegre, correndo para os lados da verde estrada que sobe de Betânia...»
Neste exemplo, a partícula perdeu toda a ligação com o que antecede. Não se procura estabelecer a transição; pelo contrário, o morfema é como que um sinal, um toque no ombro para mudar de assumto e olhar para o outro lado. É um elemento de surpresa e de variedade, que não deixa afrouxar a atenção, presa ao mesmo assumto, antes a solicita constantemente em novas direcções. Nenhuma outra conjumção, das chamadas adversativas, pode pretender desempenhar o mesmo papel que mas, substituí-la nos casos acima referidos. Aliás, o grau de emprego dessas partículas é bastante diferente: o mas é de uso geral, tanto na linguagem familiar como na literária, e, apesar do seu uso, já vimos que não perdeu a sua capacidade expressiva; contudo é menos empregado na linguagem corrente; porém e todavia são conjumções limitadas ao estilo literário.
282 M. RODRIGUES LAPA
Quando se usam em linguagem corrente, denotam em quem as profere snobismo e afectada vacuidade. São as conjumções nobres, empregadas pelo conselheiro Acácio, que desdenha naturalmente do trivial mas e até do contudo. 4. O estilo assindético e a subordinação. - Note-se que a língua usual, que se caracteriza pelo seu tom apressado e dinâmico, dispensa perfeitamente esses nexos lógicos que são as conjumções ou substitui-os por outros a seu modo. Na chamada construção assindética, desaparece a ligação gramatical e, em vez dela, temos o jeito expressivo do falar, a entoação, que a substitui com vantagem. Vejamos esta frase construída logicamente: «Está um pouco frio, mas não faz mal». O estilo oral exprime perfeitamente essa relação adversativa, dizendo assim: «Está um pouco frio; não faz mal». O modo de dizer, a entoação, que aqui se não pode representar, variou consideravelmente e adquiriu no segumdo elemento da frase um tom levemente exclamativo, que é uma indicação segura para o ouvinte. com as conjumções subordinativas sucede o mesmo. Esta oração causal «Não posso entrar, porque a porta está fechada», profere-se na linguagem corrente, dispensando aquela dura partícula, abstracta e corriqueira: - «Não posso entrar: a porta está fechada». Simplesmente, passou-se da linguagem lógica para a linguagem afectiva, porque à noção de causa se deu agora um tom sentimental que não tinha no primeiro período. A entoação exprime tudo isso, sem receio de equívoco. O recurso foi, é claro, aproveitado pelos escritores, que viram nessa separação de representações um elemento de pitoresco, um acréscimo de visualidade: «Vieram as águas do inverno, tiveram de se afastar». Se construíssemos «gramaticalmente» o período, escreveríamos: «Tiveram de se afastar, porque vieram as águas do inverno». Era um modelo de bom raciocínio: primeiro registava-se o fenómeno, em ESTILÍSTICA DA LÍNGUA PORTUGUESA 283
seguida explicava-se a causa. Mas o escritor sacrifica a lógica em benefício da arte e prefere representar vivamente os dois quadros na sua sequência cronológica, primeiro a causa, depois o efeito. Tudo se anima agora com uma vida nova, que a entoação ajuda a valorizar: do abstracto e intelectual passou-se para o concreto e sentimental. É de Fialho de Almeida esta frase: «Voltou depois na primavera seguinte, já os lilases floriam nas moutas dos jardins». O escritor omitiu a conjumção quando, porque a ele não interessa exprimir uma subordinação de tempo dentro dum quadro lógico, mas, separando as representações, aumentar-lhes a objectividade e o relevo. E tudo isso conseguiu o artista por meio da construção assindética, auxiliado pelo sábio emprego daquele advérbio já. Outras vezes, para sair da estreita clausura gramatical, os escritores usam os mais variados processos de coordenação e subordinação, fugindo, como rasgo de estilo, aos cansados e por vezes duros morfemas que a Gramática preconiza. Apenas algums exemplos, colhidos da língua oral e de escritores antigos e modernos, portugueses e brasileiros: 1. A carreira não se vê se foi boa, quando começa, senão (= mas) quando acaba. 2 O trabalho passado devia antes abrir os olhos, que (= e) não dar confiança. 3. Conheço não ser nuvem, sim (= mas) o cume de alto
monte. 4. Logo que (= se) não vais, escusas de estar tão preocupado. 5. Quando (- se) não a amasse, ao menos respeitasse-a. 6. A (= se) saíres ao meio-dia, leva o guarda-sol. 7. Ajudou-o el-rei, como magnânimo que (= porque) era e nobre de condição. 8. Esse livro esqueceu depressa: é que (= porque) não era bom. 9. Quiseram fugir, vista a impossibilidade de (= pois era impossível) jumtar resgate. 10. Subiam da juventude até os trinta e cinco, já que (= pois que) nos seringais não tinham lugar os fracos ou os inúteis. 11, E entanto (= enquanto) o outro ajumtava pormenores dilacerantes, buscava eu atitudes que me ficassem bem. 12. E querendo-me já voltar (= quando estava para voltar) para este reino, me foi demandar um homem português. 13. Acomodados que fomos (= quando nos acomodámos) em volta da mesa, fez-se um silêncio sepulcral. 14. O reino de Portugal, se
284 M. RODRIGUES LAPA
bem (= ainda que) esteve sujeito ao de Castela, numca esteve umido. 15. Foi Deus servido que não fosse por essa cidade, sendo que (= apesar de que) a minha tenção era recolherme do Algarve por ela. 16. Bafejado fora (= embora fosse) eu de excelsos dons, que não me abalançaria ao descritivo desses sítios. 17. A saúde vai andando, só que (= mas) o clima não favorece o reumatismo. 18. Ingénuo será, agora (= porém) estúpido, talvez não. 19. A contribuição é exagerada, uma vez que (= pois que) se trata de pobres sem recursos. 20. Parou o navio grande para tomar medida e atirarem instrumentos dentro d’água, atrás (= a fim) de descobrir o paradeiro do navio perdido. 21. Era (= mal que) descuidar-se um pouco, e lá estavam os dois caminhando jumtos lado a lado. 22. Fala bem, o ponto (= contanto que) é ele querer. 23. Vamos que (= ainda que) tenha cem contos; mais não deverá ter. 24. Metesse eu mão nesse negócio, que o resolveria imediatamente (Se metesse... resolvê-lo-ia). 25. Reli comovidamente esse livro, amigo que fui (= por ter sido amigo) de seu autor. 26. Não lhe mostre a carta, não vá ele julgar (= para que ele não julgue) mal de mim.
Note-se que as equivalências dadas por nós entre parênteses têm um valor de aproximação, visto dois processos de estilo não serem exactamente iguais, como tantas vezes temos mostrado. E é, afinal, a suprema razão de ser deste livro: o provar que, para além da rigidez convencional da Gramática, o povo e os artistas, em comumhão de esforços, num anseio de liberdade criadora, descobrem constantemente novos modos de expressão, não só pela invenção de novas palavras, mas mais ainda por uma sábia e genial adaptação do material existente. É nessa manipulação subtil de ingredientes já conhecidos que reside o segredo do estilo.
ÍNDICE ANALÍTICO: AUTORES, MATÉRIAS E PALAVRAS a, prep. - 258-259 a prostético - 102 a quando - 53 abajur - 52 abandonar - 30-31, 46; abandono - 52 abdómen - 26 abolir - 124 aborrecido - 133 abrigo - 36 abuso - 35 acabar - 27 Academia Francesa - 223 acariciar - 201 acautelar - 198 aceder - 54 acender: acendido, aceso - 214 achaque - 37, 62 aclimar - 53 aclimatar - 53 acontecer - 196 açorda - 44 actuar - 197; actuação - 53 adentro de - 53 adiar - 28, 29 adir - 196 admirável - 35 adrede - 58 afectividade 30-32 aficadamente - 243 aflição - 128 Afonso X, o Sábio - 158, 221 agasalhar - 43 agir - 197
agoms - 236; agonnha-112 agravado - 72 aguisadamente - 243 agulhas - 23 alagoa - 102 alambique - 44 alarde, alardear, alardo - 79 albergar - 43; albergue - 36 Alcalá (Xavier) -112 alcance - 27 álcool - 44 alecrim - 44 alegrias - 130 alentejano - 100 alevantar - 102 alfaiate - 44 algarismo - 44 algum - 173 ahmpar - 102 ali-potente - 98 Almeida Garrett - 45, 48, 62, 109, 163, 166, 221, 224, 229, 231, 234, 265 alongadamente - 243 alqueire - 44 alumiar - 200 Alves Redol - 111 Amado (Jorge) -119, 165, 186, 194, 252 amanhecer - 183 amarar - 53 ambiente social - 26-27
286
M. RODRIGUES LAPA -38; amor-orgulho- 98amor -99 analogia- 156-160, 196-198, 210 ancião - 65-66 Andrade (Mário de) - 143, 149, 168-169, 221, 236, 249, 264 ansiar- 198 antemuro - 102 antepassado - 100, 102 antipático --102 antit’evolucionário - 102 antónimos - 38-39 Antumes (David) - 58 apanhamenio - 175 aparvalhado - 38 aperceber-se - 53 apiadar, apiedar - 198 apreciar - 198 aprisco - 36 apropriar - 199 árabe (invasão) - 43-44 arcaísmos - 55-59, 78-80, 102, 153 ardente - 142 ardidamente - 241 areia-arena - 24 aristocracia - 97 armazém - 44 arranjos - 129 arrecear-102; 65-67 arredondamento -• 135 arreio - 43 arroba - 44 arrobe - 44 arroido - 102 artefactos - 47 ascenso - 50 aspeito - 57 assado - 61 assimilação - 155-157 atenções - 129 atentivamente - 48-49 atenuar - 73-74 aterrado -• 73 aterragem - 53 atrapalhamento - 175 atravessamento - 175 audição colorida - 13 aumentativos - 143 automóvel - 97 avarento - 36 aveia-avena -• 24 avião - 11, 53 azoinado - 38 azul - 44, 138 badanai - 80-81
baldosamente - 240 baluarte - 43 banir -43, 194 barão - 27 bárbaros germânicos - 43 barca-barco - 128 barraca-barraco - 128, 36 Barreto (Mário) - 195 barriga - 26, 43 Barros (João de) - 116, 197, 204, 218, 221, 222, 226, 232 beato -- 36 bebedêmmo - 148 beiço - 36 beira-mar - 15 beleza-125; beleza-espanto, beleza-novidade - 98; belezas - 129 Belmiro = Curvo Semedo - 109 belo - 31-32, 38-39, 40; bela 139 Bernardes (P.e Manuel)-213, 224-225, 229 Bessa (Alberto) - 71 bexigoso - 40-41 bibelô - 46-47, 52 bico-de-obra - 64; bicos - 23 bioco 133 ÍNDICE ANALÍTICO 287
Blanco-Amor (E.) - 150 boca - 42-43 Bocage - 109 blusa - 52 bola-bula - 24 boneca - 15 ^ bonito - 31-33, 39
Botelho do Amaral (Vasco) - 52 Bourbon e Meneses - 68 braço - 127 bradar - 43 Braga (Alberto) - 199 Brandão (Diogo) - 240 Brandão (Raul) - 157-158, 275 brandir - 43 branza - 23 Brás Buriti - 149 brejeiro - 68, 70 brincos - 47; brinquedos - 47 britar - 56-57 Brumot (Ferdinand) - 54, 198 bugigangas - 47 bulevar - 52 burguesa- 130; burguesamente 247 cá - 240 Cabanillas (Ramón) - 250 cabeça-17, 19, 75-76; cabeçorra - 133 cabelo, cabelo de fogo - 40-41 cachoeira - 125 cadeira-cátedra - 24; cadeiras 60-61 cair - 199 calafetação - 136 calão - 68 Caldas Aulete - 82, 83, 186, 238, 277, 279
caldo-cálido - 24, 27 Callado (António) - 197, 237 calor - 38 caloteiro - 65 calvo - 40-41 Câmara (D. João da) - 186 Camilo, V. Castelo Branco camioneta-fantasma - 99 Camões (Luís de) - 64, 138, 158, 161, 171, 184, 206, 218, 221-222, 224, 229, 233-234, 257 Cândido de Figueiredo - 25, 28, 52 canhestro - 50 Cardoso (Joaquim) - 246 careca - 40 cavidades - 130 carraspana - 27 carrilhoeiro, carrilhoneiro - 113 caruma - 23 casa -36, 42-43 casacório - 133 casebre - 36 Castanheda (Fernão de) - 248 Castelao (A. R.) - 28 Castelo Branco (Camilo) - 48-49, 51, 64, 72, 88-89, 101, 149, 158, 205, 212, 248, 275 catar-captar - 24 catre - 36 cavalheiresco - 108 cavalo - 42-43 ceder - 28-29 cessar - 2829 cesta-cesto - 129 chafra-nafra - 54 Chagas (Fr. António das) - 62-63, 143, 210, 218, 227, 236 chalé - 52 chatérrimo - 148 chave - 10 chefia - 53 cheio-pleno - 24 chorãoflorão - 24 choupana - 36 chouriça-chouriço - 129
288 M. RODRIGUES LAPA
chover - 183 chuva - 10 cismar - 35 Classicismo - 53, 166, 171, 174, 191, 197, 204, 210, 213, 216-217, 219, 225, 226-227, 229 233, 257, 259, 261-262 clichés - 135-136, 142 distermente - 248 clube - 52 cognatos - 175, 178 coevo - 102 coitado, coitadamente - 20, 243 colaborar-• 102 colectivos - 127 colorir - 196 com - 118 comerciar - 201 comigo - 102 i comovido - 144 compadecer- 100-101 compridameníe - 243 concordância atractiva - 217 concordância mental - 218 conexão - 102 confusão - 33
conhecidainente - 243 consciencializar - 53 consentir •- 63 contactar - 53 contrariar - 200-201 contradita, - 100 contudo - 262, 282 convencer - 63 copiar - 200 -coquete •- 47, 52 cor local - 55 cores -230, 232, 248 Correia (Raimumdo) - 246 corrente - 125, 142 correspondência - 102 Cortesão (Jaime) - 106 Costa (Firmino) - 40 Couto (Diogo do) - 168, 222 couve-flor - 98-99 cozido - 174 cozinha de boneca -- 107 crebro - 54 criancinha, - 106 crimemente - 248 crosta-crusta - 24
cumprir - 182 Curvo Semedo. V. Belmiro- 109 dantesco - 108 dar-se de - 63 dardo - 43 de - 118, 146 decidir - 27 defumto - 140-141 deixar - 28-29, 30-31 deleite - 63 delgado-delicado - 24 delinquir - 196 delir- 196-197 democracia - 97 demografia - 97 demolir - 196 demopsicologia - 97 dereitamente - 243 desaguar - 200 desaire - 40 descer-se - 191 descomedir-se - 196 desfasamento - 53 desgraça - 100 desistir - 28-29 desmedida (à) - 72
desordem - 33 desterramento - 176 destino - 99, 126 destruir - 199 desvio de fumdos - 27 devagar - 242-244 dever - 174 ÍNDICE ANALÍTICO 289
Díaz Castro - 150 Dieste (Rafael) - 238 diligenciar - 200 Diiiis (Júlio) - 67 Dinis (Rei D.) -- 262 disacompanhado - 103 discernir - 197 disculpar- 103 discurso directo-159 » indirecto - 159, 203-205 » 240 disenvolvimento - 103 disfavor •--103 disparar - 103 dispensar - 103 dispepsia - 103 dispertador - 103 ãispertar - 103
semi-directo - 159, 209,
dispneia - 103 dissabotido - 103 dissemelhante - 103 distanciar - 201 disvelo - 103 dócil - 35, 63 doença - 37, 41 doloroso - 138 doméstico - 43 douto - 63 Drummond de Andrade (C.) 58, 237, 246 Duarte (Afonso) - 239 ebri-festante - 98 Eça de Queiroz - 7, 28, 36, 49-51, 56, 86, 88, 104, 110, 111, 117, 118, 123, 135, 152-153, 163-164, 169, 172, 175, 185, 190, 208-209, 213, 219, 231, 237, 240-241, 244, 246, 248, 251, 253, 254-255, 263, 266, 268-269, 273, 277, 280-281 económico - 36 19 - Estilística
efeito por evocação - 37 eclodir - 53 egocentrismo - 152 egoísmo - 152 elegância-fio de prumo - 18 eleito- 215 elipse-193-195
elisão - 263 elmo - 43 em - 251-252 embaraçado - 50 embebedar-se - 27 embora - 238 embriagar-se - 27-80 emergir - 197 emotival - 54 empedernir- 196 empolgamento - 176 encaminhamento - 176 encerramento - 177 encinerar - 104 encorpar ar - 104 enfadonho - 33 enfrentar - 53 engenhosidade - 143 enorme - 136 ensimesmar-se - 53 ensosso-insulso - 24 entoação - 123, 130, 169, 194, 234-235, 237, 240-243, 262, 270, 275, 279 282, 283 entregar a alma a Deus - 27 envóhicro - 104 enxaguar - 200 enxerga - 65; enxergar - 67 equestre - 43 -érrimo - 148-149 escudeiras - 61 escapatório - 35 escaramuça - 43 escarranchado - 35 escolamodelo - 99
290 M. RODRIGUES LAPA escrito - 215 escudeiro - 56-57 esgrimir - 43 espantado - 35 esquecer - 184 esquisitice - 50
estar - 186-188; estar-se - 191 esticar o pernil - 37 estilo de notas - 192
estrear - 199 etimologia - 17, 19-21 eufemismo - 27-28 evidenciar - 200 exclamação - 142
exílio - 36 expirar - 27, 37 expletivo - 265 explodir - 197 exprobração - 49; exprobrar-65-66 extorquir - 196 extremista - 53 falamento - 176 Falcão (Cristóvão)-221, 278, 280 falecer - 27, 37 falir- 196 fatia - 44 fazer um passeio - 49 fechamento - 177 fechar os olhos - 27 feio - 38-40 feitiço - 50 felicidades- 130-131 feramente - 243 féria - 26 ferrar o cão - 65-66 Ferreira de Castro (J.) - 34, 101, 119, 124, 168, 204, 246, 249, 250, 253, 259 Ferreira de Vasconcelos (Jorge) - 217 festa - 143; festas - 130
jetichizado - 50 Fialho de Almeida - 49-51, 54, 57, 125, 128, 192, 195, 230, 247, 255, 258, 275, 283
ficar grosso - 27-28 ficar-se - 191 Figueiredo (Antero de) - 98 Filinto Elísio -97, 101, 231
filosofia - 97 finar-se - 27 fino - 36 fita - 69-71 fiúza - 58 fixe - 69-71 flamivomo - 98 floresta - 220 florir - 196 fluvial- 138 focar - 53 Fole (Ânxcl) - 149 f orne-f orne s - 130 fona - 80 forçadamente - 243 formas de tratamento - 152-156 formas divergentes - 23-24 formosa - 31-33 fradesco - 108 francesa (influência) - 44-52 franco - 43
frases feitas - 76 fraude - 27 fresco - 128 Frieiro (Eduardo) - 192 frio - 38 frugifero - 98 fugace - 55 fulgir - 197 furgom - 52 * f utilidades - 47 futuro perifrástico - 210 galantarias - 47 galeão-capitânia - 99
ÍNDICE ANALÍTICO 291 galicismos - 18, 31
galope - 43 Gama (Guilherme) - 230, 249
gancha-gancho - 129 ganhar, ganho - 214-215 ganir - 197 garbo - 43 garota - 14 garrafa - 44
garrida-48; garridamente-246; garridice •- 48
gds-11 gastar - 43; gasto - 214-215 gatumo - 27 gerúndio-134, 212-213
giolhos - 58 gíria - 68-72 gloriar-se - 200 goche - 49-51 Gois (Carlos) - 47, 52, 97, 155, 219, 229-230, 254, 265 Gonçalves Crespo - 180 Gonzaga (T. A.) - 34, 120 gostar - 38 Graça Aranha - 176 grande - 42-43, 144; grandiosidade-143; grandismo-149 gravíssimo - 147 greco-latinos (elementos)-96-98 grinalda, - 43 grotesco - 108 grupos fraseológicos - 76, 194 guerra - 53 Guerra Jumqueiro - 43, 121 Guimarães (Bernardo) - 89 Guimarães Rosa (J.)-99, 149, 186, 214, 264 guisa - 80 guisado - 174 harmonia- 169-170 haver - 184 helenismos - 96-97 Herculano (Alexandre) - 36, 45, 161, 177, 213, 226, 231 hipócrita - 19 homenzinho - 106 homónimos - 19 honorários - 26 humílimo - 148 i eufónico 199 ideológico - 53 idiotismo - 76 imagens - 10-16 imbecilidade - 20-21 imiscuir-se - 53 -imo - 148 impacto - 53 ímpares - 101 imperativo categórico - 212 » optativo - 212 ímpio - 101 incendiar - 201 incinerar - 104 incisividade - 143 in-consolado - 101 incorporar - 104 independentizar - 54 infamérrimo - 148 infantil - 138 infeliz - 143 ingrata - 141 -inhazinha - 112 insípida - 35 instinto etimológico - 100, 102 inteiro-íntegro - 24 inteligência - 30 inteligente - 22 interesse - 52 intrepidamente - 242 inverno - 143 invólucro - 104 ir para o céu - 27 ir-se - 191 ironia-131, 168, 239, 247-248
292 M. RODRIGUES LAPA
-istno - 149 -íssimo - 146-148 jantar - 174 j azinho - 112 justo - 143 kitchenete - 107 lá - 239 lábio - 36 lacuma, lagoa - 24 ladrão - 27 lanche - 48, 52 Lapa (Albino) - 71 lar - 9 largar - 28-29 latim popular - 42 latinismos- 138-139 Latino Coelho - 63 latir - 197 leite - 12, 63 Leoni (Evaristo) - 258 lexemas - 6 lilás - 133 Lima Barreto - 55, 158, 247 limão - 11
linda - 31-32; lindo - 33, 136 lindíssimo - 147 linguagem corrente - 24 linguagem figurada - 12 linguagem literária - 24,32 Lins do Rego (J.) - 165, 204, 238 livreco - 133 livresco - 108 Hvro - 105-108 locuções estereotipadas - 76, 78 longe-longes - 236-237. longinho - 238 longuismo - 149-150 lonxania, lonxano - 238 Lopes (Fernão) - 161, 171, 176, 178, 204, 220, 253, 271 loquaz - 144 loura - 13 lucreciamente - 248 luva - 43 maçã - 12 Machado de Assis - 49, 112, 137, 140, 145, 168, 172, 249-250 maciça, massiça - 48 magnitude - 43 magno - 54 mais grande - 146 maisque-perfeito simples - 205206 Malheiro Dias (C.) - 239 manhãzinha - 106 manhoso -• 36 mansão - 36 mar - 35 maravilhamento - 176 marchar - 43 marechal - 20 matar: matado-morto - 214 Matos (João Xavier de) 265 medo - 33; medonho - 15 meigo-mágico - 24 meirande - 146 Meireles (Cecília) - 236 melancolia - 62-63 melão-meloa - 129 melhoratividade - 35-36 Melo (D. Francisco Manuel de)
- 7, 21, 34, 63, 223 Mendes Pinto (Fernão) - 166 menina-15, 106 menor- 145-146 mensalidade - 26 mentalizar - 53 mentir, mentira - 178 merenda - 48 mesquinho - 44 » mestre-de-obras - 64 metaforismo - 267-268 metonímia - 127 metragem - 53 ÍNDICE ANALÍTICO 293
mini-)< ornai - 107 mini-saia - 107 misericórdia- 128; misericórdias - 131 miudezas - 130 modéstia - 21 moitismo - 149 Monteiro Lobato - 137, 148, 152, 176, 181, 187, 257 Morais (Francisco de) - 118, 131, 216, 218, 255 Morais (Venceslau de) - 55, 169, 245 Morais e Silva (António de)-103, 130, 161-162 Moreira (Júlio)-241 morfemas - 6-7 morrer - 27, 37-38; morrer-se 192 morte - 126 mulhennente - 248 música - 12 Namora (Fernando) - 47, 184 não-cobrinão-nada - 134 nariz - 26 Nascentes (Antenor) - 30 navio-chefe - 99 navio-mãe - 99 navio-pai - 99 negociar - 201 negramente - 248 negrejar- 134 Nemésio (Vitorino) - 167 nenhum - 173 neologismos - 53, 104 nevrostizar - 54 Nobre (António) - 109-110 noitinha - 106 nojo - 56-57 Novoneyra (Uxio) -- 237 nuvezinhado - 54 objectos - 47 oceano - 35 odiar - 200; ódio - 38; odiosidade - 143; odioso - 33 Oliveira (Fernão de) - 57 Oliveira Martins - 103 omitir - 28-29 onomatopeia - 250 operoso - 138
oral - 43, 138 ordenado - 26 orgulho - 43 orvalhar - 183, 196 Otero Pedrayo (Ramón) - 146 175, 195 ouvinte - 143, 174 oxalá - 44 paciências - 130 Paço d’Arcos (J.) - 208, 272 padecimentos - 37 pagar-se de - 62 palácio -. 36 palavra-frase - 18 palhoça - 143 pança - 26 parafantasia - 12-13 parada-monstro - 99 parada-orgulho - 98 pardieiro - 36 parecer - 225-226 passar-se - 27 passear - 199 Passos (M. da S.) - 59 pedante - 35 Pedro (Infante D.) - 176 pejoratividade - 35-36, 121, 130. 137, 167-168 pena - 19 penca - 26 pensar - 35 pequeno - 61, 145-146 pêra - 59 per dato - 104
294 M. RODRIGUES LAPA
perdimento - 176 perecer - 27 Pereira Gomes (Soeiro) - 124 períírase - 99,
permitir - 28-29 perto, - 238 pertender - 104 pertinho - 112 pertos - 237 perturbado - 38 pesar - 62 Pessanha (Camilo) - 111, 268 Pessoa (Fernando) - 125,
134,
163, 177, 180, 259, 264-265 pitos - 23 piedades - 131 pifão - 27 pileca - 35 pileque - 27 pinheiral - 127 Pinto (Heitor) -218, 249 pirilampo - 97 piscosa - 138 planta-de-estufa - 133 pleonasmo - 173, 178 plural de advérbios - 236237 pluralidade - 129-131 plutocracia - 97 pobre - 140; pobrezinho - 106 poça-poço - 129 polissemia - 18 pompadur - 52 Pompeia (Raul) - 134, 143, 177, 241 ponte - 12 pontuação - 12, 117, 134, 171, 244, 245-246, 255, 260 por - 256-257 porém - 282 pré - 26 precatar - 198 precaver - 198
prefixos - a, ante, anti, com, contra, dês, dis, en, in, pré, per, ré, írans - 100-104 preguiçoso - 143 pregumtar-104 i premiar - 200 preságio - 104 presente histórico - 201
prevenir - 198 primeiramente - 243 principesco - 108 proceder - 197 profumdamente - 246 pronomes: este, esse-164-165; este, aquele - 166-167; aquilo -167-168; isso, isto-168-169 pronúncia - 199, 239 provincianismos - 72-73 pueril - 138 que interrogativo-171-172 quedar - 65-66 Quental (Antero de) - 278 querer - 181 quiçá - 58 T
quieto - 34 rabito - 133 raça - 43 ração-razão - 24
radical- 138 rainha --15 Ramalho Ortigão - 157 Ramos (Graciliano) - 157,
rancor - 13 rapariga-14, 16-17 rapaz - 132; rapazes - 130 recear - 199
170
redarguir - 196 reenfiar - 104 * regalado - 34 regamento - 176 regato - 125 Régio (José) - 158, 171, 263, 279 ÍNDICE ANALÍTICO 295
religioso - 36, 139 remediar - 200 remergulhar - 104 renhir - 196 rentezinho - 112 repenetrar- 104 reper’correr - 104 repetição do que- 169-171 »
intensiva - 144 »
reprochar, reproche - 49 Resende (Garcia de) - 108
restituir - 28 reticência - 194-195
retiro - 36 retorquir - 196 ribeiro - 35, 125 Ribeiro (Aquilino) - 55, 64, 72, 73, 86, 144-145, 148, 237, 250, 259 Ribeiro (Bernardim)- 226, 237, 277
verbal - 249-250
rio - 35, 125 riquíssimo - 147 ritmo -55. 234-235, 258-259, 267 Rodrigues de Carneiros (J.) -276 Rodrigues Migueis (J.) - 264 Roquete e Fonseca - 29 roubar - 43; roubo - 27 Roussado (Manuel) - 278 Sá-Carneiro (Mário de) - 269 Sá de Miranda (F.) - 239 sábio - 143 saca-saco - 129 Said Ali- 161, 222, 226 sair - 199 sala - 43 salário - 26 sarna - 23 sangue - 127 sanha - 57 Santiago (Silvio) - 192 santisme - 149-150 Santos Azevedo (F. F. de) - 40
sardanapalamente - 248 satisfazimento - 176 saudade - 13, 15 seda - 12 seguramente - 243 seguro - 34 Semântica - 18
senfilismo - 53 sensibilidade - 30
sentenciar - 201 sentimento - 30-32
sentir - 63 Seoane (Luís) - 238
septi-cole - 98 ser, impessoal - 186-187 séries fraseológicas -• 78
serpente - 11 sexualidade - 129
silêncio - 126
silepse -220-221 Silva Bastos -52 Silva Dias (Epifânio da) - 280 sincretismo - 219 sinestesias - 13
sino - 9 sinónimos - 22-23, 25-26, 28-29, 31-32, 38-39 só - 14 sob - 252-253 soberbo - 136 sobre - 253, 256 sofá - 52 sofrimentos - 37 sói (de soer] - 58 sol - 127 solar - 36 soldadesca - 108 soldo - 26 solecismo - 182
296 M. RODRIGUES LAPA
solenérrimo - 148 soleníssimo - 148 solidão - 36 solteiro-solitário - 24 solucionar - 53 sono - 126 sopa - 27 Sousa (Fr. Luís de) - 20, 33, 120, 131, 201, 213, 221, 225, 249, 255, 275 Sousa da Silveira (F.) - 280 Spitzer (P.e Carlos) - 40 Spitzer (Leo) -251 subir-se - 191 sufixos: -alho, -alhaz, -eco, -esco,
-inho, -inhazinha, -ito, -ório 105-112 sujeito gramatical - 160 »
psicológico - 160 sumluosida.de - 143 supeilativo - 139, 145-148, 249,
267 superlativo hebraico -145-147 surpreendido - 35 tagarela - 144 talassa - 69-71 também - 240-241 tapamento - 176 tardinha - 106 tebaida - 36 Teixeira-Gomes (M.; - 52, 54, 57, 101-102, 167, 170, 193, 198, 211, 231, 271 telegrama (redacção do) - 7-8 iempesiuosida.de - 143 teoria - 54 ter - 76-79; ter lugar - 51 termo identificador - 31-32 terríbil - 57-58 terror - 33 teteia - 47 tige - 48-49, 51
tímido - 143 timoneiro - 112 tinteiro - 26 \ tirar - 43
todavia - 282 Torga (Miguel) - 120, 239
torrente - 125 tortuoso - 143 toscar -69-71 traição-tradifão - 24-25 transfazer-se - 54 transumpto - 101 trapalhões - 63 trapeiras - 60 trappa - 63 travessia - 176 íremendérrimo - 149-150 tremendistno - 149 trepar - 43 Trindade Coelho - 5, 54, 255
tristérrimo - 149 trocadilho - 13, 61, 100, 131, 248
trompa: colher a trompa - 28 trouxa - 65, 71 trovejar- 183-184 tugúrio - 36 túnel - 52 Umamumo (Miguel de) - 63 umidades fraseológicas - 78
umiversal - 139
uso - 35 vagom - 52 Valery Larbaud - 13 vancê - 155
vela (à) - 133 veleiro - 133 velhinho - 106 velho - 137 velhusco - 137 veludo - 11
vencer - 33 ÍNDICE ANALÍTICO 297
ventas - 26 vento - 12 ventre - 26 verbos impessoais - 182-187 Verde (Cesário) - 130
verde - 141-142; verdemente 248 verde-verdinho - 47 Veríssimo (Érico) - 14, 58, 111, 209, 231 vermelhaço - 40 versante - 213 vetusto - 136-137 vida-beleza - 98 vida-espírito - 98 Vieira (P.e António) - 118, 131, 161, 174, 194, 210, 223, 233 234-235, 258 Vieira de Castro - 65 vincar - 53 vir-se - 191 viseira - 78-79 vivenda - 36 viver - 38 Voltaire - 135 você- 155 vomitar - 28 vortilhões - 54 vosmicê - 155 vossemecê- 155 xadrez - 44 xarope - 44
ÍNDICE GERAL Págs. •1.
O vocabulário português (I)
5-21
1. Palavras reais e instrumentos gramaticais ... 5 2. A fantasia das palavras
9
3. A parafantasia 12 4. Valery-Larbaud e o vocabulário português ... 13 5. A palavra-frase
16
6. A significação das palavras
17
7. O instinto etimológico 19 2. O vocabulário português (II)
22-41
1. Pluralidade dos meios de expressão 2. Há ou não sinónimos?
23
3. Como nascem os sinónimos 4. O eufemismo
22
25
27
5. As séries sinonímicas
28
6. Valor sentimental e intelectual das palavras ... 30 7. O termo identificador 31 8. Diferenças quantitativas e qualitativas
33
9. Os efeitos evocativos 36 10.
Os dicionários analógicos
3. O vocabulário português (in)
38 42-59
1. História e fisionomia do vocabulário português 42 2. O estrangeirismo; os galicismos 3. O neologismo
52
4. O arcaísmo
55
4
O vocabulário português (IV)
45
60-74
1. O jogo das palavras
60
2. A língua falada e a língua escrita
65
300 1. RODRIGUES LAPA
3. A gíria 4. O provincianismo ... 5. O vocabulário usual Págs. 68 72 73 5.
Fraseologia.
O cliché
1. Os grupos fraseológicos 2. Séries e umidades fraseológicas 3. Vestígios arcaicos nos grupos fraseológicos 4. Séries verbais 5. Os dicionários e a fraseologia 6. Séries usuais de intensidade 7. O «Dicionário poético» de Cândido Lusitano 8. Camilo e as séries usuais 9. O cliché 6. A formação das palavras 1.
2. 3. 4. 5. 6. 7. 8. 9. A composição Compostos perfeitos e imperfeitos
Os compostos literários e científicos ... A composição abstracta Os prefixos Particularidades fonéticas da prefixação Os sufixos O diminutivo na literatura A história de «carrilhanor» 75-91 75 76 78 81 83 84 86 88 90 92-112 92 94 96 98 100
102 104 108 112 7.
O artigo e os nomes (I)
1. Valor estilístico do artigo 2. Noção geral do artigo definido
114-131
3. A omissão do artigo definido ... 4. Abusos no emprego dos artigos... 5. O artigo e os nomes próprios ... 6. O artigo nas enumerações 7. O artigo indefinido 8. O substantivo 9. Abstractos e concretos 10. O género e o número 114 115 116 118 120 121 123 124 126 129
ÍNDICE GERAL 301
8.
O artigo e os nomes (II)
1. 2. 3. 4. 5. 6. 7. O adjectivo e a caracterização Cautela com o emprego do adjectivo! Substantivo vulgar e adjectivo literário ... Valor intelelectual e afectivo dos adjectivos A posição do adjectivo O adjectivo empregado como substaníivo ... A gradação dos nomes
Págs. 132-150 132 135 137 138 140 142 144 9.
Os pronomes
151-173
1. O pronome pessoal 2. Fórmulas de modéstia, majestade e cortesia 3. Um pronome perdido: «vós» 4. A fonética e os pronomes 5. O pronome reflexo «si» 6. O pronome possessivo 7. O pronome demonstrativo 8. O pronome relativo 9. O pronome interrogativo 10. O pronome indefinido 151 152 154 156 158 160 164 169 171 172 10.
3. 4. 5.
O verbo (I)
174_195
O verbo substantivo O verbo transitivo e intransitivo Verbos impessoais Voz activa, passiva e reflexa ... A elipse do verbo 174 178 182 188 192
11.
O verbo (II)
196-215
Verbos defectivos A fonética e os verbos O emprego dos tempos e modos O perfeito e o mais-que-perfeito O imperfeito O conjumtivo O imperativo 196 199 201 207 207 210 211
302 M. RODRIGUES LAPA Págs.
8. A «endorreia»
213
9. O particípio 214 12. A concordância
216-235
1. O erro de concordância
216
2. O verbo e o sujeito 220 3. O adjectivo e o substantivo
227
4. O nome predicativo 232 5. O ritmo
234
13. Palavras invariáveis (I)
236-254
1. Aspectos gerais do advérbio
239
2. Os advérbios em -mente
242
3. O supletivismo adverbial
249
4. Notações adverbiais de cenário 14. Palavras invariáveis (II) 254-269 1. Aspectos gerais da preposição 254 2. A preposição «a» 258 3. A preposição «com» 259 4. A preposição «de»
262
5. A preposição «em»
268
15. Palavras invariáveis (in) 270-284 1. As conjumções
270
2. A conjumção «e» 271 3. A conjumção «mas» 278
251
4. O estilo assindético e a subordinação 282 índice analítico 285 ESTE LIVRO ACABOU DE IMPRIMIR-SE NAS OFICINAS GRÁFICAS DA «COIMBRA EDITORA, LIMITADA», EM ABRIL D li 1984