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Parte Geral
sua maioria derivadas dos avanços tecnológicos, exigem um novo pensar do direito penal, adequado à realidade brasileira.
Arts. 1o a 120
Diante disso, os autores dessa obra aliam o amplo conhecimento prático à didática de anos de atividade docente em três volumes, em linguagem objetiva e em sintonia com as mais modernas correntes e tendências do direito penal contemporâneo, na medida certa para estudantes, concursandos e profissionais da área jurídica. O volume 1 examina a Parte Geral do Código Penal, em seus arts. 1o a 120.
Procurador Regional da República, com ampla experiência em direito penal, direito penal econômico, direito penal
Ca r los E d ua r d o A d r i a n o Ja p i as sú
nologia. É Doutor em Direito Penal pela USP, Mestre pela PUC/RJ e Bacharel pela lecionando nos cursos de graduação e pós-graduação, e professor de direito penal da Escola Superior do Ministério Público da União.
Em breve:
v. 2: Parte Especial: arts. 121 a 212 v. 3: Parte Especial: arts. 215 a 359-H
Carlos Eduardo Adriano Japiassú Advogado há mais de vinte anos com ampla experiência em direito penal. É Pós-doutor em Direito pela University of Warwick (Inglaterra), Doutor, Mestre e penal da UFRJ ea da UERJ, professor do curso de mestrado e doutorado da Unesa. Professor convidado da Loyola University (Estados Unidos) e professor conferencista da Université de Pau et des Pays de L’Adour
capa tony rodrigues
Bacharel pela UERJ. É professor de direito
criminal nasceu em pleno Estado Novo,
tantes sob a forma de decretos-lei. Esse é o caso do Código Penal brasileiro, o Decreto - lei n o 2.848. Tal diploma veio substituir o Código Penal de 1890 que, por sua vez, substituiu o de 1830.
Curso de
a 120
v. 1: Parte Geral: arts. 1 a 120 o
diploma ultrapassado? O vigente Codex
Se esse era o cenário nacional, o que
o
UERJ. É professor de direito penal da UERJ,
coloca atualmente é: trata - se de um
acontecia no mundo? A Europa vivia
Arts. 1
A rt u r d e B r i to G u e i r os So uz a
internacional, execução penal e crimi-
setenta anos e a questão que se
promulgação de inúmeras leis impor-
Direito Penal
Artur de Brito Gueiros Souza
brasileiro ultrapassou a barreira dos
e populismo de Getulio Vargas e pela
Japiassú
Direito Penal
e oferecem aos leitores uma coleção
P
romulgado em 1940, o Código Penal
período marcado pelo autoritarismo
Curso dE
mento de novas espécies delituosas, em
gueiros
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De fato, as mudanças sociais e o surgi-
Direito Penal
sua Segunda Guerra Mundial e, em 1945, quando esse triste capítulo da história terminou, a capital alemã foi dividida em quatro áreas. Em 1961, com o acirramento da Guerra Fria, o famoso “muro de Berlim” começou a ser construído e só sucumbiu em 1989, tornando-se um símbolo da decadência do sistema socialista. A partir de então passamos a assistir a um intenso processo de internacionalização do direito penal, que teve como efeitos mais notórios o surgimento da criminalidade sem fronteiras, como o tráfico internacional de drogas, a atuação do crime organizado e o aumento dos conflitos armados. Mas a grande mudança do mundo viria em 2001, com os atentados de 11 de setembro, e seus reflexos nos sistemas penais. Essas poucas palavras demonstram que o Brasil e o mundo se transformaram nas últimas décadas e o Código Penal
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A rt u r de Bri to Gu eiros So uz a Ca rlos Edua rdo A dri a n o Ja pi assú
brasileiro revela-se um dos diplomas mais dinâmicos do nosso tempo. Basta lembrar das sucessivas mudanças ocorridas em seus dispositivos como a exclusão da expressão “mulher honesta”, a revogação
(França).
do crime de adultério e, mais recente-
Consulte nosso catálogo completo e últimos
Parte Geral
lançamentos em www.elsevier.com.br
Arts. 1
o
a 1 2 0
mente, a nova denominação dos “crimes contra os costumes”, agora chamados de “crimes contra a dignidade sexual”.
CURSO DE DIREITO PENAL
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Parte Geral
Curso de
Direito Penal A rt u r de Br i to G u eiros So uz a Ca rlos Edua rdo Adri a n o Ja pi assú
Fechamento desta edição: 25 de outubro de 2011
Edição 2012
© 2012, Elsevier Editora Ltda. Todos os direitos reservados e protegidos pela Lei no 9.610, de 19/02/1998. Nenhuma parte deste livro, sem autorização prévia por escrito da editora, poderá ser reproduzida ou transmitida, sejam quais forem os meios empregados: eletrônicos, mecânicos, fotográficos, gravação ou quaisquer outros.
Copidesque: Tania Heglacy Revisão: Renato Mello Medeiros Editoração Eletrônica: Tony Rodrigues Elsevier Editora Ltda. Conhecimento sem Fronteiras Rua Sete de Setembro, 111 — 16o andar 20050-006 — Rio de Janeiro — RJ Rua Quintana, 753 – 8o andar 04569-011 – Brooklin – São Paulo – SP Serviço de Atendimento ao Cliente 0800-0265340
[email protected] ISBN: 978-85-352-4835-7
Nota: Muito zelo e técnica foram empregados na edição desta obra. No entanto, podem ocorrer erros de digitação, impressão ou dúvida conceitual. Em qualquer das hipóteses, solicitamos a comunicação à nossa Central de Atendimento, para que possamos esclarecer ou encaminhar a questão. Nem a editora nem o autor assumem qualquer responsabilidade por eventuais danos ou perdas a pessoas ou bens, originados do uso desta publicação.
Cip-Brasil. Catalogação-na-fonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ S713c Souza, Artur de Brito Gueiros Curso de direito penal [recurso eletrônico] : parte geral / Artur de Brito Gueiros Souza, Carlos Eduardo Adriano Japiassú. - Rio de Janeiro : Elsevier, 2011. recurso digital (Curso de direito penal ; 1) Formato: Flash Requisitos do sistema: Adobe Flash Player Modo de acesso: World Wide Web ISBN 978-85-352-4835-7 (recurso eletrônico) 1. Direito penal - Brasil. 2. Livros eletrônicos. I. Japiassú, Carlos Eduardo Adriano. II. Título. III. Série. 11-5997.
CDU: 343.2(81)
À memória do nosso Professor João Marcello de Araujo Jr.
(página deixada intencionalmente em branco)
N OTA D O S AU TO R ES
O
o resultado do nosso pensamento comum sobre temas da Parte Geral do Direito Penal, após mais de uma década de convivência na Faculdade de Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), onde ambos lecionamos desde 1999. Curiosamente, conhecemo-nos justamente durante o concurso público para ingresso na carreira docente e fomos apresentados pelo Professor Dr. João Marcello de Araujo Jr., que havia sido nosso professor de Direito Penal durante o curso de Graduação em Direito naquela Faculdade carioca em anos distintos. O querido Professor João Marcello, embora já aposentado e com a saúde debilitada – viria a falecer precocemente em 14/10/1999 –, fez questão de acompanhar o concurso e apoiar seus alunos. Por nos ter introduzido no estudo do Direito Penal e, enquanto esteve conosco, nunca ter deixado de ser tudo o que se espera de um professor, este livro necessariamente tem que ser dedicado ao Professor João Marcello, com o nosso muito obrigado. Desde 1999, temos compartilhado tarefas e ideias na atividade acadêmica desenvolvida na Faculdade de Direito, que culminaram com a criação da Linha de Pesquisa em Direito Penal do Programa de Pós-Graduação em Direito – Mestrado e Doutorado – e do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Direito Penal Internacional, Estrangeiro e Comparado, que tem sido foro privilegiado para debates acadêmicos e projetos conjuntos. A ideia de elaborar o presente livro surgiu quase ao acaso. Conversávamos sobre o desejo comum que tínhamos em transformar os necessários textos que preparamos para as aulas no Curso de Graduação e concluímos que não faria sentido cada um preparar o seu próprio livro, que ficaria pronto mais ou menos na mesma época e sobre os mesmos temas. Assim e a partir das anotações pessoais de cada um de nós, presente livro é
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Curso de Direito Penal | Parte Geral
resultado desses anos de convivência, ensino e aprendizado com os alunos, da parte de Artur de Brito Gueiros Souza, da Faculdade de Direito da UERJ e, por parte de Carlos Eduardo Adriano Japiassú, da Faculdade de Direito da UERJ e da Faculdade de Direito da UFRJ. Foi justamente essa convivência de sala de aula, seja na Graduação, no Mestrado e no Doutorado, que nos permitiu, ao longo do tempo, ir construindo o texto que aqui se apresenta. Assim, o nosso primeiro e fundamental agradecimento é aos nossos alunos e alunas, do passado e do presente. A todos vocês, nosso agradecimento por essa troca tão rica que somente o magistério permite. Quanto aos agradecimentos individuais, faremos separadamente: Artur de Brito Gueiros Souza: aos meus pais, Rinaldo e Ana Maria, por tudo o que fizeram e se sacrificaram pela minha educação; aos meus filhos Guilherme, Luiza e Pedro, pelo carinho, estímulo e compreensão ante a ausência que foi imposta pela realização da presente obra; a Ricardo Latorre e Flávio Brasil, pelo apoio irrestrito, zelo profissional e amizade havida nesses tantos anos de convívio em nosso Gabinete; à acadêmica de Direito Luiza Teixeira Gueiros, pela competente pesquisa jurisprudencial junto aos tribunais superiores; a Bruna Amorim Dutra, por seu auxílio em aspectos dogmáticos do texto; aos servidores da Biblioteca da Procuradoria Regional da República da 2a Região, pela presteza do atendimento das inúmeras solicitações que lhes foram dirigidas; ao Ministério Público Federal, por tudo o que me proporcionou em mais de dezoito anos de atuação na área criminal federal; e à minha esposa e Defensora Pública Luísa de Miranda Gueiros, pelo amor, incentivo – particularmente nos momentos mais críticos dessa empreitada –, e pela profícua troca de ideias que muito auxiliaram em questões particularmente intrincadas do Direito Penal. Carlos Eduardo Adriano Japiassú: à minha esposa Paula e aos nossos filhos Maria Eduarda e Carlos Henrique, por tudo que vocês são e fazem; aos meus pais, Antonio Carlos e Maria Inês, e ao meu avô, Edgard, no ano de seu centenário, por seus exemplos, sua presença e seu amor; à Associação Internacional de Direito Penal, a mais importante e antiga associação científica em matéria penal no mundo, que tanto tem me ensinado; ao Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária, que tive a honra de integrar e que tanto modificou a minha perspectiva sobre o sistema penal brasileiro; aos meus sempre alunos Rômulo Souza de Araújo, Ana Lúcia Tavares Ferreira, Ana Luiza Barbosa de Sá, Rodrigo de Souza Costa, Flávia Sanna Leal de Meirelles, Isabela Bayma de Almeida e Larissa Gabriela Cruz Botelho, pela disponibilidade sempre, que, direta ou indiretamente, auxiliaram na elaboração do presente livro. Não poderíamos, da mesma maneira, deixar de mencionar os colegas professores e funcionários da Faculdade de Direito da UERJ, cujo convívio tem sido tão gratificante tanto profissional quanto pessoalmente. Em especial, aos colegas do Departamento de Direito Penal, professores Patrícia Mothé Glioche Béze, Nilo Batista, Juarez Tavares, Nelson Massini, Heitor Costa Jr., Jorge Luís Fortes Pinheiro da Câmara e Vera Malaguti Batista, além das funcionárias do NEDIPI, Raquel Vieira e Rúbia Costa. VIII
| Nota dos autores
Por fim, um agradecimento especial a Sérgio Salomão Shecaira, que além da amizade sempre demonstrada, apresentou-nos a esta editora, com os maiores elogios. E evidentemente, nosso muito obrigado à equipe da Editora Elsevier que, com competência, paciência e gentileza, tornou possível a publicação deste livro. Rio de Janeiro, primavera de 2011.
Artur de Brito Gueiros Souza e Carlos Eduardo Adriano Japiassú
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Su már io
T í t u l o I — Q u e s t õ e s F u n d a m e n ta i s
do
D i r e it o P e n a l
I. I NT RO D U ÇÃO AO D IR EITO PENAL
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1.1. O conceito de Direito Penal. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 3 1.2. Delimitações terminológicas. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 4 1.3. Características gerais. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 6 1.4. Finalidade e legitimidade. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 6 1.5. Tendências contemporâneas.. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 9 1.6. A relação do Direito Penal com outros ramos do Direito. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 11 1.6.1. Direito Penal e Direito Constitucional. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 11 1.6.2. Direito Penal e Direito Administrativo. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 11 1.6.3. Direito Penal e Direito Processual Penal.. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 12 1.6.4. Direito Penal e Direito Civil. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 12
II. A CI ÊN CIA CO NJ U NTA D O D IR EITO PENAL
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2.1. Considerações gerais. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 14 2.2. A Ciência do Direito Penal ou Dogmática Jurídico-Penal. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 14 2.2.1. Método do estudo do Direito Penal. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 15
2.3. A Política Criminal. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 15 2.4. A Criminologia. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 16 2.4.1. A necessária integração entre Direito Penal e Criminologia. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 18
2.5. Direito de Execução Penal, Direito Penitenciário e Penologia. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 19 2.6. Ciências auxiliares .. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 19
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Curso de Direito Penal | Parte Geral
III. H I STÓ RIA GER AL D O D IR EITO PENAL
20
3.1. Considerações gerais. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 20 3.2. Direito Penal da Antiguidade. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 21 3.3. Direito Penal na Idade Média.. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 23 3.4. A Modernidade e o surgimento da prisão como pena. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 25 3.5. O período reformador. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 28 3.5.1. A Ilustração e Cesare Beccaria. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 28 3.5.2. A influência de John Howard. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 29 3.5.3. Jeremy Bentham e o Panóptico. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 30
3.6. A Escola Clássica do Direito Penal. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 31 3.7. A Escola Positiva. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 33
3.8. Escolas e tendências do século XX. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 35 3.9. O Direito Penal do século XXI. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 39
IV. H I STÓ RIA D O D IR EITO PENAL B R AS I L EIRO
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4.1. Considerações gerais. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 41 4.2. O Brasil Colonial. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 42 4.3. O Código Criminal de 1830 .. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 45 4.4. O Direito Penal da Primeira República. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 50 4.5. O Código Penal de 1940. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 53 4.6. O movimento de Reforma Penal. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 55 4.7. O Direito Penal brasileiro do século XXI. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 58
V. P RI N CÍ PIOS FU N DAM ENTAI S D O D IR EITO PENAL
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5.1. Considerações gerais. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 60 5.2. Princípio da culpabilidade .. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 61 5.3. Princípio da lesividade ou da ofensividade. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 62 5.4. Princípio da humanidade ou da humanização da pena.. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 63 5.5. Outros princípios fundamentais do Direito Penal. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 63 5.5.1. Princípio da dignidade humana. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 64 5.5.2. Princípio da intervenção mínima. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 64 5.5.3. Princípio da fragmentariedade e da subsidiariedade.. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 65 5.5.4. Princípio da insignificância. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 65 5.5.5. Princípio da proporcionalidade. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 66 5.5.6. Princípio da individualização da pena . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 66 5.5.7. Princípio da adequação social . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 67
XII
|Sumário
T í t u l o I I — Te o r i a G e r a l VI. LEI PENAL E N ORMA PENAL
da
Lei Penal 71
6.1. Considerações gerais. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 71 6.2. Estrutura da lei penal. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 71 6.3. Classificação das normas penais. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 72 6.4. Peculiar técnica legislativa. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 73 6.5. Fontes da norma penal. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 74 6.6. Princípio da legalidade. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 74 6.7. Analogia
......................................................................................................................
78
6.8. Costume
......................................................................................................................
80
6.9. Jurisprudência
...........................................................................................................
80
6.10. Princípios gerais do direito.. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 81 6.11. Interpretação da lei penal. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 81 6.11.1. Interpretação: classificações. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 82 6.11.2. A questão da interpretação analógica. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 84 6.11.3. A regra do in dubio pro reo. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 85
VII. LEI PENAL N O TEM P O
86
7.1. Considerações gerais. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 86 7.2. Conflitos da lei penal no tempo.. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 87 7.3. Lei intermediária. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 89 7.4. A controvérsia da combinação de leis. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 90 7.5. Lei excepcional ou temporária
.............................................................................
92
7.6. Lei penal em branco. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 93 7.7. Tempo do crime.. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 96 7.8. Contagem dos prazos do Direito Penal.. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 98
VIII. LEI PENAL N O ES PAÇO
99
8.1. Considerações gerais. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 99 8.2. Território nacional e sua extensão. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 101 8.3. Lugar do delito e delitos à distância. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 103 8.4. Extraterritorialidade da lei penal brasileira. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 104 8.4.1. Extraterritorialidade incondicionada. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 105 8.4.2. Extraterritorialidade condicionada. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 107 8.4.3. Requisitos para a aplicação extraterritorial da lei penal brasileira. . . . . . . . . 108
8.5. Pena cumprida no estrangeiro. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 110 8.6. Eficácia da sentença penal estrangeira. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 111 8.7. Transferência de condenados entre países. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 112 8.8. Direito de extradição. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 113 XIII
Curso de Direito Penal | Parte Geral
8.8.1. Extradição: Classificações.. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 114 8.8.2. Requisitos para a extradição.. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 116
8.9. O Tribunal Penal Internacional. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 119 8.10. Limites à aplicação da lei penal em relação às pessoas: imunidade diplomática e imunidade parlamentar.. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 123 8.10.1. Imunidades diplomáticas. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 123 8.10.2. Imunidades parlamentares.. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 125
IX . CO N FL ITO A PA R ENTE D E N ORMAS PENAI S
127
9.1. Considerações gerais.. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 127 9.2. Critérios de solução do conflito aparente de normas.. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 129 9.2.1. Princípio da especialidade .. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 129 9.2.2. Princípio da subsidiariedade. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 130 9.2.3. Princípio da consunção ou absorção.. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 131
T í t u l o I ii — T e o r i a G e r a l X . TEORIA D O C RIM E
do
Crime 13 5
10.1. Considerações gerais. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 135 10.2. Método da teoria do crime. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 136 10.3. Desenvolvimento da teoria do crime. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 137 10.3.1. As construções da teoria do crime a partir do século xx.. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 139
10.3.1.1. O naturalismo (conceito clássico de delito).. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 140 10.3.1.2. O neokantismo (conceito neoclássico de delito). . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 141 10.3.1.3. A perspectiva totalizadora (a Escola de Kiel). . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 143 10.3.1.4. O finalismo. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 144 10.3.1.5. As correntes funcionalistas.. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 145
10.4. Sujeitos do crime. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 149 10.4.1. Sujeito ativo. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 149 10.4.2. Responsabilidade penal da pessoa jurídica. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 149 10.4.3. Sujeito passivo. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 151
10.5. Objeto do crime. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 152 10.6. Objeto material
.....................................................................................................
152
10.7. Classificações do crime. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 152
XI. TEORIA DA CO N D UTA
157
11.1. Considerações gerais. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 157 11.2. Funções da teoria da conduta. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 158 11.3. Teorias da conduta. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 159
XIV
|Sumário
11.4. Modalidades de conduta. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 167 11.4.1. Ação. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 167 11.4.2. Omissão.. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 167 11.4.2.1. Omissão própria . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 167 11.4.2.2. Omissão imprópria. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 167 11.5. Ausência de conduta. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 168 11.5.1. Coação física irresistível. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 168 11.5.2. Atos reflexos. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 169 11.5.3. Estados de inconsciência. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 169 11.6. Resultado . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 169 11.6.1. Resultado jurídico. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 170 11.6.2. Resultado material. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 170
XII. CAU SALI DAD E E IM PUTAÇÃO O B J E TIVA
171
12.1. Considerações gerais. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 171 12.2. A teoria da equivalência dos antecedentes. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 172 12.3. A teoria da causalidade adequada. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 174 12.4. Da superveniência causal. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 176 12.5. Da causalidade adequada para a teoria da imputação objetiva. . . . . . . . 179 12.6. A Teoria dos Papéis (Jakobs). . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 182 12.7. A causalidade da omissão. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 182
XIII. TEORIA D O TI P O D O LOSO
183
13.1. Considerações gerais. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 183 13.2. Funções da teoria do tipo. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 183 13.3. Tipo penal e bem jurídico.. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 184 13.4. Evolução do tipo como elemento do delito.. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 185 13.5. Tipicidade penal. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 189 13.6. Classificações do tipo penal. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 190 13.7. Elementos do tipo objetivo.. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 191 13.7.1. Elementos descritivos. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 191 13.7.2. Elementos normativos.. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 191 13.8. Elementos do tipo subjetivo. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 192 13.8.1. O dolo como elemento subjetivo geral. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 192 13.8.2. Espécies de dolo.. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 193
13.8.2.1. Dolo direto de primeiro grau. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 193 13.8.2.2. Dolo direto de segundo grau. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 193 13.8.2.3. Dolo eventual. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 193
13.9. Elemento subjetivo do tipo.. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 194
XV
Curso de Direito Penal | Parte Geral
XIV. TEORIA D O TI P O CU L P OSO
195
14.1. Considerações gerais. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 195 14.2. Elementos do crime culposo. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 196 14.2.1. Conduta lícita. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 196 14.2.2. Previsibilidade.. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 197 14.2.3. Inobservância das normas de atenção, cuidado ou diligência. . . . . . . . . . 198 14.2.4. Resultado. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 198
14.3. Espécies da culpa. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 199 14.4. Culpa imprópria. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 199 14.5. Dolo eventual e culpa consciente. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 200 14.5.1 Teorias cognitivas.. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 200 14.5.2. Teorias volitivas. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 200 14.5.3. Síntese reflexiva. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 201
14.6. Concorrência e compensação de culpa.. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 202 14.7. Crimes qualificados pelo resultado. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 202
X V. TEORIA D O TI P O OMI S S IVO
203
15.1. Considerações gerais. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 203 15.2. A causalidade na omissão. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 205 15.3. Tipos omissivos próprios. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 207 15.4. Tipos omissivos impróprios.. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 209 15.5. A posição de garantidor.. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 209 15.5.1. A lei como fonte da posição de garantidor. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 210 15.5.2. A assunção voluntária da posição de garantidor. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 211 15.5.3. O princípio da ingerência. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 211
15.6. Particularidades da omissão imprópria. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 212
X VI. ANTIJ URI D I CI DAD E
214
16.1. Considerações gerais. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 214 16.2. Esclarecimentos terminológicos. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 215 16.3. Aspectos formal e material da antijuridicidade. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 217 16.4. Causas de exclusão da antijuridicidade. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 218 16.4.1. O consentimento do ofendido.. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 219 16.4.2. Demais causas supralegais no Direito Penal brasileiro. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 221
16.5. Elemento subjetivo das causas de justificação. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 221 16.6. Excesso nas causas justificantes. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 222 16.7. Estado de necessidade. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 223 16.7.1. Requisitos objetivos do estado de necessidade. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 225 16.7.2. Requisitos subjetivos do estado de necessidade. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 226
XVI
|Sumário
16.8. Legítima defesa. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 226 16.8.1. Requisitos objetivos da defesa legítima.. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 226 16.8.2. Requisitos subjetivos da legítima defesa. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 228 16.8.3. Espécies de legítima defesa. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 229
16.8.3.1. Legítima defesa real
........................................................................
229
16.8.3.2. Legítima defesa putativa. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 229 16.8.3.3. Legítima defesa sucessiva
.............................................................
229
16.8.3.4. Legítima defesa recíproca .. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 229 16.8.4. Distinção entre legítima defesa e estado de necessidade. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 229
16.9. Estrito cumprimento de dever legal
.................................................................
230
16.9.1. A questão do excesso por parte do funcionário público. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 230 16.9.2. Violência policial e estrito cumprimento do dever legal. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 230
16.10. Exercício regular de direito .. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 231 16.10.1. Violência desportiva. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 231 16.10.2. Ofendículos. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 232
X VII. CU L PAB I LI DAD E
233
17.1. Considerações gerais. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 233 17.2. Culpabilidade como pressuposto da pena. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 235 17.3. Crise do conceito de culpa jurídico-penal. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 236 17.4. Evolução dogmática da culpabilidade. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 237 17.5. Elementos da culpabilidade. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 240 17.5.1. Imputabilidade.. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 240
17.5.1.1. Doença mental. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 241 17.5.1.2. Desenvolvimento mental incompleto ou retardado.. . . . . . . . . . . . . . . . . . 242 17.5.1.3. Imputabilidade diminuída ou semi-imputabilidade. . . . . . . . . . . . . . . . . . 242 17.5.1.4. Menoridade penal. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 243 17.5.2. Potencial conhecimento da antijuridicidade.. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 244 17.5.3. Exigibilidade de conduta diversa. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 245
17.5.3.1. Coação moral irresistível. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 245 17.5.3.2. Obediência hierárquica. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 246
17.6. Emoção e paixão. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 247 17.7. Embriaguez. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 247 17.7.1. Espécies de embriaguez. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 250
17.7.1.1. Embriaguez fortuita ou acidental . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 250 17.7.1.2. Embriaguez voluntária ou culposa . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 250 17.7.1.3. Embriaguez preordenada. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 251 17.7.1.4. Embriaguez patológica. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 251
17.8. Estado de necessidade exculpante. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 251 17.9. Erro de proibição.. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 251 XVII
Curso de Direito Penal | Parte Geral
X VIII. TEORIA D O ERRO J UR Í D I CO - PENAL
252
18.1. Considerações gerais. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 252 18.2. Classificações do erro jurídico-penal. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 253 18.2.1. Erro invencível. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 253 18.2.2. Erro vencível .. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 254 18.2.3. Erro essencial e erro acidental. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 254
18.3. Evolução dogmática da teoria do erro. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 254 18.3.1. Teoria extremada do dolo. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 254 18.3.2. Teoria limitada do dolo. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 255 18.3.3. Teoria extremada da culpabilidade. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 255 18.3.4. Teoria limitada da culpabilidade.. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 256 18.3.5. Teoria dos elementos negativos do tipo. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 258
18.4. Erro de tipo. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 259 18.5. Erro de proibição.. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 260 18.5.1. Ignorância da lei e ignorância da antijuridicidade . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 261 18.5.2. O dever de se informar. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 262 18.5.3. Espécies de erro de proibição.. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 262
18.5.3.1. Erro de proibição direto. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 263 18.5.3.2. Erro mandamental. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 263 18.5.3.3. Erro de proibição indireto. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 263
18.6. Descriminantes putativas.. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 263 18.7. Erro sobre a pessoa.. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 264 18.8. Erro sobre o objeto. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 265 18.9. Erro provocado por terceiro.. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 265
XIX . E TA PAS D E R E ALIZ AÇÃO D O D EL ITO
267
19.1. Considerações gerais.. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 267 19.2. Etapas de realização do delito. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 268 19.2.1. Cogitação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 268 19.2.2. Atos preparatórios.. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 268 19.2.3. Atos executórios. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 269 19.2.4. Consumação. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 270 19.2.5. O exaurimento do crime. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 270
19.3. Distinção entre atos preparatórios e executórios. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 271 19.3.1. Teorias subjetivas. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 272
19.3.1.1. Teoria do dolo. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 272 19.3.1.2. Teoria sintomática . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 272 19.3.2. Teorias objetivas. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 272
19.3.2.1. Teoria objetivo-material
XVIII
...................................................................
273
|Sumário
19.3.2.2. Teoria objetivo-formal
......................................................................
273
19.3.2.3. Teoria objetivo-individual (teoria do plano do autor). . . . . . . . . . . . . . . . 273 19.3.2.4. Direito brasileiro. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 274
19.4. Natureza jurídica e requisitos da tentativa. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 275 19.5. Espécies de tentativa. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 276 19.6. Crimes que não admitem a tentativa. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 277 19.6.1. Crimes culposos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 277 19.6.2. Crimes preterdolosos. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 278 19.6.3. Crimes omissivos próprios. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 278 19.6.4. Crimes unissubsistentes . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 279 19.6.5. Crimes habituais . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 279 19.6.6. Contravenções penais.. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 279
19.7. Desistência voluntária e arrependimento eficaz . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 279 19.7.1. Desistência voluntária. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 281 19.7.2. Arrependimento eficaz. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 281 19.7.3. Efeitos da desistência e do arrependimento. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 281
19.8. Arrependimento posterior. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 282 19.9. Crime impossível (tentativa inidônea). . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 283 19.9.1. Razões para a impunidade do crime impossível.. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 284 19.9.2. Crime putativo. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 284 19.9.3. Flagrante esperado, flagrante provocado e flagrante forjado.. . . . . . . . . . . . . . 285
X X . CO N CUR SO D E PES SOAS
28 6
20.1. Considerações gerais. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 286 20.2. Teorias sobre o concurso de pessoas.. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 287 20.2.1. Teoria pluralista . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 287 20.2.2. Teoria dualística ou da acessoriedade. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 287 20.2.3. Teoria monística ou unitária. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 288
20.3. Requisitos do concurso de pessoas. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 289 20.3.1. Pluralidade de indivíduos e de condutas. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 289 20.3.2. Relevância causal de cada conduta . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 289 20.3.3. Liame subjetivo entre os participantes . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 290 20.3.4. Identidade de infração penal.. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 290
20.4. Teorias sobre autoria e participação. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 290 20.4.1. Teoria objetivo-material . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 291 20.4.2. Teoria subjetivo-material. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 291 20.4.3. Teoria objetivo-formal . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 292 20.4.4. Teoria do domínio do fato .. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 292
20.4.4.1. Domínio funcional do fato. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 293 20.4.4.2. Domínio da organização.. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 294
XIX
Curso de Direito Penal | Parte Geral
20.5. Tipologia do concurso de pessoas. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 295 20.5.1. Autoria individual. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 295 20.5.2. Autoria mediata .. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 295 20.5.3. Coautoria .. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 296 20.5.4. Coautoria sucessiva . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 297 20.5.5. Coautoria mediata . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 297 20.5.6. Autoria colateral . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 298 20.5.7. Autoria incerta. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 298 20.5.8. Multidão criminosa. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 298
20.6. Teoria da participação. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 299 20.6.1. Participação moral. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 299 20.6.2. Participação material . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 300 20.6.3. Participação em cadeia. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 300 20.6.4. Requisitos da participação. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 300 20.6.5. A questão da acessoriedade da participação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 301 20.6.6. A participação mediante ações neutras . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 302
20.7. Concurso de pessoas e crime culposo.. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 304 20.8. Concurso de pessoas e crime omissivo
.........................................................
306
20.9. Participação de menor importância.. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 307 20.10. Cooperação dolosamente distinta.. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 308 20.11. Comunicabilidade das elementares do tipo. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 309 20.11.1. A questão da comunicabilidade no delito de infanticídio. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 310
20.12. Participação impunível. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 312
X XI. C r i m es i nter naci o nai s 21.1. Considerações gerais
313
..........................................................................................
313
21.2. Conceito e classificação dos crimes internacionais. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 313 21.3. Estrutura e imputação nos crimes internacionais. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 317
T í t u l o IV — T e o r i a G e r a l
da
Sa n ção P e n a l
X XII. Teo r ia da pena
325
22.1. Considerações gerais. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 325 22.2. Conceito de pena. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 325 22.3. Princípios constitucionais e penas admitidas
..............................................
326
22.4. Penas proibidas. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 327
X XIII. PENAS PRIVATIVAS D E LI B ER DAD E
33 4
23.1. Considerações gerais. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 334 23.2. Origens da pena de prisão.. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 334 XX
|Sumário
23.3. Espécies de pena de prisão. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 337 23.3.1. Estabelecimentos penais. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 338
23.4. Regime prisional.. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 339 23.4.1. Os regimes em espécie. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 339 23.4.2. Disciplina e o regime disciplinar diferenciado. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 340 23.4.3. Fixação do regime prisional. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 343 23.4.4. Progressão e regressão de regime. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 343 23.4.5. Progressão de regime para preso estrangeiro. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 345
23.5. Exame criminológico. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 349 23.6. Detração penal. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 350 23.7. Regulamentação geral do sistema penitenciário e os direitos dos presos. . 352 23.8. O trabalho prisional. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 352 23.9. Remição penal. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 354 23.10. Superveniência de doença mental. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 355 23.11. O monitoramento eletrônico. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 355 23.11.1. Origens e desenvolvimento do monitoramento eletrônico.. . . . . . . . . . . . . . . . . . 356 23.11.2. As gerações tecnológicas do monitoramento eletrônico. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 358 23.11.3. Monitoramento eletrônico no Brasil.. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 360
X XIV. PENAS R EST RITIVAS D E D IR EITOS
362
24.2. Características das penas alternativas no Código Penal. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 363 24.3. As gerações de penas restritivas de direitos. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 364 24.4. Requisitos para aplicação da pena restritiva de direitos. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 365 24.4.1. Requisitos objetivos. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 365 24.4.2. Requisitos subjetivos .. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 366
24.5. Multa substitutiva. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 366 24.6. Espécies de penas restritivas de direitos.. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 368 24.6.1. Pena de prestação pecuniária. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 368
24.6.1.1. Prestação pecuniária de outra natureza. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 369 24.6.2. Perda de bens e valores pertencentes ao condenado. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 370 24.6.3. Prestação de serviços à comunidade ou a entidade assistencial. . . . . . . 370 24.6.4. Interdições temporárias de direitos. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 371 24.6.5. Limitação de fim de semana.. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 374
24.7. Conversão de penas. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 374 24.8. Detração do tempo de cumprimento da pena alternativa. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 376 24.9. Penas restritivas de direitos para crimes hediondos. A polêmica com o tráfico de drogas. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 377
XXI
Curso de Direito Penal | Parte Geral
X X V. PENA D E MU LTA
379
25.1. Considerações gerais. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 379 25.2. Sistema dos dias-multa. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 380 25.3. Pagamento e execução da pena de multa. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 382 25.4. Competência para a execução da multa
X X VI. A PL I CAÇÃO DA PENA
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383
38 4
26.1. Considerações gerais. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 384 26.2. Elementares e circunstâncias na aplicação da pena. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 386 26.3. Circunstâncias judiciais. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 388 26.3.1. Culpabilidade.. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 390 26.3.2. Antecedentes .. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 390 26.3.3. Conduta social. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 392 26.3.4. Personalidade do agente . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 393 26.3.5. Motivos do crime. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 394 26.3.6. Circunstâncias do crime . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 394 26.3.7. Consequências do crime . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 395 26.3.8. Comportamento da vítima . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 395
26.4. Circunstâncias legais agravantes e atenuantes. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 396 26.4.1. Reincidência. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 398 26.4.2. Demais circunstâncias agravantes. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 401
26.4.2.1. Agravantes do art. 61, do CP. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 402 26.4.2.2. Agravantes no caso de concurso de pessoas. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 410 26.4.3. Das circunstâncias atenuantes.. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 413
26.4.3.1. Atenuante em razão da idade.. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 413 26.4.3.2. Demais circunstâncias atenuantes do art. 65. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 416 26.4.3.3. Atenuante inominada. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 424
26.5. Concurso entre agravantes e atenuantes. Circunstâncias preponderantes. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 426 26.6. Causas de aumento ou de diminuição de pena.. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 428 26.7. Tipos qualificados e tipos privilegiados. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 429 26.8. Aplicação da pena privativa de liberdade e método trifásico.. . . . . . . . . . . . . . . 429 26.8.1. Observações práticas sobre a aplicação da pena. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 431
26.9. Aplicação da pena de multa. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 434
X X VII. CO N CUR SO D E C RIM ES
436
27.1. Considerações gerais.. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 436 27.2. Princípios reguladores do concurso de crimes. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 438 27.3. Concurso material. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 440
XXII
|Sumário
27.4. Concurso formal. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 441 27.4.1. Conceituação de desígnios autônomos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 442 27.4.2. Desígnios autônomos e a questão do roubo contra vítimas distintas.. 443
27.5. Crime continuado. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 444 27.5.1. Teorias sobre o crime continuado. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 445
27.5.1.1. A noção de dolo continuado.. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 446 27.5.2. Natureza jurídica do crime continuado. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 447 27.5.3. Requisitos do crime continuado. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 448 27.5.4. Crime continuado contra bens pessoais de titularidades distintas. . . . . 449 27.5.5. A questão da continuidade delitiva nos crimes sexuais. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 451 27.5.6. Crime continuado e concurso formal no mesmo caso concreto.. . . . . . . . . 451
27.6. Erro na execução (aberratio ictus).. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 452 27.7. Resultado diverso do pretendido (aberratio delicti).. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 453 27.8. Limite máximo do cumprimento de pena e Súmula 715 do STF. . . . . . . . . . . . . . . 454
X X VIII. T R AN SAÇÃO PENAL
456
28.1. Considerações gerais. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 456 28.2. Conceito de transação penal. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 457 28.3. Infrações de menor potencial ofensivo. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 458 28.4. Conceito de transação penal. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 458 28.5. Requisitos para a transação penal. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 459 28.6. Período de prova da transação penal. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 461 28.7. Descumprimento injustificado e revogação. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 461 28.8. Cumprimento integral e extinção da punibilidade. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 464
X XIX . S U S PEN SÃO CO N D I C IO NAL D O PROCES SO
465
29.1. Considerações gerais. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 465 29.2. Conceito de suspensão condicional do processo. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 466 29.3. Pressupostos da suspensão condicional do processo. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 467 29.3.1. Não formulação da proposta pelo Ministério Público. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 468
29.4. Cumprimento das condições e período de prova.. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 469 29.5. Descumprimento das condições e revogação do benefício. . . . . . . . . . . . . . . . . . . 471 29.6. Cumprimento integral e extinção da punibilidade. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 473
X X X . S U S PEN SÃO CO N D I C IO NAL DA PENA
474
30.1. Considerações gerais. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 474 30.2. Conceito de suspensão condicional da pena. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 476 30.3. Espécies de suspensão condicional da pena. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 477 30.4. Pressupostos da suspensão condicional da pena. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 478 30.5. Cumprimento das condições e período de prova. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 480 XXIII
Curso de Direito Penal | Parte Geral
30.6. Descumprimento das condições e revogação do sursis. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 481 30.6.1. Causas de revogação obrigatória. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 481 30.6.2. Causas de revogação facultativa. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 483
30.7. Prorrogação do sursis
..........................................................................................
483
30.8. Cumprimento integral e extinção da punibilidade. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 484
X X XI. D O L IV R AM ENTO CO N D I CIO NAL
48 5
31.1. Considerações gerais.. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 485 31.2. Conceito e natureza jurídica do livramento condicional.. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 487 31.3. Pressupostos do livramento condicional. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 488 31.3.1. Livramento condicional para preso estrangeiro. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 496
31.4. Unificação de penas e livramento condicional. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 497 31.5. Cumprimento das condições e período de prova. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 497 31.6. Descumprimento das condições e revogação do benefício. . . . . . . . . . . . . . . . . . . 498 31.7. Suspensão do livramento condicional. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 500 31.8. Prorrogação do livramento condicional. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 501 31.9. Cumprimento integral e extinção da punibilidade. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 502
X X XII. EFEITOS DA CO N D ENAÇÃO E R E AB I L ITAÇÃO
503
32.1. Considerações gerais. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 503 32.2. Efeitos secundários de natureza penal. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 504 32.3. Efeitos secudários de natureza extrapenal. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 504 32.3.1. A obrigação de reparar o dano.. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 506
32.3.1.1. Ação civil ex delicto. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 506 32.3.2. Perda dos instrumentos e dos produtos do crime.. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 507
32.3.2.1. Instrumentos do crime (instrumenta sceleris). . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 508 32.3.2.2. Produto do crime (producta sceleris). . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 509
32.4. Efeitos específicos da condenação. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 510 32.4.1. Perda do cargo, função pública ou mandato eletivo. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 510 32.4.2. Incapacidade para o exercício do poder familiar, tutela ou curatela.511 32.4.3. Inabilitação para dirigir veículo utilizado em crime doloso.. . . . . . . . . . . . . . . . . . . 512 32.4.4. Inabilitação do empresário nos delitos falimentares.. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 512
32.5. Reabilitação penal. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 513 32.6. Pressupostos para a reabilitação. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 514 32.6.1. Domicílio no País no prazo de dois anos.. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 515 32.6.2. Demonstração efetiva e constante de bom comportamento público ou privado . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 515 32.6.3. Reparação do dano causado pelo crime ou comprovação da absoluta impossibilidade de o fazer, até a data do pedido, ou comprovação da renúncia expressa da vítima ou novação da dívida. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 515
32.7. Revogação da reabilitação. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 516 XXIV
|Sumário
X X XI I I. M ED I DAS D E S EG U R AN ÇA
517
33.1. Considerações gerais . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 517 33.2. Conceito e natureza jurídica das medidas de segurança. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 519 33.3. Sistemas do duplo binário e vicariante . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 520 33.4. Diferenças entre pena e medida de segurança . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 522 33.5. Periculosidade como pressuposto da medida de segurança . . . . . . . . . . . . . . . . 522 33.6. Espécies de medidas de segurança. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 522 33.6.1. Internação em hospital psiquiátrico 33.6.2. Tratamento ambulatorial
.........................................................
523
............................................................................
523
33.6.3. Escolha da medida de segurança. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 523
33.7. Cumprimento da medida de segurança . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 524 33.8. Suspensão e extinção da medida de segurança. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 525 33.9. Limite máximo de cumprimento da medida de segurança . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 525 33.10. Conversão da pena em medida de segurança . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 527
X X XIV. AÇÃO PENAL
529
34.1. Considerações gerais . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 529 34.2. Espécies de ação penal . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 531 34.3. Ação penal pública . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 532 34.3.1. Representação do ofendido e requisição do Ministro da Justiça . . . . . . . 533 34.3.2. Retratação da representação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 533 34.3.3. Ação penal no crime complexo. A questão da ação penal nos crimes sexuais . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 534 34.3.4. Ação penal do crime conexo e no concurso de crimes . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 536
34.4. Ação penal privada . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 536 34.4.1. Ação penal exclusivamente privada. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 536 34.4.2. Ação penal privada subsidiária da pública . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 537 34.4.3. Ação penal privada personalíssima . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 538
34.5. Decadência do direito de queixa ou de representação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 538 34.6. Renúncia ao direito de queixa. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 539 34.7. Perdão do ofendido . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 540 34.8. Extinção da punibilidade . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 541
X X X V. E X TI N ÇÃO DA PU N I B I LI DAD E
5 42
35.1. Considerações gerais . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 542 35.2. Condições objetivas de punibilidade e escusas absolutórias . . . . . . . . . . . . . . . . 543 35.3. Classificação das causas de extinção da punibilidade . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 544 35.3.1. Causas extintivas da pretensão punitiva e da pretensão executória . 544 35.3.2. Causas gerais e causas específicas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 544 35.3.3. Causas comunicáveis e incomunicáveis . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 545 XXV
Curso de Direito Penal | Parte Geral
35.4. Das causas de extinção da punibilidade
.....................................................
545
35.4.1. Morte do agente. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 545
35.4.1.1. A questão da morte presumida. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 546 35.4.1.2. Extinção da punibilidade e certidão de óbito falsa. . . . . . . . . . . . . . . . . 547 35.4.2. Anistia.. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 548 35.4.3. Indulto e graça. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 549
35.4.3.1. Indulto e crimes hediondos. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 550 35.4.3.2. Comutação de pena. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 550 35.4.3.3. Indulto e separação de poderes. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 551 35.4.4. Abolição do crime. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 551 35.4.5. Prescrição, decadência e perempção. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 552 35.4.6. Renúncia ou perdão do ofendido.. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 553 35.4.7. Retratação do agente. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 553 35.4.8. Perdão judicial. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 554
35.5. Extinção e suspensão da punibilidade nos crimes previdenciários e tributários. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 555
X X X VI. PR ESC RI ÇÃO PENAL
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36.1. Considerações gerais. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 556 36.2. Razões político-criminais para a prescrição. Pertencimento ao Direito Penal ou Processual Penal. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 558 36.2.1. Pacificação social . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 558 36.2.2. Punição ao Estado por sua ineficácia. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 558 36.2.3. Regeneração do infrator.. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 558 36.2.4. Natureza penal ou processual penal.. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 559
36.3. Crimes que nunca prescrevem.. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 560 36.4. Espécies de prescrição. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 561 36.4.1 Prescrição da pretensão punitiva. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 561 36.4.2. Prescrição da pretensão executória. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 562 36.4.3. Prescrição intercorrente.. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 563 36.4.4. Prescrição retroativa e a Lei no 12.234/2010. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 564 36.4.5. Prescrição em perspectiva ou hipotética.. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 566 36.4.6. Prescrição da pena de multa.. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 567 36.4.7. Prescrição da medida de segurança. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 567
36.5. Termo inicial da prescrição da pretensão punitiva. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 568 36.6. Termo inicial da prescrição da pretensão executória. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 570 36.7. Causas impeditivas ou suspensivas do prazo prescricional.. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 572 36.8. Interrupção do prazo prescricional. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 575 36.8.1. Recebimento da denúncia ou queixa. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 575 36.8.2. Sentença de pronúncia. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 577
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|Sumário
36.8.3. Decisão confirmatória da pronúncia.. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 577 36.8.4. Publicação da sentença ou acórdão condenatório recorrível.. . . . . . . . . . . . 577 36.8.5. Início ou continuação do cumprimento de pena. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 580 36.8.6. Reincidência. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 580
36.9. Contagem do prazo prescricional. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 581 REFERÊNCIAS. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 583
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título
I
I
QUESTÕES FUN DAM ENTAIS DO D I R EITO PENAL
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título
I
capítulo
Q U E S TÕ E S F U N D A M E N TA I S D O D I R E I TO P E N A L
I
INTRODUÇÃO AO DIREITO PENAL 1.1. O conceito de Direito Penal
C
ensinamento doutrinário, Direito Penal é o conjunto de normas jurídicas mediante as quais o Estado proíbe determinadas ações ou omissões, sob ameaça da pena.1 As normas jurídico-penais integram, pois, o conteúdo do Direito Penal. A doutrina usualmente distingue duas classes de enunciados normativos: normas primárias, que são proibitivas e dirigidas à regular a conduta dos cidadãos, e normas secundárias, que estabelecem os princípios gerais e as condições ou pressupostos de aplicação da pena e das medidas de segurança, que igualmente podem ser impostas aos autores de fatos definidos como crime.2 Modernamente, a disciplina pode ser conceituada sob duas vertentes: a dinâmica e a estática. Para a primeira, Direito Penal é o mais intenso mecanismo de controle social formal, por intermédio do qual o Estado, mediante um determinado sistema normativo, castiga com sanções negativas de particular gravidade as condutas desviadas mais nocivas para a convivência, objetivando, desse modo, a necessária disciplina social e a correta socialização dos membros do grupo. Sob a vertente estática, considera-se Direito Penal como sendo o conjunto onforme o cl á s sic o
1. Fragoso, Heleno Cláudio. Lições de direito penal. Parte geral. 16. ed. rev. por Fernando Fragoso. Rio de Janeiro: Forense, 2003, p. 4. 2. Silva Sánchez, Jesús María. Aproximación al derecho penal contemporáneo. 2. ed. Montevideo: B de F, 2010, p. 505-506. 3
Curso de Direito Penal | Parte Geral
de normas jurídico-públicas que definem certas condutas como delito e associam às mesmas penas e medidas de segurança, além de prever outras consequências jurídicas.3
1.2. Delimitações terminológicas
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designações atribuídas à nossa disciplina: Direito Repressivo, Direito Protetor dos Criminosos, Direito de Luta contra o Crime, Direito Restaurador, Direito Sancionador, Direito Transgressional, Direito de Defesa Social etc. No entanto, as duas principais denominações foram e continuam a ser Direito Criminal e Direito Penal.4 A primeira – Direito Criminal – é mais antiga e estaria relacionada à etapa histórica de forte vinculação do Direito com a Religião. De toda sorte, cuida-se de terminologia que prevaleceu, quase que isoladamente, até meados do século XIX. Por exemplo, no Brasil, a codificação elaborada ao tempo do Império chamava-se Código Criminal. Ainda hoje, Direito Criminal é a denominação utilizada nos países que seguem a tradição da common law, como Reino Unido e Estados Unidos. Por sua vez, a expressão Direito Penal vincula-se ao longo processo de secularização da disciplina e, em razão disso, foi ganhando, paulatinamente, a preferência lexicológica dos estudiosos e do público em geral, deslocando para um plano secundário a anterior denominação. Contribuiu para a sua prevalência o fato de que Direito Penal representa, imediatamente, a característica principal desse ramo do Direito (a pena). No entanto, com o surgimento, nas diversas legislações, das medidas de segurança, o termo Direito Penal foi posto em causa, pois vários doutrinadores passaram a exigir um mínimo de coerência terminológica no tocante ao seu novo e mais amplo conteúdo (pena e medidas de segurança).5 Em que pesem as críticas, tem-se que a expressão Direito Penal continua a ser majoritariamente adotada não somente no Brasil, como também na maioria dos países de tradição romano-germânica – à exceção de Portugal –, como, por exemplo, Alemanha, Espanha, França, Itália e todos os Estados latino-americanos.6 A palavra pena origina-se do latim poena que, por sua vez, deriva da expressão grega poiné. Na Grécia antiga, o termo poiné era usado para nomear uma forma de indenização feita pelo matador em favor dos parentes da sua vítima. Esse mesmo termo era utilizado na mitologia grega, na qual a expressão nomeava a deusa responsável por dar castigos. Ao ser transposto para a língua latina, passou a ser tratado como poena (plural: poenae), que possuía o sentido de multa, punição ou castigo. Posteriormente, a uitas são as
3. García-Pablos de Molina, Antonio. Introducción al Derecho Penal. 4. ed. Madrid: Ramón Areces, 2006, p. 43. 4. Cf. Jiménez de Asúa, Luís. Tratado de Derecho Penal. Tomo I. 5. ed. Buenos Aires: Losada, 1964, p. 30-31. 5. García-Pablos de Molina, Antonio. Op. cit., p. 49. 6. Cf. Pradel, Jean. Droit pénal comparé. 3èno. éd. Paris: Dalloz, 2008, passim. Sobre Portugal, sustenta Eduardo Correa, que a designação “Direito Criminal”, além de ser mais exata, teria a seu favor a tradição dos velhos juristas estrangeiros e portugueses. Ademais, o crime “é o elemento central da nossa disciplina e daí a conveniência de ser ele raiz da sua designação.” (Correa, Eduardo. Direito Criminal. Vol. I. Coimbra: Almedina, 1993, p. 2). 4
Capítulo I | Introdução ao Direito Penal
palavra se expandiu e foi adotada por diversos outros idiomas. Cite-se, como exemplo, o termo inglês penalty, que expressa também uma espécie de punição. No Brasil, adota-se o vocábulo pena, cujo uso na língua portuguesa comporta diversos sentidos, derivados de diferentes fontes latinas. Assim, além do significado jurídico de punição, tem-se pena como sinônimo de pluma (do latim penna) ou de rochedo (pinna).7 A expressão crime provém das línguas grega e latina. No latim medieval, ele vem de cernere, verbo da base indo-europeia krei que significava peneirar, separar, discriminar. Foi, contudo, o idioma grego que deu ao termo o sentido jurídico, derivado do verbo krimein, verbo este frequente na linguagem bíblica, onde significava o ato de julgar. Com o passar do tempo, surgiu a fórmula latina crimen, que tinha o sentido pejorativo de calúnia ou falsa acusação. Mais tarde, passou a ter também o sentido de acusação. Isso quer dizer que, sob o aspecto etimológico, a palavra crime não designava exatamente uma ação, um ato ou um comportamento humano, mas sobretudo o ato de julgar alguém no âmbito de um procedimento institucional de tipo judiciário.8 Outro vocábulo fundamental da disciplina – delito – provém do latim delictum, supino de delinquere. O verbo delinquere pode ser compreendido a partir da divisão das partes que o compõem, ou seja, de, que significa completamente, adicionado de linquere, que indica sair, deixar ou abandonar. A junção de tais segmentos formava o sentido, no latim, de ofender, fazer o errado ou praticar uma falta, sentido jurídico este veiculado, posteriormente, pela generalidade das línguas, inclusive a nossa.9 Anote-se, ainda, que no modelo brasileiro instaurado a partir do Código Criminal do Império, crime e delito são expressões equivalentes (art. 1o, do CC/1830), ambos se diferenciando, pela maior gravidade, da infração penal denominada contravenção (do latim contraventione; verbo contraveniere, que significa ir contra, transgredir, violar ou infringir). Nesse sentido, o art. 1o, da Lei de Introdução ao Código Penal (Decreto-lei no 3.914/1941), considera crime ou delito a infração penal a que a lei comina pena de reclusão ou de detenção, quer isoladamente, quer alternativa ou cumulativamente com a pena de multa; e contravenção, a infração penal a que a lei comina, isoladamente, pena de prisão simples ou de multa, ou ambas, alternativa ou cumulativamente. Em suma, o Brasil adota, historicamente, o sistema bipartido ou dicotômico para as infrações penais (crime ou delito, de um lado, e contravenção penal, de outro).10
7. Cf. Ernout, A; Meillet, A. Dictionnaire etymologique de la langue lantine. Histoires des mots. 3 èno. éd. Paris: Klincksieck, 1951, p. 917. 8. Cf. Pires, Álvaro P. La criminologie d’hier et d’aujourd’hui. In: Histoire des savoirs sur le crime et la peine. Vol. 1. Debuyst, Christian; Digneffe, Françoise; Pires, Álvaro. Bruxelles: De Boeck, 2008, p. 19. 9. Cf. Ernout, A; Meillet, A. Op. cit., p. 301. 10. O Direito Penal brasileiro (dicotômico) diferencia-se dos demais que adotam o sistema tripartido ou tricotômico, como na França, onde “crimes” são infrações penais mais graves; “delitos”, infrações penais intermediárias; e “contravenções de simples polícia”, infrações penais de natureza leve (cf. Souza, Artur de Brito Gueiros. Espécies de sanções penais: uma análise comparativa entre os sistemas penais da França e do Brasil. In: Revista Brasileira de Ciências Criminais, n. 49, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 10). 5
Curso de Direito Penal | Parte Geral
1.3. Características gerais
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pela previsão de comportamento e de sanção. Ou seja, o Direito pretende regular a vida em sociedade. Para tanto, estabelece comportamentos permitidos e proibidos. Ao proibir uma conduta, o Estado o faz pela ameaça de uma sanção, o que ocorre em todos os ramos do direito. Como ramo do ordenamento jurídico, o Direto Penal se distingue precisamente pelo meio de coação e tutela com que atua, que é a pena. Assim, a diferença entre o Direito Penal e os demais ramos jurídicos tem relação direta com a natureza da sanção prevista. Enquanto a sanção civil tem natureza de reparação, pois o que se pretende com ela é que se retorne ao status quo anterior ao fato que a originou, a sanção caracteriza-se pelo castigo. Ou seja, a sanção civil, denominada penalidade, constitui, em regra, uma reparação. Por sua vez a sanção penal é caracterizada pela retribuição, pois a pena não consiste na execução coativa do preceito jurídico violado, mas na perda de um bem jurídico imposta ao autor do ilícito, ou seja, num mal infligido ao réu, em virtude de seu comportamento antijurídico. Daí o seu caráter retributivo.11 Em síntese, pode-se definir pena como sendo a perda de um direito imposta pelo Estado em razão do cometimento de uma infração penal. Direito se caracteriza
1.4. Finalidade e legitimidade
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natureza, o ser humano é um animal gregário; é por intermédio das relações sociais que se logra tanto a sobrevivência como a perpetuação das espécies no planeta. É em sociedade, com o intercâmbio de experiências e com a colaboração mútua, que se torna possível a plena existência humana. Ocorre que a vida em sociedade pressupõe o estabelecimento de normas que permitam ou proíbam a realização de determinadas condutas. O conjunto dessas normas ou regras de convivência denomina-se ordem social.12 A ordem social é assimilada pelos seres humanos por meio do longo processo de educação, em sentido lato, sem a necessidade de uma força externa que a imponha. É por meio da família, da escola, da religião, das agremiações esportivas, dentre outras instâncias informais de controle, que se aprende o que se pode ou não fazer. A transgressão de tais regras acarreta sanções, tais como o castigo familiar, a reprovação escolar, a proibição de frequentar uma missa ou de praticar um esporte coletivo. Entretanto, a ordem social não pode por si só assegurar a convivência das pessoas em comunidade. Ela necessita ser complementada e reforçada pelas instâncias formais de controle, isto é, pelas normas emanadas de um centro de poder, capazes de impor consequências mais intensas àqueles que as transgredir. Surge, assim, o ordenamento or sua própria
11. Cf. Fragoso, Heleno Cláudio. Op. cit., p. 3. 12. Cf. Jescheck, Hans-Heinrich; Weigend, Thomas. Tratado de Derecho Penal. Parte General. 5. ed. Trad. Olmedo Cardenete. Granada: Comares, 2002, p. 3. 6
Capítulo I | Introdução ao Direito Penal
jurídico, ou seja, o conjunto de normas ordenadas pelo Estado, detentor do monopólio da força, de caráter geral e cogente. As normas que compõem o ordenamento jurídico podem ter natureza civil, administrativa, econômica, além de tantos outros ramos do Direito, todas vocacionadas para possibilitar a harmônica convivência social social. Contudo, são as normas de Direito Penal que asseguram, em última instância, a inviolabilidade de todo o ordenamento jurídico.13 No que se refere à finalidade do Direito Penal, vale destacar que é afirmado que a missão do Direito Penal é a da proteção da convivência humana em sociedade. Há, portanto, duas perspectivas da disciplina que podem ser analisadas de forma mais pormenorizada. A primeira consiste em compreender o Direito Penal como um dos instrumentos de convivência e controle social, caracterizado por selecionar os comportamentos tidos como mais intoleráveis, prevendo e impondo sanções institucionalizadas àqueles que o realizarem. A segunda é visualizá-lo como um conjunto de normas jurídicas editadas pelo Estado contendo a descrição de delitos e cominação de penas (normas penais incriminadoras), bem como dos pressupostos para a aplicação, substituição ou exclusão de tais sanções (normas penais não incriminadoras). Silva Sánchez, por sua vez, categoriza em três níveis as funções do Direito Penal. O primeiro nível ocupa-se da função ético social, isto é, a busca em satisfazer as necessidades da psicologia social. Em um segundo nível, faz-se alusão à função simbólica ou retórica, na medida em que as normas penais produzem na opinião pública a impressão tranquilizadora de um legislador atento e decidido. Por fim, apresenta a função repressiva e preventiva de delitos.14 Ressalte-se, todavia, que, de maneira geral, a justificação do Direito Penal tem sido feita a partir da justificação da pena. Há, em princípio, três orientações fundamentais quando à legitimidade da pena: (1) sustenta-se que a pena é um mal, mas que se converte em bem, pois nega o mal que é o delito e restaura o direito e a justiça; (2) sustenta-se que a pena é um mal menor ou socialmente útil; e (3) afirma-se que a pena e, por extensão, o Direito Penal, é ilegítima, o que deveria conduzir a abolição de ambos.15 Tais grupos de orientações se expressam a partir das teorias da pena, pelas quais os doutrinadores têm procurado explicar o fundamento da pena por meio das chamadas correntes absolutas, relativas e mistas ou unitárias. Sinteticamente, essas teorias gravitam em torno de duas premissas fundamentais: a retribuição e a prevenção. Segundo as teorias absolutas, a pena é exigência de justiça. Quem pratica um mal deve sofrer um mal. A pena se funda na justa retribuição, é um fim em si mesma e não serve a qualquer outro propósito que não seja o de recompensar o mal com o mal. Os filósofos Kant e Hegel foram os maiores teóricos desta corrente, tendo o primeiro formulado esta teoria do modo ilustrativo: mesmo que a sociedade civil com todos os seus membros decidisse dissolver-se teria, antes, de ser executado o último assassino 13. Idem, ibidem, p. 3. 14. Silva Sánchez, Jesús María. Op. cit., p. 482. 15. Silva Sánchez, Jesús María. Op. cit., p. 292. 7
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que estivesse no cárcere, para que cada um sofresse o que os seus atos merecessem, e para que as culpas do sangue não recaíssem sobre o povo que não haja insistido no seu castigo.16 Hegel, por seu turno, desenvolveu a fórmula dialética sobre a essência de a pena ser a “negação da negação do direito”.17 As teorias relativas, partindo de uma concepção utilitária da pena, justificam-na por seus efeitos preventivos. Significa dizer que a finalidade da pena não seria punir todos os crimes, mas prevenir todos os crimes. De alguma maneira, o que se quer dizer é que a sociedade ideal é aquela em que não ocorrem crimes e não aquela em que todos os crimes são punidos e é isso o que o Estado deve perseguir. Distingue-se aqui a prevenção geral e a prevenção especial. Prevenção geral é a intimidação que se supõe alcançar por meio da ameaça da pena e de sua efetiva imposição, atemorizando os possíveis infratores. Esta teoria tem em Anselm von Feuerbach o seu mais eloquente representante, o qual expressou, em seu influente Tratado, toda a sistemática da coação psicológica da pena. Para ele, até mesmo quando se está a executar uma determinada sanção sobre alguém, objetiva-se, na verdade, transmitir os seus efeitos dissuasórios à coletividade.18 A prevenção especial atua sobre o autor do crime, para que não volte a delinquir. A prevenção especial opera por meio da emenda do condenado ou de sua intimidação, ou, ainda, da inocuização, no caso dos incorrigíveis. Segundo Franz von Liszt, adepto dessa corrente, a pena tem a função única de defender a sociedade de elementos que perturbam a sua organização (defesa social), por intermédio da “atuação direta da execução da sanção na personalidade do criminoso”.19 Tanto a teoria da prevenção geral como a da prevenção especial deixam sem explicação os critérios mediante os quais deve o Estado recorrer à pena criminal. Como ocorre com as teorias absolutas, aqui também se pressupõe a necessidade da pena. A prevenção geral não estabelece os limites da reação punitiva e pode criar um Direito Penal do terror. A prevenção especial também não pode, por si só, constituir fundamento para a pena. Há delinquentes que não carecem de ressocialização alguma, em relação aos quais é possível fazer um seguro prognóstico de não reincidência. Há, ainda, as teorias mistas ou unitárias, que combinam as teorias absolutas e as relativas, que não seriam excludentes entre si. Parte-se, portanto, do entendimento segundo 16. Cf. Roxin, Claus. Sentido e limites da pena estatal. In: Problemas Fundamentais de Direito Penal. Lisboa: Vega, 1986, p. 15. 17. Cf.: “A supressão do crime é remissão, quer segundo o conceito, pois ela constitui uma violência contra a violência, quer segundo a existência, quando o crime possui uma certa grandeza qualitativa e quantitativa que se pode também encontrar na sua negação como existência. Todavia, esta identidade fundada no conceito não é igualdade qualitativa – talião –, é a que provém da natureza em si do crime, a igualdade de valor.” (Hegel, Princípios da Filosofia do Direito. Lisboa: Guimarães Ed., 1990, p. 104). 18. Cf.: “O objetivo da cominação da pena na lei é a intimidação de todos, como possíveis protagonistas de lesões jurídicas. O objetivo da sua aplicação é o de dar fundamento efetivo à cominação legal, visto que sem a aplicação a cominação ficaria oca (seria ineficaz). Considerando que a lei intimida a todos os cidadãos e a execução deve dar efetividade à lei, conclui-se que o objetivo mediato (ou final) da aplicação é, em quaisquer dos casos, a intimidação dos cidadãos mediante a lei.” (Feuerbach, Paul Johann Anselm Ritter von. Tratado de Derecho Penal común vigente en Alemania. Trad. Raúl Zaffaroni. 14. ed. Buenos Aires: Hammurabi, 1989, p. 61). 19. Cf. Correa, Eduardo. Op. cit., p. 49. 8
Capítulo I | Introdução ao Direito Penal
o qual a pena é retribuição, mas deve, por igual, perseguir os fins de prevenção geral e especial. Segundo Eduardo Correa, é concebível uma terceira via: o daquelas teorias que justamente entendem que o fim ou razão de ser da sanção se cumpre ecleticamente, reagindo-se contra o passado e procurando-se ao mesmo tempo evitar futuras violações.20 As teorias mistas não foram suficientes para responder por completo ao problema da finalidade. Por isso, foi desenvolvida a ideia de que a prevenção pode ser positiva ou negativa. Uma conteria a ideia de que a previsão ou a aplicação das penas teria a função de prevenir delitos (prevenção negativa), e a outra reforçaria a validade das normas (prevenção positiva), que significa restabelecer a confiança institucional no ordenamento, quebrada com o cometimento do crime.
1.5. Tendências contemporâneas
A
majoritariamente que o poder punitivo estatal deve cumprir a concreta função de proteção dos bens jurídicos e de prevenção dos delitos. Apesar dessa posição legitimadora do Direito Penal, subsistem correntes doutrinárias que advogam tanto a abolição ou a minimalização do ius puniendi, bem como em sentido contrário, a sua expansão e o recrudescimento das penas existentes. Sendo assim, alinham-se três posturas político-criminais básicas que procuram compreender e dirigir as funções, os limites e os fins do Direito Penal contemporâneo, a saber, a abolicionista, a ressocializadora e a garantista. São posturas reformistas frente à realidade do sistema penal, pretendendo introduzir elementos de progresso, a partir da formulação de críticas.21 tualmente , entretanto, considera-se
O abolicionismo postula a eliminação do Direito Penal, por ser sistema gerador da criminalidade. Para seus adeptos, se o crime é uma manifestação de violência, o monopólio estatal do uso da força seria também violência. Nesse sentido, não haveria legitimidade no Direito Penal, devendo-se, pois, abolir o sistema de penas positivadas, devendo os conflitos ser resolvidos de outra maneira.22 A despeito do mérito do abolicionismo ao despertar para a necessidade de uma humanização do sistema penal, com críticas aos seus aspectos negativos, não há como vingar a ideia simplista de abolir tal sistema. A postura ressocializadora diferencia-se da perspectiva abolicionista na medida em que se manifesta como uma luta por um melhor Direito Penal. Centra-se na obtenção de uma autêntica reinserção dos apenados, a partir de mecanismos que eliminem, ou ao menos reduzam taxas de reincidência. Nessa perspectiva, a ressocialização constitui uma variante contemporânea da doutrina da prevenção especial.23 20. Correa, Eduardo. Op. cit., p. 40. 21. Silva Sánchez, Jesús María. Op. cit., p. 11. 22. Hulsman, Louk ; Celis, Jacqueline Bernat de. O sistema penal em questão. Trad. Maria Lúcia Karan, Niterói: Luam, 1993, p. 99-101. 23. Idem, ibidem, p. 25. 9
Curso de Direito Penal | Parte Geral
Critica-se também sua versão mais radical, que propõe a eliminação das penas por medidas de segurança ou de correção, a partir de uma ideologia do tratamento. Alguns modelos penais, por exemplo, possibilitam a imposição de penas privativas de liberdade de caráter indeterminado, como ocorre nas indeterminate sentences nos EUA, onde os tribunais podem fixar limites amplíssimos para o cumprimento da pena, deixando a cargo de uma comissão de funcionários do Estado (parole board) a decisão sobre o momento apropriado para a libertação do apenado. Os resultados desse modelo não são satisfatórios, devido ao excessivo arbítrio, sendo incompatíveis com as garantias próprias do Estado de Direito.24 Além disso, questiona-se até que ponto se mostra legítima essa ingerência obrigatória na personalidade do ser humano. Por sua vez, a proposta garantista surgiu para fazer frente à decepção acerca da capacidade do ideal ressocializador. Propugna fundamentalmente as garantias formais, buscando conciliar a prevenção geral dos delitos com exigências formais dos princípios de proporcionalidade e humanidade, limitando a intervenção penal ao estritamente necessário, não violando valores fundamentais consagrados em quase todas as sociedades modernas.25 Nessa linha de pensamento, o Direito Penal Mínimo buscou reconhecer um núcleo rígido de infrações para as quais não se pode flexibilizar o sistema de penas, sob o risco de cairmos no anarquismo e na prevalência dos argumentos do mais forte. Ressalvado esse núcleo, o esforço deveria ser no sentido de descriminalizar e despenalizar os fatos. Em sentido diametralmente oposto, os Movimentos de Lei e Ordem preconizam a política criminal denominada tolerância zero, voltada para a repressão incondicional de pequenas infrações como maneira de se evitar a prática futura de infrações de maior gravidade social. Nessa ótica, merece destaque, ainda, dentre as peculiares manifestações relacionadas à tendência expansiva do Direto Penal na sociedade hodierna, a construção teórica do Direito Penal do inimigo, essencialmente atribuída a Günther Jakobs.26 Baseia-se na distinção do Direito Penal dos cidadãos, que sanciona delitos cometidos por indivíduos infratores em meio às relações sociais e o Direito penal do inimigo, que tem como destinatário indivíduos considerados como fonte de perigo, sendo, por isso, despersonalizados pelo Direito. O Direito Penal do inimigo, classificado, segundo Silva Sanchez, como o Direito Penal de terceira velocidade,27 refuta os postulados do Direito Penal garantista, negando ao alegado inimigo direitos e garantias individuais nas esferas material e processual penal.
24. Idem, ibidem, p. 30-31. 25. Idem, ibidem, p. 37-47. 26. Sobre o tema, vide Jakobs, Günther. Direito penal do inimigo. Trad. Gercélia Batista de Oliveira Mendes. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008. 27. Silva Sánchez, Jesús María. La expansión del derecho penal. 2. ed. Madrid: Civitas, 2001, p. 163-165. 10
Capítulo I | Introdução ao Direito Penal
1.6. A relação do Direito Penal com outros ramos do Direito
O
ramo do direito público interno, pois o Estado detém o monopólio do direito de punir (jus puniendi), mesmo quando a acusação é promovida pelo ofendido (ação penal privada). O direito de punir estatal é o poder-dever que o Estado tem de aplicar as normas estatais e, no âmbito penal, impor pena como consequência jurídica decorrente do fato de que o indivíduo violou regra de convívio social, pois praticou um crime. Frise-se que a tutela jurídica que o Direito Penal exerce refere-se sempre a interesses da coletividade, mesmo quando se trata de bens individuais, tais como a vida, o patrimônio e a honra. Direito Penal é
1.6.1. Direito Penal e Direito Constitucional
Pela importância da Constituição, todo o ordenamento infraconstitucional, inclusive as normas de Direito Penal, deve ser interpretado a partir dela. Mais que isso, os próprios bens jurídicos penalmente tutelados estão nela consagrados. Ademais, diversos princípios de Direito Penal são ou foram constitucionalizados justamente no escopo de proteger o cidadão frente ao possível arbítrio do Estado: princípio da legalidade ou da reserva penal (art. 5o, XXXIX), da personalidade da pena (art. 5o, XLV), da individualização da pena (art. 5o, XLVI), da proscrição de determinadas penas (art. 5o, XLVII), do direito de defesa, do devido processo legal e das garantias da execução penal (art. 5o, LIII a LXVIII e XLVII a L), da não extradição de nacionais ou por crime político ou de opinião (art. 5o, LI e LII), todos da CF/1988. Sob outro aspecto, por competir à Constituição a organização fundamental do Estado, sua estrutura político-administrativa, e diante da constatação de o Direito Penal ser exercitado pelo Estado, é óbvio que o modelo de Estado adotado (totalitário, interventor, democrático de direito etc.) irá influenciar na criação, interpretação e aplicação das normas punitivas. 1.6.2. Direito Penal e Direito Administrativo
A imposição de pena criminal é um monopólio estatal. Há, portanto, íntima relação entre Direito Penal e Direito Administrativo. Por outra vertente, as normas jurídicas relativas à administração pública influenciam a aplicação das normas penais, tanto na prevenção como na repressão do delito. Não se deve confundir, entretanto, ilícitos administrativos com ilícitos penais. Apesar de ontologicamente não se distinguirem, há diferenças com relação às fontes de criação, bem como à gravidade das consequências, não se podendo, assim, igualar as sanções disciplinares (advertência, demissão etc.) com as sanções penais (pena em sentido estrito e medida de segurança).
11
Curso de Direito Penal | Parte Geral
Todavia, um dos problemas contemporâneos mais relevantes decorre justamente da possibilidade de imposição, para um mesmo fato, de sanções penais e administrativas. Em relação a esta possibilidade, ela tem sido discutida no âmbito do chamado princípio do ne bis in idem, também conhecido como proibição da dupla punição ou double jeopardy. De forma tradicional, se faz uma distinção entre nemo debet bis vexari pro una et eadem causa (ninguém pode ser submetido a mais de um processo pelo mesmo delito) e nemo debet bis puniri pro uno delicto (ninguém pode ser castigado duas vezes pelo mesmo delito).28 O princípio do ne bis in idem gera muitas questões, sendo que a maior parte delas se refere à definição do idem e do bis. Uma delas diz respeito a ser possível ou não um processo ou uma sanção adicional, além da primeira imposta, seja penal ou administrativa. Em um mundo globalizado e em que tem havido um aumento da severidade das sanções administrativas, parece que as relações entre Direito Penal e Direito Administrativo tendem a ser cada vez mais relevantes. 1.6.3. Direito Penal e Direito Processual Penal
Também conhecido como Direito Penal adjetivo ou formal, o Direito Processual Penal tem estreita conexão com o Direito Penal. Afinal, é por meio do processo que o Estado exerce o jus puniendi. O Direito Processual Penal pode, assim, ser definido como sendo o complexo de normas destinadas a regular a atuação da jurisdição penal, na constatação da existência de um fato punível e na aplicação das penas e medidas de segurança previstas na lei penal. 29 A relação entre as duas disciplinas é tão estreita que o próprio CP dispõe sobre matérias de forte conteúdo processual, tais como a ação penal e a prescrição penal. Isso gera intensos debates, tanto doutrinários como jurisprudenciais, até porque a contagem dos prazos de Direito Penal é diversa do Direito Processual (cf. art. 10, do CP, e art. 798, § 1o, do CPP). Assevere-se, ainda, que a tramitação do processo penal é igualmente objeto de proteção jurídico-penal, que incrimina infrações como o falso testemunho ou a falsa perícia, a coação no curso do processo, a fraude processual (arts. 342, 344, 347, do CP), dentre outros. 1.6.4. Direito Penal e Direito Civil
Embora não tão estreito, pode-se registrar a existência de relações entre esses dois setores do Direito, tendo em vista que ambos protegem bens jurídicos. Há, de certa 28. Sobre o tema, vide Vervaele, John A. E.El derecho penal europeo: del derecho penal económico y financiero a un derecho penal federal. Lima: Ara, México: Ubijus, 2006, p. 501-509; Japiassú, Carlos Eduardo Adriano. O princípio do ne bis in idem no direito penal internacional. In: Revista da Faculdade de Direito de Campos. Ano IV – n. 4, ano V – n. 5, Campos dos Goitacases: FDC, 2003-2004, p. 91-122. 29. Fragoso. Op. cit., p. 15. 12
Capítulo I | Introdução ao Direito Penal
forma, uma complementariedade das normas penais às normas de Direito Privado (Civil e Empresarial). Não por outro motivo que algumas normas penais incriminadoras dependem, para sua compreensão, de definições emanadas do Direito Civil, como, por exemplo, nos crimes de bigamia e induzimento a erro essencial e ocultação de impedimento (arts. 235 e 236, do CP). Frise, todavia, que se é certo que tanto o Direito Penal como o direito privado tutelam bens e interesses jurídicos, o fazem de forma peculiar e autônoma. Isto não significa que deixem de interessar ao Direto Penal muitos conceitos estabelecidos pelo Direito Civil.30 Aduz-se que a previsão da obrigação de reparar o dano como um dos efeitos da condenação penal (art. 91, I, do CP) reforça essa relação de interdependência e de autonomia, vis a vis o art. 935, do Código Civil.
30. Idem, ibidem, p. 16. 13
título
capítulo
I
Q U E S TÕ E S F U N D A M E N TA I S D O D I R E I TO P E N A L
II
A CIÊNCIA CONJUNTA DO DIREITO PENAL 2.1. Considerações gerais
V
disciplinas que se relacionam com o Direito Penal, com o crime e com o criminoso. Ao conjunto dessas disciplinas tem-se chamado de “ciências criminais” ou – como prefere Luís Jiménez de Asúa – “enciclopédia de ciências penais”.1 Aqui se optou por tratar de algumas delas: a dogmática jurídico-penal ou ciência do Direito Penal, que tem por objeto o estudo da norma penal; a criminologia, que estuda o crime em sua realidade fenomênica; e a política criminal, atividade do Estado no controle da criminalidade. Ciências ou disciplinas auxiliares seriam a medicina legal, a psicologia judiciária e a criminalística. árias são as
2.2. A Ciência do Direito Penal ou Dogmática Jurídico - Penal
A
Penal, também chamada dogmática jurídico-penal, é a disciplina que estuda o crime como fato jurídico, para determinar as características do fato punível e suas formas especiais de aparecimento. Pode ser definida como sendo a disciplina que se ciência d o Direito
1. Jiménez de Asúa, Luís. Op. cit., p. 87. 14
Capítulo II | A ciência conjunta do Direito Penal
encarrega da interpretação, sistematização e desenvolvimento das normas contidas na lei, bem como das opiniões doutrinárias no âmbito do Direito Penal.2 A ciência do Direito Penal não se distingue das disciplinas jurídicas que estudam os outros ramos do direito, senão pela natureza das normas que lhe constituem o objeto. A dogmática jurídico-penal realiza, em síntese, a interpretação, sistematização, elaboração e desenvolvimento das disposições legais e das opiniões doutrinárias no âmbito do Direito Penal. Segundo Claus Roxin, dogma é um vocábulo de origem grega que significa algo como opinião, disposição, proposição doutrinária. Portanto, dogmática é a ciência dos dogmas. Para aquele autor, por sua referência ao Direito vigente e pelos métodos que utiliza, a dogmática se diferencia da História do Direito Penal e do Direito Penal Comparado, assim como da Política Criminal – cujo objeto não constitui o Direito Penal como é, mas como deveria ser.3 Entretanto não se deve confundir “dogmática” com “dogmatismo” no sentido de aceitação acrítica de uma verdade absoluta e imutável, de todo incompatível com a própria ideia de ciência. Não se pode, portanto, desprezar a interpretação, a sistematização e, ainda, a crítica intrassistemática.4 2.2.1. Método do estudo do Direito Penal
Como se pode perceber, o método de ensino do Direito Penal é o dedutivo – ou dogmático, ou normativo, ou especulativo –, próprio, de resto, da ciência jurídica em geral. Segundo o esquema proposto por Alfredo Rocco, método dedutivo possui as seguintes etapas: (1) a interpretação das normas; (2) a partir da interpretação, a construção científica das instituições; e (3) sobre a base das instituições elaboradas, a edificação dos sistemas.5 Em suma, a metodologia dogmática é basicamente hermenêutica, sistemática e crítica, de interpretação do ordenamento penal positivo e construção conceitual de um sistema a partir de dito objeto sempre por meio do pensamento crítico.6 Deve-se ressaltar que, diferentemente do Direito Penal, a Criminologia utiliza-se do método indutivo, empírico, por meio do qual se fundamentam as suas conclusões.
2.3. A Política Criminal
A
(Kriminalpolitik) foi concebida, no final do século XVIII, pelos juristas Kleinschrod e Feuerbach, com o sentido filosófico da busca de uma e xpressão Política Criminal
2. Blanco Lozano, Carlos. Dogmática, política criminal y criminologia en el sistema del derecho penal. In: Cuadernos de Política Criminal. Madrid, n. 86, 2005, p. 7. 3. Roxin, Claus. Derecho Penal. Parte General. Tomo I. Trad. Luzón Peña. Madrid: Civitas, 2006, p. 192. 4. Prado, Luiz Regis. Curso de Direito Penal Brasileiro. Vol. I. Parte Geral. 5. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 56. 5. Apud Blanco Lozado, Carlos. Op. cit., p. 10. 6. Idem, p. 10. 15
Curso de Direito Penal | Parte Geral
“sabedoria” para o Estado legiferante.7 No entanto, por intermédio dos estudos de Franz von Liszt, o termo deixou de servir a uma abstrata “arte de legislar” para conformar-se ao sentido racional de uma “disciplina científica” estribada em dois eixos: a crítica e a reforma do Direito Penal. Conforme sentenciado por von Liszt: “A esta ciência incumbe dar-nos o critério para apreciarmos o valor do direito que vigora e revelar-nos o direito que deve vigorar”.8 Portanto, política criminal é estratégia de combate à criminalidade e serve à aferição da eficácia do Direito Penal – isto é, das normas penais – no que diz respeito à distribuição da Justiça e aos interesses sociais. Pode-se, assim, dizer que a Política Criminal tem por objetivo a melhora e a racionalização do direito vigente, por intermédio de fórmulas legislativas adaptáveis às necessidades sociais. Cumpre observar, porém, que há autores que negam caráter científico à Política Criminal. Segundo Alfonso Serrano Gómez, inobstante existir grande divergência sobre sua natureza científica, há consenso doutrinário no sentido de cumprir à Política Criminal a “tradicional” missão de crítica e reforma das leis penais.9 Semelhantemente, Jesús María Silva Sánchez afirma que a Política Criminal desincumbe da tarefa de orientar a evolução da legislação penal – perspectiva de lege ferenda – ou sua própria aplicação no presente – perspectiva de lege lata –, conectando-as “às finalidades materiais do Direito Penal”.10
2.4. A Criminologia
S
clássica de Edwin H. Sutherland, considera-se Criminologia o conjunto de conhecimentos relativos ao delito como fenômeno social, sendo nele incluído os processos de elaborar as leis, infringir as leis e de reagir à infração das leis. Leciona, ainda, aquele autor, que a sociedade define como crimes certos atos considerados indesejáveis e, apesar dessa definição, algumas pessoas persistem no comportamento e assim cometem crimes, reagindo, a sociedade, por intermédio da punição ou outra forma especial de tratamento. Para Sutherland, essa sequência de interações constitui a matéria objeto da Criminologia.11 A Criminologia é uma ciência empírica e interdisciplinar que, nas palavras de García-Pablos de Molina, objetiva apresentar uma informação válida, contrastada e egundo a concepção
7. Cf. Polaino Navarrete, Miguel. Derecho Penal. Parte General. Tomo I. 5.ed. Barcelona: Bosch, 2004, p. 57. 8. Liszt, Franz von. Tratado de Direito Penal Alemão. Tomo I. Trad. José Hygino Duarte Pereira. Rio de Janeiro: F. Briguiet, 1899, p. 30. 9. Serrano Gómez, Alfonso. Dogmática jurídica, política criminal y criminología. In: Anuario de Derecho Penal y Ciencias Penales, Tomo 33, Fasc. III, Madrid, 1980, p. 616. Sobre a natureza científica da Política Criminal, observa Miguel Polaino Navarrete que se cuida de questão altamente controvertida: “Enquanto alguns autores defendem que se trata de uma disciplina jurídica, outros sustentam que é essencialmente uma matéria política, e, finalmente, há outros que se posicionam por considerá-la como ciência sociológica.” (Polaino Navarrete, Miguel. Op. cit., p. 57). 10. Silva Sánchez, Jesús María. Op. cit., p. 71. 11. Sutherland, Edwin H; Cressey, Donald R. Principles of Criminology. 11. ed., N. York: General Hall, 1992, p. 3. 16
Capítulo II | A ciência conjunta do Direito Penal
confiável sobre o surgimento, a dinâmica e as variáveis do crime, contemplando-o como fenômeno individual e como problema social.12 Pode-se, ainda, acrescentar que ela não se limita ao estudo empírico do crime, cabendo-lhe, igualmente, o estudo do criminoso, da vítima e dos mecanismos de reação social.13 Tem-se, assim, que prepondera, na atualidade, uma rica e heterogênea ciência criminológica, agrupada em investigações sociológicas, psicológicas ou biológicas, bem como o desenvolvimento de áreas afins, tal como se observa com a Vitimologia, no escopo da compreensão global da delinquência e das suas formas de prevenção ou neutralização.14 Esta pluralidade de teorias, tanto etiológicas como da reação social, pode ser considerada benfazeja ante a complexidade do mundo contemporâneo e da criminalidade que nele ocorre. Por conta disso, Adolfo Ceretti prefere se referir, na atualidade, a existência de “Criminologias” ao invés de (uma) Criminologia.15 Winfried Hassemer e Francisco Muñoz Conde também reconhecem a heterogeneidade dos aportes criminológicos contemporâneos, e propõem a assunção do ecletismo por parte dos estudiosos, ou seja, uma postura capaz de reunir todos os possíveis pontos de vista da criminalidade, encarando-a como um problema tanto individual como social.16 Na mesma esteira, José Cid Moliné e Elena Larrauri Pijoan, após discorrerem sobre as principais teorias criminológicas formuladas ao longo da disciplina, propugnam por uma relação fecunda entre os principais modelos, visto que a explicação do delito não raro vincula-se a fatores diversos. Assim, é perfeitamente possível que, v.g., a violência doméstica, apareça correlacionada com fatores identificados pela teoria da anomia (ocorrendo mais com pessoas com menores oportunidades sociais), pelas teorias ecológicas (produzindo-se em maior quantidade em bairros desorganizados) ou pela teoria do controle (registrando-se um índice maior em pessoas selecionadas pela ordem social).17 Merece, por fim, ser feita menção histórica ao surgimento da palavra criminologia. Ao publicar L’uomo delinquente (1876), quis Cesare Lombroso que a nova atividade com pretensões científicas se chamasse Antropologia Criminal, alardeando-a em publicações e congressos internacionais. No entanto, Paul Topinard – Diretor da Escola de Antropologia de Paris – insurgiu-se contra tal denominação, pois não desejava que a sua disciplina, bastante prestigiada na época, ficasse indelevelmente associada à construção do criminoso nato de Lombroso, da qual discordava. 12. García-Pablos de Molina, Antonio. Tratado de Criminología. 3. ed. Valencia: Tirant lo Blanch, 2003, p. 47. 13. Shecaira, Sérgio Salomão. Criminologia. 2. ed., rev. S. Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, p. 48. 14. Cf. García-Pablos de Molina, Antonio. Principales centros de interés de la investigación criminológica. In: Estudos em homenagem ao Prof. Doutor Jorge de Figueiredo Dias. Vol. III. Coimbra: Coimbra Ed., 2010, p. 1279. 15. Ceretti, Adolfo. El horizonte artificial. Problemas epistemológicos de la criminología. Montevideo: B de F, 2008, p. 103. 16. Hassemer, Winfried; Muñoz Conde, Francisco. Introducción a la Criminología. Valencia: Tirant lo Blanch, 2001, p. 117. 17. Cid Moliné, José; Larrauri Pijoan, Elena. Teorias criminológicas. Explicación y prevención de la delincuencia. Barcelona: Bosch, 2001, p. 255. 17
Curso de Direito Penal | Parte Geral
Por ocasião do 2o Congresso Internacional de Antropologia Criminal (Paris, 1889), Topinard pediu a palavra e fez um veemente apelo para que “deixassem em paz” a sua disciplina, argumentando que antes de se estudar as “características patológicas do homem”, seria necessário que se estudasse suas “características positivas” e o “valor do homem em sociedade”. Propôs, em tons dramáticos, que aqueles congressistas adotassem, para a “nova escola”, o título da obra que havia sido publicada, em 1885, pelo Barão Rafaelle Garofalo (La Criminologie), pois, no seu entender mais “legítimo”, “adequado” e “original”, o que, de fato, foi aceito por todos.18 2.4.1. A necessária integração entre Direito Penal e Criminologia
Durante muitos anos perdurou uma disputa entre as chamadas Escolas Penais, ou seja, entre autores do Direito Penal e da Criminologia, cada qual considerando a outra como ciência meramente auxiliar. Contudo, a correta orientação, na atualidade, está em considerar que, apesar de conservar suas respectivas autonomias e seus respectivos métodos científicos (dedutivo e indutivo, respectivamente), a relação entre ambas deve ser de respeito e recíproca troca de informações. Neste sentido, a separação entre Criminologia e Direito Penal é muito mais aparente do que real. Não parece justificável que, em nome da autonomia científica, sejam apartadas radicalmente. Ressalte-se que não existe problema jurídico-dogmático que não requeira um conhecimento de suas bases criminológicas.19 Deve-se, assim, incentivar a integração entre Direito Penal e Criminologia, conservando, evidentemente, cada qual, a sua autonomia científica. Em outros termos, ambas as disciplinas devem trabalhar para o entendimento global da delinquência e dos problemas atuais de uma sociedade, que é complexa e está em rápida transformação. Sendo assim, deve ser enfatizado que a compreensão de termos legais ou doutrinários depende, amiúde, de aportes empíricos, como, v.g., a discussão sobre insanidade, embriaguez, doença mental, dentre outros. Até mesmo questões ainda mais corriqueiras, como a noção do que seja um processo mental regular ou os aspectos intelectivo e volitivo do dolo demandam informações psicológicas provenientes da Criminologia.20 Em síntese, há uma frase de Jescheck que bem resume as relações e o significado entre ambas: “o Direito Penal sem a Criminologia é cego e esta sem aquele carece de limites”.21
18. Cf. Pires, Álvaro P. Op. cit., p. 53-54. 19. Morillas Cueva, Lorenzo. Metodología y Ciencia Penal. Granada: Universidad de Granada, 1990, p. 316. 20. Hall, Jerome. General Principles of Criminal Law. 2nd ed. Indianapolis: Bobbs-Merrill, 2009, p. 601. 21. Jescheck, Hans-Heinrich; Weigend, Thomas. Op. cit., p. 45. 18
Capítulo II | A ciência conjunta do Direito Penal
2.5. Direito de Execução Penal, Direito Penitenciário e Penologia
P
o Direito de Execução Penal é um desdobramento do Direito Penal. De fato, após a aplicação definitiva da pena, isto é, depois de constatada a ocorrência de crime, a autoria delitiva e a fixação da sanção penal, inicia-se a fase executória, competindo, sem solução de continuidade, ao Direito de Execução Penal, efetivar o dispositivo contido na sentença condenatória (art. 1o da Lei de Execução Penal). Objetiva, ainda, a execução penal, proporcionar a reinserção social do condenado, sendo esta – a chamada prevenção especial – um dos objetivos da pena criminal, conforme anteriormente exposto. As espécies de pena, os regimes prisionais, a suspensão condicional da pena, o livramento condicional, os próprios direitos do apenado, são questões tratadas indistintamente pelos Direitos Penal e de Execução Penal. Diante de tudo isso, é indiscutível a estreita relação entre esses dois ramos jurídicos. O Direito da Execução Penal, de maneira geral, engloba o que se convencionou chamar de Direito Penitenciário, que é expressão mais antiga. O Direito Penitenciário corresponde ao funcionamento dos estabelecimentos penitenciários, descreve as condições de detenção, os direitos e deveres do condenado, o seu regime disciplinar, a manutenção de seus laços familiares etc. O Direito Penitenciário é, desta maneira, mais restrito que o Direito da Execução Penal, já que trata apenas da questão do cárcere.22 Já Penologia é um termo utilizado a partir de uma visão mais criminológica da pena, isto é, sentido e finalidade da pena. É termo em relativo desuso, tendo sido substituído por Direito da Execução das Penas. ode-se afirmar que
2.6. Ciências auxiliares
D
certas disciplinas que servem à aplicação prática do Direito Penal, bem como à investigação criminal. Tais disciplinas, entre outras, são: a medicina legal, a psicologia judiciária e a criminalística.23 Medicina legal é o conjunto de conhecimentos médicos utilizados na aplicação do direito. Não é apenas útil ao Direito Penal, mas também aos demais ramos do direito. Pode ser encontrada, por exemplo, na verificação da sanidade mental, para fins de declaração de incapacidade para os atos da vida civil e nos exames de acidentes de trabalho, para fins de indenização. Por sua vez, psicologia judiciária ou psicologia forense é a psicologia aplicada em relação às pessoas que participam do processo penal, sendo especialmente utilizada na avaliação da credibilidade do testemunho. Por fim, criminalística é o nome que se dá à técnica que resulta da aplicação de várias ciências à investigação criminal, na descoberta de crimes e identificação de criminosos. enominam-se ciências auxiliares,
22. Mirabete, Julio Fabbrini. Execução Penal. 9. ed. São Paulo: Atlas, 2000, p. 20. 23. Fragoso, Heleno Cláudio. Op. cit., p. 21. 19
título
I
capítulo
Q U E S TÕ E S F U N D A M E N TA I S D O D I R E I TO P E N A L
III
HISTÓRIA GERAL DO DIREITO PENAL 3.1. Considerações gerais
A
Penal é, sem dúvida, um setor da história da humanidade. Por conta de tal amplitude, não se pode oferecer aqui mais do que uma breve referência, enfatizando ora a punição, ora a construção teórica do conceito de delito. Tem-se que não se pode desprezar a perspectiva histórica, pois, como bem disse Franz von Liszt, os caminhos trilhados, ao longo dos tempos, pelo Direito Penal, indicarão a direção futura que é dado a ele esperar.2 Além disso, a história do Direito Penal cumpre outras relevantes funções. Por um lado, constitui-se um instrumento útil para se evitar a autossuficiência e o unilateralismo teórico e metodológico.3 Feitos os necessários esclarecimentos, observa-se que, nos primórdios da humanidade, o Direito Penal possuía acentuados traços religiosos, sendo o delito a violação de um tabu ou a perturbação da paz, e a pena a restauração da tranquilidade social e religiosa.4 história do Direito 1
1. Radbruch, Gustav; Gwinner, Enrique. Historia de la criminalidad. Trad. Arturo Majada. Barcelona: Bosch, 1955, p. 10. 2. Liszt, Franz von. Op. cit., p. 5. 3. Dias, Jorge de Figueiredo; Andrade, Manuel da Costa. Criminologia. 2. ed. Coimbra: Coimbra Ed., 1997, p. 5. 4. Nesse sentido: Souza, Artur de Brito Gueiros. Presos estrangeiros no Brasil. Aspectos jurídicos e criminológicos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 105 e segs. 20
Capítulo III | História geral do Direito Penal
Observa-se, assim, que o Direito Penal surgiu quando, diante de um determinado fato, o agrupamento social reagiu não de forma irracional, por mera vingança, mas, ao contrário, por intermédio de uma modalidade institucionalizada de reação buscando o retorno à tranquilidade social. Não se deve, portanto, confundir pena com mera vingança.5 Sendo assim, as primeiras modalidades de penas de que se tem registro foram a perda da paz e a vingança do sangue. A primeira era aplicada ao membro do grupo que infringisse uma determinada norma, e consistia na sua exclusão do coletivo, ou seja, a sua excomunhão. Com a perda da paz, o indivíduo deveria fugir para a floresta inóspita pois, do contrário, poderia ser morto por qualquer membro do grupo. Qualquer um poderia ser o seu carrasco.6 A segunda sanção, a vingança do sangue, era destinada ao estranho que vinha de fora infringir a norma do agrupamento social primitivo. No caso, a punição se caracterizava como luta contra o estrangeiro. Era exercida tribo a tribo até que sucumbisse uma das partes contendoras ou a luta cessasse por esgotamento das forças de ambas.7
3.2. Direito Penal da Antiguidade
O
fragmentos das legislações da Antiguidade, como, por exemplo, na China, no Egito e nos povos fenício e hebreu, demonstram o desaparecimento daquelas formas primitivas de manifestação do Direito Penal, passando o magistério punitivo a ser efetivado com a pena de morte monopolizada pelo Estado. A pena de morte representou, paradoxalmente, uma evolução do Direito Penal, pois era uma modalidade de sanção penal mais branda que as anteriores, na medida em que se encontrava submetida a critérios e limites formais, não atingindo, assim, os demais membros da família ou clã do condenado. Na Antiguidade, a execução do condenado se dava na forca, cruz, serra, fogo, apedrejamento, espada, afogamento, roda, esquartejamento, animais ferozes, flecha, martírio com espinhos, pisoteio de quadrúpedes, quedas em precipícios e outras.8 Talvez a primeira grande inovação em matéria penal surgida na Antiguidade tenha sido a “lei do talião”, encontrada no Código de Hammurabi, na Babilônia, no Código de Manu indiano, na Lei das XII Tábuas romana, na legislação mosaica, entre outros. s vestígios e
5. Em sentido inverso, Rudolf von Ihering identifica no gesto humano da vingança a origem da pena criminal: “No início do direito, a noção da pena reina soberanamente; manifesta-se em cada parte do direito, penetrando mais ou menos profundamente em todas as relações jurídicas. Mais tarde, o campo da ação da pena se restringe e a noção se apura; é o que denota o progresso do direito (...). Esta conclusão nos revela um dos fatos mais interessantes que a história do direito pôde apresentar para a educação dos povos: o progresso realizado pelo homem que, tendo partido da paixão selvagem, da vingança cega, acaba por chegar à moderação, ao império sobre si mesmo, à justiça.” (Apud Pereira, José Hygino Duarte. Prefácio do tradutor ao Tratado de direito penal alemão. Liszt, Franz von. Op. cit., p. 6). 6. Souza, Artur de Brito Gueiros. Presos estrangeiros... cit., p. 107. 7. Liszt, Franz von. Op. cit., p. 7. 8. Cf. Shecaira, Sérgio Salomão; Corrêa Jr., Alceu. Teoria da Pena. Finalidades, direito positivo, jurisprudência e outros estudos de ciência criminal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 27-28. 21
Curso de Direito Penal | Parte Geral
A lei do talião, que previa o famoso “olho por olho, dente por dente”, estabeleceu, pela primeira vez, a ideia de proporcionalidade entre crime e pena, limitando, desta maneira, a vingança privada. Na Grécia Antiga, nos muitos séculos em que vicejou a civilização helênica, preponderou a cominação e a aplicação da pena de morte. Existia – é certo – uma variedade de outras sanções que poderiam ser aplicadas conforme a natureza do crime bem como o status do condenado (cidadão livre, escravo ou estrangeiro). O célebre julgamento de Sócrates retratou bem aquele rol de opções. Acusado de corromper a juventude e de crer em deuses novos e não nos deuses reconhecidos pela Pólis, Sócrates foi levado a um júri formado por 500 cidadãos de Atenas, num julgamento que, segundo as leis da época, transcorria num único dia. Em seu discurso de defesa – reproduzido por Platão – ele pediu aos juízes tolerância com sua linguagem e justiça para com suas palavras.9 Entretanto, ele foi considerado culpado, apesar da estreita margem de trinta votos a seu desfavor. Foi-lhe, então, dada a prerrogativa de escolher a própria punição. Seus acusadores propuseram a pena de morte e Sócrates discutiu a possibilidade de sofrer as penas de prisão, multa ou exílio, rejeitando-as ao final. Provavelmente porque ele próprio rejeitou as alternativas existentes na legislação de Atenas, o júri o condenou à morte por ingestão de veneno, ou seja, ao suicídio compulsório.10 Na Roma Antiga, no longo período em que se estendeu o poder da Urbe, o crime era concebido como um atentado contra a ordem jurídica estabelecida e guardada pelo Estado, sendo a pena de morte a principal reação punitiva. Previa-se a pena contudo, para crimes públicos e delitos privados, cuja diferença era fundamentalmente por conta do processo, com acusação pública no primeiro caso e privada no segundo. De todo modo, era composto de variadas sanções, como penas capitais e corporais, de penas privativas da liberdade com ou sem trabalho forçado, de penas infamantes e de penas sobre os bens. O que era claro em qualquer das hipóteses era a tendência ao excessivo rigor nas reprimendas penais.11 As Leis das Doze Tábuas, editadas em 451 a.C., contemplavam formas severas de punição. Por outro lado, a única previsão de privação da liberdade naquele documento histórico ocorria com relação à dívida.12 A tônica, contudo, era a pena de morte, executada de forma atroz e precedida de inúmeros suplícios. Por todos, o exemplo maior da Paixão de Cristo. Conforme se pode observar, considerando os vestígios jurídicos disponíveis, o Direito Penal da Antiguidade ficou marcado pela aplicação em larga escala da pena capital. Observa-se, ainda, que não se utilizava, em regra, a pena de privação da 9. Cf. Platão. Defesa de Sócrates. In: Os Pensadores. São Paulo: Nova Cultural, 1987, p. 5. 10. Peters, Edward M. Prison before the Prison. The Ancient and Medieval Worlds. In: The Oxford History of the prison. The Practice of Punishment in Western Society. Morris, Norval; Rothman, David J. (Org.). N. York: Oxford University Press, 1998, p. 6. 11. Liszt, Franz von. Op. cit., p. 17. 12. Peters, Edward M. Op. cit., p. 14. 22
Capítulo III | História geral do Direito Penal
liberdade, na medida em que a prisão era tida como simples local de custódia do réu, convertendo-se numa antecâmara de suplícios, onde os acusados esperavam, geralmente em condições subumanas, a imposição da sanção a que fossem condenados. 13
3.3. Direito Penal na Idade Média
T
a queda do Império Romano e as invasões bárbaras no continente europeu, pode-se dizer que se iniciou, em meados do século V, a Idade Média.14 Pode-se dizer também que, em larga medida, preponderou, na Idade Média, a influência do Direito Germânico, sendo a principal manifestação do Direito Penal o retorno da aplicação da pena da perda da paz, modalidade punitiva que “retirava a proteção social do condenado, possibilitando que qualquer pessoa o agredisse ou matasse impunemente”.15 No mesmo sentido, Nilo Batista salienta que a perda da paz (Friedlosigkeit) significava que o culpado não merecia mais integrar o seu ou qualquer outro grupo associado ao Bund, e poderia (deveria) ser morto impunemente. A perda da paz poderia atingir também qualquer parente próximo do autor consabido da ofensa. O homem sem paz (Friedlos) se convertia num estranho, e só lhe restava uma sobrevivência solitária e errante.16 É certo que aquele que conseguia escapar, retornava, furtivamente, à aldeia, em busca de alimento e proteção ante os perigos da floresta, para lá retornando antes do raiar do dia. Se, com a punição, o condenado perdia o status de homem, adotando como “pátria” a floresta – transformando-se numa espécie de lobo, isto é, no “homem-lobo” ou “lobisomem” –, fato é que ele retornava, na calada da noite, furtivamente, conquanto as pessoas somente percebessem a sua assustadora presença nas noites claras de lua cheia.17 omando como referência
13. Peña Mateos, Jaime. Antecedentes de la prisíon como pena privativa de libertad en Europa hasta el siglo XVII. In: Historia de la Prisión. Madrid: Edisofer, 1997, p. 64. 14. Sobre o tema, vide Pimentel, Manoel Pedro. Ensaio sobre a pena (1a Parte). Revista dos Tribunais. São Paulo, out. /1996, p. 774. 15. Shecaira, Sérgio Salomão; Corrêa Jr., Alceu. Op. cit., p. 30. 16. Batista, Nilo. Matrizes Ibéricas do sistema penal brasileiro. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 2000, p. 36. 17. Nesse sentido: “O proscrito é eliminado da comunhão da paz e do direito. A ordem jurídica não existe para ele. É o ex lex, o utlah do direito saxônio, o exul et profugus da lei sálica. Se a faida (fehde) é a inimizade da parentela autorizada a exercer a vindita, a privação da paz é a inimizade de todo o povo. Cada um não só pode como deve persegui-lo. Se o matam, o matador fica a salvo de multa. Quem o mata, obra em nome e no interesse da coletividade, cuja vontade executa. Ninguém pode abrigá-lo, alimentá-lo, socorrê-lo. Este preceito prevalecia também em relação à mulher e aos parentes. A privação da paz dissolvia tanto o parentesco como o vínculo conjugal. A mulher tornava-se viúva, os filhos eram considerados como órfãos. A pena não afetava somente a pessoa, mas também o patrimônio. Os bens do proscrito eram confiscados em proveito do rei ou da coletividade, ou repartidos entre ambos. O proscrito não podia ‘habitare inter homines’. Para escapar à morte devia fugir, se lhe era dado fugir. Tinha por pátria a floresta; é o waldgänger, o ‘homo qui per silvas vadit ’. A expressão comum com que o designavam era vare, warg, wargus, o que significava würger, o lobo. O proscrito ‘gerit caput lupinum’. Com isso queria-se significar que, como o lobo, ele era o inimigo de todos e podia ser impunemente morto por qualquer. Nos forais portugueses dos séculos XII e XIII encontram-se vestígios da pena de proscrição. A crendice do lobis-homem, vulgarizada no baixo povo, lembra o wargus, comparado ao lobo noturno.” (Pereira, José Hygino Duarte. Op. cit., p. 6) (grifos do original). 23
Curso de Direito Penal | Parte Geral
Além do Direito Germânico, deve-se enfatizar a enorme influência, naquela época, proporcionada pelo Direito Canônico, diante do poder cada vez maior da Igreja, cujos veredictos eclesiásticos eram executados por tribunais civis. Para a Igreja, a pena possuía caráter sagrado e marcadamente retributiva, porém com preocupações de correção do infrator. O Direito Penal Canônico, portanto, consolidou a pena pública, em oposição à vingança privada, característica do Direito germânico.18 A partir do século XII, surgiu a era dos glosadores, onde se procedeu a um profundo trabalho de reinterpretação dos velhos textos imperiais da Antiguidade, que acarretou a renovação do prestígio do Direito Romano. Daquele trabalho de compilação decorreu uma corrente doutrinária que viria a se constituir num dos pilares do chamado Direito Penal Comum, corrente esta integrada pelos práticos, pós-glosadores e comentaristas. Estes, embora tomassem por base o Direito Romano e o Corpus Juris, foram influenciados pelo Direito Germânico, pelo Direito eclesiástico e pelos costumes vigentes na prática judiciária.19 Percebe-se, dessa forma, que o Direito Penal Comum, vigente ao longo da Idade Média, foi forjado por um conjunto de fontes inter-relacionadas: Direito Germânico, Direito Canônico e Direito Romano. Não obstante, é forçoso reconhecer que se tratou de uma época bastante confusa na história do Direito Penal, devido ao declínio ou o progresso do poder público.20 O período do chamado Direito Penal Comum caracterizou-se por um arbítrio judicial praticamente sem limites, não só na determinação da pena como ainda, muitas vezes, na definição dos crimes. Ademais, havia clara desigualdade de punição para nobres e plebeus e a pena de morte era aplicada frequentemente e executada por meios brutais e atrozes, tais como a forca, a fogueira, a roda, o afogamento, o estrangulamento, o arrastamento, o arrancamento das vísceras, o enterramento em vida, o esquartejamento, as torturas, as mutilações, as penas infamantes e a pena privativa da liberdade.21 Deve-se ressaltar que o regime da penitência desenvolvido pela Igreja na Idade Média, serviu de inspiração para as modificações que se seguiram nas práticas punitivas das sociedades ocidentais. Com efeito, a penitência no claustro (na cela ou célula) foi uma punição mais branda que o regime atroz que se praticava no Direito Penal Comum. Existiam, ainda, os chamados cárceres subterrâneos que se tornaram célebres com a expressão vade in pace – denominação decorrente do fato de que, com tais palavras, se despediam dos condenados que nele entravam e não mais saíam. Eram, enfim, masmorras subterrâneas onde os réus eram baixados por meio de escadas ou cordas e impedidos de retornar à superfície.22
18. 19. 20. 21. 22. 24
Shecaira, Sérgio Salomão; Corrêa Jr., Alceu. Op. cit., p. 31. Bruno, Aníbal. Direito Penal. Parte Geral. Tomo I. 4. ed. Rio: Forense, 1984, p. 87. Liszt, Franz von. Op. cit., p. 29. Bruno, Aníbal. Direito Penal. Op. cit., p. 88-89. Cf. Peña Mateos, Jaime. Op. cit., p. 70.
Capítulo III | História geral do Direito Penal
3.4. A Modernidade e o surgimento da prisão como pena
C
de Constantinopla, surgiu a Idade Moderna. Essa nova era caracterizou-se pelo surgimento dos chamados Estados Nacionais Modernos e pelos descobrimentos, com a consequente expansão colonial. Nessa era também houve inúmeras guerras religiosas, fome e miséria. Como resultado de tais catástrofes, a pobreza se generalizou, fazendo com que a delinquência se alastrasse pela Europa. Diante disso, iniciou-se um grande movimento de criação e construção de estabelecimentos para abrigar os condenados por delitos menores. Surgiram, enfim, as casas de correção, edificações destinadas a recolher mendigos, vadios, prostitutas e jovens rebeldes de todas as origens, que povoavam as principais cidades do Velho Continente. As primeiras casas de correção surgiram no século XVI, na Inglaterra e na Holanda. A mais antiga delas foi a House of correction de Bridwell, em Londres (1552), criada com o objetivo de corrigir pobres infratores que, estando aptos para o trabalho, se mostrassem recalcitrantes para tanto. O sustento desses indivíduos era feito por meio da cobrança de um imposto conforme os estatutos de sua fundação. Esta experiência foi reproduzida em outras cidades inglesas, onde eram internadas as pessoas oriundas da escala mais débil do mundo da criminalidade, submetendo-as ao tratamento de reforma.23 No início do século XVII, uma lei inglesa passou a impor multa de cinco libras ao juiz que não houvesse instalado uma casa de correção dentro de sua jurisdição, fato este que, agregado à expansão têxtil – a principal atividade desenvolvida nas Bridwells –, impulsionou seu desenvolvimento.24 Num segundo momento, uma lei de 1670 definiu outro tipo de estabelecimento, denominado workhouse, que substituiria com maior sucesso as houses of corrections. O primeiro deles surgiu em 1697. Outro se estabeleceu em 1707 em Worcester e, após, em Dublin, Plymouth, Norwich, Hull e Exeter.25 Paralelamente, na Holanda produziu-se um acontecimento singular na história das práticas punitivas. Em 1596 criaram-se as famosas casas correcionais de Amsterdã, denominadas Rasphuis, para homens, e Spinhuis, para mulheres, sendo certo que as primeiras receberam tal denominação porque a árdua atividade laborativa que lhes era imposta consistia em raspar toras de madeiras para serem empregadas na manufatura de corantes, em especial o pau-brasil, fornecido por Portugal.26 om a queda
23. Idem, p. 73. 24. Idem, p. 73. 25. Bitencourt, Cezar Roberto. Falência da pena de prisão. Causas e alternativas. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 17. Outrossim, conforme dados coligidos por Randall McGowen, ao final do século XVII, cerca de 170 estabelecimentos desse tipo haviam sido abertos em toda a Grã-Bretanha. McGowen, Randall. The Well-Ordered Prison: England, 1780-1865. In: The Oxford History of the prison. The Practice of Punishment in Western Society. Morris, Norval; Rothman, David J. (Org.). N. York: Oxford University Press, 1998, p. 75. 26. Cf. Zaffaroni, E. Raúl; Batista, Nilo; Alagia, Alejandro; Slokar, Alejandro. Direito Penal Brasileiro. 1. Vol. Rio de Janeiro: Revan, 2003, p. 412. 25
Curso de Direito Penal | Parte Geral
A relevância desses estabelecimentos residiu no fato de que, pioneiramente, eles foram especificamente concebidos para o fim de reformar o condenado nacional ou forasteiro por meio do trabalho constante e ininterrupto e pela instrução religiosa.27 Entretanto, como característico em uma era de transição, o sistema de penas era caracterizado por penas pecuniárias, penas corporais e pena capital. Aliás, a pena de morte era largamente aplicada no cotidiano judicial, alternativamente, contudo, com outras sanções igualmente atrozes, como a deportação e as galés, que consistiam na obrigação de remar em navios de guerra, acorrentando o condenado aos bancos de seus porões.28 Em que pese essa complexa realidade, é certo que o intenso movimento de construção ou adaptação de prédios para o funcionamento das casas de correção dos apenados revestiu-se de grande importância na trajetória do Direito Penal e do Direito de Execução Penal. Isto porque, afora aparições esporádicas em épocas passadas, somente com a criação das houses of corrections ou workhouses, na era Moderna, é que a prisão passou a desempenhar a função de emenda do delinquente e, por isso, pode-se dizer que marcou o surgimento da pena privativa de liberdade moderna.29 Apesar da busca da reforma do delinquente, para este as três principais atividades lá desenvolvidas eram trabalho, oração e preparação para a fuga. Com relação a esta última, tem-se que, apesar de existirem registros de revoltas, a preparação para a fuga representava, de longe, a mais elementar atividade subversiva e o núcleo de uma subcultura carcerária, ainda que as fugas bem-sucedidas raramente acontecessem.30 Nessa altura da análise sobre a evolução do Direito Penal, uma das questões mais instigantes é, sem dúvida, o porquê da paulatina retirada da pena de morte do epicentro do sistema penal e sua substituição pela prisão, não mais como custódia, mas, sim, como modalidade de sanção penal. Com efeito, a pena de morte revelou-se incapaz de reduzir a criminalidade que eclodia por conta da miséria que assolava a Europa, “além de ser, em alguns casos, completamente inoperável devido ao excessivo número de réus”.31 27. Bitencourt, Cezar Roberto. Falência da pena de prisão..., cit., p. 18. 28. Shecaira, Sérgio Salomão; Corrêa Jr., Alceu. Teoria da pena..., cit., p. 32. Sobre a pena de galés, Georg Rusche e Otto Kirchheimer observam que o “trabalho compulsório nas galés persistiu mesmo após o fim do sistema econômico no qual baseava-se, a escravidão, em função da natureza vil e arriscada do trabalho, tornando difícil o recrutamento de homens livres. A necessidade de remadores mostrou-se particularmente urgente em fins do século XV, devido ao estopim de um período de guerras navais entre as potências cristãs e maometanas mediterrâneas. Estas guerras deram ímpeto para a velha prática de recrutamento de remadores entre prisioneiros. O número de homens necessários para um só navio era muito grande, de trezentos e cinquenta para as galés grandes, chamadas galéasse, e cento e oitenta para os barcos menores.” (Rusche, Gerg; Kirchheimer, Otto. Punição e estrutura social. Trad. Gizlene Neder. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1999, p. 76). A pena de deportação foi, igualmente, sistematicamente utilizada pelas metrópoles europeias, que embarcavam contingentes de criminosos para colônias e destacamentos militares distantes, como verificado na Inglaterra para América do Norte (até a independência dos Estados Unidos) e, posteriormente, para a Austrália; em Portugal para o Brasil e a África; na Espanha para determinados territórios; e, ainda, na Rússia para a Sibéria (Cf. Sutherland, Edwin H.; Cressey, Donald R. Op. cit., p. 289). 29. Bitencourt, Cezar Roberto. Op. cit., p. 18. 30. Spierenburg, Pieter. The Body and the State: Early Modern Europe. In: The Oxford History of the prison. The Practice of Punishment in Western Society. Morris, Norval; Rothman, David J. (Org.). N. York: Oxford University Press, 1998, p. 65. 31. Shecaira, Sérgio Salomão; Corrêa Jr., Alceu. Teoria da pena..., cit., p. 34. 26
Capítulo III | História geral do Direito Penal
Politicamente, a pena de morte já não atendia ao propósito de reforçar o poder absoluto do monarca, sendo, ao revés, cada vez mais temerário para o establishment o espetáculo da execução pública, ante as reações violentas e descontroladas da turba que presenciava aquele ato.32 Assim, com a chegada da burguesia ao poder, uma nova estratégia de controle social ganhou força: a disciplina. O enfoque passou, pois, da intervenção sobre a pessoa do condenado para incidir sobre o seu espírito.33 Intrinsecamente relacionado com a ascensão da burguesia ao poder, ocorreu uma mudança de atitude para com a pobreza e a ociosidade. Até a Idade Média, o poder público, os religiosos e o cidadão comum associavam a pobreza a algo sagrado, falava-se em pobres de Jesus. Entretanto, no século XVI, uma nova atitude emergiu e a pobreza passou a ser vista como uma ameaça à estabilidade social. O ocioso passou a ser visto como um suspeito, um estranho à nova ordem. O poder público passou a tolerar somente a ociosidade dos doentes, dos deficientes e dos idosos. Todos os outros passaram a ser obrigados a trabalhar, justificando-se a adoção de trabalhos forçados. Aliás, tal medida surgiu como medida disciplinar e não penal.34 Conclui-se, assim, com a observação de Shecaira e Corrêa Jr., no sentido de não vincular o surgimento da prisão-pena somente à uma circunstância isolada – como, por exemplo, o viés ideológico da classe burguesa. Segundo eles, as principais causas explicativas desse fenômeno foram: (1) a valorização da liberdade e destaque para a racionalismo a partir do século XVI; (2) a necessidade de ocultação do castigo para evitar a disseminação do mal causado pelo delito; (3) o aumento da pobreza e da mendicância causadas pelas mudanças socioeconômicas e ineficácia da pena de morte; (4) razões econômicas da classe burguesa em ascensão, que precisava ensinar o modo de produção capitalista e, ao mesmo tempo, controlar os trabalhadores, além de garantir mão de obra barata em épocas de pleno emprego e altos salários.35
32. Foucault, Michel. Vigiar e punir. Nascimento da prisão. Trad. Raquel Ramalhete. 12. ed. Petrópolis: Vozes, 1995, p. 53-58. Michel Foucault ilustra o quão subversivo esse ritual poderia se tornar com os chamados discursos do cadafalso, isto é, as últimas palavras do condenado. Verbis: “Em suas formas mais elementares, essas agitações começam com os encorajamentos, as aclamações às vezes, que acompanham o condenado até a execução. Durante toda a sua longa caminhada, ele é sustentado pela ‘compaixão dos que têm coração sensível’, e os aplausos, a admiração, a inveja dos que são ‘cruéis e duros’. Se a multidão se comprime em torno do cadafalso, não é simplesmente para assistir ao sofrimento do condenado ou excitar a raiva do carrasco: é também para ouvir aquele que não tem mais nada a perder maldizer os juízes, as leis, o poder, a religião. O suplício permite ao condenado essas saturnais de um instante, em que nada mais é proibido nem punível. Ao abrigo da morte que vai chegar, o criminoso pode dizer tudo, e os assistentes aclamá-lo.” (Idem, p. 55). 33. Idem, p. 91-92. 34. Spierenburg, Pieter. The Body and the State..., cit., p. 59-60. 35. Shecaira, Sérgio Salomão; Corrêa Jr., Alceu. Teoria da pena..., cit., p. 35. Considera-se interessante ilustrar o fenômeno da valorização da liberdade como bem maior para o homem da era moderna com as palavras daquele que, talvez, tenha inaugurado a própria literatura moderna: Miguel de Cervantes – ele próprio privado da liberdade como prisioneiro de guerra: “A liberdade, Sancho, é um dos mais preciosos dons que os céus deram aos homens; com ela não se igualam os tesouros que nem a terra ou o mar encobrem; pela liberdade, assim como pela honra, se pode e se deve aventurar a vida e, ao revés, o cativeiro é o maior dos males que pode acontecer com os homens.” (Cervantes, Miguel de. Don Quijote de la Mancha. Ed. del IV Centenario. Madrid: Real Academia, 2005, p. 984-985). 27
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3.5. O período reformador
N
eclodiu o movimento conhecido como Ilustração ou Iluminismo, que teve forte influência no Direito Penal, com a formulação de severas críticas às práticas punitivas então vigentes. Dentre os inúmeros pensadores que, sob o influxo da renovação, propugnaram por mudanças no magistério punitivo e nas péssimas condições dos cárceres, ressalta-se, em particular, os nomes de Cesare Beccaria, John Howard e Jeremy Bentham. o século XVIII,
3.5.1. A Ilustração e Cesare Beccaria
Cesare Bonesana, o Marquês de Beccaria, tinha 27 anos de idade quando publicou, sob o anonimato, o pequeno, porém fundamental livro, Dei delitti e delle pene (1764). Em poucas palavras, pode-se dizer que o livro de Beccaria apresentou uma proposta político-criminal de abrandamento e racionalidade das leis penais e dos seus meios interpretativos, dirigindo contundente crítica às arbitrárias práticas judiciais da época. Em pouco tempo, aquela obra provocou entusiasmo por toda a Europa e suas propostas influenciaram tanto juristas quanto monarcas e legisladores. À título ilustrativo, Catarina da Rússia, nas suas Instruções (1767) à Comissão para a reforma das leis penais quase que transcreve as páginas de Beccaria; Leopoldo da Toscana promulga a reforma de 1786, que dele acolhe as propostas mais radicais, a principiar pela pena capital; no Reino das Duas Sicílias, foi imposta a motivação das sentenças, conservava a tortura, mas esta depressa foi abolida pela ordenança militar de 1789; Giuseppe II de Áustria (1787) abole a pena de morte (exceto para os crimes militares); Frederico, o Grande, com as Allgemeines Landrecht extingue a tortura (1794) e a Revolução Francesa, na Declaração dos Direitos do Homem, em vários de seus dispositivos incorpora literalmente ideias de Beccaria.36 O pensamento de Beccaria, apesar de não ser original, se consideradas as ideias já difundidas por Hobbes, Locke, Montesquieu e Rousseau – ele próprio admitia ter seguido as ideias de Montesquieu37 –, procedeu à associação entre o contratualismo, quanto à fonte do Poder Público, e o utilitarismo, quanto à finalidade punitiva. Da sua obra podem ser extraídos, dentre outros, os seguintes postulados: (1) a soberania provém do contrato social; (2) as penas devem ser moderadas e restritas ao mínimo necessário para a convivência humana; (3) o princípio da legalidade dos crimes e das penas deve vigorar na sociedade; (4) a pena de morte, as torturas como meio de prova e os atos judiciais inquisitoriais devem ser abolidos; (5) o magistrado deve-se limitar à fiel aplicação da lei penal; as normas penais devem ser claras e a justiça penal deve ser pública; (6) o castigo deve servir à emenda do condenado e à dissuasão de seus patrícios do caminho do crime.38 36. Ferri, Enrico. Princípios de Direito criminal. Trad. Luiz L. D’Oliveira. São Paulo: Saraiva, 1931, p. 28. 37. Beccaria, Cesare. Dos delitos e da penas. Trad. Torrieri Guimarães. São Paulo: Hemus, 1983, p. 112. 38. Para María Asunción Moreno Castillo, as principais ideias de Beccaria foram: “a proscrição da tortura judicial e de todo o 28
Capítulo III | História geral do Direito Penal
Beccaria não deixou de denunciar o horror e a crueldade dos cárceres de seu tempo39 e teve o mérito de se expressar de maneira clara e se dirigir ao grande público e não a um grupo limitado de pessoas.40 3.5.2. A influência de John Howard
Na mesma época em que as palavras de Beccaria ecoavam em muitos lugares, o sistema penal do Império Britânico vivia um agudo momento de crise, agravada, basicamente, pelo sucesso da Revolução Americana (1776), que privou o Reino do seu principal escoadouro de delinquência. Na ocasião, vários especialistas passaram a criticar as instituições inglesas, em especial as, àquele tempo, velhas, infectas e superpovoadas houses of corrections. Imbuídos de um forte sentimento religioso, agregado a um espírito utilitarista, os reformadores ingleses acreditavam que a prisão deveria ser mantida, não como lugar de depósito ou passagem de presos, mas sim de saúde do corpo e correção da alma. A prisão era a modalidade de pena criminal que mais refletia a vontade de Deus, superando, portanto, a inutilidade da forca ou da deportação; necessitava, contudo, ser reformada. Embora existissem obras onde se discutiam os vários contornos da vida carcerária – educação religiosa, trabalho, severidade dos castigos etc. –, o livro que maior impacto causou na sociedade inglesa foi escrito em 1777, por John Howard: The State of the Prisons in England and Wales. O autor, que sofrera os dissabores do cárcere estrangeiro, após ter sido lançado nas prisões dos piratas, conseguiu, com sua investigação, popularizar – de forma semelhante à que foi feita no Continente por Beccaria – o debate sobre a reformulação das práticas punitivas.41 Tal se deu porque, enquanto seus conterrâneos se detinham em longos e tediosos detalhes, Howard registrava, de maneira simples e direta, mas com tintas carregadas de paixão, o resultado das suas investigações sobre as condições de vida em cada uma das prisões que visitara. É de se observar que John Howard era um senhor de meia-idade quando foi nomeado Sheriff do condado de Bedford. Como suas atribuições compreendiam a prisão local, ele tratou logo de ir visitá-la. Desse modo, o que Howard encontrou na prisão o chocou.42 A proposta de John Howard no sentido de uma reforma prisional transformou-se num poderoso mecanismo de intervenção no debate sobre a reformulação das práticas punitivas naquele país e das possíveis alternativas. Com efeito, o livro de Howard criou processo inquisitivo; a personalização da responsabilidade e a humanização das penas; o fim ressocializador da sanção penal, a legalidade dos delitos e das penas e a igualdade de todos os homens perante a Lei.” (Moreno Castillo, María Asunción. Estudio del pensamiento de Cesare Beccaria en la evolución del aparato punitivo. In: Historia de la prisión. García Valdés (dir.). Madrid: Edisofer, 1997, p. 91). 39. Idem, p. 21-22. 40. Bitencourt, Cezar Roberto. Op. cit., p 32. 41. Cf. Ferri, Enrico. Princípios…, cit., p. 29. 42. Cf. McGowen, Randall. The well-ordered prison: England, 1790-1865. In: The Oxford History of the prison. The Practice of Punishment in Western Society. Morris, Norval; Rothman, David J. (Org.). N. York: Oxford University Press, 1998, p. 78-79. 29
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a impressão de que a prisão era a forma natural e inevitável de punição. Da mesma forma, ele pretendeu demonstrar que o aprisionamento na Inglaterra estava crivado de abusos e, com isso, clamava por uma reforma imediata.43 Com Howard nasce o Direito Penitenciário, que, pela primeira vez, foi separado do Direito Penal, admitindo, quanto ao segundo, a manutenção das teses retributiva e intimidativa da pena, e, quanto ao primeiro, a ideologia da transformação do infrator no curso do cumprimento da pena, dotando esta última de um fim reformador.44 3.5.3. Jeremy Bentham e o Panóptico
Outro nome de destaque da época dos reformadores foi o de Jeremy Bentham. Autor de profícua produção científica, Bentham, também nascido na Inglaterra, contribuiu para a história das práticas punitivas em duas frentes: finalidade da sanção penal e ocupação racional dos espaços da prisão. Bentham tratava ambas as questões com seu espírito utilitarista por excelência. Para ele, tudo no universo tem uma finalidade; toda coisa serve (ou desserve) a uma outra; nada vale por si; nada deve ser desperdiçado. Nesse sentido, levando sua filosofia ao extremo, Bentham legou seu cadáver à universidade para dissecação, servindo-se, assim, ao progresso da ciência.45 Quanto à primeira daquelas questões, Jeremy Bentham escreveu sobre os fins da pena por meio de sua teoria da utilidade, conhecida por ser o princípio que aprova ou desaprova toda e qualquer ação, segundo a tendência que pareça ter para aumentar ou diminuir a felicidade da parte cujo interesse está em questão. Segundo ele, por utilidade entende-se a propriedade de qualquer objeto, pela qual ele tende a produzir benefício, vantagem, prazer, bem ou felicidade ou a impedir que aconteça o dano, a dor, o mal ou a infelicidade para a parte cujo interesse está sendo considerado; se essa parte for a comunidade em geral, então a felicidade da comunidade; se um indivíduo particular, então a felicidade desse indivíduo.46 Partindo dessa premissa, o objetivo geral que todas as leis têm – ou deveriam ter – é, para Bentham, o de serem úteis, vale dizer, aumentar a felicidade total da comunidade; e, por conseguinte, em primeiro lugar, excluir, na medida do possível, todas as coisas que tendem a subtrair essa felicidade; em outras palavras, excluir o dano. A aplicação da pena constitui-se, inequivocamente, na imposição de um dano, de um mal. Desse modo, baseando-se naquele princípio, uma lei penal só deve ser admitida na 43. Randall McGowen aduz que, em suas viagens, Howard visitou escolas, hospitais e asilos tanto quanto as prisões. Sua investigação enfatizava menos o caráter das pessoas encarceradas ou a missão da instituição e mais as características comuns a todos esses lugares. Se encontrasse uma instituição bem administrada e limpa, ele ficava cheio de admiração. Ele não tinha mais nada para perguntar aos seus responsáveis. Quando visitava uma prisão, o que ele mais criticava era a evidência de desordem e de desatenção, o descumprimento geral dos regulamentos, a indiscriminada mistura dos presos e a inexistência de limites claros entre o estabelecimento prisional e a comunidade exterior. (ibidem, p. 79). 44. Bitencourt, Cezar Roberto. Op. cit., p. 44. 45. O esqueleto dos ossos de Jeremy Bentham está conservado no Museu de Anatomia da University College de Londres (Cf. Morris, Clarence. Os grandes filósofos do direito: leituras escolhidas em direito. Morris, Clarence (org.). Trad. por Reinaldo Guarany. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 260). 46. Bentham, Jeremy. Uma introdução aos princípios da moral e da legislação. In: Os grandes filósofos do direito..., cit., p. 262. 30
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medida em que objetive excluir da comunidade algum mal maior. Conclui, portanto, Jeremy Bentham – e aqui vai sua grande contribuição ao debate, sempre atual, sobre a finalidade da pena – que, nos seguintes casos, a punição não deve ser imposta: (a) quando for infundada; quando não houver qualquer dano a se impedir, não sendo o ato nocivo no todo; (b) onde ela for ineficaz, quando não puder agir para impedir o dano; (c) quando não for lucrativa, ou for cara demais; quando o dano que ela produziria for maior do que aquele que impediria; (d) quando for desnecessária; quando o dano puder ser impedido ou quando puder cessar por si mesmo, sem ela, a um custo mais barato.47 Além de teorizar sobre a finalidade da pena – e de inventar a palavra “codificação” para o conjunto harmônico e racional de leis48 –, Jeremy Bentham também tratou da questão penitenciária. Urgia, assim, que a prisão fosse fisicamente reformada, transformada num dispositivo que, de resto, serviria, com pequenas adaptações, para fábricas, hospícios, hospitais ou escolas. Ao viajar para a Rússia, onde seu irmão – o engenheiro Samuel – servia ao Príncipe Potemkim, Bentham tomou ciência do plano de construção de uma nova prisão na Inglaterra, tendo aproveitado a oportunidade para teorizar, por meio de correspondências posteriormente consolidadas num tratado, sobre um novo modelo arquitetônico que seu irmão estaria desenvolvendo para aquele Príncipe: o Panóptico ou a Casa de Inspeção. O Panóptico, cujo plano físico é bastante conhecido,49 objetivava, por meio do isolamento, trabalho forçado e fiscalização ininterrupta, tornar útil o tempo do encarcerado na prisão, disciplinando não só todos os presos como, inclusive, os próprios carcereiros.50
3.6. A Escola Cl ássica do Direito Penal
A
Beccaria e as transformações que se seguiram deram origem à fase científica do Direito Penal, por meio do que se convencionou chamar de Escola Clássica do Direito Penal. Segundo Jiménez de Asúa, no coração dessa Escola “palpita a variedade”, ou seja, só existe uma “Escola Clássica” em oposição aos Positivistas, pois diversas eram as correntes, tendências e contradições entre os seus integrantes obra de Cesare
47. Idem, p. 269. 48. Pradel, Jean. Op. cit., p. 651. 49. Cf. descrito pelo próprio Bentham: “O edifício é circular. Os apartamentos dos prisioneiros ocupam a circunferência. Você pode chamá-los, se quiser, de ‘celas’. Essas celas são separadas entre si e os prisioneiros, dessa forma, impedidos de qualquer comunicação entre eles, por ‘partições’, na forma de raios que saem da circunferência em direção ao centro (...). O apartamento do inspetor ocupa o centro; você pode chamá-lo, se quiser, de ‘alojamento do inspetor’. Será conveniente, na maior dos casos, senão em todos, ter-se uma área ou um espaço vazio em toda volta, entre esse centro e essa circunferência. Você pode chamá-lo, se quiser, de área ‘intermediária’ ou ‘anular’. (...) Cada cela tem, na circunferência que dá para o exterior, uma ‘janela’, suficientemente larga não apenas para iluminar a cela, mas para, por meio dela, permitir luz suficiente para a parte correspondente do alojamento. A circunferência interior da cela é formada por uma grade de ferro suficientemente fina para não subtrair qualquer parte da cela da visão do inspetor. (...) As janelas do alojamento devem ter venezianas tão altas quanto possa alcançar os olhos dos prisioneiros – por quaisquer meios que possam utilizar – em suas celas. Os guardas no centro. Por cortinas e outros dispositivos, os inspetores ficam protegidos (...).” (Bentham, Jeremy. O Panóptico ou casa de inspeção. Trad. Tadeu Tomaz Silva. Belo Horizonte: Autêntica, 2000, p. 18-19). 50. Idem, p. 25. 31
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(Filangieri, Pellegrino Rossi, Carmignani, Romagnoni, Pessina, Francesco Carrara e Feuerbach, dentre outros).51 A rigor, a adjetivação “Escola Clássica” foi dada por Enrico Ferri, supostamente por “deferência” à geração anterior – algo como “consagrados penalistas”. Contudo, Ferri estava sendo sarcástico, pois, na verdade, “clássicos”, segundo ele, significavam os “velhos”, os “antiquados”, os “ultrapassados” professores de Direito Penal.52 Embora procurassem teorizar sobre problemas dogmáticos de seus respectivos países – os Clássicos não tinham pretensões da universalidade teórica –, é possível aglutinar as seguintes características gerais dessa Escola: A) Método essencialmente especulativo
Os Clássicos edificavam suas majestosas construções doutrinárias por intermédio do método lógico-abstrato. Em suma, para eles, o Direito Penal consistia em um sistema dogmático baseado sobre conceitos essencialmente especulativos. Prescindia-se, em geral, da realidade concreta subjacente ao texto da lei. B) Imputabilidade baseada sobre o livre arbítrio e a culpabilidade moral
A Escola Clássica edificou toda a doutrina do Direito Penal sobre os pilares do livre-arbítrio (princípio do indeterminismo), ou seja, a capacidade de todo e qualquer ser humano de optar entre o bem e o mal, entre o lícito e o ilícito. Não se pensava no “homem delinquente”, com todas as suas características pessoais (homem e mulher; adolescente, adulto ou idoso; mentalmente são ou doente etc.), mas o ser humano em sentido abstrato. O rico e o pobre eram igualmente livres para respeitar ou violar a lei penal. Carrara dizia: “Não me ocupo de discussões filosóficas; pressuponho aceita a doutrina do livre-arbítrio e da imputabilidade moral do homem, e sobre essa base edificada a ciência criminal, que sem ela mal se construiria”.53 C) Delito como ente jurídico e violação de direito subjetivo
O delito era considerado como um ente jurídico que violava um direito subjetivo de outrem. Não existia, ainda, a noção de bem jurídico, desenvolvida posteriormente por Birnbaum, discípulo de Mittermayer. Delito era entendido como um ente jurídico, porque na sua essência consistia na violação de um direito dos membros da sociedade civil. 51. Cf. Jiménez de Asúa, Luís. El nuevo Derecho Penal. Escuelas y códigos del presente y del porvenir. Madrid: Paez, 1929, p. 12. 52. Cf.: “No campo científico, o movimento reformador afirmou-se, desenvolveu-se e organizou-se mais pujantemente com a corrente, que eu chamei por reverência a ‘Escola Clássica Criminal’ e que na Itália marcou seu ciclo glorioso com uma plêiade de grandes criminalistas, de Cesare Beccaria a Francesco Carrara e Henrique Pessina. Essa formidável corrente filosófico-jurídica chegou aos maiores exageros, instaurando quase a magna charta dos delinquentes em face da sociedade.” (Ferri, Enrico. Princípios..., cit., p. 29). 53. Carrara, Francesco. Programa do curso de Direito Criminal. Parte Geral. v. I. Trad. José Franceschini. São Paulo: Saraiva, 1956, p. 37. No entanto, deve-se reconhecer que Feuerbach edificou suas audaciosas construções clássicas fora do livre-arbítrio, bem assim que Merkel baseou suas ideais retribucionistas sobre o princípio do determinismo, ressalvas estas que não infirmam a forte vinculação dos Clássicos para com o dogma livre-arbitrista (cf. Jiménez de Asúa, Luís. El nuevo Derecho Penal..., cit., p. 15). 32
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D) Pena como meio de tutela jurídica
Segundo o grande expoente do pensamento clássico – Francesco Carrara – a pena tinha como finalidade a tutela jurídica. Objetivava-se a defesa do Direito – que não se confundia com “defesa social”. Bentham justificou a punição pela sua utilidade e Feuerbach procurou dotar a ameaça de sanção de uma “coação psicológica”. A pena de prisão era tida como forma mais eficaz de combate à criminalidade, razão pela qual os Clássicos preocuparam-se com a teorização de sistemas penitenciários e paulatino reconhecimento de direitos aos presos, circunstâncias estas que propiciaram a autonomia científica do Direito de Execução Penal. 3.7. A Escola Positiva
Diferentemente da orientação clássica, a Escola Positiva possuía um caráter unitário e universal. Ela surgiu em um contexto de predomínio, nas ciências naturais, da ideologia evolucionista de Darwin e, nas ciências sociais, do Positismo de Comte. Chamou-se Scuola Positiva por se pautar pelo método da observação dos fatos para a apresentação das causas gerais da criminalidade, método este chamado de “galileiano” por Ferri. Atribui-se, em geral, ao advento do livro O homem delinquente, do médico italiano Cesare Lombroso, em 1876, como o marco fundador da Escola. Lombroso examinava cadáveres de criminosos mortos e, em um deles, Vilella, encontrou a famosa “fosseta occipital média”, que indicaria ser ele um ser menos evoluído entre seres humanos.54 Sustentou, assim, a tese do “criminoso nato”, que seria regressão ao homem primitivo (atavismo). Em que pese a tese de Lombroso em pouco tempo ter sido objeto de críticas demolidoras de pensadores como Gabriel Tarde e Paul Topinard, ela teve o mérito de afirmar que a delinquência não decorria exclusivamente do livre arbítrio, mas tinha outras causas possíveis, como, por exemplo, fatores biológicos, psicológicos ou sociológicos. Além de Lombroso, outros dois grandes autores da “nova orientação” foram Rafaelle Garofalo e Enrico Ferri. A obra fundamental do Barão Rafaelle Garofalo foi o livro Criminologia (1885), onde pretendeu desenvolver o conceito de “delito natural”, isto é, o comportamento nocivo per se em qualquer sociedade e em qualquer momento. Segundo ele, delito natural seria a ofensa aos sentimentos altruístas primordiais de piedade e de probidade, segundo o padrão médio das raças superiores. Outra contribuição de Garofalo foi a noção teórica de “temibilidade”, depois substituída por uma expressão mais incisiva: “periculosidade”.55 Já Enrico Ferri – talvez o grande revolucionário de toda a Escola – representou a diretriz sociológica do positivismo, classificando o livre arbítrio, de seu antigo mestre Carrara, como “mera ficção”. Segundo ele, o delito seria o resultado da ação de fatores diversos: individuais, físicos e sociais, predominando, contudo, os sociais (densidade da população, família, moral, religião, educação, alcoolismo etc.). Não menos célebre foi 54. Dotti, René Ariel. Curso de direito penal. Parte Geral. 2. ed. Rio: Forense, 2004, p. 154. 55. Garofalo, Rafaelle. La Criminologie. 4 ème éd. Paris: Félix Alcan, 1895, p. 47. 33
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a teoria dos “substitutivos penais”, por intermédio da qual pretendia “sepultar” de vez toda a disciplina do Direito Penal, colocando, em seu lugar, um ambicioso programa político-criminal de luta e prevenção do delito (medidas de segurança). No ocaso da vida, Ferri manchou sua biografia acadêmica transigindo com o Facismo em troca de um duvidoso apoio ao seu Anteprojeto de Código Penal (1921). Em linhas gerais, Jiménez de Asúa discrimina os principais caracteres da Escola Positiva:56 A) Método experimental
Partindo da distinção entre Direito Penal e Criminologia, os positivistas condenaram o sistema dogmático e aplicaram à nossa ciência o método experimental, ampliando-se sensivelmente o estreito enfoque abstrato-especulativo então existente. Conforme dito por Ferri: “Esta ciência positiva consente em abandonar, às vezes, a atmosfera grave das salas acadêmicas, para ir renovar-se e fortificar-se ao ar livre, em contato com todas as formas real ou idealmente vivas de personalidade humana”.57 B) Responsabilidade social derivada do determinismo e temibilidade do delinquente
Desde os seus primeiros passos, polemizaram os positivistas contra a doutrina do livre arbítrio: o primeiro trabalho de Ferri, como dito, objetivou demoli-la por completo. Em seu lugar, edificou-se a tese da responsabilidade social e elevou à condição de “certeza absoluta” a fórmula da temibilidade. Fundamentalmente, o homem é responsável pelas ações delitivas por ele externadas tão somente porque vive em sociedade e enquanto viver em sociedade. A sociedade, a seu turno, tem o direito e, ao mesmo tempo, a missão de prover a própria defesa. Sendo assim, não se prescinde do direito de apenar, mas, apenas, substitui o seu fundamento: não mais a escolha entre o lícito e o ilícito; se o homem está “determinado” a cometer um crime, a sociedade está igualmente “determinada” a defender as condições de sua existência contra aqueles que a ameaçam. Sendo assim, para a defesa social, o único critério “científico” possível é o estado de periculosidade do agente. C) Delito como fenômeno natural e social produzido pelo homem
Frente à fórmula do delito como “ente jurídico”, que proclamaram os Clássicos, os positivistas comprovaram que a ação punível é um “fato natural e social”, um ato do homem que surge em sociedade e que produz um dano em virtude de três ordens de fatores: antropológicos, físicos e sociais. Portanto, o delito é ao mesmo tempo um fenômeno individual e social, razão pela qual é necessário estudar o homem que cometeu o fato apenado pelas leis e o ambiente em cujo seio se engendra e no qual se produz o crime. Como dito por Ferri: “Não é criminoso quem quer”.58 56. Jiménez de Asúa, Luís. El nuevo Derecho Penal..., cit., passim. 57. Ferri, Enrico. Princípios..., cit., p. 84. 58. Idem, p. 90. 34
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D) A pena como meio de defesa social
Apesar de parte da doutrina proclamar a aplicação “serena” e “imparcial” da pena, observa Jiménez de Asúa o caráter severo de alguns castigos, como os propostos por Garofalo: pena capital, o isolamento em uma ilha ou colônia penal por largo tempo ou perpetuamente, a deportação com abandono etc. Todavia, o objetivo que guia essas formas graves de punição – em parte semelhantes àquelas propostas por alguns Clássicos – nada mais consistia do que um meio de “defesa social”.59 Conforme diagnosticado por José Cid Moliné e Elena Larrauri Pijoan, tem-se que a Escola Positiva se enquadrou no movimento cultural do positivismo filosófico e, por isso, tratou de aplicar os métodos das ciências naturais para explicar a delinquência. Em síntese, o que talvez deva ser destacado é que defenderam a ideia de que a delinquência está determinada biologicamente. Os autores da Escola Positiva não sustentavam que a criminalidade se devia unicamente a fatores biológicos – seriam até mais relevantes fatores de caráter ambiental –, mas, sim, postulavam que quando uma determinada pessoa carecesse de predisposição biológica, em nenhum caso delinquiria. É por essa razão que uma ideia chave da Escola Positiva foi a defesa da anormalidade do delinquente.60
3.8. Escolas e tendências do sécULO XX
A
a Escola Positiva foram provavelmente as mais bem estruturadas e com princípios mais claros e homogêneos. De certo modo, o reflexo da “luta” entre aquelas ecoou não apenas no final do século XIX, mas por boa parte do século XX. Os próprios integrantes das Escolas superaram “vaidades” e “antigos rancores”. Positivistas debutaram “Tratados de Direito Penal”, e Clássicos admitiram a adoção de “medidas especiais” para menores ou portadores de doenças mentais. Sob o signo do ecletismo, outras correntes surgiram, sobretudo no continente europeu. A primeira delas foi a chamada Terza Scuola, da qual fizeram parte Carnevale, Alimena e Impallomeni. Acolheu o princípio da responsabilidade moral, distinguindo imputáveis e inimputáveis. O crime é fato social e individual e o fim da pena é a defesa social e é distinta da medida de segurança.61 Outra corrente de pensamento importante foi a chamada Escola Moderna Alemã, fundada por Franz von Liszt. Preocupado com o pensamento dos “substitutivos penais” de Ferri, von Liszt tratou de sistematizar o Direito Penal, admitiu a fusão com outras ciências, como a criminologia e a política criminal, além de dar especial atenção ao fim a que se orienta.62 Em outros termos, mais que fundar uma nova escola, von Liszt Escol a Cl ás sica e
59. Jiménez de Asúa, Luís. El nuevo Derecho Penal..., cit. 60. Cid Moliné, José; Larrauri Pijoan, Elena. Teorias criminológicas. Barcelona: Bosch, 2001, p. 57-58. 61. Fragoso, Heleno Cláudio. Op. cit., p. 91. 62. Embora autor de inúmeras obras, o pensamento de Franz von Liszt foi condensado no seu influente Tratado de Direito Penal, em dois volumes, pioneiramente traduzido, para uma lingua diversa do alemão (português), pelo brasileiro José Hygino Duarte Pereira, antes mesmo das conhecidas versões francesa e espanhola. 35
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pretendeu reunir membros da Escola Clássica e da Escola Positiva a partir dos pontos de convergência entre eles.63 Cumpre registrar que além da indiscutível contribuição dogmática, Franz von Liszt teve o mérito de ter fundado, em 1889, a Associação Internacional de Direito Penal (AIDP), juntamente com o holandês Gerard van Hamel e o belga Adolphe Prins. Àquele tempo, denominava-se União Internacional de Direito Penal. No entanto, com a deflagração da Primeira Guerra Mundial, a União foi dissolvida, reiniciando-se os seus trabalhos em 1924, agora sob a denominação AIDP, sediada, até os dias de hoje, em Paris. Pode-se, assim, afirmar que a AIDP é, seguramente, a maior e a mais antiga associação científica destinada aos estudos das Ciências Penais em todo o mundo. Ela é órgão consultivo das Nações Unidas em matéria penal. Dentre as suas atividades científicas está a publicação da Révue Internationale de Droit Penal (International Review of Penal Law), cujo primeiro número surgiu, justamente, no ano da sua fundação (1924), bem assim pela organização e realização de congressos internacionais de Direito Penal, que, após 1964, passou a ter um intervalo de cinco anos.64 As quatro áreas de atuação da AIDP são as seguintes: (1) Política Criminal e Codificação do Direito Penal; (2) Justiça Penal Comparada; (3) Direito Penal Internacional; e (4) Direitos Humanos e Administração da Justiça Penal. Por sua vez, os Congressos da AIDP se dividem em quatro seções, que tratam, respectivamente, de Direito Penal – Parte Geral, Direito Penal – Parte Especial, Direito Processual Penal e Direito Penal Internacional. Observa-se, assim, que a AIDP está direcionada a cientistas, e em especial aos penalistas, criminólogos e a todos aqueles que se ocupam ou se interessam pelas Ciências Criminais. Ela conta, atualmente, com cerca de 3.000 membros, localizados em 97 países, e com 43 Grupos nacionais que a representam em seus países de origem; dentre eles, merece destaque o Grupo Brasileiro, que teve em seus quadros diretivos juristas como Nélson Hungria, Roberto Lyra, Evandro Lins e Silva, João Marcello de Araujo Junior, René Ariel Dotti e Heleno Cláudio Fragoso (que fundou, em 1974, o Grupo Brasileiro). Hoje, Carlos Eduardo Adriano Japiassú é o Secretário Geral Adjunto e Sérgio Salomão Shecaira é membro do Conselho de Direção.65 Pode-se, portanto, afirmar que a iniciativa de von Liszt, van Hamel e Prins rendeu – e ainda rende – frutos inestimáveis, contribuindo sobremodo para o progresso das Ciências Penais. Retornando às correntes e tendências do século XX, cumpre registrar que, na Itália, surgiu, com Arturo Rocco, a chamada Escola Técnico-Jurídica, que pretendeu rever a orientação da Escola Positiva. Considerava que havia uma confusão ao reunir 63. Dotti, René Ariel. Op. cit., p. 157. 64. Apenas para ilustrar, os mencionados encontros científicos foram os seguintes: Bruxelas (1926), Bucareste (1929), Palermo (1933), Paris (1937), Genebra (1947), Roma (1953), Atenas (1957), Lisboa (1961), Haia (1964), Roma (1969), Budapeste (1974), Hamburgo (1979), Cairo (1984), Viena (1989), Rio de Janeiro (1994), Budapeste (1999), Pequim (2004) e Istambul (2009). 65. Ademais, como visto anteriormente, no Rio de Janeiro realizou-se o Congresso de 1994, o único ocorrido até hoje no continente americano e reputado como o maior da história da Associação, tendo tido em torno de 1.500 participantes. 36
Capítulo III | História geral do Direito Penal
aspectos antropológicos e criminológicos na análise do crime, desconsiderando os seus aspectos morais e jurídicos. Numa palavra, mais que uma Escola, esta corrente representou uma renovação no método do Direito Penal (Dogmática), enfatizando-o como fenômeno jurídico.66 A marcha evolutiva dos estudos penais foi novamente afetada com a Segunda Guerra Mundial, assistindo-se, na Europa, à eclosão de regimes totalitários, regimes estes que manipularam a academia e a prática penal com resultados sabidamente deletérios. Antes de prosseguir a análise pós Segunda Guerra, pode-se fazer uma síntese daquilo que Jiménez de Asúa classificou de “trégua de escolas”, com os seguintes caracteres: A) Tendência unitária
Como visto, as teorias penais abrandaram seus antagonismos. Segundo afirmado por Maggiore, no fundo, não eram muitas as discrepâncias que separavam os representantes das tendências existentes, em particular a finalidade de “tutela jurídica” e da “defesa social”, dos Clássicos e dos Positivistas, o que pode ser evidenciado com o predomínio da Escola Técnico-Jurídica, que absorveu as conquistas das correntes anteriores. Os ares eram de união de todos os penalistas de todas as escolas para, acima das particularidades, contribuir ao aperfeiçoamento da disciplina penal. O unitarismo ora apresentado evidenciou-se, em particular, com as codificações penais da primeira metade do século XX, cujos diplomas agregaram as contraditórias concepções de “culpa” como pressuposto da “pena” e de “periculosidade” como pressuposto das “medidas de segurança”. B) Recrudescimento dos estudos filosófico-penais
A Escola Positiva tentou varrer do Direito Penal toda a metafísica, estabelecendo o método de indagação experimental. No entanto, com a tendência técnico-jurídica, da qual os tratadistas alemães se destacaram – von Liszt, von Beling, Max Ernest Mayer, Reinhard Frank, Gustav Radbruch, Adolf Merkel, Edmund Mezger, Hans Welzel, dentre tantos outros –, retornaram, com força, os estudos filosófico-penais, a rigor jamais abandonados em solo germânico, influenciando a Ciência Penal de muitos povos, inclusive o Brasil. Ao final da Segunda Guerra Mundial, diante do quadro de violações estatais, surgiu um movimento denominado Defesa Social, sob a liderança de Filippo Gramática. Tal corrente foi revista e ampliada em 1954, por Marc Ancel, passando a chamar-se Nova Defesa Social. Houve, ainda, uma terceira tendência, em 1985, denominada Novíssima Defesa Social.67 Em linhas gerais, esse conjunto de pensamento sustentava que não se pode, de fato, prescindir do princípio da legalidade penal, bem assim da responsabilidade individual e da independência da magistratura. Ademais, defendia a proteção da vítima, dos grupos 66. Cf. Bruno, Aníbal. Direito Penal..., cit., p. 118. 67. Araujo Jr., João Marcello de. Os grandes movimentos da política criminal do nosso tempo – aspectos. In: Araujo Jr., João Marcello de (org.). Sistema penal para o terceiro milênio: atos do Colóquio Marc Ancel. Rio: Revan, 1990, p. 85. 37
Curso de Direito Penal | Parte Geral
marginalizados e dos indivíduos em perigo. Quanto aos crimes, considerava necessária a descriminalização de infrações de pequena monta, concentrando-se o magistério punitivo para a persecução das graves infrações contra a economia, os direitos coletivos e os interesses difusos. Preocupou-se, ainda, com a criminalidade praticada pelo Estado. Em qualquer caso, defendia-se que não seria possível a utilização de “regras de emergência”. Essa corrente rejeitava a pena de morte, o uso indiscriminado da prisão processual e das penas privativas da liberdade. Rejeitava, na execução penal, a ideia de tratamento do preso (reeducação forçada), garantindo-se o direito de ser diferente.68 Em síntese, a Novíssima Defesa Social, portanto, significou uma proposta não radical de modificação do Direito Penal. Paralelamente, outra corrente de pensamento que surgiu em meados do século XX e que influenciou o Direito Penal foi o que se convencionou chamar de Movimento de Lei e Ordem. Esta tendência fez-se presente, em particular, após a Guerra do Vietnam, como reação ao incremento da criminalidade nos grandes centros urbanos. Com efeito, o pano de fundo da doutrina da Lei e Ordem foi o aumento aparente da violência urbana, o incremento de atentados terroristas nos “anos de chumbo”, o aparecimento de grandes “organizações criminosas”, gerando-se, dessa maneira, um apelo para o recrudescimento penal. A tudo isso se somou a crise da ideologia da ressocialização. Basicamente, os Movimentos de Lei e Ordem tiveram como características: (1) a pena se justifica como castigo e retribuição; (2) os crimes de especial gravidade devem ser punidos com penas severas e longas, não se descartando o uso das penas capital e perpétua; (3) para crimes violentos, as penas privativas da liberdade deveriam ser cumpridas em estabelecimentos penais de segurança máxima, com regime excepcionalmente severo, distintos daquele destinado aos demais condenados; (4) deveria haver a ampliação das prisões cautelares; (5) deveria, ainda, ser restringidos os poderes de individualização da pena e do controle judicial da execução penal, passando-se, este último, a ser feito pelas autoridades penitenciárias.69 Dos demais movimentos político-criminais relevantes do século XX, merece destaque a chamada Política Criminal Alternativa. Cuidou-se, em realidade, de uma expressão genérica para um conjunto de correntes de pensamento que se contrapunham aos chamados Movimentos de Lei e Ordem. Dentre as tendências que compuseram a Política Criminal Alternativa, podem ser mencionadas (1) a Criminologia Crítica; (2) a Criminologia Radical; e (3) a Criminologia da Reação Social.70 Embora também partilhasse a crítica da ideologia do tratamento, a Política Alternativa defendeu solução diametralmente oposta àquela defendida pelos Movimentos de Lei e Ordem. Dentre suas proposições podem ser destacadas: (1) a abolição das penas privativas da liberdade; (2) a política criminal deve levar em conta a classe social de onde provém; (3) a adoção de um grande movimento de descriminalização (abolição 68. Araujo Jr., João Marcello de. Op. cit., p. 86. 69. Idem, p. 72. 70. Idem, p. 73. 38
Capítulo III | História geral do Direito Penal
de crimes), despenalização (penas alternativas a prisão) e desjudicialização (diversion), na medida em que não for possível a abolição do sistema penal; (4) a criminalização de condutas que atentem contra os interesses de grupos então desprotegidos (mulheres, consumidores, operários etc.), bem como meio ambiente.71
3.9. O Direito Penal do sécULO XXI
O
de resto, o mundo, sofreu profundas transformações com a queda do muro de Berlim (1989) e fim da bipolaridade que marcou as relações internacionais entre os países após o final da Segunda Guerra Mundial. Passou-se a assistir um incremento do fenômeno de internacionalização do Direito Penal, como nunca antes ocorreu. Este processo pode ser caracterizado a partir de duas grandes linhas mestras: (1) a criminalização dos conflitos armados; e (2) a repressão das atividades criminais organizadas. No primeiro caso, assistiu-se ao surgimento de Tribunais Penais Internacionais, seja na modalidade ad hoc (como no caso de Ruanda e Antiga Iugoslávia), tribunais mistos (como nos casos da Corte Especial de Camboja, da Corte Especial de Serra Leoa e da Corte Especial de Timor Leste) 72 e, sobretudo, com o permanente Tribunal Penal Internacional (TPI).73 Efetivamente, a adoção de documentos internacionais relativos aos conflitos armados gerou modificações nas legislações nacionais, com a incorporação de tratados internacionais e as respectivas leis de implementação do TPI.74 Ao lado disso, observa-se uma série de iniciativas internacionais em matéria relacionada com a atividade criminosa organizada, que seria a expressão do mundo globalizado. Assim, pode ser destacada a repressão, na esfera internacional, da criminalidade organizada transnacional, da lavagem de dinheiro, da corrupção e, genericamente, dos crimes transfronteiriços, como os diversos tráficos internacionais, conforme se pode observar de diversos tratados e convenções sobre tais matérias. Há, evidentemente, uma modalidade de crime internacional intermediária, pois contém aspectos similares aos conflitos armados e outros característicos da criminalidade organizada, que é o terrorismo e seu financiamento. Particularmente, a repressão ao terrorismo, notadamente após os ataques a Nova Iorque e a Washington, em 11 de setembro de 2001, geraram uma série de reformas nas legislações nacionais para lidar com esta modalidade de delito, que ganhou muita importância nos primeiros anos do século XXI.75 Direito Penal, como,
71. Idem, p. 76-77. 72. Cf. Amati, Enrico; Caccamo, Valentina; Costi; Mateo; Fronza; Emanuela; Valini; Antonio. Introduzione al diritto penale internazionale. Milano: Giuffrè, 2006, p. 16-18. 73. Cf. Japiassú, Carlos Eduardo Adriano. O direito penal internacional. Belo Horizonte: Del Rey, 2008. 74. No caso brasileiro, o Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional foi incorporado à legislação brasileira pelo Decreto no 4.388/2002. 75. Sobre o tema, vide Vervaele, John A. E. La legislación antiterrorista em Estados Unidos. Inter arma silent leges? Buenos Aires: Estudios del Puerto, 2007, p. 103. 39
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Assim o que pode ser verificado do Direito Penal no século XXI, é uma constante internacionalização, com a decorrente harmonização dos sistemas penais (Comunitarismo) e o surgimento de “sistemas globais de proibição”, nos quais legislações idênticas ou, ao menos, muito similares sobre a mesma matéria podem ser encontradas em diversos Estados nacionais, como no caso da lavagem de dinheiro e das regras de cooperação penal internacional. Não obstante, tem sido detectado certo incremento do punitivismo, seja por causas externas ou internas, mas que tem gerado sistemas penais mais severos e aumento em populações carcerárias em diversos países. Outra importante característica do século XXI é a adoção de novas tecnologias como fonte de incriminação, a partir da revolucionária utilização da Internet e dos meios de comunicação de massa como instrumento para as relações sociais e, portanto, passível de tutela penal. Os avanços tecnológicos têm também servido ao sistema penal com medidas de controle e de punição dos indivíduos, como no caso do monitoramento eletrônico de indivíduos. O Direito Penal contemporâneo tem tutelado, igualmente, bens jurídicos não individuais, como meio ambiente e ordem econômica. A criminalização destes bens jurídicos não individuais tem significado inúmeras discussões quanto à violação da reserva legal, muito embora seja inegável que graves questões ambientais e econômicas impõem-se como desafios às sociedades atuais. No que se refere às sanções penais, é paradoxal observar que apesar da evolução em diversas áreas sociais, ainda se utiliza, em larga escala, das penas privativas de liberdade. Isso perpetua o constante problema da “crise do modelo de prisão”, detectado já na metade do século XX, quando se constatou que a prisão falhou em todos os fins que pretendia alcançar. Todavia, é certo que houve uma expressiva ampliação de alternativas ao encarceramento, de maneira geral, mas ainda insuficiente para modificar o paradigma punitivo existente na grande maioria dos Estados. A seu turno, a pena de morte segue sendo uma realidade em muitos lugares, em que pese toda a luta por sua abolição. Ainda é possível encontrar a utilização da pena capital em mais ou menos metade dos países do mundo, apesar de a mesma ter sido banida em cerca de cem países.76 Portanto, ainda soa como utópica a profecia de muitos, como Jiménez de Asúa, que, no início do século passado, dizia: “em breve a pena de morte ficará inscrita no pretérito”.77 Enfim, o século XXI se apresenta com o Direito Penal em momento de modificação de paradigmas e de perspectivas, o que não necessariamente significará uma época de maior segurança nas relações sociais. 76. Japiassú, Carlos Eduardo Adriano. O Tribunal Penal Internacional: a internacionalização do direito penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004, p. 197. 77. Jiménez de Asúa, Luís. El nuovo Derecho Penal..., cit., p. 56. 40
título
I
capítulo
Q U E S TÕ E S F U N D A M E N TA I S D O D I R E I TO P E N A L
IV
HISTÓRIA DO DIREITO PENAL BRASILEIRO 4.1. Considerações gerais
N
os indígenas que habitavam a terra hoje chamada de Brasil apresentavam-se em estado rudimentar de evolução. Caracterizavam-se pelo nomadismo e por uma economia estritamente de subsistência, diferenciando-se por completo do que ocorria com outras civilizações americanas e, notadamente, com as da Europa.1 Não se pode, pois, falar em estrutura jurídico-social no Brasil anterior a Cabral. O que havia eram regras meramente consuetudinárias, que permitiam o convívio social e eram transmitidas verbalmente, de geração para geração. Uma característica marcante e indissociável das normas indígenas era o seu forte caráter místico. O misticismo, que marcou profundamente a vida das comunidades aldeãs, teve reflexo intenso em suas regras de comportamento. Quanto às normas de caráter penal que existiam no Brasil anterior aos portugueses, imperava a vingança privada, sem que houvesse relação uniforme entre gravidade da conduta ofensiva e a intensidade da reação.2 Os silvícolas conheciam a lei de talião, assim como a composição de acordo entre as famílias e com caráter de indenização e a expulsão o período pré- colonial ,
1. Japiassú, Carlos Eduardo Adriano. O contrabando: uma revisão de seus fundamentos teóricos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 1999, p. 25. 2. Gonzaga, João Bernardino. O direito penal indígena. São Paulo: Max Limonad, 1971, p. 120 e segs. 41
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da tribo. No que se referia às penas, predominavam as corporais, sem que houvesse, no entanto, a tortura.3
4.2. O Brasil Colonial
C
do Brasil, em 1500, o direito que passou a viger não foi resultado dos choques entre populações postas em contato. Foi a mera importação de leis portuguesas que já estavam prontas, mas que não necessariamente se adequavam à realidade brasileira. As práticas punitivas das tribos que habitavam o país, àquele tempo, em nada influíram, seja então, seja após, na legislação penal. Os conquistadores portugueses, que subjugaram os povos nativos, não receberam qualquer influência dos costumes locais na elaboração das normas penais que aqui passaram a viger.4 Pode-se dizer, então, que o Direito Penal vigente no período colonial constituiu mera transposição do conjunto de leis então vigente em Portugal. Portugal tornou-se nação independente no século XII, época em que vigorava a chamada legislação foral, ou seja, o conjunto de “diplomas legais com forte conteúdo consuetudiário”.5 À época do rei D. João I (1384-1433), este soberano, em data provavelmente posterior a 1404, determinou a reforma e a compilação das leis num corpo único e orgânico. Até então vigiam em Portugal normas esparsas, que se baseavam nas Decretais de Gregório IX – a legislação canônica –, na obra dos glosadores de Bolonha e, a partir do reinado de D. Diniz (1279-1325), na legislação do reino de Castela – a lei das Sete Partidas. Surgiu daí a compilação publicada em 1446, obra coordenada, primeiramente, por João Mendes e, após, por Rui Fernandes. Já, então, reinava D. Afonso V (menor à época, sendo regente seu tio, o infante D. Pedro), que a transformou em lei. Esta obra foi o primeiro código completo a aparecer na Europa. Representou verdadeiro avanço para seu tempo, acolhendo as ideias então vigentes. Tem como principal conquista a fixação do magistério punitivo estatal, apesar da forte influência clerical. O legislador, no entanto, fez confusão de dispositivos do direito romano e do direito canônico, além de não se preocupar com a finalidade da pena e a sua proporcionalidade ao delito, bem como manteve a desigualdade entre ricos e pobres. As Ordenações Afonsinas eram compostas por cinco livros, sendo o Livro V o que tratava de Direito Penal e do Direito Processual Penal, e traziam no seu bojo 121 títulos. Em 1505, D. Manuel I, o Venturoso, ordenou a revisão das Ordenações Afonsinas. Com tal escopo, nomeou Rui Boto, Rui da Grã e João Cotrim. Concluíram a obra, que foi impressa em 1512, e depois, em edição mais correta, no ano de 1514. Após, foi revista e reformada por outros juristas durante sete anos, tendo sido promulgada em definitivo om o descobrimento
3. Japiassú, Carlos Eduardo Adriano. O contrabando..., cit., p. 25. 4. Shecaira, Sérgio Salomão; Corrêa Jr., Alceu. Op. cit., p. 38. 5. Idem, p. 36. 42
Capítulo IV | História do Direito Penal Brasileiro
em 1521, e este corpo de leis ficou conhecido como Ordenações Manuelinas. Seguiu o sistema anterior, com a adição de novos provimentos surgidos neste interregno, com algumas poucas correções, tendo sido reduzido para 113 Títulos. As Ordenações Manuelinas (1521) seguiram, em larga medida, as disposições precedentes, com alguns acréscimos. Em 1580, com a chamada União das Coroas Ibéricas e com a subida ao trono do rei Felipe lI, de Espanha, que passou a reinar em Portugal com o nome de Felipe I, o monarca ordenou que, como afirmou, emendasse a confusão das leis e, para obter a estima dos portugueses, incumbiu os desembargadores do Paço Paulo Afonso e Pedro Barbosa, com a colaboração de Damião de Aguiar e Jorge Cabedo, de reformar a legislação vigente. Em 11 de janeiro de 1603, já sob o governo de Felipe II, foram promulgadas as Ordenações Filipinas, que se baseavam nas Ordenações anteriores e na Compilação de Duarte Nunes do Leão, sem lhes introduzir qualquer alteração substancial, criando, em seu livro V, 143 títulos. Esta legislação vigeu em Portugal mesmo após a sua separação da coroa espanhola, em 1640, já que foram revalidadas por lei de D. João IV, em 29/01/1643 . No Brasil, já em Lei de 20/10/1823, D. Pedro I determinou que as ditas Ordenações ficassem em inteiro vigor na parte em que não tivessem sido revogadas para, por elas, se regularem os negócios do interior do Império. Isto significa dizer que as Ordenações Filipinas acabaram por constituir o verdadeiro Código Penal do período colonial, gerando efeitos até mesmo no Brasil independente. O Livro V das Ordenações, que era dedicado à matéria penal e processual penal, utilizava-se de penas absolutamente duras para lidar com os delitos ali previstos. Pode-se ir mais adiante, afirmando-se, mesmo, que as suas penas eram bárbaras e cruéis, pretendendo coibir a prática delitiva por meio do terror. Este Livro previa o seguinte rol de sanções: (1) pena de morte, nas suas diversas modalidades; (2) pena de degredo para galés e degredo para outros lugares, v.g., Índia, África ou Brasil; (3) penas corporais, como os açoites, a mutilação de mãos, da língua etc., queimaduras com tenazes; (4) pena de confisco; pena de multa, além de inúmeras outras que se destinavam à humilhação pública dos condenados. Como se não bastasse a severidade das penas, havia sérias diferenças no tratamento dispensado a nobres e a plebeus. A condição ou a qualidade da pessoa influía diretamente no tipo de tratamento dispensado pelos órgãos públicos para com os jurisdicionados.6 Mesmo quando se referia à pena aplicável, eram previstas distinções. A própria pena dura existente no sistema filipino representava este tratamento diferenciado. A pena capital apresentava três modalidades distintas de execução: morte cruel, morte atroz e morte simples. A primeira era aquela na qual a vida era tirada lentamente, por meio de suplícios. Na morte atroz, a eliminação era marcada por especiais detalhes, 6. Salla, Fernando. As prisões em São Paulo: 1822-1940. São Paulo: Annablume, 1999, p. 35. 43
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como a queima do cadáver e o esquartejamento. Já a morte simples limitava-se à supressão da vida, sem rituais diversos e executada por meio da degola e do enforcamento, modalidade, muitas vezes, em que ficava o cadáver pendente até seu apodrecimento. As Ordenações Filipinas (1603) mantiveram a sistemática dos diplomas anteriores, “sem lhes introduzir qualquer alteração substancial”.7 As Ordenações Filipinas vigeram, entre nós, por 227 anos, ou seja, até 1830. Vê-se, assim, que o diploma jurídico-penal que por mais tempo vigorou no Brasil foi, curiosamente, promulgado por um rei espanhol. Mais que isso, pode-se dizer que este diploma foi o que, de fato, regeu a sociedade brasileira colonial, visto que, ao tempo das ordenações anteriores, praticamente não havia portugueses habitando o território brasileiro.8 As Ordenações Filipinas não previam para nenhum crime ou circunstância a pena de prisão isoladamente.9 Existiam, no entanto, nas inúmeras localidades do território brasileiro, à exemplo de Portugal, construções destinadas à privação da liberdade dos indivíduos: as “cadeias públicas”. Porém, tais prisões não possuíam, à época, função de sanção penal. Na verdade, as cadeias na Colônia apresentavam uma dupla função: a primeira era servir de instrumento de terror ou ameaça, visto que simbolizava o poder arbitrário exercido pelo corpo administrativo nas vilas e cidades. A outra função do cárcere era garantir a custódia do acusado ou, ainda, do indígena ou escravo capturado, enquanto não julgada e executada a pena ou devolvido o indivíduo a quem de direito. Ressalte-se que, na hipótese de recurso, o apelo se dava, no início da Colônia, no Tribunal da Relação de Lisboa, passando, depois, para os tribunais instaurados no próprio Brasil.10 Saliente-se que a prisão fazia parte constitutiva do poder municipal no Brasil Colônia. A elevação de uma vila ou arraial à condição de município pressupunha, dentre outras exigências, a construção de uma cadeia pública. A propósito, é relevante observar que, quando da fundação da cidade do Rio de Janeiro (1565), uma das primeiras preocupações de Estácio de Sá foi a de construir os edifícios competentes para a Casa da Câmara. Por sua vez, a primeira prisão do Rio de Janeiro foi construída por ocasião da transferência da cidade (1567) do Morro Cara de Cão, na Urca, para o Morro do Castelo, atual centro da cidade.11 7. Idem, p. 69. 8. Souza, Artur de Brito Gueiros. Presos estrangeiros..., cit., p. 145. 9. Salla, Fernando. Op. cit., p. 34. 10. Segundo Virgílio Donnici, em 1640 “foi criada a Relação da Bahia, com três Ouvidorias Gerais, unificada em 1652, sendo que em 1751 foi criada a Relação do Rio de Janeiro, que era a Justiça dos tempos coloniais, e mais tarde a Relação do Maranhão e de Pernambuco, onde se confundiam Juiz e polícia.” (Donnici, Virgílio. A criminalidade no Brasil: meio milênio de repressão. Rio de Janeiro: Forense, 1984, p. 15). 11. O registro da primeira prisão carioca foi documentado por Mem de Sá, tio de Estácio: “E por o sítio onde Estácio de Sá edificou não ser mais que para defender-se em tempo de guerra, com a presença de capitães e de outras pessoas que no dito Rio de Janeiro estavam, escolhi um sítio que parecia mais conveniente para edificar nele a cidade de São Sebastião, o qual sítio era de um grande mato espesso, cheio de muitas árvores grossas em que se levou assaz de trabalho em as cortar e limpar e edificar uma cidade grande. (...) E fiz a igreja dos padres de Jesus onde agora residem, telhada e bem concertada, e a Sé de três naves, também telhada e bem concertada; a cadeia pública, a casa dos armazéns e para fazenda de Sua Alteza sobradadas 44
Capítulo IV | História do Direito Penal Brasileiro
Este período em que vigeu um regime muito severo foi reflexo direto de um governo absolutista, associado a ideais católicos típicos de tempos em que a Igreja de Roma perseguia aqueles que considerava hereges. Ademais, os preceitos eram estruturados de maneira bastante rudimentar, sem grande preocupação técnica. Não havia, como ocorre nas codificações contemporâneas, uma Parte Geral e outra Especial. Os delitos eram enumerados de modo casuístico, utilizando-se de uma linguagem peculiar, sem que, efetivamente, significassem um sistema.
4.3. O Código Criminal de 1830
A
Inversão Brasileira, quando, em 1808, houve a transmigração da Família Real Portuguesa para o Rio de Janeiro, que se tornou sede do Reino de Portugal e Algarve, notáveis modificações se operaram no Brasil. Com relação ao processo acelerado de modificações iniciado em 1808, este acabou por culminar com a proclamação da independência, em 07/09/1822, quando começa a efetiva construção do Estado brasileiro. A legislação penal portuguesa, no entanto, não teve sua revogação instantânea, tendo se prolongado durante um determinado período do Primeiro Império. Durante o período em que D. João VI esteve no país, a legislação portuguesa foi respeitada. Com o retorno do rei a Portugal, em decorrência da Revolucão do Porto iniciou-se a Regência do Príncipe D. Pedro. Seu pai, às vésperas de embarcar para a Europa, produziu o Decreto de 22/04/1821, que continha instruções para governar o Brasil. Durante este período, houve a continuação da atividade legislativa destinada a dar uma Carta Política ao país. Em 23/05/1821, o Príncipe Regente expediu decreto que determinava, em seu art. 4o , partir da chamada
que, em caso nenhum, possa alguém ser lançado em segredo ou masmorra estreita, escura, ou infecta, pois que a prisão deve só servir para guardar as pessoas e nunca para adoecer e flagelar; ficando implicitamente abolido para sempre o uso de correntes, algemas, grilhões e outros e quaisquer ferros inventados para martirizar homens ainda não julgados a sofrer qualquer pena aflitiva por sentença final.
Demonstrou ser reflexo das tendências humanizadoras que caracterizaram o século XVIII e que influenciaram as legislações ocidentais do período. Em 10/03/1821, as Cortes Extraordinárias Constituintes de Lisboa decretaram as Bases da Constituicão Portuguesa, que foram juradas por D. Pedro no Teatro São João Batista, no Rio de Janeiro, em 05/06/1821. Nos dias seguintes, em sessão continuada da Câmara e do Senado todas as autoridades civis e militares também o fizeram. e telhadas e com varandas. Mandei vir muitos moradores e muito gado para povoar a dita cidade, o qual se dá muito bem, pois já há grande criação.”. Segundo Lemos Britto, foi essa primeira prisão do Rio de Janeiro que, “depois de transformada e construída de pedra e cal, veio a constituir a famosa Prisão do Calabouço, de tão hórrida memória.” (Britto, Lemos. Os sistemas penitenciários do Brasil. Vol. II. Rio de Janeiro: Imprensa Oficial, 1923, p. 147-148). 45
Curso de Direito Penal | Parte Geral
A adoção das Bases foi de remarcada importância para a vida jurídica nacional, já que representaram a sua recepção pelo sistema nacional, em face do que dispunha o seu item 21o. Em decorrência, as Bases tornaram-se obrigatórias para os portugueses aqui residentes, mas não para os nacionais que não eram nem poderiam ser considerados portugueses. As Bases dispuseram que seriam direitos individuais do cidadão, entre outros, a liberdade individual, o direito de petição, a liberdade de pensamento, igualdade de todos perante a lei e a propriedade privada, seguindo, desta maneira, o ideário liberal. Especificamente sobre matéria penal, previu-se que as penas somente poderiam ser estabelecidas nos casos de absoluta necessidade e deveriam ser proporcionais à gravidade do delito. E mais. Aboliram-se todas e quaisquer penas infamantes e cruéis, tais como a declaração de infâmia, a tortura, os açoites, o baraço e o pregão e a marca de ferro em brasa. Tais dispositivos, portanto, representaram um enorme avanço em relação ao que pretendiam as Ordenações do Reino. Por aviso de 28/08/1822, D. Pedro declarou que os juízes criminais deveriam obedecer às Bases, enquanto a Assembleia Geral Constituinte Legislativa não estabelecesse novas regras. Com a Proclamação da Independência, em 1822, e, mais que isto, com a Constituição Imperial de 25/03/1824, cristalizou-se a necessidade de que se criasse legislação penal específica, mais adequada àqueles tempos.12 Sobre matéria penal, a Carta Magna dispunha, em seu art. 179, 18: “Organizar-se-á, quanto antes, um Código Civil e Criminal, fundado nas sólidas bases da justiça e equidade”. Ademais, ampliou as conquistas das Bases portuguesas. A título ilustrativo, vale gizar o que foi disposto no item 21: “As cadeias serão seguras, limpas e bem arejadas, havendo diversas casas para separação dos réus, conforme suas circunstâncias e natureza de seus crimes”. Os historiadores admitem que as mudanças verificadas em nosso país, neste período, representaram verdadeira revolução liberal e conduziram o Brasil à sua independência e à aquisição de sua soberania nacional.13 Em 1827, dois projetos de Código Criminal foram encaminhados a uma Comissão da Câmara. No dia 4 de maio, fê-lo o Deputado Bernardo Pereira de Vasconcellos e, 12 dias após, idêntica iniciativa foi tomada pelo Deputado Clemente Pereira. Em 14 de agosto daquele ano, a referida Comissão apresentou parecer, no qual enaltecia os dois trabalhos apresentados, mas os reunia em um só projeto, coligindo o que de melhor escolha se achasse espalhado em ambos, adotado o método seguido por Clemente Pereira, e que supria na clareza e ordem a falta de novidade que oferecia o texto de Vasconcellos. Opinou, ainda, pela impressão de ambos os projetos, para que todos deles tomassem conhecimento, o que ajudaria na sua discussão. Por fim, afirmou 12. Fragoso, Heleno Cláudio. Op. cit., p. 71. 13. Dotti, René Ariel. Um pouco da história luso-brasileira. In: Revista Brasileira de Ciências Criminais, n. 1, São Paulo: Revista dos Tribunais, 1993, p. 181. 46
Capítulo IV | História do Direito Penal Brasileiro
que o projeto de Bernardo Pereira de Vasconcellos poderia mais facilmente levar à perfeição com o menor número de retoques. O Código Criminal foi, afinal, aprovado em 20/10/1830 e remetido ao Senado do Império. Em 16/12/1830, o Imperador D. Pedro I sancionou-o. O Estatuto Criminal do Império constituiu-se obra verdadeiramente notável. Foi o primeiro Código autônomo de toda a América Latina, tendo recebido influência das ideias liberais do Iluminismo e do utilitarismo, e, em particular, de Jeremy Bentham. O nosso Código Criminal de 1830 serviu, inclusive, de modelo para o Código Penal espanhol de 1848, que, como se sabe, foi a codificação inspiradora de inúmeros diplomas latino-americanos.14 Dentre as suas características mais marcantes, pode-se destacar: a exclusão da pena de morte para os crimes políticos; a imprescritibilidade das penas; a reparação do dano causado pelo delito; ter considerado agravante o ajuste prévio entre duas ou mais pessoas para a prática do crime; a responsabilidade sucessiva nos crimes de imprensa, antecipando-se ao sistema belga; a previsão da circunstância atenuante da menoridade e a antecipação do sistema dos dias-multa.15 As penas cominadas no Código Criminal de 1830 eram as seguintes: morte na forca, galés (excluídos mulheres, menores de 21 anos e maiores de 60), prisão com trabalho, prisão simples, banimento, degredo, desterro, multa, suspensão e perda de emprego e açoites para os escravos. Duas leis posteriores complementaram esse leque de penas: pela Lei de 03/10/1833, a ilha de Fernando de Noronha passava a ser usada para o cumprimento de pena de galés imposta aos moedeiros falsos; e a Lei de 10/06/1835 estipulava rigorosas penas, sem os recursos do processo, para os negros escravos que atentassem contra a vida de seus senhores.16 Em contraste com o passado excessivo das Ordenações, o Código Criminal reduziu o número de delitos aos quais se cominava a pena capital de 70 para três: a insurreição de escravos, o homicídio com agravante e o latrocínio.17 Sob outro aspecto, apesar de conter uma grande variedade de sanções, o Código de 1830 cominou, como preponderantes, para cidadãos-livres, as penas de prisão com trabalhos e de prisão simples. Estas duas espécies de penas eram cominadas para, pelo menos, dois terços dos crimes.18 Em consonância com a mudança operada no cenário europeu, a pena de prisão subtraiu o lugar de destaque antes ocupado pela pena de morte, sinalizando a direção de sua “futura supremacia sobre as demais modalidades punitivas”.19 Para os escravos, a pena preponderantemente empregada, no Direito Penal do Império, ainda era o açoite. Com efeito, em que pese a Constituição de 1824 declarar 14. Cf. Jiménez de Asúa, Luís. El nuevo Derecho Penal. Escuelas y códigos del presente e del porvenir. Madrid: Ed. Paez, 1929, p. 213. 15. Fragoso, Heleno Cláudio. Op. cit., p. 72. 16. Salla, Fernando. Op. cit., p. 45. 17. Cf. Shecaira, Sérgio Salomão; Corrêa Jr., Alceu. Op. cit., p. 40. 18. Lyra, Roberto. Comentários ao Código Penal. Vol. II. 3.ed. Rio de Janeiro: Forense, 1958, p. 62. 19. Shecaira, Sérgio Salomão; Corrêa Jr., Alceu. Op. cit., p. 41. 47
Curso de Direito Penal | Parte Geral
abolidos o açoite, a tortura, a marca e todas as penas cruéis, o art. 60, do Código Criminal, dispôs que, em se tratando de réu escravo, não sendo caso de pena de morte ou de galés, deveria ser castigado, nos termos da respectiva sentença, em até 50 chibatadas por dia. O Código não fixou o limite de dias de castigo, mas o Aviso Ministerial de 10/06/1861 determinou que, computados os dias, tal sanção não excedesse ao total de 200 vezes.20 Manoel Dias de Toledo considerava bastante lacônica a disposição dos açoites naquele dispositivo do Código Criminal, pois “tudo deixou à mercê do Juiz executor, que, não querendo assistir às execuções, manda o escrivão, que às vezes não vai, ficando assim à mercê do carcereiro”. Existiam, portanto, excessos e privilégios de toda ordem, conforme o grau de amizade ou inimizade do carrasco para com o fazendeiro. Argumentava, todavia, Manoel Dias de Toledo, que, quando o escravo era posto no cárcere para fins de sofrer açoites, acontecia frequentemente de o senhor desistir do direito de propriedade sobre aquele condenado, para não ter de custear as despesas das taxas dessa sanção. Isso acarretava a comutação judicial das chibatadas em pena de prisão com trabalhos, “pelo mesmo tempo em que o livre é punido com prisão simples”.21 Outra sanção daquela época foi o banimento, previsto no art. 50, com a seguinte redação: “A pena de banimento privará para sempre os réus dos direitos de cidadão brasileiro e os inibirá perpetuamente de habitar o território do Império. Os banidos que voltarem ao território do Império serão condenados à prisão perpétua”. Sobre a pena de prisão e adentrando no aspecto de suas instalações físicas, cumpre registrar que, apesar da Constituição de 1824 prometer cadeias não só seguras, mas, também, limpas e bem arejadas, e prescrever a separação dos réus conforme as suas circunstâncias e a natureza dos seus crimes, é forçoso admitir – segundo as palavras de Evaristo de Moraes – que, nos primeiros tempos da nossa independência nacional, e até mesmo depois do Código, pouco adiantamos ao que nos legara o domínio português no concernente às prisões. Nas três épocas sucessivas do Brasil Colônia, Brasil Reino Unido e Brasil Império incipiente, não obedeceram as prisões a qualquer princípio de ordem, de higiene, de moralização.22
Realmente, o estado geral dos estabelecimentos prisionais era o pior possível. Nesse sentido, Thomas Holloway deteve-se sobre os cárceres da então Capital do Império. Segundo ele, as condições sanitárias da Prisão do Calabouço eram péssimas, assim como o calor e a fedentina nos compartimentos sem ventilação e a escassa comida que os carcereiros deviam fornecer em troca das taxas cobradas dos senhores. Um problema frequente no Calabouço era o abandono dos escravos por seus senhores, quando estes julgavam que as taxas devidas pelo sustento ou pela correção aplicada ultrapassavam 20. Cf. Toledo, Manoel Dias de. Lições acadêmicas sobre Artigos do Código Criminal. Conforme foram explicadas na Faculdade de Direito de S. Paulo. 2. ed. Rio de Janeiro: Garnier, 1878, p. 635. 21. Idem, p. 640. 22. Moraes, Evaristo. Prisões e Instituições Penitenciárias no Brasil. Rio de Janeiro: Cândido Oliveira, 1923, p. 05. 48
Capítulo IV | História do Direito Penal Brasileiro
o valor de sua propriedade. Conforme este autor, “ao tomar conhecimento da situação do Calabouço, em maio de 1831, o novo Ministro da Justiça da Regência Provisória ordenou a venda imediata de numerosos escravos, ‘a maior parte de que há anos não apareceram os donos’”.23 Igualmente tétrica, quiçá pior, era a Prisão do Aljube. Esta prisão fora instituída no Rio, entre 1735 e 1740, para abrigar padres conturbados e cristãos novos.24 O horror da Prisão do Aljube foi descrito por membros de uma comissão municipal encarregada de inspecionar, em 1830, as prisões civis, militares e eclesiásticas daquela Capital. O relatório dessa comissão foi resgatado do anonimato por Mello Moraes Filho (1894), legando, para a nossa história penal, um pungente relato de como eram tratados os presos no Brasil do século XIX.25 Além de registrar o absurdo tratamento prisional, aquela comissão municipal denunciou, igualmente, a inexistência de separação dos réus conforme os preceitos constitucionais de circunstância e natureza do crime: “Nas enxovias do Aljube, os presos acham-se em comum: forçados, ladrões, vagabundos, viciosos, assassinos, reincidentes, escravos, iniciados e veteranos em todos os crimes. Acotovelando-se com estes, mas não se confundindo, encontram-se, ali, conspiradores, jornalistas políticos, revolucionários célebres, comunicáveis ou incomunicáveis na sala livre ou em outro aposento”.26 Diante da disparidade entre o que dispunham a Constituição, o Código Criminal do Império e a realidade carcerária, iniciou-se um movimento no sentido de reformar o aparato prisional herdado da era colonial, sendo tal bandeira empunhada pela Sociedade Defensora da Liberdade e Independência Nacional (1831) e, posteriormente, encampada pelos Poderes Públicos. Como consequências desse movimento, foram construídas, no Rio de Janeiro e São Paulo, Casas de Correção, em 1850 e 1852, respectivamente, que, após delongas, introduziram os postulados já existentes sobre a execução penal. Ressalte-se, 23. Holloway, Thomas H. Polícia no Rio de Janeiro: Repressão e resistência numa cidade do século XIX. Trad. por Francisco de Castro Azevedo. Rio de Janeiro: Getúlio Vargas, 1997, p. 65. 24. Cf. Britto, Lemos. Op. cit., p. 151. 25. “Esta prisão, encostada ao Morro da Conceição, é subterrânea de um lado e do outro faz frente à rua do mesmo nome; é, por isto, defeituosíssima, porque a comunicação imediata com a rua a torna pouco segura e não permite que se estabeleça, no seu interior, a disciplina conveniente para reforma dos presos; pela sua situação, já se vê que ela deve ser úmida, insalubre, inabitável, sobretudo do lado da montanha. (...) Foi com grande dificuldade que a Comissão pôde vencer a repugnância que deve sentir o coração humano ao penetrar nesta sentina de todos os vícios, neste antro infernal, onde tudo se acha confundido, o maior facínora com uma simples acusada, o assassino o mais inumano com um miserável, vítima da calúnia ou da mais deplorável administração da justiça. O aspecto dos presos nos faz tremer de horror: mal cobertos de trapos imundos, eles nos cercam por todos os lados e clamam contra quem os enviou para semelhante suplício, sem os ter convencido de crime ou delito algum. Observam os comissionados que a prisão tinha capacidade para umas 20 pessoas e continha, na data da visita, nada menos que 390! Afirmam que, mesmo nas suas salas mais amplas, se sentia cheiro insuportável de cigarro, suor, latrinas e toda sorte de imundices. Por baixo das salas, descendo por um alçapão, foram ter as enxovias, nas quais viram 85 presos, entre livres e escravos, dormindo sobre pedras úmidas. Ali, segundo disseram os carcereiros, era frequente morrerem os presos, abafados durante o verão.” (Cf. Moraes, Evaristo. Op. cit., p. 08). Segundo Lemos Britto, o “saudoso cronista patrício Vieira Fazenda chamava o Aljube de ‘covil de suplícios e de misérias, verdadeiro inferno de Dante’, onde se passavam ‘cenas indecorosas que, para vergonha nossa, se patenteavam aos olhos de todos, em pleno século XIX!’” (Britto, Lemos. Op. cit., p. 152) (grifos do original). 26. Moraes, Evaristo. Op. cit., p. 09. 49
Curso de Direito Penal | Parte Geral
no particular, que o Código Criminal não previra qualquer sistema penitenciário. A primeira iniciativa a este respeito coube a Eusébio de Queirós, autor do regulamento da Casa de Correção do Rio de Janeiro, regulamento este que também serviu para a Casa de Correção de São Paulo.27 Por outro lado, é certo que, ao lado das Casas de Correção, permaneceram em funcionamento as Cadeias Públicas ou Casas de Detenção, conforme a terminologia de cada localidade, destinadas, precipuamente, à detenção provisória de infratores. No Rio de Janeiro, Lemos Brito considerava a Casa de Detenção nada além do que um simples “depósito de presos”, construída de forma improvisada, isto é, aproveitando-se o erro de cálculo do segundo raio da Casa de Correção, projetada “além do ponto que devia terminar, perturbando, assim, a harmonia do plano primitivo, como se percebe facilmente”.28 Saliente-se, todavia, que as edificações erguidas nas Capitais do Império e da Província de São Paulo, pouco influíram na melhora das prisões existentes nas outras localidades de nosso território, permanecendo, assim, como exceções em meio ao cenário dantesco das instalações em funcionamento no País. Prolongava-se, portanto, o sistema e as práticas de encarceramento da era colonial, que pouco se alteraram após a independência do Brasil.
4.4. O Direito Penal da Primeira República
N
do século XIX, a série de mudanças decorrentes da Revolução Industrial inglesa e suas consequências no mundo, inclusive a paulatina modificação econômica decorrente do fim da escravidão, que culminou com a Lei Áurea de 13/05/1888, foi retirando a base de sustentação do Império Brasileiro. Estas modificações tiveram repercussão penal imediata, tanto assim que, já em 4 de outubro daquele ano, o Deputado Joaquim Nabuco apresentou um projeto pretendendo adaptar as leis penais à nova realidade o que, no entanto, não chegou a ser discutido. Então, o Deputado e Professor João Vieira de Araújo apresentou ao Ministro da Justiça um anteprojeto, com o qual pretendia uma nova edição do Código Criminal então vigente. Em consequência, foi designada uma comissão com este escopo. Em 10/10/1889, a Comissão opinou no sentido de que se fizesse uma reforma completa da legislação penal vigente. Por isto, o Ministro dos Negócios da Justiça, Cândido de Oliveira, encarregou João Batista Pereira de organizar a reforma. Com a Proclamação da República, o trabalho é interrompido. Todavia, o Decreto no 774, de 1890, anterior ao novo Código Penal, já abole a pena de galés, além de reduzir para 30 anos o cumprimento da prisão perpétua, instituir a prescrição das penas e estabelecer o desconto, na pena privativa de liberdade, do tempo de prisão preventiva.29 O novo Ministro da Justiça, Campos Sales, nomeou o mesmo Batista Pereira para a a segunda metade
27. Lyra, Roberto. Op. cit., p. 110. 28. Britto, Lemos. Op. cit., p. 11. 29. Shecaira, Sérgio Salomão; Corrêa Jr., Alceu. Op. cit., p. 41. 50
Capítulo IV | História do Direito Penal Brasileiro
tarefa de elaborar o novo Código Penal, que acabou por ser transformado em lei pelo Decreto no 847, de 11/10/1890, que criou o Código Penal Brasileiro.30 Este Código dividia-se em quatro livros, com 412 artigos. O 1o Livro denominava-se “Dos crimes e das penas”; o 2o foi o que tratou “Dos crimes em espécie”, enquanto o 3o Livro foi o “Das contravenções em espécie”. Por fim, o derradeiro dos Livros foi constituído “Das disposições gerais”. O trabalho de 1890 recebeu severas críticas, que questionaram a qualidade daquela legislação, pois era de orientação clássica e não satisfazia completamente as aspirações e necessidades do país àquele tempo.31 O maior defeito do Código de 1890 consistiu no fato de ele ter ignorado os avanços doutrinários decorrentes da Escola Positiva, avanços esses refletidos em códigos a ele contemporâneos, em especial o Código Zanardelli. Em suma, o diploma de 1890 não teria passado de uma atualização da legislação penal do Império, sendo, portanto, “objeto de críticas demolidoras, que muito contribuíram para abalar o seu prestígio e dificultar sua aplicação”.32 Releva salientar que o Código de 1890 previu as seguintes penas: prisão celular – considerada, por Oscar de Macedo Soares, como a pena fundamental do diploma; reclusão – somente para delitos políticos; prisão com trabalhos – que seria cumprida em penitenciárias agrícolas ou presídios militares – tida, pelo mesmo autor, como desnecessária ou redundante, pois a prisão celular também impunha o trabalho; e prisão disciplinar – onde seriam recolhidos, em estabelecimentos industriais especiais, os menores até a idade de 21 anos.33 A base do sistema de penas era, portanto, a prisão celular, aplicada à generalidade dos crimes. Não se tratava, porém, da célula nos moldes pensilvânico ou auburniano, mas, sim, por intermédio do modelo progressivo de cumprimento de pena, uma novidade introduzida pelo Código ao Direito Penal brasileiro. Segundo as palavras do próprio João Batista Pereira: Abolida a pena de morte e suprimindo as penas perpétuas e infamantes, substituiu todas as penalidades do provido arsenal do Código de 1830 pela prisão celular, segundo o sistema progressivo irlandês de Walter Crofton. A grande novidade da revisão de 1890 é a unicidade de pena, cujo tipo é a prisão celular, ao mesmo tempo intimidativa, repressiva e penitenciária, da qual se fez a chave da abóbada de todo o sistema repressivo.34
Sob outro aspecto, com relação às edificações que seriam destinadas ao cumprimento da prisão celular e das demais espécies punitivas, é certo que, a despeito da 30. Fragoso, Heleno Cláudio. Op. cit., p. 73. 31. Siqueira, Galdino. Tratado de direito penal: Parte Geral. Tomo I, Rio de Janeiro: José Konfino, 1950, p. 74. 32. Fragoso, Heleno Cláudio. Op. cit., p. 73. 33. Cf. Soares, Oscar de Macedo. Código Penal da República dos Estados Unidos do Brasil. 7. ed. Rio de Janeiro: Garnier, 1910, p. 141. 34. Apud Lyra, Roberto. Op. cit., p. 63. 51
Curso de Direito Penal | Parte Geral
previsão do Código, nada fora implementado – o que, de certa forma, é uma característica recorrente da história de nossa legislação punitiva. Lamentando tal fato, Oscar de Macedo Soares constatou que as penitenciárias de Pernambuco, Bahia, São Paulo, bem como a Casa de Correção da Capital do País, não se prestavam ao sistema de penas adotado pelo Código Penal. Concluía, assim, que “a reforma penitenciária é uma questão de atualidade que se impõe ao nosso legislador”.35 Verifica-se, dessa forma, o prolongamento da estrutura prisional do tempo do Império, com avanços pontuais, como as Colônias Correcionais da Ilha dos Porcos (Anchieta), em Ubatuba/SP, e de Dois Rios, na Ilha Grande/RJ. As colônias correcionais, embora não previstas, originariamente, no Código de 1890, foram criadas pelo Decreto no 145, de 1893, e pela Lei no 947, de 1902, substituindo a “pena de prisão com trabalhos”, ficando nelas encarcerados os mendigos, vagabundos, vadios, capoeiras, prostitutas, cáftens, além de “menores viciosos”. Alcançavam, pois, aquela faixa da criminalidade onde se inseria a maior parte dos infratores que desafiavam o postulado republicano de “ordem e progresso”. Supostamente separados por categorias, na realidade, homens, mulheres, crianças e adolescentes conviveram, em tais colônias, num terrível estado de promiscuidade, violência física, abuso sexual, dentre outras mazelas do cárcere. Levados para tais prisões para, oficialmente, adquirirem aptidão por trabalho ou ofício, na prática restaram simplesmente segregados do ambiente urbano de onde viviam. Em 1891, a Câmara dos Deputados nomeou uma comissão para revisão do Código, que veio a ser presidida por João Vieira de Araújo, professor de Direito Criminal na Faculdade de Direito de Recife, que apresentou um projeto em 21/08/1893. Após pareceres de membros da sociedade civil e jurídica nacional, o próprio João Vieira de Araújo apresentou um substitutivo que, após discussão e apresentação de emendas, foi afinal aprovado em setembro de 1899. Foi então remetido ao Senado Federal onde, no entanto, não teve qualquer andamento. Em 1911, o então Ministro da Justiça, Esmeraldino Bandeira, demonstrou sua insatisfação com o diploma penal vigente e voltou-se a falar abertamente em reformas. No ano seguinte, durante o governo do Marechal Hermes da Fonseca, em que era Ministro da Justiça Rivadávia Corrêa, tentou-se, ainda uma vez, a reforma das leis penais. Galdino Siqueira, que era, à época, promotor de justiça em São Paulo, apresentou um projeto de reforma do Código de 1890. Tal projeto, também, não foi levado adiante, exatamente como o anterior. Foi, no entanto, no governo de Arthur Bernardes que se voltou a discutir o assunto. O Presidente nomeou o desembargador do Distrito Federal, Virgílio de Sá Pereira, para que elaborasse um novo projeto. Foi, então, publicado, no Diário Oficial de 23/12/1928, o projeto completo. Sobreveio o movimento armado de 1930, fazendo com que o Governo Provisório instituísse comissões com o fito de rever a legislação brasileira. A subcomissão penal 35. Soares, Oscar de Macedo. Op. cit., p. 144. 52
Capítulo IV | História do Direito Penal Brasileiro
foi presidida por Sá Pereira e composta também por Evaristo de Moraes e por Mário Bulhões Pedreira, que apresentou um substitutivo. Com a restauração do regime constitucional, o projeto foi submetido à Câmara, que o aprovou, reservando-se para posteriores modificações e o enviando ao Senado, tendo lá entrado em 1937. Enquanto isto, para remediar as dificuldades oriundas da legislação penal, que fora tremendamente modificada ao longo da assim chamada República Velha, o desembargador Vicente Piragibe criou uma consolidação das leis penais vigentes. Seu trabalho tornou-se lei pelo Decreto no 22.213, de 14/12/1932, que fez com que a Consolidação das Leis Penais se tornasse o novo estatuto penal brasileiro. Dentre os inúmeros diplomas que alteravam ou complementaram o Código de 1890, destacam-se os Decretos nos 16.588 e 16.665, ambos de 1924, que dispuseram sobre a “condenação condicional” e o “livramento condicional”. Sobre esses dois institutos, vide os Caps. XXX e XXXI, respectivamente.
4.5. O Código Penal de 1940
C
de Estado de 10/11/1937, que instituiu o Estado Novo, foi criada uma nova ordem nacional, em um regime de exceção que marcou o país por anos. Foi, então, fechado o Congresso Nacional, dissolvido o Parlamento e outorgada uma nova Carta Constitucional. No preâmbulo da nova Constituição, declarou-se a existência de um estado de apreensão que teria sido criado no país pela infiltração comunista, e que se tornava dia a dia mais profunda, exigindo remédios de caráter radical e permanente. Afirmou-se, também, que o Estado anterior não dispunha de meios que garantissem a preservação e a defesa da paz, da segurança e do bem-estar do povo. As profundas modificações decorrentes do novo status quo coincidiram com a doutrina totalitária que campeava na Europa, em especial em decorrência do Fascismo italiano e do Nazismo alemão. No Estado Novo, com o Congresso fechado, instituíram-se, por meio da superlativa expressão Decreto-lei, novos delitos, sendo-lhes cominada a pena capital. Foi o retorno desta modalidade de pena ao direito pátrio. O art. 122, item 13, da Carta Política, om o golpe
descrevia inúmeras condutas suscetíveis de pena de morte, entre elas o homicídio qualificado pelo motivo fútil e com extremos de perversidade (alínea f). Também eram previstos neste dispositivo constitucional alguns crimes típicos da Lei de Segurança Nacional, v.g., a tentativa de desmembramento político de um dos Estados Federados, e crimes políticos, todos punidos com a pena máxima.36 36. Shecaira, Sérgio Salomão; Corrêa Jr., Alceu. Op. cit., p. 42-43. Raúl Zaffaroni, Nilo Batista e outros alertam, porém, para os riscos de uma “simplificação grosseira” do período que vai de 1930 a 1945, quando analisado unicamente por sua face 53
Curso de Direito Penal | Parte Geral
De toda maneira, fazia-se necessária a reforma da legislação penal. O então Ministro da Justiça, Francisco Campos, resolveu confiá-la ao Professor Alcântara Machado, da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo e que, como membro da Comissão de Constituição e Justiça do Senado do governo anterior, participara do estudo do Projeto Sá Pereira. Em 15/05/1938, ficou pronto um anteprojeto de Parte Geral do Código Criminal Brasileiro, contendo 132 artigos. Já no dia 11 de agosto daquele mesmo ano, foi completado o trabalho, com a sua Parte Especial, totalizando 390 artigos. O próprio Alcântara Machado fez imprimir e distribuir o seu anteprojeto, pretendendo torná-lo conhecido do público. O Governo Federal resolveu instituir, destarte, uma comissão de revisão do Projeto Alcântara Machado, composta por Costa e Silva, Vieira Braga, Nélson Hungria, Narcélio de Queirós e Roberto Lyra, presidida pelo Ministro Francisco Campos, tendo sido a redação final feita por Abgar Renault. Os trabalhos de revisão duraram dois anos, mas, por ironia, não contaram com participação justamente de Alcântara Machado, o autor do Projeto, tendo sido bastante conhecidas as discordâncias entre eles.37 Com isso, o Código acabou por ser bastante diverso do Projeto do Professor paulista. O Código que veio a ser promulgado em 07/12/1940 está em vigor até os dias de hoje. Na mesma data, entraram também em vigor a Lei das Contravenções Penais, a Lei de Introdução ao Código Penal e o Código de Processo Penal.38 No que diz respeito ao Direito Penal, priorizou-se a pena privativa de liberdade, sob nova sistemática: reclusão e detenção, para crimes ou delitos, e prisão simples, para contravenções. Ao lado dessas, foram ainda previstas a multa e as penas acessórias, como a publicação da sentença, a interdição temporária e a perda da função pública. A suspensão condicional da pena e o livramento condicional passaram a integrar definitivamente o Código Penal. O Código inovou, ainda, fazendo “ingressar na órbita da lei penal as medidas de segurança”.39 Na verdade, apesar de sistematizadas por Karl Stooss, por meio do seu Anteprojeto do Código Suíço de 1893, elas teriam como antecedente direto o modelo autoritária. Tratou-se, de fato, de um Governo bastante controvertido, marcado tanto pelo totalitarismo, com a criação do Tribunal de Segurança Nacional, como pelo populismo, com Vargas sendo chamado de “pai dos pobres”. Era indiscutível, porém, o seu caráter nacionalista e xenofobista. (Cf. Zaffaroni, E. Raúl; Batista, Nilo; Alagia, Alejandro; Slokar, Alejandro. Op. cit., p. 461). Especificamente sob o aspecto punitivo, foi uma era de intensa produção legislativa, que oscilou desde a previsão da pena capital e mesmo a retroatividade da lei penal tipificadora de crimes e cominadora de penas (Decreto n o 4766, de 1o/10/1942), num extremo punitivo, até o indulto coletivo dos condenados e acusados de vadiagem e capoeiragem, dentre outros ilícitos (Decreto no 19.445/1930), bem assim a introdução do instituto da redução dos prazos prescricionais à metade para os menores de 21 anos (Decreto-lei n o 22.494/1933). Tudo isso, sem esquecer o movimento que edificou o Código Penal de 1940, que, sobrevivendo a nada menos do que cinco Constituições Federais e à Reforma Penal de 1984, continua impressionantemente em vigor até os dias de hoje (Parte Especial). 37. Marques, José Frederico. Tratado de Direito Penal. Vol. I. Campinas: Millennium, 2002, p. 101. 38. Cf. Fragoso, Heleno Cláudio. Op. cit., p. 76. 39. E. M. do CP/1940, item 33. 54
Capítulo IV | História do Direito Penal Brasileiro
italiano – ou seja, o famoso Código Rocco de 1930. Denominadas, pela Exposição de Motivos do Código de 1940, como “ações de prevenção e de assistência social aos portadores de estado de periculosidade”, as medidas de segurança eram patrimoniais ou pessoais, subdividindo-se, as últimas, em detentivas ou não detentivas.
4.6. O movimento de Reforma Penal
E
Governo brasileiro decidiu promover uma reforma do Código Penal brasileiro. Foi confiada a Nélson Hungria a tarefa de elaborar um anteprojeto, que veio, afinal, a ser apresentado em 1963, dando-se-lhe ampla divulgação. Em 1964, o Ministro da Justiça, Milton Campos, designou comissão revisora, da qual fizeram parte não só o autor, mas também os professores Aníbal Bruno e Heleno Cláudio Fragoso. O trabalho desta comissão não chegou a ser divulgado. O anteprojeto foi, então, submetido a nova comissão, desta feita composta por Benjamin Moraes Filho, Heleno Cláudio Fragoso e Ivo D’Aquino, dada a necessidade de uniformizar os textos dos projetos de Código Penal e de Código Penal Militar. O projeto foi promulgado pelo Decreto-Lei no 1.004, de 21/10/1969, para que entrasse em vigor em 01/08/1970. O prazo de vacância foi, entretanto, sucessivamente prorrogado, sob o argumento de que dever-se-ia aguardar a aprovação do novo Código de Processo Penal, de autoria do Professor José Frederico Marques. Afirmava-se pretender que ambos os Estatutos Penais entrassem em vigor juntos. Já em 31/12/1973, pela Lei no 6.016, em atendimento às inúmeras críticas formuladas ao Código, foram feitas mudanças no modelo original. Após quase dez anos de vacância, em 11/11/1978, a Lei no 6.578 finalmente revogou o Código Penal de 1969, por já não mais corresponder às necessidades do país.40 Ressalte-se que, após a deposição do Presidente João Goulart, fechamento do Congresso, cassação de políticos, juízes, catedráticos, perseguição de estudantes e repressão de opositores, os militares que tomaram o poder, escorados na ideologia da segurança nacional, impuseram um novo modelo punitivo ao País. Reservaram para o Direito Penal a crucial missão: servir de repressão política, por meio do instrumental que compreendia desde espionagem e polícia secreta até a Justiça Penal Militar. Assim, a prisão funcionou não só como privação da liberdade, mas, particularmente, lugar de suplícios, torturas e mortes. Lá, onde estavam – ou jamais saíram – os rotulados presos comuns, foram também lançados os presos políticos, isto é, os enquadrados na Lei de Segurança Nacional. Além da pena privativa de liberdade, assistiu-se ao retorno da pena capital, bem como da pena de banimento, ambas destinadas aos chamados subversivos, tudo secundado por Atos Institucionais com força de normas constitucionais. Paralelamente a isso, a já referida superpopulação carcerária atingia níveis alarmantes. Diante do estado geral das prisões do País, foram propostas ou efetivadas m 19 6 1, o
40. Fragoso, Heleno Cláudio. Op. cit., p. 81. 55
Curso de Direito Penal | Parte Geral
algumas alterações legislativas. Introduziram-se as figuras de regimes prisionais: fechado, semiaberto e aberto. A partir de 1980, o Ministério da Justiça instituiu Comissão comandada por Francisco de Assis Toledo para examinar e emitir parecer sobre projetos nessa área. Outra Comissão ficou incumbida da compatibilização do estatuto processual com o Anteprojeto de Código de Execuções, elaborado pelo então Conselho Nacional de Política Penitenciária. Estendido ao Código Penal, o trabalho daquelas comissões, que contaram com colaborações de inúmeros profissionais do Direito, originou uma nova Comissão, composta por diversos professores e presidida por Francisco de Assis Toledo. A reforma da Parte Geral do Código Penal foi extensa e realizada em clima de ampla discussão teórica e democrática.41 Além de mudanças na Teoria do Delito, especialmente no tocante à culpabilidade, a reforma penal foi bastante expressiva. Aboliram-se as penas acessórias, embora algumas passassem a figurar como efeitos da condenação. Aboliu-se também o sistema do duplo binário, sendo substituído pelo sistema vicariante: pena ou medida de segurança, a última destinada aos inimputáveis ou, excepcionalmente, aos semirresponsáveis que necessitem de especial tratamento curativo. Manteve-se o sistema progressivo de cumprimento de pena, com os três estágios: regime fechado, semiaberto, aberto. O livramento condicional e a suspensão condicional da pena foram igualmente revigorados, aquele sendo possível após o cumprimento de 1/3 ou 1/2 da pena, se primário ou reincidente, conforme o caso, e este cabível, em regra, para o condenado primário com pena de até dois anos. Agregue-se que foram estabelecidas três espécies de penas (1) privativas de liberdade, persistindo-se na disjuntiva “reclusão e detenção”; (2) restritivas de direito, subdivididas em prestação de serviços à comunidade, limitação de final de semana e interdição temporária de direito; e (3) multa, retomando o modelo de dias-multa do Código Criminal do Império. A Lei no 7.210 – Lei de Execução Penal –, publicada e em vigor junto com a nova Parte Geral do Código Penal, retirou a execução das penas e medidas de segurança do “hiato de legalidade” apontado por Manoel Pedro Pimentel, consolidando a autonomia desse ramo do Direito. Com efeito, a sistemática introduzida pela Lei de Execução Penal – incorporadora, em larga medida, dos postulados contidos nas Regras Mínimas da ONU – possui como vetores, os princípios da legalidade, da jurisdicionalidade e da ressocialização do condenado. Por meio do primeiro, as penas catalogadas no Código Penal ou em leis extravagantes devem ser executadas de conformidade com a Lei, com o Regulamento e com a sentença condenatória respectiva.42 Também em 1984, veio a lume um anteprojeto de Parte Especial. Foi formada, então, comissão revisora do anteprojeto, formada por Francisco de Assis Toledo, Luiz Vicente 41. Cf. Shecaira, Sérgio Salomão; Corrêa Jr., Alceu. Op. cit., p. 45. 42. Dotti, René Ariel. Problemas atuais da Execução Penal. In: Revista dos Tribunais, n. 563, São Paulo, p. 286. 56
Capítulo IV | História do Direito Penal Brasileiro
Cernicchiaro, Miguel Reale Júnior, René Ariel Dotti, Manoel Pedro Pimentel, Everardo da Cunha Luna, Jair Leonardo Lopes, Ricardo Nunes Andreucci, Sérgio de Morais Pitombo e José Bonifácio Diniz de Andrada. Do trabalho desta comissão, originou-se a Portaria no 790, de 27/10/1987, com a íntegra do anteprojeto. Este projeto não chegou a ser objeto de discussão no Congresso Nacional. No governo seguinte, foi constituída nova Comissão, pelo Ministro da Justiça, à época, Maurício Corrêa, com o fito de promover a tão necessária reforma da Parte Especial do Código Penal. A Comissão foi presidida pelo Ministro Evandro Lins e Silva e composta pelos seguintes juristas: Francisco de Assis Toledo, Luiz Vicente Cernicchiaro, Alberto Silva Franco, Luíza Eluf, Jair Leonardo Lopes, Hélio Bicudo, João Marcello de Araujo Junior, Juarez Tavares, René Ariel Dotti e Wandenkolk Moreira, tendo sido dividida em três subcomissões, cada qual encarregada de disciplinar os diversos ilícitos que constariam do ordenamento jurídico. A terceira subcomissão, composta pelo Ministro Evandro Lins e Silva e pelos quatro últimos membros listados, recebeu a incumbência de incorporar a extensa legislação extravagante ao corpo do novo Código Penal. Dos trabalhos das subcomissões, o Ministro Evandro Lins e Silva reuniu-os e criou um anteprojeto que foi entregue, em 1994, ao então Ministro da Justiça, Alexandre Dupeyrat, que não o submeteu ao Congresso Nacional. Já durante o governo do Presidente Fernando Henrique Cardoso, o Ministro da Justiça, Nelson Jobim, instituiu comissão integrada por Francisco de Assis Toledo, Elizabeth Sussekind, René Ariel Dotti, Vicente Greco Filho, Juarez Tavares, Miguel Reale Júnior, Antonio Lucho Ferrão e Alceu Loureiro Ortiz, de acordo com a Portaria 215, publicada no Diário Oficial da União, em 10/04/1995. Esta comissão pretendia alterar alguns setores do Código Penal, seguindo a mesma experiência legislativa que deu causa às recentes alterações no Diploma Civil Adjetivo. Tal Comissão, entretanto, não chegou a levar a termo a sua tarefa, tendo o Ministro Íris Rezende acolhido também a ideia e, no final de 1997, constituído nova Comissão. Esta teve a peculiaridade de ter tido a indicação do Ministro Evandro Lins e Silva e do Professor Damásio Evangelista de Jesus como consultores. Era composta por Luiz Vicente Cernicchiaro (Presidente), Ney Moura Teles, Ela Wiecko Volkmer de Castilho, Licínio Leal Barbosa, René Ariel Dotti, Miguel Reale Jr. e Juarez Tavares, sendo que os três últimos solicitaram desligamento no dia 02/03/1998. Tendo em vista, de um lado, a necessidade de produção de um trabalho célere e, de outro, o consenso de que a Parte Geral, alterada por ocasião do movimento de reforma de 1984, não apresentava grandes problemas, a Comissão decidiu que a revisão da Parte Especial tomaria como ponto de partida o Esboço de 1994. Desta maneira e após intenso trabalho, que contou com a participação de diversos segmentos da sociedade civil, pôde trazer a lume o resultado publicado em 24/03/1998. De toda maneira, até aqui, segue vigente a Parte Especial de 1940, com alterações decorrentes de leis especiais. 57
Curso de Direito Penal | Parte Geral
4.7. O Direito Penal brasileiro do SÉCULO X XI
P
ode-se dizer que se viveu um novo modelo punitivo a partir de 1984 e, em particular, após o advento da Constituição Federal de 1988. Valores como a dignidade da pessoa humana e vedação de discriminações de qualquer natureza impregnaram o texto da Carta Política, a partir do seu Preâmbulo. Diversos postulados de Direito Penal, Processual Penal e Execução Penal foram inseridos na parte referente às garantias individuais. As seguintes figuras foram introduzidas pela Constituição de 1998: (1) a determinação de um tratamento severo para o que se denominou crimes hediondos e assemelhados (art. 5o, inc. XLIII); (2) a previsão de um tratamento mais brando para as infrações de menor potencial ofensivo, prevendo, para elas, a criação de juizados especiais, nas esferas estadual e, em seguida, federal (art. 98, I, e parágrafo único, acrescentado pela Emenda Constitucional no 22/1999). Ante essas determinações, no início da década de 1990, em função do recrudescimento de delitos graves, como a extorsão mediante sequestro, o legislador, sem qualquer preocupação sistêmica, promulgou a Lei no 8.072/1990, onde foram discriminados os chamados crimes hediondos, fixando, para eles e ilícitos assemelhados, com especial destaque para o citado tráfico de entorpecentes, um regime penal e processual penal diferenciado.43 Além de vedar anistia, graça, indulto, fiança e liberdade provisória, a Lei dos Crimes Hediondos disciplinou que a pena fosse cumprida em regime integralmente fechado e que o livramento condicional fosse concedido somente após o cumprimento de 2/3 da pena, salvo se se tratar de reincidente em crime hediondo, ocasião em que não será concedido este direito prisional. Em outras palavras, optou-se por selecionar um grupo de ilícitos que já existiam dentro do catálogo sistêmico-penal do País, etiquetá-lo como hediondo, conferindo-lhe pena de prisão de longa duração, sem possibilidade de sua substituição por outra espécie ou por regime de cumprimento de pena menos gravoso. Enfim, alterou a sistemática recém-adotada pela mencionada Reforma Penal. O segundo comando constitucional ora enfocado foi atendido pela Lei no 9.099/1995, que, em sentido diametralmente oposto à Lei no 8.072/1990, dispôs, dentre outras matérias, sobre as infraç de menor potencial ofensivo, vale dizer, as contravenções penais e os crimes a que a lei comine pena máxima não superior a um ano. A Lei no 10.259/2001, ao regulamentar os juizados especiais no âmbito federal, ampliou para dois anos aquele limite máximo de pena. Muito embora destinada à
43. Neste sentido, merece ser reproduzida a análise crítica de Alberto Silva Franco, verbis: “Sob o impacto dos meios de comunicação de massa, mobilizados em face de extorsões mediante sequestro, que tinham vitimizado figuras importantes da elite econômica e social do país (caso Martinez, caso Salles, caso Diniz, caso Medina etc.), um medo difuso e irracional, acompanhado de uma desconfiança para com os órgãos oficiais de controle social, tomou conta da população, atuando como um mecanismo de pressão ao qual o legislador não soube resistir.” (Franco, Alberto Silva. Crimes hediondos. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1992, p. 37). Em momento posterior, a Lei n o 8.930/1994 acresceu ao rol da Lei n o 8.072, o homicídio simples, quando praticado em atividade típica de grupo de extermínio, e o homicídio qualificado. 58
Capítulo IV | História do Direito Penal Brasileiro
esfera federal, a lei nova alcançou as infrações da esfera estadual, ampliando, assim, as infrações reguladas pela Lei no 9.099/1995.44 No escopo de intensificar as alternativas à pena de prisão, foi promulgada a Lei no 9.714/1998 (Lei das Penas Alternativas), que ampliou o leque de penas restritivas de direito, bem como o limite máximo para que esta substitua a pena privativa de liberdade, passando dos originais dois para quatro anos, conforme a redação atual dos arts. 43 e seguintes do Código Penal. O panorama punitivo contemporâneo caracteriza-se, do ponto de vista formal, pela multiplicidade de leis modificativas ou integrativas, tanto do Código Penal como da legislação especial, a maior parte feita para atender reclamos sociais isolados, sem maiores compromissos sistêmicos. A despeito das graves questões estruturais, dentre elas a superpopulação carcerária do País e a violação sistemática dos direitos humanos, a pena de prisão continuou a ser muitíssimo importante para todo o sistema repressivo. O Brasil está hoje entre os quatro maiores contingentes carcerários no mundo e sequer a excessiva superlotação carcerária serviu para que houvesse uma política importante de desencarceramento.45 Apesar disto, uma das novidades recentes foi que, com a implementação de penas e medidas alternativas, já há mais pessoas no Brasil submetidas a elas do que encarceradas, o que caracteriza uma importante expansão do sistema penal brasileiro como jamais vista na história do país. A democracia brasileira foi incapaz até aqui de estabelecer uma política criminal clara, seja para despenalizar, descarcerizar ou descriminalizar ou o contrário.46 Constata-se, na mesma esteira, a falta de ambiente político para a elaboração de um novo Código Penal. Só se consegue, quando muito, reformas setoriais, como, v.g., no caso de violência doméstica, drogas, armamento, lavagem de dinheiro etc. Permanece a dúvida no Brasil do século XXI se o modelo de codificação, embora sistêmico, com a dificuldade de se atingir consenso entre os Poderes da República é ainda viável, ou se ter-se-á que conviver com as reformas pontuais, mais ágeis e rápidas, porém passíveis de incongruências e contradições. Diante desse diagnóstico, redobra-se a necessidade da construção de uma dogmática jurídico-penal segura e substanciosa, temperando os extremos da legislação penal, tarefa que, de resto, justificou o próprio surgimento da ciência do Direito Penal.
44. Sobre o tema, vide Shecaira, Sérgio Salomão; Corrêa Jr., Alceu. Op. cit., p. 369. 45. Sobre população carcerária, vide:
. Acesso em 17/10/2011. 46. Conforme dito por Shecaira, há “certa dúvida se o Estado brasileiro, nos últimos anos, teve uma ou diversas políticas criminais. É que, ao mesmo tempo em que adotou leis mais repressoras, em atendimento ao chamado ‘Movimento da Lei e da Ordem’, de cujo paradigma, a Lei dos Crimes Hediondos, é a principal referência, e que se insere no firme propósito denominado de ‘expansão do Direito Penal’, também teve iniciativas mitigadoras, consubstanciadas nas Leis 9.099/95 e 9.714/98, que têm nítidos objetivos de fazer diminuir a carga punitiva do Estado.” (Shecaira, Sérgio Salomão. Criminologia. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 42). 59
título
I
capítulo
Q U E S TÕ E S F U N D A M E N TA I S D O D I R E I TO P E N A L
V
PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS DO DIREITO PENAL 5.1. Considerações gerais
U
deve, necessariamente, proteger os indivíduos utilizando-se do Direito Penal, mas deve também protegê-lo do próprio Direito Penal, cuja aplicação punitiva e, por vezes, vingativa, pode ser tão odiosa quanto a própria infração que gerou a sua utilização. Assim, fez-se mister que fossem estabelecidos princípios limitativos ao poder punitivo estatal. Aqui, optou-se por se tratar de alguns desses princípios, considerados como mais relevantes, embora muitos outros possam ser mencionados. Sendo assim, tem-se que a nossa disciplina está lastreada em quatro princípios fundamentais que, por sua vez, se desdobram em tantos outros. São eles: princípio da legalidade, princípio da culpabilidade, princípio da proteção de bens jurídicos (danosidade social), e princípio da humanização da pena. O primeiro guarda pertinência com o escopo político de limitação da ação do Estado, os dois seguintes com o estudo do delito e o último com a aplicação da sanção penal. Saliente-se, ainda, a importância dos princípios fundamentais para a compreensão do Direito Penal. Se, em outros ramos do saber jurídico, a diferenciação entre normas e princípios somente ganhou relevo com o recente constitucionalismo, no Direito Penal, essa distinção não somente tem raízes históricas, como condiciona, há tempos, aquilo que se convencionou denominar de dogmática jurídico-penal, tanto na sua vertente teórica como na prática.
60
m ordenamento jurídico
Capítulo V | Princípios fundamentais do Direito Penal
Nesse sentido, assinala Bernd Schünemann que o desenvolvimento dos princípios básicos no âmbito penal é muito mais propício do que em qualquer outro ramo científico, não somente pelo seu reduzido número, mas, igualmente, pela profundidade de seus significados, pela relação entre eles livre de antagonismos e, finalmente, por estarem firmemente arraigados, muito tempo antes do moderno debate constitucional.1 Dos princípios constantes deste Capítulo, não consta o princípio da legalidade, uma vez que, em razão da sua extrema relevância, foi destacado para ser analisado no Capítulo VI, adiante.
5.2. Princípio da culpabilidade
O
decorre da ideia de que cada um responde pelos seus atos, pois a responsabilidade penal é estritamente pessoal e subjetiva. Entendendo-se culpabilidade como juízo de reprovação que recai sobre o agente autor da conduta reprovável, somente deve ser penalmente reprovado aquele que, por sua conduta, tenha dado causa a resultado criminoso. Tal princípio remonta ao direito canônico da Idade Média. A sua importância, contudo, não está apenas na sua finalidade histórica, qual seja, legitimar a aplicação da pena. Na verdade, como bem ressaltado por Schünemann, todas as mudanças havidas nesses muitos séculos de cultura europeia denotam, cada vez mais, a correção e importância do princípio da culpabilidade, de tal modo que se pode afirmar que a história do princípio da culpabilidade é a história da sua realização, de forma cada vez mais pura.2 A pena criminal somente se justifica se o agente devia evitar e, também, se podia evitar o ilícito praticado. Fora daí, a punição é injusta, é punição pela mera relação objetiva entre causa e efeito; entre a ação e o resultado desvalioso. Nesse sentido, o princípio da culpabilidade também representou uma paulatina conquista dos cidadãos contra o arbítrio dos órgãos estatais. O princípio da culpabilidade surgiu e se consolidou e a partir da ideia de que a caracterização do delito e, portanto, a imposição da pena, pressupõe – sempre – um comportamento humano voluntário. Há de se respeitar a dimensão subjetiva do atuar humano. Não se pode punir alguém apenas pela vinculação objetiva de seu atuar e o resultado desvalioso. Exige-se que tenha operado com dolo ou culpa stricto sensu. Isto é o princípio da culpabilidade. Evidentemente, ele se desdobra em muitos outros, haja vista sua carga de complexidade. Cumpre, assim, observar que a doutrina princípio da culpabilidade
1. Schünemann, Bernd. La relación entre ontologismo y normativismo en la dogmática jurídico-penal. Trad. Mariana Sacher. In: Obras. Tomo I. Santa Fe: Rubinzal, 2009, p. 204. 2. Idem, p. 204. Nesse sentido, Francisco de Assis Toledo assinala que a evolução do Direito Penal, através dos tempos, está intimamente ligada à evolução da ideia de culpabilidade. Sendo assim, quanto mais se aperfeiçoa e se enriquece o conceito de culpabilidade, mais se concentra e se reduz a área de utilização da pena criminal. Em suma, o desenvolvimento do princípio da culpabilidade seria – para este doutrinador – o mais importante instrumento de descriminalização indireta do Direito Penal. (Toledo, Francisco de Assis. Princípios básicos de Direito Penal. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 1994, p. 254). 61
Curso de Direito Penal | Parte Geral
reconhece, basicamente, duas grandes funções ao princípio sob comento: pressuposto e limite de toda punição. Relativamente à primeira função, o exemplo anterior bem esclareceu que o princípio da culpabilidade afasta a responsabilidade penal objetiva (sem culpa) e exige que se cause um resultado doloso ou, ao menos, culposamente. O segundo desdobramento do princípio vem a corresponder ao critério de dosimetria da punição: a culpabilidade é o parâmetro da pena; não pode a pena ser superior à culpa do agente. Deve ser proporcional ou adequada ao desvalor da ação praticada.3 Ressalte-se, todavia, que não se poderá punir simplesmente porque a ação deu causa a um resultado típico. Deve haver um componente subjetivo (dolo ou culpa) que reprove a conduta do sujeito, que é a medida da pena.4
5.3. Princípio da lesividade ou da ofensividade
O
também conhecido como ofensividade, é aquele segundo o qual somente pode ser considerada merecedora de tutela penal, a conduta que seja apta a expor à risco ou a causar dano a bem jurídico penalmente relevante. Uma norma penal, portanto, deve necessariamente proteger um interesse jurídico fundamental contra lesões ou risco de lesões. Dessa maneira, veda-se o estabelecimento de delitos que sejam meras infrações de obrigações ou de deveres, o que significaria uma excessiva intervenção estatal, que não pode ser aceita. Cuida-se, portanto, de um importante critério político criminal sobre aquilo que se pode criminalizar e o que se deve deixar impune. Conforme exposto por Claus Roxin, este princípio deriva do compromisso do Direito Penal de ser vocacionado à proteção subsidiária de bens jurídicos. O autor ilustra sua assertiva com as reformas penais que, na década de 1970, excluíram os delitos de homossexualidade e sodomia entre adultos (§§ 175 e 175 B) do Código Penal Alemão.5 Segundo Roxin, embora possam ser ações que muitos podem reputar “imorais”, mas quando realizadas entre pessoas adultas, de forma plenamente consciente e sem molestar outros, não menoscabam nem “direitos individuais” nem “bens” no sentido de interesses protegíveis ou valiosos. Em suma, falta-lhes uma lesividade social.6 princípio da lesividade ,
3. Prado, Luiz Regis. Curso de Direito Penal Brasileiro. Vol. 1. 9. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, p. 145. 4. Bitencourt, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal. Vol. 1. 14. ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 15. 5. No Brasil, o homossexualismo ou a sodomia entre pessoas adultas e capazes não é crime desde o CP/1940. Remanesce, contudo, a punição da “pederastia” no Código Penal Militar (art. 235, do CPM). 6. Roxin, Claus. Op. cit., p. 52. Sobre o assunto, Bernd Schünemann formula a seguinte indagação: onde deve ser encontrado o “ponto arquimédico” do princípio da lesividade? O próprio autor responde: na ideia fundamental da limitação estatal derivado do conceito do contrato social, tal como ele se impôs desde cerca de 250 anos e tal como deve projetar sua máxima eficácia racional nos tempos atuais, por intermédio de uma compreensão mais intensa do que nunca acerca da racionalidade do Direito Penal (Schünemann, Bernd. El principio de protección de bienes jurídicos como punto de fuga de los límites constitucionales de los tipos penales y de su interpretación. In: La teoría del bien jurídico. Roland Hefendehl (org.). Madrid: Marcial Pons, 2007, p. 203). 62
Capítulo V | Princípios fundamentais do Direito Penal
No nosso país, a Lei no 11.106/2005 revogou, dentre outros, o delito de adultério, então capitulado no art. 240, do CP, tendo vista, justamente, que o bem jurídico que era objeto de tutela – a fidelidade matrimonial recíproca – deixou de possuir ofensividade penal, devendo eventual infração daquele dever conjugal ser resolvida na esfera civil (arts. 1.566, I, e 1.573, I, do CC).
5.4. Princípio da humanidade ou da humanização da pena Ihering, a história da pena é a “história da sua abolição constante”.7 Sendo assim, como visto nos capítulos destinados à análise da trajetória das práticas punitivas, tanto no mundo como no Brasil, as sanções mais extremas e inumanas foram paulatinamente substituídas por formas menos severas ou mais brandas. É nessa perspectiva que se insere o princípio da humanidade ou da humanização da pena. Por conta dessa noção, tem-se que as necessidades de prevenção e repressão à delinquência não podem autorizar o emprego de medidas que gerem excessivo e desnecessário sofrimento ao indivíduo. Em outros termos, afirma-se que, em decorrência do princípio da humanização da pena, não se admite imposição de sanções infamantes ou cruéis, tais como os castigos corporais ainda existentes em alguns ordenamentos jurídicos. Sustenta-se, ainda, que tal princípio interdita a adoção da pena de morte ou de caráter perpétuo, visto que ambas são modalidades de penas eliminatórias do ser humano. O princípio se projeta para inúmeras áreas do Direito Penal. Cite-se, por exemplo, a figura do crime continuado, surgida na Idade Média, quando preponderava a regra de que o terceiro furto importava na imposição da pena capital. Dessa feita, nos casos em que várias subtrações banais eram amiúde cometidas, às vezes em uma mesma noite, redundando no desproporcional enforcamento do ladrão, os práticos desenvolveram a ideia de que a série de infrações, perpetradas nas mesmas circunstâncias de tempo, lugar e modo de execução, deveriam ser consideradas como um único delito, recebendo uma única pena de prisão, mas sem a aplicação da sanção extrema. Dessa iniciativa dos práticos, o delito continuado foi acolhido pelos teóricos e subsequentemente reconhecido pela generalidade das legislações contemporâneas (cf. Capítulo XXVII). O caráter de humanização na aplicação da pena do crime continuado é tão evidente que ele prepondera, inclusive, na sucessão de leis penais (Súmula 711, do STF).
S
egundo Rudolf von
5.5. Outros princípios fundamentais do Direito Penal
C
quatro princípios basilares anteriormente indicados desdobram-se em muitos outros. Dessa maneira, os doutrinadores reconhecem a existência de certos princípios fundamentais que foram, inclusive, consagrados jurisprudencialmente. omo dito, os
7. Cf. Pereira, José Hygino Duarte. Op. cit., p. 7. 63
Curso de Direito Penal | Parte Geral
5.5.1. Princípio da dignidade humana
Substancialmente, dignidade humana importa no reconhecimento do ser humano não como coisa, mas, sim, como pessoa; não como meio, mas como fim da atividade estatal. A partir daí, pode-se falar no surgimento de um núcleo indestrutível de prerrogativas que o Estado não pode deixar de reconhecer.8 Por conta deste princípio, há de se observar, nas alternativas penais à privação da liberdade, que as atividades a serem desempenhadas pelo condenado não podem consistir na realização de atividades atentatórias à sua dignidade, como, v.g., o cumprimento de obrigação de doação de sangue ou ler a bíblia em voz alta numa praça da cidade etc. Outro exemplo prático desse postulado pode ser identificado nas sucessivas alterações legislativas havidas no delito de redução a condição análoga à de escravo (art. 149, do CP). Isso decorreu, efetivamente, da crescente conscientização e repúdio social à odiosa prática do trabalho escravo no Brasil. Sob outra vertente, observe-se que a dignidade humana imbrica-se com o princípio da proporcionalidade, isto é, tem-se que aquele postulado pode vir a ser violado por uma lei que crie uma criminalização simbólica (isto é, sem relação com um bem jurídico relevante), ou por uma lei que agrave desmensuradamente uma pena (tratando, o infrator, como um não portador de direitos). Em sentido inverso, esse princípio pode ser violado pela ausência de normatização penal, como, por exemplo, por uma hipotética lei que descriminalize uma conduta materialmente atentatória de um bem jurídico relevante ou, por fim, que minore excessivamente a pena do respectivo infrator, conforme verificado do exame do princípio da proporcionalidade (criação de um déficit de punição). 5.5.2. Princípio da intervenção mínima
O princípio da intervenção mínima estabelece que o Direito Penal não deve proteger qualquer bem jurídico, mas, somente aquele que se concebe como um bem jurídico penal, ou seja, os valores mais caros à sociedade, sem os quais a sociedade não terá condições de permanecer como tal. Dito de outro modo, só deve ser utilizado contra determinadas formas de ataque ou ameaça para aqueles bens. Só deve ainda ser utilizado quando fracassarem ou demonstrarem-se ineficientes outros ramos do Direito (princípio da ultima ratio). Nesse sentido, o princípio da intervenção mínima diferencia um bem jurídico penal do bem jurídico em sentido geral. O bem jurídico lato sensu é todo e qualquer valor importante para a sociedade, cuja proteção venha a ser determinada por força de lei, ou por força de ato administrativo. Já os bens jurídicos penais são os valores essenciais, 8. Prado, Luiz Regis. Op. cit., p. 143. Com base no princípio da dignidade da pessoa humana, o STF editou a Súmula Vinculante 11: “Só é lícito o uso de algemas em casos de resistência e de fundado receio de fuga ou perigo à integridade física própria ou alheia, por parte do preso ou de terceiros, justificada a excepcionalidade por escrito, sob pena de responsabilidade disciplinar, civil e penal do agente ou da autoridade e de nulidade da prisão ou do ato processual a que se refere, sem prejuízo da responsabilidade civil do Estado.” 64
Capítulo V | Princípios fundamentais do Direito Penal
que devem constituir o núcleo central do estado democrático de direito. Desse, por exemplo, fazem parte a vida, o patrimônio, a identidade corporal e a liberdade psíquica ou individual. O princípio da intervenção mínima tem duas faces: nega a possibilidade de o Direito Penal proteger bens jurídicos que não são essenciais e, de outro lado, determina que o Direito Penal proteja os bens jurídicos considerados essenciais. O postulado da intervenção mínima confunde-se, como visto, com a noção de ultima ratio. Trata-se, em suma, de um postulado político-criminal protetivo do cidadão e restritivo da atividade interventiva do Estado. 5.5.3. Princípio da fragmentariedade e da subsidiariedade
Intimamente ligado ao já mencionado princípio da intervenção mínima, o princípio da fragmentariedade estabelece que o Direito Penal tutela apenas algumas das condutas em que existe violação de um bem jurídico e não de todas, fazendo da intervenção penal fragmentar ou pontual no contexto de todo o ordenamento jurídico. Por sua vez, deve haver subsidiariedade, pois se exige que o Direito Penal somente venha a ser utilizado para proteção de bens jurídicos quando os demais ramos do direito não tenham se mostrado suficientes para protegê-los de forma eficaz. 5.5.4. Princípio da insignificância
Por intermédio deste princípio, tem-se que lesões ou ameaças de mínima relevância para bens jurídicos não devem ser objeto de consideração por parte do Direito Penal. Este princípio – também conhecido como princípio da bagatela – foi teorizado por Claus Roxin e é complementar dos demais anteriormente registrados, visto que mesmo quando uma determinada conduta possa formalmente ser tida como criminosa, poderá ser inconveniente a reação punitiva estatal. Em outros termos, segundo o postulado da insignificância (ou princípio de minimis non curat praetor), deve-se excluir da abrangência do Direito Penal as condutas provocadoras de ínfima lesão ao bem jurídico tutelado. Segundo a jurisprudência do STF e do STJ, para o reconhecimento da incidência desse princípio, devem ser levados em consideração os seguintes requisitos: (1) inexpressividade da lesão jurídica; (2) mínima ofensividade da conduta do agente; (3) ausência de periculosidade social; e (4) reduzido grau de reprovabilidade do comportamento.9 Em síntese, acionar o aparato penal porque um cidadão primário, sem antecedentes criminais, subtraiu, episodicamente, objeto em valor inferior a dez reais de um grande 9. Cf.: “1. A aplicação do princípio da insignificância deve observar alguns vetores objetivos: a) a mínima ofensividade da conduta do agente; b) nenhuma periculosidade social da ação; c) o reduzíssimo grau de reprovabilidade do comportamento; e d) a inexpressividade da lesão jurídica provocada. (...)” (AI 662132 AgR. STF. Rel. Min. Ricardo Lewandowski. Primeira Turma. DJ de 05/06/2009). No mesmo sentido: STF. HC 97772. Rel. Min. Cármen Lúcia. Primeira Turma. DJ de 20/11/2009. No STJ: “Para a incidência do princípio da insignificância, necessários se fazem a mínima ofensividade da conduta do agente, a nenhuma periculosidade social da ação, o reduzido grau de reprovabilidade do comportamento e a inexpressividade da lesão jurídica provocada. Precedentes do STF. (...).” (STJ. REsp 984723. Rel. Min. Og Fernandes. Sexta Turma. DJ de 02/02/2009). 65
Curso de Direito Penal | Parte Geral
estabelecimento comercial, por exemplo, importaria na violação do princípio da insignificância ou da bagatela.10 5.5.5. Princípio da proporcionalidade
O princípio da proporcionalidade objetiva, de imediato, uma justa correlação entre a gravidade do fato perpetrado pelo agente e a sanção penal correspondente. A proporcionalidade deve ser obedecida tanto na elaboração, como na aplicação e na execução da lei penal. Sendo assim, o princípio restará descumprido quando o legislador criar ou majorar determinada figura delitiva, fixando, desproporcionalmente, uma reprimenda penal elevada. Na mesma esteira, quando o julgador aplicar uma sanção penal em quantidade superior às circunstâncias evidenciadas no caso concreto ou, ainda, quando no curso do cumprimento da pena, for imposto ao apenado um regime de cumprimento mais severo do que aquele indicado no caso concreto. Um caso que parece evidenciar a violação do princípio da proporcionalidade é a norma penal contemplada no art. 273, § 1o-A, do CP, qual seja, a de falsificação de cosméticos ou saneantes (v.g., um esmalte de unhas, um creme contra celulites, ou um desinfetante doméstico), equiparada, desproporcionalmente, com a falsificação de medicamentos, e submetida à pena privativa de liberdade de dez a quinze anos de reclusão, além de multa. O princípio da proporcionalidade pode ser violado, como visto, pelo excesso da intervenção penal, mas pode, igualmente, ser atingido pela insuficiência da regulação penal. Imagine-se a hipótese de uma lei, regularmente aprovada e promulgada, que descriminalize o homicídio ou o estupro. Embora vigente, cuidar-se-ia de uma norma vulneradora do princípio da proporcionalidade tendo em vista a gravidade da conduta e a ausência de adequada reação punitiva estatal. Em suma, o princípio da proporcionalidade se desdobra nos princípios da vedação da proibição do excesso e da vedação da proteção insuficiente ou deficiente de bens jurídicos. 5.5.6. Princípio da individualização da pena
Este princípio, que possui previsão constitucional (art. 5o, XLV e XLVI, da CF/1988), preconiza que a pena não poderá passar da pessoa do condenado. Prevê, ainda, que o processo de individualização da sanção penal há de pressupor três fases distintas: (1) fase legislativa: escolha das espécies de penas que irão cominar determinado comportamento penal; (2) fase judiciária: consistente na operação jurídica de fixação da pena que será imposta ao autor do fato típico, ilícito e culpável, levando-se em consideração, dentre outros dispositivos, os arts. 59 e 68, do CP; e (3) fase administrativa: consistente 10. Cf.: “(...) a receptação de um walk man, avaliado em noventa e quatro reais, e o posterior comparecimento do paciente perante a autoridade policial para devolver o bem ao seu dono, preenchem todos os requisitos do crime de bagatela, razão pela qual a conduta deve ser considerada materialmente atípica.” (STF. HC 91920. Min. Joaquim Barbosa. Segunda Turma. DJ de 12/03/2010). 66
Capítulo V | Princípios fundamentais do Direito Penal
no cumprimento da pena após o trânsito em julgado da sentença penal condenatória, nos termos regulados na Lei de Execução Penal. Nesse sentido, decidiu o STF que o processo de individualização da pena é um caminhar no rumo da personalização da resposta punitiva do Estado, desenvolvendo-se em três momentos individuados e complementares: o legislativo, o judicial e o executivo. Logo, a lei comum não tem a força de subtrair do juiz sentenciante o poder-dever de impor ao delinquente a sanção criminal que a ele, juiz, afigurar-se como expressão de um concreto balanceamento ou de uma empírica ponderação de circunstâncias objetivas com protagonizações subjetivas do fato-tipo.11
5.5.7. Princípio da adequação social
Desenvolvido por Hans Welzel, o princípio da adequação social da conduta parte da premissa de que comportamentos historicamente desenvolvidos dentro de um contexto social positivo, adequados, portanto, aos valores ético-sociais tutelados pelo direito, não poderão nunca ser tidos como ilícitos, ainda que, literalmente, venham a se amoldar num tipo penal.12 O princípio da adequação social constitui regra geral de interpretação das normas penais incriminadoras e concretiza a ideia de que o tipo penal foi criado como forma de viabilizar a vida social e não como forma de mudar a vida social. Se, com uma modificação social, determinado comportamento penalmente reprovado passar a ser socialmente aceito, não se justifica a intervenção penal. É o caso de se furar a orelha de uma recém-nascida. Formalmente, constituir-se-ia um delito de lesões corporais de natureza leve (art. 129, caput, do CP). Todavia, trata-se de um comportamento socialmente aceito, visto, inclusive, como sinal de amor e carinho dos pais para com a filha. O mesmo vale para outros comportamentos sociais, como cirurgias de mudança de sexo, violência desportiva ou dar lembranças ou cestas de natal para funcionários públicos. Contudo, conforme salientado por Claus Roxin, apesar de sua importância científica, o princípio da adequação social possui uma acidentada evolução teórica, uma vez que o próprio Welzel considerou que, num primeiro momento, a adequação social funcionaria como causa de justificação de matriz consuetudinária. Numa etapa seguinte, passou a interpretá-lo como forma de restrição do tipo penal. Atualmente, a doutrina delimita de modo diverso o campo e aplicação da adequação social, visto que enquanto um setor a considera um caso de exclusão do tipo, outro a trata como causa de justificação, e outro, inclusive, como causa de exculpação; muitos autores a rechaçam, devido à imprecisão de seus critérios, por ser perigosa para a segurança jurídica e supérflua em relação aos métodos reconhecidos de interpretação, ou só a admitem como princípio interpretativo geral.13 11. STF. HC 97256. Plenário. Min. Ayres Britto. DJ de 16/12/10. 12. Welzel, Hans. Derecho Penal Aleman. Parte General. Trad. Bustos Ramírez. 11. ed. Santiago de Chile: Ed. Jurídica, 1997, p. 66. 13. Roxin, Claus. Derecho Penal..., cit., p. 293-294. 67
t í t u lo
II
TEORIA GER AL DA LEI PENAL
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título
capítulo
II
teoria ger a l da lei penal
VI
LEI PENAL E NORMA PENAL 6.1. Considerações gerais
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e da norma penal compreende uma significativa parte da nossa disciplina, dedicada, em linhas gerais, ao estudo da lei e da norma penal, bem como aos problemas relacionados com o conflito de leis penais no tempo e no espaço. O presente capítulo será dedicado ao estudo das características elementares da lei e da norma penal, tanto no que diz respeito à sua peculiar técnica legislativa, às suas fontes de produção, bem assim aos meios e formas de sua interpretação. Os aspectos concernentes à lei penal no tempo e no espaço serão analisados nos capítulos seguintes. teoria da lei
6.2. Estrutura da lei penal
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demais, as normas penais são compostas de duas partes, figurando, na primeira, o comando ou o preceito e, na segunda, a consequência do seu descumprimento ou a sanção. Além disso, as normas jurídico-penais, da mesma forma que as outras, são dotadas dos caracteres da generalidade, da abstração, da bilateralidade – pois estabelecem direitos e, em contrapartida, impõem obrigações –, bem como da coercibilidade e da imperatividade.1 omo todas as
1. Cf. Fragoso, Heleno Cláudio. Op. cit., p. 89. 71
Curso de Direito Penal | Parte Geral
A propósito, ao analisar a estrutura das normas jurídicas, Luiz Regis Prado observa que nelas existem duas funções básicas: (1) a função valorativa, visto que ela seleciona os bens que serão protegidos pelo ordenamento jurídico, considerando, a contrario sensu, desvaliosa a conduta que lesione ou ameace tais bens; e (2) a função determinativa, pois, frente àquela missão protetiva, a norma impõe um dever-ser, ou seja, uma abstenção de lesão (normas proibitivas) ou um agir para evitar que esta lesão ocorra (normas mandamentais). Sendo assim, segundo aquele autor, deve-se concluir que existe uma superposição normativa ou congruência entre as funções: valorativa e determinativa.2 Sob outra vertente, cumpre atentar que o dever-ser, isto é, o conteúdo deôntico das normas jurídicas, tem por escopo um comportamento humano passível de ser realizado pela generalidade das pessoas. Exemplo: A norma jurídica não pode impor a um homem adulto que não nasça barba em seu rosto; pode, entretanto, determinar que tal homem faça a barba diariamente. No mesmo sentido, não pode a norma impor que a mulher tenha 10 meses de gravidez; pode, contudo, determinar que ela faça o pré-natal ou que fique com seu filho nos três meses subsequentes ao parto.
Feitas tais observações, cumpre enfatizar que, do universo das normas jurídicas, devem ser destacadas as normas jurídico-penais. Esse grupo deôntico tem por finalidade a definição das infrações penais, o estabelecimento das respectivas consequências jurídicas (imposição de penas ou de medidas de segurança), bem como os pressupostos de cominação, aplicação e execução das suas disposições gerais. Como visto adiante, cuidando-se das normas penais, um dado relevante consiste em que elas veem a luz quase sempre por intermédio das leis penais.
6.3. Classificação das normas penais
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a doutrina apresenta a seguinte divisão para as normas jurídico-penais: (1) normas incriminadoras; e (2) normas não incriminadoras. As primeiras compreendem aquelas que estabelecem as infrações penais, descrevendo a conduta proibida e cominando a respectiva espécie e quantidade de pena. As normas incriminadoras estão dispostas na Parte Especial do Código Penal, bem como na legislação penal especial. O segundo grupo compreende as disposições que, não estabelecendo delito ou pena, regulam os seus pressupostos de aplicabilidade, bem assim criam espaços de licitude aptos a afastar a incidência daquelas. Elas se subdividem em normas explicativas ou complementares, de um lado, e normas permissivas, de outro. Todas estão localizadas na Parte Geral do Código e, esporadicamente, em alguns dispositivos da Parte Especial. m linhas gerais,
2. Prado, Luiz Regis. Op. cit., p. 168. 72
Capítulo VI | Lei penal e norma penal
A legislação penal especial também contém normas penais não incriminadoras. Exemplo: O art. 14, do CP, fundamenta a punição do crime tentado; o art. 29, do CP, esclarece a punição em caso de concurso de agentes; o art. 23, do CP, contempla hipóteses de exclusão da antijuridicidade; o art. 150, § 4o, e o art. 327, caput, do CP, dão a definição de “casa” e “funcionário público” para fins penais, respectivamente.
Cumpre mencionar que, como toda e qualquer norma jurídica, as normas penais não incriminadoras também são dotadas da estrutura, preceito e sanção, embora isto possa não estar tão evidenciado quanto na norma incriminadora. Por exemplo, nos termos dos arts. 59 e 68, do CP, a sentença condenatória que não observar as normas ali contidas poderá ser anulada em grau de recurso.
6.4. Peculiar técnica legislativa
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normas penais incriminadoras contêm determinações de proibições (não fazer) ou de mandatos (fazer). Entretanto, no escopo de atingir o postulado de clareza, os produtores das normas penais – isto é, os legisladores penais – passaram a adotar a técnica de discriminar, na primeira parte do dispositivo, o comportamento tido como desvalioso, descrevendo, na segunda parte, a pena respectiva. onforme salientado, as
Exemplo: (homicídio) Art. 121, do CP. Matar alguém. Pena: Reclusão, de 6 (seis) a 20 (vinte) anos.
Observe-se que, no preceito primário deste dispositivo legal, há a descrição de uma conduta (matar alguém) e, no preceito secundário, encontra-se cominada certa espécie e quantidade de pena (reclusão, de seis a vinte anos). Os dois preceitos constituem uma unidade lógica, da qual emana a norma penal: é proibido matar alguém, pois, quem o fizer, será condenado à pena de reclusão que irá variar entre seis e vinte anos. É interessante constatar que o legislador não se utiliza para a incriminação de condutas da famosa técnica bíblica, consagrada no Decálago – v.g., não matarás. Tampouco se vale, tal como verificado na lei civil, da técnica de utilização de uma norma genérica: “aquele que, por ato ilícito, causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo” (art. 927, do CC). Em suma, no âmbito penal, redige-se, da forma mais clara possível, a conduta que quer proibir, por intermédio de um verbo (geralmente transitivo), acompanhado dos demais caracteres do ilícito, indicando, em seguida, a sanção correspondente. Conforme expresso por Heleno Fragoso, na “norma penal o preceito está implícito na descrição da conduta incriminada, que aparece como um pressuposto da aplicação da sanção”.3 3. Fragoso, Heleno Cláudio. Op. cit., p. 90. 73
Curso de Direito Penal | Parte Geral
6.5. Fontes da norma penal
A
diversos significados linguísticos, destacando-se, dentre eles, a noção de “aquilo que origina ou produz”.4 No âmbito do Direito, fonte significa aquele fato ou ato ao qual um determinado ordenamento jurídico atribui a competência ou a capacidade de produzir normas jurídicas. Cuidando-se, especificamente, de normas jurídico-penais, importa na compreensão do fato ou ato do qual se originam as normas incriminadoras e não incriminadoras.5 Em termos gerais – ou seja, para a generalidade das normas jurídicas –, reconhecem-se as seguintes fontes de produção normativa: constituição, convenções, tratados, leis, analogia, costume, jurisprudência e princípios gerais do direito. Contudo, dentre essas possíveis fontes de produção, sobreleva, na nossa disciplina, a lei. Em outros termos, a fonte primária da norma penal é a lei penal. Isso decorre do princípio da legalidade, a seguir pormenorizado, bem como dos aportes doutrinários da teoria juspositivista. Secundariamente, de forma bastante mitigada, aparecem a analogia, os costumes e os princípios gerais do direito como fontes de normas penais, conforme dispõe, inclusive, o art. 4o, caput, da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (antiga Lei de Introdução ao Código Civil).6 pal avra fonte tem
6.6. Princípio da legalidade
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princípios fundamentais indicados no Cap. V, o mais importante é o princípio da legalidade ou da reserva legal. Tanto assim que, no Brasil, ele aparece inscrito no art. 5o, XXXIX, da CF/1988, bem como no art. 1o, do Código Penal: “Não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal”.7 Sob a vertente latitudinal, cumpre salientar que o princípio da legalidade pode ser encontrado em todos os sistemas jurídicos existentes no mundo – em Códigos Penais e em Constituições –, bem como na Declaração Universal dos Direitos do Homem; na 3a Convenção de Genebra e em seus Protocolos Adicionais, além de tratados para a proteção de direitos humanos como, exemplificativamente, o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos; o Convênio Europeu para a Proteção dos Direitos Humanos e das Liberdades Fundamentais; a Convenção Americana de Direitos Humanos; e a Carta Africana de Direitos Humanos e dos Povos.8 e todos os
4. Cf. Ferreira, Aurélio Buarque de Holanda. Novo Dicionário Aurélio da língua portuguesa. 3. ed. Curitiba: Positivo, 2004, p. 920. 5. Cf. Bobbio, Norberto. O Positivismo Jurídico. Lições de filosofia do Direito. Trad. Márcio Pugliesi. São Paulo: Ícone, 1995, p. 161. 6. Nesse sentido, leciona Norberto Bobbio que para a prevalência, num ordenamento jurídico, de uma determinada fonte de produção do direito sobre todas as outras, são necessários dois requisitos: (1) que se trate de um “ordenamento complexo”, ou seja, que existam várias fontes possíveis de produção; e (2) que as fontes estejam “hierarquicamente estruturadas”, vale dizer, que exista uma fonte predominante – no caso, a lei formal – colocada num plano superior às demais (Idem, p. 162). 7. Além do art. 5 o, XXXIX, da CF/1988, o princípio da legalidade encontra-se, direta ou indiretamente, referido nos seguintes dispositivos: art. 5 o XL; art. 22, I; art. 59, III; arts. 61 e 62, § 1o, I, b, todos da CF/1988. 8. No entanto, o princípio da legalidade – que serve para evitar uma punição arbitrária, não decorrente de lei ou baseada 74
Capítulo VI | Lei penal e norma penal
Sob a vertente longitudinal, princípio da reserva legal foi previsto, de alguma maneira, tanto no direito romano como no direito medieval. Conforme exposto no Cap. III, na Antiguidade Clássica, a aplicação das normas penais caracterizou-se, inicialmente, pela adoção da analogia, mas, gradativamente, foi sendo substituída pelo império da lei. A seu turno, na Idade Média houve a prevalência das normas consuetudinárias ou do arbítrio judicial. Por essa razão, mesmo nas legislações mais avançadas daquele período, era admitido o emprego da analogia, como se pode exemplificar com a Constitutio Criminalis Carolina, ou seja, a Ordenança Criminal de Carlos V (1532), com o Codex juris Bavarici criminalis (1751) e com a Constitutio Criminalis Thereziana (1768).9 No direito inglês, o princípio foi inscrito na própria Magna Charta (1215) que, em seu art. 39, estabeleceu: “Nullus liber homo capiatur, vel imprisonetur, aut disseisiatur, aut utlagetur, aut exuletur, aut aliquo modo destruatur, nec super eum ibimus, nec super mittemus, nisi per legale judicium parium suorum vel per legem terre”.10 Como se pode perceber, aquela cláusula impunha uma evidente limitação ao poder estatal em favor da liberdade individual. Demais disso, ela já condicionava a atuação do poder público à existência de uma lei anterior, embora representasse, concretamente, muito mais uma garantia processual do que de direito substantivo.11 Após esse marco histórico, o princípio da legalidade associado à defesa dos direitos individuais foi desenvolvido por filósofos como Locke, Montesquieu e Rousseau.12 Cristalizou-se, de maneira definitiva, com o surgimento do opúsculo de Beccaria: “Dos delitos e das penas”. Conforme explanado no Cap. III, Cesare Beccaria verteu para as práticas punitivas as críticas formuladas pelos pensadores da Ilustração, exprimindo que somente a lei poderia determinar a pena para a prática de crimes, afastando, por completo, que o juiz pudesse formar o Direito Penal ou que as normas incriminadoras pudessem decorrer do costume. Subsequentemente, o princípio da reserva legal foi inscrito nas declarações políticas (Bill of Rights) e nas Constituições das Colônias Inglesas na América do Norte (fins do século XVIII). Na Declaração de independência dos Estados Unidos chegou-se a afirmar que “o rei havia tornado os juízes dependentes exclusivamente de sua vontade”.13 Por outro lado, a efetiva proibição de leis ex post facto surgiu, em 1776, com a Declaração de Direitos da Virgínia e com a Constituição de Maryland, embora o Congresso da em uma norma imprecisa ou mesmo retroativa –, é objeto de posições divergentes no Direito Penal Internacional. 9. Cf. Fragoso, Heleno Cláudio. Op. cit., p. 90. 10. “Nenhum homem livre será levado ou preso ou retirado ou posto fora da lei ou exilado ou de qualquer maneira prejudicado, ou nós não iremos ou enviaremos contra ele, exceto em decorrência de um julgamento justo por seus pares ou pela lei da terra” (Holt, James Clarke. Magna Carta. 2. ed. Cambridge: Cambridge University Press, 1995, p. 460-461). 11. Em sentido contrário: “Devemos abandonar a tarefa, mais própria de antiquário que de historiador, como diria Marc Bloch, de respingar em textos romanos alguma afinidade – ainda que sonora – com o princípio, ou de cismar sobre a passagem do art. 39 da Magna Charta – que continha, segundo opinião dominante, mera garantia processual restrita aos poucos ‘homens livres’ –, à procura de um antecedente” (Batista, Nilo. Introdução crítica ao direito penal brasileiro. 3. ed., Rio de Janeiro: Revan, 1996, p. 65-66). 12. Hungria, Nélson. Comentários ao Código Penal. Vol. I. Tomo I. Rio de Janeiro: Forense, 1954, p. 34-35. 13. Fragoso, Heleno Cláudio. Op. cit., p. 90. 75
Curso de Direito Penal | Parte Geral
Filadélfia já houvesse incluído o princípio da legalidade entre os “direitos fundamentais do homem”. A Constituição dos Estados Unidos da América (1787) estabeleceu a proibição da existência de normas retroativas, além de vedar a decretação de proscrição (bill of attainder), em seu art. 1o, secção 9, obrigação que foi imposta aos Estados pela secção 10 do mesmo artigo. A partir daí, o princípio se difundiu pelo mundo. Na Europa, ele foi contemplado no Código Penal austríaco de 1787, de José II (a chamada legislação Josefina). Na mesma esteira, a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão da França revolucionária (1789), impunha, no seu art. VIII, que ninguém fosse punido senão por força de uma lei estabelecida e promulgada anteriormente ao crime.14 Logo a seguir, na Constituição francesa de 1793, o legislador constituinte foi ainda mais enérgico e determinou que não somente ninguém seria punido salvo em virtude de uma lei anterior ao fato, como qualificou de criminoso o efeito retroativo da lei penal em desfavor do réu.15 Em 1794, o Código Penal prussiano incorporou o princípio, bem como o Código Penal da Baviera (de 1813), este redigido por Paul Johann Anselm von Feuerbach (17751833) que, além de ser por muitos considerado o “fundador do moderno Direito Penal alemão”, cunhou a expressão latina que sintetiza a reserva legal: nullum crimen nulla poena sige lege.16 Feuerbach afirmou, ainda, que o princípio da reserva legal, além de sua base política, atendia a um fundamento de ordem jurídico-penal. Isso porque a ameaça penal exercia uma coação psicológica que impedia a prática de crime. A justificativa da punição decorria do fato de que alguém, embora conhecendo a ameaça, não deixasse de praticar conduta proibida. Assim, a punibilidade de determinado fato estaria diretamente condicionada à anterioridade de sua incriminação e da prévia cominação de pena, no texto de uma lei penal previamente publicada. Em síntese, cuida-se da teoria da coação psicológica, na qual a lei prévia teria, pois, efeito dissuasório.17 No Brasil, o princípio da legalidade foi definido em todas as nossas Constituições e em todos os nossos Códigos. Com efeito, o Código Criminal de 1830, em seu art. 1o, estabelecia: “Não haverá crime ou delito (palavras sinônimas neste Código) sem uma lei anterior que o qualifique”. O art. 33, complementava: “Nenhum crime será punido com penas que não estejam estabelecidas nas leis, nem com mais ou menos daquelas que estiverem decretadas para punir o crime no grau máximo, médio ou mínimo, salvo o caso em que aos juízes se permitir arbítrio”. O Código de 1890, por sua vez, dispunha: “Ninguém poderá ser punido por fato que não tenha sido anteriormente qualificado crime, e nem com penas que não estejam previamente estabelecidas. A interpretação extensiva, por analogia ou paridade, não é admissível para qualificar crimes ou aplicar-lhes penas” (art. 1o, do CP/1890). 14. Cf. Bouzat, Pierre. Traité theorique et pratique de Droit Pénal. Paris: Dalloz, 1951, p. 61. 15. Idem, p. 61. 16. Ressalte-se que ao contrário do que se diz frequentemente, “das obras de Feuerbach não consta a fórmula ampla nullum crimen nulla poena sine lege; nelas se encontra, sim, uma articulação das fórmulas nulla poena sine lege, nullum crimen sine poena legali e nulla poena (legalis) sine crimine.” (Batista, Nilo. Op. cit., p. 66). 17. Bacigalupo, Enrique. Principios de Derecho Penal. Parte General. 5. ed., Madrid: Akal, 1998, p. 55. 76
Capítulo VI | Lei penal e norma penal
Apesar de ter sido promulgado em plena Ditadura Vargas, o Código Penal de 1940 reproduziu a cláusula liberal do princípio: “Não há crime sem lei anterior que o defina. Não há pena sem prévia cominação legal” (art. 1o, do CP/1940). Idêntica redação foi observada na Reforma Penal de 1984, consoante o art. 1o, do Código Penal em vigor. Doutrinariamente, o princípio da reserva legal encontra, hodiernamente, os seguintes fundamentos para a sua existência: (1) o liberalismo político; (2) a democracia e a divisão de poderes; e (3) o princípio da culpabilidade. Acerca do primeiro fundamento, tem-se que o princípio é consequência direta da formação do Estado contemporâneo, dada a exigência de vinculação entre os Poderes Executivo e Judiciário e as leis em abstrato formuladas pelo Legislativo. Em que pesem as mudanças contemporâneas no Estado, muito da justificativa da legalidade ainda remonta a esse fundamento. Assim, pode-se entender que o fim do princípio da legalidade é a ideia de proteção da confiança e da previsibilidade do Direito Penal, assim como que se evitem decisões decorrentes da emoção. Ademais, a vinculação do poder punitivo estatal a uma lei abstrata, pretende, por si só, proteger a liberdade individual do arbítrio estatal, o que sintetizam as finalidades da proibição da analogia e da indeterminação da norma penal. O segundo fundamento importa na noção da tripartição de poderes. Sob essa estrutura constitucional, que se expressa por meio da reserva legal, o juiz não deve criar o Direito Penal – atributo do Parlamento – mas, sim, aplicá-lo. Por sua vez, o Poder Executivo não pode ter ingerência quanto à individualização da punição, impedindo-se, portanto, qualquer abuso nesse sentido. Sobre o terceiro, há a ideia de que o princípio da culpabilidade é vulnerado se não houver a reserva legal, pois não se deve falar em agente culpável se o indivíduo não sabia ou não tivera a possibilidade de verificar que o seu comportamento era passível de reprovação penal. Essa constatação tem, pois, que ser feita antes da prática delitiva e, assim, a reprovação pressupõe, necessariamente, a formação anterior da vontade consciente. Cumpre, ainda, mencionar que, no Direito Penal, está em consideração a defesa do cidadão frente às proibições e aos castigos arbitrários, razão pela qual o seu conteúdo material se concretiza na taxatividade dos delitos. Em outros setores do ordenamento os direitos fundamentais objeto de tutela são diversos, mas também eles, quando garantidos constitucionalmente, se tornam vínculos de validade para a legalidade ordinária ou estrita. Em todos os casos, pode-se dizer que a mera legalidade coincide com a legitimação formal, enquanto a estrita legalidade, ao subordinar todos os atos, inclusive a lei, aos conteúdos dos direitos fundamentais, coincide com a legitimidade material. Significa dizer que a legalidade é essencial para o próprio Estado Democrático de Direito e, por isso, um postulado que não deve ser afastado sob qualquer hipótese.18 Por último, importa considerar que o princípio da legalidade gera quatro importantes consequências para a dogmática penal: 18. Ferrajoli, Luigi. Derecho y razón. Teoría del garantismo penal. 5. ed., Madrid: Trotta, 2001, p. 857. 77
Curso de Direito Penal | Parte Geral
A) Proibição da analogia
Igualmente conhecido como nullum crimen, nulla poena sine lege stricta, cuida-se da exclusão da integração analógica das normas que definem crimes e estabelecem sanções ou medidas de segurança, para abranger casos por elas não expressamente contemplados, conforme a seguir pormenorizado. B) Proibição da utilização do costume para fundamentar ou agravar a pena
Consoante o postulado do nullum crimen, nulla poena sine lege scripta, não é possível, igualmente, admitir a criação de crimes e de penas ou a sua majoração por normas consuetudinárias. C) Proibição da retroatividade da lei penal
Trata-se do nullum crimen, nulla poena sine lege praevia. Ou seja, consiste no postulado de que a alteração mais gravosa de dispositivos da lei penal não pode gerar a aplicação retroativa. O assunto é visto de forma pormenorizada no capítulo seguinte. D) Proibição de incriminações vagas e indeterminadas
Cuida-se do nullum crimen, nulla poena sine lege certa: a só existência de lei prévia não basta, pois nela devem ser reunidos certos caracteres, quais sejam, a concreta definição de uma conduta, a delimitação de qual conduta é compreendida e a delimitação de qual não é compreendida. Dessa maneira, uma incriminação vaga e indeterminada faz com que, em realidade, não haja lei definindo como delituosa certa conduta, pois entrega, em última análise, a identificação do fato punível ao arbítrio do intérprete ou do aplicador. É também conhecido como princípio da taxatividade.
6.7. Analogia
A
pressuposto de que a lei não pode prever todas as hipóteses fáticas, havendo, portanto, lacunas no ordenamento jurídico. Dessa maneira, visa a analogia suprir a lacuna, solucionando um caso concreto por intermédio da solução adotada numa hipótese legal assemelhada. Trata-se, portanto, de autointegração do ordenamento jurídico. A doutrina classifica a analogia em analogia legal (analogia legis) e analogia jurídica (analogia iuris), vale dizer, a possibilidade de integração quer por um preceito legal semelhante, quer por um sistema de preceitos semelhante. De maneira muito mitigada, admite-se a analogia em Direito Penal. De toda sorte, ela é completamente proibida para a integração das normas penais incriminadoras (analogia in malam partem). As “lacunas” porventura existentes nas normas incriminadoras hão de ser consideradas – por força do princípio da legalidade, anteriormente explanado – espaços de licitude.
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analo gia parte d o
Capítulo VI | Lei penal e norma penal
Exemplo: No art. 342, do CP, está definido o crime de falso testemunho ou falsa perícia, que pode ser praticado por testemunha, perito, contador, tradutor ou intérprete. O tipo do art. 342, do CP, não inclui, naquela relação, o autor e a vítima do delito. Portanto, o autor ou a vítima que mentir em juízo não pratica falso testemunho, não podendo ser utilizada a analogia para criminalizá-lo, ante a ausência de previsão legal.
A propósito, merece ser ressaltado que experiências totalitárias no século XX, como na Alemanha Nazista e na Rússia Soviética, fizeram tábula rasa da vedação da analogia in malam partem. Com relação à Alemanha nacional-socialista, a famosa Lei de 28/06/1935, que substituiu o § 2o do Código Penal alemão, dizia ser passível de pena quem cometesse um ato que, “segundo a ideia fundamental de uma lei penal e o são sentimento do povo, mereça ser sancionado”. Esta lei dizia, ainda: “Se não for possível aplicar diretamente ao fato uma determinada lei penal, o fato será punido conforme a lei cujo conceito fundamental melhor se lhe adapte”.19 O diploma penal soviético continha, por sua vez, a seguinte redação: “Se uma ação qualquer, considerada socialmente perigosa, não se achar especialmente prevista no presente Código, os limites e fundamentos da responsabilidade se deduzem dos artigos deste Código que prevejam delitos de índole mais análoga”.20 Em outros termos, não é possível a analogia in malam partem, isto é, em desfavor do cidadão. Só é possível a chamada analogia in bonam partem.21 Pode-se exemplicar a utilização da analogia in bonam partem com uma questão de extrema relevância. Cuida-se da integração normativa do limite máximo para o cumprimento de medidas de segurança. Como penas e medidas de segurança são espécies do gênero sanção penal, bem como diante da lacuna referente ao limite máximo desta última, conforme se infere da leitura do art. 97, § 1o, do CP, pode-se preencher esta omissão legal com a norma contida no art. 75, caput, do CP (tempo máximo de cumprimento de pena). Conclui-se, assim, que o tempo máximo de cumprimento de medida de segurança também será de trinta anos.22 Por fim, cumpre atentar para a distinção entre analogia e interpretação analógica, consoante a seguir analisado. 19. Cf. Marques, José Frederico. Tratado de Direito Penal. Vol. I. Campinas: Bookseller, 1997, p. 225. 20. Cf. Hungria, Nélson. Comentários ao Código Penal. Vol. I. Tomo I. Rio de Janeiro: Forense, 1954, p. 16. Não se desconhece, por outro lado, que os diplomas penais de países escandinavos facultam, excepcionalmente, a utilização da analogia em matéria penal. No entanto, por terem tradição democrática, os juízes daqueles países raramente se valem desse mecanismo de integração normativa (Donnedieu de Vabres, H. Traité de Droit Criminel et de legislation pénale comparée. 3 ème éd. Paris: Sirey, 1947, p. 59). A propósito, reportando-se a um catedrático dinamarquês, Frederico Marques assinala que talvez exista perigo maior para a segurança jurídica não na eventual utilização da analogia legis, mas, sim, “quando os elementos constitutivos das diversas infrações previstas na Parte Especial, do Código Penal, se encontrem formulados de maneira vaga e imprecisa.” (Marques, Frederico. Op. cit., p. 227). 21. Contudo, decidiu o STF: “Não pode o julgador, por analogia, estabelecer sanção sem previsão legal, ainda que para beneficiar o réu, ao argumento de que o legislador deveria ter disciplinado a situação de outra forma.” (HC 94030. STF. Min. Ricardo Lewandowski. Primeira Turma. DJ de 13/06/2008). 22. Sobre o tempo máximo de cumprimento de pena vide o Cap. XXVII. 79
Curso de Direito Penal | Parte Geral
6.8. Costume
S
Vicente Ráo, entende-se por costume a regra de conduta criada espontaneamente pela consciência comum do povo, que a observa por modo constante e uniforme e sob a convicção de corresponder a uma necessidade jurídica.23 Constância e uniformidade, de um lado, e crença no seu caráter cogente, por outro, são as duas características do direito consuetudinário. Com relação a essa última característica, cumpre atentar que aquele que viola uma norma consuetudinária sofre sanção imposta pela coletividade.24 Sobre o assunto, a doutrina divide o costume em secundum legem, praeter legem e contra legem. Para o Direito Penal, os dois primeiros são admitidos, ainda que de forma restrita, mas sempre para favorecer o réu. O terceiro (costume contra legem), também denominado desuso, não é admitido em Direito Penal, pois vigora a regra da imperatividade da lei. Segundo tal regra, uma lei só pode deixar de viger quando revogada expressa ou tacitamente por outra (art. 2o, caput, da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro). Ainda que por razões político-criminais ou por desídia ou desinteresse das autoridades públicas quanto a sua repressão, a lei penal não pode deixar de existir. Não se aceita, para a doutrina majoritária, os efeitos do desuso no tocante à revogação da lei penal. Em síntese, o costume pode ser tido como fonte secundária de normas penais, auxiliando a aplicação da lei (costume secundum legem) ou suprindo determinada lacuna ou o alcance da lei penal (costume praeter legem). Nesse sentido, dispõe o Código de Direito Canônico: “O costume é o melhor intérprete da lei” (Cân. 28). egund o lecionad o p or
6.9. Jurisprudência
M
conste do rol de fontes produtoras de normas penais, notadamente em razão da nossa tradicional vinculação ao sistema da civil law (art. 4o, da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro), tem-se ressaltado a importância cada vez mais intensa da jurisprudência no âmbito jurídico-penal. Em termos práticos, é forçoso reconhecer a importância da jurisprudência das súmulas dos tribunais superiores (STF e STJ), agregadas, com a Emenda Constitucional no 45/2004, dos efeitos da Repercussão Geral e das Súmulas Vinculantes (arts. 102, § 3o, e 103, da CF/1988), que condicionam os demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública em geral. uito embora não
23. Ráo, Vicente. O Direito e a vida dos direitos. Vol. I. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1991, p. 220. 24. Por exemplo, respeitar o lugar de chegada em fila de pessoas. Quem “fura a fila” para comprar o ingresso do cinema, v.g., pode vir a sofrer uma “sanção”, no mínimo uma “vaia coletiva” dos demais que estão na fila. Hoje em dia, alude-se ao costume futebolístico do fair play, ou seja, da devolução da bola ao time adversário, após a interrupção da partida para atendimento de um determinado atleta. O jogador que desrespeita a norma consuetudinária do fair play certamente será vaiado ou censurado por conduta antiesportiva. 80
Capítulo VI | Lei penal e norma penal
Sendo assim, embora formalmente sejam intrumentos de interpretação legislativa, os precedentes jurisprudenciais, do ponto de vista material, podem ser considerados importantes fontes secundárias de produção de normas jurídico-penais, na medida em que acarretam efeitos práticos inequívocos.
6.10. Princípios gerais do direito
E
princípios gerais do Direito são premissas ou valores de natureza ética ou moral que constituem o fundamento de determinada organização social. Secundariamente – vale repetir, excluídas, sucessivamente, a lei, a analogia, os costumes –, pode-se invocar os princípios gerais como modelo de solução de um caso concreto. Citem-se, como exemplos, os princípios gerais da vedação do enriquecimento ilícito e da vedação da alegação, em benefício próprio, da própria torpeza. Tem-se, dessa maneira, que muito mais do que normas jurídicas em sentido estrito, os princípios gerais do Direito operam sobre todo o ordenamento jurídico, conferindo-lhe racionalidade e coesão. Sendo assim – como bem observado por Luiz Regis Prado –, em função do seu caráter geral e a prevalência da lei em sede penal, a aplicação desses princípios é pouco frequente no âmbito penal, embora seja inegável sua importância para a interpretação e aplicação mais benéfica da norma penal.25 m linhas gerais,
6.11. Interpretação da lei penal
I
nterpretar é buscar a intenção ou o sentido de determinada norma. Nesse sentido, a doutrina assinala que toda norma, por mais clara ou simples que possa parecer, deve ser objeto de interpretação, até mesmo para se concluir por sua simplicidade ou clareza. No caso das normas penais, a atividade de interpretação – também chamada de exegese – objetiva extrair o sentido da lei penal, possibilitando a sua aplicação no caso concreto. Nesse sentido, Jescheck assinala que, por razões de segurança jurídica, exige-se a vinculação do juiz ou intérprete aos preceitos cujo conteúdo seja objetivamente acessível, conforme as regras de interpretação reconhecidas. Isso faz com que, em todos os casos semelhantes, possam tais regras ser aplicadas de forma isonômica.26 Conforme os conhecimentos gerais, a interpretação é atividade precipuamente desenvolvida pelo método dedutivo, processando-se, por meio dela, o chamado silogismo jurídico. Com efeito, a lei penal é a premissa maior, o caso concreto é a premissa menor, e a pena é o resultado ou a síntese desse silogismo. A aplicação da lei ao caso individual significa, pois, que a premissa maior abstrata se relaciona com a premissa menor tomada da vida real, e isso ocorre por intermédio da interpretação.
25. Prado, Luiz Regis. Op. cit., p. 196. 26. Cf. Jescheck, Hans-Heinrich; Weigend, Thomas. Op. cit., p. 134. 81
Curso de Direito Penal | Parte Geral
Observa-se, assim, que a atividade desempenhada pelo intérprete compreende dois momentos, quais sejam, o da interpretação da norma e, em seguida, da sua subsunção ao caso concreto. 6.11.1. Interpretação: classificações
Conforme a conhecida classificação tripartite, a atividade de interpretação pode ser compreendida: (1) quanto ao sujeito que a realiza; (2) quanto ao meio utilizado; e (3) quanto ao resultado a que se chega. Com relação ao sujeito, alude-se à interpretação autêntica, verificada quando a exegese provém do mesmo órgão de onde emanou a norma a ser interpretada. Esta modalidade interpretativa subdivide-se em contextual, quando se efetua a interpretação no mesmo texto em que se encontra a norma (por exemplo, o art. 327, do CP, contém aquilo que a lei penal considera funcionário público), e posterior, quando o alcance de determinado dispositivo é feito por uma lei editada posteriormente, com o propósito, justamente, de aclarar o significado da norma contida na lei anterior. Nesse último caso – isto é, quando a lei posterior unicamente aclara o ponto obscuro da lei precedente –, diz-se que ela retroage à data da emissão daquela. Ocorre, porém, que no âmbito do Direito Penal, essa propriedade se subsume à vedação da retroatividade in pejus, conforme apresentado no Capítulo seguinte. Alude-se, ainda, à chamada interpretação doutrinária, que vem a ser o trabalho acadêmico dos professores, os pareceres dos consultores e os demais trabalhos científicos do Direito (teses, dissertações, monografias jurídicas etc.). Em outros termos, é a chamada communis opinio doctorium. A terceira modalidade de interpretação quanto ao sujeito é a denominada interpretação judicial, baseada, exatamente, nos precedentes harmonicamente observados pelos juízes e tribunais. Sobre este assunto, sobreleva de importância as Súmulas das Cortes de Justiça, bem assim às já mencionadas Súmula Vinculante e Repercussão Geral, ambas da competência do STF. Com relação aos meios de interpretação, apresenta-se, em primeiro lugar, a interpretação gramatical ou literal – ou, ainda, filológica –, vale dizer, aquela que busca coincidir a vontade da lei ao estrito significado de suas palavras. A interpretação gramatical cuida do primeiro, mas não do único meio de interpretação. Na verdade, diz-se que ela é a mais limitada forma exegética, pois transforma o intérprete num ser despido de criatividade – isso sem olvidar do fato de que as palavras, muitas vezes, são equívocas, contraditórias ou de vários significados. Ainda quanto ao meio, apresenta-se a interpretação lógica ou teleológica, considerada a mais adequada do que a anterior porque é a que se orienta diretamente para a verdadeira meta de toda interpretação, qual seja, descobrir a finalidade e os critérios legais valorativos.27 Numa palavra, objetiva-se, por intermédio da interpretação teleo27. Cf. Jescheck, Hans-Heinrich; Weigend, Thomas. Op. cit., p. 139. 82
Capítulo VI | Lei penal e norma penal
lógica, alcançar a essência da vontade da lei (a voluntas legis ou mens legis), superando as dificuldades gramaticais apontadas. Isso permite, inclusive, a sua adaptação às constantes mutações da realidade social, isto é, a chamada interpretação progressiva. A propósito, dispõe o art. 5o, da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro: “Na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum”.28 No terreno da interpretação teleológica vários recursos podem ser utilizados, tais como: (1) a compreensão sistêmica da norma, ou seja, o seu significado no âmbito da seção, capítulo, título ou livro onde se insere; (2) a perspectiva histórica da elaboração da norma, em particular a sua Exposição de Motivos; e (3) o seu cotejo com diplomas similares de outros ordenamentos jurídicos, ou seja, à técnica do Direito Comparado. Cumpre salientar que, no Direito Penal, esta modalidade exegética se associa com o postulado de que a finalidade de toda norma penal é a de tutelar os bens jurídicos fundamentais da Sociedade. Com relação ao resultado da atividade de interpretação, alude-se à interpretação declarativa, ou seja, aquela em que o produto da atividade hermenêutica faz coincidir a letra da lei com a vontade de lei, sem ampliar ou restringir seu alcance. Dito de outro modo, há convergência entre o significado gramatical e teleológico da norma. Exemplo: No art. 141, III, do CP, que trata de causa de aumento de pena quando o crime contra a honra é cometido na presença de várias pessoas, entende-se como tal mais de duas pessoas.
Apresenta-se, em segundo lugar, a hipótese da interpretação restritiva, que ocorre quando, por um defeito gramatical, a letra da lei disse mais do que a vontade da lei. Por consequência, a atividade do intérprete faz com que se reduza o alcance das palavras do texto legal, harmonizando-o com a mens legis. Exemplo: No art. 28, II, do CP está escrito que a embriaguez, ali referida, não exclui a culpabilidade. Entretanto, a letra da lei disse mais do que a sua vontade, pois, no caso de embriaguez patológica (alcoolismo), há a exclusão da culpabilidade, conforme o art. 26, caput, do CP.
Por último, apresenta-se a interpretação extensiva, verificada quando a letra da lei disse menos do que a vontade da lei. Há, portanto, que se ampliar o foco gramatical para atender à mens legis. Dito de outro modo, deve o intérprete corrigir o defeito da letra da lei, ampliando o seu alcance. Agregue-se que, frequentemente, o exegeta precisa se valer da interpretação extensiva, inclusive em Direito Penal. 28. Cf. lecionado por Regis Prado, a lei, uma vez promulgada, destaca-se do legislador e passa a ter existência própria e consistência autônoma, distinta do órgão que lhe deu origem. Nesse sentido é que se costuma afirmar que a lei é mais sábia que o legislador. (Prado, Luiz Regis. Op. cit., p. 178). 83
Curso de Direito Penal | Parte Geral
Exemplo: O art. 235, do CP, tipifica o crime a “bigamia” que, em termos literais, significa casar duas vezes. Pela interpretação extensiva, criminaliza-se também a “poligamia”, que consiste em muitas vezes, pois esta é a vontade da lei. Exemplo: O art. 249, do CP, tipifica a subtração de incapazes, dispondo, o seu § 1o, que o fato de ser o agente “pai do menor” não o exime de pena. Pela mesma razão, deve-se incluir a “mãe do menor”, quando presentes as mesmas circunstâncias legais.
Ao gênero interpretação extensiva, destaca-se a modalidade interpretação analógica que, por conta das suas peculiaridades, é analisada no tópico seguinte. 6.11.2. A questão da interpretação analógica
Como dito, interpretação analógica (ou intra legem) é espécie do gênero interpretação extensiva. Ela consiste em se estender a atividade hermenêutica para abranger os casos semelhantes aos que foram exemplificados no texto legal. Trata-se, igualmente, de técnica recorrentemente encontrada no Direito Penal. Exemplo: Segundo o art. 121, § 2o, I, do CP, o homicídio será qualificado quando cometido mediante paga ou promessa de recompensa, ou “por outro motivo torpe”. Dessa forma, qualquer motivação torpe, análoga a paga ou promessa de recompensa, qualificará o homicídio. Na mesma esteira, o inc. III, do mesmo dispositivo legal, diz que qualifica o homicídio cometido com emprego de veneno, fogo, explosão, asfixia, tortura “ou outro meio insidioso ou cruel, ou que possa resultar perigo comum”. Dessa forma, qualquer meio insidioso, cruel ou que possa resultar perigo para a coletividade, semelhantes àqueles antes indicados, qualificará o homicídio. A mesma regra de interpretação é utilizada no inc. IV, do § 2o, do art. 121, do CP.
Cumpre, portanto, observar que a interpretação analógica obedece à seguinte dinâmica: quando a uma relação casuística seguir-se uma cláusula geral, a vontade da lei é abranger todas as hipóteses que, no caso concreto, sejam semelhantes ao rol exemplificado. A grande questão que envolve a interpretação analógica é a sua distinção da analogia. Isso porque, como visto, é vedada no Direito Penal a utilização da analogia in malam partem. Nesse sentido, observa-se que na interpretação analógica não há que falar em “lacuna” no texto da lei – pressuposto, como visto, para a integração via analogia. Nesta última, diante da não regulação normativa de uma determinada hipótese fática, supre-se a lacuna por intermédio da aludida analogia legis ou analogia iuris. Diferentemente, na interpretação analógica a vontade da lei é a de abranger os casos semelhantes à casuística veiculada. Não há, pois, lacuna, visto que a mens legis é no sentido de abranger casos concretos análogos aos que ela exemplifica. Como bem 84
Capítulo VI | Lei penal e norma penal
ressaltado por Luiz Regis Prado, a interpretação intra legis, espécie do gênero interpretação extensiva, abrange os casos análogos, conforme fórmula casuística gravada no dispositivo legal. Há extensão aos casos semelhantes, análogos (in casi simili) aos regulados expressamente.29 6.11.3. A regra do in dubio pro reo
A regra do in dubio pro reo significa que os casos que remanescerem duvidosos devem ser decididos favorecendo o acusado. Cuida-se, a rigor, de um princípio de processo penal, relacionado com a distribuição do ônus da prova, ou seja, a acusação deve provar os fatos que alega, sendo garantido ao acusado a presunção de inocência (art. 5o, LVII, da CF/1988). Nesse quadrante, caso a acusação não consiga se desincumbir do seu ônus probatório, por intermédio das provas produzidas sob o crivo do contraditório e da ampla defesa (art. 5o, LV, da CF/1988), eventual dúvida sobre a autoria ou materialidade delitiva favorecerá o réu, devendo o magistrado proferir sentença absolutória (art. 386, VII, do CPP, com a redação da Lei no 11.690/2008). Em que pese o cariz processual penal, alguns doutrinadores sustentam que o princípio do in dubio pro reo também deve ser considerado como critério interpretativo da norma penal, decorrente ou complementar ao princípio da legalidade. Conforme explicitado por Jescheck, vigoraria, no Direito Penal, a regra do nullum crimem, nulla poena sine prova.30
29. Idem, p. 183. 30. Cf. Jescheck, Hans-Heinrich; Weigend, Thomas. Op. cit., p. 128. 85
título
II
capítulo
teoria ger a l da lei penal
VII
LEI PENAL NO TEMPO 7.1. Considerações gerais
A
penal não representa exceção às normas que regulam a vigência e obrigatoriedade das leis em geral. Nesse sentido, o art. 1o da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, estabelece que a lei começa a vigorar em todo o país quarenta e cinco dias depois de oficialmente publicada, salvo disposição em contrário. Se nesse prazo – denominado de vacatio legis – ocorrer nova publicação do texto, destinada à correção, o prazo começa, novamente, a fluir a partir deste momento. A lei permanece em vigor até que outra posterior a modifique ou revogue, a menos que se trate de lei excepcional ou temporária, adiante considerada. A revogação da lei em vigor pode ser total, também chamada de ab-rogação, ou parcial, isto é, derrogação. Pode, ainda, a revogação ser expressa ou tácita. Cuidar-se-á de revogação expressa quando assim declarada pela lei posterior; será tácita, quando a lei nova for incompatível com a lei anterior ou quando regular inteiramente a matéria que esta tratava. A propósito, cumpre registrar que o princípio basilar que domina a sucessão de leis e sua aplicação é o chamado tempus regit actum, isto é, os fatos são regulados pela lei que estava em vigor quando eles se verificaram. Outra consequência desse princípio é a de que, em regra, a lei não retroage para regular um fato havido antes da sua vigência. No Direito Penal prepondera a regra da irretroatividade das normas incriminadoras, por decorrência do princípio da legalidade, conforme
86
vigência da lei
Capítulo VII | Lei penal no tempo
analisado no capítulo anterior. No entanto, a irretroatividade somente se aplica à lei que agrava a situação do réu; se o beneficiar, de alguma maneira, a lei pode vir a retroagir, como a seguir pormenorizado. Portanto, a irretroatividade da lei penal foi proclamada, como mencionado, pelo princípio nullum crimen, nulla poena sine lege praevia, e encontra-se consagrado no art. 5o, XXXIX e XL, da CF/1988. No Brasil, houve um grave precedente de violação dessa garantia fundamental. Com efeito, ao tempo da redação originária do CP/1940 (cujo art. 1o continha a mesma redação do atual art. 1o, do CP), sobreveio o Decreto no 4.766, de 01/10/1942, tipificando delitos militares contra a segurança do Estado, constando um rol de crimes de guerra, aos quais, inclusive, cominava-se até mesmo a pena de morte no grau máximo. No entanto, o art. 67, do Decreto no 4.766/1942, dispunha: “Esta lei retroagirá, em relação aos crimes contra a segurança externa, à data da ruptura de relações diplomáticas com a Alemanha, a Itália e o Japão”. O Brasil rompeu relações com aqueles países em 15/01/1942.1 Em suma, aquela lei, promulgada em outubro de 1942, retroagiu a janeiro do mesmo ano, alcançando, assim, fatos havidos antes da sua vigência. O seu art. 68 objetivou mitigar – ainda que parcialmente –, a grave violação ora considerada: “No caso de aplicação retroativa da lei, a pena de morte será substituída pela de reclusão por trinta anos”.
7.2. Conflitos da lei penal no tempo
A
no tempo é analisar a “sucessão de leis penais”, ou seja, uma lei que revoga outra anteriormente existente. Sobre o assunto, o art. 2o, e seu parágrafo único, do Código, dispõe que a lei nova mais favorável – isto é, que deixar de considerar determinado fato como delituoso ou que se revelar mais benéfica ao agente – se aplica aos casos havidos antes da sua vigência. Cuida-se do princípio básico da retroatividade ou ultratividade da lei mais benigna (extratividade da lex mitior). A lei mais severa em nenhum caso retroage. Cumpre afirmar, contudo, que não se pode verificar em abstrato se se está diante de uma novatio legis in mellius ou in pejus. Há sempre que se examinar o caso concreto. É possível, por exemplo, que uma lei tida, a princípio, como mais benéfica se revele, no momento da sentença, mais prejudicial ao acusado do que a disciplina anterior. Sendo assim, no âmbito intertemporal das leis penais, podem existir as seguintes situações jurídicas: nalisar lei penal
A) Novatio legis incriminadora
É a hipótese da lei posterior que incrimina fato que era antecedentemente lícito. Não há que falar, assim, de retroatividade, sob pena de violação da sistemática constitucional ora apontada. 1. Data da Reunião de Consulta de Ministros das Relações Exteriores, ocorrida no Palácio Tiradentes, Rio de Janeiro, em seguida ao ataque japonês a Pearl Harbor (dezembro de 1940). Naquela reunião, o Brasil conseguiu frear as tendências pró-nazistas dos diplomatas argentinos no continente. Estrategicamente, Vargas fez o discurso de encerramento da conferência, deixando para o último instante o anúncio oficial do rompimento brasileiro com os países do Eixo. 87
Curso de Direito Penal | Parte Geral
Exemplo: A Lei no 12.012/2009 introduziu, no Código Penal, a hipótese delituosa de ingressar, promover, intermediar, auxiliar ou facilitar a entrada de aparelho telefônico de comunicação móvel, de rádio ou similar sem autorização legal, em estabelecimento prisional (art. 349-A, do CP).
Efetivamente, aquele que ingressara, indevidamente, com um telefone celular, em um determinado estabelecimento prisional, antes de 07/08/2009 (data da vigência daquela lei), não sofrerá a incidência da lei nova. B) Abolitio criminis
Cuida-se da situação antípoda, ou seja, lei posterior deixa de considerar ilícito fato então criminalizado pela anterior. A abolição do crime (abolitio criminis) é a descriminalização ou ab-rogação de determinada infração penal. No caso, a retroatividade é indiscutível. Recentemente, podem ser apresentados os seguintes casos: (1) a revogação dos delitos de adultério, sedução e rapto consensual (Lei no 11.106/2005); (2) a revogação da contravenção penal da mendicância (Lei no 11.983/2009); e (3) a abolição temporária das condutas delituosas previstas no art. 12, da Lei no 10.826/2003 (Estatuto do Desarmamento).2 No entanto, na forma do art. 2o, caput, do CP, a lei abolidora faz cessar a execução e os efeitos da infração somente na esfera penal, não alcançando os efeitos extrapenais, como, v.g., a obrigação da reparação do dano causado pela conduta do agente. C) Novatio legis in mellius
Trata-se da lei posterior que, sem suprimir a incriminação do fato, beneficia o agente, quer cominando pena menos rigorosa ou tornando menos grave a situação do réu.3 Exemplo: O art. 28 da Lei no 11.343/2006 (Lei de Drogas), ao tipificar o delito de posse de drogas para uso próprio, substituiu a anterior pena de detenção, de seis meses a dois anos, por pena mais branda de advertência sobre os efeitos das drogas, prestação de serviços à comunidade ou de medida educativa de comparecimento a programa de curso educativo.
Essa lei retroagiu, beneficiando aqueles que praticaram a mencionada conduta antes da sua vigência, conquanto não tenha importado na abolição do consumo de drogas no ordenamento jurídico brasileiro.4 2. Cf. HC 95945. STJ. Min. Laurita Vaz. Quinta Turma. DJ de 08/02/2010. Sobre a suposta abolição da comercialização do “lança-perfume” (cloreto de etila) em razão da edição da Resolução Anvisa no 104/00, subsequentemente tornada sem efeito, vide o item 6 seguinte. 3. Segundo a Súmula 611, do STF, transitada em julgado a sentença condenatória compete ao juízo das execuções a aplicação da lei mais benigna. Sobre o assunto, Costa e Silva alude ao princípio da humanitatis causae: reconhecida a pena, antes cominada ou imposta, como demasiadamente severa e, conseguintemente, como, em parte, desnecessária e injusta, não é lícito ao legislador, sem menosprezo da lógica e da razão, pretender que continue a mesma lei a ser observada.” (Costa e Silva, Antonio José. Código Penal dos Estados Unidos do Brasil Comentado. S. Paulo: Nacional, 1930, p. 18.) 4. Nesse sentido, o STF, em questão de ordem em RE, fixou o entendimento de que não ocorreu, como alguns propalavam, a 88
Capítulo VII | Lei penal no tempo
D) Novatio legis in pejus
No caso, cuida-se de lei posterior que, mantendo a incriminação do fato, torna-o mais grave. Como decidido pelo STF, o sistema constitucional brasileiro impede que se apliquem leis penais supervenientes mais gravosas: a eficácia ultrativa da norma penal mais benéfica – sob a égide da qual foi praticado o fato delituoso – deve prevalecer em face da novatio legis in pejus. Isto ocorre quando, no conflito de leis penais no tempo, for constatado que o diploma legislativo anterior qualificava-se como “estatuto legal mais favorável ao agente”.5 Exemplo: A Lei no 10.741/2003 (Estatuto do Idoso) alterou o Código Penal, considerando circunstância agravante ter o agente cometido o crime contra “maior de 60 (sessenta) anos” (art. 61 II, “h”, do CP). Evidentemente, essa alteração não pode ser aplicada, retroativamente, àquele que, por exemplo, agrediu uma pessoa naquela faixa etária, para impor-lhe a incidência de tal agravante.
No mesmo sentido, a Lei no 12.234/2010 revogou a hipótese, contemplada no art. 110, § 2o, do CP, denominada de prescrição retroativa – ou seja, a prescrição que se verificava entre a data do fato e a data do recebimento da denúncia ou queixa. Como a mencionada alteração legislativa entrou em vigor em 06/05/2010, ela somente poderá ser aplicada aos delitos ocorridos após a sua vigência.
7.3. Lei intermediária
D
aquela que, na sucessão de leis penais, situa-se entre a anterior e a posterior. Há, assim, três leis que se sucedem na regulação do mesmo fato. Ex.: a Lei no 9.437/1997, que tratava do porte ilegal de arma, revogou o art. 19 da Lei das Contravenções Penais, tendo sido, depois, revogada pela Lei no 10.826/2003 (Estatuto do Desarmamento). Evidentemente, a lei intermediária se submete ao regime ora considerado. Sendo assim, caso mais benéfica, ela tanto retroage, alcançando o fato ocorrido ao tempo da lei primitiva, como tem ultratividade, continuando a regulá-lo ao tempo da lei mais moderna. Sobre o assunto, registra-se interessante caso envolvendo três normatizações penais. Com efeito, em 2006, o STF considerou o art. 2o, § 1o, da Lei no 8.072, em vigor desde 1990, inconstitucional com efeitos ex tunc, por vedar a progressão de regime para os condenados por crimes hediondos.6 Com isso, ante a inexistência de previsão em lei enomina-se lei intermediária
suposta descriminalização da posse de drogas para uso próprio, mas, sim, a sua “despenalização”, entendida como “exclusão, para o tipo, das penas privativas de liberdade”. (RE 430105-QO. STF. Min. Sepúlveda Pertence. Primeira Turma. DJ de 27/04/2007). 5. HC 90140. STF. Min. Celso de Mello. Segunda Turma. DJ de 17/10/2008. 6. HC 82959. STF. Pleno. Min. Marco Aurélio. DJ de 01/09/2006. 89
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especial, os condenados por delitos hediondos passaram a ser submetidos ao sistema geral da progressão de regime contemplado no art. 33, do CP, e no art. 112, da LEP (cumprimento de 1/6 da pena e bom comportamento). Sobreveio, posteriormente, a Lei no 11.464/2007, que alterou a Lei no 8.072/1990, dispondo que, para a progressão de regime, far-se-á necessário que o condenado por crimes hediondos, cumprisse 2/5 da pena, se primário, ou 3/5, se reincidente (sem aludir ao bom comportamento). Objetivamente considerada, a Lei no 11.464/2007 é mais benéfica do que a Lei no 8.072, o que determinaria a sua retroatividade. Porém, fato é que ela contém disposição mais gravosa do que aquela contida no Código Penal e na Lei de Execução Penal. Dessa maneira, os tribunais consideraram que a declaração de inconstitucionalidade do art. 2o, § 1o, da Lei no 8.072/1990, impediu que ele fosse, em um plano abstrato, tomado como parâmetro de comparação quando se investiga se a Lei no 11.464/2007 é mais benéfica ou mais gravosa para o réu. Desse modo, relativamente aos crimes hediondos cometidos antes da vigência da Lei no 11.464/2007, a progressão de regime carcerário deve observar o requisito temporal previsto nos arts. 33, do Código Penal, e 112, da Lei de Execuções Penais, aplicando-se, portanto, a lei mais benéfica.
7.4. A controvérsia da combinação de leis
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composição de leis significa, em linhas gerais, utilizar-se das partes que forem consideradas benéficas, tanto da lei anterior como da lei posterior, visando favorecer ao réu. Trata-se de uma questão polêmica, mas de elevado alcance prático, tendo em vista as constantes alterações legislativo-penais. O Código Penal é omisso quanto a essa questão.7 A doutrina se divide entre os que são a favor e os que não aceitam a composição de leis. Os doutrinadores contrários à conjugação de leis afirmam que a utilização das partes das normas que se sucedem transformaria o aplicador numa espécie de “legislador do caso concreto”, criando uma terceira lei (lex tertia). No limite, estaria sendo violado o princípio constitucional da separação dos Poderes (art. 2o, da CF/1988). Não sendo admissível tal alquimia jurídica, deve o aplicador escolher qual das duas leis irá regular o caso concreto, podendo, inclusive, em casos nebulosos, colher a opinião do próprio interessado (o réu).8 Outros, inversamente, são favoráveis à conjugação, fortes no argumento de que, quem pode o “mais” – aplicar, por inteiro, uma ou outra lei –, pode o “menos”, que é aplicar a parte mais benéfica de cada qual. Nesse sentido, a própria Constituição reforçaria esta argumentação, pois ela consagra, como visto, o princípio da retroatividade da lei penal mais benéfica (art. 5o, inc. XL, da CF/1988).9 ombinação, conjugação ou
7. Sobre o assunto, dispunha o art. 2º, § 2º, do CP/1969: ‘Para se reconhecer qual a mais favorável, a lei posterior e a anterior devem ser consideradas separadamente, cada qual no conjunto de suas normas aplicáveis ao fato’. 8. Adotam esta corrente: Nélson Hungria, Costa e Silva, Heleno Fragoso, Aníbal Bruno e Francisco de Assis Toledo. 9. Perfilham deste entendimento: Frederico Marques, José. Tratado de Direito Penal. Vol. I. Campinas: Bookseller, 1997, 90
Capítulo VII | Lei penal no tempo
Na jurisprudência há, igualmente, discordância sobre o assunto. Um bom exemplo pode ser encontrado na sucessão da legislação de drogas. Ao tempo da lei anterior, impunha-se, para o tráfico de drogas, a pena de reclusão, de 3 a 15 anos, e multa, de 50 a 360 dias-multa (art. 12, caput, da Lei no 6.368/1976). Com a entrada em vigor da Lei no 11.343/2006, o delito de tráfico de drogas teve a pena de reclusão majorada para 5 a 15 anos, e a multa, de 500 a 1.500 dias-multa (art. 33, caput, da Lei no 11.343/2006). No entanto, a Lei no 11.343/2006 trouxe uma inovação benéfica ao réu, qual seja, a causa de diminuição de pena para o chamado pequeno traficante. Segundo o § 4o, do art. 33, da Lei no 11.343/2006, a pena do tráfico poderá ser reduzida, de 1/6 até 2/3, “desde que o agente seja primário, de bons antecedentes, não se dedique às atividades criminosas nem integre organização criminosa”. Dessa forma, instaurou-se a controvérsia sobre a hipótese do agente que praticara o crime ao tempo da Lei no 6.368/1976, mas que era reconhecidamente primário, de bons antecedentes, que não se dedicava às atividades criminosas, nem integrava o crime organizado. Poderia ele receber a pena menor da lei anterior (três anos de reclusão), combinada com a causa de diminuição do § 4o, do art. 33, da lei nova (redução de 2/3)? Segundo decidido pelo STJ, diante do conflito temporal de normas, não é dado ao juiz aplicar os aspectos benéficos de uma e outra lei, sob pena de transmudar-se em legislador ordinário, criando lei nova. Encaixando-se a hipótese no disposto no § 4o do art. 33 da Lei no 11.343/2006, a pena reclusiva de cinco anos reduz-se para menos de três anos, passando, assim, a ser mais benéfica do que a antiga. Já a pena de multa sofre um significativo aumento, de 50 para 166 dias-multa. Nesse contexto, não se poderia dizer, a priori, se a aplicação da lei nova é ou não mais gravosa, tendo em vista a discrepância quanto ao valor dos bens jurídicos protegidos: liberdade e patrimônio, restando, desse modo, como ultima ratio, a possibilidade de escolha pelo condenado, que deverá optar entre o regramento antigo e o atual.10 No STF observa-se existir divergência entre as suas Turmas. Com efeito, a Segunda Turma já teve oportunidade de se posicionar favoravelmente à combinação de leis incriminadoras, deferindo habeas corpus impetrado em favor de condenado por tráfico ilícito de entorpecentes na vigência da Lei no 6.368/1976, para determinar que magistrado de Primeira Instância aplicasse a causa de diminuição de pena trazida pelo § 4o do art. 33 da Lei no 11.343/2006, bem assim para que fixasse regime de cumprimento compatível com a quantidade de pena apurada após a redução. Consignou-se, na ocasião, que a Constituição Federal determina que a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu (art. 5o, XL, da CF/1988) e, tendo em conta que o § 4o do art. 33 da Lei no 11.343/2006 consubstancia novatio legis in mellius, entendeu-se que ele deveria ser aplicado em relação ao crime de tráfico de entorpecentes descrito em lei anterior.11 Em sentido inverso, a Primeira Turma daquela Corte indeferiu habeas corpus em que p. 255-257; Bitencourt, Cezar Roberto. Op. cit., p. 176; Zafaroni, Eugenio Raúl et allii. Direito Penal Brasileiro. Vol. I. Rio de Janeiro: Revan, 2003, p. 212; Jesus, Damásio E. de. Direito Penal. Parte Geral. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 93. 10. HC 94413. STJ. Min. Laurita Vaz. Quinta Turma. DJ de 27/03/2008. 11. Cf. HC 101511. STF. Min. Eros Grau. Segunda Turma. DJ de 21/05/2010. 91
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condenada por crime de tráfico de drogas praticado sob a vigência da Lei no 6.368/1976 pretendia fosse aplicada à sua pena-base a causa de diminuição prevista no art. 33, § 4o, da Lei no 11.343/2006. Aduziu-se, dentre outras questões, que a nova lei majorou a pena mínima aplicada a tal crime de três para cinco anos, daí o advento da referida causa de diminuição. Portanto, considerou-se não ser lícito tomar preceitos isolados de uma e outra lei, pois cada uma delas deve ser analisada em sua totalidade, sob pena de aplicação de uma terceira lei, criada unicamente pelo intérprete.12 Diante desse antagonismo, entendeu-se por reconhecer a Repercussão Geral da matéria, não tendo sido, ainda, apreciado o mérito pelo Plenário da Corte.13 Anote-se, por fim, que em outra ocasião, a Corte Suprema firmou entendimento contrário à combinação de leis. Cuidou-se da alteração do art. 366, do CPP, por força da Lei no 9.271/1996, que determinou que o réu revel, citado por edital, que não comparece em juízo e nem constitui advogado, tem suspenso o processo e o curso do prazo prescricional. A primeira providência (suspensão do processo) é benéfica ao acusado, mas a segunda (suspensão da prescrição) lhe é maléfica. Sendo assim, alguns sustentaram a possibilidade da combinação de leis para que, nos termos da lei nova, ficasse suspenso o processo e, na forma da legislação anterior, continuasse a correr o prazo prescricional. Entretanto, o STF rechaçou essa tese, firmando entendimento de que o mencionado art. 366, do CPP (com a redação da Lei no 9.271/1996), não poderia ser aplicado parcialmente. Em outros termos, por se tratar de dispositivo que, em geral, agrava a situação dos réus (suspensão da prescrição), aquela norma não pode ser aplicada retroativamente à edição da lei nova.14
7.5. Lei excepcional ou temporária
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3o, do CP, há a ultratividade da lei excepcional ou temporária: ela se aplica aos fatos havidos ao tempo de sua vigência, mesmo depois de decorrido o tempo de sua duração ou cessada a situação de excepcionalidade. São leis temporárias aquelas que vigoram durante certo tempo, por elas próprias fixado. Por sua vez, leis excepcionais compreendem as que visam atender a situações anormais da vida social (epidemia, guerra, revolução etc.). Alguns exemplos podem ser ilustrados: egundo o art.
Exemplo: O art. 53, do Decreto no 4.766/1942, que definiu os crimes contra a segurança do Estado, dispôs: “A Lei para o tempo de guerra, embora terminado este, aplica-se ao fato praticado durante sua vigência”. 12. Cf. HC 103153. STF. Min. Cármen Lúcia. Primeira Turma. DJ de 23/11/2010. 13. “Constitucional. Penal. Conflito de leis no tempo. Nova legislação com dispositivos, ao mesmo tempo, mais gravosos e mais benéficos. Art. 5 o, XL, da Constituição. Existência de Repercussão Geral.” (STF. RE 596152.. Pleno. DJ de 19/06/2009). 14. Cf. HC 92615. STF. Min. Menezes Direito. Primeira Turma. DJ de 14/12/2007. No mesmo sentido, decidiu-se que “a jurisprudência desta Corte não admite a combinação de leis no tempo, sob pena de ser criar uma terceira lei” (HC 107448. STF. Min. Ricardo Lewandowski. Primeira Turma. In: Informativo STF n o 626. Publ. 18/05/2011). 92
Capítulo VII | Lei penal no tempo
Exemplo: Em razão de uma calamidade (grave estiagem assolando o País) sobrevém hipotética lei criminalizando o desperdício de água potável. Cessada a situação excepcional, com chuvas abundantes, essa lei perde sua vigência. Aqueles que violaram a norma, desperdiçando água ao tempo da lei excepcional, continuarão a responder pelo fato.
Observe-se que tanto na lei excepcional como na temporária, não há necessidade de uma lei posterior que as revogue, pois elas sairão “automaticamente” do ordenamento jurídico. A razão para a citada ultratividade reside no fato de que esse grupo de leis regula situações que, na sucessão de leis penais no tempo, não correspondem a uma evolução social a respeito da concepção ilícita do fato. Nesse sentido, a essência da retroatividade, tanto na abolitio criminis como na novatio legis in mellius, está no fato de que a sociedade não reputa o fato tão grave como no passado, justificando-se, dessa forma, o tratamento penal mais brando em favor do seu infrator. Ademais, se não houvesse tal ressalva legal, a lei excepcional ou temporária tenderia a perder seu caráter cogente, mormente quando aproximado o seu termo final. Conforme lecionado por Jescheck, faz-se uma exceção à retroatividade da lei mais favorável quando a anterior for uma lei temporária ou excepcional, devendo a mesma seguir sendo aplicada aos delitos cometidos sob sua vigência, visto que a sua derrogação vincula-se à cessação das razões do seu surgimento e não a uma alteração quanto à concepção jurídica do fato. Demais a mais, a lei excepcional ou temporária careceria de toda autoridade quando se aproximasse o fim de sua vigência.15 Contudo, há entendimento minoritário que considera a lei excepcional ou temporária como inconstitucional, tendo em vista que a regra do art. 3o, do CP, não foi reproduzida no texto constitucional. Com efeito, na nossa Carta Política só há a previsão do princípio que impõe a retroatividade de toda e qualquer lei penal favorável ao réu (art. 5o, XL, da CF/1988). Os adeptos dessa corrente olvidam, porém, que a razão de ser de todo o Direito Penal é justamente a tutela dos bens jurídicos fundamentais, tutela esta que ficaria gravemente comprometida – mormente em situações sociais atípicas – caso não houvesse a ressalta da ultratividade da lei excepcional ou temporária. Portanto, apesar de não estar previsto no art. 5o, XL, da CF/1988, a base constitucional da regra do art. 3o, do CP, pode ser extraída do art. 1o, III, da CF/1988 (defesa da dignidade da pessoa humana).16
7.6. Lei penal em branco
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branco (ou incompleta) é aquela cujo preceito primário da norma é formulado de maneira genérica, necessitando ser complementado por outra norma, ei penal em
15. Jescheck, Hans-Heinrich; Weigend, Thomas. Op. cit., p. 151. 16. Nessa linha, Cezar Bitencourt leciona que como a regra é a da irretroatividade da lei penal e, a exceção, é a retroatividade da lei mais benéfica, a norma do art. 3o, do CP, veicula a “exceção da exceção”, ou seja, a confirmação da regra geral da irretroatividade (Bitencourt, Cezar Roberto. Op. cit., p. 178). 93
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geralmente de hierarquia. Elas surgiram na Alemanha para explicar a autorização da lei do Reich para que os Landes complementassem as hipóteses típicas nela existentes. A expressão norma penal em branco se deve a Binding, que as considerava como “corpos errantes à procura de alma”. A partir de Mezger, as leis penais em branco passaram a ser admitidas mesmo quando o complemento se encontrasse na mesma lei ou em outra lei de igual hierarquia, muito embora para ele fosse essencial que o complemento se encontrasse em norma hierarquicamente inferior.17 propósito, o próprio Binding caracterizou as leis penais em branco como a “expressão ideal e perfeita da teoria das normas”, pois refletiria a tripla divisão de “norma extrapenal de conduta”, “norma penal descritiva da violação desta norma de conduta” e “sanção penal como norma que se dirige ao juiz penal”.18 Vê-se, assim, que conquanto enfraqueça o ideal da absoluta observância do princípio da taxatividade, fato é que as leis penais em branco correspondem a uma necessidade de reforço penal para certas regulações da vida em sociedade provindas de outros campos do Direito. Como visto, as penais em branco dividem-se em stricto sensu e lato sensu. O primeiro compreende aquelas normas cujo complemento provém de fonte de hierarquia inferior e, o segundo, aquelas cujo complemento tem igual hierarquia de lei.
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Exemplo: As normas contidas nos arts. 268 e 269, do CP, aludem a infração de medida sanitária destinada a impedir a introdução ou propagação de doença contagiosa e a omissão de informação de doença de notificação compulsória, respectivamente, mas o Código não esclarece quais são as doenças contagiosas ou de notificação compulsória. O complemento desses dispositivos legais depende de Resoluções editadas pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). Exemplo: A norma do art. 33, da Lei no 11.343/2006, proíbe o tráfico de drogas sem autorização legal ou regulamentar, mas não informa quais são as drogas proibidas. A relação das substâncias entorpecentes também depende de Resolução da Anvisa (art. 66, da Lei no 11.343/2006). Exemplo: As normas que protegem o casamento, contidas nos arts. 236 e 237, do CP, referentes a induzimento a erro essencial e ocultação de impedimento e conhecimento prévio de impedimento, respectivamente, dependem da definição de quais são os casos de erro essencial e de impedimento ao casamento. Estes dispositivos do Código são complementados pelos arts. 1.521, 1.523 e 1.557, todos do Código Civil.
Saliente-se, por outro lado, que enquanto não expedido o complemento, a norma penal em branco carecerá de efetividade. Por exemplo, o art. 6o, I, da Lei no 8.137/1990, 17. Gómez Pavón, Pilar. Cuestiones actuales del derecho penal econômico. el princípio de legalidad y las remisiones normativas. In: Revista de Derecho Penal y Criminología, n. extraordinário 1, Madrid, Marcial Pons, 2000, p. 456. 18. Cf. Tiedemann, Klaus. Lecciones de Derecho Penal Económico. Barcelona: PPU, 1993, p. 157. 94
Capítulo VII | Lei penal no tempo
tipifica o delito contra a ordem econômica e as relações de consumo consistentes na venda ou oferta de produtos ou serviços por preço superior ao oficialmente tabelado. Enquanto não editada Portaria governamental impondo o tabelamento de preços de produtos ou serviços aquela norma penal não tem aplicabilidade. O ponto nodal das leis penais em branco está na discussão sobre os efeitos acarretados pela alteração ou a revogação do complemento normativo. A modificação do regulamento ou da portaria gera efeitos retroativos favoráveis ao réu? Sobre o assunto, duas teorias são apresentadas. A primeira, minoritária, sustenta que a simples modificação do complemento não gera mudança da lei penal e, por isso, não se pode falar em conflito de leis no tempo, não havendo, assim, discussões sobre retroatividade ou não. A segunda teoria – que é majoritária – divide a matéria em dois grupos de normas penais em branco consoante a sua natureza. No primeiro grupo, o complemento serviria para permitir que a norma venha a ter eficácia, razão pela qual a sua subsequente modificação ou revogação não acarreta efeitos benéficos ao acusado. Ao revés, no segundo grupo, o complemento integra-se à norma penal, consistindo na “essência da proibição”, e, por esse motivo, sua modificação ou revogação importa em efetiva mudança da lei penal, retroagindo se se tratar de novatio in mellius. No primeiro caso, não houve uma evolução social acerca da concepção do caráter ilícito do fato, diferentemente do verificado no segundo grupo de normas. Cite-se, como exemplo do primeiro grupo, o referido tabelamento de preços (art. 6o, I, da Lei no 8.137/1990). Caso, v.g., uma Portaria fixe um regime de preços para produtos de primeira necessidade, proibindo vender o quilo do feijão acima de cinco reais, sobrevindo outra Portaria reajustando o preço máximo para dez reais, aquele que ao tempo da portaria anterior vendera o produto por sete reais não será beneficiado com a retroatividade a seu favor. O mesmo vale para a revogação do próprio tabelamento de preços. No caso vertente, a Portaria que tabelou os produtos alimentícios serviu para dar vigência à norma do art. 6o, I, da Lei no 8.137/1990, e a modificação ou revogação subsequente não retirou a concepção acerca do caráter ilícito da conduta do vendedor (i.e., vender acima do que fora tabelado pelo Governo). Com relação ao segundo grupo, pode-se exemplificar com o crime de tráfico de drogas. Como dito, o tipo penal do art. 33, da Lei no 11.343/2006, necessita ser complementado por Resolução da Anvisa, indicando-se quais são as substâncias entorpecentes consideradas drogas para fins penais (art. 66, da Lei n o 11.343/2006). É possível que aquele órgão do Ministério da Saúde edite nova Resolução retirando determinada substância do rol de entorpecentes, por entender que a mesma não oferece mais riscos para a saúde da coletividade. No caso, a mudança do complemento acarreta, efetivamente, uma evolução na “essência da proibição”, beneficiando daquele que vendera ilegalmente a hipotética droga. Cuidar-se-á, portanto, de alteração com efeitos retroativos, operando verdadeira abolitio criminis da conduta ora exemplificada. Um caso concreto bem ilustra esta discussão. 95
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Em 07/12/2000, por razões desconhecidas, o Diretor da Anvisa editou a Resolução Anvisa no 104, retirando o cloreto de etila, vulgarmente conhecido como lança-perfume, da relação de drogas proibidas. Esta decisão foi tomada ad referendum da Diretoria Colegiada que, reunida oito dias depois, não referendou o ato, publicando-se, novamente, a Resolução no 104, com o cloreto de etila na relação de substâncias entorpecentes. Instaurou-se, assim, a controvérsia sobre se referida Resolução 104/2000, nos oito dias em que esteve em vigor, gerou efeitos retroativos – ou seja, abolitio criminis – beneficiando quem estava respondendo ou mesmo condenado pelo tráfico de frascos de lança-perfume. Na ocasião, o STJ considerou que, de fato, a Resolução no 104 não havia sido referendada pelo Colegiado da Anvisa sendo, portanto, ato nulo, ou seja, que não produziu efeito no mundo jurídico, não havendo que falar de retroatividade ou de abolição da mencionada conduta de venda indevida de cloreto de etila.19 Posteriormente, o STF entendeu o oposto, ou seja, que aquela Resolução fora regularmente editada, tendo em vista os poderes do Diretor do órgão administrativo. A norma produzira, portanto, efeitos válidos, razão pela qual as condutas de venda de lança-perfume, praticadas no curto período de sua vigência, eram atípicas, havendo, nos termos do art. 5o, XL, da CF/1988, e art. 2o, caput, do CP, efeitos retroativos decorrentes da abolitio criminis.20
7.7. Tempo do crime
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possa aferir o conflito de leis penais no tempo, afigura-se fundamental determinar o momento em que o crime é cometido. Em outros termos, a discussão sobre a retroatividade ou não da lei penal pouco vale se, na prática, não há critérios seguros a respeito do instante em que se considera aperfeiçoada a infração penal, isto é, se não se define o tempo do crime. É certo, contudo, que o estudo pormenorizado do crime é matéria da qual se ocupa o Título III da presente obra (Teoria Geral do Crime). Sendo assim, naquilo que é possível adiantar, considera-se cometer o crime a realização da ação ou omissão descrita no respectivo tipo penal incriminador, de forma completa ou parcial, bem como a participação de alguém nessa atividade delituosa. Praticar o crime, portanto, não significa necessariamente o esgotamento da lesão ou ameaça ao bem jurídico penalmente tutelado. ara que se
19. Cf. HC 97355. STJ. Min. Jane Silva. Sexta Turma. DJ de 14/04/2008. No mesmo sentido: STJ. AgRg no REsp 819757. STJ. Min. Maria Thereza Moura. Sexta Turma. DJ de 04/10/2010. 20. Cf.: “Tráfico de entorpecentes. Comercialização de ‘lança-perfume’. Edição válida da Resolução Anvisa 104/2000. Abolitio criminis. Republicação da Resolução. Irrelevância. Retroatividade da lei penal mais benéfica. (...) A edição, por autoridade competente e de acordo com as disposições regimentais, da Resolução Anvisa 104, de 07/12/2000, retirou o ‘cloreto de etila’ da lista de substâncias psicotrópicas de uso proscrito durante a sua vigência, tornando atípicos o uso e o tráfico da substância até a nova edição da Resolução, e extinguindo a punibilidade dos fatos ocorridos antes da primeira portaria, nos termos do art. 5 o, XL, da Constituição Federal.” (HC 94397. STF. Min. Cezar Peluso. Segunda Turma. DJ de 23/04/2010). 96
Capítulo VII | Lei penal no tempo
Sendo assim, a respeito do tempo do crime há diferentes critérios apontados pelos doutrinadores. São eles: (1) considera-se praticado o crime no momento da ação ou da omissão do agente; (2) considera-se praticado o crime no momento em que ocorre o evento desvalioso; e (3) considera-se existente o crime tanto no momento da ação ou omissão como do resultado, total ou parcial. O Direito Penal brasileiro acolheu a primeira teoria, conforme se depreende do art. o 4 , do CP: “Considera-se praticado o crime no momento da ação ou omissão, ainda que outro seja o momento do resultado”. A razão para esta escolha reside em que, para o Direito Penal, o fundamental é a constatação do instante em que a pessoa transgride o comando deôntico contido na lei penal e isso ocorre, efetivamente, com a adoção da conduta ativa ou passiva antijurídica. O momento do resultado, embora relevante para a caracterização do crime consumado ou tentado, não mais influi naquela expectativa normativa, razão pela qual a alteração legislativa que ocorra após a realização da conduta, mas antes de aperfeiçoado o resultado, não poderá alterar o que já se passou. Em suma, não seria justo, tampouco razoável, que o momento do resultado venha a ser o critério legal para definição do tempo do crime, diante do conteúdo deôntico da norma.21 Sobre o assunto, discute-se, ainda, a definição do tempo do crime para as hipóteses de crime permanente e de crime continuado. Com relação ao primeiro, tem-se que no crime permanente a conduta do agente se prolonga no tempo, como ocorre, por exemplo, com o delito de sequestro ou cárcere privado (art. 148, do CP). Quando isto ocorre, e diante da sucessão de leis penais, a lei nova, sob o império da qual a conduta continuou a ser praticada, irá regular o fato em questão, mesmo sendo mais gravosa. Para o crime continuado a lei nova mais grave também deve ser aplicada. Isso porque, a rigor, a continuidade delitiva nada mais representa do que um tratamento punitivo mais brando para uma sucessão de crimes da mesma espécie, praticados com semelhanças de tempo, lugar e maneira de execução (art. 71, do CP). Sendo assim, na sucessão de leis penais, a aplicação da lei nova mais gravosa para todos os fatos que compõem o crime continuado será mais benéfica ao réu do que a adoção da separação da série de crimes, ou seja, com a aplicação da lei anterior (mais branda), para alguns fatos, e da lei posterior (mais grave), para os demais. Em síntese, o princípio da continuidade delitiva sobrepõe-se, pelo seu conteúdo mais benéfico, ao princípio da vedação da aplicação retroativa da lei mais gravosa. Aliás, foi esse o entendimento consagrado na Súmula 711, do STF: “A lei penal mais grave aplica-se ao crime continuado ou ao crime permanente, se a sua vigência é anterior à cessação da continuidade ou da permanência”.
21. Cumpre observar que com relação a contagem do prazo prescricional, o Código não adota, como regra geral, a teoria da atividade, mas, sim, a teoria do resultado (cf. art. 111, I, do CP), objetivando, dessa feita, uma melhor persecução penal do fato. 97
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7.8. Contagem dos prazos do Direito Penal
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10, do CP, o dia do começo inclui-se no cômputo do prazo. Contam-se os dias, os meses e os anos pelo calendário comum. Extraem-se, deste dispositivo, duas regras importantes. A primeira diz respeito ao início da contagem do prazo no Direito Penal que, no particular, difere do prazo no Direito Processual Penal. Dessa forma, se um crime se consumar às 23h e 59min do dia 1o de janeiro, será descontado, na contagem do prazo prescricional, todo o dia 1o de janeiro. A regra é idêntica, por exemplo, para alguém que é capturado, para fins de cumprimento de pena privativa de liberdade, naquele mesmo instante (23h59min de um hipotético 1o de janeiro); será considerado, por inteiro, do total da sua pena de prisão, o dia da sua captura, conquanto nele só houvesse sido utilizado seu derradeiro minuto. O critério de contagem do Direito Penal é diverso, como dito, daquele que regula o Direito Processual Penal. Segundo o art. 798, § 1o, do CPP, não se computará no prazo o dia do começo, incluindo-se, porém, o do vencimento. Despreza-se, no caso, o dia do começo, passando a contar, portanto, a partir o dia subsequente até o do vencimento, inclusive. O Código Civil e o Código de Processo Civil seguem o mesmo critério do CPP.22 Embora em aparente contradição, as disposições do CP e do CPP prestam-se à mesma finalidade, qual seja, a de beneficiar o réu. Nesse sentido, em didático acórdão, o STF decidiu – em um caso que envolvia a contagem da prescrição penal – que o dia do começo inclui-se no cômputo do prazo. Por esta razão, o prazo termina, não no dia idêntico do mês e ano seguinte, mas à meia-noite do dia anterior.23 A segunda regra extraída do art. 10, do CP, diz respeito à contagem dos dias, meses e anos, que, no Direito Penal, é regido pelo calendário comum (também chamado de calendário gregoriano). Portanto, um dia acaba à meia-noite, começando-se, a partir daí, outro. Um mês começa a ser contado de um determinado dia e vai até a meia-noite do dia anterior no mês seguinte (por exemplo, de 28 de fevereiro até 27 de março). Um ano começa a correr de um certo dia e se completa no dia anterior do mesmo mês correspondente ao ano seguinte (por exemplo, de 28 de fevereiro de 2010 até 27 de fevereiro de 2011). Sendo assim, pouco importa saber se se trata de mês com 29, 30 ou 31 dias. Despreza-se, igualmente, a circunstância de ser ano bissexto. O objetivo da regra foi o de trazer clareza e facilidade à contagem dos prazos do Direito Penal.24 egundo o art.
22. Art. 132, do CC: “Salvo disposição legal ou convencional em contrário, computam-se os prazos, excluído o dia do começo, e incluído o do vencimento.” Art. 184, do CPC: “Salvo disposição em contrário, computar-se-ão os prazos, excluindo o dia do começo e incluindo o do vencimento.” 23. HC 45648. STF. Min. Evandro Lins e Silva. Segunda Turma. DJ de 25/10/1968 (In RT 409/443). No voto condutor, o Relator destacou que apesar de aparentemente colidentes, não há tal colisão, porque os prazos do CP são contados daquela forma em virtude de haver interesse em retraí-los em benefício do réu, ao passo que no Código de Processo há interesse, igualmente em benefício do réu, em se estender os prazos. 24. Nélson Hungria, ilustra essa disposição do CP com o seguinte exemplo: “suponha-se o prazo de 1 ano e 6 meses que tenha começado às 16h de 7 de janeiro de determinado ano: terminará à meia-noite de 6 de julho do ano seguinte, pouco importando que um desses anos seja bissexto.” (Hungria, Nélson. Comentários ao Código Penal. Vol. I. Rio de Janeiro: Forense,1954, p. 199). 98
título
II
capítulo
teoria ger a l da lei penal
VIII
LEI PENAL NO ESPAÇO 8.1. Considerações gerais
N
se determine em que momento a lei penal brasileira pode ser aplicada. Para que a lei cumpra as suas funções, é necessário que seja determinado em que locais poderá o judiciário brasileiro exercer sua competência. Sobre o assunto, o Código Penal estabelece os critérios gerais para que a lei possa alcançar fatos cuja persecução penal seja do interesse do Estado brasileiro. Por intermédio de tais critérios, pretende-se basicamente evitar que ocorram lacunas de impunidade a respeito de ilícitos que atinjam bens jurídicos tutelados, direta ou indiretamente, pelo ordenamento jurídico brasileiro. Por esta mesma razão, a generalidade dos Estados adota também critérios de incidência para as suas respectivas leis penais, criando-se, assim, uma espécie de “malha” de leis penais, circunstância esta que redunda na quase impossibilidade de “conflitos negativos de jurisdições”, ou seja, o surgimento de “paraísos penais”. A matéria envolve, portanto, o chamado Direito Penal Internacional, ou seja, o ramo do Direito que define os crimes internacionais, próprios ou impróprios, as regras relativas a aplicação territorial e extraterritorial do Direito Penal, a imunidade de pessoas especialmente protegidas, a cooperação penal internacional em todos os seus níveis, as extradições, as transferências de condenados entre países, a determinação da forma e dos limites de execução de sentença penal estrangeira, a existência e funcionamento de tribunais penais internacionais ou regionais, ão basta que
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Curso de Direito Penal | Parte Geral
bem como as demais questões jurídicas que envolvam a imputação criminal de fatos que possam surgir no plano internacional.1 Especificamente no que diz respeito a aplicação da lei penal, ou seja, a prerrogativa de investigar, processar e julgar fatos no âmbito espacial, a doutrina elaborou alguns princípios gerais, que foram acolhidos, em maior ou menor extensão, pelos legisladores dos diversos países. São eles: A) Princípio da territorialidade
A lei penal aplica-se no território onde se exerce a soberania do Estado, independentemente da nacionalidade do agente ou da vítima ou do titular do bem jurídico atingido. O princípio da territorialidade é o preponderante na lei brasileira e é consequência direta da soberania estatal (art. 5o do CP). B) Princípio da personalidade ou da nacionalidade
A lei penal nacional pode ser aplicada ao cidadão onde quer que se encontre, devendo ser considerada apenas a nacionalidade do agente ou da vítima. Segundo tal princípio, a lei penal aplica-se aos fatos praticados pelo ou contra nacional de um Estado, independentemente do local da ocorrência do fato ou da procedência do bem jurídico lesado por tal conduta. O princípio da personalidade se subdivide em ativo, referente, exatamente, ao autor do delito, e passivo, que também leva em consideração a nacionalidade da vítima.2 Ressalte-se que os nacionais têm deveres para com o seu país, não sendo, portanto, aceitável, que, no estrangeiro, perpetrem fatos delituosos e contem com a impunidade ao retornarem à terra natal. Ademais, como a maioria dos Estados não concede extradição de seus nacionais, justifica-se plenamente a existência desse princípio.
1. Cf. Japiassú, Carlos Eduardo Adriano. O Tribunal Penal Internacional. A internacionalização do Direito Penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004, p. 17. A concepção ampla do Direito Penal Internacional abrange, com certeza, o chamado Direito Internacional Penal, isto é, os aspectos penais concernentes ao Direito Internacional. Na verdade, deve-se superar a dicotomia (“Direito Penal Internacional” e “Direito Internacional Penal”) ante a duvidosa praticidade dessa classificação, bem como a ausência de contornos claros de separação entre as duas disciplinas, o que recomenda, pois, a unificação metodológica de todos esses institutos jurídicos. A própria entrada em vigor do Tribunal Penal Internacional, cujo Estatuto reúne normas de Direito Penal, Direito Processua Penal, Direito de Execução Penal, Direito Internacional Público, dentre outros ramos, aconselha esta visão unitária sob o império da expressão “Direito Penal Internacional”. Nesse sentido, autores contemporâneos, como Bassiouni, Lombois e Koering-Joulin também adotam a terminologia “Direito Penal Internacional”. Sobre o assunto, Alicia Gil Gil assinala que o conceito de Direito Penal Internacional deve partir – tal como ocorre com o Direito Penal – do referencial do “bem jurídico a ser objeto de proteção”, quais sejam, os bens vitais que constituam a ordem internacional, passíveis de sofrer as mais graves formas de agressão. Em suma, a paz e a segurança internacional são os autênticos bens jurídicos internacionais e os principais objetos de proteção do Direito Penal Internacional. (Gil Gil, Alicia. Derecho penal internacional. Madrid: Tecnos, 1999, p. 29). 2. Cf. Damásio de Jesus, o princípio da personalidade passiva pressupõe a identidade de nacionalidades entre autor e vítima: “O princípio da nacionalidade passiva exige que o fato praticado pelo nacional no estrangeiro atinja um bem jurídico de seu próprio Estado ou de um cocidadão. Desta forma, no exemplo formulado, o crime praticado no Uruguai por um brasileiro só seria punido pela nossa lei se atingisse bem jurídico do Brasil ou de outro brasileiro.” (Jesus, Damásio E. de. Direito Penal. Vol. 1. 30. ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 121). 10 0
Capítulo VIII | Lei penal no espaço
C) Princípio da defesa ou real ou de proteção
A lei penal deve incidir tutelando determinados bens jurídicos de suma relevância para o Estado (vida, liberdade, patrimônio, fé pública etc.), onde quer que eles se encontrem, independentemente da nacionalidade do sujeito ativo da ameaça ou lesão de tais bens jurídicos. Por este princípio pune-se, por exemplo, o falsificador de moeda que opere no estrangeiro ou o estelionatário que acarrete um dano material nas finanças públicas fora do território nacional. D) Princípio da justiça universal
A lei penal aplica-se a todo e qualquer fato punível, seja qual for a nacionalidade do agente ou do bem jurídico lesado ou posto em perigo e qualquer que tenha sido o lugar onde tenha sido o fato praticado. Por intermédio deste postulado, os Estados acordam em reprimir os fatos quem mais atentam contra a consciência universal, independentemente do lugar onde ocorram ou da nacionalidade do seu autor. E) Princípio da representação ou da bandeira
A lei penal do Estado ao qual pertença a aeronave ou a embarcação deve ser aplicada a todo e qualquer fato praticado no seu interior. No caso, releva saber a natureza da aeronave ou embarcação (pública ou privada), bem como o lugar onde a mesma se encontre.
8.2. Território nacional e sua extensão
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5o, caput, do CP, aplica-se a lei penal brasileira aos crimes cometidos no território nacional. Trata-se da adoção do princípio da territorialidade, como regra geral. A regra, contudo, sofre ressalva já no próprio caput do citado artigo, que sustenta que o princípio da territorialidade deve ser aplicado sem prejuízo de convenções, tratados e regras de direito internacional, como, por exemplo, no caso das imunidades diplomáticas. Sob outra vertente, tem-se que o conceito jurídico de território decorre das normas do Direito público e do Direito internacional. Dessa maneira, não se trata de um “conceito geográfico”, mas, sim, político: território é todo espaço onde se exerce a soberania do Estado. Compreende-se, pois, em primeiro lugar, o espaço territorial delimitado pelas fronteiras do país, sem solução de continuidade, inclusive rios, lagos e mares interiores, bem como as ilhas e outras porções de terra separadas do solo principal. Integram, ainda, o território, o mar territorial, o espaço aéreo e a porção, atribuída pelo direito internacional a cada Estado, de rios e lagos fronteiriços.3 egundo o art.
3. A faixa de terra que, pelo Tratado da Antártica (celebrado, em Washington/EUA, em 01/12/1959, e promulgado, entre nós, pelo Decreto no 75.963/1975), pertence ao Brasil (ao sul do Paralelo 60 o S, entre os Meridianos 28 oO e 53 oO), também integra o território nacional. 101
Curso de Direito Penal | Parte Geral
Os limites do mar territorial estão estabelecidos pelo art. 1o, da Lei no 8.617/1993, em 12 milhas marítimas, medidas a partir da linha do baixa-mar do litoral continental e insular brasileiro, adotada como referência nas cartas náuticas brasileiras. A soberania brasileira se estende ao leito e ao subsolo do mar territorial (art. 2o, da Lei no 8.617/1993). Esta mesma lei estabelece a zona contígua, delimitada em até 24 milhas marítimas (onde podem ser adotadas medidas de prevenção de infrações à lei e de repressão daquelas ocorridas no território ou no mar territorial), e a zona econômica exclusiva, delimitada em até 200 milhas (para efeitos da exploração de recursos naturais), ambas contadas a partir da linha do baixa-mar. De maneira complementar, o art. 11, da Lei no 7.565/1986, dispõe que o Brasil exerce completa e exclusiva soberania sobre “o espaço aéreo acima de seu território e mar territorial”. Quanto aos rios, há os nacionais, ou seja, os que se situam inteiramente no território do país (v.g., o Rio São Francisco), e os internacionais, que atravessam mais de um país. Os rios internacionais podem ser simultâneos (v.g. o Arroio Chuí, que separa o Brasil do Uruguai) ou sucessivos (v.g. o Rio Solimões, que começa no Peru, passa a se chamar Amazonas, quando do encontro com o Rio Negro, em Manaus), que compõem o território nacional a partir do trecho que atravessa a respectiva fronteira. O território, em relação aos rios internacionais simultâneos, bem como aos lagos fronteiriços, é geralmente estabelecido por tratados entre as partes interessadas. Se o rio pertence a ambos os países, o limite é fixado em regra pela equidistância das margens ou pela linha de maior profundidade (Talweg). Nos lagos, o critério é geralmente o de limitação pela linha que liga ao centro os pontos extremos do território. A propósito, ainda pende de definição a demarcação da fronteira no lago artificial criado com a Barragem e a Hidrelética de Itaipu. Nas pontes internacionais – como a Ponte da Amizade, que liga as cidades de Foz do Iguaçu, no Brasil, e Ciudad del Este, no Paraguai –, o limite do território vai até o meio ainda que não corresponda ao Talweg do rio, salvo, é claro, convenção em contrário. No que concerne ao território por equiparação, isto é, para além do critério físico-político de espaço nacional, anteriormente pormenorizado, os §§ 1o e 2o, do art. 5o, do CP, regulam o chamado “território nacional por extensão”, estando nele compreendidos: A) Aeronaves e embarcações públicas onde quer que se encontrem
Segundo a 1a parte do § 1o, do art. 5o, do CP, as embarcações e aeronaves brasileiras de natureza pública (militares ou empregadas em serviços públicos, como o de polícia ou alfândega), constituem-se território nacional por extensão, onde quer que se encontrem, vale dizer, no território brasileiro, no território de outro país ou em alto-mar ou no espaço aéreo correspondente. Cumpre esclarecer que alto-mar ou águas internacionais, bem como seu respectivo espaço aéreo, compreende as porções dos oceanos que, por força de convenções do
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Capítulo VIII | Lei penal no espaço
Direito Internacional, são consideradas áreas neutras, ou seja, onde não há a incidência da jurisdição de nenhum país.4 B) Aeronaves e embarcações brasileiras mercantes ou de propriedade privada que estiverem em alto-mar ou no espaço aéreo correspondente
Consoante o art. 5o, § 1o, 2a parte, do CP, aeronaves e embarcações de bandeira brasileira, mercantes ou de propriedade privada, são também extensão do território nacional, quando se encontrarem em alto-mar ou no espaço aéreo correspondente. Caso se encontrem no território de outro país, não serão mais considerados território nacional, podendo, excepcionalmente, ser-lhes aplicável nossa lei penal, na hipótese do art. 7o, II, “c”, do CP. C) Aeronaves e embarcações estrangeiras privadas que se acharem dentro do território nacional brasileiro
A regra disposta no § 2o, do art. 5o, do CP, vem explicitar o que, a rigor, já se podia inferir dos dispositivos anteriores, em especial do caput do art. 5o. Desse modo, a lei penal brasileira é aplicável às aeronaves e embarcações estrangeiras, de natureza privada, quando se acharem dentro do território nacional, isto é, em pouso no território brasileiro ou no espaço aéreo correspondente (aeronaves) ou em porto ou no mar territorial (embarcações). Às aeronaves e embarcações estrangeiras públicas (militares ou não), pertencentes a outros países, não são aplicáveis a lei penal brasileira, mesmo que se encontrem no território nacional, mas, sim, a do Estado que representam. Cuida-se de outra exceção à regra do art. 5o, caput, do CP. Sobre o assunto, merece, ainda, ser observado que as partes de aeronaves ou embarcações continuam submetidas aos princípios apresentados. Por exemplo, no caso de naufrágio de uma embarcação brasileira em alto-mar, os seus destroços continuam a ser considerados território nacional, razão pela qual ao crime porventura praticado por um náufrago contra outro será aplicável a lei penal brasileira.
8.3. Lugar do delito e delitos a distância
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Capítulo anterior, ao delimitar o tempo do crime, o Código Penal fez opção pela teoria da atividade, desprezando, portanto, as teorias do resultado e mista. O critério norteador daquela opção pautou-se na constatação de ser no momento da ação ou da omissão aquele em que se pode esperar do cidadão a adoção do comportamento conforme o Direito. omo visto no
4. A propósito, é interessante relembrar o caso do “barco do aborto”, isto é, uma embarcação patrocinada por uma ONG defensora da liberação do aborto que, em alto-mar, efetuava tal manobra em mulheres dispostas a interromper a gravidez. 103
Curso de Direito Penal | Parte Geral
Com relação ao lugar do delito, o critério é outro. No caso, interessa ao Direito Penal ser o mais generoso possível, objetivando-se evitar “lacunas de impunidade”. Dessa maneira, o Código Penal optou pela chamada teoria da ubiquidade – também chamada de teoria mista ou da unidade. Nos termos do art. 6o, do CP, considera-se praticado o crime no lugar em que ocorreu a ação ou omissão, no todo ou em parte, bem como onde se produziu ou deveria produzir-se o resultado. Constata-se, desse modo, que a fixação do lugar da infração, pressuposto necessário para a incidência ou não da nossa lei penal, vincula-se ao local da realização total ou parcial da conduta, bem como ao lugar onde ocorreu, total ou parcialmente, o evento desvalioso, ou ainda – no caso de crime tentado, vale sublinhar, aquele sem resultado – no lugar onde deveria ter ocorrido o resultado, conforme o projeto criminoso do autor. Importa salientar que a noção de lugar do crime não oferece maiores dificuldades quando a conduta e resultado ocorrem no mesmo espaço físico, isto é, dentro do território nacional.5 No entanto, cuidando-se de “crime a distância”, ou seja, aquele em que a ação ou omissão ocorre no território de um Estado e o resultado ocorre ou deveria ter ocorrido no território de outro, surge o chamado conflito positivo de leis penais no espaço. Exemplo: “A” é alvejado por disparo de arma de fogo no Brasil e vem a falecer após cruzar a fronteira com o Paraguai. “B” despacha um pacote contendo uma bomba-relógio que deveria ser detonada quando o destinatário, residente no Brasil, a abrisse, sendo certo que o artefato foi descoberto e desativado em alto-mar.
Nas hipóteses anteriormente ilustradas, além da incidência da lei penal brasileira há, seguramente, a incidência da lei penal dos outros países. Sendo assim, a adoção da teoria da ubiquidade acarreta, em geral, o inconveniente da aplicação em duplicidade de leis penais (bis in idem), sendo certo que o art. 8o, do CP, analisado a seguir, estabelece regra para se evitar ou mitigar esse efeito indesejado. Por fim, registre-se que a norma que regula o lugar do crime pressupõe-se o início da realização da conduta, bem assim a fase de consumação do delito. Ficam excluídas as fases de cogitação e de realização de atos preparatórios, bem como o chamado exaurimento do crime. Sobre essa questão, pertinente ao denominado iter criminis – literalmente, “caminho do crime” –, vide Capítulo XIX.
8.4. Extraterritorialidade da lei penal brasileira
E
como regra geral, o princípio da territorialidade, o Código Penal cuida também, no seu art. 7o, da aplicação da lei penal brasileira a certos fatos praticados no estrangeiro. Em outros termos, estende-se a incidência da nossa lei mbora tenha adotado,
5. Os arts. 70 e segs., do CPP, tratam da repartição de competência dentro do território nacional. 10 4
Capítulo VIII | Lei penal no espaço
penal para alcançar condutas que ocorrem fora do território nacional, propriamente considerado ou por equiparação. É forçoso reconhecer que a generalidade dos países também adota normas regulando a aplicação extraterritorial de suas leis, consoante fatores jurídicos, políticos ou mesmo casuísticos. Nesse sentido, a lei penal da Espanha aplica-se, dentre outras hipóteses, aos crimes relativos à “mutilação genital feminina”, quando cometidos no estrangeiro e seus responsáveis vierem a ingressar no território espanhol (art. 23, § 4 o, “g”, da Ley Organica no 6/1985). No Brasil, a extraterritorialidade da lei penal obedece, igualmente, a fatores de diversas índoles, conforme estabelecido no art. 7o, do CP. No caso, a aplicação extraterritorial da lei penal brasileira se submete a dois critérios básicos, quais sejam, da sua incidência incondicionada ou condicionada a certos requisitos. 8.4.1. Extraterritorialidade incondicionada
As hipóteses de extraterritorialidade irrestrita estão catalogadas no inc. I, do art. 7o, do CP, e vinculam-se a alta relevância dos interesses atingidos. Em tais hipóteses, não se exige qualquer condição para a incidência da nossa lei penal. Portanto, os fatos serão processados e julgados no Brasil, independentemente do seu autor ser brasileiro, estrangeiro ou apátrida. Pouco importa se a conduta tiver sido praticada em alto-mar ou no espaço aéreo correspondente, ou ainda no território de outro Estado. Na mesma esteira, é igualmente irrelevante o fato do autor do delito ter sido julgado, absolvido ou condenado no estrangeiro, ou que lá o fato esteja alcançado pela prescrição ou que sequer seja previsto como crime (cf. art. 7o, § 1o, do CP). A) Crimes contra a vida ou liberdade do Presidente da República
Segundo o art. 7o, I, “a”, do CP, a lei penal brasileira aplica-se, de forma incondicionada, às condutas delituosas que atentem contra a vida ou a liberdade do Presidente da República. Cuida-se de regra que remonta à redação originária do CP/1940, época em que preponderava a noção de que Presidente da República era o supremo “Chefe da Nação”. A norma em questão estriba-se no princípio da proteção ou defesa, anteriormente mencionado. B) Crimes contra o patrimônio ou a fé pública de pessoas jurídicas de direito público
A norma do art. 7o, I, “b”, do CP, baseia-se no mesmo princípio da proteção ou defesa, no caso pertinente ao patrimônio ou a fé pública da União Federal, dos Estados e do Distrito Federal, de Território – atualmente inexistente –, ou de Município, bem como de empresa pública, sociedade de economia mista, autarquia ou fundação instituída pelo Poder Público. Os crimes contra o patrimônio estão tipificados no Título II, da Parte Especial, do Código Penal (furto, roubo, extorsão, apropriação indébita, estelionato etc.). A seu turno, o Título X, da mesma Parte Especial do CP, contém os crimes contra 10 5
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a fé pública (moeda falsa, falsificação de papéis públicos, falsificação de documento público, falsidade ideológica etc.). Autarquia pode ser definida como sendo o serviço autônomo, criado por lei, com personalidade jurídica, patrimônio e receita próprios, para executar atividades típicas da administração pública, que requeiram, para seu melhor funcionamento, gestão administrativa e financeira descentralizadas. Empresa pública é a entidade dotada de personalidade jurídica de direito privado, com patrimônio próprio e capital exclusivo da União, criada por lei para a exploração de atividade econômica que o governo seja levado a exercer por força de contingência ou de conveniência administrativa, podendo revestir-se de qualquer das formas admitidas em direito. A propósito, cumpre esclarecer que as fundações instituídas pelo Poder Público equiparam-se às empresas públicas. Sociedade de economia mista é a entidade dotada de personalidade jurídica de direito privado, criada por lei para a exploração de atividade econômica, sob a forma de sociedade anônima, cujas ações com direito a voto pertençam em sua maioria à União ou a entidade da administração indireta.6 C) Crimes contra a administração pública, por quem está a seu serviço
A hipótese de extraterritorialidade do art. 7o, I, “c”, do CP, encontra-se igualmente ancorada no citado princípio da proteção ou defesa, guardando, no caso, relação com os servidores públicos que se encontrem desempenhando suas atividades fora do território nacional. O Capítulo I, do Título XI, da Parte Especial do Código, contempla os chamados “crimes funcionais”, ou seja, aqueles que são cometidos por funcionários públicos (peculato, concussão, corrupção passiva, prevaricação etc.). D) Crime de genocídio, quando o agente for brasileiro ou domiciliado no Brasil
A regra do art. 7o, I, “d”, do CP, deriva do princípio da justiça universal, supracitado. Genocídio é a destruição (morte dolosa), no todo ou em parte, de grupo nacional, étnico, racial ou religioso, conforme definido no art. 1o, da Lei no 2.889/1956. O Código Penal Militar também tipifica o genocídio e o genocídio por equiparação, no seu art. 1o, e parágrafo único. Sendo assim, se o genocida (civil ou militar) tiver a nacionalidade brasileira ou, no caso de estrangeiro ou apátrida, estiver domiciliado no território brasileiro, ser-lhe-á aplicável a lei penal brasileira. Sobre o assunto, deve ser registrado que o crime de genocídio encontra-se também tipificado no art. 6o, do Estatuto do Tribunal Penal Internacional (TPI), promulgado pelo Decreto no 4.388/2002. No caso, a aplicação das normas do TPI se submete a regra da territorialidade, ou seja, a conduta deve ter ocorrido no território do Estado Parte ou a bordo da embarcação ou aeronave pertencente ao Estado Parte, bem assim ao critério da personalidade ativa, isto é, quando o autor for nacional do Estado Parte (art. 12, do Estatuto do TPI). 6. Cf. art. 5 o, do Decreto-lei no 200/1967, com a redação dada pelo Decreto-lei no 900/1969. 10 6
Capítulo VIII | Lei penal no espaço
8.4.2. Extraterritorialidade condicionada
Ao lado da aplicação irrestrita da nossa lei penal (territorialidade e extraterritorialidade incondicionada), há situações nas quais, de forma excepcional, pode ocorrer a incidência extraterritorial da lei penal, desde que atendidas certas condições. Cuidam-se, efetivamente, de hipóteses residuais, mas necessárias para que determinados fatos não se quedem sob o selo da impunidade. A) Crimes que, por tratado ou convenção, o Brasil se obrigou a reprimir
O primeiro grupo de crimes aos quais incide, excepcionalmente, nossa lei penal, está referido no art. 7o, II, “a”, do CP, e se vincula com compromissos assumidos pelo País no concerto das nações. No caso, aplica-se o princípio da justiça universal. Nesse sentido, por força de tratados e convenções internacionais, o Brasil comprometeu-se a processar e julgar os autores de delitos como pedofilia, tráfico de drogas, tráfico de pessoas, dentre outros, mesmo quando praticados fora do território nacional, desde que atendidos os requisitos no art. 7o, § 2o, do CP. B) Crimes praticados por brasileiros no estrangeiro
A regra do art. 7o, II, “b”, do CP, decorre do princípio da personalidade ou da nacionalidade ativa. A rigor, o dispositivo vincula-se à norma constitucional que veda a extradição de nacionais (art. 5o, LI, da CF/1988). Dessa maneira, perpetrando o brasileiro, nato ou naturalizado, determinado crime fora de nossas fronteiras, o Brasil se vê impossibilitado de extraditá-lo, razão pela qual deve deflagar ação penal e, se for o caso, condená-lo por aquele fato. A norma em questão vincula-se ao princípio geral do Direito Penal Internacional denominado aut dedere aut iudicare (ou o Estado entrega ou julga ele próprio o infrator). C) Crimes praticados em aeronaves ou embarcações brasileiras, mercantes ou de propriedade privada, quando em território estrangeiro, e aí não tenham sido julgados
Como visto, a aeronave ou embarcação brasileira, de natureza privada, que se encontre no território de outro Estado, não é considerada como extensão do território nacional (art. 5o, § 1o, do CP). Dessa maneira, cabe à justiça do outro país processar e julgar os fatos havidos a bordo daquela embarcação ou aeronave. No entanto, ante a hipótese da justiça estrangeira não se interessar em apreciar o fato delituoso, o art. 7o, II, “c”, do CP, prevê a aplicação subsidiária da nossa lei penal, suprindo eventual lacuna de punição. Trata-se de regra que se vincula ao princípio da bandeira ou da representação. D) Crimes praticados por estrangeiro contra brasileiro fora do Brasil
Consiste em outra norma residual voltada para que não ocorra ausência de punição. Dessa maneira, prevê o art. 7o, § 3o, do CP, a possível aplicação da lei penal brasileira ao crime cometido por estrangeiro (ou apátrida) contra brasileiro fora do território 107
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nacional, desde que o fato não tenha sido apreciado pela justiça estrangeira. A regra em questão decorre do princípio da personalidade passiva, vale dizer, da obrigação que tem o Estado de protegar seus nacionais, particularmente ante o desinteresse de outro Estado na persecução penal do infrator. Como visto a seguir, além das condições impostas nas alíneas do § 2o, do art. 7o, do CP, devem, ainda, apresentar-se os requisitos referidos no próprio § 3o, do mesmo dispositivo legal. 8.4.3. Requisitos para a aplicação extraterritorial da lei penal brasileira
Nos casos de extraterritorialidade condicionada (art. 7o, II, e § 3o, do CP), a legislação penal brasileira estabelece determinados pressupostos que devem ocorrer conjuntamente. A) Entrar o agente no território nacional
O primeiro requisito (art. 7o, § 2o, “a”, do CP) diz respeito à necessidade do agente ingressar no território nacional. No caso vertente, é irrelevante a motivação para a sua entrada, podendo ter a mesma decorrido de forma voluntária ou não, bem assim por erro, fraude ou mesmo coação física irresistível, como ocorre nos casos de sequestro ou abdução internacional. A presença física do autor da infração é o quanto basta para o atendimento dessa condição.7 B) Ser o fato punível também no país em que foi praticado
Segundo o art. 7o, § 2o, “b”, do CP, outra conditio sine qua non para a extraterritorialidade condicionada da lei penal é ser o fato punível também no país em que foi praticado. Trata-se de requisito que se vincula ao subsequente, ambos relacionados com os casos autorizativos da extradição. Na verdade, como visto a seguir, um dos princípios fundamentais da extradição é da regra da dupla incriminação do fato ou da “identidade das infrações”, que significa que fato motivador do pedido deve ser tido como crime tanto no Estado que requer como naquele onde é requerida a entrega extradicional.8 Naturalmente, se o fato ocorreu em alto-mar ou no espaço aéreo correspondente, este requisito deve ser tido como devidamente suprido, na medida em que não há a incidência da lei penal de nenhum país. 7. As hipóteses de abdução internacional, lamentavelmente frequentes quando se é denegada a extradição, redundam, quando muito, na punição dos seus responsáveis. Jamais algum país procedeu à devolução da vítima do sequestro internacional, tendo em vista o interesse na sua captura para fins de julgamento ou cumprimento de pena. Os casos mais famosos foram os de Adolf Eichmann, criminoso de guerra nazista, que estava na Argentina e foi sequestrado por agentes do Mossad e conduzido a Israel, onde foi julgado e condenado a forca (1962), e de Humberto Alvarez-Machain, sequestrado no México pelo DEA (Drug Enforcement Administration) e levado para a Califórnia (EUA), onde foi condenado pela tortura e morte de um agente daquele órgão norte-americano, (1990). Neste último, para surpresa da opinião pública mundial, a Suprema Corte dos Estados Unidos considerou que o tratado de extradição firmado entre este país e o México era omisso quanto a vedação de “apreensões violentas e extraterritoriais de perseguidos da justiça dos EUA”, razão pela qual era incabida a devolução de Alvarez-Machain ao governo mexicano. (cf. Souza, Artur de Brito Gueiros. As novas tendências do direito extradicional. Rio de Janeiro: Renovar, 1998, passim). 8. Idem, p. 18. 10 8
Capítulo VIII | Lei penal no espaço
C) Estar o crime incluído entre aqueles pelos quais a lei brasileira autoriza a extradição
Conforme a seguir pormenorizado, a extradição é instrumento de cooperação penal internacional pelo qual um Estado entrega a outro determinada pessoa, acusada ou já condenada, para que seja julgada ou lá venha a cumprir pena. Por esta razão – vale dizer, pelo fato de o Brasil se comprometer, no concerto das nações, com a repressão internacional das infrações penais –, em geral todos os crimes são passíveis de extradição. Excepcionam-se os crimes políticos ou de opinião (art. 5o, LII, da CF/1988), os crimes militares próprios, os crimes aos quais a lei brasileira imponha pena de prisão igual ou inferior a um ano, dentre outros referidos nos arts. 77 e 78, da Lei no 6.815/1980 (Estatuto do Estrangeiro) ou em tratados e convenções internacionais. D) Não ter sido o agente absolvido no estrangeiro, ou não ter aí cumprido pena
Conforme já salientado, a aplicação extraterritorial condicionada da lei penal brasileira apresenta-se de modo residual, ou seja, visa não deixar “respiradouro” para a impunidade de fatos havidos fora do território nacional. Coerentemente, se o fato sob consideração tiver sido submetido a jurisdição de outro Estado, descabe falar da incidência da nossa lei penal. Não houve impunidade, entendida como sinônimo de não apreciação jurisdicional de fatos delituosos. Em outros termos, segundo a dicção do art. 7o, § 2o, “d”, do CP, não haverá a extraterritorialidade condicionada da lei penal quando o agente tiver sido absolvido ou, se condenado, com a pena devidamente cumprida. No caso de absolvição, mesmo que ela tenha sido “errônea” ou “injusta”, ainda assim não poderá ser aplicada à lei brasileira, pois o agente não pode, na extraterritorialidade condicionada, ter aqui tratamento mais severo do que no local onde o fato ocorreu. Diversamente, quer dizer, cuidando-se de aplicação territorial ou extraterritorial incondicionada, pouco importa, para fins de incidência da nossa lei penal, a sorte do fato praticado pelo agente perante a Justiça de outro país. Poderá existir, tão somente, reflexo na dosimetria da pena imposta pela Justiça brasileira, conforme os termos do art. 9o, a seguir analisado. E) Não ter sido o agente perdoado no estrangeiro ou, por outro motivo, não estar extinta a punibilidade, segundo a lei mais favorável
A premissa desse requisito é idêntica à anterior, ou seja, se o fato foi devidamente processado e julgado pelas autoridades do país onde ocorreu, culminando no perdão judicial do agente ou na extinção da sua punibilidade, v.g., em razão de prescrição penal, anistia, indulto etc., descabe a incidência extraterritorial condicionada na nossa lei penal. Na mesma esteira, é possível que punibilidade do fato decorra da própria legislação brasileira, motivo mais do que suficiente para a não aplicabilidade extraterritorial da lei penal. A propósito, vide o rol exemplificativo de causas de extinção da punibilidade no art. 107, do CP (cf. Cap. XXXV). 10 9
Curso de Direito Penal | Parte Geral
F) Não ser pedida ou ser denegada a extradição se houver requisição do Ministro da Justiça
Os requisitos contidos nas letras “a” e “b”, do § 3o, do art. 7o, do CP, atrelam-se exclusivamente aos crimes praticados por estrangeiro contra brasileiro fora do Brasil. Dessa maneira, além do atendimento das condições gerais de extraterritorialidade anteriormente mencionadas, a aplicação da lei brasileira, nesse caso último caso, somente poderá ocorrer se, após ter ingressado no território brasileiro (cf. al. “a”, do § 2o, do art. 7o), o Estado estrangeiro não formular a sua extradição ou, se formulada, a mesma tiver sido negada pelo Brasil. Além disso, exige-se que o Ministro da Justiça dirija ao Procurador-Geral da República requisição para que o Ministério Público deflagre ação penal contra o estrangeiro que praticou o crime contra o nacional. A expressão requisição – que significa ordem ou exigência – é antiquada, tendo em vista que, com a Constituição Federal de 1988, o Ministério Público teve reconhecida a sua independência funcional (art. 127, § 1o, da CF/1988), não estando obrigado a cumprir aquela requisição, caso decida, por exemplo, não denunciar o autor da infração. Em suma, o MP tem independência na formulação da opinio delicti.
8.5. Pena cumprida no estrangeiro
C
onforme as sinal ado, no caso de aplicação territorial ou extraterritorial incondicionada da lei penal brasileira (art. 5o, caput e §§, e art. 7o, I, do CP) pouco importa que o agente tenha sido julgado no estrangeiro pelo mesmo fato. Contra ele incidirá a nossa lei penal e, caso condenado pela Justiça brasileira, sofrerá a respectiva sanção penal. Portanto, entre nós não vigora o princípio – existente nos países que seguem o modelo da common law – que veda a possibilidade de duplo julgamento (double jeopardy). Dito de outro modo, em tais hipóteses, haverá o bis in idem. Apenas a extraterritorialidade condicionada é que se subsume a este princípio restritivo (cf. art. 7o, § 2o, “d”, do CP). No entanto, para abrandar o rigor daquela disposição, a 1a parte do art. 8o, do CP diz que a pena que foi cumprida no estrangeiro, pelo mesmo fato, atenua a pena a ser executada no Brasil, quando diversas as espécies.
Exemplo: “A”, condenado no estrangeiro à pena de multa, por conta de um crime praticado no território brasileiro, é novamente julgado, pelo mesmo fato, pela Justiça brasileira, recebendo a pena de dois anos de reclusão. Deve a pena de reclusão ser atenuada, em função da pena pecuniária cumprida no estrangeiro, podendo, a critério do juiz, restar fixada em um ano e seis meses de reclusão.
Contudo, a 2a parte do art. 8o, do CP, assinala que se forem penas idênticas, ou seja, da mesma espécie, deve o magistrado computar a pena estrangeira na pena brasileira. Computar, em termos matemáticos, significa “abater” ou “subtrair”. Ao final dessa 110
Capítulo VIII | Lei penal no espaço
operação, é possível que não reste pena alguma a ser cumprida no Brasil, caso, evidentemente, a pena imposta pela Justiça estrangeira tenha sido superior à pena aqui fixada, restando, neste caso, apenas o título condenatório decretado pela Justiça brasileira. Exemplo: “A”, condenado no estrangeiro à pena privativa de liberdade de dois anos, por conta de um atentado contra a liberdade do Presidente da República, é novamente julgado pela Justiça brasileira, recebendo a pena de três anos de reclusão. Devem ser computados na pena imposta pela Justiça brasileira os dois anos de prisão cumpridos no estrangeiro, restando, portanto, ser cumprido no Brasil, a pena de um ano de prisão. Caso ocorra o inverso, i.e., se “A” tiver cumprido, no estrangeiro, três anos de prisão, e aqui pesar contra o mesmo a pena de um ano de prisão, ele não irá cumprir pena alguma no Brasil, remanescendo, porém, os efeitos secundários da nossa sentença condenatória.
Para alguns doutrinadores, a regra do art. 8o, do CP, teria sido parcialmente revogada em razão da vigência da Convenção Americana de Direitos Humanos – Pacto de São José da Costa Rica (Decreto no 678/1992,) que, no seu art. 8o, § 4o, dispõe que o acusado absolvido por sentença passada em julgado não poderá ser submetido a novo processo pelos mesmos fatos. Dessa maneira, argumenta-se que caso a Justiça estrangeira absolva o agente, não seria mais possível o cumprimento de pena imposta pela Justiça brasileira, em razão da hierarquia de tratados de direitos humanos – equiparados a “emendas constitucionais” por força do art. 5o, § 3o, da CF/1988, com a redação da Emenda Constitucional no 45/2004. Os tribunais brasileiros ainda não se manifestaram acerca dessa possível derrogação do art. 8o, do CP.
8.6. Eficácia da sentença penal estrangeira
S
9o, do CP, a sentença estrangeira, quando a aplicação da lei brasileira produz na espécie as mesmas consequências – isto é, quando o fato também for crime no Brasil –, pode ser homologada para: (1) obrigar o condenado à reparação do dano, restituição da coisa ou a outros efeitos civis; e (2) sujeitá-lo à medida de segurança, no caso de inimputável ou semirresponsável que necessite de especial tratamento curativo (cf. art. 26, caput, ou parágrafo único, do CP). O parágrafo único, do art. 9o, do CP, estabelece os requisitos para a homologação da sentença penal estrangeira, sendo certo que a competência para tanto é do Superior Tribunal de Justiça, conforme o art. 105, I, “i”, da CF/1988, com a redação da Emenda Constitucional no 45/2004. Extrai-se, desse dispositivo do Código Penal, que não é admissível a homologação da sentença penal estrangeira para que no Brasil surta seu principal efeito: a imposição de pena. Como visto, admite-se a homologação tão somente para efeitos secundários e – acresça-se – de difícil verificação na prática. Em síntese, a homologação da pena estrangeira – um dos principais mecanismos de cooperação penal internacional – não pode ocorrer no ordenamento jurídico brasileiro, a teor do art. 9o, do CP. egundo o art.
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Curso de Direito Penal | Parte Geral
João Marcello de Araujo Jr. formulou veemente crítica a esta disposição do Código Penal, tendo em vista que a mesma se aferra a uma “velha e antiquada ideia de soberania petrificada”. Segundo aquele autor, a admissão não importa em violação do poder de império nacional, pois, ao contrário, o reafirma. Além disso, a execução no Brasil de julgado condenatório estrangeiro é um imperativo de humanização das penas e garantia dos direitos humanos do condenado.9 A crítica tem total pertinência, pois a norma do art. 9o, do CP, reproduz disposição idêntica à que existia no Código Penal de 1890, sendo, portanto, totalmente inadequada a realidade do Brasil do século XXI. Na atualidade, não mais prepondera a desconfiança para com a Justiça de outro país, mas, sim, princípios de solidariedade, efetividade na colaboração penal internacional e respeito aos direitos humanos, princípios aos quais não podemos mais ficar alheios. Em outros termos, a maioria dos países admite a homologação da sentença penal estrangeira para sujeitar o condenado – em especial aquele que não pode ser extraditado – ao cumprimento da pena imposta pela Justiça estrangeira.10 A despeito da concepção ideológica retrógada do art. 9o, do CP, é certo que o seu alcance tem sido mitigado com o desenvolvimento do instituto da transferência de condenados entre países. Por intermédio de tratados em vigor no Brasil, admite-se que a sentença estrangeira possa surtir seu principal efeito em território brasileiro, vale dizer, o prosseguimento do cumprimento da pena imposta pela Justiça do outro Estado subscritor da transferência de condenados.
8.7. Transferência de condenados entre países
P
transferência de condenados como sendo o ato de colaboração penal internacional por meio do qual se transporta a fase de cumprimento de determinada pena, em regra privativa de liberdade, do país onde se encontra o condenado pela Justiça estrangeira para o país de sua nacionalidade. A efetivação da transferência de condenados depende, na generalidade dos tratados, da concordância do indivíduo que cumpre pena. Em outros termos, por meio desse instrumento jurídico, o cidadão condenado no estrangeiro pode – caso concorde – ser transferido para cumprir o restante da pena que lhe foi imposta no território do país de origem, próximo de sua família e do ambiente sócio-cultural. Trata-se de um instituto que almeja conciliar os interesses dos Estados na repressão de delitos com a necessária reintegração social do apenado.11 Como visto, a transferência de condenados mitiga a norma restritiva do art. 9o, do CP. Nesse sentido, já estão em vigor, no Brasil, tratados de transferência com Argentina, Canadá, Chile, Espanha, Paraguai, Portugal e Reino Unido. Encontra-se em tramitação, ode-se definir a
9. Araujo Jr., João Marcello de. Cooperação internacional na luta contra o crime. Transferência de condenados. Execução de sentença penal estrangeira. Novo conceito. Revista Brasileira de Ciências Criminais, n. 10, São Paulo: RT, 1995, p. 111. 10. Cf. Souza, Artur de Brito Gueiros. Presos estrangeiros..., cit., p. 286. 11. Idem, p. 253 e segs. 112
Capítulo VIII | Lei penal no espaço
no Congresso Nacional, a aprovação de tratados bilaterais subscritos com Alemanha, Angola, Bolívia, Itália e Panamá. No tocante a tratados multilaterais, o Brasil aprovou a Convenção Interamericana sobre o Cumprimento de Sentenças Penais no Exterior (Decreto Legislativo no 268/2000) que, apesar do título, cuida somente da transferência de presos entre os Estados Partes.12 Pende, ainda, de aprovação convenções elaboradas no âmbito do Mercosul e da Comunidade de Países de Língua Portuguesa (CPLP). A transferência de condenados divide-se em passiva, quando o estrangeiro que cumpre pena no Brasil objetiva ser trasladado para o seu país de origem e lá terminar o desconto da pena, e ativa, quando o brasileiro almeja cumprir o restante da pena no território nacional. Discute-se se a transferência ativa necessita ser homologada junto ao STJ para que possa surtir efeitos no País, a teor do que ocorre com a sentença penal estrangeira (art. 105, I, “i”, da CF/1988). A doutrina se divide sobre essa questão, entendendo, parte dela, que a homologação é necessária, sob pena de violação da nossa Soberania. Outros, porém, assinalam que o caráter humanitário da transferência faz com que se prescinda dessa formalidade homologatória, pois sua adoção acarretaria um tratamento prejudicial ao brasileiro preso no estrangeiro, visto que, na situação inversa – i.e, do estrangeiro preso no Brasil –, a transferência é puramente administrativa; ela não passa pelo Judiciário brasileiro. O Ministério da Justiça tem efetivado a transferência de brasileiros sem a homologação perante o STJ.13 Por fim, cumpre observar que a transferência de condenados não se confunde com a extradição, visto que, no último caso, a manifestação de vontade do indivíduo é irrelevante para a realização do ato de colaboração penal.
8.8. Direito de extradição
E
“sair para fora”. Cuida-se do mais antigo e mais importante mecanismo de colaboração penal internacional. Pode-se definir a extradição como sendo o ato pelo qual um Estado (denominado Requerido) proceda a captura e a entrega de um indivíduo procurado pela justiça de outro Estado (denominado Requerente), para que seja julgado ou para que cumpra a pena que lhe foi imposta.14 Segundo Luís Jiménez de Asúa, a extradição, tal como conhecemos na atualidade, teria surgido em 1376 quando da celebração de um específico tratado entre o Rei da França, Carlos V, e o Conde de Sabóia, objetivando que os acusados de delitos do direito comum fugissem da França e se refugiassem em Saboia, e vice-versa.15 Em sentido contimologicamente , e x traditar significa
12. Além do Brasil, subscreveram esta Convenção os seguintes países: Canadá, Chile, Costa Rica, Equador, Estados Unidos, México, Nicarágua (sede da Convenção), Panamá, Paraguai e Venezuela. 13. Sobre o assunto: Souza, Artur de Brito Gueiros. Presos estrangeiros..., cit., p. 286. 14. Cf. Souza, Artur de Brito Gueiros. As novas tendências do direito extradicional. Rio de Janeiro: Renovar, 1998, p. 9. 15. Jiménez de Asúa, Luís. Tratado de Derecho Penal. Tomo II. 3. ed. Buenos Aires: Losada, 1964, p. 893. 113
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trário, Celso Albuquerque Mello sustenta que o instituto teria surgido na antiguidade oriental, especificamente em Israel e no Egito. Cita, em abono de sua tese, o registro de tratado firmado entre Ramsés II e Hattisuli, rei dos Hititas, em 1291 a.C., concluindo que a essência da extradição, isto é, conduzir um indivíduo para fora de um Estado a fim de entregá-lo a outro Estado, existia na prática internacional da Antiguidade.16 No Brasil, o direito de extradição iniciou-se no Império, com os primeiros tratados de reconhecimento da nossa Independência, formulados, entre 1826 e 1836, com a França, Inglaterra, Alemanha e mesmo com Portugal. No entanto, o instituto ganhou impulso com a expedição da famosa Circular do Barão de Cairú (1847), distribuída a todos os agentes diplomáticos brasileiros, que regulamentou a extradição de grandes criminosos, vedando, já na ocasião, a extradição de súditos brasileiros.17 Na atualidade, a extradição vem regulada na Constituição Federal de 1988, com a garantia da não extradição de brasileiro, nato ou naturalizado, excepcionando, no último caso, a hipótese de delito praticado antes da naturalização ou, a qualquer tempo, por seu comprovado envolvimento no tráfico de drogas (art. 5o, LI, da CF/1988). A Constituição proíbe, ainda, a extradição por crime político ou de opinião (art. 5o, LII, CF/1988). O Brasil é subscritor de inúmeros tratados e convenções versando sobre o tema. Na ausência de documentos bi ou multilaterais, a extradição pode ser concedida, sob o compromisso de reciprocidade, desde que sejam respeitados os termos dos arts. 77 e seguintes da Lei no 6.815/1980 (princípio do nulla traditio sine lege).18 8.8.1. Extradição: Classificações
Segundo a doutrina, a extradição pode ser classificada em ativa, quando o Brasil formula o pedido a outro país, e passiva, quando o Brasil é demandado por outro para a entrega de foragido da Justiça estrangeira. A extradição ativa é formulada por intermédio dos Ministérios da Justiça e das Relações Exteriores.19 A extradição é dirigida 16. Mello, Celso Albuquerque D. Curso de Direito Internacional Público. Vol. II. 10.ed. Rio de Janeiro: Renovar, 1995, p. 773. No entanto, considerando que na Antiguidade a exigência de devolução de acusado, formulada por um Estado a outro, vinha sempre acompanhada de “ameaça de guerra”, pode-se afirmar que tal circunstância destoa da moderna concepção de cooperação e auxílio, inerente ao instituto da extradição. Cf. assinalado por Anor Butler Maciel, “a história antiga revela a extradição como ato de força e não como princípio de direito.” (Maciel, Anor Butler. Extradição internacional. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1957, p. 10). 17. SOUZA, Artur de Brito Gueiros. Novas tendências..., cit., p. 59. 18. Sobre a promessa de reciprocidade, decidiu o STF: “A falta de tratado de extradição entre o Brasil e o país que requer tal medida não impede que o Supremo Tribunal Federal conheça do pedido, visto que, pela doutrina da Corte, é de ser o mesmo conhecido quando o Estado requerente promete reciprocidade e observância das ressalvas imposta pelo Estado brasileiro ao conceder a extradição.” (Ext. 346. STF. Pleno. Min. Antonio Neder. In Extradições. Vol. II. Brasília: STF, 1978, p. 78). 19. É curioso observar que em todo o ordenamento jurídico brasileiro não há um dispositivo sequer regulando a extradição ativa. Diante dessa lacuna, o único parâmetro existente para guiar o seu processamento é o art. 20, do (revogado) Decreto-lei n. 398/1938: “Quando se tratar de indivíduo reclamado pela Justiça brasileira e refugiado em país estrangeiro, o pedido de extradição deverá ser transmitido ao Ministério da Justiça e Negócios Interiores, que o examinará e, se o julgar procedente, o encaminhará ao Ministério das Relações Exteriores, para os fins convenientes, fazendo-o acompanhar de cópia dos textos da lei brasileira referentes ao crime praticado, à pena aplicável e à sua prescrição, e de dados ou informações que esclareçam devidamente o pedido.” 114
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pelo Estado interessado ao Governo brasileiro, cabendo ao Supremo Tribunal Federal, na composição Plenária, pronunciar-se sobre sua legalidade e procedência, não cabendo recurso da decisão (art. 102, I, “g”, da CF/1988, e art. 83, da Lei no 6.815/1980). Difere-se a extradição instrutória da executória. Na primeira, almeja-se a captura do prófugo para ser submetido a julgamento no Estado requerente e, na segunda, o objetivo é a entrega do extraditando para o cumprimento de pena que lhe fora imposta pela Justiça do Estado solicitante. Uma terceira classificação diz respeito aos chamados sistemas extradicionais. Em linhas gerais, há três grandes modelos, levando-se em consideração a natureza da manifestação do Estado: (1) Sistema puramente administrativo, ou seja, aquele em que a apreciação do pedido não passa pelo crivo do Judiciário. Cuida-se de hipótese rara na atualidade, embora tenha sido muito utilizado no passado, como, por exemplo, ao tempo da citada Circular de 1847; (2) Sistema da ampla revisão (ou sistema anglo-saxônico), caracterizado por admitir ampla análise judicial do mérito da causa criminal que motivou o pedido de entrega. Por este modelo, adotado por países como Estados Unidos e Inglaterra, faz-se necessária a reprodução do processo penal deflagrado na Justiça do Estado requerente, com ampla revisão de prova, sob pena de indeferimento do pedido. Anote-se que esse modelo passou a ser previsto, no Brasil, para o caso de extradição de naturalizado envolvido no narcotráfico, conforme a seguir pormenorizado; (3) Sistema da delibação (ou sistema misto ou belga). Delibar, em termos literais, é “tocar com os lábios”; é “sentir apenas o gosto”. Cuida-se de sistema adotado, como regra geral, por muitos países, inclusive o Brasil – influenciados pela legislação belga de 1874 –, por meio do qual o Judiciário, embora participe do processo de produção do ato de extraditar, procede ao chamado juízo de delibação ou de controle da legalidade extrínseca do pedido. Nesse sistema, é defeso à Justiça penetrar no mérito da causa estrangeira; tão pouco pode revolver a prova produzida ou aceitar teses como a de negativa de autoria.20 Mais recentemente, surgiu a figura da extradição simplificada ou voluntária, que consiste na aceitação imediata, por parte do indivíduo perseguido internacionalmente, da efetivação da extradição, abreviando-se, sem maiores formalidades, o processamento da demanda, bem como o tempo da sua custódia no Estado requerido.21 Embora não prevista na Lei no 6.815/1980, que obriga ao STF a apreciação do pedido de entrega, mesmo com a aquiescência do extraditando, a extradição simplificada encontra-se contemplada em documentos subscritos pelo Brasil, conforme os termos do Tratado Brasil e Portugal, bem assim o Tratado de Extradição do Mercosul, cujo art. 27 assinala: “O Estado requerido poderá conceder a extradição se a pessoa reclamada, com a devida assistência jurídica e 20. Idem, p. 38. Nesse sentido, o seguinte arresto do STF: “O modelo que rege, no Brasil, a disciplina normativa da extradição passiva – vinculado, quanto à sua matriz jurídica, ao sistema misto ou belga – não autoriza que se renove, no âmbito do processo extradicional, o litígio penal que lhe deu origem, nem que se proceda ao reexame de mérito (révision au fond) ou, ainda, à revisão de aspectos formais concernentes à regularidade dos atos de persecução penal praticados no Estado requerente.” (Ext. 669. STF. Plenário. Min. Celso de Mello. DJ de 29/03/1996). 21. Souza, Artur de Brito Gueiros. A Extradição na América do Sul. O caso especial do Brasil. In: Entrega internacional de pessoas: uma visão intercontinental. Miranda, Anabela Rodrigues (org.). Lisboa: Centro de Estudos Judiciários, 2008, p. 59. 115
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perante a autoridade judicial do Estado Parte requerido, declarar sua expressa anuência em se entregar ao Estado Parte requerente, depois de haver sido informada de seu direito a um procedimento formal de extradição e da proteção que tal direito encerra”. Encerra-se esse tópico mencionando-se o instituto do Mandado de Prisão Europeu, instrumento de colaboração penal por intermédio do qual o pedido de captura e entrega se processa, entre os Estados que compõem a União Europeia, de juiz a juiz, sem necessidade de passar pela chancela diplomática. De certa forma, o Mandado de Prisão Europeu representa o fim da era das extradições e o início de uma nova fase no cenário do Direito Penal Internacional.22 8.8.2. Requisitos para a extradição
Os requisitos autorizativos para a extradição encontram-se discriminados na Carta Política, em tratados bi ou multilaterais, bem como na legislação interna. Segundo a Constituição Federal, o Brasil pode extraditar estrangeiro e apátrida. Na cabe extradição do nacional, nato ou naturalizado. Com relação ao brasileiro nato, a extradição é proibida, em caráter absoluto, desde a Constituição de 1934.23 Acerca do naturalizado, em regra, não cabe extradição, salvo em dois casos excepcionais: (1) crime comum, cometido antes da naturalização; e (2) comprovado envolvimento em tráfico de drogas, na forma da lei (art. 5o, LI, da CF/1988). A primeira ressalva é da tradição do nosso Direito, existindo desde o Decreto-lei no 394/1938, e se prende à presunção legal de que a naturalização, naquele caso, fora adquirida com fraude à lei, ou seja, com o específico propósito de escapar da ação dos órgãos de repressão do Estado interessado. Essa circunstância acarreta a nulidade absoluta do ato de aquisição da nacionalidade brasileira, viabilizando, por conseguinte, a sua entrega.24 A segunda ressalva constitucional decorreu, ao que tudo indica, de pressões da política norte-americana de combate internacional às drogas. Efetivamente, muitos Constituintes, por ocasião da elaboração da Carta de 1988, expressaram a preocupação de que o Brasil, tal como a Colômbia, poderia se transformar em valhacouto para os “barões do narcotráfico”, que poderiam continuar a operar seus negócios ilícitos em território nacional, depois de naturalizados, escapando, assim, da ação dos órgãos de repressão dos Estados Unidos.25 22. Semelhantemente, tem sido estudada a adoção entre nós do “Mandado Mercosul de Captura”. 23. Cf. art. 113, § 31, da CF/1934; art. 102, § 12, da CF/1937; art. 141, § 33, da CF/1946; art. 150, § 19, da CF/1967; art. 153, § 19, da CF/1969; e art. 5o, LI, da CF/1988. Conforme lecionado por João Marcello de Araújo Jr., a não extradição de nacionais não pode importar na impunidade do autor do fato, pois, se o Estado requerido não entrega a pessoa solicitada, deverá julgá-la: “O princípio ‘ou entregar ou julgar’ deverá ser aplicado, por exemplo, quando se tratar de extradição de nacionais naqueles países que, como o Brasil, proíbem a entrega de seus filhos.” (Araújo Jr., João Marcello de. Extradição: alguns aspectos fundamentais. Rio de Janeiro: Revista Forense, n. 326, 1994, p. 63). 24. Souza, Artur de Brito Gueiros. Novas tendências..., cit., p. 128. 25. Cf.: “A origem deste dispositivo – que, de resto, parece querer transmudar a ‘mãe pátria em madrasta’, conforme a curiosa expressão encontrada por Butler Maciel – derivou de Emenda Aditiva ao Anteprojeto de Constituição feita perante a Subcomissão da Soberania e dos Direitos e Garantias do Homem e da Mulher. (...) A emenda parlamentar baseou-se na justificativa de que, ‘essa redação permitirá um combate mais eficaz ao tráfico internacional de drogas, que faz do Brasil, hoje, rota importante 116
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Contudo, a extradição no caso de naturalizado envolvido com tráfico de drogas, depende de regulamentação legal, o que não ocorreu até a presente data. Dessa forma, o STF tem entendido que a inovação jurídica introduzida no art. 5o, LI, in fine, da CF/1988, além de representar clara derrogação do sistema da delibação, instituiu procedimento, a ser disciplinado em lei, destinado a ensejar cognição judicial mais abrangente do conteúdo da acusação penal estrangeira, em ordem a permitir ao STF, na ação de extradição passiva, o exame do próprio mérito da persecutio criminis instaurada perante as autoridades do Estado requerente. 26 Outro requisito exigido para a extradição é que se trate de crime comum, excluindo-se os crimes políticos, de opinião ou puramente militares. Há grande dificuldade na definição do que seja crime político, particularmente quando o ato de inconformismo político é externado por intermédio de fatos tipificados na legislação comum. Em linhas gerais, há três critérios de aferição: (1) crime político é aquele que atinge um bem ou interesse jurídico de natureza político, como, por exemplo, a organização do Estado; (2) crime político será aquele motivado por razões ideológicas, independentemente de estar capitulado na legislação comum; e (3) concepção mista, ou seja, o crime político é tanto aquele que atenta contra bens jurídicos da organização político-social como o motivado por razões político-ideológicas.27 A Lei no 6.815/1980 adota, no art. 77, § 1o, o chamado “critério da preponderância”, quando da análise de pedidos extradicionais em que se alegue que o crime comum, que motivou a demanda extradicional, foi perpetrado por razões políticas. A extradição não pode ser concedida, igualmente, se importar na aplicação de pena de morte ou pena de prisão perpétua. Sobre a pena de morte, é indiscutível que uma extradição motivada para a imposição dessa pena ofenderia a ordem pública e a Soberania nacional. Não por outra, o art. 91, III, da Lei no 6.815/1980 determina que não será efetivada a entrega sem que o Estado requerente assuma o compromisso, dentre outros, de comutar em pena privativa de liberdade a pena de morte. Com relação à pena de prisão perpétua, é controvertido se cabe ou não a extradição para a sua execução, até porque a ressalva não consta na nossa lei interna e/ou na generalidade dos tratados que subscrevemos. O assunto foi longamente debatido por ocasião da famosa extradição de Franz Paul Stangl, tendo sido, na ocasião, determinada a comutação da pena perpétua em pena de prisão por tempo determinado.28 No entanto, tempos depois, o STF passou a para o escoamento e distribuição das mesmas, principalmente para a Europa e os Estados Unidos’.” (Souza, Artur de Brito Gueiros. Novas tendências..., cit., p. 131). 26. Ext. 688. STF. Plenário. Min. Celso de Mello. DJ de 22/08/1997. 27. Cf. lecionado por Luiz Regis Prado: “Modernamente, a doutrina majorante defende que para a caracterização do crime político faz-se imprescindível sopesar, conjuntamente, o elemento subjetivo da conduta e o bem jurídico lesado ou ameaçado de lesão. Daí preponderarem as opiniões favoráveis à adoção de um critério misto para sua exata conceituação.” (Prado, Luiz Régis. Curso de Direito Penal Brasileiro. Vol. I. São Paulo: RT, 2007, p. 207). 28. Exts. 272, 273 e 274. In Extradições. Vol. II. Brasília: STF, 1978, p. 33 e segs. (ou RTJ 43/169). Sobre o rumoroso caso Franz Paul Stangl, acusado de coautoria de homicídio em massa, no hospital de Hartheim (Áustria) e nos campos de extermínio de Sobibor e Treblinka (Polônia), e extraditado, em 1968, para a Alemanha, vide: Souza, Artur de Brito Gueiros. Novas tendências..., cit., p. 143 e segs. 117
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entender que não se poderia impor a ordem jurídica interna (que veda a pena de prisão perpétua) ao Estado requerente tão somente porque, em dado momento, o indivíduo perseguido ou já condenado tocou o solo brasileiro.29 Na atualidade, a jurisprudência do STF é toda no sentido da vedação da extradição caso o Estado requerente não comute a prisão perpétua em pena por tempo determinado.30 Dois outros requisitos extradicionais merecem destaque: (1) a exigência da dupla tipicidade do fato; e (2) a observância do princípio da especialidade. Com relação ao primeiro, também conhecido como “princípio da identidade da infração”, tem-se que nenhuma extradição terá seguimento sem que o fato motivador do pedido seja qualificado como crime, tanto no Estado requerente como no requerido. Nesse sentido, dispõe o art. 77, I, da Lei no 6.815/1980, que não será concedida a extradição quando: “o fato que motivar o pedido não for considerado crime no Brasil ou no Estado requerente”.31 Por sua vez, o princípio da especialidade significa que, após concedida a extradição, o Estado requerente deve assumir o compromisso de não julgar o extraditado por fatos anteriores àquele que fundamentou o pedido (cf. art. 91, I, da Lei no 6.815/1980). Dessa maneira, desejando o Estado requerente processar o extraditado por fatos havidos antes ao pedido, mas somente descobertos após a sua entrega, deve formular ao Estado requerido um pedido de extensão de extradição.32 Por fim, cabe não confundir extradição de outros dois institutos que promovem a saída compulsória do estrangeiro: deportação e expulsão. A deportação consiste na retirada forçada do estrangeiro nos casos de entrada ou estadia irregular no Brasil (art. 57, da Lei no 6.815/1980). Cuida-se de mero ato administrativo e, depois de regularizada a sua situação jurídica, pode o estrangeiro reingressar no território nacional. A seu turno, expulsão é medida aplicada ao estrangeiro considerado nocivo à ordem pública e social, ou inconveniente aos interesses nacionais (art. 65, da Lei no 6.815/1980). A conveniência 29. Cf.: “Entende o Tribunal, por sua maioria, improcedente a alegação de ressalva para a comutação de prisão perpétua em pena limitada de liberdade, por falta de previsão legal ou no tratado.” (Ext. 426. STF. Pleno. Min. Rafael Mayer. DJ de 18/10/1985). 30. Cf.: “(...) Extradição e prisão perpétua. Necessidade de prévia comutação, em pena temporária (limite máximo de 30 anos), da pena de prisão perpétua. Exigência que se impõe em obediência à declaração constitucional de direitos (CF, art. 5 o, XLVII, “b”): A extradição somente será efetivada pelo Brasil, depois de deferida pelo Supremo Tribunal Federal, tratando-se de fatos delituosos puníveis com prisão perpétua, se o Estado requerente assumir, formalmente, quanto a ela, perante o Governo brasileiro, o compromisso de comutá-la em pena não superior à duração máxima admitida na lei penal do Brasil (CP, art. 75), eis que os pedidos extradicionais – considerado o que dispõe o art. 5 o, XLVII, “b” da Constituição da República, que veda as sanções penais de caráter perpétuo – estão necessariamente sujeitos à autoridade hierárquica – normativa da Lei Fundamental brasileira. Doutrina. Precedentes.” (Ext. 1201. STF. Pleno. Min. Celso de Mello. DJ de 15/03/2011). 31. Cf.: “Extradição. Inexistência, no Código Penal brasileiro, do tipo específico de infidelidade patrimonial correspondente ao descrito no § 266 (untreue), do Código Penal alemão. Atipicidades dos fatos imputados ao extraditando em face da legislação penal brasileira (...). Pedido de extradição indeferido.” (Ext. 553. STF. Pleno. Min. Moreira Alves. DJ de 29/08/1980). 32. Souza, Artur de Brito Gueiros. Novas tendências..., cit., p. 23. A propósito: “Constitucional. Penal. Extradição. Pedido de extensão feito pelo Governo suíço. 1. Pedido de extensão da extradição para o fim de o extraditando ser processado por fatos delituosos não compreendidos no pedido de extradição. (...) 2. O princípio da especialidade, adotado no art. 91, I, da Lei no 6.815/1980, não impede que o Estado requerente de extradição já concedida solicite sua extensão para abranger delito diverso.”Precedentes do STF. (Pedido de extensão na Ext. 548. STF. Pleno. Min. Carlos Velloso. DJ de 19/12/96). 118
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e a oportunidade para o ato de expulsão é do Presidente da República, exigindo-se, para sua decretação, a existência de procedimento administrativo com direito a defesa. Em ambos os casos – deportação e expulsão – o Estado age unilateralmente, visando somente a defesa dos seus interesses, o que não ocorre na extradição, onde, além de ser ato bilateral, o Estado age somente por provocação do país interessado. A propósito, a expulsão e a deportação não podem funcionar como um arremedo de extradição, conforme dispõem os arts. 63 e 75, I, da Lei no 6.815/1980. Por fim, deve-se apartar a extradição do instituto da entrega, introduzido pelo Estatuto do Tribunal Penal Internacional, visto em seguida.
8.9. O Tribunal Penal Internacional
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longo da exposição, o Direito Penal Internacional ocupa, hoje, uma posição e requer um desenvolvimento, como nunca antes na história da humanidade. Condições específicas, decorrentes do fim da bipolarização, ao lado da eclosão de conflitos étnicos, nacionais e religiosos, como consequências de conflitos armados recentes e, ainda, o registro de ataques terroristas de grandes proporções, permitiram e requereram o estabelecimento de um arcabouço jurídico, na esfera internacional, como jamais fora possível. Os julgamentos realizados em Nuremberg e em Tóquio, ao final da Segunda Guerra Mundial, podem ser apontados como precedentes históricos de julgamentos penais internacionais. Todavia, foram os últimos quinze anos, particularmente após a queda do Muro de Berlim, que permitiram uma evolução de um projeto há muito acalentado: o do estabelecimento da jurisdição penal internacional permanente, passando pelos Tribunais Penais Internacionais ad hoc, em especial, para a antiga Iugoslávia e para Ruanda. Nesse período, o Estado brasileiro tem apoiado essas iniciativas de maneira muito clara, o que pode ser comprovado por algumas demonstrações muito evidentes. Quando do surgimento dos mencionados Tribunais ad hoc – para a ex-Iugoslávia, decidiu-se, por meio da Resolução 827/1993, e para Ruanda, com a Resolução 955/1994 – o Brasil pertencia ao Conselho de Segurança da ONU, como membro não permanente. Na Conferência de Roma, de 15/06 a 17/07/1998, quando foi aprovado o Estatuto que constitui o Tribunal Penal Internacional Permanente, o Brasil foi um dos 120 votos a favor, sendo que também houve 7 contrários (Estados Unidos, Filipinas, China, Índia, Israel, Sri Lanka e Turquia), além de 21 abstenções, dentre os 162 Estados-Membros das Nações Unidas que lá se fizeram representar. O Brasil assinou aquele Tratado em 07/02/2000 e depositou o instrumento de ratificação em 20/06/2002, tendo o Presidente da República promulgado o Estatuto de Roma, por força do Decreto no 4.388, de 25/09/2002. Nesse ínterim, entre assinatura e ratificação, foi constituído, no seio do Ministério da Justiça, um Grupo de Trabalho, pela Portaria no 1.036/2001, para elaborar a legislação de implementação do Estatuto de Roma. Foi composto pelos seguintes membros: Tarciso Dal Maso Jardim (coordenador), Adriana omo visto ao
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Lorandi, Antônio Paulo Cachapuz de Medeiros, Carlos Frederico de Oliveira Pereira, Ela Wiecko V. de Castilho, George Rodrigo Bandeira Galindo, Gustavo Henrique Ribeiro de Melo, Gustavo Henrique Righi Ivahy Badaró, Raquel Elias Ferreira Dodge, Rafael Koerig Gessinger e Sylvia Helena de Figueiredo Steiner. Este Grupo de Trabalho apresentou, em 25/10/2002, o “Anteprojeto de Lei que define o crime de genocídio, os crimes contra a humanidade e os crimes de guerra, dispõe sobre a cooperação com o Tribunal Penal Internacional e dá outras providências”. Este Anteprojeto foi, então, enviado para a Presidência da República. Após parecer da Subchefia de Assuntos Jurídicos da Presidência da República, foi constituída nova comissão, no âmbito da Secretaria Especial de Direitos Humanos, onde aguarda a conclusão dos trabalhos de revisão.33 Além disso, indicou-se Sylvia Helena de Figueiredo Steiner para ser juíza do Tribunal Penal Internacional para o qual acabou sendo escolhida em 2003.34 A propósito, frise-se que a Emenda Constitucional no 45/2004 inseriu o § 4o, no art. o 5 , da CF/1988, com a seguinte redação: “O Brasil se submete à jurisdição do Tribunal Penal Internacional a cuja criação tenha manifestado adesão”. Em realidade, o texto anteriormente descrito teve origem no projeto de emenda aglutinativa proposta pelo Deputado José Roberto Batochio e que previa a inclusão, no art. 109, da CF/1988, de um § 6o, com idêntica redação àquela do dispositivo mencionado.35 O Estatuto de Roma é o instrumento legal que rege a competência e o funcionamento do Tribunal Penal Internacional (art. 1o). Possui natureza jurídica de tratado internacional. É composto por 128 artigos, divididos em XIII Capítulos ou Partes, os quais dispõem sobre a criação do Tribunal; competência, admissibilidade e direito aplicável; princípios gerais de direito penal; composição e administração do Tribunal; inquérito e procedimento criminal; julgamento; penas; recurso e revisão; cooperação internacional e auxílio judiciário; execução da pena; assembleia dos estados partes; financiamento e cláusulas finais. Em seu Preâmbulo, o Estatuto demonstra a preocupação dos Estados Partes em, apesar das peculiaridades de cada povo e região do mundo, reforçar a ideia da existência de laços comuns entre eles, de forma a buscar a manutenção de um convívio pacífico. Relembrando as atrocidades até então cometidas, reconhece o Estatuto que crimes de tamanha gravidade constituem uma ameaça à paz, à segurança e ao bem-estar da humanidade e, portanto, não devem ficar impunes. O Preâmbulo aborda, ainda, aspectos relevantes do Tribunal Penal Internacional. Afirma que o Tribunal tem caráter permanente e independente, no âmbito do sistema 33. Badaró, Gustavo Henrique Righi Ivahy. O Anteprojeto de lei de adaptação da legislação brasileira ao Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional: tramitação e questões constitucionais polêmicas. In: Ambos, Kai; Malarino, Ezequiel; Woischnik, Jan. Temas actuales del derecho penal internacional: contribuciones de América Latina, Alemania y España. Montevideo: Fundación Konrad Adenauer, 2005, p. 97. 34. Badaró, Gustavo Henrique Righi Ivahy. O Brasil e o Tribunal Penal Internacional. In: Boletim do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais. n. 122, São Paulo: IBCCrim, jan./2003, p. 3. 35. Dotti, René Ariel. Breves notas sobre a Emenda. In: Wambier, Teresa Arruda Alvim et al. Reforma do Juduciário: primeiras reflexões sobre a Emenda Constitucional no 45/2004. São Paulo: RT, 2005, 637. 12 0
Capítulo VIII | Lei penal no espaço
das Nações Unidas, possui jurisdição sobre os crimes de maior gravidade que afetam a comunidade internacional, sendo complementar às jurisdições penais nacionais. O princípio da complementaridade suscitou discussões ao longo dos trabalhos preparatórios e durante a própria Conferência de Roma. O grupo formado pelos membros permanentes do Conselho de Segurança da ONU defendia a adoção de um Estatuto mais conservador, enquanto o grupo dos like-minded states36 era favorável à ampliação da competência do Tribunal.37 De forma a atingir um consenso, “o princípio da complementaridade foi escolhido como norteador das relações entre as jurisdições nacionais e a do Tribunal”.38 “Significa que somente estará legitimado o órgão jurisdicional internacional, em tendo havido inércia dos correspondentes nacionais”.39 Este caráter garante uma intervenção não tão drástica nos Estados nacionais.40 Marrielle Maia41 destaca a importância da aplicação deste princípio ao TPI pois, desta forma, não se afasta a responsabilidade das jurisdições criminais internas em exercer sua função ordinária de persecução dos crimes internacionais. Ademais, é possível crer que este caráter impulsionará os Estados Partes no trabalho de implementação da legislação adequada à repressão de tais crimes em âmbito nacional. Já o art. 4o, do Estatuto de Roma, dispõe que o Tribunal tem personalidade jurídica internacional, possuindo a capacidade jurídica necessária ao desempenho das suas funções e à realização de seus objetivos. Os arts. 5o a 8o tratam dos crimes de competência do Tribunal (competência ratione materiae), quais sejam, os crimes de genocídio, contra a humanidade, de guerra e de agressão, a serem vistos posteriormente. A competência ratione temporis é estabelecida pelo art. 11 que traz, como regra geral, que o Tribunal só terá competência relativamente aos crimes cometidos após a entrada em vigor do Estatuto. Caso um Estado se torne parte no Estatuto depois de sua entrada em vigor, o Tribunal só poderá exercer sua competência em relação aos crimes cometidos após o ato de adesão do respectivo Estado, salvo declaração do mesmo em sentido contrário (art. 12, § 3o). A competência ratione personae do Tribunal Penal Internacional será exercida somente sobre indivíduos, maiores de 18 anos. Portanto, não haverá exercício de jurisdição do 36. Grupo de países que muito se esforçou para que a Conferência de Roma atingisse seu objetivo e um Tribunal Penal Internacional fosse criado. Defendia a criação de uma Corte com jurisdição automática e ilimitada, a existência de um promotor independente, com legitimidade para iniciar investigações e o estabelecimento de uma definição de crimes de guerra capaz de englobar aqueles cometidos em um conflito armado interno. Em abril de 1998 esses países eram África do Sul, Alemanha, Austrália, Áustria, Argentina, Bélgica, Canadá, Chile, Croácia, Dinamarca, Egito, Eslováquia, Finlândia, Grécia, Guatemala, Hungria, Irlanda, Itália, Lesoto, Países Baixos, Nova Zelândia, Noruega, Portugal, Samoa, Suécia, Suíça, Trinidad e Tobago, Uruguai e Venezuela. 37. Maia, Marrielle. Tribunal Penal Internacional: aspectos institucionais, jurisdição e princípio da complementaridade. Belo Horizonte: Del Rey, 2001, p.77. 38. Idem, p. 78. 39. Japiassú, Carlos Eduardo Adriano. O Tribunal Penal Internacional: a internacionalização do Direito Penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004, p. 160-161. 40. Idem, p. 169. 41. Maia, Marrielle. Tribunal Penal Internacional…, cit., p. 80. 121
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Tribunal em face de pessoas jurídicas como organizações, Estados ou entidades legais.42 Como condições prévias ao exercício da jurisdição da Corte Penal, o crime imputado deve ter sido cometido no território de um dos Estados Partes ou por um de seus nacionais. Ademais, o Tribunal poderá exercer sua jurisdição quando um Estado não Parte consentir e o crime houver sido cometido em seu território ou por um de seus nacionais.43 Verificadas as condições prévias, o Tribunal poderá exercer jurisdição sobre os crimes de sua competência caso um Estado Parte ou não Parte (de acordo com o art. 12, § 3o) denuncie ao Procurador uma situação fática que possua indícios da prática de um ou mais crimes. O Conselho de Segurança da Onu, nos termos do Capítulo VII da Carta das Nações Unidas, também poderá apresentar, ao Procurador, denúncia, não sendo necessário, neste caso, observar as supracitadas condições prévias. Outrossim, caberá ao Procurador a possibilidade, por sua iniciativa própria, de iniciar investigação com base em informações sobre a prática de crimes de competência do Tribunal, após obter a aprovação do Juízo de Instrução. Por fim, conforme adiantado, o Estatuto do TPI regulou, no seu art. 89, um novo instituto de colaboração penal internacional: o direito de entrega. Cuida-se de instrumento crucial para a efetividade do TPI, tendo em vista que o mesmo não dispõe de força policial, dependendo, portanto, da ação dos Estados Partes, não só para a detenção de foragidos, mas, igualmente, para submetê-los ao respectivo julgamento.44 Embora se assemelhe com a extradição, a entrega difere-se no fato de ela se processar verticalmente, ou seja, entre Tribunal Penal Internacional e o Estado Parte, ao passo que a extradição processa-se horizontalmente, de Estado para Estado. Há, portanto, na extradição, um “ato de colaboração horizontal” e, no direito de entrega, previsto no Estatuto de Roma, consubstancia-se no ato pelo qual o Estado transfere determinada pessoa para a Corte supranacional da qual faz parte. A cooperação, como dito, manifesta-se verticalmente.45 Por conta dessa característica, não há incompatibilidade entre o instituto da entrega e a vedação constitucional da extradição de nacionais. A Emenda Constitucional no 45/2004, anteriormente referida, ao introduzir o § 4o ao art. 5o, da CF/1988, dirimiu qualquer controvérsia a respeito da possível inconstitucionalidade a respeito da previsão 42. Bassiouni, M. Cherif. Introduction to International Criminal Law. New York: Transnational Publishers, 2003, p. 506. 43. Idem, p. 503. 44. A propósito, cumpre registrar que a entrega tem sido um instrumento crucial para a efetivação do julgamento dos criminosos foragidos dos Tribunais ad hoc para a ex-Iugoslávia e de Ruanda (Souza, Artur de Brito Gueiros. O Tribunal Penal Internacional e a proteção aos direitos humanos: uma análise do Estatuto de Roma à luz dos princípios do direito internacional da pessoa humana. In: Boletim Científico da ESMPU, n. 12, jul.-set./2004, Brasília, p. 26). 45. Cf.: “A hipótese de entrega de nacional para julgamento pela Corte Criminal Internacional significa a entrega de nacional para julgamento por um tribunal supranacional, do qual o Brasil seria membro. O conceito de extradição diz respeito à entrega de um indivíduo por um Estado a outro. Nesse caso, ocorre a entrega pelo Estado a outro órgão julgador, que, se não é nacional, engloba a jurisdição nacional.” (Japiassú, Carlos Eduardo A. A Corte Criminal Internacional. Possibilidade de adequação do Estatuto de Roma à ordem constitucional brasileira. In: Estudos jurídicos em homenagem ao Professor João Marcello de Araujo Jr. Kosovski, Ester; Raul Zaffaroni, Eugenio (Org.). Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2001, p. 96). 122
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de entrega de brasileiro, nato ou naturalizado, ao TPI. Em outros termos, não se sustenta a tese da inaplicabilidade do instituto da entrega, regulado no Estatuto do Tribunal Penal Internacional, mesmo em se tratando de perseguido que porventura possua a nacionalidade brasileira.46
8.10. Limites à aplicação da lei penal em relação às pessoas: imunidade diplomática e imunidade parlamentar
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a lei penal brasileira aplica-se, em princípio, a todos os crimes praticados no território nacional, quer tenham sido praticado por brasileiros, estrangeiros ou apátridas. Se é certo que esta regra básica sofre exceções em relação a crimes praticados no estrangeiro (cf. art.7o, do CP), também existem exceções quanto à aplicação da lei penal a certas pessoas que praticam fatos delituosos no território nacional. Essas exceções, que decorrem do Direito Internacional e do Direito Público interno, são as chamadas imunidades diplomática e parlamentar. Frise-se, desde já, que tais imunidades não se aplicam ao Chefe de Estado. No Brasil, conferem-se apenas prerrogativas de função ao Presidente da República e aos Ministros de Estado, as quais não se referem às pessoas, mas à dignidade do cargo e à conveniência da função que exercem. Por isso, tais prerrogativas são puramente de ordem processual e significam que o Presidente da República só poderá ser processado depois que a Câmara dos Deputados, pela maioria absoluta de seus membros, declarar procedente a acusação. Se se tratar de crime comum, o julgamento será feito pelo Supremo Tribunal Federal; se se tratar de crime de responsabilidade, pelo Senado Federal (art. 86, da CF/1988). Prerrogativas semelhantes possuem os Ministros de Estado e Ministros do Supremo Tribunal Federal (arts. 52, I e II; 102, I, “b” e “c”, da CF/1988, regulamentado pela Lei no 1.079/1970). omo visto anteriormente ,
8.10.1. Imunidades diplomáticas
A concessão de privilégios a representantes diplomáticos, relativamente aos atos ilícitos por eles praticados, é antiga praxe no direito internacional, fundando-se no respeito e na consideração ao Estado que representam e na necessidade de cercar a atividade de garantias para o seu perfeito desempenho. Tais privilégios baseiam-se sempre no regime de reciprocidade e tal imunidade não se refere apenas aos fatos relacionados com o exercício da atividade diplomática, mas a todo e qualquer crime. A imunidade diplomática decorre da Convenção de Viena sobre relações diplomáticas (1961), promulgada pelo Decreto no 56.435/1965. Os locais da missão diplomática estrangeira são invioláveis. Os agentes do Estado acreditado não poderão neles penetrar sem consentimento do chefe da missão (art. 22, da Convenção de Viena). Entende-se 46. Cf. Souza, Artur de Brito Gueiros. A Extradição na América do Sul..., cit., p. 61. 123
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por locais de missão os edifícios, ou parte dos edifícios e terrenos anexos, seja quem for o seu proprietário, utilizados para as finalidades da missão, inclusive a residência do chefe da missão (art. 1o, “i”, daquela Convenção). Chefe de missão é a pessoa encarregada pelo Estado acreditante de agir nessa qualidade (embaixadores ou núncios; enviados, ministros ou internúncios; encarregados de negócios).47 A pessoa do agente diplomático é inviolável e não pode ser preso ou detido (art. 29, da Convenção de Viena). Agentes diplomáticos são o chefe da missão e os membros do pessoal diplomático da missão, ou seja, os diplomatas (art. 1o, “d” e “e”, da Convenção). Os agentes diplomáticos gozam de imunidade de jurisdição penal e não são obrigados a prestar depoimento como testemunha (art. 31, da Convenção de Viena), embora, se o desejarem, possam fazê-lo.48 As imunidades estendem-se aos membros da família dos agentes diplomáticos que com eles convivam e aos membros do pessoal administrativo e técnico da missão, assim como aos membros de suas famílias que com eles convivam, desde que não sejam nacionais do Estado acreditante nem nele tenham residência permanente (art. 37, 1 e 2, da Convenção). O direito às imunidades surge a partir do momento em que seu titular entre no território do Estado acreditante para assumir seu posto ou, no caso de já se encontrar no referido território, desde que sua nomeação tenha sido notificada ao Ministério das Relações Exteriores (art. 39, 1, da Convenção de Viena). Quando terminarem as funções de uma pessoa que goze de privilégios e imunidades, esses privilégios e imunidades cessarão normalmente quando esta pessoa deixar o país ou quando transcorrido um prazo razoável que lhe tenha sido concedido para tal fim (art. 39, 2). Os funcionários da Onu, quando em missão no território nacional, gozam, igualmente, de imunidades (art. 105, da Carta da Onu). A imunidade cobre também o chefe de Estado estrangeiro em visita ao país, bem como os membros de sua comitiva. Já os agentes consulares, por serem considerados funcionários administrativos, conforme a Convenção de Viena sobre Relações Consulares (1963), promulgada pelo Decreto no 61.078/1967, não gozam de imunidades, mesmo quando pratiquem atos diplomáticos.49 Entende-se por funcionário consular toda pessoa, inclusive o chefe da repartição consular, encarregado, nessa qualidade, do exercício de funções consulares (art. 1o, 1, “d”). As funções consulares estão especificadas no art. 5o da Convenção, e basicamente consistem em proteger, no Estado receptor, os interesses do Estado que envia e os de seus nacionais, pessoas físicas ou jurídicas, dentro dos limites permitidos pelo direito internacional.50 Os edifícios ou parte dos edifícios e terrenos anexos que sejam utilizados exclusivamente para as finalidades consulares são invioláveis. 47. 48. 49. 50. 124
Fragoso, Heleno Cláudio. Op. cit., p. 150. Idem, p. 151. Idem, p. 152. Idem, p. 152.
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Na verdade, os crimes eventualmente praticados na referida sede diplomática “por pessoas que não gozam de imunidade, serão julgados pelo país onde esteja a representação diplomática”.51 Com relação à sua natureza jurídica, a imunidade diplomática no âmbito do Direito Penal é considerada causa pessoal de exclusão ou de isenção de pena. Conforme lecionado por Luiz Regis Prado, “exclui a aplicação da lei penal do Estado acreditado, e, portanto, a punibilidade. Isso em virtude da peculiar função exercida pelo agente diplomático”.52 8.10.2. Imunidades parlamentares
As imunidades visam a garantir a liberdade do parlamentar no exercício do mandato, evitando toda coação sobre o Poder Legislativo, e são integralmente disciplinadas pela Constituição Federal. Fundam-se no direito público interno e são de duas espécies: A) Imunidade material ou penal
Constitui-se privilégio de Direito Penal substantivo, já que não se considera que o parlamentar cometa crime por suas opiniões, palavras e votos. O art. 53, da CF/1988, na redação dada pela Emenda 35/2001, estabelece que “os Deputados e Senadores são invioláveis, civil e penalmente, por quaisquer de suas opiniões, palavras e votos”. A inviolabilidade, por óbvio, não abriga manifestações do parlamentar estranhas à sua atividade como membro do Legislativo, significando a atividade do congressista, na Casa do Congresso a que pertence, ou em missão oficial, por determinação dela. Persiste a inviolabilidade no caso de manifestação produzida fora do recinto da Casa Legislativa, desde que ela guarde relação com o exercício do mandato. A inviolabilidade subsiste em qualquer caso, mesmo quando se trate de ofensa subversiva que constitua crime contra a segurança nacional (art. 26, da Lei no 7.170/1983). A inviolabilidade pela manifestação do pensamento, no desempenho das funções públicas, na tribuna de qualquer das Casas do Congresso, é elementar ao regime representativo. Sempre se considerou essa inviolabilidade como inerente ao exercício do mandato. B) Imunidade formal ou processual
Cuida-se de privilégio de natureza processual, que se relaciona com a prisão, o processo e o julgamento do congressista, embora se admita a prática de crime. É de duas modalidades: (1) vedação de prisão do parlamentar, salvo em flagrante de delito inafiançável; e (2) possibilidade de sustação, pela Casa Legislativa, do andamento da ação penal por crimes praticados após a diplomação. A imunidade processual relacionada à prisão do parlamentar está prevista no art. 53, § 2o, CF/1988.
51. Idem, p. 153. 52. Prado, Luiz Regis. Op. cit., p. 205. 125
Curso de Direito Penal | Parte Geral
Quanto à tramitação da ação penal intentada contra congressista, a instauração de processo contra congressista independe de licença ou de qualquer outra condição especial. Apenas, o andamento de processo instaurado pode ser sustado pela Casa Legislativa à qual pertença o parlamentar. Compete ao STF o julgamento de deputados federais e senadores, qualquer que seja a natureza do delito (arts. 53, § 1o, e 102, I, “b”, da CF/1988). Caso a ação penal cuide de delitos praticados antes e após a diplomação, a sustação somente pode se relacionar com os crimes praticados após a diplomação, podendo o processo prosseguir livremente quanto aos delitos a ela anteriores. A sustação pode ocorrer em qualquer fase do andamento da ação penal, até final sentença. Embora a lei mencione “denúncia”, a sustação também é possível no caso de ação penal iniciada por queixa. O art. 27, § 1o, da Constituição Federal estende as imunidades parlamentares, penal e processual, aos Deputados Estaduais. Já os Vereadores não gozam de imunidade processual, somente possuindo imunidade substantiva “por suas opiniões, palavras e votos, no exercício do mandato e na circunscrição do Município” (art. 29, VIII, CF/1988).
126
título
II
capítulo
teoria ger a l da lei penal
IX
CONFLITO APARENTE DE NORMAS PENAIS 9.1. Considerações gerais
D
concurso aparente de normas a circunstância de duas ou mais normas penais incriminadoras regularem, em tese, o mesmo caso concreto, sendo que, efetivamente, somente uma deverá ser aplicada. Como o ordenamento jurídico exige a aplicação ou subsunção harmônica de suas disposições, sob pena de violação do princípio do ne bis in idem, há de ser definida qual norma irá se sobrepor às demais.1 A rigor, a expressão concurso seria errônea, pois, conforme lecionado por Jescheck, o que se observa, no processo de subsunção, não é a concorrência, mas, sim, a unidade do ordenamento jurídico-penal. Conforme assinalado por aquele autor, a ideia básica comum desta matéria consiste em que o conteúdo de uma ação punível pode estar completamente abarcado por uma das normas penais que hipoteticamente entram em consideração. Como só se aplica a norma primária, e a norma secundária não se manifesta de forma alguma, parece conveniente substituir a expressão tradicional, porém equivocada, “concurso de normas” por “unidade de norma”.2 enomina-se conflito ou
1. Cf. exposto por Oscar Stevenson, a observância dos princípios reitores da concorrência aparente de normas impede a intolerável solução de questões concretas pela fórmula do ne bis in idem. Portanto – prossegue aquele autor –, “o problema não suscita apenas curiosidade científica, mas responde a impreterível interesse prático”. (Stevenson, Oscar. Concurso aparente de normas penais. In: Estudos de Direito e Processo Penal em Homenagem a Nélson Hungria. Rio de Janeiro: Forense, 1962, p. 31). 2. Jescheck, Hans-Heinrich; Weigend, Thomas. Op. cit., p. 789. 127
Curso de Direito Penal | Parte Geral
Na mesma esteira, posiciona-se a doutrina brasileira. Nesse sentido, Oscar Stevenson assinala a impropriedade da nomenclatura, pois não há concurso, mas a primazia ou exclusividade na aplicação de um dispositivo legal a certo fato, tornando-se inaplicável outra norma em que este por igual se enquadre.3 Semelhantemente, Luiz Regis Prado observa que o concurso aparente se verifica na hipótese em que várias leis são, aparentemente, aplicáveis a um mesmo fato, sendo que, na realidade, apenas uma tem incidência. Sendo assim, para este doutrinador não há verdadeiramente “concurso” ou “conflito”, mas tão somente aparência de concurso, visto que existe transgressão real de apenas uma lei penal, o que dá lugar também a um único delito. Com base em alguns princípios, aplica-se exclusivamente uma norma penal, com o afastamento de todas as demais, já que suficiente para esgotar o total conteúdo de injusto da conduta.4 Compreende-se, portanto, que “concurso aparente” importa, na realidade, em unidade de aplicação das normas penais, consoante os critérios doutrinários discriminados a seguir, ressaltando-se, igualmente, que o nosso Código não prevê, ao menos diretamente, critérios de preponderância entre as normas hipoteticamente incidentes ao caso concreto.5 Por outro lado, cumpre não confundir concurso aparente com o efetivo concurso de crimes, ou seja, com os institutos do concurso material ou real, concurso formal ou ideal e crime continuado (cf. Cap. XXVII). No concurso de crimes, há, de fato, a vulneração de mais de um bem jurídico, da mesma espécie ou distintos. No concurso material, com duas ou mais condutas são vulnerados dois ou mais bens jurídicos (art. 69, do CP). No concurso formal, subdividido em próprio ou impróprio, com uma só conduta, atinge-se dois ou mais bens jurídicos (art. 70, do CP). E, no crime continuado, há uma sucessão de condutas com características idênticas, recebendo, por conta disso, um tratamento penal mais brando (art. 71, do CP). Da mesma forma, difere o concurso aparente de normas da figura do crime complexo. Segundo a dicção legal, crime complexo, ou composto, é aquele cujas elementares ou circunstâncias que o integrem são fatos que, por si mesmos, constituam crimes (cf. art. 101, do CP), vulnerando, pois, mais de um bem jurídico. É o que ocorre, por exemplo, com o roubo (art. 157, do CP), onde suas elementares – subtração da coisa móvel alheia e violência física ou moral – constituem, isoladamente, crimes de furto (art. 155, do CP) e lesões corporais ou ameaça (arts. 129 e 147, do CP), e lesionam os bens
3. Stevenson, Oscar. Op. cit., p. 28. 4. Prado, Luiz Regis. Op. cit., p. 228. 5. A propósito, vide o art. 8 o do Código Penal da Espanha: “Os fatos suscetíveis de serem enquadrados em dois ou mais preceitos deste Código, e não compreendidos nos arts. 73 a 77, serão punidos com observância das seguintes regras: 1. O preceito especial será aplicado com preferência ao geral. 2. O preceito subsidiário será aplicado na falta do principal, seja a subsidiariedade expressamente declarada, seja tacitamente dedutível. 3. O preceito penal mais amplo ou complexo absorverá aos que punam as infrações nele consumidas. 4. Na falta dos critérios anteriores, o preceito penal mais grave excluirá aos que punam com menor pena.” 128
Capítulo IX | Conflito aparente de normas penais
jurídicos patrimônio e integridade física ou psíquica. Portanto, no crime complexo não há a aparente concorrência de normas. Difere, igualmente, o concurso aparente das hipóteses de concurso de leis penais no tempo e no espaço, estudadas nos Capítulos precedentes. No caso, a hipotética incidência de mais de um tipo penal ocorre entre normas vigentes ao mesmo tempo e no mesmo espaço territorial. Conclui-se, dessa forma, que o concurso aparente de normas parte da premissa de que o fato a ser subsumido vulnerou um único bem jurídico, existindo, assim, duas ou mais normas penais incriminadoras, em vigor no mesmo ordenamento jurídico, que em tese lhes é aplicável. Para não incorrer, como dito, em bis in idem, há de se verificar qual norma deverá preponderar.
9.2. Critérios de solução do conflito aparente de normas
N
disposição legal expressa, compete à nossa doutrina apresentar os critérios para a solução do conflito aparente de normas. Em termos gerais, reconhecem-se como pertinentes os seguintes princípios: especialidade, subsidiariedade e consunção ou absorção. Contudo, há autores que sustentam a existência, ainda, de um quarto princípio, qual seja, da alternatividade.6 Antes de se ingressar na análise pormenorizada daqueles princípios, merece ser ressaltado que a matéria se reveste de inequívoco alcance prático, tendo em conta a metodologia de se proteger bens jurídicos “em camadas”, ou seja, sob diversas vertentes, conforme se constata, v.g., no Título I, da Parte Especial do Código, destinado a tutelar a pessoa humana. Ademais, com o fenômeno contemporâneo da profusão de leis penais, torna-se mais do que necessário que o intérprete se socorra de critérios seguros no emaranhado de tipos penais da atualidade. a ausência de
9.2.1. Princípio da especialidade
O princípio da especialidade parte do pressuposto da existência de normas gerais e especiais tratando do mesmo assunto. Dessa forma, caso o fato concreto se amolde a todas as características na norma especial, fica afastada a incidência da norma geral. Do contrário, esta última deverá ser aplicada. Em suma, este princípio se faz pertinente para resolução do conflito aparente quando uma norma possua, em sua definição, todos os elementos típicos de outra, mais alguns denominados especializantes. Se a hipótese a ser subsumida apresentar os elementos da norma particular, esta irá preponderar sobre aquela. Alude-se, nesse sentido, ao adágio: lex specialis derogat legi generali. 6. Discorda-se, contudo, pois, na verdade, a alternatividade não se cuida de um princípio pertinente ao conflito aparente de normas, mas, na verdade, de um critério para a aplicação de uma única norma que contemple mais de um verbo típico. 129
Curso de Direito Penal | Parte Geral
Exemplo: Relação entre homicídio e infanticídio. O infanticídio (art. 123, do CP) contém todos os elementos do homicídio (art. 121, do CP), ou seja, o “matar alguém”, mais alguns elementos especializantes (“o próprio filho”, “durante o parto ou logo após”, “sob influência do estado puerperal”). Se o caso concreto contiver todos os elementos particulares do infanticídio, ficará afastada a imputação de homicídio. Do contrário, o agente responderá por este delito.
O critério da especialidade orienta a aplicação de normas penais previstas em dispositivos diversos e, igualmente, a subsunção do fato às formas básica ou derivadas dentro de um mesmo dispositivo penal incriminador. Exemplo: O homicídio contempla o tipo básico (art. 121, caput), e os tipos derivados denominados homicídio privilegiado (art. 121, § 1o) e homicídio qualificado (art. 121, § 2o). A análise do caso concreto poderá acarretar a incidência das formas derivadas (normas especiais) ou básica (norma geral) de homicídio.
Observe-se, ainda, que o princípio da especialidade se associa, por completo, com a metodologia da ordenação racional do conjunto de leis, ou seja, com o ordenamento jurídico. Bem por isso, no âmbito do Direito Penal, as regras gerais do Código “aplicam-se aos fatos incriminados por lei especial, se esta não dispuser de modo diverso” (art. 12, do CP). 9.2.2. Princípio da subsidiariedade
Embora de compreensão menos fácil do que o anterior, o princípio da subsidiariedade também é utilizado para a resolução do conflito aparente de normas. No caso, a relação que se estabelece não é a de exclusão entre o geral e o especial, mas, sim, entre normas primária e secundária. É interessante constatar, nesse sentido, que para a tutela de bens jurídicos fundamentais, o legislador se utiliza, muitas vezes, de um conjunto de normas. A não subsunção do fato àquela norma que mais diretamente o tutela não importará, por força desse princípio, em atipicidade, pois a norma auxiliar – subsidiária – poderá vir a ser aplicada. A propósito, Jescheck, reportando-se a Honig, leciona que o fundamento racional da subsidiariedade reside em que distintas proposições penais protegem o mesmo bem jurídico ao longo dos distintos estágios de seu ataque.7 Vigora, pois, nesse terreno, o adágio lex primaria derogat legi subsidiariae. Sendo assim, segundo Oscar Stevenson, faz-se necessário que seja examinado o fato concreto, para determinar-se a disposição legal em que se enquadra. Ou seja, a aplicabilidade da norma subsidiária e a inaplicabilidade da principal não resultam da relação lógica e abstrata de uma com outra, mas do juízo de valor do fato em face delas.8 Há, portanto, duas espécies de subsidiariedade: expressa e tácita. Na primeira, a natureza subsidiária da norma penal vem prevista no seu próprio preceito secundário, 7. Jescheck, Hans-Heinrich; Weigend, Thomas. Op. cit., p. 791. 8. Stevenson, Oscar. Op. cit., p. 39. 13 0
Capítulo IX | Conflito aparente de normas penais
por intermédio da expressão “se o fato não constitui crime mais grave”. Vide, a propósito, os arts. 132, 238 e 307, todos do CP. Na subsidiariedade tácita, caberá ao intérprete analisar, no exame do caso concreto, se o fato se adéqua ao tipo de maior ou menor gravidade. 9.2.3. Princípio da consunção ou absorção
Cuida-se de princípio particularmente polêmico, pois não se encontra consenso doutrinário sobre seu exato contorno. Em termos gerais, haverá consunção quando a conduta definida em uma norma penal está também abrangida por outra mais ampla. Há, portanto, uma relação entre continente e conteúdo, por intermédio da qual a lex consumens derogat legi consumptae. Nesse sentido, pelo princípio da consunção, a norma definidora de um crime, cuja execução atravessa fases em si representativas de crime previsto em outra, exclui, por absorção, a aplicabilidade desta, bem como de outras que incriminem fatos anteriores ou posteriores do agente, efetuados pelo mesmo fim prático.9 Na relação consuntiva, os fatos não se apresentam em relação de gênero e espécie, mas de minus e plus, de continente e conteúdo, de todo e parte, de inteiro e fração.10 Vê-se, assim, que inexiste uma relação gênero-espécie (especialidade), tampouco, uma relação lógica entre primário e secundário (subsidiariedade), mas, sim, conforme a opinião de Jescheck, uma relação criminológica que é levada em consideração, pelo legislador, no estabelecimento dos marcos penais pertencentes aos tipos penais implicados.11 Em termos práticos, podem ser apresentadas as seguintes hipóteses de incidência do princípio da consunção ou absorção: (1) o ante factum e o post factum são absorvidos pelo delito central; (2) a forma tentada é consumida pela forma consumada de delito; (3) o delito de dano absorve o delito de perigo. Sob outra vertente, há um certo “desalento doutrinário” com o princípio da consunção. Nesse sentido, Juarez Cirino dos Santos ressalta a “crise” enfrentada por esse princípio, diagnosticando a tendência para o seu paulatino abandono ou, conforme suas palavras, para a “consunção do princípio da consunção” por outros princípios, em particular pelo critério da especialidade. Segundo aquele autor, a literatura contemporânea oscila entre posições de aceitação reticente e de rejeição absoluta do princípio da consunção.12 Em suma, pode-se concluir na esteira do lecionado por Cezar Bitencourt: é forçoso reconhecer que o critério fundamental para a solução da problemática do conflito aparente de normas é, de fato, o princípio da especialidade. Isso por se tratar do critério que possui maior rigor científico, sendo, portanto, o mais adotado doutrinária e jurisprudencialmente. Segundo aquele autor, os demais princípios são subsidiários e somente devem ser lembrados quando o primeiro não resolver satisfatoriamente o conflito.13 9. Idem, p. 40. 10. Cf. Bitencourt, Cezar Roberto. Op. cit., p. 211. 11. Jescheck, Hans-Heinrich; Weigend, Thomas. Op. cit., p. 793. 12. Santos, Juarez Cirino dos. A moderna teoria do fato punível. 2. ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 2002, p. 348. 13. Bitencourt, Cezar Roberto. Op. cit., p. 133. 131
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título
III
Teo r ia ger al do cr im e
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capítulo
teoria geral do crime
X
TEORIA DO CRIME 10.1. Considerações gerais
A
é a parte do Direito Penal destinada ao estudo do crime como fato punível, do ponto de vista jurídico, para estabelecer e analisar suas características gerais, bem como as formas especiais de aparecimento. A teoria do crime ocupa uma posição central em toda a disciplina, tendo em vista que objetiva o estabelecimento dos pressupostos mínimos exigidos pelo Direito Penal para que se possa atribuir a alguém a responsabilidade pela violação da norma penal incriminadora.1 Por conta disso, o sentido geral da teoria do crime – e da própria dogmática jurídico-penal – não é tanto o de se ocupar de particularidades pertencentes aos diversos delitos descritos na Parte Especial do Código ou na legislação penal especial, mas, sim, o de compreender os aspectos essenciais do conceito de crime que devem necessariamente estar presentes em toda e qualquer infração penal, permitindo, assim, a correta aplicação da lei penal ao caso concreto.2 Ressalte-se, desde já, que não há, no Direito Penal brasileiro, diversamente do que ocorre em outros sistemas legislativos, distinção entre crime e delito; tais expressões são empregadas como sinônimas. Fato punível é designação mais ampla, abrangendo crime (ou delito) e contravenção, que constituem distintas espécies de ilícito penal (cf. Capítulo I). O conceito de crime não deve ser estabelecido pela lei penal, mas apenas pela doutrina. teoria do crime
1. Cf. Fragoso, Heleno Cláudio. Lições de Direito Penal. Parte Geral. 16. ed. atualiz. Fernando Fragoso. Rio de Janeiro: Forense, 2003, p. 171. 2. Cf. Jescheck, Hans-Heinrich; Weigend, Thomas. Tratado de Derecho Penal. Parte General. 5. ed. Trad. Miguel Olmedo Cardenete. Granada: Comares, 2002, p. 210. 135
Curso de Direito Penal | Parte Geral
Dessa maneira, costuma-se conceituar o crime como sendo a conduta (ação ou omissão) típica, antijurídica e culpável, conforme proposto pela doutrina penal alemã, a mais influente no Brasil, como também nos demais Estados latino-americanos e parte da Europa continental (entre outros, Áustria, Espanha, Portugal, Itália). É certo, porém, que há outros modelos teóricos destinados à conceituação do crime, distintos da matriz alemã, como, por ex., na França, na Inglaterra e nos Estados Unidos, onde, embora se faça referência a elemento material (actus reus) e moral (mens rea), além de causas de exclusão da responsabilidade penal e outros institutos semelhantes àqueles preconizados pelo sistema romano-germânico, sem, todavia, repetir a mesma estrutura.3 A título ilustrativo, entre os norte-americanos, Jerome Hall enfatiza sete elementos básicos da teoria do delito: (1o) elemento subjetivo (mens rea); (2o) conduta (act); (3o) congruência entre mens rea e conduta; (4o) resultado; (5o) relação de causalidade; (6o) punição; e (7o) legalidade. Segundo aquele autor, tais noções desembocam na seguinte concepção: “o resultado proibido deve ser imputado a qualquer adulto normal que, voluntariamente, exteriorize a intenção criminosa, devendo, dessa forma, ser submetido à sanção cominada na respectiva lei penal”.4
10.2. Método da teoria do crime
E
o crime por intermédio de um processo de abstração científica denominado de método analítico. Ou seja, crime é a ação (ou omissão) típica, antijurídica e culpável. A esses caracteres básicos são, ainda, agregadas as formas especiais do seu aparecimento: a tentativa e o concurso de pessoas. Cuida-se, portanto, da decomposição do objeto de estudo em partes para ser novamente reagrupado e compreendido de maneira sequencial, permitindo-se, ao final das sucessivas etapas, verificar se, no caso concreto, ocorreu fato punível pela lei penal. m geral , conceitua-se
Exemplo: “A” dispara um tiro de revólver contra “B”, seu desafeto, que vem a falecer em razão do ferimento. O fato deve ser decomposto para saber se houve ação (disparo da arma); em caso positivo, se essa ação amolda-se objetiva e subjetivamente ao tipo do homicídio (art. 121, do CP: “matar alguém”); em caso positivo, se essa ação típica é antijurídica, por não existir nenhuma causa de exclusão da antijuridicidade (p. ex., legítima defesa, estado de necessidade etc.); em caso afirmativo, se “A”, autor da ação típica e antijurídica, pode ser considerado culpável, por não existir nenhuma causa de exclusão da culpabilidade (por exemplo, inimputabilidade, coação moral irresistível etc.). Ao final dessa análise, ante o preenchimento de tais pressupostos, pode-se afirmar que “A” praticou crime contra “B”. Pode, contudo, ocorrer no caso concreto, situações especiais, como “B” não falecer, sendo, 3. Cf. Bouzat, op. cit., p. 55 e segs.; Stefani, Gaston; Levasseur, Georges; Bouloc, Bernard. Droit pénal général. 17. ed., Paris: Dalloz, 2000, passim. 4. Hall, Jerome. General Principles of Criminal Law. 2nd ed. Indianapolis: Bobbs-Merrill, 2009, p. 18. Segundo o autor, mens rea consiste no elemento moral do crime, que acompanha o actus reus (a conduta propriamente considerada). Desse modo, o crime pode ser definido como sendo o binômio mens rea e actus reus, ou seja, “intenção mais ação” (Idem, p. 19). 136
Capítulo X | Teoria do crime
portanto, necessário analisar a ocorrência de “tentativa”, ou, ainda, de “C” ter emprestado a “A” o citado revólver, exigindo-se a análise da ocorrência do “concurso de pessoas”.
Em suma, mediante a análise dos pressupostos do conceito do crime permite-se chegar um resultado final adequado e justo. Ou, conforme a conhecida lição de Gimbernat Ordeig, a teoria do crime objetiva colocar limites, por meio da construção de conceitos, possibilitando a aplicação segura e calculável do Direito Penal, subtraindo-o à irracionalidade, ao arbítrio e à improvisação.5 Ademais, o sistema de estudo da teoria do crime tende a propiciar estabilidade à atividade jurisprudencial, uma vez que as evoluções teóricas, a seguir mencionadas, se produzem lentamente.6
10.3. Desenvolvimento da teoria do crime
O
teorização do fenômeno do crime se perdem na história do pensamento humano, inserindo-se no acervo filosófico da era greco-romana, bem como nas reflexões havidas na Idade Média. Com efeito, já em Platão (crime como sintoma de uma doença), em Aristóteles (criminoso como inimigo da sociedade), bem como em S. Tomás de Aquino (miséria como causa do crime) e em Thomas Morus (crime como reflexo da própria sociedade), são feitas considerações acerca do objeto da teoria do crime. No entanto, com o Iluminismo e o racionalismo, passou-se a buscar um conceito científico para o fato penalmente relevante. Se a própria ideia de Estado passou a ser entendida como uma opção racional dos homens (contrato social), as demais ações humanas em sociedade, inclusive a prática do delito, também deveriam se subsumir aos ditames da razão. E se o crime era uma escolha consciente dos homens, naturalmente a sua compreensão deveria igualmente ser objeto de reflexões racionais por parte dos cientistas. Como dito por Serrano Maíllo, diante do entendimento de que o decisivo para o cometimento do crime era o predomínio do benefício em detrimento do prejuízo, era igualmente natural que se cultivasse a ciência do Direito Penal como subsídio para a aplicação de uma legislação racional. Assim, priorizou-se o raciocínio lógico-dedutivo, tendo o próprio Beccaria feito menção a “verdades palpáveis” que, para serem descobertas, não seriam necessários “nem quadrantes nem telescópios”, visto que estariam ao alcance de “qualquer inteligência medíocre.”7 Sendo assim, por intermédio de autores como Feuerbach, Mittermayer, Romagnosi, dentre outros, buscou-se um conceito científico de delito, procedendo-se a diferenciação entre imputação objetiva e imputação subjetiva (imputatio facti e imputatio iuris).8 Nesse s esforços de
5. Cf. Welzel, Hans. A dogmática no Direito Penal. Trad. Yolanda Catão. Revista de Direito Penal, n. 13/14, Revista dos Tribunais, jan.-jun./1974, p. 9. De forma semelhante, Enrique Bacigalupo assinala que a teoria do delito é, na verdade, uma teoria da aplicação da lei penal e, como tal, pretende estabelecer basicamente uma ordem para o desenvolvimento e a resolução dos problemas relacionados à aplicação da lei penal. (Bacigalupo, Enrique. Lineamientos de la teoría del delito. Buenos Aires: Hammurabi, 1994, p. 50). 6. Cf. Jescheck, Hans-Heinrich; Weigend, Thomas. Op. cit., p. 211. 7. Serrano Maíllo, Alfonso. Introdução à Criminologia. Trad. Luiz Regis Prado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, p. 66. 8. Cf. a antiga construção de Samuel Pufendorf, imputar significava reconhecer o efeito de uma ação voluntária como pertencente 137
Curso de Direito Penal | Parte Geral
sentido, merece destaque a obra de Francesco Carrara. Na verdade, o pensamento na fase que precedeu ao desenvolvimento moderno da teoria do crime atingiu em Carrara o seu apogeu, tanto assim que ele teria aconselhado seus discípulos a não mais se dedicarem ao Direito Penal, mas, sim, ao Processo Penal.9 Com efeito, para aquele autor, delito era entendido como a infração da lei do Estado, promulgada para proteger a segurança dos cidadãos, resultante de um ato externo do homem, positivo ou negativo, moralmente imputável e politicamente danoso.10 Destacavam-se, na sua teoria, duas orientações: força moral e força física. A primeira (interna) consistente na vontade inteligente do homem, e, a segunda (externa), o movimento do corpo com o qual o agente executa o propósito criminoso.11 No entanto, aquele modelo bipartido – que, como visto acima, continua a ser observado em certos países, como na França – foi sofrendo modificações em virtude de inúmeras contribuições doutrinárias não apenas na Itália, mas, particularmente, na Alemanha. Rudolf von Ihering desenvolveu, em 1867, para o Direito Civil o conceito de antijuridicidade objetiva, demonstrando que cuidava-se de um estado objetivo para o qual, em certos casos, a culpabilidade nada significava, como, por exemplo para o possuidor de boa fé de coisa alheia. Ao ser transposto o conceito de antijuridicidade objetiva para o Direito Penal (von Liszt), abandonou-se a velha teoria da imputação, assumindo-se o conceito de delito como ação antijurídica e culpável, conforme a tripartição pioneiramente desenvolvida por Heinrich Luden.12 O passo seguinte foi dado por Karl Binding e Adolf Merkel. Por intermédio da sua conhecida Teoria das Normas, Binding destacou o conceito de antijuridicidade no Direito Penal, outorgando-lhe um caráter autônomo: na verdade, a ação punível não infringiria a lei penal (que se limita prever a sanção), mas, sim, o mandato e a proibição do ordenamento jurídico (as normas) que, conceitualmente, precedem a lei. Sendo assim, toda a teoria do crime deveria ser compreendida autonomamente a partir do conteúdo das normas penais.13 Com relação a Merkel, conquanto rejeitasse a divisão do delito em categorias independentes, sistematizando, em seu Manual (1889), uma nova teoria da imputação, teve o grande mérito de unificar, pela primeira vez, o dolo e a culpa sob o conceito superior da determinação volitiva contrária ao dever.14 ao seu autor. Portanto, o objeto da imputação não era qualquer movimento humano causal, mas, somente, a ação surgida da vontade livre do indivíduo. A teoria da ação de Pufendorf (1660), de base aristotélica, foi, tempos depois, adotada por Hans Welzel para desenvolver a teoria final da ação (cf. Sacher de Köster, Mariana. La evolución del tipo subjetivo. Buenos Aires: Ad Hoc, 1998, p. 23). 9. Jiménez de Asúa, Luís. Op. cit., p. 202. 10. Carrara, Francesco. Programa do Curso de Direito Criminal. Vol. I. Trad. Luiz Franceschini. São Paulo: Saraiva, 1956, p. 48. A teoria do delito na França segue, até os dias de hoje, essa construção científica inaugurada por Carrara. 11. Idem, p. 75-76. Cf. alertado por Juarez Tavarez, dentro dessas “forças”, desenvolvida por Carrara, o fundamental era, de qualquer modo, a causalidade, constituindo, na opinião daquele autor, “os primórdios até de um sistema formal-causalista do delito”. (Tavarez, Juarez. Teorias do delito: variações e tendências. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1980, p. 9). 12. Segundo Mariana Sacher de Köster, para Luden a vontade não era um componente da ação externa, mas, sim, da culpabilidade. Dessa forma, Luden desenvolveu pela primeira vez na história da dogmática penal uma divisão do delito (por ele denominada de “tipo penal geral”) em três partes: a ação causal, a antijuridicidade e a culpabilidade. (Sacher de Köster, Mariana. Op. cit., p. 42). 13. Cf. Jescheck, Hans-Heinrich; Weigend, Thomas. Op. cit., p. 216. 14. Idem, p. 216. 138
Capítulo X | Teoria do crime
10.3.1. As construções da teoria do crime a partir do século xx
De certa forma, as subsequentes construções dogmáticas sobre a teoria do crime surgiram ou ganharam relevo como reação às investidas da Escola Positiva – fundada por Lombroso, mas capitaneada, justamente, por um ex-aluno de Carrara: Enrico Ferri – que tencionava reduzir o Direito Penal a um mero capítulo da Sociologia Criminal, explicando o delito como um fato real, ou seja, com o método experimental próprio de uma nova e verdadeira “ciência do crime”.15 Na parte que aqui interessa, a Escola Positiva se ocupou não somente do homem delinquente, mas também do conceito de delito. A esta tarefa dedicou-se Raffaele Garófalo, que procurou amenizar o extremismo de seus colegas, sustentando que eles falavam demais em delinquente, esquecendo-se que este conceito pressupõe o conceito de delito.16 Garófalo, portanto, conceituou o delito (delito natural) como sendo a lesão daquela parte do sentido moral que consiste nos sentimentos altruístas fundamentais – piedade e probidade – segundo a medida média em que se encontravam nas raças humanas superiores, cuja medida é necessária para a adaptação do indivíduo à sociedade.17 Com efeito, a força da Escola Positiva ameaçou suplantar a ciência do Direito Penal. Não só a teoria do crime perdia espaço para as tipologias de criminoso, como, também, a teoria da pena deveria ceder para medidas substitutivas (intervenções estatais sobre os fatores criminógenos para a defesa social). Dessa maneira, ainda que sob as pressões do influente naturalismo e positivismo científico em voga nos fins do séc. XIX,18 a partir da obra de von Liszt, inaugurou-se a moderna discussão sobre o conceito de delito.19 Este debate se caracteriza por sucessivos sistemas teóricos que se atrelam, em maior ou menor intensidade, ao predomínio de concepções filosóficas, oscilando entre o ontologismo e o normativismo. Conforme lecionado por Bernd Schünemann, podem ser identificadas cinco fases na elaboração do sistema do Direito Penal: 1a) o naturalismo, de base ôntica, que chegou ao apogeu com o sistema de von Liszt e Beling; a 2 ) o neokantismo, que proporcionou uma normatização do sistema; 3a) a perspectiva totalizadora que, na verdade, conduziu a um irracionalismo dogmático; 15. Para Ferri, a “nova escola científico-penal” tinha por objetivo substituir toda a “inútil” discussão dogmática havida desde a Ilustração, vale dizer, o estudo do crime em si, visto que o que importava, na realidade, não era o “delito em abstrato”, mas, sim, o “homem delinquente”. (Ferri, Enrico. La Sociologie Criminelle. 2. ed. Paris: Félix Alcan, 1914, p. 15). 16. Cf. García-Pablos de Molina, António. Tratado de Criminología. 3. ed. Valencia: Tirant lo blanch, 2003, p. 441. 17. Garófalo, Raffaele. La Criminologie. 4. ed. Paris: Félix Alcan, 1895, p. 46. 18. A rigor, o positivismo científico não era tanto uma corrente organizada, mas, sim, uma atitude difusa em relação aos métodos de investigação. A partir de Augusto Comte, nutria-se a expectativa de levar o método das ciências naturais (as descobertas da física, da química, da astronomia e até mesmo da medicina) para o estudo do homem em sociedade, rejeitando-se toda a metafísica. Como dito por Eduardo Correia: Sabe-se como a concepção cientista natural é caracterizada por uma forte tendência para planificar toda a realidade, para assimilar a vida social aos acontecimentos que são objeto das ciências da natureza, para tudo reduzir a um puro processo mecânico-causal. (Correia, Eduardo. Direito Criminal. Vol. I. Coimbra: Almedina, 1993, p. 204). 19. Sobre o tema vide: Liszt, Franz von. Tratado de Direito Penal Alemão..., Tomo I, cit. 139
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4ª) o finalismo, que culminou com o ontologismo de Welzel; e 5ª) as teorias atuais que renormativizam o sistema do Direito Penal, vinculando-o a determinados fins (funcionalismo).20 É certo que uma clara separação entre essas fases somente é possível por intermédio de uma simplificação grosseira, visto que, a rigor, não houve substituição, mas, sim, sucessivas contribuições teóricas desenvolvidas como camadas que se colocam umas sobre as outras. Ademais, os mencionados sistemas contiveram – como ainda contêm – numerosas subcorrentes e contracorrentes dogmáticas. De toda sorte, pode-se apresentar a seguinte cronologia: a corrente causal-naturalista predominou até o início do século passado; o neokantismo, até 1930; o irracionalismo totalizador, até 1945; o finalismo, até o último quarto do séc. XX; e, o funcionalismo, daí em diante.21 10.3.1.1. O naturalismo (conceito clássico de delito)
A ciência penal do naturalismo, como produto do positivismo que predominou a generalidade do pensamento científico do final do séc. XIX, rechaçava toda a especulação transcendental, e procurou reproduzir no sistema do Direito Penal os elementos naturais do delito. Também denominado de conceito clássico do delito, sustentava que a verificação do fato criminoso demandava a existência de fatos perceptíveis pelos sentidos, tal como um conceito físico ou biológico, consoante o nexo de causalidade física ou natural. Sendo assim, definiu-se o delito como ação típica, antijurídica e culpável. No sistema desenvolvido por von Liszt, ao qual Beling introduziu a categoria da tipicidade, considerava-se ação o movimento que causava o resultado externo previsto pelo legislador nos tipos delitivos, sendo estes concebidos descritivamente, ou seja, prescindindo-se de valorações ou subjetivações. O aspecto objetivo do fato, compreendido no tipo, se completava com o aspecto subjetivo caracterizado pela culpabilidade, que consistia na relação psíquica do autor com fato praticado, figurando duas formas de culpabilidade: dolo ou culpa.22 Em síntese, a ação (como comportamento voluntário), a tipicidade (como acontecimento externo descrito tipicamente pelo legislador), e a culpabilidade (como relação psicológica do autor com o fato), como objetos materiais do mundo real, poderiam ser constatados pelo intérprete ou julgador sem necessidade de incorporar juízos valorativos.23 Para Jescheck, ao considerar: (1) a ação de forma puramente naturalística (movimento corporal que dá causa ao resultado); (2) o tipo de forma objetivo-descritiva; (3) a antijuridicidade de maneira objetivo-normativa; e (4) a culpabilidade de natureza subjetivo-descritiva, o sistema clássico de delito almejava se conectar à ideia de Estado de Direito, expressada através de suas aspirações de segurança e previsibilidade jurídica, 20. Schünemann, Bernd. Introducción al razonamiento sistemático en Derecho Penal. Trad. Jesús-María Silva Sanchez. In: Obras. Tomo I. Santa Fé: Rubinzal, 2009, p. 278. 21. Idem, p. 278. 22. Cf. Liszt, Frans von. Tratado..., cit., p. 183 e segs; BELING, Enrst von. Esquema de Derecho Penal. Trad. Sebastian Soler. B. Aires: Depalma, 1944, p. 18 e segs. 23. Schünemann, Bernd. Introducción al razonamiento..., cit., p. 279. 14 0
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vinculando o juiz a um sistema conceitual simples e de fácil verificação. Segundo aquele autor, o conceito clássico de delito caracterizou-se por sua particular bipolaridade: de um lado, por intermédio do objetivismo e do formalismo dos pressupostos do delito, devia-se garantir um grau maior de segurança jurídica, e, de outro, mediante um sistema sancionador orientado ao delinquente (prevenção especial defendida por von Liszt), alcançar-se-ia a máxima funcionalidade.24 Embora tenha consolidado as categorias modernas do conceito de delito – ação, tipicidade, antijuridicidade e culpabilidade –, logo se percebeu que o sistema naturalista ou clássico do delito não poderia prevalecer. O conceito de ação, ao exigir um movimento comissivo que modificasse o mundo exterior, era de todo incompatível com a omissão ou com a tentativa inacabada. Por outro lado, o tipo objetivo-descrito não correspondia a uma série de delitos que exigiam a compreensão de sentidos sociais para a sua caracterização (elementos normativos), quando não de especiais tendências subjetivas (v.g., a diferença típica entre um mero exame médico ginecológico e um delito sexual). A antijuridicidade puramente formal (ausência de causas legais de justificação) olvidava que, em certas situações, a realização do tipo não acarretava lesão alguma. Bem assim, havia necessidade de constatar a dimensão subjetiva da antijuridicidade (v.g., saber que mata para se defender). Por fim, a concepção psicológica da culpabilidade (vínculo subjetivo do agente com o fato), ignorava que na culpa, ao menos na inconsciente, não há nenhuma relação psíquica, como ocorre nos chamados delitos de esquecimento (v.g., o agente se esquece de desligar gás do fogão ao sair de casa, causando explosão e morte de vizinhos), sendo certo que independentemente de dolo ou culpa, circunstâncias existem que deveriam excluir a culpabilidade, nomeadamente certas situações de falta de consciência da antijuridicidade ou de inexigibilidade de outro comportamento.25 10.3.1.2. O neokantismo (conceito neoclássico de delito)
Como visto, em que pesem os avanços dogmáticos, a estrutura formulada pelo sistema de von Liszt e Beling demonstrou-se insuficiente para a correta categorização do delito, necessitando, assim, ser transformada. A rigor, os fundamentos ideológicos e filosóficos sobre os quais se assentava já não correspondiam à realidade científica do Direito, reafirmando-se a falácia mencionada por Hume e Kant: do “ser” não se extrai o “dever ser”.26 Surgiu, assim, o sistema neoclássico de delito, fundando essencialmente na filosofia dos valores de origem neokantiana, tal como ela foi desenvolvida, nas primeiras décadas do séc. XX, pela chamada Escola sudocidental ou de Baden. Em lugar da lógica formal de um pensamento jurídico restrito ao ontologismo (categorias do “ser”), 24. Jescheck, Hans-Heinrich; Weigend, Thomas. Op. cit., p. 218. 25. Cf. Dias, Jorge de Figueiredo. Direito Penal. Parte Geral. Tomo I. 2. ed. Coimbra: Coimbra Ed., 2007, p. 241. 26. Cf.: “O Direito em geral – e o Direito Penal de forma particular – não participa do ‘monismo metodológico’ (e ‘ideológico’) das ciências naturais, trata com realidades que excedem a ‘experiência psicofísica’ e se não inscrevam de modo exclusivo no mundo do ‘ser’; por outro lado, o pensamento jurídico não se deixa comandar por uma ‘metodologia de cariz positivista’ nem se esgota em operações de pura ‘lógica formal’.” (Idem, p. 241). 141
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desenvolveu-se a ideologia de redefinir o conceito de delito segundo os fins superiores que persegue o Direito Penal (fins de justiça, para Gustav Radbruch, normas de cultura, para Max Ernst Mayer, ou o são sentimento do povo e da raça, para Edmund Megzer), bem assim os juízos de valor ou axiológicos que lhes serviriam de base.27 Para Jescheck, o neokantismo trouxe consigo o impulso de considerar fundamental que o Direito Penal se alinhasse a determinados fins, valores e ideais, cujo conteúdo foi deixado amplamente aberto, ante o propósito de desvinculá-lo de critérios valorativos materiais (como o Estado de Direito), razão pela qual não esteve imune ao ataque de vertentes de cunho autoritário, com exceção de Radbruch, para quem deveria ser adotada uma teoria valorativa de caráter relativo.28 Como antecipado, o neokantismo redefiniu as categorias do delito. Com relação ao conceito de ação – tal como na corrente anterior – a mesma continuou a ser percebida como o movimento voluntário que dá causa ao resultado no mundo exterior. Por não alterar significativamente o conceito de conduta, esta corrente ficou também conhecida como conceito neoclássico de delito. Diversamente, uma mudança foi propiciada no âmbito da tipicidade: a concepção descritiva e avalorada do tipo ficou estremecida com a descoberta de elementos normativos que somente poderiam ser compreendidos através do conteúdo cultural que lhes fosse atribuído pelo juiz (ex. documento, coisa alheia, ato obsceno etc.). Da mesma forma, por meio do descobrimento de elementos subjetivos do tipo, tornou-se inviável a ideia de um tipo puramente objetivo determinado apenas por dados do mundo exterior.29 Significativas transformações ocorreram, igualmente, no conceito de antijuridicidade e de culpabilidade. A primeira deixou de ser considerada como a mera violação formal de uma norma jurídica (concepção que remontava a Binding), devendo ser deduzida das finalidades das disposições penal a compreensão do injusto como danosidade social (antijuridicidade material), além da já mencionada necessidade de sua dimensão subjetiva.30 A seu turno, a culpabilidade sofreu alterações com concepção normativa de Reinhard Frank, no sentido de agregar ao dolo ou a culpa (vínculo psicológico) a noção fundamental de reprovabilidade pela formação da vontade contrária ao dever: um comportamento proibido é imputável à culpabilidade de alguém quando pode ser-lhe reprovado por haver optado por ele.31 Muitas das aquisições da concepção neoclássica do crime persistem até os dias 27. Cf. Radbruch, Gustav. Filosofia do Direito. Trad. Marlene Holzhausen. S. Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 11; Mayer, Max Ernst. Derecho Penal. Parte General. Ed. de 1915. Trad. Politoff Lifschitz. Montevideo: B de F, 2007, p. 113 e segs.; Mezger, Edmund. Criminología. Trad. Rodriguez Muñoz. Madrid: Revista de Derecho Privado, 1942, p. 284. 28. Jescheck, Hans-Heinrich; Weigend, Thomas. Op. cit., p. 220. No mesmo sentido: Kaufmann, Arthur. Filosofia do Direito. 3. ed. Trad. Ulisses Cortês. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2009, p. 62-67. 29. Jescheck, Hans-Heinrich; Weigend, Thomas. Op. cit., p. 221. 30. Segundo Mayer, a dimensão subjetiva da antijuridicidade não coincide com a da culpabilidade (dolo). Não é a mesma coisa se o jovem médico, seguindo a sugestão de Mefistófeles, tocar ousadamente os belos quadris de uma mulher com o propósito que o demônio supõe ou com aquele que o médico pretende ter (sentir sua firmeza); o primeiro está proibido, o outro, permitido.” (Mayer, Max Ernst. Derecho Penal..., cit., p. 231). 31. Cf. Jescheck, Hans-Heinrich; Weigend, Thomas. Op. cit., p. 222. 142
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atuais. No entanto, a vagueza ou neutralidade das vinculações a valores superiores fizeram com que a dogmática penal ficasse desprotegida quando do crescimento de ideologias totalitárias, que levaram ao irracionalismo visto a seguir. Ademais, a manutenção de uma concepção mecânico-causal da ação, ainda que mitigada, já não correspondiam às necessidades das sociedades da metade do século XX. A antijuridicidade continuava predominantemente objetiva. A solução do erro jurídico-penal era insatisfatória, com o dolo ainda vinculado à consciência da antijuridicidade, além de se perpetuar a incoerência do dolo e da culpa como integrantes do juízo de reprovabilidade. Em suma, fazia-se latente a necessidade de modificações no conceito de delito, o que somente foi concretizado com o finalismo de Hans Welzel. 10.3.1.3. A perspectiva totalizadora (a Escola de Kiel)
Conforme lecionado por Schünemann, até os anos 1930, o Direito Penal do neokantismo conseguiu se impor frente aos seus críticos, apesar das fragilidades já apontadas. Contudo, a partir daí produziu-se, na Alemanha, uma poderosa corrente contrária que, com a tomada do poder pelo Nazismo, conquistou quase completamente a dogmática jurídico-penal.32 Os ataques se deram em vários flancos. De um lado, criticavam-se a parcialidade do raciocínio sistemático neokantiano. De outro, condenou-se o ponto de vista epistemológico de que os fenômenos jurídicos deveriam ser compreendidos pelas ciências da cultura, criticando-se, assim, o normativismo – crítica esta partilhada, inclusive, por Welzel.33 Por fim, objetou-se que o neokantismo era essencialmente o produto de um pensamento liberal da época de República de Weimar, oposta, portanto, à ideologia nacional-socialista. Com efeito, sob a liderança dos jovens penalistas Georg Dahn e Friedrich Schaffstein, os integrantes da Escola de Kiel lutaram contra a ideia analítica do conceito do delito (ação típica, antijurídica e culpável). Ao invés do liberalismo e da abstração, propuseram o totalitarismo e concreção, ou seja, a substituição daquilo que chamavam de “Direitocadáver” pelo “Direito-vida”. Em síntese, propuseram uma perspectiva intuitiva, baseada na noção de infração do dever, restringindo as possibilidades de causas de justificação e de exculpação, introduzindo a teoria do tipo de autor (Direito Penal do autor). Isto possibilitou a manipulação de vários conceitos, culminando no irracionalismo, no decisionismo, no arbítrio protagonizado pela Gestapo e, com isso, na autossupressão da própria Ciência do Direito Penal.34 Igualmente, como obsevado por García-Pablos de Molina, o Direito Penal da Escola de Kiel morreu junto com o regime nacional-socialista.35 32. Schünemann, Bernd. Introducción al razonamiento..., cit., p. 293. 33. Embora crítico do neokantismo, Hans Welzer não se afinava com os ataques da Escola de Kiel. Por conta disso, foi considerado, por Dahm e Schaffstein, como sendo demasiado “metodológico”, “filosófico” e “conservador”. (Cf. Frommel, Monika. Los orígenes ideológicos de la teoría final de la acción de Welzel. Trad. Muñoz Conde. In: Anuario de Derecho Penal y Ciencias Penales. Tomo XLII, Madrid, enero-abril, 1989, p. 628). 34. Schünemann, Bernd. Introducción al razonamiento..., cit., p. 294. 35. García-Pablos de Molina, António. Introducción al Derecho Penal..., cit., p. 674. 143
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10.3.1.4. O finalismo
O conceito de delito do finalismo foi desenvolvido por Hans Welzel, desde os anos 1930, em diversas etapas, tendo por plano geral o abandono do normativismo do pensamento penal neokantiano, e a reestruturação da teoria do crime – novamente – sobre bases ontológicas (categorias do “ser”). Contudo, diferentemente dos clássicos que se lastreavam na causalidade natural, a teoria desenvolvida por Welzel baseou-se em categorias lógico-objetivas preexistentes a toda a configuração jurídica, que não podem ser por ele modificadas, e que deveriam ser também observadas pelo legislador. Segundo ele, toda a vida social do homem se estrutura, para o bem ou para o mal, sobre a atividade final do homem. O ser humano vive no futuro, isto é, sempre raciocina sobre o que vai ou quer fazer. Isto pressupõe – segundo Welzel – que os membros da sociedade podem atuar conscientes do fim, quer dizer, proporem-se a atingir certo fim, eleger os meios necessários para a sua obtenção e colocá-los em movimento com consciência da finalidade. Essa atividade final se chama ação. Ou seja, é justamente a capacidade da vontade humana de propor-se a um determinado fim e, sobre a base de seu saber causal, poder realizar este fim de acordo com o planejado, que dá ao homem a sua peculiaridade, a plenitude da sua existência histórica, a sua cultura e a sua civilização.36 Com efeito, desde os seus primórdios, a teoria finalista defendida por Welzel fez da ação a base do conceito de delito, reformulando-o. Ele teria recebido influência da fenomenologia de Husserl e da filosofia de Nicolai Hartmann e, mais especificamente, dos estudos de Hellmuth von Weber, Erik Wolf e Alexander Graf zu Dohna.37 No novo sistema proposto por Welzel, a finalidade da ação típica foi equiparada ao dolo, deduzindo-se, assim, que o dolo, juntamente com outros elementos subjetivos do injusto, bem como a culpa deveriam pertencer ao tipo.38 Disso resultaram três modificações fundamentais na estrutura da teoria do delito: 1ª) A consciência da antijuridicidade foi separada do dolo (pois ele é uma pura realização da vontade), convertendo-se em fator central da culpabilidade; 2ª) De forma similar, os casos de erro deveriam ser diferenciados de modo distinto do esquema tradicional. De acordo com a nova teoria, existiria, de um lado, o erro de tipo, que exclui o dolo e, com ele, a própria tipicidade (pois sem dolo não se realiza o tipo); e, de outro, o erro de proibição, que exclui a culpabilidade (consciência da antijuridicidade); e 3ª) Trouxe, finalmente, consequências para o concurso de pessoas, visto que a participação (instigação ou cumplicidade) somente poderia existir nos casos em que o fato principal fosse doloso, pois a ausência de dolo determina, desde logo, a exclusão do tipo do fato principal.39 36. Welzel, Hans. Derecho Penal Aleman. Parte General. 11. ed. Trad. Bustos Ramírez, Santiago do Chile: Juridica, 1997, p. 37-38. 37. Antes de Welzel, Dohna definiu o dolo como consciência de realizar o tipo delitivo com sua ação, estudando-o como elemento do tipo subjetivo depois de analisar o tipo objetivo (Cf. Frommel, Monika. Op. cit., p. 622). 38. Jescheck, Hans-Heinrich; Weigend, Thomas. Op. cit., p. 227. 39. Idem, p. 227. Na mesma esteira, Schünemann ressalta que da teoria da ação final derivam diversas consequências, muitas 14 4
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Com relação a culpa em sentido estrito, que se encontrava ofuscada em razão da predominância do dolo como peça-chave do vínculo psicológico entre o autor e fato, a nova orientação finalista trouxe-lhe a devida dignidade, deixando de ser apenas a causação do resultado involuntário. Ao ser concebido o tipo culposo, a culpa passou a contar com a violação do dever objetivo de cuidado exigido no tráfego das relações sociais. Por último, aos crimes omissivos – cuja estrutura normativa chocava-se com concepção de ação das correntes anteriores – foram dados novos aportes teóricos. Para os finalistas, a omissão é uma forma especial de delito cuja exata compreensão somente pode ser alcançada em todos os seus aspectos por intermédio da conversão do pensamento sistemático desenvolvido para os delitos comissivos.40 Independentemente de seus méritos, a premissa científica da teoria finalista não pode mais ser aceita. Como exposto por Figueiredo Dias, o pretenso ontologismo que estaria na base do sistema – e que faria dele um sistema imutável, válido para todos os tempos e lugares – transformou-se no mais inflexível conceitualismo, não mais admissível em razão das necessárias opções político-criminais do legislador e para a atividade concretizadora do intérprete e aplicador.41 Chegando-se a posições extremadas (e inaceitáveis), alguns finalistas propuseram que, no conceito de injusto pessoal, somente seria decisivo o desvalor da ação, ficando o desvalor do resultado unicamente como mera condição objetiva de punibilidade.42 Nesse contexto, a superação do finalismo tornou-se cada vez mais premente diante da complexidade das sociedades pluriculturais e de um mundo cada vez mais globalizado, para os quais seria insustentável um modelo de Direito Penal fechado em certas estruturas imutáveis do ser.43 10.3.1.5. As correntes funcionalistas
A partir dos anos 1970, o sistema do Direito Penal encontrava-se exaurido em razão de discussões abstratas infindáveis, demandando ser submetido a um profundo processo de revisão. Nesse contexto, Claus Roxin lançou as bases do funcionalismo penal, rechaçando o ponto de partida do finalismo (vinculação a realidades ontológicas prévias, como ação, causalidade, estruturas lógico-reais etc.), preconizando um giro normativista, vinculando, enfim, as categorias do delito às finalidades do Direito Penal. delas que podem ser adjetivadas como “patrimônio comum” de todo o Direito Penal: o tipo não pode mais permanecer confinado à descrição de um processo objetivo (do mundo exterior), devendo apreender também a estrutura final da ação humana, produzindo-se o reconhecimento de um “tipo subjetivo”, que figuraria ao lado do “tipo objetivo”. Os crimes dolosos e culposos se distinguem já no plano da tipicidade, passando o dolo, nos crimes dolosos, a ser o elemento central do tipo subjetivo, completado, em certos casos, pelos elementos subjetivos do injusto. Ao reformular deste modo o tipo – prossegue Schünemann –, produz-se uma “depuração” do conceito normativo de culpabilidade, extirpando-se os elementos psicológicos, fazendo-se possível estabelecer os pressupostos da reprovabilidade de modo muito mais evidente do que antes. (Schünemann, Bernd. Introducción al razonamiento..., cit., p. 295-296). 40. Cf. Jescheck, Hans-Heinrich; Weigend, Thomas. Op. cit., p. 228. 41. Dias, Jorge de Figueiredo. Op. cit., p. 246. 42. Jescheck, Hans-Heinrich; Weigend, Thomas. Op. cit., p. 230. 43. Silva, Sánchez; Jesús, Maria. Aproximación al Derecho Penal contemporáneo. 2. ed. Montevideo: B de F, 2010, p. 107. 14 5
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Em uma conferência, depois consolidada no livro que se tornou referência, Roxin formulou o seguinte questionamento: para que serve a solução de um problema jurídico que, apesar de harmonicamente claro e uniforme, é, sob o ponto de vista político criminal, errôneo?44 Surgiu, assim, a proposta dogmática que recebeu o qualificativo de funcionalista ou teleológica, que, na essência, não era nada novo ou desconhecido, visto que se inseria na tradição metodológica neokantiana, acima relatada. Substituiu-se, contudo, a vaga orientação a superiores valores culturais por um critério de sistematização especificamente jurídico-penal: as bases político-criminais da moderna teoria dos fins da pena preventivo-geral e preventivo-especial.45 É certo que, na atualidade, o funcionalismo encontra-se subdividido em inúmeras orientações, merecendo, ser destacadas as duas principais: o normativismo moderado, defendido por Claus Roxin e Bernd Schünemann, e o normativismo radical, preconizado por Günther Jakobs. A) O funcionalismo de Roxin e Schünemann
O funcionalismo defendido por Claus Roxin pode ser denominado de moderado ou racional-teleológico porque, na verdade, não rompe com os pressupostos do conceito do delito que fora construído pelas correntes anteriores; apenas agrega valorações político-criminais. Rompe-se, isso sim, com a separação entre o Direito Penal da Política Criminal, de sorte que as categorias do conceito de crime são redefinidas em função das exigências político-criminais. Com isso, Roxin procurou evitar os excessos de um sistema fechado e abstrato, procedendo a uma ampla normativização dos pressupostos do delito, convencido de que somente dessa forma – e não através da vinculação ontológica do finalismo – é possível se chegar à solução satisfatória dos problemas reais da sociedade atual.46 Há duas peças centrais na construção de Roxin: a primeira é a teoria da imputação ao tipo objetivo (cf. Capítulo XII). Primordialmente, o Direito Penal deve cumprir a função político-criminal de evitar riscos intoleráveis para o indivíduo e para a coletividade. Sendo assim, a tipicidade objetiva passa a depender da realização de um perigo não permitido dentro do fim de proteção da norma, o que substitui a mera ontologia da causalidade por um conjunto de regras orientadas a valorações jurídicas. A segunda é a introdução da categoria da responsabilidade (cf. Capítulo XVII). Desse modo, amplia-se o conceito de culpabilidade, considerando que ela é condição necessária, mas não suficiente, para imposição da pena, pois é ainda preciso verificar se é conveniente a punição tendo em conta razões preventivo-gerais (interesse da coletividade) e preventivo-especiais (reprovação pessoal). Ou seja, é possível que embora culpado, o agente deva permanecer impune caso isto atenda às finalidades político-criminais acim apresentadas.47 44. 45. 46. 47. 14 6
Roxin, Claus. Política criminal y sistema del derecho penal. 2. ed. Trad. Muños Conde. B. Aires: Hammurabi, 2000, p. 37. Roxin, Claus. Derecho Penal. Parte General. Tomo I. Trad. Luzón Peña et allii. Madrid: Civitas, 2006, p. 203. Cf. García-Pablos de Molina, António. Introducción..., cit., p. 687-688. Cf. Roxin, Claus. Derecho Penal..., cit., p. 204.
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Segundo Schünemann, o funcionalismo racional-teleológico tem total pertinência, visto que, para a correta aplicação da dogmática penal, os pontos de vista normativista e ontológico não se excluem entre si, mas se complementam, sem conflitos ou contradições. Isso porque os juízos normativos político-criminais são emitidos sobre a base das categorias jurídicas construídas pelo finalismo.48 Jorge de Figueiredo Dias adere, igualmente, ao funcionalismo penal, ressaltando que a construção do conceito de delito deve ser comandada pela convicção de que os seus elementos (conduta, tipicidade, antijuridicidade e culpabilidade) devem ser examinados de acordo com as proposições político-criminais imanentes ao quadro axiológico e aos valores consagrados no texto constitucional.49 B) O funcionalismo de Jakobs
Apoiando-se na teoria dos sistemas sociais de Niklas Luhmann, nomeadamente na teoria da autopoiésis,50 Günther Jakobs radicaliza o normativismo, desvinculando o conceito de delito de qualquer consideração ontológica preconizada por seu antigo mestre Hans Welzel. Segundo ele, concebe-se o funcionalismo jurídico-penal como a teoria segundo a qual o Direito Penal está orientado a garantir a identidade normativa da sociedade. Quando ocorre o delito, faz-se um ato comunicativo, por parte do agente, no sentido de que a norma penal, para ele, não tem validade. Cabe, portanto, ao Direito Penal, a função de contradizer esse ato comunicativo defeituoso, reafirmando a validade da norma e, com isso, confirmando a identidade normativa social. Conforme suas palavras, “a sociedade mantém as normas e se nega a conceber-se a si mesma de outro modo.”51 Partindo de tal premissa, todas as categorias do conceito do delito devem ser compreendidas não mais por sua perspectiva interna, mas, sim, tendo em conta a função 48. Cf. Schünemann, Bernd. La relación entre ontologismo y normativismo en la dogmática jurídico-penal. Trad. Mariana Sacher. In: Obras. Tomo I. Santa Fé: Rubinzal, 2009, p. 213. 49. Dias, Jorge de Figueiredo. Direito Penal..., cit., p. 249. 50. A teoria da autopoiésis originou-se da biologia, como resposta ao fundamental enigma das ciências naturais e da própria filosofia: como surge a vida? Com efeito, Humberto Maturana e Francisco Varela, precursores desta teoria, sustentaram que a resposta para tal indagação deveria ser buscada observando-se o funcionamento de um sistema vivo. Para eles, o que define a vida seria a averiguação da autopoiésis, isto é, da autonomia e da constância de uma dada organização das relações entre as unidades constitutivas de um sistema, organização essa que seria auto-referencial, auto-reprodutiva, fechada e circular. Em síntese, a autopoiésis seria conditio sine qua non para o surgimento de um ser vivo. Subsequentemente, Niklas Luhmann valeu-se do modelo autopoiético para construir sua teoria dos sistemas, afirmando que auto-referência, auto-reprodução, clausura sistêmica e circularidade constituíram-se princípios aplicáveis não apenas aos organismos, mas, também, aos próprios sistemas sociais, tendo como elementos constitutivos os “atos de comunicação”. Para Luhmann, o Direito é um sistema social, na medida em que desenvolve um código próprio (“lícito-ilícito”). Portanto, o Direito desvincula-se do ontologismo, fixando seu ponto arquimédico normativamente enclausurado em si mesmo. Como dito por Günther Teubner: “O Direito determina, ele próprio, quais os pressupostos da relevância jurídica de um fato, da validade jurídica de uma norma, etc. O sistema jurídico apenas se torna auto-reprodutivo strito sensu quando os seus componentes auto-referencialmente constituídos se encontram de tal modo interligados e articulados que atos e normas jurídicas se produzem reciprocamente entre si.” (Teubner, Günther. O Direito como Sistema Autopoiético. Trad. Engrácia Antunes. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1993, p. 71 e segs.). 51. Jakobs, Günther. Sociedad, norma y persona en una teoria de un Derecho penal funcional. Trad. Cancio Meliá. Madri: Civitas, 2000, p. 15 e segs. 147
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que possui na manutenção da validade da normatividade jurídica. Se a prática do delito é a defraudação de uma expectiva normativa, os conceitos de conduta, tipicidade, antijuridicidade e culpabilidade devem declarar que isso não está correto. Ao contrário, que a conduta defraudatória da norma penal não integra a configuração normativa da sociedade.52 Como se vê, o funcionalismo sistêmico de Jakobs difere do funcionalismo teleológico racional de Roxin. Para o primeiro, o substrato ontológico edificado pelo finalismo penal dá lugar a um princípio preventivo-geral orientado à estabilização do sistema social, ao passo que, para o segundo, há uma combinação entre as instâncias político-criminais e as concretas categorias do delito (tipicidade, antijuridicidade e culpabilidade). O funcionalismo de Jakobs tem sido objeto de intenso debate e inúmeras críticas. Roxin, por exemplo, sustenta que, apesar das distinções metodológicas, o funcionalismo defendido por Jakobs possui algumas convergências com suas teses sistemáticas fundamentais, a começar com a rejeição do ponto de partida ontológico do finalismo e a defesa de uma reelaboração normativa das categorias dogmáticas como tarefa primordial do Direito Penal.53 A rigor, apesar de renunciar ao substrato empírico das categorias do delito, as propostas de Jakobs não teriam, na visão de Roxin, maiores óbices, tendo em vista que foram concebidas sob o império da Constituição e das leis de um Estado Democrático de Direito. Ocorre, porém, que por não possuir nenhuma orientação político-criminal, a perspectiva funcional de Günther Jakobs pode ser utilizada por qualquer modelo de Estado, inclusive por um Estado totalitário ou escravocrata. Portanto, a teoria sistêmica como fundamento do Direito Penal é estéril quanto ao seu conteúdo.54 Em síntese, diferentemente da teoria de Jakobs – denominada, por Schünemann, de normativismo livre de empirismo ou puramente decisionista55 –, a corrente defendida por Roxin tem-se como adequada, não distanciando, inclusive, das proposições defendidas pelos pós-finalistas, representandos, dentre outros, por José Cerezo Mir e Hans Joachim Hirsch.56 Segundo Figueiredo Dias, a concepção atual do conceito de delito pode conduzir a uma certa “normativização da finalidade” ou, inversamente, a uma certa “finalização da normatividade”.57 52. Jakobs, Günther. Imputación jurídicopenal: desarrollo del sistema a partir de las condiciones de vigencia de la norma. Trad. Gómez-Trelles. In: Problemas capitales del derecho penal moderno. Buenos Aires: Hammurabi, 1998, p. 33. 53. Roxin, Claus. La evolución de la Política Criminal, el Derecho Penal y el Proceso penal. Trad. Gómez Rivero. Valencia: Tirant lo blanch, 2000, p. 52. 54. Idem, p. 53-54. 55. Schünemann, Bernd. La relación entre ontologismo y normativismo..., cit., p. 189 e p. 196. 56. Segundo Hans Joachim Hirsch, a teoria da imputação objetiva de Roxin poderia vincular-se sem maiores dificuldades ao sistema dogmático do finalismo, o mesmo não podendo ser dito da corrente defendida por Jakobs, tendo em vista que o mesmo se utiliza de conceitos totalmente indeterminados, v.g., estabilização da norma (Cf. Hirsch, Hans Joachim. Acerca de la crítica al finalismo. Trad. Demetrio Crespo. In: Hans Welzel en el pensamiento penal de la modernidad. Hans Joachim Hirsch et allii. (Dir). Santa Fe: Rubinzal, 2005, p. 152). 57. Dias, Jorge de Figueiredo. Direito Penal..., cit., p. 249. Nesse sentido: Cuello Contreras, Joaquin. Neofinalismo y normativismo: condenados a entenderse. Revista de Derecho Penal y Criminología. 2ª época, jul., Madrid, 2005, p. 11. 148
Capítulo X | Teoria do crime
10.4. Sujeitos do crime
O
crime compreende dois protagonistas: o sujeito ativo (ator ou coator e o partícipe) e o sujeito passivo (vítima ou lesado).
10.4.1. Sujeito ativo
Somente o ser humano, dotado de certos atributos (capacidade de compreensão e de determinação), pode ser sujeito ativo do delito. Como exposto no Capítulo XX, nesta categoria se inserem a figura do autor e, eventualmente, do partícipe, ambos concorrendo, em regra, para a mesma modalidade delitiva. Acerca da figura do autor ou sujeito ativo, a dogmática penal utiliza-se, frequentemente, para a sua compreensão normativa, da doutrina do criminólogo e matemático belga Adolphe Quetelet, que, ao abordar o delito como fenômeno massivo, desenvolveu o conceito do homem médio (homme moyen). Segundo Quetelet, o homem médio seria uma ficção, ou uma criatura imaginária, dotada do padrão de comportamento condizente com o resultado médio relativo ao que os homens fazem em sociedade.58 Ainda sobre o sujeito ativo, tem que, no passado, o Direito Penal reconheceu a possibilidade de que animais (cães, porcos, cavalos etc.), coisas (árvores, pedras, cometas etc.) ou mesmo entidades metafísicas (v.g., ira dos Deuses) pudessem sofrer imputações em razão da ocorrência de resultados desvaliosos. Jiménez de Asúa alude, inclusive, a um advogado que, na Idade Média, se notabilizou, justamente, pela “defesa das bestas”.59 10.4.2. Responsabilidade penal da pessoa jurídica
Independentemente da certeza de que somente o homem é capaz de realizar conduta penalmente relevante – fazendo-se, assim, penalmente responsável –, muito se discute se é possível atribuir sanções de natureza penal para a pessoa jurídica, por conta de ações ou omissões realizadas por quem lhes representa e em seu proveito. Em que pese a existência de uma literatura quase inabarcável, debatida durante séculos e em diversos países, é forçoso reconhecer que a responsabilidade penal da pessoa jurídica cuida-se de uma opção político-criminal do legislador. É a lei em sentido geral – abrangendo, pois, a Constituição –, de cada país que decidirá pela punição da pessoa jurídica diante de condutas perpetradas por seus prepostos e em seu benefício. Em linhas gerais, pode-se dizer que os países que seguem o sistema da common law admitem, em regra, essa punição; por sua vez, os países do modelo da civil law a rejeitam. Por exemplo, nos Estados Unidos e na Grã-Bretanha, são inúmeros os precedentes de condenações penais de entes morais. Diversamente, as legislações da Alemanha, de Portugal e Espanha, v.g., vedam essa possibilidade, embora, no caso da Espanha, o novo Código Penal preveja penas acessórias que nada mais seriam do que punições à pessoas jurídicas. 58. Cf. Mannheim, Hermann. Criminologia comparada. Vol. I. Trad. Faria Costa e Costa Andrade. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1985, p. 154. 59. Jiménez de Asúa, Luís. La ley y el delito. Buenos Aires: Sudamericana, 1958, p. 201. 149
Curso de Direito Penal | Parte Geral
A França, por sua vez, rompeu com uma tradição de não punição da pessoa jurídica e, no Código Penal de 1992 (que entrou em vigor em 1994), passou a prever-lhes diversas penas, inclusive para tipos como homicídio e tráfico de drogas. Pode-se, assim, afirmar que a tendência que se observa na generalidade dos países é no sentido da adoção de medidas punitivas da pessoa jurídica, especialmente nos delitos que atentam contra a ordem econômica e contra o meio ambiente. O Brasil também relativizou o princípio da societas delinquere non potest, tendo a Constituição de 1988 previsto, nos arts. 173, § 5o e 225, § 3o, a possibilidade de sanções penais para as pessoas jurídicas. Nesse passo, a Lei no 9.605/1998 (Lei de Proteção Ambiental) legislou sobre o assunto, prevendo, no seu art. 3o, que as pessoas jurídicas serão responsabilizadas administrativa, civil e penalmente, nos casos em que a infração seja cometida por decisão de seu representante legal ou contratual, ou de seu órgão colegiado, no interesse ou benefício da entidade. O parágrafo único, do citado art. 3o, dispôs que a responsabilidade das pessoas jurídicas não exclui a das pessoas físicas, autoras, coautoras ou partícipes do mesmo fato. Cumpre ressaltar que a fonte inspiradora da Lei no 9.605/1998 foi, justamente, o Código Penal Francês de 1992. Cuida-se do modelo de imputação subsequente ou de empréstimo – também chamado de imputação por ricochete –, por intermédio do qual, para que seja atribuída responsabilidade ao ente moral, faz-se necessária a atuação de uma pessoa física a ela vinculada e em seu benefício ou interesse. Em outros termos, a infração ambiental deve ser praticada no interesse da pessoa jurídica e não em proveito pessoal. Ademais, segundo Salomão Shecaira, a atividade lesiva ao Meio Ambiente deve ser executada por alguém que se encontre estreitamente ligado à pessoa coletiva, “sempre com o auxílio do seu poderio, o qual é resultante da reunião das forças econômicas agrupadas em torno da empresa”.60 É certo, porém, que a Lei no 9.605/1998 pecou pela falta de sistematização. Nesse sentido, tem-se que antes da mudança da sistemática de não-punição do ente moral, feito, como dito, pelo Code Pénal de 1992, os franceses tiveram a cautela de elaborar e pôr em vigor uma Lei de Adaptação. Isso não ocorreu no Brasil, gerando, no âmbito doutrinário, intenso debate sobre a aplicabilidade dos dispositivos da citada Lei no 9.605/1998, com reflexo nos casos levados ao conhecimento da nossa jurisprudência. De toda sorte, os tribunais superiores têm considerado legítima a hipótese de acusação e punição do ente moral por conta de perpetração de crimes ambientais, embora nossa Corte Suprema não tenha, explicitamente, enfrentado a matéria.61 O pressuposto 60. Shecaira, Sérgio Salomão. Responsabilidade penal da pessoa jurídica. 2. ed. São Paulo: Método, 2003, p. 148. 61. O STF admite a responsabilidade penal da pessoa jurídica: “1. Responsabilidade penal da pessoa jurídica, para ser aplicada, exige alargamento de alguns conceitos tradicionalmente empregados na seara criminal, a exemplo da culpabilidade, estendendo-se a elas também as medidas assecuratórias, como o habeas corpus. 2. Writ que deve ser havido como instrumento hábil para proteger pessoa jurídica contra ilegalidades ou abuso de poder quando figurar como corréu em ação penal que apurar a prática de delitos ambientais, para os quais é cominada pena privativa de liberdade. 3. Em crimes societários, a denúncia deve pormenorizar a ação dos denunciados no quanto possível. Não impede a ampla defesa, entretanto, quando se evidencia o vínculo dos denunciados com a ação da empresa denunciada. (...)” (HC 92921. STF. Min. Ricardo Lewandowski. Publ. DJ de 26/08/2008). 15 0
Capítulo X | Teoria do crime
jurisprudencial para a admissibilidade da responsabilidade penal da pessoa jurídica é a exigência de que sejam acusadas, igualmente, as pessoas naturais que tenham atuado em nome e em benefício, direto ou indireto, da pessoa jurídica. Nesse sentido, analisando um caso em que uma pessoa jurídica de direito privado havia sido denunciada, juntamente com dois sócios, por crime ambiental, qual seja, causar poluição em leito de um rio, através de lançamento de resíduos, tais como, graxas, óleo, lodo, areia e produtos químicos, resultantes da atividade do estabelecimento comercial (art. 54, da Lei no 9.605/1998), o STJ decidiu, em um extenso julgado, que aquela Lei, regulamentando preceito constitucional, passou a prever, de forma inequívoca, a possibilidade de penalização criminal das pessoas jurídicas por danos ao meio ambiente. A responsabilização penal da pessoa jurídica pela prática de delitos ambientais advém de uma escolha política, como forma não apenas de punição das condutas lesivas ao meio ambiente, mas como forma mesmo de prevenção geral e especial. A imputação penal às pessoas jurídicas encontra barreiras na suposta incapacidade de praticarem uma ação de relevância penal, de serem culpáveis e de sofrerem penalidades. Se a pessoa jurídica tem existência própria no ordenamento jurídico e pratica atos no meio social através da atuação de seus administradores, poderá vir a praticar condutas típicas e, portanto, ser passível de responsabilização penal. A culpabilidade, no conceito moderno, é a responsabilidade social, e a culpabilidade da pessoa jurídica, neste contexto, limita-se à vontade do seu administrador ao agir em seu nome e proveito. A pessoa jurídica só pode ser responsabilizada quando houver intervenção de uma pessoa física, que atua em nome e em benefício do ente moral. De qualquer modo – prossegue o julgado –, a pessoa jurídica deve ser beneficiária direta ou indiretamente pela conduta praticada por decisão do seu representante legal ou contratual ou de seu órgão colegiado. A atuação do colegiado em nome e proveito da pessoa jurídica é a própria vontade da empresa. A coparticipação prevê que todos os envolvidos no evento delituoso serão responsabilizados na medida de sua culpabilidade. A Lei Ambiental previu para as pessoas jurídicas penas autônomas de multas, de prestação de serviços à comunidade, restritivas de direitos, liquidação forçada e desconsideração da pessoa jurídica, todas adaptadas à sua natureza jurídica. Não há ofensa ao princípio constitucional de que “nenhuma pena passará da pessoa do condenado”, pois é incontroversa a existência de duas pessoas distintas: uma física (que de qualquer forma contribui para a prática do delito) e uma jurídica, cada qual recebendo a punição de forma individualizada, decorrente de sua atividade lesiva. A denúncia oferecida contra a pessoa jurídica de direito privado deve ser acolhida, diante de sua legitimidade para figurar no polo passivo da relação processual-penal.62 10.4.3. Sujeito passivo
Sujeito passivo, lesado ou vítima é o titular do bem jurídico objeto de lesão ou ameaça. Saliente-se que a pessoa vítima nunca recebeu maiores preocupações por parte 62. REsp 564960. STJ. Min. Gilson Dipp. Publ. DJ de 02/06/2005. 151
Curso de Direito Penal | Parte Geral
da dogmática penal, notadamente quando comparada com a importância destinada ao sujeito ativo do delito. A rigor, coube à Criminologia o resgate do status científico do sujeito passivo do delito, através do ramo científico denominado vitimologia, construindo-se tipologias que, subsequentemente, migraram para o âmbito do Direito Penal. Ainda sobre o assunto, a doutrina assinala que o Estado pode ser considerado sujeito passivo de todos os crimes, tendo em vista o seu interesse na manutenção da ordem jurídica.
10.5. Objeto do crime
O
o bem ou interesse protegido pela norma penal incriminadora. Nesse sentido, pode-se afirmar que objeto jurídico é sinônimo de bem jurídico-penal. Deve-se observar, a propósito, que o Código Penal agrupa, na Parte Especial, em cada um dos seus Títulos e Capítulos, determinados bens jurídicos penalmente tuteláveis (vida, liberdade individual, patrimônio, administração pública etc.) bjeto jurídico é
10.6. Objeto material
O
a pessoa ou a coisa sobre a qual incide a conduta delituosa. Em suma, objeto material é para onde converge a ação ou omissão descrita no tipo penal respectivo. Desse modo, não há que confundir objeto jurídico com objeto material. Assim, no crime de homicídio, o objeto jurídico é a vida, enquanto que o objeto material é o corpo humano. No furto, o objeto jurídico é o patrimônio e o objeto material é, por exemplo, a carteira de dinheiro de alguma pessoa. É possível a existência de delito sem objeto material, como ocorre nos chamados crimes de mera conduta, a seguir analisados. Porém, todo delito atinge determinado bem jurídico. bjeto material é
10.7. Classificações do crime
É
penal discorrer, no início do estudo da Teoria do Delito, sobre as principais classificações do delito. Trata-se, é certo, de um tema inesgotável, até porque, não raro, surgem novas classificações, ou – o que é mais frequente – novas denominações para antigas classificações. Tendo isso em mente, efetuamos, a seguir, algumas classificações. pra xe a d outrina
A) Ilícito penal e ilícito civil
Crime ou delito como modalidade de ilícito penal se inserem, naturalmente, no contexto da Teoria Geral do Direito. Desse modo, constitui o crime o comportamento contrário ao Direito (antijurídico), situando-se na vasta categoria dos ilícitos penais e 152
Capítulo X | Teoria do crime
extrapenais. Por conta disso, alguns doutrinadores tentam estabelecer a distinção entre ilícito penal e ilícito civil. Em que pesem os esforços empreendidos nesse sentido, não se chegou até os dias de hoje a uma distinção ontológica ou substancial entre os ilícitos penal e civil. A diferença entre eles está na consequência jurídica de um e de outro. O ilícito penal tem como sanção a imposição de pena ou medida de segurança. A violação de um ilícito civil acarreta outra penalidade, qual seja, a obrigação de compor o prejuízo, seja pela restituição, seja pela indenização. B) Crime ou delito e contravenção penal
Trata-se de classificação que leva em conta o modelo bipartido adotado pelo legislador brasileiro, desde o Código Criminal do Império. Como já observado, no Direto Penal brasileiro, crime e delito são expressões empregadas como sinônimas. Fato punível é designação mais ampla, abrangendo crime (ou delito) e contravenção, que constituem distintas espécies de ilícito penal. Não há diferença substancial entre crime e contravenção. Esta constitui apenas a infração penal de menor gravidade, caracterizando-se pela pena cominada ao fato. O art. 1o da antiga lei de introdução ao CP dispunha que crimes ou delito são as infrações penais mais graves, às quais a lei penal comina pena de reclusão ou detenção isolada, cumulada ou alternada com pena de multa; contravenções penais são as infrações penais às quais o legislador comina pena de prisão simples isolada, cumulada ou alternada com pena de multa. Modernamente, com o incremento teórico e prático das infrações de menor potencial ofensivo (art. 61, da Lei no 9.099/1995), modalidade na qual se inserem as contravenções penais, fez com que os estudos pertinentes às contravenções ficassem cada vez mais sublimados. C) Crime doloso, culposo ou preterdoloso
Essa classificação leva em conta o aspecto subjetivo da ação delituosa, conforme veremos mais adiante ao estudar o tipo subjetivo. Segundo o art. 18, I, do CP, diz-se doloso o crime em que o agente quer o resultado (dolo direto) ou assume o risco de produzi-lo (dolo eventual). Por sua vez, diz-se culposo o crime em que o agente atua com negligência, imprudência ou imperícia (art. 18, II, do CP). Em outros termos, no crime doloso, há consciência e vontade na direção do resultado (seja vontade de provocá-lo seja vontade de aceitá-lo); no culposo, não há vontade, decorrendo o resultado desvalioso da violação de um dever de cautela ante a sua previsibilidade. Com relação ao crime preterdoloso, diz-se que há dolo na conduta inicial e culpa no resultado subsequente. Dito de outra forma, no crime preterdoloso, o resultado final transcende ao que fora inicialmente pretendido pelo agente, respondendo pelo mesmo em razão da violação do dever de cuidado. O agente queria um minus, mas produziu um majus. 63 63. Exemplo de crime preterdoloso: após uma discussão na via pública, “A” desfere um soco no rosto do desafeto “B”, com 153
Curso de Direito Penal | Parte Geral
D) Crime consumado e crime tentado
Para essa classificação, importa a existência ou não do delito na sua inteireza. No crime consumado há conduta e resultado; todas as elementares da figura delituosa estão reunidas. No crime tentado, há conduta, há início de execução da ação delituosa, todavia o resultado não sobrevém por fatores alheios à vontade do agente. E) Crime comissivo, omissivo ou comissivo por omissão
Crime comissivo é o crime de ação, da realização de uma conduta positiva, conforme descrito no verbo da figura típica. Crime omissivo é o crime de inação, da não realização da conduta determinada pelo verbo do tipo. O exemplo clássico é o crime de omissão de socorro (art. 135, do CP), no qual o a agente deixa de realizar o comando contido na norma mandamental (prestar socorro). Crime comissivo por omissão ou de omissão imprópria é aquele em que originalmente o tipo descreve uma conduta positiva, sendo que o agente realiza-o através de uma inação. No caso, o agente se coloca numa posição especial de garantidor da não ocorrência do resultado. Deveria, pois, agir para obstar o resultado; todavia, por desejá-lo, fica inerte. F) Crime instantâneo, permanente ou instantâneo de efeitos permanentes
Cuida-se de classificação que interessa à definição do tempo do crime (art. 4 o, do CP), com reflexos na questão da irretroatividade da lei penal, bem assim para o início da contagem dos prazos prescricionais (art. 111, do CP). No crime instantâneo, a consumação se dá num único momento, sem prolongamentos, como ocorre no homicídio (art. 121, do CP) em que a morte se aperfeiçoa num único átimo. Diferentemente, no crime permanente, a consumação se prolonga no tempo, consoante a vontade do agente, como ocorre no crime de sequestro ou cárcere privado (art. 148, do CP). Por sua vez, a expressão crime instantâneo de efeitos permanentes guarda pertinência com questões processuais penais (cf. art. 158, do CPP), ou seja, os crimes que deixam vestígio (efeitos permanentes) necessitam ser objeto de exame de corpo de delito. Na seara penal, alude-se aos crimes instantâneos de efeitos permanentes para se ressaltar que, nesse grupo de casos, a perpetuação dos seus efeitos independe da vontade do agente, diversamente do que ocorre com os crimes permanentes. Nesse sentido, tem-se que o homicídio é um crime instantâneo de efeitos permanentes, uma vez que a morte é irreversível. G) Crime de dano e crime de perigo (concreto ou abstrato)
Crimes de dano são aqueles em que há lesão efetiva ao bem jurídico. No caso, a consumação do crime exige o dano ao objeto de proteção jurídica. Exemplo: para a vontade tão somente de causar-lhe lesão corporal. No entanto, em razão do golpe, “B” perde o equilíbrio, vindo a cair e bater a cabeça no meio-fio, o que lhe acarretou traumatismo craniano e óbito. Há, no caso, um delito de lesões corporais (doloso) seguido de morte a título de culpa (violação do dever de cuidado). 15 4
Capítulo X | Teoria do crime
consumação do homicídio é necessário haver a destruição efetiva do bem jurídico tutelado (vida humana). Por sua vez, crimes de perigo são aqueles que se contentam com a mera exposição de lesão ao bem jurídico. Basta a ameaça de dano para o delito estar consumado. Os crimes de perigo subdividem-se em crimes de perigo concreto, onde se exige a comprovação de que o bem jurídico ficou efetivamente exposto ao risco de lesão, como ocorre com o crime de incêndio (art. 250, do CP), e crimes de perigo abstrato, para os quais a lei presume, de forma absoluta, o risco de lesão ao bem jurídico, bastando, pois, a mera comprovação da realização da conduta perigosa descrita no tipo, conforme se verifica no crime de epidemia (art. 267, do CP). H) Crime material, formal ou de mera conduta
Cuida-se de classificação que interessa para a problemática da relação de causalidade. Crime material é o crime de conduta e de resultado naturalístico. O resultado integra a descrição típica e, caso não sobrevenha, o crime ficará na esfera do tentado. Portanto, é necessário investigar a relação de causalidade ou de imputação entre conduta e resultado. É o que ocorre, por exemplo, com o crime de roubo (art. 157, do CP). Caso não ocorra o resultado subtração da coisa móvel alheia, conquanto tenha havido emprego de grave ameaça ou violência, o roubo será tido como tentado. Outro exemplo: no homicídio, o evento morte integra a descrição típica, exigindo-se averiguar a relação entre a conduta do agente o mencionado resultado. Por outro lado, crime formal é aquele em que o tipo descreve conduta e resultado, mas não exige a superveniência deste último para ser tido como consumado. Para o processo de imputação, basta a comprovação da realização da conduta. Neste sentido, há o crime de extorsão (art. 158, do CP), no qual o tipo descreve o intuito de obter vantagem patrimonial, contentando-se, para a consumação, com a realização das elementares para constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a fazer, tolerar que se faça ou deixar de fazer alguma coisa. Por fim, crime de mera conduta seria uma subclassificação dos crimes formais, ou seja, são tipos penais que descrevem somente a conduta, prescindindo do resultado. Como visto, no crime formal há a descrição do resultado, embora o mesmo não seja relevante para a consumação, ao passo que no crime de mera conduta (ou mera atividade), somente há a descrição de um comportamento penal desvalioso. O exemplo por todos reconhecido é o crime de violação do domicílio (art. 150, do CP), em que há só descrição da conduta de entrar ou permanecer, clandestina ou astuciosamente, ou contra a vontade expressa ou tácita de quem de direito, em casa alheia ou em suas dependências. I) Crime unissubjetivo e crime plurissubjetivo
Crime unissubjetivo (ou de concurso eventual) é aquele em que o tipo descreve a sua realização por um só sujeito, ainda que, eventualmente, possa ser praticado por mais de uma pessoa. A grande maioria dos crimes é unissubjetivo. Diversamente, crime plurissubjetivo (ou de concurso necessário) é aquele em que o tipo exige a presença de mais de 15 5
Curso de Direito Penal | Parte Geral
uma pessoa, conforme verificado no crime de quadrilha ou bando (art. 288, do CP), que exige a presença de mais de três pessoas. Os crimes plurissubjetivos se subdividem em crimes de condutas paralelas, como no citado exemplo da quadrilha ou bando ou, ainda, no motim de presos (art. 354, do CP), condutas convergentes, como ocorre na bigamia (art. 235, do CP), ou de condutas contrapostas, como no delito de rixa (art. 137, do CP). J) Crime unissubsistente e crime plurissubsistente
Essa classificação importa para a admissão da tentativa, bem como para a questão do concurso de crimes. Crime unissubsistente é o que se dá num único ato, ou seja, a conduta não admite fracionamento. É o que ocorre, por exemplo, com a injúria (art. 140, do CP), quando proferida verbalmente. No mesmo sentido, os crimes omissivos próprios, uma vez que a inação penalmente relevante se aperfeiçoa em um único instante. Diversamente, os crimes plurissubsistentes admitem o fracionamento da conduta em diversos atos. Dessa forma, é possível que a conduta no delito de estelionato (art. 171, do CP) venha a ser subdividida em plúrimos atos, como, por exemplo, a realização de um golpe, conhecido como “conto do vigário”, por intermédio de diversos artifícios, capaz de induzir ou manter em erro o lesado. K) Crime comum, próprio ou de mão própria
Crime comum é aquele que pode ser praticado por qualquer pessoa. No caso, o tipo não exige nenhuma condição ou qualidade especial. A grande maioria dos crimes pode vir a ser perpetrada por qualquer pessoa, como ocorre com o delito de homicídio (art. 121, do CP). Diferentemente, crime próprio é aquele em que o tipo exige uma condição ou qualidade especial ao sujeito ativo. Podem ser citados como exemplos: o infanticídio (art. 123, do CP), a violação de segredo profissional (art. 154, do CP), e o peculato (art. 312, do CP), que exigem, respectivamente, que o sujeito ativo seja mulher em estado puerperal, detentor e função, ministério, ofício ou profissão, e, por fim, funcionário público.64 Crime de mão própria é aquele que só pode ser praticado pelo autor pessoalmente, como ocorre com o falso testemunho (art. 342, do CP). Não há possibilidade de o delito de mão própria ser praticado por interposta pessoa, ou seja, através de autoria mediata. Por sua vez, o crime próprio pode, sim, ser praticado por interposta pessoa. No mencionado exemplo do infanticídio, é possível que a mãe, sob influência do estado puerperal, mate o próprio filho valendo-se de uma criança de dez anos de idade.
64. A propósito, decidiu o STF: “A participação em crime próprio é admitida, sendo, porém, indispensável adesão subjetiva, identidade de desígnios entre partícipe e autor, não bastando o nexo causal.” (Pet. 3898. STF. Plenário. Min. Gilmar Mendes. Publi. DJ de 18/12/2009). 15 6
título
III
capítulo
teoria geral do crime
XI
TEORIA DA CONDUTA 11.1. Considerações gerais
C
capítulo precedente, por intermédio do conceito analítico de crime – conduta típica, antijurídica e culpável – a dogmática penal fornece o suporte teórico necessário e seguro para a aplicação da lei penal ao caso concreto. Isso objetiva constatar se, na hipótese fática sob consideração, ocorreu o crime, atribuindo-o ao seu autor. Em outros termos, verificada a existência do delito, por intermédio dos seus pressupostos essenciais, será legítima a incidência da sua consequência jurídica (a imposição de pena). Sendo assim, a análise dogmática do crime deve necessariamente começar pelo enfrentamento do conceito de conduta. Constatada a existência de uma conduta penalmente relevante, passar-se-á à análise das demais categorias do conceito anteriormente referido. Do contrário, o fato há de ser considerado um indiferente penal. Cuida-se do princípio do nullum crimen sine conducta. No entanto, como lecionado por Giorgio Marinucci, duas possibilidades se apresentam para tratar da teoria da conduta. A dogmática pode, por um lado, renunciar à configuração de um especial conceito de ação e começar a análise do delito diretamente pela tipicidade, na medida em que uma definição exaustiva e autônoma de ação (conduta) parece ser inviável ou, de toda sorte, seria tão genérica que não teria nenhum valor sistêmico. Por outro lado, pode a doutrina procurar definir o que seja conduta penalmente relevante e quais funções autonomamente onforme e xposto no
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desempenha na estrutura do delito, ainda que com o risco de imprecisões ou generalizações excessivamente amplas. Existem muitas vertentes teóricas para ambos os lados, predominando, contudo, a segunda opção, ou seja, a da busca por um conceito unitário e geral de conduta, apto a cumprir com certas funções básicas, abaixo discriminadas. Isso se comprova, inclusive, sob a perspectiva histórica, pois a maioria da doutrina sempre procurou conceituar a conduta para fins penais, consoante as contribuições trazidas pelas correntes ditas tradicionais (conceito causal, final ou social de conduta), bem como pelas construções contemporâneas sobre a matéria (conceito negativo ou pessoal de conduta).1 Antes de se prosseguir na exposição, cumpre efetuar um esclarecimento terminológico. A maior parte dos doutrinadores prefere utilizar a expressão “ação”, como gênero, do qual a ação propriamente dita e a omissão seriam as espécies. Outros, porém, optam pela palavra “conduta” em substituição daquela, para se evitar confusões entre gênero e espécie. Adota-se aqui, como regra, essa segunda orientação.
11.2. Funções da teoria da conduta
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1953, por Werner Maihofer, o conceito jurídico penal de conduta deve cumprir três funções dogmáticas basilares: onforme sistematizado, em
1o) Função de Classificação
Significa abarcar de maneira integral todas as formas de manifestação humana que possam interessar ao Direito Penal: fazer ativo ou omissivo; doloso ou culposo; consumado ou tentado; a autoria ou participação etc. Em síntese, para cumprir esta tarefa, a conduta deve consistir no denominador comum de todas as formas de manifestação delitiva.2 2o) Função de Definição (de enlace ou união)
Ademais, o conceito de conduta deve possuir a dimensão material suficiente para vincular, com critério protagonista, as demais categorias que lhe acompanham: tipicidade, antijuridicidade e culpabilidade.3 Sendo assim, além de determinar a si própria, a conduta condiciona o que se deve entender por tipicidade, antijuridicidade e culpabilidade, constituindo-se a “coluna vertebral” da teoria do crime.4 3o) Função de Delimitação (ou de exclusão de indiferentes penais)
O conceito de conduta ou ação deve, ainda, excluir aprioristicamente – ou seja, antes de se adentrar no exame dos demais pressupostos do delito –, os comportamentos 1. Marinucci, Giorgio. El delito como ‘acción’: crítica de un dogma. Trad. Eduardo Sáinz-Cantero Caparrós. Madrid: Marcial Pons, 1998, p. 13. 2. Cf. Polaino Navarrete, Miguel. ¿Qué queda del concepto de acción en la dogmática atual? Sobre la naturaleza y función del concepto de acción en Derecho Penal. In: Estúdios Penales en Homenaje a Enrique Gimbernat. Tomo II. Carlos García Valdés et allii (Coord.). Madrid: Edisofer, 2008, p. 1503. 3. Cf. Morillas Cueva, Lorenzo. Construcción y demolición de la teoría de la acción. In: Estúdios Penales en Homenaje a Enrique Gimbernat. Tomo II. Carlos García Valdés et allii (Coord.). Madrid: Edisofer, 2008, p. 1366. 4. Cf. Roxin, Claus. Derecho Penal..., cit., p. 234. 158
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tidos como penalmente irrelevantes. Cuida-se de função negativa de seleção prévia ou filtragem de certos fatos ou comportamentos, como, por ex., catástrofes naturais, ações de animais, atos de pessoas incapazes ou privadas de voluntariedade, como ocorrem nos casos de vis absoluta ou força maior, atos reflexos, delírios, ataques convulsivos etc.5 No entanto, a complexidade e as contradições6 existentes entre essas três funções fizeram com que parte da doutrina passasse a questionar a sua utilidade, diante da constatação de que a tríade de funções seria algo impossível de se atingir, optando-se, assim, por abandonar a noção de conduta e iniciar – conforme já mencionado – a atividade dogmática diretamente pela análise da tipicidade. Apesar disso, tendo em vista ser a conduta a “pedra angular” ou a “espinha dorsal” de todo o Direito Penal, a sua conceituação é imprescindível para a correta, ordenada e clara sistematização do delito. Por outro lado, tem-se que o abandono do seu estudo autônomo conduziria a dogmática penal ao casuísmo, ao arbítrio judicial e, por fim, ao menoscabo de todo o trabalho científico.7
11.3. Teorias da conduta O conceito de conduta não contempla uma noção unívoca. Cada um dos sistemas dogmático-penais apresentados no capítulo anterior define e analisa a conduta de modo particular (ontológico ou normativo). De fato, a partir de iniciativas que remontariam aos estudos de Feuerbach, de Hegel – tido, por Radbruch, como o “pai” do conceito de ação – e de Carrara, surgiram proposições que podem ser consideradas tradicionais na dogmática penal, quais sejam: conceitos causal, final e social da ação. Porém, com o surgimento do funcionalismo penal, formularam-se novas construções, em especial os conceitos negativo e pessoal de conduta. A) Conceito causal de conduta
A primeira teoria – e, talvez, a mais seguida na história do Direito Penal – compreende o conceito causal ou clássico de ação. Segundo ele, conduta penalmente relevante é o comportamento humano que causa um resultado no mundo exterior, ou que não o evita, no caso da omissão. A teoria causal se preocupa, única e exclusivamente, com o aspecto extrínseco (ontológico ou natural), dizendo que a ação é a causa do resultado. Sinteticamente, para a teoria causal, agir é causar o resultado; agir é, com movimentos físicos, dar ensejo à causação de resultados típicos. 5. Cf. Polaino Navarrete, Miguel. Op. cit., p. 1505. Nesse sentido, Mir Puig considera existir apenas duas funções para o conceito de conduta: 1o seleção prévia dos fatos totalmente irrelevantes para a valoração jurídico-penal (“função negativa”); e 2o formação da base substancial sobre a qual se assentam as demais categorias do delito (“função positiva”). (Mir Puig, Santiago. Derecho Penal. Parte General. 6. ed. Barcelona: Reppertor, 2002, p. 189). 6. A função classificatória é, necessariamente, pré-jurídica, ao passo que a função definitória ou de união da tipicidade, antijuridicidade e da culpabilidade é, necessariamente, intrassistêmica (cf. Dias, Jorge de Figueiredo. Op. cit., p. 253-254). 7. Cf. Morillas Cueva, Lorenzo. Op. cit., p. 1367. 159
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A relação psíquica entre conduta e o resultado que dela decorre – ou seja, o dolo ou a culpa – não integram a conduta, devendo ser analisada no âmbito da culpabilidade. A seu turno, o resultado pode vincular-se a um simples movimento corporal, que dá lugar aos crimes de mera atividade, ou a uma efetiva modificação no mundo exterior, ou seja, aos delitos materiais ou de resultado. A propósito, cumpre ressaltar que o conceito causal tem sua origem no positivismo naturalista, estudado no Capítulo anterior, embora ele já pudesse ser extraído da doutrina de Carrara: ação externa do homem como “força física”. Posteriormente, sofreu ligeira inclinação normativa com a adoção de valores neokantistas. Em linhas gerais, os mais destacados representantes dessa corrente foram von Liszt e Beling, no primeiro momento, e Radbruch e Mezger, no segundo. Indiscutivelmente, o mérito maior da teoria causalista residiu no seu esforço científico para elaboração de um conceito unitário de conduta: causação ou não evitação do resultado. Além disso, é relevante observar que o conceito causal tentou eliminar comportamentos não-humanos e comportamentos não-voluntários, como ocorre, p. ex., na coação física irresistível, quando há ausência de voluntariedade (função delimitadora).8 Entretanto, para os causalistas o conteúdo da vontade – isto é, o que a pessoa quis fazer com o movimento – é, por ora, irrelevante. Só passará a ter importância quando da análise da culpabilidade. Ou, em outras palavras, a conduta é a tensão ou contração dos músculos, determinada, não por coação mecânica ou psico-física, mas por ideias ou representações e efetuada pela inervação dos nervos motores.9 Como dito, com a orientação neokantiana, procurou-se adaptar o conceito de conduta ao mundo dos valores. Nesse sentido, Mezger aceitou o conceito de ação estruturado pelos causalistas, considerando, porém, a conduta como o comportamento referido a um valor. Nesse sentido, ação e omissão apresentam-se como condutas humanas valoradas de uma determinada maneira, isto é, fundadas em um querer do agente, que se coloca como causa da realização de um evento. Em suma, conduta é a voluntária causação de um resultado.10 Por sua vez, Radbruch defendeu, inicialmente, a adoção daquela definição natural de ação, exigindo-se unicamente a causalidade da vontade para o resultado, remetendo
8. Como dito por von Liszt: “Ação é o fato que repousa sobre a vontade humana, a mudança do mundo exterior referível à vontade do homem. Sem ‘ato de vontade’ não há ação, não há injusto, não há crime: cogitationis poenam nemo patitur. Mas também não há ação, não há injusto, não há crime sem uma mudança operada no mundo exterior, sem um ‘resultado’.” (Liszt, Franz von. Tratado..., cit., p. 193). 9. Idem, p. 198. Semelhantemente, Beling afirmava: “Deve entender-se por ‘ação’ um comportamento corporal (fase externa, ‘objetiva’, da ação) produzido pelo domínio sobre o corpo, a liberdade (‘voluntariedade’) de inervação muscular (fase interna, ‘subjetiva’, da ação). Ou seja, um ‘comportamento corporal voluntário’, consistente em um ‘fazer’ (ação positiva), isto é, um movimento corporal, p. ex., levantar a mão, movimentos para falar etc., ou em um ‘não fazer’ (omissão), isto é, a distensão dos músculos.” (Beling, Ernst von. Esquema de Derecho Penal. Trad. Sebastian Soler. B. Megzer, Edmund. Tratado..., cit., p. 189). 10. Segundo este autor, a teoria jurídico-penal da ação se limita a perguntar o que foi causado pelo querer do agente, qual o efeito produzido por dito querer. Porém, para ela é irrelevante se estes efeitos foram compreendidos pela consciência do querer do agente. Somente a teoria da culpabilidade é que se preocupa com o conteúdo do querer (conteúdo da consciência). (Idem, p. 221). 16 0
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completamente para a culpabilidade o problema do conteúdo do querer.11 Contudo, posteriormente, ele rejeitou essa construção, passando a considerar inadequada a tese de tal conceito funcionaria como categoria superior que abarcaria ação e omissão. Como exposto no Cap. XV, ação como comissão requer movimento corporal com suas consequências, inclusive a relação de causalidade natural, ao passo que na omissão faltam esses elementos. Para Radbruch não seriam categorias contraditórias, assim como Posição e Negação (A e não-A), espécies que pudessem ser colocadas sob um conceito superior.12 Como visto, em que pesem as alterações aportadas ao conceito de crime – especialmente com o reconhecimento de elementos normativos e subjetivos do tipo, além da proposta de uma antijuridicidade tipificada e de acrescentar a exigibilidade de conduta diversa dentro do terreno da culpabilidade – o neokantismo conservou o conceito de conduta desenvolvido pelos causalistas, razão pela qual foi batizada de teoria neoclássica de conduta. Todavia, numerosas foram as objeções assinaladas contra o conceito causal. Em primeiro lugar, reconheceu-se que a noção de ação dificilmente se adequava aos parâmetros omissivos, apesar dos esforços neokantistas para salvá-la. Na omissão, falta o impulso esperado e, por isso, não se põe em movimento um processo causal natural. O mesmo ocorre com a tentativa branca, ou seja, aquela que não resulta em nenhuma alteração exterior. Sem resultado, não haveria lugar para a conduta, redundando na impunidade do crime tentado. Estas e outras objeções comprometeram, pois, a função de classificação acima apontada. A segunda crítica formulada foi a de que a fórmula da causalidade não diferenciava o comportamento humano de outros eventos naturais ou mesmo do realizado por animais, pois são também espécies do gênero “causalidade”. A rigor, o que caracteriza a conduta penalmente relevante é dirigibilidade do curso causal, para a qual somente o ser humano estaria capacitado a realizar. Isso prejudicou a função de delimitação ou de exclusão prévia de indiferentes penais. Por fim, a crítica demolidora ao conceito causal de ação foi a da inadequação do nexo de causalidade natural como elemento central da dogmática penal, conforme a problemática do regressus ad infinitum e dos cursos causais aventureiros (Cap. XII). A propósito, a crítica deve ser estendida para a regra do art. 13, caput, do nosso Código Penal, por se tratar de um registro tardio da teoria causal da ação. B) Conceito final de conduta
Se o neokantismo pouco alterou o modelo clássico de conduta, o mesmo não pode ser dito do finalismo desenvolvido por Hans Welzel. Na verdade, a teoria finalista foi concebida para, justamente, atacar o que se reputava como o grande defeito da corrente precedente, qual seja, a artificial separação de voluntariedade do conteúdo da vontade. Segundo aquele autor, o ser (ontológico) impregnado de seus valores vem antes de cada teoria ou de cada conceito normativo (axiológico). 11. Apud Welzel, Hans. Tratado..., cit., p. 46. 12. Nesse sentido, observa Morillas Cueva que Radbruch abandonou o conceito autônomo de ação e passou a considerar a tipicidade como o elemento central da teoria do delito (Morillas Cueva, Lorenzo. Op. cit., p. 1372). 161
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Dessa forma, considerando equivocada a ideia de a conduta ser um mero movimento corpóreo despido de finalidade, Welzel ressaltou que o que caracteriza o agir humano é a capacidade de dirigir a causalidade de acordo com a sua vontade, ou seja, a aptidão humana de iniciar uma conduta para atingir um determinado fim. Desse modo, a finalidade, ou o caráter final da ação, se baseia no fato de que o homem, graças ao seu saber causal, pode prever, dentro de certos limites, as consequências possíveis de sua atividade, e dirigi-la, conforme planejado, até a consecução de seus fins.13 Para Welzel, a direção final divide-se em duas etapas. A primeira é desenvolvida inteiramente na esfera do pensamento, iniciando-se com a antecipação mental de um fim que o agente quer realizar. Em seguida, seleciona-se mentalmente os meios de ação para a consecução do fim almejado, com base no saber causal do agente e em um movimento de retrocesso mental. Por último, há a consideração dos efeitos concominantes que necessariamente se seguirão à conduta mentalmente antecipada. A segunda etapa se desenvolve no mundo real – de acordo com o planejamento do fim proposto, dos meios e da valoração dos efeitos colaterais –, levando-se a cabo a conduta. Em suma, a ideia de finalidade baseia-se na capacidade do homem de prever, dentro de certos limites, as consequências de sua intervenção causal e, conforme um plano previamente concebido, dirigir o processo para a meta desejada.14 Como dito por Roxin, a conduta final de Welzel surgiu no momento em que o homem primitivo percebeu e utilizou a pedra como a primeira ferramenta.15 Atente-se, por outro ângulo, que, após travar intensa disputa com os causalistas, a teoria finalista preponderou na dogmática penal, importando numa redefinição dos demais pressupostos do conceito do delito, não só no âmbito teórico, mas, também, legislativo e jurisprudencial. Nesse sentido, a Reforma da Parte Geral do Código Penal, feita em 1984, importou na adoção dos postulados da teoria da ação final, conforme se vê, p. ex., nas regras dos arts. 20 e 21, do CP. O finalismo é, ainda hoje, a teoria mais comumente adotada no Brasil. Contudo, apesar de ter superado a concepção mecanicista e artificial precedente, é certo que o finalismo também apresenta defeitos tidos como irreversíveis. A primeira objeção está no próprio delito comissivo doloso. Isso porque a experiência ensina que nem sempre é certo que o acontecer causal decorra de uma rigorosa direção finalista, mentalmente refletida, a ser posta em movimento. É o que ocorre, por ex., com as ações automatizadas e com as ações passionais (em “curto-circuito”), vistas abaixo.16 A segunda objeção está no crime omissivo e no crime culposo. Efetivamente, o finalismo não conseguiu unificar satisfatoriamente as modalidades de comportamento humano penalmente relevante. O núcleo da ação final não se adéqua bem à omissão, 13. Cf. Welzel, Hans. Derecho Penal..., cit., p. 39. 14. Idem, p. 40-41. 15. Roxin, Claus. Finalismo: um balanço entre seus méritos e deficiências. Trad. Marina Coelho. In: RBCCRIM, S. Paulo, n. 65, 2007, p. 12. 16. Cf. Wessel, Johannes. Direito Penal. Parte Geral. Trad. Juarez Tavares. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1976, p. 21. 162
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porque o omitente não causa o resultado, tampouco dirige finalmente a causalidade. Da mesma forma, no crime culposo a finalidade do agir é, em regra, irrelevante; não o é, exatamente, o resultado da ação, ou seja, a lesão de determinado bem jurídico. É certo, porém, que os finalistas abrandaram o rigor da construção inicial (finalidade potencial), a fim de também abarcar os crimes culposos, aludindo-se não fim perseguido, mas à seleção dos meios inadequados que acarretam o resultado desvalioso.17 Critica-se, ainda, a excessiva subjetivação da teoria da ação final. Levada ao limite, a vontade passou a preponderar sobre o resultado, chegando-se ao absurdo da punição do crime impossível, vale dizer, tão somente daquilo que o autor quis fazer. Ademais, como mencionado no Capítulo anterior, os finalistas mais extremados consideravam o resultado como mera condição de punibilidade da ação, o que não é aceitável. Por fim, evidenciou-se o grande problema metodológico na teoria de Welzel: a dificuldade em condicionar uma ciência eminentemente normativa, como o Direito, à ideia pré-normativa (ontológica) das estruturas lógico-objetivas. O ser (o mundo real) é e sempre será aquilo que os homens, com suas normas, suas leis, com sua organização social, entender que deva ser. A valoração do real é inerente à ciência jurídica. Diante de tais críticas, restaram prejudicadas as funções basilares acima arroladas. C) Conceito social de conduta
No escopo de superar os defeitos identificados tanto na teoria causal como na teoria final, surgiram correntes tendentes a situar o conceito de ação dentro de um marco normativo da relevância social, dando azo àquilo que se convencionou chamar de teoria social da conduta. Embora tenham como pano de fundo concepções causalistas ou finalistas, todos os adeptos da teoria social partilham da percepção comum de que o social é o elemento básico para a compreensão da conduta e de suas funções. Nesse sentido, Eberhard Schmidt – que prosseguiu atualizando o Tratado de von Liszt – sustentou um conceito adaptado do causalismo de seu antigo mestre, inserindo-o nas consequências do contexto social. Para aquele autor, o sentido social da conduta há de conectar-se às premissa da vida social. Em suma, conduta seria a voluntária causação de consequências previsíveis e socialmente relevantes.18 Por sua vez, Johannes Wessels, após criticar os conceitos causal e final, assinalou sua preferência pela teoria social da conduta, por apresentar uma solução conciliadora entre a pura consideração ontológica e a normativa. Sendo assim, ele definiu ação para fins penais como sendo a conduta socialmente relevante, dominada ou dominável pela vontade humana.19 O terceiro grande nome da teoria social da conduta foi Hans-Heinrich Jescheck. Segundo ele, a categoria básica do comportamento humano ativo é a finalidade (capacidade de dirigir cursos causais). A ela se junta a categoria da omissão, que demanda um juízo normativo da expectativa de um comportamento (possibilidade de agir). Ambas não 17. Cf. Welzel, Hans. Tratado..., cit., p. 155-156. 18. Cf. Morillas Cueva, Lorenzo. Op. cit., p. 1378. 19. Wessels, Johannes. Op. cit., p. 22. 16 3
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podem ser unificadas em um nível ontológico, visto que a omissão não é final em si mesma, mas podem ser integradas em um nível superior consistente na relação do comportamento humano com o seu entorno. Este é, para Jescheck, o sentido do conceito social de conduta. Conforme suas palavras, “ação é um comportamento humano com transcendência social”.20 Desse modo, para este autor, o comportamento humano pode consistir no exercício da atividade final (comissão dolosa); pode restringir-se a causação involuntária de consequências relevantes (comissão culposa); ou pode manifestar-se através da inatividade frente a uma determinada expectativa de ação (omissão). De toda sorte, há de se verificar a presença de uma unidade de sentido social. Sendo assim, o conceito preconizado por Jescheck atenderia à função de classificação, inicialmente apresentada, por englobar todas as modalidades de conduta penalmente relevante. Cumpriria, igualmente, a função de delimitação, pois evidenciaria que não se constitui conduta socialmente relevante os atos reflexos puramente somáticos, nos quais o movimento ou a ausência dele desencadeiam-se de modo imediato, por meio do correspondente estímulo do sistema nervoso, o mesmo valendo para os movimentos corporais em situação de inconsciência ou, por fim, com os efeitos que decorrem da força física irresistível (vis absoluta).21 No entanto, o conceito social de ação também não está isento de críticas. Nesse sentido, apesar de reconhecer a “força expressiva” de tal conceito, Claus Roxin considera não atendida a função delimitadora, pois, apesar de meros pensamentos serem socialmente irrelevantes, não o são os efeitos da vis absoluta, os movimentos puramente reflexos ou outros não controláveis. Dessa maneira, os adeptos da teoria social são forçados a adotar as características de um conceito natural de ação, descaracterizando a teoria, ou a deslocar a função delimitadora para outro lugar que não o dito social, como, por ex., a definição de conduta como resposta à possibilidade de ação.22 Ademais, a função de classificação (ou de enlace) também não é atingida, uma vez que o conceito social de conduta se atrela aos elementos valorativos do tipo, desaparecendo, portanto, o caráter autônomo da conduta. Como dito por Roxin, pode-se afirmar que quase sempre é a tipicidade o único fundamento da relevância social de uma conduta.23 Conforme antecipado, às teorias tradicionais da conduta, acima apresentadas, novas construções surgiram no bojo do funcionalismo penal, exposto no Capítulo anterior. Dentre as novas proposições de cunho normativo, as mais relevantes são conceitos negativo da conduta e conceito pessoal da conduta.24 20. Jescheck, Hans-Heinrich; Weigend, Thomas. Op. cit., p. 239. 21. Idem, p. 239-240. 22. Roxin, Claus. Direito Penal..., cit., p. 245. 23. Idem, p. 246. 24. Merece, ainda, ser referida a teoria significativa da conduta, elaborada, na Espanha, por Tomás Salvador Vives Anton, sob influência da filosofia de Wittgenstein e na teoria da ação comunicativa de Habermas (Vives Antón, Tomás S. Fundamentos del sistema penal. Valencia: Tirant lo Blanch, 1996). Em linhas gerais, Com o escopo de efetuar uma reconstrução teórica das categorias da ação e da norma, sugere-se um novo modelo de análise e solução dos problemas da teoria do delito, partindo da premissa normativa de que ação não é algo que os homens fazem, mas, sim, o significado do que fazem; não um substrato, mas, sim, um sentido (cf. Martínez-Buján Pérez, Carlos. La ‘concepción significativa de la acción’ de T. S. Vives y sus correspondencias sistemáticas con las concepciones teleológico-funcionales del delito. In: RECPC, Granada, 1999 - http://criminet.ugr.es/recpc/recpc_01-13.html). 16 4
Capítulo XI | Teoria da conduta
E) Conceito negativo de conduta
Cuida-se de construção que busca um denominador comum que singularize o conceito de conduta, lastreando-se no princípio da evitabilidade. O conceito negativo de conduta encontra-se subdividido em várias orientações, preponderando duas delas. A primeira, defendida por Rolf Herzberg, define conduta como o não evitar o evitável na posição de garantidor, o que incluiria tanto os fatos comissivos como omissivos. No primeiro, o agente não evita algo que poderia, caso se abstivesse de agir, e, no segundo, poderia igualmente evitar caso atuasse para impedir o resultado.25 Com efeito, a exigência da posição de garantidor é a característica mais polêmica dessa orientação, em particular nos crimes comissivos dolosos, o que a torna dogmaticamente insustentável, tendo em vista sua excessiva abstração da realidade empírica. Ademais, aquela noção compromete a aferição dos demais elementos do delito (tipicidade, antijuridicidade e culpabilidade), pondo em causa a função de definição ou enlace. O segundo conceito normativo e negativo de conduta provém do funcionalismo penal de Günther Jakobs. Segundo ele, conduta deve ser entendida como a causação do resultado individualmente evitável. Cuida-se, na verdade, de um supraconceito, que abarcaria tanto o atuar doloso (conhecimento da execução da ação), culposo (cognoscibilidade individual que, como condição da evitabilidade, pertence à conduta), e omissivo (pressupõe-se a evitabilidade, mas em relação inversa com a motivação e com o movimento corporal). Para tanto, Jakobs considera a conduta como descumprimento das normas vigentes na sociedade.26 Bernd Schünemann critica a excessiva normatização de Jakobs, considerando tautológico (e acientífico) o seu conceito de conduta. Segundo ele, em Jakobs, a ação é definida por meio da lesão à norma e, como a lesão à norma pressupõe uma ação, com esta argumentação nos encontramos dando voltas em círculos como numa ciranda.27 F) Conceito pessoal de conduta (a manifestação do “eu”)
Segundo Claus Roxin, conduta é a manifestação da personalidade humana a ser devidamente valorada pelo Direito Penal. Para ele, conduta englobaria todo o comportamento, positivo ou negativo, que expresse a personalidade do sujeito. Isso significa duas coisas: (1º) é conduta tudo o que possa atribuir a um ser humano como centro anímico-espiritual, o que não ocorre, por ex., nas hipóteses de ação que partem unicamente da esfera corporal (massa mecânica) do homem, sem submissão ao seu “eu”; e (2º) os impulsos da esfera anímico-espiritual que não se exteriorizam (ficam cerradas internamente) não são manifestações da personalidade e, portanto, não são condutas sob o ponto de vista penal.28 25. Cf. Morillas Cueva, Lorenzo. Op. cit., p. 1384. 26. Cf. Jakobs, Günther. El concepto jurídico-pena lde acción. In: Moderna Dogmática Penal. 2. ed. México DF: Porrúa, 2006, p. 76. 27. Schünemann, Bernd. La relación entre ontologismo y normativismo en la dogmática jurídico-penal. Trad. Mariana Sacher. In: Obras. Tomo I. Santa Fé: Rubinzal, 2009, p. 197. 28. Roxin, Claus. Derecho Penal..., cit., p. 252. 16 5
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Como se observa, cuida-se de conceito relacionado ao funcionalismo teleológico-racional, do qual as teorias da imputação objetiva e da responsabilidade despontam como centrais às funções político-criminais que ele defende (cf. Cap. X). Nesse sentido, o conceito pessoal de conduta apresenta-se como um supraconceito que abrangeria as construções doutrinárias anteriores. Isso porque, a voluntariedade (causalistas), a finalidade (Welzel), a relevância social (Jescheck) e a não-evitação (Jakobs) são, de certa forma, caracterizações jurídico-penais da personalidade humana. Ademais, para Roxin, o conceito pessoal de conduta cumpre a contento a tríade de funções exigidas pela dogmática penal. Em primeiro lugar, o conceito de conduta como manifestação da personalidade é idôneo como elemento básico (função de classificação), pois abarca todas as formas de manifestação comissivas ou omissivas, dolosas ou culposas, tentativa ou consumação, participação ou autoria, imputáveis ao sujeito como obra do seu “eu”. Em segundo lugar, o conceito pessoal de conduta atende a função de enlace ou união, pois abarca normativamente o fragmento da realidade relevante para uma primeira e prévia valoração jurídica (substantiva), à qual se adicionam os predicados da tipicidade, antijuridicidade e culpabilidade. Em terceiro e último lugar, o conceito de manifestação da personalidade bem descreve o critério de delimitação entre conduta e falta de conduta. Não são condutas os efeitos de procedem de animais; tampouco o são meros pensamentos, atitudes internas, disposições de ânimo e tudo aquilo que permaneça na esfera interna do agente (cogitationis poenam nemo partitur). Também falta uma manifestação do “eu” quando o corpo humano opera mecanicamente, sem que o espírito e a psique intervenham ou tenham tido a oportunidade de intervir de algum modo no acontecer causal (por ex., vis absoluta, delírios, estados epiléticos, vômito incontrolável etc.). Contudo, figurariam numa zona axiológica cinzenta, os chamados movimentos reflexos, automatismos, fatos praticados sob impulsos emocionais de alta intensidade.29 Em síntese, de um conceito de conduta nada mais se espera do que seja claro e inteligível. Sendo assim, o conceito pessoal de conduta desenvolvido por Claus Roxin não é puramente natural (ontológico), nem puramente abstrato. É, sim, normativo, porque o critério de manifestação da personalidade designa aspectos valorativos (axiológicos), que importam juridicamente para o exame da conduta no caso concreto, bem como para decidibilidade dos casos fronteiriços adiante assinalados, mas não é normativista, pois – segundo aquele autor – acolhe, em seu campo visual, a realidade da vida o mais exatamente possível, levando sempre em consideração os últimos conhecimentos das investigações empíricas.30
29. Idem, p. 255-261 30. Idem, p. 265. 16 6
Capítulo XI | Teoria da conduta
11.4. Modalidades de conduta
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anteriormente efetuada, pode-se observar a existência de duas modalidades de conduta penalmente relevantes: comissiva e omissiva. onforme a e xposição
11.4.1. Ação
Ação é a conduta comissiva, ou seja, aquela que exige um fazer. A maioria dos tipos penais descreve comportamentos comissivos, por meio de verbos, como, p. ex., “matar”, “constranger”, “subtrair”, “destruir” etc. 11.4.2. Omissão
Conduta omissiva é aquela em que há a não realização de um comportamento previsto no tipo penal. Não é uma mera inação, mas, sim, não realizar um comportamento esperado, podendo, no caso concreto, o agente realizar alguma outra coisa. Ao invés de realizar a conduta esperada de, por exemplo, salvar uma vida em perigo, o omitente fica inerte ou faz outra coisa: faz ginástica, nada na praia, vai ao supermercado etc. Esta modalidade de conduta se subdivide em omissão própria ou pura e omissão imprópria ou comissiva por omissão. 11.4.2.1. Omissão própria
Omissão própria ou pura é aquela em que a conduta se perfaz com a simples não realização da atividade determinada pelo tipo penal incriminador. Em geral, o tipo omissivo puro pode ser reconhecido pela expressão “deixar de”. Com efeito, o agente deixa de realizar o comportamento descrito pela norma mandamental. Insta acrescrentar que os crimes omissivos puros são classificados como crimes de mera conduta. O sujeito, ao não fazer o que é esperado, amolda seu comportamento à descrição típica proibida (viola o mandamento positivo). 11.4.2.2. Omissão imprópria
Omissão imprópria ou crime comissivo por omissão corresponde às hipóteses em que o agente (omitente) se coloca numa posição especial de proteção para com o bem jurídico. É o garante de que o bem jurídico não sofrerá determinada lesão. Exemplo: “A”, contratada para ser babá da criança “B”, se distrai assistindo TV, não impedindo que “B” suba numa cadeira e despenque pela janela do apartamento em que reside.
A principal diferença entre omissão própria e imprópria reside no fato de que, naquela, a conduta negativa está descrita no tipo penal contido na Parte Especial. Exemplos: arts. 135, 269, 244, 320 etc. Na omissão imprópria, se trata, na verdade, de um delito comissivo, mas, diante da posição de garantidor, discriminada no § 2o do art. 13, o agente se omite, respondendo, assim, pelo respectivo delito. 167
Curso de Direito Penal | Parte Geral
Sobre a problemática da causalidade na omissão, vide o Capítulo XV.
11.5. Ausência de conduta
I
falta a manifestação de personalidade do agente (voluntariedade). Não há, pois, ação, no caso de coação física irresistível (exemplo: “A”, com força superior a “B” obriga-o a vibrar um golpe de punhal contra o corpo de “C”); no caso de ação em completa inconsciência (exemplo: “A”, sonâmbulo, pisoteia a cabeça da criança “B”, que estava deitada no chão); ou, ainda, nos chamados atos reflexos, consistentes em uma reação orgânica correspondente a determinada excitação sensitiva (exemplo: a tosse ou o espirro involuntário). No entanto, não deixa de existir conduta nos chamados movimentos impulsivos ou instintivos, denominadas pela doutrina de “ações em curto-circuito” ou “explosivas”, bem assim nos movimentos habituais ou mecânicos, próprios de repetições prolongadas, pois se considera que, no caso, há possibilidade de dominação finalística, vale dizer, a manifestação do seu “eu”. Conforme visto, o conceito de conduta cumpre determinadas funções, destacando-se, dentre elas, a de delimitar e eliminar, de antemão, fatos que careçam de relevância penal, como ocorre, por exemplo, com ações cotidianas da esfera íntima das pessoas, sem exteriorizações no entorno social.31 A consequência da ausência de conduta é a desnecessidade dogmática de se perquirir acerca dos demais pressupostos do crime (tipicidade, antijuridicidade e culpabilidade). ne xiste conduta se
11.5.1. Coação física irresistível
A coação física irresistível é também denominada de vis absoluta. Como visto, cuida-se da força física superior que retira a voluntariedade do agir humano, tornando, o hipotético “autor do fato” (o coato) mero instrumento do verdadeiro autor, ou seja, do coator. Em outras palavras, não há manifestação da sua personalidade. Exemplo: “A”, de forma inesperada, empurra “B”, com força, dentro da piscina, chocando-se com a criança “C”, que vem a se afogar e morrer. Conquanto com seu corpo tenha causado a morte de “C”, “B” não realizou conduta do ponto de vista penal.
Cumpre não confundir coação física irresistível com coação moral irresistível. Isto porque, no primeiro caso, não há voluntariedade, afastando, assim, a conduta. Na coação moral irresistível, há conduta (expressão do “eu”), embora viciada, o que permitirá o reconhecimento da falta de culpabilidade (exculpante), tendo em conta o requisito da inexigibilidade de conduta diversa (Capítulo XVII). 31. Cf. Raúl Zaffaroni, E.; Batista, Nilo; Alagia, Alejandro; Slokar, Alejandro. Direito Penal brasileiro. 2. Vol. Rio de Janeiro: Revan, 2010, p. 112. 168
Capítulo XI | Teoria da conduta
11.5.2. Atos reflexos
Os atos ou movimentos reflexos são aqueles em que a inervação muscular ou sua ausência é acarretada por estímulos dirigidos diretamente ao sistema nervoso autonômo. Como lecionado por García-Pablos de Molina, o sistema nervoso autônomo (ou vegetativo) possui um papel primordial no ser humano, porque dele dependem determinadas reações do corpo que escapam do controle da psique. Este fenômeno pode ser ilustrado com os polêmicos detectores de mentira (polígrafos), que seriam aparelhos aptos a medir as reações orgânicas independentes da vontade (dilatação de pupilas, estímulos de glândulas de sudoração, aceleração do pulso etc.). Dessa maneira, o sistema nervoso autônomo estaria condicionado para antecipar um eventual castigo por mentir. Dita antecipação produz, em geral, uma resposta não controlada pela vontade com consequentes alterações das funções suscetíveis de medição. Entretanto, como advertido pelo próprio García-Pablos de Molina, é bastante questionável o rigor científico desses aparelhos, pois o polígrafo não detecta a mentira, mas, sim, certas alterações periféricas que podem indicar ansiedade, medo ou culpa, o que não há de ser associado, necessariamente, com a mentira. Em outros termos, pode acarretar ansiedade ou medo, mas estas emoções podem derivar tanto do ato de mentir em si como de fatores completamente desvinculados da mentira.32 De todo modo, o movimento reflexo pode, em certos casos, acarretar a exclusão da conduta em situações penalmente relevantes, como, v.g., no caso de “A” que, ao volante de um automóvel, vem a sofrer um imprevisto ataque epilético, causando, involuntariamente, o atropelamento e morte do pedestre “B”. Reitere-se, contudo, que a doutrina diferencia atos reflexos excludentes da conduta das reações explosivas, como a raiva ou ódio súbito, que, em geral, geram reações violentas e desmesuradas, como as já mencionadas reações em curto-circuito. Idêntica ressalva deve ser estendida para os atos rotineiros ou repetitivos. Numa palavra, em ambas as hipóteses existe voluntariedade no agir humano. 11.5.3. Estados de inconsciência
Como dito, a conduta pode restar afastada em determinados estados do organismo humano que anulam o caráter pessoal da conduta, como ocorre, por exemplo, com ações realizadas por alguém em estado de sonambulismo ou, ainda, por hipnotismo.
11.6. Resultado
C
Capítulo XVII, a dogmática penal apreende a ideia de resultado ou evento sob dois enfoques: material ou jurídico. onforme e xposto no
32. García-Pablos de Molina, Antonio. Criminología. Una introducción a sus fundamentos teóricos. 6. ed. Valencia: Tirant lo Blanch, 2007, p. 322. 169
Curso de Direito Penal | Parte Geral
11.6.1. Resultado jurídico
Do ponto de vista jurídico ou normativo, resultado compreende a lesão ou o perigo de lesão de determinado bem jurídico. Nesse sentido, consoante já salientado, não há delito sem resultado, pois todo comportamento ilícito acarreta a lesão ou a ameaça a algum bem jurídico penalmente tutelado – princípio da ofensividade. 11.6.2. Resultado material
Ao lado da noção jurídica de resultado, existe outra, qual seja, a de resultado do ponto de vista material, ou seja, a consequência da conduta realizada. Desta forma, resultado, materialmente falando, é a alteração do mundo exterior, prevista em alguns tipos penais, mas ausente em outros. Por outras palavras, resultado é a alteração objetiva causada pela conduta, nos chamados delitos materiais ou delitos de resultado. Por exemplo, no delito de homicídio, o resultado é a morte de um ser humano; trata-se de um delito material, pois, a morte é necessária para a realização completa do tipo do art. 121; se esta não sobrevier, o homicídio não será consumado, mas somente tentado. Sob esse enfoque material, a doutrina sustenta que há delitos sem resultado, como ocorre com os chamados delitos formais ou de mera conduta. No caso, o tipo só descreve a conduta; ou descrevendo conduta e resultado, prescinde deste último. Exemplo: No delito tipificado no art. 150, basta o agente entrar ou permanecer em casa alheia, de maneira clandestina, astuciosa ou contra a vontade do morador, para ter-se como consumada a violação de domicílio, independentemente de essa conduta gerar algum resultado exterior, pois o tipo não descreve nenhuma consequência material desse ingresso não autorizado.
Dentro da mesma ideia, no delito descrito no art. 317, basta o agente, por exemplo, solicitar vantagem indevida em razão do cargo, para ter-se como realizado o crime de corrupção passiva, independentemente de ele infringir determinado dever funcional. Exemplo: O delito tipificado no art. 158 descreve uma conduta – constranger alguém – e prevê determinado resultado – obtenção de indevida vantagem econômica, mas não exige esse resultado para a consumação da extorsão; basta o mero “intuito” de obter a vantagem.
Como dito, no tocante ao resultado naturalístico, há três categorias de delito: (1o) aqueles em que o tipo penal exige o resultado para restar completo – os chamados crimes materiais – e que, de resto, compreendem a maior parte dos delitos do Código Penal e na legislação especial; (2o) aqueles em que o tipo penal descreve o resultado, mas que não o exige para a sua caracterização – são os crimes formais ou de consumação antecipada; e (3o) aqueles em que não há a descrição de um resultado naturalístico – os chamados delitos de mera conduta ou mera atividade –, bastando, unicamente, a realização de determinada conduta que se amolda à sua descrição. 170
título
III
capítulo
teoria geral do crime
XII
CAUSALIDADE E IMPUTAÇÃO OBJETIVA 12.1. Considerações gerais
N
isto é, naqueles em que o momento consumativo depende da superveniência de um resultado exterior à ação, deve-se estabelecer a relação da causalidade entre a ação e o resultado. Tal resultado integra a descrição da conduta proibida e dele depende a tipicidade. A questão de nexo causal não tem mais hoje a amplitude e a significação que lhe atribuíram os juristas que, no século XIX, introduziram-nas na doutrina, elevando-as à condição de categoria fundamental na estrutura do delito. A questão do nexo causal somente surge nos crimes materiais, dela não se cogitando nos crimes omissivos puros e nos crimes de simples atividade. A relevância da matéria reside no fato de constituir, a causalidade, limitação à responsabilidade penal. Para determinar quando é possível dizer que o agente deu causa ao resultado, com seu comportamento, surgiram diversas teorias. Particularmente, no Brasil, o Código Penal, em seu art. 13, caput, afirma que a existência do delito depende da ocorrência do resultado, atribuindo-o a quem lhe deu causa. E arremata: considera-se causa a ação ou omissão sem a qual o resultado não teria ocorrido. A relação de causalidade, adotada no citado dispositivo do Código, cuida-se da conhecida teoria da equivalência dos antecedentes causais. os crimes materiais,
171
Curso de Direito Penal | Parte Geral
O resultado aí aludido é o resultado natural, ou seja, a alteração da pessoa ou coisa no mundo real. Não se cuida, no caso, do resultado do ponto de vista jurídico, vale dizer, a lesão ou ameaça ao bem jurídico tutelado. Extrai-se, pois, do citado dispositivo legal, que não haveria crime sem resultado (naturalístico). Todavia, como visto anteriormente, há, de fato, crimes sem resultado (os crimes omissivos próprios e os de mera conduta). Diante dessa impropriedade do legislador, parte da doutrina brasileira sustenta que o referido dispositivo mereceria ser interpretado de forma propositalmente tautológica, isto é, da seguinte maneira: “o resultado de que depende a existência dos crimes de resultado somente pode ser imputado a quem lhe deu causa”. É certo que a grande maioria dos delitos previstos nos Código Penal e na legislação especial, bem assim aqueles que tramitam nos tribunais são crimes de resultado (homicídios, lesões corporais, furtos, roubos etc.), razão pela qual a impropriedade ora apontada resta, na prática, atenuada. Ao lado disso, outros pontos críticos decorrem da adoção da teoria da equivalência das condições. Nesse sentido, é curioso observar que o art. 13, do CP, afirma que, além da ação, a omissão também seria causa do resultado naturalístico, o que causa certa perplexidade conforme se terá oportunidade de ressaltar (vide Capítulo XV). No entanto, há duas outras críticas dirigidas à teoria adotada pelo Código. São elas: (1) a problemática do regressus ad infinitum; e (2) os chamados cursos causais extravagantes ou aventureiros.
12.2. A teoria da equivalência dos antecedentes
A
teoria da equivalência dos
antecedentes– também denominada teoria da conditio sine qua non –, idealizada em 1858 por Julius Glaser e aplicada, no Direito Penal, pelo magistrado do Tribunal Supremo do Reich Maximilian von Buri, no final do século XIX. Esta teoria sustenta que é causa de um resultado todas as condições que colaboram para a sua produção, independentemente de sua maior ou menor proximidade ou grau de importância. Visto que toda condição do resultado é, igualmente, causa dele, fala-se em equivalência das condições. Não se pode, a priori, optar por uma condição em detrimento de outra, pois tudo o que concorre para o resultado é causa dele. Não é possível distinguir entre condições essenciais e não essenciais do resultado, sendo causa do mesmo todas as forças que cooperaram para sua produção, quaisquer que sejam.1 A questão de saber quando uma conduta funciona como causa do resultado se resolve pelo chamado método de eliminação hipotética, proposto em 1894, por Thyrén. Segundo ele, considera-se que uma conduta causou o resultado quando, suprimida mentalmente (imaginando que ela não ocorreu, no momento em que ocorreu e da forma 1. Cf. Souza, Artur de Brito Gueiros. Considerações sobre a teoria da imputação objetiva no direito penal brasileiro. In: Boletim Científico da Escola Superior do Ministério Público da União, n. 11, Brasília, abr.-jun, 2004, passim.
172
Capítulo XII | Causalidade e imputação objetiva
como ocorreu), desaparecia, igualmente, o resultado. Se, com a eliminação hipotética, o resultado desaparece ou se altera, tem-se que aquela condição é causa do resultado; há nexo de causalidade. Do contrário, não existirá nexo causal, excluindo-se, desde logo, tal conduta, sem necessidade de se investigar dolo ou culpa do agente. Não se ignora, por outro lado, que a noção de causalidade natural possui profundas raízes filosóficas, estreitamente relacionadas com a norma de retribuição do agente pelo fato.2 Sendo assim, o mérito até hoje indiscutível da teoria da equivalência dos antecedentes talvez tenha sido a de estabelecer um limite mínimo de responsabilidade penal nos crimes de resultado, isto é, sem a relação de causalidade natural, não há que falar em responsabilidade de um pretenso agente. Ademais, alguns autores consideram a eliminação hipotética um excelente método dogmático. Segundo Mezger, o critério de não poder prescindir in mente sem que desapareça o resultado, constitui um recurso infalível para determinar a conexão causal, contanto que se entenda o resultado em sua total forma concreto, quer dizer, com todas suas especiais modalidades.3 Todavia, apesar de elogiar a eliminação hipotética, Mezger salienta que, frente a esse mérito da teoria da equivalência aparece o defeito de que, mediante ela, se equiparam a conexão causal e a responsabilidade. Esta teoria crê, e isso é errôneo, que demonstrada a relação causal entre o ato de vontade do sujeito e o resultado, aparece como certa a responsabilidade penal do agente acerca do dito resultado.4 Além desse grave defeito – gerador de inúmeras confusões – há outro a ele vinculado: a problemática do regressum ad infinitum. Sobre esta questão, veja o seguinte exemplo: Exemplo: “A” vê a amada “B” sendo cortejada com uma rosa presenteada pelo rival “C”. Tomado de ciúme, “A” empolga um punhal e desfere um violento golpe contra o ventre de “C”, que vem a falecer pela forte hemorragia.
Fiando-nos, pura e simplesmente, pela teoria da equivalência, seremos forçados a concluir que os pais biológicos de “A” são “causa” da morte de “C”, pois, se não tivessem gerado “A”, este não teria, já adulto, portado a faca que perfurou o corpo de “C”. O fabricante do punhal também é “causa”, pois forjou o objeto que, após posto no comércio, foi adquirido por “A” e empregado no ataque ao rival “C”. A amada “B” também é causa do evento, por ter recebido a rosa que desencadeou o ciúme de “A”. 2. Neste sentido, Hans Kelsen: “É mais que provável que a lei da causalidade tenha surgido da norma da retribuição. É o resultado de uma transformação do princípio da imputação. Este processo de transformação começou na filosofia natural dos antigos gregos. É altamente significativo que a palavra grega para causa, αιτία, originalmente significasse o mesmo que culpa: ‘a causa é a culpa do efeito’, a causa é responsável pelo efeito e o efeito é imputado à causa da mesma forma que a pena o é ao ato ilícito. Uma das primeiras formulações da lei causal é o célebre fragmento de Heráclito: ‘Se o Sol não se mantiver no caminho prescrito (pré-estabelecido), as Erínias, acólitas da Justiça, corrigí-lo-ão’. Aqui a lei natural aparece ainda como lei jurídica: o Sol não deixa o caminho que lhe foi prefixado, pois, se o fizesse, os órgãos do Direito interviriam (procederiam) contra ele.” (Kelsen, Hans. Teoria pura do direito. Trad. João Baptista Machado. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1991, p. 95). 3. Mezger, Edmund. Op. cit., p. 229. 4. Idem, p. 233. 173
Curso de Direito Penal | Parte Geral
De outra banda, isto é, sob o enfoque investigativo, o Método de Thyrén não resiste a uma análise mais acurada. Isto porque, elimina-se mentalmente aquilo que, em princípio, se tem como idôneo para causar do resultado. É algo como se proceder a eliminação mental do golpe de punhal de “A” contra o ventre de “C”, para aferir se o resultado se alteraria, o que se revela extremamente óbvio. Com efeito, nenhuma pessoa razoável iria querer eliminar mentalmente a “rosa” dada a “B” pelo vitimado “C”, ao invés do punhal de “A”. Os defeitos da teoria da conditio sine qua non fizeram com que alguns autores – inclusive o próprio Mezger – passassem a refletir sobre outras teorias que aprimorassem a discussão, como visto a seguir.
12.3. A teoria da causalidade adequada
D
teorias que procuraram superar os defeitos da teoria da equivalência, merece destaque, no particular, a teoria da causalidade adequada ou da adequação, concebida, inicialmente, por Ludwig von Bar, em 1871, com o objetivo de excluir da causalidade jurídica as conexões naturais que não correspondiam ao que ele denominou de “regra da vida”.5 Posteriormente, Johannes von Kries, aprimorou esse pensamento por intermédio da seguinte ideia: causa é o antecedente adequado para produzir o resultado. A causa não é considerada em relação ao evento in concreto, mas, abstratamente, em relação a acontecimento do gênero daquele a que se refere o juízo da causalidade. O antecedente é causa quando se apresenta geralmente proporcionado ou adequado ao resultado, o que se constata por meio de um juízo de probabilidade ou possibilidade, conforme a observação dos “fatos da vida”.6 Em substância, pode-se dizer que a teoria da causalidade adequada distingue as consequências normais das consequências anormais e extraordinárias, excluindo, em relação a estas últimas, o nexo causal. Vê-se, assim, que a teoria da causalidade adequada procurou corrigir as limitações da equivalência das condições, sobrepondo-lhe um juízo de valor: “regra da vida”, “fato da vida”, ou seja, um juízo axiológico para além da constatada causalidade natural. De fato, por intermédio dessa instância normativa, elimina-se o problema do regressus ad infinitum, bem como – segundo Roxin –, a problemática dos cursos causais “extravagantes” ou “aventureiros”.7 Em outros termos, para esta corrente, considera-se causa a condição que for mais adequada ao resultado. Para tanto, utiliza-se do chamado juízo de prognose objetivo-posterior, ou seja, o juiz deve se colocar, objetivamente, na posição de alguém que estivesse de posse das informações disponíveis sobre determinado episódio. entre as diversas
5. Idem, p. 235. 6. Idem, p. 236. 7. Roxin, Claus. Direito Penal..., cit., p. 360. 174
Capítulo XII | Causalidade e imputação objetiva
O regresso ao infinito é obstado porque, objetivamente – isto é, sem adentrar no dolo ou culpa – não é razoável, ofende ao juízo da “regra da vida”, retroceder para além do fator adequado à causação do resultado. Não é razoável retroceder aos pais que geraram o futuro homicida; idem, para o fabricante de arma que objetiva, tão somente, explorar esse ramo da atividade econômica. Isso é um “fato da vida” que se sobrepõe à causalidade natural. Sobre os cursos causais extravagantes ou imprevisíveis, veja o caso seguinte: Exemplo: “A” convida “B” a empreender viagem em um avião que vem a explodir em consequência de um atentado terrorista. Analisando-se retrospectivamente o acontecido, caso não se dispusesse de qualquer informação sobre o possível atentado à bomba, não será possível considerar o “convite” de “A” como causa adequada da morte de “B”. No entanto, caso “A” soubesse que terroristas estariam planejando um ataque contra aquele avião, tem-se que qualquer pessoa inteligente que analisasse retrospectivamente o episódio, consideraria o convite de “A” como uma causa adequada da morte de “B” – conforme as “regras da vida” ou as “regras de bom-senso” ou, ainda, o juízo de um observador dos “fatos da vida”.
De certa forma, como visto a seguir, o § 1o do art. 13, do CP, acolheu a teoria da causalidade adequada, nas hipóteses de cursos causais extravagantes ou aventureiros. Atente-se, contudo, que diferentemente do que pensavam os seus autores originais, o princípio da causalidade adequada não é uma teoria da causalidade, mas, na verdade, uma teoria da imputação (atribuição jurídica). A proximidade terminológica entre causalidade e causalidade adequada confunde o reconhecimento de que se tratam, como dito por Roxin, de dois passos construídos sucessivamente. O decisivo, assim, não é a causalidade natural, mas, sim, o juízo do que é ou não é adequado imputar ao agente. Desse modo, Mezger substituiu a teoria da causalidade adequada pela teoria da relevância jurídica.8 O decisivo, para ela, não é a causalidade natural, mas, sim, o juízo do que é ou não é adequado imputar ao agente. Contra essa teoria observou-se que ela se baseia no conceito de possibilidade, onde existe não esta, mas a realidade de um evento. Por outro lado, introduz o critério da previsibilidade, antecipando a questão da responsabilidade. Outrossim, nem sempre seria razoável excluir a causalidade no caso de efeitos atípicos ou anormais, pois é possível que o criminoso pratique o crime em circunstâncias excepcionais, do ponto de vista dos meios e condições em que o evento sucede por conhecer os fatores causais que podem, no caso, excepcionalmente, conduzir ao resultado. Anote-se, por fim, que a introdução da ideia de criação de risco como juízo de adequação fez com que a teoria da causalidade adequada fundasse as bases da atual teoria da imputação objetiva. 8. Mezger, Edmund. Op. cit., p. 241 175
Curso de Direito Penal | Parte Geral
12.4. Da superveniência causal
C
adotada, no art. 13, caput, do CP, a teoria da equivalência, o legislador brasileiro, já reconhecendo suas limitações, tratou de cuidar, nos parágrafos do mesmo art. 13, das hipóteses irrespondíveis pela conditio sine qua non, qual seja, a exclusão nexo causal quando sobrevém concausa que se situe fora da linha normal de desdobramento do curso causal, de tal forma que é como se por si só tivesse causado o evento, bem assim da imputação do resultado na omissão. No tocante a cursos causais imprevisíveis, o § 1o, do art. 13, do CP, diz que a superveniência de causa relativamente independente rompe a imputação quando, por si só, produziu o resultado. Vê-se, portanto, o flagrante descompasso entre a regra do caput e do § 1o. Na primeira, adota-se a teoria da equivalência dos antecedentes e, na segunda, elege-se um critério para excluir a imputação onde, a rigor, continua a existir causalidade natural. Sobre o assunto, registre-se que os cursos causais concorrentes – também chamados de concausas – podem ser, cronologicamente, antecedentes, concomitantes ou supervenientes. Por outro ângulo, ou seja, com relação a sua origem, as concausas dividem-se em absoluta ou relativamente independentes da causa original. Sendo assim, no tocante ao processo físico de sucessão de causas naturais, tem-se que somente as concausas absolutamente independentes rompem o nexo de causalidade. As concausas relativamente independentes não rompem porque, se de um lado ela é relativamente independente, do outro, ela é relativamente dependente da causa originária. Elas estão, assim, parcialmente atreladas aos fatores naturais originais. Conjugando-se o fator cronológico com o fator origem, a teoria da concausalidade compreende o seguinte esquema: onquanto tenha sido
A) Concausa absolutamente independente preexistente Exemplo: “A” desfecha um tiro de revólver em “B”, que vem a falecer pouco depois, não em consequência dos ferimentos recebidos, mas porque antes ingerira veneno. B) Concausa absolutamente independente concomitante Exemplo: “A” fere “B” no mesmo momento em que este vem a falecer exclusivamente por força de um colapso cardíaco. C) Concausa absolutamente independente superveniente Exemplo: “A” ministra veneno na alimentação de “B” que, quando está tomando a refeição, vem a falecer em consequência de um desabamento. 176
Capítulo XII | Causalidade e imputação objetiva
D) Concausa relativamente independente preexistente Exemplo: “A” golpeia “B”, hemofílico, que vem a falecer em consequência dos ferimentos, a par da contribuição de sua particular condição fisiológica. E) Concausa relativamente independente concomitante Exemplo: “A” desfecha um tiro em “B”, no exato instante em que este está sofrendo um colapso cardíaco, provando-se que a lesão contribui para a eclosão do êxito letal. F) Concausa relativamente independente superveniente Exemplo: “A”, conduzindo um ônibus por uma avenida da cidade, perde a direção e colide com um poste que sustenta fios elétricos. O passageiro “B”, que saíra ileso do ônibus, é atingido por um dos fios que se desprendera do poste, provocando-lhe a morte em consequência de forte descarga elétrica.
Cumpre ressaltar que, diferentemente do sustentado por parte da doutrina nacional, a compreensão de todas as hipóteses anteriores envolve o juízo de causalidade natural. Não se adentrou, ainda, no juízo de atribuição jurídica do resultado. Esta última se inicia quando pretende-se compreender o sentido da expressão “por si só”, contida no art. 13, § 1o, do CP. Sobre o assunto, Damásio de Jesus considera que tal expressão consiste em se considerar autônoma a causa superveniente quanto esta não venha a se encontrar na linha de desdobramento físico da conduta anterior. Segundo ele, a causa superveniente, que por si só produz o resultado, é a que forma um novo processo causal, que se substitui ao primeiro, não estando em posição de homogeneidade com o comportamento do agente.9 Cezar Bitencourt, por sua vez, interpreta aquela expressão considerando que quando alguém coloca em andamento determinado processo causal, pode ocorrer que sobrevenha, no decurso deste, uma nova condição – produzida por uma atividade humana ou por um acontecer natural – que, em vez de se inserir no fulcro aberto pela conduta anterior, provoca um “novo nexo de causalidade”.10 Em que pesem os argumentos anteriormente expostos, é forçoso reconhecer que, sob o aspecto da causalidade natural, não há, de fato, um novo processo fora da linha de desdobramento do anterior, tampouco a abertura de um novo fulcro distinto do antecedente. Física ou naturalmente, o por si só não existe.11
9. Jesus, Damásio E. de. Direito Penal. Vol. 1. 30. ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 258. 10. Bitencourt, Cesar Roberto. Op. cit., p. 262. 11. Somente na ficção é possível encontrar exemplos do “por si só” natural, como na estória do Barão de Münchausen, que arrancou-se da lama puxando os próprios cabelos. 177
Curso de Direito Penal | Parte Geral
Deve-se, portanto, raciocinar a partir da teoria da causalidade adequada, para se constatar que se trata, na verdade, de um processo de não atribuição jurídica do resultado superveniente quando imprevisível – aventureiro – ao comportamento inicial do autor. Em outros termos, não se rompe a causalidade natural, mas, sim, a causalidade jurídica. Como todo processo de adequação jurídica (normativa), a aplicação da regra do § o 1 , do art. 13, do CP, dependerá de um juízo de valor por parte do intérprete. Dito de outra forma, a noção do por si só convida à compreensão do que deve ou não deve ser considerado como imprevisível, consoante – como dito anteriormente – o conhecimento dos fatos da vida, ou, se se preferir, a ideia de bom-senso. Um bom exemplo está na discussão da morte em razão de infecção hospitalar. Exemplo: “A” fere intencionalmente o rival “B”, sendo este socorrido e levado até um hospital. Alguns dias após a bem-sucedida cirurgia, enquanto se recupera em um leito hospitalar, “B” é infeccionado por uma poderosa bactéria, vindo a falecer.
Sob o aspecto da causalidade natural – isto é, pela linha de desdobramento físico ou pelo fulcro aberto – há relação entre a morte por infecção hospitalar de “B” e a agressão inicial de “A”? Sem dúvida que sim. Se não fosse a agressão de “A”, “B” não seria hospitalizado; se não fosse hospitalizado, não contrairia a altamente tóxica bactéria hospitalar; e, por fim, sem a contaminação pela bactéria, ele não teria morrido naquelas circunstâncias de tempo, lugar e forma. Tem-se, portanto, que no caso anteriormente ilustrado, deve-se perquirir o por si só, ou seja, se a morte por infecção hospitalar de “B” não deve ser atribuída à inicial agressão de “A”, respondendo, este último, somente pelo delito de lesões corporais ou por tentativa de homicídio, conforme o seu dolo. E essa avaliação se dá por meio de um processo de causalidade adequada: é previsível, no momento da agressão, que o agredido possa vir a falecer por infecção hospitalar? Pelos fatos da vida, quais as chances de uma pessoa morrer de infecção nos hospitais brasileiros? Forçosamente, a resposta – neste e em outros casos situados na chamada zona cinzenta – irá variar consoante a avaliação de cada intérprete. Caso se entenda que sim, ou seja, que é previsível aquela infecção hospitalar, será objetivamente imputado ao autor da agressão originária a realização do tipo penal das lesões corporais seguida de morte ou homicídio consumado (conforme o tipo subjetivo, isto é, o seu dolo). Ao revés, caso o intérprete considere imprevisível ab initio a morte por uma bactéria hospitalar altamente tóxica e resistente, restará caracterizada a incidência da regra do art. 13, § 1o, do CP, ou seja, esta última, por intermédio de um juízo de atribuição normativa, por si só causou o resultado morte, respondendo, o autor, somente por lesões corporais ou tentativa de homicídio (conforme o dolo).
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Capítulo XII | Causalidade e imputação objetiva
12.5. Da causalidade adequada para a teoria da imputação objetiva
E
a existência das referidas teorias a respeito da causalidade, surgiram outras, segundo as quais se pretende reduzir o alcance considerado, por vezes, excessivo da equivalência das condições. São as chamadas teorias da imputação objetiva, que tiveram a sua origem a partir do trabalho de Richard Honig, em 1930. Dentre as teorias da imputação objetiva, por opção didática, far-se-á menção a duas delas: a teoria do risco (Roxin) e a teoria dos papéis (Jakobs). Segundo o sistema racional-teleológico (ou funcional) de Claus Roxin, parte-se da premissa de que não se pode vincular a realidades ontológicas prévias – próprias do finalismo –, mas, única e exclusivamente, às finalidades político-criminais do Direito Penal. Sobre esta base, aquele autor vincula as categorias jurídico-penais às concepções contemporâneas dos fins preventivos da pena. Nesse contexto, uma peça central da construção dogmática de Roxin é a teoria da imputação ao tipo objetivo.12 Consoante as construções normativas anteriores, o conteúdo do tipo objetivo dos crimes materiais esgotava-se, em geral, na relação de causalidade entre ação e resultado, muito embora – conforme anteriormente assinalado – houvesse aportes dogmáticos, a partir do neokantismo, no sentido de um juízo de valor para além da causalidade natural. De todo modo, partindo-se da finalidade político-criminal de evitação, tanto quanto possível, de condutas que exponham intoleravelmente ao risco de lesão ou à lesão efetiva os bens jurídicos fundamentais, aquele autor desenvolveu a teoria da imputação objetiva. m que pese
Exemplo: “A”, no começo de uma tormenta, convence o tio “B” a realizar um passeio no bosque, com a esperança de que um raio o mate, o que, de fato, ocorre.
A atribuição de homicídio doloso de “B” em razão da conduta do sobrinho “A” é de todo absurda. No entanto, consoante a teoria da equivalência das condições, não se 12. Roxin, Claus. Derecho Penal..., cit., passim. Segundo Bernd Schünemann, a teoria da imputação objetiva corresponde a uma tradição da cultura alemã que remontaria a Pufendorf e a Hegel. Deste modo, a origem da teoria retroage à chamada “teoria da imputação” do filósofo do direito natural Samuel Pufendorf, pois a palavra alemã Zurechnung seria, na realidade, a tradução da palavra latina imputatio. No entanto, como antecessora direta da atual teoria da imputação objetiva figuraria a filosofia do direito de Hegel. O objetivo do conceito de ação iniciada em Hegel e desenvolvida pela escola hegeliana do século XIX era imputar ao sujeito, da multiplicidade de cursos causais, só aqueles que pudessem ser considerados como “obra sua”, quer dizer, “como a conformação do mundo por meio do sujeito”. Em fins do século XIX, em razão da projeção alcançada pelas correntes causalistas que, no Direito Penal, tiveram em von Liszt e Beling seus maiores expoentes, os fundamentos teóricos da imputação foram deslocados para um plano secundário. No entanto, com a “crise científica” do conceito de causalidade, a partir da década de 1930, foram retomados os estudos científicos da imputatio – tanto no Direito Civil, por intermédio Karl Larenz, um autor de orientação neo-hegeliana, como no Direito Penal, por meio do neokantiano Richard Honig, no famoso livro em homenagem a Frank. Nesta obra, Honig recorreu à “perseguibilidade objetiva de uma finalidade” (objektive Zweckhaftigkeit) para eliminar cursos causais guiados pela casualidade, destacando, como critério decisivo, um juízo de imputação autônomo, absolutamente independente do juízo natural: “imputável seria só aquele resultado que pudesse ser considerado como que tenha ocorrido servindo aos fins”. (cf. Schünemann, Bernd. Consideraciones sobre la teoría de la imputación objetiva. In: Temas actuales y permanentes del Derecho penal después del milenio. Trad. Mariana Sacher. Madrid: Tecnos, 2002, passim). 179
Curso de Direito Penal | Parte Geral
poderia descartar a causalidade entre o convite de “A” e a morte do tio “B” por um raio vindo dos céus. Tampouco soluciona satisfatoriamente a teoria finalista da ação, tendo em vista que o sobrinho agiu, justamente, com o dolo de matar seu tio. Nesse ponto, Welzel parece trair a concepção natural de suas categorias lógico-objetivas, estabelecendo uma valorativa ou artificial distinção entre desejo (esperança) e vontade (poder de influência real no resultado).13 Sendo assim, a solução jurídica do caso da tormenta faz-se possível pela teoria da imputação objetiva: somente se pode imputar ao tipo objetivo de homicídio o resultado causado pelo sobrinho “A” se sua conduta criou um risco não permitido o bem jurídico vida do tio “B”. Efetivamente, por mais insólito (ou mal-intencionado) que possa ter sido, o convencimento a alguém ir passear no bosque, num dia chuvoso, não cria um perigo para o juridicamente relevante de matar.14 Conforme visto, segundo a teoria da imputação objetiva, além dos requisitos conduta, resultado e nexo de causalidade natural entre conduta e resultado, o preenchimento do tipo objetivo requer seja ainda verificado: (1) se a realização da conduta criou um risco não permitido de lesão ao bem jurídico; e (2) se esse risco não permitido se materializou no resultado. A partir de tais premissas, Claus Roxin desenvolve grupos de casos de exclusão da imputação ao tipo objetivo, subdividos em situações de criação de risco não permitido e realização de risco não permitido. Vejamos alguns exemplos. A) Exclusão da imputação no caso de diminuição de risco
Segundo esse grupo de casos, faltaria a criação de risco e, por conseguinte, faz-se impossível a imputação do resultado ao autor, em situações nas quais este “modifica um curso causal” de tal maneira que diminui o perigo que já existia para a vítima e, portanto, melhora a situação do objeto da ação.15 Exemplo: “A” percebe que uma pedra rola perigosamente na direção da cabeça de “B” e, por não poder impedir o choque, faz com que a mesma seja desviada para uma parte menos vital do corpo de “B”.
Neste exemplo de Roxin, embora exista causalidade na lesão sofrida por “B” em virtude da conduta de “A”, deve ser excluída a imputação do resultado ao tipo de lesões corporais, porque seria absurdo proibir ações que não pioram, mas, sim, que melhoram o estado do bem jurídico protegido. Pela doutrina tradicional, este exemplo seria solucionado pela excludente de antijuridicidade do estado de necessidade, ao passo que Roxin considera mais adequado excluir, desde logo, a imputação ao tipo objetivo.16
13. 14. 15. 16. 18 0
Cf. Welzel, Hans. Derecho Penal..., cit., p. 79. Roxin, Claus. Op. cit., p. 363. Idem, p. 365. Idem, p. 366.
Capítulo XII | Causalidade e imputação objetiva
B) Exclusão da imputação ante a falta da criação de perigo
Segundo doutrinado por Roxin, deve-se igualmente rechaçar a imputação ao tipo objetivo quando o autor certamente não diminuiu o risco de lesão de um bem jurídico, mas, tampouco o elevou de modo juridicamente considerável. É o que ocorre no “caso da tormenta”, anteriormente apresentado, bem como quaisquer outras incitações à realização de atividades normais e juridicamente irrelevantes, como passear por uma grande cidade, tomar banho de mar, praticar montanhismo etc.17 Exemplo: “A” verte um balde d’água nas águas turbulentas que estão prestes a romper uma represa, acarretando, assim, o seu rompimento.
Neste exemplo, certamente há causalidade entre a conduta de “A” e o rompimento da represa, mas essa conduta não pode ser imputada ao tipo de causar inundação (art. 254, do CP), porque já havia um perigo preexistente de rompimento da represa, não tendo o agente, com o balde d’água incrementado, de modo significativo, aquele perigo.18 Em sentido inverso, deve-se imputar o resultado se a ação inicial aumentou o perigo no curso causal subsequente, de modo juridicamente relevante, sendo, portanto, o resultado, uma realização adequada do perigo criado. Como exemplo disto, Roxin alude ao caso supra, qual seja, de “A” que feriu intencionalmente “B”, sendo este socorrido, mas vindo a óbito por infecção hospitalar. Segundo aquele autor, na morte por infecção também se realiza um perigo criado pelos ferimentos e, dessa forma, o resultado é obra de quem provocou o ferimento.19 C) Exclusão da imputação fora do âmbito de proteção da norma
Cuidam-se de casos em que o risco não permitido aumenta, efetivamente, o perigo de um resultado. No entanto, apesar de produzido, não há sentido na imputação do resultado, pois o fim do preceito normativo não lhe abrange. Exemplo: “A”, mãe de “B”, sofre infarto mortal ao receber a notícia de que seu filho foi morto atropelado pelo automóvel imprudentemente conduzido por “C”.
Como exposto por Gimbernat Ordeig, neste e em outros casos de “morte por susto”, a morte não pode ser atribuída objetivamente ao autor do fato precedente porque, com base no princípio do fim de proteção da norma, esta última não alcança experiências dramáticas sentidas por terceira pessoa vinculada afetivamente à vítima originária.20 Nesse sentido, Roxin assinala que a finalidade de proteção da proibição legal de 17. Idem, p. 366. 18. Roxin, Claus. Derecho Penal..., cit., p. 374. 19. Gimbernat Ordeig, Enrique. F in de protección de la norma y imputación objetiva. In: Estudos em Homenagem ao Prof. Dr. Jorge de Figueiredo Dias. Vol. II. Manuel da Costa Andrade et allii (org.). Coimbra: Coimbra Editora, p. 496. 20. Roxin, Claus. Derecho Penal..., cit., p. 1012 181
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matar ou lesionar não tem por escopo preservar terceiras pessoas (que não o afetado) das repercussões de comoções psíquicas.21 Em síntese, pode-se resumir a estrutura desenvolvida por Roxin da seguinte maneira: após a verificação da causalidade, devem ser examinados os critérios de imputação objetiva e aí, então, aferir se determinado resultado pode ser atribuído a alguém. Como já antecipado, os requisitos seriam: (1) Diminuição do risco – para que haja crime, tem que haver aumento do risco e, se houver diminuição, não deverá haver imputação do resultado; (2) Criação de um risco juridicamente relevante – o risco a ser criado deve ter alguma importância e o resultado a ser atingido deve depender exclusivamente da sua vontade; e (3) Esfera de proteção da norma – o incremento do risco mencionado deve se encontrar dentro do alcance protetivo da norma.
12.6. A Teoria dos Papéis (Jakobs)
G
que os critérios da imputação objetiva apresentam duas raízes. De um lado, a finalidade própria do Direito Penal de assegurar a segurança das expectativas sociais. É desta finalidade que deriva que o comportamento socialmente adequado não pode ser considerado como injusto, mesmo que gere efeitos danosos.22 Jakobs considera que o comportamento humano está vinculado a determinados papéis sociais e adota uma tese em que desconsidera a causalidade. O que faz é mencionar quatro critérios de imputação, que são consequência automática da ideia de adequação social: (1) Risco permitido – cada indivíduo se comporta conforme o seu papel em sociedade e, se o fizer, mesmo que crie algum risco, não poderá ser incriminado; (2) Princípio da confiança – as pessoas, em sociedade, devem confiar que as outras cumprirão os seus papéis sociais e quem agir considerando que os demais agirão conforme seus papéis, não poderá haver imputação; (3) Proibição de regresso – se cada indivíduo agir conforme o seu papel, não poderá haver imputação; e (4) Competência ou capacidade da vítima – devem ser levados em conta o consentimento do ofendido e as ações a próprio risco. Além disso, as regras de imputação servem como forma de regulação predominante no Direito Penal, a dos crimes de resultado.23 ünther Jakobs considera
12.7 A CAUSALIDADE DA OMISSÃO
S
obre a causalidade
na omissão, bem como a regra do art. 13, § 2o, do CP, vide o
Capítulo XV.
21. Roxin, Claus. Derecho Penal..., cit., p. 1012. 22. Jakobs, Günther. Derecho penal: Parte General. Fundamentos y teoría de la imputación. 2. ed, Madrid: Marcial Pons, 1997, p. 225. 23. Idem, p. 225. 182
título
capítulo
III
teoria geral do crime
XIII
TEORIA DO TIPO DOLOSO 13.1. Considerações gerais
A
empregada, inicialmente, no Direito Penal e, posteriormente, em outros ramos do Direito –, significa o conjunto dos elementos objetivos e subjetivos contidos na norma penal incriminadora. Para que uma determinada conduta humana tenha relevância penal, necessário se faz que os caracteres do fato concreto se amoldem às elementares do tipo penal, ao modelo abstrato contido na lei penal; é necessário, em suma, que seja típica. Não basta, portanto, que a conduta seja desvaliosa ou antijurídica, mas, sim, que seja típica. Segundo Mezger, nem toda ação antijurídica é punível; para que isso ocorra, é preciso que o Direito Penal a tenha descrito previamente em um tipo penal.1 Conforme a clássica lição de Beling passou-se o tempo no qual toda ação antijurídica e culpável desencadeava, sem maiores requisitos, uma sanção penal.2 pal avra tipo –
13.2. Funções da teoria do tipo
O
na teoria do crime, três funções primordiais: função sistemática, função dogmática e função político-criminal.3 tipo penal desempenha ,
1. Mezger, Edmund. Op. cit., p. 364. 2. Apud Mezger, Edmund. Op. cit., p. 364. 3. Cf. Roxin, Claus. Op. cit., p. 277. 183
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A função sistemática significa que o tipo abarca o conjunto dos elementos que possibilitam informar se e qual delito ocorreu no caso concreto. Isso porque, antes da noção de tipo ser concebida, o delito era entendido como a ação antijurídica, culpável e ameaçada com pena. A expressão “ameaçada com pena”, todavia, passou a ser considerada como vaga ou lacunosa. Frente a este estado de coisas, a categoria tipo oferecia a possibilidade de assinalar uma firme posição sistemática a numerosos elementos anteriormente sem um lugar fixo na teoria geral do delito, como as teorias do resultado da ação, da causalidade, do objeto do fato, do conteúdo dos delitos de omissão etc.4 Prosseguindo nos seus ensinamentos, Roxin esclarece que o significado político-criminal do tipo radica em sua função de garantia com assento constitucional (cf. art. 5o, XXXIX, da CF/1988), sendo, portanto, a tradução dogmática do postulado da reserva legal – nullum crimen sine lege. Segundo ele, quando se diz que o Direito Penal é um Direito Penal do tipo e não da atitude interna, ou que é o Direito Penal do fato e não do autor, por trás dessas expressões emblemáticas se encontra, sempre, o recurso ao significado político-criminal do tipo.5 Por fim, a função dogmática do tipo, e desvinculada da sua função sistemática geral, consiste em descrever os elementos cujo desconhecimento exclui-se o dolo. A propósito, o art. 20, caput, do CP, diz que o erro sobre elemento constitutivo do tipo legal de crime exclui o dolo. Ora, se o erro sobre os elementos (objetivos) do tipo exclui o dolo, o conhecimento da presença de tais elementos na conduta efetuada pelo agente é o próprio dolo. Isso permite compreender não só a categoria do erro de tipo (excludente do dolo), como, igualmente, do erro de proibição (que poderá excluir a culpabilidade), consistindo, em suma, a teoria do erro jurídico-penal, um dos fundamentos básicos da dogmática jurídico-penal.6
13.3. Tipo penal e bem jurídico
A
da evolução dogmática do tipo penal, é relevante registrar a estreita relação entre a teoria do tipo penal e a teoria do bem jurídico. Com efeito, todo tipo penal tutela um ou mais bens jurídicos. Não há – ou não deve haver – tipo penal sem um bem jurídico a ele conectado. Na verdade, em que pese a polêmica atualmente existente no seio da dogmática penal, é majoritariamente negada a possibilidade de existirem tipos penais desconectados de um bem jurídico. Consoante o magistério de Jescheck, o bem jurídico constitui a base reconhecida da estrutura e da interpretação dos tipos. O bem jurídico é, portanto, o conceito central do tipo, por intermédio do qual hão de ser extraídos todos os elementos objetivos e ntes da análise
4. Idem, p. 277. 5. Idem, p. 277. 6. Idem, p. 278. 18 4
Capítulo XIII | Teoria do tipo doloso
subjetivos, sendo, igualmente, um importante instrumento de sua interpretação.7 Ainda segundo Jescheck, além de base fundante da estrutura dos tipos, o bem jurídico é, ademais, o decisivo critério de classificação para a agrupação dos tipos. Segundo ele, toda a ordenação dos preceitos penais na Parte Especial responde à ideia básica de que mediante a agrupação e gradação dos bens jurídicos deve-se obter uma classificação e uma ordenação hierárquica dos valores protegidos.8
13.4. Evolução do tipo como elemento do delito
C
o tipo como elemento do conceito analítico do crime, com o objetivo de conferir certeza à figura jurídico-penal sob consideração, haja vista a ausência de precisão da noção de conduta ameaçada com pena. A adequação ao tipo, ou seja, ao modelo abstrato previsto na lei penal, passou a integrar, assim, os requisitos dogmáticos para a imposição de pena. No entanto, um longo caminho foi percorrido pela teoria do tipo penal, a começar pelos primeiros aportes desenvolvidos por Beling. omo visto, concebeu-se
A) Tipo objetivado e livre de valor
Beling partilhava da concepção causalista-natural de delito desenvolvida em conjunto por von Liszt. Dessa maneira, o tipo de Beling caracteriza-se por duas notas: objetivo e livre de valor (avalorado). A objetividade – segundo Roxin – significava a exclusão do tipo de todos os processos subjetivos, intra-anímicos, que são assinalados em sua totalidade pela culpabilidade. Já se aludiu a ele como uma das características principais do sistema clássico ou modelo Liszt-Beling.9 Por caráter avalorado, deve-se entender que o tipo não conteria nenhuma valoração legal que pudesse aludir à antijuridicidade da atuação típica. Para Beling, o tipo estaria livre de todos os momentos da antijuridicidade, pois no mesmo não é reconhecível algum significado jurídico. Dito de outra forma, só a comprovação de que se realizou um tipo por si mesmo não acarretaria nada. As investigações sobre a tipicidade se manteriam em um terreno estritamente neutro. Conforme lecionado por Roxin, o tipo era entendido como um puro objeto de valoração, enquanto que a valoração desse objetivo só se produziria no marco da categoria da antijuridicidade.10 B) O descobrimento do tipo subjetivo
Por conta das tendências neokantistas ou teleológicas, a noção de tipo objetivado e avalorado de Beling – isto é, do tipo puramente descritivo, descrevendo uma conduta criminosa como se estivesse descrevendo o funcionamento de uma máquina ou a planta de um imóvel – foi seriamente questionada. 7. Jescheck, Hans-Heinrich; Weigend, Thomas. Op. cit., p. 234. 8. Idem, p. 234. 9. Roxin, Claus. Op. cit., p. 277. 10. Roxin, Claus. Op. cit., p. 279. 185
Curso de Direito Penal | Parte Geral
Max Ernst Mayer e Edmund Mezger, dentre outros, evidenciaram que, em muitos casos concretos, não apenas a culpabilidade, mas a própria tipicidade do fato dependia da aferição da vontade do autor. Ou, em outros termos, da análise de elementos subjetivos especiais. Em suma, saber-se de qual delito se trata tipicamente, exigia, não raro, análise de elementos intra-anímicos. Exemplos: “A”, subitamente, coloca a mão nos seios da desconhecida “B”, em plena via pública. O comportamento de “A” pode se constituir no tipo de um delito sexual, caso tenha agido para satisfazer um impulso libidinoso, ou um gesto de solidariedade, caso tenha atuado para capturar um escorpião sob a blusa de “B”. “A” subtrai a bicicleta de “B”, sendo interceptado depois de alguns instantes. “A” pode ter subtraído a coisa com o especial fim de tê-la em definitivo (tipo de furto) ou, tão somente, com o especial fim de dar uma volta no quarteirão e prontamente restituí-la a “B” (atípico furto de uso).
O chamado elemento subjetivo do tipo ou do injusto, que não se confunde com o dolo (conforme veremos a seguir), deve ser analisado já no tipo, quando a figura penal exigir especial tendência ou finalidade, sem a qual não haverá a tipicidade ou relevância do fato concreto.11 Isso determinou a ruptura da harmonia interna do sistema de Beling (injusto objetivo e culpabilidade subjetiva), sendo certo que a reformulação que ele tentou empreender não recebeu grande acolhida na dogmática já então fortemente influenciada pelo neokantismo e seu conhecimento orientado a valores e a ideias. C) O caráter valorativo do tipo
A concepção de Beling relativa ao tipo avalorado foi, igualmente, objeto de críticas pela evolução dogmática subsequente. Com efeito, Mayer sustentou – com acerto – que, ao lado de elementos puramente descritivos, alguns tipos penais contemplam elementos normativos, isto é, expressões que exigem do intérprete um juízo de valor para verificar se o fato concreto se amolda ou não ao contido no tipo. Exemplo: O art. 247, do CP, tipifica o crime de abandono material, exigindo, dentre outras elementares, que o menor de dezoito anos frequente casa “mal-afamada” ou conviva com pessoa de “má vida”. As expressões típicas casa “mal-afamada” e pessoa de “má vida” exigem uma valoração por parte do intérprete.
A descoberta dos elementos normativos do tipo contribuiu para a noção valorada que o processo de tipicidade acarreta. Ou seja, quando a conduta concreta se amolda ao 11. Para Roxin, a teoria dos elementos subjetivos do tipo se impôs na dogmática penal já em 1930. Segundo ele, alguns anos depois, a teoria da ação final incluiu na parte subjetiva do tipo o dolo dirigido à realização das circunstâncias objetivas do fato. É certo – afirma Roxin – que tal teoria se viu obrigada a isso por conta da sua concepção de ação, porém a proximidade dos elementos subjetivos do tipo ao dolo típico em seu conjunto lhe deu um considerável impulso. (Roxin, Claus. Op. cit., p. 280). 186
Capítulo XIII | Teoria do tipo doloso
tipo penal – composto de elementos descritivos e, em alguns casos, também normativos –, já representa um indício sobre a sua antijuridicidade. Embora sejam independentes, tipo e antijuricidade guardam uma relação de proximidade, como a existente entre fumaça e fogo: a fumaça não é o fogo nem contém o fogo, porém permite extrair a conclusão de que existe fogo salvo prova em contrário.12 Dessa maneira, a noção dogmática dos elementos normativos do tipo se impôs rapidamente, pondo de manifesto que a quantidade de tais elementos era muito maior do que inicialmente se havia suposto. Para Roxin, essa evolução chegou ao ponto culminante com os aportes de Erik Wolf, que argumentou que alguns elementos presumidamente descritivos, como a elementar “homem” (ser humano), seriam, na verdade, normativos em seus âmbitos fronteiriços (começo da vida humana ou o momento jurídico da morte). Ou seja, requereriam, igualmente, uma valoração judicial orientada à antijuridicidade.13 Constata-se, portanto, que a tipicidade penal é um indício – ou a ratio cognoscendi – da antijuridicidade, indício este que poderá ser confirmado caso não exista, no fato concreto, uma situação justificante (excludente da antijuridicidade). Exemplo: “A” desfere uma punhalada em “B”, que morre em razão da lesão. A conduta praticada por “A” se amolda ao tipo descrito no art. 121, do CP. Portanto, surge a presunção de que tal conduta é também antijurídica. Verifica-se, porém, que “A” desferiu o golpe fatal para se defender de uma injusta e violenta agressão de “B”. Portanto, o indício da antijuridicidade daquele fato típico desfez-se diante da justificante da legítima defesa. D) Mezger e o tipo como ratio essendi da antijuridicidade
A aproximação entre tipo e antijuricidade teve em Mezger seu ponto mais extremo. Segundo ele, o ato de criação legislativa do tipo contém diretamente a declaração de antijuridicidade, a fundamentação do injusto como injusto especialmente tipificado. O legislador cria ao formar o tipo a antijuridicidade específica: a tipicidade da ação não é, de maneira alguma, mera ratio cognoscendi, mas, sim, autêntica ratio essendi da antijuridicidade; converte a ação em ação antijurídica, apesar de não por si só, mas em união com a falta de causas concretas de exclusão do injusto.14 E) Teoria dos elementos negativos do tipo
A problemática da unificação entre as categorias tipo e antijuridicidade envolve a aceitação ou não da chamada teoria dos elementos negativos do tipo. Desenvolvida por Merkel, esta teoria sustenta que as causas de justificação (causas de exclusão da 12. Mayer, Max Ernst. Op. cit., p. 12. 13. Idem, p. 282. 14. Mezger, Edmund. Op. cit., p. 337. 187
Curso de Direito Penal | Parte Geral
antijuridicidade) acarretam a própria atipicidade do fato, na medida em que não haveria distinção alguma entre esses dois momentos da estrutura do delito. Conforme exposto por Roxin, por intermédio daquela concepção, as causas de justificação foram retiradas da Parte Especial (do Código Penal) e colocadas na Parte Geral, só por razões de técnica legislativa – para não ter que repeti-las em cada preceito penal –, porém materialmente isso não alterou o fato de que há necessidade de incluí-las nos tipos concretos segundo seu sentido.15 Desta maneira, dever-se-ia ler assim o art. 121, do CP: “matar alguém, salvo em legítima defesa, em estado de necessidade, no estrito cumprimento do dever legal ou no exercício regular de um direito”. Como se percebe, essa teoria conclui que as causas de justificação são elementos negativos do tipo, pois sua presença positiva no caso concreto acarretará a atipicidade da conduta; seriam “contra-tipos” excludentes do injusto, transformando, pois, a morte dada a outrem em legítima defesa num indiferente penal (fato atípico), tão indiferente quanto a morte dada a um inseto. F) O Finalismo
Conforme mencionado, o Finalismo acresceu ao elemento subjetivo do tipo o dolo, retirando-o da culpabilidade. Dessa forma, embora exista inequívoca proximidade entre tipo e antijuridicidade, faz-se necessário não fundir esses dois momentos, não só por clareza de análise, mas, também, por conta das consequências do preenchimento de uma e de outra categoria delitiva. A tipicidade do fato doloso ou culposo acarreta a presunção da sua antijuridicidade. É possível, porém, que esta última não se confirme, se presente alguma das causas justificantes do art. 23. Nesse caso, apesar de típico – i.e., em que pese o fato ter relevância penal – não será ilícito. É possível, ao revés, que exista antijuridicidade sem existir tipicidade. Na verdade, isso é mais do que possível, é o que de ordinário acontece. Basta pensar nos inúmeros fatos ilícitos na órbita do Direito Civil, do Direito Administrativo, da moral etc., que são indiferentes penais, pois não lhes ter sido cunhado um tipo penal. A proximidade entre essas duas categorias fica evidenciada, por fim, em alguns tipos penais para os quais é insensato imaginar uma causa justificante, como ocorre, por exemplo, com o tipo penal do estupro. Conclui-se, portanto, no sentido de que, apesar de próximos e, mesmo, relacionados (como os elementos normativos presentes em alguns tipos, tais como “sem justa causa”, “indevidamente” etc.), tipo e antijuridicidade são categorias autônomas dentro da Teoria do Delito, sendo certo, porém, que o preenchimento daquela induz a presunção de antijuridicidade da conduta do agente.
15. Roxin, Claus. Op. cit., p. 283-284. 188
Capítulo XIII | Teoria do tipo doloso
G) O Funcionalismo
O tipo penal, que para o modelo causal era puramente objetivo; para o neokantismo teve agregado os elementos normativos e subjetivos do injusto; e, para o finalismo, teve o dolo adicionado, iniciou uma nova fase evolutiva com o surgimento do funcionalismo penal. Com efeito, consoante exposto no Capítulo X, uma das contribuições do sistema racional-teleológico desenvolvido por Claus Roxin foi, justamente, o de vincular o tipo objetivo ao preenchimento do requisito da realização de um perigo não permitido dentro do fim de proteção da norma e que esse perigo materialize-se no resultado desvalioso.
13.5. Tipicidade penal
T
conformidade do fato praticado pelo agente com a moldura abstratamente descrita na lei penal. É a correspondência entre o fato praticado pelo agente e a descrição de cada espécie de infração contida na lei penal incriminadora. Desse modo, o juízo de tipicidade consiste na operação de conexão (subsunção) entre a infinita variedade de fatos da vida real e o modelo típico descrito na lei. Se não há a adequação: a conduta será atípica (Ex.: não tipifica o crime do art. 342, do CP, a conduta do réu que “faz afirmação falsa em juízo”). O processo de adequação típica: pode se dar de duas formas: ipicidade é a
A) Adequação típica imediata
A adequação típica imediata ou direta verifica-se em circunstância em que o fato concreto se subsume ao modelo descrito no tipo penal – vale dizer, na norma penal incriminadora –, sem necessidade do concurso de qualquer outra norma. B) Adequação típica mediata
A adequação mediata ou indireta se refere a uma conduta que, embora não se amolde imediatamente a um crime descrito na lei penal, é tida como típica em razão da incidência de uma norma, chamada de norma de extensão, que amplia a abrangência da figura típica, permitindo, assim, a tipicidade. No Código Penal há duas normas de extensão: a primeira no art. 14, II, do CP (tentativa), e, a segunda, no art. 29, do CP (concurso de agentes). Exemplo: Não há um tipo penal descrevendo a conduta de “tentar matar alguém”, só “matar alguém”. A conduta daquele que, no caso concreto, não consegue a morte dolosa do adversário seria atípica, se não houvesse a regra do art. 14, II, CP. Não há, igualmente, um tipo penal descrevendo a conduta de “instigar ou auxiliar materialmente o autor a matar alguém”. A conduta do partícipe seria atípica, se não houvesse a norma de extensão do art. 29, do CP.
189
Curso de Direito Penal | Parte Geral
13.6. Classificações do tipo penal
E
reconhecem-se as seguintes classificações do tipo penal: tipo fechado ou aberto; tipo básico ou derivado; tipo simples ou de conduta variada. m linhas gerais,
A) Tipo fechado e tipo aberto
No tipo fechado, a conduta proibida pode ser perfeitamente individualizada, sem que haja necessidade de se recorrer a outros elementos além daqueles fornecidos pela própria lei no tipo penal. No tipo aberto, por sua vez, não existe por completo a descrição da conduta ilícita, exigindo, pois, que o juiz o complemente, para o que deverá avaliar as circunstâncias do caso concreto que estão fora do tipo. Exemplo: No art. 121, § 3o, do CP, há a previsão do tipo de homicídio culposo. Porém, aquela norma não descreve o meio ou a forma da prática do homicídio culposo. É necessário que, no caso concreto, diante de uma morte não dolosa verificar se aquele que deu causa ao evento violou o dever de cuidado exigido pelo direito. O juiz complementa o tipo culposo com a verificação da violação do dever de cuidado objetivo. Exemplo: Nos crimes omissivos impróprios, da mesma forma, faz-se necessário verificar se, no caso concreto, o omitente se coloca na posição de garantidor da não ocorrência do resultado, e, portanto, com sua omissão violou o dever que possuía de impedir o resultado (art. 13, § 2o, do CP).
Além dos tipos culposos e omissivos impróprios, existem, também, hipóteses de tipos comissivos dolosos que são considerados abertos. Exemplo: Na gestão temerária (art. 4o, parág. único, da Lei no 7.492/1986), não se discriminam quais são as condutas dos administradores de instituições financeiras que se amoldam àquela norma legal.
Alguns doutrinadores criticam a utilização, pelo legislador, da técnica de se utilizar, nos crimes comissivos dolosos, de tipos abertos, por entender que abre uma margem grande de discricionariedade ao juiz. B) Tipo básico e tipo derivado
Tipo básico consiste na forma fundamental da figura delituosa, geralmente prevista do caput do dispositivo legal. Em síntese, o tipo básico compreende as elementares da figura delituosa. A ausência de uma elementar acarreta a atipicidade absoluta do fato. Por sua vez, tipo derivado – que se subdivide em tipo privilegiado ou qualificado – consiste no desdobramento da forma básica, a ela se agregando elementos circunstanciais que tornam a conduta mais ou menos grave. A ausência de um desses elementos 19 0
Capítulo XIII | Teoria do tipo doloso
circunstanciais não acarreta a atipicidade absoluta, mas, sim, relativa, visto que o fato poderá se amoldar ao tipo básico. C) Tipo simples e tipo de conduta variada (ou tipo misto) alternativa ou cumulativa
O tipo simples contém uma só espécie de conduta punível. Dito de outra forma, prevê somente um verbo (ação ou omissão), ao passo que o tipo misto ou de conduta variada apresenta mais de uma forma de realização do mesmo fato delituoso (isto é, prevê mais uma conduta e contém mais de um verbo). Cite-se, como exemplo, o tipo que descreve o tráfico de drogas: o art. 33, caput, da Lei no 11.343/2006, contém nada menos do que dezoito verbos.
13.7. Elementos do tipo objetivo
O
a exteriorização da vontade (aspecto externo objetivo) que concretiza o tipo subjetivo. O fundamento material de todo crime é a concretização da vontade num fato externo. O tipo objetivo não é objetivo no sentido de alheio ao subjetivo, mas no sentido de objetivado. Compreende aquilo do tipo que tem de se encontrar no mundo exterior. O tipo objetivo é composto por um núcleo, representado por um verbo (ação ou omissão) e por elementos secundários, tais como objetivo da ação, resultado, nexo causal, autor etc. Conforme salientado, o tipo objetivo contém sempre elementos descritivos e, em alguns casos, elementos normativos. tipo objetivo representa
13.7.1. Elementos descritivos
São as expressões do tipo que são compreendidas de imediato, pela simples constatação sensorial (homem, mulher, matar, dia, noite, coisa, violência, grave ameaça, fraude, incêndio, naufrágio, liberdade, destruição etc.). 13.7.2. Elementos normativos
São aquelas expressões cuja exata compreensão demanda uma atividade valorativa no próprio campo da tipicidade. Não são compreendidos de imediato, exigindo um juízo de valor. Podem compreender um conceito cultural ou mesmo uma expressão jurídica. Os elementos normativos podem ser jurídicos, tais como a noção de documento (art. 297, do CP), casamento (art. 235, do CP) ou tesouro (art. 169, I, do CP). Também podem ser extrajurídicos ou culturais, tais como as expressões casa mal-afamada (art. 247, do CP), simplicidade ou inferioridade mental (art. 174, do CP), cadáver (art. 211, do CP) e prostituição (art. 228, do CP).
191
Curso de Direito Penal | Parte Geral
13.8. Elementos do tipo subjetivo
A
parte subjetiva do tipo
penal compreende os dados que pertencem ao campo psicológico ou anímico do agente, constituídos pelo elemento subjetivo geral – o dolo – e, eventualmente, elementos subjetivos específicos – o chamado elemento subjetivo do tipo –, que representam segundas intenções ou tendências especiais do agente. Vê-se, assim, abrangidos todos os aspectos subjetivos do tipo de conduta proibida que, concretamente, produzem o tipo objetivo. O tipo subjetivo é constituído de um elemento geral – dolo – que, por vezes, é acompanhado de elementos especiais – intenções e tendências – que são elementos acidentais. Dessa maneira, pode-se dizer que o conhecimento e a identificação da intenção (vontade e consciência) do agente são indispensáveis para que se classifique um comportamento como típico.16 13.8.1. O dolo como elemento subjetivo geral
Dolo é a consciência e vontade (saber e querer) de realização da conduta descrita em um tipo penal, ou, na expressão de Welzel, dolo, em sentido técnico penal, é somente a vontade de ação orientada à realização do tipo de um delito.17 A) Aspecto cognitivo do dolo
A parte cognitiva, isto é, a consciência, deve ser atual, efetiva, ao contrário da consciência da ilicitude, que pode ser potencial. A consciência do dolo abrange a representação dos elementos integradores do tipo penal, ficando fora dela a consciência da ilicitude, que está deslocada para o interior da culpabilidade (é o conhecimento das circunstâncias necessárias à composição da figura típica). A previsão (representação; conhecimento; cognição; consciência etc.) deve abranger correta e completamente todos os elementos essenciais do tipo, sejam eles descritivos e normativos; formas básica, qualificada ou privilegiada (ex.: lesões corporais qualificadas pelo aborto: o agente deve saber da gravidez da vítima). Mas, repita-se, a previsão constitui somente a consciência dos elementos integradores do tipo penal, ficando de fora dela a consciência da ilicitude (o dolo é dolo natural, e não o chamado dolo normativo). B) Aspecto volitivo do dolo
O momento volitivo pressupõe a previsão fática (aspecto cognitivo), abrangendo, pois, a conduta (ação ou omissão), o resultado e o nexo causal. Como dito por Ingeborg Poppe, a vontade se constitui somente no fato e com o fato.18 A previsão sem vontade é algo completamente inexpressivo, indiferente ao Direito Penal, e a vontade sem representação, sem previsão, é absolutamente impossível. O dolo 16. Bitencourt, Cezar Roberto. Op. cit., p. 282. 17. Welzel, Hans. Derecho Penal…, cit., p. 79. 18. Poppe, Ingeborg. A distinção entre dolo e culpa. Trad. Luís Greco. Barueri: Manole, 2004, p. 123 192
Capítulo XIII | Teoria do tipo doloso
como simples resolução é penalmente irrelevante, visto que o Direito Penal não pode atingir ao puro ânimo. Somente nos casos em que conduza a um fato real e o governe, passa a ser penalmente relevante.19 13.8.2. Espécies de dolo 13.8.2.1. Dolo direto de primeiro grau
O agente quer o resultado representado como fim de sua ação. A vontade do agente é dirigida à realização do fato típico. O objeto do dolo direto é o fim proposto, os meios escolhidos e os efeitos colaterais representados como necessários à realização do fim pretendido (art. 18, I, 1a parte do CP). No dolo direto de primeiro grau o querer liga-se ao fim proposto e aos meios escolhidos. Exemplo: “A” quer a morte do adversário “B” (fim proposto), puxa uma arma (meio) da cintura, aponta, atira e mata (realiza a ação de matar). 13.8.2.2. Dolo direto de segundo grau
O querer liga-se com outra finalidade, porém abrange os efeitos colaterais necessários do fim proposto ou do meio escolhido, efeitos estes representados no momento psicológico do dolo. Exemplo: “A”, agente, quer se vingar da companhia aérea que o dispensou. Planeja, como vingança, explodir um avião (fim proposto). Escolhe e coloca uma bomba numa turbina para ser detonada nas alturas (meio e forma escolhidos). Representa como consequência óbvia a morte de toda a tripulação e dos passageiros a bordo (efeito colateral necessário). Ele lamenta a morte dessas pessoas, ele não quer esse resultado, porém leva o plano adiante. Assim, responde por homicídio doloso com dolo direto.
Neste caso, o fim proposto e os meios escolhidos são abrangidos imediatamente, pela vontade consciente do agente. Já os efeitos colaterais necessários em face da natureza do fim proposto ou dos meios empregados são abrangidos mediatamente, pela vontade consciente do agente, mas sua produção necessária os situa, também, como objetos de dolo direto.20 13.8.2.3. Dolo eventual
No dolo eventual o agente não quer diretamente a realização do tipo, mas aceita como possível ou até provável a sua realização, assumindo o risco da produção do resultado (art. 18, I, 2a parte, do CP). No dolo eventual, o agente prevê o resultado como provável ou, ao menos, como possível, mas, apesar de prevê-lo, age aceitando o risco de produzi-lo, demonstrando 19. Idem, p. 79. 20. Santos, Juarez Cirino. Direito Penal. Parte Geral. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p. 138. No mesmo sentido: Nessa forma específica de dolo, o autor não almeja o resultado, mas tem conhecimento seguro de que sua ação acabará por causá-lo. Explica-se essa forma de dolo, assim, afirmando-se que o conhecimento seguro compensa a carência de vontade.” (Poppe, Ingeborg. Op. cit., p. 138). 193
Curso de Direito Penal | Parte Geral
indiferença em relação a ele. A consciência e a vontade, que representam a essência do dolo, também devem estar presentes no dolo eventual. Para que este se configure é insuficiente a mera ciência da probabilidade do resultado (parte cognitiva), como sustentam os defensores da teoria da probabilidade. É indispensável uma relação de vontade entre o resultado e o agente, e é exatamente essa parte volitiva que distingue o dolo da culpa (consciente).
13.9. Elemento subjetivo do tipo
O
tipo, também chamado de dolo específico, consiste no especial fim de agir, que amplia o aspecto subjetivo do tipo, mas não integra o dolo nem com ele se confunde, posto que o dolo esgota-se na consciência e vontade de realizar a ação e a finalidade de obter o resultado ou assunção do risco de produzi-lo. Nesse sentido, pode-se dizer que o dolo é o elemento subjetivo geral dos comportamentos dolosos, mas não é o único componente subjetivo dos crimes dolosos. Podem, também, ser encontradas determinadas características psíquicas complementares diferentes do dolo, sob a forma de intenções, ou tendências especiais, ou de atitudes pessoais necessárias para precisar a imagem do crime ou para qualificar ou privilegiar certos comportamentos criminosos.21 As principais espécies classificadas pela doutrina são as seguintes: elemento subjetivo do
A) Delitos de intenção
São situações caracterizadas por uma intenção que ultrapassa o tipo objetivo para se fixar em resultados que não precisam se realizar concretamente, mas que devem existir no psiquismo do autor. É o que ocorre nos crimes de falso em geral, onde a contrafação ou alteração do objeto material visa causar prejuízo à direito alheio. B) Delitos de tendência
No caso, há uma tendência afetiva do autor que impregna a ação típica: nos crimes sexuais, a tendência voluptuosa adere à ação típica, atribuindo o caráter sexual ao comportamento do autor. A presença dessas características psíquicas especiais decide sobre a definição jurídica de ações objetivamente idênticas, mas penalmente diversas. C) Delitos de atitude
Caracterizam-se pela existência de estados anímicos que informam a dimensão subjetiva do tipo e intensificam ou agravam o conteúdo do injusto, mas não representam um desvalor social independente, como a crueldade, a má-fé, a traição, que qualificam ou agravam certos tipos penais.
21. Santos, Juarez Cirino dos. Op. cit., p. 161. 194
título
III
capítulo
teoria geral do crime
XIV
TEORIA DO TIPO CULPOSO 14.1. Considerações gerais
A
diz respeito à inobservância do dever objetivo de cuidado, em uma conduta que produza um resultado não desejado, mas objetivamente previsível.1 A culpa tem sua origem no direito romano, referindo-se à ideia de negligência e de imperícia, bem como, adiante, foi incorporada pelo direito canônico e desenvolvida pelos praxistas italianos e passou a constar das diversas legislações penais no mundo.2 Antigas legislações previam o chamado crimen culpae, segundo o qual eram punidos todos os crimes, tais como homicídio, furto, roubo e estelionato, na modalidade culposa. Atualmente, de maneira geral, as legislações adotam uma enumeração numerus clausus de condutas que admitem a modalidade culposa.3 No Brasil, os crimes, em regra, são punidos a título de dolo. O tipo culposo tem de estar expressamente previsto na lei (excepcionalidade do crime culposo), conforme determina o art. 18, parágrafo único, do CP. Aliás, o Código Penal vigente se limita a dizer que o crime é culposo nas hipóteses em que o agente deu causa ao resultado por imprudência, negligência ou imperícia (art. 18, II, do CP). A lei, portanto, adota noção noção de culpa
1. Bitencourt, Cezar Roberto. Op. cit., p. 328. 2. Prado, Luiz Regis. Op. cit., p.376. 3. Zaffaroni, Eugenio Raúl; Alagia, Alejandro; Slokar, Alejandro. Manual de derecho penal: Parte General. Buenos Aires: Ediar, 2005, p. 423. 195
Curso de Direito Penal | Parte Geral
incompleta do que vem a ser o crime culposo ou, mesmo, pode-se dizer que não o define.4 A definição de crime culposo é pois mais complexa do que a previsão legal. Pode-se dizer que há crime culposo nos casos em que o agente, violando o cuidado, a atenção ou a diligência a que estava adstrito, causa o resultado que podia prever, ou que previu, supondo, no entanto, levianamente, que não ocorreria. Sobre esta definição, alguns comentários devem ser feitos. Inicialmente, ressalte-se que, durante muito tempo, a previsibilidade do evento foi considerada como da essência do crime culposo e que esse delito tinha, no resultado lesivo, o seu aspecto fundamental, constituindo hipótese de desvalor do resultado. Essa concepção deixava em plano secundário a tipicidade e, sobretudo, a antijuridicidade do crime culposo, além de supor que a essência da culpa (negligência) estivesse num elemento psicológico.5 O causalismo inseriu o crime culposo na culpabilidade (culpa lato sensu), representada pela negligência, imprudência ou imperícia da causação do resultado, que constituiria, como nos correspondentes crimes dolosos, a conduta típica. Tal entendimento, entretanto, foi criticado pelo fato de que dolo e culpa stricto sensu são diversos, visto que dolo é fenômeno psicológico, ao passo que a culpa stricto sensu só tem existência no plano normativo. Passou-se, então, a considerar que a ação, nos crimes culposos, só era antijurídica na medida em que violava o cuidado exigido no âmbito da vida de relação, demonstrou-se que o elemento decisivo da ilicitude do fato culposo reside no desvalor da ação e não do resultado. Isso permitiu a elaboração da estrutura do crime culposo.6 A propósito, a estrutura do crime culposo, diferentemente daquela relativa ao crime doloso, engloba: conduta humana, resultado e nexo de causalidade, além de compreender a imputação objetiva.
14.2. Elementos do crime culposo
A
partir do conceito de crime culposo anteriormente enunciado, podem ser estabeleci-
dos os seguintes elementos que precisam estar presentes na conduta praticada para que possa haver um crime culposo. São eles: conduta lícita, previsibilidade, inobservância das normas de atenção, cuidado ou diligência e resultado. 14.2.1. Conduta lícita
Na hipótese de dolo, é típica qualquer ação idônea (ou seja, com potencialidade causal) por meio da qual o agente causa o resultado, realizando a conduta proibida. Nesse caso, o agente quer o resultado ou assume o risco de produzi-lo. 4. Fragoso, Heleno Cláudio. Op. cit., p. 271. 5. Idem, p. 271. 6. Idem, p. 271. 196
Capítulo XIV | Teoria do tipo culposo
No caso de culpa, no entanto, a vontade é dirigida a outros fins. Não obstante, o agente causa o resultado porque atuou sem observar as normas de atenção, cuidado ou diligência impostas pela vida de relação, tendo-se em vista as circunstâncias do fato concreto. Tais normas são fixadas de modo objetivo e geral, ou seja, segundo os padrões médios gerais vigentes no meio social, constituindo o cuidado objetivo exigível. A ação que desatenda ao cuidado e à atenção adequados, nas circunstâncias em que o fato ocorreu, provocando o resultado, é típica, embora trate-se de conduta, em tese, lícita, que somente adquire status de ilícita por conta do resultado que deu causa. O núcleo do tipo no crime culposo é normativo, consistindo na divergência entre a ação efetivamente realizada e a que devia realmente ter sido observada, em virtude da inobservância do dever objetivo de cuidado. Trata-se de um tipo aberto, que será fechado pela avaliação do caso concreto. A conduta, isto é, o fim perseguido pelo autor é geralmente irrelevante (dirigir o carro para a casa, por exemplo), mas não os meios escolhidos ou a forma de sua utilização (dirigir um carro em precárias condições; em excesso de velocidade ou avançando os sinais de trânsito). Portanto, a conduta amolda-se no tipo culposo não por querer realizá-lo (fim), mas por causa do meio utilizado que viola determinado dever de cuidado, cuidado existente quando é previsível a ocorrência de um resultado desvalioso. Quando isto ocorre, fica caracterizada a tipicidade culposa. 14.2.2. Previsibilidade
Ademais, é exigível o cuidado objetivo quando o resultado era previsível para uma pessoa razoável e prudente (homo medius), nas condições em que o agente atuou (previsibilidade objetiva). Daí não surge a culpa nos crimes culposos, pois esta está em função da reprovabilidade pessoal do comportamento. Todavia, para estabelecer a culpa, ou seja, reprovabilidade pessoal, é necessária a previsibilidade para o agente, nas circunstâncias concretas em que atuou e tendo-se em vista suas condições pessoais (previsibilidade subjetiva). A previsibilidade objetiva, todavia, é o limite mínimo da ilicitude nos crimes culposos. Deve-se destacar que a culpabilidade culposa também é igual à culpabilidade dolosa, reprovando-se o autor por não ter adotado o comportamento conforme ao direito. Assim, insere-se na chamada previsibilidade subjetiva, isto é, não mais a previsibilidade objetiva que define o tipo culposo (não ter adotado a conduta que o homem médio adotaria), mas a previsibilidade levada em conta pela pessoa concreta. Exemplo: “A” dirige em excesso de velocidade, avançando, inclusive, o sinal de trânsito, acarretando um atropelamento com lesões do pedestre “B”. O fato é típico, pois o comportamento violou o dever de cuidado exigível quando previsível o resultado para um “homem médio” (prudente) naquelas circunstâncias. O fato típico é antijurídico já que não há qualquer excludente de ilicitude (estado de necessidade, legítima defesa etc.). 197
Curso de Direito Penal | Parte Geral
Ocorre que aquela pessoa dirigia em excesso de velocidade, pois estava profundamente abalada com a morte do pai e queria chegar a tempo para o enterro. Portanto, embora objetivamente previsível, naquelas circunstâncias não era possível a previsibilidade subjetiva pelo estado de abalo emocional. Em suma, apesar de típico e antijurídico o fato, o autor pode ser desculpado ante a imprevisibilidade subjetiva, ou, em outras palavras, o direito não lhe podia exigir, naquelas circunstâncias, um comportamento diverso.
A imprevisibilidade, por sua vez, afasta a prática de crime culposo e pode levar ao caso fortuito. 14.2.3. Inobservância das normas de atenção, cuidado ou diligência
A identificação da conduta como ilícito culposo, requer, ainda a análise do cuidado objetivo exigível nas circunstâncias em que o fato ocorreu, porque a tipicidade resultará da comparação entre a conduta do agente e a que cumpria observar para atender a tal cuidado. Ressalte-se que o essencial no tipo culposo não é a simples causação do resultado, mas sim a forma em que a ação causadora se realiza (falta de diligência devida). Assim, a lei vigente refere-se à modalidade da culpa, quais as formas de seu cometimento (art. 18, II, do CP) e constituem fórmulas gerais de inobservância do cuidado exigível e são conhecidas como modalidades da culpa. São elas: A) Imprudência
É a prática de uma conduta arriscada ou perigosa (caráter comissivo). B) Negligência
É a displicência no agir, a falta de precaução, a indiferença do agente que, podendo agir com cautela, não o faz (imprevisão passiva, desleixo). C) Imperícia
É a falta de capacidade, despreparo ou insuficiência de conhecimento técnico para exercício de arte, profissão ou ofício (erro profissional e os limites do conhecimento humano). Saber qual era o cuidado exigível, dependerá da consideração das circunstâncias. Ele se mede pelas consequências geralmente previsíveis da ação, excluindo-se, por isso mesmo, do âmbito dos crimes culposos, os resultados anormais. 14.2.4. Resultado
O resultado, por sua vez, corresponde à lesão do bem jurídico e tem de estar em relação de causalidade com ação ou omissão contrária ao dever de cuidado. Se assim não for, o fato não pode ser imputado ao agente. Haverá, pois, crime culposo quando o agente não deseja e nem assume o risco de produzir o resultado criminoso previsível, mas, ainda assim, o produz. Se, ao contrário, 198
Capítulo XIV | Teoria do tipo culposo
houver a inobservância de um dever objetivo de cuidado, mas não ocorrer a produção de um resultado criminoso, não advirá crime culposo.7 A inevitabilidade do resultado exclui a própria tipicidade, visto que a inobservância do cuidado devido deve ser causa do resultado em caso de crime culposo.
14.3. Espécies da culpa
H
á , na doutrina
penal, a previsão de duas espécies de culpa: culpa consciente e culpa
inconsciente. A culpa consciente ou culpa com previsão é aquela em que ocorre a efetiva previsão do resultado (sem aceitar o risco de produzi-lo). No caso, o autor, deixando de observar a diligência a que estava obrigado, prevê o resultado, que era previsível, mas confia convictamente que ele não ocorrerá – é a previsão do previsível, mas não tolerável. O agente crê, por confiança em si próprio ou por leviandade, que poderá evitar o previsível resultado. Diferentemente, a culpa será inconsciente se o agente não tiver previsto o resultado que poderia e deveria ter previsto. Tendo em vista que previsível é o fato cuja possível superveniência não escapa à perspicácia comum, na culpa inconsciente, também chamada de culpa sem previsão. No caso, apesar da previsibilidade, não há a previsão, por descuido, desatenção ou simples desinteresse – é a imprevisão do previsível. Essa distinção, em princípio, é irrelevante, embora alguns autores afirmem que a culpa consciente é mais grave que a inconsciente. Na culpa inconsciente não há qualquer relação psicológica entre o agente e o resultado tendo sido este um dos obstáculos intransponíveis da velha teoria psicológica da culpabilidade.8
14.4. Culpa imprópria
A
é, na verdade, uma conduta dolosa à qual a lei reservou a pena de um crime culposo, pelo fato de a pena do crime culposo ser mais branda do que a do crime doloso. É a que ocorre com as descriminantes putativas, que decorrem de erro sobre a legitimidade da ação realizada (art. 20, § 1o, 2a parte, do CP). Aqui, o agente supõe agir licitamente porque imagina, por erro, existir situação de fato que, se existisse, tornaria a ação legítima. chamada culpa imprópria
Exemplo: “A”, supondo-se na iminência de ser agredido por seu inimigo “B”, que antes tirava do bolso a carteira de notas, alveja-o, matando-o (legítima defesa putativa).
O agente erra sobre a ilicitude de seu comportamento, sabendo perfeitamente que realiza a conduta típica, tanto do ponto de vista objetivo como subjetivo. O agente 7. Bitencourt, Cezar Roberto. Op. cit., p. 333. 8. Fragoso, Heleno Cláudio. Op. cit., p. 277. 19 9
Curso de Direito Penal | Parte Geral
aqui sabe o que faz, mas supõe erroneamente que estaria permitido. Exclui-se não a tipicidade, mas sim a reprovabilidade da ação. A consequência do erro de proibição neste caso, se era escusável, gera exclusão da culpabilidade. O erro é escusável quando não deriva de culpa.9 Se o erro deriva de culpa e o fato é punível como crime culposo, seguem-se as mesmas consequências jurídicas previstas para o erro de tipo. Se o erro era inescusável, o agente responde pelo fato a título de culpa (art. 20, § 1o, CP), respondendo pelo crime o terceiro que determina o erro, se for o caso (art. 20, § 2o, CP).
14.5. Dolo eventual e culpa consciente
D
culpa consciente apresentam um traço comum, que, por conseguinte, dificulta a sua distinção: em ambos os casos, o agente prevê o resultado. No dolo eventual, o indivíduo não se importa com o resultado. Já na culpa consciente, o autor da infração penal não acredita que o resultado pode advir. Em outras palavras, no dolo eventual, o agente é vil. Na culpa consciente, tolo. Para diferenciá-los, é preciso recorrer às chamadas teorias do dolo eventual. olo eventual e
14.5.1 Teorias cognitivas
São teorias onde prepondera o aspecto da previsão (a consciência sobre o resultado). Estabelecem a noção de dolo eventual somente pelo aspecto cognitivo, i.e., sobre a possibilidade do resultado. As mais importantes são: A) Teoria da possibilidade
A mera representação da possibilidade do resultado típico já constituiria dolo, porque tal representação deveria inibir a realização da ação; a não representação dessa possibilidade constituiria culpa inconsciente. Por esta teoria, não haveria, na verdade, a figura da culpa consciente. B) Teoria da probabilidade
Define o dolo eventual pela representação de um perigo concreto para o bem jurídico. Haverá dolo eventual quando o perigo se demonstra próximo ao bem jurídico; se o perigo estiver longe do bem jurídico, será caso de culpa consciente. 14.5.2. Teorias volitivas
Para os adeptos dessa corrente, há de preponderar a vontade sobre a previsão. Fundamentam a distinção entre dolo eventual e culpa consciente com base no aspecto volitivo, na postura que o agente adota frente à perspectiva do resultado. As mais importantes são: 9. Idem, p. 258. 200
Capítulo XIV | Teoria do tipo culposo
A) Teoria do consentimento ou da assunção
Define o dolo eventual pela atitude de concordância ou aprovação do resultado típico previsto, na parte intelectiva, como possível. É a teoria adotada pelo Código Penal, consoante o disposto no art. 18, I, 2a parte (“assume o risco de produzir o resultado”). Caso o agente não assuma o risco, inobstante representá-lo, responderá pelo resultado a título de culpa consciente. B) Teoria da indiferença
Segundo esta corrente, evidencia-se o dolo eventual pela atitude de indiferença ou neutralidade do agente relativamente ao resultado previsto. Ele não deseja, mas considera sua ocorrência como algo indiferente. A rigor, tem-se que as duas percepções, isto é, a assunção e a indiferença, não são volitivamente distantes. Em outros termos, “assumir o risco” do resultado ou tê-lo como “nem bom nem mau” são experiências sensoriais assemelhadas. C) As fórmulas de Frank
Reinhard Frank desenvolveu algumas fórmulas para compreensão da distinção entre dolo eventual e culpa consciente. Tais fórmulas podem auxiliar a esclarecer essa diferença. Segundo ele, o agente atua com culpa consciente quando expressa o seguinte pensamento: se soubesse que o resultado se produziria com certeza, não atuaria. Por outro lado, agiria com dolo eventual, na seguinte hipótese: seja assim ou de outra forma, suceda isto ou aquilo, em qualquer forma atuo. 14.5.3. Síntese reflexiva
As teorias meramente cognitivas (consciência) não bastam para diferenciar o dolo eventual da culpa consciente. Como dito, o nosso Código Penal fez opção pelas correntes volitivas (teoria da assunção ou consentimento). Isso porque, é o aspecto volitivo que demarca o dolo, seja direto (teoria da vontade), seja eventual (teoria do consentimento), apartando-o da culpa consciente ou inconsciente. Não se ignora, porém, que a vontade pressupõe o conhecimento da possibilidade ou probabilidade de causar o resultado, não se podendo, assim, ignorar a sua relevância dogmática. De todo modo, quanto à diferença entre dolo eventual e culpa consciente, deve-se optar pelas teorias volitivas (do consentimento ou da indiferença). Para elas, se o agente tolera a produção do resultado, se o resultado lhe é indiferente, terá operado com dolo eventual. Do contrário, haverá a culpa consciente. Neste caso, o autor não tolera o resultado; o evento lhe é representado, é previsto, mas ele confia em sua não produção. Nessa esteira, cumpre mencionar o entendimento de Cezar Bitencourt no sentido de que a distinção entre dolo eventual e culpa consciente resume-se, em última instância, à aceitação ou rejeição da possibilidade de produção do resultado. Dessa forma – segundo 2 01
Curso de Direito Penal | Parte Geral
aquele doutrinador –, persistindo a dúvida entre um e outra, dever-se-á concluir pela solução menos grave: pela culpa inconsciente.10
14.6. Concorrência e compensação de culpa
H
culpas, isto é, cada um violando o seu dever de cuidado, haverá a punição isolada de cada autor (autoria colateral). avendo concorrência de
Exemplo: “A” e “B” dirigem seus respectivos veículos com excesso de velocidade, causando um acidente onde ambos saem feridos. Os dois respondem pelo fato culposo, um em relação aos ferimentos do outro.
Como se vê, não se admite a chamada compensação de culpas, ficando cada um responsável pelo dever de cuidado inobservado. Da mesma forma, eventual culpa concorrente da vítima (exemplo: atravessar fora da faixa de pedestre) não exclui a do agente (que avançara o sinal vermelho). Só há a exclusão quando ocorrer a culpa exclusiva da vítima, como, por exemplo, atravessar a pista embaixo de uma passarela, sendo que o sujeito dirige o automóvel dentro da velocidade máxima permitida, não tendo como desviar a tempo de evitar o sinistro (no caso, não há violação de cuidado e/ou a previsibilidade objetiva – como se pode prever que alguém vá atravessar a pista bem embaixo de uma passarela?) Neste último caso, trabalha-se com o chamado princípio da confiança: se eu dirijo dentro das normas, respeitando todas as regras de trânsito, posso confiar que os demais façam o mesmo. Seria um absurdo se eu tivesse que parar em todos os sinais verdes; confio que os outros também respeitem os sinais de trânsito. Assim, pode-se dizer que, diversamente do que ocorre no direito privado, é irrelevante a concorrência de culpa da vítima, pois ela não elimina (embora atenue) a culpa do agente, que deve responder pelo fato. A culpa da vítima deve, no entanto, ser considerada na medida da pena. Somente a culpa exclusiva da vítima isenta o agente de responsabilidade penal.
14.7. Crimes qualificados pelo resultado
C
preterintencional) é aquele em que a conduta produz um resultado mais grave que o pretendido pelo sujeito. O agente quis um minus e seu comportamento causa um majus, de maneira que se conjuga o dolo no antecedente e a culpa no resultado posterior. Crime preterdoloso é espécie do gênero crimes qualificados pelo resultado, sendo que o resultado que agrava a pena pode se dar a título de dolo ou culpa (vide, por exemplo, art. 157, § 3o, do CP). rime preterdoloso (ou
10. Bitencourt, Cezar Roberto. Op. cit., p. 310. 2 02
título
III
capítulo
teoria geral do crime
XV
TEORIA DO TIPO OMISSIVO 15.1. Considerações gerais
O
se esgota num exercício ativo final, compreendendo, também, um lado passivo, constituído pela omissão. Este aspecto passivo da conduta humana será penalmente relevante quando confrontado com uma norma que lhe exige a realização de determinada atividade. Conforme lecionado por Mezger, sem a ação esperada não é possível falar de omissão em sentido jurídico. E por meio dela obtém a teoria do delito de omissão sua firme base.1 Desse modo, a conduta regulada pelo Direito Penal pode ser tanto um fazer como um não fazer. No primeiro caso, a norma impõe uma abstenção e a sua violação, por parte do agente, dá margem ao crime comissivo; no segundo, a norma estabelece o dever de agir e a não realização de tal comportamento faz surgir o crime omissivo. Nesse sentido, pode-se afirmar que o Direito Penal não contém só normas proibitivas, mas, igualmente, ainda que em menor medida, normas imperativas que ordenam ações cuja omissão pode produzir efeitos socialmente nocivos. A infração destas normas imperativas é o que constitui a essência dos delitos de omissão.2 Saliente-se, por oportuno, que, embora a doutrina do Direito Penal tenha procurado elaborar um conceito de conduta suficientemente comportamento humano não
1. Mezger, Edmund. Op. cit., p. 289. 2. Cf. Muñoz Conde, Francisco. Teoría General del Delito. 3. ed. Valencia: Tirant lo Blanch, 2004, p. 47. 2 03
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amplo de ação que pudesse também abranger a omissão (cf. Capítulo XI), é certo que, desde os ensinamentos de Radbruch, em 1904, firmou-se o entendimento de que ação e omissão não são categorias homogêneas (“A” e “B”), mas, na verdade, heterogêneas (“A” e “ não A”), sendo, a primeira, ontológica e, a segunda, axiológica (valorativa), impossíveis de serem reduzidas ao mesmo denominador, o que exigiria um detalhamento da estrutura do tipo omissivo.3 Omissão é abstenção de atividade que o agente podia e devia realizar. Omissão, em consequência, não é mero não fazer, mas, sim, não fazer algo que, nas circunstâncias, era ao agente imposto pelo direito e que lhe era possível submeter ao seu poder final de realização. É equívoco supor ser naturalisticamente possível reconhecer omissão pela simples observação do comportamento humano. Esta somente pode revelar uma atividade ou inatividade corpórea. A omissão, porém, envolve sempre a necessidade de um termo de relação, que depende de um juízo objetivo. Somente conhecendo a existência de um dever jurídico de ativar-se, pode-se saber se há omissão na atividade diversa ou na inatividade da mulher. O dever de agir é essencial à omissão. Para o Direito Penal, portanto, são comissivos os crimes que se praticam por meio de ação. Em tais crimes, a conduta delituosa viola norma que proíbe determinada atividade. Crimes omissivos são aqueles em que se viola norma que impõe comportamento ativo, com abstenção da atividade devida. Consiste em não fazer o que a lei manda. Ressalte-se que a norma penal ora se apresenta sob a forma de proibição, ora como ordem ou comando de agir. No primeiro caso, a norma impõe abstenção de atividade e se transgride por meio de ação (crimes comissivos). No segundo, a norma impõe comportamento ativo e se transgride por meio da abstenção da atividade devida (crimes omissivos próprios). Exemplo: “A”, médico, deixa de noticiar à autoridade pública sanitária o fato de que um paciente seu é portador da síndrome da imunodeficiência adquirida (AIDS). Tal fato tipifica o delito de omissão de notificação de doença (art. 269, do CP).
Os crimes comissivos também podem ser praticados por omissão (crimes comissivos por omissão ou omissivos impróprios). Em tais casos, o agente viola norma implícita existente junto à norma proibitiva, que lhe impõe o dever jurídico de agir para evitar determinado resultado. Exemplo: “A” deixa de alimentar seu filho “B”, de tenra idade, objetivando, assim, a sua morte por inanição.
3. Cf. Heitor Costa Jr: “Obviamente, sendo ambas dados heterogêneos – ‘A’ e ‘não-A’ – seria contraditório, como ordinariamente se entende, identificá-los na mesma categoria. Os crimes comissivos e omissivos merecem tratamento diverso. Fraciona-se, assim, e corretamente, o sistema.” (Costa Jr., Heitor. Teorias acerca da omissão. In RT 587/282). 204
Capítulo XV | Teoria do tipo omissivo
Em ambas as modalidades (omissão própria e imprópria) há um dever de agir imposto pelo Direito. A distinção está em que, na omissão pura, esse dever é geral, ou seja, imposto indistintamente a todos que se encontrem diante do caso concreto (o chamado dever legal de assistência). E, na omissão imprópria, o dever de atuar decorre de uma situação especial tal que obriga o sujeito a afastar o resultado (o chamado dever de impedir o resultado).4 Exemplo: Se “A” e “B” assistem “C” esvair-se em grande quantidade de sangue, na ciclovia, em virtude de um profundo corte na cabeça decorrente de uma queda acidental de bicicleta, sendo “C” filho de “B”, abstendo-se, ambos, de qualquer providência pertinente, “A” praticará delito de omissão de socorro (art. 135, do CP) enquanto “B” o delito de homicídio ou lesões corporais de natureza grave (arts. 121 ou 129, do CP), conforme o caso.
Por meio dessa noção, percebe-se que a omissão penalmente relevante é aquela que desatende o comando normativo que espera o atuar para proteger determinado bem jurídico. O mero não fazer desvinculado da norma jurídica, ainda que afrontoso de preceitos morais, éticos ou religiosos, é penalmente irrelevante. Disso decorre a necessidade de se partir da norma jurídica para conhecer o dever jurídico de agir desatendido pelo comportamento omissivo. O conceito de omissão, segundo Heleno Fragoso, é essencialmente normativo, já que, no plano ontológico, existem apenas ações. A omissão, portanto, pressupõe a existência de norma que imponha a ação omitida e se refere à ação ordenada e se situa em plano distinto ao desta.5
15.2. A causalidade na omissão
T
conceito normativo, não se considera apropriado falar na existência de uma relação de causalidade física (material) entre a omissão e o resultado, visto que, como é de conhecimento geral, do nada, nada surge (ex nihilo nihil fit). Como dito por Nélson Hungria, querer demonstrar que a omissão é mecanicamente causal equivale a querer provar a “quadratura do círculo”.6 ratando-se de um
4. Cf. Tavares, Juarez. As controvérsias em torno dos crimes omissivos. Rio de Janeiro: ILACP, 1996, p. 43. 5. Fragoso, Heleno Cláudio. Op. cit., p. 282. No mesmo sentido, Juarez Tavares assinala que inexiste omissão sem violação de dever de agir. Isto porque – prossegue esse doutrinador – “quando associamos uma ação, ou uma inatividade, a um dever de agir, já estaremos descartando a hipótese de que esta atividade ou inatividade possa ser vista, exclusivamente, sob o enfoque naturalístico. É que o dever de agir não é qualquer coisa pertencente à categoria ôntica, isto é, não possui substrato natural, mas possui, isto sim, um substrato axiológico. Quando impomos uma atividade a alguém, dizemos que essa atividade é imposta em face de um dever a que está vinculada determinada pessoa. Se a pessoa não estiver vinculada ao dever de agir, a sua inatividade é um nada, absolutamente irrelevante.” (Tavares, Juarez. As controvérsias..., cit., p. 23). 6. Hungria, Nélson. Comentários ao Código Penal. Vol. I. Rio de Janeiro: Forense, 1958, p. 69. 205
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Por sua vez, após discorrer sobre as teorias que, no passado, tentaram justificar um nexo causal na omissão, Jescheck conclui que hoje se rechaça majoritariamente uma causalidade na omissão no sentido de uma produção real do resultado. A causalidade requer, como categoria do ser, uma verdadeira fonte de energia que seja capaz de iniciar o desencadeamento de forças, e isto falta precisamente na omissão.7 Em razão dessa constatação, não teria obrado bem o Código Penal ao dispor no art. 13, caput, 2a parte, que se considera causa a ação ou omissão sem a qual o resultado não teria ocorrido. Ora, ao equiparar a omissão à ação como condição do resultado, aquele dispositivo legal aproximou-se justamente de um conceito natural ou mecanicista da omissão. Tal proceder, como visto, é rechaçado pela doutrina mais atualizada. De forma diametralmente oposta, o § 2o, do mesmo art. 13, elege um conceito normativo de causalidade na omissão, consistente na violação do dever de evitar o resultado. Ao analisar a citada contradição, Damásio de Jesus afirma que ou a omissão é causa, como condição negativa do resultado, ou só é relevante como causa nas hipóteses em que o agente tem o dever jurídico de impedir o resultado.8 Diante dessa questão, fez-se a citada opção por um critério normativo axidógio de responsabilidade do omitente, considerando, portanto, como fator decisivo para a imputação, não uma relação causal física, mas, sim, uma relação jurídica de não impedimento do resultado. Pode-se, desse modo, afirmar, que, na omissão, não há o nexo de causalidade, há o nexo de não impedimento.9 A omissão se relaciona com o resultado pelo seu não-impedimento e não pela sua causação. E esse não impedimento é erigido pelo Direito à condição de causa, isto é, como se fosse a causa real, determinando-se a imputação objetiva do fato.10 Saliente-se, contudo, que a relação de não impedimento só é decisiva para a tipificação do crime comissivo por omissão, uma vez que no omissivo puro não há que se falar em relação entre determinada conduta e o resultado, pois o último é desnecessário, já que o fato se amolda diretamente no tipo definidor da conduta omissiva. Trata-se, pois, de um puro exercício de tipicidade. Eventualmente, vale dizer, quando o crime omissivo próprio contiver formas majoradas em razão de um fato subsequente, poderá, aí sim, surgir a necessidade de verificação da relação de não evitação entre a abstenção anterior e o resultado superveniente. Exemplo: “A” não socorre “B” que está prestes a despencar de um barranco; tampouco, pede socorro às autoridades públicas. Diante disso, “A” incorre no crime de omissão de socorro (art. 135, caput, do CP). Se “B” perde as forças e vem a cair, ferindo-se ou mesmo morrendo, “A” responderá pela forma qualificada do parágrafo único do artigo 135, 7. Jescheck, Hans-Heinrich; Weigend, Thomas. Op. cit., p. 563. 8. Jesus, Damásio E. de. Op. cit., p. 253. 9. Bitencourt, Cezar Roberto. Op. cit., p. 278. 10. Idem, p. 279. 206
Capítulo XV | Teoria do tipo omissivo
comprovando-se que, caso tivesse atuado, não se verificariam as lesões graves ou a morte de “B”.
Ressalte-se que do ponto de vista probatório a relação de não impedimento exige que se discuta se a conduta omitida, no caso concreto, teria evitado o resultado. Tratando-se de um juízo hipotético, a resposta positiva somente irá surgir caso se funde em certeza ou em alta probabilidade, próxima da certeza.11
15.3. Tipos omissivos próprios
C
próprio ou puro como sendo aquele que se perfaz com a simples abstenção que viola o dever legal de agir previsto na norma penal incriminadora. Cuida-se, pois, de delito de mera conduta, sem resultado naturalístico, onde o legislador se contenta com a desobediência à norma mandamental, sendo desnecessária a verificação material de qualquer evento. Em regra, os delitos omissivos puros são crimes de perigo e podem ser identificados pelos tipos penais que têm como núcleo o verbo “deixar de”. Além das hipóteses da omissão de socorro (art. 135) e omissão de notificação de doença (art. 269), já mencionadas, o Código Penal contém outras incriminações omissivas puras. Por exemplo: apropriação indébita previdenciária (art. 168-A); abandono material (art. 244); abandono intelectual (art. 246); condescendência criminosa (art. 320); e não cancelamento de restos a pagar (art. 359-F).12 Existem, por outro lado, normas penais cujas dinâmicas possibilitam ser vulneradas por meio de comportamentos omissivos ou comissivos, como, por exemplo, o crime de desobediência (art. 330, CP), que “pode ser perpetrado mediante omissão, quando a ordem desobedecida impõe uma ação, e também por ação, quando a ordem emanada dita uma abstenção de agir”.13 Sob outro enfoque, a doutrina também reconhece a figura omissiva própria aparecendo ao lado de modalidades comissivas do mesmo fato delituoso, na forma de crimes mistos alternativos. Assim, v.g., o crime de prevaricação (art. 319, CP), cujo objeto material “ato de ofício” pode ser violado tanto com o “retardar” (conduta comissiva) como com o “deixar de praticar” (comportamento omissivo).14 O aspecto objetivo do tipo omissivo próprio pressupõe a atividade cumpridora do dever, transgredida com a inação ou a realização de ação diversa da exigida, e a onceitua-se crime omissivo
11. Cf. Fragoso, Heleno Cláudio. Op. cit., p. 290. 12. Na legislação especial, podem ser identificados os seguintes crimes omissivos próprios: art. 4 o, al. “c” e “d”, da Lei no 4.898/1965; art. 1o, inc. VI, VII, XIV, XV, XVIII e XIX, do Decreto-lei n o 201/1967; art. 12, da Lei no 7.492/1986; art. 228, 229, 231, 234, 248, 252, 258, da Lei n o 8.069/1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente); art. 63, 64, 69, 73 e 74 da Lei n o 8.078/1990 (Código de Defesa do Consumidor); arts. 1o, inc. V e 2 o, incs. II e IV, da Lei n o 8.137/1990; art. 19, da Lei 9.434/1997; art. 1o, § 2o, da Lei no 9.455/1997; art. 304, da Lei no 9.503/1997 (Código de Trânsito Brasileiro); art. 68, da Lei no 9.605/1998; art. 13, da Lei no 10.826 (Estatuto do Desarmamento). 13. Prado, Luiz Regis. Op. cit., p. 526. 14. Cf. Fragoso, Heleno Cláudio. Op. cit., p. 282. 2 07
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constatação da possibilidade concreta de ação. Sob o ângulo subjetivo, o dolo exige do sujeito o conhecimento tanto da situação típica como da possibilidade real de intervenção, a qual ele desatende de maneira voluntária, direta ou eventualmente. A culpa stricto sensu geralmente não é prevista nos crimes omissivos próprios.15 Em regra, o Código Penal e a legislação penal especial só tipificam delitos omissivos próprios dolosos. O Código de Defesa do Consumidor (Lei no 8.078/1990) prevê, contudo, duas hipóteses: art. 63, § 2o (“omissão culposa de dizeres ou sinais ostensivos sobre a nocividade ou periculosidade de produtos, nas embalagens, nos invólucros, recipientes ou publicidade”) e art. 66, § 2o (“omissão culposa de informação relevante sobre a natureza, característica, qualidade, quantidade, segurança, desempenho, durabilidade, preço ou garantia de produtos ou serviços). Quanto à antijuridicidade e à culpabilidade da omissão própria, após ultrapassadas as tipicidades objetiva e subjetiva, devem ser examinadas sob os mesmos parâmetros dos crimes comissivos, não apresentando, portanto, quaisquer peculiaridades dignas de nota. Por sua vez, a tentativa no crime omissivo próprio está categoricamente afastada, uma vez que se trata de delito unissubsistente (delito com um único ato executório). Vale dizer, o momento executivo da omissão não é fracionável: ou bem o sujeito atua até o último instante possível, e haverá um indiferente penal, ou se omite, e o crime restará consumado. Da mesma maneira, não há coautoria ou participação punível em crime omissivo próprio. Conforme o exemplo de Armin Kaufmann – colacionado por Juarez Tavares –, se 50 nadadores assistem impassíveis ao afogamento de uma criança, todos terão se omitido de prestar-lhe salvamento, mas não comunitariamente. Cada um será autor do fato omissivo, ou melhor, autor colateral de omissão.16 Por fim, se alguém, pela violência ou ameaça, impede a ação salvadora devida, praticará crime comissivo, tendo em vista o resultado. Não há autoria mediata em crime omissivo. A instigação, igualmente, é ação e se resolve segundo os critérios dos crimes comissivos.17 Exemplo: “A”, mediante o emprego de violência física ou moral, impede que “B” preste socorro a “C” que se encontra numa situação de perigo, por inimizade com este último. No caso, “A” responderá por crime comissivo. Haverá, igualmente, crime comissivo, no caso de “A” instigar “B”, prestes a salvar “C”, a não prosseguir nesta atividade.18 15. Entretanto, nada impede, dogmaticamente, a construção de delitos omissivos culposos, conforme os exemplos compilados por Muñoz Conde: atuação negligente sobre a falta de gravidade de uma situação típica de socorro ou, ainda, na falta de adoção das cautelas devidas na execução da ação mandada. (Muñoz Conde, Francisco. Op. cit., p. 51). 16. Cf. Tavares, Juarez. Op. cit., p. 86. 17. Cf. Fragoso, Heleno Cláudio. Op. cit., p. 285. 18. Segundo Juarez Tavares, também responde por crime comissivo o agente que, num quadro de salvamento a alguém que se afoga o agente, após ter lançado um salva-vidas e, “uma vez agarrado pelo acidentado, contudo reconhece no afogado seu inimigo e refletindo acerca da fortuna do acidente resolve abandoná-lo à própria sorte. Incontinente solta a corda e deixa que a vítima se afogue.” (Tavares, Juarez. As controvérsias..., cit., p. 43. No mesmo sentido: Roxin, Claus. Derecho Penal, cit., p. 358). 208
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15.4. Tipos omissivos impróprios
O
omissão imprópria, também denominados comissivos por omissão ou de omissão qualificada, são aqueles que se perfazem quando o omitente, pela posição especial em que se colocou, não evita a produção do resultado a que estava obrigado a impedir. Para essa categoria delitiva a lei impõe ao agente não apenas o dever de motivar-se, mas, igualmente, o dever de atuar para impedir a ocorrência do evento desvalioso. Trata-se, consequentemente, de modalidade especial de crime material, isto é, de resultado. A grande característica dos delitos omissivos impróprios reside no fato de que a figura típica correspondente descreve, a princípio, uma conduta comissiva. Todavia, implicitamente, isto é, juntamente com a norma que impõe a abstenção do comportamento lesivo ao bem jurídico, há outra que exige daqueles que se encontram numa determinada relação especial para com o bem jurídico, que atuem para impedir a ocorrência do resultado. Nesse sentido, enquanto na omissão própria a tipicidade se opera por meio de uma única norma penal (incriminadora), no delito comissivo por omissão faz-se necessária uma segunda norma para a aferição da tipicidade de determinada inação. Esta segunda norma tem por função indicar o seleto grupo de pessoas que por razões previamente eleitas encontram-se obrigadas a agir para obstar o evento. Esses indivíduos especialmente vinculados com determinados bens jurídicos, são chamados de garantidores, que, segundo Guilhermo Sauer, devem prevenir, ajudar, instruir, defender e proteger o bem tutelado ameaçado. São a garantia de que um resultado lesivo não ocorrerá, pondo em risco ou lesando um interesse tutelado pelo Direito.19 s tipos de
15.5. A posição de garantidor
A
ou garante foi objeto de acesa discussão doutrinária desde a obra de Feuerbach, notadamente em função da inexistência legal de critérios definidores dessa condição jurídica. Na ausência da lei, a doutrina se encarregou de estabelecer os parâmetros daquele dever de atuar, tendo Mezger, baseado na jurisprudência e em normas consuetudinárias, distinguido as seguintes situações para a punibilidade do omitente: (1) fundamentação imediata do dever em virtude de um preceito jurídico (lei); (2) fundamentação do dever por especial aceitação (negócio jurídico ou contrato); (3) fundamentação por um fazer precedente (ingerência).20 Releva salientar que, na sua redação originária, o Código Penal de 1940 nada dispunha sobre as fontes originárias da posição de garantidor. Por outro lado, a Parte Geral de 1984 passou a indicar, no § 2o, do art. 13, sob a rubrica “relevância da omissão”, que posição de garantidor
19. Apud Bitencourt, Cezar Roberto. Op. cit., p. 251. 20. Mezger, Edmund. Op. cit., p. 302 e segs. 209
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a omissão é penalmente relevante quando o omitente devia e podia agir para evitar o resultado. Assim, o dever de agir incumbe a quem: (a) tenha por lei obrigação de cuidado, proteção ou vigilância; (b) de outra forma, assumiu a responsabilidade de impedir o resultado; (c) com seu comportamento anterior, criou o risco da ocorrência do resultado. A tríade “lei, contrato e ingerência”, firmou-se, pois, tanto na doutrina como na generalidade das leis penais. Por outro lado, antes de se adentrar no exame pormenorizado de cada figura do garante, faz-se necessário registrar, primeiramente, a impropriedade da expressão “relevância da omissão” (art. 13, § 2o), direcionada, in casu, para os crimes omissivos impróprios, pois o legislador parece olvidar que há igual relevância nas hipóteses de crimes omissivos próprios, conforme a explanação anteriormente realizada. Saliente-se, ainda, que há quem critique a escolha de se regular na Parte Geral do CP a definição dos crimes omissivos impróprios, uma vez que, tratando-se de hipótese de tipo penal aberto, cujo conteúdo – o dever de agir imposto ao garantidor – é “fechado” pelo juiz, no exame do caso concreto, poder-se-ia estar vulnerando o princípio da legalidade: nullum crimen nulla poena sine lege certa. Nesse sentido, alguns autores sustentam, tal como ocorre com o crime culposo, que deveria ser adotada a fórmula de construir, na Parte Especial do CP, específicas figuras de omissão imprópria.21 Todavia, a orientação assumida por nosso legislador de englobar, num tipo único e aberto da Parte Geral, as hipóteses de crimes comissivos por omissão, parece estar em sintonia com a tendência verificada nos Códigos Penais mais modernos.22 Ademais, em princípio, todos os crimes comissivos podem ser praticados por omissão. Excluem-se somente aqueles cuja ação típica envolve, necessariamente, um comportamento ativo, como é o caso, por exemplo, da bigamia.23 15.5.1. A lei como fonte da posição de garantidor
A primeira das fontes da posição de garantidor é aquela estabelecida por uma determinada lei que impõe a determinadas pessoas a obrigação de cuidado, proteção ou vigilância de outras. Nesse sentido, o Código Civil, quando cuida do Direito de Família, regula o dever de assistência dos pais em relação aos filhos (arts. 1.596 e 1.634, I e II, do CC) ou entre os cônjuges (arts. 1.566, III e IV, e 1.568, do CC). Igual obrigação incide sobre o médico, no sentido de atender os pacientes que se encontram, por exemplo, acidentados, uma vez que o médico tem essa especial função de garantia a não superveniência de um resultado letal, e esse dever lhe é imposto por lei.24
21. 22. 23. 24. 210
Cf. Franco, Alberto Silva. Crimes comissivos por omissão. In: Temas de Direito Penal. São Paulo: Saraiva, 1986, p. 38. Nesse sentido, os seguintes diplomas: CP Alemão, art. 13; CP de Portugal, art. 10 o; CP da Espanha, art. 11. Fragoso, Heleno Cláudio. Op. cit., p. 286. Bitencourt, Cezar Roberto. Op. cit., p. 252.
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15.5.2. A assunção voluntária da posição de garantidor
A segunda hipótese é a de quem, de outra forma, assumiu a responsabilidade de impedir o resultado. No passado, a doutrina entendia que essa fonte provinha do contrato ou do negócio jurídico. Posteriormente, chegou-se ao consenso de não se limitar à figura do contrato, com as formalidades próprias do direito privado – onde, inclusive, poder-se-ia discutir a validade do contrato –, uma vez que a essência dessa fonte é a assunção voluntária da missão de garantidor e essa assunção pode se dar formal ou informalmente (até mesmo com um simples gesto positivo ou acenar a cabeça). Nesse sentido, Heleno Fragoso assevera que o dever de garantidor não se confunde com o dever contratual, sendo indiferente às limitações que surjam do contrato, inclusive à validade jurídica deste. Desse modo, é indispensável e suficiente que o agente tenha assumido a posição de fato de garantidor, mesmo que a isto não o obrigue o contrato.25 Exemplos: 1. Guia de excursão que se comprometeu a levar determinados estudantes até o cume de uma famosa montanha, resolve abandoná-los. Perdidos no meio da perigosa trilha da montanha, um dos estudantes escorrega e cai fatalmente num abismo existente na rocha. 2. Enfermeira que, após concordar com uma colega de ficar além do horário de trabalho no hospital, deixa de ministrar o remédio indispensável à saúde de certo paciente, decorrendo, desse fato, a morte deste último. 3. Transeunte que, com um aceno de cabeça, aceita tomar conta de uma criança que está no alto da escadaria de um prédio, enquanto o pai da mesma busca uma rápida informação na recepção daquele edifício, vindo a criança a precipitar-se pelos degraus, falecendo por traumatismo craniano. Nos três episódios, o garantidor responderá por homicídio doloso ou culposo, conforme tenha atuado com dolo (direto ou eventual) ou culpa (consciente ou inconsciente).
15.5.3. O princípio da ingerência
A terceira fonte da posição de garantidor compreende os casos em que o agente, com seu comportamento anterior, criou o risco da ocorrência do resultado. No caso, a responsabilidade origina-se da atuação precedente que cria ou acentua um estado de perigo para o bem jurídico. Trata-se do princípio da ingerência. Pouco importa que esse comportamento anterior tenha sido doloso ou culposo. Em qualquer hipótese, em virtude da situação de risco criada, deve o garantidor agir para evitar o resultado latente. Conforme lecionado pela doutrina, quem cria o perigo de dano tem a obrigação ou dever jurídico de afastá-lo.26 A propósito, o conhecido exemplo de Nélson Hungria: um hábil nadador convida alguém a acompanhá-lo em longo nado e, a certa altura, percebendo que o companheiro perde as forças, não o acode, deixando-o perecer afogado.27 Há, ainda, outros exemplos: 25. Fragoso, Heleno Cláudio. Op. cit., p. 288. 26. Idem, p. 288. 27. Hungria, Nélson. Op. cit., p. 71. 211
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1. O chefe que, inadvertidamente, tranca o empregado ao término da jornada de trabalho, cientificando-se, posteriormente, do ocorrido, tem o dever de colocá-lo em liberdade ou, do contrário, cometerá o delito de cárcere privado por omissão (art. 148, CP).28 2. Aquele que entra num celeiro cheio de palha e feno fumando um cachimbo do qual, após tropeçar num obstáculo, saltam brasas sobre a palha, que produz um incêndio no local, e nada faz para impedir que o fogo se alastre, responde por delito de incêndio doloso ou culposo (art. 250, caput, ou seu § 2o).29 3. Ainda nesta última hipótese, se o fumante abstém-se de salvar pessoa que se achava no interior daquele celeiro, praticará o crime de homicídio doloso ou culposo (art. 121, caput, ou seu § 3o).30
15.6. Particularidades da omissão imprópria
O
em quaisquer das três hipóteses contempladas no Código, o pressuposto para a atuação do garantidor, segundo se infere do art. 13, § 2o, do CP, é o poder agir. De fato, o dever de impedir o resultado, que incumbe àqueles que se encontram nas circunstâncias relacionadas nas alíneas “a”, “b” e “c”, do citado § 2o, exige aptidões físicas e proximidade espacial entre o sujeito e a vítima. Dessa maneira, não se pode juridicamente exigir de uma pessoa que se encontre no Rio de Janeiro, atue para impedir um resultado que se desenvolve em Manaus. Sob outra vertente, se se tratar de crime comissivo por omissão doloso, o tipo subjetivo requer a consciência da posição de garantidor. O erro quanto a esse estado é o erro de tipo, que exclui o dolo. Por exemplo, se o sujeito se omite em prestar socorro àquele que se encontra em estado de perigo, ignorando tratar-se do próprio filho, praticará (apenas) omissão de socorro, e não homicídio.31 Além do aspecto cognitivo, o dolo exige vontade no sentido de manter-se inerte ou realizar conduta diversa, omitindo-se deliberadamente da ação exigida. Há, em suma, o desejo de atingir o resultado de forma oblíqua, isto é, por meio da abstenção. No crime comissivo por omissão culposo, o agente viola duas ordens normativas: a primeira corresponde ao referido dever de agir; a segunda, ao dever objetivo de cuidado. Ou seja, sendo o resultado previsível para todos os que hipoteticamente estivessem naquela posição, o garantidor deixa de atuar não prevendo (culpa inconsciente) ou prevendo, mas não aceitando (culpa consciente), aquele resultado. bserva-se , ainda , que
Exemplo: “A”, salva vidas, conversa, distraidamente, com uma banhista e não se dá conta dos gritos de socorro do idoso “B”, que se afoga no meio de uma piscina. “A” responderá, em tal hipótese, por homicídio culposo (com culpa inconsciente).
28. 29. 30. 31. 212
Cf. Welzel, Hans. Op. cit., p. 254. Cf. Mezger, Edmund. Op. cit., p. 313. Cf. Fragoso, Heleno Cláudio. Op. cit., p. 289. Idem, p. 289.
Capítulo XV | Teoria do tipo omissivo
No mesmo caso, se “A” vê o idoso “B” se debater na água mas, displicentemente, avalia que não ocorrerá a morte, por confiar na pouca profundidade da piscina, responderá pela morte por afogamento com culpa consciente.
A antijuridicidade e a culpabilidade nos delitos comissivos por omissão – tal como verificado nos delitos de omissão pura –, seguem os ditames da teoria do delito. Desse modo pode a ilicitude ser afastada no caso de estado de necessidade. Por exemplo, um garantidor não agirá de forma contrária ao direito se deixar de salvar a vida da vítima para salvar a sua própria, na hipótese de ambos estarem no meio de um incêndio que consome um prédio. A tentativa é perfeitamente possível nos crimes de omissão imprópria. Como se trata de um delito material, o resultado poderá não se verificar por circunstâncias alheias à vontade do garantidor. No caso vertente, a dificuldade residiria na tormentosa distinção entre atos preparatórios, em regra impuníveis, e início da execução, nos termos do art. 14, II, do CP. Segundo Juarez Tavares, nos delitos comissivos por omissão, “o início da execução se dá com a violação do dever de impedir o resultado, que faz parte do tipo de injusto. Mas essa violação deve manifestar-se concretamente, único modo de colocar em perigo o bem jurídico”.32 Do ponto de vista prático, o início da execução, caracterizador do conatus, ocorrerá quando escoar a última chance de se impedir a lesão ao bem jurídico. Exemplo: “A”, criança de tenra idade, engatinha sobre os trilhos da linha férrea, sendo que “B”, sua mãe, assiste a cena impassível. Entretanto, o trem só passa pelo local uma vez por dia, o que, no caso, só ocorrerá daqui a um par de horas. Dessa maneira, a abstenção de “B” situa-se em atos preparatórios. Só entrará no estágio de início de execução quando a composição férrea estiver, efetivamente, perto de passar pelo local.33
Por fim, sobre a questão do concurso de agentes, vale ressaltar que o delito de omissão imprópria requer do sujeito uma qualidade especial. Em razão disso, não cabe falar em coautoria ou em participação, uma vez que cada garantidor viola, por si só, o seu dever de agir, vinculando-se, isoladamente, por força da lei, ao resultado. Exemplo: Se o pai e a mãe deixam, de comum acordo, de alimentar o filho pequeno, cada um pratica, de per si, homicídio comissivo por omissão.
32. Tavares, Juarez. As controvérsias..., cit., p. 93. 33. Idem, p. 93. 213
título
III
capítulo
teoria geral do crime
XVI
ANTIJURIDICIDADE 16.1. Considerações gerais
C
Capítulos precedentes, preenchido objetiva e subjetivamente o tipo penal e não existindo, no caso concreto, quaisquer das causas de justificação, restará evidenciada a antijuridicidade da conduta. A propósito, Claus Roxin afirma que uma conduta típica será antijurídica se não houver fatores como a legítima defesa ou o estado de necessidade que excluam a antijuridicidade.1 Pode-se, assim, definir a antijuridicidade como sendo o juízo de contrariedade entre a conduta típica e o ordenamento jurídico no conjunto de suas proibições e permissões. As proibições são os tipos legais, como descrição de ações realizadas ou omitidas; as permissões são as justificações legais e supralegais, como situações especiais que excluem as proibições.2 Observa-se, pois, que a antijuridicidade é, fundamentalmente, uma valoração que se realiza acerca da natureza lesiva de um comportamento humano contrário ao conjunto de normas legais. Com efeito, ao cunhar os tipos penais, o legislador faz uma eleição dos comportamentos que violam os bens jurídicos mais relevantes (vida, integridade física, honra, patrimônio etc.); seleciona, enfim, condutas ilícitas. Quando alguém realiza um fato que se amolda (objetiva e subjetivamente) a um tipo onforme apre sentad o nos
1. Roxin, Claus. Derecho Penal. Parte General. Tomo I. 2. ed. Trad. Luzón Peña et al. Madrid: Civitas, 2006, p. 195. 2. Santos, Juarez Cirino dos. Direito Penal. Parte Geral. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p. 217. 214
Capítulo XVI | Antijuridicidade
penal, presume-se, de imediato, a sua antijuridicidade. Não obstante, pode acontecer, no caso concreto, da conduta estar coberta por uma causa justificante. Se isto ocorrer, afasta-se a antijuridicidade, conquanto permaneça a conduta típica. É por essa razão que a antijuridicidade da conduta típica é determinada por um critério negativo, qual seja, a ausência de causas de justificação. Segundo Juarez Cirino dos Santos, a praticidade desse critério explica sua adoção generalizada: ausente causa de justificação, está caracterizada a antijuridicidade; presente uma causa de justificação, está excluída a antijuridicidade.3
16.2. Esclarecimentos terminológicos
M
antijuridicidade em si seja de fácil compreensão, a utilização generalizada, pela doutrina, de vários conceitos a ela relacionados pode acarretar certas dificuldades aos estudiosos da dogmática penal. Sendo assim, cumpre efetuar alguns esclarecimentos terminológicos. uito embora a
A) Antijuridicidade e ilicitude
A rigor, antijuridicidade e ilicitude são expressões equivalentes. A opção entre uma ou outra expressão varia de autor para autor, de escola para escola. Nesse sentido, os autores portugueses preferem utilizar a expressão ilicitude. Diferentemente, os autores de origem espanhola e italiana adotam, em regra, a expressão antijuridicidade, por se tratar, literalmente, da tradução da palavra alemã Rechtfertigungsgründe.4 A doutrina brasileira usa, indistintamente, as duas expressões. Alguns autores, contudo, preferem seguir a tradição lusitana como, por exemplo, Francisco de Assis Toledo. Segundo este autor, ilicitude seria o termo mais adequado, pois a expressão antijuridicidade encerraria uma contradictio in terminis, uma vez que o crime é um “fato jurídico”. Ora, o que é jurídico não pode, ao mesmo tempo, ser antijurídico.5 A Reforma Penal de 1984, sob influência do pensamento de Assis Toledo, adotou a expressão ilicitude, conforme se pode constatar da leitura, v.g., dos arts. 21 e 23, do CP. Todavia, como ponderado por Cezar Roberto Bitencourt, a despeito da opção do legislador, não se pode ignorar que a palavra “antijuridicidade”, além de tradicional no Direito 3. Idem, p. 218. 4. Sobre o ponto, em nota de rodapé, João Mestieri, ao afirmar que prefere a expressão ilicitude ao invés de antijuridicidade, afirma acolher observação de Faustino Ballvé, que traduziu para o espanhol a monografia de Alexander Graf zu Dohna, Die Rechtswidrigkeit. Ballvé, ao apresentar a tradução, teria escrito: “não sei como pode prevalecer a espantosa tradução (Rechtswidrigkeit = contrária ao direito), ‘antijuridicidade’. O jurídico refere-se ao conceito do direito e em tal sentido uma coisa pode ser jurídica ou não ser jurídica (física, matemática, etc.), mas não pode ser antijurídica. O peixe não é carne, mas não é o ‘anti-carne’ ... intitulei, pois, o livrinho, em tradução correta, La Ilicitud ”. (Mestieri, João. Manual de direito penal: Parte Geral. Vol. I, Rio de Janeiro: Forense, 2002, p. 143, nota 1). 5. Toledo, Francisco de Assis. Princípios básicos de Direito Penal. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 1994, 159. Segundo o autor, a presente discussão não seria meramente terminológica, pois, na verdade, é uma questão de fundo que, optando-se pela “ilicitude”, permitiria situar o delito, como ato ilícito, no único local que verdadeiramente lhe cabe, em uma visão sistemática do Direito (Idem, p. 160). 215
Curso de Direito Penal | Parte Geral
Penal, possui expressividade maior do que a genérica “ilicitude”, sendo, ademais, de uso corrente nos principais centros dogmático-penais.6 Seguimos a orientação deste autor. B) Antijuridicidade e injusto
Antijuridicidade (ou ilicitude) não se confunde, contudo, com injusto, que vem a ser o próprio fato valorado como antijurídico. A antijuridicidade é noção de contrariedade para com o ordenamento jurídico e, injusto, é a conduta em si avaliada como antijurídica. A antijuridicidade é uma qualidade do injusto. A antijuridicidade é unitária, para todo o ordenamento jurídico, e não pode ser maior ou menor. O injusto pode ser penal, civil ou trabalhista e é suscetível de ser mais ou menos grave.7 Conforme lecionado por Roxin, os conceitos sistemáticos penais da antijuridicidade e do injusto se distinguem na medida em que a antijuridicidade designa uma propriedade da ação típica, a saber, sua contradição com as proibições e mandatos do Direito Penal, enquanto que por injusto se entende a própria ação típica e antijurídica, ou seja, o objeto de valoração da antijuridicidade junto com seu predicado de valor.8 C) Antijuridicidade e antinormatividade
Welzel9 distingue, ainda, antijuridicidade de antinormatividade. Esta é a contradição do fato realizado para com a norma proibitiva do tipo penal pertinente. A realização da conduta típica acarreta sua antinormatividade. Mas, para que haja antijuridicidade, é preciso cotejar o fato com o conjunto das normas proibitivas e permissivas (ordenamento como um todo). Assim, embora havendo a antinormatividade, pode ser que o fato esteja acobertado por uma norma permissiva (exemplo: estado de necessidade), nesse caso, não haverá antijuridicidade. Assim, o tipo é uma figura conceitual que descreve, mediante conceitos, formas possíveis de conduta humana. A norma proíbe a realização destas formas de conduta. Se se realiza a conduta descrita conceitualmente no tipo de uma norma proibitiva (assim, por exemplo, o dar a morte a um homem), esta conduta real entra em contradição com a exigência da norma. Daí se deriva a antinormatividade da conduta. Dessa forma, toda realização do tipo de uma norma proibitiva é certamente antinormativa, porém não é sempre antijurídica. Pois o ordenamento jurídico não se compõe só de normas mas também de preceitos permissivos (autorizações). Existem preceitos permissivos que permitem, em certos casos, a conduta típica, por exemplo, a realização do tipo “dar morte a um homem” no caso de legítima defesa ou de guerra. Sua interferência impede que a norma geral (abstrata) se converta em um dever jurídico concreto para o autor. Neste caso, a realização de um tipo de proibição está conforme o Direito. Antijuridicidade é,
6. 7. 8. 9. 216
Bitencourt, Cezar Roberto. Op. cit., Fragoso, op. cit., p. 221. Roxin, op. cit., p. 557. Welzel, op. cit., p. 60.
Capítulo XVI | Antijuridicidade
portanto, a contradição de uma realização típica com o ordenamento jurídico em seu conjunto (não só com uma norma isolada).10 D) Antijuridicidade e tipicidade conglobante
Por fim, ainda no campo terminológico, merece registro o pensamento de Zaffaroni, quando aparta tipicidade legal e tipicidade penal. Segundo ele, a tipicidade penal pressupõe a tipicidade legal, exigindo, porém, que a conduta seja antinormativa. É a chamada teoria da tipicidade conglobante. Segundo esta tese, o juízo de tipicidade não é um mero juízo de tipicidade legal, mas exige outro passo, que é a comprovação da tipicidade conglobante, consistente na averiguação da proibição por meio da indagação do alcance proibitivo da norma, não considerada isoladamente, e sim conglobada na ordem normativa. A tipicidade conglobante é um corretivo da tipicidade legal, posto que pode excluir do âmbito do típico aquelas condutas que apenas aparentemente estão proibidas.11 A teoria da tipicidade conglobante, assim, cria novo critério a ser avaliado quanto à conduta típica, advogando a tese de que determinado comportamento, apesar de amoldado ao tipo legal (exemplo: oficial de justiça que cumpre mandado de penhora, fato este que se amolda na violação de domicílio – art. 150), por estar autorizado por outra norma (processual), não forma a tipicidade penal, não será típico. A doutrina tradicional diria que o fato é típico, mas não é antijurídico, em face do estrito cumprimento do dever legal.
16.3. Aspectos formal e material da antijuridicidade
A
na contradição do fato para com o conjunto de normas jurídicas. Já a antijuridicidade material, é a consideração desse mesmo fato, sob o aspecto do desvalor da lesão ou perigo acarretado ao bem jurídico. A antijuridicidade material se constitui da lesão produzida pelo comportamento humano que fere o interesse jurídico protegido, isto é, além da contradição da conduta praticada com a previsão da norma, é necessário que o bem jurídico protegido sofra a ofensa ou a ameaça potencializada pelo comportamento desajustado.12 Alguns autores fundem os conceitos de antijuridicidade formal e material. Nesse sentido, leciona Assis Toledo que a ilicitude é “A relação de antagonismo que se estabelece entre uma conduta humana voluntária e o ordenamento jurídico, de modo a causar lesão ou expor a perigo de lesão um bem juridicamente tutelado”.13 Por outro lado, a concepção material da antijuridicidade acarreta as seguintes consequências: (1) Construção jurisprudencial do chamado princípio da insignificância (crimes antijuridicidade formal consiste
10. Idem, ibidem. 11. Zaffaroni, Alagia, Slokar, op. cit., p. 351-355. No mesmo sentido: Raizman, Daniel Andrés. Direito Penal, 1: Parte Geral. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 85. 12. Bitencourt, op. cit., p. 315. 13. Toledo, Francisco de Assis. Princípios básicos de direito penal. 5. ed, São Paulo: Saraiva, 1994, p. 85-86. 217
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de bagatela; insignificantes lesões a determinados bens jurídicos); (2) Possibilidade de existirem causas supralegais de exclusão da antijuridicidade (exemplo: consentimento do ofendido); e (3) Despenalização de certos comportamentos típicos (evolução ético-social, que acarretaria a desnecessidade de proteger penalmente determinados bens, como ocorre com o crime de adultério e o fim da indissociabilidade do vínculo matrimonial – adoção do divórcio no Brasil).
16.4. Causas de exclusão da antijuridicidade
C
a antijuridicidade é indiciada com a tipicidade (objetiva e subjetiva) do fato. Pode, porém, ocorrer a incidência de uma causa que exclua a antijuridicidade do fato, mantendo-se apenas sua tipicidade. Quando isto ocorre, não há o crime. Assim, pode-se dizer que os comportamentos típicos são, em regra, ilícitos, salvo se estiver presente uma causa de justificação. As causas de exclusão da antijuridicidade, ou causas de justificação, estão, em regra, previstas na Parte Geral do Código (arts. 23 e seguintes, do CP), podendo, contudo, vir excepcionalmente reguladas na Parte Especial (v.g., arts. 128, I e II, e 146, § 3o, I e II, do CP). Podem também fundar-se no direito consuetudinário e resultam da totalidade do ordenamento jurídico. Isso significa que se a ação é permitida por outro ramo do direito (por exemplo, pelo direito civil), não pode ser antijurídica perante o direito penal.14 É possível, ainda, encontrar excludentes da antijuridicidade na legislação penal especial. Nesse sentido, merece destaque a causa de justificação da destruição de aeronave que estiver voando no espaço aéreo brasileiro e for classificada como hostil por parte das autoridades aeronáuticas, fazendárias ou policiais federais. O abate da aeronave – obviamente com a morte dos seus ocupantes – pressupõe o esgotamento dos meios coercitivos de pouso no aeródromo indicado, bem assim a autorização expressa do Presidente da República ou autoridade por ele delegada (art. 303, da Lei no 7.565/1986, com a redação alterada pela Lei no 9.614/1998). Há, ainda, causas de justificação previstas também na lei processual penal. Seria o caso, por exemplo, da prisão em flagrante (art. 301, CPP), já que qualquer pessoa poderá e as autoridades policiais e seus agentes deverão prender quem quer que seja encontrado em flagrante delito, sem que tal conduta configure qualquer ilícito penal. Haverá, na hipótese, exercício regular de direito ou de estrito cumprimento do dever legal, conforme o caso (CP, art. 23, III). Por outro lado, nada impede que, em tese, possa existir causa supralegal de exclusão da antijuridicidade, isto é, não regulada em nenhum diploma legal. Em outros termos, é possível que surjam comportamentos considerados justificados pela consciência social, muito embora ainda não arrolados pelo legislador como causas de exclusão da antijuridicidade. onforme já salientado,
14. Fragoso, op. cit., p. 226. 218
Capítulo XVI | Antijuridicidade
Contudo, no Direito brasileiro, em função da amplitude da causa de justificação do art. 23, III, parte final, do CP – exercício regular de direito –, a doutrina em geral reconhece existir uma única causa supralegal de exclusão da antijuridicidade: o consentimento do ofendido. Desse modo, pode-se dizer que as causas de exclusão da ilicitude poderiam ser classificadas em três grandes grupos: (1) causas que defluem de situação de necessidade (legítima defesa e estado de necessidade); (2) causas que defluem da atuação do direito (exercício regular de direito, estrito cumprimento de dever legal); e (3) causa que deflui de situação de ausência de interesse (consentimento do ofendido).15 Os dois primeiros grupos estão previstos na lei penal e, por isso, são denominados causas legais de justificação. Já o terceiro é conhecido como causa supralegal de justificação. 16.4.1. O consentimento do ofendido
O consentimento do titular do bem jurídico não é previsto de forma expressa pela legislação penal brasileira, sendo muitas vezes considerado causa supralegal de justificação, regida pelos princípios gerais do direito.16 Este entendimento, no entanto, não dirime todas as questões pertinentes à aquiescência por quem estiver legitimado com a conduta lesiva ou perigosa ao bem jurídico que lhe é afeto. De acordo com Manoel da Costa Andrade, esta aquiescência ou consentimento pode desempenhar duas funções distintas na estrutura do delito: excludente da tipicidade ou causa de justificação.17 Nesta perspectiva dualista, o consentimento que exclui a tipicidade (consentimento-acordo) se conecta a tipos que preveem uma ação contrária ou sem a vontade do titular do bem jurídico, isto é, uma conduta invito laeso. O acordo se dá em tipos que exigem de forma expressa o atuar contra ou sem a vontade do titular do bem jurídico (art.150, do CP); nos tipos penais que, embora não expressamente, também exigem esta atuação à revelia do titular do bem jurídico em razão da própria descrição da conduta incriminada (art.146 a art.148, do CP); e, por fim, tipos que tem por objeto bens jurídicos de caráter personalíssimo (crimes contra a honra).18 O consentimento-justificação, que exclui a antijuridicidade, é aplicável aos tipos penais que não se enquadram nas hipóteses anteriores. Há lesão ou perigo ao seu bem jurídico que enseja a tipicidade da conduta, mas não há antijuridicidade. A aquiescência justifica a conduta na medida em que o afetado não tem interesse ou abandona a proteção estatal ao bem jurídico. 15. Idem, ibidem. 16. Stevenson, Oscar. Da exclusão do crime. São Paulo: Saraiva & Cia., 1941. pp.113 et seq.; Magalhães, Délio. Causas de exclusão de crime. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 1975. p.141; Bruno, Aníbal. Direito Penal: parte geral. 2º tomo. 4. ed. Rio de Janeiro, Forense, 1984 17. Andrade, Manuel da Costa. Acordo e consentimento em Direito Penal: contributo para a fundamentação de um paradigma dualista. Coimbra: Coimbra editora, 2004. 18. Araújo, Rômulo Souza de. O consentimento do titular do bem jurídico-penal. Dissertação apresentada no Programa de Mestrado em Direito penal da UERJ, 2011. pp.111-112. 219
Curso de Direito Penal | Parte Geral
Nestes e em outros casos faz-se necessária a presença dos seguintes requisitos: (1o) que se trate de ofendido com capacidade jurídica para consentir, ou seja, com maturidade e sanidade mental; (2o) que se trate de manifestação de vontade idônea, isto é, não obtida por coação, simulação, fraude, erro e outros defeitos previstos na lei civil; (3o) que se trate, como visto acima, de consentimento para lesão de bens disponíveis (liberdade de locomoção, patrimônio, honra etc.); e (4o) que o consentimento ocorra antes ou durante a realização da conduta por parte do agente. O consentimento a posteriori não elimina a antijuridicidade do fato, embora, do ponto de vista processual, possa redundar no fenômeno da cifra negra, isto é, dos casos não levados ao conhecimento dos órgãos de repressão penal.19 Esta classificação do consentimento, no entanto, recebe críticas por não se basear em um critério distintivo idôneo, podendo produzir soluções arbitrárias do ponto de vista dogmático, principalmente em relação à necessidade de manifestação de vontade do consciente, que seria exigível apenas nos casos de consentimento-justificação. Neste sentido, o consentimento é considerado apenas como causa de exclusão da tipicidade.20 Acordo e consentimento devem ter o mesmo tratamento dogmático, sendo desnecessária mesmo a utilização de tal nomenclatura.21 Em relação ao consentimento como acordo, tal como ocorre na teoria dualista, se a hipótese legal contiver a vontade divergente do titular do bem jurídico ou sendo diretamente protegida a liberdade individual em suas diferentes dimensões, o consentimento resulta na atipicidade. Entretanto, quanto ao consentimento-justificação, esta revisão crítica considera não ser segura a determinação de tipos penais referentes a bens jurídicos individuais ou pessoais que, de alguma maneira, não tenham por objeto alguma dimensão da liberdade de autodeterminação individual.22 Ademais, com a teoria da imputação objetiva, incorporando na avaliação do risco ao bem jurídico o comportamento do seu próprio titular, torna desnecessária a discussão no campo da antijuridicidade.23 O consentimento seria, neste caso, elemento a ser considerado integralmente na tipicidade.24
19. Sobre cifra negra da criminalidade, vide Dias, Jorge de Figueiredo; Andrade, Manuel da Costa. Criminologia: o homem delinqüente e a sociedade criminógena. 2. reimpressão, Coimbra: Coimbra, 1997, p. 384 e seguintes. 20. Cf. Rudolphi, Hans-Joachim. Causalidad e imputación objetiva. Trad. Claudia López Díaz. Bogotá: Universidad Externato de Colombia-Centro de Investigaciones de Derecho Penal y Filosofia del Derecho, 2006. pp.63-65; Roxin, Claus. Derecho Penal: parte general. Tomo I. Fundamentos. La estrctura de la Teoría del Delito. Trad. Diego-Manuel Luzón Peña, Miguel Díaz y García Conlledo e Javier de Vicente Remesal. 2. ed. Madrid: Civitas, 2008.p.511 et seq.; Polaino-Orts, Miguel. Alegato en favor de un tratamiento jurídico-penal unitario para los casos de acuerdo y consentimiento como causas de atipicidad. Cuadernos de Política Criminal, Madrid, n. 82, p.163-204, 2004; Mir Puig, Santiago. Derecho Penal: parte general. 7. ed. Buenos Aires: B de ƒ, 2005. pp.506-7; Santos, Juarez Cirino. A moderna teoria do fato punível. 4. ed. Curitiba: ICPC; Lumen juris, 2005. p.190. 21. Polaino-Orts, Miguel. Op. cit. p.197. 22. Idem. Ibidem. loc.cit. 23. Araújo, Rômulo Souza de. Op. cit. 24. Mir Puig, Santiago. Op. cit., p. 506. 22 0
Capítulo XVI | Antijuridicidade
16.4.2. Demais causas supralegais no Direito Penal brasileiro
Segundo a doutrina brasileira, há dificuldade de reconhecer outras causas supralegais (afora o consentimento do ofendido), por conta da redação da figura do exercício regular de direito (art. 23, III). Com efeito, os exemplos que a doutrina estrangeira indica para fundamentar algumas hipóteses de supralegalidade se amoldam, em linhas gerais, ao exercício regular de direito no Brasil.25 É por isso que se qualifica o regular exercício de um direito como uma espécie de tipo justificante aberto.
16.5. Elemento subjetivo das causas de justificação
A
para a excludente de ilicitude, apenas o preenchimento do seu aspecto objetivo, sendo indiferente a relação anímica entre o agente e o fato justificado. Ainda hoje, existe ainda divergência entre autores quanto a este tema.26 Apenas, a título exemplificativo, Zaffaroni, Alagia e Slokar27 sustentam que os requisitos das causas de justificação devem ser meramente objetivos. Já Juarez Tavares28 considera que basta julguemos possível a ocorrência de situação de necessidade. Roxin,29 por sua vez, defende que o agente atue, subjetivamente, com conhecimento da situação justificante. Jescheck e Weigend,30 por seu turno, exigem que o autor se conduza com animus defendendi. Não obstante, o entendimento majoritário tem sido no sentido de exigir congruência entre os elementos objetivos e subjetivos do tipo delitivo e, igualmente, congruência entre os aspectos objetivos e subjetivos da causa de justificação.31 Assim, é preciso que o agente conheça a situação justificante e que atue amparado pelo Direito. Existe, assim, uma relação de simetria entre tipos legais, ou tipos de proibição, e justificações, ou tipos de permissão. Como as justificações excluem não somente o desvalor do resultado, mas o próprio desvalor da ação típica, a ausência dos elementos subjetivos das justificações significa dolo não justificado de realização do injusto. A mulher que, pensando atirar no marido ao retornar da orgia noturna, atinge o ladrão armado tentando entrar na casa, age com dolo não justificado de homicídio.32 doutrina antiga e xigia ,
25. Seria o caso, por exemplo, da salvaguarda de interesses legítimos (Roxin, op. cit., p. 781 e seguintes). 26. Sobre o tema, vide Fragoso, Christiano. Sobre a necessidade do animus defendendina legítima defesa. Boletim IBCCRIM v. 10, n. 112, São Paulo: IBCCrim, mar./ 2002. p. 13-15. 27. Zaffaroni, Eugenio Raúl; Alagia, Alejandro; Slokar, Alejandro. Derecho penal – Parte General. 2. ed, Buenos Aires: Ediar, 2002, p. 601-602. 28. Tavares, Juarez. Teoria do injusto penal. Belo Horizonte: Del Rey, 2000, p. 254-255. 29. Roxin, op. cit., p. 597. 30. Jescheck, Weigend, op. cit., p. 352 e seguintes. 31. A título ilustrativo: Toledo, op. cit., p. 173-174; Bitencourt, op. cit., p. 371; Prado, op. cit., p. 402; e Fragoso, op. cit., p. 229. 32. Santos, op. cit., p. 223. 221
Curso de Direito Penal | Parte Geral
As condutas justificantes devem ser finais como todas as condutas humanas. A finalidade justificante, que se assenta sobre o conhecimento da situação objetiva de permissão, funciona como um elemento subjetivo que excede o dolo do tipo subjetivo proibitivo. Nestes termos, na legítima defesa, por exemplo, o sujeito mata o agressor para se defender. No caso, a elementar “para defender-se” é um elemento subjetivo que vai além do dolo: é indiferente para o tipo do homicídio, mas integra o tipo subjetivo permissivo. Da mesma forma que ocorre com a verificação do elemento subjetivo do tipo incriminado (o dolo), o elemento subjetivo do tipo permissivo é composto de duas partes: conhecimento e vontade. É necessário o conhecimento da situação fática de justificação e a vontade de agir licitamente: matar para se defender; agredir para afastar o perigo; fazer tal coisa para exercer regularmente um direito subjetivo; praticar tal ato para cumprir estritamente o dever legal; efetuar aborto para salvar a vida da gestante etc. Sobre o ponto, Juarez Cirino dos Santos33 assinala que o erro constitui fenômeno psíquico em oposição diametral ao conhecimento, como sua antítese negativa e, nas justificações, igualmente tem por objeto a situação justificante, também definida como pressuposto objetivo das justificantes: se a situação justificante é objeto do conhecimento nas justificações, então é, necessariamente, objeto do erro respectivo, porque conhecimento e erro são fenômenos psíquicos contrários e excludentes.
16.6. Excesso nas causas justificantes
A
se verifica nas hipóteses em que, embora agindo, inicialmente, acobertado por uma justificante, o agente extrapola a autorização legal, lesando desarrazoadamente bem jurídico alheio. Há, portanto, um momento inicial lícito. Tudo o que realizou dentro deste terreno será tido como lícito. Num segundo momento, o agente excede e os resultados que a partir daí se verificarem serão imputados ao agente, seja a título de dolo, seja por culpa. Excede-se, assim, ao que seria razoavelmente tolerado nas circunstâncias fáticas em que agiu. Em linhas gerais, a questão do excesso é tratada na legítima defesa, embora possa ocorrer em quaisquer das outras causas justificantes, tendo em vista que se encontra regulado no parágrafo único do art. 23, do CP. Basta pensar, por exemplo, na diferença entre uso e abuso do exercício de um direito. questão do e xces so
A) Excesso doloso
O excesso pode ser doloso, em hipótese na qual o agente deliberadamente aproveita-se da situação inicial justificante, para realizar um resultado a maior. 33. Idem, p. 224. 222
Capítulo XVI | Antijuridicidade
Exemplo: “A”, aproveitando-se de uma injusta agressão partida de “B”, pessoa fraca e desarmada, reage com um potente golpe seguido de um mortal estrangulamento. Nesse caso, prevalece o dolo da conduta, podendo, quando muito, o agente se beneficiar da circunstância atenuante do art. 65, III, “c”. Dependendo do caso, poderá, ainda, incidir o privilégio do art. 121 § 1o, do CP. B) Excesso culposo
O excesso pode ser culposo, quando for involuntário, decorrendo da violação de um dever de cuidado exigido mesmo na realização de uma conduta justificante. Exemplo: “A”, querendo prestar socorro a “B”, gravemente enfermo, conduz perigosamente uma ambulância pelas vias públicas, avançando um sinal de trânsito próximo de uma escola, no horário de entrada ou saída de crianças, acarretando, dessa feita, um atropelamento de um estudante.
Em suma, excesso é a intensificação desnecessária da conduta inicialmente justificada. No âmbito judiciário, especialmente nos casos levado a júri, vê-se, com frequência, a utilização das expressões excesso intensivo, como significando a intensificação desnecessária de uma ação inicialmente justificada, e excesso extensivo, quando o autor simula uma situação de legítima defesa ou há desproporção entre agressão e a defesa.
16.7. Estado de necessidade
E
consiste em hipótese em que o agente pratica conduta típica, mas, por força de colisão de dois ou mais interesses juridicamente protegidos, o sacrifício de um para salvaguardar a sobrevivência do outro estará considerado como justificado, diante da impossibilidade de salvamento de todos os bens postos em perigo. A discussão sobre o tema teria sido desencadeada, ao longo da história, pelo filósofo grego Carnéades (214-129 a.C.), a quem é devida a conhecida Tábua de Carnéades.34 Com o decurso do tempo, desenvolveram-se numerosas variantes desta tábua. Utiliza-se aqui o exemplo original, que é útil à compreensão do estado de necessidade: stado de neces sidade
“A” e “B”, náufragos, tentam sobreviver com uma tábua flutuante, sendo porém manifesto que ela apenas pode suportar um deles. Cada um deles procura afastar o outro da tábua à força. “A” consegue salvar-se, “B” afoga-se. A) Estado de necessidade justificante e estado de necessidade exculpante
Sobre o estado de necessidade existe a discussão entre as chamadas teorias unitária ou diferenciadora, ou seja, se haveria unicamente o chamado estado de necessidade justificante (excludente da ilicitude) ou se existiria, ao lado deste, o chamado estado de necessidade exculpante (excludente da culpabilidade). 34. Kaufmann, Arthur. Filosofia do Direito. 3. ed. Trad. Ulisses Cortês. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2009, p. 340. 223
Curso de Direito Penal | Parte Geral
O Direito Penal Alemão reconhece a existência das duas espécies de estado de necessidade (teoria diferenciadora), tendo o vigente Código Penal Alemão disciplinado que quando o bem jurídico sacrificado for de menor valor do que o bem jurídico protegido, haverá o estado de necessidade justificante; quando, porém, o bem sacrificado for de igual valor ou de maior valor do que o bem protegido, haverá o estado de necessidade exculpante (diante da inexigibilidade de conduta diversa). Pode tal noção, esquematicamente, ser apresentada da seguinte maneira: bem jurídico sacrificado de
bem jurídico protegido de
estado de necessidade
menor valor
maior valor
justificante
igual valor
igual valor
exculpante
maior valor
menor valor
exculpante
No Brasil, todavia, a lei e a maior parte da doutrina não fazem essa distinção.35 Em suma, pela análise do art. 24, não se pode inferir a adoção da teoria diferenciadora, mas, somente, da teoria unitária, isto é, o sacrifício de bens de igual hierarquia será considerado, entre nós, como estado de necessidade justificante. Curiosamente, o Código Penal de 1969 previa a adoção do critério diferenciador, conforme o teor dos seus arts. 25 e 28. Dessa maneira, para o direito brasileiro, haverá estado de necessidade justificante não só diante do sacrifício de bem de menor valor, mas, inclusive, quando ocorrer o sacrifício de bens de igual valor. Isto se deve ao fato de que o citado art. 24, ao prever a razoabilidade do sacrifício¸ assinala que não é razoável alguém sacrificar sua vida ou seu patrimônio para salvar a vida ou o patrimônio alheio. Com relação ao sacrifício de bem de maior valor do que aquele protegido (ex.: vida contra patrimônio), não há, igualmente, previsão legal de estado de necessidade justificante. Nesse sentido, o art. 24, § 2o, alude ao critério da ponderação de bens no estado de necessidade, prevendo, apenas, a atenuação da culpabilidade, não a sua eliminação. Todavia, pode-se dizer que é possível, ao menos teoricamente, o estado de necessidade exculpante, de forma supralegal, visto que, conforme veremos em breve, a noção de inexigibilidade de conduta diversa dá margem a construções desse quilate. Esquematicamente, pode-se mencionar o que segue: bem jurídico sacrificado de
bem jurídico protegido de
estado de necessidade
menor valor
maior valor
justificante
igual valor
igual valor
justificante
maior valor
menor valor
exculpante
35. Exceção: Bitencourt. Op. cit., p. 364-366. 224
Capítulo XVI | Antijuridicidade
16.7.1. Requisitos objetivos do estado de necessidade A) Existência de perigo atual e inevitável
Perigo é a probabilidade de dano ao bem jurídico. Perigo atual é o presente; perigo iminente é o preste a se tornar presente. Evidentemente se o perigo é passado, não pode ser alegado o estado de necessidade. Idem para o perigo futuro, uma vez que a pessoa pode sair da situação periclitante ou buscar auxílio junto às autoridades públicas. Perigo inevitável é aquele que não permite outro meio de fuga. A alternativa única é a de lesão ao bem jurídico alheio. B) Provocação involuntária do perigo
Não pode invocar o estado de necessidade quem, por sua vontade, provocou o perigo. Existe divergência entre os autores brasileiros quanto ao significado da expressão voluntária nesse contexto. Para alguns, somente o perigo causado dolosamente caracteriza o estado necessidade.36 Para outros, tanto faz se o perigo tiver sido causado dolosa ou culposamente, poderá haver a causa de justificação mencionada.37 Das duas, parece mais razoável a noção que se refere exclusivamente ao dolo como exigência para afastar o estado de necessidade. Assim, pode haver estado de necessidade se o agente causou culposamente a situação em que surge o perigo. É o caso, por exemplo, do agente que provoca um incêndio por inobservância do cuidado devido. Pode, no caso concreto, alegar o estado de necessidade, se, para salvar-se, houver causado dano a outrem. C) Salvaguarda de direito próprio ou alheio
O perigo pode atingir bem de qualquer natureza, do agente ou de terceiro. No caso, o agente pode alegar estado de necessidade caso aja para proteger direito próprio ou alheio. Direito próprio significa qualquer bem ou interesse jurídico de sua titularidade que pode vir a ser protegido; direito alheio se refere a qualquer outro bem ou interesse, não sendo exigida qualquer espécie de relação jurídica entre o salvador e o terceiro ameaçado. D) Ausência de dever legal de enfrentar o perigo
Não pode alegar estado de necessidade quem tem o dever legal de enfrentar o perigo (CP, art. 24, § 1o). O dever legal de enfrentar o perigo é próprio de profissões, como a de policial, bombeiro, guarda-vidas etc. Se o Estado investe no aperfeiçoamento profissional de certas profissões, é natural esperar que não se vá furtar ao desempenho da mesma. 36. Bitencourt, op. cit., p. 369. 37. Toledo, op. cit., p. 185-186. 225
Curso de Direito Penal | Parte Geral
É claro que a exigência tem caráter relativo, diante do princípio da razoabilidade, não se podendo esperar que o bombeiro se lance ao prédio já tomado pelas chamas para salvar uma vítima. Dever de enfrentar o perigo não significa a necessidade de heroísmo, que, em última análise, não pode ser exigido de quem quer que seja. 16.7.2. Requisitos subjetivos do estado de necessidade
Ao lado dos aspectos objetivos, há, evidentemente, que estar presente o momento subjetivo, isto é, a consciência e vontade de agir justificadamente. É, pois, indispensável que o agente atue para salvar o bem ameaçado, ou seja, deve ter consciência da situação de perigo e agir para evitar a lesão. A inexistência desse momento subjetivo faz desaparecer o estado de necessidade, sendo a ação antijurídica.
16.8. Legítima defesa
E
defesa quem, usando moderadamente dos meios necessários, repele injusta agressão, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem. (art. 25, CP). Trata-se de forma histórica, reconhecida pelo Estado, de reação imediata contra uma agressão injusta, atual ou iminente. Seu fundamento reside na defesa de bens jurídicos (e na defesa do próprio ordenamento jurídico) quando diante de um ataque injusto. Não atua contra o Direito quem reage para tutelar o próprio direito. Conforme lecionado por Welzel, legítima defesa é aquela resposta requerida para repelir de si ou de outro uma agressão atual e ilegítima. Seu pensamento fundamental é que o Direito não tem por que ceder ante o injusto.38 ntende-se em legítima
16.8.1. Requisitos objetivos da defesa legítima A) Agressão injusta
O primeiro requisito da legítima defesa é a existência de agressão injusta. Agressão é todo comportamento que tende a lesionar ou pôr em perigo um bem jurídico. Pode consistir em ação ou omissão – nos casos em que o agente tem o dever jurídico de atuar, impedindo o resultado. Somente o ser humano é capaz de agressão. Não há, dessa maneira, legítima defesa contra o ataque de animais, mas, sim, estado de necessidade. Ocorre, todavia, agressão se o agente utilizar animal para atacar vítima, podendo, ainda, ocorrer agressão por omissão, no caso de, por exemplo, o agente deixar de controlar um animal bravio.39 38. Welzel, Hans. Op. cit., p. 101. 39. Fragoso, op. cit., p. 228. 226
Capítulo XVI | Antijuridicidade
Agressão injusta é aquela que não está amparada por uma norma jurídica. Trata-se de condição fundamental para a compreensão da legítima defesa e para traçar sua distinção das demais causas de exclusão da ilicitude. Em suma, para a legítima defesa é preciso que, no confronto entre duas ações, uma deva ser tida como injusta. A injustiça da agressão não se exclui pela provocação, embora a provocação possa ser mero pretexto para a prática do crime, caso em que inexiste legítima defesa. Ademais, a agressão deve ser apta a lesar ou pôr em perigo determinado bem jurídico. A agressão não precisa rigorosamente ser tida como um delito, podendo, por exemplo, ser uma ação feita por alguém em estado de sonambulismo ou inimputável. B) Agressão atual ou iminente
Atual é a que está acontecendo, iminente é a que está prestes a ocorrer, implicando numa reação preventiva a fim de impedir o início ou continuidade da ação. A reação defensiva deve ser imediata; pois se for posterior não se tratará mais de justificante, mas, sim, de um ato de vingança. Se a agressão não é atual nem iminente, o agente poderá buscar socorro para a proteção de seu bem jurídico. Diferentemente do estado de necessidade, a legítima defesa não exige o requisito da inevitabilidade da lesão. Vale dizer, o Direito Penal não impõe ao agredido a opção de se retirar diante a iminente lesão injusta. Ao contrário, o Direito espera a reação por parte do agredido para se ver reafirmado. Não é atual a agressão que já terminou, com a consumação do ataque ao bem jurídico, salvo se este se protrai (como nos crimes permanentes). Não é iminente a agressão quando há apenas ameaça de acontecimento futuro. C) Tutela de direito próprio ou alheio
Qualquer bem jurídico pode ser protegido pela defesa legítima. Sendo assim, ela poderá ser própria ou de terceiro. Caso se trate de bem disponível pertencente ao terceiro maior e capaz, a legítima defesa não poderia ser feita sem a concordância (expressa ou tácita) do titular desse direito. Isso porque, como visto, é possível o consentimento do ofendido como causa supralegal de exclusão da ilicitude. D) Meio necessário e uso moderado
Empregar moderadamente os meios necessários significa usar os meios disponíveis, na medida em que são necessários para repelir a agressão. Devem ser consideradas as circunstâncias em que a agressão ocorreu, em razão da sua gravidade e dos meios que o agente dispunha. Deve haver proporcionalidade entre o bem agredido e o bem sacrificado, como, por exemplo, no caso em que se mata o agressor para salvar bem de pequeno valor. 227
Curso de Direito Penal | Parte Geral
Não se exige, todavia, uma proporcionalidade perfeita entre ataque e defesa, visto que a reação, na legítima defesa, é quase sempre feita de improviso, ante o inusitado da agressão injusta. Meios necessários são aqueles suficientes e indispensáveis para o exercício eficaz da defesa. Se o agredido só tem um único meio será este o meio necessário, devendo-se avaliar se sua utilização foi moderada. Se houver mais de um meio, será necessário aquele que, ocasionando a menor lesão ao agressor, seja suficiente para arrostar o perigo. O meio escolhido deixará de ser necessário quando se encontrar à disposição do agente meios menos lesivos e igualmente idôneos à defesa. Com relação ao uso moderado, o mesmo é aferido pela intensidade da agressão e pelo emprego dos meios disponíveis. Será imoderado o uso que extravasar o que fosse razoável para repelir a agressão. Por exemplo, se o agente dispõe de uma bengala e uma pistola, face à agressão atual e injusta, o meio necessário de defesa, a princípio, seria a bengala. Porém, se o agredido der inúmeras bengaladas no agressor, matando-o inclusive, terá se valido imoderadamente do meio necessário. Ao revés, se o agredido escolher a pistola para se defender, ao invés da bengala, estará, a princípio, usando um meio desnecessário. Entretanto, ele poderá dar apenas um tiro numa área não letal do agressor (nos pés, por exemplo), ferindo-o sem maiores gravidades. Nesse caso, houve o uso moderado. Vê-se, assim, que os requisitos da legítima defesa devem ser analisados em conjunto; nunca isoladamente. Vê-se, igualmente, a tênue fronteira entre legítima defesa propriamente considerada (legítima defesa real) e o excesso (doloso ou culposo) no uso (moderado ou imoderado) dos meios (necessário ou desnecessário) para o exercício daquela excludente de antijuridicidade. Caso o agente se exceda, este responderá pelo excesso doloso ou culposo (art. 23, parágrafo único, CP). Os limites do excesso são os limites da necessidade. O excesso deve ocorrer, portanto, diante de agressão injusta atual ou iminente, pois são esses os pressupostos fundamentais da legítima defesa. 16.8.2. Requisitos subjetivos da legítima defesa
Ao lado desses elementos objetivos deve estar presente o elemento subjetivo, isto é, o animus deffendendi. O propósito de reagir em autodefesa ou na defesa de terceiro é o que coloca na esfera da licitude um comportamento objetivamente típico. O dolo de realizar o tipo para se defender é o que atribui um significado positivo a uma conduta objetiva desvaliosa.40 Na mesma esteira, Welzel assinala que a ação de defesa é aquela executada com o propósito de defender-se da agressão. O que se defende tem que conhecer a agressão atual e ter a vontade de defender-se.41
40. Bitencourt, Cezar Roberto. Op. cit., p. 328. 41. Welzel, Hans. Derecho Penal Aleman. Parte General. 11. ed. Trad. Bustos Ramírez. Santiago do Chile: Jurídica, 1997, p. 100. 228
Capítulo XVI | Antijuridicidade
16.8.3. Espécies de legítima defesa 16.8.3.1. Legítima defesa real
É a legítima defesa propriamente dita, ou seja, aquela que ocorre quando presentes os requisitos anteriormente alinhavados. 16.8.3.2. Legítima defesa putativa
É a que decorre de erro acerca da existência dos elementos objetivos, na qual o agente pode se imaginar erroneamente em situação de agressão injusta. Caso o indivíduo esteja em situação em que atue sincera e intimamente convencido da necessidade de repelir agressão, haverá a causa de justificação. Há um defeito de formação do processo cognitivo que compromete o propósito volitivo de agir em defesa própria ou alheia.42 16.8.3.3. Legítima defesa sucessiva
É a que ocorre quando há excesso no exercício da legítima defesa pelo originalmente agredido. Neste sentido, o agressor original passa a ser vítima/agredido e atua, sucessivamente, na repulsa de um ataque não mais legítimo. Exemplo: “A” agride injustamente “B” com um soco no rosto; “B”, para se defender, saca uma arma e começa a atirar na direção de “A”; Este último bate em retirada e é perseguido por “B”, que efetua novos disparos. Por fim, “A” trava luta corporal com “B”, matando-o.
Neste caso, o resultado morte foi a título de legítima defesa, independentemente de “A” responder pela lesão corporal referente ao soco inicial. 16.8.3.4. Legítima defesa recíproca
É a hipotética presença de duas legítimas defesas reais, o que é inadmissível. É a chamada legítima defesa da legítima defesa e é inadmissível, pois, quem pratica a agressão injusta, não pode se defender legitimamente da reação lícita ao seu ato. Assim, não existe, por uma questão de lógica jurídica, a possibilidade de legítima defesa real contra legítima defesa real. Um dos dois contendores (ou ambos, no caso de um duelo) estará praticando uma injusta agressão. 16.8.4. Distinção entre legítima defesa e estado de necessidade
No estado de necessidade há um conflito de interesses legítimos, cuja prevalência de um significa o perecimento do outro; na legítima defesa há um conflito entre um interesse lícito e outro ilícito. A diferença fundamental entre estado de necessidade e legítima defesa (que é uma espécie do estado de necessidade) é que, no primeiro, há uma ação e, na segunda, uma reação. É assim, pois, no estado de necessidade, há o ataque a um bem jurídico protegido 42. Sobre este tópico, vide o art. 20, § 1o, CP. 229
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em razão de uma situação de perigo, enquanto que, na legítima defesa, ocorre uma reação a uma agressão humana injusta. Em síntese, no estado de necessidade ocorre uma ação predominantemente agressiva com aspectos defensivos. Por sua vez, na legítima defesa observa-se uma ação predominantemente defensiva com aspectos agressivos.43
16.9. Estrito cumprimento de dever legal
O
seja, não excessivo, do dever emanado da lei, não pode, evidentemente, ser tido como antijurídico. Há situações em que a lei determina que seus executores realizem atos que lesionam bens jurídicos alheios. É o que ocorre em ações de penhora de bens, de execução de prisões, do poder de polícia e da fiscalização de gêneros alimentícios. Atente-se, contudo, que a ação só estará justificada se o servidor se valer de um preceito legal. Não basta, assim, um preceito moral ou religioso. Deve o ato administrativo estar calcado direta ou indiretamente na lei. Por sua vez, a norma tem de ser natureza jurídica, de caráter geral (lei, decreto, regulamento etc.) e plenamente válida. cumprimento estrito, ou
16.9.1. A questão do excesso por parte do funcionário público
O excesso por parte do servidor público poderá acarretar a tipicidade de uma das ações contidas na Lei de Abuso de Autoridade (Lei no 4.898/1965) ou mesmo no Código Penal, na parte que trata dos crimes praticados por funcionários públicos (arts. 312 e segs.). Exige-se, por óbvio, que o agente atue ciente de estar estritamente cumprindo sua missão legal. 16.9.2. Violência policial e estrito cumprimento do dever legal
A questão do estrito cumprimento do dever legal é mais saliente, no Brasil, quando conjugada com a questão da violência policial, até porque não existe entre nós, em regra, um suposto dever legal de matar traficantes, bandidos etc. É por isso que a doutrina prefere enfrentar a questão do confronto policial com resultado de morte de suspeitos, bem assim os chamados autos de resistência, não dentro da teoria do estrito cumprimento do dever legal, mas, sim, sob os parâmetros da legítima defesa. Conforme Assis Toledo, esta norma permissiva não autoriza que os agentes do Estado possam, amiúde, matar ou ferir pessoas apenas porque são marginais ou estão sendo legitimamente perseguidos. A própria resistência do eventual infrator não autoriza essa excepcional violência oficial (monopólio do uso da força). Se a resistência 43. Bitencourt, Cezar Roberto. Op. cit., p. 345. 23 0
Capítulo XVI | Antijuridicidade
– ilegítima – constituir-se de violência ou grave ameaça ao exercício legal da atividade das autoridades públicas, configura-se uma situação de legítima defesa, permitindo a reação dessas autoridades, desde que empreguem moderadamente os meios necessários para impedir ou repelir a agressão. Mas, a atividade tem de ser legal e a resistência com violência tem de ser injusta, além da necessidade da presença dos demais requisitos da legítima defesa. Será uma excludente dentro da outra.44
16.10. Exercício regular de direito
N
a ação praticada no exercício regular de direito (CP, art. 23, III), pois será regular o direito subjetivo exercitado dentro dos parâmetros legais ou consoante as prescrições do Poder Público, já que o exercício jurídico não pode ser ao mesmo tempo, antijurídico. Um exemplo bastante conhecido de exercício regular de direito como causa excludente da ilicitude é o chamado desforço pessoal possessório (defesa da posse), regulado pela lei civil, efetivado depois de consumado o esbulho. Atente-se que durante a turbação da posse, a reação do possuidor será legítima defesa. Porém, concretizado o esbulho, poderá o titular do direito (o possuidor) reavê-lo, reação esta que configurará o exercício regular de direito. Vide, a propósito, o art. 1.210, § 1o, do Código Civil: O possuidor turbado ou esbulhado, poderá manter-se ou restituir-se por sua própria força, contanto que o faça logo; os atos de defesa ou de desforço, não podem ir além do indispensável à manutenção ou restituição da posse. ão é antijurídica
16.10.1. Violência desportiva
O choque e as agressões havidas nos termos das práticas desportivas são considerados, pela doutrina majoritária, o exercício regular de um direito. Assim, mesmo que acarretem lesões graves ou mesmo a morte de um dos competidores, como, por exemplo, numa luta de boxe ou numa disputada partida de futebol, não haverá a antijuridicidade por conta desta hipótese excludente. Dessa forma – e mesmo nas artes marciais –, há que se analisar com cuidado uma agressão que redunda no mal estar físico ou mental, isto é, ver se o suposto agressor atuou dentro do que é regulado naquela prática esportiva. Exemplo: É possível que um “carrinho” violento, na disputa da bola, acarrete uma lesão grave, como perna quebrada, tendão partido etc., mas, se foi dentro da disputa regular, haverá a justificante sob análise.
44. Toledo, op. cit., p. 212. 231
Curso de Direito Penal | Parte Geral
Todavia, se se tratar de um soco ou cotovelada desferido contra o rosto do goleiro, no momento em que era batido um escanteio, evidentemente que se estará diante de uma conduta típica e antijurídica. Em suma, se o desportista – amador ou profissional – se afasta das regras que disciplinam a atividade física, abusando do direito regularmente reconhecido pelo Estado, responderá pelo resultado lesivo (pelo excesso) que produzir, segundo seu dolo ou culpa.45 16.10.2. Ofendículos
A questão dos ofendículos também é objeto de polêmica, basicamente entre aqueles que defendem que sua utilização constitui exercício regular de direito e aqueles que preferem alocá-los como legítima defesa preordenada. Ofendículos (offendiculas) são conhecidos como defesas predispostas, que significam dispositivos ou instrumentos objetivando impedir ou dificultar a ofensa ao bem jurídico protegido. Pode-se diferenciar ofendículos de defesa mecânica predisposta. Os primeiros seriam percebidos com facilidade pelo indivíduo, como o caso de fragmentos de vidro sobre o muro, pontas de lanças, grades, fossos etc. Já a outra consistiria forma de defesa oculta, ignorada pelo suposto agressor, como armas automáticas predispostas e cercas eletrificadas. Quanto à natureza jurídica, há duas possíveis definições: exercício regular de direito (Aníbal Bruno)46 e legítima defesa preordenada (Hungria e Assis Toledo).47 A posição da doutrina brasileira, entretanto, tem sido a de buscar um consenso. Conforme lecionado por Cezar Bitencourt, a predisposição de ofendículos constitui exercício regular de direito, mas quando funciona em face de um ataque, a questão é de legítima defesa onde a potencialidade lesiva de certos recursos, cães ou engenhos, serão tolerados quando atingirem o agressor e censurados quando o atingido for uma terceira pessoa. 48 Constata-se, assim, que a colocação de ofendículos para proteção do patrimônio ou segurança pessoal constituir-se-á o exercício regular de um direito. Porém, diante de uma agressão ao bem jurídico próprio ou de terceiro, a lesão desencadeada pelo ofendículo constituir-se-á uma legítima defesa. Como ocorre em toda a legítima defesa, deverá ser analisada a proporcionalidade entre agressão e reação.
45. Vale observar que alguns autores mais modernos têm colocado a questão da violência desportiva no terreno da teoria da imputação objetiva (risco permitido), retirando-a, assim, da clássica solução de exercício regular de direito. O mesmo raciocínio vale para as chamadas intervenções médico-cirúrgicas. 46. Bruno, Aníbal. Direito Penal. Parte Geral. Tomo II. 5. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 4. 47. Hungria, op. cit. Tomo II, 293-295 ; Toledo, op. cit., p. 206. 48. Bitencourt, op. cit., p. 382. 232
título
III
capítulo
teoria geral do crime
XVII
CULPABILIDADE
17.1. Considerações gerais
A
pressuposto lógico a liberdade de decisão ou de escolha da pessoa humana, ou, em outras palavras, a capacidade antropológica de se determinar no sentido da norma jurídica. A responsabilidade penal somente pode incidir sobre aquele que possua aptidão de dominar seus instintos ao invés de cometer o fato antijurídico. Conforme explicitado por Jescheck, no terreno da culpabilidade, faz-se necessário apartar os processos causais naturais da força da vontade humana.1 Vê-se, portanto, que a culpabilidade exige o enfrentamento da problemática do livre-arbítrio. De fato, em que pese para alguns autores preponderar a ideia do indeterminismo, ou seja, da rejeição do completo do livre-arbítrio, uma vez que a “lei da causalidade” tudo regeria, não havendo, consequentemente, que se falar em espaço para escolhas, é forçoso reconhecer que sequer nas ciências naturais vigora mais em absoluto a lei física da causa e efeito. Por intermédio da moderna antropologia filosófica, pode-se sustentar a premissa de que no âmbito da responsabilidade ético jurídica existe, sim, uma forma jurídico-penal relevante de determinação. Cuida-se, pois, de uma questão normativa, ainda que não se possa, ontologicamente, afirmar a existência de uma liberdade do homem como pessoa individual. Ao contrário, pelo juízo de comparação social, culpabilidade tem como
1. Jescheck, Weigend. Op. cit., p. 438. 233
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vale dizer, pela indagação se alguém com personalidade adequada, encontrando-se no lugar do autor, estaria em condições de atuar de outro modo, pode-se formar, com segurança, o juízo de culpabilidade. No tocante aos fundamentos antropológicos da culpa criminal, somente se pode afirmar com certeza que os processos mentais que servem de base à formação da vontade não seguem rigorosamente as regras da natureza tal e como o fazem a pressão arterial, a respiração ou a digestão, mas, sim, que se regem por suas próprias leis de funcionamento. Assim – segundo aquele autor – a possibilidade de determinar o comportamento se refere à capacidade da pessoa para controlar suas inclinações e de dirigir sua decisão para a razão, os valores e as normas. Em síntese, os seres humanos não se encontram cerrados no mecanismo do mundo instintivo dos animais.2 Na esteira dessa proposição, dois aspectos ainda permanecem – e permanecerão sempre – desconhecidos dos fundamentos antropológicos da culpa, uma vez que a liberdade como parte do mundo transcendente, se subtrai à possibilidade de comprovação empírica. O primeiro reside no desconhecimento sobre se a premissa referente à existência da liberdade no gênero humano poderia ser transportada para a liberdade do autor individual, no momento da ação ou omissão típica e antijurídica. Esta impossibilidade decorre, dentre outros fatores, do fato de não se poder repetir, num laboratório, a título experimental, o delito perpetrado pelo agente, no escopo de investigar se se poderia agir de outro modo. A segunda dificuldade consiste no fato de não se poder averiguar de que modo a pessoa humana levaria a cabo a resistência às penetrantes inclinações criminais, obedecendo, pois, às normas do ordenamento jurídico. Por outras palavras, nunca será possível provar, com certeza, tanto a existência como o tipo de efeito derivado de uma espontaneidade especificamente humana em um concreto ato de decisão. Apesar disso, para o Direito Penal, a reprovabilidade se assenta no juízo de comparação dentro da situação na qual se encontrava o agente. Deve-se, portanto, indagar se o autor poderia ter atuado de outra forma, na medida em que – segundo a experiência em casos similares – qualquer outro em seu lugar se comportaria de modo diverso ante a tensão da força de vontade que possivelmente lhe falhou. A compreensão da censura de natureza jurídico-penal não requereria, dessa forma, um maior aprofundamento, sendo suficiente a noção de que a responsabilidade de uma pessoa adulta, mentalmente inserida num patamar médio de sanidade, se constitui numa realidade incontestável da nossa consciência social e moral. Atua-se em sociedade a partir da certeza da liberdade como pressuposto da sua conduta, esperando, da mesma maneira, que o outro comporte-se igualmente livre. Da mesma forma, a responsabilidade de uma pessoa que atua livremente perante a qual se encontra inserida é algo que soa evidente para a generalidade dos demais.3 2. Jescheck, Weigend. Op. cit., p. 440. 3. Idem, p. 441. 23 4
Capítulo XVII | Culpabilidade
Comunga-se, portanto, do alerta formulado por Jescheck, no sentido de que adentrar-se-ia numa política criminal nociva e temerária se não se pudesse contar com essa premissa fundamental e, no seu lugar, que o Direito Penal passasse a se basear sobre o esquema do determinismo humano, cujos pressupostos podem provar-se tão inexatamente como os da liberdade de escolha.4 Ao acusado que se dirigisse ao magistrado e arguisse não poder sofrer a punição, na medida em que seria cientificamente indemonstrável que pudesse ter agido de outro modo, o magistrado poderia também retrucar dizendo que iria aplicar-lhe a pena, pois que lhe faltaria igualmente a liberdade para escolher a absolvição ao invés da condenação. É certo, contudo, que a conduta humana não está só determinada pelo ideal normativo da escolha responsável. A margem de possibilidade de que dispõe a pessoa com vistas à decisão se encontra condicionada por numerosos e verdadeiros fatores causais que vão desde idade, sexo, origens, experiências, enfermidades, temperamentos, humores, fadigas, excitações, afeto, até mesmo à mentalidade popular e a influência da paisagem e do clima. Grande parte desses fatores causais escapam, por evidência, ao juízo de reprovabilidade. Basta verificar que o juiz, por ocasião da sentença condenatória, deve observar o rol de fatores contido no art. 59, caput, do CP, por meio do qual é feita a dosimetria da culpa e da pena. Outros, porém, podem operar de forma patológica ou extremamente intensa, permitindo, pois, que no caso concreto, a culpa jurídico-penal seja excluída ou atenuada.
17.2. Culpabilidade como pressuposto da pena
C
uida-se de uma polêmica que já foi intensa no Brasil, mas que, na atualidade, perdeu importância. Do anteriormente exposto, verifica-se que uma conduta típica e antijurídica só se converte em crime se for possível a reprovação de seu autor. Sem a culpabilidade não há delito e, sim, um injusto típico, um fato descrito na norma penal e contrário ao direito. René Ariel Dotti5 e Damásio E. de Jesus,6 entre outros, sustentam que a culpabilidade não seria elemento ou requisito do crime, funcionando, tão somente, como pressuposto da pena. Para aqueles autores, o conceito de delito compreenderia a conduta típica e antijurídica, recaindo o juízo de reprovabilidade sobre o sujeito que o praticou. Numa palavra, a culpabilidade funcionaria como condição de imposição da pena. Exemplificando tal posição, a receptação (art. 180, do CP) seria tipificada, mesmo quando isento de culpabilidade o autor do delito antecedente. De maneira diversa, a maioria da doutrina pátria, na esteira do entendimento prevalente no direito estrangeiro, considera que o fato típico e antijurídico somente se converte
4. Idem, p. 442. 5. Dotti, op. cit., p. 409-410. 6. Jesus, op. cit., p. 451. 235
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em delito quando se reprova o seu autor. Faz-se, assim, necessário o juízo de censura sem o qual não se completa o conceito analítico de delito. Evidentemente, dada a sua riqueza e complexidade teórica, o juízo de culpabilidade, além de seu um dos elementos essenciais do delito, projeta-se para a etapa subsequente, ou seja, para o momento de quantificação da consequência jurídica do delito. Haveria, dessa maneira, uma dupla função da culpabilidade: elemento do delito e critério mensurador da aplicação da pena. Nesse sentido, Cezar Bitencourt, ao analisar a tese de que a culpabilidade constituir-se-ia unicamente pressuposto da pena, sustenta que tanto tipicidade quanto antijuridicidade também seriam pressupostos da pena, visto que a sanção penal é consequência jurídica do crime, este, com todos os seus elementos, é pressuposto daquela. Assim, não somente a culpabilidade, mas igualmente a tipicidade e a antijuridicidade, seriam pressupostos da pena, que é sua consequência. Assim, uma ação típica e antijurídica somente se converte em crime se houver o acréscimo da culpabilidade.7 Não há que prosperar, de fato, na atualidade, aquele entendimento sustentado por René Ariel Dotti e Damásio de Jesus, não apenas pelos argumentos anteriormente apresentados, mas, igualmente, porque o juízo de reprovação (ou não) foi uma conquista científica no sentido da responsabilidade penal subjetiva.
17.3. Crise do conceito de culpa jurídico - penal
C
antropológicas anteriormente apresentadas, fundamento da reprovabilidade repousa na capacidade de livre decisão do sujeito. Ocorre, todavia, que a premissa do poder agir de outro modo, que se encontra no âmago do conceito da culpa jurídico-penal é, como visto, empiricamente indemonstrável. Desta maneira, se a pena pressupõe a culpa e a reprovação, própria da culpabilidade, se baseia num fundamento impossível de se comprovar, logo a culpabilidade não poderia, cientificamente, servir de fundamento da pena. Essa constatação acarretou aquilo que se pode denominar de crise do conceito de culpabilidade. Isso fez com que alguns autores passassem a buscar outro fundamento cientificamente válido para a reprovabilidade do autor do injusto típico.8 Diante de tal fato, alguns autores, como Juarez Cirino dos Santos,9 sustentam a incapacidade da culpabilidade funcionar como fundamento da pena, advogando, simplesmente, que a mesma deve ser utilizada como critério de limitação do poder de punir, ou, com a troca de uma função metafísica – indemonstrável – de legitimação da retribuição por uma função política de garantia da liberdade individual – garantia de que a pena não passará do grau de reprovabilidade do sujeito. Desse modo – seguindo o pensamento daquele autor – a responsabilidade pelo comportamento antissocial parece ser imprescindível à sobrevivência da sociedade, mas onforme as considerações
7. Bitencourt, Cezar Roberto. Op. cit., p. 353. 8. Idem, p. 353. 9. Santos, op. cit. 236
Capítulo XVII | Culpabilidade
juízos de culpabilidade ou reprovação fundados na liberdade de vontade perderam toda e qualquer base científica: a ideia de liberdade de vontade representaria, no máximo, um sentimento pessoal.10 Nesse contexto – conclui Juarez Cirino dos Santos –, a definição de culpa como agir conforme o direito pareceria digna de registro por dois motivos: preservaria a função de garantia política do princípio da culpabilidade como limitação do poder de punição e indicaria a gênese da responsabilidade pessoal pelo comportamento antissocial, sem necessidade de pressupostos metafísicos indemonstráveis.11 Respeitadas as opiniões anteriores, é de se preferir o posicionamento que entende que o homem civilizado, isto é, em sociedade, com certo grau de maturidade e saúde mental, faz-se responsável por suas ações exatamente porque vive em sociedade. Consoante bem exposto por Jescheck, de uma parte, nas pessoas adultas, somente pode excluir o reproche da culpabilidade a presença de circunstâncias extraordinárias na pessoa do autor ou na situação de fato; e, de outra, é certo que todo mundo pode adquirir a força de vontade necessária ante a existência da tentação de cometer o fato delituoso.12 Em síntese, a propalada crise da culpabilidade não infirma a compreensão normativa no sentido do ser humano, dotado de certas faculdades, fazer-se responsável por seus atos. Por conta disso, o estudo da culpa jurídico-penal consiste na pesquisa de defeitos na formação da vontade ilícita: (1) no campo da capacidade de vontade, vale dizer, a existência ou não de defeitos orgânicos ou funcionais do aparelho psíquico; (2) na área do conhecimento do injusto, ou seja, a verificação de condições internas negativas desse conhecimento (o denominado erro de proibição); e (3) no terreno da exigibilidade, vale sublinhar, na pesquisa de condições externas negativas do poder de dirigibilidade normativa, como pressões, restrições, coações etc.
17.4. Evolução dogmática da culpabilidade
E
a dogmática penal experimentou, no curso da sua evolução, significativas mudanças na concepção da culpa jurídico-penal. Com efeito, a teoria causalista da ação compreendia a culpabilidade de maneira puramente psicológica. Nesse sentido, segundo o modelo proposto por Liszt e Beling, ao injusto típico correspondia todo o aspecto externo do delito, a culpabilidade era entendida como o vínculo subjetivo que ligava o agente (dotado de capacidade penal) ao fato. Para aquela corrente doutrinária, a culpa jurídico-penal era constituída por dois elementos: a capacidade de culpabilidade, entendida como capacidade geral ou abstrata de compreender o valor do fato e de determinar-se de acordo com esse entendimento (excluída ou reduzida em situações de imaturidade ou doença do aparelho psíquico); e a relação psicológica entre o autor e o fato, seja como consciência e vontade de realizar m linhas gerais,
10. Idem, ibidem. 11. Idem. 12. Jescheck, Weigend. Op. cit., p. 445. 237
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o fato típico (dolo), seja como causação do resultado por imprudência ou negligência ou imperícia (culpa stricto sensu). Dito de outra forma, tomando-se como pressuposto aquilo que se denomina de imputabilidade, compreendia-se como culpabilidade o vínculo subjetivo que ligava o agente ao fato externo causado pelo movimento corpóreo. Culpabilidade era sinônimo de dolo ou culpa. A crítica a esta concepção não tardou a se formar, considerando que a citada relação psicológica entre autor e fato, por um lado, seria incapaz de abranger o delito imprudente, visto que, no caso, não existe qualquer relação psicológica entre um e outro. Basta considerar o chamado delito de esquecimento: após tomar banho para ir ao cinema, o agente esquece-se de desligar o aquecedor a gás, o que vem a acarretar uma forte explosão com a morte de um vizinho. Ademais, aquela estrutura equiparava dolo e culpa que são conceitos jurídicos com distinta carga valorativa. Sob outro enfoque, a concepção puramente psicológica revelava-se insuficiente para solucionar situações nas quais o agente conscientemente realizava o injusto típico premido por fatores excepcionais, tais como a coação moral irresistível. Em suma, ou se desistia de um conceito único de culpabilidade, por não poderem dolo e culpa – particularmente a culpa inconsciente – ser espécies do mesmo gênero, ou se introduzia outro elemento que os aglutinasse, o que, de fato, ocorreu com a construção teórica seguinte. Com os aportes normativos do neokantismo, e o enfraquecimento do ontologismo causal, o conceito de culpabilidade foi redefinido. Diante do compromisso de vinculação à valores superiores de justiça, passou-se a entender que o cerne da questão estava na reprovabilidade do agente que, em situações normais, agiu dolosa ou culposamente. O passo nesse sentido foi dado por Frank, para quem a culpabilidade deveria ser entendida como um juízo de valor que tem por objeto uma situação psíquica e que encontra seu apoio em um dever normativo. Sentenciava ele: culpabilidade é reprovabilidade.13 Diante do neokantismo, os elementos da culpabilidade passaram a ordenados de uma forma mais convincente. A capacidade de culpabilidade, como condição prévia à formação de uma vontade de ação que se corresponda com o Direito, vem a ser um pressuposto da culpabilidade. A própria vontade de ação culpável aparece na configuração das formas de culpabilidade: o dolo (conhecimento e vontade do fato) e a imprudência (desconhecimento com possibilidade de conhecer). As causas de exclusão da culpabilidade se explicam pela anormalidade das circunstâncias concorrentes. Como consequência da teoria normativa da culpabilidade foi inserido no dolo a consciência da antijuridicidade, visto que a vontade de ação não se mostra digna de reprovação na hipótese de erro de proibição. A última contribuição ao conceito normativo da culpabilidade foi introduzida por Freudenthal com o reconhecimento da inexigibilidade de um comportamento adequado à norma como causa geral de exclusão da culpabilidade.14 13. Jescheck, Weigend. Op. cit. 14. Idem, p. 451. 238
Capítulo XVII | Culpabilidade
De acordo com tal construção teórica, dolo e culpa stricto sensu continuavam a integrar a culpabilidade, não isoladamente, mas ao lado de outros requisitos normativos. É por isso que a teoria se denomina psicológico-normativa. Ademais, o dolo, até então entendido como estritamente natural (psicológico), sofreu alterações, passando, como visto anteriormente, a ser não somente a consciência e vontade do fato, mas, também, a consciência da sua antijuridicidade (dolo normativo). Em que pesem os avanços propiciados pelo neokantismo, bem assim à compreensão da culpabilidade como reprovabilidade, aquela teoria também sofreu críticas, particularmente em razão da tese do dolo normativo. Ao exigir-se a consciência do fato, a vontade do fato e, ainda, a consciência da antijuridicidade do fato – todas operantes no momento da ação –, criaram-se dificuldades para a punição de pessoas que, por alguma razão particular, não haviam atingido aquela consciência da antijuridicidade, como ocorria em situações que, por desídia ou desinteresse, o agente não procurava se inteirar acerca do caráter antijurídico do fato que perpetrava. Diante disso, a conclusão que se impunha era, naqueles casos, da absolvição do agente que agia sem dolo normativo, requisito então indispensável à culpabilidade. Chegava-se, dessa maneira, àquilo que Cezar Bitencourt denomina de uma situação paradoxal, qual seja, a de excluir a culpabilidade exatamente daquele indivíduo que apresenta o comportamento mais censurável.15 Uma nova alteração foi efetuada com o desenvolvimento da teoria finalista da ação. Isso porque, a partir da redefinição do conceito de ação típica, foi retirado da culpabilidade o último componente puramente psicológico – o dolo natural. Passou-se a distinguir, de maneira mais técnica, a vontade de ação como objeto de valoração, que foi remetida para o tipo subjetivo, da valoração do objeto, consistente no juízo de reprovabilidade ante a motivação do autor. Nessa esteira, coube a Welzel o pioneirismo da construção da concepção puramente normativa da culpabilidade, pois ele se valeu do dolo como parte integrante da ação e, simultaneamente, como componente do tipo de injusto.16 Mais recentemente, uma nova etapa foi atingida com a chamada teoria da atitude interna deficiente. De fato, enquanto que para o finalismo o juízo de culpabilidade se formava em razão da valoração da vontade de ação, autores subsequentes sustentam que o juízo de reprovabilidade possui um objeto próprio: a atitude interna juridicamente deficiente do autor, a partir da qual se originou a resolução do cometimento do fato. Nesse sentido, Jescheck afirma que a atitude interna deve ser entendida não como uma predisposição do agente, mas, sim, uma inclinação factual na formação da resolução delitiva. Portanto, a culpabilidade significaria a reprovabilidade do fato diante da atitude interna desaprovada que ativa sua perpetração. Segundo Jescheck, o que se 15. Bitencourt, op. cit., p. 352. 16. Jescheck, Weigend. Op. cit., p. 452. 239
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reprova é sempre o fato, e não somente a atitude interna. Contudo, a reprovação apenas estará justificada na medida em que a atitude interna do autor se manifesta de forma contrária ao Direito ou, mais exatamente, contrariamente à pretensão de respeito do correspondente bem jurídico ao qual se dirige. É por isso que a atitude interna, relativamente à pretensão de validade do bem jurídico protegido, é o motivo pelo qual, em maior ou menor medida, reprova-se o autor ante a perpetração do fato.17 Por fim, com o funcionalismo teleológico-racional, Claus Roxin agregou à culpabilidade a categoria superior da responsabilidade (cf. Capítulo X). Dessa maneira, para fazer-se merecedor da pena, não basta o preenchimento da culpabilidade do agente, devendo-se verificar as necessidades preventivas da sanção penal (geral e especial). Sendo assim, conforme teorizado por Roxin, a pena pressupõe sempre a culpabilidade, de modo que nenhuma necessidade de punição, por maior que seja, pode justificar uma sanção penal que contrarie o princípio da culpabilidade. Contudo, exige-se o requisito adicional da responsabilidade, restringindo-se a possibilidade de punição da conduta culpável quando, por razões político-criminais, a mesma não for preventivamente imprescindível.18
17.5. Elementos da culpabilidade
P
a culpa passa a consistir na reprovabilidade da conduta ilícita (típica e antijurídica) de quem tem capacidade genérica de entender e querer (imputabilidade) e podia, nas circunstâncias em que o fato ocorreu conhecer a sua ilicitude, sendo-lhe exigível comportamento que se ajuste ao direito. Assim, são três os elementos ou requisitos da culpabilidade: (1) Imputabilidade; (2) Potencial conhecimento da ilicitude; e (3) Exigibilidade de conduta diversa. Como verificado adiante, a esses três elementos correspondem diversas hipóteses de exculpação. Dessa forma, se for verdade que tipicidade e ilicitude constituem o chamado injusto penal e significam o juízo de reprovação que recai sobre a conduta, a culpabilidade, no entanto, constitui reprovabilidade pessoal. ode-se dizer que
17.5.1. Imputabilidade
É a capacidade de livre autodeterminação. Ou, dito de outra forma, é o conjunto de condições pessoais que dão ao agente a faculdade de atuar de modo distinto, permitindo, assim, que lhe seja atribuída juridicamente a responsabilidade pelo injusto típico. Ausente a imputabilidade, não haverá que falar em liberdade de autodeterminação, sendo, portanto, desculpável pelo fato que praticou. Aquele que, por não possuir maturidade penalmente suficiente ou por sofrer de graves alterações psíquicas, não detiver a capacidade de compreensão ou de autodeterminação conforme o Direito, não poderá receber a nota de reprovabilidade. Dessa 17. Idem, p. 452. 18. Roxin, Claus. Derecho Penal..., cit., p. 791-793 24 0
Capítulo XVII | Culpabilidade
forma, há dois requisitos necessários para que se estabeleça a imputabilidade de um indivíduo: maturidade e sanidade. Observe-se, no particular, que o legislador não informa o que vem a ser imputabilidade, mas, ao inverso, apresenta, nos arts. 26, caput, 27, e 28, § 1o, do CP, hipóteses legais de inimputabilidade. Assim, se imputabilidade é a capacidade de responsabilização de alguém por seus atos antijurídicos, ao revés, inimputabilidade é a ausência de tal capacidade. Com base nos avanços científicos então verificados, o CP de 1940 procurou regular a questão da inimputabilidade de forma mais técnica possível. Dessa forma, como restou consignado, na Exposição de Motivos, que na fixação do pressuposto da responsabilidade penal, baseada na capacidade de culpa moral, apresentam-se três sistemas: o biológico ou etiológico (sistema francês), o psicológico e o biopsicológico. A propósito, esclarece-se que o sistema biológico é aquele que condiciona a responsabilidade à saúde mental, isto é, à normalidade da mente. Se o agente é portador de uma enfermidade ou grave deficiência mental, deve ser declarado irresponsável, sem a necessidade de ulterior indagação sobre sua aptidão de compreensão do caráter antijurídico do fato no momento da sua prática. Por sua vez, o método psicológico despreza, a princípio, fatores patológicos, fiando-se na constatação da irresponsabilidade penal se, no momento da ação, não dispunha, o agente, da capacidade cognitiva da natureza do fato (aspecto intelectivo) ou, ainda, se não dispusesse de condições de se determinar de acordo com essa apreciação (aspecto). Por fim, o método biopsicológico busca uma solução de consenso, ou seja, considera excluída a imputabilidade penal por intermédio da conjugação dos sistemas anteriores. A responsabilidade somente é afastada se: (1) o agente sofrer de enfermidade ou retardo mental; e (2) se no momento da conduta era incapaz de entendimento ou de controle dos seus impulsos antijurídicos. Este último sistema foi adotado pelo legislador penal, para os casos de doença mental e de desenvolvimento mental incompleto ou retardado, conforme a redação do art. 26, caput, e seu parágrafo único, do CP. Apenas no tocante à menoridade penal é que se adotou o sistema biológico. 17.5.1.1. Doença mental
Para os casos de enfermidade mental, o CP adota o critério biopsicológico, excluindo-se a capacidade de culpabilidade por meio de um somatório de fatores, isto é, a anomalia mental e a ausência de compreensão no momento da conduta, esta decorrente daquela. Dito isso, cumpre registrar que a lei penal, no art. 26, do CP, não define o que vem a ser doença mental. Deve-se, para tanto, valer-se dos critérios da medicina, medida esta considerada adequada tendo em vista o constante avanço científico nessa seara. Não obstante, podem ser exemplificadas como doenças mentais as seguintes patologias: esquizofrenia, psicose maníaco-bipolar etc. 241
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A hipótese de doença mental acarreta a interrupção do inquérito ou processo penal, e a submissão do agente a exame de sanidade mental (art. 149, do CPP). Caso a junta examinadora considere que, de fato, o agente enquadrava-se no disposto no art. 26, do CP, poderá o juiz, caso aceite a referida prova pericial, exarar sentença absolvendo-o da imputação contida na peça acusatória, submetendo, todavia, o réu à medida de segurança pertinente. 17.5.1.2. Desenvolvimento mental incompleto ou retardado
Ao lado da doença mental, prevê o Código a hipótese do desenvolvimento mental incompleto ou retardado. Na primeira, há a constatação, decorrente de diversos fatores não necessariamente patológicos, de que o indivíduo não teve o processo regular de desenvolvimento mental. São exemplos de desenvolvimento incompleto usualmente utilizados os casos de surdo-mudez ou dos silvícolas inadaptados. Isso porque, o surdo-mudo não deteria condições de assimilação adequada das normas incidentes no processo de socialização, devendo receber educação especial, o que poderia acarretar a ausência de compreensão do caráter ilícito de determinado fato. Por sua vez, o silvícola inadaptado pertence, a rigor, a outra cultura, não podendo, dessa forma, compreender ou se determinar com as normas da nossa sociedade. A verificação do grau de integração do indígena à nossa cultura é feito por meio de um parecer antropológico e não por um diagnóstico médico-forense. Em que pesem tais considerações, fato é que esse entendimento doutrinário merece ser criticado, pois, a rigor, o surdo-mudo e o silvícola não integrado são pessoas que têm desenvolvimento mental completo, embora diferenciado, não sendo, portanto, adequado, esse tipo de estereótipo. O desenvolvimento mental retardado, por sua vez, corresponde aos atrasos acarretados por problemas de saúde mental. A tipologia médico-forense aponta, como exemplos, os casos de oligofrenia ou imbecilidade mental. A pessoa diagnosticada como retardada tem, na verdade, idade mental inferior à sua idade biológica. Atente-se, porém, que as hipóteses de desenvolvimento mental incompleto ou retardado podem redundar no reconhecimento judicial da inimputabilidade penal, excluindo, dessa forma, a sua culpabilidade. É possível, porém, que, apesar de imputável, o desenvolvimento incompleto ou o retardo possam mitigar a responsabilidade do agente, conforme exposto a seguir. 17.5.1.3. Imputabilidade diminuída ou semi-imputabilidade
Entre a plena capacidade penal e a inimputabilidade podem figurar instâncias intermediárias, os chamados casos fronteiriços. Em tais situações, prepondera, ainda, o critério biopsicológico. Exige-se, dessa maneira, em razão da perturbação mental ou de desenvolvimento mental incompleto ou retardado, que o agente não pudesse entender completamente o caráter antijurídico do fato ou, embora detendo tal percepção, não pudesse se determinar de acordo com a norma. 242
Capítulo XVII | Culpabilidade
Aqui estão todos aqueles que se situam entre a sanidade e a plena insanidade mental, entre os quais estados atenuados, incipientes e residuais de psicoses, certos graus de oligofrenia e, em grande parte, as chamadas personalidades psicopáticas, e os transtornos mentais transitórios quando afetam, sem excluir, a capacidade de entender e querer. A perturbação difere da doença mental por um critério de intensidade. Por intermédio do exame de sanidade mental, deverá ser aferido o estágio mais ou menos intenso do problema de saúde mental. Anote-se, por outro lado, que não é correto utilizar-se da expressão semi-imputabilidade, visto que, a rigor, a capacidade penal existe ou não. O que pode sofrer variação é o nível da responsabilidade penal. Constatada a imputabilidade diminuída ou semi-imputabilidade, o parágrafo único, do art. 26, do CP, determina a incidência de uma causa de diminuição de pena ou, dependendo do caso, a substituição da pena por medida de segurança. Trata-se do chamado sistema vicariante, ou seja, de imposição de pena ou de medida de segurança. 17.5.1.4. Menoridade penal
Em Direito Penal, alude-se à menoridade absoluta e menoridade relativa. A primeira será vista na sequência e, a segunda, diz respeito à circunstância atenuante a que faz jus aquele que tem entre 18 e 21 anos incompletos (art. 65, I, do CP). Com relação à menoridade absoluta, o Código excepciona o critério biopsicológico, valendo-se, no tocante à menoridade penal, do sistema puramente biológico. Dispõe o art. 27, do CP, que os menores de 18 anos são penalmente inimputáveis, sujeitando-se, pelos fatos antijurídicos praticados, ao disposto na legislação especial. O legislador constitucional reproduziu essa norma, conforme os termos do art. 228, da CF/1988. Dessa maneira, aquele que ainda não completou aquela idade, não tem, segundo presunção absoluta do ordenamento jurídico, o grau de maturidade para fazer-se penalmente responsável. Pressupõe-se, por critérios político-criminais, seu desenvolvimento mental incompleto. No dia que completa essa idade – na data do seu aniversário de 18 anos –, cessa a inimputabilidade, passando o mesmo a ser considerado plenamente imputável, salvo, é claro, se for portador de enfermidade mental. Na hipótese de não existência de documentação comprobatória da verdadeira idade de determinado indivíduo, deve o mesmo ser submetido ao exame de idade óssea. A menoridade penal constitui um tema polêmico na generalidade dos países. No Brasil, como dito, por questões de política criminal, optou-se por um critério rígido. É certo, contudo, que há autores que sustentam uma revisão dessa regra, visto que, em razão da evolução da sociedade, o jovem brasileiro adquire, em idade inferior aos dezoito anos, a capacidade real de compreensão de sua conduta, ao menos para os fatos antijurídicos mais graves, ou seja, aqueles arraigados culturalmente desde tenra idade (homicídio, lesões corporais, estupro etc.). De lege lata, aqueles que possuem idade inferior aos dezoito anos, ficam sob a incidência da Lei no 9.069/1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente), podendo ser 243
Curso de Direito Penal | Parte Geral
submetidos, pelos atos infracionais perpetrados, às medidas socioeducativas que vão desde a advertência até a internação com privação da liberdade. De todo modo, o Código Penal brasileiro adotou a orientação mais comum entre os diversos países do mundo.19 Tanto assim, que o Estatuto do Tribunal Penal Internacional, no que se refere à responsabilidade penal, estabelece que esta principia aos 18 anos. No Estatuto, conforme disposto no art. 26 do Decreto no 4.388/2002, consta a seguinte regra: “O Tribunal não terá jurisdição sobre menores de 18 anos de idade no momento da prática do crime”. Embora seja um dispositivo aparentemente simples e bastante sintético, não foi fácil chegar até a sua redação final. Ressalte-se que, no seio das Nações Unidas, nenhuma previsão de imputabilidade havia surgido até então nos documentos de direito penal internacional.20 Havia, entre os diversos Estados que participaram da Conferência de Roma que aprovou o Estatuto de Roma, legislações nacionais com dispositivos os mais diversos sobre o tema, com a idade variando de 7 até 21 anos.21 Como se não bastasse a discussão quanto a uma idade determinada, também se pretendeu que a idade fosse relacionada com aquela que dissesse respeito à possibilidade de alistamento nas forças armadas.22 Em caso de conflitos armados, muitos dos crimes praticados são de autoria dos militares, pois, nestas conflagrações, cada vez mais se recorre a menores para integrarem as tropas. Apesar dessa questão, o que se pode constatar é que a menoridade é muito mais uma escolha sociopolítica do que médica ou psicológica. Assim, não existe uma idade cientificamente comprovada que determine ter o indivíduo atingido a maturidade necessária para considerá-lo apto a praticar crime23 e, por essa razão, múltiplas interpretações e propostas foram apresentadas durante a Conferência de Plenipotenciários. De outra maneira, a maioria dos países pertencentes à cultura ocidental adotam, como início da imputabilidade penal, a idade de 18 anos,24 bem como foi essa a idade proposta no Projeto de Código Penal Internacional, elaborado por Bassiouni.25 Dispositivo idêntico pode ser também encontrado, por exemplo, na Carta Europeia dos Direitos da Infância, de 08/07/1992. 17.5.2. Potencial conhecimento da antijuridicidade
Para que o fato típico e contrário ao Direito possa ser reprovado ao agente que o praticou, faz-se necessário que ele conheça ou possa conhecer justamente tal natureza antijurídica. Em suma, o juízo de censura pressupõe que o agente saiba ou possa 19. Japiassú, O Tribunal Penal Internacional: a internacionalização do direito penal. p. 181-183. 20. Schabas, William A. Princípios gerais de direito penal. In: Tribunal Penal Internacional. São Paulo: RT, 2000, p. 171. 21. Saland, Per. International Penal law principles. In: The International Penal Court: the making of the Rome Statue – issues, negotiations, results. Haia: Kluwer Law International, 2002, p. 201. 22. Schabas, op. cit., p. 172. 23. Sobre o tema, vide Paz, Isabel Sánchez García de; Cordero, Isidoro Blanco. Minorité pénale et Cour Pénale Internationale. Siracusa: ISISC (mimeogr.), 1998. Apresentado durante o Colóquio de Jovens Penalistas sobre o Tribunal Penal Internacional, realizado na sede do ISISC, em Siracusa, de 16 a 22/09/1998. 24. Paz e Cordero, op. cit., p. 2. 25. Bassiouni, M. Cherif. Derecho penal internacional. Proyecto de Código Penal Internacional. Madrid: Tecnos, 1983, p. 202 e seguintes. 24 4
Capítulo XVII | Culpabilidade
atingir a percepção de que o fato que praticou era antijurídico. A ausência ou errônea compreensão da ilicitude do fato acarreta aquilo que se denomina de erro sobre o que é proibido (erro de proibição). Se o agente não sabia e nem poderia atingir aquele conhecimento, tratar-se-á de um erro invencível ou escusável. Ao revés, se o agente, com um pouco de cuidado ou diligência, pudesse atinar para a antijuridicidade do fato, o erro de proibição passará a ser vencível ou inescusável. Nos termos do art. 21, caput e parágrafo único, do CP, na primeira vertente, a culpabilidade será excluída; na segunda, atenuada. 17.5.3. Exigibilidade de conduta diversa
O terceiro requisito da culpabilidade é, na verdade, uma síntese dos anteriores. Uma vez configurada a imputabilidade do agente, bem como o conhecimento da antijuridicidade ou a possibilidade de se atingir tal consciência, é conclusão lógica a que se chega que lhe era esperado um comportamento diverso; que agisse conforme, e não contrariamente ao Direito. Em suma, tem-se que o juízo de reprovabilidade se completa pela constatação de que o agente deveria e poderia ter agido de outro modo, isto é, que ele poderia ter adotado uma resolução de vontade de acordo com o ordenamento jurídico e não a resolução de vontade antijurídica.26 Como será visto mais adiante, na hipótese de não poder se exigir que o agente atuasse de modo diverso, diante da anormalidade do caso concreto, excluir-se-á esse componente do juízo de censura, excluindo, consequentemente, a própria culpabilidade. 17.5.3.1. Coação moral irresistível
Ao lado de hipóteses que comprometem, direta ou indiretamente, o requisito da imputabilidade, a culpabilidade poderá ser igualmente afastada por situações que importam na inexigibilidade de comportamento diverso. Nesse sentido, o Código prevê duas figuras: (1) a coação irresistível; e (2) a obediência de ordem não claramente ilegal de superior hierárquico, conforme disposto no art. 22, do CP. A primeira compreende a coação moral, isto é, a promessa de mal sério (ameaça), também conhecida como vis compulsiva. Deve ser salientado que a coação física, quando irresistível, exclui a própria conduta, sendo, portanto, causa de atipicidade. A coação moral, por sua vez, compreende tudo que possa pressionar a vontade do agente, impondo determinado comportamento sob pena de sofrer um mal insuportável, o que elimina ou reduz o poder de agir de modo diverso. Na coação moral irresistível, existe vontade residual, apesar de cerceada, embora o agente – ou coato – não seja considerado culpável, visto que sua vontade não foi livremente manifestada. A irresistibilidade daquela coação é aferida pela gravidade do mal prometido, como, por exemplo, a séria ameaça de matar um ente querido. 26. Bitencourt, Cezar Roberto. Op. cit., p. 376. 24 5
Curso de Direito Penal | Parte Geral
Não há que falar de coação irresistível em situações nas quais qualquer outra pessoa poderia opor resistência, sem dificuldades. Em suma, é irresistível a coação quando não pode ser superada senão com uma energia extraordinária e, portanto, juridicamente inexigível. Excluída a culpabilidade do coato, deverá o coator responder pelo delito, conforme dispõe o art. 22, do CP. Tratar-se-á de uma hipótese de autoria mediata, adiante considerada. Todavia, se a coação for resistível, haverá a incidência do concurso de pessoas, sendo certo que a pena do coato poderá ser diminuída em razão da circunstância atenuante do art. 65, III, “c”, do CP. Por sua vez, a pena do coator poderá ser aumentada em função da circunstância agravante do art. 62, II, do CP. 17.5.3.2. Obediência hierárquica
A obediência hierárquica pressupõe uma relação de subordinação própria da Administração Pública, por meio da qual o subordinado deve cumprir o ato administrativo exarado por seu superior, sob pena de responder disciplinarmente. Dessa forma, não pode o servidor público questionar a determinação recebida da instância superior, salvo se se tratar de ordem claramente ilegal. Vê-se, assim, que há um regime de trabalho na Administração Pública que difere da iniciativa privada. A rigor, o funcionamento regular dos Poderes Públicos na prestação de serviços essenciais à sociedade ficaria seriamente afetado se, a todo instante, o subordinado efetuar questionamentos sobre a ordem que recebeu, particularmente no tocante à critérios de conveniência ou oportunidade do ato. Entretanto, se a ordem ditada pelo administrador público for manifestamente ilegal, o agente não só pode, como deve deixar de cumpri-la, pois, do contrário, ambos responderão pelo delito, na forma do concurso de pessoas. Agregue-se que a ordem não manifestamente ilegal acarreta, o mais das vezes, a falsa percepção acerca da licitude do fato praticado pelo servidor. Isso importa na exclusão da culpabilidade não somente pelo requisito da inexigibilidade de conduta diversa, mas, também, pela ausência de conhecimento da antijuridicidade (erro de proibição invencível, adiante analisado). No âmbito das relações militares, o rigor hierárquico é, naturalmente, maior do que na Administração Pública civil. Dessa forma, consoante o disposto no Código Penal Militar, exclui-se a culpabilidade até mesmo de quem comete o delito em cumprimento de ordem não manifestamente criminosa do superior hierárquico (art. 38, § 2o, do CPM). Por sua vez, o Estatuto do Tribunal Penal Internacional dispõe, no seu art. 33, que não será isento de responsabilidade penal quem tiver cometido um delito da competência daquela Corte, em cumprimento de ordem emanada de um Governo ou de um superior hierárquico, quer seja militar ou civil, a menos que: (1) estivesse obrigado por lei a obedecer àquela ordem; (2) não tivesse conhecimento da ilicitude da ordem; e (3) a ordem não fosse manifestamente ilegal. De toda sorte, há presunção 24 6
Capítulo XVII | Culpabilidade
absoluta de que a ordem de cometer genocídio ou crimes contra a humanidade é sempre manifestamente ilegal.
17.6. Emoção e paixão
E
estado afetivo que produz momentânea perturbação da personalidade e afeta o equilíbrio psíquico, acarretando alterações somáticas, com fenômenos neurovegetativos (respiratórios, vasomotores, secretores etc.) e motores (expressões mímicas). Paixão é a emoção-sentimento, ou seja, um processo afetivo duradouro.27 A emoção e a paixão afetam ou reduzem, inegavelmente, a formação equilibrada da vontade. Entretanto, elas não eliminam a censurabilidade da perpetração do fato típico e antijurídico. Há muito tempo que a doutrina considera a emoção como sendo uma viva excitação dos sentimentos, embora transitória. A paixão, por sua vez, é a emoção em estado contínuo; é um estado passional que se prolonga no tempo.28 A emoção e a paixão integram a psicologia do homem normal, e não eliminam a sua capacidade de entender a ilicitude do fato ou de comportar-se de acordo com tal entendimento, a menos que se trate de estados patológicos. Amor, ódio, vingança, avareza, ciúme etc., são exemplos de afetações mentais que podem impulsionar o agente para o cometimento do delito. Para Jescheck, mesmo nos casos de emoção ou paixão, existe latente, no estrato psíquico do infrator, uma imagem do injusto, o que justifica a sua reprovabilidade penal. Embora não exclua a culpabilidade, aqueles estados de afetação humana podem incidir como causas de diminuição de pena, como ocorre nos crimes de homicídio e lesões corporais, nos chamados crimes passionais, tornando-os privilegiados (arts. 121, § 1o, e 129, § 4o, CP), podendo mesmo chegar ao perdão judicial (art. 139, § 1o) ou, ainda, à circunstância atenuante contemplada no art. 65, III, “c”, todos do CP. Não se olvide que quadros patológicos de emoção ou paixão podem comprometer a sanidade mental do agente, exculpando-se, portanto, ante a hipótese de inimputabilidade (art. 26, do CP). moção é um
17.7. Embriaguez
I
imputabilidade a embriaguez completa e fortuita, pelo álcool ou substância de efeitos análogos. É a única hipótese em que se atribui relevância à embriaguez. Exige-se, no entanto, que ela conduza o agente a estado em que seja gualmente e xclui a
27. Fragoso, op. cit., p. 250. 28. Cf.: “É bastante difícil indicar, com nitidez e exatidão, a diferença entre a emoção e a paixão. Será uma diferença de natureza? Não, porque a emoção é a fonte donde decorre a paixão. Será uma diferença de grau? Esta distinção precária, porque, se existem emoções calmas e paixões violentas, se encontra, também, o contrário. Fica uma terceira diferença: a duração. Diz-se, geralmente, que a paixão é um estado que dura: a emoção é a forma aguda, a paixão é a forma crônica. Violência e duração – tais são os caracteres que lhes são respectivamente assinalados.” (Lyra, Roberto. Comentários ao Código Penal. Vol. II, Rio: Forense, 1958, p. 396). 247
Curso de Direito Penal | Parte Geral
inteiramente incapaz de entender o caráter criminoso do fato e de determinar-se de acordo com esse entendimento (art. 28, § 2o, CP). Vale dizer, embriaguez é a intoxicação aguda causada pelo álcool ou substância de efeito análogo. Se é certo que a embriaguez fortuita ou acidental pode excluir ou atenuar a culpabilidade, a embriaguez não acidental – aquela que é decorrente da ingestão voluntária (dolosa) ou culposa – não é aceita pelo legislador penal como exculpante (art. 28, II, do CP), pouco importando se, no momento da conduta, o agente possuía ou não condições de compreensão ou de autodeterminação. O álcool é uma droga lícita e de livre circulação e consumo, salvo para o menor de dezoito anos de idade (art. 243, do ECA), e para quem dirige veículo automotor (art. 306, do CTB). A rigor, o consumo de bebida alcoólica acompanha a humanidade desde tempos imemoriais, sendo, inclusive, estimulado, direta ou indiretamente, pelos meios de comunicação em massa, como ocorre com os comerciais de cerveja no curso da transmissão de partidas de futebol ou das crônicas de harmonizações de vinhos nos jornais dominicais. O Código Penal equiparou bebida alcoólica à substância alimentícia (art. 272, § 1o, do CP), o que suscita muitas críticas. Ante a complexa problemática do uso e do abuso do álcool, optou-se, político-criminalmente, por dispensar um tratamento inflexível aos ilícitos praticados sob o efeito daquela substância. O suporte teórico para a reprovabilidade penal repousaria na teoria da actio libera in causa, que remonta à Idade Média. Por intermédio dessa construção doutrinária, antecipa-se o juízo de reprovação para alcançar o momento anterior ao estado de embriaguez, quando o agente era livre para determinar-se conforme o Direito. O fato típico é reprovável porque o agente (embriagado), apesar de não ser livre no momento da conduta, o era no momento do início da ingestão de álcool. Cumpre ressaltar que a actio libera in causa foi, inicialmente, construída para justificar a punição nos casos de embriaguez preordenada, ou seja, quando o agente, dolosamente, intoxicava-se para praticar determinados atos comissivos ou omissivos. Posteriormente, ela foi ampliada, abrangendo as hipóteses de embriaguez voluntária ou imprudente, nas quais não havia nenhuma pretensão delituosa anterior. É forçoso reconhecer que não haveria maiores dificuldades na aceitação dessa teoria nos casos em que, ex ante, existisse a previsibilidade real ou potencial de que, no estado de embriaguez, o agente se tornasse fonte de ilícitos penais. Basta pensar no sujeito que, sabendo tornar-se violento quando embriagado, voluntária ou culposamente, ingere certa quantidade de bebida alcoólica em uma mesa de bar, vindo a agredir terceiros ou seus próprios familiares. O mesmo raciocínio se aplica àquele que toma a direção de um veículo automotor, após algumas doses de álcool, lesionando ou matando terceiros. Entretanto, a fragilidade da teoria da actio libera in causa se descortina nas hipóteses nas quais era imprevisível, para o agente ou para qualquer outra pessoa, no momento da ingestão da bebida alcoólica, a ocorrência do fato posteriormente praticado sob o 248
Capítulo XVII | Culpabilidade
efeito daquela substância. Neste terreno, inspira-se o grave receio do Código Penal ter adotado uma modalidade de responsabilidade penal objetiva, perpetuando a tão criticada doutrina do versari in re illicita.29 Objetivando superar a referida deficiência, alguns autores – como Mezger –, fundamentam o juízo de censura na chamada vontade residual. Segundo essa construção, as perturbações decorrentes do álcool ficariam, em maior ou menor medida, na superfície da mente do agente, não abolindo, por completo, a sua capacidade de entendimento ou autodeterminação. Dessa forma, a hipótese de delito praticado no estágio de embriaguez completa só existiria nos manuais de Direito Penal, vez que o organismo daquele que está completamente alienado por conta do álcool fica em estado letárgico ou mesmo de “coma alcoólico”, não lhe sendo possível, empiricamente, perpetrar ilícitos penais.30 Argumenta-se, em sentido inverso, que salvo situações de crime omissivo – v.g., o médico que se embriaga para não terminar uma operação cirúrgica ou um controlador de voo que faz o mesmo para causar um acidente aéreo –, a solução legal importaria na punição pela mera causação do resultado, sem dolo ou culpa. Eugenio Raúl Zaffaroni filia-se aos críticos, reputando inadequada a solução da actio libera in causa. Para este autor, o ânimo com o qual uma pessoa bebe é só o de beber, e não há dolo algum nesse preciso momento, por ausência de tipicidade objetiva. Em seu lugar, propõe-se que a problemática da ingestão de álcool pode e deve ser solucionada por intermédio dos aportes teóricos do delito culposo.31 Constata-se, portanto, que para Zaffaroni o resultado causado quando do estado de embriaguez só seria punido a título de culpa, desde que comprovada a violação do dever de cuidado por parte do agente. Na esteira desse entendimento, ficaria afastada a responsabilidade penal em face da imprevisibilidade do resultado, intrinsecamente relacionada com a violação do dever de cuidado exigido no trato das relações sociais.32 Apesar de dogmaticamente correta, a solução propugnada por este autor deixa a descoberto situações nas quais há inequívoca violação de bens jurídico-penal. Basta considerar, nesse sentido, a enorme quantidade de tipos penais sem previsão da modalidade culposa. Dessa forma e porque a tutela de bens jurídicos é teleologicamente a principal missão do Direito Penal, é de se preferir, por cautela, a sistemática acolhida pelo legislador brasileiro, embora possa não primar pela melhor técnica dogmática. Fala-se em três estágios da embriaguez: excitação (a partir de 0,8g por mil de sangue), depressão (cerca de 3g por mil de sangue) e sono (cerca de 4 a 5g por mil de sangue).33 O primeiro constitui a chamada embriaguez incompleta e os demais a embriaguez incompleta. 29. 30. 31. 32. 33.
Segundo a fórmula do versari in re illicita, “quem quer a causa, quer ou aceita o efeito”. Mezger, op. cit. Zafaroni, Alagia, Slokar, Derecho penal..., p. 713-714. Idem. Prado, op. cit., p. 438. 249
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Haveria ainda as espécies de embriaguez: voluntária, culposa, preordenada e fortuita, que serão, a seguir, apresentadas. 17.7.1. Espécies de embriaguez 17.7.1.1. Embriaguez fortuita ou acidental
É a que decorre de caso fortuito ou força maior. Fortuito é o não previsível para a generalidade das pessoas, como ocorre, por exemplo, no caso do agente que ingere determinada bebida, tida por inofensiva, mas que, na verdade, contém álcool ou substância de efeito análogo na sua composição química. Por sua vez, força maior consiste na involuntária e inevitável colocação no estado de embriaguez. Imagine-se o exemplo do agente que é obrigado, mercê de coação física irresistível, a ingerir várias doses de aguardente. Em síntese, fortuito é o imprevisível, embora evitável; força maior é o previsível, embora inevitável. Ressalte-se, por oportuno, que são hipóteses extremamente raras de se verificar no plano da vida cotidiana. A embriaguez acidental traz, igualmente, consequências no âmbito da culpabilidade. Nesse caso, os §§ 1o e 2o, do art. 28, do CP, dispõem que a embriaguez acidental pode afetar a capacidade de compreensão ou de autodeterminação do agente, conforme, evidentemente, o grau de embriaguez. Se a embriaguez acidental for completa, excluir-se-á, pontualmente, a imputabilidade. Nesse caso, não há previsão de qualquer consequência jurídico-penal, diferentemente do que dispunha a redação original do CP, que previa a imposição de tratamento ao ébrio acidental. Ao revés, se a embriaguez acidental for incompleta, poderá ser atenuado o juízo de reprovabilidade, reconhecendo-se a semirresponsabilidade do agente, punindo-o de maneira atenuada. Por outro lado, o alcoólatra é considerado um doente mental, excluindo-se, assim, a sua culpabilidade, não pelo que dispõe o art. 28, mas, sim, por força do art. 26, do CP. De forma sistêmica, a Lei no 11.343/2006 (Lei de Drogas) atribui consequências semelhantes para os casos envolvendo o abuso de drogas, excluindo ou atenuando a responsabilidade penal, consoante o disposto nos arts. 45 e 46 daquele diploma legal. 17.7.1.2. Embriaguez voluntária ou culposa
Na primeira vertente, há consciência e vontade da ingestão de bebida alcoólica, seja para efetivamente ficar embriagado ou efetivamente assumindo o risco de que isso venha a ocorrer. O agente senta num bar e voluntariamente pede ao garçom várias “rodadas de chope” até chegar ao estado de embriaguez. Na culposa, violando o dever de cuidado, o agente imprudentemente ingere bebida, vindo a ficar embriagado, ou acredita que tal circunstância não irá se verificar, seja por leviandade ou confiança na sua capacidade de resistência aos efeitos do álcool. A lei penal equipara as duas hipóteses, não lhes retirando o juízo de reprovabilidade caso venha a ser praticado algum fato delituoso (art. 28, II, do CP).
25 0
Capítulo XVII | Culpabilidade
17.7.1.3. Embriaguez preordenada
Na embriaguez preordenada, o agente dolosamente ingere álcool ou substância de efeito análogo, para criar coragem para a prática de delito comissivo, anulando, assim, seus freios inibitórios, ou para atingir o estado de letargia que o impeça de cumprir seu dever legal de atuar, nas hipóteses de delito omissivo próprio ou impróprio. Como visto, não há que falar de isenção de pena, existindo, ao revés, a previsão legal de uma maior reprovabilidade, conforme a circunstância agravante contida no art. 62, II, “e”, do CP. 17.7.1.4. Embriaguez patológica
É aquela decorrente do alcoolismo, isto é, cuida-se de doença incurável, embora passível de controle, constituindo-se, na verdade, um problema de saúde pública a nível mundial. O alcoolismo acarreta efeitos devastadores não somente para a saúde física (câncer no fígado), mas, igualmente, mental (lesões cerebrais irreversíveis), chegando, o último estágio, ao quadro de dependência química e compulsão pela bebida. Em razão disso, o alcoólatra poderá vir a ser isento de pena caso a perícia comprove a sua doença mental (art. 26, do CP).
17.8. Estado de necessidade exculpante
C
lei penal brasileira reconhece, apenas, a figura do estado de necessidade justificante (art. 24, do CP). Aquilo que corresponderia ao estado de necessidade exculpante, ou seja, o sacrifício de bem maior valor do que aquele salvaguardado funciona, somente, como atenuação da reprovabilidade (art. 24, § 2o). O Código não adotou, em suma, a teoria diferenciadora do estado de necessidade, que permitiria a exclusão da culpabilidade. O Código Penal de 1969 previa essa hipótese no seu art. 25 e o vigente Código Penal Militar a acolheu, conforme a redação do art. 39. Diante disso, parte da doutrina sustenta que a teoria diferenciadora pode ser aplicada como causa supralegal de exclusão da culpabilidade, quando não puder ser exigido do agente, no caso concreto, um comportamento conforme o Direito.34 onsoante estudado, a
17.9. Erro de proibição
O
vencível ou invencível, que exclui ou atenua a culpabilidade, respectivamente, bem assim questões atinentes ao desconhecimento da lei, serão enfrentados no Capítulo seguinte. erro de proibição,
34. Por todos, Bitencourt, op. cit., p. 366. 251
título
III
capítulo
teoria geral do crime
XVIII
TEORIA DO ERRO JURÍDICO-PENAL 18.1. Considerações gerais
O
vários séculos, conviveu com a velha fórmula romana que compreendia o fenômeno do erro por intermédio de dois modelos fundamentais: erro de fato (error facti) e erro de direito (error iuris), sendo o primeiro, a princípio, escusável e, o segundo, inescusável, salvo em algumas hipóteses especiais.1 Contudo, diante da evolução dogmática do conceito de culpabilidade – exposta no Capítulo anterior –, introduzindo-se a consciência da antijuridicidade como elemento do juízo de culpabilidade, bem assim deslocou-se o dolo e a culpa para a esfera da tipicidade, o que acarretou o abandono daquela milenar divisão fato/lei, permitindo-se a construção de uma nova e mais aperfeiçoada teoria do erro jurídico-penal, vinculada aos pressupostos do conceito analítico de crime: tipicidade, antijuridicidade e culpabilidade. Fundamentalmente, são reconhecidas, na atualidade, duas situações nas quais a formação equivocada da ideia no agente pode repercutir na caracterização do fato criminoso: pode excluir o dolo, dando azo ao surgimento do erro de tipo (equívoco quanto às elementares do tipo), ou pode afetar somente a culpabilidade, possibilitando a construção da figura do erro de proibição (incidente sobre a compreensão da Direito Penal , por
1. Cf. Toledo, Francisco de Assis. Princípios básicos de Direito Penal. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 1994, p. 257. 252
Capítulo XVIII |Teoria do erro jurídico -penal
antijuridicidade do fato). Pode, ainda, o erro carecer de relevância a excluir os pressupostos do crime, servindo, tão somente, para influir na dosimetria da pena (erro acidental). Para fins penais, considera-se erro a falsa representação da realidade. O agente supõe realidade diversa da que efetivamente existe. Ao erro equipara-se a ignorância, ou seja, a ausência daquela representação. Portanto, a teoria do erro jurídico-penal enfeixa, em igual nível, a formação cognitiva defeituosa ou a completa ausência dessa formação.2 Importante registrar, ainda introdutoriamente, que o Direito Penal brasileiro assimilou todo esse conjunto de transformações dogmáticas, hauridas, em larga medida, da doutrina penal alemã. Nesse sentido, com a Reforma Penal de 1984, de viés finalista, revogou as categorias do erro de fato e erro de direito, passando a adotar as supracitadas hipóteses de erro sobre elementos do tipo (art. 20, caput, do CP) e erro sobre a ilicitude do fato (art. 21, caput e parágrafo único, do CP). Conservou-se, porém, a figura da descriminante putativa (art. 20, § 1o, do CP).3
18.2. Classificações do erro jurídico - penal
A
erro de tipo e erro de proibição, outras classificações devem ser apresentadas a fim de facilitar a compreensão de um assunto reconhecidamente complexo. Sendo assim, alude-se a erro invencível e erro vencível, consoante a carga de intensidade do equívoco, bem assim as consequências que lhes são destinadas. lém da divisão
18.2.1. Erro invencível
O erro invencível – também conhecido como inevitável – é aquele escusável, na medida em que não pode ser superado por uma pessoa dotada de diligência normal no trato das relações sociais. Em outras palavras, cuida-se do equívoco que qualquer indivíduo, empregando o cuidado pressuposto pelo ordenamento jurídico – quando colocado no lugar do agente – também cometeria. Não há falar de descuido ou desatenção no processo de representação (formação cognitiva ou intelectual), pois, como dito, qualquer um de nós, se estivéssemos na posição do agente, também erraríamos, ante a impossibilidade de superação da apreensão irreal do caso concreto. Se se tratar de erro de tipo, a sua invencibilidade acarreta a exclusão do dolo e da culpa, excluindo, portanto, a tipicidade do fato. A seu turno, o erro de proibição invencível gera o efeito de excluir a culpabilidade; o fato continua a ser típico e antijurídico, mas não se pode reprovar o seu autor.
2. Cf. Fragoso, Heleno Cláudio. Op. cit., p. 217. 3. Cf.: “Com efeito, acolhe o Projeto, nos arts. 20 e 21, as duas formas básicas de erro construídas pela dogmática alemã: erro sobre elementos do tipo (Tatbestandsirrtum) e erro sobre a ilicitude do fato (Verbotsirrtum). Definiu-se a evitabilidade do erro em função da consciência potencial da ilicitude (parág. único do art. 21), mantendo-se no tocante às descriminantes putativas a tradição brasileira, que admite a forma culposa, em sintonia com a denominada ‘teoria limitada da culpabilidade’ (...).” (E. M. do CP/1984, item 17). 253
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18.2.2. Erro vencível
O erro vencível ou evitável é aquele inescusável, na medida em que poderia ser contornado por uma pessoa diligente que estivesse no lugar do agente. A rigor, trata-se de um engano relacionado à desatenção do agente, que poderia tê-lo evitado. Desse modo, a generalidade das pessoas – à exceção, é claro, daquele que errou – poderia constatar, no curso da formação cognitiva, a realidade da situação concreta, abstendo-se do equívoco. O erro de tipo vencível exclui o dolo, mas permite a punição a título de culpa, visto que o equívoco que comprometeu a representação do agente era previsivelmente corrigível. Ou, em outras palavras, neste caso o responsável descumpriu o dever geral de cuidado. Por sua vez, o erro de proibição vencível não exclui a culpabilidade, mas permite que a mesma sofra atenuação, conforme o percentual legalmente estipulado. 18.2.3. Erro essencial e erro acidental
Além da natureza e da intensidade do erro, deve-se mencionar classificação que aparta o erro essencial do erro acidental. O erro essencial, relacionado às categorias anteriormente introduzidas, traz consequências para os pressupostos do conceito do crime (tipicidade e culpabilidade). No entanto, o erro acidental – ou residual – diz respeito a pequenos desvios no processo de representação, que não comprometem o enquadramento dogmático do fato ou a sua antijuridicidade, mas possibilitam uma punição diferenciada.4
18.3. Evolução dogmática da teoria do erro
O
do erro envolve a própria evolução da dogmática penal, ou seja, ele perpassa as teorias causalista e finalista da ação, fazendo-se presente nas modernas concepções funcionalistas. A discussão da matéria envolve, fundamentalmente, a passagem do dolo e culpa, da culpabilidade para a tipicidade, a introdução da consciência da antijuridicidade como integrante do juízo de censura, bem como questões atinentes ao erro sobre as circunstâncias fáticas de excludentes de antijuridicidade (descriminantes putativas ou erro de tipo permissivo). estudo da teoria
18.3.1. Teoria extremada do dolo
A teoria extremada do dolo, prevalente ao tempo da teoria causal da ação (Cap. XI), concebia o dolo na culpabilidade e a consciência da antijuridicidade no próprio dolo. O dolo era, portanto, um dolo normativo ou dolus malus – isto é, representação e vontade da conduta e ciência de que a mesma é proibida. Como o dolo sempre é atual, 4. Cf. Francisco de Assis Toledo, erro acidental é o que recai sobre circunstâncias acessórias ou estranhas, sem as quais o crime não deixa de existir (Toledo, Francisco de Assis. Op. cit., p. 269). 25 4
Capítulo XVIII |Teoria do erro jurídico -penal
equiparando-se a ele a consciência da antijuridicidade, esta última também deveria ser atual. Dessa forma, caso o agente soubesse o que estava realizando, mas ignorasse, no momento da ação, a injuridicidade do seu atuar, a consequência era que todo o dolo era excluído. Excluído o dolo, excluída também restava a culpabilidade (teoria causalista da ação). Segundo Assis Toledo, para os seguidores dessa teoria, o erro de proibição equipara-se, quanto aos seus efeitos, ao erro de tipo. Contudo, essa teoria perdeu adeptos devido às críticas que recebeu e às dificuldades de sua aplicação prática, sendo mencionada, na atualidade, apenas pelo seu valor histórico.5 18.3.2. Teoria limitada do dolo
Objetivando superar as dificuldades havidas na corrente anterior, desenvolveu-se a teoria limitada do dolo. Em linhas gerais, segue-se a disposição precedente – dolo e culpa na culpabilidade, sendo aquele composto da representação e vontade do fato mais a consciência da antijuridicidade. Contudo, com a superação do causalismo pelo neokantismo (conectado a valores superiores de justiça), substitui-se o conhecimento atual da antijuridicidade, anteriormente mencionado, pelo conhecimento potencial: o agente sabe ou poderia saber que aquilo que realiza é contrário ao Direito. Caso o agente não soubesse, mas demonstrasse desprezo ou indiferença para com as leis, continuaria a responder pela culpabilidade dolosa. Esta solução trouxe sérias e negativas consequências à dogmática penal, mormente no ambiente social onde foi desenvolvida: Alemanha dos anos 30 do século passado. Ao tentar encobrir falhas na noção de dolo normativo, os seguidores da teoria limitada do dolo conceberam uma culpabilidade do autor ou culpabilidade pela condução de vida, perseguindo-se uma legião de marginalizados que não se alinhavam às normas do chamado sentimento do Estado totalitário. Em suma, ao tentar corrigir o dolus malus, criara-se a criticável figura do dolus suppositus.6 18.3.3. Teoria extremada da culpabilidade
A teoria extremada ou estrita da culpabilidade decorre da doutrina finalista da ação, que rivalizou com as correntes causalistas e neokantistas. Parte-se da reelaboração do conceito analítico do crime, separando-se o dolo da consciência da antijuridicidade. O dolo e a culpa passaram a ser analisados no tipo penal – surgindo os tipos dolosos e culposos –, permanecendo a consciência da antijuridicidade, atual ou potencial, na culpabilidade. Chegou-se, assim, a uma concepção puramente normativa da culpabilidade. O juízo de censura passa a ser feito sobre o autor do fato típico e antijurídico que, imputável, podendo agir de outro modo, sabia ou poderia saber que a conduta realizada era antijurídica. 5. Toledo, Francisco de Assis. Op. cit., p. 282. 6. Idem, p. 264. Sobre o envolvimento de Mezger, além de outros penalistas, com a ideologia nazista, vide: Muñuz Conde, Francisco. Edmund Mezger e o Direito Penal do seu tempo. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005. 25 5
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Feitas tais modificações dogmáticas na estrutura do crime, criou-se o ambiente para o surgimento das supramencionadas categorias do erro de tipo e do erro de proibição. Dessa forma, no erro que vicia a representação do dolo (aspecto cognitivo ou intelectual) impede-se que o dolo abranja corretamente os elementos constitutivos do tipo. Portanto, essa forma de erro exclui sempre o dolo, mas permite a punição por fato culposo, se for prevista a modalidade culposa, e quando decorrer da falta de atenção ou cuidado (erro vencível). Segundo a teoria extremada da culpabilidade, a condenação por crime culposo, se prevista em lei, é possível porque, estando o dolo no tipo, não mais na culpabilidade, a exclusão do dolo deixa intacta a culpabilidade, não afetando, portanto, um possível aperfeiçoamento da culpabilidade por crime culposo.7 A seu turno, o erro que incide sobre a consciência da antijuridicidade do fato – não saber que a conduta realizada é contrária ao ordenamento jurídico –, anula, se for inevitável, este requisito da culpabilidade. O agente sabe o que faz, mas não sabe, tampouco poderia alcançar esse conhecimento, que o que fez é antijurídico. E como não há crime sem culpabilidade, esta modalidade de erro impede a condenação, seja por dolo, seja por culpa. No entanto, se o erro for evitável, atenua-se a pena, mas a condenação se impõe.8 18.3.4. Teoria limitada da culpabilidade
A teoria limitada da culpabilidade, também própria do finalismo, concorda com as premissas apresentadas pela teoria extremada da culpabilidade. Ambas consideram o dolo no tipo, apartando-o da consciência da antijuridicidade, que permanece na culpabilidade. As duas apresentam o erro de tipo como excludente do tipo doloso, permitindo, caso vencível o erro, a punição por crime culposo, se previsto em lei. As duas consideram o erro de proibição inevitável como excludente da culpabilidade (ausência de consciência da antijuridicidade), sem possibilidade de punição por crime culposo. Caso evitável o erro, a culpabilidade será tão somente atenuada, mas não excluída. Contudo, elas divergem a respeito da solução para o erro que recai sobre os pressupostos fáticos de uma causa de justificação (descriminantes putativas). Para a corrente anterior – a teoria extremada –, todo e qualquer erro que recaia sobre uma causa de justificação é erro de proibição, o que impede a condenação por crime culposo, uma vez que o erro de proibição inevitável exclui a culpabilidade. Se evitável, permite a condenação por fato doloso atenuada. Em suma, o agente sabe o que faz, mas supõe, ante a irreal causa de justificação, que seu atuar não é antijurídico. Se a situação imaginária pudesse ser evitada, com a devida diligência, continua a responder pelo fato doloso praticado, mas com a reprovabilidade abrandada. 7. Toledo, Francisco de Assis. Op. cit., p. 284. 8. Idem, p. 284. Conclui este autor: “Em resumo: o erro de tipo exclui sempre o dolo, quer seja inevitável ou evitável; se o erro de tipo era evitável, mas não se evitou, há que se investigar a muito provável existência de um crime culposo. O erro de proibição exclui a culpabilidade somente quando inevitável. Mas neste caso a absolvição será sempre certa, visto como não há possibilidade de condenação por dolo ou por culpa, sem o aperfeiçoamento da censura de culpabilidade.” (Idem, p. 285). 25 6
Capítulo XVIII |Teoria do erro jurídico -penal
A seu turno, para a teoria limitada da culpabilidade, há que se distinguir o erro que recai sobre os pressupostos fáticos de uma causa de justificação do erro que incide sobre a existência ou os limites jurídicos de uma causa justificante. No primeiro caso, aquela teoria considera-o como erro de tipo permissivo, que tem o mesmo efeito do erro de tipo, ou seja, exclui o dolo, mas permite a punição do fato a título de culpa, se prevista a modalidade culposa. No segundo caso – também conhecido como erro de proibição indireto –, configura-se, tal qual a teoria extremada, erro de proibição, com as suas respectivas consequências. Vê-se, portanto, que a divergência basilar entre as duas correntes restringe-se unicamente ao tratamento da descriminante putativa, pois, para a primeira teoria (extremada), constitui-se erro de proibição, ao passo que, para a segunda (limitada), constitui-se erro de tipo permissivo, com o mesmo efeito do erro de tipo propriamente considerado: exclusão do dolo e da culpa, se invencível; exclusão do dolo, mas punição por culpa, se prevista a modalidade culposa. Exemplo: Após uma acalorada discussão no condomínio onde residiam, “A” ameaça matar “B”. Dias depois, conquanto “A” já tivesse esquecido o que havia dito no momento de raiva, “B” continua receoso com aquela ameaça, e adquire uma arma para se proteger. Certo dia, ao avistar “A” na garagem do prédio, vindo na sua direção segurando algum objeto metálico, “B”, supondo na iminência de uma injusta agressão, rapidamente pega sua arma e alveja “A”, matando-o. Em seguida, constata-se que “A” trazia nas mãos tão somente as chaves do carro, inexistindo, faticamente, nenhum pressuposto que pudesse caracterizar a legítima de defesa.
Conforme observado, para a teoria extremada da culpabilidade, “B” teria agido em erro de proibição, pois sabia o que estava fazendo (matar “A”), mas acreditava fazê-lo justificadamente (legítima defesa putativa). Se, nas circunstâncias do caso concreto esse erro fosse insuperável, excluía-se a sua culpabilidade; caso superável com o devido cuidado, respoderia pelo homicídio de “A”, mas com a culpabilidade atenuada. Diversamente, para a teoria limitada da culpabilidade, “B” teria agido em erro de tipo permissivo, excluindo o dolo e a culpa, se invencível; caso vencível, poderia ser punido por homicídio culposo de “A”. A divergência entre os defensores das duas correntes também se faz presente na doutrina nacional. Francisco de Assis Toledo, por exemplo, considera mais adequada a teoria limitada da culpabilidade, pois ela possibilita a punição do agente por homicídio culposo, em situações de legítima defesa putativa vencível, o que não seria possível caso se adotasse a tese antagônica.9 Diversamente, Heleno Cláudio Fragoso, filia-se à corrente extremada ou estrita, pois, segundo ele, em hipóteses como a anteriormente ilustrada, o agente sabe perfeitamente que realiza uma conduta típica, tanto do ponto de vista objetivo como subjetivo (age com dolo de matar), mas erra no tocante a antijuridicidade 9. Toledo, Francisco de Assis. Op. cit., p. 285. 257
Curso de Direito Penal | Parte Geral
do seu comportamento: para usar uma fórmula da jurisprudência alemã, o agente aqui sabe o que faz, mas supõe erroneamente que estaria permitido. Exclui-se não a tipicidade, mas, sim, a reprovação da ação.10 Em razão de ter estado à frente da Reforma Penal de 1984, Assis Toledo fez com que a norma referente à descriminante putativa ficasse inscrita como um parágrafo do artigo referente ao erro de tipo (art. 20, § 1o, do CP), o que indicaria a preferência do legislador pela teoria limitada da culpabilidade. No entanto, da redação daquele dispositivo, vê-se a utilização da expressão “é isento de pena” que indica, na verdade, a exclusão, não do tipo, mas, sim, da culpabilidade (cf. art. 21, 2a parte, do CP). Trata-se, portanto, de uma polêmica de certo modo infindável. Talvez por isso, alguns preferem tratar o erro referente às descriminantes putativas como uma espécie sui generis de erro. Nesse sentido, observa-se que, efetivamente, situações como a ora analisada constituem-se uma espécie de “erro eclético”, vale dizer, hipóteses com estrutura parecida com o erro de tipo – pois o agente quer respeitar o Direito –, mas com consequência semelhante ao erro de proibição – isenção de pena ou a pena menor de crime culposo.11 18.3.5. Teoria dos elementos negativos do tipo
A teoria dos elementos negativos do tipo chega a resultados semelhantes à teoria limitada da culpabilidade, mas por intermédio de outra fundamentação. Esta teoria desenvolvida na Alemanha por Frank e Merkel concebe o tipo total de injusto, inserindo, no tipo penal, as causas de justificação. Seria como se o tipo penal de homicídio (art. 121, do CP), devesse ser lido da seguinte maneira: “Matar alguém, salvo em estado de necessidade, legítima defesa, estrito cumprimento do dever legal ou no exercício regular de um direito”. Segundo Juarez Tavares, para a referida teoria, a tipicidade abrangeria a antijuridicidade, sendo que ambas não mais seriam interpretadas como categorias autônomas e interligadas, mas, sim, como “um todo normativo unitário”.12 Dessa maneira, quando o agente supõe existir os pressupostos fáticos de uma causa de justificação, agindo, v.g., em legítima defesa putativa, há exclusão da tipicidade, em função do erro de tipo total – o que, para a teoria limitada, seria erro de tipo permissivo. O dolo, nessas circunstâncias, deveria abranger não somente os elementos constitutivos do tipo incriminador, mas também a ausência de causas justificantes. Por isso, os defensores da teoria dos elementos negativos do tipo concluem não haver dolo quando estiverem presentes causas de exclusão da antijuridicidade. Em síntese, o erro, nas descriminantes putativas fáticas, seria erro de tipo e como tal excluiria o dolo.13
10. 11. 12. 13. 258
Fragoso, Heleno Claúdio. Op. cit., p. 258. Cf. Bitencourt, op. cit., p. 410. Tavares, Juarez. Teoria do delito (variações e tendências). São Paulo: Revista dos Tribunais, 1980, p. 45. Cf. Bitencourt, op. cit., p. 411.
Capítulo XVIII |Teoria do erro jurídico -penal
É forçoso reconhecer, porém, que a teoria dos elementos negativos do tipo não conta com muitos adeptos na atualidade, tendo em vista que a sua adoção importaria na fusão das categorias da tipicidade e da antijuridicidade, transformando a morte dada a alguém em legítima defesa em algo tão indiferente ao Direito Penal como a morte de um minúsculo inseto.14
18.4. Erro de tipo
C
omo visto, erro de tipo é aquele que incide sobre as elementares ou circunstâncias da figura típica, incluindo as formas qualificadas ou privilegiadas, bem como as circunstâncias legais agravantes. Conforme disposto no art. 20, caput, do CP: “O erro sobre elemento constitutivo do tipo legal de crime exclui o dolo, mas permite a punição por crime culposo, se previsto em lei.” De maneira sintética, pode ser dito que no erro de tipo, o agente conhece a proibição legal, mas não conhece a própria conduta. Welzel, analisando igual dispositivo presente no § 59 do Código Penal alemão, assinala que o erro sob consideração, sempre exclui o dolo se o autor desconhece ou se equivoca acerca de uma circunstância objetiva do fato que deva ser abarcada pelo dolo e pertença ao tipo legal. Seria a hipótese de um caçador que dispara sobre um objeto obscuro ao qual toma por um javali, quando, na verdade, era uma coletora de amoras. Se o erro decorreu de culpa, subsistirá a punibilidade por comissão culposa, sempre que exista o respectivo tipo culposo.15 O erro de tipo, invencível ou vencível, sempre exclui o dolo, porque, como visto, dolo é formado por representação e vontade. Se o erro afeta a parte intelectiva, comprometida está a presença do agir doloso. O erro invencível exclui, além da tipicidade dolosa, a possível tipicidade culposa. Se qualquer pessoa erraria, evidentemente que o erro sob consideração não pode ser atribuído ao agente por culpa, por desatenção, por violação do dever de cuidado. Por sua vez, o erro vencível – isto é, evitável – que não exclui a tipicidade culposa, se prevista, para a conduta sob consideração, a punição a título de culpa, como ocorre, por exemplo, com os crimes de homicídio e de lesão corporal (arts. 121 e 129, do CP). Pode-se, assim, concluir que, enquanto o erro invencível exclui dolo e culpa, o erro vencível não exclui a culpa, visto que, doutrinariamente, ele nada mais representa do que o cometimento de delito culposo, tendo em vista a desatenção do agente.16
14. Em sentido inverso, defendendo a adoção da teoria dos elementos negativos do tipo: Santos, Juarez Cirino dos. Direito Penal. Parte Geral. Rio de Janeiro: Lumen Juris, passim. 15. Welzel, Hans. Derecho Penal Aleman. Parte General. 11. ed. Trad. Bustos Ramírez. S. do Chile: Jurídica, p. 92. 16. Cf.: “Erro de tipo. Lesão corporal. Responsabilidade a título de culpa. Caçador que, pensando disparar contra capivara, atinge companheiro de expedição. Circunstâncias, porém, que tornavam o erro evitável e o evento previsível. Imprudência configurada. Inteligência dos arts. 20, caput, e 129, § 6 o, do CP. O erro de tipo só eximirá o agente de responsabilidade por culpa se, inevitável o erro, o evento era imprevisível. Logo, age imprudentemente e responde pelas consequências o caçador que, participando com outros de uma expedição, ao perceber movimentação em meio de um arrozal e julgando, precipitadamente, ser uma capivara, 259
Curso de Direito Penal | Parte Geral
Ao lado do erro anteriormente considerado – isto é, do erro de tipo essencial –, reconhece-se a possibilidade de defeitos no processo de formação cognitiva, que não são idôneas para a descaracterização do tipo, mas podem trazer consequências diferenciadas para a punição do agente. Em suma, cuida-se de pequenos equívocos de avaliação ou desvios no curso da execução da conduta, que não tornam o fato atípico, muito embora deem margem à punição conforme o que fora representado pelo agente.
18.5. Erro de proibição
E
é o equívoco que incide sobre o juízo de antijuridicidade de um comportamento típico. O agente tem perfeitamente formada a representação (parte cognitiva) da sua conduta, mas acredita, erroneamente, que a mesma não é contrária ao ordenamento jurídico. rro de proibição
Exemplo: “A” pede emprestado a “B”, colega de trabalho, a quantia de quinhentos reais, prometendo devolvê-la na semana seguinte. Vencido o prazo, “A” não devolve o dinheiro. “B”, ao passar pela mesa de “A”, constata que ele, embora ausente no momento, deixara a carteira de dinheiro num local acessível. Apesar de saber que é crime subtrair coisa alheia, “B” supõe que não é antijurídico subtrair valores do seu devedor em mora, o que, de fato, realiza.
Observe-se que “B” sabe perfeitamente bem a conduta que realiza. Age com dolo. Sabe que subtraiu valores pertencentes ao patrimônio de “A”. Sabe também que em circunstâncias normais, a subtração de coisa móvel alheia (v.g., dinheiro), constitui crime de furto (art. 155, do CP). Contudo, por erro sobre aquilo que é permitido ou não fazer, supôs-se que, no caso de devedor inadimplente, não é antijurídico reaver o que emprestara por meio da subtração, isto é, sem recorrer ao Judiciário.17 De maneira sintética, pode ser dito que no erro de proibição, o agente conhece a própria conduta, mas não tem meios para conhecer a proibição legal. Nesse sentido, dispõe a 2a parte do art. 21, do CP, que o erro sobre a ilicitude do fato, se inevitável, isenta de pena; se evitável, poderá diminuí-la de um sexto a um terço. No caso exemplificado, dificilmente poderia ser aceita a inevitabilidade do erro de “B”, pois, ainda que não soubesse, poderia, sem muito esforço – com um pouco mais de zelo ou consultando outros colegas – atingir a percepção de que não é lícito exercer arbitrariamente sua pretensão, ainda que legítima. Constata-se, empiricamente, que o erro de proibição, diferentemente do erro de tipo, é mais difícil de ocorrer na generalidade dos casos. Isso porque, por intermédio do embora pudesse melhor certificar-se, valendo-se do farolete, efetua um disparo em direção ao ponto e, assim, atinge o próprio companheiro.” (Ap. 567959. TACrimSP. 2 a C. Juiz Haroldo Luz. DJ de 09/08/1990) (In RT 663/300). 17. A propósito, dispõe o art. 345, do CP: Fazer justiça pelas próprias mãos, para satisfazer pretensão, embora legítima, salvo quando a lei o permite. Pena – detenção, de 15 (quinze) dias a 1 (um) mês, ou multa, além da pena correspondente à violência. 26 0
Capítulo XVIII |Teoria do erro jurídico -penal
longo processo de socialização, as normas sociais – em particular as normas jurídicas e jurídico-penais – vão sendo assimiladas pelas pessoas. Sendo assim, consoante a lição de Binding, reproduzida por Assis Toledo, na quase totalidade dos casos envolvendo a invocação de erro de proibição, o suposto desconhecimento da ilicitude não passa de uma “mentira grosseira e transparente”. Isso porque – prossegue aquele autor –, o egoísmo nos revela quais são os atos que não precisamos tolerar, e via de regra nossa razão conclui acertadamente que tais atos devem estar proibidos quando praticados por outrem face à nossa pessoa, ou por nós face a outrem. Essa suposição da existência duma proibição, que se funda na realidade, basta perfeitamente para produzir um conhecimento suficiente da norma.18 No caso, não é necessário ser um especialista ou bacharel em Direito. Basta se tratar de pessoa adulta, imputável, socializada, para ter ou atingir o conhecimento da antijuridicidade de determinado fato. Evidentemente, em situações especiais, pode estar ausente a referida constatação da contrariedade do fato para com o ordenamento jurídico. É o que ocorre, por exemplo, com o estrangeiro que não está familiarizado com certas regras socioculturais de um país do qual é visitante. De todo modo, como a consciência da antijuridicidade é um dos elementos que compõem a culpabilidade, o seu afastamento acarreta, quando inevitável, a isenção de pena, consoante o dispositivo anteriormente transcrito. A propósito, alguns exemplos de erro de proibição colacionados por Welzel.19 Exemplo: 1. Um jovem campesino, de pouca instrução, tem relações com uma mulher disposta à relação sexual, portadora de enfermidade mental, conhecendo tal condição, porém sem conhecimento da norma proibitiva. 2. Um tutor tem relações sexuais com a pupila, pensando que seus deveres se limitam ao cuidado patrimonial. 3. Uma pessoa que está pescando e se nega a levar em seu carro a uma clínica um jovem que sofrera um acidente perto dele, crendo não estar obrigado a fazer isso. 4. Um homem deixa de castigo, trancado num cômodo por duas horas, uma criança mal educada, porque crê possuir direito de correção sobre os filhos alheios.
18.5.1. Ignorância da lei e ignorância da antijuridicidade
Não há que confundir ignorância ou erro sobre a vigência da lei com ignorância ou erro sobre a antijuridicidade do fato. A primeira (ignoratia legis), por razões de segurança do ordenamento jurídico, não pode ser alegada para fins de eximir-se do seu comando ou de sua sanção. Nesse sentido, dispõe a 1a parte do art. 21, do CP: O desconhecimento da lei é inescusável. Semelhantemente, o art. 3o, da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (antiga Lei de Introdução ao Código Civil), dispõe que ninguém pode se escusar de cumprir a lei, alegando o desconhecimento do seu conteúdo ou de sua vigência. 18. Toledo, op. cit., p. 259. 19. Welzel, op. cit., p. 187. 261
Curso de Direito Penal | Parte Geral
A propósito, o art. 1o, da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, dispõe que, salvo disposição contrária, a lei começa a vigorar, em todo o País, quarenta e cinco dias depois de oficialmente publicada. A seu turno, o art. 8o, da Lei Complementar no 95/1998, determina que a vigência da lei será indicada de forma expressa e de modo a contemplar prazo razoável para que dela se tenha amplo conhecimento, reservada a cláusula “entra em vigor na data de sua publicação” para as leis de pequena repercussão. Apesar de as leis penais não serem, obviamente, de pequena repercussão, constata-se que, em geral, elas entram em vigor na data da publicação no Diário Oficial. Ou seja, o próprio legislador federal não zela para com a razoabilidade exigida para a difusão das leis de conteúdo penal. A despeito disso – bem como do fato de o cidadão comum não ter o hábito de ler o Diário Oficial –, conforme já adiantado, o conteúdo normativo veiculado no texto penal corresponde, de ordinário, a condutas socialmente desvaliosas. Ademais, a vigência de uma (nova) lei penal é em geral noticiada pelos meios de comunicação em massa, incluindo, nos dias de hoje, a Internet, o que difunde amplamente a sua vigência. Sendo assim, a alegação de desconhecimento da lei, por parte do agente, dificilmente será verídica. Não obstante, residualmente, é possível alguém afirmar que desconhecia determinada lei penal, nova ou antiga, particularmente aquela muito específica ou de pouca utilização na vida cotidiana. Desse modo, sem transigir com o dogma do ignorantia legis neminem excusat, o Código prevê, como circunstância atenuante, o desconhecimento da lei (art. 65, II, do CP). Sob outra vertente, como dito anteriormente, não se confunde desconhecimento da lei com o desconhecimento da antijuridicidade do fato. Porém, eu posso conhecer a lei, mas achar que, no caso concreto, a minha conduta não está errada, não é ilícita – em suma, eu posso errar sobre o juízo acerca daquilo que faço, se é certo ou é errado. É possível, porém, que, numa dada situação, haja, ao mesmo tempo, desconhecimento da lei e desconhecimento da ilicitude. Isso ocorre se o dispositivo legal não espelhar um desvalor entranhado na cultura social. O dispositivo legal trata de uma norma que não está, ainda, consagrada e difundida como desvaliosa. 18.5.2. O dever de se informar
Há situações, porém, em que existe o chamado dever de se informar, próprio de atividades técnicas, como, por exemplo, a atuação no mercado financeiro. Nesses casos, não socorre ao agente alegar, por exemplo, que desconhecia os dispositivos legais da Lei no 7.492/1986 (Lei do Colarinho Branco). O agente será reprovado, no caso, pela possibilidade ou dever de informar-se. 18.5.3. Espécies de erro de proibição
As principais modalidades de erro de proibição são: erro de proibição direto; erro mandamental; e erro de proibição indireto. 262
Capítulo XVIII |Teoria do erro jurídico -penal
18.5.3.1. Erro de proibição direto
É o erro de proibição propriamente dito, isto é, o que se dá em situação em que o agente se engana a respeito da contradição entre o fato praticado e a norma proibitiva. 18.5.3.2. Erro mandamental
É o erro de proibição que ocorre nos crimes omissivos, próprios ou impróprios. É o que recai sobre uma norma impositiva (um facere). Exemplo: Quando o agente deixa de prestar socorro por achar que não está obrigado, por já ter encerrado seu plantão médico (omissão própria); ou quando o agente acha que não há seu dever de evitar o resultado por já ter expirado o prazo do contrato de guia de um grupo em excursão nos picos montanhosos, abandonando-o. 18.5.3.3. Erro de proibição indireto
O erro de proibição indireto envolve três ordens de considerações: (1) erro sobre os pressupostos fáticos de uma causa de justificação; (2) erro sobre a existência de uma causa de justificação; e (3) erro sobre os limites de uma causa de justificação. É o que ocorre se o agente desconhecer a ilicitude do seu fato, por causa de suposição errônea de uma causa de justificação (erro de permissão), consistente em: a) Supor existir uma causa de justificação (inexistente): o professor castiga o aluno achando que existe uma norma permitindo este ato. b) Supor poder exceder aos limites de uma justificante verdadeira: aquele que reage em legítima defesa de um tapa injusto, acha que pode matar o seu agressor. c) Supor a existência de pressupostos fáticos de uma causa de justificação (para a teoria extremada da culpabilidade). Para a teoria limitada, esta hipótese é de erro de tipo permissivo e não erro de proibição indireto.20
18.6. Descriminantes putativas
C
dogmática anteriormente apresentada, ao lado das hipóteses de erro de tipo e de erro de proibição, figuram as descriminantes putativas. No caso, o equívoco ocorre não naquilo que o agente ignora que realiza, ou na equivocada suposição de agir de forma permitida, mas, sim, na irreal avaliação da situação concreta justificante. onforme a evolução
20. Cf.: “Penal. Homicídio. Legítima defesa putativa. Duas hipóteses: supor situação de fato e supor estar autorizado. Júri. Quesitos. Indagação sobre a injustiça da suposta agressão. Exigência na legítima defesa putativa. Divergência jurisprudencial. Decisão favorável a necessidade dessa indagação ao júri, quando a hipótese caracterize erro de tipo permissivo (supor situação de fato), já que, se nem toda agressão, ainda que real, autoriza a legítima defesa, seria um despropósito admitir-se que toda e qualquer agressão suposta autorizaria a reação que nem mesmo a agressão real autoriza. Tal conclusão chocar-se-ia contra o texto expresso do § 1o, art. 20, do CP.” (REsp 6856. STJ. Min. Assis Toledo. Quinta Turma. DJ de 18/03/1991). 26 3
Curso de Direito Penal | Parte Geral
Exemplo: “A”, agente policial, no curso de uma operação, avista “B” empunhando e apontando na sua direção aquilo que acredita ser uma submetralhadora. Supondo estar, faticamente, diante de uma injusta agressão, querendo agir em legítima defesa, “A” dispara contra “B”, matando-o. Posteriormente, constata-se que, na verdade, tratava-se de uma simples furadeira elétrica.
Segundo a 1a parte do § 1o, do art. 20, do CP, é isento de pena quem, por erro plenamente justificado pelas circunstâncias, supõe situação de fato que, se existisse, tornaria a ação legítima. No caso exposto anteriormente, se existisse, de fato, uma submetralhadora prestes a ser disparada contra o policial “A”, sua ação seria justificada (legítima defesa real). Em razão disso, caso invencível o erro, o agente ficará isento de pena.21 A seu turno, a 2a parte do § 1o, do art. 20, do CP, diz que não há isenção de pena quando o erro deriva de culpa – erro vencível – e o fato é punível como crime culposo. Retornando ao citado exemplo, se o policial “A”, com a devida atenção, pudesse constatar que se tratava de uma furadeira elétrica, então não haveria que falar de isenção de pena, mas, sim, de punição a título de homicídio culposo. Por fim, a respeito da discussão sobre a natureza jurídica da descriminante putativa – erro de tipo permissivo ou erro de proibição indireto – vide o item 3, supra.
18.7. Erro sobre a pessoa
O
pessoa (error in personae) decorre de um defeito no processo mental de representação, por intermédio do qual o agente atinge pessoa diversa da pretendida. Em suma, em razão do engano, ao invés de a conduta dirigir-se contra determinado indivíduo, atinge-se outro. Não há que falar de erro essencial, pois o tipo penal tutela a toda e qualquer pessoa. Contudo, prevalecendo, como visto, o desvalor da ação sobre o desvalor do resultado, determina a lei que o agente deva responder como se tivesse atingindo a vítima que pretendia atingir. Nesse sentido, dispõe o art. 20, § 3o, do CP: “O erro quanto à pessoa contra a qual o crime é praticado não isenta de pena. Não se consideram, neste caso, as condições ou qualidades da vítima, senão as da pessoa contra quem o agente queria praticar o crime”. Se, por exemplo, o agente pretendia matar seu próprio pai, confundindo-o, na penumbra, com um estranho, que vem a ser fisicamente ofendido, não há que falar de exclusão do dolo, pois o tipo penal do art. 121, do CP, protege o ser humano, independentemente de quem se trate. Contudo, em face da intenção do agente, ele irá responder pela circunstância agravante do art. 61, II, “e”, do CP. erro sobre a
21. Cf.: “Erro de tipo permissivo. Vítima que, ao tentar abrir, por equívoco, porta de carro alheio, induziu o proprietário a reagir violentamente, supondo tratar-se de furto. Legitima defesa putativa do patrimônio, excludente do dolo, em relação a acusação de lesão corporal. Ausência de resíduo culposo. Recurso de habeas corpus a que se dá provimento para conceder a ordem e trancar a ação penal.” (RHC 2300. STJ. Min. Assis Toledo. Quinta Turma. DJ de 07/12/1992). 26 4
Capítulo XVIII |Teoria do erro jurídico -penal
O erro sobre a pessoa não deve ser confundido com o erro na execução (aberratio ictus). Este é o erro que ocorre não na representação mental do fato, mas, sim, na sua realização concreta. Por acidente ou erro no uso dos meios de execução, o agente, que pretende atingir determinada pessoa, finda por atingir pessoa diversa. Não há engano na formação intelectual do dolo (error in personae), mas no golpe desferido, decorrente, v.g., de má pontaria ou de um esbarrão no momento do disparo de arma de fogo. Segundo os termos do art. 73, do CP, a solução da aberratio ictus deve seguir a mesma disciplina do erro sobre a pessoa, isto é, o agente responde como se tivesse praticado o crime contra a vítima pretendida, levando-se em consideração, portanto, as qualidades desta e não às da vítima real. Há ainda figura assemelhada, mas não idêntica, prevista no art. 74, do CP: o resultado diverso do pretendido (aberratio criminis). Aqui, há hipótese em que vem a ser atingido bem jurídico de diversa espécie e, dessa maneira, o acidente ou o erro na execução se dá de pessoa para coisa, de coisa para pessoa ou de coisa para coisa. Sendo assim, por não envolver mais as características pessoais da vítima que se pretendia atingir, como nas hipóteses anteriores, a solução para essa modalidade de erro acidental é diversa. Com efeito, determina o art. 74, do CP, que quando sobrevém resultado diverso do pretendido, o agente deve responder por culpa, se o fato é previsto como crime culposo. Porém, se ocorre também o resultado pretendido, aplica-se a regra do concurso formal de crimes (art. 70, do CP).
18.8. Erro sobre o objeto
O
objeto (error in objecto) processa-se sobre o objeto material do crime, ou seja, sobre a coisa onde recai a ação criminosa. Se, no erro sobre a pessoa, o erro ocorria de pessoa a pessoa, aqui se está diante de engano, v.g., de patrimônio a patrimônio. Por exemplo, há erro sobre o objeto quando o agente supõe destruir o automóvel de seu rival quando, na verdade, destruiu idêntico modelo de carro pertencente a outra pessoa. Muito embora não previsto no art. 20, § 3o, do CP, pode-se sustentar que essa modalidade de erro acidental pode ser considerada por ocasião da dosimetria da pena, tendo em vista que um dos fatores que guiam o processo de individualização é, justamente, a motivação do crime (cf. Capítulo XXVI). erro sobre o
18.9. Erro provocado por terceiro
O
terceiro cuida-se, em verdade, de uma das modalidades de autoria mediata (Cap. XX). Evidentemente, aquele que dá causa ao resultado por ter sido induzido a erro por terceiro, não age com dolo. Portanto, para ele, cuida-se de um erro de tipo essencial. Nesse sentido, dispõe o art. 20, § 2o, que responde pelo crime o terceiro que determina o erro. erro provocado por
26 5
Curso de Direito Penal | Parte Geral
Muito embora não haja dolo, pode o executor imediato operar em erro vencível, dando azo a sua punição à título de culpa. Ou seja, se fosse possível a ele, com atenção ou o cuidado exigido em certas situações, constatar o equívoco produzido por terceiro – impedindo, pois, a superveniência do resultado desvalioso –, poderá responder por crime culposo, se previsto em lei. Exemplo: O médico “A” determina a enfermeira “B” que ministre no paciente “C” certa dose de medicamento, quando, na verdade, cuida-se de uma dose de veneno letal. “C” ingere a substância, vindo a falecer. Se o erro for invencível, a enfermeira “B” não responderá penalmente. Todavia, se com a atenção devida ao profissional de enfermagem, “B” pudesse perceber que não era a correta medicação, ela pode responder por homicídio culposo, independentemente da punição dolosa do médico “A”.
No exemplo, o médico “A” – isto é, o terceiro que determinou o erro – responde por homicídio doloso, por autoria mediata. Pode acontecer, porém, que o terceiro causador do erro também tenha operado culposamente. Sendo assim, teríamos um caso de autoria colateral: “A” e “B”, cada qual violando o seu dever de cautela, dão causa à morte de “C”.
26 6
título
III
capítulo
teoria geral do crime
XIX
ETAPAS DE REALIZAÇÃO DO DELITO 19.1. Considerações gerais
A
realização do delito, também conhecidas como iter criminis – literalmente, o percurso do crime –, constituem o itinerário percorrido até se chegar à vulneração de determinado bem jurídico-penal. Cuida-se de temática relevante para a dogmática penal, visto que os aportes teóricos a seguir explorados estabelecem, penalmente, a partir de que momento o crime foi praticado (consumado ou tentado) e fundamentam, também, a responsabilização dos participantes. Demais disso, a diferenciação entre consumação e tentativa reflete na quantificação da resposta penal, pois, em regra, esta é menos severamente punida do que aquela. O assunto interessa, ainda, para outras questões, tais como a fixação de critérios relativamente aos conflitos de leis penais no tempo e no espaço (quando e onde o crime ocorre), termo inicial da prescrição da pretensão punitiva (art. 111, do CP), regras processuais de competência dentro do território nacional (art. 70, do CPP), além de outras. Antes, porém, necessário se faz conceituar consumação e tentativa. Consumação é a completa realização do fato tipificado na norma penal incriminadora. Segundo o Código, diz-se que há consumação quando, no caso concreto, reúnem-se todas as elementares de sua definição legal s etapas de
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(art. 14, I, do CP). Por sua vez, tentativa (conatus) é a realização parcial do fato capitulado na lei penal, visto que foi, ao menos, iniciada a execução, mas o crime não se consumou, por circunstâncias alheias à vontade do agente (art. 14, II, do CP). A expressão “iniciada a execução”, adotada, no Brasil, desde o Código de 1830, é oriunda do Código Penal francês de 1810.
19.2. Etapas de realização do delito
O
as seguintes etapas: (1) cogitação; (2) atos preparatórios; (3) atos executórios; e (4) consumação. Como visto a seguir, o exaurimento, a rigor, não integra o iter criminis, embora tenha outras indiscutíveis importâncias dogmáticas, como, v.g., a solução de questões atinentes ao concurso aparente de leis penais. iter criminis compreende
19.2.1. Cogitação
A cogitação (cogitatio) compreende a fase interna do iter criminis. Como é intuitivo supor, apesar de interessar para a moral ou a religião, a mera antecipação mental do crime cuida-se de algo irrelevante ao Direito (cogitationis poenam nemo patitur).1 Ou, conforme o conhecido refrão de Cervantes, “debajo de mi manto, al Rey mato”.2 Sobre o assunto, é interessante observar que o Direito Penal, diferentemente de outros ramos jurídicos, objetiva, sim, investigar o aspecto anímico do ser humano (consciência e vontade). Contudo, este interesse somente se inicia se o pensamento for exteriorizado em atos no âmbito das relações sociais.3 Consoante assinalado por Welzel, o Direito Penal não pune a vontade má como tal, mas somente a vontade mal realizada. Isto quer dizer que, em matéria penal, há uma imensa distância entre pensamento e atitudes.4 19.2.2. Atos preparatórios
A fase de atos preparatórios (conatus remotus) se insere no momento posterior à cogitação, mas antecedente ao início de execução. Os atos preparatórios compreendem, 1. Fragoso, op. cit., p. 296. 2. Cervantes, Miguel de. Don Quijote de la Mancha (Prólogo). Ed. del IV Centenario. Madrid: Real Academia Española, 2005, p. 7. 3. A propósito, discorrendo sobre a cogitação no homicídio, Hans von Hentig leciona: “A ideia de matar geralmente nasce quando parece impossível a resolução de um conflito grave pelos meios legais. O ordenamento jurídico nem sempre pode, por razões formais, cumprir acertadamente sua missão, ordenando situações intoleráveis, dificuldades matrimoniais, perdas patrimoniais insuportáveis etc. Desde a primeira ideia de matar até a resolução do homicídio, há um caminho que não pode transitar nenhuma dogmática, porque esta se vê atrelada a modificações visíveis e demonstráveis do mundo exterior e somente pode captar a constelação anímica na forma do dolo, a deliberação ou o móvel abjeto. É certo, igualmente, que entre o surgir da primeira representação e seu ‘amadurecimento motor’ ocorrem numerosas intervenções de outras pessoas, que nem sempre podem ser definidas como ‘participação criminosa’. Antes de tudo, deve-se excluir dogmaticamente as contribuições fornecidas pela vítima ou por outra pessoa eficiente para a realização do resultado destruidor (se o pai do amante, ao qual a mulher infiel cumprimenta pelo aniversário, lhe responde que desejaria que ela fosse logo a sua nora, essa contribuição é bastante obscura e insuficiente para que o mesmo venha a responder como instigador da morte que ela venha a concretizar).” (Hentig, Hans von. Estudos de psicología criminal. Vol. II. 3. ed. Trad. Rodríguez Devesa. Madrid: Espasa, 1971, p. 216). 4. Welzel, Hans. Op. cit., p. 221. 268
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portanto, o externar daquele propósito, ou seja, a adoção das providências preliminares ao sucesso delituoso. Exemplo: “A”, após cogitar matar “B” com uma facada no peito, retira dinheiro do banco, dirige-se até uma loja especializada, compra um afiado facão de açougue, entra em um ônibus e segue até a residência de seu desafeto, senta num banco de praça em frente à casa de “B” e aguarda que o mesmo saia para trabalhar.
Todas as condutas externadas por “A”, inserem-se na chamada fase de preparação. Todas são impuníveis. Isso porque, apesar da vontade má ter guiado as ações anteriormente ilustradas, elas em nada diferem, objetivamente, de comportamentos socialmente adequados (sacar dinheiro no banco, pegar um ônibus etc.). Somente por intermédio da execução do crime, é que o desencadear daquelas ações passa a ser racionalmente compreensível. O referencial é, em regra, o início da realização da conduta descrita na norma penal. Excepcionalmente, há normas que se antecipam e tipificam comportamentos que, a rigor, seriam preparatórios, como ocorre com os delitos de quadrilha ou bando e petrechos para a falsificação de moeda (arts. 288 e 291, do CP). Nesse sentido, Welzel salienta que, em virtude de seu insuficiente conteúdo delitivo e da sua pouca inteligibilidade, as ações preparatórias são, por princípio, impuníveis. Todavia – ressalta aquele autor –, tendo em conta a necessidade de uma proteção mais ampla de bens especialmente importantes, admitem-se algumas relevantes exceções, que podem, por exemplo, decorrer de determinados instrumentos perigosos ou em atenção a determinados autores perigosos.5 Acresça-se, no particular, o intenso debate político-criminal em torno da legitimidade da antecipação de tutela penal envolvendo determinada categoria de delitos. Nomeadamente, discute-se a punição adequada de ações terroristas, em particular, dos chamados homens-bomba. Esclareça-se que, salvo o caso do homem-bomba mal-sucedido, o direito penal pode se revelar irrelevante, pois se tiver que aguardar o início do ato executório, provavelmente o direito penal será o irrelevante. Ao mesmo tempo, a antecipação da tutela para permitir a mera tipificação de atos executórios dos chamados homens-bomba tem se revelado, em nível mundial, insatisfatória para a proteção das complexas sociedades. Assim, a questão da punibilidade dos atos preparatórios é atual e complexa. 19.2.3. Atos executórios
A terceira etapa do iter criminis é a dos atos executórios (conatus proximus). São as ações ou omissões diretamente dirigidas à concretização do propósito criminoso, vale dizer, à realização da figura descrita na norma penal incriminadora. Se, nas etapas 5. Idem, p. 222. 269
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anteriores, preponderava o desinteresse penal, a tônica, aqui, é inversa. Adentrando-se em atos de execução, o fato é punido, no mínimo, a título de tentativa (art. 14, II, do CP). A seu turno, a participação moral ou material dispensada pelo concorrente passa, igualmente, a ser objeto de consideração na esfera penal (art. 31, do CP). Nesse ponto, há dificuldade no estabelecimento de critérios dogmáticos seguros para a caracterização dos atos executórios, distinguindo-os, consequentemente, dos atos meramente preparatórios. O assunto será analisado mais à frente. 19.2.4. Consumação
Consumação (ou meta optata) é a fase conclusiva do iter criminis. Entende-se como consumado o delito quando, no caso concreto, estão reunidas todas as suas elementares (art. 14, I, do CP). Com a consumação alcança-se o resultado, ou seja, o evento que corresponde à conduta típica.6 Figueiredo Dias – secundado nos ensinamentos de Jescheck – diferencia consumação formal ou típica de consumação material ou terminação. Segundo aquele autor, a consumação formal verifica-se logo que o comportamento doloso preenche a totalidade dos elementos do tipo objetivo, ao passo que a consumação material dá-se apenas com a realização completa do conteúdo do ilícito em vista do qual foi erigida a incriminação.7 A distinção entre consumação e terminação possui diversas utilidades dogmáticas. No âmbito do Direito Penal Internacional, a classificação interessa para a compreensão dos crimes a distância, em que a terminação do fato, no sentido da realização da intenção típica, seja considerada onde se produziu ou deveria produzir-se o resultado (art. 6o, do CP). Ademais, nos crimes de consumação antecipada (crimes de perigo, crimes de atentado, crimes de resultado cortado), basta o preenchimento da consumação formal. Diversamente, nos crimes permanentes, a alusão ao prolongamento do momento consumativo envolve, concretamente, a figura da terminação. Por fim, admite-se o concurso de agentes mesmo após a consumação formal, mas antes da consumação material do delito.8 19.2.5. O exaurimento do crime
Consoante adiantado, o exaurimento (post factum) não integra o iter criminis. Cuida-se, na verdade, do momento posterior à sua consumação, sendo, em regra, por ela absorvida. Dito de outra maneira, a carga de reprovabilidade do crime consumado formal e materialmente abrange a figura do exaurimento. Todavia, não se ignora que certas ações desenvolvidas em sede de exaurimento podem influenciar na quantificação da resposta penal, como ocorre, v. g., com a previsão do arrependimento posterior (art. 16, do CP), com a circunstância judicial “consequências do crime” (art. 59, caput, do CP) ou, ainda, com a reparação do dano no peculato culposo (art. 312, § 3o, do CP). 6. Fragoso, Heleno Cláudio. Op. cit., p. 296. 7. Dias, Jorge de Figueiredo. Op. cit., p. 686. 8. Jescheck, Weigend. Op. cit., p. 556; Dias, Jorge de Figueiredo. Op. cit., p. 687. 270
Capítulo XIX | Etapas de realização do delito
Por outro ângulo, embora não interfira, dogmaticamente, na consumação do crime, providências político-criminais têm amplificado o efeito retroativo de comportamentos adotados pelo agente na fase de exaurimento. Isto ocorre de maneira casuística, como, por exemplo, com o pagamento de cheque emitido sem provisão de fundos, antes do recebimento da denúncia, que acarreta o trancamento da ação penal (Súmula 554, do STF) e o parcelamento ou pagamento do débito nos crimes tributários (arts. 168-A e 337-A, do CP, e arts. 1o e 2o, da Lei no 8.137/1990). No entanto, caso ocorra lesão ou ameaça a outro bem jurídico, comportamentos tidos como exaurimento poderão caracterizar um novo crime. Nesse sentido, nada impede que o agente responda pelo crime de lavagem de dinheiro, mesmo tendo sido ele o autor do crime antecedente (cf. Lei no 9.613/1998).
19.3. Distinção entre atos preparatórios e executórios
A
e execução é um dos temas mais tormentosos da dogmática penal, notadamente quando se está diante da chamada zona cinzenta ou intermediária. Não é simples estabelecer o exato momento em que um fato, a princípio, irrelevante, passa a se constituir punível, no mínimo, a título de tentativa. distinção entre preparação
Exemplo: “A”, depois de entrar em contato com a jovem “B”, apresentando-se sob uma falsa qualidade de médico, empregador eventual, a conduziu a seu apartamento para nela proceder a um exame médico tido como requisito obrigatório à sua contratação. “A” havia arrumado o local como “consultório médico” e mandou que “B” se despisse, sendo certo que somente a recusa da jovem, circunstância independente da sua vontade, o impediu de praticar os atos libidinosos que pretendia fazer.
O exemplo anterior constitui um caso verídico, apreciado pelos tribunais franceses e relatado por Xavier Pin.9 Segundo este autor, conquanto o começo de execução sinalize um marco restritivo, a jurisprudência francesa propende para uma interpretação extensiva, razão pela qual “A” foi condenado por tentativa de agressão sexual contra “B” (art. 222-22, do Código Penal francês).10 No entanto, a solução do caso poderia sofrer variações consoante as diversas teorias desenvolvidas pelos autores. Por razões didáticas, serão expostas as principais, divididas entre vertentes subjetivas e objetivas.
9. Pin, Xavier. Droit Pénal Général. 2ème éd. Dalloz: Paris, 2007, p. 135. 10. Dispõe o art. 222-22, do CP Francês: “Constitui uma agressão sexual todo atentado sexual cometido com violência, coação, ameaça ou surpresa. O estupro e as outras agressões sexuais ocorrem quando tais atos são impostos à vitima nas circunstâncias previstas na presente seção, qualquer que seja a natureza das relações existentes entre o agressor e sua vítima, mesmo que se tratem de pessoas unidas pelos laços do matrimônio.” (Tradução). 271
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19.3.1. Teorias subjetivas
Para esse grupo teórico, o fundamental é levar-se em conta o propósito do agente ou caracteres relacionados com o seu estilo de vida. Nesse sentido, Zaffaroni11 observa ser inevitável a tendência das teorias subjetivas se fundarem na punição do ânimo e de estenderem ao âmbito punitivo os atos preparatórios. Sendo assim, elas desprezariam o aspecto objetivo do injusto, aproximando-se de um reprovável Direito Penal do autor, centrado tão somente no desvalor de uma vontade que se revele hostil e contrária à ordem que se quer estabelecer. 19.3.1.1. Teoria do dolo
Esta corrente preconiza a punição a título de tentativa aos casos em que a vontade delitiva se materializa em atos exteriores. Vê-se, por tal teoria, que não haveria distinção entre atos preparatórios e atos executórios, pois, subjetivamente, nada difere uma da outra etapa do iter criminis. Por conta disso, os partidários dessa corrente sustentam a punição indistinta de atos de preparação (por exemplo, conduzir a jovem até o pseudo consultório médico) e atos de execução (despir-lhe para o exame). Alternativamente, alguns sustentam que se deve deixar ao prudente arbítrio do juiz a escolha entre punir esta ou aquela etapa a título de tentativa. 19.3.1.2. Teoria sintomática
Cuida-se de uma variante da anterior, caracterizada por propor a linha divisória entre atos preparatórios e atos executórios conforme a chamada periculosidade real do agente. Esta teoria também serviu de supedâneo para a punição do autor de crime impossível (tentativa absolutamente inidônea). Dessa maneira, a aplicação de pena pelo delito tentado seria determinada, não por fatores objetivos, mas, na verdade, pelos “sintomas da personalidade” do agente materializados pelo seu estilo de vida, quiçá pelo estratagema de arrumar, previamente, o local como um consultório médico. Esta teoria – como se pode perceber – retrata o anteriormente criticado Direito Penal do autor, punindo-se o agente pelo que ele é, e não por aquilo que, concretamente, fez. 19.3.2. Teorias objetivas
As correntes objetivas preconizam a construção segura de uma linha divisória entre preparação impunível e crime tentado. Além de corresponder à melhor dogmática, esse grupo teórico se alinha com a maioria dos diplomas legais que, como o nosso, somente permite a punição quando há início de execução. Elas podem ser apresentadas da seguinte forma:
11. Cf. Raúl Zaffaroni, Eugenio; Slokar, Alejandro; Alagia, Alejandro. Manual de Derecho Penal. Parte General. Buenos Aires: Ediar, 2005, p. 636. 272
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19.3.2.1. Teoria objetivo-material
A teoria objetivo-material propõe tomar como referencial demarcatório o grau de exposição a que, materialmente, restou submetido o bem jurídico. Sendo assim, haverá início de execução quando existir um “ataque direto ao objeto de proteção jurídico-penal”. Ou, no caso anteriormente ilustrado, quando “A” mandou “B” se despir. Em sentido inverso, isto é, caso se cuide de um perigo ainda distante, vale dizer, mediato ou remoto, estar-se-á, ainda, na fase de preparação. Embora se trate de construção doutrinária coerente com a missão superior do Direito Penal de tutela de bens jurídicos, esta teoria traz certa insegurança, tendo em vista não haver consenso a respeito de maior ou menor proximidade do ataque ao bem jurídico. Dito de outra forma: há o risco de se ampliar em demasia o âmbito de tutela, em detrimento do postulado de certeza, violando-se, pois, o princípio da reserva legal. Enfim, de certo modo, ao pôr os pés no apartamento-consultório de “A”, a liberdade sexual de “B” passou a ficar exposta ao perigo. 19.3.2.2. Teoria objetivo-formal
Segundo essa teoria, o começo da execução é demarcado pelo início da realização do verbo núcleo do tipo. Ela se estriba no princípio da legalidade (nullum crimen sine lege), preconizando que há tentativa (punível) se as elementares do tipo penal começam a ser realizadas. Ou seja, se “A” tocasse, efetivamente, a genitália da jovem “B”. Conforme há tempos ressaltado por Beling, a corrente objetivo-formal prende-se ao sentido objetivo tipo penal, segundo o qual existe começo de execução no homicídio se cumprido o requisito de começar a matar um homem.12 Observe-se que, ao inverso da anterior, a teoria formal restringe – talvez em demasia – o marco definidor da tentativa. Ora, antes de tocar sexualmente, o despir as vestes de “B” não pode, dogmaticamente, ser desconsiderado ou relegado ao plano da mera preparação da agressão sexual. Em suma, esse critério tem, sobre a tese material, a vantagem de respeitar o princípio da legalidade e da segurança jurídica, mas deixa de fora da tentativa alguns atos que seriam verdadeiramente executórios. 19.3.2.3. Teoria objetivo-individual (teoria do plano do autor)
Esta teoria busca uma solução de consenso entre as anteriores. De um lado, a distinção entre atos preparatórios e atos executórios evidencia-se, indiscutivelmente, pela conduta que inicia a realização do verbo do tipo incriminador. Mas, por outro lado, deve-se também abranger a conduta imediatamente antecedente, posto que não descrita no tipo, tendo em vista o alto grau de exposição a perigo a que ficou exposto o bem jurídico protegido. Transige-se, como dito, com os dois flancos. Mantém-se a premissa de que, formalmente, estar-se-á diante da tentativa quando o agente realiza a ação descrita no tipo 12. Beling, Enst von. Esquema de Derecho Penal. Trad. Sebastian Soler. Buenos Aires: Depalma, 1944, p. 99. 273
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penal, mas também deve ser considerado como tentativa o ato que o anteceder, pois, materialmente, o bem jurídico fica inequivocamente exposto a perigo com ações que, sem solução de continuidade, antecedam àquela que se amolda ao tipo penal. Contudo, a definição acerca da ação imediatamente antecedente depende, obviamente, do plano previamente engendrado pelo agente. Ou, em outros termos, da forma particular de aproximação ao verbo do tipo delitivo. Sendo assim, consoante o exemplo supracitado, “A” planejara que “B” tirasse a roupa, após ser enganada com o suposto “exame médico admissional”, sendo que a nudez da jovem seria ato imediatamente antecedente à conduta de tocar-lhe sexualmente. Como “B” recusou-se a se despir, a interrupção do iter criminis deu-se em sede de atos preparatórios, sendo de rigor que “A” não respondesse por tentativa de agressão sexual (solução diversa daquela encontrada pelos tribunais franceses). 19.3.2.4. Direito brasileiro
A teoria objetivo individual (ou do plano do autor), que procede à síntese entre as teorias formal e material, é a que conta, na atualidade, com o maior número de adeptos, tanto na doutrina estrangeira como na brasileira.13 Entretanto, a objeção que contra ela se opõe é de que faltaria, no Brasil, base legal para a sua adoção. Isso porque, diferentemente do que consta do § 22, do Código Penal alemão, e dos diplomas que lho seguem,14 o Direito Penal brasileiro observa, como ressaltado, o padrão inaugurado com o Código Penal francês, ou seja, restringe-se, somente, ao começo de execução (commencement d’exécution). Sendo assim, seria forçoso que fosse adotada exclusivamente a teoria objetivo-formal, visto ser a que mais se vincula ao princípio da reserva legal. Do contrário – especula-se –, estar-se-ia adentrando no indevido terreno da analogia in malam partem ou violando o princípio do in dubio pro reo.15 Nesse sentido, em um caso semelhante ao supracitado, ou seja, um suposto crime sexual, no qual o agente, na via pública, oferecera R$ 20,00 (vinte reais) a uma criança 13. Cf. lecionado por Luiz Regis Prado: “O problema da delimitação entre ato preparatório e executivo consiste fundamentalmente na fixação dos limites da ação típica. O ponto de arranque, portanto, deve ser a teoria formal-objetiva, estreitamente vinculada ao princípio da reserva legal. Todavia, para evitar o inconveniente de seu caráter excessivamente restritivo, faz-se indispensável a adoção de critérios materiais-subjetivos (unidade natural da ação/início do ataque ao bem jurídico e a resolução para o fato), conforme a peculiar estrutura do tipo legal. Em princípio, os atos executivos são os abarcados pelo núcleo típico, incluindo sua zona periférica.” (Prado, Luiz Regis. Op. cit., p. 415). No mesmo sentido: Bitencourt, Cezar Roberto. Op. cit., p. 432. No direito estrangeiro, Jescheck leciona: “Na delimitação entre tentativa e preparação deve-se partir da ‘representação do autor sobre o fato’, pois os atos externos concretizados, quando fragmentados, somente podem ser compreendidos pelo ‘plano do autor’.” (Jescheck, Weigend. Op. cit., p. 558). 14. De acordo com § 22 do CP Alemão, comete crime tentado quem, de acordo com sua representação do fato, se dispõe imediatamente à realização do tipo. Por sua vez, o art. 16, do CP espanhol dispõe que há tentativa quando o sujeito dá início, diretamente, a execução do delito, praticando, no todo ou em parte, os atos que objetivamente deveriam produzir o resultado, sendo que este não se produz por causas independentes da sua vontade. Semelhantemente, o art. 22, do CP português diz que há tentativa quando o agente praticar atos de execução de um crime que decidiu cometer, sem que este chegue a consumar-se. 15. Como dito por Fragoso: “Não basta, portanto, a revelação do propósito de cometer o crime nem a prática de atos inequívocos dirigidos a ação incriminada, que ainda não correspondam a seu início.” (Fragoso, Heleno Cláudio. Op. cit., p. 297). 274
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para que ela permitisse que o mesmo introduzisse o pênis na sua vagina, tendo a menina recusado tal proposta, fugindo correndo para sua casa, decidiu o STJ pela atipicidade da conduta, entendendo que o iter criminis não se completara, pois paralisara-se em sede de atos preparatórios. Esta decisão evidencia o acolhimento, ao menos no STJ, da teoria objetivo-formal.16 Pode-se, todavia, contra-argumentar com base no princípio da proteção de bens jurídicos. De fato, imagine-se a hipótese do agente que é flagrado, de madrugada, dentro de uma loja repleta de joias e outros objetos de valor, mas que, efetivamente, ainda não iniciara a realização do verbo “subtrair” (art. 155, do CP). A se adotar a teoria objetivo-formal, dever-se-á concluir pela atipicidade do delito patrimonial, o que, à luz da missão de proteção dos bens penalmente relevantes, soaria absurdo.
19.4. Natureza jurídica e requisitos da tentativa
A
um tipo ampliador de normas penais incriminadoras. Ela encontra-se regulada na Parte Geral do Código (art. 14, II, do CP), mas projeta seu raio de ação para os tipos incriminadores da Parte Especial, bem como para a legislação penal especial. Consoante a conhecida fórmula de Damásio de Jesus, a tentativa é uma “causa de adequação típica de subordinação mediata”.17 Com efeito, as normas penais incriminadoras não preveem, em regra, a forma tentada. Por exemplo, o art. 121, do CP, não descreve o tentar matar alguém, mas, somente, o matar alguém. Sendo assim, a tentativa de homicídio seria uma conduta atípica, não houvesse a norma inscrita no art. 14, II, do CP, que amplia – como dito – aquele tipo incriminador, tudo em homenagem ao princípio da reserva legal. Há, excepcionalmente, tipos que criminalizam, imediatamente, a forma tentada (crimes de atentado). Nesse sentido, o crime de evasão mediante violência contra a pessoa: “Evadir-se ou tentar evadir-se o preso ou o indivíduo submetido à medida de segurança detentiva, usando de violência contra a pessoa” (art. 352, do CP). Além de ser regra ampliativa da tipicidade penal, certo é que a tentativa consiste em causa geral de diminuição de pena – a ser valorada, pelo julgador, na terceira etapa da dosimetria da pena –, consoante os termos do parágrafo único, do art. 14, do CP: “Salvo disposição, pune-se a tentativa com a pena correspondente ao crime consumado, diminuída de um a dois terços”. É interessante registrar que o CP/1969, que nunca entrou em vigor, admitia tentativa ( conatus ) é
16. Cf.: “1. Tomando-se em conta a imputação narrada na proemial acusatória, bem como os elementos probatórios colhidos durante a instrução criminal e delineados no reprochado acórdão, resta evidente a atipicidade da conduta atribuída ao paciente, pois, do que foi apurado, não se vislumbra a prática de qualquer ato executório suficiente para fundamentar a sua condenação pela prática do delito de atentado violento ao pudor na forma tentada. 2. De fato, nada se tem que indique que o paciente tenha dado início à execução do delito pelo qual ele restou condenado. Até mesmo a suposta vítima da empreitada criminosa (criança de tenra idade) deixa claro em suas declarações que o paciente em nenhum momento manteve qualquer contato físico com ela. Ordem concedida anular a condenação do paciente quanto ao crime previsto no art. 214, c/c art. 224, al. ‘a’, c/c art. 14, II, todos do CP.” (HC 141061. STJ. Min. Félix Fischer. Quinta Turma. DJ de 22/03/2010). 17. Jesus, Damásio Evangelista de. Op. cit., p. 331. 275
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(na redação anterior a Lei no 6.016/1973), a possibilidade de o juiz, no caso de excepcional gravidade, deixar de fazer aquela redução e aplicar a pena do crime consumado.18 Relativamente aos seus requisitos, é preciso observar que, subjetivamente, nada difere o crime tentado do crime consumado. Conforme o antigo exemplo por Max Ernst Mayer, se “A” e “B” disparam ao mesmo tempo sobre “C”, com propósito de matá-lo, passando, a bala de “A”, sem alcançar “C”, ao passo que a bala de “B” o alveja e mata, é notório que “A” teve a mesma vontade criminosa de “B”.19 Se, como dito, cuida-se de categorias subjetivamente idênticas, objetivamente não são. Os requisitos para a superveniência da tentativa, portanto, são: início de execução da ação que constitui o crime; não superveniência do resultado por circunstâncias alheias à vontade do agente; dolo e outros eventuais elementos subjetivos correspondentes ao tipo subjetivo. Sobre o primeiro requisito, a questão foi analisada no item anterior. Com relação ao segundo, cumpre registrar que a paralisação do iter criminis deve decorrer de fatores exógenos, ou seja, externos ao dolo do agente. Seria como se o agente dissesse quero, mas não posso. Ao revés, se a não consumação decorrer de fatores endógenos, isto é, de uma mudança de intenção – por circunstâncias próprias do agente ou ao “posso, mas não quero” –, fica descaracterizado esse segundo requisito e, com ele, o crime tentado, beneficiando-se o agente pelo abandono voluntário do crime cuja execução se iniciara. Sendo assim, basta a ausência de um desses requisitos para que fique afastada a tentativa, quedando-se, o fato, no terreno da atipicidade. Ou, dito de outra forma, o caso concreto retornará, ou jamais terá saído, da esfera do indiferente penal.
19.5. Espécies de tentativa
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modalidades de conatus: (1) tentativa perfeita (ou acabada); e (2) tentativa imperfeita (ou inacabada). A primeira, também denominada de crime falho, se verifica no caso em que o agente esgota todo o processo executório a que se propôs, não sobrevindo, todavia, a consumação por fatores involuntários. uas são as
Exemplo: “A”, dispara contra a vítima “B”, alvejando-lhe o corpo com todos os projéteis de seu revólver. No entanto, “B” é levado ao hospital sendo socorrido com sucesso.
Por sua vez, a tentativa imperfeita é aquela em que o agente não consegue levar adiante todo o plano criminoso. O processo executório é interrompido antes da completa realização de todo o seu itinerário. 18. Cf.: “Na punição da tentativa, adotou o Código, como regra geral, o critério da redução da pena, de um a dois terços. Mas, inspirado na lição de Costa e Silva (Código Penal, 1943, p. 89), permite a aplicação, em casos de excepcional gravidade, da mesma pena prevista para o crime consumado.” (E. M. do CP/1969, item 4). Agregue-se que o Código Penal Militar, ainda em vigor, tem norma idêntica àquela do CP/1969. 19. Mayer, Max Ernst. Derecho Penal..., cit., p. 427. 276
Capítulo XIX | Etapas de realização do delito
Exemplo: “A”, dispara contra a vítima “B”, não conseguindo, porém, alvejá-lo, átimo em que “B” empreende fuga, o que impede que “A” faça novos disparos.
Como se vê, no primeiro exemplo, está-se diante do crime falho (tentativa acabada), pois o agente esgotou todo o seu propósito homicida, não havendo a consumação – a morte de “B” – pela eficiente intervenção hospitalar. No segundo, conquanto iniciada a execução, o agente não conseguiu terminar seu plano, uma vez que “B” evadiu-se do local da ação. Cumpre observar que, para a lei brasileira, não há diferença substancial entre uma e outra. A distinção há de ser feita quanto a dosimetria da pena, pois, como visto, aplica-se, em regra, ao crime tentado a pena correspondente ao consumado, diminuída de percentual que irá variar de um a dois terços (art. 14, parágrafo único, do CP). Naturalmente, para a tentativa imperfeita, a diminuição de pena será maior (próxima aos 2/3), ao passo que para o crime falho a minorante será em menor escala (próxima ao 1/3). A diferença, portanto, não é de qualidade, mas, sim, de quantidade. Admite-se, por exceção e salvo disposição em contrário, que não seja feita a referida diminuição punitiva, tendo em vista que, como já antecipado, há crimes que tipificam igualmente a forma consumada e a forma tentada. Nesse sentido, além do já mencionado crime do art. 352, do CP, citem-se os crimes descritos nos arts. 9o, 11, 17 e 18, da Lei no 7.170/1980 (Lei de Segurança Nacional), bem como as condutas tipificadas no art. 3o, da Lei no 4.898/1965 (Lei do Abuso de Autoridade).
19.6. Crimes que não admitem a tentativa
A
de atentado, aos quais, como visto, o tentar é, em si, típico, há outras hipóteses dogmáticas que não admitem a tentativa. São elas: lém dos crimes
19.6.1. Crimes culposos
A tentativa somente tem lugar nos delitos dolosos. Para que haja tentativa é preciso que o agente queira o resultado ou assuma o risco de produzi-lo. Se, do contrário, por uma violação do dever de cuidado, o agente não prevê o resultado decorrente de uma conduta ou, prevendo-o, não o tolera, não há que falar de incidência da regra do conatus. A culpa inconsciente é, a rigor, o inverso do crime tentado com dolo direto: aqui o agente quer o resultado, mas não consegue realizá-lo; lá, ele não quer o resultado, mas o realiza involuntariamente. Não cabe, igualmente, tentativa na culpa consciente porque o agente, embora preveja o resultado, acredita, de forma leviana ou convicta, que o mesmo não ocorrerá. No tocante à chamada culpa imprópria, cumpre observar que, na verdade, cuida-se de comportamento doloso, decorrente de erro de tipo permissivo, ao qual a lei penal concede uma punição mais branda por se tratar de erro vencível (art. 20, § 1o, 2a parte, 277
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do CP). Sendo assim, é possível, em tese, a tentativa, uma vez que o resultado é querido pelo agente.20 19.6.2. Crimes preterdolosos
O crime preterdoloso pressupõe dolo no antecedente e culpa no consequente. Como este decorre da violação do dever de cuidado, não há que falar de tentativa, pelas mesmas razões expostas na alínea anterior. Não se deve, porém, confundir crime preterdoloso com crime qualificado pelo resultado, na medida em que este é gênero (pois admite dolo ou culpa no resultado a maior), ao passo que aquele é espécie (somente culpa). Desse modo, se “A”, no momento em que segura o braço de “B” para cortar-lhe com uma motosserra, é impedido pela oportuna chegada de “C”, é certo que ele irá responder pela tentativa de lesão corporal de natureza grave, por se tratar de crime qualificado pelo resultado (art. 129, § 2o, III, do CP). 19.6.3. Crimes omissivos próprios
Nos crimes omissivos próprios ou puros, há a violação do dever legal de agir. Dessa forma, ou bem o agente deixa de realizar a conduta esperada e o crime se consuma, ou a realiza até o último instante possível e não haverá crime algum. Trata-se de delitos unissubsistentes, consoante a alínea subsequente. Diferentemente, os crimes omissivos impróprios admitem a tentativa. Como se trata de crimes de resultado, este pode deixar de ocorrer por circunstâncias alheias à vontade do agente. A dificuldade aqui verificada reside na tormentosa distinção entre atos preparatórios (impuníveis) e o início de execução (punível). Se é certo que o início de execução da omissão imprópria fica evidenciado pela última oportunidade concreta de agir, as dificuldades ficam evidenciadas quanto mais se afasta desse derradeiro momento. Veja-se o exemplo elaborado por Juarez Tavares: 21 Exemplo: “A”, criança de tenra idade, engatinha sobre os trilhos da linha férrea. A mãe “B” assiste a cena impassível. Entretanto, o trem só passa pelo local uma vez por dia, o que, no caso, só ocorrerá daqui a um par de horas. Dessa maneira, a abstenção de “B” situa-se em atos preparatórios. Só entrará no estágio de início de execução quando a composição férrea estiver, efetivamente, perto de passar pelo local.
Segundo aquele autor, nos crimes omissivos impróprios (comissivos por omissão), o início de execução se dá com a violação do dever de impedir o resultado, que faz parte do tipo de injusto. Mas essa violação deve manifestar-se concretamente, vale dizer, pelo único modo de colocar em perigo o bem jurídico.22 20. Cf. Bitencourt, Cezar Roberto. Op. cit., p. 436. 21. Cf. Tavares, Juarez. As controvérsias..., cit., p. 93. 22. Idem, p. 93. 278
Capítulo XIX | Etapas de realização do delito
19.6.4. Crimes unissubsistentes
Crimes unissubsistentes são aqueles em que a conduta não é fracionada em múltiplos atos. São crimes de ato único. Tomando-se por parâmetro o iter criminis, tem-se que a etapa do início de execução se funde, por completo, com a etapa da consumação. Os tipos omissivos próprios, anteriormente analisados, são exemplos dessa modalidade delitiva. De outro modo, a natureza unissubsistente pode decorrer não do crime em abstrato, mas, sim, do modo da sua execução. Nesse sentido, os crimes contra a honra (arts. 138, 139 e 140, do CP), que podem ser perpetrados de maneira verbal ou escrita. No primeiro caso, não podem ser fracionados, pois, ou bem o agente profere, v.g., a palavra injuriosa, que é captada pelos ouvidos da vítima, e o crime se consuma, ou não consegue fazê-lo, cuidando-se de um indiferente penal. Ao contrário, caso executado por meio de escrito, v.g., uma carta injuriosa, pode a mesma vir a ser interceptada antes de chegar ao conhecimento da vítima, dando margem, ante o seu fracionamento, ou seja, à figura da tentativa. 19.6.5. Crimes habituais
O crime habitual pressupõe a reiteração de atos que, isoladamente, não têm relevância penal. Por conta disso, não cabe falar em tentativa. Cite-se, como exemplo, o crime de rufianismo (art. 230). O esporádico proveito da prostituição alheia, por mais imoral que possa ser considerado, não interessa ao Direito Penal. Para a tipificação do rufianismo, faz-se necessário uma sucessão contínua de atos de participação ou sustento do comércio carnal da pessoa prostituída. 19.6.6. Contravenções penais
Apesar de tecnicamente possível, não há que falar de tentativa de contravenção penal, tendo em vista expressa proibição legal, visto que a Lei das Contravenções Penais estabelece: “Não é punível a tentativa de contravenção” (art. 4o, do Decreto-lei no 3.688/1941).
19.7. Desistência voluntária e arrependimento eficaz
A
o arrependimento eficaz – também denominados de tentativa abandonada –, consistem em um estímulo do legislador em benefício do agente que motu proprio não leva o delito até a fase de consumação. Cuida-se daquilo que von Liszt chamava de “Ponte de Ouro”.23 desistência voluntária e
23. Cf.: “No momento em que o agente transpõe a linha divisória entre os atos preparatórios impunes e o começo de execução punível, incorre na pena cominada contra a tentativa. O fato não pode mais ser alterado, suprimido ou ‘anulado retroativamente’. Pode, porém, a lei, por considerações de Política Criminal, construir uma ‘ponte de ouro’ para a retirada do agente que já se tornara passível de pena.” (Liszt, Franz von. Tratado de Direito Penal Alemão. Tomo I. Trad. por José Hygino Duarte Pereira. Rio de Janeiro: F. Briguiet, 1899, p. 342). 279
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A questão pode ser ilustrada por uma conhecida passagem da literatura nacional. Em Dom Casmurro, de Machado de Assis, o personagem Bentinho, cogita suicidar-se. Põe em marcha seu plano e adquire veneno em um determinado boticário. Em seguida, dirige-se ao local adequado para o ato – sua biblioteca –, e dissolve a mortífera substância em uma xícara de café. Subitamente, adentra no recinto seu filho Ezequiel. Ao ver o menino, ele é tomado pelo impulso criminoso, e lhe oferece aquele café envenenado, conforme ele mesmo confessa ao leitor: “Ezequiel abriu a boca. Cheguei-lhe a xícara, tão trêmulo que quase a entornei, mas disposto a fazê-la cair pela goela abaixo, caso o sabor lhe repugnasse, ou a temperatura, porque o café estava frio... Mas não sei o que senti que me fez recuar. Pus a xícara em cima da mesa, e dei por mim a beijar doudamente a cabeça do menino.”24
Como visto, Bentinho, inicialmente, perpetraria suicídio, fato atípico. Em seguida, mudou de intenção e valeu-se daqueles atos para praticar homicídio, chegando a xícara, com o diabólico conteúdo, até a boca do menino. Mas ele recuou por vontade própria. Daí ocorre a voluntária desistência do crime (homicídio). Nesse sentido, dispõe o art. 15, do CP, que se o agente voluntariamente desiste de prosseguir na execução, ou impede que o resultado se produza, só irá responder pelos atos já praticados. No caso citado, o personagem Bentinho não responderia por nenhum fato, pois os atos anteriores (preparação de suicídio) são atípicos. Para Nélson Hungria, a tentativa abandonada deve ser considerada uma causa de extinção da punibilidade.25 Não obstante, a doutrina contemporânea toma o instituto como causa de exclusão da adequação típica. Isto porque, se a tentativa é um fator de inclusão típica, o verso, ou seja, a desistência ou o arrependimento válido, anula esta extensão típica. Em suma, quando o crime não atinge a fase de consumação pela força de vontade do agente, não incide a norma de extensão da tentativa. Ao revés, quando não ocorre por fatores diversos de tal vontade, há a punição da modalidade tentada. Cumpre observar, porém, que voluntariedade não é o mesmo que espontaneidade ou originalidade. Voluntária é a decisão autônoma do agente, isto é, sem coação física ou moral. Há voluntariedade mesmo quando a iniciativa de abandono se origine de sugestão de terceiro ou da própria vítima. Cuida-se da distinção entre querer e poder: podendo prosseguir, o agente muda seu querer, beneficiando-se da regra do art. 15, do CP. Se, ao contrário, embora querendo, o agente não possa prosseguir, há a incidência da norma do art. 14, II, do CP.
24. Assis, Machado. Dom Casmurro. In: Obra Completa. Vol. I. Afrânio Coutinho (org.). Rio de Janeiro: José Aguilar, 1959. 25. Hungria, Nélson. Comentários ao Código Penal. Vol. I. Rio de Janeiro: Forense, 1958, p. 93. 28 0
Capítulo XIX | Etapas de realização do delito
19.7.1. Desistência voluntária
Desistência voluntária significa a livre e consciente abstenção do prosseguimento da atividade criminosa. O desistente não esgota todo o processo executivo, pois o interrompe num determinado ponto anterior à fase consumativa. Bentinho podia prosseguir na execução do homicídio, mas interrompeu e não fez Ezequiel beber o café envenenado. Consoante a distinção entre tentativa perfeita e imperfeita, anteriormente apresentada, vê-se que a desistência voluntária somente ocorre nesta última hipótese. A desistência se refere, portanto, quando iniciada a execução, mas não concluída, pois o agente que desiste, desiste do que está fazendo e não do que já fez. Se o agente, todavia, desiste porque foi ou vai ser descoberto, a desistência não é voluntária. A desistência momentânea é irrelevante. Assim, se o agente deixa de prosseguir aguardando ocasião mais oportuna ou o emprego de meio mais eficaz. Cumpre que a desistência seja definitiva. Na desistência voluntária, o agente mudou de propósito. 19.7.2. Arrependimento eficaz
O arrependimento eficaz – ou anterior à consumação – pressupõe que a mudança de atitude ocorra após ultimado o processo de execução do crime, mas antes da completa consumação. Dessa forma, é forçoso que o arrependido desenvolva uma atividade idônea ao aperfeiçoamento do resultado. Não se discute a qualidade moral dos motivos, já que o arrependimento não produzirá qualquer efeito se o resultado sobrevier. No exemplo anterior, se Bentinho tivesse vertido o café pela boca de Ezequiel, ele necessitaria, para fazer jus ao arrependimento eficaz, desenvolver nova atividade, no sentido de ministrar um antídoto idôneo a neutralizar, oportunamente, o envenenamento do menino. Como se pode depreender de sua estrutura, somente é possível o arrependimento eficaz em sede de tentativa perfeita. 19.7.3. Efeitos da desistência e do arrependimento
Os efeitos da desistência e do arrependimento são os mesmos: o agente responde apenas pelos atos já praticados. Assim, o agente que desiste ou se arrepende responderá pelos atos anteriormente praticados, desde que puníveis. Sendo assim, aquele que, após adentrar em uma residência para furtar (art. 155, do CP), desiste de prosseguir, não será punido pelo furto, mas remanescerá a tipicidade pela violação de domicílio (art. 150, do CP). Semelhantemente, se o agente, com intenção de matar (art. 121, do CP), acerta a vítima com o disparo de arma de fogo, porém em seguida se arrepende e a conduz até o hospital, onde é eficazmente atendida, não responderá por tentativa de homicídio, mas, sim, pelas lesões corporais a que deu causa (art. 129, do CP).26 26. Cf.: “1. Crime tentado: arrependimento eficaz (art. 15, do CP)” HC 84653. STF. Min. Sepúlveda Pertence. Primeira Turma. DJ de 14/10/2005). 281
Curso de Direito Penal | Parte Geral
19.8. Arrependimento posterior
C
onsumado o delito impõe-se a sua consequência jurídica: a pena. Dessa forma, o arrependimento posterior (post factum), verifica-se na fase de exaurimento, em nada influencia na caracterização dos pressupostos delitivos. Quando muito, o agente poderá ser beneficiado com um abrandamento punitivo. Nesse sentido, dispõe o art. 16, do CP, que o arrependimento posterior – leia-se ineficaz – não exclui o crime, mas permite uma diminuição de pena, no percentual de um a dois terços. Todavia, para diminuir a pena a ser aplicada, o referido dispositivo legal exige que o arrependimento se dê em crimes sem violência ou grave ameaça à pessoa, bem como que a reparação do dano ou a restituição da coisa ocorra até o recebimento da denúncia ou queixa (peça inicial da ação penal). A exclusão de crimes com violência física ou moral justifica-se porque o patrimônio pode, em tese, ser reposto, ao passo que a lesão aos bens jurídicos vida, integridade física ou psíquica, em geral, é juridicamente irreversível. Com efeito, trata-se de inovação trazida pela Reforma de 1984. Pode-se especular que duas podem ter sido as razões político-criminais que justificaram a introdução da regra do art. 16, do CP: (1) cancelar os efeitos da Súmula 554, do STF; e (2) buscar um melhor tratamento para os interesses do lesado. Sobre a primeira afirmação, observa-se que a Súmula 554, editada em 1976, determinava que o pagamento do cheque sem fundos até o recebimento da denúncia, acarreta o trancamento do processo, ante a falta de justa causa para a deflagração da ação penal. Para muitos, além de dogmaticamente equivocada – pois, como visto, o arrependimento posterior em nada interfere nos pressupostos do delito –, a Súmula 554 seria excessivamente liberal. Entretanto, sobrepondo-se, de certa forma, à vontade do legislador, bem assim aos críticos, o STF reafirmou a validade daquele verbete, mesmo após a vigência do art. 16, do CP/1984. Numa palavra, para a jurisprudência, o arrependimento posterior aplica-se aos delitos sem violência física ou moral, com exceção do estelionato por cheque sem fundos.27 Com relação ao segundo propósito político-criminal, não se ignora que a dogmática penal não dedicou muita atenção à vítima. De certa forma, a própria construção teórica do bem jurídico – entidade abstrata da qual o sujeito passivo é o titular – aprofundou esse distanciamento.28 Por intermédio da Criminologia – melhor dizendo, da Vitimologia –,
27. Cf.: “Emissão de cheque sem suficiente provisão de fundos. Súmulas 246 e 554. Art. 16, do CP (Lei 7.209/84). Vigência dos verbetes sumulados. Art. 171, § 2, VI, do CP. O advento do art. 16, da nova Parte Geral do Código Penal, não e incompatível com a aplicação das Súmulas 246 e 554, que devem ser entendidas complementarmente, aos casos em que se verifiquem os seus supostos. Não há justa causa para a ação penal se pago o cheque emitido sem suficiente provisão de fundos, antes da propositura da ação penal. A proposta acusatória não demonstra que houve fraude no pagamento por meio de cheque, não configurado, portanto, o crime do art. 171, § 2, VI, do CP. Precedentes. Recurso de habeas corpus provido.” (RHC 64272. STF. Min. Rafael Mayer. Primeira Turma. DJ de 14/11/1986). 28. Cf.: “Ao deliberado esquecimento da pessoa da vítima contribuiu, também, o pensamento abstrato-categorial do Direito, que passou a identificar aquela com o sujeito passivo, titular do bem jurídico. Em todo caso, um personagem ideal, porém 282
Capítulo XIX | Etapas de realização do delito
iniciou-se o paulatino aumento da relevância do lesado, que foi refletido em alterações legislativas subsequentes àquele período. O legislador assimilou essa tendência político-criminal, não somente com a regra do art. 16, do CP, mas, também, em diversas outras passagens referentes à reparação do dano ou indenização do prejuízo causado ao lesado.29
19.9. Crime impossível (tentativa inidônea)
C
crime quando não se pode passar, em absoluto, da fase do início da execução para a fase de consumação. Observa-se, portanto, que o agente realiza, efetivamente, atos executórios, mas estes jamais chegarão à meta optata, seja pela absoluta ineficácia do meio ou impropriedade absoluta do objeto.30 Em razão disso, a Reforma Penal de 1984 optou – com razão – pela impunidade do crime impossível, consoante disposto no art. 17, do CP. Ao tempo da redação originária do CP, o crime impossível podia acarretar a imposição de medida de segurança caso houvesse a periculosidade do agente (art. 76, parágrafo único, do CP/1940). Todavia, com a nova disciplina do crime impossível, para que haja a impunidade do agente, faz-se necessário verificar se o meio ou o objeto do delito era absolutamente inidôneo. E essa verificação sempre se processa com o exame do caso concreto. Sendo assim, aquele que, v.g., com o propósito homicida, ministra, por engano, açúcar ao invés de arsênico na substância ingerida pela vítima, será beneficiado pela regra sob consideração, ante a ineficácia absoluta do meio. Da mesma forma, aquele que efetua disparo contra alguém que, supondo dormindo, já era cadáver, não responderá por homicídio, sequer na forma tentada, tendo em vista a impropriedade absoluta do objeto. Circunstancialmente, se o meio ou o objeto do delito for relativamente inidôneo – expressão talvez pleonástica –, subsistirá a punição ante o início de execução ou a efetiva consumação. Dessa maneira, nos exemplos anteriores, se a pessoa for diabética e vier a falecer em razão da ingestão de açúcar, bem assim, se a vítima estava realmente dormindo, mas o disparo – em razão da má qualidade do projétil – permitiu que ela acordasse e, no sobressalto, empreendesse fuga, descaracteriza-se a figura da tentativa inidônea, pois a impropriedade, respectivamente, do meio e do objeto, era relativa. onsidera-se impos sível o
passivo, aleatório, que nada contribui para a explicação da gênese do delito, nem as possíveis estratégias de prevenção do mesmo: um mero conceito ou categoria abstrata e formal sem corpo nem alma.” (García-Pablos de Molina, Antonio. Principales centros de interés de la investigación criminológica. In: Estudos em homenagem ao Prof. Dr. Jorge de Figueiredo Dias. Coimbra: Coimbra Editora, 2010, p. 1280). 29. Cf. o art. 33, § 4 o (requisito para a progressão de regime); o art. 45, § 1o (pena de prestação pecuniária em benefício da vítima), o art. 65, II, “b” (circunstância atenuante); art. 78, § 2 o (sursis especial), o art. 83, IV (requisito para o livramento condicional); o art. 91, I (efeitos da condenação), o art. 168-A, §§ 2 o e 3 o (extinção da punibilidade e perdão judicial na apropriação indébita previdenciária) etc. 30. A propósito, a doutrina alude à hipótese da “tentativa supersticiosa”, verificada quando alguém, por exemplo, tenta “matar” seu inimigo com rezas, mandingas ou fórmulas mágicas – v.g., amarrar um papel com o nome do desafeto na boca de um sapo. Neste caso, apesar da manifesta intenção maléfica, como se põe em marcha algo irrealizável, está-se diante de crime impossível, mesmo para os adeptos da teoria subjetiva (cf. Mayer, Max Ernst. Op. cit., p. 439). 283
Curso de Direito Penal | Parte Geral
19.9.1. Razões para a impunidade do crime impossível
Conforme ressaltado, atualmente o crime impossível não acarreta a imposição de pena ou medida de segurança (art. 17, do CP). No Direito estrangeiro, a maioria dos países não pune, na mesma esteira, a tentativa absolutamente inidônea. Exceção digna de nota é o Direito alemão, visto que, consoante o § 23, III, do seu Código Penal, faculta-se ao julgador punir, mas de maneira atenuada, a tentativa inidônea, ao invés de simplesmente rechaçar a imposição do castigo.31 A seu turno, a opção político-criminal brasileira justifica-se plenamente. Em função da impossibilidade de se transitar do início da execução para a consumação, evidencia-se que as elementares do tipo penal incriminador não poderiam, em absoluto, ser preenchidas. Dessa forma, recorrer-se à norma de extensão do art. 14, II, do CP, para punir o agente que empreende uma conduta absolutamente inidônea soaria como grave injustiça. Demais disso, se o objetivo do Direito Penal é o de tutelar bens jurídicos diante de lesões ou ameaças efetivas, na hipótese de uma ação efetuada com um meio incapaz de ameaçar o bem jurídico ou, ainda, quando sequer presente o objeto material, constituir-se-ia um atentado aos princípios básicos da nossa disciplina. Importaria, em suma, na punição do agente não pela conduta que realizou, materializada em um indiferente penal, mas pelo perigo potencial que o mesmo possa vir a representar socialmente, ou seja, pela sua periculosidade. Isso importaria em retroceder ao já mencionado Direito Penal do autor. 19.9.2. Crime putativo
Crime putativo é o crime imaginário, ou seja, aquele em que, por erro ou ignorância, se processa apenas na mente do (suposto) infrator. Em geral, a doutrina subdivide o crime putativo que decorre de erro de tipo ou de proibição. No primeiro caso, o agente quer realizar as elementares do tipo penal, mas, por erro, não o faz. Assim, por exemplo, o agente que, por erro, subtrai o próprio aparelho celular, quando, na verdade, objetivava subtrair o celular alheio, não realiza as elementares do tipo penal de furto (art. 155, do CP). A rigor, tratar-se-ia de crime impossível pela absoluta impropriedade do objeto. Por sua vez, o crime putativo por erro de proibição ocorre quando o agente objetiva praticar um ilícito penal, mas, na verdade, realiza uma conduta que não está contida nas normas penais incriminadoras. Nada impede que a conduta seja ilícita para outro ramo do direito, ou para a moral ou a religião. Todavia, não estando tipificado, tratar-se-á de 31. Bernd Schünemann considera a punibilidade da tentativa absolutamente inidônea é, internacionalmente, uma das particularidades mais polêmicas do Direito Penal Alemão, consistindo em um dos “montros dogmáticos” herdados da teoria causalista da ação, quando se rechaçava a possibilidade de distinguir entre tentativas perigosas e não perigosas, haja vista a prevalência da regra da equivalência dos antecedentes causas, forçando, assim, a contrução de uma teoria subjetiva da tentativa (von Buri). Segundo aquele autor, como o finalismo centrou-se no desvalor da ação, em detrimento do desvalor do resultado, perseverou-se – agora com uma fundamentação mais refinada –, na dogmática alemã, a punibilidade do crime impossível (§ 23, III, do CP Alemão). (cf. Schünemann, Bernd. La relación entre ontologismo y normativismo en la dogmática jurídico-penal. In: Bernd Schünemann: Obras. Tomo I. Santa Fe: Rubinzal, 2009, p. 202). 28 4
Capítulo XIX | Etapas de realização do delito
um indiferente penal. Por exemplo, quando o agente pratica conjunção carnal consentida com sua mãe, supondo, equivocadamente, violar uma norma penal, estar-se-á diante da hipótese sob consideração, visto que o Direito Penal brasileiro não pune o incesto. No caso, não há sequer que recorrer à regra do art. 17, do CP, ante a absoluta atipicidade do fato. 19.9.3. Flagrante esperado, flagrante provocado e flagrante forjado
Ainda dentro dessa temática, merecem ser analisadas as hipóteses de flagrante esperado, flagrante provocado e flagrante forjado. Flagrante é o que ainda está quente. Prisão em flagrante é a que ocorre no calor dos acontecimentos, ou seja, a detenção do infrator no momento da prática do delito ou imediatamente em seguida. O CPP alude às espécies de prisão em flagrante: (1) quem está cometendo o crime; (2) quem acaba de cometê-lo; (3) quem é perseguido, logo após o crime, pela autoridade, pelo ofendido ou por qualquer do povo; e (4) quem é encontrado, logo depois, com instrumentos, armas, objetos ou papéis que façam presumir ser ele autor da infração (art. 302, do CPP). Sendo assim, pode chegar ao conhecimento das autoridades policiais que um crime estaria em vias de ser cometido. Dessa maneira, sem qualquer interferência ou provocação, diligencia-se até o hipotético local e espera-se o desenrolar dos acontecimentos. Em havendo, de fato, início da empreitada criminosa, efetiva-se, de forma plenamente correta, a prisão do infrator. No caso, estar-se-á diante do fragrante esperado, respondendo, o agente, pelo delito na forma tentada. Entretanto, é possível que o agente seja instado, moral ou materialmente, a praticar o crime, por iniciativa das próprias autoridades policiais. Ao aceitar a provocação, o agente vem a ser surpreendido e preso no momento da realização da conduta. Trata-se do flagrante provocado ou preparado – também conhecido como crime de ensaio –, que ocorre, em geral, quando se tem suspeita sobre alguém e, para fins de comprovação, utiliza-se da artimanha de o provocar. Em síntese, a polícia prepara o cenário no qual efetuará, com certeza de sucesso, a prisão de alguém. Como bem dizia Nélson Hungria, o seu autor é apenas “protagonista inconsciente de uma comédia”,32 visto que crime não teria como se consumar. Diante da absoluta impropriedade do objeto da suposta ação criminosa, aplica-se a regra do art. 17, do CP, descabendo a punição para as situações de flagrante provocado ou preparado. Nesse sentido, o teor da Súmula 145, do STF: “Não há crime, quando a preparação do flagrante pela polícia torna impossível a sua consumação”. Por último, tem-se a figura do flagrante forjado. Aqui, sequer há o propósito, ainda que reprovável, de se provar a autoria de fatos pretéritos. É o que ocorre, por exemplo, quando um mau policial coloca, ardilosamente, uma quantidade de droga ilícita no automóvel de alguém que, no curso de uma blitz, vem a ser preso sob a suspeita de tráfico de drogas. O flagrante forjado é crime praticado, não pelo suposto autor, mas, na verdade, pelo agente policial, consoante capitulado no art. 4 o, da Lei no 4.898/1964. 32. Hungria, Nélson. Comentários ao Código Penal..., cit., p. 107. 285
título
III
capítulo
teoria geral do crime
XX
CONCURSO DE PESSOAS 20.1. Considerações gerais
D
pessoas ou concurso de agentes, codelinquência etc., como sendo a volitiva interveniência de várias pessoas no cometimento de um delito. Como se sabe, a grande maioria dos delitos pode ser praticada por uma só pessoa, mas, circunstancialmente, é possível que a sua realização decorra da intencional participação de mais de um agente. Quando isso ocorre, surge a figura do concurso de pessoas. A propósito, deve-se diferenciar crimes unissubjetivos e crimes plurissubjetivos. No primeiro caso, o tipo penal pressupõe o seu cometimento por um único agente, nada impedindo, como dito, eventualmente atuem diversas pessoas. É por isso que se adjetiva a codelinquência como crime de concurso eventual. No crime plurissubjetivo, ou de concurso necessário, o tipo incriminador exige a pluralidade de agentes, sob pena de atipicidade do fato. O concurso necessário pode se dar por comportamentos paralelos, como, por exemplo, no crime de quadrilha ou bando (art. 288, do CP), por condutas convergentes, como ocorre no crime de bigamia (art. 235, do CP), ou, ainda, por comportamentos contrapostos, como no crime de rixa (art. 137, do CP). Por outro lado, nada impede que mesmo nos crimes de concurso necessário também ocorra o concurso eventual, ou seja, a participação episódica de terceiros. Por exemplo, é possível que alguém,
286
enomina-se concurso de
Capítulo XX | Concurso de pessoas
pontualmente, auxilie os presos a se amotinarem (art. 354, do CP), fornecendo-lhes piquetes ou cartazes. Da mesma forma, pode alguém conscientemente figurar como testemunha em um casamento de bígamos (art. 235, do CP). O concurso de pessoas encontra-se regulado nos arts. 29, 30 e 31, do CP. Compreende, em linhas gerais, a análise dos institutos da autoria, coautoria, autoria colateral e da participação em sentido estrito. Saliente-se que se trata de matéria frequentemente discutida no cotidiano dos tribunais, por razões diversas, tais como a racional divisão de tarefas, a busca de uma segura impunidade, interesses ideológicos ou materiais convergentes etc. Ela regula, portanto, questões dogmáticas de alto alcance prático, particularmente quando há variação de intensidade entre a conduta daqueles que concorrem ao evento delituoso. Antes do prosseguimento da exposição, cumpre registrar que, com relação às etapas do iter criminis (Cap. XIX), o concurso de pessoas pode se dar desde a fase de cogitação até a fase da consumação. Após a consumação, vale dizer, na fase de exaurimento, não cabe falar de concurso de pessoas. A rigor, caso não constitua um indiferente penal, a intervenção post factum poderá caracterizar outro delito, como, por exemplo, a receptação (art. 180, do CP), ocultação de cadáver (art. 211, do CP), favorecimento real ou pessoal (arts. 348 ou 349, do CP), lavagem de dinheiro (art. 1o, da Lei no 9.613/1998) etc.
20.2. Teorias sobre o concurso de pessoas
C
geral há diferença de intensidade entre aqueles que concorrem para uma ação criminosa. Sendo assim, surgem dúvidas sobre se cada concorrente deve responder por um único delito ou se, ao revés, tratar-se-ia de injustos distintos, com carga de punição diferenciada. Objetivando responder a essa indagação, foram desenvolvidas diversas teorias, merecendo destaque as que se seguem. onforme adiantado, em
20.2.1. Teoria pluralista
Para esta corrente doutrinária, cada concorrente realiza um injusto próprio, punindo-se, portanto, de forma diferenciada (delictum sui generis). Preconiza-se, pois, que existam tantos ilícitos quantos forem os participantes do fato. Registre-se, de imediato, que esta teoria não foi aceita como regra pela generalidade das legislações. O Código Penal, excepcionalmente, adota-a para os crimes tipificados nos seguintes dispositivos: arts. 124 e 126; arts. 217-A e 218 (cf. Lei no 12.015/2009); art. 235 e seu § 1o; arts. 317 e 333; arts. 318 e 334; e arts. 342 e 343. 20.2.2. Teoria dualística ou da acessoriedade
Segundo esta teoria, apesar de haver um único fato delituoso, deve-se efetuar a punição em dois níveis distintos, conforme o grau maior ou menor de contribuição ao evento. Compreende-se, portanto, que exista uma atividade principal – respondendo, quem a pratica, como autor ou coautor –, e uma atividade acessória, para qual 287
Curso de Direito Penal | Parte Geral
se responde a título de partícipe. Naturalmente, preconiza-se que o partícipe deva ser apenado de forma mais branda do que o autor. Esta corrente, portanto, consagra dois institutos distintos: autoria e participação. Acresça-se que a teoria dualística guarda estreita relação com o princípio da acessoriedade, a seguir pormenorizado. Os Códigos do Império (arts. 4 o, 5o e 6o, do CC/1830), bem como da 1a República (arts. 17 e 18, do CP/1890), acolheram essa teoria, distinguindo os autores dos cúmplices, conforme a atuação maior ou principal, e a menor ou secundária. Embora largamente aplicada pelos tribunais, a teoria dualística ou da acessoriedade foi considerada por muitos teóricos, em particular por Nélson Hungria,1 como “complicada” ou uma “nebulosa construção exótica”, despertando reações no sentido da sua restrição ou substituição pela teoria monística – o que, de fato, ocorreu com a promulgação do Código de 1940. 20.2.3. Teoria monística ou unitária
Esta teoria rejeita a distinção entre autor e partícipe. Segundo os seus adeptos, se o delito é único, todos que para ele convergem devem ser considerados seus responsáveis. Só há que falar, portanto, em autores (ou coautores). A teoria monística lastreou-se nos aportes teóricos de von Buri, segundo o qual devia ser repudiada qualquer distinção entre os participantes, visto que, cada delito é – como qualquer outro fenômeno – fatalmente determinado por um complexo de causas ou condições. No caso, cada indivíduo que fornece uma condição ao delito, isto é, uma causa necessária e objetivamente igual, deve ser igualmente responsável pelo crime.2 Apesar de criticada pelo seu excessivo rigor – e, acresça-se, por desrespeitar o princípio da igualdade material –, a teoria monística revelou possuir inequívoco alcance prático até os dias de hoje, não permitindo, amiúde, incongruências ao aplicador, em particular na discussão entre as etapas tentada e consumada do crime.3 Talvez por suas virtudes pragmáticas, esta teoria foi acolhida pelo Código de 1940 (cf. art. 25, do CP/1940), rompendo com a tradição dualística que remontava ao tempo do Império. Na ocasião, o Código de 1940 procurou vincular o concurso de pessoas ao conceito de causalidade, consagrado no art. 11 do seu texto.
1. Cf. ressaltado por Nilo Batista: “Hungria fez o que pôde para evitar [a teoria dualista]. Em sua pena brilhante e impiedosa, a ‘renitente teoria da acessoriedade’, que pressupunha uma ‘punibilidade por empréstimo ou em ricochete, deveria ser remetida ‘para o museu do direito penal’ onde ficaria numa estante ao lado ‘da autoria mediata’. ‘Todos os partícipes são autores’, pregava ele, e assim estão resolvidos inúmeros problemas, entre os quais o ‘desse tormentoso auxílio necessário’, que ‘só serve para dar dor de cabeça aos juízes’.” (Batista, Nilo. Concurso de agentes. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005). 2. Cf. Lyra, Roberto. Comentários ao Código Penal. Vol. II. Rio de Janeiro: Forense, 1958, p. 317. 3. Cf.: “Tratando-se de concurso de pessoas que agiram com unidade de desígnios e cujas condutas tiveram relevância causal para a produção do resultado, é inadmissível o reconhecimento de que um agente teria praticado o delito na forma tentada e o outro, na forma consumada. Segundo a teoria monista ou unitária, havendo pluralidade de agentes e convergência de vontades para a prática da mesma infração penal, como se deu no presente caso, todos aqueles que contribuem para o crime incidem nas penas a ele cominadas, ressalvadas as exceções para as quais a lei prevê expressamente a aplicação da teoria pluralista.” (HC 97652. STF. Min. Joaquim Barbosa. Segunda Turma. DJ de 18/09/2009). 288
Capítulo XX | Concurso de pessoas
Ocorre, contudo, que o Código de 1940 não conseguiu estabelecer um rompimento absoluto com a sistemática anterior, pois os seus arts. 45 e 48, II, e parágrafo único (atuais art. 62 e 29, §§ 1o e 2o, do CP/1984), ao tratarem da aplicação de pena, mantiveram como agravantes e atenuantes, hipóteses de maior ou menor reprovabilidade dos concorrentes, evidenciando a permanência da regra da acessoriedade. Com a Reforma Penal de 1984, o que estava implícito tornou-se explícito, ou seja, mitigou-se a teoria monística do Código de 1940, permitindo a punição dos codelinquentes na medida das suas culpabilidades (art. 29, caput, parte final, do CP). Explicitou-se, portanto, uma solução intermediária entre as correntes unitária e dualista. Chegou-se, enfim, a uma solução de consenso entre todos os diplomas penais anteriores. Pode-se, dessa forma, concluir que, na atualidade, o Direito Penal brasileiro acolhe a teoria monística temperada ou teoria eclética. Nesse sentido, a 1a parte da cabeça do art. 29, do Código Penal, espelha a teoria monística, mas a sua parte final, bem como seus §§ 1o e 2o, além das hipóteses agravantes do art. 62, reconhecem a teoria dualista no tocante à dosagem da pena de cada concorrente.4
20.3. Requisitos do concurso de pessoas
C
onsoante o anteriormente exposto, o concurso de pessoas pressupõe a voluntária interveniência de duas ou mais pessoas para o mesmo fato delituoso. Sendo assim, além da pluralidade de agentes e da identidade de infração penal, exigem-se, ainda, dois outros requisitos: relevância causal da contribuição e vontade consciente de concorrer para o crime.
20.3.1. Pluralidade de indivíduos e de condutas
É necessária a concorrência de mais de uma pessoa, cada uma praticando uma conduta distinta, seja a que é prevista pelo verbo núcleo do tipo penal seja qualquer outra, tal como instigar, induzir, auxiliar moral ou materialmente. 20.3.2. Relevância causal de cada conduta
O concorrente deve intervir, moral ou materialmente, no processo de cometimento do crime. Ou, em outros termos, o seu comportamento deve provocar, facilitar ou estimular a prática do injusto penal. Exemplo: “A”, querendo concorrer para o homicídio de “B”, empresta um revólver a “C”. 4. Cf.: “A norma consubstanciada no art. 29, do CP, que contém atenuações ao princípio da unidade do crime, não impede que o magistrado, ao proferir a sentença penal condenatória, imponha penas desiguais ao autor e ao coautor da prática delituosa. A possibilidade jurídica desse tratamento penal diferenciado justifica-se, quer em face do próprio princípio constitucional da individualização das penas, quer em função da cláusula legal que, inscrita no art. 29, caput, in fine, do CP, destina-se a ‘minorar os excessos da equiparação global dos coautores’.” (HC 70022. STF. Min. Celso de Mello. Primeira Turma. DJ de 14/05/1993). 289
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Faltando o preenchimento desse requisito, desaparece o concurso de pessoas, ainda que o agente quisesse participar do crime. No exemplo anterior, caso “C” já se encontrasse resoluto na morte de “B”, matando-o por estrangulamento, cumpre reconhecer que “A” não teve nenhuma relevância causal (física ou moral), não devendo responder como partícipe, embora o desejasse. Sendo assim, tem-se que a relevância moral ou material cuida de requisito para a imputação objetiva da codelinquência. 20.3.3. Liame subjetivo entre os participantes
É o elemento anímico, ou seja, o dolo de contribuir para com a empresa criminosa. Cumpre observar que para o preenchimento desse requisito, não há necessidade de ajuste ou concerto de vontades. Basta que se processe do partícipe para o autor, ainda que este último desconheça ou, caso conhecesse, viesse a rejeitar a participação. Exemplo: “A”, para vingar-se dos patrões, deixa propositalmente a porta aberta, facilitando o ingresso do ladrão “B”, que se encontrava à espreita da residência dos patrões de “A”. Embora “B” desconhecesse, e até mesmo rejeitasse eventual contribuição de “A”, deve-se reconhecer o concurso de pessoas, pois houve tanto relevância como vontade consciente de participar daquele furto.
Em sentido inverso, ou seja, faltando a vontade consciente de concorrer para o crime, não será reconhecido juridicamente o concurso de pessoas. Se, no exemplo anterior, o empregado “A”, por negligência, deixasse de trancar a porta, ignorando por completo que o ladrão “B” andava à espreita da residência, conquanto tenha havido contribuição causal, “A” não quis participar do furto, razão pela qual não houve concurso de pessoas. 20.3.4. Identidade de infração penal
Todos os envolvidos devem concorrer para a prática de um mesmo crime, ainda que praticando condutas distintas.
20.4. TEORIAS SOBRE AUTORIA E PARTICIPAÇÃO
U
dogmáticos mais importantes do concurso de pessoas é o de definir, com clareza, a distinção teórica entre autoria (ou coautoria) e participação em sentido estrito. Trata-se de um tema bastante polêmico e que equivale, em certa medida, aos aportes dogmáticos que objetivam estabelecer a distinção, na tentativa, entre atos preparatórios e início de execução, conforme examinado no capítulo anterior. Sobre a distinção entre autor e partícipe foram elaboradas inúmeras teorias, merecendo, contudo, ser destacadas as mais importantes, quais sejam:
29 0
m dos aspectos
Capítulo XX | Concurso de pessoas
20.4.1. Teoria objetivo-material
Também chamado de conceito extensivo de autor, tem-se que, na verdade, essa corrente preconiza a inexistência de distinção alguma entre os intervenientes do crime – isto é, entre autor e partícipe –, pois, do ponto de vista material, qualquer um que contribua para o fato delituoso deve ser considerado o seu autor. Trata-se de corrente relacionada com a teoria monística, anteriormente exposta. Em síntese, lastreia-se em um critério extensivo de autor, desprezando a figura do partícipe. Dessa maneira, autor é todo aquele que concausa o resultado típico, independentemente da sua contribuição estar ou não descrita no tipo penal. Quando muito, a figura do partícipe aparece residualmente no momento da dosimetria da pena. Ao considerar autor todo interveniente que realiza uma contribuição causal ao resultado, essa teoria permite tanto a punibilidade do autor mediato, que deixa que outro atue por ele, como do coautor que não realiza diretamente a ação típica. Ou seja, o conceito extensivo de autor assegura que nenhuma contribuição causal ao fato queda-se, por princípio, afastada do Direito Penal.5 20.4.2. Teoria subjetivo-material
Cuida-se de uma variante da teoria anterior e que procura restringir o seu excessivo rigor. Nesse sentido, embora adote como regra o critério extensivo de autor, admite, por exceção, a possibilidade do partícipe, tomando, como fator de distinção, o chamado grau de afetação pessoal para com o fato delituoso. Portanto, e como regra, deve ser considerado autor aquele que toma o resultado como obra sua (animus auctoris). Ao revés, pode-se tomar como partícipe aquele que concorre para o crime como obra alheia (animus socii). Exemplo: “A”, agente de uma agência estatal de espionagem, mata “B”, um opositor do regime, cumprindo ordens dos seus dirigentes. Segundo aquela teoria, “A” deve ser considerado partícipe do homicídio, conquanto tenha efetuado o disparo letal. Serão tidos como autores os dirigentes da agência estatal de espionagem.
Afora as dificuldades evidentes desse critério, a adoção dessa teoria pode redundar em injustiças, como as que ocorreram na Alemanha, com o abrandamento da punição de criminosos de guerra nazistas, responsáveis diretos pela execução de milhares de pessoas, mas que foram punidos apenas como partícipes, pois teriam praticado os homicídios como obra alheia.6
5. Jescheck, Weigend. Op. cit., p. 699. 6. Bernd Schünemann considera como “monstruosa” a teoria subjetiva da participação, com a “artificial” distinção entre animus auctoris e animus socii, como um dos “tristes exemplos” da época da prevalência do naturalismo penal, segundo o qual, diante da equiparação objetivo-causal, construíram-se critérios subjetivos que não existiam na realidade empírica. (Schünemann, Bernd. La relación entre ontologismo y normativismo..., cit., p. 201). 291
Curso de Direito Penal | Parte Geral
20.4.3. Teoria objetivo-formal
Baseia-se num critério restritivo de autor, ou seja, autor é aquele que literalmente realiza a conduta definida na norma incriminadora; é quem realiza o verbo do tipo. O partícipe, por sua vez, concorre de alguma forma para o delito, mas sem realizar a conduta típica; é quem realizar uma ação exterior ao tipo.7 Sua contribuição ao plano global seria, a princípio, impune, não fosse a norma de extensão referente ao concurso de pessoas. Esta teoria apresenta-se dogmaticamente mais coerente com o princípio da legalidade. Segundo a doutrina, deve-se aceitar esse conceito restritivo de autor como premissa, posto que se estriba na descrição da conduta no tipo e, com isso, conecta-se com as demais premissas estabelecidas pelo legislador penal.8 Todavia, ela se mostra insuficiente para as hipóteses de autoria mediata, ou seja, para situações nas quais o agente perpetra o delito por intermédio de interposta pessoa. Sob tal vertente, ao não realizar, diretamente, o verbo do tipo, aquele que controla o desenrolar da ação – o chamado homem de trás – responderia como partícipe, quando, na verdade, é o verdadeiro autor. 20.4.4. Teoria do domínio do fato
A teoria do domínio do fato – também conhecido como objetivo-final – cuida de princípio desenvolvido por Claus Roxin, constituindo-se, atualmente, o critério dominante para a delimitação da autoria dos crimes dolosos.9 A teoria do domínio do fato se impôs sobre as correntes precedentes, tendo em vista as insuficiências de um conceito de autor exclusivamente formal (somente quem realiza o verbo do tipo), ou material (que considera autor todos os que se inserem na causalidade do fato), bem como puramente subjetivo (onde a condição de autor partiria da vontade do agente). De acordo com o princípio do domínio do fato, autor é aquele que está no centro do acontecimento; é aquele que, senhor do fato, domina a realização do delito, tomando em suas mãos o acontecimento criminoso de tal modo que dele depende decisivamente o “se” e o “como” da realização típica. Ou, em outros termos, autor é aquele que controla o atuar criminoso.10 A teoria do domínio do fato corrige o defeito apresentado pela teoria objetivo-formal. Efetivamente, deve ser considerado como autor não só o concorrente que realiza pessoalmente as elementares do tipo, mas, igualmente, aquele que detém o poder sobre a sua realização. Por exceção, o concorrente que não realiza o verbo típico, tampouco controla o desenrolar do processo delitivo, será considerado partícipe do delito. 7. Jescheck, Weigend. Op. cit., p. 693. 8. Idem, p. 698. 9. A origem dogmática da teoria do domínio do fato é atribuída aos trabalhos de Welzel, Maurach e Gallas, sendo certo que foi Roxin quem a sistematizou e aprofundou, na obra Tätrschaft und Tatherrschaft, publicada em 1963, e sucessivamente reeditada e ampliada. A 7. ed. alemã foi vertida para a língua espanhola (Autoría y Dominio del Hecho en Derecho Penal, trad. Cuello Contreras e González de Murillo. Madrid: Marcial Pons, 2000). 10. Cf. Roxin, Claus. Autoría y Dominio del Hecho..., cit., p. 368. 292
Capítulo XX | Concurso de pessoas
Nesse sentido, a ideia básica da teoria do domínio do fato pode ser assim enunciada: o autor domina a realização do fato típico, controlando a continuidade ou a paralisação da ação típica; o partícipe não domina a realização do fato típico, não tem controle sobre a continuidade ou paralisação da ação típica.11 A teoria do domínio do fato surgiu dos estudos de Welzel sobre a punição adequada do autor mediato – ou seja, sobre a responsabilidade daquele que se vale de interposta pessoa para a perpetração do ilícito. Na autoria mediata, aquele que diretamente pratica o delito é, em regra, um inimputável, uma pessoa que sofre coação moral irresistível ou quem vem a ser induzida em erro invencível. O executor imediato funciona como espécie de instrumento do real autor. Subsequentemente, ela foi reformulada por Roxin,12 passando a fundamentar não só a punição do autor mediato, mas, também, em outras situações, inclusive aquelas em que o executor imediato opera de forma plenamente responsável. No Brasil, a teoria do domínio do fato foi amplamente aceita, na doutrina e na jurisprudência, tendo influenciado a Reforma da Parte Geral de 1984, como se verifica, por exemplo, com a circunstância agravante relativa à autoria intelectual (art. 62, I, do CP). Nesse sentido, este autor assinala que a lei penal brasileira assume, em princípio, um conceito unitário de autor, mas a adoção legal de critérios de distinção entre autor e partícipe transforma, na prática judicial, o paradigma monístico em paradigma diferenciador, admitindo o emprego de teorias modernas sobre autoria e participação, como, por exemplo, a teoria do domínio do fato, cujos postulados são inteiramente compatíveis com a disciplina legal de autoria e participação no Código Penal.13 Merece ser ressaltada, porém, a compatibilidade entre a teoria do domínio do fato e a precedente teoria objetivo-formal. Isso porque, a pessoa plenamente responsável que realiza diretamente as elementares do tipo deve ser considerada autor, pois detém o domínio final do resultado. Contudo, também será autor a pessoa que, embora não realizando diretamente o núcleo do tipo, detém o controle finalístico da sua perpetração. Por fim, será partícipe a pessoa que concorre para o crime sem deter tais características dogmáticas. A adoção generalizada dos aportes dogmáticos de Roxin propiciou o surgimento de algumas variantes teóricas, como, por exemplo, a teoria do domínio funcional do fato e a teoria do domínio do fato por aparado organizado de poder. 20.4.4.1. Domínio funcional do fato
Conforme explanado, a teoria do domínio do fato surgiu, inicialmente, para fundamentar a punição, a título de autor, daquele que se vale de interposta pessoa, como se fosse um instrumento, para praticar o ilícito. Entretanto, não se ignora que muitas vezes os intervenientes desempenham ações indispensáveis ao resultado final, de forma plenamente racional e responsável. 11. Santos, Juarez Cirino. Direito Penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, p. 352. 12. Roxin, Autoría y dominio del hecho..., p. 81 e seguintes. 13. Idem, p. 353. 293
Curso de Direito Penal | Parte Geral
Para tais hipóteses, desenvolveu-se a teoria do domínio funcional do fato, preconizando-se a punição de todos os que atuam sob o selo da divisão racional de tarefas título de autor (ou coautor). Isto difere, de certa forma, da teoria do domínio do fato onde, necessariamente, teríamos autor (quem controla) e partícipe (quem não controla). Por intermédio do domínio funcional do fato, haverá, em casos tais, uma coautoria delitiva. Ampliam-se, portanto, os pressupostos originários da teoria do domínio do fato. Além da divisão funcional das tarefas, a figura da coautoria pressupõe que exista um liame subjetivo entre os agentes, havendo um domínio conjunto do curso causal. A vinculação subjetiva pode se dar por meio de ajuste prévio entre os concorrentes acerca da dinâmica do delito (por exemplo, dois indivíduos combinam o cometimento de furto no ônibus), ou pela simples consciência de atuar em conjunto (dois indivíduos, ao direcionarem suas armas de fogo para matar um terceiro, percebem a conduta um do outro e, tendo tal consciência, efetuam os disparos contra a vítima). Registre-se que a inexistência de vínculo anímico entre os sujeitos, embora elida a coautoria, poderá caracterizar a figura da autoria colateral, a seguir analisada. Nesse caso, cada agente somente será responsável pelos atos criminosos por ele praticados individualmente, sob pena de afronta ao princípio da culpabilidade. 20.4.4.2. Domínio da organização
Trata-se de outra variante da teoria do domínio do fato. Enquanto a construção do domínio funcional do fato pressupõe a divisão racional do trabalho numa vertente horizontal, a teoria do domínio do fato por aparato organizado de poder – também chamada de domínio da organização – pressupõe a mesma noção, mas sob a perspectiva vertical. Exemplo: “A”, integrante de organização criminosa comandada por “B”, efetua, a mando deste, mas de forma plenamente imputável, sem erro ou coação, a eliminação de “C”, rival dos negócios ilícitos.
Cuida-se, portanto, de aporte doutrinário elaborado para fundamentar a punição, a título de autor, daquele que se encontra no ápice de uma estrutura organizada de poder. Em tais hipóteses, constatava-se que o executor imediato, ou seja, aquele que se encontrava na ponta final da cadeia de comando, realizava a conduta de maneira plenamente responsável. Era, portanto, considerado autor, ao passo que o dirigente da organização era punido apenas como partícipe. Diante disso, em certos casos, particularmente naqueles em que existia uma organização estatal à margem do Estado de Direito (por exemplo, regimes fascistas ou totalitários) ou, e, ainda, nas organizações criminosas de rígida cadeia de comando (por exemplo, na Cosa Nostra), pouco importava se a ordem emanada da cúpula seria cumprida por “A” ou por “B”. Sendo assim, caso o executor imediato, plenamente responsável, se recusasse a cumprir a ordem, outro o faria em seu lugar. Diante disso, não seria correto atribuir ao chefe daquele aparato de poder o atributo de 294
Capítulo XX | Concurso de pessoas
mero partícipe. Ambos deveriam ser considerados autores do delito: o executor direto seria o autor imediato e o dirigente do aparato de poder seria o autor mediato. Dessa forma, a caracterização da figura da autoria em virtude dos aparatos organizados de poder requereria a presença de três requisitos: (1) estrutura hierárquica rígida; (2) fungibilidade do autor imediato; e (3) organização estabelecida fora da ordem jurídica. Relativamente ao último requisito, Roxin salienta que a sua teoria não poderia ser estendida para as organizações estruturadas dentro da legalidade, visto que a existência de normalidade jurídica afastaria a transmissão da vontade do dirigente da organização. De fato, segundo ele, não somente o executor imediato, mas, também, aqueles que se encontrassem nas instâncias intermediárias, poderiam – e deveriam – se recusar a cumprir a ordem criminosa, o que inviabilizaria a autoria coletiva do delito.14 Entretanto, há autores que divergem de Roxin, e propugnam a aplicação da teoria dos aparatos organizados de poder para organizações que operam dentro do Estado de Direito, ou seja, organizações distintas de ditaduras políticas ou do crime organizado. Nesse sentido, tem-se recorrido àquela teoria para justificar a punição, na qualidade de coautores, dos membros da diretoria ou do conselho de administração de empresas formalmente constituídas. Trata-se, em síntese, da responsabilização dos dirigentes no âmbito do Direito Penal Econômico ou, em outras palavras, nos crimes empresariais.15
20.5. Tipologia do concurso de pessoas
D
teórica anteriormente apresentada, em especial pela distinção entre autor e partícipe, passa-se a analisar, de forma pormenorizada, os principais institutos incidentes no concurso de pessoas. iante da e xpl anação
20.5.1. Autoria individual
Autor individual é o anônimo que realiza a conduta descrita no verbo contido na figura típica. Conforme lecionado por Jescheck, o legislador, em geral, parte do pressuposto de que é autor individual aquele que realiza pessoalmente a totalidade das elementares do tipo.16 No entanto, como será visto nas tipologias seguintes, na maioria das vezes não se age de forma insulada, mas sim no contexto de ações de pluralidade de pessoas. 20.5.2. Autoria mediata
Classicamente, autor mediato é aquele que pratica o crime por intermédio de alguém que não detém capacidade para responder pelo delito (terceiro impunível). É aquele se vale de um instrumento. A rigor, não existe na autoria mediata o concurso de pessoas 14. Roxin, Claus. Autoria mediata por meio do domínio da organização. Greco, Luís; Lobato, Danilo. Temas de direito penal – Parte Geral. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 336-342. 15. Idem, ibidem. 16. Jescheck, Weigend. Op. cit., p. 692. 295
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mas apenas a figura do autor, que se vale de outrem sem responsabilidade penal.17 Os casos mais conhecidos de autoria mediata são três: (1) utilização de inimputáveis (vale dizer, menores de 18 anos ou pessoas com patologia mental); (2) induzimento ao erro essencial invencível, podendo tratar-se de erro de tipo ou erro de proibição, e (3) coação física ou moral irresistível. Ressalte-se que a autoria mediata também é possível nos chamados crimes próprios, desde que o agente reúna as características especiais do tipo. Exemplo: “A”, que sob a influência do estado puerperal, determina que a criança “B”, de 10 anos de idade, afogue na banheira o neonato “C”, responderá pelo delito do art. 123, do CP.
Entretanto, não cabe a autoria mediata em situações classificáveis como delito de mão própria, ou seja, aqueles em que o tipo pressupõe que o sujeito ativo o pratique pessoalmente. Desse modo, não será possível a perpetração de falso testemunho (art. 342, do CP), por intermédio do depoimento de uma criança de 10 anos de idade. Como ressalva, é válido lembrar que a teoria do domínio da organização de Roxin prevê uma figura peculiar de autoria mediata, consistente na chamada “autoria atrás do autor”. Isso porque admite que o dirigente do aparato de poder seja considerado autor mediato do delito por ele determinado, não obstante o executor direto atue de modo consciente e voluntário, sendo também plenamente responsável a título de autor imediato. 20.5.3. Coautoria
Coautoria é a realização conjunta, por mais de uma pessoa, da mesma infração penal. É a autoria coletiva do crime. Saliente-se que os problemas de coautoria são os mesmos da autoria, uma vez que os coautores dividem a realização das elementares do tipo penal, conforme o supramencionado princípio da divisão racional do trabalho (teoria do domínio funcional do fato), objetivando, dessa sorte, o sucesso do acontecer delituoso.18 A propósito, merece ser mencionada a lição de Juarez Cirino dos Santos no sentido de que a autoria coletiva, ou coautoria, é definida pelo domínio comum do fato típico mediante divisão do trabalho entre os coautores. Subjetivamente – prossegue aquele autor –, há decisão comum de realizar fato típico determinado, que fundamenta a responsabilidade de cada coautor pelo fato típico comum integral. Isso exclui a possibilidade de coautoria em crimes de imprudência. Objetivamente, há a realização comum 17. Por conta disso, observa-se a falta de precisão do CP, ao se referir, na ementa do art. 62, as agravantes no caso de concurso de pessoas, uma vez que, os incisos II e III retratam hipóteses de autoria mediata. 18. Cf.: “A atuação de cada coautor, no papel que lhe é destinado, apresenta-se como momento essencial da execução do plano comum, ou, noutras palavras, constitui a realização da ‘tarefa’ que lhe cabe na ‘divisão de trabalho’ que representa mesmo a essência desta forma de autoria. É por isso absolutamente justificado que Roxin fale a este propósito de um ‘domínio do fato funcional’.” (Dias, Jorge de Figueiredo. Direito Penal. Parte Geral. Tomo I. 2. ed. Coimbra: Coimbra Editora, 2007, p. 791). 296
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do fato típico mediante contribuições parciais necessárias para existência do fato como um todo e, portanto, de domínio comum do fato típico. Ou seja, a convergência subjetiva e objetiva dos coautores exprime acordo de vontades, expresso ou tácito, para realizar fato típico determinado.19 Ainda sobre a coautoria, cumpre registrar que os crimes de mão própria também não a admitem. Quando muito, será possível que, ao lado do autor, exista a figura do partícipe. Exemplo: “A” e “B” ajustam mentir no depoimento que ambos hão de prestar numa determinada audiência judicial. Nessa hipótese, “A” será autor do seu falso testemunho (art. 324, do CP) e partícipe do falso testemunho de “B”, e vice-versa.
20.5.4. Coautoria sucessiva
Trata-se de hipótese em que, na coautoria, não ocorre um acordo preordenado de vontades. Ou, em outros termos, não há decisão conjunta na fase de cogitação, bem assim em atos preparatórios. No caso vertente, a convergência de ações se dá no curso da execução do crime até a sua consumação. Exemplo: “A”, por mero acaso, depara-se com “B”, seu inimigo, sendo esfaqueado por “C”, pessoa que lhe era desconhecida. “A” aproveita tal circunstância e também desfere facadas em “B”, que vem a falecer em razão do conjunto de ferimentos. “A” e “C” responderão por homicídio em coautoria sucessiva.
Sobre o assunto, discute-se se o novo coautor deve responder pela parte do fato já cometida pelo outro coparticipante e dele conhecida. Segundo Figueiredo Dias, muito embora a jurisprudência alemã mais recente incline-se nessa posição, a doutrina em geral dissente dessa solução, na medida em que ela ficaria próxima da figura inaceitável do dolus subsequens, razão pela qual ao coautor só deve ser imputado o ilícito cometido depois da sua adesão ao acordo.20 20.5.5. Coautoria mediata
Cuida-se de confluência dos dois institutos anteriormente mencionados, ou seja, da coautoria e da autoria mediata. Nesse sentido, dois ou mais agentes se valem, cada qual a seu modo, de interpostas pessoas que executam materialmente o delito de maneira não punível. Exemplo: “A” adiciona veneno na xícara de chá que será servida a “B” por um inimputável, enquanto que “C”, ciente daquela conduta, ameaça matar “D”, caso este venha a buscar socorro para salvar a vida de “B”. 19. Santos, Juarez Cirino dos. Op. cit. 20. Dias, Jorge de Figueiredo. Op. cit., p. 794. Em linhas gerais, dolus subsequens significa querer realizar um fato que já ocorreu. 297
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20.5.6. Autoria colateral
Autoria colateral ou paralela é a isolada execução de um fato delituoso por duas ou mais pessoas, uma desconhecendo a conduta da outra. Não há o requisito subjetivo da vontade consciente de participar de um fato comum. Na autoria colateral, como visto, os comportamentos são insulados, mas, quando somados, acarretam o resultado delituoso. Faz-se, portanto, necessário, analisar a conduta de cada autor, pois não há como incorrer na responsabilidade conjunta de ambos. Exemplo: “A” ministra veneno no chá a ser servido a “B” ao passo que “C”, ignorando a ação de “A”, coloca substância igualmente venenosa na torrada que também será ingerida por “B”.
Constata-se, dessa forma, que a autoria colateral não se confunde com a coautoria, exatamente por não haver liame subjetivo ligando os agentes. Caso houvesse, seria desnecessário aferir, amiúde, a conduta que cada um realizou, visto que ambos responderiam, de forma conjunta, pelo resultado. Como visto a seguir, a autoria colateral faz-se presente, de ordinário, na chamada concorrência em crime culposo ou omissivo próprio. 20.5.7. Autoria incerta
Autoria incerta consiste em um derivativo da autoria colateral, verificada quando há impossibilidade de se identificar qual das condutas, isoladamente consideradas, causou o resultado. Dito de outra forma, muito embora ocorra a confluência ignorada de ação em sede de atos executórios, remanesce a dúvida sobre qual delas chegou à consumação. Exemplo: “A” posta-se de atalaia e atira em “B”, no exato momento em que este vem a ser também alvejado pelo disparo de “C”, efetuado de um outro local. Não havia ajuste prévio entre “A” e “C”. Submetido a perícia, não se pôde constatar qual dos projéteis causou a morte de “B”.
Não havendo condições de se determinar qual das condutas foi responsável pelo resultado morte – e por não haver liame entre os autores colaterais –, a solução preconizada pela doutrina é a da imputação a ambos de delito tentado, apesar de, no caso concreto, ter havido a concretização do homicídio. Isto decorre do princípio do in dubio pro reo. 20.5.8. Multidão criminosa
Cuida-se de hipótese sui generis de concurso eventual de pessoas, na qual geralmente ocorrem episódios de extrema violência, com lesões corporais, mortes ou destruições patrimoniais. Segundo Aníbal Bruno, multidões são agregados humanos, informes, inorgânicos, que se criam espontaneamente e espontaneamente se dissolvem, mas sempre 298
Capítulo XX | Concurso de pessoas
construídos e animados por uma psicologia particular.21 O agente que pratica crime sob a influência de multidão em tumulto, se não a provocou, acarreta a diminuição da reprovabilidade, por força da atenuante do art. 65, III, “e”, do CP.
20.6. Teoria da participação
C
a participação em sentido estrito é a voluntária e relevante intervenção de alguém em fato delituoso alheio. A participação pressupõe a figura central do autor. O partícipe não realiza o verbo do tipo penal incriminador, tampouco detém ou divide o seu controle final. A rigor, ele realiza um comportamento atípico, mas que, no caso concreto, denota-se apto a induzir, instigar ou auxiliar o autor. Nesse sentido, o disposto no art. 29, do CP, pode ser considerado uma norma de extensão ou uma norma de adequação típica de subordinação mediata.22 Sob o aspecto da relevância causal, a conduta do partícipe pode ser de maior, menor ou média intensidade. De toda sorte, há de ser um comportamento acessório frente àquele desempenhado pelo agente principal (autor ou coautores). No que diz respeito à questão temporal, a participação pode ocorrer desde a fase da cogitação até a consumação. Atente-se, contudo, que a sua punibilidade pressupõe o início de execução da infração, por parte do autor (art. 31, do CP). A teoria da participação compreende o estudo das suas duas modalidades: participação moral e participação material. onforme já mencionado,
20.6.1. Participação moral
Igualmente denominada instigação, consiste na contribuição direcionada a influenciar na vontade do autor. Instigar é animar, reforçar, estimular uma ideia preexistente. O instigador provoca a resolução criminosa (v.g., encorajando um reticente autor), mas não toma parte na execução, tampouco detém o domínio final do fato. Ao lado da instigação, identifica-se a figura do induzimento. Induzir é fazer surgir a ideia delitiva até então inexistente. Indutor é aquele que cria ou produz, de forma cabal, no executor a intenção de atentar contra certo bem jurídico-penal, por meio da comissão de um concreto fato típico.23 Em que pese a distinção entre instigação e induzimento, é certo que a doutrina brasileira costuma-se referir ao primeiro como sinônimo de participação moral. Instigação é uma espécie de participação moral em que o partícipe age sobre a vontade do autor, quer provocando para que nele surja a vontade (induzimento), quer estimulando a ideia existente (instigação propriamente dita), de qualquer forma, contribuindo moralmente para a prática do crime.24 21. 22. 23. 24.
Bruno, op. cit., p. 188. Jesus, Damásio Evangelista de. Op. cit., p. 407. Dias, Jorge de Figueiredo. Op. cit., p. 799. Bitencourt, Cezar Roberto. Op. cit., p. 455. 29 9
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O conteúdo da instigação é representado por um dolo duplo, ou seja, imediatamente, dolo relativo à própria ação de engendrar a decisão de fato doloso no psiquismo do autor; mediatamente, dolo relativo à realização do fato doloso pelo autor.25 20.6.2. Participação material
Também denominada de auxílio ou cumplicidade, consiste na contribuição física ao plano delituoso do autor. O cúmplice exterioriza a sua participação por intermédio do fornecimento de algum suporte material, como, por exemplo, emprestando uma arma, fornecendo um veículo, emprestando dinheiro etc. De certa forma, ao contribuir materialmente para a conduta delituosa, o cúmplice reforça o propósito moral do autor, embora a recíproca não seja necessariamente verdade – ou seja, pode-se participar moralmente sem auxiliar materialmente o executor. Por óbvio, nada impede que ocorram todas as vertentes da participação no mesmo caso concreto. Exemplo: “A” faz despertar em “B” a ideia de matar “C”, reforça-a, subsequentemente, aludindo às vantagens desse crime, e, não satisfeito, ainda empresta a arma que “B” utiliza para dar a morte a “C”.
20.6.3. Participação em cadeia
Cuida-se de um problema importante, tanto do ponto de vista teórico como prático. Segundo Figueiredo Dias, o cerne da questão está em saber se devem ser responsabilizados penalmente os agentes que, não tendo contato direto com o executor do fato, constituem, todavia, elos de uma cadeia conducente à prática do delito.26 Exemplo: “A” convence seu amante “B”, a determinar “C” a matar “D”, marido de “A”.
Em que pese a aparente complexidade, não se vislumbra óbice algum para que os agentes “A” e “B” respondam como partícipes em cadeia do crime executado por “C” contra a vítima “D”, desde que evidenciado ter havido “sucessividade” de instigação ou cumplicidade. Não se desconhece, contudo, que, a depender da intensidade da conduta, poder-se-á estar diante da autoria ou coautoria mediata, nos termos da teoria do domínio do fato, anteriormente analisada. 20.6.4. Requisitos da participação
Consoante explanado no início do Capítulo, qualquer que venha a ser a modalidade de participação, é indispensável a presença de dois requisitos: (1) relevância causal; e (2) vontade de participar na conduta do concorrente. Sendo assim, não tem relevância a 25. Santos, Juarez Cirino. Op. cit. 26. Dias, Jorge de Figueiredo. Op. cit., p. 813. 300
Capítulo XX | Concurso de pessoas
atividade do partícipe que não consegue influir no ânimo do executor; não tem relevância a participação se o crime não for sequer tentado; não tem relevância o empréstimo de uma arma se o autor não a utiliza na execução ou sequer se sente encorajado com tal gesto etc. Por fim, o partícipe deve ter a vontade consciente de cooperar na ação delitiva do executor, ainda que este não conheça ou mesmo despreze tal ajuda. Em razão dessa intenção de aderir ao dolo do autor, cumpre observar que não há possibilidade de participação dolosa em crime culposo, ou participação culposa em crime doloso. Exemplo: O médico “A” entrega ao enfermeiro “B” certo medicamento a ser injetado no paciente “C”, mas que, na verdade, cuida-se de uma dose mortal de morfina, insciente, “B”, desse fato. No caso, “A” responderá pelo homicídio doloso (art. 121, do CP), a título de autoria mediata, ao passo que “B” poderá vir a responder por homicídio culposo (art. 121, § 3o, do CP), ao violar o dever de cuidado próprio da profissão de enfermeiro. Outro exemplo: “A”, violando o dever de cautela, deixa as chaves na ignição do veículo da repartição onde trabalha, para tomar um café na esquina, circunstância da qual se aproveita “B”, que subtrai o veículo pertencente ao Patrimônio Público. No caso, “A” responderá por peculato culposo (art. 312, § 2o), enquanto que “B” por furto simples ou qualificado (art. 155, caput ou § 5o, do CP).
20.6.5. A questão da acessoriedade da participação
Como visto, o partícipe (material ou moral) não realiza as elementares do tipo penal, tampouco detém o controle do “se” ou do “como” do delito. Possui, assim, uma posição acessória frente àquela desenvolvida pelo autor, mas, de toda sorte, penalmente reprovável, pois contribui para a lesão ou perigo de um bem jurídico-penal. Sendo assim, discute-se, no âmbito da análise do delito (conduta típica, antijurídica e culpável), qual ou quais destes pressupostos faz-se necessário para a punição do partícipe. Para responder a esta indagação foram desenvolvidas algumas teorias. A primeira foi a teoria da acessoriedade mínima, segundo a qual, para que haja a punição do partícipe, é suficiente que o fato principal seja típico, sendo indiferente sua antijuridicidade ou culpabilidade do autor. Dessa forma, uma ação típica, mas justificada para o autor, permitiria a punição do partícipe. Por exemplo, aquele que induz o autor a agir em legítima defesa responderia pelo fato típico, quer dizer, participação em homicídio, enquanto que o executor seria beneficiado com a excludente de antijuridicidade. Por sua vez, a teoria da acessoriedade limitada admite a punibilidade do partícipe desde que a conduta principal seja típica e antijurídica, sendo desnecessária a culpabilidade do executor. Nesse sentido, aquele que auxiliasse um inimputável, v.g., emprestando uma arma a um menor de 17 anos de idade, responderia pela morte que viesse a resultar, conquanto, este último agisse sem culpabilidade. 3 01
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A teoria da acessoriedade extrema (ou rigorosa) preconiza que a punição do partícipe somente possa ocorrer quando a ação principal for típica, antijurídica e culpável o seu autor. No exemplo anterior, ou seja, da morte perpetrada por um menor de 18 anos de idade, pelo fato de o executor não ser imputável, o partícipe também ficará impune. Por último, alude-se à “teoria da hiperacessoriedade”, ou seja, além de típica, antijurídica e culpável, deve, ainda, incidir o requisito da punibilidade do autor principal, sem o qual a participação ficaria impune. Cite-se, por exemplo, a hipótese da prescrição da pretensão punitiva, decorrente do fato de o autor – e somente ele – ser maior de 18 e menor de 21 anos ao tempo da ação (art. 115, do CP), o que, de acordo com a teoria da hiperacessoriedade, também beneficia o partícipe. O mesmo raciocínio valeria para as condições objetivas de punibilidade e as escusas absolutórias. Segundo Jescheck, a teoria da acessoriedade extrema prevaleceu até 1943, quando foi introduzida a acessoriedade limitada, com o objetivo de colmatar supostas lacunas de punibilidade relacionadas justamente com a delinquência juvenil, lacunas estas que não podiam ser supridas pelas regras gerais da autoria mediata.27 Vê-se, assim, na atualidade, a predileção doutrinária pela teoria da acessoriedade limitada, visto que a participação é acessória do comportamento principal, mas dependente dele até certo ponto. Nesse sentido, o próprio Jescheck ressalta que não somente a doutrina, mas, igualmente, a jurisprudência dominante exige, para a punição do instigador ou cúmplice, que haja a comissão de um fato principal típico e antijurídico de caráter doloso.28 20.6.6. A participação mediante ações neutras
Um dos temas que se tornaram mais controversos em matéria de concurso de pessoas na dogmática contemporânea se refere às chamadas ações neutras. Estas são condutas que contribuem a um fato ilícito praticado por terceiro que, à primeira vista, parecem completamente normais.29 Exemplos: “A”, padeiro, vende pães a “B”, ciente de que este deseja envenená-los e servir a sua própria esposa para matá-la. “C”, taxista, transporta um assassino até o local onde cometerá o homicídio.
Cuidam-se, portanto, de comportamentos socialmente úteis, ações cotidianas e, em princípio, socialmente adequadas, embora possam ser incorporadas pelo autor ao seu plano delitivo.30 27. Jescheck, Weigend. Op. cit., p. 705. 28. Idem, p. 706. 29. Greco, Luís. Cumplicidade através das ações neutras: a imputação objetiva na participação. Rio de Janeiro: Renovar, 2004, p. 110. 30. Blanco Cordero, Isidoro. Límites a la participacion delictiva: lãs acciones neutrales y la cooperación en el delito. Granada: Comares, 2001, p. 2. 3 02
Capítulo XX | Concurso de pessoas
O tema da participação mediante ações neutras foi tratado pela primeira vez, em 1907, por Ludwig von Bar, que analisou a repercussão no ordenamento jurídico da pessoa cuja atividade cotidiana pode constituir óbice à persecução penal do autor de uma infração penal. Questionava, por ex., se o cobrador de um bonde teria que ser obrigado, mediante a ameaça de pena, a negar o bilhete a quem constasse como delinquente ou que fosse a um destino para cometer um crime.31 Posteriormente, o Tribunal Superior alemão enfrentou um caso em que um padeiro e um comerciante forneciam, respectivamente, pão e vinho para um bordel, sabendo que lá eram praticados atos de prostituição, o que, à época, era criminalizado.32 O tema foi retomado nas últimas décadas. Jakobs foi um dos autores que o discutiu, em artigo de 1977, no qual listava diversos exemplos.33 Os autores que têm debatido o tema desde então, têm proposto soluções diversas para determinar se as ações neutras, no que se refere à participação, são ou não puníveis. De forma praticamente unânime, o problema é colocado na tipicidade. Há, no entanto, discussão se é questão de tipo objetivo ou de tipo subjetivo e há, ainda, posições mistas.34 Dentre os autores que pretendem resolver a questão por meio do tipo objetivo, pode-se mencionar Winfried Hassemer, que adota o conceito de adequação social, adaptando-o para uma idéia de adequação profissional. Segundo este entendimento, somente pode responder criminalmente pela prática de crime aquele que pratica conduta que expresse contrariedade com as normas da matéria. Haveria, assim, dois fatores indicativos de contrariedade do comportamento profissional: (1o) infração ou alteração das regras próprias da profissão para alcançar objetivos contrários ao direito penal; e (2o) a intenção do agente de alcançar fins criminais. Se, por ventura, não ocorrerem os dois fatores, as condutas serão consideradas como neutras e não puníveis.35 Jakobs, por sua vez, com base em uma reformulação da teoria da proibição de regresso, exclui a participação dos comportamentos dolosos ou culposos que concorram para crime praticado por terceiro, mas que tenham caráter cotidiano ou inócuo. Assim, a conduta se distancia do comportamento criminoso caso tenha sentido em si mesma, sem depender da realização da conduta típica pelo autor.36 Thomas Weigend soluciona a questão da participação mediante ações neutras com base no critério da eficácia favorecedora da ação do cooperador no delito principal. Estabelece ainda critérios com os quais pretende determinar quando existe a pretendida eficácia.37 31. Idem, p. 3. 32. Idem, ibidem. 33. Jakobs, Günther. La prohibición de regreso em el delito de resultado. Estudio sobre el fundamento de la responsabilidad jurídico-penal em la comisión. In: Estudios de derecho penal. Trad. Enrique Peñaranda Ramos, Carlos J. Suárez González e Manuel Cancio Meliá, Madri: Civitas, 1997, pp. 241, 243-244 e 257. 34. Lobato, José Danilo Tavares. Teoria da participação criminal e ações neutras – uma questão única de imputação objetiva. 1. ed., 1. reimpr., Curitiba: Juruá, 2010, p. 31. 35. Blanco Cordero, Isidoro, op. cit., p. 35-41. 36. Jakobs, Günther, Derecho penal, p. 842 e seguintes. 37. Blanco Cordero, Isidoro, op. cit., p. 183. 3 03
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Já Luís Greco parte do princípio constitucional da proporcionalidade, que só permite limitar a liberdade das pessoas na hipótese de tal limitação ser idônea e adequada para alcançar o objetivo proposto, além de ser a menos gravosa possível, para permitir que haja ponderação favorável entre restrição da liberdade individual e os possíveis benefícios sociais daí advindos.38 Assim, sustenta que deve ser examinado se a proibição de determinada conduta permite a efetiva proteção de um bem jurídico, se, portanto, é idônea a produzir tal proteção. Caso tal conduta seja facilmente substituível, ou seja, facilmente obtida e em qualquer lugar.39 Dentre as posições subjetivas, pode ser mencionada a de Schild Trappe, para quem a cumplicidade se define como influência psíquica (dolosa) no âmbito afetivo sobre um autor futuro. Somente se alcança a influência psíquica própria da participação se o comportamento do indivíduo significar que ele se solidariza com o autor, que exige que o autor esteja consciente da atuação do partícipe. A ajuda física ou intelectual por si só não caracteriza a participação, que somente surge por meio do influxo psíquico. No caso das ações neutras, somente será punível o comportamento do possível partícipe se o autor houver reconhecido a solidariedade e a tenha aceito.40 Quanto às posições, merece referência a posição de Claus Roxin, que considera que somente haverá participação caso o partícipe tenha aumentado o risco da vítima e a possibilidade de êxito do autor.41 Quanto às ações neutras, distingue comportamentos em que a contribuição delitiva se realiza com conhecimento seguro do plano delitivo do autor, isto é, com dolo direto, ou se o considera possível a utilização de seu serviço para fins delitivos (com dolo eventual). Se a ajuda tiver inequívoco sentido delitivo e o partícipe saiba deste fato, a conduta será punível. Ao contrário, se conduta puder ser útil para prática de delito ou não, não seria punível. Como se pode perceber da menção de alguns autores, há soluções discrepantes e ainda não pacificadas sobre este tema, que é tormentoso para juristas e magistrados.
20.7. Concurso de pessoas e crime culposo de mais de uma pessoa acarretam a realização de um
Q mesmo fato negligente, suscita-se a questão do concurso de pessoas em crime culuando os comportamentos
poso. Sob o aspecto meramente literal do art. 29, caput, do CP, não haveria, em tese, empecilho para o reconhecimento tanto da coautoria como da participação em crime culposo. Todavia, isso não procede, ao menos para a participação stricto sensu. Com efeito, a doutrina brasileira, na esteira do pensamento jurídico alemão, inadmite a participação seja para a culpa consciente ou inconsciente. Isso porque, como já 38. 39. 40. 41. 304
Greco, Luís, op. cit., p. 135-136. Idem, p. 138. Blanco Cordero, Isidoro, op. cit., p. 185. Lobato, José Danilo Tavares, op. cit., p. 92.
Capítulo XX | Concurso de pessoas
explanado, um dos requisitos indispensáveis para figurar como instigador ou cúmplice é a vontade consciente (dolo) de concorrer ao fato principal, o que não ocorre no crime culposo. Exemplo: “A”, querendo chegar rápido ao aeroporto, oferece uma boa gorjeta ao taxista “B” para que dirija em velocidade acima da permitida, o que dá causa ao atropelamento e morte do pedestre “C” (art. 302, da Lei no 9.503/1997).
Neste exemplo, não há que falar de participação de “A” no crime de “B”. Na verdade, tanto “A” como “B” são autores de homicídio culposo na direção de veículo automotor. O máximo que poderia existir, segundo a doutrina brasileira, é a responsabilização de “A” e “B” como coautores daquele crime culposo, na medida em que – segundo lecionado por Cezar Bitencourt – os que cooperam na causa, isto é, na falta de dever de cuidado objetivo, agindo sem a atenção devida, são autores ou coautores.42 Ressalte-se, porém, que essa coautoria se circunscreve à criação da situação conjunta de violação do dever de cuidado. Ela não compreende hipotético ajuste para o resultado comum, até porque o resultado não é querido, tampouco assumido pelos agentes. Exemplo: “A” e “B”, operários da construção civil, erguem imprudentemente uma pesada placa de madeira, que finda por escorregar e cair na via pública, ferindo mortalmente o passante “C” (art. 121, § 3o, do CP).
Corroborando essa construção doutrinária, tem-se que pelas principais teorias adotadas para o concurso de pessoas – teoria objetivo-formal e teoria do domínio do fato –, considera-se autor quem realiza a conduta descrita na lei penal, bem assim quem controla o curso dos acontecimentos, o que, nos tipos culposos, compreende, somente, a violação do dever de cuidado devido. Nesse sentido, não se ignora que o que caracteriza o crime culposo é, justamente, a violação do dever de cuidado, o que é imposto, pelo ordenamento jurídico, a cada um de per si. Em sentido inverso, rechaçando não só a participação, como, também, a coautoria em crimes culposos, observa Juarez Cirino dos Santos que a decisão comum no âmbito da coautoria importa na distribuição de tarefas necessárias à produção do resultado comum. Sendo assim, para aquele autor, nos crimes de imprudência, a coautoria é, do ponto de vista conceitual, impossível, e do ponto de vista prático, desnecessária, porque na hipótese de comportamentos imprudentes simultâneos, cada lesão do dever de cuidado ou do risco permitido fundamenta a atribuição do resultado como autoria colateral independente.43 42. Bitencourt, Cezar Roberto. Op. cit., p. 461. De maneira semelhante, Jescheck assinala que é autor ou coautor de crime imprudente todo aquele que, violando o dever de cuidado necessário no trato das relações sociais, concorre para a realização daquele tipo (Jescheck, Weigend. Op. cit., p. 705). 43. Santos, Juarez Cirino dos. Op. cit. 305
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Pode-se, assim, concluir que: (1) a participação em sentido estrito está categoricamente afastada nos crimes culposos; (2) alguns autores admitem a hipótese da coautoria, tão somente para a criação da situação de violação conjunta do dever de cuidado; (3) outros autores denominam esta mesma hipótese de autoria colateral, tomando, como referencial, o resultado desvalioso; e (4) estes dois entendimentos não são, na essência, excludentes entre si, distinguindo-se sob o aspecto terminológico (coautoria até a violação do dever de cautela; e autoria colateral no resultado que integra o tipo culposo).
20.8. Concurso de pessoas e crime omissivo
N
ada impede que possa existir participação em crime omissivo, seja na omissão própria seja na imprópria, ressalvando-se, quanto a esta última, a hipótese do suposto partícipe também se enquadrar no dever legal de agir. Se isto ocorrer, haverá autoria (ou coautoria) e não participação.
Exemplo: “A”, paraplégico, desencoraja “B” a prestar socorro a “C”, encontrando-se, este último, prestes a se afogar numa represa, sendo certo que “B”, exímio nadador, poderia fazê-lo sem risco pessoal.
No caso exemplificado, “B” irá responder como autor do crime de omissão de socorro (art. 135, do CP), ao passo que “A” figurará como partícipe daquela conduta omissiva. No entanto, se “A” não fosse paraplégico e também pudesse socorrer “C”, ele também responderia como autor da omissão de socorro. Observa-se, portanto, ser possível a participação em crime omissivo, mas sempre por intermédio de um fazer positivo. A instigação ou a cumplicidade pressupõe comportamento comissivo, sendo inconcebível a participação omissiva em crime omissivo.44 Por outro lado, nada impede que possa existir participação omissiva em crime comissivo, como no caso do agente que deixa de trancar o portão de uma residência, permitindo-se, assim, o ingresso do ladrão que irá subtrair objetos de valor. É possível, ainda, existir a participação em crime omissivo impróprio ou comissivo por omissão. Exemplo: “A” instiga a babá “B” a não tomar conta da criança “C”, que brinca perto de uma escadaria, findando com que a mesma perca o equilíbrio e escorregue escada abaixo, sofrendo várias escoriações.
Partindo-se da premissa de que “A” não tinha qualquer vinculação legal, contratual ou de ingerência sobre a criança “C”, tem-se que a sua contribuição moral foi acessória, 44. Cf. Jescheck, Weigend. Op. cit., p. 688; Bitencourt, Cezar Roberto. Op. cit., p. 461. 306
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secundária, à resolução do garantidor “B” em permanecer inativo. Conforme lecionado por Cezar Bitencourt, este último é autor do crime ocorrido, do qual tinha o domínio do fato e o dever jurídico de impedir sua ocorrência; o outro é o instigador, ou seja, ele não estava obrigado ao comando legal e não dispunha do domínio da ação final, mas colaborou com a sua concretização.45 Por fim, se o concorrente estiver igualmente na situação de garantidor, consoante os termos do art. 13, § 2o, do CP, não será mais partícipe, mas autor – ou coautor, como preferem alguns autores – do crime omissivo impróprio. No exemplo anterior, se “A” fosse o pai da criança “C”, responderia como autor colateral, ou coautor ao lado da babá “B”, pelas lesões corporais por aquela sofrida.
20.9. Participação de menor importância
C
Código Penal, ao tratar do concurso de pessoas, manteve, no art. 29, a teoria unitária ou monística, mitigando-a ao prever que os concorrentes incidem nas penas cominadas ao delito na medida de suas culpabilidades. Para a coautoria, o citado dispositivo seria até mesmo dispensável, uma vez que o coautor correaliza as elementares do tipo ou controla a sua execução. Ao revés, para a responsabilização do partícipe, o art. 29 tem total pertinência, pois, conforme já salientado, ele realiza um comportamento a princípio atípico, que ficaria impune caso não houvesse essa norma de extensão. Dessa maneira, observa-se que os §§ 1o e 2o, do art. 29, tratam de situações pertinentes ao partícipe, quais sejam: (1) a participação de menor importância; e (2) a cooperação dolosamente distinta. Procede-se, inicialmente, à análise da primeira categoria. A regra contida no art. 29, § 1o, do CP, corresponde àquela que fora adotada, pioneiramente, no art. 48, II, do CP/1940: “Ter sido de somenos importância a cooperação no crime”. Se, na redação anterior, cuidava-se de mera circunstância atenuante, com a edição do CP/1984 passou a ser causa geral de diminuição de pena. Esta minorante justifica-se plenamente. Com efeito, se o caput do art. 29 alude a medida de culpabilidade, a diminuta relevância da contribuição do partícipe importa em um menor desvalor da sua reprovabilidade, vale dizer, importa numa diminuição da resposta penal, em percentual variável entre 1/6 a 1/3. Saliente-se que, embora menor, alguma participação houve. Percebe-se, assim, existir uma escala de intensidade. Veja-se: omo visto, o
“coautoria > participação maior > participação média > participação menor > ausência de relevância”
Ainda nesse terreno, cumpre aludir à figura da cumplicidade necessária. Deve-se entender como necessária – e, portanto, de maior importância – a participação material 45. Idem, p. 462. 3 07
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que consistir no fornecimento de bem ou serviço difícil de ser obtido nas circunstâncias do caso concreto. Segundo Nilo Batista, trata-se de uma percepção jurídica relacionada com a ideia de bens escassos. Se, do contrário, o bem ou serviço não for escasso, mas, na verdade, abundante, ter-se-á uma participação de menor importância.46 Exemplo: “A”, ciente de que “B” pretende falsificar um documento particular, empresta-lhe uma caneta esferográfica. Se o referido empréstimo ocorre em sala de aula, cheia de estudantes, onde, obviamente, abundam canetas esferográficas, tratar-se-á de uma participação de menor importância. Se, contudo, o fornecimento se dá numa praia deserta, onde não existam canetas facilmente disponíveis, a participação de “A” para a falsificação de “B” terá sido de maior relevância.
20.10. Cooperação dolosamente distinta
C
que fora primitivamente prevista, pelo CP/1940, como circunstância atenuante: “Se o agente quis participar de crime menos grave, a pena é diminuída de um terço até metade, não podendo, porém, ser inferior ao mínimo da cominada ao crime cometido” (art. 48, parág. único, do CP/1940). A cooperação dolosamente distinta – também conhecida como desvio subjetivo da conduta – pressupõe hipóteses nas quais o partícipe pretendeu contribuir para um injusto menos grave do que o efetivamente cometido pelo autor. Sendo assim, por força do § 2o, do art. 29, do CP, ele irá responder pelo crime que quis participar. Em síntese, responderá de acordo com o seu dolo. uida-se de disposição
Exemplo: “A” instiga “B” a furtar uma casa de veraneio que se supõe vazia. O autor “B” penetra na casa, mas é surpreendido pela inesperada presença de um morador e resolve matá-lo. “B” responderá por latrocínio (art. 157, § 3o, do CP), enquanto “A” responderá por furto (art. 155, § 4o, IV, do CP).
Entretanto, havendo previsibilidade do resultado mais grave, consoante o juízo de uma pessoa inteligente, colocada na situação em que se encontra o partícipe, no momento da instigação ou cumplicidade, a pena será aumentada até metade. Cuida-se de causa de aumento de pena. No exemplo anterior, se “A” soubesse que, esporadicamente, alguém permanecia naquela casa de veraneio, ele continuaria a responder pelo furto qualificado, mas sua pena sofreria acréscimo quantitativo de até a metade. Importa salientar que, para a incidência desta majorante, exige-se a comprovação da previsibilidade de que o autor poderia praticar infração mais grave.
46. Batista, Nilo. Concurso de agentes... 308
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20.11. Comunicabilidade das elementares do tipo
C
omunicabilidade é a qualidade daquilo que é comunicável, ou seja, que gera efeitos a outrem. Não obstante o princípio da individualização da pena, há situações nas quais determinada qualidade atribuída ao autor gera efeitos penais, positivos ou negativos, ao concorrente (coautor ou partícipe). Nesse sentido, estabelece o art. 30, do CP, que, para os concorrentes da ação criminosa, não são comunicáveis as circunstâncias e as condições de caráter pessoal, salvo quando elementares do tipo. Cuida-se de norma de grande alcance prático, mas que pode trazer dificuldades de compreensão ao intérprete. Far-se-ão, portanto, necessários alguns esclarecimentos. Em primeiro lugar, cumpre distinguir circunstância de elementar, por serem dogmaticamente distintas. Circunstância significa o que está em torno (de um núcleo). Provém do latim circum stare, ou seja, circundar; estar ao redor. Considera-se circunstância o que não integra o tipo penal, pois, sua ausência, não o descaracteriza – muito embora possa surtir reflexos na aplicação da pena. Elementar, por sua vez, é a essência de algo. A ausência de uma elementar faz com que o fato deixe de subsistir como tal. Nomeadamente, importará na atipicidade absoluta ou relativa do fato. Portanto, para se saber se está na presença de uma circunstância ou elementar, basta que se proceda, na análise do caso concreto, ao método de exclusão mental.
Exemplo: “A”, numa noite escura, desfere um golpe de faca contra o peito de “B”, causando-lhe a morte. Se for excluído o dado “noite” a conduta continuará amoldada ao tipo penal do homicídio (art. 121, do CP). No entanto, se for excluído o dado “B” (pessoa humana) ou a “morte” (verbo matar), não se estará mais diante daquela hipótese típica. Logo, “noite” é circunstância, ao passo que “B” e “morte” são elementares daquele delito.
Diante disso, verifica-se que o mencionado art. 30, do CP, incorreu numa impropriedade terminológica ao aludir a “circunstâncias elementares do tipo”. É preferível, para não incorrer em confusões interpretativas, substituir a palavra circunstância por dados. Pode-se, portanto, tomar aquele dispositivo da seguinte maneira: “não se comunicam os dados e as condições de caráter pessoal, salvo quando elementares do tipo.” O segundo esclarecimento prende-se ao que deve ser entendido pela expressão “caráter pessoal”. Pessoal ou subjetivo é o que diz respeito ao autor do fato (se é homem ou mulher; jovem ou idoso; analfabeto ou bacharel; bonito ou feio; primário ou reincidente etc.), ao seu relacionamento com os demais, inclusive a vítima (benquisto ou desprezado; amigo ou inimigo etc.), bem como a motivação para delinquir (torpeza, piedade, ganância, altruísmo etc.). O que for pessoal e estiver contemplado no tipo, comunica-se ao concorrente. O que for pessoal, mas não estiver no tipo, não se comunica. Por outro lado, impessoal ou objetivo compreende tudo o que está fora do autor do crime, vale dizer: o modo da sua execução; os instrumentos utilizados; o tempo; o 309
Curso de Direito Penal | Parte Geral
lugar; as características da vítima etc. Contrario sensu, depreende-se da regra do art. 30, do CP, que o que for impessoal comunica-se ao coautor ou partícipe. Por último – mas não menos importante –, deve-se esclarecer que ao dispor da comunicabilidade dos dados (circunstâncias) e condições, pessoais ou impessoais, o citado dispositivo pressupõe, evidentemente, que tal efeito somente se dê quando a informação for do conhecimento do concorrente. Do contrário – isto é, caso não integre o seu dolo –, não haverá a mencionada comunicabilidade. Em resumo, extrai-se do art. 30, do CP, o seguinte: 1) Em regra, o dado ou a condição pessoal não se comunica ao concorrente da ação delitiva Exemplo: Suponha-se que “A” seja ascendente, padrasto, tio, irmão, cônjuge, companheiro, tutor, curador, preceptor ou empregador da vítima, e que “B”, coautor do delito de estupro, não possua nenhuma dessas qualidades. A pena de “A” será aumentada da metade, conforme previsto no art. 226, II, do CP. Essa causa de aumento de pena, porém, não será comunicável a “B”.
2) Por exceção, se o dado ou a condição pessoal estiver descrito no tipo, comunica-se ao concorrente Exemplo: “A”, casado, contrai outro casamento, instigado que foi por “B”, solteiro. Ambos responderão pelo delito de bigamia (art. 235, do CP), na qualidade de autor e partícipe, pois a condição “casado” é elementar daquele tipo penal.
3) O dado ou a condição impessoal, previsto ou não no tipo, comunica-se ao concorrente Exemplo: “A” auxilia “B” a matar uma criança (art. 121, do CP). A qualidade da vítima – como tudo que está fora do agente – é impessoal. Portanto, o aumento de 1/3 da pena de “B”, por força da 2a parte, do § 4o, do art. 121, será comunicável a “A”.
4) Em qualquer caso, a comunicabilidade pressupõe que o dado ou condição tenha ingressado no dolo do concorrente Exemplo: “A”, desempregado, induz “B” a subtrair um veículo que se encontrava no pátio de uma repartição pública, ignorando, por completo, que “B” é funcionário público. Embora a condição pessoal “funcionário público” seja elementar do tipo de peculato, “A” não irá responder pelo art. 312, § 1o, do CP, ante o erro de tipo. Responderá, somente, pelo art. 155, § 4o, IV, do CP.
20.11.1. A questão da comunicabilidade no delito de infanticídio
O crime de infanticídio encontra-se definido no art. 123, do CP: “Matar, sob influência do estado puerperal, o próprio filho, durante o parto ou logo após”. Cuida-se de previsão 310
Capítulo XX | Concurso de pessoas
legal com o mesmo verbo do homicídio (matar), mas que dele se diferencia por ser tipo autônomo e por exigir a presença do estado puerperal,47 o que acarreta cominação de pena bem inferior à do homicídio simples (detenção, de dois a seis anos, ao invés de reclusão, de seis a vinte anos). Evidentemente, o infanticídio pode ser perpetrado pela mãe, de maneira isolada. No entanto, ele pode ser praticado mediante o concurso de pessoas. Diante disso, surge a questão de se saber se o coautor ou partícipe do infanticídio responderá por esse delito ou pelo delito de homicídio. Trata-se, na verdade, de uma das questões mais controvertidas da Parte Especial do Direito Penal. A discussão centra-se, justamente, na questão da comunicabilidade das condições pessoais contempladas no tipo do art. 123, do CP, consoante a regra do art. 30, do CP. Em linhas gerais, existem três correntes que procuram solucionar essa discussão. A primeira delas afirma que, a rigor, estado puerperal seria uma elementar mais do que pessoal, qual seja, personalíssima. Por conta disso, não seria comunicável ao concorrente, escapando-se, assim, da regra da comunicabilidade. O coautor ou partícipe responderia por homicídio, enquanto que a mãe permaneceria enquadrada no infanticídio. Segundo Nélson Hungria – defensor dessa solução – o privilégio legal seria “inextendível” ao concorrente.48 Para uma segunda corrente, há de ser aplicada a norma do art. 30, do CP, uma vez que, como visto, se trata de elementar do tipo penal descrito no art. 123. O agente que, ciente da presença do estado puerperal, dividiu com a mãe a conduta de matar o seu filho (coautor), ou aquele que participar, material ou moralmente, desse crime, restará incurso na pena do infanticídio (detenção, de dois a seis anos). Filia-se a tal corrente, dentre outros, Damásio de Jesus, estribado no argumento de que, efetivamente, influência do estado puerperal constitui elementar do delito de infanticídio, comunicando, desde que integre o dolo do agente.49 Há, contudo, uma posição intermediária: a solução da questão dependeria da constatação do caráter acessório da ação do concorrente, isto é, saber se ele figurou como partícipe ou coautor do infanticídio. No primeiro caso, haveria incidência da comunicabilidade, respondendo, ambos (mãe-autora e o partícipe), pelo crime do art. 123. Do contrário, deve-se excepcionar o concurso de pessoas, punindo de maneira distinta cada um dos autores, ou seja, não haverá a comunicabilidade da figura do infanticídio ao concorrente.
47. Há uma pluralidade de significados atribuídos pelos autores ao estado puerperal: dores do parto; excitações; distúrbios; temores; delírios; apreensões; exaustões; irritações; emoções tumultuárias; loucuras emotivas; falta de orientação; desatino; confusão ou conturbação mental; acessos de fúria etc. Em que pese a heterogeneidade dessas definições, fato é que o estado puerperal é uma decorrência normal, ainda que transitória, de qualquer parto. 48. Hungria, Nélson. Comentários..., cit. 49. Jesus, Damásio Evangelista de. Op. cit. Agregue-se que na histórica Conferência dos Desembargadores de 1943, em São Paulo, ocorrida logo após a entrada em vigor do Código, a síntese dos debates, tomada por maioria dos votos, foi formulada em termos da comunicabilidade. 311
Curso de Direito Penal | Parte Geral
Neste sentido, Luiz Regis Prado apresenta as seguintes hipóteses: (1) a mãe e o terceiro realizam o núcleo do tipo; (2) a mãe mata e o terceiro a auxilia; e (3) o terceiro mata a criança com a participação acessória da mãe. Segundo aquele autor, na primeira hipótese, a mãe e o terceiro são coautores do delito de infanticídio (art. 123 c/c art. 29, CP). Também na segunda hipótese, o delito é de infanticídio para ambos – mãe (autora) e terceiro (partícipe). Por fim, no último caso, o terceiro responde como autor do crime de homicídio e a mãe como partícipe.50 Em que pesem os argumentos contrários, tem-se que não há como escapar da regra da comunicabilidade ao concorrente do infanticídio, sob pena de violação do princípio da legalidade. Não se pode aceitar a primeira corrente (Hungria), visto que buscar discernir pessoal de personalíssimo é, fundamentalmente, uma burla de etiquetas. A tese intermediária, embora tecnicamente superior, não convence porque desconsidera não apenas o art. 30, mas, igualmente, o art. 29, do CP, isto é, o princípio da unidade do delito. Portanto, apesar de louvável, é forçoso reconhecer que a preconizada distinção entre as figuras de coautor e partícipe, importa em indevida analogia in malam partem. Conclui-se, portanto, que aquele que concorrer (coautor ou partícipe) ao infanticídio, ciente de que a morte do nascente ou neonato se dá sob a influência do estado puerperal da mãe, restará beneficiado com a punição mais branda do art. 123, ao invés de incorrer nas penas do art. 121, do CP, tendo em vista o disposto no art. 30, do CP.51
20.12. Participação impunível
C
omo visto, no âmbito do iter criminis, a participação pode se dar desde a fase da cogitação até a consumação. Todavia, a relevância penal da ação do partícipe ficará pendente do ingresso do autor na fase do início de execução, ou seja, da tentativa punível. Por essa razão, dispõe o art. 31, do CP, que o ajuste, a determinação ou instigação – formas de participação moral –, bem como o auxílio – isto é, a participação material –, salvo disposição expressa em contrário, não são puníveis, se o crime não chega, pelo menos, a ser tentado. A ressalva à disposição expressa em contrário justifica-se. Há hipóteses nas quais o ajuste, a determinação ou instigação, bem como o auxílio são elevados, pela lei penal, ao status de norma penal incriminadora. Veja-se, nesse sentido, os delitos de participação em suicídio (art. 122), incitação ao crime (art. 286), quadrilha ou bando (art. 288), petrechos para a falsificação de moeda (art. 291), dentre outros.
50. Prado, Luiz Regis. Curso de Direito Penal Brasileiro. Vol. 2. 9. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010. Em sentido semelhante, Cezar Bitencourt sustenta, em longa exposição, que a solução deve ser encontrada atentando-se para quem realizou a ação central. (Bitencourt, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal. Vol. 2. 14. ed. São Paulo: Saraiva, 2009). 51. De lege ferenda, tem-se que a solução mais adequada é aquela sugerida na citada Conferência dos Desembargadores, ou seja, que o infanticídio deixe de ser delito autônomo e passe a se constituir forma privilegiada de homicídio, deixando, portanto, de ser elementar, para se transformar em tipo derivado de homicídio. Com esta alteração legislativa, não haveria mais a incidência dos efeitos do art. 30, do CP. 312
título
capítulo
III
teoria geral do crime
XXI
Crimes internacionais 21.1. Considerações gerais
N
os capítulos precedentes, fez-se uma análise do crime e de sua estru-
tura conforme o sistema jurídico-penal no qual o Brasil está inserido, o romano-germânico. Ocorre que, com a internacionalização do direito penal e o advento dos tribunais penais internacionais, o crime internacional tem ganho muita importância teórica e prática. Neste contexto, convém ressaltar que o direito penal internacional e, por extensão, os crimes internacionais têm sido desenvolvidos conforme orientação preponderante do sistema da common law, conforme dá notícia Kai Ambos.1 A consequência disto é que os conceitos relativos ao crime internacional, bem como sua estrutura estabelecida pela jurisprudência dos tribunais internacionais apresentam particularidades, que serão, a partir de agora examinadas, ainda que de maneira sucinta.
21.2. Conceito e classificação dos crimes internacionais
A
internacional não é fácil de ser estabelecida, havendo uma certa ambiguidade conceitual.2 noção de crime
1. Ambos, Kai. A parte geral do direito penal internacional: bases para uma elaboração dogmática. Trad. Carlos Eduardo Adriano Japiassú e Daniel Andrés Raizman. São Paulo: RT, 2008, p. 50. 2. Verhaegen, Jacques. Les crimes internationaux et le droit pénal interne. In: Revue Internationale de 313
Curso de Direito Penal | Parte Geral
Schabas3 sustenta que o conceito de crime internacional tem sido tratado há séculos, já que se referia a delitos cuja repressão possuía certa dimensão internacional. Historicamente, talvez o melhor exemplo tenha sido o da pirataria cometida em alto-mar. Essa espécie de crime necessitava, para ser objeto de processo e julgamento, de regras de jurisdição especiais e, sobretudo, de cooperação entre Estados. Como outros exemplos de infrações penais que possuem essas necessidades específicas, pode-se mencionar o tráfico de escravos, o tráfico de mulheres e de crianças, tráfico de entorpecentes, o apoderamento ilícito de aeronaves, o terrorismo e a lavagem de dinheiro.4 Já Cassese,5 por sua vez, menciona que crimes internacionais seriam as violações graves às regras do direito internacional que impõem a responsabilidade Penal Internacional individual e, assim, diferenciam-se dos casos de responsabilidade dos Estados, dentro dos quais os indivíduos atuam. Considera, ainda, este autor que o conceito de crimes internacionais precisa, necessariamente, conter cumulativamente os seguintes elementos: violações do direito consuetudinário internacional, bem como de tratados internacionais; regras que pretendam proteger valores considerados importantes pelo conjunto da comunidade internacional e, consequentemente, afetem todos os Estados e indivíduos; deve haver um interesse universal em reprimir esses crimes e, portanto, em princípio os pretensos autores de tais infrações devem poder ser processados e julgados por qualquer Estado; e, por fim, o autor deve ter agido a partir de agente oficial do Estado, em nome do qual praticou a infração. Dessa maneira, considera que seriam crimes internacionais somente as seguintes figuras delitivas: crimes de guerra, crimes contra a humanidade, genocídio, tortura, agressão e algumas formas extremas de terrorismo (quando patrocinado pelo Estado ou, ao menos, tolerados por este).6 A expressão – crimes internacionais – pode ser tomada em, pelo menos, dois sentidos, embora haja quem sustente a possibilidade de existência de uma terceira classificação.7 Diferentemente, Sorin Moisescu e Dorin Sabau8 afirmam que, no pensamento jurídico-penal romeno, a expressão adequada, ao invés de crime internacional, seria infração internacional. Esta consistiria em uma ação ou omissão contrárias ao direito internacional, cujo elemento essencial residiria em um evidente perigo à paz e à segurança internacional, as bases para a coabitação pacífica entre os Estados. Esses autores também entendem haver duas classificações. Uma primeira referente aos crimes cometidos pelos representantes do Estado, que ofenderiam a ordem, a legalidade e a Droit Pénal, v. 60, nos 1/2, Toulouse: Érès, 1989, p. 127. 3. Schabas, William A. An introduction to the International Criminal Court. Cambridge: Cambridge University Press, 2003, p. 21. 4. Idem, ibidem. 5. Cassese, Antonio. International criminal law. Oxford: Oxford University Press, 2003, p. 23. 6. Cassese, op. cit., p. 24. 7. Deve-se ressalvar que Damásio E.de Jesus tem posição diversa, que aqui não é adotada – por considerá-la extremamente simplificada – sustentando que seriam crimes internacionais aqueles previstos no artigo 7o do Código Penal (Jesus, op. cit., p. 218 ). 8. Moisescu, Sorin; Sabau, Dorin. Quelques considerations au sujet des crimes internationaux et le droit pénal romain. Trabalho apresentado na “International Experts Conference on International Criminal Justice: Historic and Contemporary Perspectives”, Siracusa: ISISC, 1994, (não publicado), p. 5. 314
Capítulo XXI | Crimes internacionais
segurança internacional. Assim, seriam infrações internacionais os crimes contra a paz, os crimes de guerra e os crimes contra a humanidade. Haveria, ainda, uma outra classificação que compreenderia as infrações internacionais cometidas por particulares, que seriam, por exemplo, a pirataria, o tráfico internacional de entorpecentes e falsificação de moeda. Assim, enquanto a primeira categoria teria, fundamentalmente, objetivos políticos, na segunda tal fato não ocorreria. Outra questão que é mencionada é a da função precípua do direito, mais especificamente, do Direito Penal e, também, do Direito Penal Internacional, a proteção dos bens jurídicos fundamentais para a sociedade, das condições básicas para a realização pessoal de cada um dos indivíduos que a compõem. A intervenção do Direito Penal deve, em regra, respeitar os limites dos princípios da legalidade e da proteção dos bens jurídicos,9 sob pena de sua aplicação tornar-se odiosa. Quanto ao Direito Penal Internacional, Alicia Gil Gil10 sustenta que existem delitos que violam bens jurídicos individuais, como a vida humana e a liberdade, e outros que ofendem bens jurídicos que fazem referência ao funcionamento do sistema. Em relação a esses últimos, também faz a seguinte distinção: Há bens jurídicos coletivos que fazem a referência às circunstâncias indispensáveis para o desenvolvimento real e eficaz dos bens individuais. Entre eles, estariam a paz internacional, a existência de determinados grupos humanos ou o meio ambiente. Da mesma maneira, os bens jurídicos institucionais que formalizam processos ou interfaces com outros bens jurídicos, de modo que estes, eventual ou constantemente, possam se tornar realidade e efetivados. Neste grupo, encontra-se o bem jurídico existência dos Estados, que adquire uma especial relevância no Direito Penal Internacional, já que os Estados são os principais sujeitos do direito internacional e, considerando que a ordem internacional é constituída pela comunidade dos Estados, este bem jurídico, mesmo não sendo individual, mas estando a serviço dos indivíduos, significa que não podem ser excluídas as bases de existência do sistema internacional e, como este não pode ser concebido se negar a existência dos Estados que o compõe, este bem jurídico passa a apresentar um duplo caráter. Por fim, os bens jurídicos de controle dificilmente surgem no Direito Penal Internacional, devido ao estado primitivo de desenvolvimento em que se encontra o sistema internacional, no qual quase inexistem autoridades centrais ou de mecanismos independentes de exercício de poder. O Projeto de Código dos Crimes contra a Paz e a Segurança da Humanidade, conforme aprovado pela Comissão de Direito Internacional, previa, no art. 19, crimes contra as Nações Unidas e contra pessoal associado, mas tal dispositvo não foi adotado pelo Estatuto do Tribunal Penal Internacional.11 9. Sobre a questão da proteção de bens jurídicos no Direito Penal e a controvérsia a esse respeito, vide Greco, Luís. Princípio da ofensividade e crimes de perigo abstrato: uma introdução ao debate sobre o bem jurídico e as estruturas do delito. Revista Brasileira de Ciências Criminais. v 12, fascículo 49, São Paulo: RT, p. 89-147. 10. Gil Gil. Op. cit., p. 35 e s. 11. Gil Gil. Op. cit., p. 35-36. 315
Curso de Direito Penal | Parte Geral
Já Kai Ambos trabalha com a ideia de macrocriminalidade, que abrangeria, fundamentalmente, comportamentos conforme o sistema estabelecido e adequados à situação dentro de uma estrutura de organização, aparelho de poder ou outro contexto de ação coletiva. Sustenta ainda que se diferenciaria qualitativamente de outras formas de criminalidade, tais como terrorismo, entorpecentes e criminalidade econômica, devido a condições políticas de exceção e ao papel ativo que desempenha o Estado.12 A macrocriminalidade seria mais limitada que a criminalidade dos poderosos (Kriminalität der Mächtigen), já que esta referir-se-ia aos fatos cometidos pelos poderosos para a defesa de sua posição de poder, e nem estes poderosos nem o poder econômico que defendem são, necessariamente, idênticos ao Estado ou ao poder estatal. A intervenção, tolerância, omissão ou até o fortalecimento estatal de comportamentos macrocriminais, fundamental para essa delimitação conceitual, necessitam que ocorra em um contexto de atividade política. Assim, macrocriminalidade política significa, em sentido estrito, criminalidade fortalecida pelo Estado, crime coletivo politicamente condicionado ou – com menor precisão – crimes de Estado, terrorismo de Estado ou criminalidade governamental. Trata-se de criminalidade estatal interna, ou seja, de uma criminalidade orientada para dentro, contra os próprios cidadãos. 13 Da mesma maneira, não corresponderia aos crimes dos agentes estatais no exercício de suas funções (Top hat crimes), na definição de Dionysios Spinellis. Estes seriam crimes praticados por indivíduos que tomassem parte em atividades políticas e ocupassem cargos públicos. Refere-se a quatro espécies de infrações penais, que diriam respeito a: violações das regras básicas da luta pelo poder e do jogo político (alta traição, crimes eleitorais e espionagem política, como no conhecido caso Watergate); violação de direitos humanos dos cidadãos (homicídios políticos, desaparecimentos e tortura, e brutalidade policial); corrupção e escândalos econômicos; ações ou omissões penalmente relevantes cometidas durante o tempo em tenha exercido o cargo. 14 De toda maneira e em que pese haver respeitáveis opiniões divergentes, aqui se adota um conceito de crimes internacionais subdividido em três espécies: em sentido estrito ou propriamente ditos; em sentido amplo ou transnacionais; e por contaminação ou difusão. Em sentido estrito, refere-se às infrações previstas no Estatuto do Tribunal Militar Internacional (Tribunal de Nuremberg), ou seja, aos crimes contra a paz, aos de guerra e aos crimes contra a humanidade e hoje no Estatuto de Roma. Estes são crimes que violam bens ou interesses jurídicos supranacionais e, como afirma Triffterer,15 geram uma responsabilidade penal imediata fundada diretamente no Direito Internacional. Em sentido amplo, além das infrações mencionadas, abrange os crimes transnacionais, 12. Ambos, Parte Geral..., cit., p. 54 e s. 13. Idem, ibidem. 14. Spinellis, Dionysios. Crimes of politicians in office (or “Top hat crimes”). In: Nouvelles études pénales. n. 12, Toulouse: Érès, 1995, p. 17-20. 15. Triffterer, Otto. Commentaire du colloque tenu a Hammamet, Tunisie, 6/8 juin 1987. In: Revue Internationale de Droit Pénal. v. 60, n. 1/2, Toulouse: Érès, 1989, p. 20. 316
Capítulo XXI | Crimes internacionais
isto é, aqueles que por suas características, extensão e consequências ultrapassam fronteiras, envolvendo, portanto mais de um Estado, estejam ou não previstos em tratados e convenções bilaterais, multilaterais ou universais.16 Num terceiro sentido, ainda mais amplo, seria aplicável à delinquência internacional por contaminação ou difusão. Denomina-se delinquência por contaminação ou difusão ao conjunto daqueles crimes, convencionais ou não, que se manifestam mais ou menos ao mesmo tempo em lugares diversos, com as mesmas características, passando de um Estado a outro, por assim dizer, epidemicamente, graças à rapidez dos meios de transporte, à instantaneidade das comunicações e à atividade dos mass media. Este último aspecto transformou o crime na notícia por excelência e, com isso, o potencializou.
21.3. Estrutura e imputação nos crimes internacionais
A
teoria do crime no Direito Penal Internacional enfrenta algumas dificuldades, sobretudo, para aqueles cuja formação provém do modelo jurídico característico da tradição romano-germânica, como é o caso brasileiro. O primeiro motivo dessa dificuldade decorre da própria irrelevância deste modelo no Direito Penal Internacional, que decorre fundamentalmente da common law anglo-saxônica e, secundariamente, do direito francês. Um outro motivo seria a própria dificuldade em um ramo do direito em que o princípio da reserva legal é analisado de maneira diversa àquele característico do Direito Penal interno. Como dito anteriormente, ao se fazer referência à ideia de uma teoria do crime no Direito Penal Internacional, deve-se levar em conta, para aquele que está habituado com o modelo de Direito Penal característico do sistema romano-germânico, como é o caso da Alemanha, da Itália, da Espanha, de Portugal e dos países da América Latina, no qual o Brasil se insere, que o Direito Penal Internacional funda-se em orientação diversa. A análise dogmática comumente utilizada decorre, em grande medida, da ciência jurídico-penal alemã, que exerce uma grande influência em ordenamentos surgidos a partir do pensamento jurídico europeu continental. Todavia, para a formação do Direito Penal Internacional, o sistema jurídico de maior relevância é o da common law, que é assentado em bases bastante diversas. Assim, Ambos informa que, até agora, a dogmática alemã não teve praticamente nenhuma influência no desenvolvimento do Direito Penal Internacional.17 Aliás, essa falta de influência decorreria não só da diferença com a common law, como também se manifesta se comparada com a relevância do direito francês, o modelo mais importante dentre aqueles encontrados na Europa continental. Uma das razões fundamentais para isso, entre outras, seria a própria facilidade linguística, pois é mais construção de uma
16. No mesmo sentido, Jaotsen, Matti; Träskman, P. O. National report. In: Revue Internationale de Droit Pénal. v. 60, n. 1/2, Toulouse: Érès, 1989, p. 291 e 303. 17. Ambos, Parte Geral, p. 59. 317
Curso de Direito Penal | Parte Geral
corrente encontrar indivíduos que falem e compreendam a língua francesa, que a alemã, por exemplo.18 Além disso, a dificuldade máxima para a construção de uma teoria do delito em sua dimensão internacional decorreria do fato de não se contar com a referência de um ordenamento jurídico-penal positivo, que é responsável por uma estrutura de direito mais harmônica. Ademais, há diferenças importantes entre o Direito Penal interno e o Direito Penal Internacional, que se manifestam em questões básicas, como, por exemplo, no caso do princípio da reserva legal. Se, na esfera interna, tal princípio é admitido e incorporado à imensa maioria das legislações contemporâneas, no Direito Penal Internacional, ainda existem dúvidas quanto à sua real significação e o seu alcance. Em realidade, no Direito Penal Internacional, existem três teorias com relação ao princípio da reserva legal, em particular, decorrente das discussões surgidas a partir das decisões proferidas pelos Tribunais de Nuremberg e de Tóquio.19 Existe um primeiro ponto de vista que entende que o direito aplicado pelos Tribunais já existia anteriormente e, por isso, defendem que o princípio da reserva legal devesse ser interpretado e adaptado à lógica do direito internacional. Bassiouni20 sustenta que o conceito de reserva legal não pode ser aplicado no mesmo sentido estreito que é percebido no direito interno. Sustenta-se, pois, que os crimes contra a paz já estariam previstos no direito internacional, como se pode perceber, por exemplo, nos Pactos de não agressão Briand-Kellog e no Ribbentrop-Molotov. Quanto aos crimes de guerra e contra a humanidade, estes já teriam sido tipificados no direito interno e, em especial, os primeiros pelas diversas Convenções de Haia e de Genebra, antes de 1945. Mais que isso, afirma-se que, embora os documentos internacionais não contivessem proibições penais 18. Além disso, Ambos menciona que o desconhecimento pelos alemães da ciência do direito existente em outros países do mundo também contribuiria. Ou seja, o isolamento alemão teria responsabilidade direta pela irrelevância do direito romano-germânico em escala internacional. Este autor conta a seguinte história, que bem ilustra essa situação: “Esta situação, questionada às escondidas há tempos, foi criticada – alguns dirão: finalmente! – em público, nas jornadas de Berlim – pioneiras desde muitos pontos de vista – ao tratar o futuro da ciência jurídico-penal de frente à mudança de século. Assim, Roxin expressou que o penalista alemão ‘com freqüência’ é o ‘responsável por desconsiderar o pensamento jurídico-penal não alemão’ convertendo o ‘transfer da ciência’ em uma ‘rua de mão única’. Entre os oradores convidados, o penalista norte-americano George Fletcher – que tem o mérito de ter propagado a dogmática jurídico-penal alemã no âmbito do direito anglo-americano – observou de modo crítico e sem rodeios a ‘autoconsciente natureza provinciana’ da dogmática alemã: ela dá muito pouco interesse às culturas jurídicas de seus hóspedes estrangeiros; as idéias, as figuras dogmáticas, os autores, a jurisprudência e as escolas filosóficas dos âmbitos jurídicos estrangeiros são amplamente ignorados, de modo que o ‘intercâmbio de ideias científicas [...] só corre em uma direção.’ O fato de que não se tenham escutado de outras bocas estrangeiras expressões similares em público, deve-se muito mais à elegante reserva decorrente da condição de convidado, que de um dissenso das teses apresentadas por Roxin e por Fletcher. De todo modo, na publicação da versão espanhola da conferência do importante penalista espanhol Francisco Muñoz Conde, encontra-se a frase crítica de que ‘a maioria dos penalistas espanhóis e sua produção científica é desconhecida quando não ignorada na Alemanha’. Esta reprovação sobre a ignorância da dogmática alemã sobre a espanhola foi omitida na versão alemã. Nesta, tão somente se pode encontrar a referência encoberta de que a influência da dogmática alemã não significaria que a espanhola não tenha ‘nenhum perfil autônomo’, circunstância que, ademais, em muitos casos, conduziria a soluções diferentes” (Ambos, Parte Geral, cit., p. 62). 19. Sobre o tema, vide Japiassú, Tribunal Penal Internacional: a internacionalização do Direito Penal, p. 143-160. 20. Bassiouni, M. Cherif. Crimes against humanity in international criminal law. 2. ed., Haia: Kluwer, 1999, p. 129-130. 318
Capítulo XXI | Crimes internacionais
explícitas e também não houvesse previsão de sanção, houve uma condenação moral e, por isso, foi necessária uma interpretação do princípio da legalidade, já que existiam razões morais e de utilidade internacional que superam o rigor técnico do princípio.21 Em sentido diverso, há uma segunda corrente que afirma a sua inaplicabilidade, visto que se trata de um direito majoritariamente consuetudinário e, considerando-se que a reserva legal pressupõe direito escrito, não poderia ser utilizado. Glaser,22 nesse ponto, reconhece que, embora o Direito Penal Internacional devesse se ajustar ao princípio da legalidade, ou seja, devesse servir de proteção contra condenações injustas, não pode produzir-se o efeito contrário, o fracasso do direito e a subtração dos culpados do julgamento.23 Já Quintano Ripollés24 afirma que o princípio da legalidade não é aplicável no âmbito internacional, e que neste particular a proteção individual se converte em proteção do Estado, o que o faz perder o ser conteúdo liberal original. Sustenta, no entanto, que a inaplicabilidade da reserva legal ao Direito Penal Internacional deverá ser sanada com o surgimento de uma codificação deste direito. Frise-se que tal assertiva ganhou contornos de realidade com o advento do Tribunal Penal Internacional e o Estatuto de Roma. Há, ainda, a posição de Kelsen,25 que reconheceu que o Acordo de Londres vulnerou o princípio da reserva legal, ao prever sanções individuais em hipóteses em que somente havia previsão de sanções coletivas. Afirmava ainda que o referido princípio é um princípio de justiça, assim como a responsabilidade penal individual, mas que representa um grau maior do que a responsabilidade coletiva, característica das sociedades coletivas. Assim, sustenta que quando há o choque de dois princípios de justiça, deve prevalecer o de maior valor, o que, nesse caso, significa o segundo. Diferentemente, Huet e Koering-Joulin26 afirmam que as cortes, formadas para julgar 21. Gil Gil. Derecho penal internacional. p. 67. 22. Glaser, Stefan. Infraction Internationale: Ses Élements Constitutifs et Ses Aspects Juridiques. Paris: Librairie Générale de Droit et de Jurisprudence, 1957. p. 41 e s. 23. No mesmo sentido, Graven, Jean. Pour la défense de la justice internationale, de la paix et de la civilisation par le droit pénal. In: Revue Internationale de Droit Pénal. v. 1, Toulouse: Érès, 1964, p. 7-37. 24. Quintano Ripollés, Antonio. Tratado de derecho penal internacional e internacional penal. tomo I, Madrid: Consejo Superior de Investigaciones Científicas, Instituto “Francisco de Vitoria”, 1955, p. 95 e s. 25. Vide Gil Gil, op. cit., p. 67-68. 26. “Le tribunal a tout à la fois reconnu qu’il y avait bien rectroactivité ert justifié cette retroactivité. Au sujet des crimes de guerre, il a consideré que le statut est déclaratif d’un droit préexistant, et non créateur d’un droit nouveau, car ‘dès avant le statut les crimes de guerre étaient prévus par les articles 46, 50 et 56 de la convention de La Haye de 1907 ... ‘. A propos des crimes contre la paix, le Trribunal a déclaré qu’il ‘faut rappeler que la maxime Nullum crimen sine lege ne limite pas la souverainetée des Etats; elle ne formule q’une règle géneralement suivie; or, il est faux de présenter comme injuste le châtiment à ceux qui, au mépris d’engagements et de traités solennels, ont, sans avertissement préalable, assailli un Etat voisin. En pareille occurrence, l’agresseur sait le caractère odieux de son action ... Les accusés connaissaient les traités signés p=ar l’Allemagne qui proscrivaient le recours à la guerre pour régler les différends; ils savaient que la guerre d’aggression est mise hors la loi par la plupart des Etats du monde, y compris par l’Allemagne elle même ... C’est pleine connaissance de cause qu’ils violaient le droit intenational’. Par ailleurs, si le tribunal a écarté la qualification de crimes contre la humanité pour les brutalités et atrocités commises avant le 1er septembre 1939, ce n’est pas au motif que le principe de non-rétroactivité interdisait de prendre en compte les actes de cette nature, mais parce que ceux-ci n’étaient pas en rapport avec un complot ou un plan concerté en vue de déclencher ou de conduire une guerre d’agression” (Huet, André;Koering-Joulin, Renée. Droit pénal international. Paris: Puf, 1994., p. 56-57). 319
Curso de Direito Penal | Parte Geral
os criminosos na Europa e no Extremo Oriente, não criavam um direito, mas apenas e tão somente aplicavam um já existente. Foram mais adiante, sustentando que o princípio do nullum crimen nulla poena sine lege expressa um princípio de justiça e que haveria mais injustiça se os delitos internacionais praticados entre 1933 e 1945 ficassem impunes. Por fim, o Tribunal Penal Internacional para a antiga Iugoslávia (ICTY), no caso Dusko Tadic27, afirmou que o princípio da reserva legal pretende proteger apenas as pessoas de serem castigadas por atos que o agente acreditava ser lícito no momento de sua prática. No caso analisado, afirmou-se que os fatos seriam delituosos segundo o direito internacional consuetudinário e eram reprovados pela própria legislação penal da antiga Iugoslávia. Espera-se, todavia, que a implantação do Tribunal Penal Internacional permanente seja responsável pela adoção de regras mais claras e concretas, pois, como se percebe, há ainda critérios de taxatividade sobre a reserva legal, que já foram claramente definidos na esfera interna, mas que ainda necessitam de maior definição e, por essa razão, com grande frequência, recorre-se a conceitos extrajurídicos para a aplicação do Direito Penal Internacional, bem como fontes jurisprudenciais, contratuais e consuetodinárias.28 Frise-se que uma consequência desse modelo não fundado em regras preestabelecidas é que o delito acabou, em diversos casos, sobretudo quando se pensa no caso do genocídio, por se assentar em aspectos materiais e não propriamente em aspectos formais. Significa dizer que o crime decorreu de um complexo natural-cultural daquela comunidade, ao invés de estar baseado em normas previamente estabelecidas. Dentro desse contexto, Kai Ambos sustenta a necessidade do estabelecimento de uma Parte Geral do Direito Penal Internacional, que decorreria do reconhecimento da dimensão individual dos comportamentos criminais na esfera internacional, além da discussão acerca de regras gerais de imputação. Pretende, assim, a construção de uma teoria do delito no Direito Penal Internacional que tenha validade universal e seja eficiente e compreensível,29 servindo a uma espécie de estabilização das regras em matéria penal, na esfera internacional. Tal pretensão de Ambos parece relevante, considerando-se que, até aqui, o estabelecimento do que, nos Códigos Penais do sistema romano-germânico, se convencionou chamar de Parte Geral, não tem sido uma preocupação central na maior parte dos documentos internacionais em matéria penal, bem como das próprias decisões dos Tribunais Internacionais. Pode-se argumentar, por exemplo, que o Estatuto de Roma, que criou o Tribunal Penal Internacional, em sua Parte 3, trata dos Princípios Gerais do Direito Penal e contém um número considerável de dispositivos característicos de uma Parte Geral, 27. Decision on the Defence Motion on Jurisdiction, Prosecutor v. Tadic, Case N o IT-94-1-T, T. Ch. II, 10 august 1995. 28. Sobre o tema, vide Quintano Ripollés. Op. cit., p. 150. 29. Ambos, Kai. A construção de uma Parte Geral do Direito Penal Internacional. In: Japiassú, Carlos Eduardo Adriano; Ambos, Kai. Tribunal Penal Internacional: possibilidades e desafios. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005, p. 7. 32 0
Capítulo XXI | Crimes internacionais
tais como a responsabilidade individual, o concurso de pessoas, a irrelevância de posição oficial (por exemplo, a posição de Chefe de Estado), a inimputabilidade por insanidade ou por imaturidade, quando menor de dezoito anos o agente, o actus reus (ação e omissão), o erro (o Estatuto admite ainda a divisão entre erro de fato e erro de direito), o estado de necessidade, a coação e a irrelevância da ordem ilegal de superior. Eser,30 todavia, menciona que tais dispositivos não estão dispostos em número e nem em forma suficientes para compor uma Parte Geral. Muito ao contrário, necessitam ser complementados por elementos externos ao Estatuto do Tribunal Penal Internacional. Já Schabas31 considera que adotar esses Princípios Gerais, de forma expressa, representou, sem dúvida, um avanço notável, na tentativa de se estabelecer um concreto Direito Penal Internacional, embora ainda apresente algumas imperfeições. Sintetiza essa ideia, ao dizer que a Parte Geral do Estatuto de Roma representa uma tentativa ambiciosa de codificar princípios gerais do Direito Penal Internacional. Pode-se esperar, por certo, que um documento produzido numa Conferência Diplomática, onde se procurava alcançar o consenso de mais de cento e cinquenta países integrantes e com múltiplas visões, tenha muitas imperfeições. Dentro desse quadro, parece imprescindível o estudo para o futuro estabelecimento da Parte Geral do Direito Penal Internacional. Para que seja possível o estabelecimento de regras relativas à teoria do crime, considerando a práxis internacional e, em especial, a jurisprudência dos Tribunais Internacionais, desde o histórico julgamento de Nuremberg até os dias atuais, com os Tribunais Penais Internacionais em funcionamento. Dessa maneira, pode-se constatar que, a partir das fontes do Direito Penal Internacional, foi construída uma estrutura de crime basicamente bipartida, fazendo referência a responsabilidade individual e suas causas de exclusão, também conhecidas como defences. Como se percebe com facilidade, distingue-se o modelo encontrado na esfera do Direito Penal Internacional do modelo comumente aceito, que faz referência a injusto e a culpabilidade.32 A estrutura do delito talvez pudesse ser sintetizada na seguinte figura esquemática: 1. Responsabilidade individual 1.1. Intervenção penal a) Autoria e participação b) Autoria mediata (domínio da organização) c) Cumplicidade (ações de colaboração) 1.2. Extensões da punibilidade a) Responsabilidade do superior hierárquico b) Tentativa c) Contribuição de algum outro modo ao ato coletivo 30. Eser, Albin. Responsabilidade Penal Individual. In: Ambos, Kai; Carvalho, Salo de. O Direito Penal no Estatuto de Roma: leituras sobre os fundamentos e a aplicabilidade do Tribunal Penal Internacional. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005, p. 100-101. 31. Schabas, op. cit., p. 190. 32. Ambos, A construção de uma Parte Geral do Direito Penal Internacional, p. 12. 321
Curso de Direito Penal | Parte Geral
1.3. Elemento subjetivo 2. Defences 2.1. Causas de exclusão da punibilidade a) Obediência hierárquica e coação b) Causa de justificação c) Erro 2.2. Outras defences A noção de responsabilidade individual diz respeito aos critérios de imputação de uma determinada conduta humana a um tipo penal de Direito Penal Internacional. Frise-se que são regras e possibilidades de imputação e não de responsabilidade no sentido de uma categoria que substituísse a culpabilidade. A responsabilidade individual tem, também, um lado subjetivo e, por certo, um duplo sentido: por um lado, na forma de um reconhecimento fundamental do princípio de culpabilidade; por outro, como expressão dos pressupostos subjetivos da responsabilidade individual. Ressalte-se que, no Direito Penal Internacional, não se diferencia claramente o dolo do fato, como parte do tipo, e a consciência da antijuridicidade, como parte da culpabilidade.33 Diga-se que a questão do elemento subjetivo, no Direito Penal Internacional, foi e continua sendo fonte de controvérsia constante. Se é verdade que o actus reus não tem apresentado maiores problemas, salvo questões relativas aos crimes comissivos por omissão, o mesmo não se pode dizer do que se convencionou chamar de elemento subjetivo. Uma das causas mais comuns para gerar dúvidas quanto ao elemento subjetivo é a diferença de concepção entre o que é definido pelo sistema common law e da tradição romano-germânica. Pode-se mencionar que não existem, por exemplo, no Estatuto de Roma, expressões que demonstrem diferentes estados de conhecimento e comportamentos concernentes à realização dos elementos objetivos do crime. Ademais, não existe uma concreta definição de dolo eventual para ser utilizada, o que gera problemas práticos, além da própria deficiência e, em alguns casos, incongruência do texto, conforme mencionado anteriormente.34 Por sua vez, com o termo defences, discute-se a exclusão da responsabilidade penal e, com isso, da punibilidade. Pode falar-se em causas de exclusão da punibilidade ou da responsabilidade ou, ainda, impedimentos materiais e processuais de punibilidade. Vale esclarecer que, na jurisprudência de Nuremberg, podem ser encontradas numerosas defences, que, todavia, perderam a importância com a evolução do Direito Penal Internacional, em especial no âmbito dos tratados internacionais.35
33. Ambos, op. cit., p. 13. 34. Sobre o tema, vide Weigend, Thomas. The harmonization of general principles of criminal law: the Statutes and jurisprudence of the ICTY, ICTR, and the ICC: an overview. In: Nouvelles études pénales, n. 19, Toulouse: Érès, 2004, p. 326. 35. Idem, ibidem. 322
título
IV
Teo r ia ger al da sanção penal
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título
IV
capítulo
teoria ger a l da sa n ção p en a l
XXII
Teoria da pena 22.1. Considerações gerais
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o gênero do qual pena e medida de segurança são as espécies existentes no ordenamento jurídico brasileiro. Pena e medida de segurança pressupõem a prática de uma conduta típica e antijurídica, variando, contudo, a incidência de uma ou outra, conforme constatada ou ausente a culpabilidade do agente. A imposição de pena, enquanto consequência jurídica do fato, legitima-se diante da culpabilidade. Sem culpabilidade ou com a responsabilidade penal diminuída, a pena cede ou pode vir a ceder para a medida de segurança. Analisa-se, a seguir, o instituto da pena estatal. Quanto à medida de segurança, vide o Capítulo XXXIII. onsidera-se sanção penal
22.2. Conceito de pena
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Capítulo I desse livro, o sistema punitivo do Estado constitui o mais rigoroso instrumento de controle social formal. A seu turno, a conduta delituosa é a mais grave forma de transgressão de normas existentes na sociedade. A incriminação de certos comportamentos destina-se a proteger determinados bens e interesses, considerados de grande valor para a vida social. Pretende-se, por meio da incriminação, da imposição da sanção e de sua efetiva execução, evitar que esses comportamentos se realizem. O sistema punitivo do Estado omo visto no
325
Curso de Direito Penal | Parte Geral
destina-se, portanto, à defesa social na forma em que essa defesa é entendida pelos que têm o poder de fazer as leis. Como já se disse, pena é a perda de um direito imposta pelo Estado em razão da prática de uma infração penal. Já as medidas de segurança são medidas terapêuticas aplicáveis aos inimputáveis e aos semi-imputáveis, no caso da prática de uma conduta que corresponda a um crime, por lhes faltar sanidade.
22.3. Princípios constitucionais e penas admitidas
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foram apreciados os princípios fundamentais do Direito Penal. Importa, neste momento, analisar os princípios que estão estabelecidos na Constituição Federal, tanto no tocante às penas admitidas como àquelas que são vedadas no ordenamento jurídico brasileiro. O primeiro deles, que está previsto no art. 5o, XLV, da CF/1988, é o princípio da personalidade da pena, que significa dizer que a pena não passará da pessoa do condenado. Cuida-se de uma conquista do Iluminismo, que cerceou o arbítrio estatal, com a limitação dos efeitos da punição ao condenado, não atingindo terceiros a ele relacionados, como seus descendentes que, no passado, sofriam, por exemplo, a “infâmia do nome”. No art. 5o, XLVI, da CF/1988, há o princípio da individualização da pena, que determina que todo indivíduo tem o direito de ter a pena a ele aplicada individualmente, consideradas todas as características e condições pessoais, além de se valorar o que efetivamente fez. Ainda que haja concurso de pessoas, não pode haver uma aplicação de sanção idêntica a todos, sob pena de violação daquele princípio. A seu turno, as penas que são admitidas no Brasil vêm tradicionalmente previstas nos sucessivos diplomas constitucionais, estando discriminadas no referido art. 5o, XLVI, da CF/1988, bem como no art. 32, do CP. Ainda que haja discrepância de redação entre o texto da Constituição e do Código Penal, as penas admitidas no ordenamento jurídico brasileiro são as seguintes: (1) privativas da liberdade; (2) restritivas de direitos; e (3) multa. Segundo o Código Penal, as primeiras se subdividem em reclusão e detenção (art. 33, do CP). A pena de multa adota o sistema dos dias-multa (art. 49, do CP). As penas restritivas de direitos, após a alteração promovida pela Lei no 9.714/1998, são: (1) prestação pecuniária; (2) perda de bens e valores; (3) prestação de serviços à comunidade ou a entidades públicas; (4) interdição temporária de direitos; e (5) limitação de fim de semana. A pena de interdição temporária de direitos se subdivide em quatro modalidades: (a) proibição do exercício de cargo, função ou atividade pública, bem como de mandato eletivo; (b) proibição do exercício de profissão, atividade ou ofício que dependam de habilitação especial, de licença ou autorização do poder público; (c) suspensão de autorização ou de habilitação para dirigir veículo; e (d) proibição de frequentar determinados lugares.1 o Capítulo V,
1. A Lei das Contravenções Penais prevê as seguintes penas: 1o prisão simples e 2o multa (art. 5 o da LCP). O Código Penal 326
Capítulo XXII | Teoria da pena
22.4. Penas proibidas
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que o rol constitucional de penas admitidas é apenas exemplificativo e as hipóteses indicadas se mostram bastante amplas. Deixa-se, portanto, ao legislador uma boa margem de discricionariedade para introdução de novas espécies ou mesmo reformulação das já existentes. Cite-se, por exemplo, a pena de advertência sobre os efeitos das drogas, prevista no art. 28, I, da Lei no 11.343/2006, que não se amolda a nenhuma das anteriormente apresentadas. Dessa maneira, tem-se que a eficácia constitucional no âmbito punitivo não está exatamente naquilo que inscreve, mas, sim, no que proscreve. Sendo assim, mais importante do que o inciso XLVI, parece ser o inciso XLVII, no mesmo art. 5o, da CF/1988, que proíbe as seguintes penas: (1) de morte, salvo em caso de guerra externa declarada; (2) de caráter perpétuo; (3) de trabalhos forçados; (4) de banimento; e (5) penas cruéis. Conforme se observa, as penas proibidas se relacionam com a adoção de conceitos oriundos do período humanizador, em particular pela crítica que se iniciou com a obra de Beccaria e pelo pensamento liberal que se formou em reação às práticas punitivas do Antigo Regime. propósito, importa considerar
A) Penas de trabalho forçado, de banimento e cruéis
A pena de trabalhos forçados, existente no passado, pressupunha o emprego de coação física ou moral para que o apenado realizasse as tarefas que lhes eram impostas. Em geral, aplicavam-se torturas e açoites contra o condenado. Atualmente, o trabalho é um direito e um dever do condenado, e deve ser necessariamente remunerado. A Lei de Execução Penal estabelece, em seu art. 28, que o trabalho, como dever social e condição de dignidade humana, terá finalidade educativa e produtiva. Já a pena de banimento, prevista no Código Criminal de 1830, consistia na perda definitiva dos direitos da cidadania brasileira. Como consequência, o banido ficava impedido de morar no território nacional e, se aqui retornasse, seria condenado à prisão perpétua (art. 50, do CC/1830). O banimento foi previsto também no Código Penal de 1890, em seu art. 43, “b”, aplicável aos líderes do crime de tentativa de mudança, por meios violentos, da Constituição ou da forma estabelecida de governo (art. 107, do CP/1890). As Constituições de 1891 (art. 72, § 20), de 1934 (art. 113, § 29), de 1946 (art. 141, § 31) e a de 1967 (art. 150, § 11) proibiram o banimento, mas a Carta outorgada em 1937 permitia, em estado de emergência, o desterro para outros pontos do território nacional ou residência forçada (art. 122, § 2o). Durante os governos militares, o Ato Institucional no 14/1969 previu o banimento nos casos de guerra externa psicológica adversa ou revolucionária ou subversiva, e a Militar adota as seguintes penas: 1o morte; 2o reclusão; 3 o detenção; 4 o prisão; 5 o impedimento; 6 o suspensão do exercício do posto, graduação, cargo ou função; e 7o reforma (art. 55 do CPM). 327
Curso de Direito Penal | Parte Geral
Emenda Constitucional no 1/1969 – na verdade, uma “nova” Constituição – a manteve, em seu art. 153, § 11. Tais medidas somente foram revogadas com a redemocratização do País e o advento da Emenda Constitucional no 11/1978. De toda sorte, com a ordem constitucional vigente, consolidou-se a ideia de que a pena de banimento é inadmissível. Com relação à pena cruel, igualmente verdade, consiste na aplicação de açoites, da marca, de ferros, os tormentos, a execração, a maldição e o abandono do condenado. Ou seja, eram penas existentes no passado, quando preponderava a ideologia de que a pena deveria atingir o corpo e o espírito do condenado.2 Na atualidade, tem-se considerado cruéis as penas que causam especial sofrimento, desproporcionais em relação à infração praticada. Ademais, o respeito a princípios como o da humanização do magistério punitivo faz com que tais modalidades de sanção não sejam mais admitidas. A vedação constitucional das penas de trabalhos forçados, banimento e cruéis não suscitam maiores controvérsias. O mesmo não pode ser dito com relação às penas de morte e caráter perpétuo, por envolver considerações mais complexas. B) Pena de morte
Como visto no Capítulo III, existe pena de morte desde a Antiguidade, e sua origem, possivelmente, se relaciona com os sacrifícios humanos. Em Valladolid, na Espanha, há pintura pré-histórica em caverna que mostra uma execução.3 No Direito Penal da Antiguidade há a previsão, no Código de Hammurabi, da lex talionis. Na Idade Antiga, a pena de morte foi frequentemente utilizada, o que pode ser demonstrada por execuções muito conhecidas, como a de Sócrates e a de Jesus Cristo. A pena capital seguiu sendo utilizada na Idade Média e na Idade Moderna, com grande crueldade.4 Mesmo grandes pensadores defenderam, sob certas circunstâncias, a aplicação de tal sanção, como Grotius, Hobbes, Locke, Rousseau e Diderot.5 Mas a pena de morte também teve seus opositores. Pode-se dizer que o movimento abolicionista da pena de morte teve início com Beccaria, quando da publicação do já mencionado Dos delitos e das penas.6 Tal obra influenciou autores como Voltaire e Bentham, bem como legisladores que, a partir do século XVIII, passaram a restrigir o rol de crimes passíveis dessa modalidade punitiva. No século XIX, intensificou-se a ideologia abolicionista, abraçada em lugares como Michigan, em 1846, e Venezuela e Portugal, em 1867. Sobre o assunto, merece destaque a luta abolicionista na Itália. Como lecionado por Ítalo Mereu, a Toscana foi o primeiro Estado a aboli-la, enquanto os demais a aplicavam 2. Sobre o assunto: Foucault, Michel. Vigiar e punir: história da violência nas prisões. 29. ed., Petrópolis: Vozes, 2004. 3. Schabas, William A. The abolition of the death penalty in international Law. 3 th ed., Cambridge: Cambridge University Press, 2002, p. 3. 4. Foucault, Michel. Op. cit., passim. 5. Schabas, William A. Op. cit., p. 6. 6. Sobre a importância de Beccaria, vide o Cap. III. 328
Capítulo XXII | Teoria da pena
para diversos delitos.7 Sendo assim, por ocasião da unificação das leis penais, a Itália viveu um impasse: ou a Toscana regredia, passando a admitir a pena capital, ou o restante da Península é que dava um passo à frente, abolindo-a. A questão consumiu anos de discussão, com livros, revistas e artigos doutrinários, naquilo que se denominou de a “grande batalha científica e de civilização”, acarretando um atraso de trinta anos até se chegar ao Código Penal italiano de 1890, e evidenciou – segundo Ítalo Mereu – a ideologia dos catedráticos de Direito Penal favoráveis ou contrários à pena de morte, bem como aqueles cujas “opiniões jurídicas” variavam conforme as conveniências políticas e a vontade dos detentores do poder.8 Após a Segunda Guerra Mundial, documentos internacionais passaram a disciplinar a matéria, até então afeta ao direito interno de cada país, defendendo o direito à vida e proscrevendo a pena de morte. Entre eles, podem servir como exemplos os seguintes: (1) a Declaração Universal dos Direitos Humanos; (2) a Declaração Americana de Direitos e Deveres do Homem; (3) o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos; (4) a Convenção Europeia de Direitos Humanos; e (5) a Convenção Americana de Direitos Humanos. Atualmente, cerca de uma centena de países aboliu a pena de morte de seus ordenamentos jurídicos ou, embora mantenham formalmente, não a aplicam mais aos casos concretos. No entanto, muitos outros ainda a mantêm e executam cotidianamente, mas prepondera o movimento internacional por sua abolição em todo o mundo.9 No Brasil – como visto no Capítulo IV –, a pena capital foi largamente empregada ao tempo da Colônia. As Ordenações Filipinas, em seu Livro V, previam a pena capital em mais de 70 casos, pelas mais diversas hipóteses, como as infrações de lesa-majestade, moeda falsa, sodomia, estupro, adultério, bigamia e homicídio. Também tabeliães que lavrassem escrituras falsas, falsificadores de mercadorias, ladrões arrombadores, autores de roubos seriam submetidos a tal sanção.10 Com a Constituição de 1824, expressamente aboliram-se as penas cruéis. A lei de 11 de setembro de 1826, em seu art. 1o, determinou que a sentença proferida em qualquer parte do Império, que impusesse pena de morte, não seria executada sem primeiramente
7. Cf. o Édito de 1859: “O Governo Provisório Toscano: Considerando que foi a Toscana a primeira a abolir a pena de morte; Considerando que, se essa pena foi restabelecida em seguida, o foi somente quando as paixões políticas prevaleceram sobre a maturidade dos tempos e o abrandamento dos ânimos; Considerando, porém, que embora restabelecida, nunca foi aplicada porque entre nós a civilidade sempre foi mais forte que o Machado do Carrasco; Decretou e decreta: ‘Artigo único: A pena de morte está abolida.’ Dado em Florença, em 30 de abril de 1859.” 8. Mereu, Ítalo. A morte como pena. Trad. Cristina Sarteschi. S. Paulo: Martins Fontes, 2005, passim. Como dito por Francesco Carnelluti, quando da reintrodução da pena capital, no auge do Facismo, em 1931: a pena de morte não passa de uma “desapropriação por utilidade pública”. Segundo Ítalo Mereu, esta frase foi o ápice do “tecnicismo jurídico” e também da degradação civil. (Idem, p. 199). 9. Bourdon, William. La Cour pénale internationale. Paris: Éditions du Seuil, 2000, p. 222. Sobre o tema, vide Arroyo Zapatero, Luis; Biglino, Paloma; Schabas, William. Hacia la abolición universal de la pena capital. Valencia: Tirant lo Blanch, 2010. 10. Cf. a conhecida anedota, diz-se que um estrangeiro, ao saber da quantidade de crimes passíveis de pena de morte nas Ordenações Filipinas, teria perguntado ao embaixador de Portugal se ainda havia alguém vivo naquele Reino. 329
Curso de Direito Penal | Parte Geral
subir à presença do Imperador, para perdoar ou moderar a pena (art. 101, §§ 8o e 9o, da CI/1824).11 A despeito da Carta de 1824, o Código Criminal do Império manteve a pena de morte, prevendo-a na forca, exclusivamente para os crimes de insurreição de escravos, homicídio qualificado e latrocínio. Portanto, das 70 hipóteses da legislação anterior, o CC/1830 reduziu para três. Em que pese ser prevista no Código de 1830, a pena de morte foi gradativamente deixando de ser executada ao longo do Segundo Império. Contribuiu para a sua abolição, na prática, o famoso erro judiciário de 1855, que levou à forca o fazendeiro Manuel Motta Coqueiro, em Macaé (Rio de Janeiro). Coqueiro fora acusado de ter matado, com o auxílio dos escravos Faustino e Florentino, em 1852, em sua fazenda na localidade de Conceição de Macabu, o colono Francisco Benedito e toda a sua família, de quem teria se vingado em razão de uma suposta oposição à sua relação amorosa com uma das filhas do colono. Submetido ao Tribunal do Júri, Motta Coqueiro – denominado, pelo povo, de “Fera de Macabú” –, foi condenado, em dois julgamentos, por unanimidade, à forca, não obstante seus reiterados e veementes protestos de inocência. Houve mais um recurso de revista, interposto por Motta Coqueiro ao Supremo Tribunal de Justiça, também denegado por acórdão de 12/05/1854. Já em fevereiro de 1854, todos os sentenciados endereçaram petições de graça ao Imperador. Porém, o pedido de indulto de Motta Coqueiro foi denegado e, em agosto de 1855, ele foi executado.12 Posteriormente, descobriu-se o erro judiciário cometido e, a partir daí, D. Pedro II, usando de seu Poder Moderador, passou a comutar, sistematicamente, a pena capital na de galés (trabalhos forçados por toda a vida), apegando-se, para tanto, a qualquer circunstância favorável ao condenado, ainda que sem maior comprovação. D. Pedro II, inspirado pela obra do escritor Victor Hugo, deferiu todas as petições de graça que recebeu, beneficiando homens livres e libertos e, a partir da década de 1860, estendeu esse favor aos escravos, mesmo quando acusados de crimes graves.13 O Código Penal de 1890 não previu, no rol de sanções, a pena capital, opção político-jurídica que foi confirmada pela Constituição Federal de 1891, em seu art. 72. O Estado Novo, decretado por Getúlio Vargas, tentou reintroduzi-la, incluindo, no art. 122, XIII, da CF/1937, disposição autorizativa da sua aplicação a certos crimes de natureza política e ao homicídio cometido por motivo fútil e com extremos de perversidade. Nesse passo, o Decreto-lei no 86/1938 outorgou competência ao Tribunal de Segurança Nacional para fixação da pena de morte, que, todavia, não foi incluída em 11. Shecaira, Sérgio Salomão. Pena de muerte. In: Arroyo Zapatero, Luis; Biglino, Paloma; Schabas, William. Hacia la abolición universal de la pena capital. Valencia: Tirant lo Blanch, 2010, p. 216. 12. Shecaira, Sérgio Salomão. Pena de muerte, cit., p. 217. 13. Dotti, rené Ariel. Rituais e martírios da pena de norte. In: Revista Brasileira de Ciências Criminais, n. 26, São Paulo: RT, 1999, p. 274. No Brasil, a última execução de se tem notícia foi a de um escravo chamado Francisco, residente na cidade de Pilar, em Alagoas, que, em 1876, foi enforcado. A partir daí e até o fim do Império, a pena de morte só existiu na lei (cf. Shecaira, Sérgio Salomão. Pena de muerte, cit., p. 217). 33 0
Capítulo XXII | Teoria da pena
nenhuma lei penal, com exceção para infrações penais ao tempo da Segunda Guerra Mundial, inclusive retroativamente. Já o Regime Militar de 1964, reintroduziu a pena de morte para os crimes políticos, alterando a CF/1967 (art. 150, § 11), por meio do Ato Institucional no 14/1969, e do Decreto-lei no 898/1969, sem nunca ter sido concretizada definitivamente. É certo, porém, que chegou a haver a condenação à pena de morte, pela Justiça Militar, de um jovem militante do Partido Comunista Brasileiro Revolucionário (PCBR), pelo homicídio, em 1970, em Salvador, de um sargento da Aeronáutica. Como dito, tal sanção nunca chegou a ser executada, tendo o condenado se exilado no exterior, somente retornando ao Brasil após 1985.14 A Emenda Constitucional no 11/1978, revogando os atos institucionais, revogou, igualmente, a pena de morte para os crimes políticos, mantendo-a apenas para a legislação penal militar, aplicável em casos de guerra declarada. A Constituição de 1988, como já dito, manteve tal disposição. Sobre a pena capital cumpre, ainda, arrolar os argumentos contrários a sua existência. Em geral, duas são as razões para a sua proscrição. Em primeiro lugar, tem-se que o Direito Penal não pode admitir uma modalidade de sanção que seja irreversível, pois o erro judiciário é um dado da realidade, não podendo ser desconsiderado. Ademais, não há comprovação empírica a respeito da suposta eficácia preventivo-geral da intimidação que eventual cominação de pena de morte acarretaria. Não há, efetivamente, demonstração fática ou estatística acerca da sua efetividade dissuasória. Em razão disso – e pelo princípio da humanização da pena – é insustentável qualquer tese favorável à pena de morte. C) Pena de caráter perpétuo
Quanto a pena de caráter perpétuo, ela não é admitida por dois motivos fundamentais. Primeiramente, a prisão para toda a vida antagoniza-se com o princípio da reinserção social do condenado e, portanto, viola frontalmente o postulado do cumprimento progressivo da pena. Em segundo lugar, tem-se que a duração da pena guarda relação com a culpabilidade do agente e, tal sanção, significaria uma absolutização do juízo de culpabilidade, inaceitável no Estado Democrático de Direito.15 Todavia, interessante questão surgiu com o advento do Estatuto de Roma, que instituiu o Tribunal Penal Internacional e foi incorporado à legislação brasileira pelo Decreto no 4.388/2002.16 Segundo o Estatuto do TPI, a pena de prisão perpétua é cominada aos crimes de sua competência, quando sua extrema gravidade e as circunstâncias individuais do condenado justifiquem a sua imposição (art. 77, 1, “b”). Afirma-se que a sua inclusão, no 14. Shecaira, Sérgio Salomão. Pena de muerte, cit., p. 218. 15. Sobre a questão do tempo de duração das medidas de segurança e a vedação de sanções de caráter perpétuo, vide o Capítulo XXXIII. 16. Sobre o assunto: Japiassú, Carlos Eduardo Adriano. O Tribunal Penal Internacional: a internacionalização do direito penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004, p. 202-209. 331
Curso de Direito Penal | Parte Geral
texto final daquele Estatuto, teve por objetivo alcançar um “consenso possível” entre as delegações participantes da Convenção que elaborou o TPI, alcançando-se um “meio-termo” entre duas posições extremadas na Conferência de Plenipotenciários: pena de morte vs. pena máxima de trinta anos. Cuidou-se, assim, de uma escolha que não agradou, mas também não desagradou completamente os dois extremos.17 Ocorre, porém, como visto anteriormente, que a Constituição Federal proscreve a prisão perpétua. Instaurou-se, assim, a controvérsia sobre a constitucionalidade da adoção, via Estatuto do TPI, desta modalidade punitiva, mesmo para os casos da competência daquele Tribunal. Alguns autores, como Cezar Roberto Bitencourt, consideram que a pena de prisão perpétua não pode ser instituída no Brasil, seja por tratado internacional, seja por emenda constitucional, uma vez que as garantias do art. 5o, da CF/1988, configuram cláusulas pétreas.18 Haveria, portanto, incompatibilidade entre o Estatuto de Roma (promulgado pelo Decreto no 4.388/2002) e a Constituição Federal. Contudo, apesar da existência de opiniões no sentido de que o Estatuto do TPI não deveria ser ratificado pelo Brasil, prevaleceu o entendimento de que o suposto conflito entre o texto do Estatuto de Roma e a Constituição brasileira era apenas aparente, tornando possível a sua vigência no ordenamento jurídico brasileiro sem qualquer necessidade de reforma constitucional. Alguns argumentos embasaram esta posição. O primeiro deles – e talvez o de maior peso – foi o de que o elenco de direitos e garantias, contidos na Carta Constitucional de 1988, vigora nas relações entre o Estado e o indivíduo em seu território.19 Sendo assim, a disposição que veda a pena de prisão perpétua (art. 5o, XLVII, “b”, da CF/1988) encontra-se direcionada ao legislador interno, tendo em vista os crimes domésticos, não cabendo restrições aos legisladores do Direito Internacional e, por essa razão, não pode ser extensível aos crimes da competência do Tribunal Penal Internacional.20 Sob outra vertente, tem-se que a própria Constituição Federal de 1988 estabelece, no seu art. 1o, III, como um dos fundamentos da República, a “dignidade da pessoa humana”. Na mesma esteira, o texto constitucional, no seu art. 4 o, II, dispõe que a República Federativa Brasileira reger-se-á, nas suas relações internacionais, pela prevalência do direitos humanos. Há, ainda, no Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT), a norma do art. 7o, de acordo com a qual o Brasil “propugnará 17. Cf. Souza, Artur de Brito Gueiros. O Tribunal Penal Internacional e a proteção aos direitos humanos: uma análise do Estatuto de Roma à luz dos princípios do direito internacional da pessoa humana. In: Boletim Científico da Escola Superior do Ministério Público da União. n. 12, Brasília: ESMPU, 2004, p. 25. 18. Bitencourt, Cezar Roberto. Tribunal Penal Internacional – prisão perpétua: inconstitucionalidade. Revista Jurídica. Porto Alegre, v. 297, jul./2002, p. 65. 19. Steiner, Sylvia Helena de Figueiredo. O Tribunal Penal Internacional, a pena de prisão perpétua e a Constituição Brasileira. In: Escritos em homenagem a Alberto Silva Franco. São Paulo: RT, 2003, p. 453. Segundo a autora, as normas de Direito Penal da Constituição regulam o sistema punitivo interno e, por isso, dão a exata medida do que o constituinte vê como justa retribuição. Assim, não há como se projetar para outros sistemas penais com os quais o país se vincule por força de compromissos internacionais (Idem, p. 454). 20. Medeiros, Antônio Cláudio Cachapuz de. O Tribunal Penal Internacional e a Constituição Brasileira. Disponível em: . Acesso em 28/06/2008. 332
Capítulo XXII | Teoria da pena
pela criação de um Tribunal Internacional de Direitos Humanos”. Sendo assim, considerando que os objetivos do TPI traduzem a prevalência da proteção de tais direitos, afirma-se sua convergência com a Constituição de 1988. Um terceiro argumento a favor da compatibilidade da previsão da pena perpétua no Estatuto do TPI e a Constituição Federal reside na constatação de que, no próprio ordenamento jurídico brasileiro, há a previsão da pena de morte, para o caso de guerra externa declarada, conforme cominado no Código Penal Militar. Sendo assim, por não haver restrição na cominação da pena capital para conflitos bélicos internacionais, pode-se concluir que a vedação das penas capitais e perpétua cuida-se de opção imposta ao legislador interno, sem interferência nos crimes internacionais sob a jurisdição do Tribunal Penal Internacional.21 Cabe, ainda, destacar que, a despeito da previsão da pena de prisão perpétua pelo Estatuto do TPI, sua ratificação pelo Brasil não implicou na admissão desta modalidade punitiva pelo ordenamento jurídico interno. Isso porque, consoante o art. 80, do Estatuto do TPI, as penas nele cominadas não interferem nas penas previstas nos respectivos direitos internos, ou a aplicação da legislação de Estados que não preveja as penas referidas no Estatuto. Destarte, não é necessária a adoção interna da pena de prisão perpétua para o Brasil se adequar ao Estatuto de Roma. Por fim, com a Emenda Constitucional 45/2004, houve a introdução do § 4o, ao art. 5o, da CF/1988, dispondo que o Brasil se submete à jurisdição de Tribunal Penal Internacional a cuja criação tenha manifestado adesão. Após essa inovação constitucional, tem-se que a controvérsia sobre a compatibilidade das sanções cominadas no TPI com o ordenamento jurídico brasileiro, particularmente no que tange à pena de prisão perpétua, perdeu fôlego entre os nossos doutrinadores.
21. Cf. Steiner, Sylvia Helena de Figueiredo. Op. cit., p. 457. 333
título
IV
capítulo
teoria ger a l da sa n ção p en a l
XXIII
PENAS PRIVATIVAS DE LIBERDADE 23.1. Considerações gerais
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longo dessa obra, o Direito Penal é um dos mecanismos existentes na sociedade para controle de comportamentos individuais. Ele se constitui em controle social formal, a ser utilizado quando as demais modalidades de controle falharem em seus propósitos. Diante disso, é elementar que exista, no sistema penal, uma modalidade mais gravosa do que as demais. Efetivamente, no ordenamento jurídico brasileiro, como em muitos outros, a pena de prisão figura como esse último instrumento punitivo (extrema ratio). Como visto a seguir, há no Brasil três modalidades punitivas de prisão: reclusão, detenção e prisão simples. onforme apresentado ao
23.2. Origens da pena de prisão
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disse, a prisão como pena é de aparecimento tardio na história do Direito Penal. Como visto, na Idade Antiga, o encarceramento fazia-se em poços, nas masmorras, em mosteiros e castelos, como etapa preliminar da aplicação de penas corporais, notadamente a de morte, ou como fruto do arbítrio dos príncipes. As Ordenações do Reino de Portugal, que vigeram no Brasil, na parte criminal, até 1830, não previam a pena de prisão.
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omo já se
Capítulo XXIII | Penas privativas de liberdade
Com o crescimento das cidades, surgem, na Idade Média, casas de trabalho e casas de correção, destinadas a mendigos e vagabundos. Na Inglaterra, em 1552, num Castelo abandonado em Bridewell, surge, por iniciativa dos protestantes, um local para alojamentos, que desde 1575 passou a denominar-se House of Correction. Em 1576, determinou-se por lei que em todos os condados deveria haver um estabelecimento dessa natureza. Em Amsterdã, em 1595, foi construída uma Casa de Correção que se destinava a vagabundos, desordeiros, ladrões e crianças abandonadas. Em 1596 um estabelecimento similar foi construído para mulheres. Em seguida, iniciativas semelhantes surgiram em várias outras cidades. A França construiu sua primeira instituição para vagabundos e mendigos em 1656. Em 1703, o Papa Clemente XI construiu em Roma o Hospício de São Miguel, destinado também a menores incorrigíveis. A pena de prisão se difundiu no século XVIII quando desapareceu o corpo como alvo principal da repressão penal e passou-se a controlar e a dominar a alma, por meio da disciplina e da correção. Em 1790, sob influência dos Quakers, construiu-se na Filadélfia a prisão de Walnut, cujo regime se baseava na segregação e no silêncio. Os condenados eram submetidos a um período inicial de isolamento, que subsistia durante todo o cumprimento da pena, para os autores de crimes graves. Os autores de crimes sem gravidade podiam trabalhar em comum durante o dia, em silêncio. O sistema do completo isolamento (solitary system) foi introduzido nas prisões de Pittsburgh (Western Penitenciary) e Cherry Hill (Eastern Penitenciary) construídas em 1818 e 1829. A esse sistema se apôs o de Auburn, adotado na prisão construída em 1829 na cidade deste nome, no Estado de Nova Iorque. O sistema de Auburn permitia o trabalho em comum durante o dia, em completo silêncio, ficando conhecido como silent system. Mais importante foi o sistema irlandês ou progressivo, introduzido pelo capitão Alexandre Maconochie e Sir Walter Crofton. Maconochie, em 1838, criou um sistema de marcas ou pontos (mark system), por meio do qual a situação do preso fosse gradativamente melhorando, de acordo com o trabalho por ele realizado. Propôs que a duração da condenação fosse medida não por tempo determinado, mas sim por certa quantidade de trabalho a ser realizada, de modo a colocar a sorte do condenado em suas próprias mãos. Maconochie não pôde implementar o seu sistema, devido à legislação da época. Coube a Sir Walker Crofton, nomeado em 1854 diretor de prisões na Irlanda, pôr em prática um sistema na linha do que foi sugerido por Maconochie. Daí o nome sistema irlandês. Esse sistema começava com um estágio de nove meses de isolamento celular. Um segundo estágio era de obras públicas, no qual se aplicava um critério de marcas ou de pontos, pelo qual o condenado progredia por meio de cinco classes, podendo acelerar a passagem de uma a outra pelo bom comportamento e pela dedicação ao trabalho. Um terceiro estágio era uma espécie de teste para a liberação. Nele o preso trabalhava sem supervisão e sem vigilância, sem o emprego de medidas disciplinares, mas podendo voltar a etapas anteriores. Finalmente, um quarto estágio era o do livramento condicional (ticket of leave), que poderia ser revogado se não houvesse bom comportamento. 335
Curso de Direito Penal | Parte Geral
O ideal da prisão era, assim, a vigilância e controle total sobre a pessoa do preso, como, aliás, propôs Bentham com o seu panóptico (Capítulo III). A prisão se tornou a principal referência do sistema penal brasileiro. Mais que isso, pode-se dizer que a pena privativa da liberdade e a prisão em geral passaram a simbolizar a ideia de punição no Brasil. Atualmente, de acordo com o Departamento Penitenciário Nacional (Depen),1 os dados consolidados quanto à população carcerária, números relativos a dezembro de 2010, são de 496.251 presos, sendo 445.705 no sistema penitenciário e 50.546 detentos em outros estabelecimentos. Frise-se que um dos problemas mais graves do atual sistema penitenciário brasileiro consiste na superpopulação carcerária, pois há apenas 298.275 vagas, o que gera toda sorte de dificuldades às condições no cárcere. Neste contexto, alguns aspectos precisam ser realçados. O primeiro diz respeito ao constante aumento do encarceramento no País. Apenas entre dezembro de 2007 e dezembro de 2010, o contingente prisional passou de 422.590 para os mencionados 496.251 presos. Outro ponto diz respeito ao fato de que o Estado brasileiro tem feito um esforço muito grande de construção de estabelecimentos penitenciários. É por esta razão que, em 2003, havia 211.255 vagas nos estabelecimentos penitenciários brasileiros e, em 2010, 298.275 vagas. Ao mesmo tempo, a taxa de encarceramento aumentou muito. Em 1995, havia 95,5 presos por 100 mil habitantes. Em 2003, 181,6 presos por 100 mil habitantes e, em 2010, 259,17 presos por 100 mil habitantes. Significa dizer que, embora o Brasil esteja construindo mais vagas do as que existem na maior parte dos países do mundo, isto não tem tido um impacto importante na superlotação carcerária, visto que as taxas de encarceramento seguem muito elevadas. Neste contexto de superpopulação carcerária, as condições dos presos são, em geral, muito ruins e o respeito às regras penitenciárias é muito difícil. A violência interna se tornou muito comum. Outro problema é a importância dos presos cautelares nesses números. A prisão cautelar representa mais de um 1/3 do total das pessoas presas no Brasil. Em dezembro de 2010, havia 164.683 presos cautelares. Além disso, existe uma grande concentração no estado de São Paulo, no qual existiam, em dezembro de 2010, 170.916 presos, com apenas 98.995 vagas. Desse total, outro dado a ser observado é que, desse total, 86.956 se encontravam em regime fechado, e havia 54.388 presos provisórios, para os quais não havia ainda condenação penal. Um dado que chama a atenção contemporaneamente é que, nos últimos anos, houve uma mudança estatística importante no sistema penal brasileiro: o número de pessoas submetidas a penas e medidas alternativas ultrapassou o número de pessoas presas. Em 2009, havia, no Brasil, 544.795 pessoas2 submetidas a penas restritivas de direitos, 1. Dados obtidos em: , com acesso no dia 24/05/2011. 2. Dados obtidos em:
Capítulo XXIII | Penas privativas de liberdade
quase 100 mil a mais que presos, incluindo condenados ou presos cautelares. Se é certo que a pena privativa da liberdade continua sendo o paradigma fundamental, também pode ser dito que há uma mudança em curso, que ainda não modificou profundamente o sistema, mas não pode passar despercebida. O que se pode concluir é que, com os números anteriormente apresentados, o País estaria se tornando um verdadeiro Estado penal, isto é, portador da quarta maior população carcerária do planeta – somente inferior à de Estados Unidos, de China e de Rússia –, o que é extremamente preocupante.3
23.3. Espécies de pena de prisão
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prisão-pena significa a legítima privação do direito de liberdade do condenado. O ordenamento jurídico brasileiro prevê três espécies dessa forma de punição: reclusão, detenção e prisão simples. A propósito, o art. 1o, do Decreto-lei no 3.914/1941 (Lei de Introdução ao Código Penal) estabelece que as penas de reclusão e de detenção são destinadas para crimes ou delitos, de forma isolada, alternativa ou cumulativamente com a pena de multa. A prisão simples, por sua vez, é cominada para as contravenções penais, também isolada, alternativa ou cumulativamente com a sanção pecuniária. Deixando de lado a prisão simples, as duas principais penas privativas de liberdade (reclusão e detenção) diferenciam-se tanto por razões jurídicas, como práticas. Empiricamente, percebe-se que a reclusão é pena mais severa, sendo destinada às infrações penais consideradas mais graves. A despeito disso, critica-se, na atualidade, a relevância de se manter esse status mais rigoroso para a reclusão, pois a privação da liberdade, em termos práticos, é fenômeno único. A prisão, em si, é a pena, e a disjuntiva “reclusão-detenção” acaba significando uma pena dentro da pena. Apesar dessas considerações de ordem prática, sob o aspecto estritamente jurídico, observa-se que o art. 33, do CP, assinala que a reclusão é a pena cujo cumprimento pode ser iniciado em qualquer um dos três regimes prisionais: fechado, semiaberto ou aberto. A pena de detenção, por sua vez, pressupõe que o início do seu cumprimento se dê no regime semiaberto ou aberto. Não há, a princípio, previsão de regime fechado para a pena de detenção. Entretanto, essa distinção perde um pouco a sua força, pois o próprio art. 33, in fine, prevê a possibilidade de transferência para o regime fechado, uma vez iniciado o cumprimento da pena de detenção. Existem outras diferenças jurídicas marcantes entre estas duas espécies de privação da liberdade. Merece destaque, no particular, que as medidas de segurança têm um paralelo com aquelas penas. Ou seja, os delitos apenados com reclusão determinam a imposição, no caso de inimputável ou semirresponsável, da internação em hospital de onforme adiantado, a
htm>, com acesso no dia 24/05/2011. 3. Dados obtidos em: , com acesso no dia 24/05/2011. 337
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tratamento e custódia. Para as infrações apenadas com detenção, em regra, a medida de segurança será cumprida em liberdade, ou seja, tratamento ambulatorial (arts. 96 e 97, do CP). 23.3.1. Estabelecimentos penais
De acordo com o art. 82, da LEP, os estabelecimentos penais destinam-se ao condenado, ao submetido à medida de segurança, ao preso provisório e ao egresso. Há ressalvas quanto a determinados casos especiais, como o da mulher e do idoso, bem como acerca da estrutura do estabelecimento, como previsto no art. 83 da mesma Lei. Há diferenças quanto aos estabelecimentos no que concerne ao tipo de pena imposta.4 A) Penitenciária
Cuida-se de estabelecimento destinado aos condenados à pena de reclusão, em regime fechado. Os arts. 87 e 88, da LEP, estabelecem que o condenado deverá ser alojado em cela individual, com área mínima de 6,00 m² (seis metros quadrados), que conterá dormitório, aparelho sanitário e lavatório, além de salubridade do ambiente, pela concorrência dos fatores de aeração, insolação e condicionamento térmico adequado à existência humana. B) Colônia agrícola, industrial ou similar
Trata-se de estabelecimento penal destinado a abrigar pessoas presas que cumprem pena em regime semiaberto (art. 33, § 1o, “b”, do CP, e art. 91, da LEP). Tem um menor aparato de segurança e admite a possibilidade de alojar apenados em alojamentos coletivos. C) Casa de albergado
Esta espécie de estabelecimento penal é destinada a abrigar pessoas presas que cumprem pena privativa de liberdade em regime aberto, ou pena de limitação de fins de semana. O prédio deve estar situado no centro das cidades, não apresenta obstáculos à fuga e contém espaço físico adequado para palestras e cursos (arts. 93 a 95, da LEP). D) Cadeia pública
A cadeia pública, que existe desde o Brasil Colônia, destina-se, na atualidade, ao recolhimento de pessoas presas em caráter provisório, sempre de segurança máxima (art. 102, da LEP). E) Centro de observação
Trata-se de estabelecimento onde devem ser realizados os exames gerais e criminológicos, cujos resultados serão encaminhados às Comissões Técnicas de Classificação 4. Cf. Dotti, René Ariel. Curso de Direito Penal. Parte Geral. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004, p. 573-576. 338
Capítulo XXIII | Penas privativas de liberdade
(art. 8o, da LEP), as quais indicarão o tipo de estabelecimento e o tratamento adequado para cada pessoa presa. F) Hospital de custódia e tratamento psiquiátrico
Conforme exposto no Capítulo XXXIII, o hospital de custódia e tratamento destina-se a abrigar pessoas submetidas à medida de segurança de internação (art. 99, da LEP).
23.4. Regime prisional
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dito anteriormente, constata-se a importância do regime prisional para o cumprimento das penas privativas de liberdade. Por regime prisional deve-se entender a forma por intermédio da qual se dará o cumprimento da pena imposta na sentença condenatória. Significa, em suma, a disciplina legal a ser observada na fase executiva do processo de individualização da sanção penal, em harmonia com o sistema progressivo de cumprimento de pena e com o que dispõe o próprio texto constitucional (art. 5o, XLVI, 1a parte, da CF/1988). Ademais, o Código Penal adotou um sistema progressivo, que se destina a estimular o bom comportamento do preso, mantendo a disciplina e a ordem nas prisões (art. 33, § 2o, CP). Sendo assim, para o sexo masculino, há três regimes principais: fechado, semiaberto e aberto (arts. 34, 35 e 36, do CP). Ao lado destes, podem ser apontadas, da análise conjunta do Código Penal com a Lei de Execução Penal, outras formas de cumprimento de pena: regime especial para as mulheres (art. 37, do CP), regime aberto domiciliar (art. 117, da LEP) e regime disciplinar diferenciado (art. 52, da LEP), os dois últimos válidos, em tese, para homens ou mulheres. A distinção de gênero, anteriormente apontada, justifica-se porque, sob o aspecto criminológico, a mulher delinque significativamente menos do que o homem. Com efeito, a variável do gênero – juntamente com o fator idade – condiciona sobremodo o quantitativo de delitos, refletindo-se, obviamente, no coletivo de encarcerados. Historicamente, registra-se, no Brasil, percentual de mulheres encarceradas na faixa de 5% da população carcerária nacional. Não obstante não existir, no Código Penal, previsão de regime fechado, semiaberto ou aberto para as mulheres, nada impede que, na esfera da legislação penitenciária concorrente, os Estados estipulem estabelecimentos prisionais de segurança máxima para o coletivo feminino. O Código Penal, em conjunto com a Lei de Execução, estabelece as regras gerais de cada regime prisional. Esses dois diplomas podem – e devem – ser complementados pelas legislações de cada Estado-Membro da Federação (art. 119, da LEP). Merece, ainda, ser feita menção às Regras Mínimas estabelecidas pelas Nações Unidas. o que foi
23.4.1. Os regimes em espécie
O regime fechado se executa em penitenciária (art. 86, da LEP), em estabelecimento de segurança máxima ou média. Os estabelecimentos de segurança máxima 339
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caracterizam-se por possuírem muralhas elevadas, grades e fossos. Os presos ficam recolhidos à noite em celas individuais, trancadas e encerradas em galerias fechadas. Existem sistemas de alarmes contra fugas e guardas armados. A atenuação dos elementos que impedem a fuga permite classificar o estabelecimento como de segurança média. Aquele que ingressa nesse regime deve ser submetido a exame criminológico de classificação para individualização de sua pena.5 O regime fechado pressupõe o trabalho diurno e o isolamento noturno (art. 34, e §§, do CP). O trabalho deve ser realizado, em regra, dentro do estabelecimento, podendo, excepcionalmente, ocorrer externamente, desde que voltado à execução de serviços ou obras públicas. Com relação ao isolamento noturno, é forçoso reconhecer que tal regra parece difícil de ser observada em razão da grave questão da superpopulação carcerária brasileira. Regime semiaberto é a execução da pena em colônia agrícola, industrial ou estabelecimento similar. O regime semiaberto se cumpre em estabelecimentos de segurança média, nos quais as precauções contra a fuga são atenuadas. Podem os presos ser colocados em alojamentos coletivos (art. 91, da LEP). Há previsão da realização de exame criminológico de classificação e individualização. O trabalho, interno ou externo, bem como a frequência a cursos profissionalizantes também compõem as regras gerais deste regime intermediário (art. 35, e §§, do CP). Conforme já assinalado, o regime aberto está fundado nas premissas de autodisciplina e senso de responsabilidade do apenado, sobrepondo-se, assim, à questão da segurança. Regime aberto é a execução da pena em casa de albergado ou outro estabelecimento de segurança mínima, em que não existam obstáculos para a fuga, mantendo-se a disciplina com base na palavra do preso e em seu deliberado propósito de se submeter às condições da sua prisão e o apenado deve se recolher no período noturno, no horário fixado, e nos dias de folga, saindo, no curso do dia, para trabalhar sem qualquer tipo de vigilância (art. 36, do CP, e art. 115, da LEP). O regime aberto possui uma subespécie: regime domiciliar. Segundo o art. 117, da LEP, poderão cumprir a pena na sua própria residência – sem necessidade de recolhimento noturno e nos dias de folga na casa de albergado –, os apenados maiores de 70 anos, acometidos de grave doença. A mulher apenada pode, ainda, usufruir do regime domiciliar quando tiver filho menor, deficiente físico ou mental, ou durante o período de gravidez. 23.4.2. Disciplina e o regime disciplinar diferenciado
A disciplina penal é definida como dever geral do preso provisório e do condenado à pena privativa da liberdade ou restritiva de direitos, consistente nas seguintes obrigações: colaboração com a ordem, obediência às determinações e desempenho no trabalho (art. 44, parágrafo único, da LEP). O princípio da legalidade exige prévia e expressa definição legal das faltas e das sanções disciplinares (art. 45, da LEP), 5. Sobre o exame criminológico, vide o item 5, infra. 340
Capítulo XXIII | Penas privativas de liberdade
proibindo-se sanções coletivas, celas escuras e expor ao perigo a integridade física e moral do condenado.6 As faltas disciplinares, conforme previsto na legislação brasileira, são definidas como graves, médias e leves (art. 49, da LEP), sendo que as primeiras são definidas pela própria Lei de Execuções, em seu art. 50, e as demais são estabelecidas pelas legislações dos Estados brasileiros. São faltas graves para as penas privativas da liberdade: incitar ou participar de movimentos de subversão à ordem ou à disciplina; fugir; ter a posse indevida de instrumento capaz de ferir a integridade corporal de outrem; provocar acidente de trabalho; violar os deveres de obediência ao servidor e respeito a outras pessoas e de execução dos trabalhos, tarefas e ordens (art. 50, da LEP). Quanto às penas restritivas de direitos, os seguintes atos são considerados como faltas: descumprir sem justificativa a restrição de direitos imposta; retardar injustificadamente o cumprimento da obrigação imposta; violar os deveres de obediência ao servidor e respeito a outras pessoas; e a inexecução dos trabalhos, das tarefas e das ordens recebidas (art. 51, da LEP). Por fim, a prática de fato definida como crime doloso também constitui “falta grave”. De outra maneira, se tiver como resultado a subversão da ordem e da disciplina interna, pode acarretar a imposição do Regime Disciplinar Diferenciado (art. 52, da LEP), a seguir analisado. No direito brasileiro, as sanções disciplinares são aplicadas levando em conta a natureza, os motivos, as circunstâncias e as consequências do fato, a pessoa do condenado, e o tempo de prisão (art. 57, da LEP). No que se refere ao procedimento disciplinar, assegura-se o direito à defesa e à decisão motivada, sendo certo que durante esse período admite-se o isolamento celular preventivo, no interesse da disciplina e da apuração do fato (arts. 59 e 60, da LEP). Compete ao diretor do estabelecimento penitenciário a aplicação das sanções disciplinares, mediante o procedimento específico (arts. 47 a 54, da LEP). A única exceção é a imposição do regime disciplinar diferenciado, que depende de decisão judicial, precedida de manifestação do Ministério Público e a defesa do condenado (art. 54, §§ 1o e 2o, da LEP). São as seguintes as sanções disciplinares previstas no direito brasileiro: (1) advertência verbal e repreensão; (2) suspensão ou restrição de direitos; (3) isolamento celular; e (4) Regime Disciplinar Diferenciado (RDD). A advertência verbal e a repreensão são sanções disciplinares aplicáveis às faltas leves e médias, definidas nas legislações estaduais. Já a suspensão ou restrição de direitos e o isolamento celular dizem respeito às faltas graves, respeitado o limite de 30 (trinta) dias, além da necessidade de imediata comunicação ao Juiz da Execução (art. 58 e parágrafo único, da LEP). 6. Sobre o tema, vide Santos, Juarez Cirino dos. Teoria da pena: fundamentos políticos e aplicação judicial. Curitiba: ICPC; Lumen Juris, 2005, p. 74-78. 3 41
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Por seu turno, o Regime Disciplinar Diferenciado (RDD) constitui uma alteração recente na Lei de Execuções Penais (incluída pela Lei no 10.792/2003).7 É aplicável o RDD aos presos, condenados ou provisórios, nos seguintes casos: (1) prática de crime doloso que determine subversão da ordem ou da disciplina interna; (2) situações de alto risco para a ordem e a segurança do estabelecimento penal ou da sociedade; (3) situações de fundadas suspeitas de envolvimento ou participação em organizações criminosas, quadrilha ou bando (art. 52, §§ 1o e 2o, da LEP). O RDD tem duração máxima de 360 (trezentos e sessenta) dias, sem prejuízo de repetição da sanção disciplinar, no caso de falta grave da mesma espécie, até o limite de 1/6 (um sexto) da pena aplicada. Deve ser cumprido em cela individual, admitindo-se visitas de até 2 (duas) pessoas, além de crianças, com duração de até 2 (duas) horas e com saída para banho de sol, por duas horas diárias (art. 52, I a IV, da LEP). O procedimento para imposição do RDD se inicia por requerimento circunstanciado do diretor do estabelecimento prisional, com manifestação do Ministério Público e respeito ao direito de defesa, mediante decisão prévia e fundamentada do juiz de execução, por prazo de 15 (quinze) dias. Excepcionalmente, a autoridade administrativa pode decretar o isolamento do preso por até 10 (dez) dias, sendo certo que a inclusão no RDD dependerá, necessariamente, de decisão judicial. Esse isolamento preventivo será detraído no período de cumprimento da sanção disciplinar (art. 60, parágrafo único, da LEP). O RDD vem sendo objeto de inúmeras e severas críticas por parte importante da doutrina brasileira, sob o argumento da inconstitucionalidade de tal medida, por violar, entre outros, o princípio da dignidade da pessoa humana.8 No mesmo sentido, ao editar a Resolução no 08/2004, o próprio Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP)9 acolheu o Parecer contrário à instituição do RDD, aprovado, por unanimidade, sustentando a violação da Constituição Federal, de Tratados Internacionais de Direitos Humanos e das Regras Mínimas das Nações Unidas para o Tratamento de Prisioneiros. Ademais, ressaltou-se a incompatibilidade da nova sistemática em diversos e centrais aspectos, tais como a falta de garantia para a sanidade do encarcerado e duração excessiva, implicando violação à proibição do estabelecimento de penas, medidas ou tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes, prevista nos instrumentos citados. Por fim, sustentou-se que a falta de definição clara das condutas, além da ausência de correspondência entre a suposta falta disciplinar praticada e a punição decorrente, revelam que o RDD não possui natureza jurídica de 7. Em realidade, o Regime Disciplinar Diferenciado surgiu, inicialmente, no estado de São Paulo, por força da Resolução da Secretaria de Administração Penitenciária n o 26/2001, em resolução de rebelião em diversas penitenciárias estaduais, organizada por um mesmo grupo criminoso organizado. Tal medida gerou uma discussão sobre a sua constitucionalidade, que, afinal, foi superada com a mencionada Lei no 10.792/2003. Sobre o tema, vide Kuehne, Maurício. Lei de Execução Penal anotada. 4. ed., Curitiba: Juruá, 2004, p. 149-158. 8. Santos, Juarez Cirino dos. Op. cit., p. 77-78. 9. Órgão subordinado ao Ministério da Justiça, ao qual compete propor diretrizes e sugerir metas e prioridades da política criminal e penitenciária, dentre outras atribuições previstas no art. 64 da LEP. 3 42
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sanção administrativa, sendo, antes, uma tentativa de segregar presos do restante da população carcerária, em condições não permitidas pela legislação.10 23.4.3. Fixação do regime prisional
A fixação do regime prisional inicial deve ser feita na sentença condenatória (art. 59, III, do CP). Cuida-se de uma operação com certo grau de dificuldade, uma vez que, consoante o art. 33, e §§, do CP, devem ser analisados, além da espécie de pena (reclusão ou detenção), três fatores: (1) quantidade de pena, (2) primariedade ou reincidência, e (3) circunstâncias judiciais. Para a pena de detenção, o processo de fixação do regime inicial é um pouco mais simples, pois só há a previsão de dois (semiaberto ou aberto). Quando não puder ser aplicado o regime aberto, o condenado necessariamente ficará no semiaberto. Dessa forma, se a quantidade de pena for inferior a quatro anos, se o apenado for primário e se as circunstâncias judiciais lhes forem favoráveis, ele poderá iniciar o cumprimento da pena no regime aberto. Entretanto, ausente algum desses requisitos, remanesce o semiaberto. A pena de reclusão, por sua vez, é um pouco mais complexa, pois envolve os três regimes (fechado, semiaberto ou aberto). Se não for reincidente, mas a pena imposta for maior do que oito anos, será também imposto o regime fechado. Não reincidente, com pena abaixo de oito anos, permite-se a fixação do regime semiaberto, conforme indicarem as circunstâncias judiciais. Por fim, não sendo reincidente, com pena abaixo de quatro anos, poderá ser estipulado regime aberto, desde que favoráveis as circunstâncias judiciais. Apesar de toda essa mecânica legal, observa-se que a jurisprudência tem flexibilizado a importância do fator reincidência, tendo em vista os postulados superiores de reinserção social do apenado. Nesse sentido, a Súmula 269, do STJ: “É admissível a adoção do regime prisional semiaberto aos reincidentes condenados a pena igual ou inferior a quatro anos se favoráveis as circunstâncias judiciais”. Na mesma linha, decidiu o STF que a só reincidência não constitui razão suficiente para imposição de regime de cumprimento mais severo do que a pena aplicada autorize.11 23.4.4. Progressão e regressão de regime
O sistema progressivo de cumprimento de pena representou uma conquista histórica na trajetória de humanização das práticas punitivas. Por conta disso, bem como diante dos objetivos que conduziram o processo de reformulação legislativa de 1984 – que culminou com a nova Parte Geral do CP e a promulgação da LEP –, observa-se que a pena privativa de liberdade passou a ser cumprida de forma progressiva, sendo possível a transferência para regime menos rigoroso, a ser determinada pelo Juízo da 10. Sobre as posições do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária, vide Kuehne, Maurício. Op. cit., p. 152-158. 11. HC 9724. STF. Min. Cezar Peluso. Segunda Turma. DJ de 26/06/2009. 3 43
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Execução Penal, quando o preso tiver cumprido ao menos um sexto da pena no regime anterior e tiver tido bom comportamento prisional (art. 33, § 2o, do CP, e art. 112, da LEP). Entretanto, com a promulgação da Lei no 8.072/1990, o sistema progressivo de cumprimento de pena sofreu parcial solução de continuidade. Para os condenados por delitos hediondos, cujo rol encontra-se indicado no art. 1o, daquela Lei, não era mais permitida a progressão de regime, sendo-lhes imposto o regime integralmente fechado (art. 2o, § 1o, redação original da Lei no 8.072/1990). Após considerar, por mais de uma década, como não afrontoso ao princípio constitucional da individualização da pena, o STF, em 2006, reviu seu posicionamento, passando a considerar aquele dispositivo como inconstitucional. Esta decisão gerou eficácia erga omnes, retirando, do ordenamento jurídico brasileiro, a figura do regime integralmente fechado. Diante da mudança de orientação jurisprudencial, foi promulgada a Lei no 11.464/2007, que alterou a Lei no 8.072/1990, fixando, para os delitos hediondos, o regime inicial fechado, permitindo-se a progressão após o cumprimento de dois quintos da pena, se o apenado for primário, ou de três quintos, se reincidente (redação atual dos §§ 1o e 2o, do art. 2o, da Lei no 8.072/1990). Curiosamente, não foi feita menção ao mérito do comportamento prisional como critério para a progressão. Constata-se, assim, no tocante à progressão de regimes prisionais, a existência de duas sistemáticas. Para os delitos em geral, isto é, não considerados hediondos, a progressão se opera quando o preso tiver cumprido ao menos um sexto da pena no regime anterior e ostentar bom comportamento carcerário. Por sua vez, para os delitos hediondos, há de ser cumprido o requisito temporal de dois quintos da pena, se o apenado for primário, e de três quintos, se reincidente. Merece, ainda, ser salientado que a progressão deve ser feita para o regime imediatamente seguinte. Não se pode passar do fechado para o aberto sem antes ter ingressado no semiaberto, mesmo se o apenado preencher, em termos globais, lapso de tempo suficiente para ingressar diretamente no regime aberto. Tal fato não ocorre com a regressão de regime prisional, ou seja, com a transferência do regime menor para o mais rigoroso. Observa-se, portanto, que o direito adquirido à fruição de um determinado regime é sempre submetido aos termos da cláusula rebus sic stantibus, ou seja, enquanto a progressão pressupõe o concurso dos fatores lapso de tempo e mérito do apenado, a regressão se pauta apenas neste último. O art. 33, caput, parte final, do CP, bem assim o art. 118, da LEP, preveem que a execução penal ficará sujeita à forma regressiva, com a transferência para qualquer dos regimes mais rigorosos, quando o apenado: (1) praticar fato definido como crime doloso; (2) praticar falta grave; e (3) sofrer condenação, por crime anterior, que importe, após a unificação das penas, em lapso temporal incabível com o regime em que se encontrava. Especificamente para o regime aberto, o § 1o, do art. 118, da LEP, prevê, ainda, a possibilidade de regressão quando o apenado frustrar os princípios desse regime – autodisciplina e senso de responsabilidade – ou não pagar, podendo, a multa cumulativamente imposta na sentença condenatória. 344
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Atente-se, outrossim, para o fato de que, diferentemente do que ocorre com a progressão, a regressão de regimes pode ser feita em “saltos”, ou seja, do aberto para o fechado, sem precisar passar pela etapa intermediária. Tudo irá depender do teor da respectiva sentença a ser exarada pelo Juiz da Execução Penal (art. 66, III, “b”, da LEP). Por fim, saliente-se que o sistema progressivo de cumprimento de pena também se aplica no concurso de crimes, conforme o disposto no art. 69, parte final, e no art. 76, do CP. 23.4.5. Progressão de regime para preso estrangeiro
Sobre o cumprimento da pena do preso estrangeiro, predomina, historicamente, o entendimento de rejeitar-lhe o acesso aos benefícios prisionais, nomeadamente progressão de regimes e livramento condicional, a despeito do preenchimento dos requisitos legais.12 As razões dessa restrição seriam as seguintes: (1) a pendência de processo de expulsão ou mesmo de expulsão já decretada, operaria em desfavor do estrangeiro que cumpre pena; (2) a incidência da regra do art. 1o, do Decreto no 4.865/1942, que proíbe a concessão de sursis aos estrangeiros que se encontrem no País em caráter temporário; (3) a desconfiança com relação àquele que, sem maiores vínculos com a nossa sociedade, encontrar-se-ia propenso a empreender fuga, frustrando, assim, o cumprimento dos benefícios prisionais; e (4) a proibição, contida na legislação de estrangeiros, de obtenção de emprego formal do estrangeiro em situação irregular.13 Como visto a seguir, estes argumentos não são convincentes. A) Os efeitos penais do decreto de expulsão
A expulsão é a retirada compulsória do estrangeiro considerado nocivo à ordem pública e social, ou inconveniente aos interesses nacionais. Ela surgiu, no Brasil, como uma espécie de pena, denominada “deportação judicial” (arts. 400 e 403, do CP/1890). Com a Revolta da Armada, da qual vários estrangeiros participaram, decretou-se estado de sítio e a “apropriação”, pelo Presidente Floriano Peixoto, daquele instrumento penal, passando o Chefe do Executivo a deter atribuição ilimitada em matéria de deportação.14 12. Cf. STF: RHC 64643. Min. Aldir Passarinho. DJ de 27/02/1987; e HC 68135. Min. Paulo Brossard (in RTJ 139/527). No STJ: RHC 1276. Min. Edson Vidigal. DJ de 09/09/1991; HC 1875. Min. José Cândido. DJ de 20/06/1994; HC 3596. Min. Assis Toledo. DJ de 26/02/1996; e RHC 6121SP. Min. Fernando Gonçalves. DJ de 02/06/1997. 13. Souza, Artur de Brito Gueiros. Presos estrangeiros no Brasil. Aspectos jurídicos e criminológicos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, passim. Estes argumentos foram sistematizados e criticados pelos seguintes autores: Toron, Alberto Zacharias. O condenado estrangeiro e a progressão de regime prisional. In: O Neófito, , acessado em 07/06/2004; Nunes, Clayton Alfredo. O processo de execução penal e o estrangeiro com decreto expulsório. Boletim IBCCrim, n. 68, jul./1998; Koerner Jr., Rolf. Por que, em Direito Penal, desigualar o estrangeiro? In: O Neófito, , acessado em 17/09/2004; e Rangel, Milton Torres. Análise sobre a situação jurídica de presos estrangeiros no Brasil, especificamente quanto aos benefícios de cumprimento de pena concedidos pela legislação penal (suspensão condicional da pena e livramento condicional). In: Revista Forense, n. 298, abr.-maio-jun./1987. 14. Magalhães, Teodoro. As leis de expulsão e o dogma constitucional. Rio de Janeiro: Oscar N. Soares, 1919, p. 13. Segundo o autor, Floriano Peixoto teria traído o ideal de igualdade entre brasileiros e estrangeiros residentes no País, preconizado por Deodoro da Fonseca e outros republicanos, basicamente através do “direito de expulsão” (Idem, p. 6). 345
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Subsequentemente, consolidou-se o entendimento normativo de que a expulsão passou a ser medida administrativa de alta polícia, desvinculando-se, portanto, do Direito Penal.15 A doutrina chancelou essa transformação.16 Restara, porém, um último vínculo legal entre expulsão e o Direito Penal. Segundo as leis vigentes até a edição do Decreto-lei no 941/1969, a expulsão somente se efetivava após o cumprimento da sanção penal. Esse foi, inclusive, um dos argumentos que muitos advogados utilizaram – tanto no Estado Novo, como na Ditadura Militar – para tentar retardar expulsões de estrangeiros por conveniências ideológicas. O caso mais emblemático dessa estratégia defensiva foi o de Olga Benário Prestes.17 Com a introdução do art. 76, do Decreto-lei no 941/1969, a expulsão desvinculou-se por completo, passou a ser efetivada a qualquer tempo, antes ou depois de cumprida a pena pelo estrangeiro. O art. 67, da Lei no 6.815/1980, manteve a referida norma. Dessa forma, diante da separação normativa entre cumprimento de pena e o direito de expulsão, não há fundamento jurídico para que uma medida administrativa possa interferir e condicionar o cumprimento progressivo de pena do preso estrangeiro. É dizer: preenchidos os requisitos objetivos e subjetivos para a progressão de regime, parece injusto o Judiciário indeferir a mudança do regime fechado para o semiaberto, por força de uma decisão da esfera de atribuição Poder Executivo, velando pelos interesses não do apenado, mas, sim, deste último. Demais disso, é injusto porque, como visto, ao longo dos tempos, o Executivo esforçou-se, precisamente, por desvincular um instituto do outro. B) A suposta vigência do Decreto n o 4.865/1942
Dispunha o art. 1o, do Decreto-lei no 4.865/1942: “É proibida a concessão da suspensão condicional da pena imposta aos estrangeiros que se encontrem no território nacional em caráter 15. Cf.: “Do ponto de vista substancial, a análise a ser feita sobre da expulsão de estrangeiros é a de que ela, tendo sido, inicialmente, regulada como pena de deportação no Código Penal, passou por um processo de ‘decantação’ normativa que culminou na mudança, tanto da titularidade de seu exercício – não mais o Poder Judiciário, mas, sim, o Executivo –, quanto da sua própria natureza jurídica – não mais penal, mas, sim, administrativa. Na prática, a consequência física era a mesma: saída compulsória como reação punitiva estatal. Despida, contudo, da etiqueta penal, ela também se despiu dos princípios que, desde o Iluminismo, procuraram limitar esse ramo do Direito, em especial os princípios da reserva legal do crime e da pena, bem como a aplicação da sanção somente após o processo penal com verificação de culpa. Passou a bastar, simplesmente, que o Ministro da Justiça decretasse (...) a prisão do estrangeiro, iniciando-se o inquérito administrativo sumário e que, de posse do ato presidencial respectivo, fosse o ‘nocivo’ colocado no primeiro navio que, do porto, de dirigisse para a sua terra natal.” (Souza, Artur de Brito Gueiros. Presos estrangeiros..., cit., p. 182). 16. Cf.: “Os nossos hábitos, o nosso excessivo espírito de tolerância, a nossa bondade natural, e, talvez, mesmo, o nosso descaso por certas coisas gravíssimas, estão reduzindo o Brasil a uma espécie de cano de esgoto dos detritos de outros países. Estrangeiros honestos, válidos, trabalhadores, que nos deem a sua atividade em troca de vantagens econômicas auferidas em nosso país, esses queremos nós e devemos bendizê-los; mas, espíritos irrequietos, indisciplinados, expulsos dos seus países pela sua inadaptabilidade à ordem comum, anarquistas, vagabundos, desordeiros, cáftens, a esses devemos expulsar das terras brasileiras.” (Siqueira, Galdino. Direito Penal Brasileiro. Vol. I. 2. ed. Rio de Janeiro: Livro Jacyntho, 1932, p. 120). Bento de Farias e Eduardo Espínola, juristas e ministros do STF, tinham discurso similar ao de Galdino Siqueira (cf. Souza, Artur de Brito Gueiros. Presos estrangeiros..., cit., p. 184). 17. O advogado Heitor Lima sustentara, em habeas corpus impetrado no STF, que, além de estar grávida, “Olga errou e, por isso, devia cumprir pena no Brasil”, ao invés de ser expulsa por Getúlio Vargas para a Alemanha Nazista. Na ocasião, o pedido sequer foi conhecido pelo STF, sob o argumento de que o Decreto n o 702/1936 suprimira o habeas corpus do nosso ordenamento jurídico. 346
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temporário (art. 25, do Dec. n. 3.010, de 28/08/1938)”. O art. 25, do Decreto no 3.010/1938 considerava “estrangeiro temporário” como sendo os turistas, visitantes em geral e viajantes em trânsito. Com efeito, naquela época não era possível conceder para esses estrangeiros o instituto do sursis, então regulado no art. 57, do CP/1940. Por conta disso, há entendimento doutrinário e jurisprudencial no sentido de estender aquela restrição até os dias de hoje, obstando, dessa maneira, a concessão de progressão de regime e ao livramento condicional ao preso estrangeiro em situação irregular no País.18 Ocorre, porém, que além de importar em indevida analogia in malam partem – vez que suspensão condicional da pena não se confunde com progressão de regime ou com livramento condicional –, esse argumento esbarra, ainda, com a constatação de que o mencionado Decreto-lei no 4.865/1942, publicado em pleno Estado Novo e no curso da Segunda Guerra Mundial, há muito deixou de vigorar no nosso ordenamento jurídico, mormente diante do restabelecimento da igualdade entre brasileiros e estrangeiros, por força do art. 141, caput e § 1o, da CF/1946. A promulgação da Lei no 6.416/1977, bem como a nova Parte Geral do Código Penal e a Lei de Execução Penal, que passaram a regular integralmente o instituto da suspensão condicional da pena, sem qualquer ressalva naquele sentido, seguramente acarretou a revogação tácita do citado Decreto-lei no 4.865/1942.19 C) A presunção de fuga do preso estrangeiro
Segundo esse fundamento, a eventual mudança do regime fechado para o semiaberto seria uma medida temerária pelo risco de uma hipotética fuga do preso estrangeiro. Em que pese a relevância dessa preocupação, não se pode chegar ao extremo de se criar uma “presunção absoluta” de fuga de todo o apenado estrangeiro, em particular daquele que já conta com sua expulsão decretada e pendente do cumprimento da pena. Como dito anteriormente, a expulsão é medida administrativa, não podendo servir de supedâneo para se vedar o exercício de um direito prisional, máxime diante da inexistência de nenhuma vedação legal nesse sentido. A propósito, dispõe o art. 3o, da LEP, que ao condenado encontram-se assegurados todos os direitos não atingidos pela sentença ou pela lei. E seu parágrafo único arremata dizendo que não haverá qualquer distinção de natureza racial, social, religiosa ou política. Além de ser inadmissível a prevalência de uma presunção juris et de jure de fuga, este argumento parece olvidar que regime semiaberto é cumprido em colônia agrícola, industrial ou similar (art. 35, § 1o, do CP, e art. 91, da LEP). Não se trata, portanto, de 18. Cf. Mirabete, Julio Fabbrini. Execução Penal. 11. ed. São Paulo: Atlas, 2004, p. 570. No mesmo sentido: “Penal. Estrangeiro condenado, com expulsão decretada. Regime semiaberto. Não é de ser concedido o regime semiaberto ao estrangeiro condenado no Brasil, e cuja expulsão foi decretada, sob pena de poder vir a frustar-se a própria ordem de expulsão, a igualdade do que ocorre com o estrangeiro que se encontra no território nacional e que, condenado, não pode obter liberdade condicional, a teor do disposto no art. 1o, do Decreto-lei no 4.865, de 23/10/42.” (RHC 64643. STF. Min. Aldir Passarinho. Segunda Turma. Publ. Ementário no 1450, p. 216). 19. Souza, Artur de Brito Gueiros. Presos estrangeiros..., cit., p. 224. Nesse sentido: Koerner Jr., Rolf. Por que, em Direito Penal, desigualar o estrangeiro..., cit., p. 9. 3 47
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cumprimento em estabelecimento sem obstáculos contra a fuga. Essa circunstância não escapou das reflexões de Francisco de Assis Toledo, tendo este, por ocasião do julgamento de um recurso no STJ, repelido a assertiva de que a progressão ao regime semiaberto colocaria em risco uma futura expulsão. Segundo suas palavras: “Regime semiaberto também é regime semifechado”.20 D) A proibição de obtenção de emprego formal
Sobre esse fundamento impeditivo da progressão de regime do preso estrangeiro, tem-se que, efetivamente, o art. 36, § 1o, do CP, e o art. 114, I, da LEP, aludem a necessidade do preso obter trabalho para fazer jus ao regime aberto. Para o regime semiaberto, há a previsão de trabalho interno e, excepcionalmente, de trabalho externo (art. 35, e §§, do CP, e art. 122, III, da LEP). Por outro lado, o art. 98, da Lei no 6.815/1980, veda o exercício de atividade remunerada formal por parte do estrangeiro em situação irregular no Brasil. Da conjugação desses dispositivos, restaria inviabilizado o deferimento da progressão de regime, especialmente para o regime aberto, bem assim para o livramento condicional (art. 83, III, do CP).21 De plano, é forçoso reconhecer que a mencionada proibição não alcança a progressão para o regime semiaberto, pois, como visto, o trabalho externo (formal) reveste-se de caráter excepcional. Com a nova redação do art. 112, da LEP (cf. Lei no 10.792/2003), exige-se, para a progressão ao regime semiaberto, tão somente o lapso temporal de 1/6 da pena cumprida e bom comportamento carcerário. Ademais, cumpre observar que a Lei no 6.815/1980 (Estatuto do Estrangeiro) foi promulgada no estertor do Regime Militar, reproduzindo o pensamento autoritário daquele período, lastreado na ideologia da Segurança Nacional (art. 2o, da Lei no 6.815/1980). Bem por isso, já em 1994, João Marcello de Araújo Jr. classificara aquele diploma legal de “extremamente severo e draconiano”.22 No cenário atual de integração global, abertura econômica, quebra de monopólios e reservas de mercado de produtos e serviços, custa a crer que a vetusta norma do art. 98, da Lei no 6.815/1980, possua eficácia condicionante na execução penal, cujo um dos pilares fundamentais é, justamente, o desempenho de atividade laborativa por parte do apenado, independentemente da sua nacionalidade. De mais a mais, dados empíricos comprovam que a grande maioria dos presos estrangeiros exerce atividade laborativa dentro dos nossos estabelecimentos prisionais, razão pela qual soa paradoxal que se permita o “trabalho interno” ao estrangeiro, mas se lhe vede o desempenho da mesma atividade “no ambiente externo”.23 Não se ignore, por fim, que milhões de pessoas no Brasil trabalham na informalidade, isto é, sem carteira de trabalho assinada, 20. Cf. HC 3596. STJ. Min. Assis Toledo. Quinta Turma. DJ de 26/02/1996. 21. Nesse sentido: HC 156668. STJ. Min. Celso Limongi. Sexta Turma. DJ de 17/12/2010. 22. Araujo Jr., João Marcello. O estrangeiro: “um menos tolerado”. Controle e reação social no Brasil. In: Movimientos de población, integración cultural y paz. Eguzkilore, San Sebastian, n. 7, Extraord., dic., 1994, p. 101. 23. Sobre o levantamento empírico do coletivo estrangeiro nas prisões brasileiras: Souza, Artur de Brito Gueiros. Presos estrangeiros..., cit., passim. 3 48
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circunstância esta que reforça o caráter discriminatório desse entendimento doutrinário e jurisprudencial.24 E) Mudança de orientação jurisprudencial
A jurisprudência mais recente do STF e do STJ parece inclinar-se no sentido da efetiva superação dos óbices anteriormente apontados, permitindo que seja concedido ao preso estrangeiro a progressão do regime fechado para outro menos severo. Nesse sentido, ao julgar habeas corpus onde se pleiteava, justamente, a concessão de regime semiaberto para uma boliviana presa, em regime fechado, por tráfico de drogas, a Segunda Turma do STF, com o voto vencedor do Min. Cezar Peluso, considerou que o fato de o condenado por tráfico de drogas ser estrangeiro, estar preso, não ter domicílio no País e ser objeto de processo de expulsão, não constitui óbice à progressão de regime de cumprimento da pena.25 Na mesma esteira, o STJ alterou seu posicionamento, admitindo, ao estrangeiro em situação irregular no País, a progressão ao regime semiaberto, na medida em que, no regime intermediário, a regra é o trabalho interno, em colônia agrícola, industrial ou estabelecimento similar e independe de visto de permanência ou qualquer outro requisito de regularidade administrativa.26
23.5. Exame criminológico espécie do gênero exame da personalidade,27 que tem por finalidade a investigação médica, psicológica e social da pessoa do infrator, visando detectar sua propensão para a prática de novos fatos delituosos. Para tanto, deve-se tomar como causa o delito perpetrado mediante violência ou grave ameaça e, como efeito, a higidez biopsicológica do apenado. Cuida-se, portanto, de um exame pericial a ser elaborado por uma equipe multidisciplinar (médicos psiquiatras, psicólogos e assistentes sociais). O exame criminológico foi uma inovação da Reforma de 1984 com o objetivo de contrabalançar a revogação do sistema do duplo binário, ou seja, de imposição de medida de segurança aos autores de delitos violentos que, após o cumprimento da pena, ainda eram considerados perigosos. Dessa forma, por razões de cautela do legislador, a obtenção de benefícios prisionais – como, por exemplo, progressão de regime ou livramento condicional – passou a contar, dentre outros requisitos, com a realização do exame criminológico, nas hipóteses de condenados por delitos perpetrados com violência ou grave ameaça à pessoa.
E
x ame criminológico é
24. Dados do IBGE sobre a “economia informal” apontam existir cerca de 14 milhões de pessoas trabalhando sem carteira assinada (2003). Cf. Brasil tem 10 milhões de empresas na informalidade. Disponível em , acessado em 17/05/2011. 25. Cf. HC 97147. STF. Min. p/acórdão Cezar Peluso. Segunda Turma. DJ de 12/02/2010. 26. HC 122662. STJ. Min. Arnaldo Lima. Quinta Turma, DJ de 01/02/2010. 27. E. M. da LEP, item 34. 3 49
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Em que pesem os merecidos elogios, no que diz respeito à revogação do sistema do duplo binário – pena e medida de segurança –, é forçoso reconhecer que o propósito do exame criminológico ficou aquém do esperado. De fato, o mais das vezes, consistiam em avaliações burocráticas, elaboradas em formulários preenchidos sem maiores preocupações criminológicas, acarretando atrasos excessivos no curso da execução penal. Diante disso, a nova redação do art. 112, da LEP, trazida de Lei no 10.792/2003, omitiu qualquer referência ao exame criminológico, para fins de progressão de regime – e, por extensão, ao livramento condicional. Sendo assim, o entendimento jurisprudencial que se consolidou foi no sentido da perda da obrigatoriedade da sua realização. Dessa forma, a submissão do condenado ao exame criminológico passou a se constituir numa faculdade a ser determinada pelo juiz, sempre de maneira fundamentada.28 A propósito, dispõe a Súmula 439, do STJ: “Admite-se o exame criminológico pelas peculiaridades do caso, desde que em decisão motivada”.
23.6. Detração penal
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comum de depreciação da honra alheia, detrair (detrahere) também significa abater o crédito.29 No caso vertente, detração penal é o desconto ou abatimento, no tempo definitivo da pena ou da medida de segurança imposta na sentença, do período em que o agente esteve privado da liberdade em virtude de prisão processual, prisão administrativa ou internação cautelar em hospital de tratamento e custódia, conforme referido no art. 42, do CP. Prisão processual ou provisória compreende tanto aquela havida no país como no estrangeiro. É o que ocorre, por exemplo, nos casos de extradição ativa, ou seja, daquela pedida pelo Governo do Brasil. Ao lado da prisão para fins de extradição, o gênero prisão provisória compreende as seguintes espécies: prisão em flagrante, prisão preventiva, prisão decorrente de sentença condenatória recorrível ou de pronúncia (arts. 301, 312, 397, parágrafo , do CPP), e prisão temporária (art. 1o, da Lei no 7.960/1989). A prisão administrativa ainda existia quando da promulgação do Código de 1984 e dizia respeito àquela então decretada pelo Ministro da Justiça, bem como às de cunho militar. Na atualidade, somente remanesce a prisão administrativa militar. A prisão administrativa civil – incidente nas hipóteses de extradição ou expulsão de estrangeiros – deixou de existir com a determinação constitucional de que ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente (art. 5o, LXI, da CF/1988). lém da noção
28. Nesse sentido, reportando-se às alterações do art. 112, da LEP, decidiu o STF: “Edição da Lei n o 10.792/2003, que deu nova redação ao art. 112 da LEP. Diploma legislativo que, embora omitindo qualquer referência ao exame criminológico, não lhe veda a realização, sempre que julgada necessária pelo magistrado competente. Consequente legitimidade jurídica da adoção, pelo Poder Judiciário, do exame criminológico (RT 832/676 – RT 836/535 – RT 837/568). Precedentes. Habeas Corpus deferido, em parte.” (HC 88052. STF. Min. Celso de Mello. Segunda Turma. DJ de 04/04/2006). 29. Conf. Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986, p. 581. 35 0
Capítulo XXIII | Penas privativas de liberdade
A detração opera não somente com a prisão provisória ou prisão militar, mas, também, nas hipóteses de imposição de medida de segurança de internação, quando o agente tenha permanecido, no curso do processo, recolhido em hospital de custódia e tratamento psiquiátrico. Segundo Cezar Bitencourt, esta regra deveria ser igualmente estendida para os casos de internação em casas de saúde, “com finalidade terapêutica”.30 Diverge-se, todavia, de tal opinião, pois, além da falta de amparo legal, essa possibilidade de abatimento ressentir-se-ia de controle judicial adequado, podendo dar margem a diversos abusos, em especial para inculpados que tiverem condições financeiras para arcar com internações em clínicas particulares. De outro lado, tem-se que a efetivação da detração há de pressupor a existência de vínculo fático entre a pena privativa de liberdade ou a medida de segurança e a privação da liberdade que lhes antecedeu. Numa palavra, é preciso que o título da prisão definitiva tenha a mesma base empírica da prisão cautelar. Por conta disso, questiona-se sobre a possibilidade dela ser estendida para fatos diversos daqueles que motivaram a prisão. Imagine-se a hipótese de alguém permanecer preso preventivamente por quatro anos e, ao cabo da sentença condenatória, sofrer uma pena privativa de liberdade no patamar de dois anos. Os outros dois anos de “crédito” poderiam ser utilizados para abater uma condenação por outro delito? Em regra, a doutrina repele o chamado “efeito conta-corrente”, só admitindo-o, excepcionalmente, para hipóteses em que o delito diverso tenha sido cometido antes do seu encarceramento. Da mesma maneira, é firme a jurisprudência do STF no sentido de não ser possível creditar-se ao réu qualquer tempo de encarceramento anterior à prática do crime que deu origem a condenação subsequente.31 Afigura-se correto o entendimento restrito de extensão da detração para outro processo, desde que se trate de delito anteriormente cometido. A tese de um crédito a ser sacado a posteriori é incompatível com os fundamentos do Direito Penal. Nada impede, por óbvio, que aquele que se sinta lesado com uma prisão cautelar que não redundou em condenação ou que tenha ficado aquém do tempo de segregação provisória possa vir a pleitear indenização civil contra o Estado. O raciocínio ora exposto é corroborado pela regra do art. 5o, LXXV, da CF/1988. Por fim, não cabe detração para os casos de prisão civil do devedor de alimentos, (art. 5o, LXVII, da CF/1988), decorrente do atraso das respectivas prestações, decretada nos termos do art. 733, do CPC. Dessa forma, ainda que esteja relacionado com o delito capitulado no art. 244, do CP, mas por se tratar de prisão estritamente civil, resta excluída a possibilidade de detração penal.32
30. Bitencourt, Cezar Roberto. Op. cit., p. 502. 31. HC 93979. STF. Min. Cármen Lúcia. Primeira Turma. DJ de 20/06/2008. No mesmo sentido: HC 51807 (RTJ 70/324), HC 55614 (RTJ 85/766) e RHC 61195 (RTJ 107/622). 32. Nesse sentido: Prado, Luiz Regis. Curso de Direito Penal Brasileiro. Vol. 2. 7. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, p. 762. 351
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23.7. Regulamentação geral do sistema penitenciário e os direitos dos presos
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sistema penitenciário e os direitos dos presos, no ordenamento jurídico brasileiro, estão estabelecidos na Lei no 7.210/1984 (Lei de Execução Penal) e na Resolução no 14/1994, do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP), que fixou as regras mínimas para o tratamento do preso no Brasil, bem como em disposições de outros diplomas legais, além, é claro, do contido na própria Constituição Federal de 1988. A propósito, o art. 38, do CP, garante que o preso conserva todos os direitos não atingidos pela perda da liberdade, impondo-se a todas as autoridades o respeito à sua integridade física e moral (cf. art. 5o, XLIX, da CF/1988, e art. 3o, da LEP). No mesmo sentido, a LEP estabelece, no art. 41, diversos direitos dos presos, compreendendo alimentação suficiente e vestuário; atribuição de trabalho e sua remuneração; previdência social; constituição de pecúlio; proporcionalidade na distribuição do tempo para o trabalho, o descanso e a recreação; exercício das atividades profissionais, intelectuais, artísticas e desportivas anteriores, desde que compatíveis com a execução da pena; assistência material, à saúde, jurídica, educacional, social e religiosa; proteção contra qualquer forma de sensacionalismo; entrevista pessoal e reservada com o advogado; visita do cônjuge, da companheira, de parentes e amigos, em dias determinados; chamamento nominal; igualdade de tratamento, salvo quanto às exigências da individualização da pena; audiência especial com o diretor do estabelecimento; representação e petição a qualquer autoridade em defesa de direito; contato como mundo exterior por meio de correspondência escrita, da leitura e de outros meios de informação que não comprometam a moral e os bons costumes. Dentre os deveres estabelecidos pela legislação brasileira, podem ser destacados a submissão às normas da execução penal, a disciplina, o respeito, a execução do trabalho imposto e conduta oposta aos movimentos individuais ou coletivos de fuga ou de subversão à ordem ou à disciplina (art. 38, da LEP). regul amentação ger al d o
23.8. O trabalho prisional
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m ponto relevante da Teoria da Pena é o relativo ao trabalho prisional. O Código Penal e a Lei de Execução Penal referem-se ao trabalho como mecanismo crucial ao processo de reintegração social do apenado. Observa-se, nesse particular, que ao longo da história, a atividade laborativa do encarcerado correspondeu a três grandes ideologias.33 A primeira, de fundo religioso, pressupunha que o trabalho era fundamental para a regeneração moral do delinquente. O trabalho incessante o afastaria da
33. Rodrigues, Anabela Miranda. Novo olhar sobre a questão penitenciária. 2. ed. Coimbra: Coimbra Editora, 2002, p. 95. 352
Capítulo XXIII | Penas privativas de liberdade
vida ociosa, do pecado e do crime. Isso ficou bem evidenciado nos estabelecimentos surgidos a partir do século XVIII. A segunda ideologia concebeu o trabalho como um elemento da própria punição, ou seja, um castigo dentro do castigo. Foi essa mentalidade que justificou, no Brasil, o aparecimento da figura da prisão com trabalhos, espécie punitiva diversa da prisão simples (sem trabalhos), conforme dispunha o CC/1830. A última ideologia – presente na generalidade dos países – é a identificação do trabalho prisional como fundamental para o processo de ressocialização do apenado. Sobre o assunto, Anabela Rodrigues assinala a coerência existente entre o exercício de atividade laborativa e a finalidade precípua da execução penal. Segundo a autora, se a socialização do recluso é essencialmente prevenção da reincidência, há fundadas esperanças de que aquela capacidade contribua decisivamente para que o recluso consiga conduzir a sua vida futura sem praticar crimes.34 Como dito, o trabalho é elemento essencial ao tratamento penitenciário, não somente por ser um dever social, mas, igualmente, por se constituir expressão da dignidade humana. Muito embora não esteja submetido ao regime da Consolidação das Leis do Trabalho, o trabalho prisional deve ser remunerado com quantia não inferior a três quartos do salário mínimo. A lei fixa, no entanto, que o produto da remuneração deve ser aplicado para indenizar os danos causados pelo crime (se forem determinados judicialmente), na assistência à família e no ressarcimento ao Estado das despesas realizadas com a manutenção do condenado (art. 28, da LEP). A Lei de Execução Penal diz, ainda, que o trabalho será em comum tanto para o regime fechado como para o semiaberto. No regime fechado, o trabalho será no interior do estabelecimento; no regime semiaberto, o trabalho será em colônia agrícola, industrial ou estabelecimento similar. O trabalho externo é admissível em qualquer regime. No regime fechado, o condenado poderá trabalhar em obras públicas, desde que tomadas as cautelas contra fuga e em favor da disciplina. No regime semiaberto o trabalho externo se realiza com fiscalização e precauções menos rigorosas. Paradoxalmente, cumpre observar a existência de uma exceção ao ideal ressocializador do trabalho prisional. Cuida-se da regra do art. 200, da LEP, que diz que o condenado por crime político não está obrigado ao trabalho. Excetuado o preso político, os demais encarcerados têm o direito e o dever de desempenhar atividade laborativa no estabelecimento penitenciário, sendo certo que ela há de ter finalidade educativa e produtiva (art. 29, da LEP). A prática, porém, revela que apenas uma pequena parcela da população carcerária nacional efetivamente trabalha. A grande maioria do coletivo de presos no Brasil vive na ociosidade, por não lhe ser oferecida tal oportunidade ou por se rejeitar a cumprir as que lhes forem apresentadas.
34. Idem, p. 95. 353
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23.9. Remição penal
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desempenho de atividade laborativa constitui-se importante motor do processo de reinserção social do apenado. Um exemplo da valoração positiva que, modernamente, o trabalho propicia à execução penal se materializa no instituto da remição penal. Remição significa o direito daquele que cumpre pena, no regime fechado ou semiaberto, de abater, pelo trabalho, parte do tempo de pena que tem que cumprir. O abatimento se processa à razão de 1 (um) dia de pena a cada 3 (três) dias de trabalho (art. 126, § 1o, II, da LEP). A Lei no 12.433, de 30/06/2011, alterou diversos dispositivos da Lei de Execução Penal, com o objetivo de estender a possibilidade de remição penal não apenas para o trabalho, mas, também, para o estudo prisional. Na verdade, os tribunais já vinham deferindo remição penal em casos de presos que envidavam esforços no sentido da sua formação educacional. Nesses termos, conforme a nova redação do art. 126, da LEP, o condenado que cumpre a pena em regime fechado ou semiaberto poderá remir, por trabalho ou por estudo, parte do tempo de execução da pena. No caso de estudo, a contagem de tempo deve ser feita à razão de 1 (um) dia de pena a cada 12 (doze) horas de frequência escolar – atividade de ensino fundamental, médio, inclusive profissionalizante, ou superior, ou ainda de requalificação profissional –, divididas, no mínimo, em 3 (três) dias (cf. art. 126, § 1o, I, da LEP, com a redação da Lei no 12.433/2011). Prevê, ainda, a LEP, uma espécie de “prêmio” àquele que conseguir concluir seus estudos, qual seja, o acréscimo de 1/3 (um terço) no total das horas a serem remidas, desde que seja expedido certificado de conclusão do ensino fundamental, médio ou superior “pelo órgão competente do sistema de educação” (art. 126, § 5o, da LEP). É interessante, ainda, observar que a remição pelo estudo é válida, inclusive, para o apenado que se encontra no regime aberto ou usufruindo livramento condicional (art. 126, § 6o, da LEP). Diferentemente, a remição pelo trabalho não abrange o regime aberto e o livramento condicional, tendo em vista ser da essência desses dois institutos a obrigatoriedade do desempenho de atividade laborativa (art. 114, I, e art. 132, § 1o, “a”, da LEP). A inovação legislativa sob consideração é digna de aplausos. Com efeito, o processo de reinserção social não se dá, unicamente, pela via do trabalho, englobando, ainda – e talvez de forma mais eficaz –, a qualificação educacional. Portanto, é dever da Administração Penitenciária propiciar mecanismos e estímulos ao encarcerado que se interesse em realizar atividades educacionais. A rigor, o trabalho pode e deve ser conjugado com os estudos, inclusive para fins de remição cumulativa (art. 126, § 3o, da LEP). Caso o preso fique impossibilitado, por acidente, de prosseguir no trabalho ou nos estudos, continuará a beneficiar-se com a remição sob consideração (art. 126, § 4o, da LEP). Sobre o assunto, outra importante alteração trazida pela Lei no 12.433/2011 diz respeito às consequências da punição do apenado por falta grave. Originariamente, o art. 127, da LEP, dizia que no caso de aplicação de sanção disciplinar por falta classificada
35 4
onforme ressaltado, o
Capítulo XXIII | Penas privativas de liberdade
como grave (arts. 50, da LEP), o condenado perdia todo o tempo remido, começando novo período a partir da data da infração disciplinar. Muito embora houvesse questionamentos acerca da inconstitucionalidade daquela disposição – por afronta ao princípio da proporcionalidade, pois as faltas graves acarretam sanções específicas, limitadas a trinta dias, com exceção da imposição do RDD – fato é que o STF rechaçou a suposta inconstitucionalidade, firmando entendimento no sentido de que o art. 127, da LEP, foi recepcionado pela CF/1988, não se lhe aplicando o mencionado limite temporal de trinta dias (cf. Súmula Vinculante no 9). Atualmente, foi mitigado o rigor da perda total do tempo remido em razão da aplicação da sanção por falta grave. Conforme a nova disciplina, em caso de falta grave, passa a ser facultado ao juiz da execução penal impor a revogação de até 1/3 (um terço) do tempo remido, recomeçando a contagem a partir da data da infração disciplinar (art. 127, da LEP, com a redação da Lei no 12.433/2011). Por fim, o tempo remido – isto é, devidamente homologado judicialmente – será computado como pena cumprida, não somente para fins de concessão de livramento condicional ou indulto, mas, sim, “para todos os efeitos” (art. 128, da LEP, com a redação da Lei no 12.433/2011).
23.10. Superveniência de doença mental
S
e , durante o cumprimento da pena, sobrevier, ao condenado, doença mental, deve o mesmo ser recolhido a hospital de custódia e tratamento psiquiátrico ou, à falta, a outro estabelecimento adequado (art. 41). Este incidente no curso da execução penal é denominado de conversão da pena em medida de segurança, consoante o disposto no art. 183, da LEP. Deve-se, contudo, atentar que embora convertida em medida de segurança, o tempo de duração da pena inicialmente imposta continuará a ser observado. Dessa maneira, conforme decidido pelo STJ, extrapolado o prazo máximo de pena privativa de liberdade, não há como manter o paciente no cumprimento da medida de segurança, a qual deve ser declarada extinta.35
23.11. O monitoramento eletrônico
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entrou em vigor a Lei no 12.258, que alterou o Código Penal e a Lei de Execução Penal para possibilitar a utilização de equipamento de vigilância indireta pelo condenado. Esta lei é passível de inúmeras críticas, principalmente se se considerar que poderíamos ter aprovado uma legislação que realmente utilizasse o monitoramento eletrônico de presos para reduzir o contingente carcerário e os custos do aprisionamento. o dia 16/0 6/2 0 10,
35. HC 130160. STJ. Min. Arnaldo Lima. Quinta Turma. DJ de 19/11/2009. 35 5
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Nesse sentido, critica-se a Lei no 12.258/2010 pela não previsão de utilização experimental do monitoramento eletrônico, um grave problema na medida em que não é possível prever, sem testes, os efeitos benéficos da medida no sistema penitenciário brasileiro. Por se tratar de um tema novo, ao menos para o Direito Penal brasileiro, deve-se proceder a uma breve exposição sobre a operacionalização, bem assim às dúvidas conceituais que a temática do monitoramento eletrônico suscita na doutrina em geral. 23.11.1. Origens e desenvolvimento do monitoramento eletrônico
A partir de 1946, experiências de controle com a manutenção do preso em seu domicílio foram utilizadas no Canadá.36 Nos anos sessenta do século passado, o professor da Universidade de Harvard, Ralph Schwitzgebel, propôs medidas eletrônicas como forma de controle penitenciário de delinquentes e enfermos mentais.37 Na década seguinte, L. Barton, Ingraham e Gerald Smith defenderam o uso do monitoramento eletrônico como uma alternativa real ao cárcere.38 Contudo, a verdadeira origem do monitoramento ou bracelete eletrônico decorreu de uma prática judiciária mais recente. De acordo com Jean-Paul Céré39, em 1979, o magistrado norte-americano Jack Love, de Albuquerque (Novo México), idealizou a criação de um dispositivo que pudesse melhor vigiar os presos, inspirado em uma história em quadrinhos do Homem-Aranha na qual o vilão fixa um bracelete eletrônico conectado a um radar no braço daquele herói, permitindo-lhe localizá-lo onde quer que ele estivesse. Sendo assim, Jack Love entrou em contato com o engenheiro eletrônico Michael Goss e pediu-lhe que desenvolvesse um sistema de monitoramento, o qual foi testado pelo próprio magistrado em 1983, tendo ordenado, posteriormente, a utilização do mecanismo para supervisionar cinco delinquentes de sua cidade. A primeira pulseira eletrônica passou a denominar-se Gosslink, decorrente da união da palavra link e do sobrenome do engenheiro que a criou.40 Portanto, foi nos Estados Unidos que se deu início ao monitoramento eletrônico, cujo desenvolvimento originou-se de projetos pilotos, notadamente em Washington, na Virgínia e na Flórida.41 Partindo das justificativas encontradas nos países em que o monitoramento eletrônico foi introduzido, pode-se determinar um triplo objetivo para a utilização de tal sistema, a saber: (1) combate à superpopulação carcerária; (2) redução dos custos 36. Céré, Jean-Paul. La Monitoramento eletrônico: une réelle innovation dans le procès pénal? Net, Rio de Janeiro, 8/06/2006. Revista da Faculdade de Direito de Campos, ano VII, no 8. Disponível em: . Acesso em: 10/10/2007. 37. Rodríguez-Magariños, Faustino Gudín. Cárcel electrónica para la creación del sistema penitenciário del siglo XXI. Valencia: Tirant lo Blanch, 2007. p. 55. 38. Idem, p. 56. 39. Céré, op. cit. 40. Rodríguez-Magariños, Faustino Gudín. Cárcel..., cit., p. 61. 41. Céré, op. cit. 35 6
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advindos do encarceramento; e (3) diminuição do risco de reincidência criminal, contribuindo para a ressocialização do condenado.42 Na prática, os braceletes ou tornozeleiras eletrônicas têm sido utilizados para evitar a prisão do indivíduo que espera julgamento, do condenado a uma pena curta de prisão, ou, ainda, daquele que esteja prestes a cumprir a totalidade da pena privativa de liberdade. Em alguns casos, o dispositivo é utilizado para menores e aos chamados multirreincidentes. Por isso, tal medida foi vista como idônea a evitar os efeitos dessocializadores da prisão, permitindo ao indivíduo conservar ou restabelecer uma vida social e profissional. Registre-se que a adoção do monitoramento eletrônico pode ser feita, basicamente, por meio de dois sistemas: (1) o front-door, e (2) o back-door.43 A variante front-door busca evitar o ingresso do condenado na prisão, podendo consistir em uma pena principal ou em uma alternativa à execução da pena privativa de liberdade, além de aplicar-se a casos de suspensão condicional da pena e prestação de serviços à comunidade. Por sua vez, o modelo back-door pressupõe uma redução do tempo do condenado na prisão por meio da substituição do período restante a ser cumprido no cárcere pelo monitoramento eletrônico, de forma a proporcionar uma readaptação gradual do presidiário ao meio extramuros. É necessário frisar que, a despeito de não se poder afastar por completo o argumento financeiro (que foi utilizado, inclusive, durante a votação da lei sobre o monitoramento eletrônico francês),44 nos países europeus, prevalece a ideia de que as medidas penais devem ser escolhidas não apenas pelo seu aspecto econômico, mas, precipuamente, por sua utilidade social. Ademais, a acolhida do monitoramento eletrônico é justificada por sua potencialidade preventiva, eis que constitui um “poderoso instrumento de neutralização de atos de delinquência durante a execução da medida”.45 A retirada do condenado do contato carcerário, bem como os benefícios advindos do trabalho e da manutenção de uma vida social e familiar, concorrem para a diminuição do risco de recidivas. Ressalta-se que existe a possibilidade de instituição de cobrança de uma taxa elevada do condenado em caso de reincidência. A demonstrar a utilidade e a relevância da medida, na França, entre os anos de 2000 e 2003, computaram-se somente quinze casos de reincidência de um total de 1.136 medidas de monitoramento eletrônico aplicadas.46
42. Iglesias Río, Miguel Angel; Pérez Parente, Juan Antonio. La pena de localización permanente y su seguimiento con medios de control electrónico. Net, México, 2006. Biblioteca Jurídica Virtual del Instituto de Investigaciones Jurídicas de la Universidad Nacional Autónoma de México. Disponível em: . Acesso em: 11/10/ 2007. 43. Idem, ibidem. 44. Idem, ibidem. 45. Céré, op. cit. 46. Idem, ibidem. 357
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É neste contexto que se iniciaram as experiências de controle a distância por meio da utilização do monitoramento eletrônico de presos que constitui, hoje, instrumento indispensável aos sistemas de justiça criminal. A título ilustrativo, o monitoramento eletrônico foi implementado nos Estados Unidos, Canadá, Reino Unido, Suécia, Países Baixos, Holanda, França, Bélgica, Itália, Alemanha, Espanha, Portugal, Suíça, Hungria, Andorra, Austrália, Nova Zelândia, Argentina, Israel, Singapura e África do Sul. 23.11.2. As gerações tecnológicas do monitoramento eletrônico
Existem três gerações de tecnologia de monitoramento eletrônico. A primeira engloba os sistemas ativo e passivo que pressupõem o monitoramento de um indivíduo em um dado local. A segunda permite seguir os passos da pessoa vigiada onde quer que ela esteja, em tempo real, a partir de dispositivos de localização global, como o Global Positioning System (GPS). Por sua vez, a terceira comporta a utilização de mecanismos que, uma vez inseridos sob a pele ou no corpo do condenado, detectam que um crime está prestes a ser cometido, disparando choques ou liberação de sedativos na corrente sanguínea do indivíduo, por exemplo. O sistema passivo, também chamado de sistema de contato programado, consiste na utilização de um telefone a fim de verificar se a pessoa submetida a monitoramento eletrônico está no endereço designado no horário previsto. Uma pessoa escolhida para tal desiderato faz ligações telefônicas aleatórias para o local onde se espera que o condenado se encontre, devendo o monitorado respondê-las pessoalmente. Os meios empregados para comprovar a sua identidade incluem o fornecimento de uma senha ou de um código preestabelecido, o reconhecimento de impressões digitais, de íris ou de voz, bem como a introdução de um objeto preso a ele de forma inamovível em um decodificador.47 O sistema ativo, conhecido como sistema de monitoramento contínuo e o mais correntemente utilizado na França, permite saber a localização do indivíduo de maneira ininterrupta, sem necessitar de sua colaboração. Assim, impõe restrições à locomoção do sujeito submetido à vigilância, permitindo-lhe dirigir-se a locais onde possa ser encontrado. Além disso, tal sistema pode ser usado para impedir o acesso do condenado a determinadas pessoas – potenciais vítimas – ou lugares. Para funcionar, este procedimento exige vários elementos: um bracelete transmissor, um receptor transmissor, um centro de vigilância e um terminal de controle.48 O bracelete emissor, utilizado durante todo o tempo em que durar a medida imposta, emite continuamente sinais, permitindo-se atestar a presença do condenado no lugar designado. O sistema emissor é preto, semelhante a um relógio retangular, com ou sem mostrador de horas, geralmente fixado no tornozelo ou no punho. Dotado de uma bateria, emite sinais de alarme específicos caso haja baixa de carga ou mau funcionamento. 47. Céré, op. cit. 48. Idem, ibidem. 358
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Da mesma forma, possui fibras óticas que permitem detectar qualquer tentativa de arrombamento ou deteriorização. O emissor produz por trinta segundos um sinal com alcance de cinquenta a setenta metros aproximadamente em direção a um receptor que delimita o local de emissão do sinal. Assim, também é necessário um receptor transmissor que, ligado ao telefone da residência da pessoa monitorada, identifica e registra os sinais do emissor e os transmite a uma central por meio da linha telefônica. O receptor capta qualquer sinal de deslocamento, de arrombamento ou de deteriorização. Em caso de corte de sinal, a central é informada e durante a pane o receptor continua a funcionar graças a uma bateria que assegura setenta e duas horas de autonomia. Em caso de corte de ligação telefônica, o agente do centro de controle faz contato com a operadora telefônica para saber a razão do problema e determinar se é caso de mau funcionamento proveniente da central do emissor e do receptor. Durante o tempo em que estiver com a linha telefônica cortada, o receptor registra todos os eventos na memória interna e transmite ao centro de vigilância um relatório da atividade da pessoa vigiada até a resolução do problema. É preciso, por sua vez, um centro de vigilância, ou seja, um servidor central que contenha as fichas de cada vigiado, para o qual é emitido um alarme toda vez que ocorre uma falta ou uma tentativa de modificar ou danificar o emissor ou o receptor. Por fim, exige-se um terminal de controle para registrar todos os alarmes recebidos, permitindo-se identificar o condenado e os alertas enviados pelo centro de vigilância. A cada alarme, faz-se necessário verificar se o problema é do sistema ou se é caso de fuga do condenado. Dessa forma, entra-se em contato por telefone para verificar por que soou o alarme, avisando-se as autoridades competentes acerca do incidente para a adoção das providências cabíveis. O sistema de segunda geração, formado por dispositivos de localização global (GPS), pressupõe a utilização de três componentes: satélites, uma rede de estações em terra e braceletes ou tornozeleiras eletrônicas. O dispositivo, criado na década de 1970 pelo Departamento de Defesa norte-americano, permite uma precisa localização do indivíduo, vinte e quatro horas por dia, com uma margem de erro de dez metros, em três dimensões: latitude, longitude e altitude. Pode, por exemplo, viabilizar a emissão de um alarme caso a pessoa monitorada adentre em um local proibido ou chegue a poucos metros de uma determinada pessoa. Entretanto, não se pode olvidar que problemas técnicos como interferências e dificuldades relacionadas à recepção de sinal em determinadas áreas podem comprometer a eficácia do sistema. Com efeito, tal mecanismo, que poderia parecer extremamente futurista no passado, possui grandes chances de substituir por completo os sistemas ativo e passivo, embora apresente um custo maior. Finalmente, o sistema de terceira geração ainda se apresenta de forma hipotética. Contudo, não se trata de mera especulação, visto que a tecnologia atingiu um desenvolvimento tal que já é possível o desenvolvimento de chips para serem implantados 359
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no corpo humano. Inclusive, existe um projeto do governo no Reino Unido para aplicar esta medida a pedófilos,49 não obstante enfrente veemente resistência pela comunidade jurídica em razão da intervenção corporal que acarreta. 23.11.3. Monitoramento eletrônico no Brasil
No Brasil, o escasso debate sobre a monitoramento eletrônico se alterna justamente por essas duas vias, ou seja, a da utilização como mecanismo para reduzir a superpopulação carcerária ou, de outro lado, como instrumento para aumentar o controle sobre aqueles que estão fora dos estabelecimentos penitenciários. Como já mencionado, o sistema penal brasileiro é marcado por um crescente número de pessoas submetidas à prisão ou outras penas e medidas alternativas. Apesar das elevadas taxas de encarceramento, existe ainda uma elevada sensação de insegurança, que tem feito com que inúmeros setores da sociedade peçam por punições mais severas e aumento da segurança pública. Daí, a evidente discrepância na utilização do monitoramento eletrônico que tem se manifestado no Brasil. Mesmo diante de debate insuficiente e de não se ter tornado um tema central em matéria penal e penitenciária no Brasil, foram aprovadas leis estaduais sobre monitoramento eletrônico, como, por exemplo, a Lei do Estado de São Paulo no 12.906/2008. No âmbito federal, como dito anteriormente, entrou em vigor a Lei no 12.258/2010, que alterou o Código Penal e a Lei de Execução Penal para possibilitar a utilização de equipamento de vigilância indireta pelo condenado. Essa Lei prevê as hipóteses em que caberá o monitoramento eletrônico. A lei federal prevê alterações nos arts. 122, 124 e 146, todos da Lei de Execução Penal. O art. 122 só teve aprovado o seu parágrafo único, que dispõe a respeito de não ser impedida a utilização do monitoramento eletrônico por condenados mesmo em casos de ausência de vigilância direta, se assim determinar o juiz da execução. Na hipótese do atual art. 122, mesmo nos casos de ausência de vigilância direta será possível a colocação do condenado sob monitoramento eletrônico quando houver determinação judicial, o que demonstra apenas um aumento do controle penal por parte do Estado e não o cumprimento dos objetivos da medida (diminuição dos custos e redução do número de encarcerados). A alteração realizada no art. 124 consiste na inclusão do parágrafo primeiro, com a presença de três incisos, e dos parágrafos segundo e terceiro. Versa a alteração sobre as condições impostas para a obtenção do benefício da saída temporária, a saber: fornecimento do endereço onde reside a família a ser visitada ou onde poderá ser encontrado durante o gozo do benefício; recolhimento à residência visitada, no período noturno; proibição de frequentar bares, casas noturnas e estabelecimentos congêneres, além da possibilidade de imposição de outras condições quando o juiz entender compatível com as circunstâncias do caso e com a situação do condenado. 49. Rodríguez-Magariños, op. cit., p. 49. 36 0
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Além das condições anteriormente mencionadas, o parágrafo segundo estabelece que “quando se tratar de frequência a curso profissionalizante, de instrução de ensino médio ou superior, o tempo de saída será o necessário para o cumprimento das atividades discentes”. E, nos demais casos, as autorizações para saídas temporárias somente poderão ser concedidas se houver um prazo mínimo de quarenta e cinco dias de intervalo entre uma saída e outra (parágrafo terceiro). A proposta de alteração do art. 146, prevista na Seção VI, Da Monitoração Eletrônica, também foi objeto de vetos, sendo aprovados os arts. 146-B, 146-C e 146-D. Apenas o último não sofreu vetos parciais. O art. 146-B define as hipóteses de cabimento do monitoramento eletrônico pelo juiz quando este autorizar saídas temporárias no regime semiaberto e quando determinar a prisão domiciliar. Com relação à saída temporária no regime semiaberto cabe a mesma afirmação feita anteriormente, ou seja, haverá um aumento do controle penal por parte do Estado em condenados que, em virtude de já terem cumprido parte de sua pena ou por terem praticado crimes que permitam tal regime, já são considerados aptos a não ficarem sob vigilância estatal permanente, não ocorrendo, entretanto, a diminuição dos custos e a redução do número de encarcerados, como pretendido pelo legislador. O art. 146-C versa sobre os cuidados que o condenado deverá ter com o aparelho que realizará a vigilância e sobre os seus deveres, bem como as consequências para a violação de tais regras. Este artigo não merece reparos, vez que as consequências que podem ser originadas no caso de violação comprovada dos deveres e das condições impostas pela lei estão previamente descritas pelo legislador e não violam direitos fundamentais do condenado. Além disso, prevê o dispositivo legal que o monitoramento eletrônico será revogado depois de ouvido o Ministério Público e a defesa, o que garante ao condenado a oportunidade de se manifestar a respeito do não cumprimento de suas obrigações. Por fim, o art. 146-D versa sobre a revogação do monitoramento eletrônico quando este se apresentar desnecessário ou inadequado e quando o acusado ou condenado violar os deveres a que estiver sujeito ou cometer falta grave. Importante destacar que o artigo não faz menção à necessidade de fundamentação da decisão judicial quando for necessária, por qualquer dos motivos indicados na norma, a revogação da medida e também não se refere à necessidade de manifestação das partes. Apesar disso, a decisão judicial que revogar a medida deverá ser fundamentada, sob pena de nulidade (art. 93, IX, da CF/1988) e, seguindo a regra do art. 146-C, o Ministério Público e a defesa deverão se manifestar com relação à revogação.
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título
IV
capítulo
teoria ger a l da sa n ção p en a l
XXIV
PENAS RESTRITIVAS DE DIREITOS 24.1. Considerações gerais
A
de direitos foram efetivamente introduzidas no Brasil pela Reforma de 1984. A Parte Geral do CP e a LEP objetivaram restringir a pena privativa de liberdade às hipóteses estritamente necessárias, determinando, quando possível, a sua substituição por sanções de outra natureza. A rigor, cumpre registrar que as penas restritivas de direitos – assim como a pena de multa – se inserem num universo maior, qual seja, das chamadas “alternativas penais”.1 Por “alternativas penais” compreendem-se os institutos, não só de Direito Penal, mas, igualmente, Processual Penal e de Execução Penal, tendentes a impedir ou abreviar o encarceramento do infrator. Dessa forma, a liberdade provisória, o pagamento de fiança, a justiça restaurativa, o monitoramento eletrônico, além da suspensão da pena ou do processo, do livramento condicional, da transação penal, são considerados exemplos de alternativas penais. Ao gênero “alternativas penais”, pertence, no particular, aquilo que se identifica como penas alternativas, objeto de análise no presente capítulo. s penas restritivas
1. Com efeito, ao longo do século XX e na generalidade dos países, passou-se a buscar alternativas ao encarceramento, tendo em vista os efeitos deletérios da pena de prisão. O movimento em favor de alternativas penais remonta, na verdade, a von Liszt que, no seu famoso Programa de Marburgo, criticou severamente a pena de prisão de curta duração, propondo sua substituição por medidas mais adequadas. 362
Capítulo XXIV | Penas restritivas de direitos
O movimento pelos substitutivos penais está igualmente presente no direito estrangeiro. Segundo Jean Pradel, das penas distintas das privativas da liberdade, que podem corresponder ao que se convencionou chamar no Brasil de penas e medidas alternativas, haveria cinco grandes categorias: a suspensão da pena privativa de liberdade, a prestação de serviços à comunidade, as interdições e obrigações diversas, as sanções morais e a não imposição de uma pena.2
24.2. Características das penas alternativas no Código Penal
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penas alternativas de penas restritivas de direito, embora, a rigor, nem todas tenham por finalidade restringir o exercício de determinado direito individual, como ocorre, por exemplo, com a pena de perda de bens e valores. Conforme disposto no art. 44, do CP, as penas restritivas de direitos são autônomas e substitutivas das penas privativas de liberdade. O sentido autônomo dessas penas se observa pelo fato de que elas não gravitam em torno de nenhuma outra modalidade punitiva. Diferentemente, ao tempo da redação primitiva do Código, existiam as chamadas penas acessórias, essas, sim, subordinadas à pena privativa de liberdade. No modelo atual, isso não mais ocorre. Com efeito, na atualidade, as penas restritivas de direito têm natureza jurídica autônoma de sanção penal. Tanto é assim que mesmo na hipótese de conversão em pena privativa de liberdade, deve-se proceder à detração do tempo de cumprimento da pena restritiva (art. 44, § 4o, do CP). A sua natureza autônoma evidencia-se, ainda, pelo fato de existirem, na legislação especial, tipos penais que cominam diretamente penas restritivas de direitos, de forma isolada ou cumulativa com a pena de prisão, como se vê, por exemplo, nos arts. 302, 303, 306 e 307, da Lei no 9.503/1997 (Código de Trânsito Brasileiro); e, mais recentemente, com o art. 28, da Lei no 11.343/2006 (Lei de Drogas). Demais disso, as penas restritivas são substitutivas da pena de privação da liberdade. Isso porque, em regra, elas não estão previstas nos tipos penais incriminadores. É necessário, primeiro, que o juiz condene o réu a uma quantidade de pena privativa de liberdade e, em seguida, proceda, se cabível, à sua conversão em pena restritiva de direitos. Desse modo, observa-se que as penas restritivas de direitos encontram-se reguladas na Parte Geral do Código, incidindo, em tese, à generalidade dos delitos contidos na Parte Especial do CP. Sendo assim, ao prolatar a sentença condenatória, o magistrado fixa o quantum de pena de reclusão ou detenção, analisando, subsequentemente, mas ainda na própria sentença, a possibilidade de substituição da privação da liberdade por uma ou duas penas restritivas de direitos (art. 59, IV, do CP). Caso não seja legisl ador denominou as
2. Pradel, Jean. Droit pénal comparé. 3. ed., Paris: Dalloz, 2008, p. 510-525. 36 3
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possível essa substituição – não sendo possível, igualmente, a suspensão condicional da pena –, a pena de reclusão ou detenção inicialmente imposta tornar-se-á definitiva. Constata-se, como dito anteriormente, que as penas restritivas têm, em geral, o caráter substitutivo da pena de prisão. Em suma: fixa-se primeiro esta e, se for pertinente, substitui-se por aquela. Ao lado dessas duas características, aponta-se a natureza condicional como sendo o terceiro dado singular das penas alternativas. Na realidade, extrai-se daí a sua força cogente, quer dizer, o descumprimento injustificado das condições estipuladas à pena restritiva de direito condicionalmente imposta pode acarretar a sua conversão na pena privativa de liberdade que fora fixada, conforme determina o § 4o, do art. 44, do CP. Paira, assim, uma espécie de “ameaça latente” àquele que, injustificadamente, descumprir a pena restritiva de direito imposta na sentença condenatória.
24.3. As gerações de penas restritivas de direitos
N
uma crença generalizada na utilidade da pena de prisão (reclusão e detenção). De certa forma, assiste-se, na atualidade, um movimento semelhante para com as penas alternativas, ou seja, cada vez mais o legislador parece acreditar que as penas restritivas de direitos irão solucionar a grave crise do sistema penal brasileiro. Essa percepção pode ser ilustrada com aquilo que se pode denominar de gerações de penas restritivas de direitos. A primeira geração de penas alternativas veio com a Reforma Penal de 1984, com a adoção da sistemática de substituição da privação da liberdade, anteriormente analisada. Essa substituição passou a ser admitida tanto por ocasião da sentença condenatória (arts. 44 c/c 59, IV, do CP) como no curso da execução penal (art. 180, da LEP). Uma segunda geração foi positivada nos anos 1990, quando os diplomas legais passaram a admitir a aplicação direta da pena restritiva, antes mesmo de haver processo instaurado contra o autor do fato delituoso. Foi isso o que ocorreu com as chamadas infrações de menor potencial ofensivo, vale dizer, para a hipótese de transação penal prevista no art. 76, da Lei no 9.099/1995 (Lei dos Juizados Especiais). Por fim, surgiu uma terceira geração, consistente na previsão de penas alternativas no próprio preceito secundário dos tipos penais, metodologia esta que pode vir a se tornar frequente de lege ferenda. Nesse sentido, o CTB comina, para certos delitos, a pena de suspensão ou proibição de se obter a permissão ou habilitação para dirigir veículo automotor, ao lado da pena de detenção. O art. 28, da Lei no 11.343/2006 (posse para uso pessoal de drogas), vai além e sequer comina pena privativa de liberdade, prevendo, somente, três modalidades de penas alternativas (advertência sobre os efeitos das drogas, prestação de serviços à comunidade e medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo).
36 4
o pas sado, houve
Capítulo XXIV | Penas restritivas de direitos
24.4. Requisitos para aplicação da pena restritiva de direitos
A
orientou a Reforma Penal de 1984 foi no sentido de se restringir a pena privativa de liberdade aos casos de reconhecida necessidade, visando, tanto quanto possível, impedir ou atenuar os efeitos criminógenos do encarceramento. Nesse sentido, partiu-se para a adoção de sanções diversas para casos de infratores sem periculosidade ou para autores de crimes de menor gravidade. Entretanto, essa filosofia foi reconhecidamente cautelosa.3 O excesso de cautela na introdução das penas alternativas teria sido a razão – ou, ao menos, uma das razões – da sua pouca aplicação nos anos que se seguiram à vigência da nova Parte Geral. Ademais, os requisitos de substituição da pena de reclusão ou detenção por restritiva de direitos eram bastante restritos, fazendo com que juízes e tribunais continuassem a se valer das penas privativas de liberdade, sendo raros os casos de efetiva substituição por restritiva de direitos.4 Diante daquele quadro, sobreveio a Lei no 9.714/1998 (Lei das Penas Alternativas) com o escopo de ampliar tanto os requisitos como as espécies de penas restritivas de direitos. Com efeito, realizou-se uma reforma nas práticas punitivas do Brasil, estendendo a possibilidade de substituição para crimes dolosos com pena privativa de liberdade aplicada em patamar de até quatro anos, salvo se cometido com violência física ou moral, ou qualquer que seja a quantidade de pena aplicada, se se cuidar de crime culposo. política criminal que
24.4.1. Requisitos objetivos
Requisitos ou pressupostos objetivos são aqueles em que a lei condiciona o deferimento da medida a fatores relacionados ao delito praticado ou às qualidades da vítima. Em suma, é tudo aquilo que está fora da pessoa do agente. Por sua vez, requisitos subjetivos são os que dizem respeito ao agente, tais como primariedade, reincidência, idade, motivação para delinquir, méritos ou deméritos etc. No caso vertente, os requisitos objetivos para a substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos são os seguintes (art. 44, I, do CP): tratando-se de delito doloso, é necessário que a pena privativa de liberdade imposta na sentença não seja superior a quatro anos. É preciso, ainda, que o delito não tenha sido praticado com violência ou grave ameaça à pessoa. Cuidando-se de crime culposo, a substituição pode se dar qualquer que seja a quantidade de pena aplicada. 3. E. M. do CP/1984, item 29: “Com o ambivalente propósito de aperfeiçoar a pena de prisão, quando necessária, e de substituí-la, quando aconselhável, por formas diversas de sanção criminal, dotadas de eficiente poder corretivo, adotou o Projeto novo elenco de penas. Fê-lo, contudo, de maneira cautelosa, como convém a toda experiência pioneira nesta área.” 4. Para os crimes dolosos, o juiz somente podia proceder à substituição se a pena privativa de liberdade aplicada inicialmente fosse inferior a um ano (para as penas restritivas de direitos) ou até seis meses (para pena de multa). Tratando-se de crime culposo, a pena privativa de liberdade aplicada, igual ou superior a um ano, podia ser substituída por uma pena restritiva de direito e multa ou por duas penas restritivas de direitos, desde que exequíveis simultaneamente. 36 5
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24.4.2. Requisitos subjetivos
O primeiro requisito subjetivo é o de não se tratar de reincidente em delito doloso. Ademais, faz-se necessário que as circunstâncias judiciais lhes sejam favoráveis. Sobre a reincidência, observa-se que ela somente impede a substituição se for em delito doloso. Ou seja, os dois delitos devem ser dolosos. Se o primeiro for doloso e o segundo culposo, ou vice-versa, não há impedimento para a substituição. Ainda com relação à reincidência, deve-se observar que ela não é mais um impedimento absoluto, pois sua restrição foi relativizada pelo § 3o, do art. 44, ao permitir a substituição quando a medida for socialmente recomendável, a critério do magistrado, e não se tratar de reincidência específica, ou seja, na mesma figura típica penal. Verifica-se, dessa maneira, a amplitude da mudança trazida pela Lei no 9.714/1998. A grande maioria dos delitos, não somente do Código Penal, mas, igualmente, da legislação especial, comporta, em tese, a adoção de penas alternativas à prisão. Em termos práticos, excetuados os casos de ações executadas com violência física ou moral – e não se cuidando de reincidente específico – pode-se afirmar que as penas restritivas de direitos se tornaram a tônica do cotidiano do sistema punitivo.5
24.5. Multa substitutiva
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do rol do art. 43, do CP, pode o magistrado optar, fundamentadamente, pela substituição da pena privativa de liberdade pela multa, de forma isolada ou cumulada, conforme o caso, com outra pena restritiva de direitos. Dessa maneira, amplia-se a possibilidade de utilização da pena de multa, quer dizer, não somente para os casos em que ela se encontre prevista em tipos penais da Parte Especial, mas em caráter substitutivo da pena privativa de liberdade, válida, portanto, para a generalidade das condenações que admitam as penas alternativas. Sendo assim, o Código contempla a pena de multa sob duas vertentes: a multa propriamente dita (art. 49) e a multa substitutiva (art. 44, § 2o, e art. 60, § 2o, do CP). Portanto, após as alterações trazidas pela Lei n o 9.714/1998 (Lei das Penas Alternativas) a aplicação isolada da multa substitutiva será possível quando a pena privativa de liberdade fixada na sentença for igual ou inferior a um ano. Por outro lado, a multa poderá ser cumulada com outra pena alternativa, se a pena privativa de liberdade imposta ao condenado for superior a um ano, mas não exceder a quatro (art. 44, § 2o). A propósito, discute-se se a regra do art. 60, § 2o, do CP, ainda estaria em vigor. Isso porque, aquele dispositivo somente admite a multa substitutiva para os casos de condenação em patamar inferior a seis meses. Porém, como assinalado, a Lei no 9.714/1998 mbora não conste
5. No ano de 2009, segundo estatísticas do Ministério da Justiça, aproximadamente 670 mil pessoas encontravam-se cumprindo penas alternativas no Brasil, cifra esta que ultrapassa os cerca de 420 mil que, no mesmo período, cumpriam pena privativa de liberdade (Disponível em: < www.mj.gov.br/depen>). 36 6
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ampliou esse patamar de substituição para até um ano, acarretando, segundo alguns, a revogação tácita do mencionado § 2o, do art. 60. Essa interpretação, contudo, deve ser rechaçada, não somente porque não houve a expressa retirada do § 2o, do art. 60, mas, principalmente, porque ele contém norma mais benéfica para o condenado, mesmo após a Lei no 9.714/1998, na medida em que, nos casos de condenação não superior a seis meses, o juiz somente poderá substituir a prisão pela multa, afastando-se a possibilidade de aplicação de pena restritiva de direitos. E isso é, de fato, mais vantajoso para o réu, na medida em que, conforme reconhecido pelo STF, a multa, “acaso descumprida, não enseja a conversão na pena privativa de liberdade, por expressa vedação contida na Lei no 9.268/1996”.6 Por outro lado, se a condenação à pena privativa de liberdade estiver entre seis meses e um ano, poderá o magistrado optar, fundamentadamente, entre multa substitutiva ou pena restritiva de direitos. Acima de um ano, como dito, poder-se-á substituir a prisão por multa e pena restritiva ou por duas restritivas de direito (art. 44, § 2o, do CP). Outra questão polêmica envolvendo a multa substitutiva diz respeito à possibilidade ou não da sua aplicação junto com a multa propriamente considerada, nas hipóteses em que o tipo penal incriminador cominar esta última. Embora possa se afigurar, em tese, inconveniente esse somatório de sanções pecuniárias, visto que a multa – seja ela de qual natureza for – que não vier a ser paga pelo condenado não poderá ser convertida em pena privativa de liberdade,7 fato é que nada impede que o magistrado possa agir dessa forma, conforme reconhecido pelos tribunais, desde que se trate de delito capitulado no Código Penal.8 Todavia, tratando-se de legislação especial que não preveja a possibilidade da multa substitutiva, será inviável a aplicação cumulada desta alternativa prisional com a multa cominada no respectivo tipo penal incriminador, conforme, inclusive, dispõe a Súmula 171 do STJ: “Cominadas cumulativamente, em lei especial, penas privativas de liberdade e pecuniária, é defeso a substituição da prisão por multa”.9
6. Cf. HC 84721. STF. Min. Eros Grau. Primeira Turma. DJ de 28/10/2005. 7. Cf. HC 89073. STJ. Min. Jorge Mussi. Pub. Quinta Turma. DJ de 19/12/2008. 8. Cf.: “Condenado o agente a reprimenda superior a 1 ano, e preenchendo os demais requisitos legais, pode haver a substituição desta pena privativa de liberdade por uma restritiva de direitos e multa ou por duas restritivas de direitos, nada impedindo a cumulação destas com a pena de multa eventualmente cominada (art. 44, § 2 o, do CP).” (REsp 254915. STJ. Min. Hamilton Carvalhido. Sexta Turma. DJ de 04/02/2002). No mesmo sentido: REsp 999981. STJ. Min. Arnaldo Lima. Quinta Turma. DJ de 06/04/2009. Em sentido inverso: “Nos casos em que há previsão de pena privativa de liberdade cumulada com pecuniária, é vedada a substituição da reprimenda corporal pela de multa, sob pena de alteração da própria cominação legal. Aplicada isoladamente, a pena de multa será ineficaz para a repreensão do agente, afastando-se do propósito que a norma pretendeu atingir, pois, ao prever as duas formas de sanção de maneira cumulativa, o legislador visou ao estabelecimento de sanção mais rigorosa, entendendo que a dupla punição seria adequada à prevenção e reprovação da conduta ilícita.” (HC 15037. STJ. Min. Gilson Dipp. Quinta Turma. DJ de 11/06/2001). 9. A propósito, a Lei no 11.340/2006 veda, expressamente, no art. 17, o pagamento isolado de multa no caso de condenação por delito de violência doméstica. 367
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24.6. Espécies de penas restritivas de direitos
A
proceder à análise pormenorizada das penas restritivas de direitos arroladas no art. 43 do Código, faz-se necessário retomar a assertiva sobre a má técnica legislativa no tocante as alterações efetuadas no Código pela Lei no 9.714/1998. Atente-se, por oportuno, que a ementa lateral do art. 45 (Conversão das penas restritivas de direitos) em nada coincide com o conteúdo desse dispositivo. Trata-se de um equívoco de redação, pois, na verdade, a conversão encontra-se regulada nos §§ 4o e 5o do dispositivo anterior. Outra observação crítica – formulada por Alberto Silva Franco –, consiste no caráter supérfluo da redação atual do caput do art. 45, uma vez que todas as regras constantes do art. 44 são aplicáveis em relação às substituições penais, com as peculiaridades próprias de cada modalidade de pena restritiva de direitos: a simples leitura do próprio art. 44 do CP bastaria para demonstrar sua condição de regra geral, tornando-se inteiramente dispensável a cabeça do art. 45.10 Ocorreu, ainda, um equívoco de ordem lógica. As penas de prestação pecuniária e de perda de bens e valores deveriam figurar, como norma central, em artigo próprio, com ementa lateral própria, tal como ocorre com as demais penas alternativas (arts. 46, 47 e 48), ao invés de figurarem como parágrafos do art. 45.11 nte s de se
24.6.1. Pena de prestação pecuniária
Segundo o § 1o, do art. 45, do CP, a pena de prestação pecuniária consiste no pagamento em dinheiro à vítima, a seus dependentes ou a entidade pública ou privada com destinação social, de importância fixada pelo juiz, não inferior a um salário-mínimo nem superior a 360 salários-mínimos. É de se observar, assim, que a prestação pecuniária, além da natureza penal, tem também cunho indenizatório, uma vez que se destina os prejuízos sofridos pela vítima ou, alternativamente, aos seus dependentes. Trata-se, pois, sanção de natureza civil elevada à categoria de pena criminal. A introdução da pena de prestação pecuniária representa uma ruptura da clássica e rígida separação entre as consequências penais e civis de um delito. A importância será fixada pelo juiz, não podendo ser inferior a um salário-mínimo, nem superior a trezentos e sessenta salários-mínimos. Não há dúvida de que a pena deve ser fixada em valor suficiente e adequado à prevenção e reprovação do delito, devendo ser considerados sempre a situação econômica do condenado e os danos patrimoniais experimentados pela vítima. Além disso, o valor pago será deduzido do montante de eventual condenação em ação civil ex delicto, se coincidentes os beneficiários (art. 45, § 1o, in fine, do CP). Caso não 10. Franco, Alberto Silva et al. Código Penal e sua interpretação jurisprudencial. Vol. 1. 7. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001, p. 933. 11. Como se sabe, esta providência é determinada pela boa técnica legislativa, conforme determina o art. 11, III, “c”, da Lei Complementar no 95/1998: “Expressar por meio dos parágrafos os aspectos complementares à norma enunciada no ‘caput’ do artigo e as exceções à regra por este estabelecida”. 368
Capítulo XXIV | Penas restritivas de direitos
seja possível o pagamento de valores à vítima ou seus dependentes, permite-se que a pena seja convertida em favor de entidade pública ou privada de natureza filantrópica. Dessa forma, na hipótese, por exemplo, de homicídio culposo (art. 121, § 3 o), pode acontecer da pena de detenção imposta ao condenado ser substituída por prestação pecuniária em benefício dos familiares da vítima fatal. Não há que confundir, todavia, prestação pecuniária com pena de multa, visto possuírem finalidades distintas. A primeira direciona-se ao pagamento de dinheiro ao lesado, seus dependentes ou, eventualmente, a entidades públicas ou privadas com destinação social. A multa, por seu turno, destina-se sempre ao Estado. Demais disso, caso venha a ser descumprida, prestação pecuniária acarretará a sua conversão em pena privativa de liberdade, o que não ocorre com a pena de multa.12 24.6.1.1. Prestação pecuniária de outra natureza
Segundo o art. 45, § 2o, é possível que a pena de prestação pecuniária possa ser cumprida de forma diversa do pagamento em dinheiro, desde que haja a aceitação por parte do beneficiário. Cumpre esclarecer que o beneficiário mencionado não é o condenado, mas, sim, aqueles aos quais serão revertidos os valores: o lesado, seus dependentes ou entidade pública ou privada com destinação social. Não se cuida, neste caso, de uma nova espécie de pena restritiva incluída na anterior, mas tão somente da possibilidade de substituição do objeto material da prestação – o dinheiro – por outro ativo, como ocorre, de ordinário, com o conhecido pagamento mensal de cestas básicas em favor de entidades com finalidade social. No particular, cumpre ressaltar que, nos casos de violência doméstica contra a mulher, é vedada a aplicação de penas de cestas básicas ou outras de prestação pecuniária, bem como a substituição de pena que implique o pagamento isolado de multa, conforme dispõe o art. 17, da Lei no 11.340/2006 (violência doméstica).13 Para alguns, a previsão de prestação pecuniária de outra natureza violaria o preceito constitucional da individualização da pena, por se tratar de modalidade de sanção indeterminada (art. 5o, XLVI, CF/1988). Contudo, como a dogmática penal evoluiu no sentido da adoção de uma justiça penal consensual, não parece existir inconstitucionalidade no fato do autor e o lesado, seus dependentes ou entidade de assistência social, devidamente assistidos juridicamente, acordarem no sentido da substituição da natureza ou mesmo o valor da pena de prestação pecuniária por outra providência, como, por exemplo, as aludidas cestas básicas mensais, desde que, é claro, não tenha havido o trânsito em julgado da sentença que impôs a pena restritiva de prestação pecuniária.14 12. Nessa linha, o STJ já teve oportunidade de decidir que “a pena de multa e a prestação pecuniária – espécie de pena restritiva de direitos – possuem naturezas jurídicas diversas. O art. 44, § 4 o, do Código Penal, autoriza a reconversão da pena de prestação pecuniária, não cumprida, em privativa de liberdade” (HC 19148. STJ. Min. Gilson Dipp. Quinta Turma. DJ de 05/08/2002). 13. A razão que teria impulsionado esta vedação legal seria a constatação de que, em boa parte dos casos de violência doméstica, o agressor condenado não raro imputava à mulher que noticiava a agressão sofrida uma espécie de “culpa moral”, na medida em que ele, por estar obrigado a prestar cestas básicas para terceiros, passaria a não ter condições de providenciar o sustento dos filhos em comum. A mesma lógica perversa aplicava-se ao pagamento isolado de multa. 14. Cf. RHC 13828. STJ. Min. Arnaldo da Fonseca. Quinta Turma. DJ de 01/12/2003. 369
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24.6.2. Perda de bens e valores pertencentes ao condenado
A pena de perda de bens e valores foi outra inovação trazida pela Lei no 9.714/1998. Com efeito, segundo o § 3o, do art. 44, do CP, a perda de bens e valores pertencentes ao condenado dar-se-á, ressalvada a legislação especial, em favor do Fundo Penitenciário Nacional, e seu valor terá como teto – o que for maior – o montante do prejuízo causado ou do provento obtido pelo agente ou por terceiro, em consequência da prática do crime. Cuida-se de modalidade punitiva expressamente contemplada no texto constitucional (art. 5o, XLV, “b”, da CF/1988). Em tal hipótese, o perdimento de bens e valores titularizados pelo condenado, sejam eles móveis ou imóveis, destinar-se-á, não à reparação da lesão acarretada pela ação criminosa, mas ao Fundo Penitenciário Nacional (Funpen). Ressalvam-se, contudo, as disposições legais em contrário, como ocorre, por exemplo, com Fundo Nacional Anti-Drogas (Funad), regulado nos arts. 60 e segs. da Lei no 11.343/2006 (Lei de drogas). O Código Penal não fixa um patamar mínimo de incidência dessa pena, mas, sim, o máximo, qual seja, o total do prejuízo causado ou do provento obtido pelo agente ou por terceiro, em razão do cometimento do crime. Evidentemente, este limite máximo há de ser especificado na sentença condenatória, para que a presente modalidade de pena se revista de legalidade. Do contrário, importaria em mero confisco. De toda sorte, a cifra a ser executada não poderá passar da pessoa do delinquente. Isto não impede que a perda se estenda ao espólio que venha a ser legado aos sucessores do condenado, desde que o óbito ocorra após o trânsito em julgado da sentença condenatória. Isso impede que terceiros, no caso, os herdeiros – ainda que de boa fé – não venham a enriquecer indevidamente, vale dizer, com o provento obtido pelo de cujus em decorrência da prática do delito. Não obstante, o débito deverá respeitar o limite do valor do patrimônio transferido, conforme o determina o art. 5o, XLV, da CF/1988. Cumpre, ainda, atentar para o fato de que esta pena se sobrepõe ao instituto regulado no art. 91, II, “b”, ou seja, ao perdimento do produto do crime ou de qualquer bem ou valor que constitua proveito auferido pelo agente com a prática do fato criminoso. A prevalência decorre do fato da perda de bens, enquanto pena, consistir em efeito primário da sentença condenatória, ao passo que o perdimento do produto do crime deverá ser consequência secundária daquela sentença. No mesmo sentido, a sanção de perdimento de bens e valores não poderá incidir sobre os instrumentos do delito (art. 91, II, “a”), tendo em vista que estes não integram, necessariamente, o patrimônio do condenado. 24.6.3. Prestação de serviços à comunidade ou a entidade assistencial
A terceira espécie de restritiva de direitos, indicada no art. 43, IV, corresponde à prestação social alternativa, prevista no art. 5o, XLV, “d”, da CF/1988. Segundo o art. 46, a pena de prestação de serviços à comunidade ou a entidades públicas é aplicável às condenações superiores a seis meses de privação da liberdade, consistindo, conforme o teor do seu § 1o, na atribuição de tarefas gratuitas ao condenado.
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A pena se reveste em favor da comunidade porque o condenado irá desempenhar as tarefas que lhe forem impostas em entidades de cunho assistencial, tais como hospitais, escolas, orfanatos e congêneres. Considerando que o Brasil é um país com graves desigualdades sociais, aquelas instituições cumprem uma relevante missão social, suprindo, muitas vezes, as deficiências do próprio poder público, sendo conveniente e oportuno que o caráter aflitivo da pena se reverta em algo de útil para a sociedade como um todo. Na mesma esteira, assinala Cezar Bitencourt que esta modalidade de pena substitutiva trata de trabalhos que não poderiam ser prestados de forma remunerada, vez que as entidades não teriam como arcar com os custos face à escassez de recursos.15 Para ser viabilizada a execução dos serviços gratuitos, faz-se necessário que a entidade ou o programa comunitário se encontre devidamente credenciado junto ao respectivo juízo da execução penal (art. 149, I, da LEP), competindo-lhe, ainda, o envio mensal de relatório circunstanciado das atividades do condenado, comunicando, a qualquer tempo, eventual ausência ou falta disciplinar (art. 150, da LEP). A exigência de que a quantidade de pena privativa de liberdade aplicada seja superior a seis meses, justifica-se por conta do fator de conversão de 1 (uma) hora de tarefa por dia de condenação, fixado de forma a não prejudicar a jornada normal de trabalho (art. 46, § 3o). Nesse sentido, cumpre observar que a atividade terá a duração máxima de oito horas semanais e será realizada aos sábados, domingos e feriados, ou dias úteis, de modo a não prejudicar a jornada normal de trabalho, conforme estabelecido pelo juiz (art. 149, § 1o, da LEP). Determina, ainda, o Código, que a prestação de serviços gratuitos deve ter a mesma duração da pena privativa de liberdade substituída, ressalvado o seu cumprimento em tempo menor, mas nunca inferior a seis meses (art. 55, do CP). Saliente-se, por fim, que as atividades previstas para essa pena alternativa hão de ser de cunho assistencial ou filantrópico, mas sempre condizentes com o princípio da dignidade da pessoa humana. Não se admite, dessa maneira, que a mesma seja desvirtuada para, por exemplo, impor ao condenado a obrigação de semanalmente doar sangue ou de lavar os carros oficiais à disposição dos magistrados. 24.6.4. Interdições temporárias de direitos
A pena prevista no art. 43, inc. V, do CP, desdobra-se em quatro outras, que se relacionam com hipóteses fáticas específicas. Isso as difere do conjunto de penas restritivas, visto que as demais têm alcance geral. Embora reunidas sob a denominação de interdição temporária de direitos, as sanções indicadas no art. 47 são bastante heterogêneas entre si. De comum, apenas o fato de que elas devem ser aplicadas a situações nas quais o condenado tenha abusado de determinada faculdade ou direito, como, v.g., na infração cometida com a violação de deveres funcionais ou profissionais. Por outro lado, não se deve confundir as hipóteses de interdição temporária de direitos com os efeitos da condenação disciplinados no art. 92, do CP. Basicamente, 15. Bitencourt, Cezar Roberto. Op. cit., p. 535. 371
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à distinção se assenta o fato de que se trata de penas, ou seja, efeito primário da condenação, ao contrário dos efeitos secundários regulados nos incisos do art. 92. Ademais, tendo em vista a vedação constitucional de penas de caráter perpétuo (art. 5o, XLVII, “b”, da CF/1988), as penas de interdição são temporárias, ou seja, têm a mesma duração da privação da liberdade substituída (art. 55), ao passo que os efeitos secundários da condenação, uma vez declarados na sentença, desfazem, em definitivo, determinada relação jurídica, e somente poderão ser atingidos na hipótese de decisão favorável no processo de reabilitação (arts. 93 a 95). A) Proibição do exercício de cargo, função pública ou mandato eletivo
A pena de proibição do exercício de cargo, função ou atividade pública, bem como de mandato eletivo (art. 47, I) pressupõe o descumprimento das obrigações inerentes ao desempenho de tais misteres. Ela é, portanto, incidente para condenações decorrentes dos denominados crimes de peculato (arts. 312 e segs.), bem como quaisquer outros que tenham sido praticados com a violação daqueles deveres, como, v.g., o estelionato em detrimento do patrimônio público. A propósito, esclarece-se que cargo público é o conjunto de atribuições e responsabilidades previstas na estrutura organizacional que devem ser cometidas a um servidor público (art. 3o, da Lei no 8.112/1990). Função ou atividade pública é a tarefa efetivamente realizada por aquele servidor. Mandato eletivo, por sua vez, é o cargo investido por intermédio de sufrágio universal, direto e secreto, conforme previsto no art. 14, da CF/1988. Durante o tempo que perdurar a interdição, não poderá ser exercida nenhuma daquelas atividades, cabendo ao juiz da execução comunicar à autoridade competente a pena aplicada, devendo esta, no prazo máximo de 24 horas após o recebimento do ofício judicial, “baixar o ato, a partir do qual a execução terá o seu início” (art. 154, e § 1o, da LEP). Após o decurso do tempo de duração dessa sanção, o servidor poderá retornar ao exercício de suas atividades, salvo hipótese de punição na esfera administrativa (por exemplo, demissão a bem do serviço público). Na há, porém, qualquer esclarecimento legal acerca do pagamento de vencimentos e demais direitos do servidor público durante o tempo que durar a respectiva execução penal. Para a doutrina, diante dessa omissão, tais questões deverão ser tratadas à luz da legislação pertinente.16 Com relação à proibição do exercício de mandato eletivo, merece ainda ser lembrado que a Constituição veda a cassação dos direitos políticos, admitindo a sua perda, como efeito da condenação, ou suspensão em decorrência da aplicação da pena ora considerada (art. 15, III, da CF/1988). B) Proibição do exercício de profissão, atividade ou ofício que dependa de habilitação especial, de licença ou autorização do poder público
Esta modalidade de pena, referida no art. 47, II, do CP, importa na solução de 16. Idem, p. 500. 372
Capítulo XXIV | Penas restritivas de direitos
continuidade do desempenho de profissão, atividade ou ofício que são controladas, direta ou indiretamente, pelo Poder Público. É o que ocorre, v.g., com as profissões de médico, engenheiro, advogado, professor universitário etc. Faz-se necessário, para a aplicação dessa proibição temporária, que o condenado tenha cometido o crime no exercício da profissão, atividade ou ofício (art. 56), até porque a Constituição assegura e valoriza o trabalho e a livre iniciativa (art. 170, CF/1988). Conforme anteriormente mencionado, expirado o prazo da interdição, poderá o condenado voltar ao pleno exercício da atividade interditada, salvo eventual cassação de registro ou diploma por parte do órgão ou conselho fiscalizador. C) Suspensão da autorização ou de habilitação para dirigir veículo
A pena de suspensão da autorização ou de habilitação para conduzir veículos (art. 47, III, do CP) deve ser aplicada aos crimes culposos de trânsito (art. 57, do CP). Denota-se, no particular, a preocupação do legislador com o elevado índice de mortes e lesões corporais, decorrentes dos acidentes de trânsito, verdadeiro problema nacional. Ressalte-se que os veículos que dependem de autorização ou de habilitação são os automóveis, ônibus, caminhões, motocicletas, tratores, embarcações e aviões. Ademais, a sanção é inaplicável, por óbvio, para bicicletas, carroças ou veículos de tração animal. Com a promulgação da Lei no 9.503/1997 (Código de Trânsito Brasileiro), a suspensão ou proibição de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor passou a ser imposta como sanção principal, isolada ou cumulada com outras penalidades (art. 292, do CTB). Considerando que os arts. 302 e 303, dessa lei especial, tipificam os delitos de homicídio culposo e de lesão corporal culposa na direção de veículo automotor, cominando-lhes, ao lado da detenção, justamente a pena de suspensão de permissão para conduzir, tem-se que a pena alternativa ora considerada perdeu, na prática, grande parte da sua efetividade. D) Proibição de frequentar determinados lugares
Cuida-se de pena prevista no art. 47, IV, do CP. A disposição figurava, até então, não como pena alternativa, mas, sim, como condição a ser observada, durante o período de prova no sursis especial (art. 78, § 2o, “a”, do CP) e no livramento condicional (art. 132, § 2o, “c”, da LEP). A Lei no 9.714/1998 elevou a categoria de sanção alternativa uma medida que, como visto, já era conhecida entre nós. Partiu-se, pois, da premissa de que certos locais – bares, boates, estádios de futebol etc. – possuiriam inegáveis fatores criminógenos. Por conta disso, objetivando-se atender à finalidade prevento-especial da pena, o Código passou a admitir a substituição da pena de privação da liberdade por outra que, a rigor, importa em uma parcial restrição da mesma. Embora não se faça menção a um vínculo fático ou jurídico entre delito praticado e certos locais, deve-se entender que, diante dos pressupostos para a aplicação das demais interdições temporárias de direitos (arts. 56 e 57, do CP), a opção do magistrado pela substituição da privação da liberdade por essa modalidade de pena somente será 373
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razoável se existir tal conexão. Os locais de frequência interditada ao condenado devem estar, dessa maneira, devidamente justificados na sentença condenatória. Exemplo: “A”, condenado pelo delito de injúria contra a mulher “B”, pode ter a pena de detenção imposta na sentença substituída pela proibição de frequentar o local de residência, de trabalho ou de estudo da vítima, tornando, assim, definitiva, a providência cautelar contida no art. 22, inc. III, “c”, da Lei no 11.340/2006 (violência doméstica e familiar).
24.6.5. Limitação de fim de semana
Segundo o art. 48, do CP, a pena privativa de liberdade poderá ser substituída pela obrigação de permanecer, aos sábados e domingos, por cinco horas diárias, em casa de albergado ou outro estabelecimento adequado, período em que poderão ser ministrados ao apenado cursos, palestras ou outras atividades educativas. Trata-se de modalidade punitiva conhecida, no direito estrangeiro, como arrêt de fin de semaine e tem por escopo evitar os efeitos da dessocialização, ou seja, a perda dos vínculos familiar e social decorrente do encarceramento. Segundo Jean Pradel, ela implica em uma detenção intermitente que importa na execução da pena de privação da liberdade apenas aos sábados e domingos.17 No Brasil, cabe ao juiz da execução a indicação do local, dia e horário em que deverá ser cumprida a referida sanção (art. 151, da LEP). Além das atividades educativas de caráter geral, há, ainda, a previsão, no parágrafo único do art. 152, da LEP, para os casos de violência doméstica, da obrigação do agressor comparecer a programas de recuperação e reeducação. Todavia, o entrave maior para a efetividade da limitação de fim de semana sempre esteve relacionado à omissão do poder público na construção ou destinação de estabelecimentos adequados para acolher os condenados nos finais de semana. Se existe um histórico e imenso déficit de espaço e de vagas para acomodar os que se encontram privados da liberdade todos os dias da semana, quiçá para os que somente deveriam estar aos sábados e domingos.
24.7. Conversão de penas
A
dois sentidos no âmbito da sistemática punitiva brasileira. De um lado, converter significa revogar a pena alternativa, com a imediata aplicação da pena privativa de liberdade; de outro, o inverso, ou seja, transformar o cumprimento da prisão em restritiva de direito ou multa. A Lei de Execução Penal, em seu art. 180, prevê a possibilidade de que a pena privativa da liberdade, que não tenha sido substituída na sentença penal condenatória, pal avra conversão possui
17. Pradel, Jean. Droit pénal comparé. Paris: Dalloz, 2008, p. 586. O art. 44 do Código Penal português prevê que essa modalidade de pena – denominada “prisão por dias livres” – possa ser aplicada desde que a pena de prisão não ultrapasse o prazo de três meses. 374
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seja convertida, durante o cumprimento da pena, em restritiva de direitos. Para tanto, devem concorrer os seguintes requisitos: a pena não ser superior a 2 (dois) anos; estar o condenado cumprindo pena em regime aberto; ter cumprido ao menos ¼ da pena; e os antecedentes e a personalidade do agente indicarem ser a medida recomendável. Já o art. 181, da LEP, admite hipótese inversa, na qual a pena restritiva de direitos poderá ser convertida em privativa de liberdade. No que se refere à prestação de serviços à comunidade, esta será convertida quando o condenado: não for encontrado por estar em lugar incerto e não sabido, ou desatender a intimação por edital; não comparecer, injustificadamente, à entidade ou programa em que deva prestar serviço; recusar-se, injustificadamente, a prestar o serviço que lhe foi imposto; praticar falta grave; ou sofrer condenação por outro crime à pena privativa de liberdade, cuja execução não tenha sido suspensa. Já a pena de limitação de fim de semana será convertida quando o condenado não comparecer ao estabelecimento designado para o cumprimento da pena, recusar-se a exercer a atividade determinada pelo Juiz ou se ocorrer qualquer das hipóteses das letras “a”, “d” e “e” do parágrafo anterior. Por sua vez, a pena de interdição temporária de direitos será convertida quando o condenado exercer, injustificadamente, o direito interditado ou se ocorrer qualquer das hipóteses das letras “a” e “e”, do § 1o, do art. 181. Nestes casos, torna-se obrigatória a conversão da pena restritiva de direitos na pena privativa de liberdade que fora originalmente fixada na sentença. Ocorre, ainda, a citada conversão, quando sobrevier condenação a pena privativa de liberdade, por outro delito, quando, a critério do juiz da execução, não for possível ao condenado prosseguir no cumprimento da pena substitutiva anterior (art. 44, §§ 4o e 5o, do CP). Com relação ao desatendimento injustificado da restrição imposta, o recrudescimento punitivo visa assegurar o caráter cogente da pena substitutiva. A manutenção do cumprimento da alternativa à prisão pressupõe, pois, a existência do senso de autodisciplina e responsabilidade. Nesse sentido, o STJ já teve oportunidade de decidir que, restando comprovado que o condenado se recusa, sistematicamente, a cumprir a pena restritiva de direitos, sem qualquer justificativa para tanto, “inexiste qualquer ilegalidade na revogação do benefício”.18 A conversão, contudo, não se opera automaticamente. Dessa feita, antes de se decretar a conversão e a subsequente expedição de mandado de prisão, o magistrado deve designar audiência especial para oportunizar que o condenado apresente eventuais justificativas. Nesse sentido, o STJ concedeu ordem de habeas corpus em favor de um condenado, por considerar ter havido constrangimento ilegal por ocasião da conversão da pena restritiva de direitos em reprimenda privativa de liberdade, sem audiência de justificação.19 18. HC 17408. STJ. Min. Vicente Leal. Sexta Turma. DJ de 06/05/2002. 19. HC 129120. STJ. Min. Napoleão Filho. Quinta Turma. DJ de 21/09/2009. 375
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A segunda causa legal de conversão ocorre com a superveniência de condenação a pena de prisão por outro delito, desde que haja incompatibilidade do cumprimento em conjunto das duas sanções (art. 44, § 5o, do CP). Se a condenação, por outro crime, importar em pena de reclusão em regime fechado, evidentemente não se poderá prosseguir no cumprimento de pena anterior de prestação de serviços à comunidade. No entanto, se houver compatibilidade, como, no exemplo de alguém que está a cumprir a referida pena restritiva de direitos e que venha a ser novamente condenado, em sentença definitiva, à pena de prisão em regime aberto, poderá o juiz da execução decidir pela não conversão. Para o STJ, sendo possível a execução simultânea ou sucessiva das medidas impostas ao apenado, “não há o que se cogitar em reconversão em pena reclusiva”.20 Por último, relembra-se que no caso de multa substitutiva, injustificadamente descumprida, não há que falar do retorno à pena privativa de liberdade inicialmente imposta, tendo em conta não mais vigorar a regra que previa a conversão da multa em prisão (cf. a nova redação do art. 51, do CP).21
24.8. Detração do tempo de cumprimento da pena alternativa
D
da execução penal, a conversão da pena restritiva de direitos em privativa de liberdade (art. 66, inc. V, “b”, da LEP), cumpre ser expedida guia de recolhimento do condenado para fins de ingresso no sistema penitenciário (art. 106, da LEP), interrompendo, assim, a prescrição da pretensão executória (art. 117, inc. V, do CP). Contudo, ao contrário do que existia antes da Lei das Penas Alternativas (Lei n 9.714/1998), no cálculo da pena privativa de liberdade a executar será detraído o tempo cumprido da pena restritiva, respeitado o saldo mínimo de trinta dias de detenção ou reclusão (art. 44, § 4o, parte final). A detração justifica-se plenamente, pois a sistemática anterior – i.e., o cumprimento integral da pena de prisão originalmente ecretada , pelo juiz
20. HC 114146. STJ. Min. Jorge Mussi. Quinta Turma. DJ de 15/12/2009. Na mesma linha: “1. De acordo com a jurisprudência desta Corte, a conversão das penas alternativas em privativa de liberdade, pelo Juízo das Execuções, restringe-se ao eventual descumprimento injustificado de quaisquer das obrigações impostas (art. 44, § 4 o, do CP, c/c art. 181, da LEP) ou quando, em superveniente condenação, por outro crime, houver incompatibilidade com a reprimenda corporal aplicada (art. 44, § 5 o). 2. Assim, a conversão ou não das restritivas de direitos em privativa de liberdade dependerá do regime inicial fixado na nova condenação. Se fechado ou semiaberto, certamente não será possível a manutenção do benefício legal. Todavia, tratando-se de regime exclusivamente aberto, como na hipótese dos autos, é plenamente possível a execução simultânea da pena corporal com as prestações de serviços à comunidade e prestações pecuniárias anteriormente aplicadas ao paciente. 3. Com efeito, em respeito à coisa julgada, em sede executória, inviável reverter a substituição das reprimendas por restritivas de direitos determinada em cada processo autônomo na fase de cognição, sob o fundamento de haver o respectivo somatório ultrapassado o quantum de 04 anos. 4. De ressaltar, por fim, que o art. 111, caput, e parágrafo único, da LEP, cuida especificamente de regime prisional para cumprimento de penas privativas de liberdade, não incidindo ao caso em questão. 5. Habeas corpus concedido para, cassando a decisão impugnada, determinar na unificação das penas impostas ao paciente a observância das sentenças transitadas em julgado, nos seus exatos termos, exceto se no curso do presente writ tenha ocorrido quaisquer das hipóteses previstas no art. 44, §§ 4 o e 5 o, do CP, c/c art. 181, da LEP.” (HC 106630. STJ. Min. Og Fernandes. Sexta Turma. DJ de 03/03/2009). 21. HC 89073. STJ. Min. Jorge Mussi. Quinta Turma. DJ de 19/12/2008. 376
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imposta – acarretava flagrante injustiça, em particular nos casos em que a pessoa já havia cumprido um prazo razoável de pena alternativa. Fez-se, porém, a ressalva do “saldo mínimo” de trinta dias de prisão para fins de manutenção do caráter coercitivo das penas restritivas de direito, como uma espécie de “gatilho” a impedir que o apenado se desinteresse pelo seu atendimento justamente no final do seu período de vigência.
24.9. Penas restritivas de direitos para crimes hediondos. A polêmica com o tráfico de drogas
A
determinou que fossem considerados inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia a prática da tortura, o tráfico de drogas, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos (art. 5o, XLIII). A Lei no 8.072/1990 dispôs sobre a referida matéria, arrolando diversas figuras típicas consideradas como hediondas, negando-lhes – conforme redação atualizada pela Lei no 11.464/2007 – a concessão de anistia, graça e indulto, bem como de fiança. Foi-lhes imposto, ainda, o cumprimento da pena em regime inicial fechado e a possibilidade de progressão de regime somente após o cumprimento de dois quintos da pena, se primário, ou de três quintos, se reincidente. Como dito, os delitos tidos como hediondos estão arrolados nos incisos do art. 1o, da Lei no 8.072/1990. Com relação a tortura, ela se encontra tipificada no art. 1o, da Lei no 9.455/1997. O tráfico de drogas, por sua vez, está capitulado no art. 33, da Lei no 11.343/2006. Por fim, o terrorismo ainda não recebeu, a rigor, uma tipificação adequada, conquanto se possa enxergar no art. 20, da Lei no 7.170/1983, referência legal a este ilícito. Pois bem. A questão que ora se apresenta diz respeito à possibilidade ou não de substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos, nas hipóteses de crimes hediondos e os constitucionalmente assemelhados. De antemão, cumpre observar que os ilícitos indicados nos incs. I a VII, do art. 1o, da Lei no 8.072/1990, não admitem penas alternativas, pois são condutas perpetradas com violência ou grave ameaça à pessoa, não preenchendo, assim, o requisito do art. 44, inc. I, do Código. No entanto, para hipóteses de falsificação, corrupção, adulteração ou alteração de produto destinado a fins terapêuticos ou medicinais, bem como para a associação ou a incitação de genocídio (art. 1o, inc. VII-B, e parág. único, da Lei no 8.072/1990), caberia, em tese, a substituição ora considerada, uma vez que são situações que podem ser praticadas sem violência física ou moral, desde que, é claro, a pena privativa de liberdade porventura aplicada fique em patamar inferior a quatro anos. Contudo, diante do comando constitucional que impõe um tratamento mais severo para os crimes hediondos e equiparados, não parece ser recomendável ou indicada esta substituição. Discussão semelhante, embora com alguns contornos particulares, trava-se com relação ao delito de tráfico de drogas. Ao tempo da legislação anterior, os tribunais haviam pacificado o entendimento favorável à conversão da pena de prisão em restritiva Constituição de 19 8 8
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de direitos aos condenados por tráfico de drogas, uma vez que a (revogada) Lei no 6.368/1976 nada dispunha em sentido inverso.22 Diferentemente, com o advento da Lei no 11.343/2006 (nova Lei de Drogas), passou-se a vedar, no seu art. 44, “a conversão de suas penas em restritivas de direitos”. Na mesma esteira, o § 1o, do art. 33, do mesmo diploma legal, ao prever a redução de pena privativa de liberdade, de um sexto até dois terços, desde que o agente seja primário, de bons antecedentes, não se dedique às atividades criminosas nem integre organização criminosa, proibiu, igualmente, a “conversão em penas restritivas de direitos”. Diante dessa nova disciplina legal, é possível se sustentar, para o tráfico de drogas, a possibilidade de conversão da pena privativa de liberdade em restritiva de direitos? No âmbito do STJ, a questão foi debatida por sua Corte Especial, por ocasião do julgamento de arguição de inconstitucionalidade onde se requeria a substituição da pena de três anos, dez meses e vinte dias de reclusão por restritiva de direitos, mediante a declaração incidental de inconstitucionalidade das expressões “vedada a conversão em penas restritivas de direitos”, prevista no § 4o, do art. 33, e “vedada a conversão de suas penas em restritivas de direitos”, contida no art. 44, ambos da Lei no 11.343/2006. A tese vencedora foi a de que a vedação de substituição de pena não violaria o princípio da individualização da pena, porque essa individualização inicia-se, primeiramente, pela lei. Desse modo – e porque o art. 5o, XLIII, da CF/1988 dispõe que a lei considerará inafiançável e insuscetível de graça e anistia, dentre outros, o tráfico de drogas – não seria lógico se admitir a conversibilidade da pena de prisão em restritiva de direitos: “como justificar a prisão antes de uma condenação judicial, para, depois desta, substituí-la pela pena restritiva de direitos?”23 Em que pese o decidido pela Corte Especial do STJ, o Supremo Tribunal adotou o entendimento contrário, qual seja, do cabimento da substituição. Com efeito, apreciando habeas corpus impetrado em favor de condenado à pena de um ano e oito meses de reclusão pela prática do crime de tráfico de drogas (art. 33, § 4o, da Lei no 11.343/2006), a maioria dos ministros do STF decidiu que a lei não pode retirar do magistrado a competência para impor a pena que ele reputar adequada ao caso concreto, podendo – e devendo –, inclusive, proceder à substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direito nas hipóteses de tráfico de drogas. Em suma, considerou-se inconstitucionais a parte final do art. 44, da Lei no 11.343/2006, bem assim a expressão análoga “vedada a conversão em penas restritivas de direitos”, constante do § 4o, do art. 33, do mesmo diploma legal, determinando-se, dessa feita, que, no caso em questão, o Juízo da Execução Penal avaliasse o preenchimento das condições objetivas e subjetivas do paciente para fins de concessão da referida substituição.24
22. Nesse sentido: HC 95662. STF. Min. Celso de Mello. Segunda Turma. DJ de 26/06/2009; HC 83153. STJ. Min. Maria Thereza. Sexta Turma. DJ de 21/09/2009; HC 133962. STJ. Min. Laurita Vaz. Quinta Turma. DJ de 14/09/2009. 23. AI no HC 120353. STJ. Corte Especial. Relator para Acórdão Min. Ari Pargendler. DJ de 18/12/2009. 24. HC 97256. STF. Plenário. Min. Ayres Britto. DJ de 16/12/2010. 378
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IV
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XXV
PENA DE MULTA
25.1. Considerações gerais
T
sanção contemplada no Código Penal, a pena de multa acompanha o Direito Penal desde os seus primórdios. Nos fragmentos disponíveis das legislações da Antiguidade podem ser encontrados registros da sua aplicação para inúmeros delitos. Na alta Idade Média – período que abrange a queda de Roma até meados do século XII –, a figura punitiva do preço do sangue, ou seja, a compensação, em dinheiro, pelo ilícito perpetrado, teria sido a principal modalidade punitiva, posteriormente substituída pela aplicação generalizada da pena de morte.1 A multa penal consiste no pagamento de uma soma de dinheiro por parte do condenado a favor do Estado. O art. 49, CP, diz que “a pena de multa consiste no pagamento ao fundo penitenciário, da quantia fixada na sentença, e calculada em dias-multa”. Há, pois, impropriedade no dispositivo legal, visto que a multa não consiste no pagamento; este é a sua execução. A pena de multa é sempre cominada, na hipótese de crime, de forma alternativa ou cumulativa. Aparece, por vezes, isoladamente, nas contravenções. Nas cominações da pena de multa na Parte Especial erceira espécie de
1. Ítalo Mereu assinala que a pena pecuniária é um instituto que tem uma relevância maior do que a os autores em geral lhe atribuem. Ele explica que a longevidade de séculos, na Europa, decorreu da estrita observância do preceito cristão do “não matarás” (Mereu, Ítalo. A morte como pena. Trad. Cristina Sarteschi. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 13). 379
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do CP não aparecem os limites a serem observados. Esses limites estão previstos na Parte Geral (art. 49, CP). Ressalte-se que tal sanção apresenta vantagens consideráveis, em especial quando comparada à pena privativa de liberdade. Para o condenado, evitam-se os inconvenientes do aprisionamento. Para o Estado, a multa significa o ingresso ao invés do dispêndio de valores referentes à tarefa da execução penal. Por conta disso, Pradel assinala que a multa é a enfant chéri dos legisladores quando da elaboração de novas leis penais, mesmo para delitos que, em regra se comina pena de privação da liberdade, a multa quase sempre vem também cominada.2 Entretanto, a grande questão envolvendo a multa sempre foi a busca pelo seu ponto de efetividade. Isso porque, para o condenado pobre, o seu montante pode importar na impossibilidade de pagamento, ao passo que, para o rico, seu valor pode se revelar baixo ou mesmo irrisório, podendo compensar, inclusive, os custos do delito, em particular naqueles com repercussão econômica. Em países com histórico de inflação, a multa, quando cominada em quantidade fixa, cedo ou tarde, torna-se irrelevante, tendo em conta a corrosão da moeda. Exatamente por esses fatores, a Reforma Penal de 1984 adotou o modelo de dias-multa, a seguir pormenorizado, em detrimento da sistemática anterior de cominação de quantidade fixa da multa em cada tipo penal incriminador. Sob outra vertente, a doutrina afirma que haveria duas características gerais para a multa penal: (1) a sua conversão em prisão, caso não seja paga; e (2) seu caráter personalíssimo, ou seja, a impossibilidade de ser transferida para os herdeiros ou sucessores do apenado.3 A conversibilidade da multa em privação da liberdade deixou de existir no Brasil, devendo a mesma ser executada nos termos da legislação que regula a cobrança dos débitos tributários. Por sua vez, a natureza personalíssima, ainda presente, remonta ao princípio iluminista no sentido de que a pena não pode ultrapassar a pessoa do condenado, evitando-se que se atinja, por via oblíqua, o patrimônio de seus familiares.
25.2. Sistema dos dias - multa
C
o Código Penal, na sua redação originária, previa um valor mínimo e máximo da multa cominada para certos delitos. Com a Reforma de 1984, essa sistemática foi substituída pela metodologia de regular a multa na Parte Geral, prevendo, na Parte Especial, tão somente a menção à sua imposição. Objetivou-se, desse modo, que a multa não mais importasse em um quantum fixo em dinheiro, mas que ficasse atrelada ao valor do salário mínimo nacional, oscilando de acordo com a renda ou patrimônio do condenado. Cuida-se do sistema dos dias-multa, adotado, omo dito anteriormente ,
2. Pradel, Jean. Droit pénal comparé. Paris: Dalloz, 2008, p. 501. O autor reporta-se, em particular, ao Brasil, “cujo Código Penal contém 215 infrações e reprime apenas 62 delas com pena isolada de prisão, 98 com prisão cumulada com multa e, por fim, 53 com prisão alternada com multa, a critério do juiz.” (Idem, p. 502). 3. Cf. Bitencourt, Cezar Roberto. Op. cit., p. 610. 38 0
Capítulo XXV | Pena de multa
originariamente, pelo Código Criminal de 1830, muito embora alguns doutrinadores afirmem que a técnica do dias-multa (dabsbot) teria surgido no projeto de Código Penal sueco, elaborado por Johan Thyren.4 No modelo atual, dispõe o art. 49, do CP, que a pena de multa se consubstancia em dias-multa, a ser recolhida ao Fundo Penitenciário Nacional (Funpen), sendo calculada, na sentença, em quantidade que varia entre o mínimo de 10 (dez) e o máximo de 360 (trezentos e sessenta) dias-multa. Após fixada a quantidade de dias-multa deve o magistrado informar, na sentença condenatória, o valor de cada dia-multa, em patamar que não pode ser inferior a 1/30 (um trigésimo) do maior salário-mínimo mensal vigente ao tempo do fato, nem superior a 5 (cinco) vezes esse salário (art. 49, parágrafo único, do CP). Complementando essa sistemática, o art. 60, do CP, assinala que na fixação da multa o juiz deve atender, principalmente, à situação econômica do réu, autorizando, inclusive, que se ultrapasse os limites do art. 49, até o triplo, se o juiz considerar que, em virtude da situação econômica do réu é ineficaz, embora aplicada no máximo. Consoante o art. 49, e seu § 1o, do CP, observa-se, para a aplicação da multa, a mecânica jurídica comentada a seguir. Primeiramente, há a fixação da quantidade de dias-multa. Esta quantidade varia entre os numerais 10 e 360. Nesta primeira fase, o magistrado guia-se pela gravidade do delito perpetrado e pela culpabilidade do réu, isso porque, como exposto anteriormente, na redação primitiva do CP/1940, a quantidade abstrata de multa acompanhava a maior ou menor gravidade dos delitos contemplados na Parte Especial do Código. Em segundo lugar, fixa-se o valor de cada dia-multa. Neste segundo momento, o dia-multa varia entre o mínimo de 1/30 (um trinta avos) e o máximo de 5 (cinco) vezes o valor do salário-mínimo vigente na época do fato. Para a atribuição desse valor não se leva em conta o fato praticado ou a culpabilidade do réu, mas, basicamente, a sua capacidade econômica (art. 60, caput, do CP). O Código Penal prevê, ainda, a possibilidade de uma terceira fase, qual seja, da elevação até o triplo do montante calculado nas etapas anteriores, quando o máximo fixado revelar-se ineficaz frente à capacidade econômica do condenado (art. 60, § 2o, do CP). Dessa maneira, chegar-se ao teto máximo de R$ 2.916.000,00 (dois milhões, novecentos e dezesseis mil reais), em valores de janeiro de 2011. Saliente-se, por fim, que o sistema de dias-multa também é adotado pela legislação especial, embora com algumas diferenças do Código Penal. Nesse sentido, a Lei no 11.343/2006 (Lei de Drogas) estabelece, nos seus respectivos tipos penais, quantidades mínima e máxima de dias-multa, fixando, no art. 43, o valor de cada dia-multa, 4. Dispunha o art. 55, do CC/1830: “A pena de multa obrigará os réus ao pagamento de uma quantia pecuniária, que será sempre regulada pelo que os condenados puderem haver em cada um dia pelos seus bens, empregos ou indústria, quando a lei especificadamente a não designar de outro modo.” Sobre o assunto, Jean Pradel afirma que a ideia “sedutora” do dias-multa (jour-amende) foi, de fato, estabelecida pelo legislador brasileiro, no século XIX, mas a sua feição moderna decorreu, na verdade, do projeto sueco de Thyren (1916), que findou por ser acolhida, pioneiramente, pelo Código Finlandês de 1921. (Pradel, Jean. Op. cit., p. 503). 381
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consoante a condição econômica do acusado, podendo, ainda, ser elevado até o décuplo, caso o valor máximo encontrado for considerado ineficaz pelo magistrado sentenciante (art. 43, parágrafo único, da Lei no 11.343/2006).
25.3. Pagamento e execução da pena de multa
S
egundo o art. 50, do CP, a multa deve ser paga dentro de 10 dias depois de transitada em julgado a sentença condenatória. Faculta-se, ainda, o seu pagamento em prestações mensais, podendo, eventualmente, vir a ser descontada do salário ou dos vencimentos do condenado. Se o condenado não receber ou não cumprir pena privativa da liberdade, permanecendo no emprego que tiver, o pagamento da multa poderá fazer-se mediante desconto nos seus vencimentos ou salário. Esses casos serão aqueles em que a pena de multa: é aplicada isoladamente; é aplicada cumulativamente com pena restritiva de direitos, ou quando é concedida a suspensão condicional da pena. O desconto não deve incidir sobre os recursos indispensáveis ao sustento do condenado e de sua família (art. 50, §§ 1o e 2o, CP). Como adiantado anteriormente, a multa deve ser recolhida ao Fundo Penitenciário Nacional (Funpen), conforme regulado pela Lei Complementar no 74/1994, que, no seu art. 2o, V, aponta, como uma das suas receitas, a multa criminal. Por outro lado, é importante registrar que com a Lei no 9.268/1996 o não pagamento da multa, por parte do condenado solvente, não mais acarreta sua conversão em pena privativa de liberdade, diferentemente do que ocorria no regime anterior, onde a quantidade de dias-multa se convertia, respectivamente, em dias de detenção, alcançando, portanto, um limite máximo de quase um ano de encarceramento do inadimplente. Com a redação atual do art. 51, a multa criminal tornou-se dívida de valor, sendo-lhe aplicável as normas da legislação relativa à dívida ativa da Fazenda Pública Federal ou Estadual, inclusive no que concerne às causas interruptivas e suspensivas da cobrança do crédito tributário. Retirou-se, assim, o seu caráter coercitivo de cunho penal (conversão em prisão), passando a figurar, tão somente, o seu aspecto fiscal. A Lei no 9.268/1996 revogou, inclusive, o art. 182, da LEP, que igualmente tratava da conversão da multa em detenção. O fundamento jurídico para a referida mudança foi o de que a conversão em prisão consistia em uma inconstitucional prisão civil por dívidas ou, ainda, uma prisão por pobreza.5 Corroborando o entendimento de que a multa criminal deixou de representar, a partir da Lei no 9.268/1996, qualquer risco ou ameaça ao direito de locomoção do condenado, o STF editou a Súmula 693, com o seguinte teor: “Não cabe habeas corpus contra
5. Nesse sentido, decidiu-se que, ao dar nova redação ao caput do art. 51 (bem assim revogar os seus §§ 1o e 2o), a Lei no 9.268/1996 agiu de maneira salutar, “tendo em vista que a antiga conversão da multa em detenção correspondia, ainda que disfarçadamente, à verdadeira prisão por dívida, vedada pelo art. 5 o, LXVII, da CR/88, e pelo art. 7o, VII, da CADH” (RHC 81480. STF. Min. Sydney Sanches. Primeira Turma. DJ de 05/02/2002). 382
Capítulo XXV | Pena de multa
decisão condenatória a pena de multa, ou relativo a processo em curso por infração penal a que a pena pecuniária seja a única cominada”.
25.4. Competência para a execução da multa
A
da Lei no 9.268/1996, surgiu a polêmica sobre a competência para a cobrança da multa, ou seja, se ela continuaria a ser executada pelo Ministério Público, junto ao juízo das execuções penais, ou se caberia à Procuradoria da Fazenda Nacional promovê-la perante as varas da Fazenda Pública. Segundo parte da doutrina, a competência continuaria com a vara de execuções criminais, pois a multa conservaria sua natureza de sanção criminal. Dentre outros argumentos, Cezar Bitencourt aduz não ser da atribuição da Fazenda Pública executar os débitos decorrentes de sentenças penais condenatórias, independentemente de serem etiquetados como dívida de valor. Para aquele autor, tal competência remanesceria com o Ministério Público perante a justiça criminal.6 Em que pese esse posicionamento doutrinário, deve-se atentar que os tribunais superiores já pacificaram o entendimento no sentido inverso, ou seja, o de que, com o advento da Lei no 9.268/1996, a legitimidade para executar a pena de multa passou a ser, sim, dos órgãos fazendários, não subsistindo a atribuição dantes conferida ao Ministério Público.7 Observa-se, nesse sentido, que os conflitos de atribuição havidos entre Ministério Público e Fazenda Nacional foram, ao fim e ao cabo, dirimidos pela 3a Seção do STJ. Segundo o posicionamento deste colegiado, transitada em julgado a sentença penal condenatória, compete ao juiz da execução penal intimar o condenado para efetuar o pagamento da pena pecuniária, devendo comunicar à Fazenda Nacional para que proceda à execução fiscal (art. 51, CP), no juízo competente.8 No âmbito dessa discussão, insta acrescentar que a Lei no 10.522/2002 (com a redação alterada pela Lei no 11.033/2004), que cuida do cadastro de créditos não quitados no setor público federal (Cadin), determina o arquivamento das execuções fiscais de débitos inscritos como Dívida Ativa da União de valor consolidado igual ou inferior a dez mil reais (art. 20). Diante disso, é forçoso reconhecer que um número significativo de multas criminais, inferiores àquele valor, e não recolhidas pelo condenado sequer serão objeto de ajuizamento de execuções fiscais. A tudo isso se soma o exíguo prazo prescricional de dois anos (art. 114, do CP), que também contribui para a perda da efetividade prática da pena de multa no Brasil. Sendo assim, tem-se que, na atualidade, a pena de multa está muito aquém dos propósitos que conduziram a sua adoção generalizada pelo legislador. A sua força cogente remanesce fundamentalmente para efeitos de revogação da suspensão condicional da pena, conforme disposto no art. 81, inc. II, do CP. pós as transformações
6. Bitencourt, Cezar Roberto. Op. cit., p. 610. 7. Cf. REsp 286887. STJ. Min. Gilson Dipp. Quinta Turma. Publ. DJ de 29/04/2002. 8. Conflito de Competência 29520. STJ. 3 a Seção. Min. Arnaldo da Fonseca. Publ. DJ de 27/11/2000. 383
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IV
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teoria ger a l da sa n ção p en a l
XXVI
APLICAÇÃO DA PENA 26.1. Considerações gerais
A
ao autor do fato típico, antijurídico e culpável representa tema central de toda a disciplina. O processo de determinação da pena é aquele que o juiz realiza para fixar a sanção aplicável ao agente pelo ilícito penal praticado declarando merecimento de determinada pena em concreto. Ressalte-se, de início, que a individualização da pena é garantia fundamental do cidadão (art. 5o, XLVI, da CF/1988) e se desdobra em três etapas sucessivas: cominação, aplicação e execução. A primeira, denominada de individualização legislativa, compreende a escolha, por parte do legislador, da espécie de sanção, bem como a respectiva quantidade abstrata; a segunda, individualização judiciária, é tarefa do juiz criminal, que deverá escolher que penas vai aplicar e aplicá-las ao caso concreto em que houve a violação efetiva da norma; a etapa derradeira, realizada pelo juiz de execução penal, acompanha o efetivo cumprimento da pena aplicada.1 aplicação da sanção
1. Cf.: “1. O processo de individualização da pena é um caminhar no rumo da personalização da resposta punitiva do Estado, desenvolvendo-se em três momentos individuados e complementares: o legislativo, o judicial e o executivo. Logo, a lei comum não tem a força de subtrair do juiz sentenciante o poder-dever de impor ao delinquente a sanção criminal que a ele, juiz, afigurar-se como expressão de um concreto balanceamento ou de uma empírica ponderação de circunstâncias objetivas com protagonizações subjetivas do fato-tipo. Implicando essa ponderação em concreto a opção jurídico-positiva pela prevalência do razoável sobre o racional; ditada pelo permanente esforço do julgado para conciliar segurança jurídica e justiça material. (...)” (HC 97256. STF. Plenário. Min. Ayres Britto. DJ de 16/12/2010). 38 4
Capítulo XXVI | Aplicação da pena
Sobre o assunto, vale registrar que a aplicação da pena pressupõe o exame das provas produzidas sob o crivo do contraditório e da ampla defesa, dentre outros princípios e regras constitucionais e processuais penais pertinentes. Há, portanto, uma interseção de aspectos estritamente penais com disposições da CF/1988 e do CPP, pois é por meio da sistemática das provas que se chega não somente à absolvição ou condenação do acusado, mas, também à quantificação da pena que, no último caso, o mesmo deva receber. Se o Código Penal dispõe sobre as espécies e diretrizes para a aplicação da pena, o Código de Processo Penal apresenta diversas normas técnicas sobre a sentença condenatória, havendo, como dito, estreita relação entre esses ramos do Direito. Contudo, nem sempre foi assim. No passado, ou seja, antes da Ilustração, predominava o absoluto arbítrio judicial. Não existiam critérios norteadores da atividade de aplicação da pena, ficando a escolha e a quantidade de pena ao talante do juiz, consoante o confuso emaranhado dos indícios e provas existentes contra ou a favor do acusado. Não raro, recorria-se às ordálias ou juízos divinos para a formação da culpa, bem como às diversas iniquidades, como a tortura (tormentis) comezinhamente utilizada para extração da confissão, considerada que era “rainha das provas”.2 Por força do movimento iluminista – particularmente de Cesare Beccaria – passou a vigorar a chamada pena tarifada, quer dizer, à determinação legal de um rígido catálogo de sanções a serem impostas simetricamente ao delito incurso. Foi-se de um extremo a outro, o que se revelou igualmente inadequado, pois acarretou o engessamento da atividade judicante, reduzindo-se o magistrado ao mecânico papel daquilo que Montesquieu qualificava de bouche de la loi, além de violar o postulado isonômico de se tratar desigualmente os desiguais na medida das suas desigualdades.3 Os integrantes da Escola Clássica do Direito Penal permaneceram, em regra, fieis à correspondência apriorística entre quantidade de pena e modalidade de delito, fortes no ideal da igualdade entre os homens (livre-arbítrio), sendo esta uma das muitas críticas que contra eles se levantaram. A terceira etapa histórica da aplicação da sentença condenatória consistiu na paulatina adoção do sistema do livre convencimento, ou seja, a faculdade do juiz formar sua convicção com a valoração fundamentada das provas, chegando-se à punição justa e adequada, conforme a escala mínima e máxima fixada pelo legislador, sistemática esta presente até os dias atuais.4 Nesse terreno, influiu decisivamente a Escola 2. Exemplo histórico da aplicação arbitrária da pena criminal foram as Ordenações do Reino, nomeadamente as Ordenações Filipinas, que vigorou, entre nós, por dois séculos. O Livro V, referente à parte penal e processual penal, nada dispunha sobre critérios de aplicação da pena, permitindo, p. ex., que os acusados de desordem (assuada) sofressem as penas que “per nossas Ordenações e Direito merecerem” (Liv. V, Tít. XLVI, § 2o). 3. O Código revolucionário francês de 1791 não concedia qualquer margem de liberdade para o juiz determinar a pena mais adequada ao caso, providência esta que somente foi abrandada pelo Código napoleônico de 1810. O nosso Código Criminal de 1830 hauriu tal ecletismo, contendo penas tarifadas com penas determináveis judicialmente, cf. art. 63: “Quando este Código não impõe pena determinada” (Lyra, Roberto. Op. cit., p. 183). 4. O CPP dispõe: “O juiz formará sua convicção pela livra apreciação da prova produzida em contraditório judicial, não podendo fundamentar sua decisão exclusivamente nos elementos informativos colhidos na investigação, ressalvadas as provas cautelares não repetíveis e antecipadas.” (art. 155, do CPP, com a redação da Lei no 11.690/2008). 385
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Positiva, com suas propostas de adaptação da pena às necessidades de defesa social em face das características individuais do homem delinquente, elegendo-se um rol de circunstâncias que evidenciariam a sua maior ou menor periculosidade.5 A noção positivista da periculosidade, influente no ordenamento jurídico brasileiro até o Código de 1969, foi abandonada pela Reforma Penal de 1984, ao menos para a aplicação da pena, embora mantida para as medidas de segurança. Prepondera, a partir de 1984, o sentido axiológico da reprovabilidade. Pode-se dizer que, quanto à aplicação da pena, há três grandes modelos punitivos que foram reconhecidos doutrinariamente: (1) determinação absoluta: a lei fixa a natureza e a medida da pena, limitando-se o juiz a aplicá-la à hipótese concreta; (2) determinação relativa: a lei fixa ou alterna a qualidade e estabelece o máximo e o mínimo, em cujos limites o juiz faz a concretização; e (3) indeterminação absoluta: a lei declara punível um fato, mas confia ao juiz a fixação e a aplicação da pena, sem indicar a espécie e quantidade. Como será visto a seguir, o direito brasileiro adotou o sistema da determinação relativa.6
26.2. Elementares e circunstâncias na aplicação da pena
A
é assunto de relativa complexidade e que demanda o atendimento de princípios constitucionais e processuais penais, bem como das normas cogentes dos arts. 59 e segs., do CP. Para que se aplique a pena, é necessário levar em conta as circunstâncias do crime. A palavra circunstância significa estar em torno e se refere a tudo aquilo que está em torno do tipo penal. Inicialmente, deve ser destacado que os tipos penais descrevem condutas ilícitas e estabelecem seus elementos essenciais. Esses fatores, sem os quais inexiste o tipo, são chamados de elementares do crime. Para distinguir uma elementar de uma simples circunstância do crime, basta que seja feita uma eliminação hipotética. Se o crime desaparecer ou der causa a outro tipo penal, significa que se trata de uma elementar. Todavia, se não houver alteração da caracterização do crime, estar-se-á diante de uma circunstância. Preenchidas, no caso concreto, as elementares do tipo penal impõe-se a consequência jurídica prevista no preceito secundário: a aplicação da espécie e quantidade de pena. Em sentido inverso, se no processo restar afastada uma ou mais elementares, estar-se-á diante da atipicidade do fato, que pode ser absoluta (indiferente penal) ou relativa (o fato tipificar outro delito). aplicação da pena
5. Cf. Roberto Lyra: “O crime vale como sintoma da personalidade do criminoso, e não como entidade abstrata. A defesa social tem finalidade direta – a readaptação – empenhando-se, especificamente, pela eliminação da causa do crime. Impõe-se, assim, a individualização, considerando o conteúdo do crime e a personalidade do delinquente para determinar o tratamento mais adequado.” (Lyra, Roberto. Op. cit., p. 177). 6. Cf. Lyra, Roberto. Op. cit., p. 178. No mesmo sentido: Bruno, Aníbal. Direito Penal. Parte Geral. Tomo III. 4. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1984, passim. 386
Capítulo XXVI | Aplicação da pena
Como exemplo, pode-se mencionar a hipótese em que “A” subtrai de “B” um objeto que, posteriormente se constata, ser de sua propriedade. O fato de a coisa pertencer ao próprio “A” e não a outrem faz com que não se concretize a elementar “alheia” do tipo penal do furto (art. 155, do CP). Trata-se, portanto, de atipicidade absoluta. A relevância das elementares reside na vinculação do preceito secundário (a sanção) com a realização, total ou parcial, do preceito primário (a conduta descrita no tipo). Figurativamente, as elementares são uma espécie de conditio sine qua non para a atividade de individualização judicial da pena. Circunstâncias (de circum stare, estar ao redor) são dados, fatos ou condições acidentais que não integram a descrição típica, mas que, se presentes, influem na quantificação da pena. A noção de circunstância é dada por exclusão: entende-se como tal tudo que não componha a descrição típica (não for elementar), mas que é importante para o magistrado quantificar a pena a ser imposta ao condenado. Assinale-se a relevância prática das circunstâncias. Com visto, a análise das elementares se exaure no enquadramento do fato ao tipo penal. Uma vez preenchida a tipicidade da conduta, dá-se início à individualização da pena, dentro dos limites mínimo e máximo fixados na norma penal incriminadora (sistema da determinação relativa). E é justamente por intermédio das circunstâncias – ou melhor, da valoração das circunstâncias evidenciadas no processo –, que se procede à aplicação da sanção penal ao infrator. Conforme há tempos lecionado por Sá Pereira, 10, 20 ou 30 indivíduos podem cometer idêntico delito, mas é lícito afirmar que não existe identidade alguma entre dois sequer desses indivíduos. Portanto, é formando a sua convicção pela livre apreciação das provas e dominando o conjunto da realidade processual, que o juiz apresentará, para cada qual, “a medida da pena necessária e adequada”.7 Na mesma esteira, Esmeraldino Bandeira afirmou que as elementares apresentam o delito “despido” e as circunstâncias o mostram “vestido”.8 Há, dessa maneira, um gama de fatores reunidos como circunstâncias que podem – ou melhor, devem – ser justificadamente considerados por ocasião do cálculo da pena. De outro lado, é certo que o que constou na sentença como elementar não pode ser novamente tomado como circunstância, sob pena de violação do princípio do ne bis in idem. Não pode existir, igualmente, uma dupla valoração de circunstâncias, como visto adiante. Sob outra vertente classificatória, as circunstâncias podem ser divididas em dois grandes grupos: circunstâncias objetivas (ou impessoais) e circunstâncias subjetivas (pessoais). As primeiras são as que concernem ao tempo, lugar, modo de execução e outros fatores externos ou ambientais (dia, noite, ocasião de incêndio ou tumulto etc.), bem como às condições ou qualidades da vítima ou de terceiros (criança, mulher, idoso, rica, pobre etc.). Diferentemente, as circunstâncias subjetivas dizem respeito à pessoa 7. Sá Pereira, Anteprojeto de Código Penal. Publ. Diário Oficial de 10/11/1927, p. 237. 8. Apud Lyra, Roberto. Op. cit., p. 268. 387
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do infrator (primário, reincidente, menor de 21 anos, embriagado, organizador das atividades dos demais, portador de conduta ilibada etc.), às suas motivações (futilidade, torpeza, relevante valor social ou moral, violenta emoção etc.). A presente classificação é fundamental, visto que, somente as circunstâncias objetivas são comunicáveis aos partícipes. A teor do art. 30, do CP, as circunstâncias subjetivas só se comunicam se constituírem elementares do tipo.9 Dentre as circunstâncias, existem as qualificadoras, que são tão importantes que aderem ao tipo regente e criam tipos derivados, com penas próprias. É o caso do homicídio qualificado, previsto no art. 121, § 2o, CP. Além dessas, a lei prevê circunstâncias judiciais e circunstâncias legais, que se subdividem em genéricas (agravantes e atenuantes) e específicas (majorantes ou causas de aumento de pena e minorantes ou causas de diminuição de pena), que serão analisadas adiante. Cumpre, desde já, diferenciar circunstâncias legais genéricas e específicas. As circunstâncias legais genéricas são taxativamente previstas na lei (arts. 61, 62, 63 e 65, CP) e tornam obrigatório o aumento ou a diminuição da pena.10 A lei não fixa o quantum desse aumento ou diminuição, que é entregue, por completo, ao poder discricionário do juiz. Além disso, agravantes e atenuantes não podem fazer a pena ultrapassar a pena mínima ou a máxima cominada. Já as circunstâncias legais específicas estão previstas em qualquer dispositivo da lei penal, que não os anteriormente mencionados, seja na Parte Geral ou na Especial, têm limites de aumento e diminuição da pena fixados na lei e não precisam respeitar os limites máximo e mínimo das penas. É exemplo a tentativa (art. 14, CP).
26.3. Circunstâncias judiciais
A
estão relacionadas no caput do art. 59 e servem para formar a pena-base a partir do preceito cominado em abstrato. São denominadas de judiciais por duas razões. A primeira pelo fato de a lei não atribuir seu significado de forma pormenorizada, delegando tal tarefa ao magistrado sentenciante. Não se pode sequer apontar, a priori, se elas são positivas ou negativas, boas ou más para o réu, ou se são neutras, tendo em vista os termos genéricos utilizados pelo legislador. São, portanto, diretrizes primárias para a fixação da pena. A segunda motivação – que se vincula à anterior – consiste no fato de que, pelo art. 59, caput, do CP, é o magistrado que deve identificá-las, no conjunto probatório do caso sob exame, valorando-as com o seu prudente arbítrio. Segundo Roberto Lyra, s circunstâncias judiciais
9. Cf. Fragoso, Heleno Cláudio. Op. cit., p. 414. 10. Deve ser ressalvada a chamada atenuante inominada, prevista pelo art. 66, do CP. Este faculta ao juiz reconhecer qualquer outra circunstância relevante, anterior ou posterior ao crime, diversa das previstas no art. 65, como atenuante. Esta, portanto, não se apresenta de forma cogente, mas, sim, condicional. 388
Capítulo XXVI | Aplicação da pena
esse dispositivo, que corresponde ao antigo art. 42 da redação originária do CP/1940, é o mais importante de todos, pois fixa “os limites do poder discricionário do juiz, uniformizando-se e esclarecendo-se os roteiros fundamentais para a determinação qualitativa e quantitativa da pena”.11 Deve-se considerar elementos que permitem avaliar a maneira de ser do agente (antecedentes, conduta social, personalidade) e a reprovabilidade do fato punível praticado (culpabilidade, consequências e comportamento da vítima). Enfim, são circunstâncias judiciais os dados, fatos ou condições, constantes do caso concreto, que não constituam a definição do delito (elementares), que não estão inscritas como agravantes ou atenuantes (circunstâncias legais), que não elevem ou diminuem o quantum da pena (causas de aumento ou de diminuição) e, por fim, que não qualifiquem ou privilegiem o tipo delitivo (qualificadoras ou privilégios). Ou seja, elas são valoradas residualmente. Diante disso, pode-se dizer que embora sejam as primeiras a constar na parte dispositiva da sentença condenatória (fase primária de aplicação da pena-base), as circunstâncias judiciais serão as últimas a serem ponderadas na atividade intelectual do julgador, pois elas aparecem por exclusão. Impende ressaltar que além de servirem para a fixação da pena-base, bem cumprem, as circunstâncias judiciais, outras relevantes funções. Com efeito, aquele rol de fatores funciona como critério para a análise de certos benefícios legais, tais como a aplicação de pena restritiva de direitos (art. 44, III, do CP), o reconhecimento do crime continuado contra vítimas diferentes (art. 71, parágrafo único, do CP), o deferimento da suspensão condicional da pena (art. 77, II, do CP), a concessão do livramento condicional (art. 83, I, do CP), e a concessão da transação penal e da suspensão condicional do processo (arts. 76 e 89, da Lei no 9.099/1995) etc. Elas sinalizam para aquilo que se pode denominar de um diagnóstico da situação fática que permite, segundo Jescheck, a formulação de um prognóstico favorável ao deferimento de certos benefícios. Para esse autor, tal prognóstico é extraído de um modo intuitivo, ou seja, baseado na experiência acumulada pelos juízes.12 As circunstâncias judiciais aplicam-se tanto para crimes dolosos como culposos; para comissivos, omissivos e comissivos por omissão; para consumados ou tentados; para os crimes tipificados no Código Penal e àqueles definidos na legislação penal especial, se ela não dispuser de modo diverso (art. 12, do CP). Às oito circunstâncias discriminadas no caput do art. 59 deve-se, ainda, agregar a contida no caput do art. 60 (situação econômica do réu), pertinente para a quantificação da pena de multa.
11. Lyra, Roberto. Op. cit., p. 197. Segundo o autor, o art. 42, do CP/1940 (atual art. 59), inspirou-se nos ensinamentos de Enrico Ferri, inclusive na ordem de importância, ou seja, primeiro o agente (antecedentes e personalidade) e, em seguida, o fato criminoso (circunstâncias e consequência do crime). Diferentemente, o Código anterior (1890), contemplava o confuso critério de “graus” para a fixação da pena: máximo, submáximo, médio, submédio e mínimo, consoante a quantidade aritmética de circunstâncias agravantes e atenuantes (Idem, passim). 12. Jescheck, Hans-Heinrich; Weigend, Thomas. Op. cit., p. 901. 389
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26.3.1. Culpabilidade
Cuida-se da primeira das circunstâncias judiciais. Como dito anteriormente, a periculosidade como critério norteador do juiz foi abandonado e, consoante a Exposição de Motivos do CP/1984, “graduável é a censura, cujo índice, maior ou menor, incide na quantidade da pena”.13 A culpabilidade se refere, nos crimes dolosos, à vontade reprovável, ou seja, a vontade que não deveria ser, contrária ao dever. O exame da culpabilidade compreende o juízo de reprovabilidade do autor do fato típico e antijurídico. Ou seja, àquele indivíduo imputável que, consciente ou com possibilidade para conhecer a antijuridicidade do fato, não adotou comportamento diverso. Vê-se, assim, que a culpabilidade, além de se constituir pressuposto do conceito analítico do crime – crime é a conduta típica, antijurídica e culpável –, projeta-se para a Teoria da Pena, figurando como a primeira das diretrizes de todo o processo de individualização da sanção penal.14 Dessa maneira, consoante o princípio do nullum crimen sine culpa, não se pode olvidar que a culpabilidade permite quantificar e, ao mesmo tempo, servir de limite para a punição. A pena não pode ultrapassar o grau de culpa do condenado. Se é certo que ela se vincula à noção de retribuição (reprovação), é igualmente certo que o próprio art. 59, caput, parte final, condiciona sua incidência não somente para a reprovação, mas, também, para a prevenção geral e especial do crime. Dessa maneira, de acordo com a lei penal brasileira, hão de ser conjugados os fins de retribuição com os de prevenção geral e especial. 26.3.2. Antecedentes
Segundo a definição do vernáculo, antecedentes são os fatos anteriores, que deixam prever os que hão de seguir-se.15 Compreendem os episódios precedentes (vita anteacta) reputados relevantes para a individualização da pena. Assim como a culpabilidade pode ser mais ou menos intensa, os antecedentes do condenado podem ser valorados pelo julgador como bons ou maus. Ocorre, contudo, que a redação do art. 42 do CP/1940 aludia tão somente aos antecedentes, que então abrangiam todo o acervo biográfico meritório ou demeritório do infrator, isto é, seu curriculum vitae.16 O CP/1984 dividiu aquela categoria, criando a figura da conduta social. Isso acarretou a restrição da noção de antecedentes praticamente à apuração dos registros criminais do acusado. Não por outra razão, uma das 13. E. M. do CP/1984, item 50. 14. Embora negando, categoricamente, qualquer sentido legitimante, Raúl Zaffaroni e Nilo Batista assinalam: “A culpabilidade de ato projeta-se da teoria do delito na teoria da responsabilidade penal, como indicador do limite máximo de poder punitivo habilitável (desde que não intercorram condições negativas de punibilidade, como por exemplo na causa pessoal de isenção de pena prevista no art. 181 CP).” (Raúl Zaffaroni, Eugenio; Batista, Nilo. Direito Penal Brasileiro. Vol. II. Rio de Janeiro: Revan, 2010, p. 64-65). 15. Ferreira, Aurélio Buarque de Holanda. Novo Dicionário da Língua Portuguesa. 2. ed. 33. impressão. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, p. 128. 16. E. M. do CP/1940, item 24. 39 0
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primeiras diligências exigidas em todos os feitos criminais é a juntada aos autos da folha de antecedentes criminais (art. 6o, VIII, do CPP). Sobre o assunto, discute-se em que medida a existência de anotações criminais influi como maus antecedentes. Cuida-se de questão controvertida, cujo correto alcance demanda alguns esclarecimentos. Em primeiro lugar, é preciso saber se o inquérito policial ou ação penal está em curso ou foi arquivado. Se estiver em tramitação, o entendimento da doutrina e da jurisprudência, em sua maioria, é no sentido de não poder funcionar como maus antecedentes, sob pena de violação dos princípios da presunção de inocência e da não culpabilidade. A propósito, a Súmula 444, do STJ: “É vedada a utilização de inquéritos policiais e ações penais em curso para agravar a pena-base”. No Supremo Tribunal, a matéria encontra-se sob repercussão geral, justamente para se definir se, de fato, processos em curso podem ser considerados maus antecedentes para efeito de dosimetria da pena.17 No entanto, se a folha de antecedentes registrar que o inquérito policial encontra-se extinto, sem denúncia formulada, ou que a ação penal foi julgada improcedente, com a absolvição do réu, não poderá, em razão daqueles mesmos princípios, figurar como maus antecedentes. No lado oposto, caso a anotação criminal indique a existência de condenação transitada em julgado, é perfeitamente possível o reconhecimento da circunstância judicial dos maus antecedentes. É preciso, porém, ter o cuidado de se constatar se o trânsito em julgado da sentença que, no País ou no estrangeiro, tenha condenado o acusado por outro fato, ocorreu no espaço de cinco anos antes da perpetração do novo delito. Se for o caso, não haverá maus antecedentes, mas, sim, a circunstância agravante da reincidência (art. 61, I, do CP). Excetuada a reincidência, a condenação transitada em julgado em data mais antiga do que cinco anos, bem assim aquela que vier a transitar em julgado após a prática do fato, mas antes da prolação da sentença, poderá ser utilizada como maus antecedentes. Sublinhe-se a distinção entre maus antecedentes, circunstância judicial que é, com a reincidência, circunstância agravante disciplinada nos arts. 61, I, 63 e 64, do CP. Cuidando-se do mesmo fato, não pode haver a incidência cumulada de maus antecedentes e da reincidência.18 Diferentemente, tratando-se de fatos distintos, mas 17. RE 591054. Repercussão Geral no RE. STF. Min. Marco Aurélio. DJ de 14/11/2008. A jurisprudência do STF não é uniforme. Entendendo constituir maus antecedentes: “Inquéritos policiais e ações penais em andamento configuram, desde que devidamente fundamentados, maus antecedentes para efeito da fixação da pena-base, sem que, com isso, reste ofendido o princípio da presunção de não-culpabilidade.” (AI 604041. STF. Min. Ricardo Lewandowski. Primeira Turma. DJ de 31/08/2007). Em sentido contrário: “(...) A mera sujeição de alguém a simples investigações policiais (arquivadas ou não), ou a persecuções criminais ainda em curso, não basta, só por si – ante a inexistência, em tais situações, de condenação penal transitada em julgado –, para justificar o reconhecimento de que o réu não possui bons antecedentes. Somente a condenação penal transitada em julgado pode justificar a exacerbação da pena, pois, com o trânsito em julgado, descaracteriza-se a presunção juris tantum de não-culpabilidade do réu, que passa, então, a ostentar o status jurídico-penal de condenado, com todas as consequências legais daí decorrentes.” (HC 69298. STF. Min. Celso de Mello. Primeira Turma. DJ de 15/12/2006). 18. Cf.: “Jurisprudência de ambas as Turmas desta Corte no sentido de que o fato que serve para justificar a agravante da reincidência não pode ser levado à conta de maus antecedentes para fundamentar a fixação da pena base acima do mínimo legal.” (HC 80066. STF. Min. Ilmar Galvão. Primeira Turma. DJ de 13/06/2000). No mesmo sentido: HC 98992. STF. Min. Ellen 391
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referentes ao mesmo infrator, será possível o reconhecimento de ambas as figuras. Por exemplo, pode o réu ter sofrido duas condenações anteriores, uma há menos de cinco anos da data do fato e, a outra, cerca de sete anos antes. O magistrado sentenciante que proceder à individualização da pena, com o reconhecimento de maus antecedentes, em razão desta, e da reincidência, em razão daquela, não estará violando o princípio do ne bis in idem.19 Cumpre acrescer que, além de acarretar a elevação da pena-base, os maus antecedentes geram outras consequências na seara penal. Com efeito, consoante decidido pelo STF, levando-se em conta o disposto no art. 33, § 3o, do CP, a determinação do regime inicial de cumprimento da pena privativa de liberdade deve considerar este, além de outros fatores, não havendo qualquer ilegalidade ou abuso na sentença que impõe o regime fechado à luz da presença de circunstâncias judiciais desfavoráveis ao condenado, como é o caso dos maus antecedentes.20 Ademais, a concessão do livramento condicional ao apenado que tiver cumprido mais de um terço da pena, pressupõe, além de não ser reincidente em crime doloso, o reconhecimento, na sentença condenatória, dos seus bons antecedentes (art. 83, I, do CP).21 26.3.3. Conduta social
Para a dogmática penal, a conduta humana tem fundamental importância pois, a partir dela, desenvolve-se o conceito analítico de delito. Nessa esteira, a conduta pode ser comissiva ou omissiva; dolosa ou culposa, tentada ou consumada, instantânea ou permanente, mas sempre materializada em atos que se projetam para além da esfera mental da pessoa natural. Contudo, no caput do art. 59, do CP, conduta social significa não o delito praticado, mas os atos de relevo do agente no âmbito familiar, no trato com Gracie. Segunda Turma. DJ de 12/02/2010. 19. Cf.: “Alega-se que a valoração dos maus antecedentes e da reincidência na mesma condenação afrontariam o princípio do non bis in idem. A jurisprudência deste Tribunal é pacífica no sentido de que o bis in idem na fixação da pena somente se configura quando o mesmo fato – a mesma condenação definitiva anterior – é considerado como signo de maus antecedentes (circunstância judiciais do art. 59, do CP) e como fator de reincidência (agravante genérica do art. 61 também do CP). Precedentes. Nada impede que condenações distintas deem ensejo a valorações distintas, porquanto oriundas de fatos distintos. Não se verifica constrangimento ilegal a ser sanado, pois o paciente possui mais de uma condenação definitiva, sendo possível utilizar uma para considerar negativos os antecedentes e a outra com agravante da reincidência, inexistindo bis in idem.” (HC 99044. STF. Min. Ellen Gracie. Segunda Turma. DJ de 21/05/2010). 20. HC 95585. STF. Min. Ellen Gracie. Segunda Turma. DJ de 19/12/2008. No mesmo sentido: HC 96472. STF. Min. Ricardo Lewandowski. Primeira Turma. Publ. DJ de 20/11/2009. 21. Cf.: “Livramento condicional. Pena com mais da metade cumprida. Requisitos atendidos. Aplicação, no caso, do inc. II, do art. 83, do CP. Embora não seja o caso do inc. I, do art. 83, do CP, eis que não possui o paciente bons antecedentes, mas ao contrário, eram eles maus, cabe aplicar-se, por analogia, a regra do inc. II, do mesmo artigo, e, verificando-se que o réu já cumpriu mais da metade da pena que lhe fora imposta, e atende aos demais requisitos para obter o livramento condicional (inc. III, do art. 83) é este de lhe ser concedido, devendo o juiz da execução fixar as condições, na conformidade do disposto no art. 85, do CP.” (RHC 66222. STF. Min. Aldir Passarinho. Segunda Turma. DJ de 14/10/1988). No mesmo sentido: HC 69711. STF. Min. Francisco Rezek. Segunda Turma. DJ de 18/12/1992. Em sentido contrário, decidiu o STJ: “No caso de paciente primário, de maus antecedentes, como o Código não contemplou tal hipótese, ao tratar do prazo para concessão do livramento condicional, não se admite a interpretação em prejuízo do réu, devendo ser aplicado o prazo de um terço. O paciente primário com maus antecedentes não pode ser equiparado ao reincidente, em seu prejuízo.” (HC 102278. STJ. Min. Jane Silva. Sexta Turma. DJ de 22/04/2008). 392
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vizinhos, ambiente de estudo ou trabalho etc., que se fazem importantes para a dosimetria da pena. Como dito anteriormente, cuida-se de critério norteador especificado pela Reforma Penal de 1984, muito embora já estivesse implícito no Código de 1940 pelo conceito abrangente de antecedentes. A propósito, o próprio Código de Processo dispõe que, após o conhecimento da prática da infração penal, deve-se averiguar “a vida pregressa do indiciado, sob o ponto de vista individual, familiar e social, sua condição econômica, sua atitude e estado de ânimo antes e depois do crime e durante ele, e quaisquer outros elementos que contribuírem para a apreciação do seu temperamento e caráter” (art. 6o, IX, do CPP). Não raro, os advogados de defesa arrolam “testemunhas de caráter” ou juntam “declarações abonatórias”, objetivando, assim, comprovar a boa conduta social dos seus constituídos. Por fim, cuidando-se de crime praticado por servidor público, é de todo conveniente a juntada de seus assentamentos funcionais, onde poderão constar condutas elogiosas ou punições disciplinares porventura aplicadas. 26.3.4. Personalidade do agente
Personalidade é o conjunto de fatores psíquicos que condicionam ou influenciam o comportamento individual. Compreende os atributos de individualidade do ser humano, isto é, seu sexo, sua idade, sua formação familiar, seu nível educacional e profissional, suas convicções políticas, enfim, sua maneira de ser e de estar no mundo circundante. Se a conduta social (e os antecedentes) dizem respeito às atividades no trato social, a personalidade compreende o caráter, o espírito, as características cognitivas, afetivas e físicas do indivíduo, desde que relevantes e pertinentes ao delito incurso, consoante o postulado do Direito Penal do fato, antípoda do Direito Penal do autor. Pode-se aludir, assim, conforme a prova dos autos, à existência de uma personalidade forte, fraca, nobre, mediana, mesquinha etc. Em certos casos, sentenças condenatórias reconhecem existir uma personalidade negativa ou voltada para a prática de delitos, circunstância que, quando efetivamente presente no acervo probatório, influi na aplicação da pena-base, elevando-a.22 Não se trata, em suma, de uma categoria genérica, semelhante à personalidade civil que, como se sabe, começa com o nascimento com vida (art. 2o, do CC), mas das características próprias de cada um de nós. Nesse sentido, vale ilustrar que as modernas orientações psicoanalíticas preferem explicar o crime não como o produto de desequilíbrios mentais, mas, sim, como consequência de uma defeituosa interiorização por parte do indivíduo das normas sociais. Tem-se, assim, sugerido uma atenção especial aos processos de socialização e aos denominados estados deficitários criminógenos, v.g., a falta de identidade do filho com seus pais, carências de atenção e afeto por parte destes, 22. Cf. HC 89000. STF. Min. Ellen Gracie. Segunda Turma. DJ de 15/08/2008. Ao revés, caso não exista base empírica de uma personalidade voltada para o crime: “Desajustada ou carente de base factual, é ilegal a majoração da pena-base pelo reconhecimento da personalidade negativa do agente.” (HC 97400. STF. Min. Cezar Peluso. Segunda Turma. DJ de 26/03/2010). 393
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pressões psíquicas e sociais exercidas sobre as famílias, dentre outras, que moldam a personalidade em geral.23 Ressalte-se que o fator idade – indiscutivelmente, um dos principais traços da personalidade –, pode operar como circunstância atenuante (art. 65, I). 26.3.5. Motivos do crime
O motivo do crime, como diretriz para a aplicação da pena, foi, nos dizeres de Roberto Lyra, uma das originalidades do Código de 1830. Segundo aquele penalista, motivo é o que proporciona a qualificação ética ou social do delito. Sendo assim, a motivação, cuja forma dinâmica é o móvel, varia de indivíduo a indivíduo, de caso a caso, segundo o interesse ou o sentimento do agente. Enquanto o dolo e a culpa ligam-se à figura penal em abstrato, “o móvel muda incessantemente dentro de cada caso em concreto. Assim, o crime pode ser praticado por motivos opostos, tais como a perversidade ou a piedade, muito embora correspondam a uma mesma hipótese típica”.24 Diante disso, cumpre mencionar que a Reforma de 1984 suprimiu a antiga referência à intensidade do dolo e aos graus da culpa, como critério para fixação da pena-base, uma vez que dolo e culpa dizem respeito às elementares do tipo, mas conservou a motivação como importante circunstância a ser valorada pelo magistrado sentenciante. Vale acentuar, contudo, que se o motivo se constituir circunstância agravante ou atenuante, ou ainda qualificadora ou privilégio, devendo-se, pois, ser valorado em outra etapa da aplicação da pena, não caberá sua aferição também entre os elementos norteadores da pena-base, sob pena de se incidir em intolerável bis in idem. Agregue-se, no particular, que os motivos determinantes do crime compreendem o primeiro dos critérios preponderantes do art. 67, do CP. Em suma, é indubitável que a realização da infração penal, dolosa ou culposa, sempre envolve uma gama de impulsos, de maior ou menor intensidade, que afastam ou contribuem para afastar o agente da expectativa normativa do agir de outro modo. Dessa maneira, caso exista algum motivo reputado como relevante – simpatia, afeto, amor, compaixão, ódio, inveja, ambição, libidinagem, fanatismo, convicções políticas, ideologias etc. –, o mesmo irá influir positiva ou negativamente na apreciação da pena-base. 26.3.6. Circunstâncias do crime
Cuida-se de dados, fatos ou elementos externos à pessoa do agente, isto é, relacionados com o tempo, lugar, modus operandi, instrumentos utilizados na realização do delito, qualidades ou condições da vítima, dentre outros, reputados relevantes para a dosimetria da pena. Não há que confundir circunstâncias, em sentido lato, antítese de elementares, com circunstâncias do crime, ora consideradas. Com efeito, a relação é entre gênero e espécie. Dessa maneira – e porque são também adjetivadas de circunstâncias 23. García-Pablos de Molina, Antonio. Criminología: una introducción a sus fundamentos teóricos. 6. ed. Valencia: Tirant lo Blanch, 2007, p. 350. 24. Lyra, Roberto. Comentários ao Código Penal. Vol. II. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1958, p. 228. 394
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inominadas – as circunstâncias do crime abrangem os fatos residuais que não se encontram especificados como circunstâncias agravantes ou atenuantes, ou como causas de aumento ou de diminuição de pena. Em suma, as circunstâncias do crime auxiliam a mensurar o grau de reprovabilidade da conduta do condenado.25 26.3.7. Consequências do crime
É certo que todo delito acarreta consequências relevantes, na medida em que lesiona ou ameaça um ou mais bens jurídicos. Por conta disso, o princípio da proporcionalidade determina que a pena cominada em cada tipo penal guarde relação axiológica com o bem jurídico que se quer proteger. Dessa maneira, há certa redundância ao se referir, no âmbito das circunstâncias judiciais, às consequências do crime. Para que não haja uma indevida valoração em duplicidade do mesmo objeto, é preciso que as consequências do crime, levadas em consideração para a pena-base do art. 59, do CP, digam respeito a fatos que extrapolem ao que de ordinário se verifica na violação de uma norma penal, pois – repita-se – a carga punitiva cominada, em abstrato, nos tipos incriminadores, já embute os efeitos do dano ou perigo ao respectivo bem jurídico. Nesse sentido, é possível que a ação criminosa acarrete expressiva afetação social, como, v.g., num crime de dano, a destruição do único exemplar de um importante documento do acervo nacional. Ou ainda, num homicídio, a morte do arrimo de família que deixe desamparados filhos de tenra idade. Em havendo consequências dessa grandeza, a pena-base poderá ser elevada pelo julgador. Ressalte-se que se o agente, espontânea e eficazmente, evita ou minimiza as consequências do crime, bem assim efetiva a reparação do dano, não somente conseguirá neutralizar a incidência dessa circunstância judicial, como fará jus à atenuante do art. 65, III, “b”, do CP. 26.3.8. Comportamento da vítima
Consoante a realidade da vida, nem sempre a vítima possui postura neutra ou involuntária na dinâmica do delito. Por essa razão, a moderna vitimologia estuda os fatores de predisposição vitimal, ou seja, a probabilidade, às vezes próxima da certeza, de que determinada pessoa sofrerá uma ação criminosa – também chamado de risco de vitimização. Objetiva-se, com tais aportes criminológicos, alcançar uma melhor prevenção do delito, não por parte da abstenção do infrator, mas, sim, por uma mudança de postura da vítima potencial.26 Sendo assim, tem-se procurado superar maniqueísmos, construindo tipologias, como da vítima participante, dividida em vítima imprudente (aquela que, violando o cuidado devido, dá azo à comissão de delitos dolosos, como na conhecida “saidinha de banco” em que o lesado saca e exibe, displicentemente, expressiva quantia em dinheiro, sendo abordada pelo agente ao sair da agência bancária; ou nos crimes culposos, como 25. Cf. RHC 90531. STF. Min. Ricardo Lewandowski. Primeira Turma. DJ de 27/04/2007. 26. García-Pablos de Molina, Antonio. Op. cit., p. 139. 395
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o caso do pedestre que, distraidamente, atravessa fora da faixa, sendo atropelado por um motorista que conduzia seu veículo em velocidade incompatível); vítima alternativa (como ocorre nos duelos ou nas brigas encomendadas, em que qualquer dos dois contendores pode se colocar na posição de vítima, dependendo, unicamente, do fator sorte ou da falta dela); vítima provocadora (quando a pessoa se torna vítima em razão de sua atitude inicial de agressão, humilhação ou desnecessária criação de tensões, desencadeando a reação violenta do infrator); e vítima voluntária (no caso, o estado de vítima decorre de uma solicitação, aceitação ou consentimento prévio, como na eutanásia ou no homicídio a pedido).27 Nesse quadrante, a existência ou mesmo a relevância da atitude da vítima pode vir a se constituir em um fator a ser captado pelo julgador, abrandando a pena-base, muito embora – por óbvio – não justifique ou isente o acusado de pena, mas minore, pontualmente, a reprovabilidade do injusto que praticou. Entretanto, não se pode olvidar que quem está sendo julgado é o réu e não a vítima, razão pela qual se deve evitar a chamada vitimização secundária, ou seja, o aprofundamento da lesão material e moral inicialmente sofrida. Isso ocorre com atitudes de desconfiança, construções de estereótipos, humilhações com atrasos de horas para a colheita de seu depoimento ou a falta de sensibilidade para escutar as suas palavras – situações estas que não são incomuns no âmbito das agências formais de controle (Polícia, Ministério Público e Justiça).28
26.4. Circunstâncias legais agravantes e atenuantes
A
e atenuantes, também chamadas de circunstâncias legais genéricas, encontram-se discriminadas entre os arts. 61 a 66, do Código Penal. Assinala-se que elas são de incidência obrigatória, no sentido de que, uma vez constatada a presença de uma agravante ou atenuante, deve o magistrado levá-la em consideração na segunda etapa do cálculo da pena, ou seja, na fixação da pena provisória. s circunstâncias agravantes
27. Idem, p. 140. 28. Cf. lecionado por García-Pablos de Molina, numerosos estudos empíricos constatam que a vítima do delito se sente maltratada pelo sistema legal, reputando-o como muito insatisfatório: “A vítima, em geral, não compreende o garantismo inevitavelmente formalista que rege a atuação do sistema e seus operadores jurídicos. Não entende sequer o jargão – a criptolinguagem jurídica – que estes empregam e que somente os especialistas podem decifrar. Ela se queixa da falta de informação sobre o curso das investigações e da insensibilidade da Justiça para com seus interesses. Algumas situações processuais não somente revivem, atualizam e perpetuam o fato traumático (v.g., o estupro, o atentado terrorista etc.), como as obrigam a experimentar aquilo tudo de novo, vivenciando-o de forma degradante, como uma espécie de injusta e extemporânea humilhação. (...) Em resumo, as vítimas reprovam o sistema legal de justiça que não é capaz de satisfazer sua principal pretensão: o reconhecimento público e institucional do sacrifício que fizeram, o valor da perda que o fato lhes arrebatou e seu sofrimento por esta perda. Desta maneira, honrar as vítimas, respeitar sua perda e seu sacrifício, por exemplo, por intermédio do enaltecimento de sua memória, não são exercícios de vazia retórica institucional, nem – obviamente – uma ‘selvagem cerimônia de vingança pública’, mas, sim, uma maneira justa e solidária de dotar o mundo de algum sentido.” (García-Pablos de Molina, Antonio. Principales centros de interés de la investigación criminológica. In: Estudos em homenagem ao Prof. Dr. Jorge de Figueiredo Dias. Vol. III. Coimbra: Coimbra Ed., 2010, p. 1290-1). 396
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O rigor dessa assertiva merece, contudo, ser temperado. E por duas razões. A primeira, já mencionada, é a de que a chamada atenuante inominada não se apresenta de forma cogente, mas, sim, condicional (art. 66, do CP). Em segundo lugar, conforme o entendimento doutrinário e jurisprudencial dominante, a valoração das circunstâncias legais não pode fazer com que se ultrapassem os limites mínimo e máximo cominados nos tipos incriminadores. Todavia, alguns divergem desse entendimento tendo em vista que a Reforma Penal de 1984 não reproduziu a regra que, na redação anterior, impunha a fixação das circunstâncias judiciais, agravantes e atenuantes, dentro dos limites legais cominados nos tipos incriminadores (arts. 42, II, do CP/1940). Dessa forma, seria possível, por exemplo, que a presença de uma atenuante conduzisse a pena para baixo do mínimo. A divergência não merece prosperar. Apesar de o Código atual não conter expressa restrição, a mesma deve ser extraída da sistemática da individualização da pena (arts. 59 e 68, do CP), pois as circunstâncias, enquanto dados acidentais, não podem ter um peso maior do que as elementares, que são essenciais e estabelecem os marcos mínimo e máximo de pena. Ademais, razões de necessária segurança jurídica impõem que se observe os referidos limites, visto que se fosse possível, como exemplificado, que o juiz pudesse fixar a atenuante abaixo do mínimo, nada o impediria também de fixar a agravante para além do máximo, gerando intranquilidades e comprometendo, por via oblíqua, o princípio da legalidade penal. Dessa forma, tem-se que compete ao legislador estabelecer os patamares abstratos de pena, consoante o sistema da determinação relativa, anteriormente referido, limites estes que hão de ser respeitados não somente para as circunstâncias judiciais como, também, para as atenuantes e agravantes.29 Nesse sentido, a Súmula 231, do STJ: “A incidência da circunstância atenuante não pode conduzir à redução da pena abaixo do mínimo legal”. Na mesma esteira, no julgamento de questão de ordem em RE, o Plenário do STF reconheceu Repercussão Geral e reafirmou sua jurisprudência no sentido de que, ao contrário do que ocorre com as causas de diminuição, “as circunstâncias atenuantes genéricas não podem conduzir à redução da pena abaixo do mínimo legal”.30 Feitas tais ressalvas, sustenta-se a obrigatoriedade da incidência das circunstâncias legais por intermédio do advérbio “sempre” constante nos arts. 61 e 65, bem como do verbo “será”, indicado no art. 62, do CP. Cumpre salientar que o Código não estabelece a quantidade de aumento ou diminuição das circunstâncias legais, diferentemente do que havia constado no Código de 1969.31 No entanto, dentro de parâmetros de razoabilidade e proporcionalidade, a variação deve ser maior do que a das circunstâncias judiciais, 29. Para as causas de aumento ou de diminuição (majorantes ou minorantes), adiante analisadas, nada impede que se extravasem os referidos “limites legais” cominados em abstrato, na medida em que a própria lei assim determina. 30. Repercussão Geral na QO-RE 597270. STF. Plenário. Min. Cezar Peluso. DJ de 05/06/2009. No mesmo sentido: HC 94446. STF. Min. Ricardo Lewandowski. Primeira Turma. DJ de 31/10/2008. 31. O Código Penal de 1969, que não chegou a vigorar, dispunha, no art. 59: “Quando a lei determina a agravação ou atenuação da pena sem mencionar o quantum, deve o juiz fixá-lo entre um quinto e um terço, guardados os limites da pena cominada ao crime.” 397
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porém menor do que as causas de aumento e diminuição de pena, ou seja, cerca de 1/6 (um sexto) da quantidade fixada na pena-base.32 Quanto a agravantes e atenuantes, ainda, a lei não fixa o quantum desse aumento ou diminuição, que é entregue, por completo, ao poder discricionário do juiz. Tais circunstâncias, não devem ser confundidas com as circunstâncias legais específicas, que estão previstas em qualquer dispositivo da lei penal, que não os anteriormente mencionados, seja na Parte Geral ou na Especial, e têm limites de aumento e diminuição da pena fixados na lei e não precisam respeitar os limites máximo e mínimo das penas. É exemplo a tentativa (art. 14, CP). 26.4.1. Reincidência
A reincidência (de recidere, recair) pode ser considerada a agravante de maior relevo. No Código de 1890, a reincidência figurava ao final do rol das agravantes (arts. 36 e 39, § 19). A partir de 1940, ela passou a comandar o elenco de tais circunstâncias legais (art. 44, I), sistemática mantida na Reforma Penal de 1984 (art. 61, I). Definidos e estabelecidos os seus efeitos, respectivamente, nos arts. 63 e 64, a reincidência acarreta, ainda, outras consequências na esfera penal: é uma das circunstâncias preponderantes no conflito com as atenuantes (art. 67, CP); impede, em tese, a fixação do regime aberto (art. 33, § 2o, do CP);34 impede, em regra, a substituição da pena privativa por restritiva (art. 44, § 3o, do CP); impede a transação penal e a concessão da suspensão condicional do processo (arts. 76, § 2o, I, e 89, da Lei no 9.099/1995); interrompe o curso da prescrição (art. 117, VI, do CP); e aumenta de um terço a prescrição da pretensão executória (art. 110, in fine, do CP) etc. Segundo o art. 63, do CP, a reincidência consiste na prática de novo crime, após o agente haver sido definitivamente condenado por crime anterior, no País ou no estrangeiro. No caso de condenação estrangeira, não é necessária a homologação da respectiva sentença para que surtam os efeitos da recidiva. Nesse ponto, ela difere da disciplina da homologação da sentença estrangeira (art. 9o, do CP) perante o Superior Tribunal de Justiça (art. 105, I, “i”, da CF/1988). Basta, tão somente, a prova idônea de que a 33
32. Cf.: “A jurisprudência e a doutrina pátrias têm o entendimento que o Magistrado, na segunda fase de aplicação da pena, não poderá aplicar percentuais acima do limite mínimo previsto para a terceira fase da dosimetria, qual seja, 1/6 (um sexto), a não ser que o faça fundamentadamente, indicando elementos concretos constantes dos autos, a justificar a necessidade de uma maior exasperação. (...)” (HC 153479. STJ. Min. Laurita Vaz. Quinta Turma. DJ de 22/11/2010). No mesmo sentido: “1. A lei penal não estabelece quantidade de diminuição ou de aumento de pena em face da aplicação de atenuantes e agravantes legais genéricas, entregando-a à discricionariedade do juiz. 2. Hipótese em que foi aplicada redução razoável na pena, devendo se considerar que a variação das circunstâncias atenuantes e agravantes não deva ir muito além do limite mínimo previsto para as majorantes e minorantes, sob pena de equiparar as atenuantes genéricas com causas modificadoras de maior intensidade.” (HC 157936. STJ. Min. Gilson Dipp. Quinta Turma. DJ de 04/11/2010). 33. Cf.: “A posição da reincidência entre as agravantes é realmente singular. Difere de todas as outras, que, embora se refiram a condição ou estado de ânimo do agente, são postas em relação com o fato cometido. Na reincidência o fato cometido é que se junta à condenação anterior para compor a agravante, aumentando a culpabilidade do agente (...).” (Bruno, Aníbal. Op. cit., p. 112) 34. No entanto, decidiu o STF: “A só reincidência não constitui razão suficiente para imposição de regime de cumprimento mais severo do que a pena aplicada autorize.” (HC 9724. STF. Min. Cezar Peluso. Segunda Turma. DJ de 26/06/2009). 398
Capítulo XXVI | Aplicação da pena
condenação foi proferida por juiz ou tribunal estrangeiro e, obviamente, que passou em julgado. Cuidou-se de inovação, introduzida pelo CP/1940, que objetivou seguir a “tendência de internacionalização do Direito Penal”.35 A condenação anterior que gera a reincidência pode decorrer de crime tipificado no Código ou na legislação especial, comissivo ou omissivo, consumado ou tentado, doloso ou culposo.36 Contudo, tratando-se de contravenção penal não há que falar em reincidência, pois o art. 63 pressupõe crime anterior. A recíproca não é verdadeira, ou seja, pela Lei das Contravenções Penais, verifica-se a reincidência quando o agente pratica uma contravenção depois de passar em julgado a sentença que o tenha condenado, no Brasil ou no estrangeiro, por qualquer crime, ou, no Brasil, por motivo de contravenção (art. 7o, da LCP). Da mesma maneira, não gera reincidência a pena imposta por crime militar ou por crime político. Os crimes militares dividem-se em próprios e impróprios. O primeiro grupo compreende infrações que somente estão definidas na legislação penal militar, seja em tempo de paz (deserção, insubmissão, dormir em serviço, pederastia etc.) ou de guerra (traição, cobardia, espionagem etc.). Os crimes impropriamente militares são aqueles que estão previstos igualmente na legislação civil, quando praticados por militares (ou assemelhados) e civis, contra o patrimônio militar ou a administração militar (art. 9o, CPM), não se olvidando que crimes dolosos contra a vida de civis são da competência da justiça comum (art. 9o, parágrafo único, do CPM, com a redação da Lei no 9.299/1996). Segundo Heleno Fragoso, para efeitos de excluir a reincidência, devem ser considerados apenas os crimes propriamente militares, pois estes têm índole inteiramente diversa dos previstos na legislação comum, atentando contra a disciplina e a hierarquia.37 Com relação aos crimes políticos, igualmente divididos entre próprios ou impróprios, cumpre observar que, no primeiro grupo, estão aqueles que atentem, exclusivamente, contra a ordem constitucional ou o Estado Democrático, ou seja, os superiores interesses político-sociais do Brasil (art. 5o, XLIV, da CF/1988). Ressente-se, na atualidade, de uma adequada definição legal de crimes políticos, não obstante a previsão, na Lei no 7.170/1983 (Lei de Segurança Nacional), de hipóteses que poderiam – não sem uma dose de polêmica sobre sua constitucionalidade – ser consideradas como infrações políticas puras (submeter o território nacional a soberania estrangeira, mudar o regime vigente ou o Estado de Direito etc.). Os crimes impropriamente políticos referem-se a fatos tipificados na legislação penal comum, quando perpetrados por razões político-subversivas (homicídios, sequestros, roubos etc.). Somente os crimes 35. E. M. do CP/1940, item 25. Sobre o assunto, Marcela Takahashi Pereira informa que a reincidência é um “efeito secundário da sentença estrangeira, mas não um efeito de simples ato”. Segundo a autora, cuida-se de um caso de reconhecimento automático, ou seja, “um efeito típico e próprio da condenação judicial, reconhecida op legis em relação a ele.” (Pereira, Marcela H. Takahashi. Sentença estrangeira. Efeitos independentes da homologação. Belo Horizonte: Del Rey, 2010, p. 89). 36. Cf.: “Conforme disposto no art. 63, do CP, não se exige a especificidade para reconhecer-se a reincidência, pouco importando que o crime anterior tenha sido doloso e o posterior haja ocorrido na forma culposa.” (HC 100006. STF. Min. Marco Aurélio. Primeira Turma. DJ de 19/02/2010). 37. Fragoso, Heleno Cláudio. Op. cit., p. 417. 39 9
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propriamente políticos deixam de ser considerados para efeitos de reincidência.38 O art. 63, do CP, menciona, ainda, que a reincidência é verificada quando o agente comete novo crime após passar em julgado a sentença anterior. Não se considera reincidente quem pratica fato criminoso antes do trânsito em julgado de condenação penal por fato diverso.39 O dispositivo refere-se a crime cometido, o que não quer dizer o mesmo de crime consumado. O crime consumado depois do trânsito em julgado, mas cometido antes deste marco legal, gera a reincidência. Adota-se, para a reincidência, a teoria da atividade (cf. art. 6o, do CP), em detrimento da teoria do resultado (cf. art. 111, do CP). Caso a sentença condenatória por delito anterior venha a ser anulada em grau de recurso, desaparecerão, por óbvio, os efeitos da reincidência. Alude-se, sob outra vertente, à reincidência própria (ou verdadeira) e à reincidência imprópria (ficta), significando, no primeiro caso, que o agente volta a delinquir depois de haver expiado a pena, e, no segundo, que ele o faz após a condenação definitiva, mas sem ter cumprido, total ou parcialmente, a pena que lhe fora imposta. O Código acolheu essa última orientação, não obstante alguns clássicos – como Carrara – recomendarem que os efeitos da reincidência somente deveriam existir após o cumprimento integral da pena anterior.40 Diz-se, ainda, específica a reincidência quando o agente recai no delito da mesma natureza, e genérica, quando os crimes forem de natureza diversa. O CP/1984 abolira a figura da reincidência específica (art. 47, do CP/1940), face à estreita relação que tinha com a ideia de periculosidade. Contudo, ela foi reintroduzida como requisito impeditivo da substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos (art. 44, § 3o, in fine, com a redação da Lei no 9.714/1998) ou do livramento condicional, nos casos de crimes igualmente hediondos (art. 83, V, do CP, com a redação da Lei no 8.072/1990). A propósito, decidiu o STF que a reincidência específica é agravante que sempre determina a exacerbação da pena, inclusive em maior grau do que a recidiva genérica, por evidenciar que o réu persiste na senda do crime.41 Sobre a duração dos seus efeitos – isto é, a possibilidade de “prescrição” da reincidência – abandonou-se, a partir da Lei no 6.416/1977, o sistema da perpetuidade, contemplado no Código de 1940, em prol do modelo da temporariedade, a exemplo do que já vinha sendo adotado nos diplomas estrangeiros. A Reforma de 1984 seguiu a nova orientação político-criminal, estipulando, no art. 64, I, do CP, não prevalecer a condenação anterior se, entre a data do cumprimento ou extinção da pena e a infração posterior, tiver decorrido tempo superior a cinco anos, nele se computando o período de prova da suspensão ou do livramento condicional, se não ocorrer revogação. 38. Idem, p. 417. 39. HC 96997. STF. Min. Cezar Peluso. Segunda Turma. DJ de 26/06/2009. 40. Segundo Carrara: “Para ser reincidente, não basta ter sido condenado outra vez, mas é mister ainda ter expiado inteiramente a pena, porque não se pode dizer de natureza insensível àquele sofrimento quem não o padeceu. (...) Limitar a severidade à mera reincidência verdadeira é uma necessidade lógica, e, pois, jurídica, do sistema por nós adotado.” (Carrara, Francesco. Programa do Curso de Direito Criminal. Vol. II. Trad. José Luiz Franceschini. São Paulo: Saraiva, 1957, p. 220) (grifos do original). 41. HC 101918. STF. Min. Ricardo Lewandowski. Primeira Turma. DJ de 06/08/2010. 400
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Por fim, alguns propugnam o abandono total do instituto da reincidência penal ou, quiçá, que esta viesse a funcionar como atenuante, ao invés de circunstância agravante, na medida em que seria um sintoma indicativo do fracasso do tratamento penal, a ser tributado ao Estado – ou com ele repartido –, e não exclusivamente ao infrator que infringiu novamente a lei penal. Heleno Fragoso chega mesmo a dizer que ela pode “não significar coisa alguma”.42 Não se ignora, de fato, que a reincidência tem experimentado, ao longo dos anos, uma paulatina perda de relevância político-criminal. De lege ferenda, talvez fosse mesmo o caso de torná-la uma circunstância judicial unificada com o conceito de maus antecedentes ou – quem sabe – fazer com que seus efeitos negativos fossem contrabalançados com os da reabilitação penal. De lege lata, cuida-se, ainda, da mais proeminente das circunstâncias agravantes do ordenamento jurídico brasileiro. 26.4.2. Demais circunstâncias agravantes
Excetuada a reincidência, os arts. 61 e 62, do CP, apresentam quinze outras agravantes. Cuidam-se de situações que, a critério do legislador, denota-se uma maior reprovabilidade da conduta do condenado, seja em função dos motivos que determinaram o delito, os meios empregados, a forma de sua execução (modus operandi), os vínculos existentes entre ele e a pessoa da vítima, o fato de a vítima ser pessoa especialmente merecedora de proteção e, por fim, hipóteses que envolvem o concerto de pessoas. Nas palavras de Aníbal Bruno, cuidam-se de situações reveladoras da particular culpabilidade do agente, que aumentam a reprovabilidade que a ordem jurídica faz pesar sobre ele em razão do seu crime.43 Por outro lado, é certo que algumas dessas agravantes constituem-se elementares típicas, como, v.g., crime contra mulher grávida, que é, exatamente, elementar dos delitos dos art. 124 a 126 (aborto). Outras, como aquelas indicadas nas alíneas “a”, “b”, “c” e “d”, do inc. II, do art. 61, e o inc. IV, do art. 62, repetem hipóteses qualificadoras do delito do art. 121 (homicídio), à exceção da asfixia. Em tais situações, há de ser respeitado o princípio do ne bis in idem, não sendo aplicáveis as agravantes. Observe-se, ainda, que, a partir do Código de 1940, a premeditação deixou de constar do rol das circunstâncias agravantes. Ao tempo dos diplomas anteriores, o crime era agravado se cometido, mediando entre a deliberação criminosa e a execução, o espaço, pelo menos, de 24 horas (art. 39, § 2o, do CP/1890). A razão para a retirada da premeditação decorre da sua natureza relativa e subjetiva. Ora, aquilo que se toma como premeditar o crime pode tanto significar uma fria ação calculista, como, ao inverso, uma louvável hesitação moral do infrator. Ademais, dificilmente se conseguia cronometrar as 24 horas a partir da deliberação criminosa, em face de seu cunho subjetivo, salvo se o agente confessasse. Mas, se ele revelar o instante da formação do seu desígnio (art. 16, § 8o, do CC/1830), fará jus à atenuante atualmente inscrita no art. 65, II, “d”, do CP. 42. Fragoso, Heleno Cláudio. Op. cit., p. 419. 43. Bruno, Aníbal. Op. cit., p. 111. 4 01
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De toda sorte, a premeditação pode, dependendo do caso concreto, ser sopesada no contexto das circunstâncias judiciais do art. 59, do CP, a favor ou contra ao agente. 26.4.2.1. Agravantes do art. 61, do CP
Segundo o art. 61, do CP, além da reincidência, são circunstâncias que sempre agravam a pena: A) Ter o agente cometido o crime por motivo fútil ou torpe
Nos diplomas anteriores, figurava, entre as circunstâncias agravantes do crime, o motivo reprovado ou frívolo (art. 16, § 4o, do CC/1830, e art. 39, § 4o, do CP/1890). Com o Código de 1940, os motivos fútil e torpe passaram a funcionar como agravante da pena (art. 61, II, “a”), além de qualificar o homicídio (art. 121, § 2o, I e II). A Reforma Penal de 1984 repetiu a mesma orientação. O motivo fútil (do latim futilis, de fundere) é o motivo insignificante, desproporcional, leviano, banal. Exprime-se a noção de que a motivação decorre de um estímulo insuficiente para impelir alguém a delinquir. Não há, assim, na futilidade, simetria relevante entre a razão delinquente e o fato em si perpetrado. O estímulo que desencadeou a ação, em geral explosiva, foi de somenos importância. Exemplo: Pelo fato de não dar “bom dia”, o morador “A” desfere no porteiro “B” um poderoso soco no rosto, acarretando-lhe lesões corporais de natureza grave (art. 129, § 1o, I, do CP).
Não há que confundir motivo fútil com motivo injusto ou, ainda, com ausência de motivo. Injusta é a conduta típica não amparada por nenhuma excludente de antijudicidade. Para que se reconheça a agravante da futilidade, faz-se necessário que, além de injusta, a motivação do agente tenha se revelado insignificante. A seu turno, ausência de motivo é algo em si neutro. Embora a inexistência de motivação escape à ontologia do comportamento humano, tendo em conta que todo o crime tem um porquê,44 é possível não restar evidenciado, no caso concreto, a razão para o agir criminoso, não se aplicando, assim, a presente agravante. A seu turno, torpe (do latim turpis) é o motivo asqueroso, repugnante, vil, desprezível, que causa aversão, enfim. Não se ignora que todos os delitos são em si reprováveis, mas, de fato, alguns ofendem mais profundamente a moralidade média e os sentimentos éticos de uma comunidade, justificando, dessa maneira, a maior reprimenda penal. Observe-se, porém, que a delinquência mercenária (mediante paga ou promessa de recompensa), embora se constitua motivo torpe por excelência, está regulada no inc. IV, do art. 62, do CP, não podendo, pois, ser duplamente valorada. Por outro flanco, a torpeza bilateral não exclui a incidência da agravante, respondendo, cada qual dos infratores, na medida de suas culpabilidades. 44. E. M. do CP/1940, item 25. 4 02
Capítulo XXVI | Aplicação da pena
Ainda sobre o assunto, cumpre agregar que o ciúme, isoladamente considerado, não se constitui motivo fútil nem torpe. Em geral, o crime praticado sob este selo decorre de um sentimento de insegurança ou de possessão para com outra pessoa, obviamente injusto e reprovável. No entanto, dependendo da hipótese fática, o ciúme pode guardar certo relevo psicológico – afastando, assim, a futilidade – ou restar estribado em um doentio sentimento de amor e de paixão, antagônicos, pois, da torpeza. Reitere-se: tudo dependerá do exame do caso concreto. B) Ter o agente cometido o crime para facilitar ou assegurar a execução, a ocultação, a impunidade ou vantagem de outro crime
São também situações de inequívoca torpeza por envolver uma espécie de espiral criminosa. No caso, a motivação do crime é um outro crime, já praticado ou em vias de sê-lo. Segundo Aníbal Bruno, há dois crimes conexos, e aquele que vai servir de meio para o segundo ou de condição para a sua eficácia é onerado com o peso da agravante. A lei pondera a vontade ilícita que não recua diante de um fato delituoso para assegurar a prática, as vantagens ou a não punição de outro, e exaspera a pena que irá ser aplicada ao seu autor.45 Ou seja, o móvel do delito é tornar fácil ou seguro os atos executórios, a ocultação, a impunidade do agente ou os lucros auferidos com a perpetração de outro delito. Não é necessário que o segundo delito seja executado; basta, para caracterização da agravante, a sua intencionalidade. Exemplo: “A” põe fogo numa casa para aproveitar-se da confusão e furtar objetos de valor nela existentes. Ainda que “A” não furte, responderá pela agravante quando da condenação pelo delito de incêndio (art. 250, do CP).46
A agravante sob consideração (art. 61, II, “b”, do CP) origina-se da chamada conexão teleológica ou consequencial. Com relação à conexão consequencial, pressupõe-se um delito já praticado. É, por exemplo, danificar (art. 163, do CP) o circuito interno de TV de uma joalheria que havia registrado o roubo anteriormente praticado (art. 157, do CP), assegurando, assim, a impunidade deste último. A seu turno, a conexão teleológica pressupõe, em regra, o crime-fim ainda não cometido, mas que, para ocorrer, depende da realização do crime-meio. Exemplifica-se com a hipótese do agente que rouba um veículo (art. 157, do CP) com o objetivo de transportar pessoas, dentro do território nacional, para o exercício da prostituição ou outra forma de exploração sexual (art. 231-A, § 1o, do CP, com a redação da Lei no 12.015/2009). A vantagem a que se refere a parte final dessa agravante não é somente o enriquecimento patrimonial ilícito, abrangendo todo e qualquer benefício indevido, tal como a 45. Bruno, Aníbal. Op. cit., p. 126. 46. Como lecionado por Roberto Lyra, nesse exemplo – por ele elaborado –, não é o furto que agrava, mas a intenção de furtar (Lyra, Roberto. Op. cit., p. 285). 4 03
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mantença da fama de inescrupuloso perante os demais criminosos do colarinho branco47 ou a fruição da liberdade, no caso de evasão de preso,48 dentre outros. C) Ter o agente cometido o crime à traição, de emboscada, ou mediante dissimulação, ou outro recurso que dificultou ou tornou impossível a defesa do ofendido
São hipóteses que impedem ou oneram sobremaneira o exercício da legítima defesa por parte do ofendido (art. 25, do CP). Os recursos, isto é, as situações criadas ou aproveitadas para a perpetração do ilícito – tais como a traição, a emboscada ou a dissimulação – reduzem a possibilidade de defesa da vítima. É a covardia, a perfídia ou a deslealdade que fundamentam a maior reprovabilidade do agente. Na traição, há a quebra da confiança depositada pelo lesado. O agente constrói ou tira vantagem da fidúcia alheia. Em geral, é alguém que, de ordinário, desconsiderava a vítima, mas, para praticar o crime, dela se aproxima e passa a demonstrar uma amabilidade astuta e tranquilizadora. Dessa forma, von Hentig alude à técnica de matar, agredir ou roubar, por intermédio do “servir-se da carícia ou, inclusive, do mais íntimo dos contatos, para conquistar a confiança da vítima, deixando-a indefesa”.49 Emboscada, literalmente meter-se no bosque, compreende o lugar onde se esconde para, repentinamente, atacar o inimigo.50 O Código de 1890 definia a agravante como sendo a espera do ofendido em um ou diversos lugares (art. 38, § 8 o, do CP/1890). Pressupõe que o agente se oculte, em um local planejado, e aguarde, pacientemente, a passagem da vítima desprevenida. Alude-se à tocaia ou atalaia como expressões sinônimas da emboscada. Na dissimulação há o encobrimento dos desígnios hostis, ou seja, o disfarce apto a enganar ou iludir. Exemplo: “A” intercepta o passante “B” a pretexto de obter uma informação turística qualquer. Enquanto “B” confere, num mapa, a localização correta do suposto ponto de interesse, “A” subtrai-lhe a carteira de dinheiro.
O dispositivo refere-se, ainda, a qualquer outro recurso apto a dificultar ou inviabilizar a resistência do ofendido. Cuida-se da chamada interpretação analógica, ou seja, permite-se que o magistrado reconheça a incidência da agravante em hipóteses não expressamente contempladas, mas semelhantes à casuística apresentada. No caso, outros recursos seriam, v.g., o emprego da surpresa, da cilada, da agressão pelas costas, do ataque com a vítima dormindo, bem como da ação inopinada sobre pessoa desatenta.
47. 48. 49. 50. 404
Sutherland, Edwin H. White collar crime (the uncut version). N. Haven: Yale University Press, 1983, p. 229. Lyra, Roberto. Op. cit., p. 287. Hentig, Hans von. Estudos de psicología criminal. Vol. II. 3. ed. Trad. Rodríguez Devesa. Madrid: Espasa, 1971, p. 222. Silva, Antonio de Moraes. Diccionario da lingua portugueza. Tomo I. Lisboa: Borel, Borel e Cia., 1858, p. 763.
Capítulo XXVI | Aplicação da pena
D) Ter o agente cometido o crime com emprego de veneno, fogo, explosivo, tortura ou outro meio insidioso ou cruel, ou de que podia resultar perigo comum
Neste grupo de casos, a maior reprovabilidade decorre do instrumento utilizado pelo agente – insidioso, cruel ou de que possa resultar perigo para a coletividade.51 Meio insidioso é o empregado de forma sub-reptícia. Nesse sentido, veneno – ou seja, a substância mineral, vegetal ou animal que altera ou destrói as funções vitais do organismo – é meio costumeiramente imperceptível, como ocorre, v.g., com “vidro moído” adicionado a um suco ou alimento. Evidentemente, se o veneno for empregado às claras, como, por exemplo, forçando a vítima a ingerir uma ampola de cicuta, não caracterizará meio insidioso, mas, sim, cruel. A propósito, além de figurar como qualificadora do homicídio (art. 121, § 2o, III), o veneno é elementar do delito do art. 270, do CP. Meio cruel é o que revela uma brutalidade fora do comum ou contrastante com o mais elementar senso de piedade.52 Conquanto possam estar juntos no mesmo fato, meio insidioso e meio cruel não se confundem, visto que a crueldade agrava sobremodo o sofrimento da vítima e, a insídia, consiste no uso de estratagema para mantê-la incauta. O dispositivo ilustra formas de crueldade: fogo, explosivo ou tortura. A Reforma Penal de 1984 cancelou a referência à asfixia, isto é, à privação da atividade respiratória (sufocação), por considerá-la redundante como exemplificativa da insídia ou crueldade.53 No entanto, a asfixia continua no rol das qualificadoras do homicídio (art. 121, § 2o, III, do CP), podendo ser aqui perfeitamente aplicável uma vez que o dispositivo permite a interpretação analógica. Fogo é a ação simultânea de calor e luz, produzido pela combustão de matérias inflamáveis, como a madeira, o carvão e o gás; e explosão é a comoção seguida de detonação, produzida pelo desenvolvimento repentino de uma força ou pela expansão súbita de um gás.54 Além de cruéis, fogo e explosão podem trazer perigo para a incolumidade pública e são elementos constitutivos dos delitos dos arts. 250 e 251, do CP. Tortura, por sua vez, é o recurso que traz intenso e desnecessário sofrimento físico ou mental à vítima. Com a entrada em vigor da Lei de Tortura (Lei no 9.455/1997), inclusive para situações de provocação de ação ou omissão de natureza criminosa, essa hipótese agravante genérica restou absorvida, tornando-se sem efeito prático (cf. art. 1o, I e II, e §§, da Lei no 9.455/1997). Meio que pode resultar perigo comum é aquele que, além de permitir seja atingida ou posta em perigo a vítima, coloca em situação de perigo um número indeterminado de pessoas.55 Além do fogo e da explosão, já mencionados, o Título VIII, da Parte Especial, tipifica diversas modalidades atentatórias da incolumidade pública (arts. 250 e segs., do CP). 51. O Código de 1890 previa a circunstância de “ter o delinquente cometido o crime por meio de veneno, substâncias anestésicas, incêndio, asfixia ou inundação” (art. 39, § 3 o), bem como o “aumento da dor física por ato de crueldade (art. 41, § 2 o). 52. E. M. do CP/1940, item 38. 53. E. M. do CP/1984, item 52. 54. Holanda, Aurélio Buarque Ferreira. Op. cit., p. 792 e 744. 55. Franco, Alberto Silva. Op. cit., p. 361. 405
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Por fim, como dito, o dispositivo repete a técnica da interpretação analógica, permitindo-se que se reconheça outros meios insidiosos, cruéis ou perigosos para a coletividade assemelhados aos supra indicados, como a já mencionada asfixia. E) Ter o agente cometido o crime contra ascendente, descendente, irmão ou cônjuge
A agravante da letra “e”, do inc. II, do art. 61, põe em destaque hipóteses de maior negatividade da ação do agente, na medida em que denota o desprezo pelos laços de solidariedade e de respeito entre familiares próximos. Segundo a Constituição, a família, base da sociedade, deve ter especial proteção do Estado (art. 226, da CF/1988). O Código Civil, ao tratar do direito de família, estabelece os deveres de assistência mútua entre parentes em linha reta (ascendentes e descendentes), irmãos (germanos e unilaterais), cônjuges e companheiros (art. 1.694, do CC). Para o Direito Penal, a agravante enfeixa o parentesco decorrente do casamento, da consanguinidade e o da adoção. Descarta-se, contudo, o crime cometido contra o companheiro, muito embora a união estável tenha reconhecimento constitucional e legal (art. 226, § 3o, da CF/1988; art. 1.723, do CC), tendo em conta o princípio da reserva legal e a vedação da analogia in malam partem. Cumpre mencionar que se o agente pratica crime doloso, punido com reclusão, contra filho, sofrerá, ainda, a perda do poder familiar, consoante disposto no art. 92, II, do CP. Outrossim, se ele comete delito patrimonial, sem violência ou grave ameaça, em prejuízo do cônjuge, na constância da sociedade conjugal, ou de ascendente ou descendente, seja o parentesco legítimo ou não, civil ou natural – à exceção de lesado com idade igual ou superior a sessenta anos –, será beneficiado pela escusa absolutória regulada no art. 181, do CP. F) Ter o agente cometido o crime com abuso de autoridade ou prevalecendo-se de relações domésticas, de coabitação ou de hospitalidade, ou com violência contra a mulher na forma da lei específica
A letra “f”, do inc. II, do art. 61, do CP, cuida de hipóteses não abrangidas no item anterior, mas que evidenciam, igualmente, um comportamento desrespeitoso para com os laços de solidariedade e auxílio que deveriam preponderar nas situações que enumera. Fundamentalmente, há uma quebra da confiança que tais hipóteses impõem ao agente. Atente-se, contudo, que se o abuso for de autoridade pública caracterizará os dispositivos seguintes. Sendo assim, abuso de autoridade pressupõe prerrogativas, não de direito público, mas de direito privado, como se verifica na tutela e curatela (arts. 1728 e 1767, do CC). Impende salientar que incumbe ao tutor, quanto à pessoa do menor, dirigir-lhe a educação, defendê-lo e prestar-lhe alimentos, bem como administrar os bens do tutelado, em seu proveito, com zelo e boa-fé (art. 1740, CC). As regras a respeito da tutela são extensivas à curatela (art. 1781, do CC). O abuso de tais misteres, com lesão ou ameaça a bem jurídico de pessoas às quais deveriam servir com denodo e prudência, corrobora a 406
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maior reprovabilidade do ilícito penal. Observe-se, ainda, que poderá o juiz sentenciante, além de aplicar a presente agravante, decretar a incapacidade para o exercício da tutela ou curatela, nos crimes dolosos punidos com reclusão e cometidos contra tutelados ou curatelados (art. 92, II, do CP). Relações domésticas indiciam os vínculos existentes entre aqueles que têm um lar ou domicílio como um ambiente privado de apoio físico e moral, como ocorre, em geral, entre os componentes de uma família, ou entre estes e seus empregados domésticos ou os amigos que regularmente os visitam. Na intimidade em que essas relações se desenvolvem é natural que bens jurídicos penalmente tutelados encontrem-se mais desguarnecidos, o que facilita e torna mais reprovável a perpetração do delito. A coabitação – literalmente habitar em comum – envolve vínculos fáticos entre indivíduos que licitamente se abrigam ou pernoitam, temporária ou definitivamente, espontânea ou obrigatoriamente, onerosa ou gratuitamente, sob o mesmo teto. Detentos podem habitar a mesma cela; turistas, o mesmo transatlântico; peregrinos, o mesmo albergue; estudantes, a mesma república; coinquilinos, o mesmo apartamento etc. Competirá ao magistrado analisar a situação real para verificar se, de fato, havia uma relação de coabitação que facilitou a prática delitiva. Hospitalidade, por sua vez, é o ato de receber ou alojar alguém na sua residência, geralmente por educação, bondade ou afeição. Cuida-se de um complemento legal da coabitação, sendo que, no caso, o ilícito pode ser praticado tanto pelo hospedeiro como pelo hóspede, ou seja, de parte a parte, pressupondo, obviamente, o ingresso físico deste na residência daquele. Há relações de hospitalidade num almoço ou jantar para vários convidados, numa reunião de negócios, numa simples visita de cortesia etc. Exclui-se o ingresso ou a permanência clandestino ou violento na casa alheia, vez que tipifica o delito do art. 150, do CP. A Lei no 11.340/2006 alterou a redação da letra “f”, do inc. II, do art. 61, para acrescentar a agravação quando ocorrer violência contra a mulher na forma da lei específica. A referida lei – conhecida como Lei Maria da Penha –, inovou o ordenamento jurídico com mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher. É certo, porém, que a hipótese já se encontrava abarcada pela parte inicial do dispositivo (relações domésticas) ou, ainda, na letra “e” no mesmo inciso II (ser o agressor ascendente, descendente, irmão ou cônjuge da agredida física ou moralmente). G) Ter o agente cometido o crime com abuso de poder ou violação de dever inerente a cargo, ofício, ministério ou profissão
O art. 61, II, “g”, do CP, arrola situações nas quais o agente detém cargo público (posto na administração pública), ofício (atividade especializada), ministério (função de cunho religioso) ou profissão (trabalho que exige habilitação especial, tais como professor, médico, engenheiro, advogado etc.). Em tais atividades, há direitos e deveres, cujo abuso ou a violação denota maior reprovabilidade. Portanto, não basta ostentar tais qualificativos, mas valer-se deles para praticar ou facilitar a prática da infração penal. 4 07
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A expressão ofício deve ser considerada sinônimo de função pública. Isso porque, o contexto da agravante diz respeito a abuso de poder e “tem nitidamente o sentido de punir mais severamente aquele que, valendo-se de posto específico, com atribuições destacadas, reconhecidas em lei – daí por que se falar em violação de dever – outra não pode ser a interpretação da palavra ofício”.56 Embora abuso e desvio sejam frequentes no curso de atividades públicas ou privadas, fato é que, em geral, comportamentos dessa natureza já se encontram criminalizados, como ocorre, v.g., com todos os delitos funcionais capitulados nos arts. 312 e segs., do CP, ou, ainda, na Lei no 4.898/1965 (Lei de abuso de autoridade). O mesmo se verifica com a violação de segredo profissional, o exercício abusivo da profissão de médico, dentista ou farmacêutico, o patrocínio infiel ou simultâneo (arts. 154, 282, 355 e seu parágrafo único, do CP). Dessa maneira, há de se ter redobrado cuidado para não se valorar, duplamente, elementares de crimes e agravante sob consideração, sob pena de descumprimento do princípio do ne bis in idem. Anote-se que a pena privativa de liberdade envolvendo ilícitos com o abuso de poder poderá, conforme o caso, ser substituída por pena restritiva de interdição temporária de direitos (art. 47, I e II, do CP). Ademais, o magistrado poderá impor, como efeito da condenação, a perda do cargo, função pública ou mandato eletivo (art. 92, I, “a” e “b”, do CP). H) Ter o agente cometido o crime contra criança, maior de 60 (sessenta) anos, enfermo ou mulher grávida
O fundamento da agravante do art. 61, II, “h”, do CP, estriba-se no fato de o lesado ser criança, idoso, enfermo ou gestante, ou seja, pessoa que está a merecer especial proteção social e legal. Há, portanto, uma maior reprovabilidade da conduta, diretamente proporcional ao maior estado de vulnerabilidade da vítima. O vocábulo criança origina-se de criação, vale dizer, de pessoa em idade infantil ou pueril. Muito embora não se precise até quando alguém pode ser considerado criança, o seu termo limítrofe pode ser alcançado por meio da interpretação sistêmica, ou seja, considera-se como tal a pessoa até os doze anos de idade incompletos (art. 2o, da Lei no 8.096/1990 – Estatuto da Criança e do Adolescente). A mesma indefinição legal existia com a palavra velho. No entanto, diante da alteração promovida pela Lei no 10.741/2003 (Estatuto do Idoso), a agravante recebeu nova redação, substituindo-se velho por maior de 60 (sessenta) anos, o que extirpou qualquer dúvida sobre quem se situa nessa faixa etária.57 Por sua vez, enfermo é aquele que sofre doença crônica ou aguda, física ou mental, tendo, por conta disso, diminuída a sua capacidade de resistência. A pessoa com a 56. Nucci, Guilherme de Souza. Individualização da pena. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p. 234. 57. Cf.: “A partir da alteração promovida pela Lei no 10.741/2003, a agravante inserta no art. 61, II, al. “h”, do Código Penal, aplica-se na hipótese de crime cometido contra vítima maior de 60 (sessenta) anos de idade, considerando-se, unicamente, o critério cronológico.” (REsp 1111688. Min. Felix Fischer. Quinta Turma, DJ de 19/10/2009). 408
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saúde fragilizada se torna fácil vítima da ação criminosa. Não se deve, porém, incluir nessa categoria quem sofre alterações orgânicas superficiais ou passageiras, como, por exemplo, uma simples dor de cabeça, gripe ou resfriado, pois tais transtornos, de ordinário, não reduzem a aptidão para resistir à investida do infrator. A mulher grávida (incluída pela Lei no 9.318/1996), deve merecer igual proteção, pois seu estado fisiológico sempre inspira cuidados especiais. No caso, há maior reprovabilidade porque também deve ser protegido o ser em gestação. Há, portanto, uma duplicidade de lesados: a mulher e o embrião ou feto. Gravidez pressupõe, obviamente, uma vida em gestação. Sendo assim, apesar de ser uma questão até certo ponto metafísica assinalar quando é que começa a vida, o entendimento dominante é neste sentido, o processo de gestação que compreende desde a nidação (o óvulo fecundado que adere à parede do útero) até o início do parto (rompimento do saco amniótico). Para que se opere a agravante é necessário que o agente saiba que se trata de mulher grávida, circunstância que, a depender do estágio avançado da gravidez, pode ser de fácil percepção visual. I) Ter o agente cometido o crime quando o ofendido estava sob a imediata proteção da autoridade
Cuida-se de agravante introduzida no art. 39, § 16, do Código de 1890, subsequentemente reproduzida no art. 44, II, “j”, do Código de 1940 e, agora, no art. 61, II, “i”, do Código de 1984. No caso vertente, a agravante se justifica pela maior reprovabilidade da conduta que desrespeita ou menoscaba, simultaneamente, a autoridade pública e o ofendido em situação de especial tutela. Segundo Roberto Lyra, estão sob a imediata proteção da autoridade o preso, o doente mental recolhido em estabelecimento oficial, o estudante que atravessa a rua, depois de interrompido o tráfego de veículos pelo guarda de trânsito etc.58 Pode-se, ainda, incluir nessa circunstância, a hipótese da testemunha conduzida coercitivamente ao juízo pelo oficial de justiça (art. 218, do CPP). J) Ter o agente cometido o crime em ocasião de incêndio, naufrágio, inundação ou qualquer calamidade pública, ou de desgraça particular do ofendido
O art. 61, II, “j”, do CP, compreende situações de calamidade pública ou de desgraça pessoal. Diferentemente do verificado na letra “c”, supra, o agente não cria, mas se aproveita da dificuldade ou impossibilidade de defesa do ofendido em virtude de calamidade pública, oficialmente decretada ou não, ou de sua grave desventura pessoal, facilitadores da comissão do delito. Além do incêndio, naufrágio, inundação, são, também, exemplos de infortúnios coletivos: desabamento ou desmoronamento, tsunamis, epidemia, carestia, seca ou estiagem prolongada, conflitos bélicos internos ou externos etc. Desgraça particular são os graves acidentes de trânsito, a queda de uma aeronave, a morte súbita de entes queridos, a decretação da falência do empresário ou da insolvência civil da pessoa natural etc. 58. Lyra, Roberto. Op. cit., p. 312. 409
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Em todos esses casos, a maior reprovabilidade decorre do fato de que, nas situações excepcionais ora apresentadas, as vítimas têm reduzidas possibilidades de oferecimento de resistência ao ilícito. K) Ter o agente cometido o crime em estado de embriaguez preordenada
Cuida-se de circunstância agravante introduzida no Direito Penal brasileiro pelo Código de 1940, visto que, até então, a embriaguez procurada como animação ao delito tão somente neutralizava a circunstância atenuante da embriaguez que era prevista nos diplomas anteriores. No CP/1940, a agravante possuía o seguinte teor: “Depois de embriagar-se propositadamente para cometê-lo” (art. 44, II, “c”, do CP/1940). A Reforma Penal de 1984 objetivou dar uma redação mais clara e concisa – em estado de embriaguez preordenada – além de deslocar a hipótese para o final do rol das agravantes do art. 61, do CP. No caso, o agente se embriaga deliberadamente para praticar o crime. Trata-se de situação de maior reprovabilidade da embriaguez voluntária, visto que o agente, por intermédio do consumo de álcool ou substância de efeito análogo, objetiva não somente ficar bêbado, mas romper os freios inibitórios ou preparar uma escusa ao delito. Ainda, merece ser ressaltada a simetria lógica com a circunstância agravante da autoria mediata, a seguir analisada. Ou seja, se o Código reprime, de forma agravada, aquele que se vale de outrem para praticar o crime (art. 62, II e III, do CP), seria absurdo se não o fizesse quando o agente se vale, não de outrem, mas de si próprio para a mesma finalidade reprovável. Como visto, para a incidência da agravante, pouco importa se a embriaguez preordenada foi completa ou incompleta, contentando-se, a lei penal, com a ação finalista que motivou a ingestão de álcool ou substância de efeito análogo. 26.4.2.2. Agravantes no caso de concurso de pessoas
As agravantes contidas no art. 62, do CP, reproduzem, quase literalmente, aquelas contempladas, originalmente, no art. 45, do CP/1940. Na época, as agravantes no concurso de agentes, bem como as atenuantes do art. 48, II e parágrafo único, do CP/1940 (atuais §§ 1o e 2o, do art. 29, do CP), já evidenciavam a impropriedade – ou a inviabilidade – da rigidez propugnada pela teoria monística ou unitária no concurso de pessoas, então consagrada no art. 25, caput, do Código de 1940, que repelia a distinção entre autoria e participação. Dizia-se: “todos os que tomam parte do crime são autores”.59 O abrandamento daquele rigor, já implícito nos arts. 45 e 48, do CP/1940, tornou-se explícito no atual art. 29, caput, do CP, ao aludir, assim, a um monismo temperado, podendo – e devendo – a culpa do concorrente ser maior ou menor, a depender da dinâmica do fato delituoso. No caso vertente, o art. 62, do CP, apresenta, nos seus incisos, hipóteses de maior reprovabilidade na codelinquência. A propósito, a agravante do inciso I pode até mesmo ser conjugada com as dos incisos II e III. 59. E. M. do CP/1940, item 22. 410
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Por fim, registre-se que muito embora a ementa lateral do art. 62 se refira a agravantes no caso de concurso de pessoas, fato é que, a rigor, não há que falar de concurso de pessoas nas hipóteses dos incs. II e III, do mencionado dispositivo (autoria mediata). A) Ter o agente promovido, organizado a cooperação no crime ou dirigido a atividade dos demais agentes
Trata-se da chamada autoria intelectual. O promotor, o organizador, bem assim o dirigente da ação dos demais intervenientes, têm sagacidade, visão de longo prazo e poder de liderança, no caso voltados para a vulneração da ordem jurídico-penal. Merecem, pois, uma reprovabilidade mais acentuada do que a dos outros participantes. Os atos que desempenham não são meros conselhos, palpites ou exortações, mas, sim, de ascendência, tirocínio e atuação destacada – verdadeiros mentores ou artífices intelectuais do crime coletivo. É o verso, portanto, da participação de menor importância (art. 29, § 1o, do CP). Promover, em sentido literal, é mover para diante; é fomentar, dar impulso a um determinado propósito, em geral captando recursos humanos e materiais para a realização da empresa criminosa. Organizar é elaborar, no todo ou em parte, o plano de ação; é desenvolver o programa ilícito, distribuindo, previamente, as tarefas que serão executadas, consoante o postulado da divisão racional do trabalho. O organizador antevê e soluciona os problemas e os entraves que possam surgir após a fase do planejamento. Dirigir, por sua vez, é conduzir a dinâmica da ação dos coparticipantes; é gerir e orientar o desempenho de cada qual dos intervenientes no momento da execução. Nada impede que um só agente promova, organize e dirija o concerto de pessoas. No caso, haverá a incidência única da presente agravante. Contudo, a depender da complexidade do projeto criminoso, é possível existir uma separação entre tais tarefas. Sendo assim, pode acontecer de um único delito contar com um promotor, um organizador e um diretor. Se isso ocorrer, todos responderão pela agravante, na medida dos seus respectivos papéis. Deve-se ainda destacar que a agravante – introduzida pelo CP/1940 – ganhou nova importância com a adoção generalizada, tanto na doutrina como na jurisprudência, da teoria do domínio do fato e de seus desdobramentos no âmbito dos delitos empresariais (cf. Cap. XX). B) Ter o agente coagido ou induzido outrem à execução material do crime
Naturalmente, a coação pressupõe as figuras do coator e do coato. Com relação a sua natureza, ela pode ser física (vis absoluta) ou moral (vis compulsiva); e, quanto ao seu grau de intensidade, irresistível ou resistível. Para o coator, em quaisquer das hipóteses mencionadas (física ou moral, resistível ou irresistível), incidirá a presente agravante. A maior reprovabilidade justifica-se por serem dois os lesados: o coato (também denominado, impropriamente, de instrumento) e aquele que tem seu bem jurídico atingido pela ação delituosa. Acresça-se que a coação irresistível é uma das formas de autoria mediata, não havendo, na realidade, concurso de pessoas. 411
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Se o coator recebe tratamento penal mais severo, o mesmo não pode ser dito para o coato (ou coagido). Para este, cuidando-se de coação física irresistível, exclui-se a própria conduta, ante a ausência de voluntariedade. Se se cuidar de coação moral irresistível, haverá a exclusão da culpabilidade (inexigibilidade de comportamento diverso). Tratando-se, porém, de coação resistível, seja física ou moral, o coato responderá pelo crime, mas fará jus à circunstância atenuante do art. 65, III, “c”, 1a parte, do CP, adiante examinada. A Reforma Penal de 1984 acrescentou, ao lado da coação, o induzimento. O indutor faz surgir no espírito alheio a intenção delituosa, ante inexistente, o que denota a sua maior reprovabilidade. Segundo a Exposição de Motivos do CP/1984, objetivou-se, com esse acréscimo, estabelecer um paralelismo com as elementares do tipo do induzimento, instigação ou auxílio ao suicídio (art. 122, do CP).60 O induzimento não se confunde com a instigação e a determinação, que podem caracterizar a agravante do inciso seguinte. Na indução, como visto, o agente incute a ideia dantes inexistente, ao passo que na instigação há um reforço de um propósito já cogitado e, na determinação, há o mandato ou a emissão de uma ordem para outrem delinquir. C) Ter o agente instigado ou determinado a cometer o crime alguém sujeito à sua autoridade ou não punível em virtude de condição ou qualidade pessoal
Ao tempo do primeiro código republicano, considerava-se autor não somente aquele que executava diretamente o delito, mas, também, o que provocava ou determinava outrem a fazê-lo, por meio de dádivas, promessas, mandatos, ameaças, constrangimentos, abusos ou influências hierárquicas (art. 18, § 2o, do CP/1890). Contudo, nos tribunais, havia certa reticência em torno da exigibilidade da comprovação de um mandato formal. Portanto, o Código de 1940 adotou fórmula mais precisa, evidenciando-se a agravante quando verificado que o agente, efetivamente, de maneira formal ou informal, manifeste influência capaz de decidir e movimentar a pessoa sujeita à sua autoridade ou impunível em razão de condição ou qualidade pessoal. A mesma fórmula foi adotada pelo diploma atual. Se a determinação (mandato) para o cometimento do delito não for manifestamente ilegal, o executor poderá se beneficiar da causa de exclusão da culpabilidade prevista no art. 22, do CP. Se se tratar de ordem manifestamente ilegal, aquele que a executa responderá pelo fato, mas poderá fazer jus à circunstância atenuante do art. 65, III, “c”, do CP. Por outro lado, se se tratar de alguém não punível em virtude de condição ou qualidade pessoal, isto é, um inimputável, estar-se-á diante de outra hipótese de autoria mediata, justificando-se, por conta disso, a maior reprovabilidade do instigador ou mandante. O estado de inimputabilidade pode decorrer de doença mental ou por se tratar de menor de 18 anos de idade (arts. 26 e 27, do CP). Pode, ainda, decorrer de 60. E. M. do CP/1984, item 53. 412
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embriaguez acidental e completa (art. 28, II, § 1o, do CP). Como já mencionado, é incorreto falar, no caso de executor inimputável, da existência de concurso de pessoas. D) Ter o agente executado o crime, ou nele participado, mediante paga ou promessa de recompensa
A paga ou promessa (esperança) de recompensa figura entre as agravantes desde o Código de 1830 (art. 16, § 8o, do CC/1830; art. 39, § 10, do CP/1890; e art. 45, IV, do CP/1940). A agravante do art. 62, IV, do Código atual cuida-se de modalidade de motivo torpe, destacada em razão da sua especificidade. A realização de delito mercenário é, de fato, altamente repugnante, merecedora de reprovabilidade mais acentuada. A vantagem paga ou prometida é, em regra, de natureza patrimonial, mas pode se constituir outro tipo de proveito, tais como garantia de emprego, viagem internacional, favores sexuais etc. A agravante diz respeito àquele que recebe a paga ou a promessa de recompensa. Quem paga ou promete pagar não responde por essa agravante, mas poderá ser enquadrado em um dos incisos anteriores. Cumpre, por fim, mencionar, que essa agravante também figura como qualificadora do homicídio (art. 121, § 2o, I, do CP), havendo, no particular, discordância jurisprudencial acerca da sua comunicabilidade ou não.61 26.4.3. Das circunstâncias atenuantes
No art. 65, do CP, figuram as circunstâncias atenuantes, distribuídas entre incisos e alíneas, sendo que a maioria já constava da redação originária do Código. A Reforma de 1984 inovou, contudo, ao transferir a participação de menor importância e o desvio subjetivo de conduta para o artigo que trata do concurso de pessoas, passando, ambas, a constar como causas gerais de diminuição de pena (art. 29, §§ 1o e 2o, do CP). Outra novidade introduzida pela nova Parte Geral do CP foi a possibilidade da atenuação em razão de circunstância relevante – também chamada de atenuante inominada – anterior ou posterior ao crime, mas sempre identificada e valorada pelo magistrado sentenciante (art. 66, do CP). 26.4.3.1. Atenuante em razão da idade
Segundo o art. 65, I, do CP, sempre atenua a pena a circunstância de ser o agente menor de 21 anos, na data da conduta, ou maior de 70 anos, na data da sentença. 61. A 6 a Turma do STJ firmou entendimento de que, no homicídio, a qualificadora da execução mediante promessa de recompensa comunica-se ao autor intelectual: “No homicídio mercenário, a qualificadora da paga ou promessa de recompensa é elementar do tipo qualificado e se estende ao mandante e ao executor.(...).” (AgRg no REsp 912491. STJ. Min. Maria Thereza Moura. Sexta Turma. DJ de 29/11/2010). No mesmo sentido: HC 99144. STJ. Min. Og Fernandes. Sexta Turma. DJ de 09/12/2008. Diferentemente, posiciona-se a Quinta Turma: “No homicídio do tipo mercenário, a qualificadora relativa ao cometimento do delito mediante paga ou promessa de recompensa é uma circunstância de caráter pessoal, não passível, portanto, de comunicação aos coautores ou partícipes, por força do art. 30 do CP. Precedente. (...).” (RHC 14900. STJ. Min. Jorge Scartezzini. Quinta Turma. DJ de 09/08/2004). No mesmo sentido: HC 15184. Min. Felix Fischer. Quinta Turma. DJ de 24/09/2001. 413
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Saliente-se, de imediato, que a idade do infrator também gera outros efeitos na órbita penal: a redução dos prazos prescricionais (art. 115, do CP); a concessão de sursis diferenciado (art. 77, § 2o, do CP); a transferência para o regime domiciliar (art. 117, I, da LEP) ou o recolhimento a estabelecimento próprio e adequado (art. 82, § 1o, da LEP, com a redação da Lei no 9.460/1997) etc.62 A menoridade penal – ou menoridade relativa – diz respeito àquele que tem entre 18 e 21 anos incompletos. A seu turno, o menor de 18 anos é inimputável (art. 27, do CP). A circunstância atenuante da menoridade é da tradição do Direito brasileiro, sendo reconhecida desde o Código de 1830 (art. 18, § 10), passando pelos Códigos de 1890 (art. 39, § 11) e de 1940 (art. 48, I). Portanto, há mais de cento e oitenta anos conserva-se o limite de 21 anos de idade. A razão para esse trato diferenciado reside na constatação de que, embora imputável, a pessoa naquela faixa etária ainda não completou seu ciclo de maturidade, o que diminui a nota de reprovabilidade do seu comportamento. Merece, portanto, um grau de censura distinto do adulto. Estudos criminológicos corroboram a escolha do legislador. De fato, a criminalidade juvenil é alvo de atenção de criminólogos, há tempos, por se tratar da principal variável estatística da delinquência, ao lado do gênero. Alguns chegam mesmo a afirmar – com certo exagero – que, no jovem, o desvio ao invés de exceção, é a regra, tendo em vista a sua personalidade e caráter ainda em formação. Ademais, aportes criminológicos preconizam não somente que se evitem punições elevadas, mas, tanto quanto possível, que o jovem seja afastado do controle social formal (polícia, justiça e prisão), no escopo de evitar os efeitos perversos da estigmatização, da reincidência e do desenvolvimento de uma carreira criminal.63 A propósito, o Código de 1984 deixou expressa a data do fato como marco legal da aferição da idade de 21 anos incompletos. Cuidando-se de crime permanente, se a permanência somente cessar após o decurso de 21 anos, não mais incidirá a presente atenuante. Diferentemente, tratando de crime continuado, caso um dos delitos que compõem a série tiver sido praticado antes daquele marco etário, a atenuante da menoridade deverá integrar o cálculo global da pena. Sob outra vertente, como a seguir pormenorizado, no concurso entre agravantes e atenuantes, a menoridade tem prevalência sobre as demais circunstâncias preponderantes do art. 67, do CP. Segundo a Súmula 74, do STJ, para efeitos penais, o reconhecimento da menoridade do réu requer prova por documento hábil. Via de regra, exige-se a certidão de 62. O STJ entende não bastar o critério cronológico da idade, sendo, ainda, necessária a demonstração da necessidade do cumprimento da pena em regime domiciliar: “O simples fato de a Lei de Execuções Penais garantir, ao maior de 60 anos, o direito de ser recolhido em estabelecimento próprio e adequado a suas condições pessoais não autoriza, por si só, a concessão de prisão domiciliar. Somente em casos excepcionais, mesmo na hipótese de ter sido estabelecido o regime fechado para cumprimento de pena, é possível o deferimento da prisão domiciliar, quando demonstrada, de plano, a necessidade de especial tratamento de saúde, que não poderia ser suprido no local em que o condenado se encontra preso. precedentes. (...)” (HC 17429. Min. Gilson Dipp. Quinta Turma. DJ de 16/09/2002). 63. Serrano Maíllo, Alfonso. Introdução à criminologia. Trad. Regis Prado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, p. 107. 414
Capítulo XXVI | Aplicação da pena
nascimento. No mesmo sentido, o STF firmou jurisprudência no sentido de que, em nosso processo penal, a prova da menoridade é feita mediante certidão do termo no Registro Civil de Pessoas Naturais.64 Com relação ao maior de 70 anos, o Código também adota uma solução político-criminal voltada para fatores biológicos, quais sejam, os efeitos da senescência do organismo humano, frente ao qual a pena criminal pode se revelar empiricamente mais gravosa do que para aquele que ainda não chegou a tal idade. Tal como verificado com a menoridade, objetiva-se, com a atenuante da senilidade, atender ao postulado constitucional da isonomia material (art. 5o, caput, da CF/1988), qual seja, tratar desigualmente os desiguais, na medida das suas desigualdades. Nesse sentido, assinala Aníbal Bruno que, com o envelhecimento, enfraquece-se não só a memória, como também a vontade consciente. Ao lado disso, toma-se o velho de um sentimento de inferioridade e insegurança, donde resultam a desconfiança e o temor, com manifestações egocêntricas e emocionais desconformes com a realidade dos acontecimentos, que podem chegar até a zona dos fatos puníveis.65 Releva salientar, contudo, que o marco fixado para esta atenuante é a data da publicação da sentença. Considera-se publicada a sentença, não quando o juiz a elabora ou assina, mas no momento da sua entrega no cartório, em mãos do escrivão (art. 389, do CPP), se ela não for proferida em audiência (arts. 403, 493 ou 534, do CPP). Ressalva deve ser feita ao caso da sentença ser publicada no dia em que o réu completa 70 anos. Ou seja, discute-se se a expressão maior de 70 anos pressupõe setenta anos e um dia ou basta o início do dia em que se completa essa idade. Conquanto a interpretação literal induza à primeira hipótese, parece mais adequada às finalidades teleológicas do Direito Penal fazer-se opção pela segunda. Portanto, nos primeiros instantes da data do aniversário, o réu idoso será considerado maior de setenta anos. Sobre o assunto, discute-se, ainda, se teria ocorrido o rebaixamento desta faixa etária, por conta da vigência da Lei no 10.741/2003 (Estatuto do Idoso), que define como idosa a pessoa com idade igual ou superior a 60 anos (art. 1o). Esta lei alterou, inclusive, a agravante do art. 61, II, “h”, do CP, tendo substituído velho por maior de 60 (sessenta) anos. Por conta de tais inovações legais, discute-se se, de fato, houve a derrogação tanto da faixa etária para a atenuante, como para a contagem pela metade dos prazos prescricionais (art. 115, do CP), passando a ser não mais 70, mas, sim, 60 anos de idade. Apesar de tais argumentos, tem-se não se tratar da melhor interpretação da matéria. Isso porque, o Estatuto do Idoso foi taxativo ao alterar pontualmente a legislação penal, excluindo, do seu raio de incidência, os mencionados arts. 65, I, e 115, do CP, razão pela qual tem inteira pertinência a regra do art. 12, do CP. Nesse sentido, é o posicionamento do STF e do STJ.66 64. RE 73180. STF. Min. Antonio Neder. Segunda Turma. In RTJ 68/109. 65. Bruno, Aníbal. Op. cit., p. 135. 66. No STF: “A circunstância do critério cronológico adotado pelo Estatuto do Idoso ser de 60 (sessenta) anos de idade não alterou a regra excepcional da redução dos prazos de prescrição da pretensão punitiva quando se tratar de pessoa maior de 70 415
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Ademais, não se pode olvidar que a senilidade é um estado ontológico de declínio físico ou mental, independentemente de quaisquer critérios legais ou cronológicos. Por conta disso, diante da previsão da atenuante inominada (art. 66, do CP), pode o julgador considerar que o acusado, ainda que com menos de 70 anos, é portador de inequívoca e adiantada decrepitude, atenuando-lhe a punição, de forma e adequada ao caso concreto. Outro debate que o tema suscita diz respeito à natureza da sentença referida no art. 65, I, do CP. Parte da doutrina considera que se o réu completar aquela idade quando da publicação do acórdão confirmatório da condenação de primeiro grau, ser-lhe-ia aplicável a atenuante, porque a expressão sentença abrangeria todas as decisões jurisdicionais havidas no curso do processo. Em que pese esse posicionamento, tem-se que o correto é considerar que a atenuante vale tão somente para a primeira decisão condenatória que venha a ser exarada quando se completar 70 anos de idade. Em regra, portanto, sentença é a decisão condenatória do juiz a quo. No entanto, caso se absolva o réu e o tribunal dê provimento ao recurso da acusação, o julgamento ad quem publicado após o lapso de 70 anos, passará a ser considerado sentença, nos termos do art. 65, I, do CP, pois foi a primeira decisão de mérito condenatória tomada nos autos. E isso vale tanto para a incidência dessa atenuante como para a contagem do prazo prescricional pela metade.67 26.4.3.2. Demais circunstâncias atenuantes do art. 65
Além da particular posição biológica do agente, o art. 65, do CP, contempla outras atenuantes que incidem na generalidade dos crimes. Cuidam-se de situações de diversos matizes, mas que influem, obrigatoriamente, na mensuração da pena, reduzindo a reprovabilidade do fato perpetrado. A) Desconhecimento da lei
Segundo o art. 21, 1a parte, do CP, o desconhecimento da lei é inescusável. No entanto, o art. 65, II, dispõe que a ignorância ou a errada compreensão da lei constitui circunstância atenuante. Cuida-se de inovação feita pelo Código de 1940 (art. 48, III), (setenta) de idade na data da sentença condenatória. (...)” (HC 88083. STF. Min. Ellen Gracie. Segunda Turma, DJ de 27/06/2008). No mesmo sentido: HC 89969. Min. Marco Aurélio. Primeira Turma. DJ de 05/10/2007; e HC 86320. Min. Ricardo Lewandowski. Primeira Turma. DJ de 24/1120/06. No STJ: “O entendimento firmado pelo Superior Tribunal de Justiça é no sentido de que o art. 1o, da Lei no 10.741/2003, não alterou o art. 115, do CP, que prevê a redução do prazo prescricional para o agente com mais de 70 anos na data da prolação da sentença condenatória. Precedentes do STF e STJ. (...)” (HC 95029. STJ. Min. Arnaldo Lima. Quinta Turma. DJ de 19/12/2008). No mesmo sentido: RHC 16856. STJ. Min. Gilson Dipp. Quinta Turma. DJ de 20/06/2005; HC 37752. STJ. Min. Felix Fischer. Quinta Turma. DJ de 21/02/2005. 67. Cf.: “Afere-se a idade do condenado, para definir-se a prescrição, na data da apreciação do mérito da ação penal. Ainda sob essa óptica, estando pendentes embargos declaratórios quando o implemento da idade, dá-se a incidência do preceito. Entendimento diverso do relator, que leva em conta a faixa etária, para tal efeito, desde que completado o número de anos exigido em lei até o trânsito em julgado do decreto condenatório, nos termos do precedente do Plenário – Extradição n. 591-0, por mim relatada, cujo acórdão foi publicado no DJ de 22 de setembro de 1995.” (HC 89969. Min. Marco Aurélio. Primeira Turma. DJ de 05/10/2007). No mesmo sentido: “Não cabe aplicar o benefício do art. 115, do Código Penal, quando o agente conta com mais de 70 (setenta) anos na data do acórdão que se limita a confirmar a sentença condenatória. (...)” (HC 86320. STF. Min. Ricardo Lewandowski. Primeira Turma. DJ de 24/11/2006). 416
Capítulo XXVI | Aplicação da pena
uma vez que o diploma anterior aludia apenas à falta do pleno conhecimento do mal (art. 42, § 1o, CP/1890). Dessa maneira, embora irrelevante para fins de exclusão da culpabilidade, o desconhecimento da lei, quando devidamente comprovado, interfere na gradação da pena, atenuando a reprovabilidade do agente. Conforme exposto no Capítulo XVIII, dificilmente a alegação de desconhecimento da lei será verídica. Não obstante, residualmente, é possível alguém afirmar que desconhecia determinada lei penal, nova ou antiga, particularmente aquela muito específica ou de pouca utilização na vida cotidiana. Desse modo, sem transigir com o dogma do ignorantia legis neminem excusat, o Código permite que o magistrado sentenciante possa levar tal argumento em consideração por ocasião da aplicação da pena. Em sentido inverso, disposições legais de amplo conhecimento popular ou cujo conteúdo pode ser atingido sem maiores dificuldades, não podem fundamentar uma simples alegação de desconhecimento, sequer para a atuação da pena, até porque cuidar-se-ia de uma inversão do ônus da prova no processo penal. Sob outra vertente, não há que confundir o desconhecimento da lei – que, por segurança do ordenamento jurídico, não pode ser validamente alegado, nos termos do art. 3o, da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro – com a falta de potencial conhecimento da ilicitude. Esta última, se inevitável, exclui a culpabilidade e, se evitável, funciona como causa geral de diminuição de pena (art. 21, 2a parte, do CP). B) Ter o agente cometido o crime por motivo de relevante valor moral ou social
No item 26.3.5, supra, tratou-se, detidamente, sobre a motivação como a força propulsora do delito a ser valorada pelo magistrado sentenciante. Com base nesses ensinamentos, tem-se que a atenuante inscrita no art. 65, III, “a”, do CP, diz respeito a um motivo nobre (honoris causa) que diminui a reprovabilidade do fato. A situação aqui está nas antípodas das agravantes do motivo fútil e torpe. Cuidou-se de inovação do Código de 1940 (art. 48, IV, “a”), visto que os diplomas anteriores não cogitavam dessa atenuante. Na verdade – como visto ao longo desse Capítulo – o CP/1940 dispensou grande relevo às razões do crime68 como diretriz central de aplicação da pena, sistemática mantida no diploma atual. No caso vertente, não basta existir um valor moral ou social. É preciso que essa motivação seja tida como relevante, ou seja, importante para a generalidade das pessoas, tais como patriotismo, lealdade, fidelidade, inviolabilidade de intimidade ou do domicílio etc.69 Não se trata, portanto, de mera conveniência individual ou um valor de duvidosa relevância. Caberá, portanto, ao juiz, aquilatar a dimensão dos motivos imprimidos à ação delituosa. Motivo de relevante valor social é o que atende aos interesses vitais da coletividade, como, por exemplo, a tutela do patrimônio público, dos serviços essenciais da justiça 68. E. M. do CP/1940, item 25. 69. Nucci, Guilherme de Souza. Op. cit., p. 247. 417
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ou a busca da paz numa localidade assolada pela criminalidade. Motivo de relevante valor moral, por sua vez, envolve convicções pessoais, mas de reconhecimento coletivo, tais como o sentimento religioso, o amor ao próximo, a piedade com os animais etc. A seu turno, se o agente comete homicídio ou lesões corporais impelido por motivo de relevante valor social ou moral haverá a incidência das formas privilegiadas contidas nos arts. 121, § 1o, e 129, § 4o, do CP. É o que ocorre, por exemplo, com a eutanásia. Em tais hipóteses, o reconhecimento do privilégio absorve a presente atenuante. C) Ter o agente procurado, por sua espontânea vontade e com eficiência, logo após o crime, evitar-lhe ou minorar-lhe as consequências, ou ter, antes do julgamento, reparado o dano
O arrependimento do agente, como circunstância atenuante, foi outra inovação do CP/1940. No caso, cumpre diferenciar a hipótese gizada no art. 65, III, “b”, do CP, que pressupõe delito já consumado, dos institutos da desistência voluntária ou do arrependimento eficaz, passíveis de incidência enquanto o delito não se aperfeiçoa (art. 15, do CP), bem como do arrependimento posterior, causa de diminuição de pena pertinente aos delitos cometidos sem violência ou grave ameaça à pessoa (art. 16, do CP).70 De toda sorte, todos eles – arrependimento do agente, arrependimento posterior, arrependimento eficaz e desistência voluntária – integram a conhecida “ponte de ouro” preconizada por von Liszt, ou seja, o conjunto de providências político-criminais favoráveis ao infrator que, voluntariamente, tenha se abstido, retrocedido, desfeito, minorado ou reparado o mal causado pelo delito.71 Segundo lecionado por Roberto Lyra, não se ignora que, em geral, as circunstâncias atenuantes são anteriores ao momento consumativo ou à cessação da permanência, mas a exceção, filiada à circunstância judicial que manda o juiz atender às consequências do crime, tem fundo político, quando procura interessar o criminoso na restauração do status quo ante. Por outro lado, considera-se a reação do senso moral, mesmo tardia, reveladora de atitudes positivas e eficazes de exação jurídica.72 Há, portanto, duas vertentes para a atenuante: uma objetiva, qual seja, a eficiente reparação ou minoração da lesão ou ameaça ao bem jurídico; e outra, subjetiva, consistente na espontaneidade da mudança de atitude do infrator, posto que subsequente à concretização do fato delituoso. Ainda com relação ao arrependimento do agente, cumpre registrar que o mesmo 70. A propósito, o STF decidiu que quando a restituição do bem à vítima ocorrer após o recebimento da denúncia ou queixa, não se aplica a causa de diminuição do arrependimento posterior mas, sim, a atenuante do arrependimento do agente (HC 99803. STF. Min. Ellen Gracie. Segunda Turma. DJ de 06/08/2010). 71. Cf.: “No momento em que o agente transpõe a linha divisória entre os atos preparatórios impunes e o começo de execução punível, incorre na pena cominada contra a tentativa. Semelhante fato não pode mais ser alterado, suprimido ou ‘anulado retroativamente’. Pode, porém, a lei, por considerações de política criminal, construir uma ponte de ouro para a retirada do agente que já se tornará passível de pena.” (Liszt, Franz von. Tratado de Direito Penal Alemão. Tomo I. Trad. José Hygino Duarte Pereira. Rio de Janeiro: F. Briguiet, 1899, p. 342) (grifou-se). 72. Lyra, Roberto. Op. cit., p. 388. 418
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tem cabimento em crimes doloso ou culposo, de dano ou de perigo, instantâneo ou permanente, consumado ou tentado. Há, contudo, a exigência temporal do logo após, pressupondo, pois, uma relação de imediatidade entre a consumação, total ou parcial, e a iniciativa de se evitar ou atenuar as consequências do mal causado. O dispositivo alude, ainda, à reparação do dano antes do julgamento, isto é, antes da sentença condenatória havida no processo, até porque, como exposto no Cap. XXXII, um dos efeitos da condenação é, justamente, tornar certa a obrigação de indenizar o dano causado pelo crime (art. 91, I, do CP). A reparação ora assinalada há de ser completa e comprovada de maneira inequívoca. A eventual impossibilidade financeira de se reparar o dano, a renúncia da vítima ou a novação da dívida não suprem, no caso, essa exigibilidade, diferentemente do verificado na reabilitação penal (art. 94, III, do CP). Caso se trate de estelionato mediante cheque sem fundos (art. 171, VI, do CP), o seu pagamento antes do recebimento da denúncia, acarreta a extinção da punibilidade, a teor da Súmula 554, do STF, súmula esta que foi considerada compatível com o art. 16, do CP, introduzido pela Reforma Penal de 1984.73 Por sua vez, o pagamento do cheque após o recebimento da denúncia, mas antes da sentença condenatória, permite a incidência da presente atenuante. Por fim, cuidando-se de infração de menor potencial ofensivo, a composição dos danos civis entre autor e lesado, homologada judicialmente, acarreta a renúncia ao direito de queixa ou representação, quando se tratar de crime de ação penal privada ou ação pública condicionada à representação (art. 74, parágrafo único, da Lei no 9.099/1995). D) Ter o agente cometido o crime sob coação resistível, ou em cumprimento de ordem de autoridade superior, ou sob a influência de violenta emoção, provocada por ato injusto da vítima
O art. 65, III, “c”, do CP, trata de situações onde a culpabilidade do agente, embora não excluída, deve merecer um abrandamento. A primeira delas é o verso de agravante no concurso de pessoas, ou seja, da relação entre coator e coato, cuidando-se, in casu, de coação a que podia resistir. Como já assinalado, para o coator há a incidência da mencionada agravante (art. 62, II, do CP). Para o coato, se irresistível, haverá a exclusão da conduta (coação física) ou da culpabilidade (coação moral); se resistível, tanto a física como a moral, diminui-se a sua reprovabilidade. A grande questão aqui gira em torno da aferição do nível de resistibilidade da coação, que somente pode ser verificado no caso concreto. A segunda parte do dispositivo veicula outra hipótese antagônica da agravante da determinação para que alguém sob sua autoridade pratique o crime (art. 62, III, do CP). A propósito, ao estudar as hipóteses exculpantes, pode-se observar que o cumprimento de ordem não manifestamente ilegal de superior hierárquico acarreta a inexigibilidade de conduta diversa (art. 22, 2a. parte, do CP). No entanto, se a ordem for ilegal o agente deve 73. RHC 64272. STF. Min. Rafael Mayer. Primeira Turma. DJ de 14/11/1986. 419
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se abster de realizá-la; se o faz, associa-se criminosamente àquele que a determinou, mas a lei penal abranda a sua reprovabilidade em razão da influência da hierarquia e disciplina no serviço público. A parte final do art. 65, III, “c”, do CP, diz respeito aos chamados delitos passionais, isto é, aos atos praticados em razão de forte descarga emocional em reação a injusta provocação da vítima.74 O arrebato das emoções, em geral violentas, não altera a normalidade de entender e de querer, que é a substância da imputabilidade (art. 28, I, do CP), mas permite a diminuição da reprovabilidade. A influência diferencia-se do domínio apenas por sua menor intensidade. Nesse sentido, o homicídio ou a lesão corporal praticados sob o domínio de violenta emoção acarretam as formas privilegiadas dos arts. 121, § 1o, e 129, § 4o, do CP. Atente-se, ainda, que a atenuante sob consideração não alude a um vínculo de proximidade temporal – não se exige o logo após –, mas este parece inerente à relação de causa e efeito exigida entre o ato injusto da vítima e a reação explosiva do agente. Eventual solução de continuidade entre um e outro poderá empiricamente descaracterizar a presente atenuante. A seu turno, ato injusto da vítima embora possa não ser, necessariamente, ato criminoso, é uma atitude não amparada pelo Direito, o que corrobora o tratamento menos severo ao infrator.75 Por fim, não há que confundir a injusta provocação da vítima com a injusta agressão, pois, no último caso, poderá acarretar a excludente de antijuridicidade da legítima defesa, desde que presentes os demais requisitos do art. 25, do CP. E) Ter o agente confessado espontaneamente, perante a autoridade, a autoria do crime
Confessar é declarar ou reconhecer, perante a autoridade, ter sido autor, coautor ou partícipe de uma infração penal. A atenuante da confissão espontânea (art. 65, III, “d”, do CP) – introduzida, em nosso ordenamento, pelo Código de 1940 – guarda certa semelhança com a atenuante do arrependimento do agente, acima analisada, uma vez que ambas denotam positiva mudança de atitude do infrator.76 Ela, contudo, se reveste de certas particularidades, visto tratar-se de meio de prova e estratégia de defesa, a ser objetivamente valorada por ocasião da sentença condenatória, consoante a nossa legislação processual (arts. 6o, V, 185, 190, 197 a 200, do CPP). Há, portanto, a interseção de aportes penais e processuais penais, que se reflete em uma jurisprudência quase inabarcável sobre sua admissão e seus contornos jurídicos. 74. Consoante exposto no Cap. XVII, a emoção distingue-se da paixão tão somente no que diz respeito ao lapso de duração. A emoção é aguda e passageira, ao passo que a paixão é a emoção crônica, ou seja, aquela que se prolonga no tempo. De toda sorte, são equivalentes para fins de atenuação da pena. 75. Cf.: “Nessa atenuante, mais do que à perturbação do ânimo, tende a lei à injustiça do motivo que a gerou, exigindo que a emoção resulte de ato injusto da vítima. (...) A injustiça do ato pode residir mais na maneira como foi praticado do que na sua essencial antijuridicidade.” (Bruno, Aníbal. Op. cit., p. 142). 76. Cf.: “Há de ser reconhecida a circunstância atenuante de confissão espontânea do paciente que, durante a instrução criminal, mostrou-se arrependido e consciente do fato a ele imputado, tudo corroborando com as demais provas dos autos. (...)” (HC 90659. STF. Min. Menezes Direito. Primeira Turma. DJ de 28/03/2008). 42 0
Capítulo XXVI | Aplicação da pena
Adiante-se que não mais se exige, como na redação originária do Código, que a confissão envolva a autoria ignorada ou imputada a outrem (art. 48, IV, “d”, do CP/1940). Ainda que inequívoca – como, por exemplo, no caso de prisão em flagrante –, fará jus à atenuante aquele que admitir ter executado a ação delituosa.77 Dito isto, cumpre registrar que o art. 65, III, “d”, do Código Penal exige, para o reconhecimento da atenuante da confissão, a presença de três requisitos, quais sejam: (1) espontaneidade; (2) formulação perante a autoridade; e (3) que tenha por objeto a autoria do crime. Com relação ao primeiro requisito, espontânea significa a admissão decorrente de ato voluntário do agente, isto é, que a confissão não lhe tenha sido imposta por uma causa externa. Naturalmente, espontaneidade não é o mesmo que originalidade, no sentido que a iniciativa deva surgir do próprio agente. Em muitos casos, a sugestão para que o agente confesse pode vir de um familiar, um amigo, do seu advogado ou pela própria autoridade (art. 187, § 2o, I, do CPP). Enfim, é espontânea a confissão que não decorre de qualquer coação física ou psicológica.78 O segundo requisito prevê que para funcionar como atenuante, a confissão deve ser feita perante autoridade policial ou judicial, via de regra no momento do interrogatório (art. 6o, V, e art. 185, do CPP). Deve-se, também, incluir naquele rol, o membro do Ministério Público, notadamente diante das suas atribuições investigatórias criminais (art. 129, VIII, da CF/1988; art. 8o, da Lei Complementar no 75/1993; e art. 26, da Lei no 8.625/1993).79 Portanto, a confissão pode ocorrer extrajudicialmente, mas, para valer como prova, precisará ser ratificada judicialmente (art. 199, do CPP). Discute-se se a eventual retratação em juízo da confissão feita em sede policial, descaracterizaria a presente atenuante. Acerca do assunto, a doutrina pende pela inaplicabilidade da atenuante em razão de não ser possível favorecer aquele que não mais denota arrependimento ou gesto de contrição moral. Todavia, como visto, os tribunais a 77. Cf.: “Sob a égide da disciplina anterior a Reforma da Parte Geral do Código, ocorrida mediante a edição da Lei n o 7.209/1984, a prisão em flagrante era de molde a excluir a configuração da circunstância atenuante revelada pela confissão espontânea, que estava jungida as hipóteses em que a autoria do crime era ignorada ou imputada a outra (alínea “d”, do art. 48). Com o abandono da irreal forma inicialmente adotada, pouco importa que o acusado tenha sido preso em flagrante. A simples postura de reconhecimento da prática do delito e, portanto, da responsabilidade, atrai a observância, por sinal obrigatória, da regra insculpida na alínea “d”, do inciso III, do art. 65, do Código Penal (...).” (HC 69479. STF. Min. Marco Aurélio. Segunda Turma. DJ de 18/12/1992). 78. A tortura como forma de se obter a confissão – marca deplorável das nossas práticas penais – anula, obviamente, a referida espontaneidade, mas, por outro lado, nulifica todo o procedimento, por ser prova obtida criminosamente (art. 5 o, LVI, da CF/1988), devendo ser desentranhada dos autos não somente a “confissão sob tortura”, bem como as demais provas dela derivadas (art. 157 e § 1o, do CPP, com a redação da Lei no 11.690/2008). Aquele que tortura o “suspeito” pratica, na verdade, delito com status de hediondo (art. 5 o, XLIII, da CF/1988) e tipificado no art. 1o, I, “a”, da Lei no 9.455/1997. 79. A propósito, dispõe o art. 9 o, parágrafo único, da Resolução no 77/2004, do Conselho Superior do Ministério Público Federal: “Sempre que possível, o autor do fato investigado será convidado a apresentar as informações que considerar adequadas, oportunidade em que poderá requerer diligências, cabendo ao órgão do Ministério Público Federal apreciar, em despacho fundamentado, a conveniência e oportunidade da sua realização.” Semelhantemente, o art. 7o, da Resolução no 13/2006, do Conselho Nacional do Ministério Público: “O autor do fato investigado será notificado a apresentar, querendo, as informações que considerar adequadas, facultado o acompanhamento por advogado.” 421
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consideram sob o exclusivo viés objetivo. Dessa maneira, a jurisprudência é no sentido de que se a confissão policial, posteriormente retratada, tiver sido utilizada, pelo magistrado, para formar seu convencimento sobre a procedência da pretensão punitiva, o réu fará jus à incidência dessa circunstância atenuante.80 Por óbvio, a confissão retratada e não utilizada pelo julgador torna inaplicável a incidência da atenuante.81 A propósito, por conta dessa mesma natureza objetiva, a jurisprudência, em sua maioria, é no sentido de que a atenuante da confissão espontânea não prepondera nem se compensa com a agravante da reincidência, considerando que, como visto a seguir, todas as circunstâncias preponderantes do art. 67, do CP, têm caráter subjetivo.82 Por fim, o terceiro requisito alude ao objeto da confissão: deve envolver a autoria delitiva. Pode-se incluir, nesta moldura legal, a coautoria e a participação em sentido estrito. Não se desconhece, por óbvio, que a confissão, além de retratável, é divisível (art. 200, do CPP). Portanto, é possível que o réu confesse, no todo ou em parte.83 Posto que parcial, a confissão deverá necessariamente abranger a comissão do delito que lhe é imputado.84 Não há que falar de atenuação, v.g., num caso de tráfico de drogas 80. No STF: “A confissão extrajudicial retratada em Juízo constitui circunstância atenuante (alínea “d”, do inciso III, do art. 65, do CP), quando embasar a sentença penal condenatória, o que se deu no caso concreto.” (HC 91654. STF. Min. Carlos Britto. Primeira Turma. DJ de 07/11/2008). No STJ: “A confissão realizada em sede policial, mesmo que posteriormente retratada em juízo, é suficiente para fazer incidir a atenuante do art. 65, III, ‘d’, do CP, quando expressamente utilizada para a formação do convencimento do julgador.” (REsp 1038900. STJ. Min. Jorge Mussi. Quinta Turma, DJ de 13/12/2010). No mesmo sentido: HC 155103. STJ. Min. Og Fernandes. Sexta Turma. DJ de 29/11/2010. 81. Cf. HC 74165. STF. Min. Maurício Corrêa. Segunda Turma. DJ de 17/09/1996. No mesmo sentido: “Inviável o reconhecimento do benefício da confissão espontânea, mormente diante da negativa de autoria sustentada em juízo e de que a confissão feita em entrevista preliminar não colaborou para a elucidação do caso.” (HC 128420. STJ. Min. Napoleão Maia. Quinta Turma. DJ de 13/12/2010). 82. No STF: “Corretas as razões do parecer da Procuradoria-Geral da República ao concluir que o art. 67, do CP, é claro ‘ao dispor sobre a preponderância da reincidência sobre outras circunstâncias, dentre as quais enquadram-se a confissão espontânea. Afinal, a confissão não está associada aos motivos determinantes do crime, e – por diferir em muito do arrependimento – também não está relacionada à personalidade do agente, tratando-se apenas de postura adotada pelo réu de acordo com a conveniência e estratégia para a sua defesa’. Não há ilegalidade quando a circunstância agravante da reincidência prevalece sobre a atenuante da confissão espontânea na aplicação da pena. Nestes termos, HC 71094, Rel. Min. Francisco Rezek, Segunda Turma. DJ de 04/08/1995.” (HC 99446. STF. Min. Ellen Gracie. Segunda Turma. DJ de 18/08/2009). No mesmo sentido: RHC 102957. STF. Min. Cármen Lúcia. Primeira Turma. DJ de 14/05/2010; e HC 102486. STF. Min. Cármen Lúcia. Primeira Turma. DJ de 21/05/2010. No mesmo sentido, a Quinta Turma do STJ: “É inviável a tese de compensação entre a atenuante da confissão espontânea e a agravante da reincidência, tendo em vista o entendimento de que a circunstância agravante da reincidência, como preponderante, deve prevalecer sobre a atenuante da confissão espontânea, nos termos do art. 67, do CP. Precedentes desta Corte e do Supremo Tribunal Federal.” (HC 171775. STJ. Min. Laurita Vaz. Quinta Turma. DJ de 16/11/2010). No mesmo sentido: REsp 1186374. STJ. Min. Gilson Dipp. Quinta Turma. DJ de 22/11/2010; HC 167379. STJ. Min. Jorge Mussi. Quinta Turma. DJ de 01/02/2011; HC 147073. STJ. Min. Gilson Dipp. Quinta Turma. DJ de 03/11/2010. Em sentido inverso, a Sexta Turma do STJ: “A Sexta Turma desta Corte tem entendido que a atenuante da confissão espontânea, por envolver a personalidade do agente, também é preponderante, devendo ser compensada com a agravante da reincidência.” (HC 115986. STJ. Min. Maria Thereza Moura. Sexta Turma. DJ de 24/05/2010). No mesmo sentido: AgRg no HC 122752. STJ. Min. Celso Limongi. Sexta Turma. Publ. DJ de 16/11/2010. 83. Cf.: “Para o reconhecimento da atenuante da confissão espontânea, não é necessário que esta seja completa, bastando que tenha contribuído para a apuração da verdade real. Precedentes do STJ.” (HC 178283. STJ. Min. Napoleão Maia. Quinta Turma. DJ de 22/11/2010). 84. Cf.: “É inviável a incidência da atenuante da confissão espontânea, nos termos do art. 65, inc. I, al. “d”, do CP, se o agente não reconheceu a prática do crime a ele imputado.” (HC 150408. STJ. Min. Felix Fischer. Quinta Turma. DJ de 12/04/2010). 422
Capítulo XXVI | Aplicação da pena
(art. 33, da Lei no 11.343/2006), quando o acusado admite ser o dono da mala apreendida pela Polícia Federal, mas alega desconhecer o conteúdo da substância entorpecente (cocaína) existente em seu interior.85 Ademais, deve a confissão versar sobre o delito que lhe é imputado e não de outro. Nesse mesmo exemplo, se o agente admitir ser o dono da cocaína, mas alegar que a transportava para consumo pessoal (art. 28, da Lei no 11.343/2006), não estará, efetivamente, confessando o delito que pesa contra ele (tráfico de drogas).86 Sobre o tema, outra discussão que se coloca diz respeito à chamada confissão qualificada, ou seja, quando o réu reconhece ter praticado ou participado do fato típico, mas alega, em sua defesa, ausência de dolo, excludente de antijuridicidade ou exculpante. No caso, o melhor entendimento é no sentido de não haver a incidência da atenuante, visto que, rigorosamente, não houve confissão da perpetração da conduta típica, antijurídica e culpável.87 Por outra vertente, não cabe indagar o motivo da confissão, que pode ser até imoral.88 Para beneficiar o agente, exige-se tão somente o preenchimento dos requisitos acima assinalados, sendo certo que cumpre à autoridade perquirir sobre as circunstâncias do cometimento da ação criminosa, bem como se outras pessoas a ela concorreram (art. 190, do CPP, com a redação da Lei no 10.792/2003). Obviamente, cuida-se de circunstância pessoal, razão pela qual não há como estendê-la a eventuais coautores ou partícipes que não confessaram.89 Não valerá, igualmente, a confissão, se com ela o agente objetivar a perpetração dos delitos capitulados nos arts. 340 e 341, do CP. Outrossim, se além de confessar, o réu colaborar eficazmente com a investigação policial ou com o processo penal, identificando os demais concorrentes, permitindo a localização da vítima, com a sua integridade física preservada, ou a recuperação total ou parcial do produto do crime, poderá se beneficiar, conforme o caso, do perdão judicial ou da causa de diminuição de pena dos arts. 13 e 14, da Lei no 9.807/1999.
85. Cf.: “Não se caracteriza confissão espontânea, como atenuante da pena (art. 65, III, ‘d’, do CP), só porque o agente afirma ignorar o conteúdo das malas que carrega, com a droga.” (HC 72730. Min. Sydney Sanches. Primeira Turma. DJ de 08/03/1996). No mesmo sentido: HC 74414. STF. Min. Ilmar Galvão. Primeira Turma. DJ de 19/12/1996. 86. Cf.: “1. Hipótese em que o réu, denunciado pela prática do delito de tráfico de drogas, confessou que o porte da droga era para uso próprio. 2. Não há a incidência da circunstância atenuante da confissão espontânea quando o acusado por tráfico confessa ser usuário. (Precedentes). 3. A configuração da confissão espontânea exige que o denunciado confesse o fato pelo qual está sendo processado.” (REsp 1133917. STJ. Min. Gilson Dipp. Quinta Turma. DJ de 01/02/2011). 87. Cf.: “Não se justifica a aplicação da atenuante da confissão espontânea quando a acusada nega o dolo na conduta, haja vista que este benefício objetiva, precipuamente, beneficiar o réu que espontaneamente, confessa a prática delituosa, o que, no caso, não ocorreu.” (REsp 1111026. STJ. Min. Jorge Mussi. Quinta Turma. DJ de 13/09/2010). No mesmo sentido: Nucci, Guilherme de Souza. Op. cit., p. 255. Em sentido inverso: “A invocação de excludente de ilicitude não obsta a incidência da atenuante da confissão espontânea.” (HC 142853. STJ. Min. Maria Thereza Moura. Sexta Turma. DJ de 16/11/2010). 88. Cf.: “O art. 65, III, alínea ‘d’, do CP, não ressalva para a configuração da atenuante que a confissão seja completa, explicitando todas as circunstâncias do crime ou que seja movida por um motivo moral, que demonstre arrependimento do acusado ou, ainda, que influa decisivamente para a condenação.” (HC 110816. STJ. Min. Laurita Vaz. Quinta Turma. DJ 06/12/2010) (grifou-se). 89. REsp 905821. STJ. Min. Maria Thereza Moura. Sexta Turma. DJ de 17/12/2010. 423
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F) Ter o agente cometido o crime sob a influência de multidão em tumulto, se não o provocou
Cuida-se de uma situação particular, pioneiramente prevista no art. 48, IV, “e”, do CP/1940, sob a influência dos estudos dos positivistas e, em particular, do Projeto Ferri de 1921.90 Conforme já apresentado no contexto dos delitos multitudinários (Cap. XX), o agito das multidões perturba e enfraquece o senso crítico e moral do indivíduo que, não raro, se deixa levar na corrente das paixões que domina a massa em movimento. Segundo Aníbal Bruno, a exaltação sugestiva da multidão pode fazer com que até indivíduos da “mais fraca criminosidade” caiam na delinquência.91 Há, assim, uma menor reprovabilidade da ação desenvolvida sob influência de um frenesi coletivo. O art. 65, III, “e”, do CP/1984 alterou, em parte, a redação originária da atenuante, tornando desnecessário o pressuposto da reunião lícita, bem como da não reincidência do agente. Agiu bem o legislador, primeiro porque o direito a reunião, em local público ou privado, é uma garantia fundamental do cidadão (art. 5o, XVI, CF/1988), que somente pode sofrer restrições excepcionais tais como a decretação de estado de defesa ou de sítio (arts. 136, I, “a”, e 137, I, da CF/1988). Por outro lado, tumulto é sinônimo de revolta, balbúrdia, desordem, sendo quase uma contraditio in terminis aludir-se a uma multidão em tumulto reunida licitamente. Com relação à não reincidência, fato é que ela pouco ou nenhuma influência acarreta à psique do sugestionado pelo agito da massa amotinada. De mais a mais, a reincidência é circunstância agravante e preponderante, inclusive no conflito com a atenuante sob consideração (art. 67, do CP), razão pela qual era mesmo desnecessária a sua expressa menção para fins de impedir a atenuante do delito multitudinário. Com relação à parte final do dispositivo, justifica-se a manutenção, na Reforma de 1984, da exigência de não ter sido o agente o provocador (méneur). Isso porque, o excitador dos demais não pode, por um princípio geral do Direito, alegar em seu benefício a sua própria torpeza. Nesse sentido, apesar de reconhecer que o furor da multidão também contagia os seus próprios condutores, observa Aníbal Bruno ser razoável atribuir a estes responsabilidade maior, privando-os, assim, do tratamento penal menos reprovável sob consideração.92 26.4.3.3. Atenuante inominada
A possibilidade de o magistrado reconhecer, nos termos do art. 66, do CP, uma atenuante relevante, anterior ou posterior ao crime, não tem parâmetro nos diplomas penais anteriores. A rigor, a previsão que mais se aproximaria seria a atenuante do art. 58, II, do CP/1969, ou seja, o lacônico: “meritório comportamento anterior”.
90. A propósito, Enrico Ferri afirmava que aquele que participa de multidão tumultuária pode perder a força inibitória da vontade e até o senso moral. (Lyra, Roberto. Op. cit., p. 401). 91. Bruno, Aníbal. Op. cit., p. 144. 92. Idem, p. 145. 424
Capítulo XXVI | Aplicação da pena
Apesar de ser compreensível o propósito do legislador de tornar mais preciso o processo de individualização da pena, abrandando-a diante de situação fática favorável ao réu e não prevista expressamente na lei, tem-se que se cuida de disposição de pouca praticidade, tendo em vista, justamente, o seu caráter genérico e facultativo. Em suma, cuida-se de hipótese que se sobrepõe – ou se confunde – com as circunstâncias judiciais do art. 59, caput, do CP, que são igualmente genéricas, anteriores ou posteriores ao crime, mas de valoração obrigatória pelo magistrado sentenciante por ocasião da fixação da pena-base, o que restringe, em muito, a sua utilização, na esfera judiciária, desse art. 66, do CP. Sendo assim, a serventia maior que se vislumbra para a atenuante inominada é no âmbito do Tribunal do Júri. Isso porque, pelas próprias características dos julgadores leigos – que não necessitam motivar suas decisões –, pode, eventualmente, ser reconhecido algum fato relevante no curso dos debates, obrigando o juiz presidente, ao proferir a sentença condenatória, a considerar a alegada atenuante (art. 492, I, “b”, do CPP, com a redação da Lei no 11.689/2008).93 Exemplo: “A”, apesar de ainda não ter completados 70 anos de idade, é portador de acelerada decrepitude física ou mental. Submetido a julgamento perante o Tribunal do Júri, “A” vem a ser condenado, mas obtém, dos jurados, o reconhecimento, a seu favor, da circunstância relevante da senilidade precoce.
Em que pese o ora afirmado, há autores que consideram que o dispositivo tem ampla pertinência teórica e prática, na medida em que a regra do referido art. 66 fez com que as hipóteses do art. 65, do CP, passassem a ser “meras exemplificações de circunstâncias atenuantes”.94 Ou seja, a Reforma Penal de 1984 manteve o rol das agravantes em numerus clausus, mas transformou o rol das atenuantes em numerus apertus. Nessa esteira, colhe-se da doutrina pátria os seguintes exemplos dessa atenuante: (1) situação de extrema penúria do autor de um crime contra o patrimônio; (2) a recuperação social do agente após o cometimento do crime; (3) hipótese de um réu que tenha sido violentado na infância e pratique, quando adulto, um crime sexual; (4) um delinquente que se converta à prática constante da caridade, depois de ter praticado o delito; (5) ser o réu portador de doença incurável; (6) influência religiosa; (7) ser portador de defeito físico relevante ou ter sofrido em face do crime um dano físico, fisiológico ou psíquico.95 93. Cf.: “I. Com a reforma introduzida pela Lei no 11.698/2008, não há mais necessidade de submeter aos jurados quesitos acerca da existência de circunstâncias agravantes ou atenuantes. II. Não obstante, embora tenha sido transferido o exame da presença das referidas circunstâncias ao Juiz Presidente do Tribunal do Júri, elas somente serão consideradas na dosimetria da pena desde que suscitadas nos debates orais, a teor do que prescreve o art. 492, inciso I, al. ‘b’, do CPP.” (REsp 1157292. STJ. Min. Felix Fischer. Quinta Turma. DJ de 04/10/2010). 94. Cf. Franco, Alberto Silva. Op. cit., p. 378. 95. Exemplos extraídos dos seguintes doutrinadores: Mirabete, Julio Fabbrini. Manual de Direito Penal. Parte Geral. Vol. I. 20. ed. São Paulo: Atlas, 2003, p. 309; Nucci, Guilherme de Souza. Op. cit., p. 258; e Jesus, Damásio Evangelista de. Código Penal Anotado. 18. ed. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 247. 425
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Ainda sobre o assunto, um tema doutrinário bastante veiculado diz respeito à chamada coculpabilidade social, que poderia fundamentar a incidência da atenuante inominada. Segundo este entendimento, a reprovabilidade não pode incidir exclusivamente sobre o autor do delito, mas, igualmente, sobre o Estado que não lhe assegurou as condições mínimas para o desenvolvimento de sua personalidade. Sendo assim, fatores sociais podem comprometer a autodeterminação do sujeito para com a norma penal, excluindo ou atenuando a sua culpabilidade.96 Nesse sentido, Nilo Batista assevera que a concreta experiência social do acusado, as oportunidades e a assistência que lhe foram ou não ministradas, devem ser levadas em conta por ocasião do juízo de reprovabilidade, razão pela qual à responsabilidade individual correlaciona-se a responsabilidade geral do Estado que vai lhe impor a pena.97 Uma última observação sobre a atenuante inominada. O art. 66, do CP, alude a circunstância relevante anterior ou posterior, olvidando-se da possibilidade de ela ser concomitante ao crime. No caso, a falha pode ser superada por intermédio de interpretação extensiva.
26.5. Concurso entre agravantes e atenuantes. Circunstâncias preponderantes
N
mesmo fato delituoso, concorrem circunstâncias agravantes e atenuantes. Considerando que o Código determina que, uma vez detectadas, elas devem ser obrigatoriamente valoradas, ocorre, em situações como tais, o concurso ou conflito entre agravantes e atenuantes. Diante disso, o art. 67, do CP, disciplina a matéria, por intermédio do critério axiológico da preponderância. A fixação da pena deverá pender para o lado da circunstância que for preponderante, aproximando-se do seu limite. Evidentemente, se não houver nenhuma circunstância preponderante, cabe ao magistrado a decisão fundamentada sobre a solução do conflito, podendo optar pela anulação recíproca entre elas. Nesse sentido, decidiu o STJ que a atenuante da confissão espontânea comporta a compensação com a agravante pelo crime ter sido cometido contra mulher grávida, diante da ausência, na hipótese, de circunstância preponderante, nos termos do art. 67, do CP.98 Retornando à análise das preponderantes, cumpre registrar que o rol do art. 67, do CP, contempla três modalidades, todas de cunho subjetivo ou pessoal, vale dizer, incomunicáveis aos codelinquentes.99 São elas: ão raro, no
96. Cf. Raúl Zaffaroni, Eugenio; Pierangeli, José Henrique. Manual de Direito Penal brasileiro. Parte Geral. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997, p. 613. 97. Cf. Batista, Nilo. Introdução crítica ao direito penal brasileiro. 8. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2002, p. 105. 98. HC 126486. STJ. Min. Laurita Vaz. Quinta Turma. DJ de 27/09/2010. Ressalte-se, no particular, que a Sexta Turma do STJ, diverge não somente da Quinta Turma, mas, também, da jurisprudência do próprio STF, entendendo que confissão espontânea é “circunstância preponderante”, por refletir aspecto da personalidade do agente. 99. Diferentemente, a Lei de Drogas adotou circunstância preponderante de cunho objetivo: a natureza e a quantidade da substância ou do produto, a serem sopesadas com a personalidade e conduta social do réu (art. 42, da Lei n o 11.343/2006). 426
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Motivos determinantes – já analisados –, consistem no móvel imprimido ao dolo ou culpa do agente, e estão discriminados nos arts. 61, II, “a”, e “b”, 62, IV, e 65, III, “a”, e “c”, do CP: motivo fútil ou torpe, para facilitar ou assegurar a execução, a ocultação, a impunidade ou vantagem de outro crime, mediante paga ou promessa de recompensa, por motivo de relevante valor social ou moral, sob coação resistível, em cumprimento de ordem ilegal de autoridade superior, ou sob influência de violenta emoção, provocada por ato injusto da vítima. As motivações que não se enquadrem em tais hipóteses, poderão constar, residualmente, como circunstâncias judiciais (art. 59, caput, do CP). A personalidade do agente – também já analisada como circunstância judicial –, compreende o conjunto das características pessoais, isto é, aquilo que é peculiar ao condenado. Nesse sentido, idade e gênero são dois dos caracteres fundamentais da personalidade humana. A propósito, a lei penal refere-se, inclusive, à circunstância atenuante da menoridade e senilidade penal (art. 65, I, do CP) e o estabelecimento de regime especial para as mulheres, com cumprimento de pena em local próprio, observando-se os deveres e direitos inerentes à sua condição pessoal (art. 37, do CP). Por fim, a reincidência – circunstância igualmente subjetiva –, está prevista nos arts. 61, I, 63 e 64, do CP. Consoante já explanado, a reincidência gera diversos efeitos na órbita penal e, no caso, figura como preponderante no conflito com as atenuantes, como, por exemplo, com a confissão espontânea (art. 65, III, “d”, do CP), conforme reconhecido, em regra, pelos tribunais superiores.100 E se, no caso concreto, houver conflito entre circunstâncias preponderantes, qual deve prevalecer? Enfim, qual é a preponderante entre preponderantes antagônicas? O Código não esclarece, mas parece eleger os motivos determinantes do crime, não somente porque eles estão mencionados em primeiro lugar, antes da personalidade e da reincidência, mas porque, pela sistemática da aplicação de pena, a motivação delitiva possui a maior carga de reprovabilidade penal (futilidade, torpeza, paga ou promessa de recompensa, relevante valor social ou moral, sob influência de violenta emoção provocada por ato injusto da vítima etc.). No entanto, é forçoso reconhecer que, em regra, não há consenso doutrinário ou jurisprudencial sobre o tema, razão pela qual cumprirá ao magistrado sentenciante a opção, sempre fundamentada, pela circunstância que, no seu entender, preponderará sobre as demais, podendo até mesmo optar por uma anular os efeitos da outra, mantendo-se, no cálculo da pena provisória, a mesma quantidade encontrada na pena-base. Era esta, inclusive, a recomendação do Código de 1969: “Se há equivalência entre umas e outras é como se não tivessem ocorrido” (art. 61, 2a parte, do CP/1969). A única certeza no âmbito dessa discussão é a prevalência, por força de reiteradas decisões dos nossos tribunais, da personalidade pelo fator idade, sobre as demais preponderantes. Nesse sentido, a jurisprudência do STF se firmou no sentido de que a atenuante da menoridade é preponderante sobre todas as circunstâncias, legais ou 100. Vide nota de rodapé no 82, supra. 427
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judiciais, desfavoráveis ao condenado, incluída a agravante de reincidência.101 Cuida-se de entendimento igualmente sufragado no STJ.102 Didaticamente, pode-se concluir que, no conflito entre agravantes e atenuantes, deve-se aferir se existe uma preponderante. Caso não exista, deve o magistrado, fundamentadamente, indicar qual delas fará com que seja elevada, diminuída ou mantida a pena-base inicialmente fixada. Caso exista uma preponderante, deve o cálculo da pena aproximar-se do seu limite, com o desprezo das não preponderantes. Se houver mais de uma preponderante (obviamente antagônicas), o julgador deve optar, de forma igualmente fundamentada, pela mais adequada ao caso, podendo, inclusive, decidir no sentido da anulação recíproca de seus efeitos, mantendo o quantum da pena-base. Por último, considerando a jurisprudência dominante, tem-se que a atenuante da personalidade, por ser o agente menor de 21 anos na data dos fatos ou maior de 70 na data da sentença, é a preponderante entre todas as circunstâncias legais.
26.6. Causas de aumento ou de diminuição de pena
A
aumento ou de diminuição de pena, também chamadas de majorantes ou minorantes, são fatores de elevação ou de redução, a serem também observados no cálculo da pena definitiva, em quantidade fixa (v.g., “o dobro”, “a metade” etc.) ou em patamar variável (v.g., “de um a dois terços” etc.). No Código, elas estão presentes tanto na Parte Geral (arts. 14, II, 16, 24, § 2o, 26, parágrafo único, 28, II, § 2o; 70, 71) como na Parte Especial (arts. 121, §§ 1o e 4o, 129, §§ 4o e 7o, 155, § 2o, 157, § 2o; 226, 234-A etc.). Podem, ainda, estar previstas na legislação especial, como ocorre, v.g., com o art. 9o, da Lei no 8.072/1990 (Lei dos Crimes Hediondos) ou com a colaboração premiada (art. 14, da Lei no 9.807/1999).103 Vê-se, assim, que diferentemente do que ocorre com as circunstâncias judiciais e com as agravantes e atenuantes, para as causas de aumento ou de diminuição o legislador prevê a respectiva quantidade de majoração ou minoração punitiva. Outra s causas de
101. HC 71323. STF. Min. Sepúlveda Pertence. Primeira Turma. DJ de 19/05/1995. 102. Cf.: “Na linha de precedentes desta Corte e do Pretório Excelso, a circunstância atenuante da menoridade deve prevalecer sobre todas as demais circunstâncias, a teor do art. 67 do Código Penal.” (HC 107884. STJ. Min. Felix Fischer. Quinta Turma. DJ de 02/02/2009). 103. Com relação à causa de aumento do art. 9 o, da Lei no 8.072/1990, questiona-se se a mesma ainda estaria em vigor, uma vez que o art. 224, do CP, que servia como supedâneo para a sua incidência foi expressamente revogado pela Lei n o 12.015/2009. Como o rol do primitivo art. 224 passou a capitular delito autônomo contra vulneráveis (art. 217-A e seu § 1o, do CP), a interpretação mais coerente é no sentido de que também o art. 9 o, da Lei no 8.072/1990 deixou de integrar o ordenamento jurídico brasileiro. Com relação à colaboração premiada, decidiu o STF: “A partir do momento em que o Direito admite a figura da delação premiada como causa de diminuição de pena e como forma de buscar a eficácia do processo criminal, reconhece que o delator assume uma postura sobremodo incomum: afastar-se do próprio instinto de conservação ou autoacobertamento, tanto individual quanto familiar, sujeito que fica a retaliações de toda ordem. Daí por que, ao negar ao delator o exame do grau da relevância de sua colaboração ou mesmo criar outros injustificados embaraços para lhe sonegar a sanção premial da causa de diminuição da pena, o Estado-juiz assume perante ele conduta desleal. Em contrapasso, portanto, do conteúdo do princípio que, no caput do art. 37, da Carta Magna, toma o explícito nome de moralidade.” (HC 99736. STF. Min. Ayres Britto. Primeira Turma. DJ de 21/05/2010). 428
Capítulo XXVI | Aplicação da pena
dessemelhança entre elas é que para as causas de aumento e diminuição a pena aplicada pode ultrapassar, respectivamente, o limite máximo e mínimo cominado para o delito, o que não se verifica com as circunstâncias acima indicadas. Nesse sentido, a Súmula 231 do STJ: “A incidência da circunstância atenuante não pode conduzir à redução da pena abaixo do mínimo legal”.
26.7. Tipos qualificados e tipos privilegiados
N
importa, ainda, fazer menção aos tipos qualificados e aos tipos privilegiados, também denominados de tipos derivados. Trata-se, na verdade, de meio-termo entre elementares e circunstâncias, pois, de um lado, a ausência de um elemento que qualifique ou privilegie o fato concreto não importa na sua atipicidade absoluta – mas, sim, relativa, porque ele irá se amoldar ao tipo básico –, e, de outro, a sua presença acarreta um novo patamar punitivo, isto é, uma cominação abstrata mínima e máxima de pena, diversa daquela cominada na forma básica do delito. Na Parte Especial do CP colhem-se muitos exemplos de tipos qualificados: arts. 121, o § 2 ; 129, §§ 1o, 2o e 3o; 140, §§ 2o e 3o; 155, § 4o; 157, § 3o etc. Por sua vez, os tipos privilegiados apresentam-se em menor quantidade, como, v.g., nos arts. 242, parágrafo único, 251, § 1o, e 289, § 2o, do CP. De certa forma, pode-se considerar a previsão de punição a título de culpa como modalidade típica privilegiada (v.g., arts. 121, § 3o; 129, § 6o; 251, § 2o etc.), porque estabelece patamar mínimo e máximo inferior àquele cominado no tipo básico doloso. Não há que confundir, porém, as verdadeiras formas qualificadas ou privilegiadas com previsões legais de aumento ou diminuição de pena que, às vezes, são impropriamente chamadas de “qualificadoras” ou “privilégios”, no jargão do foro ou em alguns acórdãos, como ocorre, v.g., com o denominado “homicídio privilegiado” ou ao “roubo qualificado”, que não são nem privilégio e nem qualificadora, mas causa de redução de pena no homicídio (art. 121, § 1o, do CP) e de elevação punitiva no delito de roubo (art. 157, § 2o, do CP). a dogmática penal
26.8. Aplicação da pena privativa de liberdade e método trifásico
A
judicial da pena privativa de liberdade pressupõe a observância da metodologia legal extraída da conjugação dos arts. 59 e 68, do CP. Na verdade, durante muito tempo se discutiu, na doutrina e jurisprudência, qual seria a melhor forma de se aplicar a pena, prevalecendo, em regra, duas correntes: a do método bifásico, defendido por Roberto Lyra, e a do método trifásico, preconizado por Nélson Hungria. aplicação ou individualização
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Curso de Direito Penal | Parte Geral
Para Roberto Lyra, as circunstâncias judiciais e as agravantes e atenuantes deveriam ser sopesadas num único momento, qual seja, da fixação da pena-base. Numa segunda fase, seriam levadas em consideração, caso existentes, as causas de aumento ou diminuição, chegando-se, assim, à pena definitiva. Dizia ele que as circunstâncias legais devem ser obrigatoriamente atendidas pelo juiz ao fixar a pena com os demais elementos do art. 42, do CP/1940 (atual art. 59, do CP), e essa pena, se não ocorre causa especial, será a definitiva.104 A metodologia das três fases, concebida por Nélson Hungria, e predominante, ao longo dos anos, na jurisprudência do STF, diferencia-se da anterior por separar as circunstâncias judiciais e legais em etapas distintas. Sendo assim, a aplicação da pena obedeceria às seguintes etapas: fixação da pena-base, por intermédio do exame das circunstâncias judiciais; em seguida, segue-se a fase da pena provisória, ocasião em que são ponderadas as circunstâncias agravantes e atenuantes, caso existentes; por fim, chega-se à terceira e última etapa, qual seja, da pena definitiva, onde são consideradas, se existentes, as causas de aumento ou diminuição da pena. A presente discussão foi superada pela Reforma Penal de 1984, que fez expressa opção pelo método trifásico, consoante a leitura do art. 68, do CP. Cuidou-se de escolha acertada do legislador, pois as três etapas para a aplicação da prisão proporcionam maior transparência à valoração dos elementos considerados na dosimetria da pena, sendo, portanto, mais condizente com o postulado da individualização da pena. Permite-se, assim, que as partes envolvidas no processo penal saibam exatamente o que levou o magistrado a fixar determinada carga punitiva em cada um dos momentos percorridos até a conclusão da sentença. Além de atender ao ideal da individualização da pena, o método defendido por Nélson Hungria se harmonizou com o princípio, igualmente constitucional, no sentido de que todas as decisões judiciais devem ser fundamentadas (art. 93, IX, da CF/1988). Ademais, razões de ordem prática – e de garantia da ampla defesa – corroboram a prevalência do método trifásico, visto que eventual recurso interposto poderá fazer com que a instância superior corrija, pontualmente, um equívoco em uma das etapas da dosimetria da pena, sem que, com isso, tenha de ser anulada toda a sentença condenatória.105 É certo, contudo, que existem outras etapas a serem observadas, por ocasião da aplicação da pena de reclusão ou detenção, sob pena de nulidade da sentença condenatória. Com efeito, além das etapas do cálculo da pena, deve-se, ainda, ser explicitado pelo magistrado sentenciante: (1) a fixação do regime inicial de cumprimento de pena (art. 59, III, c/c art. 33, do CP); (2) o exame da possibilidade de substituição da pena privativa de liberdade por outra espécie de pena (art. 59, IV, c/c arts. 44, e 60, § 2o, do CP); (3) o exame da concessão da suspensão condicional da pena, em não sendo cabível a referida substituição da prisão por outra espécie de pena (art. 77, III, do CP); e (4) o esclarecimento, fundamentado, sobre a manutenção ou, se for caso, imposição de prisão 104. Lyra, Roberto. Op. cit., p. 207. 105. E. M. CP/1984, item 51. 43 0
Capítulo XXVI | Aplicação da pena
preventiva ou de outra medida cautelar, sem prejuízo do conhecimento da apelação que vier a ser interposta (parágrafo único do art. 387, do CPP). Em síntese, vê-se que a complexidade da aplicação da pena pressupõe o domínio de metodologia própria, além de outros requisitos igualmente obrigatórios, tudo em homenagem aos princípios que regem a individualização judicial da sanção penal. 26.8.1. Observações práticas sobre a aplicação da pena A) Fase primária: fixação da pena-base
Os limites mínimo e máximo cominados nas respectivas normas penais incriminadoras determinam o espaço da individualização judicial da pena. A priori, o julgador tem autonomia para fixar a pena-base dentro dos marcos abstratamente cominados, podendo, em tese, iniciar o exame das circunstâncias judiciais a partir do ponto médio entre os extremos cominados. Exemplo: Para o homicídio simples, poderia o julgador fixar a pena-base da pena a partir de 13 anos (ponto médio entre a pena de 6 a 20 anos cominada no art. 121, caput), diminuindo-a ou majorando-a, consoante a análise das circunstâncias do art. 59.
Entretanto, este não parece ser o melhor caminho. De fato, com esteio no princípio da dignidade da pessoa humana (art. 1o, III, da CF/1988), deve-se sempre adotar a premissa de que a comissão do delito soluciona a continuidade de uma vida íntegra do cidadão. Se o legislador já quantificou, em abstrato, a medida mínima de reprovabilidade penal, tem-se ser correto que o magistrado deva tomar como resolvida tal premissa axiológica, fixando, assim, a pena-base a partir do mínimo previsto na lei. Não se trata, portanto, de se curvar, ao “comodismo” ou ao “modismo da política da pena mínima”.106 É este o entendimento majoritário da jurisprudência brasileira. Com efeito, por força de reiteradas decisões, estabeleceu-se que o cálculo da pena-base toma como referência o quantum mínimo cominado. Dessa forma, no exemplo acima, se não houver nenhuma circunstância judicial desfavorável, a pena-base do homicídio simples ficará assentada em seis anos de reclusão. Nesse sentido, decidiu o STF – em diversos julgados – que a quantidade da pena-base, fixada na primeira fase, não pode ser aplicada a partir da “média dos extremos” da pena cominada para, em seguida, considerar as circunstâncias judiciais, porque este critério não se harmoniza com o princípio da individualização da pena, por implicar um agravamento prévio (entre o mínimo e a média) sem qualquer fundamentação. Para a Corte Suprema, o juiz tem poder discricionário para fixar a pena-base dentro 106. Em sentido inverso: “Nos últimos anos, verifica-se a tendência de muitos magistrados, de primeiro grau ou de instância superior, em adotar a denominada política de pena mínima. Assim procedendo, são ignorados, ou mesmo menosprezados, os riquíssimos elementos e critérios fornecidos pela lei penal para a escolha, entre o mínimo e o máximo cominados para cada infração penal, da pena ideal e concreta destinada ao réu.” (Nucci, Guilherme de Souza. Op. cit., p. 310). 431
Curso de Direito Penal | Parte Geral
dos limites legais, mas este poder não é arbitrário porque o caput do art. 59, do CP, estabelece um rol de oito circunstâncias judiciais que devem orientá-lo, de sorte que quando todos os critérios são favoráveis ao réu, “a pena deve ser aplicada no mínimo cominado”. No entanto, basta que um deles não seja favorável para que a pena não mais possa ficar no patamar mínimo. Enfim, na fixação da pena-base o juiz deve partir do mínimo cominado, sendo dispensada a fundamentação apenas quando ela for fixada no mínimo legal; quando superior, deve ser fundamentada à luz das circunstâncias judiciais previstas no art. 59, do CP, de exame obrigatório.107 Como visto, existindo uma ou mais circunstâncias judiciais desabonadoras, a pena a ser fixada na primeira fase deve se afastar do mínimo, mas sem chegar ao ponto médio. Nesse sentido, o STF tem considerado que, diante da valoração das circunstâncias judiciais do art. 59, do CP, é perfeitamente possível a fixação da pena-base acima do mínimo legal, desde que a decisão esteja devidamente fundamentada, atendendo, assim, ao disposto no art. 93, IX, da CF/1988.108 B) Fase secundária: fixação da pena provisória
Como já salientado, depois de fixada a pena-base deve-se analisar, no conjunto probatório, a existência de circunstâncias legais agravantes e atenuantes. Caso não existam, deve-se manter a pena encontrada na etapa anterior. Caso existam, devem ser valoradas pelo magistrado, elevando ou diminuindo, conforme o caso, a pena fixada na etapa anterior. Deve-se, porém, atentar para os limites de cominação do tipo penal incurso, visto que, como assentado em precedentes jurisprudenciais, a presença de atenuantes não pode levar a pena a ficar abaixo do mínimo, e as agravantes também não podem levar a pena acima do máximo previsto no tipo penal básico ou derivado.109 C) Fase terciária: fixação da pena definitiva
A terceira etapa da dosimetria da pena consiste na valoração de causas de aumento ou diminuição de pena, previstas tanto na Parte Geral como na Parte Especial do Código. A majoração ou minoração deve ser efetuada sobre o quantum fixado na etapa anterior e não sobre aquele inicialmente quantificado na pena-base.110 Por outro lado, reitere-se que diferentemente do verificado no tocante à fixação da pena provisória, aqui há de serem feitas tantas operações quanto forem as hipóteses de majorantes e minorantes, sem compensações, começando-se por aquelas. Excepcionalmente, caso existam várias 107. HC 76196. STF. Min. Maurício Corrêa. Segunda Turma. DJ de 15/12/2000. 108. HC 94847. STF. Min. Ellen Gracie. Segunda Turma. DJ de 26/09/2008. No mesmo sentido: “Se todos os operadores do art. 59 forem favoráveis ao réu, a pena-base pode ficar no mínimo previsto. Se algumas circunstâncias forem desfavoráveis, deve afastar-se do mínimo; se, contudo, o conjunto for desfavorável, deve aproximar-se do termo médio. De regra, o cálculo da pena deve iniciar próximo do mínimo e só excepcionalmente, quando as circunstâncias revelarem especial gravidade, se justifica a fixação da pena-base distante do mínimo legal.” (Bitencourt, Cezar Roberto. Op. cit., p. 637). 109. HC 94365. STF. Min. Menezes Direito. Primeira Turma. DJ de 17/06/2009. Na mesma esteira, a Súmula 231, do STJ: A incidência da circunstância atenuante não pode conduzir à redução da pena abaixo do mínimo legal. 110. Cf. HC 70787. STF. Min. Celso de Mello. Primeira Turma. DJ de 23/10/2009. 432
Capítulo XXVI | Aplicação da pena
causas de aumento ou diminuição previstas na Parte Especial, pode o julgador computar somente a que mais aumente ou a que mais diminua a pena, conforme preconizado no parágrafo único do art. 68. Como dito, cumpre atentar que a expressão “concurso”, contido no dispositivo por último mencionado, tem conteúdo distinto da mesma palavra quando empregada no art. 67. Com efeito, no art. 67, concurso de agravantes e atenuantes transmite a ideia de conflito, de circunstâncias que se contrapõem, sendo que uma deve preponderar ou ambas se anularem. Diferentemente, no parágrafo único do art. 68, concurso de causas de aumento ou de diminuição significa causas que correm na mesma direção, vale dizer, concurso só de causas de aumento ou concurso só de causas de diminuição de pena, em todo caso, contemplado na Parte Especial. Exemplo: “A” pratica calúnia contra o servidor público “B”, mediante paga ou promessa de recompensa. Apesar de existirem duas causas de aumento (art. 141, II, e seu parágrafo único), pode-se efetuar uma única operação, aplicando, em desfavor de “A”, a pena em dobro do parágrafo único do art. 141.
Pode ser que as causas de aumento ou diminuição estejam contidas dentro do mesmo dispositivo, como ocorre no chamado roubo circunstanciado, frequentemente perpetrado por duas ou mais pessoas e com o emprego de arma (art. 157, § 2o, I e II). Em situações como essa, conquanto deva-se proceder a uma única operação (cf. art. 68, parágrafo único), a jurisprudência do STJ firmou-se no sentido de que a presença daquelas causas de aumento no crime de roubo não determina, obrigatoriamente, a majoração da punição em percentual acima do mínimo previsto, salvo se o julgador, considerando as particularidades do caso concreto, constate, de forma fundamentada, a necessidade daquela exasperação.111 111. Nessa linha, o STJ já entendeu que a presença de mais de uma causa especial de aumento de pena, no crime de roubo, pode agravar a pena até a metade, quando o magistrado, diante das peculiaridades do caso concreto, constatar a ocorrência de circunstâncias que indiquem a necessidade da elevação da pena acima da fração mínima: “Não fica o juízo sentenciante adstrito, simplesmente, à quantidade de majorantes para fixar a fração de aumento, pois, na hipótese de existência de apenas uma, havendo nos autos elementos que conduzem à exasperação da reprimenda – tais como a quantidade excessiva de agentes no concurso de pessoas (CP, art. 157, § 2 o, II) ou o grosso calibre da arma de fogo utilizada na empreitada criminosa (CP, art. 157, § 2o, I) –, a fração pode e deve ser elevada, acima de 1/3, contanto que devidamente justificada na sentença, em observância ao art. 68 do CP. O mesmo raciocínio serve para uma situação inversa, em que o roubo foi praticado com arma de fogo e por número reduzido de agentes, hipótese em que pode o magistrado aplicar a fração mínima, apesar da duplicidade de majorantes.” (HC 125798. STJ. Min. Arnaldo Lima. Quinta Turma. DJ de 16/11/2009). No mesmo sentido, envolvendo um roubo triplamente circunstanciado: “Segundo iterativa jurisprudência desta Corte, a presença de mais de uma circunstância de aumento de pena no crime de roubo não é causa obrigatória de majoração da punição em percentual acima do mínimo previsto, a menos que seja constatada a existência de circunstâncias que indiquem a necessidade da exasperação. No caso concreto, as instâncias ordinárias decidiram aplicar o aumento de metade na pena-base em razão da existência de três causas de aumento de pena, quais sejam, concurso de agentes, emprego de arma de fogo e privação da liberdade da vítima. Registraram como excepcionalidade que ensejasse a majoração acima de um terço o número elevado de agentes envolvidos (quatro), o uso de arma semiautomática, o longo tempo de cativeiro das vítimas e a ameaça de cortarem fora a mão de criança de dois anos de idade diante da mãe do infante.” (HC 127673. STJ. Min. Napoleão Maia Filho. Quinta Turma. DJ de 14/09/2009). 433
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D) Vedação do ne bis in idem
Uma derradeira questão de cunho prático consiste no cuidado que se deve observar para não se valorar duplamente uma determinada circunstância fática ou jurídica. Nesse sentido, a Súmula 241, STJ: “A reincidência penal não pode ser considerada como circunstância agravante e, simultaneamente, como circunstância judicial”.
26.9. Aplicação da pena de multa
A
individualização da pena de multa obedece, em regra, ao critério bifásico dos dias-multa, qual seja, da fixação de dois momentos: quantidade e valor de dias-multa. Excepcionalmente, é possível uma “terceira fase”.112
A) Fixação da quantidade de dias-multa
A quantidade de dias-multa oscilará entre o mínimo de 10 (dez) e o máximo de 360 (trezentos e sessenta) unidades de salário-mínimo, conforme determina o art. 49, caput, do CP. Para se chegar ao montante equitativo de dias-multa deverá o magistrado levar em consideração a gravidade do fato e a culpabilidade do condenado. Não há que cogitar, nesse primeiro momento, da situação econômica do réu, mas, tão somente, do fato perpetrado e da circunstância da sua maior ou menor reprovabilidade. Sendo assim, é perfeitamente possível que duas pessoas, que concorram para o mesmo delito, recebam a mesma quantidade de dias-multa, não obstante possuírem condições econômicas díspares, v.g., um rico e, o outro, pobre. A razão para que se siga essa disciplina reside no fato de que o sistema do dias-multa foi, na verdade, uma adaptação que a Reforma Penal de 1984 fez ao trasladar a quantidade de multa que vinha cominada na Parte Especial do Código de 1940, e que acompanhava a maior ou menor gravidade do delito cominado. Apenas na etapa subsequente é que ocorrerá a variação do quantum de cada dia-multa, conforme a circunstância judicial da situação econômica. B) Fixação do valor do dias-multa
O valor de cada dia-multa será fixado entre um trigésimo do salário-mínimo mensal vigente ao tempo do fato e cinco vezes esse salário (art. 49, § 1o, do CP). Nesta segunda etapa, já não tem mais relevância a gravidade do fato ou a culpabilidade do agente, mas, como dito acima, a sua situação econômica (art. 60, caput, do CP). No caso vertente, a capacidade econômica do condenado será objeto de análise pelo magistrado, para fins de conclusão da individualização da pena de multa. É certo, contudo, que muito dificilmente poderá o juiz conhecer por completo a condição econômico-financeira do réu, mesmo em delitos em que estejam em discussão teses como a inexigibilidade de conduta diversa em virtude de dificuldades financeiras intransponíveis, como ocorre 112. Cf. REsp 897876. STJ. Min. Felix Fischer. Quinta Turma. DJ de 29/06/2007. 43 4
Capítulo XXVI | Aplicação da pena
com imputações de violação do art. 168-A, do CP, que prevê a apropriação indébita previdenciária. Sendo assim, em geral, a aferição da real situação econômica do réu, necessária, como visto, para a fixação do valor dos dias-multa, pauta-se pelas informações fáticas pertinentes à profissão, residência, estado civil, dados coligidos das testemunhas e, eventualmente, pela requisição judicial de registros perante instituições como Receita Federal, Banco Central, Comissão de Valores Mobiliários etc. Importa considerar ainda que, consoante jurisprudência pacífica dos tribunais superiores, não pode o juiz deixar de impor a pena de multa, sob o argumento, v.g., de ausência de informações sobre a real situação financeira ou, ao contrário, pela comprovação do estado de miserabilidade do réu. Isso porque, cuida-se de sanção de natureza penal, não sendo possível a isenção da pena de multa ante a inexistência de previsão legal nesse sentido.113 C) Etapa facultativa: elevação ao triplo
A lei penal prevê, por fim, a possibilidade de uma “terceira etapa”, qual seja, da elevação até o triplo, se o juiz considerar que, em virtude da situação econômica do réu, ela se revelou ineficaz, embora aplicada no máximo (art. 60 e seu § 1o). A título de ilustração, veja o seguinte exemplo: Exemplo: “A” pratica delito, apenado com multa, em janeiro de 2011, quando o salário-mínimo era de R$ 540,00. A pena de multa a ser-lhe aplicada – conjugando as duas etapas da gravidade do fato e da sua situação econômica – poderá variar entre o mínimo de R$ 180,00 e o máximo de R$ 972.000,00. Se acrescermos a terceira etapa – elevação em até três vezes do máximo aplicado – a pena final de “A” atingirá a cifra de R$ 2.916.000,00.
113. Cf.: “Inexiste previsão legal para a isenção da pena de multa, em razão da situação econômica do réu, devendo esta servir, tão somente, de parâmetro para a fixação do seu valor.” (REsp 838154. STJ. Min. Felix Fischer. Quinta Turma. DJ de 18/06/2006. No mesmo sentido: REsp 735898. STJ. Min. Maria Thereza Moura. Sexta Turma. DJ de 13/10/2009). 435
título
IV
capítulo
teoria ger a l da sa n ção p en a l
XXVII
CONCURSO DE CRIMES 27.1. Considerações gerais
N
estudou-se a metodologia da aplicação da pena àquele considerado culpado pelo cometimento do fato delituoso. Como visto, de acordo com as normas estipuladas nos arts. 59 a 68, do CP, o magistrado irá aplicar, de forma isolada, cumulada ou alternada, as penas cominadas no respectivo tipo penal incriminador, procedendo, eventualmente, à substituição de pena privativa de liberdade por restritiva de direito. De toda sorte, toda aquela sistemática legal pressupõe, em regra, a aplicação de uma única sanção penal. Entretanto, é possível que, no caso concreto, haja a necessidade de serem aplicadas ou mesmo executadas mais de uma pena. Quando isso ocorre, surge o chamado concurso de delitos (concursus delictorum). A propósito, critica-se a expressão “concurso de crimes”, pois, na verdade, trata-se de normas disciplinando o “concurso de penas”. Ademais, dissente-se acerca da correta localização da matéria, pois, para alguns, o concurso de crimes deveria ser estudado na Teoria do Delito, ao passo que, para outros, a temática pertenceria à Teoria da Pena. Johannes Wessels chega, inclusive, a sustentar – com uma boa dose de razão – que seria um “ponto de encontro” entre a teoria do delito e a teoria das consequências do injusto, visto existir, de fato, uma nítida intercessão entre estas duas instâncias teórico-penais.1 o capítulo anterior,
1. Cf. Jescheck, Hans-Heinrich; Weigend, Thomas. Op. cit., p. 762. 436
Capítulo XXVII | Concurso de crimes
A compreensão da matéria depende da aferição de se está diante de uma ou várias condutas. Segundo lecionado por Patrícia Glioche Béze, para que haja uma conduta única, deve-se necessariamente buscar a existência de unidade de resolução, de finalidade. No entanto – prossegue aquela autora –, é fundamental que exista um fator normativo que converta esta resolução única numa unidade de desvalor.2 No Direito brasileiro, o assunto vem tratado na parte relativa às penas, sendo certo que a Reforma de 1984 manteve, em grande parte, a redação originária dos dispositivos introduzidos pelo CP/1940. Assim, os arts. 69 a 76 cuidam dos institutos do concurso material, concurso formal, crime continuado, erro na execução, resultado diverso do pretendido, limite máximo e unificação do tempo de cumprimento de pena. Para a compreensão adequada do concurso de crimes (ou de penas), foram desenvolvidos alguns princípios, conforme a exposição que se segue. Contudo, merece ser lembrado que o concurso de crimes não se confunde com concurso aparente de normas, crime progressivo, crime complexo e crime permanente. A diferença entre concurso de crimes e concurso aparente de normas (ou leis), reside no fato de que, no primeiro, há a violação de mais de um bem jurídico, seja por conduta única ou plúrima – ou seja, há concurso real de crimes. Diferentemente, no concurso aparente de normas, somente um único bem é lesionado ou posto a perigo, muito embora a conduta se encontre descrita em mais de um tipo penal. Como há a vedação do bis in idem, deve-se apurar, por meio dos princípios de regência, qual norma deverá incidir, desprezando-se as demais. Em outros termos, no concurso aparente exige-se uma interpretação racional das leis penais, ao passo que, no concurso de crimes, há um problema real de aplicação conjunta de sanções ao mesmo infrator. Na mesma medida, cabe distinguir concurso de crimes do crime progressivo. Ocorre crime progressivo quando o agente, para alcançar a produção de um resultado mais grave, passa, necessariamente, por outro menos grave. Por exemplo, para se atingir o homicídio (art. 121, do CP), há que se lesionar a integridade física da vítima (art. 129, do CP).3 Cuida-se, novamente, de uma questão que envolve o concurso aparente, visto que o crime de passagem resta absorvido pelo crime-fim. Por sua vez, no concurso de crimes, com a mesma conduta, ou em condutas paralelas ou sucessivas, há a realização de mais de um crime. O crime complexo é aquele cujo tipo penal é composto de fatos que, por si mesmos, constituem crime (art. 101, do CP). Por exemplo, o roubo (art. 157, caput, do CP), é constituído dos delitos de furto (art. 155, do CP) e constrangimento ilegal (art. 146, do CP). Nas hipóteses de crime complexo não há que se falar em concurso de crimes, pois se cuida de uma única conduta com um único resultado, ainda que vulnerando mais de um bem jurídico. Por último, concurso de crimes não se confunde com crime permanente. No primeiro, cuidam-se de duas condutas que acarretam dois crimes, ou uma conduta que dá ensejo a dois ou mais crimes, ou dois ou mais crimes da mesma espécie, praticados 2. Béze, Patrícia Mothé Glioche. Concurso formal e crime continuado. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 29. 3. Cf. Jesus, Damásio E. de. Direito Penal. Parte Geral. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 195. 437
Curso de Direito Penal | Parte Geral
com coincidências de tempo, lugar e modo de execução. No crime permanente, há crime único, mas cujo momento consumativo se prolonga no tempo, como, por exemplo, no sequestro ou cárcere privado (art. 148, do CP) ou na extorsão mediante sequestro (art. 159, do CP). Ressalte-se que o crime permanente se caracteriza pela circunstância de a consumação poder cessar por vontade do agente.4 A propósito, discute-se se o delito de estelionato, consistente no recebimento fraudulento de benefícios previdenciários ou assistenciais, em prestações mensais e sucessivas (art. 171, § 3o, do CP), constitui concurso de crimes (crime continuado) ou crime permanente. Sobre o assunto, a jurisprudência dos tribunais superiores considera que se trata de crime permanente, de ação contínua, e não de várias condutas independentes entre si. Em suma, cuida-se da obtenção de uma única vantagem ilícita, havida, no entanto, parceladamente.5
27.2. Princípios reguladores do concurso de crimes
A
longo dos tempos, diversos princípios para a regulação do concurso de crimes. Os mais importantes são: (1) cúmulo material; (2) cúmulo jurídico; (3) absorção; (4) exasperação; (5) cumprimento unificado e progressivo da pena; e (6) vedação da pena de caráter perpétuo. Analisa-se, a seguir, cada um deles. O primeiro princípio, isto é, do cúmulo material, preconiza que as penas referentes aos vários delitos devem ser calculadas em separado e, em seguida, somadas. Cuida-se de uma operação meramente aritmética (quot delicta tot poenae) sendo justamente por isso criticada pela doutrina ante o seu excessivo rigor. Imagine-se a situação de alguém que, no espaço de um mês, subtraia, todos os dias, um aparelho celular de terceiros (art. 155, do CP). Ao cabo de trinta dias, esse infrator poderia sofrer, por intermédio do cúmulo material, pena privativa de liberdade totalizada em trinta anos! A despeito do seu rigor, o sistema do cúmulo material foi adotado, entre nós, para regular o concurso material (art. 69, do CP), o concurso formal impróprio (art. 70, parte final, do CP), e o cumprimento da pena de multa (art. 72, do CP). doutrina desenvolveu, ao
4. Idem, p. 190. 5. No STF: “1. A questão de direito tratada neste habeas corpus diz respeito à natureza jurídica do crime de estelionato perpetrado contra a Previdência Social. 2. No caso específico dos crimes de estelionato praticados contra a Previdência Social, a execução e a consumação do crime se prolongam no tempo, já que os vários pagamentos recebidos relativos ao benefício previdenciário indevido foram realizados durante determinado lapso temporal, não sendo necessário que a fraude ou o ardil se renovassem a cada período de tempo. Assim, enquanto o crime se prolongar no tempo, até que cesse a permanência, não se inicia o prazo prescricional referente à pretensão punitiva estatal. 3. In casu, o paciente falsificou documentos públicos com o intuito de conceder a seu sogro pensão de ex-combatente da II Guerra Mundial, o que denota que também era beneficiário da fraude. (...).” (HC 102774. STF. Min. Ellen Gracie. Segunda Turma. DJ de 07/02/2011). No mesmo sentido: HC 104880. STF. Min. Ayres Britto. Segunda Turma. DJ de 22/10/2010). No STJ: “1. A consumação do crime de estelionato contra a Previdência Social, com a prática de fraude para obtenção de benefício previdenciário de forma sucessiva e periódica, é de natureza permanente. 2. O termo inicial do prazo prescricional se dá com a cessação do recebimento do benefício previdenciário, nos termos do art. 111, inciso III, do Código Penal. Dessa forma, não se verifica a prescrição retroativa.” (HC 139737. STJ. Min. Laurita Vaz. Quinta Turma. DJ de 06/12/2010). No mesmo sentido: REsp 1112251. STJ. Min. Felix Fischer. Quinta Turma. DJ de 19/04/2010). 438
Capítulo XXVII | Concurso de crimes
Por sua vez, o princípio do cúmulo jurídico, desenvolvido por Mittermayer, determina que o aumento de pena relativa aos vários delitos ocorra de maneira mais geométrica do que aritmética, ou seja, com a aplicação de sanção mais severa do que a prevista para cada infração isoladamente, mas sem chegar ao somatório global, de forma a abranger a gravidade dos fatos perpetrados. Esse sistema não é mais previsto na legislação brasileira, conquanto tenha sido adotado pelo CP/1890.6 De acordo com o princípio da absorção – que se assemelha ao princípio que, com a mesma denominação, regula o concurso aparente de normas – aplica-se a sanção de um só dos delitos, em regra a mais grave, que absorve as penas dos demais. A crítica dirigida a esse sistema reside na constatação de que a sua pura e simples adoção importaria num bill de impunidade das demais infrações perpetradas, gerando, nas palavras de Cezar Bitencourt, uma espécie de “carta de alforria” para quem já delinquiu.7 Não obstante a merecida crítica, fato é que o princípio da absorção foi, em parte, adotado pelo Código para regular o erro na execução e o resultado diverso do pretendido, consoante o disposto na primeira parte dos arts. 73 e 74, desprezando-se a punição pertinente à tentativa do delito pretendido pelo agente. O princípio da exasperação determina a aplicação da pena de um dos delitos, se idênticas, ou a mais grave, se diversas, aumentada em certa quantidade, sendo que a intensidade do aumento varia em escala proporcional ao número dos delitos perpetrados pelo agente. A doutrina considera esse o melhor dos sistemas, pois permite ao magistrado quantificar a pena de forma mais adequada à quantidade dos fatos, mas sem atingir ou ultrapassar o rigor do cúmulo material. Cumpre registrar que o sistema da exasperação foi adotado para regular o concurso formal próprio (art. 70, 1a parte, do CP), crime continuado (art. 71, do CP), e para o erro na execução e o resultado diverso do pretendido (arts. 73 e 74, parte final, do CP), quando também ocorrer o resultado que fora objetivado pelo agente. O princípio do cumprimento unificado e progressivo da pena importa na projeção do princípio da individualização da pena na sua fase executiva. Com efeito, mesmo que o agente possua diversas condenações, fato é que no momento em que iniciar a execução penal todas as penas devem ser unificadas perante o Juízo da Execução Penal. Essa é a mens do art. 1o, da LEP, secundado pelos arts. 75, § 1o, do CP, e 111, da LEP. Além de unificado, o cumprimento obedecerá ao método progressivo, iniciando-se pelo desconto da pena mais severa, conforme os arts. 76, c/c 33, § 2o, do CP, art. 112, da LEP, e art. 681, do CPP. Embora acolhido para regular a execução penal, o princípio da unificação não pode ser utilizado para fins de contagem do prazo prescricional. Nesse sentido, dispõe o art. 119, do CP, que a prescrição incidirá sobre cada delito de per si. 6. Cf. art. 66, § 2o, do CP/1890: “Quando o criminoso, pelo mesmo fato e com uma só intenção, tiver cometido mais de um crime, impor-se-lhe-á no grau máximo a pena mais grave em que houver incorrido.” Dentre as inúmeras “críticas demolidoras” dirigidas ao CP/1890, a doutrina observava que esse dispositivo ignorava a possibilidade do concurso formal de delitos culposos, o que redundava na aplicação da regra geral do cúmulo material para os culposos, em rigor desproporcional para com os dolosos. 7. Bitencourt, Cezar Roberto. Op. cit., p. 643. 439
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Com relação ao postulado da vedação da pena de caráter perpétuo, de base constitucional (art. 5o, XLVII, “b”, da CF/1988), tem-se que, independentemente do sistema porventura adotado – cúmulo material, exasperação, absorção etc. –, o tempo de cumprimento efetivo de pena ou das penas unificadas, não poderá ultrapassar o teto máximo que, no Brasil, é de trinta anos (art. 75, caput). Objetiva-se, assim, alimentar no condenado a esperança da liberdade e a aceitação da disciplina, pressupostos essenciais – segundo a Reforma Penal de 1984 – da eficácia do tratamento penal.8 Observe-se que alguns desses princípios se interpenetram no âmbito do concurso de crimes.
27.3. Concurso material
C
art. 69, do CP, trata do concurso material ou real de infrações. Segundo esse princípio, quando o agente, mediante mais de uma ação ou omissão, pratica dois ou mais crimes, idênticos ou não, aplicam-se cumulativamente as penas privativas de liberdade em que haja incorrido. Cuida-se da forma mais rigorosa de tratamento do concurso de crimes, razão pela qual a lei penal a considera como limite máximo a ser observado no terreno do concurso de crimes. O concurso material se classifica em homogêneo, quando as infrações forem idênticas, e heterogêneo, quando distintas. É possível, portanto, concurso material entre crimes distintos, v.g., comissivos e omissivos, dolosos e culposos, consumados e tentados etc. Se as penas forem de espécies diferentes – vale dizer, reclusão e detenção –, o art. 69, do CP, por influência do princípio do cumprimento progressivo, determina que se execute, primeiramente, a reclusão, por ser mais rigorosa do que a detenção. Como visto, as penas devem ser aplicadas cumulativamente. Dessa forma, na sentença penal condenatória, o magistrado deverá calcular separadamente a pena de cada uma das infrações para, em seguida, somá-las, chegando, assim, ao quantum final. Dessa forma, é possível ocorrer, no cômputo final das penas privativas de liberdade, o ultrapassar do patamar de trinta anos, sendo que, por força do art. 75, do CP, o tempo de efetivo cumprimento deverá obedecer àquele limite máximo – princípio da vedação da prisão perpétua. No momento da aplicação da pena, deve o magistrado verificar a possibilidade de substituição da pena privativa de liberdade por outra espécie de pena (arts. 44, c/c 59, IV, do CP). Diante disso, o § 1o, do art. 69, do CP, determina que, caso uma das penas não possa ser substituída, tampouco ser-lhe aplicável a suspensão condicional do art. 77, do CP, não poderá haver, quanto às demais penas, a substituição que, em tese, seria possível. O condenado deverá cumprir as penas impostas pelo concurso material de uma única forma, ou seja, privado da liberdade. Não obstante, após iniciado o cumprimento das penas, será possível ocorrer, como incidente de execução penal, a conversão da prisão em restritiva de direito, conforme preconizado no art. 180, da LEP. onforme adiantado, o
8. E. M. CP/1984, item 61. 440
Capítulo XXVII | Concurso de crimes
Caso exista a possibilidade de substituição das penas de prisão por restritivas de direitos, o condenado poderá cumprir, ao mesmo tempo, aquelas que forem compatíveis entre si; se incompatíveis, serão cumpridas sucessivamente (art. 69, § 2o, do CP). Assim, por exemplo, tem-se como compatíveis as penas de prestação pecuniária e prestação de serviços à comunidade. O mesmo não pode ser dito de duas penas de limitação de final de semana, que deverão ser cumpridas sucessivamente. Reitere-se, por oportuno, que a aplicação de penas de multa sempre obedecerá ao sistema do cúmulo material (art. 72, do CP).
27.4. Concurso formal
E
quando o agente, por intermédio da mesma ação ou omissão, infringe várias normas penais ou uma mesma norma repetidas vezes. Há, portanto, uma unidade de conduta, ainda que fracionada em diversos atos, que acarreta uma pluralidade de delitos. Cuida-se, portanto, de um caso de conduta única de efeito plural.9 O concurso formal é também denominado concurso ideal porque a conduta supõe a realização da ideia do tipo de várias infrações penais, ao passo que, no concurso real, existem, na realidade, várias condutas.10 O concurso formal ou ideal se classifica em homogêneo, quando os delitos são idênticos, ou seja, previstos na mesma figura típica, e heterogêneo, quando os resultados estão capitulados em tipos distintos. xiste concurso formal
Exemplos: Concurso formal homogêneo: “A”, violando o dever objetivo de cuidado ao conduzir automóvel, avança o sinal vermelho, atropelando e matando os pedestres “B” e “C”. Ele responderá pelo delito do art. 302, do CTB, com a pena aumentada de um sexto até a metade. Concurso formal heterogêneo: “A”, mediante o emprego de grave ameaça, obriga “B” a agredir “C”. Ele deverá responder pelo art. 1o, I, “b”, da Lei no 9.455/1997, com a pena aumentada de um sexto até a metade.
Releva salientar que o sistema da exasperação importa, em regra, num tratamento penal mais brando ao infrator. Isso decorre da menor reprovabilidade do fato pois praticou-se uma, e não várias condutas. É possível, todavia, que o método da exasperação redunde em apenação maior do que seria a mera soma aritmética. Na verdade, isso ocorre frequentemente, isto é, quando há uma disparidade muito grande entre as penas cominadas para os respectivos delitos. Exemplo: Concurso formal entre homicídio doloso e lesões corporais culposas (art. 121, caput, e art. 129, § 6o, do CP). No primeiro, a pena mínima é de 6 (seis) anos de reclusão; no 9. Lyra, Roberto. Op. cit., p. 436. 10. Jescheck, Hans-Heinrich; Weigend, Thomas. Op. cit., p. 774. 4 41
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segundo, de 2 (dois) meses de detenção. Se se seguir a exasperação, a pena mínima final será de 7 (sete) anos (um sexto sobre seis). No entanto, se somadas as penas, o quantum será de 6 (seis anos) e 2 (dois) meses. O cúmulo material, no caso, é mais benéfico do que a exasperação.
Diante disso, a Reforma de 1984 introduziu a regra do parágrafo único do art. 70, dispondo que, no concurso formal, a pena aplicada não poderá exceder a que seria cabível pela regra do cúmulo material. Como visto, o art. 69, do CP, funciona como um limite máximo para as demais hipóteses de concurso de crimes, sendo, nesse caso, denominado de concurso material benéfico.11 Sobre o concurso formal, há, ainda, uma classificação relevante, qual seja, a que divide o concurso formal em perfeito (ou próprio) e imperfeito (impróprio). Para a primeira hipótese, regulada na parte inicial do art. 70, aplica-se a mais grave das penas ou, se iguais, somente uma delas, mas sempre aumentada, em qualquer caso, de um sexto até a metade (sistema de exasperação). Porém, no segundo caso (imperfeito), as penas serão aplicadas cumulativamente, conforme determinado no art. 70, parte final, desde que a pluralidade de resultados decorra de desígnios autônomos. 27.4.1. Conceituação de desígnios autônomos
A expressão desígnios autônomos remonta à redação originária do CP/194012 e provém da noção de múltipla ideação ou determinação da vontade. Dessa maneira, os vários eventos não são um só perante a consciência e vontade, embora o sejam externamente. Seria o caso do agente que, dolosamente, mata, com um só tiro, duas pessoas, quando podia fazê-lo, uma após a outra, com dois tiros distintos.13 Entendeu, pois, o legislador que, havendo desígnios autônomos não se justifica a diminuição da pena, porque subsiste íntegra a culpabilidade pelos fatos diversos. Portanto, desígnios autônomos significa que o agente tem consciência e vontade em realizar mais de um tipo penal, e atua finalisticamente em relação a cada um deles. Numa palavra, há dolo diferenciado para cada um dos resultados objetivados, conquanto tenha empreendido uma única conduta. Assim, a expressão desígnios autônomos exclui o dolo eventual. Exemplo: “A”, de forma violenta, arremessa de um penhasco uma mulher que sabe estar grávida. Atua, portanto, com vontade consciente de perpetrar os delitos de homicídio e aborto com uma única conduta. 11. Cf. HC 147813. STJ. Min. Laurita Vaz. Quinta Turma. DJ de 06/12/2010. 12. Na verdade, a expressão remontaria à Carrara, quando da análise das hipóteses nas quais, por uma única atuação criminosa, violava-se mais de um “direito”. Para o autor, o fundamental era distinguir “se a violação de vários direitos foi consumada para alcançar a diversos fins do culpado, independentes um do outro, ou se o réu não visava senão a um único fim, pelo qual violava um direito, valendo-se da violação de outro como meio para alcançar aquele fim.” (Carrara, Francesco. Programa do curso de Direito Criminal. Parte Geral. Vol. I. Trad. José Luiz Franceschini. São Paulo: Saraiva, 1956, p. 134) (grifos do original). 13. Cf. Lyra, Roberto, op. cit., p. 437. 4 42
Capítulo XXVII | Concurso de crimes
Registre-se que a figura do desígnio autônomo tem sido reconhecida, cotidianamente, nos tribunais. No julgamento do RE interposto no caso Massacre de Haximú (que resultou na morte de 12 índios Yanomami, além de ferimentos em diversos outros membros daquela etnia), o STF admitiu a existência de concurso formal impróprio entre delitos de genocídio e a dúzia de homicídios perpetrados, tendo em vista tratarem-se, justamente, de desígnios autônomos. Contudo, os infratores foram condenados apenas pelo genocídio, pois a Corte Suprema considerou que não poderiam sofrer a punição pelos homicídios, na forma do concurso formal impróprio, pois o RE havia sido interposto exclusivamente pelas defesas dos réus.14 27.4.2. Desígnios autônomos e a questão do roubo contra vítimas distintas
Uma questão que suscita discussão quanto à existência ou não de desígnios autônomos é a do roubo praticado contra vítimas diversas. Cuida-se de hipótese – aliás, frequente no cotidiano – dos roubos a ônibus, residências, transeuntes na via pública etc., sendo certo que há grande controvérsia jurisprudencial quanto ao reconhecimento do concurso formal impróprio. Basicamente, o debate gira em torno sobre se existem desígnios autônomos quando a ofensa patrimonial recai em vítimas diversas, apesar de a ação ter ocorrido em uma única conduta. Em geral, observa-se que a jurisprudência limita-se ao reconhecimento do concurso formal, sem especificar sob qual modalidade (próprio ou impróprio). Não obstante, pela análise da pena aplicada – exasperação ou cúmulo material –, é possível aferir qual delas foi reconhecida pelo julgado. Dessa maneira, constata-se que algumas decisões acolhem o concurso formal próprio. Nesse sentido, denegando habeas corpus impetrado em favor de réu condenado por ter participado de roubo aos passageiros de um ônibus na cidade de São Paulo, o STJ teve oportunidade de decidir que, num roubo contra vítimas distintas, na mesma situação fática e objetivando, o agente, atacar patrimônios diferentes, “tem-se como configurado o concurso formal e não a hipótese de crime único”. A leitura do voto condutor desse acórdão evidencia que a pena aplicada sofreu o acréscimo mínimo de um sexto, indicativo, como visto, do reconhecimento do concurso ideal próprio (art. 70, caput, 1a parte).15 No entanto, tem-se que a jurisprudência preponderante é no sentido inverso, ou seja, pelo reconhecimento do concurso formal impróprio. Isso se verifica tanto no STJ, como no STF. Com efeito, confirmando o acórdão exarado pela Quinta Turma do STJ,16 a 14. Cf. RE 351487. STF. Pleno. Min. Cezar Peluso. DJ de 10/11/2006. 15. HC 124361. STJ. Min. Jorge Mussi. Quinta Turma. DJ de 03/08/2009. 16. Tratou-se de recurso especial interposto, pelo MP do Rio Grande do Sul, em face de decisão do Tribunal daquele Estado, que provera apelação defensiva reconhecendo como “crime único” a subtração, mediante grave ameaça, de objetos de dois transeuntes numa rua de Porto Alegre. O mencionado acórdão ficou assim ementado: “Recurso Especial. Penal. Roubo. Concurso formal impróprio. Única conduta. Desígnios autônomos. Bens juridicamente tutelados distintos. Mera reiteração criminosa. Não incidência do art. 71 do CP. 1. Quando o Réu inicia a conduta delituosa com o escopo de lesar o patrimônio de mais de uma vítima com uma só ação deve-se aplicar o art. 70, segunda parte, do Código Penal. 2. A mera reiteração criminosa não configura a continuidade delitiva prevista no art. 71 do Código Penal. 3. Recurso conhecido e provido.” (REsp 690760. STJ. Min. Laurita 4 43
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Corte Suprema assinalou a existência de “desígnios autônomos” em hipótese de roubo de dois aparelhos celulares, pertencentes a duas pessoas distintas, mas no mesmo instante. Segundo decidido, a “jurisprudência deste Supremo Tribunal Federal é firme no sentido de configurar-se concurso formal e ação única que tenha como resultado a lesão ao patrimônio de vítimas diversas, e não crime único”.17 Dogmaticamente, considera-se mais coerente esta segunda corrente. Efetivamente, ao planejar e empreender as elementares do delito de roubo em locais como transporte coletivo, condomínios residenciais, passeio público, dentre outros, o agente atua, dolosamente, querendo a produção de mais de um resultado. O desígnio, não é unitário, mas voltado, de forma independente, para a obtenção ilícita dos pertences de cada qual dos lesados (dinheiro, relógios, aparelhos celulares etc.).18
27.5. Crime continuado
V
continuado quando o agente, mediante condutas múltiplas, pratica dois ou mais crimes, da mesma espécie, que devem ser considerados como se único fosse, haja vista a semelhança das circunstâncias objetivas de tempo, lugar e forma de execução. Por conta disso, a reprimenda penal há de ser aplicada não com penas cumuladas, mas, sim, com uma pena única exasperada. Cumpre ressaltar que o crime continuado – ou continuidade delitiva – cuida-se de instituto que remonta aos práticos da Idade Média, guiados que foram pelo sentimento de abrandar o rigor das leis que, à época, impunham a pena capital aos que incorressem no terceiro furto. Não raro, três ou mais subtrações, praticadas semelhantemente e num curto espaço de tempo, redundavam, de forma draconiana, em pena de morte para pequenos infratores. Após a origem com os práticos, os teóricos desenvolveram seus contornos jurídicos e os legisladores positivaram o instituto, reconhecendo, a generalidade dos códigos penais, o abrandamento punitivo em certas situações de reiteração criminosa. No Brasil, o crime continuado não existiu no CC/1830 nem no CP/1890, tendo sido somente regulado no Decreto no 4.780/1923, cujo art. 39 dispôs: Quando o criminoso tiver de ser punido por dois ou mais crimes da mesma natureza, resultantes de uma só resolução contra a mesma ou diversa pessoa, embora cometidos em tempos diferentes, se lhe imporá a pena de um só dos crimes, mas com aumento da sexta parte. O Código de 1940 seguiu essa diretriz e regulou o crime continuado no § 2o, do art. 51, suprimindo, contudo, a referência à diversidade de pessoas: Quando o agente, mediante mais de uma só ação ou omissão, pratica dois ou mais crimes da mesma espécie e, pelas condições de tempo, lugar, maneira de execução e outras semelhantes, devem os subsequentes ser havidos como continuação do primeiro, impõe-se-lhe a pena de um só dos crimes, se idênticas, ou a mais grave, se diversas, aumentada, em qualquer caso, de um sexto a dois terços. erifica-se o crime
Vaz. Quinta Turma. DJ de 28/05/2007). 17. HC 91615. STF. Min. Cármen Lúcia. Primeira Turma. DJ de 28/09/2007. 18. Cf. Parecer do Subprocurador-Geral Cláudio Fonteles (HC 91615, citado na nota precedente). 444
Capítulo XXVII | Concurso de crimes
A Reforma de 1984 reproduziu, no caput do art. 71, a redação do CP/1940, com poucas alterações. Todavia, inovou ao reintroduzir a possibilidade do crime continuado contra pessoas diversas: nos crimes dolosos, contra vítimas diferentes, cometidos com violência ou grave ameaça à pessoa, poderá o juiz, considerando a culpabilidade, os antecedentes, a conduta social e a personalidade do agente, bem como os motivos e as circunstâncias, aumentar a pena de um só dos crimes, se idênticas, ou a mais grave, se diversas, até o triplo, observadas as regras do parágrafo único do art. 70 e do art. 75 do Código. 27.5.1. Teorias sobre o crime continuado
A correta conceituação da continuidade delitiva é tema de debate entre os autores do Direito Penal. Duas correntes preponderam. Para a teoria objetiva pura, o crime continuado fica caracterizado quando presentes as mesmas condições objetivas de tempo, lugar, modo de execução etc., independentemente de ser aferido o caráter unitário do dolo. Os doutrinadores mais antigos, como von Liszt, Mezger e Mayer, filiam-se a esta corrente.19 Para a teoria objetivo-subjetiva, além da semelhança dos fatores objetivos, exige-se que os mesmos estejam enfeixados no dolo do autor, como se existisse um autêntico dolo global. A doutrina mais recente tende a exigir que os atos delitivos se apresentem – segundo as palavras de Jescheck – como a realização sucessiva de um todo querido unitariamente.20 O mais paradoxal, todavia, é que os defensores de cada corrente se valem do mesmo argumento para infirmar a tese contrária. Para os objetivistas, a existência de um dolo geral, ou um desígnio unitário, serviria como indicativo de maior reprovabilidade e não de um tratamento mais brando. Inversamente, para os adeptos da outra vertente, é justamente essa falta de liame subjetivo que descaracteriza o delito continuado e determina a punição mais exacerbada, pela ausência de um critério seguro que possa separar o criminoso habitual do ocasional. A discussão também se instalou na doutrina brasileira. Roberto Lyra, defensor da tese subjetivista, lecionava que o juiz, diante da pluralidade dos atos cometidos, não teria outro remédio senão averiguar a existência da unidade subjetiva do agente, ou seja, a especial determinação da vontade.21 Nélson Hungria, por sua vez, entendia que, para a existência do crime continuado, bastaria tão somente a homogeneidade objetiva das ações, abstraído qualquer nexo psicológico, seja volitivo, seja meramente intelectivo.22 19. Liszt, Franz von. Tratado de Direito Penal Alemão. Tomo I. Trad. José Hygino Duarte Pereira. Rio de Janeiro: F. Briguiet, 1899, p. 386; Mezger, Edmund. Tratado de Derecho Penal. Tomo II. Trad. Rodriguez Muñoz. Madrid: Revista de Derecho Privado, 1955, p. 360; Mayer, Max Ernst. Derecho Penal. Parte General. Trad. Sergio Lifschitz. Montevideo: B de F, 2007, p. 640. 20. Jescheck, Hans-Heinrich; Weigend, Thomas. Op. cit., p. 771. 21. Lyra, Roberto, op. cit., p. 443. Após analisar os argumentos contrários, Roberto Lyra sentenciou: continuo a preferir a teoria subjetiva. Segundo ele, razões de ordem prática referendavam sua escolha: “O juiz, colhendo, policialmente, as pegadas da continuação, não teria outro remédio, ao filiá-las e enfeixá-las, senão recorrer à unidade posta por um homem, em sua trajetória. E indagaria, exatamente, da subjetividade coerente e homogênea de que é reflexo.” (Idem, p. 443). 22. Hungria, Nélson. Comentários..., cit., p. 166. Segundo Hungria, “o elemento psicológico reclamado pela teoria objetivo-subjetiva, longe de justificar esse abrandamento da pena, faz dele a paradoxal recompensa a um plus de dolo ou de capacidade de delinquir. É de toda a evidência que muito mais merecedor de pena é aquele que ab initio se propõe repetir o crime, agindo 445
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O CP/1940 adotou a tese de Nélson Hungria, ou seja, a teoria objetiva pura, conforme o teor do § 2o, do art. 51, supratranscrito. A mesma opção teria sido acolhida pela Reforma de 1984, pois o art. 71, caput, possui redação similar ao diploma de 1940. Conforme constante da Exposição de Motivos do CP/1984, o critério da teoria puramente objetiva não revelou na prática maiores inconvenientes, a despeito das objeções formuladas pelos partidários da teoria objetivo-subjetiva.23 Ocorre, porém, que a Parte Geral de 1984 readmitiu, como dito acima, a figura da continuidade delitiva contra vítimas distintas. Desse modo, ao dispor sobre a matéria, o parágrafo único do art. 71, fez expressa referência, dentre outros fatores, aos motivos dos crimes, que permitiriam a aplicação da pena única exacerbada de um sexto a dois terços. Ora, com essa previsão – motivos dos crimes –, o Código de 1984, ainda que indiretamente, também acolheu a teoria objetivo-subjetiva. Merece, entretanto, ser ressaltado, que a corrente objetiva, contemplada tanto no § 2o, do art. 51 (CP/1940) como no caput do art. 71 (CP/1984), teve o grande mérito de possibilitar o reconhecimento da continuidade delitiva não apenas para crimes dolosos, mas, também, para os crimes culposos. Nesse sentido, a hipótese de um comerciante que, violando o dever de cautela, vende, por diversas vezes, no seu estabelecimento, determinado tipo de mercadoria em condições impróprias ao consumo (art. 7o, IX, e parágrafo único, da Lei no 8.137/1990), permitiria o reconhecimento, em seu favor, do delito continuado culposo. O STJ já teve a oportunidade de enfrentar a presente questão, mais especificamente com relação à possibilidade de haver crime continuado na chamada “criminalidade profissional”. Na ocasião, aquela Corte filiou-se à moderna doutrina de cunho objetivo-subjetiva, entendendo que, para a caracterização do crime continuado, torna-se necessário que os atos criminosos isolados apresentem-se “subjetivamente enlaçados”, os subsequentes ligados aos antecedentes, ou porque fazem parte do mesmo projeto criminoso, ou porque resultam de ensejo, ainda que fortuito, proporcionado ou facilitado pela execução desse projeto (aproveitamento da mesma oportunidade).24 27.5.1.1. A noção de dolo continuado
Como visto, no âmbito do Superior Tribunal de Justiça, tem-se exigido que para além da semelhança de tempo, modo e lugar, há de ser aferido o aspecto subjetivo das condutas empreendidas pelo infrator, condição esta necessária para o reconhecimento do crime continuado. Exigir-se-ia, assim, aquilo que foi anteriormente mencionado, segundo um plano, do que aquele que se determina de caso em caso, à repetição estimulada pela anterior impunidade, que lhe afrouxa os motivos da consciência, e seduzido pela permanência ou reiteração de uma oportunidade particularmente favorável.” (Idem, p. 167). 23. E. M. do CP/1984, item 59. 24. REsp 507. STJ. Min. Assis Toledo. Quinta Turma. In RSTJ 12/278. No mesmo sentido: “1. Para a caracterização da continuidade delitiva, é imprescindível o preenchimento dos requisitos objetivos (mesmas condições de tempo, espaço e modus operandi) e subjetivo (unidade de desígnios). (...)” (HC 151012. STJ. Min. Gilson Dipp. Quinta Turma. DJ de 06/12/2010). 446
Capítulo XXVII | Concurso de crimes
ou seja, a presença do dolo global – a realização sucessiva de um todo orquestrado unitariamente.25 Exemplo: “A”, aproveitando-se de determinada situação propícia, realiza o plano de subtrair todo o rebanho bovino da propriedade de “B”, executando-o por intermédio de uma sequência regular e idêntica de furtos de gado (abigeato).
Ocorre, porém, que a figura do dolo global enfrenta dificuldades de comprovação empírica. Na prática, ele pressuporia que o infrator, já na primeira conduta, agisse querendo enfeixar toda a cadeia futura de infrações, o que nem sempre se verifica. O mais das vezes, é a impunidade do fato anterior, aliado à repetição das mesmas condições propícias, que move a comissão reiterada da mesma infração. Em suma, haveria, no agente, uma paulatina diminuição dos freios inibitórios. Sendo assim, àquela ideia do dolo global, tem-se preferido, doutrinariamente, que se deva exigir, para a caracterização da continuidade delitiva, a presença do chamado dolo continuado, entendido, empiricamente, como o fracasso psíquico, sempre homogêneo, no autor, quando presente a mesma situação fática.26 27.5.2. Natureza jurídica do crime continuado
Com relação à natureza jurídica do crime continuado, há três teorias: (1) unidade real; (2) ficção jurídica; e (3) espécie particular de infração (ou, simplesmente, teoria mista). Segundo a primeira corrente, as sucessivas condutas típicas obedecem a uma sequência natural, formando um todo. O tratamento legal unificado nada mais seria do que o reconhecimento da natureza das coisas. Segundo Roberto Lyra, não é o legislador quem empresta essa unidade à continuação, mas, justamente o inverso, esta é que lhe impõe, pela evidência, o reconhecimento de que corresponde a uma verdadeira realidade psicológica e humana.27 Por sua vez, a teoria da ficção jurídica, sustenta que a figura do crime continuado é uma construção legal, pois, não fosse a norma que determina a aplicação da pena única exasperada, estaríamos diante do concurso material de delitos, ante a pluralidade de comportamentos. Numa palavra, é o legislador que presume a existência de um só crime.28 A teoria mista sustenta que a tese da unidade real seria um contrassenso, negada pela própria realidade das coisas. Não menos criticável é a ideia da ficção jurídica, pois, do contrário, todo e qualquer crime também seria uma ficção, posto competir ao legislador a definição do crime e da pena (princípio da legalidade). Sendo assim, a continuidade delitiva constituiria uma espécie particular de infração, qual seja, a do “crime de concurso”.29 25. 26. 27. 28. 29.
Jescheck, Hans-Heinrich; Weigend, Thomas. Op. cit., p. 771. Idem, p. 772. Lyra, Roberto, op. cit., p. 446. Como se percebe, a teoria da unidade real representa o corolário da teoria objetivo-subjetiva. Cf. Jesus, Damásio Evangelista de. Op. cit., p. 604. Bitencourt, Cezar Roberto. Op. cit., p. 645. 4 47
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Outrossim, cumpre assinalar que a doutrina brasileira inclina-se pela teoria da ficção jurídica. Os nossos doutrinadores consideram que é a lei que presume, por razões de Política Criminal, a existência de crime único, considerando os demais como prosseguimento do primeiro tão somente para a finalidade de dar um tratamento punitivo mais brando. Para todos os demais efeitos, inclusive a contagem do prazo prescricional, a continuidade delitiva deixa de ser considerada uma entidade única.30 27.5.3. Requisitos do crime continuado
Os pressupostos do crime continuado são: (1) pluralidade de condutas; (2) pluralidade de delitos da mesma espécie; e (3) homogeneidade das circunstâncias. A) Pluralidade de condutas
O primeiro requisito exige que se tratem de duas ou mais ações ou omissões, ainda que desdobradas em diversos atos. Se existir, ao invés de várias, uma única conduta, estar-se-á diante ou do concurso formal, caso acarrete o cometimento de dois ou mais resultados, ou do concurso aparente de normas, caso se cuide de resultado único. Portanto, a pluralidade de condutas é o que caracteriza a figura da continuidade delitiva, aproximando-a, assim, do concurso material. Contudo, diferentemente deste último, o crime continuado contempla outros dois requisitos. B) Pluralidade de delitos da mesma espécie
Os delitos que compõem o crime continuado devem ser da mesma espécie. Parte da doutrina considera crimes da mesma espécie aqueles que contêm as mesmas elementares típicas, ainda que, no caso concreto, possam ser condutas que se amoldem às formas tentada e consumada, ou, ainda, aos preceitos básicos, privilegiados e qualificados.31 Porém, outros consideram crimes da mesma espécie como sendo aqueles que violem o mesmo bem jurídico, apresentando semelhanças nos seus preceitos fundamentais, ainda que em tipos diferentes.32 Sobre o assunto, ao julgar habeas corpus onde se pleiteava o reconhecimento da continuidade delitiva entre os delitos de roubo (art. 157, do CP) e de latrocínio (art. 157, § 3o, do CP), o STF firmou entendimento no sentido de ser inadmissível a continuidade delitiva, uma vez que não se cuidam de crimes da mesma espécie, tendo em vista a falta de correlação representada pela lesão do mesmo bem jurídico.33 No mesmo sentido
30. Cf.: “Nosso CP adotou a teoria da ficção jurídica, para fins exclusivos de aplicação da pena, visando atenuar a sanção penal, atento à política criminal que inspirou o instituto.” (Bitencourt, Cezar Roberto. Op. cit., p. 645). 31. Jesus, Damásio Evangelista de. Op. cit., p. 597. 32. Cf. Bitencourt, Cezar Roberto. Op. cit., p. 645. Roberto Lyra, em abono dessa corrente, lembra que o próprio Código, quando cuida do concurso material e do concurso formal, refere-se a crimes idênticos, ao passo que, no crime continuado, a lei penal se refere a crimes da mesma espécie. (Lyra, Roberto. Op. cit., p. 449). 33. HC 87089. STF. Min. Cezar Peluso. Segunda Turma. DJ de 26/06/2009. 4 48
Capítulo XXVII | Concurso de crimes
é a jurisprudência dos tribunais superiores acerca dos crimes de roubo e extorsão (art. 158, do CP).34 C) Homogeneidade das circunstâncias
O Código exige, ainda, a semelhança entre as condições de tempo, lugar, maneira de execução, ou seja, as circunstâncias fáticas que compõem a série de infrações, indiciando a existência de um nexo de continuidade delitiva. É preciso que haja uma proximidade temporal, espacial e de modus operandi entre as ações (mesmo tipo de arma, identidade de comparsas ou da forma de se aproximar da vítima etc.). É claro que esses indicadores dependerão da modalidade do delito. Sendo assim, para certos ilícitos patrimoniais, como, por exemplo, o furto (art. 155, do CP), a doutrina considera pertinente o crime continuado entre infrações perpetradas dentro do espaço de um mês ou nos limites geográficos de um município. Entretanto, para outros, como, por exemplo, o crime de apropriação indébita previdenciária (art. 168-A, do CP), que se pratica “mês a mês”, e empresarialmente, pode-se reconhecer o crime continuado entre comportamentos desenvolvidos ao longo de meses (ou anos) ou entre a sede e a filial da empresa situadas em municípios distintos. Merece ser ressaltado que o presente requisito gera debates nos tribunais, justamente por envolver a dimensão do aproveitamento da periodicidade de tempo, lugar, modo de execução etc. Com efeito, o art. 71, do CP, disciplina que tais condições “devem ser havidas”. Devem, evidentemente, pelo magistrado que, no exame do caso concreto, deve apreciar se, efetivamente, se tratam de fatores indicativos da continuidade delitiva. 27.5.4. Crime continuado contra bens pessoais de titularidades distintas
Outra das muitas polêmicas que envolvem o crime continuado diz respeito ao seu reconhecimento quando as infrações são cometidas contra bens jurídicos personalíssimos (vida, liberdade sexual etc.) de titularidades distintas. A doutrina majoritária posiciona-se contra o seu reconhecimento, visto que, no caso, há solução de continuidade, seja pelo enfoque puramente objetivo (em que um dos pressupostos é, justamente, a identidade do ofendido), seja pela vertente subjetiva (que não admite um dolo global recaindo sobre bens personalíssimos, pois isso não seria, “mentalmente”, um delito único). Nesse sentido, afirma Damásio de Jesus que a morte de “A” não pode ser a continuação da morte de “B”, não sendo crível que aquele que cometa vários estupros contra vítimas diversas seja levado por força de um mesmo desígnio delituoso.35 Na mesma esteira, Jescheck leciona que nos casos de bens personalíssimos ficaria excluído o crime continuado se as diferentes ações particulares se dirijam contra distintos titulares de bens jurídicos. Essa restrição – segundo o autor – se estriba em que, contra bens jurídicos 34. Cf.: “1. Não há continuidade delitiva entre roubo e extorsão porque não são crimes da mesma espécie. Precedentes do STJ e do STF.” (HC 95775. STJ. Min. Maria Thereza Moura. Quinta Turma. DJ de 23/08/2010). 35. Jesus, Damásio Evangelista de. Op. cit., p. 597. 4 49
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personalíssimos, a conduta, o resultado e o conteúdo da culpabilidade de cada ato individual, devem ser comprovados e valorados, na sentença, de forma separada.36 Importa considerar que a nossa jurisprudência se alinhava a esse entendimento, tendo sido, inclusive, editada a Súmula 605, do STF, com o seguinte teor: “Não se admite continuidade delitiva nos crimes contra a vida”. Contudo, a Reforma de 1984 adotou, justamente, a corrente inversa (e minoritária), rompendo, assim, com a sistemática então vigente. Em suma, passou-se a admitir, expressamente, a ocorrência de crime continuado contra diversas vítimas. Em contrapartida, o legislador facultou ao juiz a aplicação da pena única exasperada em até o triplo: nos crimes dolosos, contra vítimas diferentes, cometidos com violência ou grave ameaça à pessoa, poderá o juiz, considerando a culpabilidade, os antecedentes, a conduta social e a personalidade do agente, bem como os motivos e as circunstâncias, aumentar a pena de um só dos crimes, se idênticas, ou a mais grave, se diversas, até o triplo, observadas as regras do parágrafo único dos arts. 70 e 75, do CP. A razão para essa mudança de orientação legal seria a de que, pela sistemática legal anterior (art. 51, § 2o, do CP/1940) não ficava descartada, expressamente, a possibilidade do reconhecimento da continuidade delitiva em crimes violentos contra diversas pessoas. A lei era, no particular, omissa, o que poderia redundar num tratamento punitivo mais brando para infratores que necessitavam de penas mais severas. E, se a lei não distinguia entre bens pessoais e impessoais, seria bastante questionável se o intérprete pudesse fazê-lo, em que pese o teor da mencionada Súmula 605 do STF.37 A opção do CP/1984 pela doutrina minoritária admissível da continuidade delitiva para crimes que atentem contra bens personalíssimos de distintos lesados, teria objetivado, portanto, impedir a construção de interpretações que pudessem beneficiar os autores de delitos violentos, tais como os conhecidos serial killers ou matadores em série. Sendo assim, muito mais do que uma cautela do legislador, cuidou-se, na verdade, de um recrudescimento político-criminal, até porque a pena pode ser elevada até o triplo. Polêmicas à parte, a regra do parágrafo único do art. 71, do CP, exige, para a sua incidência, a concorrência dos seguintes requisitos: (1) crimes dolosos; (2) diversidade de vítimas; e (3) cometimento com violência ou grave ameaça à pessoa. Faltando algum desses pressupostos, a disposição não será aplicada, podendo, a depender do caso concreto, restar caracterizado o crime continuado do caput do art. 71, do CP, ou, eventualmente, a figura do concurso material do art. 69, do CP. O citado dispositivo prevê, como dito, que a pena poderá ser aumentada até o triplo. Embora conste o patamar máximo, não é feita menção ao patamar mínimo. Para tanto, 36. Jescheck, Hans-Heinrich; Weigend, Thomas. Op. cit., p. 771. 37. Cf.: “O projeto optou pelo critério que mais adequadamente se opõe ao crescimento da criminalidade profissional, organizada e violenta, cujas ações se repetem contra vítimas diferentes, em condições de tempo, lugar, modos de execução e circunstâncias outras, marcadas por evidente semelhança. Estender-lhe o conceito de crime continuado importa em beneficiá-la, pois o delinquente profissional tornar-se-ia passível de tratamento penal menos grave que o dispensado aos criminosos de ocasião. (...) A Política Criminal atua, neste passo, em sentido inverso, a fim de evitar a libertação prematura de determinadas categorias de agentes, dotados de acentuada periculosidade.” (E. M. do CP/1984, item 59). 450
Capítulo XXVII | Concurso de crimes
faz-se necessária a adoção da interpretação sistêmica, ou seja, o quantum mínimo de elevação deve ser buscado no caput do art. 71, do CP, vale dizer, a quantidade de 1/6 (um sexto). Por fim, cumpre registrar que a pena a ser individualizada não poderá ultrapassar o limite correspondente ao cúmulo material, bem assim o seu tempo efetivo de cumprimento deve ficar adstrito à quantidade de trinta anos (art. 71, parág. único, parte final, do CP). 27.5.5. A questão da continuidade delitiva nos crimes sexuais
Durante muito tempo se discutiu, na doutrina e jurisprudência, acerca da possibilidade da continuidade delitiva entre estupro e atentado violento ao pudor (arts. 213 e 214, do CP), praticados contra a mesma vítima. Isso porque, sendo ambos delitos contra a liberdade sexual, atingiriam, igualmente, o mesmo bem jurídico. Todavia, o entendimento da maioria da jurisprudência era no sentido do não reconhecimento da continuidade delitiva.38 No entanto, sobreveio a Lei no 12.015/2009 que, dentre outras providências, unificou as duas figuras delituosas no mesmo tipo penal, consoante a redação atual do art. 213, do CP, fazendo com que a polêmica recebesse novos contornos, uma vez que resta inequivocamente atendido o requisito de crimes da mesma espécie, no caso, capitulados no mesmo dispositivo legal. Sendo assim, decidiu o STF que, com a edição da Lei no 12.015/2009, torna-se possível o reconhecimento da continuidade delitiva dos antigos delitos de estupro e atentado ao pudor, quando praticados nas mesmas circunstâncias de tempo, modo e local e contra a mesma vítima.39 Por se tratar de reconhecimento de lei penal mais benéfica (art. 5o, XL, da CF/1988, e art. 2o, parágrafo único, do CP) retroage alcançando os processos em andamento, bem como aqueles já transitados em julgado, competindo, no último caso, ao juízo das execuções penais (Súmula 611, do STF), proceder a nova dosimetria da pena, afastando o concurso material e aplicando a regra do crime continuado.40 27.5.6. Crime continuado e concurso formal no mesmo caso concreto
Pode acontecer, na hipótese fática submetida à apreciação judicial, de ser necessário proceder a dosimetria da pena levando em conta tanto o concurso formal como o crime continuado. Exemplo: “A”, com o intuito de obter vantagem indevida, em detrimento de empresa seguradora, ateia fogo em seu automóvel, causando incêndio em via pública (art. 171, § 2o, V, c/c art. 250, caput, do CP). Na semana seguinte, valendo-se das mesmas circunstâncias de 38. Cf. HC 86238. STF. Pleno. Min. Ricardo Lewandowski. DJ de 05/02/2010. 39. HC 86110. Min. Cezar Peluso. Segunda Turma. DJ de 02/03/2010. No mesmo sentido: HC 99544. STF. Min. Ayres Britto. Segunda Turma. DJ de 01/02/2011. 40. Cf. HC 94636. STF. Min. Joaquim Barbosa. Segunda Turma. DJ de 24/09/2010. No mesmo sentido: HC 114054. STJ. Min. Og Fernandes. Sexta Turma. DJ de 05/04/2010. 4 51
Curso de Direito Penal | Parte Geral
tempo, lugar, modo de execução, “A” incendeia seu segundo automóvel, objetivando receber o valor do seguro contra a mesma seguradora.
Sobre o assunto, a pena deve ser calculada com a prevalência do crime continuado, restando absorvido o concurso formal. Isso porque a finalidade de ambos os institutos é o de mitigar a punição, por intermédio do sistema da exasperação, razão pela qual a norma que regula o crime continuado contém acréscimo mais abrangente do que a do concurso formal. Conforme decidido pelo STF, a regra do concurso formal foi concebida em favor do réu e só há de ser aplicada quando efetivamente lhe trouxer proveito. Desta maneira, havendo, entre os crimes, nexo de continuidade delitiva e concurso formal, apenas um aumento de pena – o do crime continuado – deve prevalecer.41
27.6. Erro na execução (aberratio ictus )
O
– ou aberratio ictus – verifica-se na hipótese em que o agente, por acidente ou erro no uso dos meios de execução, ao invés de atingir a pessoa que pretendia ofender, atinge pessoa diversa. Segundo o art. 73, do CP, quando isto se verifica, o agente deve ser apenado como se tivesse praticado o delito contra aquela que pretendia atingir, conforme a regra preconizada pelo art. 20, § 3o, do CP (erro sobre a pessoa). erro na e xecução
Exemplo: “A”, querendo matar “B”, atira em sua direção, mas por sua má pontaria ou porque “B”, nesse exato instante, abaixara-se para amarrar os sapatos, alveja o peito de “C”, causando-lhe a morte.
No exemplo, “A” responderá como se tivesse, de fato, alvejado “B”, não se considerando, portanto, as condições ou qualidades da pessoa atingida (“C”). Alude-se, assim, às expressões vítima real e vítima virtual – a pena a ser imposta levará em conta as condições ou qualidades da vítima virtual ao invés da vítima real. A rigor, tratar-se-ia de concurso formal entre homicídio tentado e homicídio culposo (arts. 121, c/c 14, II, e art. 121, § 3o, do CP). No entanto, por força do princípio da absorção, supra mencionado, a lei considera o fato crime único, mas como se tivesse sido atingida a pessoa visada.42 Cuida-se, portanto, de uma regra pertinente à dosimetria da pena. Se, naquele exemplo, a vítima virtual fosse o pai do agente e, a vítima real, um desconhecido, ele 41. RE 101925. STF. Min. Francisco Rezek. Segunda Turma. DJ de 14/03/1986. Em sentido contrário: “1. Correto o acórdão impugnado, ao admitir, sucessivamente, os acréscimos de pena, pelo concurso formal, e pela continuidade delitiva (arts. 70, caput, e 71, do CP), pois o que houve, no caso, foi, primeiramente, um crime de estelionato consumado contra três pessoas e, dias após, um crime de estelionato tentado contra duas pessoas inteiramente distintas. Assim, sobre a pena-base deve incidir o acréscimo pelo concurso formal, de modo a ficar a pena do delito mais grave (estelionato consumado) acrescida de, pelo menos, um sexto até metade, pela coexistência do crime menos grave (art. 70). E como os delitos foram praticados em situação que configura a continuidade delitiva, também o acréscimo respectivo (art. 71) é de ser considerado. 2. Rejeita-se, pois, com base, inclusive, em precedentes do STF, a alegação de que os acréscimos pelo concurso formal e pela continuidade delitiva são inacumuláveis, em face das circunstâncias referidas.” (HC 73821. STF. Min. Sydney Sanches. Primeira Turma. DJ de 25/06/1996). 42. Cf. Fragoso, Heleno Cláudio. Op. cit., p. 447. 4 52
Capítulo XXVII | Concurso de crimes
deverá responder pela agravante do art. 61, II, “e”, do CP. Diferentemente, se a vítima virtual fosse um adulto que provocara, injustamente, o agente e, a vítima real, uma criança, deverá ser aplicada a atenuante do art. 65, III, “c”, do CP, desprezando-se, na mesma medida, a agravante do art. 61, II, h”, do CP. Atente-se que, no erro na execução, o agente representa corretamente a conduta a ser efetuada. Porém, erra no golpe desferido. No entanto, a solução legal é a mesma para a figura do erro de tipo acidental do § 3o, do art. 20, do CP (error in persona). Trata-se, no caso, de aberratio ictus com unidade simples. A segunda parte do art. 73, do CP, regula a aberratio ictus com unidade complexa, ou seja, quando também é atingida a pessoa que o agente pretendia ofender. Nesta hipótese, não se aplica o princípio da absorção, mas, sim, a regra geral do concurso formal próprio ou impróprio (princípio da exasperação ou do cúmulo material). Sendo assim, naquele exemplo, se “A” atinge “B” e, involuntariamente, por inabilidade no disparo da arma, também acerta “C”, responderá pelos dois resultados, na forma do concurso formal próprio (art. 70, caput, 1a parte, do CP). Entretanto, se ao atirar em “B”, assumiu o risco do projétil também atingir “B”, “A” deve responder pelo concurso formal impróprio (art. 70, caput, parte final), tendo em vista tratarem-se de desígnios autônomos do agente.43
27.7. Resultado diverso do pretendido (aberratio delicti )
O
pretendido – ou aberratio delicti – verifica-se quando, fora dos casos de ofensa à pessoa (art. 73, do CP), o agente, por acidente ou erro na execução do crime, vem a atingir bem jurídico de outra natureza. Segundo o art. 74, do CP, nesta hipótese, o agente responde por culpa, se o fato é previsto como crime culposo; se ocorre também o resultado pretendido, aplica-se a regra do art. 70, do Código. resultado diverso do
Exemplo: “A”, querendo quebrar a vitrina da loja de “B”, atira um paralelepípedo que acerta não somente a vitrina, mas, também, o freguês “C” que estava dentro da loja. “A” responderá pelo delito de dano (art. 163, do CP) em concurso formal com lesão corporal culposa (art. 129, § 6o, do CP).
Vê-se, assim, que enquanto o art. 73, do CP, trata de erro na execução de pessoa a pessoa, o art. 74, regula o erro quando os bens jurídicos virtual e real são de natureza distinta. No caso vertente, a aplicação da pena pelo resultado diverso do pretendido dependerá da previsão da sua modalidade culposa. Exemplo: Se “A’, querendo agredir o pedestre “B”, atira-lhe um paralelepípedo, atingindo não apenas o corpo de “B”, mas também a vitrina da loja de “C”, responderá pela lesão 43. Cf. Bitencourt, Cezar Roberto. Op. cit., p. 652. 4 53
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corporal dolosa (art. 129, caput ou §§, do CP), mas não pela destruição da vitrina, tendo em vista não existir delito de dano culposo.
Com relação ao delito realmente pretendido pelo agente que errou na sua execução, responderá pelo mesmo na modalidade consumada ou tentada (art. 14, I ou II, do CP).
27.8. Limite máximo do cumprimento de pena e Súmula 715 do STF
C
início do capítulo, o último princípio regulador do concurso de crimes é o da vedação de penas de caráter perpétuo. Trata-se do corolário do princípio consagrado no texto constitucional (art. 5o, XLVII, CF/1988), que repugna ao ordenamento jurídico brasileiro a aplicação, em tempo de paz, da pena de morte, bem assim de prisão perpétua, ambas as sanções tratadas, pari passu, nas legislações que as adotam e na doutrina, como integrantes da mesma categoria de “penas eliminatórias”.44 Em atenção àquele postulado, o art. 75, caput, do CP, determina que o tempo de cumprimento das penas privativas de liberdade não pode ser superior a 30 (trinta) anos. Atente-se que embora previsto no art. 75, do CP, a regra é extensível à legislação penal especial, bem como para o tempo de internação ou tratamento ambulatorial daquele submetido à medida de segurança (art. 97, § 1o, do CP), conforme exposto no Capítulo XXXIII. Na hipótese do agente ser condenado a penas privativas de liberdade cuja soma ultrapasse 30 (trinta) anos, devem elas ser unificadas para atender ao limite máximo em questão (art. 75, § 1o, do CP). omo visto no
Exemplo: “A” é condenado, em processos distintos, às penas de 10, 15 e 20 anos de reclusão. Quando do início do cumprimento das penas, o Juiz da Execução Penal unificará as penas em 45 anos, a fim de que “A” não cumpra tempo superior a 30 anos.
No entanto, a unificação determinada pelo art. 75, § 1o, do CP, vale tão somente para efeitos de cumprimento das penas privativas de liberdade, não sendo aplicável para obtenção de benefícios prisionais, como, por exemplo, progressão de regime, livramento condicional, indulto etc. Nesse sentido, consolidando a jurisprudência dos tribunais superiores, o STF editou a Súmula 715, com o seguinte teor: “A pena unificada para atender ao limite de trinta anos de cumprimento, determinada pelo art. 75, do CP, não é considerada para a concessão de outros benefícios, como o livramento condicional ou regime mais favorável de execução”. Caso sobrevenha condenação por fato praticado após o início do cumprimento da pena, deve-se proceder a uma nova unificação de trinta anos para fins de cumprimento, desprezando-se, para tanto, o período de pena já descontado (art. 75, § 2o, do CP). 44. Cf. Ext. 426. STF. Pleno. Min. Rafael Mayer. DJ de 18/10/1985. 454
Capítulo XXVII | Concurso de crimes
Exemplo: “A”, condenado ao total de 45 anos, recebe a unificação das penas, para fins de cumprimento, em 30 anos. Após 5 anos de pena cumprida, “A” é condenado definitivamente a 10 anos de reclusão por fato praticado no início do desconto das penas. As penas serão novamente unificadas, desprezando-se o tempo já cumprido. Se antes faltavam 25 anos, com a nova unificação, deverá cumprir 30 anos de reclusão.
Segundo alguns doutrinadores, conquanto justificável para obstar o cumprimento de penas de cunho perpétuo, a regra do § 2o, do art. 75, do CP, pode, na prática, transformar-se em um estímulo à impunidade para aqueles que, com as penas unificadas em 30 anos, não tivessem nada a perder e praticassem inúmeras infrações logo no seu ingresso no estabelecimento prisional. Dessa maneira, Cezar Bitencourt, reportando-se a Basileu Garcia, sugere a introdução de dispositivo que faculte a imposição de um acréscimo sobre o limite máximo do art. 75, caput, do CP, “para o caso de crime cometido supervenientemente à condenação irrecorrível”.45
45. Bitencourt, Cezar Roberto. Op. cit., p. 653. 455
título
IV
capítulo
teoria ger a l da sa n ção p en a l
XXVIII
TRANSAÇÃO PENAL 28.1. Considerações gerais
P
o entendimento no sentido de que a pena de privação da liberdade deve ser adstrita aos casos de evidente necessidade, tendo em vista os efeitos criminógenos do encarceramento. Dessa forma, foram sendo desenvolvidos estudos voltados para a adoção de substitutivos prisionais idôneos o bastante para atender às finalidades da pena criminal. Esse movimento doutrinário condicionou as reformas legislativas, remodelando, direta ou indiretamente, o Direito Penal contemporâneo. A pena de prisão, nesse gradual processo de transformação das práticas punitivas, é encarada, tão somente, como um mal necessário, funcionando como ultima ratio de todo o sistema punitivo.1 Diante disso, denominam-se alternativas penais todos os institutos voltados para impedir ou substituir a pena privativa de liberdade, bem como abreviar o seu tempo de duração. Trata-se, portanto, de um conceito amplo, que enfeixa, como espécies, as penas alternativas, a multa, a transação penal, a suspensão condicional do processo, a suspensão condicional da pena e o livramento condicional, além de outros preponderantemente processuais ou próprios da execução penal, tais rep onder a , na atualidade ,
1. Cf. as palavras de Hans Schultz: “A imposição da pena não é um acontecimento metafísico, mas, sim, uma amarga necessidade em uma sociedade imperfeita como é a sociedade que constituída pelos homens.” (Polaino Navarrete, Miguel. Derecho Penal. Parte General. Tomo I. 5. ed. Barcelona: Bosch, 2004, p. 71). 456
Capítulo XXVIII | Transação penal
como a fiança, a liberdade provisória, a graça, o indulto, a comutação de pena, a saída extramuro, a vigilância eletrônica etc. Interessa, nesse quadrante, compreender e analisar a transação penal, a suspensão condicional do processo, a suspensão condicional da pena e o livramento condicional.2 Acresce-se, de imediato, que os dois últimos foram introduzidos, no Brasil, há quase um século, ao passo que os dois primeiros surgiram em época relativamente recente, ou seja, no bojo da Lei 9.099/1995. Feitas tais considerações, cumpre registrar que o presente capítulo trata do instituto da transação penal, analisando-se, os demais, nos capítulos subsequentes.
28.2. Conceito de transação penal
A
1988, instaurando uma nova ordem jurídica, determinou, no seu art. 98, I, que fossem criados Juizados Especiais destinados ao julgamento de causas cíveis de menor complexidade e de infrações penais de menor potencial ofensivo. Segundo o texto constitucional, esses juizados deveriam adotar o rito sumaríssimo, a oralidade das formas, prevendo, como novidade, a figura da transação penal, tudo com o objetivo de conciliar os interesses da Administração da Justiça, do acusado e do lesado. Saliente-se que, no passado, preponderava o dogma segundo o qual o direito de punir (jus puniendi), por se tratar de um monopólio estatal, era intransigível, inalienável, inegociável. No mesmo sentido, entendia-se que o cidadão, imputado autor do delito, não poderia transigir com o seu direito de liberdade (jus libertatis). Não se podia prescindir do processo penal, meio pelo qual se dirimia a lide entre o jus puniendi e o jus libertatis. Essa concepção absoluta foi sendo mitigada, com a paulatina adoção de uma justiça penal consensual. No Brasil, a CF/1988 rompeu com aquela antiga concepção, introduzindo-se, entre nós, a faculdade de se transigir com aqueles direitos tidos como absolutos (ius puniendi e o ius libertatis). Cumpre observar que tal fenômeno já era há muito presente nos países que seguem o modelo da commom law. Na atualidade, tem sido também adotado pelos países que se filiam ao sistema da civil law. Nesse sentido, Anabela Miranda Rodrigues assinala que, tradicionalmente “monolítica e autoritária”, estranha a toda a forma de transação, a justiça criminal da civil law abre-se à “contratualização”. Segundo a autora, se antes preponderava o caráter “unilateral e vertical”, vê-se, agora, uma “justiça negociada, interativa e horizontal”, que prioriza a composição dos interesses no âmbito de uma “racionalidade dialética”.3 A previsão contida no art. 98, I, da CF/1988, foi implementada pela Lei no 9.099/1995. Dentre outras disposições, a chamada Lei dos Juizados Especiais definiu o que seria Constituição Federal de
2. As penas alternativas (ou restritivas de direitos) e a multa estão analisadas nos Capítulos XXIV e XXV, respectivamente. 3. Rodrigues, Anabela Miranda. Op. cit., p. 143. Agrega a autora que a razão dessa nova “era” decorreria dos seguintes fatores: 1o) a busca da racionalidade e eficácia do aparelho repressivo penal; e 2 o) dos efeitos do movimento de expansão dos direitos do homem (Idem, p. 144). 4 57
Curso de Direito Penal | Parte Geral
infração de menor potencial ofensivo, bem como em que consistiria o instituto da transação penal. Tratou-se de disposição legislativa influenciada por correntes abolicionistas, para as quais, sempre que possível, deve-se evitar a imposição de pena de prisão (despenalização), quando não a própria abolição do crime (descriminalização).4
28.3. Infrações de menor potencial ofensivo
P
da Lei no 9.099/1995, considerava-se inicialmente infrações de menor potencial ofensivo como sendo as contravenções penais e os crimes aos quais fossem cominados pena máxima não superior a um ano, excetuados os casos de previsão de procedimentos especiais (redação primitiva do art. 61, da Lei no 9.099/1995). Como se tratava de diploma voltado para a Justiça Estadual, fez-se necessária a edição da Lei no 10.259/2001, para a criação e regulamentação dos Juizados na esfera federal. Ocorre, contudo, que, para as infrações de potencial ofensivo de competência da Justiça Federal, a Lei no 10.259/2001 elevou aquele limite para o máximo de dois anos. Isso acarretou controvérsias acerca da derrogação ou não do art. 61, da Lei no 9.099/1995, tendo-se chegado a conclusão que, de fato, houve a derrogação. As infrações de menor potencial ofensivo que tramitavam nos Juizados Estaduais também deveriam obedecer ao patamar de dois anos. A Lei no 11.313/2006 uniformizou a matéria, dando nova redação ao art. 61, da Lei 9.099/1995: “Consideram-se infrações penais de menor potencial ofensivo, para os efeitos desta Lei, as contravenções penais e os crimes a que a lei comine pena máxima não superior a 2 (dois) anos, cumulada ou não com multa”. Observe-se, no particular, que não estão mais excluídos do conceito de infração de menor potencial ofensivo os delitos que se submetem à procedimento especial. Em suma, segundo a modelagem atual, o conceito de menor potencial ofensivo engloba todo o ordenamento jurídico-penal, inclusive os delitos eleitorais, falimentares etc. ara os efeitos
28.4. Conceito de transação penal
S
76, da Lei no 9.099/1995, havendo representação ou tratando-se de crime de ação penal pública incondicionada, não sendo caso de arquivamento, o Ministério Público poderá propor a aplicação imediata de pena restritiva de direitos ou multas, a ser especificada na proposta. Embora o referido dispositivo não prime pela clareza, pode-se conceituar a transação penal como sendo o acordo entre o acusador e o imputado autor da infração penal de menor potencial ofensivo, por meio do qual aquele deixa de propor ação penal, bem como de perseguir a aplicação da pena de prisão, em troca da aceitação, por parte deste, do cumprimento imediato de uma pena alternativa, conforme explicitado na respectiva proposta. egund o o art.
4. Shecaira, Sérgio Salomão; Corrêa Jr., Alceu. Teoria da Pena. Finalidades, direito positivo, jurisprudência e outros estudos de ciência criminal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 368. 4 58
Capítulo XXVIII | Transação penal
Como toda e qualquer transação ou concertação de vontades, pressupõe-se que existam vantagens para ambos os lados. Nesse sentido, para o Ministério Público ou o ofendido, nos casos de ação penal privada, a transação penal é vantajosa na medida em que não fica obrigado a propor a ação penal, bem como do ônus probatório correspondente. Desafoga-se, consequentemente, a Justiça Criminal, de uma expressiva quantidade de processos referentes a infrações que atinjam bens jurídicos de menor relevo, permitindo, assim, uma persecução mais racional e célere dos delitos que lesam ou ameaçam bens jurídicos de maior importância. Para o infrator, o interesse maior está na certeza de que não irá sofrer a pena de prisão. Há, também, a conveniência da imediata resolução do conflito em que se envolveu, desobrigando-se do comparecimento aos atos do processo que teria de responder, bem assim aos custos patrimoniais e morais que teria que arcar em virtude da deflagração da ação penal e de uma possível sentença condenatória. Em outros termos, o agente se livra daquilo que a Criminologia denomina de “criminalização secundária”.5 Por outro lado, é certo que, ao abrir mão do processo no qual poderia eventualmente ser absolvido, o agente que aceita a transação penal finda por admitir, ainda que implicitamente, a sua responsabilidade pelo cometimento da respectiva infração penal. O reconhecimento, como dito, é implícito porque a Lei no 9.099/1995 sequer faz menção à sua culpabilidade, conforme se observa da leitura do inciso III, do § 2o, do art. 76. Diante de todos esses fatores, faz-se necessário que o autor do fato manifeste sua concordância com a transação penal de forma consciente e voluntária. Não basta, por óbvio, que ele subscreva uma procuração a alguém com poderes para transigir, pois o que está sendo renunciado é uma parcela da liberdade individual. Ele deve, portanto, estar presente ao ato. Se não puder ser localizado, ficando, assim, caracterizada a sua revelia, a proposta do MP restará inviabilizada. Nesse sentido, o § 3o, do art. 76, da Lei no 9.099/1995, determina que a concordância seja tanto do autor como do seu defensor, além, é claro, de submetida ao controle jurisdicional na respectiva audiência de homologação.6
28.5. Requisitos para a transação penal
A
poderá ser proposta pelo Ministério Público diante da constatação, no caso concreto, dos seguintes pressupostos: transação penal somente
5. A criminalização (ou desviação) primária ocorre com a prática do delito e, a secundária, com a intervenção dos órgãos de controle social formal (polícia, Ministério Público e Judiciário) e os efeitos estigmatizantes que daí decorrem. O ápice desse processo criminológico culmina, segundo a teoria criminológica do etiquetamento (labeling approach) com o desenvolvimento de uma carreira criminal: “A etiqueta de delinquente assumida pelo contato da pessoa com o sistema penal propicia deste modo a realização de novos atos delitivos e funciona como uma ‘profecia que se autocumpre’.” (Cid Moliné, José; Larrauri Pijoan, Elena. Teorías criminológicas. Barcelona: Bosch, 2001, p. 206). 6. Cf.: “Inexiste ilegalidade na falta de oferecimento do benefício de transação penal quando o indiciado não é encontrado para a audiência preliminar e, regularmente intimado, deixa de comparecer à audiência de instrução e julgamento, inviabilizando a proposta de benefícios da Lei no 9.099/95.” (RHC 22372. STJ. Min. Laurita Vaz. Quinta Turma. DJ de 08/02/2010). 4 59
Curso de Direito Penal | Parte Geral
A) Que se trate de infração de menor potencial ofensivo
Conforme mencionado, o art. 61, da Lei no 9.099/1995, com a redação alterada pela Lei no 11.313/2006, considera infração de menor potencial ofensivo como sendo todas as contravenções penais, bem como os crimes cuja pena privativa de liberdade, abstratamente cominada, não seja superior a dois anos. B) Que o autor da infração não tenha sido condenado, pela prática de crime, à pena de prisão, por sentença definitiva
Cuida-se de requisito previsto no art. 76, § 2o, I, da Lei no 9.099/1995. Não basta que o fato se amolde ao conceito de infração de menor potencial ofensivo, exigindo-se, ainda, que o infrator possua determinados atributos que o fazem merecedor do tratamento penal mais brando. Nesse sentido, a circunstância de já ter sofrido condenação à pena de prisão, por sentença transitada em julgado, inviabiliza a formulação da proposta. Todavia, em homenagem à presunção de inocência, o acordo poderá ser feito se não houver sentença definitiva, estando o caso, por exemplo, em grau de recurso. Na mesma esteira, se o autor tiver tido a pena anterior substituída por pena alternativa ou tiver se beneficiado da suspensão da pena poderá obter a transação penal. Acresça-se, ainda, que a condenação pela prática de contravenção penal não impede a formulação da transação. C) Que o agente não tenha sido beneficiado anteriormente, no prazo de cinco anos, pela aplicação de pena restritiva ou multa, nos termos da Lei n o 9.099/1995
O requisito do inc. II, do § 2o, do art. 76, da Lei no 9.099/1995, justifica-se por cautela político-criminal, qual seja, de somente permitir a transação penal para determinada categoria de infrator. Por conta disso – e para se evitar uma “banalização” do instituto –, aquele que foi beneficiado com a transação penal não poderá, no espaço de tempo de cinco anos, obter idêntico benefício. É interessante observar que este é o único efeito “negativo” do acordo formulado entre as partes, pois, conforme os §§ 4o e 6o, do mesmo dispositivo legal, a transação penal não gera reincidência nem poderá constar como registro de maus antecedentes.7 D) Que os antecedentes, a conduta social e a personalidade do agente, bem como os motivos e as circunstâncias, indicarem a necessidade e suficiência da adoção da medida
Não obstante o preenchimento dos requisitos anteriores, é possível que, no caso concreto, a concessão da transação penal se demonstre inadequada, tendo em vista condições objetivas e subjetivas relacionadas com o agente ou com a dinâmica dos fatos. 7. Observe-se que essa “cautela” da Lei n o 9.099/1995 não foi repetida para o caso de usuário de drogas, cf. art. 28, e §§, da Lei no 11.343/2006 (Lei de Drogas). O infrator beneficiado com as penas alternativas ali cominadas poderá, a qualquer tempo, recebê-las novamente, sofrendo, na pior das hipóteses, uma ampliação para seu cumprimento, passando de cinco para dez meses. 460
Capítulo XXVIII | Transação penal
Poderá o MP deixar de formular ou, caso o faça, poderá o juiz deixar de homologar a transação penal, quando não recomendarem os quatro fatores anteriormente pormenorizados. É preciso, contudo, que seja devidamente fundamentado o motivo da recusa. Diferentemente do art. 59, caput, do CP, este dispositivo não contempla as circunstâncias judiciais da culpabilidade, das consequências do crime e do comportamento da vítima.
28.6. Período de prova da transação penal
N
alternativas penais, período de prova significa o espaço de tempo dentro do qual devem ser atendidas as condições impostas àquele que recebeu a medida substitutiva da privação da liberdade. No caso da transação penal, o seu período de prova importa no cumprimento da pena restritiva de direitos ou multa, pactuada pelas partes e homologada judicialmente (art. 76, § 4o, da Lei no 9.099/1995). Na prática, os Juizados Especiais Criminais costumam fixar um curto período de prova, vale dizer, de poucos meses, em se tratando do cumprimento de pena restritiva de direitos. A pena de multa, homologada, deve ser paga na Secretaria do Juizado (art. 84, da Lei no 9.099/1995). Devidamente cumpridas as condições impostas, deverá o juiz declarar extinta a punibilidade do agente, consoante o disposto no art. 76, § 6o, e art. 84, parágrafo único, da Lei no 9.099/1995. o terreno das
28.7. Descumprimento injustificado e revogação
I
de prova, pode ocorrer do beneficiado não cumprir as condições impostas pela transação penal. Em tal hipótese, deve-se perquirir o motivo do descumprimento, via de regra por intermédio de uma audiência especial. Caso as razões sejam reputadas injustificadas ou, ainda, caso a parte sequer compareça àquela audiência, a consequência será a revogação da medida. Os efeitos da revogação dependerão da natureza da pena aplicada na transação penal. Na hipótese de ter sido aplicada uma multa, a regra inicialmente contida no art. 85, da Lei no 9.099/1995 (conversão da multa em pena privativa de liberdade ou restritiva de direitos), foi derrogada pela Lei no 9.268/1996, que deu nova redação ao art. 51, do CP. Portanto, caso não seja paga, a multa será considerada dívida de valor, aplicando-se-lhe as normas da legislação relativa à dívida ativa da Fazenda Pública (Capítulo XXV). Entretanto, na hipótese de a transação redundar na obrigação do cumprimento de pena restritiva de direito, a Lei no 9.099/1995 não disciplinou qual seria a respectiva consequência jurídica. Diante dessa lacuna, instaurou-se grande controvérsia acerca da correta solução. Inúmeras foram as teses propugnadas, tanto pela doutrina como pela jurisprudência, merecendo ser destacadas as principais. São elas: niciado o período
4 61
Curso de Direito Penal | Parte Geral
A) Retorno ao status quo ante com a deflagração da ação penal pelo Ministério Público
Segundo esse entendimento, na hipótese de descumprimento da pena restritiva imposta na transação penal, há a incidência de uma espécie de condição resolutiva tácita, ou seja, o desfazimento do pactuado com o retorno ao status quo ante. Sendo assim, competirá ao órgão acusador reassumir o caso, instaurando inquérito policial ou deflagrando a respectiva ação penal, seguindo-se, a partir daí, os trâmites regulados nos arts. 77 e segs. da Lei no 9.099/1995. Cuida-se de corrente reiteradamente acolhida pela jurisprudência do STF.8 Porém, alguns a criticam sob o argumento de que esta solução violaria o princípio da coisa julgada, consubstanciada no acordo que fora homologado em juízo. B) Conversão da restritiva de direito em privativa de liberdade
Para essa corrente, a transação homologada e publicada não pode mais ser revista, por conta dos efeitos de imutabilidade do trânsito em julgado. Não seria, portanto, factível o retorno ao status quo ante, pois é inadmissível, no processo penal, que se proceda a uma revisão em desfavor do réu. Dessa maneira, com base no art. 86, da Lei no 9.099/1995, o correto seria executar a pena restritiva de direito junto ao órgão competente, o que, no caso, redundaria na sua conversão em privativa de liberdade (art. 44, § 4o, do CP, e art. 181, da LEP). Trata-se de solução preferencialmente acolhida pela jurisprudência do STJ.9 Contudo, ela esbarraria no óbice da aplicação automática de uma pena de prisão sem que sequer tivesse havido processo que lhe antecedesse, em afronta aos princípios do devido processo legal, contraditório e da ampla defesa (art. 5o, LIV e LV, da CF/1988). C) Homologação da transação somente após o cumprimento das condições
Diante da insegurança decorrente das decisões divergentes nos tribunais superiores, muitos julgados passaram a somente homologar formalmente a transação penal após o efetivo cumprimento das condições. Procedia-se, assim, a uma espécie de homologação prévia, mas sem o encerramento oficial do processo, ficando a homologação definitiva pendente da comprovação de que o beneficiado cumpriu a pena restritiva de direito que lhe fora aplicada. Desse modo, estaria superada, formalmente, a polêmica sobre 8. Cf.: “Descumprida a transação penal, há de se retornar ao status quo ante a fim de possibilitar ao Ministério Público a persecução penal (precedentes). A revogação da suspensão condicional decorre de autorização legal, sendo ela passível até mesmo após o prazo final para o cumprimento das condições fixadas, desde que os motivos estejam compreendidos no intervalo temporal delimitado pelo juiz para a suspensão do processo (precedentes). Ordem denegada.” (HC 88785. STF. Min. Eros Grau. Segunda Turma. DJ de 13/06/2006). 9. Cf.: “Segundo a orientação dominante nesta Corte, uma vez homologada por sentença a transação penal, o descumprimento da prestação acordada não gera a reabertura da persecutio criminis, porquanto inviável a quebra da coisa julgada material. Por isso, o oferecimento da denúncia e o procedimento daí resultante se afiguram incorretos, cabendo o reconhecimento do constrangimento ilegal. Ordem concedida para anular a ação penal.” (HC 28057. STJ. Min. Arnaldo da Fonseca. Quinta Turma. DJ de 04/03/2004). 4 62
Capítulo XXVIII | Transação penal
os efeitos da coisa julgada, permitindo-se, caso se detectasse o descumprimento da medida, que o MP instaurasse inquérito ou prosseguisse com a ação penal.10 A crítica formulada contra essa corrente é a de que ela importaria numa burla de etiquetas, pois, apesar da terminologia empregada, a homologação prévia seria, a rigor, a verdadeira homologação da transação penal. A previsão da segunda homologação apenas serviria para driblar os óbices levantados contra as correntes anteriores. D) Execução civil do título homologado
Trata-se de proposição feita por Cezar Bitencourt. Segundo o autor, as soluções precedentes apresentam defeitos intransponíveis. A primeira, violaria o princípio da coisa julgada; a segunda, careceria de previsão legal que autorizasse a conversão em pena de prisão; a terceira, seria equivocada, pois não se pode exigir previamente o cumprimento definitivo de uma sanção. Desse modo, ele defende que a melhor solução seria, no caso de descumprimento da transação penal, que se procedesse a execução forçada, no juízo cível, exatamente como ocorre com as obrigações de fazer que não são adimplidas nas transações extrapenais.11 Diverge-se, no entanto, dessa solução, haja vista que a execução de pena restritiva de direito, por se tratar de uma sanção penal, não pode ser imposta via Código de Processo Civil, ou seja, fora do devido processo penal, sem as garantias que lhes são inerentes, a começar pela já mencionada ampla defesa e contraditório. E) Efeitos da Repercussão Geral e encerramento da controvérsia
Por ocasião do julgamento de RE interposto contra acórdão da Turma Recursal do Rio Grande do Sul, onde se alegava a ofensa, dentre outros, ao princípio da coisa julgada, o STF, em questão de ordem, reconheceu a Repercussão Geral da matéria e, no mérito, reafirmou a sua jurisprudência no sentido de que, em caso de descumprimento das medidas estabelecidas na transação penal, “deve-se proceder à remessa dos autos ao Ministério Público a fim do prosseguimento da ação penal”.12 Dessa forma, diante dos efeitos daquele mecanismo constitucional (art. 102, § 3o, da CF/1988), deve-se entender, doravante, que a presente controvérsia foi pacificada no âmbito do tribunais. Agregue-se, por oportuno, que esta é, de fato, a solução mais 10. Cf.: “Paciente denunciado por infração comportamental ao art. 306 do Código de Trânsito. Por ocasião do interrogatório lhe foi feita a proposta, pelo representante do Ministério Público, da transação penal, na modalidade de prestação de serviço à comunidade. Aceita a proposta, homologou o d. juiz a quo o acordo, ressalvando o cumprimento das obrigações, ao mencionar: ‘Aguarde-se cumprimento das obrigações.’ Entendo não ter ocorrido, no caso, a homologação plena com eficácia de coisa julgada material e formal. Na esteira deste entendimento, tal homologação tornou-se possível de revogação, devendo prosseguir o feito seu curso normal.” (HC 2006.059.04192. TJRJ. Des. Elizabeth Gregory. Sétima CCRIM DORJ de 15/08/2006). 11. Bitencourt, Cezar Roberto. Op. cit., p. 667. 12. Cf.: “Ação Penal Juizados Especiais Criminais. Transação penal. Art. 76, da Lei no 9.099/1995. Condições não cumpridas. Propositura de ação penal. Possibilidade. Jurisprudência reafirmada. Repercussão geral reconhecida. Recurso extraordinário improvido. Aplicação do art. 543-B, § 3 o, do CPC. Não fere os preceitos constitucionais a propositura de ação penal em decorrência do não cumprimento das condições estabelecidas em transação penal.” (RE 602072-QO. Pleno. Min. Cezar Peluso. DJ de 26/02/2010). 463
Curso de Direito Penal | Parte Geral
adequada, pois, conforme afirmado, a homologação da transação penal não faz coisa julgada material e, descumpridas as condições, há de se retornar ao status quo ante. Nesse sentido, não se olvide que a justiça penal consensual, instaurada a partir da Lei no 9.099/1995, pauta-se pelos princípios de oralidade e simplificação de ritos e, igualmente, pela boa-fé das partes, além do senso de responsabilidade e autodisciplina do infrator. Se o descumprimento injustificado da medida transacionada não pode, de um lado, acarretar a imposição da pena de prisão sem processo, não deve, por outro, redundar na impunidade daquele que dela se beneficiou. Em suma, declara-se a insubsistência da transação, pode o MP requisitar a instauração de inquérito policial ou propor a ação penal, garantindo-se, na mesma medida, a ampla oportunidade para o acusado se defender.
28.8. Cumprimento integral e extinção da punibilidade
H
penal, inicia-se o respectivo período de prova. Devidamente cumprida a pena restritiva de direito ou a multa, há de ser declarada extinta a punibilidade do autor da infração. Trata-se, no particular, de uma das causas de extinção da punibilidade não previstas no rol do art. 107, do CP, não gerando efeitos da reincidência, maus antecedentes ou obrigação de reparação civil do dano, guardando-se o registro tão somente para fins de obstar nova transação penal no prazo de cinco anos (art. 76, §§ 4o e 6o, da Lei no 9.099/1995).
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omologada a transação
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IV
capítulo
teoria ger a l da sa n ção p en a l
XXIX
SUSPENSÃO CONDICIONAL DO PROCESSO 29.1. Considerações gerais
P
a suspensão condicional do processo integra um conjunto de iniciativas político-criminais que, desde o final do século XIX, objetivam restringir os efeitos deletérios da pena de prisão de curta duração. Segundo Eduardo Correa, esta modalidade de punição envolve um grande perigo de “contágio” com “maus elementos” e, de todo modo, “fazem sofrer a quem são infligidas uma degradação social irreparável, sem a compensação de uma possibilidade séria – justamente pela sua curta duração – de reeducação dos criminosos”. 1 Na esteira da busca de alternativas ao encarceramento por curto período, algumas propostas foram arquitetadas em torno da ideia de suspensão condicional da reação punitivo-estatal, desde que o acusado ou condenado se dispusesse a atender a certas contraprestações, além, evidentemente, de não se envolver em novos fatos delituosos. Tudo isso sem olvidar, ainda que minimamente, dos interesses reparatórios da pessoa da vítima. O sursis, a probation, a diversion, a retirada provisória da acusação pública, são exemplos de iniciativas ora consignadas, variáveis, evidentemente, de país a país e de época a época, conforme exposto no Capítulo seguinte. ode-se afirmar que
1. Correa, Eduardo. Direito Criminal. Vol. II. Coimbra: Almedina, 1993, p. 396. 465
Curso de Direito Penal | Parte Geral
Nesse sentido, veio à luz a suspensão do processo, regulada no art. 89, da Lei no 9.099/1995, que procurou assimilar um pouco das características daqueles institutos. Tal como na retirada provisória da acusação pública e na probation, o exercício da persecução penal não chega até a prolação da sentença condenatória. Por outro lado, as condições a que se submete o beneficiário são, em regra, idênticas àquelas destinadas à suspensão da pena (art. 77, do CP). Anote-se, por oportuno, que apesar de vir regulamentada no mesmo diploma legal (Lei no 9.099/1995), fato é que a suspensão do processo findou por possuir uma amplitude maior da obtida pela transação penal, e por várias razões. Em primeiro lugar, enquanto a transação penal se limita às infrações de menor potencial ofensivo, a suspensão condicional do processo pode ser aplicada para todas as infrações penais, desde que se observe o limite de pena mínima igual ou inferior a 1 (um) ano. Nesse sentido, cumpre observar que o dispositivo que regula a suspensão do processo (art. 89), está nas disposições finais da Lei no 9.099/1995, não se limitando, assim, à competência dos Juizados Especiais Criminais. Além disso, o tratamento legal da suspensão do processo foi tecnicamente melhor do que o dispensado para a transação penal, visto que, diferentemente desta, a lei disciplina as consequências no caso de descumprimento das condições da suspensão do processo (art. 89 e §§ da Lei no 9.099/1995). De mais a mais, para o infrator a suspensão condicional do processo é mais vantajosa porque não há a assunção de culpa, ainda que implicitamente, nem lhe é aplicada uma pena alternativa, sendo certo que, em caso de descumprimento, a consequência que ele sofrerá é o reinício da marcha processual – o que ocorreria caso não aceitasse a proposta de suspensão –, podendo, obviamente, ser absolvido ou condenado ao final do processo.
29.2. Conceito de suspensão condicional do processo
D
do processo o acordo judicial pelo qual a ação penal é paralisada pela aceitação, por parte do acusado, do cumprimento das condições estipuladas na proposta formulada pelo Ministério Público. Após o decurso do respectivo período de prova, e devidamente cumpridas as condições, a suspensão condicional do processo acarreta a extinção da punibilidade do agente. Cuida-se, portanto, de um instituto de caráter despenalizador, visto que proporciona uma resposta estatal ao cometimento do delito sem a imposição da pena de prisão, além de objetivar a reparação da lesão acarretada ao lesado. Alinha-se, assim, à moderna tendência de uma justiça penal consensual e reparadora.
466
enomina-se suspensão condicional
Capítulo XXIX | Suspensão condicional do processo
29.3. Pressupostos da suspensão condicional do processo
O
a aplicação do sursis processual estão previstos no caput do art. 89, da Lei n 9.099/1995. São eles: s requisitos para o
A) Que o crime tenha pena mínima igual ou inferior a um ano
Diferentemente dos requisitos para a substituição da prisão por pena restritiva de direito ou multa, onde o que se considera é a pena aplicada na sentença, a concessão da suspensão do processo tem como pressuposto a pena mínima abstratamente considerada, ou seja, igual ou inferior a um ano.2 Nesse sentido, observa-se que grande maioria dos delitos previstos no Código Penal, bem como na legislação especial, tem pena mínima dentro do referido patamar. A título exemplificativo: homicídio culposo, aborto consentido ou com consentimento, sequestro ou cárcere privado, furto, apropriação indébita, estelionato, assédio sexual, contrabando ou descaminho, dentre outros. Tratando-se, contudo, de concurso de crimes (Capítulo XXVII), a jurisprudência não admite o deferimento da suspensão condicional do processo nos casos em que, abstratamente, o cômputo da pena de cada delito, agregado à exasperação mínima de 1/6, for superior ao patamar ora considerado. Nesse sentido, a Súmula 723, do STF: “Não se admite a suspensão condicional do processo por crime continuado, se a soma da pena mínima da infração mais grave com o aumento mínimo de um sexto for superior a um ano”. Veja-se, ainda, a Súmula 243 do STJ: “O benefício da suspensão do processo não é aplicável em relação às infrações penais cometidas em concurso material, concurso formal ou continuidade delitiva, quando a pena mínima cominada, seja pelo somatório, seja pela incidência da majorante, ultrapassar o limite de 1 (um) ano”. B) Que o acusado não esteja sendo processado por outro crime
A existência de processo penal em curso contra o acusado impede a concessão do benefício. Cuida-se, assim, de requisito que procura contrabalançar o caráter liberal da medida com o rigor relacionado com os bons antecedentes do acusado. Por conta desse mesmo motivo, entende-se que o presente requisito não ofende o princípio constitucional da presunção de inocência. Todavia, se ele estiver respondendo a inquérito policial, ou, ainda, se o processo decorrer de contravenção penal, será possível a obtenção do benefício, visto que o dispositivo alude ao acusado que “não esteja sendo processo por outro crime”. C) Que o acusado não tenha sido condenado por outro crime
Trata-se de requisito que se relaciona com o anterior. Para fazer jus à suspensão do 2. Cf.: “Estando correta a tipificação da conduta do acusado feita na prefacial acusatória, mostra-se incabível a suspensão condicional do processo, nos termos do art. 89, da Lei n o 9.099/1995, diante da pena mínima de 03 (três) anos de detenção cominada ao delito imputado [art. 89, da Lei n o 8.666/1993].” (AP 493. STF. Pleno. Min. Ellen Gracie. Publ. DJ de 30/04/2010). 4 67
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processo, não basta não estar respondendo a processo, sendo necessário, igualmente, que não tenha sido condenado por outro delito. A existência de condenação anterior impede, portanto, a concessão do benefício. No entanto, o art. 89, da Lei no 9.099/1995, não estabelece um lapso de tempo no qual a condenação anterior surtiria efeitos impeditivos da medida. Exemplo: “A” apresenta, em sua folha de antecedentes criminais, uma condenação havida há mais de vinte anos. Estaria ele impossibilitado de se valer da regra do art. 89, da Lei no 9.099/1995?
Parte da doutrina propugna um por limite temporal, utilizando-se, como parâmetro de raciocínio, a norma que regula os efeitos da reincidência (art. 64, I, do CP). Não prevaleceria, segundo os doutrinadores, os efeitos da condenação anterior se passados mais de cinco anos da sua extinção. Entretanto, o STJ não tem acolhido esse entendimento. Segundo esta Corte, a suspensão condicional do processo, prevista no art. 89 da Lei no 9.099/1995, não pode ser concedida àquele que possui condenação anterior, ainda que a pena tenha sido extinta há mais de 05 (cinco) anos.3 Dessa forma, para a jurisprudência, o MP pode deixar de formular, ou o juiz deixar de homologar, o sursis processual, quando o acusado possuir condenações pretéritas, ainda que superiores ao lapso temporal de cinco anos. D) Que o acusado atenda aos requisitos do art. 77, do CP
Cuida-se de expressa referência aos requisitos para a obtenção da suspensão condicional da pena, evidenciando, dessa forma, a proximidade entre os dois institutos. Há dois requisitos do art. 77, do CP, que são aqui pertinentes: (1) não reincidência em crime doloso; e (2) a culpabilidade, os antecedentes, a conduta social e personalidade do agente, bem como os motivos e circunstâncias sinalizarem a favor do deferimento da medida. O requisito contido no inc. III, do art. 77, do CP, não se faz adequado uma vez que a suspensão condicional do processo se dá no limiar da ação penal. 29.3.1. Não formulação da proposta pelo Ministério Público
O art. 89, da Lei no 9.099/1995, dispõe que somente o órgão ministerial poderá propor a suspensão do processo. Dessa forma, surgiu a controvérsia sobre a hipótese do MP optar por não formular a proposta de suspensão condicional do processo. A decisão do órgão do Parquet vincularia ou não o Judiciário? Inicialmente, parte da doutrina sustentou que, diante da negativa do MP, poderia o juiz da causa estabelecer, ele próprio, a proposta do sursis processual. No entanto, tendo em vista a adoção do modelo acusatório de processo penal – por intermédio do qual as funções de julgador são perfeitamente diferenciadas das funções de acusador –, 3. HC 25.733. STJ. Min. Felix Fischer. Quinta Turma. DJ de 28/10/2003. 4 68
Capítulo XXIX | Suspensão condicional do processo
bem como o fato de que o MP é o titular da prerrogativa de formular ou não aquela proposta, a doutrina majoritária consolidou-se no sentido da impossibilidade de uma suspensão ex officio.4 Na atualidade, a questão encontra-se pacificada no sentido de que, de fato, o Ministério Público pode deixar de elaborar a referida proposta, desde que o faça fundamentadamente. Caso o juiz discorde do entendimento ministerial e diante do princípio da independência funcional (art. 129, da CF/1988), a solução a ser dada é a da aplicação analógica da regra do art. 28, do CPP, enviando-se os autos ao órgão superior de revisão do Ministério Público para a reanálise da questão, ratificando a decisão anterior ou designando outro membro do Parquet para formular a proposta. Nesse sentido, a Súmula 696, do STF: “Reunidos os pressupostos legais permissivos da suspensão condicional do processo, mas se recusando o Promotor de Justiça a propô-la, o Juiz, dissentindo, remeterá a questão ao Procurador-Geral, aplicando-se por analogia o art. 28 do Código de Processo Penal”.5
29.4. Cumprimento das condições e período de prova
A
devem ser observadas, durante o período de prova da suspensão condicional do processo, dividem-se em duas espécies: legais e judiciais. s condições que
A) Condições legais
Conforme disposto no § 1o do art. 89, da Lei no 9.099/1995, o acusado que aceita a suspensão do processo deve cumprir as seguintes obrigações: 1) Reparação do dano, salvo impossibilidade de fazê-lo Uma das preocupações da Lei no 9.099/1995 foi a de resgatar a vítima da tradicional posição de abandono que sempre ocupou na seara penal. Cuida-se de condição que tem total pertinência, até porque seria questionável inaugurar-se a justiça penal consensual, no Brasil, esquecendo-se da reparação dos prejuízos sofridos por quem suportou o ônus da ação criminosa. Nesse passo, em boa hora, o legislador impôs àquele que deseje obter o benefício que repare o dano acarretado por sua ação precedente. 2) Proibição de frequentar determinados lugares Aportes criminológicos indicam que certos locais, tais como boates, casa de jogos, prostíbulos, estádios de futebol, dentre outros, podem operar negativamente, estimulando o indivíduo à perpetração de infrações penais. Dessa forma, justifica-se, não apenas empírica, mas, também, político-criminalmente, a previsão legal sob comento. 4. Cf. Bitencourt, Cezar Roberto. Op. cit., p. 671. 5. No MPF, o órgão encarregado da análise e eventual revisão da atuação no membro oficiante na área criminal não é o Procurador-Geral da República, mas, sim, a 2 a Câmara de Coordenação e Revisão (ou 2 a Câmara Criminal). 4 69
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Todavia, há de preponderar o critério da razoabilidade na fixação dos locais interditos ao beneficiário da medida. 3) Proibição de se ausentar da comarca onde reside, sem autorização do Juiz Embora compreensível a existência do controle judicial do deslocamento físico daquele que se vincula ao benefício sob comento – pressupondo-se, dessa feita, que não empreenda viagem para local distante, sem prévia autorização do juiz –, fato é que se trata, literalmente, de condição assaz rigorosa. Nesse sentido, não raro há necessidade de o acusado se deslocar para comarca contígua, tornando-se quase que absurda a solicitação diária de autorização para se deslocar para uma cidade vizinha. A prática, portanto, temperou o rigor legal, passando-se a exigir, nos Juizados Especiais Criminais, a prévia autorização somente nos casos de viagem para fora do Estado da Federação ou para o exterior. 4) Comparecimento pessoal e obrigatório a juízo, mensalmente, para informar e justificar suas atividades Cuida-se de outra condição pertinente, mas excessivamente rigorosa no que diz respeito ao comparecimento mensal. Não se desconhece, por exemplo, que, em muitos casos, o acusado é pessoa subempregada ou mesmo desempregada. O próprio estigma de responder a processo criminal funciona, por certo, como um fator a mais de dificuldade na colocação profissional. Dessa maneira, se o objetivo político-criminal da suspensão do processo é o de estancar os efeitos deletérios do strepitus fori, exigir-se, em contrapartida, que o beneficiário da medida disponibilize, mensalmente, um dia útil de trabalho, para comparecer ao fórum e justificar as suas atividades (muitas vezes, preenchendo um mero formulário na serventia do juízo), impediria, na grande maioria dos casos, a obtenção de ocupação lícita. Sendo assim, embora se concorde com a ratio legis de impor vínculos entre o acusado e o juízo que compete fiscalizar o seu comportamento, fato é que, na prática, os Juizados Especiais Criminais têm abrandado o rigor desse requisito, fixando um prazo maior para o comparecimento judicial, com intervalos de dois ou até três meses. B) Condições judiciais
Se é certo que é da atribuição do MP a formulação da proposta de suspensão do processo, é igualmente correta a assertiva de ser da competência do juiz o estabelecimento das condições reputadas adequadas ao caso concreto. Sendo assim, proposto o sursis processual, o juiz deve impor, além das condições legais do § 1o, do art. 89, da Lei no 9.099/1995, “outras que lhes pareçam adequadas ao fato e à situação pessoal do acusado, desde que respeitados os direitos individuais”.6 6. REsp 799021. STJ. Min. Laurita Vaz. Quinta Turma. DJ de 09/11/2009. Por certo, não se pode impor judicialmente condições atentatórias à dignidade da pessoa do acusado, tais como a obrigatoriedade de doar sangue, ler a bíblia, em voz alta, nas praças da cidade, ou lavar, graciosamente, veículos oficiais do fórum etc. 470
Capítulo XXIX | Suspensão condicional do processo
C) Período de prova
Consoante o art. 89, da Lei no 9.099/1995, o período de prova da suspensão do processo varia entre dois a quatro anos. Embora não exista nenhuma determinação legal, na prática, somente razões particulares justificariam a imposição de período acima do mínimo de dois anos. No curso do período de prova, cumpre ser analisado o senso de responsabilidade do beneficiado, condição necessária para que se opere, ao final, a extinção da sua punibilidade. Saliente-se, por oportuno, que, durante o referido lapso de tempo, ficará suspenso não apenas o processo, mas, igualmente, a contagem do prazo prescricional (art. 89, § 6o, da Lei no 9.099/1995).
29.5. Descumprimento das condições e revogação do benefício
D
o acusado deverá atender às condições previstas no acordo. O injustificado descumprimento do que fora pactuado acarretar-lhe-á, evidentemente, consequências negativas, ou seja, a revogação do benefício e o retorno à regular marcha processual. Nesse sentido, as causas de revogação da suspensão do processo dividem-se em obrigatórias e facultativas. Segundo o § 3o, do art. 89, da Lei no 9.099/1995, o benefício será revogado se, no curso do prazo, o réu vier a ser processado por outro delito, independentemente do mesmo ter sido praticado antes ou durante a vigência do mesmo. Cuida-se da primeira causa de revogação obrigatória. A segunda consiste no descumprimento, sem justa causa, do dever de reparar o dano – reitere-se, no particular, a mencionada preocupação da Lei dos Juizados Especiais para com a pessoa do lesado. Facultativamente, a suspensão pode ser revogada se o acusado, durante o período de prova, vier a ser processado por contravenção penal, ou, ainda, na hipótese de não observar, injustificadamente, quaisquer das condições judicialmente impostas (art. 89, § 4o, da Lei no 9.099/1995). A grande questão envolvendo a revogação do benefício diz respeito ao momento em que a mesma deve ser feita, ou seja, somente durante o prazo da suspensão ou, igualmente, após o encerramento do período de prova? Frente a esta pergunta, dispõe o § 5o, do art. 89, da Lei no 9.099/1995, que expirado o prazo sem revogação, o juiz declarará extinta a punibilidade. Dessa maneira, literalmente, a decisão deveria ser tomada antes de expirado aquele lapso de tempo. Isso tornaria inviável a possibilidade de revogação após o vencimento do prazo. Cuidar-se-ia, assim, de uma decisão que – figurativamente falando – deve ser tomada em tempo real. Os autores que se filiam a esse entendimento sustentam que o ônus de fiscalizar adequadamente o cumprimento da medida recai sobre o aparelho estatal, não se podendo penalizar o acusado pela incúria alheia, além de gerar uma insegurança jurídica caso fosse admitida uma hipotética revogação retroativa. urante a suspensão,
471
Curso de Direito Penal | Parte Geral
Em sentido inverso, argumenta-se que o sentido literal daquele dispositivo conduziria ao absurdo. O próprio nomen juris do instituto já denuncia o entendimento oposto: suspensão condicional do processo. O atendimento das condições é, pois, inerente ao instituto. Desse modo, estando o processo suspenso, o desfecho favorável da medida – isto é, a extinção da punibilidade do acusado – há de ficar subordinado à constatação de que, naquele mesmo período, ocorreu, de fato, o cumprimento das condições impostas. Por conta disso, a “decisão que revoga a suspensão condicional pode ser proferida após o termo final do seu prazo, embora haja de fundar-se em fatos ocorridos até o termo final dele”.7 Sendo assim, enquanto não houver sentença definitiva extinguindo a punibilidade do acusado, caso venha a ser descoberto um dos motivos da revogação, obrigatória ou facultativa, do benefício, não somente pode, mas deve o juiz proferir decisão revocatória da suspensão condicional do processo. A existência de sentença que declara extinta a punibilidade (art. 89, § 5o, da Lei no 9.099/1995) é o limite máximo para que se haja a revogação, pois, do contrário, violaria o princípio da coisa julgada (art. 5o, XXXVI, da CF/1988).8 É este o entendimento predominante nos tribunais superiores. No STJ, há decisões afirmando que, se o acusado vier a ser processado por outro crime, a teor do art. 89, § 3o, da Lei no 9.099/1995, impõe-se a revogação da suspensão condicional do processo (sursis) ainda que essa decisão venha a ser proferida após transcorrido o período de prova, mas desde que não tenha sido proferida sentença extintiva da punibilidade. Nesses casos, o réu deixa de ser merecedor do benefício proveniente de norma excepcional, para ser processado com todas as garantias pertinentes.9 Tratando-se, contudo, de descumprimento de condição facultativa (art. 89, § 4o, da Lei no 9.099/1995), a praxe dos Juizados Especiais sinaliza no sentido de ser designada uma audiência especial para a oitiva do acusado. Não se costuma, assim, proceder-se a uma revogação automática daquela espécie de condição, visto ser possível que o beneficiado tenha tido um justo motivo para não cumprir o que lhe fora imposto. Ademais, embora injustificado, poderá o juiz optar por não revogar, mas, sim, prorrogar o prazo, mantendo ou alterando as condições de suspensão.
7. HC 80747. STF. Min. Sepúlveda Pertence. Primeira Turma. DJ de 19/10/2001. No mesmo sentido: “(...) Esta Corte já firmou entendimento no sentido de que o benefício da suspensão condicional do processo pode ser revogado após o período de prova, desde que os fatos que ensejaram a revogação tenham ocorrido antes do término deste período. Sobrevindo o descumprimento das condições impostas durante o período de suspensão, deve ser revogado o benefício, mesmo após o término do prazo fixado pelo juiz.” (HC 103706. STF. Min. Ricardo Lewandowski. Primeira Turma. DJ de 09/11/2010). 8. Cf.: “A suspensão condicional do processo pode ser revogada, mesmo após o temo final do seu prazo, se o acusado vier a ser processado por outro crime, a teor do art. 89, § 3 o, da Lei no 9.099/1995, durante o curso do benefício, desde que não tenha sido proferida a sentença extintiva da punibilidade.” (HC 42320. STJ. Min. Felix Fischer. Quinta Turma. DJ de 12/12/2005). 9. REsp 1111427. STJ. Min. Felix Fischer. Quinta Turma. DJ de 29/06/2009. 472
Capítulo XXIX | Suspensão condicional do processo
29.6. Cumprimento integral e extinção da punibilidade
C
cumprimento integral, sem revogação, das condições da suspensão condicional do processo, acarreta a extinção da punibilidade do acusado. É esta a consequência imposta no § 5o, do art. 89, da Lei no 9.099/1995. Cuida-se de sentença declaratória de extinção da punibilidade, baseada em causa não contemplada no rol do art. 107 do CP. ons oante adiantad o, o
473
título
IV
capítulo
teoria ger a l da sa n ção p en a l
XXX
SUSPENSÃO CONDICIONAL DA PENA 30.1. Considerações gerais
A
da pena corresponde às primeiras iniciativas político-criminais voltadas para minimizar os efeitos negativos da pena de prisão de curta duração. Sua origem, portanto, remonta ao século XIX e, como todas as experiências que se faziam no âmbito punitivo, destinou-se, inicialmente, para menores infratores. Segundo Jescheck,1 a ideia de suspensão da reação estatal seguiu, na generalidade dos países, diversos caminhos distintos, podendo ser destacados os seguintes modelos: suspensão da e xecução
A) Não exercício da acusação pública
Após a formulação de denúncia referente a crime de menor gravidade, o respectivo processo é sobrestado, concordando o acusado em cumprir certas obrigações estipuladas pelo Ministério Público, tudo devidamente homologado judicialmente. Se o acusado cumpre o que lhe fora ordenado, o processo será definitivamente encerrado; do contrário, será retomada sua marcha regular. Cuida-se de modalidade que, na atualidade, assemelha-se à nossa suspensão condicional do processo.
1. Jescheck, Hans-Heinrich; Weigend, Thomas. Op. cit., p. 85. 474
Capítulo XXX | Suspensão condicional da pena
B) Probation
Surgida no direito anglo-americano, consiste na mera declaração de culpabilidade (conviction) sem aplicação de pena, enlaçada com a imposição de determinados deveres que serão comprovados por um oficial de prova (probation-officer). Se a pessoa submetida à prova (probationer) faz por merecer, tudo ficará limitado àquela declaração formal de culpa. Caso contrário, a pena será imposta levando-se em consideração o seu comportamento durante o período de prova. C) Sursis
Cuida-se de instituto originado do direito belgo-francês.2 No caso, não somente há o reconhecimento da culpabilidade do acusado, como, igualmente, da pena a ser-lhe imposta, embora sua execução fique condicionalmente suspensa. Para Jescheck, a vantagem do sursis reside sobretudo na circunstância de que, por razões preventivo-especiais, são evitados os efeitos colaterais do encarceramento (perda do emprego, afastamento da família, dessocialização pela prisão etc.), ao passo que o efeito preventivo-geral da declaração de culpabilidade e da pena (conectadas com as condições impostas) fica suficientemente assegurado. D) Modelo brasileiro
No Brasil, o instituto sob consideração surgiu por força do Decreto no 16.588/1924, sob a denominação condenação condicional, visando beneficiar o condenado que não tivesse revelado “caráter pervertido ou corrompido”.3 Entretanto, por não se tratar, a rigor, de uma condenação condicional, mas, sim, de uma efetiva condenação cuja execução fica condicionalmente suspensa, a medida foi logo conhecida com a primeira palavra da expressão francesa sursis à l’exécution de la peine. Posteriormente, a suspensão da pena passou a integrar o CP/1940 (arts. 57 a 59), bem assim o Código de Processo de 1941 (arts. 696 a 709) e, no mesmo ano, a Lei das Contravenções Penais (art. 11). Por sua vez, a Reforma Penal de 1984 promoveu-lhe mudanças significativas, fixando o cumprimento de condições mais severas e um controle mais eficaz, o que era precariamente previsto na sistemática anterior. Todavia, na atualidade, o sursis encontra-se com sua aplicabilidade bastante mitigada. Isso porque, na sistemática do CP/1984, a suspensão da pena somente tem lugar quando não for possível proceder-se à substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direito ou multa (arts. 44, 59, IV, e 77, III, do CP). Considerando as modificações promovidas pela Lei no 9.714/1998 (Lei das Penas Alternativas), as 2. Para a maioria da doutrina, a feição moderna do sursis vinculou-se ao projeto de lei apresentado por Berenger ao parlamento francês, em 1884. Durante a longa tramitação legislativa, a Bélgica antecipou-se e promulgou, com a Lei de 31/05/1888, o novo instituto. Alguns anos depois, a França finalmente adotou a suspensão condicional da pena, influenciando, dessa maneira, diversas outras legislações (cf. Bitencourt, Cezar Roberto. Op. cit., p. 636). 3. Souza, Artur de Brito Gueiros. Presos estrangeiros no Brasil: aspectos jurídicos e criminológicos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 185. 475
Curso de Direito Penal | Parte Geral
possibilidades de substituição da pena de prisão por restritiva de Direito Penal ampliaram-se significativamente. Antes daquela Lei, somente a pena de prisão igual ou inferior a um ano podia ser substituída por pena alternativa; agora, a imposição de pena de prisão de até quatro anos possibilita aquela substituição. Como o patamar para a obtenção do sursis não foi alterado, permanecendo, em regra, em pena de até dois anos, é forçoso reconhecer que, na prática, somente na hipótese de não cabimeneto de pena alternativa – por exemplo, nos casos da pena de prisão ser superior a quatro anos, ou se o crime tiver sido cometido com violência ou grave ameaça –, é que será possível o manejo do presente instituto.4 Cumpre ressaltar, contudo, que, por suas próprias características, a suspensão condicional atinge somente as penas privativas de liberdade (reclusão, detenção e prisão simples), não abrangendo, pois, as penas de multa ou restritivas de direitos (art. 80, do CP). Isso se explica porque, desde seus primórdios, o sursis apresentou-se como solução de consenso entre propósitos retributivistas e preventivo-gerais (sentença condenatória impondo pena privativa de liberdade) e preventivo-especiais (não encarceramento mediante condições para a readaptação social do infrator).
30.2. Conceito de suspensão condicional da pena
A
pena consiste na decisão do juiz, por ocasião da publicação da sentença condenatória, deixar de executar a pena privativa de liberdade, submetendo o acusado – agora condenado –, ao cumprimento das condições estabelecidas na própria decisão. Dessa forma, por ocasião da sentença condenatória, não sendo caso de substituição da pena de reclusão ou detenção por restritiva de direito ou multa (art. 59, IV, do CP), deve o juiz, caso a pena fique em patamar não superior a dois anos, se manifestar sobre a suspensão da pena, concedendo-a ou não (art. 77, do CP). Com relação à sua natureza jurídica, trata-se de questão bastante discutida. Na doutrina estrangeira, arrolam-se as seguintes correntes: (1) consequência jurídica de tipo especial; (2) terceira via do Direito Penal; (3) modificação da execução da pena; (4) causa extintiva da punibilidade, dentre outras. No geral, prepondera o entendimento de possuir natureza de sanção penal de caráter autônomo.5 No Direito brasileiro, por influência dos ensinamentos de Frederico Marques, a doutrina majoritária confere-lhe a natureza jurídica de direito público subjetivo de liberdade.6 Sendo assim, preenchendo o condenado os requisitos objetivos e subjetivos do sursis (art. 77, do CP), deverá o juiz conceder-lhe o benefício. Evidentemente, na suspensão condicional da
4. Nesse sentido, Guilherme de Souza Nucci afirma que, diante das modificações trazidas pela Lei no 9.714/1998, o instituto do sursis “tende ao esquecimento”. Segundo ele: “Não há razão para aplicar a suspensão condicional da pena ao réu primário condenado a dois anos de reclusão se o mesmo sujeito, caso tivesse sido apenado a quatro anos de reclusão, poderia receber a substituição por restrição de direitos.” (Nucci, Guilherme de Souza. Código Penal Comentado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009, p. 379). 5. Jescheck, Hans-Heinrich; Weigend, Thomas. Op. cit., p. 899. 6. Marques, José Frederico. Tratado de Direito Penal. Vol. III. Campinas: Millennium, 1999, p. 340. 476
Capítulo XXX | Suspensão condicional da pena
análise dos requisitos – particularmente aqueles de cunho subjetivo –, tem o magistrado a prerrogativa regrada de avaliar, na sentença condenatória, o atendimento ou não dos pressupostos da suspensão da pena. Diante disso, e porque os caracteres doutrinários acima apontados não se excluem, prefere-se destinar-lhe a natureza jurídica de alternativa penal.
30.3. Espécies de suspensão condicional da pena
A
analisar os requisitos para a obtenção do sursis, necessário se faz apresentar as suas respectivas modalidades. Formalmente, a doutrina reconhece a existência das seguintes espécies: simples, especial, etário e humanitário. ntes de se
A) Sursis simples
O sursis simples ou comum é aquele em que o condenado, no primeiro ano da sua vigência, fica sujeito ao dever de prestar serviços comunitários ou de submeter-se à limitação de fim de semana (arts. 78, § 1o, e 79, do CP). Como se percebe, trata-se de obrigações idênticas às penas restritivas de direitos, evidenciando que, na realidade, não há uma verdadeira “suspensão” da punição, mas a não aplicação da prisão, sob o compromisso de se cumprir uma das medidas acima referidas. B) Sursis especial
A suspensão especial da pena encontra-se regulada no § 2o, do art. 78, do CP. Segundo a Exposição de Motivos da Reforma de 1984, essa modalidade de sursis é destinada ao condenado não reincidente em crime doloso, que tenha reparado o dano e cujas circunstâncias judiciais tenham sido todas favoráveis.7 Pressupõe-se, portanto, um enquadramento fático-jurídico mais benigno, justificando-se, assim, o cumprimento não de pena alternativa, mas, sim, das providências menos severas (art. 78, § 2o, alíneas “a”, “b” e “c”, do CP). C) Sursis etário e humanitário
Estas duas espécies, tratadas, em conjunto, no § 2o do art. 77, do CP, voltam-se para o condenado maior de setenta anos de idade ou com razões de saúde que justifiquem a suspensão de um prazo maior de punição, ou seja, pena privativa de liberdade fixada até o patamar de quatro anos de reclusão ou detenção. No caso do septuagenário ou do seriamente enfermo (categoria introduzida pela Lei no 9.714/1998) as condições serão as mesmas do sursis simples, mas com o período de prova dilatado para quatro a seis anos. Com relação ao idoso, merece destaque o entendimento de que, tal como verificado com a circunstância atenuante do art. 65, I, do CP, não há que falar do rebaixamento da sua faixa etária de 70 (setenta) para 60 (sessenta) anos de idade, conforme a regra 7. E. M. do CP/1984, item no 66. 477
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estipulada pelo art. 1o, da Lei no 10.741/2003 (Estatuto do Idoso), tendo em vista que este diploma alterou, pontualmente, alguns dispositivos do Código Penal, remanescendo, os demais, intactos e sob o influxo da regra do art. 12, do CP. Em síntese, da análise de todas as modalidades de sursis acima apresentadas, pode-se concluir que, na realidade, há duas grandes formas de suspensão da pena: a primeira é aquela que a lei impõe, ao beneficiário, a obrigação de cumprir, no primeiro ano, uma verdadeira pena restritiva de direitos (prestação de serviços à comunidade ou limitação de final de semana). E, a segunda, é aquela em que, em razão da situação privilegiada do condenado, a lei lhe destina, no primeiro ano, o cumprimento de medidas menos rigorosas.8
30.4. Pressupostos da suspensão condicional da pena
O
e subjetivos necessários à obtenção da suspensão condicional da pena estão descritos no art. 77, do CP. Como visto, tais requisitos são, em sua maioria, extensíveis à suspensão condicional do processo (art. 89, da Lei no 9.099/1995). São eles: s requisitos objetivos
A) Que a pena privativa de liberdade seja igual ou inferior a dois anos
Observa-se, inicialmente, da leitura do art. 77, caput, do CP, que a suspensão condicional somente é possível para a pena privativa de liberdade. No mesmo sentido, o teor do art. 80. Relativamente à quantidade de pena, faz-se necessário, para o sursis simples ou especial, que a pena imposta seja igual ou inferior a dois anos. Para o sursis etário ou humanitário, como visto, esse requisito é ampliado até quatro anos de pena aplicada na sentença condenatória. Nada impede que o sursis possa ser concedido na hipótese de concurso de crimes (concurso material, formal ou crime continuado), desde que o cômputo final das penas aplicadas não ultrapasse o limite anteriormente referido. B) Que o condenado não seja reincidente em crime doloso
Cuida-se de requisito exigido pelo inciso I, do art. 77, do CP. No caso, faz-se necessário que as duas condenações, a anterior e a subsequente, não decorram de delitos dolosos. Basta, portanto, que uma delas se origine de fato culposo para que o presente requisito seja atendido. Com relação à reincidência, cumpre relembrar que o decurso do prazo de cinco anos do cumprimento ou extinção anula os efeitos da condenação anterior (art. 64, inciso I, do CP), permitindo-se, assim, a concessão do sursis, ainda que se trate de delitos dolosos. 8. Nesse sentido, Guilherme de Souza Nucci, após discorrer sobre o sursis simples e o sursis especial, critica aqueles que reconhecem a existência de uma terceira modalidade (etário ou humanitário) uma vez que, na verdade, há somente dois tipos, sendo que o terceiro nada mais seria do que uma “forma mais flexível de suspensão da pena”, sendo que as suas condições são as mesmas das anteriores (Nucci, Guilherme de Souza. Op. cit., p. 377). 478
Capítulo XXX | Suspensão condicional da pena
É possível, por outro lado, que a condenação anterior por crime doloso tenha ocorrido no estrangeiro, sendo desnecessária a prévia formalidade da homologação da sentença estrangeira para que surta, no particular, os seus efeitos jurídicos. Não obstante a existência de anterior condenação por delito doloso, caso ela tenha redundado na aplicação de pena de multa, poderá ser, igualmente, concedida a suspensão, consoante o disposto no § 1o, do art. 77, do CP. C) Que as circunstâncias judiciais autorizem a concessão do benefício
O requisito contemplado no inciso II, do art. 77, do CP, diz respeito ao conjunto de circunstâncias judiciais que devem ser sopesadas por ocasião da fixação da pena-base (art. 59, caput, do CP). Se a culpabilidade, os antecedentes, a conduta social e a personalidade do agente, bem como se os motivos e as circunstâncias não forem valoradas negativamente pelo magistrado – fixando-se, por conseguinte, a pena-base no mínimo legal ou próximo a ele – tem-se que o condenado poderá obter o sursis, se preenchidos os demais requisitos legais. Cuida-se, no particular, de um diagnóstico – a análise pretérita de fatores relacionados com o agente e o fato por ele praticado – que permite um prognóstico de que o mesmo não irá cometer mais nenhum delito. Segundo Jescheck, o fundamental para a concessão da suspensão condicional é o “prognóstico favorável” que, em geral, se extrai de “um modo intuitivo”, ou seja, “baseando na experiência acumulada pelos juízes”.9 A fim de minimizar um excesso de subjetividade relacionada com o referido prognóstico, a lei brasileira vinculou-o às circunstâncias judiciais do art. 59, do CP, que necessariamente devem ser sopesadas pelo juiz por ocasião da sentença condenatória. D) Que não seja indicada ou cabível a substituição por pena restritiva de direitos
Conforme adiantado, o instituto do sursis é norma subsidiária frente às penas restritivas de direitos capituladas no art. 44, do CP. Bem por isso, o inciso III, do art. 77, do CP, refere-se à impossibilidade de substituição da prisão por pena de outra espécie como o último requisito para a obtenção da suspensão da pena. Importa salientar que este dispositivo se associa à regra do art. 59, IV, do CP. Reitere-se, por oportuno, que, originariamente, o art. 44, do Código, dispunha que a pena privativa de liberdade, aplicada em quantidade não superior a um ano, poderia ser substituída, em regra, por pena restritiva de direitos. Esta disposição harmonizava-se com a suspensão condicional da pena, aplicável às penas de prisão superiores a um ano, mas inferiores a dois anos. Todavia, com a reforma promovida pela Lei no 9.714/1998 (Lei das Penas Alternativas), aquele patamar de substituição por restritivas de direitos elevou-se para abranger a pena privativa de liberdade não superior a quatro anos. Diante disso, e considerando que o requisito sob comento determina a aplicação preferencial da pena restritiva de direito, vê-se que, na prática, as hipóteses de suspensão da 9. Jescheck, Hans-Heinrich; Weigend, Thomas. Op. cit., p. 901. 479
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pena – mesmo para as modalidades etária e humanitária –, diminuíram sensivelmente. A rigor, a utilização do sursis encontra-se reservada para hipóteses residuais, quando não se puder aplicar a pena substitutiva, como, por exemplo, tentativa de roubo ou extorsão (arts. 157 e 158, do CP), cuja dosimetria final da pena seja igual ou inferior a dois anos.
30.5. Cumprimento das condições e período de prova
N
rigor, uma “suspensão absoluta da pena”, mas, sim, a suspensão da pena de prisão e o cumprimento de determinadas medidas, algumas delas verdadeiras “penas alternativas”. Em razão dessa sistemática, as condições que devem ser observadas no período de prova se dividem em legais e judiciais. Denominam-se “legais” aquelas que o próprio Código discrimina a natureza e conteúdo, e “judiciais”, aquelas a serem especificadas segundo a prudente avaliação do juiz, desde que adequadas ao fato e ao condenado. As condições legais devem ser obrigatoriamente impostas ao condenado. Consoante o § 1o, do art. 78, do CP, tratando-se de sursis simples, etário ou humanitário, ele deverá prestar serviços à comunidade (art. 46, do CP) ou submeter-se à limitação de fim de semana (art. 48, do CP). Para o sursis especial, o § 2o, do mesmo dispositivo, estabelece o atendimento de obrigações que, em razão da Lei no 9.268/1996, devem ser cumpridas cumulativamente: proibição de frequentar determinados lugares; proibição de ausentar-se da comarca onde reside, sem autorização do juiz; e comparecimento mensal a juízo para informar e justificar suas atividades. De se notar que tais condições são idênticas àquelas analisadas na suspensão condicional do processo (art. 89, § 1o, da Lei no 9.099/1995). Por sua vez, as condições judiciais, previstas no art. 79, do CP, devem ser escolhidas pelo magistrado, de forma proporcional à gravidade do fato, bem como à condição pessoal do apenado. Reitere-se o que já foi dito no tocante à condições vexatórias, humilhantes e atentatórias da dignidade da pessoa humana. Deve-se, na mesma esteira, evitar condições tautológicas, tais como a reparação do dano ou o pagamento das custas judiciais.10 O período de prova compreende o lapso de tempo em que o condenado tem a execução da pena privativa de liberdade suspensa, mercê do cumprimento das condições legais e judiciais. Atentar, em liberdade, às obrigações estabelecidas, sem voltar a delinquir, constitui, na opinião de Cezar Bitencourt, uma prova de que o beneficiário sentiu os efeitos da condenação e de que não necessitava recolher-se à prisão para emendar-se. Segundo o autor, a “simples condenação, suspensa, comprova, nas circunstâncias, a suficiência da medida alternativa”.11 Para as modalidades simples e especial, o período de prova varia entre dois e quatro anos. Para o sursis etário ou humanitário, entre quatro e seis anos. Em regra, os magistrados fixam o período de prova partindo do quantum mínimo de suspensão, ão há , a
10. Cf. Bitencourt, Cezar Roberto. Op. cit., p. 695. 11. Idem, p. 701. 48 0
Capítulo XXX | Suspensão condicional da pena
traçando-se, assim, um paralelo com a aplicação da pena privativa de liberdade, cujo cálculo, como visto no Capítulo XXVI, também se inicia a partir do mínimo cominado. A fixação do período de prova no limite mínimo, ou próximo do mínimo, permite certa flexibilidade na dinâmica da sua fiscalização, pois, nas hipóteses de revogação facultativa, pode o juiz, ao invés de decretá-la, prorrogar o período de prova até o máximo (art. 81, § 3o), prorrogação esta que não ocorreria caso estivesse fixado no patamar máximo. Conforme se depreende dos arts. 158 e 160, da LEP, a contagem do período de prova inicia-se a partir da audiência admonitória. Esta, por sua vez, terá lugar após o trânsito em julgado da sentença condenatória. Consequentemente, a contagem do período de prova não pode começar antes de passar em julgado a sentença condenatória. Além de servir como termo a quo do período de prova, a audiência admonitória deve se destinar à leitura da sentença condenatória que se encontra suspensa, competindo, ainda, ao magistrado, advertir ao condenado das consequências de nova infração penal ou do descumprimento das condições impostas, quais sejam, revogação do benefício e imediata execução da pena privativa de liberdade.
30.6. Descumprimento das condições e revogação do sursis
C
onforme demonstrado, durante o período de prova, será aferido se o condenado efetivamente faz jus à liberdade que lhe foi mantida, o que, de resto, é verificado pelo atendimento das condições estipuladas na sentença, pelo pagamento da pena de multa, pela reparação do dano, bem como pelo não envolvimento em outro delito. Alude-se, assim, às causas de revogação obrigatórias ou facultativas.
30.6.1. Causas de revogação obrigatória
Segundo o disposto no art. 81, I, do CP, a primeira causa de revogação obrigatória ocorre quando o beneficiário é condenado, em sentença irrecorrível, por crime doloso. O dispositivo não esclarece se esta condenação diz respeito a ilícito praticado antes ou durante o período de prova, sendo suficiente que transite em julgado dentro daquele lapso de tempo. Entretanto, tem-se que isso pouco importa pois se o réu já estivesse respondendo a outro processo por crime doloso, quando do deferimento do benefício, a rigor ele não preenchia um dos requisitos para o sursis – “bons antecedentes” – conforme o art. 77, II, do CP.12 Tendo sido, portanto, concedido a quem não fazia jus, nada mais pertinente que venha a ser revogado pela superveniência de condenação por sentença irrecorrível. Maior razão existirá se o fato doloso motivador da sentença irrecorrível tiver sido praticado no curso do benefício, constituindo-se forte indicativo de que o condenado encontra-se despreparado para a vida em liberdade. 12. Observe-se que o fato de ser reincidente em crime doloso também impede a concessão do sursis (art. 77, I, do CP). 481
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Segundo a doutrina, a condenação irrecorrível por crime doloso, havida no curso do sursis, deve importar em pena privativa de liberdade ou restritiva de direito, pois a pena de multa, isoladamente aplicada, não poderia acarretar a revogação da medida. Isso porque, como visto, a condenação anterior a pena de multa não impediria a concessão do benefício (art. 77, § 1o, do CP). Ora, se ela não impede o deferimento da suspensão da pena, não seria lógico que tivesse o condão de acarretar-lhe a revogação.13 A segunda causa de revogação obrigatória na verdade se desdobra em outras duas: não pagamento, pelo condenado solvente, da pena de multa, e não efetivação da reparação do dano determinado na sentença condenatória (art. 81, II, do CP). Relativamente ao pagamento da sanção pecuniária, o art. 80, do CP, assinala que o sursis a ele não se estende. Dessa maneira, com o trânsito em julgado, o condenado será citado para, no prazo de dez dias, pagar o valor da multa ou nomear bens à penhora (art. 164, da LEP). Sendo assim, se o condenado, tendo condições financeiras, não adotar uma dessas providências – ou, alternativamente, requerer o pagamento parcelado, nos termos do art. 168, da LEP –, o sursis ser-lhe-á cassado.14 Revoga-se, de forma igualmente obrigatória, caso não haja a reparação, sem justa causa, do dano ocasionado pelo delito. O dever de indenizar é um dos efeitos da condenação (art. 91, I, do CP), podendo, inclusive, o juiz fixar, na própria sentença penal, o “valor mínimo” para reparação dos prejuízos sofridos pelo ofendido, consoante o disposto no art. 387, inc. IV, do CPP (com a redação determinada pela Lei no 11.719/2008). Não há que falar, portanto, de “suspensão” desse dever. A revogação do sursis somente não ocorrerá se o beneficiário obtiver a “renúncia expressa do ofendido” ou, alternativamente, se ele comprovar “justo motivo” para não ter adimplido com sua obrigação civil ex delicto. Revoga-se, ainda, quando o beneficiário do sursis descumpre a obrigação de prestar serviços à comunidade ou de submeter-se à limitação de fim de semana. Cuida-se de condição legal, a ser observada no primeiro ano do período de prova, aplicável, pois às hipóteses de sursis simples, humanitário e etário (art. 78, § 1o, do CP). Diante disso, o seu injustificado descumprimento importa no cancelamento obrigatório do benefício. Embora não prevista no rol do art. 81, do CP, há de se observar que também acarreta a revogação obrigatória da suspensão da pena o fato do condenado, intimado pessoalmente ou por edital com prazo de vinte dias, não comparecer a audiência admonitória do sursis, executando-se, imediatamente, a pena imposta (art. 161, da LEP). 13. Nesse sentido: “Se esta penalidade [multa] não tem força de impedir a concessão do benefício, certamente não terá força para revogá-lo. Dessa forma, somente a condenação às penas privativa de liberdade ou restritiva de direitos é que tem o condão de afastar o benefício.” (Nucci, Guilherme de Souza. Op. cit., p. 386). 14. O fato de a Lei no 9.268/1996 ter alterado a sistemática da pena de multa, transformando-a em “dívida de valor” (art. 51, do CP), não alterou a presente causa de revogação do sursis, visto que não se trata, aqui, de “prisão por dívidas”, mas, sim, do descumprimento de uma das condições àquele que aceitou submeter-se à suspensão condicional da pena. Na verdade, tem-se que esta é a única força cogente-penal que restou para a pena pecuniária. 482
Capítulo XXX | Suspensão condicional da pena
30.6.2. Causas de revogação facultativa
As hipóteses de revogação facultativa estão previstas no § 1o, do art. 81, do CP. Cuida-se do descumprimento de qualquer outra condição imposta na sentença ou a superveniência, durante o período de prova, de condenação por crime culposo ou contravenção. Consoante o § 3o, do mesmo dispositivo, a revogação pode ser preterida pela prorrogação do período de prova até o máximo, se este não foi o prazo fixado. No primeiro caso, cuidam-se das condições judiciais, aplicáveis ao sursis especial e às demais hipóteses de sursis, quando vencido o primeiro ano do prazo de cumprimento das condições legais. Portanto, se o beneficiário, por exemplo, deixar de comparecer ao juízo para informar e justificar suas atividades (art. 78, § 2o, “c”, do CP), poderá sofrer a revogação da suspensão da pena. É certo, porém, que por se tratar de uma medida facultativa, não é aconselhável que se proceda a uma “revogação automática”, sendo conveniente – em homenagem ao princípio da ampla defesa – ser designada audiência especial para oitiva das eventuais justificativas do descumprimento daquelas condições, ocasião em que se poderá decidir, como visto, pela prorrogação do benefício. Sobre a segunda hipótese, a revogação facultativa poderá ocorrer se a condenação por crime culposo ou contravenção redundar na aplicação de pena privativa de liberdade ou restritiva de direitos. Pressupõe-se o somatório de fatores: crime culposo ou contravenção, como antecedente, e pena privativa de liberdade ou restritiva de direito, como consequente. Sendo assim, a condenação à pena de multa sequer acarreta a revogação facultativa. Ao revés, a condenação por crime doloso importará na revogação obrigatória do benefício. No entanto, embora o Código faculte a revogação – ou a prorrogação – da suspensão da pena, fato é que, se a condenação irrecorrível por outro delito redundar em pena privativa de liberdade, não poderá o beneficiário continuar a gozar dos efeitos do sursis, pois é impossível ter, ao mesmo tempo, uma pena de prisão suspensa e outra executada. Deverá, dessa maneira, ser revogado o benefício, com a consequente unificação das penas privativas de liberdade (art. 111, da LEP). Somente a imposição de pena restritiva de direito permitirá a não revogação ou a prorrogação do sursis.
30.7. Prorrogação do sursis
A
analisadas no item anterior, o sursis terá seu prazo automaticamente prorrogado se o beneficiário está sendo processado por outro crime ou contravenção, dilação esta que se estende até o julgamento definitivo (art. 81, § 2o, do CP). Desse modo, se na vigência do sursis chegar ao conhecimento do magistrado a notícia de que o condenado está a responder por outro processo, não se poderá considerar extinta a sua punibilidade. Observe-se, no entanto, que a “prorrogação automática” não decorre da prática de outro delito; tampouco do fato de estar respondendo a inquérito policial ou lém das hip óteses
483
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procedimento investigatório conduzido pelo MP, mas de processo penal formalmente deflagrado, vale dizer, de denúncia judicialmente recebida (art. 396, do CPP, com a redação da Lei no 11.719/2008).
30.8. Cumprimento integral e extinção da punibilidade
D
de prova sem que se tenha havido revogação, considerar-se-á extinta a pena privativa de liberdade (art. 82, do CP). Cuida-se de causa de extinção da punibilidade não contemplada no rol do art. 107, do CP.
48 4
ecorrido o período
título
IV
capítulo
teoria ger a l da sa n ção p en a l
XXXI
DO LIVRAMENTO CONDICIONAL 31.1. Considerações gerais
E
doutrinárias com relação ao seu exato surgimento, fato é que o livramento condicional se insere no contexto de racionalização dos sistemas penitenciários do século XIX, sendo concebido e aplicado como uma etapa intermediária entre o aprisionamento e a plena liberdade. Dessa forma, apesar de opiniões contrárias,1 pode-se afirmar que o livramento condicional surgiu com o sistema progressivo inglês-irlandês (mark system), desenvolvido, paralelamente, por Alexander Marconochie, na Ilha Norfolk (Austrália), em 1840, e por Walter Crofton (na Irlanda), em 1854.2 mbora haja divergências
1. Segundo Luiz Regis Prado, o livramento condicional teria sido aplicado, pela primeira vez, aos jovens detentos da prisão de Petite Roquete, em Paris (1832) e, em seguida, no presídio de Valença por Montesinos (1835). (Prado, Luiz Regis. Op. cit., p. 607). 2. Souza, Artur de Brito Gueiros. Op. cit., p. 139. Para alguns doutrinadores, o sistema progressivo da servidão penal inglesa, criado por Henderson e Du Cane, precedeu ao modelo progressivo anglo-irlandês: “Contando com cinco classes ou estágios, o sistema da servidão penal inglesa tinha os seguintes caracteres: o tempo de cumprimento da pena divide-se em três partes. A primeira parte é cumprida na célula, por um período de nove meses que não poderá ser abreviado. Trata-se da prisão celular com todo o seu rigor. Chegando à segunda parte da sua pena, o condenado é levado ao convívio com outros presos para o trabalho. Ele só se separa de seus companheiros de cárcere durante a noite e às refeições. Dentro desse segundo período, cada esforço feito pelo prisioneiro para se bem conduzir, cada progresso atingido dentro do seu trabalho é constatado diariamente por um engenhoso sistema de marcas. Um número determinado de marcas, tanto pela conduta como pelo trabalho e progresso industrial obtido dentro de certo prazo, dá ao preso o direito a uma promoção de um degrau inferior à um degrau superior. A cada promoção, o condenado obtém um abrandamento de seu encarceramento e, desde que sua conduta esteja satisfatória e seus esforços reconhecidos, ele finda por obter uma licença (ticket of leave) e é 485
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Fragoso faz referência ao fato de que na França, desde 1832, empregava-se o livramento condicional para menores delinquentes, sendo ele introduzido para adultos em 1885, por iniciativa de Bonneville de Marsangy.3 Ainda no século XIX, a experiência do livramento condicional foi posta em prática por outro sistema penitenciário: o Reformatório de Elmira, iniciado em 1869. Segundo Edwin Sutherland, aquele reformatório, então destinado a réus primários, dividia-se em três classes. O condenado ingressava na “segunda classe”, da qual poderia progredir, num período não inferior a seis meses, à “primeira” e, em igual tempo, contando com a nota perfect, faria jus ao livramento, desde que se “apalavrasse às condições impostas” – daí surgindo o conhecido modelo da parole system. Todavia, se praticasse falta disciplinar, ele regrediria à “terceira classe”, onde as esperanças de liberdade desapareciam.4 Na atualidade, o livramento condicional é medida assaz utilizada nos países que adotam o sistema progressivo de cumprimento de pena. Nesse sentido, observa Jescheck que o instituto promove a ressocialização do apenado, permitindo uma transição flexível do encarceramento ao estado de liberdade. Assinala, ainda, o referido autor, que o livramento condicional atende aos fins preventivo-especiais da pena, pois estimula o apenado a afastar-se do delito após a sua saída da prisão, gerando, ainda, àqueles que se encontram aprisionados, a expectativa de uma liberação antecipada, “mercê de uma atitude colaboradora durante sua estadia no cárcere”.5 Nessa esteira, é interessante observar que mesmo em países que cominam, para certos delitos, a pena de prisão perpétua – teoricamente antítese do sistema progressivo –, permite-se a concessão do livramento condicional. É o que ocorre, v.g., na França e na Alemanha. Neste último, após o decurso de quinze anos de prisão, pode-se pleitear o benefício da “suspensão do resto da pena” (§ 57-A, do Código Penal Alemão). Por sua vez, na França, a Lei de 01/02/1994 instituiu que o condenado a uma pena de prisão perpétua pode obter livramento condicional por expressa determinação da Cour de cassation depois de cumpridos trinta anos.6 Sendo assim, mesmo nos casos de aplicação da prisão perpétua, há que se respeitar a dignidade da pessoa do condenado, mantendo viva a expectativa de uma liberdade futura, consoante seus méritos no cumprimento das normas e disciplinas internas das prisões. posto em liberdade condicional. (...) A intimidação pela rigorosa pena da célula, de uma parte, e a ação moralizante do sistema de marcas, de outra. Eis aqui os dois traços característicos da servidão penal inglesa.” (Robin, E. La Question Pénitentiaire. Paris: Bonhoure, 1872, p. 16-17). 3. Fragoso. Op. cit., p. 473. 4. Sutherland, Edwin H.; Cressey, Donald R. Principles of Criminology. 11th ed. New York: General Hall, 1992, p. 469. Assinala, ainda, o autor, que o Reformatório de Elmira foi concebido como uma penitenciária de segurança máxima, na qual os castigos corporais faziam parte da rotina diária. Segundo Sutherland, “cinco anos depois de Elmira ser aberto, prisioneiros de Nova Iorque pediram aos juízes para serem mandados para a Prisão de Auburn ao invés do Reformatório de Elmira, porque o sistema de disciplina de Elmira era muito severo. Um alto oficial de Elmira gabava-se desse fato, acreditando que esse estado de coisas era um mérito à sua instituição.” (Idem, p. 469). 5. Jescheck, Hans-Heinrich; Weigend, Thomas. Op. cit., p. 915. 6. Stefani, Levasseur, Bouloc. Op. cit., p. 579. 486
Capítulo XXXI | Do livramento condicional
Aliás, a Corte Europeia de Direitos Humanos decidiu que uma pena de prisão perpétua não contraria o art. 3o da Convenção Europeia de Direitos Humanos, que proíbe os tratamentos degradantes e desumanos, justamente por haver a possibilidade de livramento condicional.7 No Brasil, o livramento condicional foi originalmente previsto no CP/1890, mas não chegou a ser aplicado sob o duvidoso argumento de que careceria de regulamentação infralegal. Sobreveio o Decreto no 16.665/1924, regulando-o em termos precisos, e prevendo, ainda, o Conselho Penitenciário – órgão administrativo encarregado da análise dos pedidos, possibilitando, pois, que os condenados à pena de prisão não inferior a quatro anos pudessem, de fato, obter tal benefício. Posteriormente, o Decreto no 24.351/1934 deu-lhe nova roupagem, facultando o livramento para os condenados às penas superiores a um ano e, em seguida, o instituto foi integrado ao Código de 1940, com o livramento podendo ser pleiteado pelos condenados às penas de reclusão ou detenção superiores a três anos, desde que atendidos certos requisitos (art. 60, do CP). O Código de Processo de 1941 (art. 710 e segs.) e a Lei das Contravenções Penais (art. 11, da LCP) também trataram da matéria. Entretanto, o requisito de pena superior a três anos, previsto pelo CP/1940, gerou um paradoxo, pois o sursis, igualmente acolhido por aquele diploma, só cabia para a hipótese de pena igual ou inferior a dois anos. Dessa forma, criou-se um hiato para os casos de condenação à pena superior a dois, mas inferior a três anos, defeito este que somente veio a ser corrigido pela Lei no 6.416/1977, passando, assim, a ser possível o livramento condicional para a condenação igual ou superior a dois anos, compatibilizando-o com a suspensão da pena igual ou inferior a dois anos. Acresça-se que este patamar foi mantido na Reforma de 1984.
31.2. Conceito e natureza jurídica do livramento condicional
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ivramento condicional é a liberação antecipada, mediante determinadas condições, do condenado que cumpriu uma parte da pena que lhe foi imposta.8 Cuida-se, portanto, de um teste, de um ensaio, no sentido de se verificar, empiricamente, se ele tem aptidão para, ainda que precariamente, abreviar o tempo de prisão e sair do estabelecimento no escopo de reintegrar-se socialmente.9 Mais do que um instituto de Direito Penal ou Processual Penal, o livramento condicional é uma matéria que toca particularmente ao Direito de Execução Penal.
7. Pradel. Op. cit., p. 496. 8. Fragoso, Heleno Cláudio. Op. cit., p. 473. 9. Ao lado do livramento condicional, a LEP prevê, nos arts. 120 e segs., hipóteses de autorizações de saída extramuros, encaradas não somente como etapa do sistema progressivo, mas, igualmente, como medidas assistenciais e humanitárias. Segundo a Exposição de Motivos da LEP, “as autorizações de saída representam um considerável avanço penalógico e os seus resultados são sempre proveitosos quando outorgados mediante bom senso e adequada fiscalização.” (E. M. da LEP, item 131). 487
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A propósito, não há consenso doutrinário sobre a sua natureza. Todavia, a doutrina estrangeira inclina-se a considerá-lo como uma fase da execução progressiva da pena de prisão. Nesse sentido, Jescheck afirma que a “suspensão do resto da pena” é uma medida de “cunho penitenciário” que não modifica a pena em si, mas somente a forma da sua execução.10 Por sua vez, a maioria da nossa doutrina considera-o como direito subjetivo do apenado, desde que atendidos os pressupostos legais.11 Divergindo, porém, da maioria, Damásio de Jesus sustenta que, após a Reforma Penal de 1984, o livramento condicional deixou de ser um direto do condenado, passando a se constituir uma “forma de execução da pena privativa de liberdade”.12 Efetivamente, deve-se reconhecer a sua natureza de fase executiva da pena, o que o diferencia das outras alternativas penais. Nesse sentido, observa-se que o seu período de prova não corresponde a um prazo fixo – por exemplo, de dois a quatro anos –, tal como verificado nos outros substitutivos penais, mas, sim, todo o restante da pena imposta. De mais a mais, durante o período de prova não corre o prazo da prescrição, pois a pretensão executória do Estado está sendo exercitada a cada dia de cumprimento do livramento. Acresça-se, ainda, que os efeitos da sua revogação são muito mais severos do que aqueles previstos para os outros que compõem o leque de alternativas penais. Não obstante tais ponderações, por razões didáticas, prefere-se analisar o livramento condicional como espécie do gênero alternativas penais, facilitando a compreensão em conjunto de todos os institutos que objetivam a substituição ou abreviação do encarceramento no Direito Penal brasileiro.
31.3. Pressupostos do livramento condicional
S
131, da LEP, o Juízo da Execução Penal, ouvido o Ministério Público e o Conselho Penitenciário, poderá conceder o livramento condicional ao condenado que vier a atender aos requisitos do art. 83, do CP. Com relação ao Conselho Penitenciário, cumpre registrar que a Lei no 10.792/2003, ao estabelecer novo procedimento para a progressão de regimes, determinou que o mesmo deveria ser observado, dentre outros, para a obtenção do livramento condicional (art. 112, §, 2o, da LEP). Dessa maneira, em que pesem opiniões em contrário,13 bem assim a redação do art. 131, da LEP, pode-se afirmar que não se exige mais a prévia oitiva do Conselho Penitenciário. Nesse sentido, ressalte-se que a mesma Lei no 10.792/2003, acabou por modificar, também, o inc. I, do art. 70, da LEP, retirando daquele órgão a atribuição para emitir egundo o art.
10. Jescheck, Hans-Heinrich; Weigend, Thomas. Op. cit., p. 915. 11. Nesse sentido: Prado, Luiz Regis. Op. cit., p. 609; e Bitencourt, Cezar Roberto. Op. cit., p. 657. 12. Jesus, Damásio Evangelista de. Op. cit., p. 621. 13. Guilherme Nucci sustenta que, à luz do art. 131, da LEP, “é indispensável o parecer do Conselho Penitenciário.” (Nucci, Guilherme de Souza. Op. cit., p. 395). 488
Capítulo XXXI | Do livramento condicional
parecer sobre livramento condicional, consoante decidido pelo STJ.14 Feitas tais observações, passa-se a análise dos requisitos para a obtenção do livramento condicional. A) Que a pena privativa de liberdade seja igual ou superior a dois anos
Conforme se extrai do art. 83, caput, do CP, somente é possível a concessão do livramento condicional para as penas privativas de liberdade (reclusão, detenção ou prisão simples). Tal como ocorre com o sursis, não cabe livramento condicional para penas restritivas de direitos ou multa. Além disso, é preciso que a pena aplicada seja igual ou superior a dois anos. As penas que correspondam a infrações diversas podem ser somadas para fins de obtenção do livramento (art. 84, do CP). Em sentido contrário, a pena privativa de liberdade fixada em patamar inferior a dois anos, não pode ser objeto de livramento condicional, ainda que não lhe seja possível a substituição por restritiva de direitos ou a concessão do sursis.15 B) Que tenha cumprido mais de um terço da pena se o condenado não for reincidente em crime doloso e tiver bons antecedentes
Para o denominado livramento simples, o inc. I, do art. 83, do CP, exige a presença cumulativa de três fatores: (1) cumprimento de mais de um terço da pena; (2) condenado não reincidente em crime doloso; e (3) bons antecedentes reconhecidos na sentença condenatória. Relativamente à quantidade de pena cumprida – e tomando, como referencial, o patamar punitivo de dois anos – o livramento pressupõe o desconto de mais de oito meses de pena. Para o atendimento desse quantum, deve ser contabilizado o período de prisão provisória, no Brasil ou estrangeiro (art. 42, do CP), podendo-se remir o tempo destinado ao trabalho e ao estudo formal, caso se cuide de apenado no regime fechado ou semiaberto (art. 126, da LEP, e Súmula 341, do STJ).16 O atendimento do referido quantum se observa, de ordinário, pelo cálculo da planilha do cumprimento de pena do condenado, devidamente homologado pelo magistrado das execuções penais. É importante registrar que o percentual de mais de um terço de pena cumprida deve ser calculado sobre a totalidade da pena imposta, consoante a regra do art. 75, do CP, e da Súmula 715, do STF.17 14. REsp 773635. STJ. Min. Gilson Dipp. Quinta Turma. DJ de 03/04/2006. No mesmo sentido: “Evidenciado, in casu, que o Juízo de 1o grau dispensou a realização do exame criminológico, concedendo o benefício do livramento condicional ao paciente, não é permitido ao e. Tribunal a quo reformar esta decisão, e, por conseguinte, determinar prévia oitiva do Conselho Penitenciário, sem a devida fundamentação, ou condicionar o benefício a requisitos que não os constantes no texto legal. (Precedentes). Habeas Corpus concedido.” (HC 93416. STJ. Min. Felix Fischer. Quinta Turma. DJ de 24/03/2008). 15. Cf.: “Conforme determina o caput do art. 83, do CP, o livramento condicional é admitido para condenados a pena superior a dois anos de reclusão.” (HC 120733. STJ. Min. Celso Limogni. Sexta Turma. DJ de 02/03/2009). 16. Súmula 341 do STJ: A frequência a curso de ensino formal é causa de remição de parte do tempo de execução de pena sob regime fechado ou semiaberto. 17. Súmula 715 do STF: A pena unificada para atender ao limite de 30 (trinta) anos de cumprimento, determinado pelo art. 75 do Código Penal, não é considerada para a concessão de outros benefícios, como o livramento condicional ou regime mais favorável de execução. 489
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Para fazer jus a esta modalidade de livramento é preciso, ainda, que não seja reincidente em crime doloso. Trata-se da situação oposta à do primário em crime doloso. Se for reincidente, mas em crime culposo, poderá, em tese, obter o benefício. Com relação à reincidência, observe-se que o decurso do prazo de cinco anos do cumprimento ou extinção torna ineficaz os efeitos da condenação anterior (art. 64, I, do CP), conquanto possa importar no reconhecimento de maus antecedentes. O terceiro fator cumulativo consiste no reconhecimento judicial de que o réu é portador de bons antecedentes. Como visto, cuida-se de uma das circunstâncias judiciais contempladas no art. 59, caput, do CP, e cujo exato alcance é alvo de intensa controvérsia na nossa jurisprudência. O debate gira em torno de se saber se a existência de inquéritos policiais ou mesmo de condenações não transitadas em julgado podem ser valorados como antecedentes desabonadores. Sobre o assunto, a Súmula 444 do STJ dispõe ser vedada a utilização de inquéritos policiais e ações penais em curso para tal finalidade. Ainda sobre essa questão, observa-se que a figura do condenado não reincidente, mas com maus antecedentes não se inclui, a rigor, em nenhum dos incisos do art. 83. O primeiro fala em “não reincidente em crime doloso com bons antecedentes”; e, o segundo, somente em “reincidente em crime doloso”, omitindo qualquer referência aos seus antecedentes. Cuida-se, a princípio, de uma omissão do Código. Diante disso, parte da doutrina posiciona-se no sentido mais favorável ao réu, opinando que a exigência do desconto de mais da metade somente se aplicaria ao reincidente em crime doloso. Para Luiz Regis Prado, impõe-se a interpretação extensiva in bonam partem do inc. I, do art. 83, do CP, a fim de abranger também os condenados não reincidentes possuidores de maus antecedentes.18 A jurisprudência do STJ trilha, via de regra, o mesmo caminho. Conforme já decidido, ao condenado primário, com maus antecedentes, deve ser deferido o livramento simples, exigindo-lhe, além dos requisitos objetivos e subjetivos, somente o cumprimento de mais de um terço da pena. Isso porque, segundo os arrestos daquela Corte, a limitação à liberdade do cidadão deve vir sempre expressa em lei, não se podendo dar interpretação ampla às regras restritivas de direitos, em detrimento do réu.19 Diversamente, há quem sustente que os fatores contidos no inc. I, do art. 83, devem ser aferidos cumulativamente. É dizer: para fazer jus ao livramento simples, o condenado deve cumprir mais de um terço da pena, não ser reincidente em crime doloso e ter bons antecedentes. Basta a ausência de um deles para que não se faça mais jus à modalidade abreviada de livramento condicional, devendo-se subsumir ao regramento geral de cumprimento de mais da metade da pena. Dessa maneira, de acordo com este 18. Prado, Luiz Regis. Op. cit., p. 611. 19. HC 57300. STJ. Min. Gilson Dipp. Quinta Turma. DJ de 05/02/2007. No mesmo sentido: “No caso de paciente primário, de maus antecedentes, como o Código não contemplou tal hipótese, ao tratar do prazo para concessão do livramento condicional, não se admite a interpretação em prejuízo do réu, devendo ser aplicado o prazo de um terço. O paciente primário com maus antecedentes não pode ser equiparado ao reincidente, em seu prejuízo. Precedentes. Ordem concedida para cassar o acórdão do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, restabelecendo a decisão de primeiro grau que concedeu o benefício do livramento condicional.” (HC 102278. STJ. Min. Jane Silva. Sexta Turma. DJ de 22/04/2008). 49 0
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posicionamento, tem-se que os maus antecedentes – reconhecidos pelo magistrado sentenciador –, projetar-se-iam de forma condicionante ao curso da execução penal, particularmente no tocante ao direito de obter o benefício do livramento condicional.20 Na esteira dessa segunda corrente, Guilherme de Souza Nucci assinala que o art. 83, I, do CP, exige duplo requisito – primário em crime doloso e bons antecedentes –, sendo expressa a vedação do benefício, com um terço da pena, “a quem possua maus antecedentes”.21 C) Que tenha cumprido mais da metade se for reincidente em crime doloso
O atendimento de mais da metade da pena, que era a regra geral para o livramento ao tempo da redação originária do Código de 1940 (art. 60, I, do CP/1940), passou a ser exigido somente para o reincidente em crime doloso, pouco importando se portador de bons ou maus antecedentes (art. 83, II, do CP/1984). Por exclusão, cuidando-se de primário com maus antecedentes forma-se a discussão entre aqueles que são a favor ou contra a concessão do livramento apenas com o cumprimento de um terço da pena, consoante o exposto no tópico precedente. Reitere-se, por oportuno, a assertiva de que o percentual – seja para um terço, seja para a metade – deve levar em conta o montante da sanção imposta. Por exemplo, se o cômputo das penas aplicadas em desfavor do condenado atingirem o total de cinquenta anos de reclusão, sendo o mesmo reincidente, somente poderá pleitear o livramento após o cumprimento de mais de vinte e cinco anos (cf. Súmula 715, do STF), e não aos quinze anos, consoante defendido por corrente minoritária que sustenta que o limite de trinta anos (art. 75, caput, do CP) vale não somente para o cumprimento da pena, mas, também, para a obtenção de benefícios prisionais. D) Que tenha cumprido mais de dois terços, se condenado por crime hediondo ou assemelhados, salvo se reincidente específico em crimes dessa natureza
A Lei no 8.072/1990 regulamentou a previsão contida no art. 5o, XLIII, da CF/1988,22 estabelecendo normas penais e processuais penais mais severas para os crimes hediondos e assemelhados. O rol de crimes de hediondos está catalogado no art. 1o, da referida Lei 20. Nesse sentido, decidiu o STF: “Habeas Corpus. Livramento condicional. Reconhecimento de maus antecedentes na condenação. Pedido de livramento condicional cujo indeferimento, em virtude dos requisitos objetivos e subjetivos do instituto, não caracteriza arbitrariedade corrigível em habeas corpus. Irresignação voltada contra decisão do juiz da execução. O reconhecimento de maus antecedentes na sentença condenatória – que orienta a execução – o induz inutilidade de uma possível desautorização do STF ao aresto impugnado, visto que os tópicos norteadores da execução remanesceriam inatacados na condenação originaria. Habeas corpus indeferido.” (HC 69711. STF. Min. Francisco Rezek. Segunda Turma. DJ de 18/12/1992). 21. Nucci, Guilherme de Souza. Op. cit., p. 392. No mesmo sentido, Cezar Bitencourt: “Em realidade, o cumprimento de mais de um terço é uma exceção, e como medida excepcional só terá lugar se preencher todos os requisitos expressamente exigidos. Assim, só terá direito quem ‘não for reincidente em crime doloso e tiver bons antecedentes’ faltando um ou outro desses dois requisitos a exceção não se justifica e o condenado deverá cumprir mais da metade da pena.” (Bitencourt, Cezar Roberto. Op. cit., p. 662). 22. A lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos, por eles respondendo os mandantes, os executores e os que, podendo evitá-los, se omitirem (art. 5 o, XLIII, da CF/1988). 491
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no 8.072/1990,23 e os delitos a eles equiparados são os de tráfico de drogas (art. 33, da Lei no 11.343/2006), tortura (art. 1o, da Lei no 9.455/1997) e terrorismo, pendente, quanto a este último, de uma tipificação adequada, em que pese a previsão do art. 20, da Lei no 7.170/1983. Segundo o art. 83, V, do CP, o condenado pela prática dessa categoria delitiva poderá obter o livramento condicional, independentemente dos seus antecedentes, desde que cumpra mais de dois terços da pena. Se se tratar de reincidente, doloso ou culposo, em categoria delitiva diversa da ora considerada, fará jus, igualmente, ao livramento após o decurso de dois terços da pena. No mesmo sentido, o art. 44, parágrafo único, da Lei no 11.343/2006 (Lei de Drogas). Todavia, cuidando-se de reincidente específico em crimes de natureza hedionda ou assemelhada, não poderá obter o benefício do livramento condicional. Acerca dessa questão, diverge-se quanto ao alcance da vedação. Em suma, a discussão diz respeito a considerar “reincidência específica” a violação do mesmo tipo penal ou, alternativamente, do mesmo bem jurídico tutelado (tese restritiva), ou, diferentemente, significaria a prática de quaisquer dos crimes catalogados pela Lei no 8.072/1990 ou equiparados (tese ampliativa). Exemplo: “A”, após transitar em julgado a sentença que o condenou por tráfico de drogas, pratica o delito de estupro. Poderá, quanto a este último, obter o livramento condicional após cumprido mais de 2/3 da pena?
Segundo a corrente minoritária, a vedação deve ser interpretada restritivamente. Não se trataria de uma reincidência qualquer, mas, sim, do cometimento de um novo crime da mesma natureza, isto é, com os mesmos caracteres do anterior. Portanto, para Alberto Silva Franco, a especificidade reside, exatamente, na comunicabilidade dos dados de composição típica dos dois delitos. Ademais, não poderia o legislador, nem o intérprete, decretar que delitos tão díspares, tão dessemelhantes, possuam igual ou mesma natureza. Alberto Silva Franco reporta-se à antiga figura da reincidência específica – que existia na redação primitiva do CP/1940 –, para concluir que esta noção está vinculada à definição de crimes da mesma natureza e por tal se entendem não apenas os delitos previstos no “mesmo dispositivo legal” mas também os que embora previstos em dispositivos diversos, apresentam, pelos fatos que os constituem ou por seus motivos determinantes, “caracteres fundamentais comuns”.24
23. Na atualidade, consideram-se hediondos os seguintes delitos capitulados no Código Penal: homicídio simples (art. 121), quando praticado em atividade típica de grupo de extermínio, ainda que cometido por um só agente; homicídio qualificado (art. 121, § 2o); latrocínio (art. 157, § 3 o, in fine); extorsão qualificada pela morte (art. 158, § 2o); extorsão mediante sequestro e na forma qualificada (art. 159, caput, e §§ 1o, 2o, e 3 o); estupro (art. 213, caput, e §§ 1o e 2o); estupro de vulnerável (art. 217-A, caput, e §§ 1o, 2o, 3 o e 4 o); epidemia com resultado morte (art. 267, § 1o), falsificação, corrupção, adulteração ou alteração de produto destinado a fins terapêuticos ou medicinais (art. 273, caput, e §§ 1o, 1o -A, e 1o -B). A Lei no 8.072/1990 considera, ainda, hediondo, o crime de genocídio, tipificado na Lei no 2.889/1951. 24. Franco, Alberto Silva. Crimes hediondos. 6. ed. São Paulo: Revista do Tribunais, 2007, p. 187. 492
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Em sentido inverso, a maior parte da doutrina considera que a norma se destina a todos os crimes arrolados como hediondos ou equiparados. Nesse sentido, Damásio de Jesus observa que a tese restritiva conduz ao absurdo, pois comparando-se duas hipóteses de reincidência em crimes hediondos, a primeira infringindo o mesmo tipo penal e, a segunda, tipos penais distintos, redundaria no deferimento do livramento condicional para esta, em detrimento daquela, ainda que mais severamente punida. Estar-se-ia violando o tratamento isonômico propugnado não somente pela Lei no 8.072/1990, como, também, pelo art. 5o, inciso XLIII, da CF/1988.25 Na mesma esteira – e considerando que a lei não define o que vem a ser reincidência específica – Guilherme de Souza Nucci aduz que todos os delitos da Lei no 8.072/1990 receberam o mesmo tratamento, de modo que a sua reiteração é igualmente perniciosa à sociedade.26 A análise da jurisprudência dos tribunais superiores denota inexistir distinção interna entre delitos hediondos e assemelhados, para fins de considerar reincidência específica somente a violação do mesmo tipo penal. Nesse sentido, julgando um caso envolvendo um reincidente em crimes de estupro e tráfico de drogas – situação idêntica à acima exemplificada –, que pleiteava livramento condicional para crimes de roubos – não hediondos –, o STJ reconheceu existir reincidência específica entre estupro e tráfico de drogas, mas não entre estes e o mencionado roubo, razão pela qual, cumpridas as penas daqueles crimes, poderia o condenado obter o benefício do livramento com relação às penas dos não hediondos.27 Assim, pode-se dizer que existem as três espécies de livramento condicional: o especial (cumprido um terço da pena), o ordinário (cumprida metade da pena) e o extraordinário (cumprido dois terços da pena). E) Que haja comprovação de comportamento satisfatório durante a execução da pena, bom desempenho no trabalho que lhe foi atribuído e aptidão para prover à própria subsistência mediante trabalho honesto
O inciso III, do art. 83, do CP, arrola três fatores de natureza subjetiva que dizem respeito ao cumprimento da sua pena privativa de liberdade. Objetiva-se, por intermédio 25. Damásio de Jesus ilustra seu raciocínio da seguinte forma: “Imaginemos duas hipóteses: 1a) um sujeito, presente a reincidência, comete um latrocínio seguido de uma extorsão mediante sequestro com morte. Abstraído o tema da unificação das penas, a do segundo crime é de 24 anos de reclusão. Como, segundo a tese restritiva, o condenado não é reincidente específico, poderia ser aplicado o livramento condicional com o cumprimento de 16 anos de pena (2/3 do total); 2 a) um sujeito, após condenação irrecorrível por latrocínio, comete outro latrocínio. A pena mínima do segundo crime é de 20 anos de reclusão. Como se trata de reincidente específico, não poderia ser aplicado o livramento condicional (...). Observando-se que a extorsão mediante sequestro com morte é apenada mais severamente que o latrocínio, verifica-se que na primeira hipótese, de maior gravidade (latrocínio e extorsão mediante sequestro com morte), cumpriria somente 16 anos de pena; na segunda, menos grave (dois latrocínios), cumpriria 20 anos. Cremos que não foi intenção da lei impor tratamento mais suave à hipótese mais grave.” (Jesus, Damásio Evangelista de. Op. cit., p. 621). 26. Nucci, Guilherme de Souza. Op. cit., p. 393. 27. HC 40126. STJ. Min. Hélio Barbosa. Sexta Turma. DJ de 27/06/2006. A propósito, vide o seguinte aresto: “A exigência de cumprimento de 2/3 da pena para livramento condicional, nos casos de crime hediondo, advém da Lei n o 8.072/1990, e não sofreu qualquer alteração pela Lei no 11.464/2007, que apenas modificou o lapso para a progressão de regime prisional.” (HC 168588. STJ. Min. Maria Thereza Moura. Sexta Turma. DJ de 01/02/2011). 493
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desses fatores, aferir se o apenado responde satisfatoriamente às expectativas relacionadas com a sua reinserção social. 1) Comportamento satisfatório no curso da execução penal Cuida-se de redação que mereceu os elogios da nossa doutrina, visto que, ao invés de exigir boa conduta carcerária – requisito presente antes da Reforma de 1984 –, o art. 83, III, 1a parte, do CP/1984 passou a mencionar, tão somente, que o apenado possuísse comportamento satisfatório. Em outros termos, o legislador reconheceu, expressamente, as deficiências da execução da pena privativa de liberdade no Brasil, contentando-se com o satisfatório ao invés do bom ou excelente. Ocorre, porém, que esse requisito foi derrogado pela nova redação do art. 112, da LEP. Com efeito, a Lei no 10.792/2003, ao dar novo tratamento à progressão de regimes, passou a exigir do condenado, dentre outras condições, a ostentação de bom comportamento carcerário, sendo de se observar idêntico procedimento, dentre outros, para a obtenção do livramento condicional (art. 112, § 2o, alterado pela Lei no 10.792/2003). Sendo assim, retornou-se, indiretamente, à antiga adjetivação de bom comportamento, que deve apresentar aquele que pleiteia o livramento, consoante a classificação que lhe será atribuída pela Direção do respectivo estabelecimento penitenciário. Tudo dependerá, evidentemente, da sua colaboração com a disciplina interna e da sua dedicação para com as atividades que lhes forem oferecidas. As faltas disciplinares (art. 49, da LEP), devidamente apuradas em procedimento administrativo disciplinar, podem acarretar o rebaixamento classificatório do apenado, podendo, porém, ser recuperada uma nota boa ou até mesmo excelente, após o decurso de determinado lapso temporal.28 Por outro lado, o cometimento de falta grave (art. 50, da LEP), que implica o reinício da contagem do prazo para obtenção de certos benefícios prisionais, não interrompe o prazo exigido para o deferimento de livramento condicional, dada a falta de previsão legal neste sentido (cf. Súmula 441, do STJ). 2) Bom desempenho no trabalho que lhe foi atribuído Conforme já ressaltado, o trabalho prisional é um direito e, ao mesmo tempo, um dever do apenado. Constatado, nessa esteira, o aproveitamento positivo nas tarefas por ele desempenhadas – dentro ou fora do estabelecimento penal –, restará atendido o requisito constante no art. 83, III, 2a parte, do CP.
28. Cf.: “O comportamento satisfatório é um índice importante de adaptação social que há de ser verificado de atos positivos do sentenciado, não bastando a simples abstenção de faltas disciplinares; deflui da boa convivência do sentenciado com os companheiros de prisão, da aplicação nos estudos, do intercâmbio com a família. Não tem comportamento satisfatório o sentenciado que já empreendeu fuga, burlou a vigilância e afastou-se do presídio, envolveu-se com tóxicos, participou de movimento paredista ou motim, praticou outras faltas graves etc.” (Mirabete, Julio Fabbrini. Execução Penal. 11. ed. São Paulo: Atlas, 2004, p. 561). 494
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Não obstante o comando legal, a grande dificuldade para o atendimento dessa exigência reside na não atribuição de trabalho por parte da administração penitenciária – circunstância frequentemente presente nos estabelecimentos prisionais brasileiros. Nesse caso, tem-se que o condenado não pode vir a ser prejudicado na dedução de seu pedido de livramento condicional, ante a ausência de atividade laborativa que deveria ter sido disponibilizada pelo Poder Público. 3) Aptidão para prover a própria subsistência mediante trabalho honesto O apenado que apresentar bom desempenho no trabalho interno, além da frequência a cursos profissionalizantes, denotará a aptidão para prover sua subsistência lícita, por meio do trabalho externo. Há, portanto, íntima vinculação do requisito constante no art. 83, III, in fine, com os anteriores. Saliente-se, no particular, que os pedidos de livramento condicional são geralmente instruídos com declarações de emprego em favor do apenado. Ressalte-se que a lei exige a predisposição para o trabalho honesto, ainda que, circunstancialmente, não se obtenha emprego formal. Em que pese a importância das informações coligidas pela Administração Penitenciária, fato é que compete ao Juiz das execuções penais valorá-las e decidir, após a oitiva do MP, pela concessão ou não do benefício. Não fica o magistrado adstrito àquelas informações, podendo decidir, fundamentadamente, pelo deferimento ou não do benefício, a despeito dos atestados favoráveis ao apenado.29 F) Que tenha reparado o dano salvo efetiva impossibilidade de fazê-lo
Este requisito encontra-se presente em todos os institutos alternativo-penais. Decorre, como já mencionado, da preocupação do legislador em tutelar, ainda que minimamente, os interesses do lesado pela infração penal. Ressalte-se, por oportuno, que a obrigação de reparar o dano é um dos efeitos extrapenais da sentença condenatória (art. 91, I, do CP). Atente-se, ainda, que a reparação do dano causado ao erário público é, na atualidade, um dos requisitos para a própria progressão de regimes, consoante disposto no § 4o, do art. 33, do CP, acrescido pela Lei no 10.763/2003. Demais disso, parte da remuneração do trabalho do condenado deve ser revertida para a indenização dos danos causados pelo crime, desde que determinado judicialmente e não reparado por outros meios (art. 29, § 1o, “a”, da LEP). Por outro lado, a impossibilidade de reparação do dano deve ser aferida por diversos meios probatórios, 29. Cf.: “1. A interpretação da nova redação dada pela Lei no 10.792/2003 ao art. 112 da LEP deve ser sistemática, sob pena de cingir-se o juiz das execuções penais ao papel de mero homologador de atestados de boa conduta exarados pelas autoridades administrativas. 2. Se na análise das provas processuais o juiz não está adstrito às conclusões de parecer ou laudo técnico para a formação de sua convicção, conforme estabelece o art. 182 do Código de Processo Penal, do mesmo modo, na fase da execução penal, ele não está vinculado ao atestado de conduta carcerária. 3. Não se afastou, portanto, a necessidade da verificação de comprovado comportamento satisfatório durante a execução da pena previsto no art. 83, III, do Código Penal, inocorrente no caso, em espécie, pelas reiteradas faltas graves cometidas pelo paciente com as fugas do estabelecimento prisional.” (HC 95884. STF. Min. Ricardo Lewandowski. Primeira Turma. DJ de 12/06/2009). 495
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não podendo ser unicamente lastreada em “declarações” no sentido de não possuir recursos para tanto. G) Que o condenado por crime doloso, cometido com violência ou grave ameaça à pessoa, seja submetido a exame criminológico
Cuida-se de requisito específico, previsto no art. 83, parágrafo único, do CP, que visa aferir se o apenado possui condições pessoais que façam presumir que não voltará a delinquir. Consoante a Reforma de 1984, esta exigência vincula-se à revogação da medida de segurança para o imputável. Com a extinção do sistema do duplo binário – ou seja, imposição, ao autor de crime praticado com violência física ou moral, de pena e, caso ainda perigoso, de medida de segurança –, procurou a lei penal contrabalançar com a obrigatoriedade da realização de exame criminológico para fins não só de livramento condicional, como também para a progressão de regimes.30 No entanto, tendo em vista as alterações promovidas pela Lei no 10.792/2003, particularmente no art. 112, da LEP, não há mais a obrigatoriedade da realização do exame criminológico, seja para o livramento condicional, seja para quaisquer outros incidentes da execução penal. Dessa maneira, consoante a jurisprudência do STF e do STJ, o exame criminológico tornou-se medida facultativa, cuja realização será decidida pelo magistrado, de forma fundamentada, considerando as peculiaridades do caso concreto.31 31.3.1. Livramento condicional para preso estrangeiro
Em geral, a doutrina e jurisprudência brasileira apresentam-se contrárias a concessão do livramento condicional ao preso estrangeiro.32 No entanto, conforme a discussão 30. Cf.: “Exame criminológico é espécie do gênero exame da personalidade. O primeiro, “parte do binômio delito-delinquente, numa interação de causa e efeito, tendo como objetivo a investigação médica, psicológica e social, como o reclamavam os pioneiros da Criminologia. O segundo consiste no inquérito sobre o agente para além do crime cometido.” (E. M. da LEP, item 34). 31. No STF: “Edição da Lei no 10.792/2003, que deu nova redação ao art. 112 da LEP. Diploma legislativo que, embora omitindo qualquer referência ao exame criminológico, não lhe veda a realização, sempre que julgada necessária pelo magistrado competente. Consequente legitimidade jurídica da adoção, pelo Poder Judiciário, do exame criminológico (RT 832/676 – RT 836/535 – RT 837/568). Precedentes. Habeas Corpus deferido, em parte.” (HC 88052. STF. Min. Celso de Mello. Segunda Turma. DJ de 04/04/2006). No mesmo sentido: HC 96660. STF. Min. Ricardo Lewandowski. Primeira Turma. DJ de 21/08/2009. No STJ: “(...) 2. Para a concessão do benefício do livramento condicional, deve o acusado preencher os requisitos de natureza objetiva (lapso temporal) e subjetiva (bom comportamento carcerário), nos termos do art. 112 da LEP, com a redação dada pela Lei no 10.792/2003, podendo o magistrado, excepcionalmente, determinar a realização do exame criminológico, diante das peculiaridades da causa, desde que faça em decisão concretamente fundamentada (HC 88052, Rel. Min. Celso de Mello, DJ de 28/04/2006). (Precedentes). III. Dessa forma, muito embora a nova redação do art. 112 da LEP não mais exija o exame criminológico, esse pode ser realizado, se o Juízo da Execução, diante das peculiaridades da causa, assim o entender, servindo de base para o deferimento ou indeferimento do pedido (Precedentes desta Corte e do c. Pretório Excelso). IV. In casu, verifica-se que o e. Tribunal a quo, considerando o envolvimento do paciente em crimes contra o patrimônio (roubos majorados), bem como a prática de faltas disciplinares de natureza grave (desacato aos funcionários do estabelecimento carcerário e rebelião), determinou, fundamentadamente, sua submissão ao exame criminológico, não se vislumbrando, portanto, qualquer ilegalidade em tal determinação.” (HC 126505. STJ. Min. Felix Fischer. Quinta Turma. DJ de 15/12/2009). 32. No STF: HC 56311. Min. Moreira Alves. In RTJ 90/790; HC 63593. Min. Djaci Falcão. In RTJ 117/611; e HC 83723. Min. Sepúlveda Pertence. DJ de 30/04/2004. 496
Capítulo XXXI | Do livramento condicional
aprofundada no Capítulo XXXI, tem-se que os argumentos alinhavados contra o apenado estrangeiro – seja para a progressão de regime ou para o livramento condicional – não são intransponíveis, havendo, de fato, corrente doutrinária a favor da concessão de tais benefícios.33 A propósito, o STF decidiu – em um habeas corpus impetrado em favor de uma presa estrangeira – que o fato do condenado por tráfico de drogas ser estrangeiro, estar preso, não ter domicílio no país e ser objeto de processo de expulsão, ano constitui óbice à progressão de regime de cumprimento de pena.34
31.4. Unificação de penas e livramento condicional
S
84, do CP, as penas que correspondam às infrações diversas devem ser somadas para efeito do livramento. O art. 75, § 1o, do CP, e o art. 111, da LEP, cuidam da questão da unificação, para atender, respectivamente, ao limite máximo de cumprimento de pena (trinta anos), bem assim à fixação do regime inicial de cumprimento de pena. Ressalte-se, ainda, que compete ao Juiz da execução penal efetuar a unificação de penas, correspondentes a infrações diversas, na hipótese do apenado receber mais de uma condenação (art. 66, III, “a”, da LEP). Vê-se, portanto, que o tema da unificação de penas é fundamental para a execução penal, em geral e, em particular, para o livramento condicional. Isso porque, se um dos requisitos para a sua obtenção é justamente o preenchimento do tempo de cumprimento da sanção imposta, nada mais racional que se fixe o somatório punitivo sobre o qual incidirão os cálculos judiciais. Contudo, pode acontecer de o apenado já se encontrar no gozo do livramento quando sobrevém outra condenação. Nesse caso, a unificação de que trata o presente dispositivo somente poderá ser realizada se a segunda condenação decorrer de crime cometido antes da vigência do benefício, conforme disposto nos arts. 86, II, do CP, e 141, da LEP. Do contrário, não terá lugar a unificação, ao menos para fins de livramento. egundo o art.
31.5. Cumprimento das condições e período de prova
A
serem observadas pelo liberado, durante o período de prova, devem estar especificadas na sentença que concede o benefício (art. 85, do CP). Na mesma esteira, o art. 132, da LEP, disciplina os termos da sentença concessiva do livramento, s condições a
33. Cf. Souza, Artur de Brito Gueiros. Presos estrangeiros..., cit., passim. Toron, Alberto Zacharias. O condenado estrangeiro e a progressão de regime prisional. In: O Neófito, , acessado em 07/06/2004; Nunes, Clayton Alfredo. O processo de execução penal e o estrangeiro com decreto expulsório. Boletim IBCCrim, n. 68, jul./1998; Koerner Jr., Rolf. Por que, em Direito Penal, desigualar o estrangeiro? In: O Neófito, , acessado em 17/09/04; e Rangel, Milton Torres. Análise sobre a situação jurídica de presos estrangeiros no Brasil, especificamente quanto aos benefícios de cumprimento de pena concedidos pela legislação penal (suspensão condicional da pena e livramento condicional). Revista Forense, n. 298, abr.-maio-jun./1987. 34. HC 97147. STF. Min. Cezar Peluso (relator para o acórdão). Segunda Turma. DJ de 11/02/2010. 497
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prevendo um rol de condições obrigatórias e facultativas que deverão ser observadas pelo liberado. As condições obrigatórias são: (1) obter ocupação lícita, dentro de prazo razoável se for apto para o trabalho; (2) comunicar periodicamente ao juiz sua ocupação; e (3) não mudar do território da comarca do Juízo da Execução, sem prévia autorização deste. Na hipótese de concordância judicial com a mudança de domicílio, determina, ainda, o art. 133, da LEP, que seja transferida a fiscalização do período de prova para o juízo do lugar para onde se transferiu o liberado. Interessante observar que a citada transferência de domicílio pode também ocorrer no âmbito internacional, conforme os modernos tratados de transferência de condenados subscritos pelo Brasil. É possível, por exemplo, que o liberado cumpra o período de prova do benefício no seu país de origem. Assim, v.g., um cidadão português, condenado pela justiça brasileira, poderá prosseguir no cumprimento da pena, por intermédio do livramento condicional, em solo lusitano.35 Por seu turno, as condições facultativas são: (1) não mudar de residência, no território da comarca, sem comunicação ao juiz e à autoridade incumbida da assistência ou fiscalização da medida (Patronato); (2) recolher-se à habitação em hora fixada; e (3) não frequentar determinados lugares. Com relação ao período de prova, cumpre ressaltar que a legislação brasileira não adota um tempo apriorístico, tal como verificado para as demais alternativas penais antes analisadas (transação penal, suspensão do processo e sursis), mas, sim, todo o restante da pena imposta ao condenado. Isso se deve ao fato de que, como mencionado, o livramento condicional mantém essencialmente sua natureza de sanção penal, razão pela qual o nominado período de prova é, justamente, a execução da pena de forma externa ao encarceramento.
31.6. Descumprimento das condições e revogação do benefício
C
o livramento condicional significa o cumprimento da pena fora do estabelecimento prisional. Dessa maneira, as condições impostas ao liberado devem ser estritamente observadas, sob pena de cancelamento do benefício e regressão ao regime anteriormente fixado. Constata-se, no particular, que o livramento condicional articula-se ao sistema progressivo de cumprimento de pena, constituindo-se sua última etapa. No entanto, não se pode olvidar que o sistema progressivo é, também, regressivo, estribando-se, portanto, nos méritos ou deméritos do apenado. Por conta disso, o descumprimento das condições impostas há de acarretar a revogação da liberdade condicionalmente obtida. Sendo assim, existem quatro possíveis causas de revogação do livramento, dividindo-se em obrigatórias e facultativas. omo dito acima ,
35. Sobre os países com os quais o Brasil tem tratado de transferência de condenados, vide o Cap. VIII. 498
Capítulo XXXI | Do livramento condicional
A) Revogação obrigatória
As causas obrigatórias de revogação do livramento estão reguladas no art. 86, do CP, e se fundam na óbvia evidência de que, com a superveniência de outra condenação à pena de prisão, torna-se impraticável a manutenção da liberdade do apenado. 1) Condenação irrecorrível por crime cometido durante o benefício Cuidando-se de delito praticado durante o período de prova (art. 86, inc. I), o apenado não poderá requerer a unificação das penas e tampouco se descontará o tempo consumido no período de prova. Ele deverá retornar ao cárcere para continuar a descontar a pena que havia dado azo ao benefício, de forma integral. Sem unificação, cumpre-se a primeira sanção, iniciando, em seguida, o desconto da nova pena, sendo que, somente para esta última, poderá, futuramente, vir a pleitear outro livramento condicional. A jurisprudência dos tribunais corrobora o tratamento rigoroso em questão. Nesse sentido, decidiu o STF que, revogado o livramento condicional pela prática delitiva durante o período de prova não se conta como tempo de pena cumprida o lapso temporal em que o condenado ficou em liberdade.36 De forma semelhante – em um caso que o apenado, logo após a concessão do benefício, já estava envolvido em novo crime –, decidiu o STJ que o livramento condicional é liberdade antecipada e a ela só faz jus aquele que se mostra recuperado para recomeçar uma vida honesta.37 2) Condenação irrecorrível por crime cometido antes do benefício Na hipótese de revogação decorrente de condenação por delito perpetrado antes da vigência do benefício (art. 86, II, do CP), a lei concede um tratamento mais brando, permitindo a unificação das penas, para fins de novo livramento, estabelecendo, ainda, o aproveitamento a favor do apenado do tempo em que esteve em liberdade. Nesse sentido, dispõe o art. 141, da LEP, que se a condenação for motivada por infração penal anterior à vigência do benefício, “computar-se-á como tempo de cumprimento da pena o período de prova, sendo permitida, para a concessão de novo livramento, a soma do tempo das duas penas”. A razão desse trato diferenciado reside na constatação de que, durante o período de prova, o liberado não descumpriu as condições impostas, tampouco se envolveu em novos fatos delituosos. Havia uma pendência anterior e, com a superveniência da condenação irrecorrível por delito anteriormente praticado, a revogação decorre de uma questão evidente: não se pode ficar “solto” e “preso” ao mesmo tempo. Revoga-se o benefício, mas dispensa-lhe efeitos mais complacentes: soma das penas para novo livramento e desconto do tempo em que esteve solto.38 36. HC 90449. STF. Min. Carlos Britto. Primeira Turma. DJ de 11/04/2008. 37. HC 114721. STJ. Min. Jane Silva. Sexta Turma. DJ de 02/03/2009. 38. Cf. art. 728, do CPP: “Se a revogação for motivada por infração penal anterior à vigência do livramento, computar-se-á no tempo da pena o período em que esteve solto o liberado, sendo permitida, para a concessão de novo livramento, a soma do tempo das duas penas.” 49 9
Curso de Direito Penal | Parte Geral
B) Revogação facultativa
Ao lado das causas de revogação decorrentes do condenado à pena privativa de liberdade, prevê o Código, no art. 87, duas outras hipóteses de revogação, porém facultativas. A primeira decorre de o liberado deixar de cumprir qualquer das obrigações constantes da sentença, sejam elas obrigatórias ou facultativas. A medida justifica-se porque, ao não cumprir o que lhe fora imposto – v.g., não procurar ocupação lícita, dentro de prazo razoável, sendo apto para o trabalho –, o liberado denota não ter completado suficientemente seu processo de reinserção social, razão pela qual poderá o magistrado reputar necessário seu retorno ao regime mais severo. Por sua vez, a segunda causa facultativa vincula-se à superveniência de sentença condenatória irrecorrível, por crime ou contravenção, a pena que não seja privativa de liberdade. No caso, sendo compatível o cumprimento da sanção decorrente de outro delito com o prosseguimento do benefício em curso, pode o juiz manter o livramento condicional. Em tais hipóteses, optando o magistrado pela manutenção do livramento, o mesmo deverá advertir o liberado para o seu estrito cumprimento ou, alternativamente, agravar as condições a serem cumpridas no período de prova (art. 140, parágrafo único, da LEP). Antes, porém, de decidir, deve-se proceder à sua oitiva, garantindo-se, assim, o direito a ampla defesa e contraditório.39 Por outro lado, mesmo em se tratando de revogação facultativa, incidirão os rigorosos efeitos previstos no art. 88, do CP, ou seja, não poderá ser concedido novo livramento e não será aproveitado o tempo em que esteve em liberdade o apenado. Justifica-se o rigor de tais efeitos, pois, ao descumprir as condições, fica patente que o período de prova demonstrou-se infrutífero para o apenado. Anote-se, por fim, que em virtude de má redação, deve-se ter redobrado cuidado com a exegese dos arts. 88, do CP, e 141 e 142, da LEP, fazendo-se necessário recorrer à interpretação sistêmica para o alcance da correta compreensão da mens legis.
31.7. Suspensão do livramento condicional
P
raticada , pelo liberado, outra infração penal, poderá o juiz ordenar-lhe a sua prisão, decretando, nos termos do art. 145, da LEP, a “suspensão do curso do livramento condicional”. Diferentemente da revogação, que é definitiva, a suspensão se dá a título provisório, ou seja, pendente da decisão final que selará o destino do apenado. A suspensão, portanto, é medida cautelar que visa resguardar os interesses da
39. Cf.: “Consoante entendimento desta Corte, para a revogação do livramento condicional, pela prática de contravenção penal, é necessário, quando possível, a prévia inquirição deste, possibilitando-se, assim, o contraditório e a ampla defesa. Ordem concedida para anular a decisão que revogou o livramento condicional, determinado-se que se proceda à sua regular oitiva.” (HC 28719. STJ. Min. Jorge Scartezzini. Quinta Turma. DJ de 01/12/2003). 500
Capítulo XXXI | Do livramento condicional
sociedade, até porque há uma natural demora até se chegar a uma sentença condenatória irrecorrível que acarrete, só então, a revogação definitiva do benefício.40
31.8. Prorrogação do livramento condicional
A
e da suspensão, discute-se, doutrinariamente, sobre a possibilidade de prorrogação do livramento condicional. Para alguns, ela decorreria, a teor do art. 89, do CP, da circunstância do juiz não poder declarar extinta a pena enquanto não passar em julgado a sentença em processo a que responde o liberado, por crime cometido na vigência do benefício. Em outros termos, por não poder extinguir a pena, enquanto não sobrevier sentença transitada em julgado no outro processo, ocorreria, automaticamente, a prorrogação do período de prova do livramento.41 Todavia, em que pesem aqueles que defendem a figura da prorrogação, é forçoso reconhecer que ela – a prorrogação do livramento ou do seu período de prova – efetivamente não existe. Isso porque, o art. 89, do CP, contempla norma impeditiva da extinção da pretensão punitiva estatal, visto que, se houver condenação, será revogado o livramento que estava suspenso, desprezando-se o tempo correspondente ao período de prova para fins de cômputo de pena cumprida.42 A jurisprudência do STF e do STJ apontam no sentido de rejeitar a hipótese de prorrogação do livramento, reconhecendo-se, tão somente, as medidas de suspensão, de caráter cautelar, e de revogação, como decisão final. Nesse sentido, a Corte Suprema decidiu que para obstar a extinção da pena, ante o término do prazo do livramento condicional sem decisão judicial que o revogue, a solução legal exclusiva é a medida cautelar de suspensão do seu curso (art. 732, do CPP, e art. 145, da LEP). Do contrário, não tendo havido a suspensão cautelar, escoará, sem óbice interruptivo, o prazo do livramento, cujo termo final, sem revogação, “implica a extinção da pena”.43 Numa palavra, no âmbito do livramento condicional, tem-se que não existe a propalada prorrogação, mas, somente, as medidas de suspensão e revogação. lém da revogação
40. Cf.: “1. O livramento condicional deve ser revogado caso o apenado venha a praticar novo crime durante o período de prova (revogação obrigatória) ou caso descumpra injustificadamente as condições impostas (revogação facultativa). 2. Na hipótese de prática de novo crime (revogação obrigatória), a Lei das Execuções Penais (art. 145) prevê a possibilidade de suspensão cautelar do benefício, posto que a revogação depende do aperfeiçoamento da coisa julgada condenatória penal, circunstância que, via de regra, leva tempo e, normalmente, somente ocorre após o escoamento do período de prova.(...).” (HC 123040. STJ. Min. Jane Silva. Sexta Turma. DJ de 03/11/2009). 41. Cf. Nucci, Guilherme de Souza. Op. cit., p. 401. 42. Cf. Bitencourt, Cezar Roberto. Op. cit., p. 731. 43. Cf. HC 81879. STF. Min. Sepúlveda Pertence. Primeira Turma. DJ de 20/09/2002. No mesmo sentido: “1. Paciente que praticou nova infração durante o período do livramento condicional, tendo o benefício sido suspenso ainda no decorrer do período de prova. 2. Havendo suspensão do livramento condicional durante o período de prova, não há falar em revogação ou extinção da punibilidade, nem mesmo de restabelecimento do benefício, até a decisão definitiva do processo resultante da imputação da prática de novo crime ocorrido durante a vigência do livramento. 3. Ordem denegada.” (HC 115771. STJ. Min. Og Fernandes. Sexta Turma. DJ de 23/11/2009). 5 01
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31.9. Cumprimento integral e extinção da punibilidade
C
o prazo referente ao período de prova – sem suspensão ou revogação –, considerar-se-á extinta a pena privativa de liberdade (art. 90, do CP, e art. 146, da LEP). Dessa maneira, constatando-se, de forma extemporânea, o descumprimento das condições impostas ou mesmo a perpetração de outro ilícito penal, não será possível desconstituir os efeitos extintivos da punibilidade. Cuida-se de entendimento prevalente nos tribunais superiores.44 Enfim, decorrido o período de prova sem que tenha havido expressa decisão suspendendo ou revogando o benefício, consideram-se efetivamente cumpridas as condições impostas ao liberado, devendo-se, assim, ser declarada extinta a punibilidade. Trata-se de causa de extinção da pretensão punitiva do Estado não prevista no rol do art. 107, CP. onforme salientado, decorrido
44. No STF: “1. Findo o período de prova, sem revogação ou suspensão do livramento condicional, há que se reconhecer a extinção da pena. 2. O retardamento indevido da decisão que julgue extinta a pena não pode desconstituir o efeito anteriormente consumado, à falta de revogação ou suspensão do benefício. Precedentes.” (HC 94580. STF. Min. Cármen Lúcia. Primeira Turma. DJ de 24/10/2008. No mesmo sentido: HC 88610. STF. Min. Ricardo Lewandowski. Primeira Turma. DJ de 22/06/2007). No STJ: “1. Compete ao Juízo das Execuções Criminais a suspensão do livramento condicional, na hipótese de ter sido cometido novo delito durante a sua vigência, para depois revogá-lo, se for o caso, não podendo ser considerado prorrogado o lapso condicional se não foi tomada qualquer providência no momento devido (art. 145 da LEP). 2. Não havendo a suspensão do livramento durante o período de prova, descabida se mostra a sua revogação posterior, devendo ser declarada a extinção da pena, nos termos do art. 90 do Código Penal. 3. Ordem concedida para declarar extinta a pena privativa de liberdade.” (HC 98595. STJ. Rel. Min. Jorge Mussi. Quinta Turma. DJ de 23/09/2008). 5 02
título
IV
capítulo
teoria ger a l da sa n ção p en a l
XXXII
EFEITOS DA CONDENAÇÃO E REABILITAÇÃO 32.1. Considerações gerais
O
s arts. 9 1 a 95 ,
do CP, regulam questões atinentes aos efeitos da sentença penal condenatória, bem assim ao instituto da reabilitação penal. Saliente-se que o primeiro efeito de qualquer condenação penal é a imposição de uma sanção penal, seja ela privação da liberdade (reclusão, detenção ou prisão simples), restrição de direitos, multa ou medida de segurança.1 Este é o chamado efeito primário da condenação. Além desse, há outros efeitos, divididos em efeitos de natureza penal e efeitos de natureza extrapenal. Os efeitos secundários de natureza penal encontram-se espalhados ao longo do Código, bem como no CPP e na LEP. Por seu turno, os efeitos secundários extrapenais encontram-se discriminados nos art. 91 e 92, do CP. Acresça-se, ainda, que, sob certas condições, tais efeitos poderão vir a ser extintos ou cancelados por força da reabilitação penal. Esta mecânica dogmática justifica e recomenda o estudo das duas matérias – efeitos da condenação e reabilitação – num único capítulo.
1. É por essa razão que o art. 9 o, do CP, impede que a sentença estrangeira seja homologada no Brasil para que surta seu principal efeito: a imposição de pena. Permite-se a homologação tão somente para os efeitos secundários previstos nos seus incisos. A razão para essa opção do Código reside na (duvidosa) proteção à nossa soberania. 5 03
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32.2. Efeitos secundários de natureza penal
A
a imposição de pena, a sentença penal condenatória, transitada ou não em julgado, pode acarretar, como dito, outras consequências penais, reguladas em diversos pontos da legislação penal, bem como no Código de Processo Penal e na Lei de Execução Penal. Dentre elas, destacam-se: (1) gerar a reincidência (art. 63, do CP); (2) impedir a concessão de substitutivos penais: a) na transação penal (art. 76, § 2o, da Lei no 9.099/1995); b) na suspensão condicional do processo (art. 89, caput, da mesma lei); c) na suspensão condicional da pena (art. 77, I, do CP, e art. 162, da LEP); (3) acarretar a revogação do sursis (art. 81, I, do CP); (4) acarretar a revogação do livramento condicional (art. 86, I e II, do CP, e art. 140, da LEP); (5) influir na contagem do prazo prescricional (art. 117, IV, do CP); (6) impedir o reconhecimento do privilégio: a) no furto (art. 155, § 2o, do CP); b) a apropriação indébita (art. 170, do CP); c) no estelionato (art. 171, § 1o, do CP); d) na receptação (art. 180, § 5o, do CP); (7) impedir a propositura da exceção da verdade no crime de calúnia (art. 138, § 3o, I, do CP); (8) impedir a extinção da punibilidade pela reparação do dano no peculato culposo (art. 312, § 3o, do CP); (9) impedir a extinção da punibilidade pela retratação ou declaração da verdade no falso testemunho (art. 342, § 2o, do CP); (10) ser expedida guia de recolhimento para a execução (arts. 105 e 171, da LEP); (11) ser o réu preso ou conservado na prisão, assim nas infrações inafiançáveis, como nas afiançáveis enquanto não prestar fiança (art. 393, I, do CPP, e Súmula 9, do STJ); (12) ser o nome do réu lançado no rol dos culpados (art. 5o, LVII, da CF/1988, e art. 393, II, do CPP) etc. lém de acarretar
32.3. Efeitos secudários de natureza extrapenal
D
portuguesas, a sentença condenatória acarreta a incidência de efeitos secundários de cunho extrapenal, tais como o “confisco de bens e a infâmia do nome do infrator”.2 O CC/1830 previa, igualmente, efeitos colaterais, tais como a reparação civil do dano causado, cuja execução poderia se dar no próprio título condenatório – medida essa curiosamente reintroduzida na reforma processual de 2008. A seu turno, o CP/1890, tratava, expressamente, dos efeitos da condenação, quais sejam, a perda, em favor da Nação ou dos Estados, dos instrumentos e resultado do crime, a obrigação de indenizar o dano e a obrigação de satisfazer as despesas judiciais.3 O CP/1940, por sua vez, tratou dos efeitos da condenação no seu art. 74, reproduzindo a obrigação de indenizar o dano resultante do delito e a perda, em favor da União, ressalvado o direito do lesado ou de terceiro de boa-fé, dos instrumentos do crime, esde as Ordenações
2. Nas Ordenações Filipinas, previa-se, ao lado da pena de morte, o confisco dos bens dos condenados por delitos de Lesa Majestade. Por conta disso, em 1792, além de enforcado e esquartejado, Joaquim José da Silva Xavier – o herói nacional Tiradentes – sofreu a “infâmia do nome”, estendida para filhos e netos, o “confisco dos bens para o Fisco e a Câmara Real”, tendo sido, ainda, a sua casa arrasada e salgada. 3. Cf. Prado, Luiz Regis. Op. cit., p. 617. 504
Capítulo XXXII | Efeitos da condenação e reabilitação
bem como do produto do crime ou de qualquer bem ou valor que constituísse proveito auferido pelo agente com a prática do fato criminoso. O Código de 1940 regulava, ainda, as chamadas penas acessórias (art. 67), consistentes na perda de função pública, eletiva ou de nomeação, na interdição de direitos e na publicação da sentença. A Reforma Penal de 1984 manteve a disciplina relativa aos efeitos gerais da sentença penal condenatória (art. 91) e transformou as penas acessórias em efeitos específicos (art. 92), sendo aqueles automáticos e, estes, motivadamente declarados. Segundo Guilherme Nucci, quem conferir a relação dos efeitos da condenação prevista no art. 92, do CP, poderá notar, com “clareza meridiana”, que lá estão as antigas “penas acessórias”, agora com o nome de “efeitos da condenação”.4 No direito estrangeiro observa-se sistemática semelhante, ou seja, tais efeitos secundários à punição vêm etiquetados como efeitos da condenação ou como penas acessórias. No particular, Jescheck informa que o Código Alemão prevê, ao lado das penas, a ocorrência de consequências adicionais, cuja natureza jurídica é de difícil caracterização. Seriam elas: a perda da capacidade para desempenhar cargos públicos e do direito de sufrágio tanto ativo como passivo, além da faculdade prevista, em alguns tipos da Parte Especial (v.g., injúria e acusação falsa), da publicação da sentença condenatória.5 Conforme adiantado, há duas sortes de efeitos: (1) genéricos (art. 91, do CP), que valem para todos os delitos e têm incidência automática; e (2) específicos (art. 92, do CP), que se encontram relacionados com determinados ilícitos e cuja aplicabilidade exige motivação expressa na sentença. Analisam-se, a seguir, os dois efeitos genéricos de todas as condenações penais (a obrigação de reparar o dano e a perda dos instrumentos ou proveitos do crime), consoante previsto no Código Penal.6 4. Nucci, Guilherme de Souza. Op. cit., p. 403. 5. Jescheck, Hans-Heinrich; Weigend, Thomas. Op. cit., p. 845. 6. Na legislação penal especial, citem-se os seguintes efeitos extrapenais: 1) a perda do cargo e a inabilitação, pelo prazo de cinco anos, para o exercício do cargo ou função pública, eletivo ou de nomeação, de prefeito ou vereador (art. 1o, § 2o, do Decreto-Lei no 201/1967 – crimes de responsabilidade de prefeitos e vereadores); 2) a perda do cargo ou função pública, para o serviço público, e a suspensão do funcionamento particular, pelo prazo de três anos (art. 16, da Lei n o 7.716/1989 – crimes resultantes de preconceito de raça ou cor); 3) a suspensão do espetáculo ou o fechamento do estabelecimento (arts. 255, 256 e 258, da Lei no 8.069/1990 – Estatuto da Criança e do Adolescente); 4) a interdição temporária de direitos ou a publicação em órgão de comunicação de grande circulação de notícia sobre os fatos e a condenação (art. 78, da Lei n o 8.078 – Código de Defesa do Consumidor); 5) a obrigação de indenizar o dano e a perda, em favor da Anatel, dos bens empregados na atividade clandestina (art. 184, da Lei n o 9.472/1997 – crime de telecomunicação clandestina); 6) a reparação dos danos causados ao meio ambiente (art. 20, da Lei n o 9.605/1998 – crimes contra o meio ambiente); 7) a perda, em favor da União, dos bens, direitos e valores objeto de crime e a interdição do exercício de cargo ou função pública de qualquer natureza e de diretor, membro do conselho de administração ou de gerência de pessoas jurídicas de direito privado (art. 7o, da Lei no 9.613/1998 – crimes de lavagem ou ocultação de bens, direitos e valores); 8) a perda de produtos, bens e haveres provenientes, direta ou indiretamente, dos crimes de genocídio, contra a humanidade e de guerra (art. 77, inc. II, do Estatuto do Tribunal Penal Internacional); 9) a perda da arma de fogo (art. 25, da Lei no 10.826/2003 – Estatuto do Desarmamento); 10) a inabilitação para o exercício de atividade empresarial, o impedimento para o exercício de cargo ou função em conselho de administração, diretoria ou gerência de sociedades, e a impossibilidade de gerir empresa por mandato ou gestão de negócio (art. 181, da Lei no 11.101/2005 – Lei da recuperação judicial, extrajudicial e falência do empresário e da sociedade empresária); 11) a perda do produto, bem ou valor apreendido, sequestrado ou declarado indisponível, móvel ou imóvel, relacionado com o tráfico de drogas (art. 63, da Lei n o 11.343/2006 – Lei de drogas) etc. 505
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32.3.1. A obrigação de reparar o dano
Segundo o art. 91, I, do CP, a sentença penal condenatória torna certa a obrigação de indenizar o dano causado pelo delito. Esta consequência não se confunde com a pena de prestação pecuniária (art. 43, I, do CP), por se tratar, neste último caso, de um efeito imediato da condenação, inobstante o seu valor ser deduzido do montante de eventual condenação na ação de reparação civil do dano (art. 45, §§ 1o e 2o, do CP). Diz-se, assim, que a sentença penal faz coisa julgada no cível, valendo como título executivo judicial, nos termos do art. 584, II, do CPC. Significa dizer que fatos provados na esfera penal não precisam ser demonstrados perante o juízo cível. Dessa maneira, não se poderá mais discutir, no juízo extrapenal, se deve ou não indenizar (an debeatur), mas, somente, o montante da indenização (quantum debeatur). A propósito, dispõe o art. 186, do CC, que aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito, ou causar prejuízo, fica obrigado a reparar o dano. Em simetria, o art. 91, I, do CP, diz que a sentença condenatória tem o efeito de tornar certa a obrigação de indenizar o dano resultante do crime. Na mesma esteira, o art. 63, do CPP, dispõe que transitada em julgado a sentença condenatória, poderão promover-lhe a execução, no juízo cível, para o efeito de reparação do dano, o ofendido, seu representante legal ou seus herdeiros. A propósito, observa-se que a Lei no 11.719/2008, alterou diversos dispositivos do CPP, dentre eles o art. 63, anteriormente mencionado, possibilitando a fixação imediata, na sentença penal condenatória, de um valor mínimo para reparação dos danos causados pela infração, considerando os prejuízos sofridos pelo ofendido (cf. art. 387, inc. IV, do CPP, com redação da Lei no 11.719/2008). 32.3.1.1. Ação civil ex delicto
A parte ofendida, seu representante legal ou seu herdeiro não necessita, contudo, aguardar o encerramento da discussão penal, para, só então, executar no juízo cível a sentença penal condenatória. Ela pode, desde a ocorrência da infração penal, ingressar, na esfera extrapenal, com a chamada ação civil ex delicto. Dispõe, dessa forma, o art. 64, do CPP, que a ação para ressarcimento do dano poderá ser proposta no juízo cível, contra o autor do crime e, se for o caso, contra o responsável cível. Nesse caso, contudo, intentada a ação penal, poderá o juiz cível suspender o curso da ação civil ex delicto, até o julgamento definitivo da respectiva ação penal. Objetiva-se, assim, evitar sentenças (cível e penal) colidentes. O ordenamento jurídico brasileiro adotou, no particular, o sistema da relativa separação das instâncias penal e extrapenal.7 A lógica dessa sistemática gira em torno da percepção de que, embora separadas, a sentença penal, pela natureza dos bens em discussão – ius puniendi e ius libertatis –, 7. Cf. art. 125, da Lei n o 8.112/1990 (Regime Jurídico dos Servidores Públicos): “As sanções civis, penais e administrativas poderão cumular-se, sendo independentes entre si.” 506
Capítulo XXXII | Efeitos da condenação e reabilitação
importa num aprofundado revolvimento de provas sobre a ocorrência do crime e sua autoria. Busca-se, fundamentalmente, na esfera penal, a chamada verdade real, ao passo que, na esfera extrapenal, pode-se contentar, o mais das vezes, com a chamada verdade formal. Quando ela, sentença penal, adentrar no mérito da discussão, seja para condenar ou para absolver o acusado, isso traz consequências na seara extrapenal. Ao revés, no processo civil – e, igualmente, no procedimento administrativo –, o réu deve rebater precisamente os fatos alegados pelo autor, sob pena de serem presumidos verdadeiros (art. 302, do CPC). Na mesma esteira, se o réu não contestar a ação, reputar-se-ão verdadeiros os fatos afirmados pelo autor (art. 319, do CPC). Diante disso, tem-se que, em regra, a sentença penal gera efeitos nas esferas civil e administrativa, mas a recíproca não é verdadeira.8 Nesse sentido, dispõe o art. 935, do CC, que responsabilidade civil é independente da criminal, não se podendo questionar mais sobre a existência do fato, ou sobre quem seja o autor, quando estas questões se acharem decididas no juízo criminal. A sentença penal absolutória pode, igualmente, gerar efeitos condicionantes na esfera cível e administrativa. É o que se verifica com a decisão penal que reconheça estar provada a inexistência do fato ou estar provado que o réu não concorreu para a infração penal (art. 387, I e IV, CPP). Nesse sentido, o art. 65, do CPP, assinala que “faz coisa julgada no cível a sentença penal que reconhecer ter sido o ato praticado em estado de necessidade, em legítima defesa, em estrito cumprimento de dever legal ou no exercício regular de direito”. Na mesma linha, o art. 126, da Lei no 8.112/1990: “A responsabilidade administrativa do servidor será afastada no caso de absolvição criminal que negue a existência do fato ou sua autoria”. Ainda nesse terreno, pode acontecer de não haver prova suficiente da existência do fato delituoso ou não haver prova suficiente para a condenação do réu (v.g., art. 386, incs. II e VII, CPP). Pode, ainda, ser declarada extinta a punibilidade do autor, como, por exemplo, diante da prescrição da pretensão punitiva. Nessas hipóteses, a sentença penal absolutória não irá influir na discussão da causa no juízo extrapenal. Observa-se, conclusivamente, que a presente temática importa na intercessão de diversos ramos do Direito – penal, processual penal, civil, processual civil e administrativo –, revestindo-se, portanto, de grande complexidade exegética. 32.3.2. Perda dos instrumentos e dos produtos do crime
Segundo o art. 91, II, do CP, é efeito da condenação a perda em favor da União, ressalvado o direito do lesado ou de terceiro de boa-fé: (1) dos instrumentos do crime, desde que consistam em coisas cujo fabrico, alienação, uso, porte ou detenção constitua 8. Paradoxalmente, o STF, a partir do julgamento do HC 81611 (Min. Sepúlveda Pertence), firmou jurisprudência no sentido inverso, ou seja, de que a esfera extrapenal (administrativa) gera efeitos na órbita penal, na medida em que, para os crimes de sonegação fiscal, o lançamento definitivo do tributo passou a ser considerado condição objetiva de punibilidade ou elemento normativo do tipo. Na mesma esteira, a Súmula Vinculante 24: “Não se tipifica crime material contra a ordem tributária, previsto no art. 1o, incs. I a IV, da Lei no 8.137/1990, antes do lançamento definitivo do tributo”. 5 07
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fato ilícito; e (2) do produto do crime ou de qualquer bem ou valor que constitua proveito auferido pelo agente com a prática do fato criminoso. Cuida-se de modalidade especial de confisco, decorrente de razões superiores de bom-senso (ou de lógica jurídica), qual seja, a de que a ordem jurídica não pode tolerar que certos objetos, em si lesivos à coletividade, bem assim a espúria vantagem obtida com a violação da norma penal, permaneçam na posse ou detenção do delinquente ou de terceiros de má-fé. Nesse sentido, os arts. 6o, II, e 240, § 1o, do CPP; art. 4o, da Lei no 9.613/1998; art. 25, da Lei no 10.826/2003; e art. 50, § 1o, da Lei no 11.343/2006, além de outros dispositivos legais, determinam às autoridades que apreendam os objetos, bens ou valores anteriormente mencionados. Na mesma esteira, o art. 119, do CPP, diz que tais objetos ou coisas não poderão ser restituídos ao infrator, mesmo depois de transitada em julgado a sentença condenatória, salvo se pertencerem ao lesado ou a terceiro de boa-fé. A parte lesada, seus sucessores ou o terceiro que, de boa-fé, a tenha adquirido, deverá ingressar, no juízo criminal, com o pedido de restituição de coisa apreendida (art. 120, do CPP). Não há que confundir, contudo, o confisco ora analisado com a pena restritiva de direitos de perda de bens e valores, prevista nos arts. 43, II, e 45, § 3o, do CP, uma vez que esta é efeito direto da condenação, embora também se reverta em favor do Fundo Penitenciário Nacional (Funpen). 32.3.2.1. Instrumentos do crime (instrumenta sceleris)
Consoante o exposto, o art. 91, II, “a”, do CP, determina-se a perda dos objetos utilizados na perpetração do delito, desde que consistam em coisas cujo fabrico, alienação, uso, porte ou detenção constitua fato ilícito. Sendo assim, a moeda falsa, o documento falsificado, a arma de uso proibido ou restrito (inclusive réplicas ou de brinquedo), as substâncias entorpecentes, psicotrópicas, precursoras, radioativas, nucleares, abortivas ou quaisquer outras sob controle especial, bem como a gazua ou chave falsa, a máquina caça-níquel, o aparelho clandestino de radiofrequência ou telecomunicação, dentre outros artefatos lesivos à coletividade, sofrerão o perdimento por força do decreto condenatório penal. Por sua vez, o art. 124, do CPP, determina que os instrumentos do crime, cuja perda em favor da União tenha sido decretada, serão “inutilizados ou recolhidos a museu criminal”, se houver interesse na sua conservação.9 Roberto Lyra – comentando idêntica disposição contida no CP/1940 – esclarece que ao limitar a perda àqueles instrumentos que por si só constituam fato ilícito, a citada norma objetivou evitar a perda dos utensílios profissionais, materiais de trabalho, além de outros bens de posse ou detenção lícita, ainda que circunstancialmente utilizados na ação criminosa.10 9. Com relação ao “museu criminal”, cumpre afirmar que nunca se registrou iniciativas concretas no sentido da sua implantação. 10. Lyra, Roberto. Comentários ao Código Penal. Vol. II. Rio de Janeiro: Forense, 1958, p. 554. 508
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32.3.2.2. Produto do crime (producta sceleris)
São os bens, valores ou ativos adquiridos, direta ou indiretamente, com a prática do ilícito. Não pode, evidentemente, o Direito compactuar com o enriquecimento ilícito de quem quer que seja.11 Independentemente de se tratar de delito patrimonial ou contra a Administração Pública, há de ser determinado, na sentença condenatória, o perdimento a favor da União, da vantagem auferida em razão do ilícito. Faz-se, assim, indispensável demonstrar a relação de causalidade, direta ou indireta, entre o comportamento delituoso e o incremento patrimonial subsequente. Nesse sentido, Roberto Lyra assinala que o dispositivo sob comento compreende as coisas adquiridas diretamente com o crime (v.g., o ouro roubado), ou mediante sucessiva especificação (a joia feita com o ouro roubado), ou conseguidas mediante alienação (dinheiro da venda do ouro roubado) ou criadas com o crime (moeda fabricada com o ouro roubado).12 Sendo assim, o lucro obtido pelo proxeneta ou pelo rufião (arts. 227 ou 230, do CP), decorrente do “comércio carnal” da prostituta ou da pessoa sexualmente explorada, há de ser, igualmente, confiscado e revertido em favor da União Federal. A própria Constituição Federal, no art. 243, determina a expropriação imediata das glebas de qualquer região do País onde forem localizadas culturas ilegais de plantas psicotrópicas. Tais imóveis, e todo e qualquer bem ou valor econômico apreendido em decorrência do tráfico de drogas (dinheiro, maquinário, veículos, embarcações, aeronaves etc.), serão confiscados e destinados diretamente ao Fundo Nacional Antidrogas (Funad), conforme art. 63 e §§, da Lei no 11.343/2006, visando a “justa reversão do patrimônio obtido ilicitamente por meio da produção ilegal e tráfico de drogas em favor da sociedade”.13 Anote-se, por fim, que os bens confiscados, por força do presente dispositivo, devem ser destinados ao Fundo Penitenciário Nacional (Funpen), consoante especificado no art. 2o, inc. IV, da Lei Complementar no 79/1994, objetivando, dentre outras providências, “financiar e apoiar as atividades e programas de modernização e aprimoramento do Sistema Penitenciário Brasileiro”. Nada mais justo que o ganho auferido – cuja lícita titularidade não se comprove – venha a custear, por exemplo, a reforma e construção de penitenciárias no País.14
11. É interessante observar que, diferentemente do verificado em outros países, o Brasil ainda não criminalizou o enriquecimento sem causa, em especial de servidores públicos. 12. Lyra, Roberto. Op. cit., p. 553. 13. A Lei no 7.560/1986, alterada pela Lei no 8.764/1993 e pela Lei no 9.804/1999, criou o Fundo de Prevenção e Combate às Drogas de Abuso, tendo sido essa denominação alterada para Funad (Fundo Nacional Antidrogas), e sua gestão transferida do Ministério da Justiça para a Senad – Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas do Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República (art. 13 da MP no 2.143/2001. Chama a atenção o fato de um órgão governamental militar (Secretaria Institucional da Presidência) ser o gestor de um fundo que, a rigor, deveria permanecer sob a responsabilidade do setor civil (Ministério da Justiça). 14. No entanto, o Governo Federal não estaria procedendo à destinação correta daquele fundo, transferido parte dos valores para o pagamento da dívida pública e geração do superávit primário. Esta constatação fez com que o MPF ingressasse com ação civil pública contra esse suposto desvirtuamento do Funpen (vide: , acessado em 07/04/2010). 509
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32.4. Efeitos específicos da condenação
A
efeitos genéricos, o Código Penal regula, no art. 92, os efeitos específicos da sentença condenatória. Cuidam-se de consequências vinculadas a determinadas hipóteses delitivas ou certas qualidades especiais da pessoa do infrator. Ressalte-se que tais efeitos, diferentemente dos anteriores, não são automáticos, devendo constar expressamente mencionados na sentença condenatória. Sob outra vertente, não se deve incorrer no equívoco de considerar os efeitos específicos idênticos àqueles decorrentes do art. 47, do CP (interdição temporária de direitos). Isso porque, as interdições têm natureza de sanção penal, embora substitutivas da privação da liberdade. Ademais, elas têm caráter temporário, ao passo que os efeitos secundários da condenação são, em regra, permanentes. o l ado dos
32.4.1. Perda do cargo, função pública ou mandato eletivo
Conforme o art. 92, I, do CP, são também efeitos da condenação, a perda do cargo, função pública ou mandato eletivo decorrente de duas hipóteses: a) quando aplicada pena privativa de liberdade por tempo igual ou superior a 1 (um) ano, quando o ilícito for praticado com abuso de poder ou violação dos deveres funcionais; ou b) quando aplicada pena de prisão por tempo superior a 4 (quatro) anos, nos demais casos. Esta norma teve a redação alterada pela Lei no 9.268/1996, visto que, antes, a perda somente ocorria quando o delito praticado com abuso de poder ou violação de dever para com a administração pública redundasse em pena superior a quatro anos – circunstância esta que restringia demasiadamente o seu âmbito de incidência. Retornou-se, assim, ao que dispunha originalmente o Código de 1940, protegendo-se, de maneira mais adequada, a Administração Pública.15 Na primeira vertente (pena igual ou superior a um ano), a perda do cargo, função pública ou mandato eletivo abrange não somente os chamados delitos funcionais (arts. 312 e segs., do CP), mas, igualmente, todo e qualquer delito no qual o agente tenha abusado de seus poderes ou descumprido seus deveres de servidor público, como, por exemplo, no estelionato praticado em detrimento da própria Administração Pública (art. 171, § 3o, do CP). No segundo caso (pena igual ou superior a quatro anos), em razão da aplicação de uma sanção elevada, o servidor torna-se indigno para exercer o cargo, a função ou o mandato eletivo custeado pelo contribuinte brasileiro. Ademais, não terá condições de conciliar o expediente normal na repartição pública com a privação da liberdade imposta na sentença condenatória. Cargo público é o lugar na Administração Pública criado por força de lei, com denominação própria, número certo de ocupantes e remunerado pelos cofres públicos. A seu turno, função pública é a atividade desempenhada, transitória ou definitivamente, 15. Prado, Luiz Regis. Op. cit., p. 621. 510
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no âmbito do ente público. Com relação ao mandato eletivo, investido por sufrágio universal, determina o art. 15, III, da CF/1988, que a sua perda ou suspensão decorrerá do trânsito em julgado da condenação criminal e enquanto durarem os seus efeitos. Cuidando-se de Deputado Federal ou Senador, a Constituição prevê que a perda do mandato decorrerá, dentre outras hipóteses, da condenação criminal em sentença definitiva (art. 55, VI, da CF/1988), sendo que, neste caso, a destituição do parlamentar “será decidida pela Câmara dos Deputados ou pelo Senado Federal, por voto secreto e maioria absoluta, mediante provocação da respectiva Mesa ou de partido político representado no Congresso Nacional, assegurada ampla defesa” (art. 55, § 2o, da CF/1988). Reitere-se o que já foi dito relativamente à diferenciação entre este efeito da condenação e a pena restritiva de proibição do exercício de cargo, função, atividade pública ou mandato eletivo (art. 43, V, do CP), cujo prazo de duração é o mesmo da pena de prisão substituída (art. 47, I, do CP). Por sua vez, a perda do cargo, função pública ou mandato eletivo é definitiva, não sendo, portanto, alcançada pela reabilitação penal (art. 93, parágrafo único, do CP). 32.4.2. Incapacidade para o exercício do poder familiar, tutela ou curatela
Para que se verifique este efeito faz-se necessário que se cuide de crime doloso praticado contra filho, tutelado ou curatelado, e punido com pena de reclusão. Trata-se de uma das distinções entre reclusão e detenção, bastante criticável na medida em que deixa fora do seu alcance quase todos os crimes contra a assistência familiar, vale dizer, abandonos material, moral e intelectual (arts. 244 a 247, do CP), para os quais são cominadas penas de detenção, à exceção do delito do art. 245, §§ 1o e 2o, do CP.16 Trata-se de efeito vinculado a delitos cuja prática denote incompatibilidade com o exercício do poder familiar, tutela ou curatela, evidenciando que o condenado, de maneira reprovável, abuse dos deveres inerentes àqueles institutos do Direito de Família. Segundo o art. 1.630, do CC, os filhos menores estão sujeitos ao poder familiar. Este poder compreende o direito/dever de lhes dirigir a criação e educação, tê-los em sua companhia e guarda, reclamá-los de quem ilegalmente os detenha, dentre outras prerrogativas referidas no art. 1.634, do CC.17 A tutela é cabível para os filhos menores nas hipóteses de falecimento ou ausência dos pais ou em caso dos mesmos decaírem do poder familiar (art. 1.728, do CC).18 A curatela, por sua vez, consiste no encargo decorrente 16. Não obstante, parte da doutrina sustenta ser possível a declaração desse efeito na sentença condenatória para os casos delitos apenados com detenção, desde que seja devidamente motivada pelo magistrado. Nesse sentido: Prado, Luiz Regis. Op. cit., p. 621; e Mirabete, Julio Fabbrini. Manual de Direito Penal. Vol.1. 20. ed. São Paulo: Atlas, 2003, p. 350. Em sentido contrário: Bitencourt, Cezar Roberto. Op. cit., p. 737. 17. Pode o juiz cível decretar tanto a suspensão (art. 1637, do CC) como a perda do poder familiar (art. 1638, do CC), aquela decorrente de abuso de sua autoridade, bem assim de condenação, em sentença irrecorrível, em virtude de crime cuja pena exceda a dois anos de prisão, e esta, nas hipóteses de infrações, tais como castigo imoderado, abandono, prática de atos contrários à moral e aos bons costumes e reiterado descumprimento dos deveres inerentes a tal poder. 18. Segundo o art. 1.735, do CC, não podem ser tutores e serão exonerados da tutela, caso exerçam, dentre outros, os condenados por crime de furto, roubo, estelionato, falsidade, contra a família ou os costumes. No último caso, merece ser registrada a substituição do bem jurídico “costumes” pela “dignidade sexual” (cf. Lei n o 12.015/2009). 511
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da interdição daqueles que, por enfermidade, deficiência mental ou por qualquer outra causa duradoura, não tiverem o necessário discernimento para os atos da vida civil ou não puderem expressar a sua vontade, sendo certo que as regras a respeito da tutela são, em geral, aplicáveis à curatela (arts. 1.767 e 1.781, do CC). Decretada, na sentença penal, de forma motivada, a referida incapacidade, o condenado jamais poderá reavê-la com relação ao filho, tutelado ou curatelado vitimado por sua conduta delituosa. Poderá vir a exercer tais prerrogativas relativamente a outros menores ou interditados. Sequer a reabilitação penal possibilita o retorno ao status quo ante (art. 93, do CP). 32.4.3. Inabilitação para dirigir veículo utilizado em crime doloso
No caso vertente, são efeitos que se projetam para a esfera administrativa, e que pressupõem a presença de dois requisitos: (1) delito doloso; e (2) a utilização do veículo como meio para a perpetração do ilícito. É o que se verifica, por exemplo, na hipótese de um homicídio para o qual, ao invés de se valer de uma arma de fogo, o agente utiliza-se do seu automóvel para atropelar intencionalmente o seu desafeto. Por conta disso, não se deve confundir esta consequência secundária da sentença penal condenatória com os crimes de trânsito, particularmente o homicídio e a lesão corporal culposos na direção de veículo automotor (arts. 302 e 303, da Lei no 9.503/1997 – CTB), para os quais são cominadas penas de detenção e suspensão ou proibição de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor. Na mesma esteira, vale ressaltar que a inabilitação, como consequência definitiva da condenação, difere da pena restritiva de suspensão de autorização ou de habilitação para dirigir veículo (art. 47, inc. III, do CP), que possui caráter temporário. É conveniente, ainda, lembrar que a disposição abrange não apenas a condução de automóveis, mas todos os veículos de tração motora, tais como motocicletas, caminhões, ônibus, tratores, aeronaves ou embarcações. Portanto, a inabilitação deverá ser comunicada pelo juiz sentenciante ao Conselho Nacional de Trânsito (Contran), ao órgão de trânsito do Estado em que o condenado tiver obtido a sua habilitação (Detran), bem assim à Agência Nacional de Aviação Civil (Anac) e à Marinha do Brasil (Capitania dos Portos), conforme o caso, objetivando a efetivação da medida. 32.4.4. Inabilitação do empresário nos delitos falimentares
Cuida-se de hipótese não contemplada no art. 92, do CP, mas que merece uma menção especial. Com efeito, nos casos de delitos relacionados com a recuperação judicial, extrajudicial e falência do empresário ou da sociedade empresarial, dispõe o art. 181, da Lei no 11.101/2005, que a condenação acarretará o efeito secundário da inabilitação do réu para o exercício da atividade empresarial, direta ou indiretamente, além do impedimento de exercício de cargo ou função em conselho de administração ou diretoria das sociedades sujeitas àquela lei especial.
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Capítulo XXXII | Efeitos da condenação e reabilitação
No caso, tais efeitos também devem ser motivadamente declarados na sentença, e perdurarão até cinco anos após a extinção da punibilidade, podendo, contudo, cessar antecipadamente em virtude da reabilitação penal (art. 181, § 1o, da Lei no 11.101/2005).
32.5. Reabilitação penal
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de crédito ou do bom conceito perante os concidadãos. Trata-se, assim, do retorno, tanto quanto possível, à normalidade do convívio social, das atividades laborativa, estudo, lazer, enfim, da estima pública. Ao tempo da redação originária do Código, a reabilitação possuía natureza jurídica de causa extintiva da punibilidade (art. 108, VI, do CP/1940). Na atualidade, ela se aproxima mais da noção de ressocialização, podendo, de certa maneira, ser entendida como a plena reinserção social do apenado. Dessa maneira, dispõe o art. 93, do CP, que a reabilitação alcança quaisquer penas aplicadas em sentença definitiva, assegurando ao condenado o sigilo dos registros sobre o processo e a condenação. Segundo o parágrafo único deste dispositivo, ela também atinge os efeitos secundários da sentença penal, embora com algumas ressalvas. Constata-se, pois, que a reabilitação penal apresenta três objetivos basilares: (1) neutralizar os efeitos de quaisquer das penas aplicadas em sentença definitiva; (2) neutralizar, igualmente, os efeitos indiretos da condenação; e (3) assegurar ao condenado o sigilo dos registros sobre seu processo e condenação. Todavia, em que pesem tais propósitos, é forçoso reconhecer que, na realidade, o instituto carece de utilidade prática. Isso porque, não há sentido em se prever que ela alcança quaisquer das penas aplicadas, pois um dos pressupostos para a sua dedução é, justamente, o de que a sanção penal já se encontre extinta ou devidamente cumprida, há mais de dois anos (art. 94, caput, do CP). Ora, uma vez esgotada a pretensão punitiva do Estado, não há mais pena alguma a ser alcançada pela reabilitação. A rigor, tal previsão tinha sentido ao tempo da redação originária do Código de 1940, quando existiam as chamadas penas acessórias – essas, sim, poderiam vir a ser atingidas e suspensas pela reabilitação.20 De mais a mais, relativamente aos efeitos secundários da condenação, a reabilitação apenas pode suspender um deles, qual seja, a inabilitação para dirigir veículo (art. 92, III, do CP), sendo que a sua efetiva extinção somente ocorrerá após o decurso do prazo do art. 95, do CP. Quanto aos demais efeitos, o Código é expresso em retirá-los do alcance da reabilitação (art. 92, parágrafo único, do CP). e abilitação significa recobramento 19
19. Ferreira, Aurélio Buarque de Holanda. Novo dicionário da língua portuguesa. 2. ed. 33. imp. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986, p. 1455. 20. Cf.: “O texto legal diz que a reabilitação alcança quaisquer penas aplicadas em sentença definitiva. É preciso esclarecer, porém, que ela atinge apenas os efeitos da condenação e o acesso público aos registros referentes à mesma. De fato, quando se requer a reabilitação, a pena já deve estar cumprida ou extinta, há mais de dois anos; e não existem outras penas que possam ser alcançadas pelo instituto. Quer dizer que na prática a reabilitação é bem mais modesta do que a lei parece expressar, só atingindo (com ressalva) os efeitos da condenação previstos no art. 92 e garantindo o sigilo dos registros referentes ao processo e à condenação.” (Franco, Alberto da Silva et al. Código Penal e sua interpretação jurisprudencial. 7. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001, p. 1615). 513
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Com relação ao objetivo de assegurar o sigilo do processo e da condenação, é de se observar que igual providência já se encontra determinada pelo art. 202, da LEP, de forma até mais ampla do que no Código Penal, pois alude a qualquer notícia ou referência à condenação, o que transcende ao mero sigilo dos registros. Além disso, pelo art. 202, da LEP, o sigilo é automático – não precisa ser requerido pela parte –, e vale desde o cumprimento ou extinção da pena – e não somente após o decurso de dois anos da extinção ou do término da execução penal, do sursis ou do livramento condicional. Além disso, com relação aos Registros de Distribuição, tem-se que a sua regulamentação conflita com as prescrições do Código Penal e da LEP, sendo franqueado ao público informações sobre registros de ações penais e eventuais condenações criminais. Nesse sentido, a Lei no 11.971/2009, ao disciplinar a expedição de certidões pelos Ofícios de Registro de Distribuição e Distribuidores Judiciais, derrogou o art. 93, do CP, e o art. 202, da LEP, estabelecendo que os ofícios do Registro de Distribuição, serviços extrajudiciais, e os Distribuidores Judiciais farão constar em suas certidões, obrigatoriamente, a distribuição dos feitos ajuizados ao Poder Judiciário e o resumo de suas respectivas sentenças criminais condenatórias.21 Por outro lado, não se olvide que o processo de informatização do Judiciário permite que, de qualquer ponto do planeta, se possa pesquisar a vida de qualquer um, por intermédio da internet, obtendo informações sobre processos criminais, mesmo aqueles já findos, salvo em situações de sigilo judicial decretado nos autos. Em síntese, diante do que dispõe o ordenamento jurídico brasileiro e pela realidade do País e do mundo, tem-se que a reabilitação somente alcança alguns dos efeitos secundários da condenação, sendo inadmissível para reaver o cargo, função pública ou mandato eletivo perdido por decisão do juízo criminal, bem assim o poder familiar, tutela ou curatela do filho, tutelado ou curatelado. Nada impede, por fim, que possa o reabilitado vir a exercer, por exemplo, outro cargo público, por mandato ou eleição, ou o poder familiar sobre outro filho. De lege lata, poder-se-ia fazer com que a reabilitação tivesse o grande mérito de cancelar, antecipadamente, os efeitos penais da reincidência.
32.6. Pressupostos para a reabilitação
C
art. 94, do CP, a reabilitação poderá ser requerida perante o Juízo da condenação, após o decurso de dois anos da extinção da sanção penal, bem como do término da respectiva execução, podendo-se computar o período de prova onsoante normatizado no
21. Lei no 11.971/2009, art. 2 o “Os ofícios do Registro de Distribuição, serviços extrajudiciais, e os Distribuidores Judiciais farão constar em suas certidões, obrigatoriamente, a distribuição dos feitos ajuizados ao Poder Judiciário e o resumo de suas respectivas sentenças criminais condenatórias e, na forma da lei, as baixas e as sentenças absolutórias, quando requeridas. Parágrafo único: Deverão constar das certidões referidas no caput deste artigo os seguintes dados de identificação, salvo aqueles que não forem disponibilizados pelo Poder Judiciário: (...) XI – resumo da sentença criminal absolutória ou condenatória, ou o seu arquivamento.” 514
Capítulo XXXII | Efeitos da condenação e reabilitação
da suspensão da pena e o do livramento condicional, se não sobrevier a revogação de um ou de outro. Com relação ao sursis e ao livramento, é de se supor que o período de prova seja igual ou inferior aos dois anos retromencionados, pois, do contrário, a dedução da reabilitação poderá coincidir cronologicamente com o término do benefício. Exemplo: “A”, condenado a seis anos de reclusão, obtém livramento condicional depois de cumprida a metade da pena. Considerando que o período de prova do livramento é de três anos, após o seu término, sem revogação, “A” poderá pleitear, junto com a extinção da punibilidade, a sua reabilitação.
Além do lapso temporal de dois anos, faz-se necessário o atendimento das seguintes exigências:
32.6.1. Domicílio no País no prazo de dois anos
Cuida-se de requisito criticado por parte da doutrina, por importar em limitação indevida e desnecessária da liberdade de locomoção daquele que já cumpriu ou teve extinta a pena que lhe fora imposta.22 No entanto, fato é que essa exigência justifica-se na medida em que viabiliza o aferimento do bom comportamento social, circunstância que dificilmente poderia ser atestada caso o requerente estivesse domiciliado no estrangeiro. 32.6.2. Demonstração efetiva e constante de bom comportamento público ou privado
Como visto, a demonstração efetiva e constante de bom comportamento pressupõe que, na esfera pública ou privada, o requerente apresente elementos seguros no sentido do cumprimento da lei. Via de regra, por meio de declarações abonatórias ou de certidões negativas de Registros de Distribuição, atesta-se, de fato, o cumprimento deste requisito. 32.6.3. Reparação do dano causado pelo crime ou comprovação da absoluta impossibilidade de o fazer, até a data do pedido, ou comprovação da renúncia expressa da vítima ou novação da dívida
Em diversas passagens, o Código elegeu o ressarcimento do dano causado pelo delito – ou, de outra forma, a resolução ou perdão civil – como requisito para o obtenção de certos benefícios penais. Não se poderia, portanto, esperar algo diferente no terreno da reabilitação penal. Ressalte-se, no entanto, que o presente requisito pressupõe, sucessivamente, que haja a reparação do dano, a prova da absoluta impossibilidade de
22. Cezar Bitencourt chega a considerar inconstitucional a obrigatoriedade de domicílio no País como prazo de carência para a propositura da reabilitação (Bitencourt, Cezar Roberto. Op. cit., p. 740). 515
Curso de Direito Penal | Parte Geral
o fazer, a renúncia expressa da vítima e, por último, a novação da dívida.23 Ressalte-se, por oportuno, que no caso de indeferimento em razão do não atendimento das exigências ora apresentadas, não há que se esperar, como no regime anterior, o decurso de outro lapso temporal. Efetivamente, pode-se reapresentar, a qualquer tempo, o pedido, desde instruído com novos elementos comprobatórios dos requisitos necessários (art. 94, parágrafo único, do CP). Em suma, o que se veda, implicitamente, é a mera reiteração do pedido, desacompanhado de novas provas.
32.7. Revogação da reabilitação
C
reabilitação apenas suspende alguns dos efeitos secundários da condenação, tais como a inabilitação para dirigir veículo ou para o exercício de atividade empresarial. Dessa maneira, ela pode vir a ser revogada, segundo o art. 95, do CP, caso o reabilitado venha a ser condenado, como reincidente, a pena diversa da multa. Ao fazer referência à reincidência, este dispositivo sinaliza no sentido de que a revogação somente pode se operar dentro do lapso de cinco anos, contados da extinção ou do cumprimento da pena, pois é exatamente esse o prazo no qual a reincidência pode surtir efeitos, conforme o disposto no art. 64, inc. I, do CP. Como a reabilitação há de ser deduzida após dois anos daquele termo inicial, observa-se existir um período de prova, ou uma vigência precária da medida, de três anos, findos os quais ela se torna definitiva. O segundo requisito para a revogação do benefício diz respeito à condenação superveniente a uma pena privativa de liberdade ou restritiva de direitos. A condenação em pena de multa não interfere na vigência da reabilitação. O juízo competente para a dedução do pedido é o da condenação – e não o da execução penal –, tendo em vista o disposto no art. 743, do CPP. Diferentemente da revisão criminal, que pode ser proposta pelo condenado e, em caso de morte, por seus familiares (art. 623, do CPP), a reabilitação é pessoal e intransferível. Dessa maneira, falecendo o condenado, o seu exercício não pode se transferir aos herdeiros.24 onforme indicado, a
23. Segundo o art. 360, do CC, dá-se a novação quando o devedor contrai com o credor nova dívida para extinguir e substituir a anterior; quando novo devedor sucede ao antigo, ficando este quite com o credor; ou quando, em virtude de obrigação nova, outro credor é substituído ao antigo, ficando o devedor quite com este. 24. Cf. Jesus, Damásio Evangelista de. Op. cit., p. 650. 516
título
IV
capítulo
teoria ger a l da sa n ção p en a l
XXXIII
MEDIDAS DE SEGURANÇA 33.1. Considerações gerais
U
mais marcantes da chamada Escola Clássica foi a responsabilidade penal baseada no livre-arbítrio. Pressupunha-se que todo ser humano era dotado da liberdade de seguir o caminho do lícito, legitimando-se pois a pena criminal como retribuição pela escolha do ilícito. Com o surgimento da Escola Positiva, questionou-se o indeterminismo dos Clássicos, ante a constatação empírica da disparidade existente entre os homens. O livre-arbítrio era – como, de fato, ainda é – indemonstrável. Em termos gerais, a partir daquela corrente, evidenciou-se que fatores biológicos, psicológicos e sociológicos condicionavam a prática do crime. Para os positivistas, a pena carecia de legitimidade, vez que a culpa criminal não possuía base científica. Não obstante, a sociedade não poderia ficar desprotegida diante da criminalidade. Sendo assim, por razões de defesa social, Enrico Ferri e outros passaram a sustentar a necessidade de medidas terapêuticas para cura ou neutralização do infrator da lei. Rafaelle Garofalo denominava de temibilidade, isto é, a propensão para a violação das normas penais, o fator antissocial que justificaria a imposição das referidas medidas de cuidado e proteção – tanto da sociedade como do homem delinquente. A temibilidade foi, posteriormente, substituída pela palavra periculosidade. m dos aspectos
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Com o ecletismo subsequentemente verificado, passou-se a admitir – por paradoxal que pareça – a coexistência das duas sistemáticas antagônicas, isto é, pena para os casos de responsabilidade criminal (culpa) e medidas de segurança para os portadores de periculosidade. A propósito, cumpre salientar que coube à União Internacional do Direito Penal (1889-1914), promover a síntese entre as diversas correntes científicas.1 As alianças realizadas no seio da União Internacional permitiram que noções aparentemente antinômicas como as de culpabilidade e periculosidade, de indeterminismo e determinismo, de pena e medida de segurança, “atuassem como contraponto uma da outra”, fornecendo “um mútuo apoio na perseguição de objetivos comuns”.2 Hauridas na conturbada época de mudanças sociais, econômicas e científico-penais, as medidas de segurança, pouco a pouco, foram acolhidas pelas legislações penais do final do século XIX e início do XX. Coube, todavia, a Karl Stooss, o pioneirismo de compatibilizá-las com as penas num único e completo diploma, conforme o seu Anteprojeto de Código Penal Suíço (1893). Consoante informado por Eduardo Ferrari, o Anteprojeto de Stooss disciplinou a medida de segurança, figurando-a, pela primeira vez, ao lado da pena, com os seguintes caracteres: (1) competir ao juiz aplicá-la prioritariamente; (2) inscrever, na sentença, a sua duração condicionada à cessação da periculosidade; (3) ter por base a periculosidade do delinquente; (4) ser executada em estabelecimentos especializados e adequados; (5) ter natureza complementar e, em certos casos, substitutiva da pena, aplicando-se aos “incorrigíveis” cuja execução da pena seria ineficaz.3 No Brasil, embora fundadas nas antigas penas correcionais da Primeira República,4 as medidas de segurança foram alardeadas como uma nova tecnologia de punição, formalmente introduzidas pelo Código de 1940. Consoante a Exposição de Motivos do CP/1940, o Projeto fez ingressar na órbita da lei penal as medidas de segurança, classificando-as como “ações de prevenção e de assistência social aos portadores de estado de periculosidade”.5 Elas, supostamente, não tinham caráter repressivo e se destinavam a proteger a sociedade contra as ações da “legião cinzenta dos inadaptáveis”.6 1. Cf. reafirmado no Congresso de Lisboa (1897): “A União Internacional de Direito Penal estima que a criminalidade, de um lado, e os meios de luta contra ela, de outro, devem ser enfrentados tanto dos pontos de vista antropológico e sociológico como jurídico. Seu objetivo é o estudo científico da criminalidade, suas causas e os meios de seu combate.” 2. Digneffe, Françoise. L’École Positive Italienne et Le mouvement de la défense sociale. In: Histoire des savoirs sur le crime et la peine. Vol. 2. Debuyst, Christian ; Digneffe, Françoise; Pires, Alvaro P. Bruxelles: De Boeck, 2008, p. 326. 3. Ferrari, Eduardo Reale. Medidas de segurança e Direito Penal no Estado Democrático de Direito. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001, p. 30. 4. Desde o Império, as penas correcionais foram um sonho acalentado por Nabuco de Araújo (pai de Joaquim Nabuco), mas somente se tornaram realidade na República, cf. o Decreto no 145, de 1893, e a Lei no 947, de 1902. As penas correcionais objetivavam a privação da liberdade de certos tipos de infratores, no escopo de que adquirissem o que se chamava de aptidão por trabalho honesto. Para tanto, mendigos, vagabundos, vadios, capoeiras, prostitutas, cáftens e menores viciosos foram retirados dos centros urbanos e trancafiados em estabelecimentos prisionais situados em ilhas afastadas, sobretudo para as Colônias Correcionais de Dous Rios (Ilha Grande/RJ) e de Anchieta (Ubatuba/SP). As péssimas condições de subsistência naquelas Colônias, foram registradas por Graciliano Ramos no livro Memórias do Cárcere. 3. Vol. (Colônia Correcional). Rio de Janeiro: José Olympio, 1954, passim. 5. E. M. do CP/1940, item 33. 6. Cf. discurso de Francisco Campos na cerimônia da promulgação do Código Penal de 1940: “O novo Código Penal é informado 518
Capítulo XXXIII | Medidas de segurança
Na ocasião, o CP/1940 dividiu as medidas de segurança entre patrimoniais e pessoais, subdividindo, as últimas, em detentivas e não detentivas, destinando-as não somente ao inimputáveis, mas, igualmente, aos imputáveis considerados como presumidos perigosos, consoante o sistema do duplo binário ou dupla via (pena e medida de segurança). Em que pesem os alardeados propósitos assistenciais, na prática, as medidas de segurança (detentivas) nada mais importaram do que a privação da liberdade sem as garantias clássicas da pena criminal, tais como a reserva legal, a vedação de aplicação retroativa, a prescritibilidade e prazo certo de duração. Como bem pontuado por Francisco de Assis Toledo, elas funcionaram, não raro, como “arremedo de prisão perpétua”.7 A Reforma Penal de 1984 procurou corrigir tais excessos, extinguindo as medidas de segurança patrimoniais e as pessoais não detentivas.8 Mantiveram-se, contudo, as medidas de segurança privativa e restritiva, vale dizer, a internação em hospital de tratamento ou custódia e a sujeição a tratamento ambulatorial (art. 96, do CP). A seu turno, o sistema do duplo binário foi substituído pelo sistema vicariante ou da única via (art. 97, do CP), a seguir analisado.
33.2. Conceito e natureza jurídica das medidas de segurança
A
segurança são consequências jurídicas da prática de fato definido como crime, por indivíduos que não possuam culpabilidade, por lhes faltar sanidade. São medidas tratamentais (internação e tratamento ambulatorial), impostas compulsoriamente por um juiz criminal nas hipóteses em que se revelar a periculosidade do indivíduo, em razão da prática de um injusto penal. O objetivo da medida de segurança é impedir que a pessoa volte a delinquir, a fim de que possa levar uma vida sem conflitos com a sociedade. Excepcionalmente, a medida de segurança pode ser imposta ao semirresponsável que necessitar de especial tratamento curativo. Como visto, ela tem inequívoca natureza de sanção penal. A internação em hospital de custódia ou a sujeição a tratamento ambulatorial devem ser consideradas, ao lado das penas, como manifestações do magistério punitivo estatal. No entanto, enquanto a pena é dotada de natureza retributivo-preventiva (geral e especial), a medida de segurança s medidas de
por uma vigorosa política criminal. As penas revelaram-se insuficientes na luta contra a criminalidade. O novo Código estabelece as medidas de segurança destinadas a prevenir a criminalidade, criando novas garantias para a sociedade contra a legião cinzenta dos inadaptados, cujo número costuma crescer nas conjuras como a do nosso tempo, aumentando a zona do risco na medida em que cresce a densidade material e técnica da convivência humana.” 7. Toledo, Francisco de Assis. Princípios Básicos de Direito Penal. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 1994, p. 64. 8. As medidas de segurança patrimoniais eram a interdição de estabelecimento ou sede de pessoa jurídica e o confisco. As medidas de segurança pessoais não detentivas eram a liberdade vigiada, o exílio local e a proibição de frequentar determinados lugares. Esta última transformou-se em condição tanto para o sursis como para o livramento condicional (art. 78, § 2 o, “a”, do CP, e art. 132, § 2o, “c”, da LEP). Com a Lei no 9.714/1998 (Lei das Penas Alternativas), a referida proibição de frequência a certos locais passou a figurar como espécie de interdição temporária de direitos (art. 47, IV, do CP). 519
Curso de Direito Penal | Parte Geral
possui, somente, natureza preventiva (especial). De toda sorte, os princípios reguladores do ius puniendi incidem, indistintamente, sobre as duas modalidades de sanção. Sendo assim, por possuir natureza jurídica de sanção penal, a conduta típica e antijurídica deve estar comprovada no caso concreto para a imposição de medida de segurança ao inimputável ou, excepcionalmente, ao semirresponsável. É possível que o fato praticado por um inimputável não seja considerado típico (v.g., coação física irresistível) ou, embora típico, que tenha sido praticado de maneira justificada (v.g., legítima defesa). Em tais hipóteses, é evidente que não poderá ser-lhe aplicada a medida de segurança. Por óbvio, somente as causas de exclusão da culpabilidade é que não aproveitarão ao inimputável. Contudo, elas continuam a beneficiar o semirresponsável. A propósito, dispõe o parágrafo único do art. 96, do CP, que a extinção da punibilidade do fato determina a não imposição da medida de segurança ou a insubsistência daquela porventura existente. É o que ocorre com a superveniência da prescrição (art. 107, IV, do CP). A dificuldade aqui gira em torno da contagem do prazo prescricional, pois, no caso do inimputável, não há quantificação de pena que serviria para se apurar a prescrição (art. 109, do CP). Entretanto, cuidando-se de semirresponsável, que, a princípio, sofre pena, embora substituída, num segundo momento, por medida de segurança (especial tratamento curativo), é possível mensurar o prazo prescricional com base na pena originalmente aplicada. Para o inimputável, a solução será a contagem do lapso de prescrição pelo máximo de pena abstratamente cominada ao respectivo delito. O STJ já teve oportunidade de enfrentar a presente discussão, fixando o entendimento de que os prazos prescricionais do art. 109, do CP, são extensíveis às medidas de segurança, sendo certo que no caso de absolvição por inimputabilidade, a prescrição obedecerá a pena em abstrato e, no caso de medida de segurança substitutiva para o semi-imputável, deve-se seguir a pena em concreto aplicada.9 Na mesma esteira, o STF firmou jurisprudência de que, para o inimputável, a prescrição da medida de segurança deve ser calculada pelo máximo de pena cominada ao delito atribuído ao agente, interrompendo-se, no entanto, com o início do seu cumprimento.
33.3. Sistemas do duplo binário e vicariante
S
CP/1940, a medida de segurança era destinada não somente aos inimputáveis, mas, também, ao imputáveis ou semirresponsáveis que, mesmo após o cumprimento da pena, denotassem ser perigosos. Adotava-se, portanto, o chamado sistema do duplo binário ou da dupla via. Nesse sentido, o primitivo art. 82, do CP/1940 estabelecia que o indivíduo era submetido à medida de segurança, depois de cumprida a pena privativa de liberdade. O modelo do duplo binário foi posto em causa por diversas e duríssimas críticas. Por exemplo, questionou-se a dificuldade em mensurar a periculosidade de uma pessoa egundo dispunha o
9. HC 53170. STJ. Min. Laurita Vaz. Quinta Turma. DJ de 15/12/2008. 52 0
Capítulo XXXIII | Medidas de segurança
responsável, visto que não se trata de um diagnóstico, mas, sim, de um prognóstico, ou seja, uma suposição de que, no futuro, o agente poderá perpetrar novas infrações penais. Se o condenado já tivesse cumprido, a contento, a pena que lhe fora imposta, não seria justo manter-lhe encarcerado, muitas vezes no mesmo estabelecimento prisional, mercê tão somente daquele prognóstico. E, o que é pior, o indivíduo permaneceria encarcerado não mais por tempo certo, mas por tempo indeterminado. Ademais, não parecia correto aplicar medida punitiva e tratamental, pois era necessário avaliar se o indivíduo necessitava realmente de tratamento ou se a sanção penal era suficiente. A reunião de ambas parecia contraditória. Diante dos questionamentos e das críticas que se formaram, a Reforma Penal de 1984 substituiu o duplo binário pelo sistema vicariante ou da única via, em que o juiz deve escolher entre a imposição de uma pena ou de medida de segurança. Vicariante é o que substitui ou faz as vezes de outrem, ou seja, seguir um ou outro caminho. Na Idade Média, vicário era o homem da Igreja que comparecia, de vila em vila, a fim de apurar as faltas, as confissões e os pecados, impondo aos fieis, conforme o caso, o devido castigo. Obviamente, ele não podia estar, ao mesmo tempo, realizando seu ministério em duas localidades, pois ele estava num lugar ou em outro – até os dias de hoje, é costume referir-se ao termo vigário como sinônimo de padre da Igreja Católica. Em suma, etimologicamente, vicariante é a antítese de duplicidade. Nesses termos, a sistemática que passou a ser adotada pelo CP/1984 foi a seguinte: para o imputável, somente caberá a imposição de pena; para o inimputável (art. 26, caput, do CP), há a aplicação de medida de segurança; e para o semirresponsável (art. 26, parágrafo único) aplica-se pena ou, alternativamente, medida de segurança. Nesse último caso, o que irá fundamentar a decisão judicial por uma ou outra via será a necessidade de especial tratamento curativo (art. 98, do CP). Em suma, pela sistemática atual, o imputável jamais sofrerá medida de segurança; o inimputável jamais receberá pena; e o semi-imputável receberá uma ou outra sanção, jamais as duas. Atente-se, outrossim, que ao revogar o duplo binário, a Parte Geral de 1984 o fez – segundo as palavras do legislador – de maneira cautelosa, ou seja, contrabalançou a mudança de modelo com a introdução da figura do exame criminológico, requisito que passou a ser exigido para a progressão do regime fechado para o semiaberto e para a obtenção do livramento condicional, nos casos de condenados por crime cometidos com violência ou grave ameaça (art. 84, parágrafo único, do CP).10 Com a nova redação do art. 112, da LEP (alterada pela Lei no 10.792/2003), o exame criminológico deixou de ser obrigatório, tornando-se somente facultativo para a progressão de regime e, por extensão, para o livramento condicional. Como se vê, somente em 2003 foi concluído o longo processo legislativo de substituição do sistema do duplo binário pelo vicariante.
10. E. M. do CP/1984, item 74: “Tal exigência é mais uma consequência necessária da extinção da medida de segurança para o imputável.” 521
Curso de Direito Penal | Parte Geral
33.4. Diferenças entre pena e medida de segurança
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onforme ressaltado, pena e medida de segurança são espécies do gênero sanções penais.
Entretanto, a doutrina aponta as seguintes distinções entre elas: (1) a pena tem caráter retributivo-preventivo (art. 59, caput, do CP), ao passo que a medida de segurança tem caráter preventivo (art. 96, do CP); (2) o fundamento para a imposição da pena é a prática de fato típico, antijurídico e culpável; para a medida de segurança, basta a perpetração de fato típico e antijurídico; (3) a pena tem tempo de duração determinada na sentença, consoante a culpabilidade e os demais fatores mensurados no seu cálculo; a medida de segurança vigora por tempo indeterminado, vale dizer, enquanto não constatada, por perícia médica, a cessação da periculosidade do agente; (4) a pena destina-se ao imputável e, em regra, ao semirresponsável; a medida de segurança é destinada ao inimputável e, excepcionalmente, ao semirresponsável que necessitar de especial tratamento curativo; (5) a pena privativa de liberdade é cumprida em estabelecimento de segurança máxima ou média (regime fechado), em colônia agrícola, industrial ou estabelecimento similar (regime semiaberto) ou em casa de albergado (regime aberto), enquanto a medida de segurança é cumprida em hospital de tratamento psiquiátrico (internação) ou com o comparecimento ao posto de saúde adequado (tratamento ambulatorial).11
33.5. Periculosidade como pressuposto da medida de segurança
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apresentada, o pressuposto para a imposição de medida de segurança ao inimputável é a prática de fato típico e antijurídico. Para o semirresponsável, pressupõe-se, ainda, a culpabilidade atenuada. No primeiro caso, ou seja, do inimputável que realiza fato típico e antijurídico, o art. 97, do Código, presume a sua periculosidade. No segundo, há de ser aferida, no caso concreto, a periculosidade do infrator, vale dizer, a referida necessidade de tratamento curativo (art. 98, do CP). Observa-se, assim, que a chamada periculosidade presumida decorre do enquadramento do infrator à hipótese regulada na cabeça do art. 26, do CP, ao passo que a periculosidade real diz respeito àquele que se subsume ao disposto no parágrafo único do art. 26, ou seja, do agente que, em virtude de uma redução da sua capacidade penal, receberia uma punição reduzida, mas que, por conta da necessidade de especial tratamento curativo, tem a sua pena substituída por medida de segurança. a forma acima
33.6. Espécies de medidas de segurança
C
om o CP/19 8 4,
passaram a existir apenas duas modalidades de medida de segurança:
11. Cf. Jesus, Damásio E. de. Op. cit., p. 541; e Bitencourt, Cezar Roberto. Op. cit., p. 745. 522
Capítulo XXXIII | Medidas de segurança
33.6.1. Internação em hospital psiquiátrico
Também denominada de medida de segurança detentiva, executa-se em hospital de tratamento e custódia, isto é, privando-se o agente da liberdade de locomoção.12 33.6.2. Tratamento ambulatorial
Denominada, igualmente, de medida de segurança restritiva, o agente não é privado da liberdade, mas sujeito à obrigatoriedade de comparecer regularmente ao posto de atendimento médico, para fins de consulta e recebimento da medicação adequada. Caso ele descumpra a determinação judicial, poderá o Juiz da execução proceder à conversão do tratamento ambulatorial em internação em hospital de custódia e tratamento psiquiátrico. Nesse sentido, discorrendo sobre os incidentes de execução, o art. 184, da LEP, dispõe: “O tratamento ambulatorial poderá ser convertido em internação se o agente revelar incompatibilidade com a medida”. 33.6.3. Escolha da medida de segurança
Cumpre salientar que a escolha entre internação e tratamento ambulatorial não obedece a critérios concretos da gravidade do fato perpetrado, comportamento do agente ou sua presumida periculosidade, mas somente a verificação se o delito em tese praticado é apenado com reclusão ou detenção (art. 97, parte final, do CP). Cuida-se, talvez, da distinção mais marcante entre reclusão e detenção, paradoxalmente destinada àquele que, a rigor, não sofre nem uma nem outra modalidade punitiva. Critica-se esse critério legal, pois pode ocorrer que, diante do caso concreto, não haja a necessidade da medida mais drástica (internação em manicômio judiciário), sendo preferível e aconselhável o tratamento ambulatorial. Dessa maneira, inobstante a lei vincular pena de reclusão à internação, razões superiores de política criminal – ou de justiça no caso concreto – podem levar o magistrado a adotar uma interpretação sistêmica, integrando o critério apriorístico do art. 97, do CP, com o critério de necessidade do art. 98, do CP, decidindo não impor medida de segurança de internação ao agente que perpetrou fato punido com reclusão, sujeitando-o, assim, ao comparecimento ao posto de saúde para tratamento ambulatorial. O STJ já acolheu essa orientação progressista, entendendo que a medida de segurança deve se ajustar, no caso concreto, à natureza do tratamento de que necessita o 12. Segundo Sérgio Carrara, o manicômio judiciário surgiu, no início da República, em virtude de um problema concreto, qual seja, o crime praticado por Custódio Alves Serrão. Em abril de 1896, com ciúmes da irmã, Custódio matou a tiros o seu tutor – o Comendador Belamino Brasiliense, diretor da Casa de Correção ao tempo do Império. Na ocasião, Custódio foi internado, por conta de “distúrbios nervosos”, no Hospício Nacional, de onde fugira por diversas vezes. Levado a uma prisão comum, ele subverteu a ordem e a disciplina local, particularmente em razão de sua inteligência e elevado nível educacional. O episódio gerou grande polêmica entre médicos e juristas sobre o tratamento adequado aos “loucos-criminosos” no Brasil. O debate redundou na campanha para construção do Asilo Criminal Brasileiro, erguido num prédio anexo à Casa de Correção da rua Frei Caneca/Rio de Janeiro. (cf. Carrara, Sérgio. Crime e Loucura. O aparecimento do manicômio judiciário na passagem do século. Rio de Janeiro: Eduerj, 1998, p. 127). 523
Curso de Direito Penal | Parte Geral
agente inimputável ou semirresponsável. Segundo aquele tribunal, é o que resulta da letra do art. 98, do CP, no tocante ao condenado que necessitar de especial tratamento curativo. Sendo assim, tal regime previsto para o semi-imputável evidencia que a necessidade vincula a medida de segurança ao autor do fato típico e antijurídico, impondo a interpretação que acarrete a “natureza relativa da presunção de necessidade do regime de internação para o tratamento do inimputável”.13 Com advento da Lei no 10.216/2001, a chamada lei antimanicomial, tal questão se exacerbou, por força da previsão de seu art. 4o, a internação, em qualquer de suas modalidades, só será indicada quando os recursos extra-hospitalares se mostrarem insuficientes. Por força disto, alguns estados têm adotado programas referentes às medidas de segurança em que a internação é, sempre que possível, como é o caso de Minas Gerais14 e de Goiás.15
33.7. Cumprimento da medida de segurança
A
tal como a pena, só pode ser executada, segundo o art. 171, da LEP, após transitar em julgado a sentença penal, que, no caso, denomina-se de absolvição imprópria (art. 386, parágrafo único, III, do CPP, com a redação da Lei no 11.690/2008). Objetivando que o acusado não venha a ser açodadamente submetido ao regime de internação ou tratamento ambulatorial antes do trânsito em julgado, o art. 172, da LEP, condiciona a imposição de tais medidas à expedição de guia de execução. O art. 173, da LEP, disciplina os termos da elaboração desta guia, bem assim o seu conteúdo. A cautela do legislador no trato da presente matéria é louvável. Lamentavelmente, não era infrequente que inimputáveis fossem irregularmente internados em manicômios judiciários, antes do trânsito em julgado do processo, em flagrante abuso de autoridade. Outra prática igualmente reprovável consiste na manutenção de inimputável em estabelecimento prisional sob o argumento de ausência de vaga em hospital de tratamento e custódia.16 Iniciado, efetivamente, o cumprimento da medida, deve-se proceder, após o decurso do prazo de 1 (um) a 3 (três) anos, ao exame médico para averiguação da cessação de periculosidade (art. 97, § 1o, do CP). Após esse marco inicial, a perícia médica passa a medida de segurança ,
13. REsp 324091. STJ. Min. Hamilton Carvalhido. Sexta Turma. DJ de 09/02/2004. 14. Sobre o tema, vide . 15. Sobre o tema, vide . Acessado em 22/05/2011. 16. Cf.: “Execução Penal. Habeas corpus. Paciente submetido a medida de segurança de internação. Permanência em presídio comum. Alegada falta de vagas em hospital psiquiátrico. Constrangimento ilegal. Ocorrência. Ordem concedida, em parte. 1. É ilegal a prisão de inimputável sujeito a medidas de segurança de internação, mesmo quando a razão da manutenção da custódia seja a ausência de vagas em estabelecimentos hospitalares adequados à realização do tratamento. 2. Ordem concedida, em parte, para determinar a imediata transferência do paciente para hospital de custódia e tratamento psiquiátrico ou outro estabelecimento adequado, sendo que, na falta de vagas, deve ser o mesmo submetido a regime de tratamento ambulatorial até que surja referida vaga.” (HC 81959. STJ. Min. Maria Thereza Moura. Sexta Turma. DJ de 25/02/2008). 524
Capítulo XXXIII | Medidas de segurança
ser repetida de ano em ano, ou a qualquer tempo, se o determinar o Juiz da execução (art. 97, § 2o, do CP). Na mesma esteira, o art. 175, I, da LEP, dispõe que a autoridade administrativa, até um mês antes de expirar o prazo acima indicado, remeterá ao juiz minucioso relatório que o habilite a resolver sobre a revogação ou permanência da medida. Em complemento, o art. 176, da LEP, diz que o exame de cessação de periculosidade pode ser realizado a qualquer tempo, inclusive antes do decurso do prazo referencial mínimo.
33.8. Suspensão e extinção da medida de segurança
I
da medida e submetido ao regime regular de perícia anual, pode ocorrer de ser detectada, pelo exame das condições pessoais do agente, a cessação da sua periculosidade. Quando isso ocorrer, devem ser observadas as providências discriminadas no art. 175, da LEP, culminando, portanto, com a decisão judicial de desinternação. Esta desinternação ou liberação gradual dar-se-á, consoante o § 3o, do art. 97, do CP, sempre a título provisório, vale dizer, durante um período de prova de um ano, aplicando-se ao agente, durante este prazo, as condições previstas para o livramento condicional (art. 178, da LEP). Ultrapassado o período de observação, cumprindo, o liberado, as condições dos arts. 132 e 133, da LEP, bem assim, constatando-se que não houve a prática de fato indicativo de persistência de sua periculosidade, será declarada, por sentença do Juiz da execução, a extinção da medida de segurança. Caso contrário, ou seja, se o liberado descumprir as condições ou vier a perpetrar outro fato típico e antijurídico, haverá o restabelecimento da medida de segurança anteriormente fixada. Por outro lado, extinta, em definitivo, a medida de segurança, uma nova imposição de tratamento de internação ou ambulatorial dependerá, por óbvio, da prática de novo fato pelo agente. niciado o cumprimento
33.9. Limite máximo de cumprimento da medida de segurança
E
a dinâmica acima exposta, pode acontecer de os exames regulares indicarem a manutenção do quadro de periculosidade do agente e, portanto, a necessidade do prosseguimento do tratamento. Surge, assim, a indagação a respeito do prazo máximo de duração da medida de segurança. A razão desse questionamento decorre do fato de o legislador não ter estipulado, no Código Penal ou na Lei de Execuções, um limite de tempo para a sua duração. Diante da lacuna da lei, várias possibilidades se apresentam. De antemão, assinala-se que, para a hipótese do semirresponsável (art. 26, parágrafo único, do CP), parece existir consenso doutrinário e jurisprudencial no sentido de que o prazo máximo de m que pese
525
Curso de Direito Penal | Parte Geral
duração da medida será aquele inicialmente fixado na sentença que aplicara a pena privativa de liberdade. Desse modo, se o julgador, constatando a necessidade de especial intervenção curativa (art. 98, do CP), entender por substituir a pena por medida, é correto o entendimento que o tempo de cumprimento desta não possa ultrapassar o que fora fixado para aquela. Se remanescer a necessidade de cuidados médico-assistenciais, dever-se-á proceder nos termos da lei civil. Entretanto, para o inimputável (art. 26, caput, do CP), há divergência doutrinária, pois alguns admitem que a medida de segurança possa vir a se eternizar caso não haja alteração do quadro de periculosidade do agente. Nesse sentido, Guilherme Nucci critica aqueles que sustentam que a medida de segurança deva se amoldar ao prazo do art. 75, do CP. Segundo o autor, apesar de seu caráter de sanção penal, a medida de segurança não deixa de ter o propósito curativo e terapêutico. Sendo assim, enquanto não for devidamente curado, deverá a pessoa submetida à internação permanecer em tratamento sob custódia do Estado. Ou seja, para Guilherme Nucci, seria demasiado apego à forma transferi-lo de um local de custódia e tratamento criminal para outro, onde estão abrigados insanos interditados civilmente, somente porque atingiu-se o teto máximo da pena correspondente ao fato criminoso praticado.17 A despeito do ponderado, há outro entendimento que considera que justamente em razão da vedação constitucional de penas de caráter perpétuo (art. 5o, XLVII, “b”, da CF/1988), a medida de segurança não pode durar para sempre. E isso por se tratar justamente de espécie do gênero sanção penal. Não se cuidaria, portanto, de um apego a formalidades, pois, de um lado, obedece-se a uma garantia constitucional e, de outro, transfere-se o agente para hospital psiquiátrico que – apesar das condições geralmente adversas – não tem a rigidez da segurança verificada nos manicômios judiciários do País. Posiciona-se, como dito, no sentido de que para os inimputáveis a medida não pode perdurar por mais de trinta anos (art. 75, caput, do CP). Após o decurso desse teto máximo, deverá o Ministério Público providenciar perante a jurisdição civil, a sua interdição, com a subsequente transferência para o estabelecimento adequado a quem não é mais considerado infrator. Os tribunais têm sufragado esse entendimento, consoante os julgados do Supremo Tribunal. Segundo essa Corte, a “interpretação sistemática e teleológica” dos arts. 75, 97 e 183, os dois primeiros do CP e o último da LEP, deve ser feita considerando a garantia constitucional abolidora das prisões perpétuas. Em suma, “a medida de segurança fica jungida ao período máximo de trinta anos”.18 Sendo assim, após o decurso dos trinta anos de cumprimento da medida, deve-se aplicar, por analogia, a norma contida no art. 75, do CP e, por interpretação sistemático-teleológica, a regra do art. 682, § 2o, do CPP. Ou seja, deve o Parquet deflagrar processo de interdição civil do liberado no juízo cível competente, na conformidade dos arts. 1.769 e segs., do CC. 17. Nucci, Guilherme de Souza. Código Penal Comentado..., cit., p. 418. 18. HC 84219. STF. Min. Marco Aurélio. Primeira Turma. DJ de 23/09/2005. 526
Capítulo XXXIII | Medidas de segurança
Anote-se, por derradeiro, existir uma terceira corrente que defende a tese de que, no caso de inimputável, a duração máxima da medida de segurança não deve ser trinta anos, mas, sim, do tempo máximo cominado, em abstrato, no tipo penal em que o agente restou incurso.19 Este entendimento foi adotado pelo Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária. Assim e por força da orientação psiquiátrica contrária a internações muito duradouras, o Decreto no 6.706, de 22/12/2008, que concedeu indulto natalino e comutação de penas, estabeleceu a extinção da medida de segurança para aqueles que, até 25/12/2008, tenham suportado privação da liberdade, internação ou tratamento ambulatorial por período igual ou superior ao máximo da pena cominada à infração penal correspondente à conduta praticada ou, nos casos de substituição prevista no art. 183 da Lei no 7.210/1984, por período igual ao tempo da condenação, mantido o direito de assistência nos termos do art. 196 da Constituição. Tal orientação foi atualizada nos Decretos de indulto natalino de 2009 e 2010, a saber, o Decreto no 7.046, de 22/12/2009, e o Decreto no 7.420, de 31/12/2010. Assim, pode-se dizer que foi estabelecido um limite à medida de segurança de acordo com o máximo de pena, por força de decisão presidencial, diferindo do que consta no Código Penal ou na jurisprudência dos tribunais superiores.
33.10. Conversão da pena em medida de segurança
E
a pena aplicada poderá ser substituída por medida de segurança. A primeira, como visto, se dá no caso de semi-imputável que necessitar de especial tratamento curativo (art. 98, do CP). A segunda hipótese ocorre em razão de superveniência de doença mental de quem já se encontrava cumprindo a pena. Neste caso, o art. 41, do CP, e o art. 183, da LEP, dispõem que o juiz deve determinar a substituição da pena por medida de segurança, transferindo o preso do estabelecimento em que se encontra para um hospital de tratamento e custódia. Deverá, dessa feita, o transferido cumprir o restante da pena transformada em medida de segurança. Se houver melhora do estado de saúde mental, retornará ao estabelecimento prisional para cumprir o restante da pena, detraindo-se o tempo em que esteve sob a medida de internação. Por outro lado, se a internação se prolongar até o término do prazo restante da pena originalmente imposta, dispõe o § 2o, do art. 682, do CPP, que o indivíduo terá o destino aconselhado pela sua enfermidade, feita a devida comunicação ao juiz de incapazes. Corroborando a validade desta norma, decidiu o STJ que, se no curso da execução da pena de prisão sobrevier doença mental ou perturbação da saúde mental do condenado, o juiz poderá determinar a substituição da pena por medida de segurança, a teor do art. m duas hipóteses
19. Cf.: “Começa-se a sustentar, atualmente, que a medida de segurança não pode ultrapassar o limite máximo de pena cominada ao delito, pois esse seria ‘o limite da intervenção estatal, seja a título de pena, seja a título de medida’.” (Bitencourt, Cezar Roberto. Op. cit., p. 749). 527
Curso de Direito Penal | Parte Geral
183, da LEP, sendo que, a duração dessa medida substitutiva não poderá ser superior ao tempo restante para cumprimento da reprimenda. Sendo assim, “ao término do referido prazo, se o sentenciado, por suas condições mentais, não puder ser restituído ao convívio social, o juiz da execução o colocará à disposição do juízo cível competente para serem determinadas as medidas de proteção adequado à sua enfermidade”20 (art. 682, § 2o, do CPP).
20. HC 31702. STJ. Min. Laurita Vaz. Quinta Turma. DJ de 05/04/2004. 528
título
IV
capítulo
teoria ger a l da sa n ção p en a l
XXXIV
AÇÃO PENAL
34.1. Considerações gerais
C
da autodefesa ou autotutela, isto é, da prerrogativa do particular de buscar justiça pelas próprias mãos, o Estado tomou para si o monopólio do magistério punitivo. Contudo, a faculdade da imposição de sanção penal – o jus puniendi – não é arbitrária, mas, ao contrário, está submetida aos princípios e regras do ordenamento jurídico, a começar pelo princípio da legalidade. Com efeito, o direito de punir enquanto tal legitima-se com a entrada em vigor da lei que tipifica determinado comportamento desvalioso, cominando-lhe a respectiva sanção penal. Quando uma pessoa realiza conduta que se amolda àquela descrita na lei, transgredindo, assim, a norma penal, o poder de punir sai do plano abstrato, surgindo, concretamente, a denominada pretensão punitiva estatal ou, melhor dizendo, a pretensão da sociedade, representada pelo Estado, de impor sanção penal ao autor da conduta típica, antijurídica e culpável. Ocorre, porém, que a pretensão punitiva não pode ser autoexecutada. De fato, visando o interesse geral, a organização política moderna, inspirada no princípio da separação de Poderes (cf. art. 2o, da CF/1988), não permite que determinados atos ou funções estatais, dentre eles, o jus puniendi, seja diretamente exercitado. No caso, procura-se tutelar outro interesse de igual dignidade, qual seja, o direito de liberdade – o jus libertatis – do qual todo cidadão é titular (Preâmbulo, art. 3o, I, e 5o, caput, e II, da CF/1988). Segundo Frederico Marques, o direito de punir om a limitação
529
Curso de Direito Penal | Parte Geral
é um direito de coação indireta, que somente se realiza por intermédio de atividade complementar consistente na obtenção do pronunciamento jurisdicional sobre a legitimidade de seu exercício pelo Estado-administração.1 Em tais hipóteses, isto é, quando determinada função estatal fica submetida às limitações no seu exercício, na medida em que somente poderá se concretizar após a devida apreciação jurisdicional, é “imprescindível” – segundo aquele doutrinador –, que ele seja investido do direito de ação, pois o Poder Judiciário é por natureza inerte, e só se movimenta mediante provocação do interessado.2 Sendo assim, pode-se conceituar direito de ação como sendo o direito de invocar o Judiciário para fins de aplicação da norma legal em desfavor daquele que a transgrediu, quando a mesma não pode ser exercitada unilateralmente.3 A seu turno, ação penal consiste no direito de obter o pronunciamento do Judiciário sobre a procedência da pretensão punitiva estatal. Vê-se, assim, que nada difere a ação penal daquela que se exercita no juízo cível, visto que ambas têm base constitucional (art. 5o, LIII e LIV, da CF/1988), além de serem públicas, na medida em que exercitadas perante o Judiciário, e possuírem caráter autônomo, vale dizer, elas existem independentemente da procedência ou não do direito material que se pretende ver efetivado ao final do respectivo processo.4 Conforme se pode perceber, é nítido o conteúdo processual do direito de ação. No caso da ação penal, é eloquente a sua localização no âmbito do Direito Processual Penal. Bem por isso, os códigos penais, em geral, se abstêm de regular a matéria, seguindo, assim, o modelo instituído pelo Código de Instrução Criminal francês. Porém, essa orientação não foi seguida pelo legislador brasileiro. Dois seriam os motivos pelos quais entendeu-se por cuidar da ação penal no Código Penal brasileiro. O primeiro prende-se a uma tradição iniciada com o Código Penal de 1890. Na ocasião, procurou-se firmar preceitos gerais relativamente à persecução penal, uma vez que a estrutura federativa do início da República delegou aos Estados-Membros a competência exclusiva para legislar sobre o processo penal. Sendo assim, o lugar onde se poderia veicular normas gerais da ação penal e sua titularidade, válidas para todo o País, foi, justamente, o CP/1890. Essa providência continuou a ser adotada nos diplomas penais subsequentes, a despeito do CPP de 1941 ter unificado toda a legislação processual penal da Federação. 1. Marques, José Frederico. Tratado de Direito Penal. Vol. III. Campinas: Millennium, 1999, p. 405. 2. Idem, p. 405. 3. É inerente ao exercício da atividade jurisdicional é a existência de um conflito de interesses – ou, simplesmente, lide –, consistente no litígio entre a parte que quer a aplicação da norma contra a outra que lhe opõe resistência. 4. Cf.: “Infere-se dessas considerações que a ação, antes de tudo, é um direito abstrato que investe seu titular da faculdade de invocar o poder público, por meio de seus órgãos judiciários, para aplicar a norma legal objetiva e solucionar um litígio de interesses em conflito. Este é o primeiro aspecto do direito de ação, e que, como diz Liebman, se projeta em cheio no campo do direito constitucional como um dos direitos fundamentais do indivíduo. Jellinek, por isso, conceituava a ação como um direito público subjetivo, emanado do status civitatis, exercido contra o Estado para exigir deste uma prestação jurisdicional.” (Marques, José Frederico. Op. cit., p. 408). 53 0
Capítulo XXXIV | Ação penal
A segunda razão decorre da contingência, acima apresentada, de ser a ação penal a conditio sine qua non para o exercício do direito de punir. Sem ação penal, não há processo e, sem processo, não há sanção penal. Portanto, de pouco serviriam normas gerais sobre o delito e a pena, bem como a capitulação dos delitos na Parte Especial, se o Código Penal dispusesse, minimamente, acerca dos pressupostos gerais para que o jus puniendi em abstrato seja convertido ao plano concreto. Dito isso, cumpre registrar que a ação penal encontra-se regulada nos arts. 100 a 106, do CP, e nos arts. 24 a 62, do CPP. Cuida-se, portanto, de um instituto de natureza mista, ou seja, de conteúdo penal e processual. Em razão disso, toda alteração legislativa que envolva a ação penal sofrerá, inexoravelmente, os influxos próprios da nossa disciplina, em particular a consideração acerca da sua aplicação retroativa ou não (art. 5o, XL, da CF/1988 e art. 2o, do CP). Em outros termos, as mudanças legislativas que dificultarem o exercício da ação penal retroagirão a favor do réu e, aquelas que facilitarem o manejo desse direito, serão irretroativas.5
34.2. Espécies de ação penal
C
penal é o meio pelo qual se inicia o processo penal, com o fito de ser aplicada a pena contra determinado infrator. Sob o enfoque penal, tem-se que o magistério punitivo pertence à Sociedade, por intermédio do Estado, uma vez que foram abolidas as formas de vingança privada. Conquanto monopólio estatal, é possível que, por razões de política criminal, a lei condicione a atuação do órgão acusador à prévia manifestação de vontade do lesado ou de outro órgão público. São situações em que, ao lado do interesse geral na punição do infrator, há um interesse de igual relevo, de natureza privada ou política, que faz com que, sem esta concordância, o órgão de persecução penal não possa atuar. Desse modo, a ação penal continua a ser titularizada pelo Ministério Público, porém condicionada à manifestação de vontade do ofendido ou à requisição do Ministro da Justiça. Há, ainda, hipóteses mais extremas nas quais o interesse do particular é superior ao interesse público. Isso ocorre quando há o predomínio de razões de foro íntimo ou de tutela da intimidade diante da repercussão que a deflagração do processo penal inevitavelmente acarreta, ou seja, o chamado streptus fori, bem como o risco da vitimização secundária.6 Dessa maneira, a lei pode conceder, exclusivamente, ao ofendido a decisão sobre a dedução ou não da ação penal. onsoante afirmado, ação
5. Por exemplo, a Lei no 12.015/2009, alterou inúmeros dispositivos do Código Penal, dentre eles a ação penal nos crimes sexuais (art. 225, do CP). Antes desta lei, o estupro, na sua modalidade básica (art. 213, do CP), era de ação penal privada e, na forma qualificada pelas lesões corporais graves ou morte, era de ação pública incondicionada. Como a nova redação do art. 225, do CP, o estupro, em ambos os casos, passou a ser de ação pública condicionada a representação. Com isso, observa-se que ocorreu, ao mesmo tempo, a retroatividade (in mellius), para quem praticou estupro qualificado, e a irretroatividade (in pejus), para quem praticou estupro simples, ao tempo da redação originária do art. 225, do CP. 6. Sobre “vitimização secundária”, vide item 26.3.8. 531
Curso de Direito Penal | Parte Geral
Diante disso, pode-se afirmar que a ação penal pode ser deduzida pelo Poder Público, ou melhor, pelo Ministério Público (art. 129, I, da CF), diretamente ou pendente, excepcionalmente, da manifestação de vontade da parte lesada ou outro órgão estatal. Pode, em casos mais particulares, ser somente deduzida pelo lesado. Ainda sobre o assunto, pode ocorrer que, a despeito da sua titularidade, o Ministério Público quede-se inerte, não se manifestando, seja para iniciar a ação penal seja para requerer o arquivamento do inquérito. Portanto, em havendo desídia ministerial, a lei faculta ao particular que, pontualmente, apresente ação penal em substituição àquela que deveria ter sido formulada pelo Parquet. De tudo que foi dito, pode-se classificar a ação penal da seguinte forma: (1) ação penal pública incondicionada; (2) ação penal pública condicionada à representação do ofendido ou à requisição do Ministro da Justiça; (3) ação penal privada (exclusivamente privada e personalíssima); e (4) ação penal privada subsidiária da pública. É o legislador que irá definir a qual modalidade de ação se submeterá cada modalidade de crime previsto no Código Penal ou na legislação penal especial. Entretanto, a regra geral é da ação penal ser pública incondicionada. Existindo, excepcionalmente, interesses concomitantes de cunho particular ou político, ou situações onde o interesse privado for superior ao público, poderá o legislador valer-se da figura da representação do ofendido ou da requisição do Ministro da Justiça, ou destinar, com exclusividade, ao particular a iniciativa da ação penal. Em todo caso, a pretensão punitiva continua a ser pública, mas sua titularidade, no último caso, será particularizada. Sobre a matéria, o art. 100, caput, do CP, diz que, em regra, a ação penal será pública incondicionada. A norma geral só será excepcionada quando houver expressa referência na lei, geralmente no próprio dispositivo que descreve o delito e a pena. Pode-se, assim, encontrar na leitura dos tipos penais expressões como a ação penal depende de representação do ofendido. Pode, ainda, estar inscrito que somente se procede mediante queixa.7 Repita-se: se não houver disposição em contrário, a ação sempre será pública incondicionada.8
34.3. Ação penal pública
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ação penal pública , incondicionada ou condicionada, é aquela promovida pelo Ministério Público: arts. 100, caput ou § 1o, do CP; art. 24, CPP; e art. 129, I, da CF/1988. Sobre o conteúdo, o prazo, as condições da ação, bem como os pressupostos processuais da denúncia, são questões atinentes ao processo penal, razão pela qual
7. Queixa é o nome técnico da peça inicial da ação penal privada. Por sua vez, denúncia é o nome da peça inicial da ação penal pública, que somente pode ser subscrita pelo Ministério Público. 8. Nesse sentido, vê-se a impropriedade da Lei n o 10.695/2003 que, ao alterar os crimes contra a propriedade imaterial, previu, desnecessariamente, no art. 186, II, do CP, que os delitos dos §§ 1o e 2 o, do art. 184, do CP, são de “ação pública incondicionada.” 532
Capítulo XXXIV | Ação penal
devem ser observados os dispositivos constantes no CPP. Destaca-se, no particular, que, seja qual for o crime, quando praticado em detrimento do patrimônio ou interesse da União, Estado e Município, a ação penal será sempre pública (art. 24, § 2o, do CPP, com a redação da Lei no 8.699/1993). Saliente-se, por oportuno, que a denúncia poderá ser oferecida quando contiver suporte probatório mínimo de autoria de materialidade, a chamada justa causa, além de outros requisitos legais pertinentes (arts. 41 e 395, do CPP, este último com a redação dada pela Lei no 11.719/2008). Em geral, é por meio do inquérito policial que são reunidos aquele mínimo de prova, não obstante ser possível que o MP, diante das suas atribuições investigatórias criminais (art. 129, VIII, da CF/1988; art. 8o, da Lei Complementar no 75/1993; e art. 26, da Lei no 8.625/1993) reúna, ele próprio, o referido acervo probatório.9 34.3.1. Representação do ofendido e requisição do Ministro da Justiça
Em alguns casos, embora pública, a ação penal dependerá de representação do ofendido ou de requisição do Ministro da Justiça (art. 100, § 1o, do CP). Representação significa a manifestação de vontade do ofendido ou seu representante legal, no sentido de ser movida a acusação pública. Trata-se de uma condição de procedibilidade, sem a qual a ação penal não poderá ser instaurada. Sequer o inquérito policial poderá ser aberto sem a concordância do lesado, nos casos em que a lei assim determina. A requisição do Ministro da Justiça – hipótese cada vez mais rara –, é, igualmente, uma manifestação de vontade, pautada, no caso, por razões de conveniência política.10 Pode-se encontrar no Código Penal os seguintes crimes que exigem representação do ofendido ou requisição do Ministro da Justiça: art. 7o, § 3o; art. 129, caput e § 6o (cf. art. 88, da Lei no 9.099/1995); art. 130, § 2o; art. 145, parágrafo único (cf. redação da Lei no 12.033/2009) etc. Com relação a este último dispositivo, assinala a Súmula 714, do STF, ser concorrente a legitimidade do ofendido, mediante queixa, e do MP, condicionada à representação do ofendido, “para a ação penal contra a honra de servidor público no exercício de suas funções”. 34.3.2. Retratação da representação
Como visto, representação significa a manifestação de vontade do ofendido no sentido de ser deflagrada a acusação por parte do MP. Nos casos expressos em lei, a representação é conditio sine qua non para a atuação dos órgãos de persecução criminal. Saliente-se que a representação não exige qualquer formalidade, bastando que o lesado ou seu representante legal manifeste, inequivocamente, o interesse na apuração dos 9. A propósito, as atribuições investigatórias do MP estão disciplinadas na Resolução no 13/2006, do CNMP e, no caso do MPF, na Resolução no 77/2004, do CSMPF. Sobre o assunto, dispõe a Súmula 234, do STJ, que a participação de membro do MP na fase investigatória criminal não acarreta o seu impedimento ou suspeição para o oferecimento da denúncia. 10. Critica-se a manutenção, na atualidade, da vetusta expressão “requisição” do Ministro da Justiça. Isso porque, com a Constituição de 1988, o Ministério Público passou a ser instituição desvinculada do Poder Executivo (ou do Ministério da Justiça), não havendo que falar de “requisição”, no sentido de “ordem”, deste para aquele. Ademais, a independência funcional é um dos princípios institucionais do MP (art. 127, § 1o, da CF/1988). 533
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fatos e na condenação do infrator. A representação pode ser escrita ou oral, sendo, no último caso, reduzida a termo e assinada para fins de comprovação jurídica. Todavia, a lei prevê a possibilidade de o ofendido se retratar, ou seja, mudar de ideia depois de ter formulado a representação. Portanto, retratar-se é “desdizer-se”, “retirar o que foi dito”. A retratação será possível se o MP não tiver oferecido a denúncia ao Judiciário, isto é, enquanto não tiver formulado sua opinio delicti. Segundo o art. 102, do CP, após o oferecimento da denúncia, a representação é irretratável. Atente-se, porém, que oferecimento da denúncia, ato do Ministério Público, não se confunde com o recebimento da denúncia, ato do juiz. O recebimento significa que o Juiz considerou plausível a acusação pública, ou seja, que a denúncia possui justa causa e preenche os demais requisitos para o início do processo penal (art. 396, do CPP, com a redação da Lei no 11.719/2008). Sobre o assunto, a doutrina indaga se seria admissível a retratação da retratação, ou seja, o ofendido mudar, novamente, de opinião, manifestando-se, assim, no sentido do caso ter seguimento para fins de punição do autor do ilícito. A rigor, tem-se que a propalada retratação da retratação é, na verdade, a formulação de nova representação, em tese perfeitamente possível, desde que não tenha se operado o respectivo lapso decadencial.11 Cuidando-se de lesões corporais de natureza leve (art. 129, caput, do CP, e art. 88, da Lei no 9.099/1995), perpetradas contra a mulher, no âmbito doméstico e familiar, sujeita à representação da ofendida, a retratação da representação somente poderá ser admitida nos termos do art. 16, da Lei no 11.340/2006. Em outros termos, cabe ao magistrado aferir, diante do caso concreto, acerca da real espontaneidade do ato de retratação, podendo desconsiderar a sua manifestação de vontade, determinando o prosseguimento da ação penal, desde que demonstrado que agiu privada de sua liberdade de retratação, “por ingerência ou coação do agressor”.12 34.3.3. Ação penal no crime complexo. A questão da ação penal nos crimes sexuais
Com relação ao crime complexo, isto é, aquele cujos elementos constitutivos consistam em fatos que, por si mesmos, constituem crimes, dispõe o Código que caberá ação pública em relação àquele, desde que, em relação a qualquer destes, se deva proceder por iniciativa do Ministério Público (art. 101, do CP). Em outros termos, assinala o legislador penal que quando um dos vários tipos que compõem o crime complexo for de ação pública, ele também será de ação pública. Segundo a doutrina, cuida-se de preceito esclarecedor, destinado a evitar dúvidas futuras de interpretação, mas que, na prática, revelou-se flagrantemente inútil. Isso 11. Cf. Jesus, Damásio E. de. Op. cit., p. 662; e Bitencourt, Cezar Roberto. Op. cit., p. 759. Em sentido contrário: Prado, Luiz Regis. Op. cit., p. 679; e Marques, José Frederico. Op. cit., p. 317. 12. HC 153548. STJ. Min. Felix Fischer. Quinta Turma. DJ de 27/09/2010. 53 4
Capítulo XXXIV | Ação penal
porque, qualquer dificuldade que surja em relação à espécie de ação penal em um crime complexo já estará resolvida pela regra geral do art. 100, caput, do CP.13 Exemplo: “A” dá causa a instauração de inquérito policial contra “B”, imputando-lhe a prática de fato definido como crime, sabendo que o mesmo é inocente. Cuida-se de delito de denunciação caluniosa (art. 339, do CP), cuja parte das suas elementares engloba o crime de calúnia (art. 138, do CP), que é de ação penal privada (art. 145, do CP). No entanto, como na denunciação caluniosa nada é dito sobre a ação penal, obedece-se à regra geral do art. 100, caput, do CP: é crime de ação penal pública.
Na atualidade, tem-se defendido uma utilidade para o art. 101, do CP, qual seja, a de solucionar o problema causado pela Lei no 12.015/2009, que, ao alterar diversos artigos referentes aos crimes sexuais (Título VI, da Parte Especial do Código), fez com que o (novo) delito de estupro, na forma simples ou qualificada pela lesão corporal grave ou pela morte (art. 213, caput, e §§ 1o e 2o, do CP), passasse a ser de ação pública condicionada a representação (art. 225, do CP, com a redação da Lei no 12.015/2009). Exemplo: “A” estupra “B” que, em razão da violência empregada, vem a falecer (art. 213, § 2o, do CP). “B” não tinha cônjuge, ascendente, descendente ou irmão para exercer, em seu nome, o direito de representação (art. 24, § 1o, do CPP). Nos termos do art. 225, do CP, o estupro seguido de morte perpetrado por “A”fica impune por falta de representação.
Diante da gravidade das consequências trazidas pela Lei no 12.015/2009, tem-se argumentado que, ao menos para as hipóteses qualificadoras, seria possível ingressar com ação penal contra o estuprador, visto que as elementares dos §§ 1o e 2o, do art. 213, do CP, são compostas pelos tipos penais de constrangimento ilegal (art. 146, do CP) e lesões corporais de natureza grave (art. 129, §§ 1o e 2o, do CP) ou homicídio (art. 121, do CP), crimes de ação pública incondicionada. Ou seja, sendo parte de ação pública, o todo também o será. No entanto, é forçoso reconhecer que essa possível solução para a alteração da ação penal promovida pela Lei no 12.015/2009, esbarra no óbice intransponível do princípio da especialidade: o art. 225 é norma especial frente ao art. 101, do CP. Sendo assim, considera-se que o melhor caminho é a declaração de inconstitucionalidade do novo art. 225, do CP (Lei no 12.015/2009), com ou sem redução de texto, pela violação do princípio da dignidade da pessoa humana e a vedação da proteção deficiente de bens jurídicos.14 13. Cf.: “O intuito do legislador foi o de prevenir qualquer interpretação em outro sentido, pois o preceito do artigo citado era de todo prescindível em face do que diz o art. 100, caput, ao preceituar que a ‘ação penal é pública, salvo quando a lei expressamente a declara privativa do ofendido’. Desde que o texto legal, que contenha a descrição de um crime complexo com a respectiva sanção, silencie sobre a titularidade da ação penal, é evidente que esta tem de ser pública.” (Marques, José Frederico. Op. cit., p. 478). 14. Cf. Souza, Artur de Brito Gueiros. A inconstitucionalidade da Lei n o 12.015/09 (a nova redação do art. 225, do CP, e o princípio da proteção deficiente. Disponível em: , acessado em 19/03/2011. Sobre o assunto, o Procurador-Geral da República Roberto Monteiro Gurgel Santos, acolhendo manifestação da Subprocuradora-Geral da 535
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34.3.4. Ação penal do crime conexo e no concurso de crimes
A regra da ação penal no crime complexo não se aplica às hipóteses de crime conexo ou de concurso de crimes. O crime conexo compreende a pluralidade de crimes ligados entre si em razão de um vínculo teleológico (quando um crime é praticado para assegurar a execução de outro), consequencial (quando um crime é perpetrado para facilitar a ocultação, a impunidade ou a vantagem de outro), ou ocasional (quando um crime é cometido por ocasião da prática de outro). Desse modo, havendo conexão entre crimes de ação pública e de ação privada, não poderá o MP oferecer denúncia em relação a ambos, havendo, assim, necessidade de se observar a regra geral do art. 100, do CP. Na mesma esteira, quando surge o concurso material ou formal entre um crime de ação pública e outro de ação privada, o MP não possui legitimidade para oferecer, validamente, a denúncia em relação a este, pois a mesma depende da queixa por parte do ofendido. Evidentemente, a questão não se apresenta no caso de crime continuado, uma vez que pressupõe crimes da mesma espécie e mesma titularidade. Segundo Frederico Marques, nas hipóteses acima contempladas (crime conexo, concurso material e formal), faz-se imprescindível que se forme um “litisconsórcio entre o Promotor e o titular do jus querelandi, para que ambos os delitos sejam objeto de acusação e possam ser apreciados conjuntamente na sentença”.15
34.4. Ação penal privada
S
a ação penal privada compreende as seguintes categorias: (1) ação penal exclusivamente privada; (2) ação penal privada subsidiária da pública; e (3) ação penal privada personalíssima. egundo a doutrina ,
34.4.1. Ação penal exclusivamente privada
Conforme já exposto, há situações nas quais o interesse do ofendido se sobrepõe ao interesse público, razão pela qual a lei confere ao lesado a prerrogativa da deflagração da ação penal, por intermédio da queixa. Dessa forma, o ofendido é denominado querelante e, o autor do fato, querelado (art. 100, § 2o, do CP). Sendo menor de 21 anos e maior de 18, o ofendido e seu representante legal exercem, concorrentemente, o direito de queixa (Súmula 594, do STF). Tratando-se de ofendido menor de 18 anos, a queixa pode ser deduzida por seu representante legal.
República, Deborah Macedo Duprat de Britto Pereira, ingressou com ação de inconstitucionalidade junto ao STF (ADI n. 4.301, Relator Min. Joaquim Barbosa), solicitando o reconhecimento (inclusive liminar) da inconstitucionalidade do art. 225 do CP (sem redução de texto), para se admitir que a ação penal, no caso do estupro com resultado morte ou lesão corporal grave, seria pública incondicionada. O mérito da ação pende de julgamento pelo Plenário da Corte. 15. Marques, José Frederico. Op. cit., p. 480. 536
Capítulo XXXIV | Ação penal
Se ele morre, ou é declarado ausente, o direito de queixa passa ao cônjuge, ascendente, descendente ou irmão (art. 100, § 4o, do CP). A propósito, constata-se a tendência no sentido da extinção da ação penal privada. De lege ferenda, todas as ações penais tenderão a ser públicas incondicionadas e, em certas hipóteses, públicas condicionadas à representação, mas com a resolução extrapenal dos conflitos particulares entre autor e lesado obstando o prosseguimento da representação.16 É o que já se verifica com a composição civil nas infrações de menor potencial ofensivo, que acarreta a renúncia ao direito de queixa ou de representação (art. 74 e seu parágrafo único, da Lei no 9.099/1995). Numa palavra, em breve a ação penal privada tende ir para os anais da História, para fazer companhia à extinta ação penal popular.17 De toda sorte, são exemplos de crimes de ação penal privada previstos no Código Penal: art. 145, caput; art. 167; art. 184, caput, do CP (cf. art. 186, I, do CP, com a redação da Lei no 10.695/2003), dentre outros. 34.4.2. Ação penal privada subsidiária da pública
A ação penal privada subsidiária da pública, regulada no art. 100, § 3o, do CP, bem como no art. 5o, LIX, da CF/1988, surge na hipótese do Ministério Público não oferecer a denúncia no prazo legal. O prazo para oferecimento da denúncia, estando o réu preso, será de 5 (cinco) dias, contado da data em que o órgão do MP receber os autos do inquérito policial, e de 15 (quinze) dias, se o réu estiver solto ou afiançado (art. 46, do CPP). Se este lapso temporal é ultrapassado, quedando-se, como dito, inerte o órgão acusador, há a possibilidade do ofendido, no prazo de 6 (seis) meses, tomar o seu lugar, intentando a chamada ação penal privada subsidiária da pública, por intermédio da queixa substitutiva (arts. 29 e 38, do CPP). 16. Nesse sentido, o “Anteprojeto de Código de Processo Penal”, com a redação final aprovada no Senado, acaba com a ação penal privada propriamente dita. Na mesma esteira, quase todos os crimes patrimoniais passam a ser de ação pública condicionada, figurando, a conciliação entre autor e vítima, como causa extintiva da punibilidade. Verbis: “Da Ação Penal. Art. 45. A ação penal é pública, de iniciativa do Ministério Público, podendo a lei, porém, condicioná-la à representação da vítima ou de quem tiver qualidade para representá-la, segundo dispuser a legislação civil, no prazo decadencial de 6 (seis) meses, contado do dia em que vier a saber quem é o autor do crime. Parágrafo único. No caso de morte da vítima, o direito de representação passará ao cônjuge, companheiro, ascendente, descendente ou irmão, observado o prazo decadencial previsto no caput deste artigo. Art. 46. Será pública, condicionada a representação, a ação penal nos crimes contra o patrimônio previstos no Título II, da Parte Especial, do Código Penal, quando atingirem exclusivamente bens do particular e desde que praticados sem violência ou grave ameaça a pessoa. § 1o A representação é a autorização para o início da persecução penal, dispensando quaisquer formalidades, podendo dela se retratar a vítima até o oferecimento da denúncia. § 2o Nos crimes de que trata o caput deste artigo, em que a lesão causada seja de menor expressão econômica, ainda que já proposta a ação, a conciliação entre o autor do fato e a vítima implicará a extinção da punibilidade.” (Projeto de Lei do Senado no 156/2009). 17. Sobre a ação penal popular, esclarece Frederico Marques que, quando o Ministério Público ainda não estava perfeitamente estruturado, ela podia ser proposta por qualquer pessoa. Nesse sentido, a Constituição do Império, no art. 157, estatuía que por peita, suborno, peculato e concussão dos juízes e oficiais de justiça, cabível era a ação popular, a qual poderia “ser intentada dentro de ano e dia pelo próprio queixoso, guardada a ordem do processo estabelecido na lei’. O art. 74, do Código de Processo Criminal do Império, falava que, em crimes ali especificados, a “denúncia compete ao Promotor Público e a qualquer do povo”. Com o CP/1890, não se encerrou a controvérsia sobre a ação penal popular, até que, com o CP/1940, restou definitivamente abolida a possibilidade de qualquer do povo deflagrar a ação penal. (cf. Marques, José Frederico. Tratado de Direito Penal, vol. III. Campinas: Millennium, 1999, p. 474). 537
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Esta modalidade de ação penal objetiva evitar que, por conta da inércia, desinteresse ou mesmo por injunções políticas ou ilícitas se dê a impunidade do infrator. Se o Ministério Público tem prerrogativas constitucionais para o exercício de seu mister (art. 127, da CF/1988), tem, também, responsabilidades para com a Sociedade, justificando-se, plenamente, a previsão de ação privada subsidiária da pública que, de resto, é garantia constitucional do cidadão (art. 5o, LIX, da CF/1988). Observe-se, porém, que inércia não se confunde com adoção de medidas diversas do oferecimento de denúncia, como, por exemplo, a requisição de diligências complementares ou a propositura do arquivamento do inquérito policial. Em suma, inércia é a inação que denota a reprovável desídia ou desinteresse do órgão acusador. 34.4.3. Ação penal privada personalíssima
Segundo alguns doutrinadores, existiria, ainda, uma hipótese particular de ação penal privada cuja titularidade é única e exclusiva do ofendido, não podendo substituí-lo nem mesmo o seu representante legal. Em outros termos, falecendo o querelante, extinguir-se-á a punibilidade do querelado, ante a impossibilidade de se prosseguir na ação penal, por não ser possível a “sucessão do direito de queixa”, nos moldes regulados no art. 31, do CPP.18 O exemplo clássico dessa modalidade particular de ação penal privada era o crime de adultério, que dispunha que a “ação penal somente pode ser intentada pelo cônjuge ofendido” (art. 240, § 2o, do CP). Com a revogação desse crime, por força da Lei no 11.106/2005, o único exemplo remanescente seria do delito de induzimento a erro essencial e a ocultação de impedimento, tendo em vista dispor que a ação penal depende de queixa do contraente enganado (art. 236, parágrafo único, do CP).19
34.5. DECADÊNCIA DO DIREITO DE QUEIXA OU DE REPRESENTAÇÃO a ação penal, em regra, é pública incondicionada. O MP e a Polícia Judiciária são órgãos estatais investidos e aparelhados, exatamente, para a atividade persecutória penal, razão pela qual é de todo conveniente que a ampla maioria dos delitos capitulados no Código e na legislação especial se subsumam ao modelo de ação penal pública. Sendo assim, as hipóteses de representação do ofendido bem como de ação penal privada são exceções no ordenamento jurídico brasileiro. Entretanto, se o legislador, por razões político-criminais, concede, em determinadas situações, ao ofendido o direito de representar ou ofertar a queixa-crime, por outro lado estipula-se um prazo para que o faça, sob pena de incidir os efeitos da decadência. Nesse sentido, o art. 103, do CP, não permite que a parte lesada pondere o tempo que quiser
C
OMO JÁ SALIENTAD O,
18. Cf. Prado, Luiz Regis. Curso de Direito Penal Brasileiro. Vol. 1. 9. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, p. 682. 19. Idem, p. 682. 538
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sobre a representação ou a queixa. Há que velar também pelos interesses do suposto infrator e da própria Sociedade, que não podem aguardar, indefinidamente, o desfecho de uma questão penal ao alvedrio da iniciativa do lesado. Dito isso, pode-se definir a decadência como sendo o escoamento do prazo previsto na lei sem que tenha havido a representação ou o oferecimento da queixa. Segundo o art. 103, do CP, salvo disposição expressa em contrário, o ofendido decai do direito de queixa ou de representação se não o exerce dentro do prazo de seis meses, contado do dia em que veio a saber que é o autor do crime ou, no caso do § 3o do art. 100, do dia em que se esgota o prazo para oferecimento da denúncia.20 A contagem começa do dia em que o lesado sabe ou descobre quem foi o autor do fato criminoso. Essa ciência pode ocorrer no mesmo instante em que o fato é praticado, como pode demorar muito tempo. Enquanto não identificado, pela vítima ou seu representante legal, o autor do delito, este prazo não começa a ser contado. A propósito, não há que confundir decadência – perda do direito de oferecimento da representação ou da queixa – com a prescrição penal, que vem a ser perda do próprio direito de punir do Estado, embora ambas sejam formas da extinção da punibilidade (art. 107, III, do CP). Fundamentalmente, a decadência impede o oferecimento da denúncia, nos casos de representação do ofendido, ou o oferecimento da queixa, nos casos de ação penal privada. Sem ação penal não há processo; sem processo não há condenação; sem condenação, a pretensão punitiva não pode ser satisfeita; ela continua a existir, mas não tem como ser aplicada ao caso concreto. Indiretamente, portanto, a decadência extingue a punibilidade, mas a prescrição a fulmina diretamente. Agregue-se, por fim, que é possível haver decadência sem prescrição – o que, aliás, é o que ocorre de ordinário, pois o prazo desta é maior do que daquela – bem assim que haja prescrição sem decadência, como, v.g., na hipótese do lesado somente descobrir quem foi o autor do delito passados muitos anos do seu cometimento, quando o fato já se encontrava sob o manto da prescrição.
34.6. Renúncia ao direito de queixa
R
exercer alguma faculdade legal. A pessoa faz jus a determinado direito, mas não o exercita. No caso, a renúncia ao direito de queixa significa que o lesado, apesar de poder iniciar a ação penal privada, não a deflagra. Atente-se que a renúncia só cabe na ação penal privada. E só pode ocorrer antes dela se iniciar. Oferecida a queixa, poderá o querelante perdoar o querelado (perdão do ofendido), ou, ainda, abandonar o processo, sofrendo uma sanção por sua desídia (perempção). enunciar é não
20. Com relação à “disposição expressa em contrário”, cumpre registrar que, com a revogação do delito de adultério (que previa o prazo de um mês) e pela declaração de inconstitucionalidade da Lei de Imprensa (que contemplava o prazo de três meses). Remanesce como exceção a regra o prazo decadencial de trinta dias, relativo aos crimes contra a propriedade imaterial (arts. 184 e 186, do CP), para o oferecimento da queixa lastreada em exame pericial, contados da data da homologação do laudo (art. 529, do CPP). 539
Curso de Direito Penal | Parte Geral
Conquanto sejam causas de extinção da punibilidade (art. 107, III, parte final, e VI, do CP), renúncia não se confunde com perdão e perempção, pois ela somente pode se dar antes de iniciada a ação penal. Segundo o Código, a renúncia pode ser expressa ou tácita (art. 104, do CP). Renúncia expressa é aquela feita por escrito. A seu turno, renúncia tácita significa a prática de ato incompatível com a vontade de exercer o direito de queixa (art. 104, parágrafo único, do CP). A renúncia tácita evidencia a preocupação do legislador no sentido de que a dedução da ação penal, pública ou privada, seja revestida da seriedade que se espera de quem pretenda utilizá-la. Exemplo: “A” aceita convite para integrar a lista de amigos do Facebook de “B”, seu desafeto, e, no dia seguinte, oferece queixa relativamente a uma injúria que este lhe teria praticado há cerca de três meses.
A parte final do parágrafo único do art. 104, do CP, assinala que não implica, todavia, em renúncia tácita a circunstância de receber, o ofendido, a indenização do dano causado pelo crime. No entanto, cuidando-se de infração de menor potencial ofensivo, a composição civil dos danos, devidamente homologada, acarreta a renúncia ao direito de queixa ou representação (art. 75, parágrafo único, da Lei no 9.099/1995), derrogando-se, no particular, a regra do art. 104, parágrafo único, do CP.
34.7. Perdão do ofendido
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renúncia existe a figura do perdão do ofendido que, como adiantado, pode ocorrer após o exercício do direito de queixa, vale dizer, depois de formalmente iniciada a ação penal privada. Segundo o art. 105, do CP, o perdão do ofendido, nos crimes em que somente se procede mediante queixa, obsta o prosseguimento da ação penal. Importa mencionar que o perdão segue a mesma disciplina da renúncia, ou seja, pode ser expresso ou tácito (art. 106, caput, do CP), sendo que, no último caso, resulta da prática de ato incompatível com a vontade de prosseguir na ação (art. 106, § 1o, do CP). Todavia, esse instituto guarda peculiaridades não existentes na renúncia, visto que, nos termos do art. 106, do CP: (1) o perdão concedido a qualquer dos querelados, a todos aproveita; (2) se concedido por um dos ofendidos, não prejudica o direito dos demais ofendidos; e (3) se o querelado recusa, não produz efeito. A razão dessa particularidade reside na constatação de que, se fosse permitido que o querelante, unilateralmente, perdoasse apenas um, em detrimento dos demais querelados; ou que a concessão do perdão prejudicasse, indiretamente, os interesses dos demais querelantes; ou, por fim, que o querelante pudesse interromper uma ação penal temerariamente deduzida, a jurisdição penal tornar-se-ia local de inúmeros abusos ou de desvirtuamentos no interesse geral do correto exercício do magistério punitivo.
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o l ado da
Capítulo XXXIV | Ação penal
Ademais, na última hipótese (art. 106, III, do CP), o querelado, após a dedução contra si da ação penal privada, passa a ter o direito de levar o processo até o seu termo final visando comprovar, judicialmente, a improcedência da acusação que contra ele pesou. Observa-se, pois, que o perdão do ofendido é um instituto de natureza bilateral, diferentemente da renúncia, que é unilateral. Cumpre registrar que o perdão do ofendido somente pode ser admissível até o trânsito em julgado da sentença condenatória (art. 106, § 2o, do CP).
34.8. Extinção da punibilidade
P
ser salientado que decadência, prescrição, renúncia ao direito de queixa ou representação, perdão do ofendido e perempção, são hipóteses de extinção da punibilidade. or fim, deve
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título
IV
capítulo
teoria ger a l da sa n ção p en a l
XXXV
EXTINÇÃO DA PUNIBILIDADE 35.1. Considerações gerais
Q
penal entra em vigor, surge a possibilidade, em abstrato, de o Estado punir o cidadão que a transgrida. Diz-se, assim, que surge o ius puniendi in abstracto. No momento em que uma pessoa realiza as elementares do tipo penal, de forma antijurídica e culpável, o ius puniendi sai do âmbito abstrato e ingressa no concreto, ou seja, o Estado passa a deter a pretensão de impor a pena ante o delito incurso. Como visto no capítulo anterior, essa pretensão não pode ser autoexecutável. Em razão do princípio constitucional da separação de Poderes (art. 2o, da CF/1988), deve o Estado, representado pelo MP, dirigir-se ao Estado, representado pelo Juiz, por intermédio da ação penal, respeitando o devido processo legal, para fazer valer a sua pretensão punitiva. Sobre o assunto, tem-se que a punibilidade compreende tanto a pretensão de punir (ius puniendi), que surge com a prática do fato e vai até o trânsito em julgado da sentença condenatória, como a pretensão executória (ius punitionis), que se verifica após a sentença definitiva e vai até o cumprimento de todas as obrigações penais do apenado. Vê-se, assim, que o caminho normal para a extinção da punibilidade passa pelo cumprimento integral da pena imposta ao infrator da lei penal. Cumprida a pena, resta exaurido o ius puniendi.
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uand o uma lei
Capítulo XXXV | Extinção da punibilidade
Ocorre, porém, que a punibilidade pode ser extinta por outros meios, isto é, por outros fatores que não o cumprimento integral da sanção imposta na sentença transitada em julgado. Cuidam-se, portanto de outras causas de extinção da punibilidade, sendo que, algumas delas, já foram objeto de estudo nos capítulos precedentes. O art. 107, do CP, contempla, de forma exemplificativa (numerus apertus), causas de extinção da punibilidade. Consoante a Exposição de Motivos do CP/1940, dá-se, nos casos que enumera, uma renúncia, uma abdicação, uma derrelição do direito de punir do Estado. Portanto, diz-se, com acerto, que “o que cessa é a punibilidade do fato, em razão de certas contingências ou por motivos vários de conveniência ou oportunidade política”.1 As causas extintivas da punibilidade do Código aplicam-se, em regra, à legislação penal especial. De se ressaltar, porém, que algumas delas não têm eficácia em relação aos delitos da competência do Tribunal Penal Internacional, como, por exemplo, a prescrição penal (cf. art. 29, do Estatuto do TPI).
35.2. Condições objetivas de punibilidade e escusas absolutórias
A
de punibilidade não se confundem com as causas de extinção da punibilidade. Na verdade, são expressões antípodas, pois elas são fatores ou contingências externas ao fato delituoso, não abrangidas pelo dolo do agente, mas necessárias para que o direito de punir possa existir. O crime existe, há tipicidade, antijuridicidade e culpabilidade, mas não há, enquanto não verificada determinada condição de punibilidade, a consequência jurídica do delito: o ius puniendi in concreto. Não havendo punibilidade, não há, por óbvio, que se falar das causas de sua extinção. Podem ser consideradas condições objetivas de punibilidade: (1) o ingresso do agente no território nacional, nos termos do art. 7o, § 2o, “a”, do CP;2 (2) a sentença declaratória de falência, concessória de recuperação judicial ou de recuperação extrajudicial (art. 180, da Lei no 11.101/2005); (3) a decisão judicial de invalidação de licitação ou contrato (art. 91, da Lei no 8.666/1993); (4) o lançamento definitivo do crédito tributário, para o delito tipificado no art. 1o, da Lei no 8.137/19903 etc. A seu turno, as escusas absolutórias também diferenciam-se das causas gerais de exclusão da punibilidade, por se tratarem de causas pessoais de isenção de pena, estando, ademais, reguladas na Parte Especial, ao invés da Parte Geral, do Código: arts. 181 e 348, § 2o, do CP.4 s condições objetivas
1. E.M. do CP/1940, item no 35. 2. Porém, a maioria da doutrina prefira denominar tal hipótese de condição de procedibilidade. 3. HC 81611. STF. Plenário. Rel. Min. Sepúlveda Pertence. DJ 10/12/2003 (leading case). Ressalte-se, contudo, que para alguns ministros que participaram daquele julgamento a constituição definitiva do crédito tributário constitui, na verdade, elementar do tipo penal. Nesse sentido, a Súmula Vinculante n o 24: “Não se tipifica crime material contra a ordem tributária, previsto no art. 1o, incs. I a IV, da Lei no 137/90, antes do lançamento definitivo do tributo.” 4. Segundo Guilherme Nucci, escusas absolutórias “são as escusas especiais e pessoais, fundamentadas em razões de 5 43
Curso de Direito Penal | Parte Geral
Nesse sentido, Nélson Hungria informa que as escusas absolutórias são, a rigor, hipóteses particulares de extinção da punibilidade, que nascem junto com a prática do delito, caracterizadas, todavia, pelo seu caráter personalíssimo, não sendo, assim, transmissível aos participantes que não detenham tal condição.5
35.3. Classificação das causas de extinção da punibilidade
E
precisão metodológica, a doutrina costuma classificar as causas extintivas de punibilidade consoante os efeitos que distintamente produzem. São elas: mbora sem muita
35.3.1. Causas extintivas da pretensão punitiva e da pretensão executória
A distinção reside em constatar se a causa de extinção ocorre antes ou após o trânsito em julgado da sentença condenatória. Se ocorre antes, tem o efeito de extinguir a pretensão punitiva. Se ocorrer depois, extinguir-se-á a pretensão executória. A referida classificação guarda relevância na medida em que, sobrevindo uma causa que opere antes da sentença se tornar definitiva, não persistiria qualquer efeito penal em desfavor do réu, tendo em conta o princípio da presunção de inocência (art. 5o, LVII, da CF/1988). São exemplos de causas dessa natureza: prescrição da pretensão punitiva, renúncia ao direito de queixa, perdão do ofendido, perempção etc. Ao revés, pode a causa extintiva se verificar após a sentença passar em julgado, fazendo com que, conquanto impossibilitado de se aplicar a pena concretizada na sentença definitiva, remanesçam outros efeitos, tais como a reincidência, a obrigação de reparar o dano etc. Exemplifica-se essas causas subsequentes: prescrição da pretensão executória, graça e indulto. Contudo, há causas que podem se verificar a qualquer tempo, como, por exemplo, a morte, a anistia e a abolição do crime. No caso da morte do agente ocorrer após o trânsito em julgado, será ainda possível, como visto a seguir, a execução da pena pecuniária em desfavor do espólio do falecido. 35.3.2. Causas gerais e causas específicas
As causas gerais de extinção da punibilidade valem para todos os delitos do Código Penal e da legislação penal especial, como a já mencionada morte do agente. Há, contudo, causas específicas, como, v.g., a retratação do agente, cabível apenas nos crimes de calúnia, difamação e falso testemunho ou falsa perícia, bem como o perdão judicial, cabível em certas hipóteses legais. ordem utilitária ou sentimental, que não afetam o crime, mas somente a punibilidade. Têm efeito idêntico ao das condições objetivas de punibilidade, mas natureza jurídica diversa.” (Nucci, Guilherme de Souza. Op. cit., p. 434). No mesmo sentido: “Não se deve confundir, no entanto, causa extintiva de punibilidade com escusa absolutória, embora tenham efeitos semelhantes. Aquelas estão previstas na Parte Geral e estas na Parte Especial.” (Bitencourt, Cezar Roberto. Op. cit., p. 765). 5. Hungria, Nélson. Comentários ao Código Penal. Vol. I. Rio de Janeiro: Forense, 1958, p. 27. 544
Capítulo XXXV | Extinção da punibilidade
35.3.3. Causas comunicáveis e incomunicáveis
Algumas das hipóteses arroladas no art. 107, do CP, estendem-se aos concorrentes, ao passo que outras não. As causas comunicáveis seriam, por exemplo, a abolição do crime, a decadência e perempção, a renúncia e o perdão do querelante. A seu turno, não são, em regra, comunicáveis, o perdão judicial, a graça, o indulto e a anistia (quando restrita). Há causas que podem ou não beneficiar o concorrente, dependendo da natureza do crime, como, v.g., a retratação (nos crimes contra a honra ela não se comunica, mas, no falso testemunho, ela beneficiará o partícipe). Obviamente, a única causa que jamais se comunica é a morte do agente.6
35.4. Das causas de extinção da punibilidade
C
onforme já adiantado, no art. 107, do CP, encontram-se arroladas, de forma exemplificativa, causas que extinguem a punibilidade. Àquele rol devem ser agregadas, dentre outras hipóteses, as alternativas penais (transação, suspensão do processo, suspensão da pena e livramento condicional), quando o período de prova é integralmente cumprido, sem que tenha havido a revogação do benefício. É interessante observar que os incs. VII e VIII, do art. 107, do CP, foram expressamente revogados pela Lei no 11.106/2005, lei esta que teve por escopo propiciar à mulher a dignidade jurídico-penal que há muito merecia. Cuidavam-se de situações extintivas que decorriam da casamento da ofendida – curiosamente, a lei utilizava-se do feminino ofendida ao invés do gênero ofendido – com o próprio agente ou com terceiro, nos chamados crimes sexuais. Por se tratar de novatio legis in pejus, a revogação ora mencionada somente se aplica aos casos ocorridos após a vigência daquele diploma legal (24/03/2005). Contudo, o STF teve a oportunidade de considerar o art. 107, VII, do CP, embora já revogado, como incompatível com o princípio constitucional da vedação da proteção deficiente de bens jurídicos, em fato ocorrido ao tempo da sua vigência. Cuidou-se de RE interposto por condenado pelo delito de estupro contra menor absolutamente incapaz (nove anos de idade), onde se pugnava a extinção da punibilidade em razão da subsequente união marital entre autor e vítima.7
35.4.1. Morte do agente
A morte é o primeiro dos fatos indicados no art. 107, do CP. Cuida-se de dispositivo que se vincula ao postulado constitucional da personalidade da pena (art. 5o, XLV, da CF/1988): “nenhuma pena passará da pessoa do condenado”. Se o direito de punir sai do plano abstrato e ingressa no plano concreto com a prática do fato delituoso, por parte do agente, com a morte deste, desaparece, igualmente, aquele direito. Nesse sentido, o princípio mors omnia solvit (a morte tudo dissolve) incide, plenamente, no Direito Penal. 6. A escusa absolutória, que, para alguns, é causa de extinção da punibilidade, também não se comunica ao “estranho” que concorre ao delito (arts. 183, II, e 348, do CP). 7. Cf. RE 418376. STF. Pleno. Min. p/ acórdão Joaquim Barbosa. DJ de 23/03/2007. 545
Curso de Direito Penal | Parte Geral
No entanto, é certo que o mencionado art. 5o, XLV, da CF/1988, alude à possibilidade da obrigação de reparar o dano e a decretação do perdimento de bens ser estendidas aos sucessores e contra ele executadas, até o limite do valor do patrimônio transferido. Cuida-se de ressalva que teve por finalidade dirimir a polêmica, antes existente, entre os que admitiam e os que rejeitavam a possibilidade dos efeitos da condenação, bem como as sanções de natureza pecuniária incidirem sobre o espólio do agente falecido. Sobre o assunto – e mesmo com a previsão constitucional acima referida –, discute-se haver violação do princípio da personalidade da pena. No entanto, não se pode olvidar do princípio geral da proibição do enriquecimento ilícito, sendo natural que se admita que, contra os bens deixados em herança, possam ser executados os valores correspondentes à reparação do dano ocasionado pelo delito, bem assim as penas pecuniárias, pois, do contrário, ocorreria o incremento patrimonial indevido dos sucessores do condenado. Exemplo: “A”, condenado pelo peculato de milhões de reais, após o trânsito em julgado da sentença condenatória e na iminência de ser executada a obrigação de reparar o dano causado ao erário público, comete suicídio, a fim de transferir para seus herdeiros os valores dos quais se locupletou criminosamente. Caso não houvesse essa previsão constitucional, estes enriqueceriam ilicitamente.
Não há, portanto, violação do postulado da personalidade da pena, até porque tais valores não poderão ser superiores às forças da herança (art. 1.792, do CC). Contudo, para que possa ingressar com execução em face do monte legado pelo condenado – que, por força do art. 1.784, CC, transmite-se, desde logo, aos seus herdeiros legítimos e testamentários –, necessário se faz que a morte ocorra após o trânsito em julgado da sentença condenatória. Para ocorrer a extinção da punibilidade em decorrência da morte do agente, deve o magistrado exigir a juntada da certidão de óbito (art. 62, do CPP). A legislação processual penal admite, ainda, a possibilidade da revisão criminal, mesmo depois da morte do réu, como se vê no art. 623, do CPP. 35.4.1.1. A questão da morte presumida
Dispõe o art. 6o, do CC, que a existência da pessoa natural termina com a sua morte. Esta se presume nos casos em que a lei autoriza a abertura de sucessão definitiva dos ausentes. Em complemento, o art. 7o, do CC, assinala que pode ser declarada a morte presumida, sem decretação de ausência, nos seguintes casos: (1) quando extremamente provável a morte de quem estava em perigo de vida; (2) se alguém, desaparecido em campanha ou feito prisioneiro, não for encontrado até dois anos após o término da guerra. Ressalva, porém, o parágrafo único do art. 7o, do CC, que a declaração da morte presumida, nesses casos, somente poderá ser requerida depois de esgotadas as buscas e averiguações, devendo a sentença fixar a data provável do falecimento. 546
Capítulo XXXV | Extinção da punibilidade
Diante dessas disposições da lei civil, discute-se se a morte presumida acarreta a extinção da punibilidade, nos termos do art. 107, I, do CP. Não há concordância doutrinária sobre a indagação. Segundo Heleno Fragoso, a presunção legal da morte, em virtude da ausência, “é bastante para extinguir a punibilidade”.8 Diversamente, Regis Prado sustenta que a presunção legal de morte “é inadmissível na esfera penal”.9 Para os partidários da última corrente, ante a impossibilidade dos efeitos civis da morte presumida serem aceitos na órbita penal, a solução mais segura é a de aguardar que a extinção da punibilidade seja decretada por outra causa, mais especificamente pela prescrição penal. Alguns autores, contudo, acenam por uma terceira via, qual seja, a da inscrição no Registro Civil de Pessoas Naturais, com a subsequente expedição de certidão de óbito, nos termos do art. 62, do CPP. Nesse sentido, Guilherme Nucci assinala que o juiz criminal poderá aceitar a morte presumida, não somente por ausência, mas, igualmente, por motivo de catástrofe, perigo de vida ou guerra, se houver o assentamento do óbito do agente, com a correspondente expedição de certidão.10 35.4.1.2. Extinção da punibilidade e certidão de óbito falsa
A maioria da doutrina brasileira sustenta que, na hipótese de passar em julgado a sentença que decrete a extinção da punibilidade, com base no art. 107, I, do CP, e sobrevindo a constatação da falsidade da prova do óbito – estando, portanto, vivo o agente –, aquela extinção não poderia ser revista, diante do fenômeno processual da coisa julgada, bem como pela impossibilidade da revisão pro societatis (art. 626, parágrafo único, do CPP). A única atitude jurídica que poderia ser adotada seria a de processar o falso morto pela falsificação de documento público ou pelo uso de documento público falsificado (arts. 297 ou 304, do CP).11 Diverge-se desse entendimento. Não se pode aceitar que normas processuais possam suplantar, de forma absoluta, as de direito material. É inaceitável que se premie uma fraude adrede arquitetada contra a Justiça Penal, sob o argumento da intangibilidade da coisa julgada e da impossibilidade da revisão criminal em desfavor do réu. Ad absurdum, poder-se-ia sustentar que qualquer do povo poderia matar, impunemente, o falso morto, uma vez que, formalmente, ele já não existe. Nesse particular, a jurisprudência coloca-se – com razão – em oposição à doutrina, não tolerando expedientes dessa natureza. A propósito, o STF, no julgamento de habeas 8. Fragoso, Heleno Cláudio. Op. cit., p. 509. No mesmo sentido: Marques, José Frederico. Op. cit., p. 491; e Hungria, Nélson. Novas Questões Jurídico-Penais. Rio de Janeiro: Forense, 1945, p. 108. 9. Prado, Luiz Regis. Op. cit., p. 655. No mesmo sentido: Jesus, Damásio E. de. Op. cit., p. 687. 10. Nucci, Guilherme de Souza. Op. cit., p. 437. A propósito, o art. 88, da Lei no 6.015/1973 (Lei de Registros Públicos), dispõe que poderão os juízes admitir “processo de justificação” para o assento de óbito de pessoas desaparecidas em naufrágio, inundação, incêndio, terremoto ou qualquer outra catástrofe, “quando estiver provada a sua presença no local do desastre e não for possível encontrar-se o cadáver para exame.” 11. Cf. Jesus, Damásio E. de. Op. cit., p. 688; Fragoso, Heleno Cláudio. Op. cit., p. 509; e Prado, Luiz Regis. Op. cit., p. 655. 5 47
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corpus impetrado em favor de acusado de homicídio qualificado, cuja ação penal fora arquivada, nos termos do art. 62, do CPP, com base em certidão de óbito falsa, posteriormente desarquivada após a constatação de que o acusado não havia morrido, reiterou sua jurisprudência no sentido de que: (1) é possível a revogação da decisão extintiva de punibilidade, à vista de certidão de óbito falsa, por inexistência de coisa julgada em sentido estrito, pois, caso contrário, o agente estaria se beneficiando de conduta ilícita; e (2) a extinção da punibilidade pela morte do agente ocorre independentemente da declaração, sendo meramente declaratória a decisão que a reconheça, a qual não subsiste se o seu pressuposto é falso. No STJ o entendimento é o mesmo. Ao julgar habeas corpus onde, entre outras questões, foi enfrentada a presente temática, a Sexta Turma daquela Corte reiterou o posicionamento no sentido de que pode ser revogada a decisão que, com base em certidão de óbito falsa, não gera coisa julgada em sentido estrito. Salientou-se, ainda, que a formalidade não pode ser levada a ponto de tornar imutável uma decisão lastreada em falsidade. Em outros termos, o agente não pode ser beneficiado por sua própria torpeza. 35.4.2. Anistia
Anistia é o esquecimento do crime, ou seja, o ato de vontade da lei que retira a punição de certos fatos que, antes, eram considerados delituosos. Cuida-se de causa de extinção da punibilidade que faz desaparecer todas as consequências penais do fato. Segundo o STF, como corolário lógico, ela impede “qualquer apreciação sobre a materialidade e autoria do fato, pois seria reviver o que já foi esquecido pelo Poder Público”.12 Sobreveio, no ordenamento jurídico brasileiro, uma ampla lei de anistia, nos estertores da última Ditadura Militar: “É concedida anistia a todos quantos, no período compreendido entre 2 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979, cometeram crimes políticos ou conexos com estes, crimes eleitorais, aos que tiveram seus direitos políticos suspensos e aos servidores da Administração Direta e Indireta, de Fundações vinculadas ao Poder Público, aos servidores dos Poderes Legislativo e Judiciário, aos militares e aos dirigentes e representantes sindicais, punidos com fundamento em Atos Institucionais e Complementares” (art. 1o, da Lei no 6.683/1979, reafirmada pela Emenda Constitucional no 26/1985). Vê-se, assim, que a anistia guarda relação com crimes políticos, militares ou eleitorais, embora ela seja possível para favorecer delitos comuns. Bem por isso, a Constituição de 1988 tratou de vedá-la para crimes hediondos e assemelhados (art. 5o, XLIII, da CF/1988). A concessão de anistia depende de lei do Parlamento (art. 48, inc. VIII, CF/1988). Consoante lecionado pela doutrina, a anistia diz respeito a fatos, não a pessoas. Ela pode ocorrer antes ou depois do trânsito em julgado (anistia própria ou imprópria). 12. Inquérito 79. STF. Pleno. Min. Djaci Falcão. DJ de 19/11/1979. 5 48
Capítulo XXXV | Extinção da punibilidade
Pode, igualmente, ser condicionada ou incondicionada, sendo que, no último caso, não pode ser objetada pelo agente. Pode, ainda, ser ampla (ou geral) ou parcial, beneficiando, pois, todos ou certas categorias de agentes (primários, maiores de 70 anos etc.). Por fim, pode ser irrestrita ou limitada, conforme abranja ou exclua determinados fatos ou fixe certos lapsos temporais.13 A anistia acarreta consequências ex tunc, desfazendo todos os efeitos penais da condenação, não afetando, todavia, os seus efeitos extrapenais (art. 91, I e II, do CP). A propósito, decidiu o STF, em caso envolvendo a Lei de Segurança Nacional, que a anistia, efeito jurídico do ato legislativo de anistiar, possui a força de extinguir a punibilidade, se ocorrer antes da sentença de condenação, ou a punição, se depois da condenação. Portanto, cuida-se de efeito jurídico que se processa no plano puramente penal. Por conseguinte, a “perda de bens, instrumentos ou produto do crime é efeito jurídico que se passa no campo da eficácia jurídica civil; não penal, propriamente dito. Não é alcançada pelo ato de anistia sem que na lei seja expressa a restituição desses bens”.14 Com a incorporação do Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional, pelo Decreto no 4.388/2002, surgiu uma questão a respeito de anistia. A jurisdição penal internacional permanente não reconhece nenhuma forma de anistia ou Comissões da Verdade em matéria dos crimes internacionais próprios (genocídio, crimes contra a humanidade, crimes de guerra e agressão).15 Aliás, o entendimento expressado pelo Estatuto de Roma é idêntico ao que vem sendo adotado pelas Cortes Internacionais de Direitos Humanos. Particularmente, a Corte Interamericana de Direitos Humanos tem decidido seguidamente que os Estados têm a obrigação de investigar e, se for o caso, as graves violações aos direitos humanos, como ocorreu na América Latina, durante regimes autoritários. A Corte tem declarado seguidamente a obrigatoriedade de processar e julgar em casos análogos ao brasileiro, nos seguintes países: Argentina, Chile, El Salvador, Haiti, Peru e Uruguai.16 Com relação ao Brasil, houve decisão no mesmo sentido no Caso Gomes Lund e outros (“Guerrilha do Araguaia”) vs. Brasil, em sentença de 24/11/2010.17 Há, desta maneira, uma tendência de que não mais se admita a anistia em casos de prática de graves violações aos direitos humanos. 35.4.3. Indulto e graça
Indulto e graça – também chamada de indulto individual – são atos de clemência ou indulgência que se perdem na história da disciplina. Desde a antiguidade, há registros de atos de soberano concedendo clemência a um ou diversos condenados. Era costume, 13. Nucci, Guilherme de Souza. Op. cit., p. 439. 14. Recurso Criminal no 1433. STF. Min. Firmino Paz. Segunda Turma. DJ de 26/03/1981. 15. Japiassú, Carlos Eduardo Adriano. Tribunal Penal Internacional: a internacionalização do direito penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004, p. 172. 16. Disponível em: . Acesso em 23/05/2011. 17. Idem, ibidem. 5 49
Curso de Direito Penal | Parte Geral
no passado, indultarem-se todos os que se encontravam presos no dia do coroamento de um novo rei. No âmbito do nosso Direito, tratam-se de atos de clemência privativos do Presidente da República (art. 84, XII, da CF/1988). Não cabe indulto ou graça (assim como a anistia) para os delitos hediondos ou assemelhados (art. 5o, XLIII, da CF). O indulto individual – ou graça – guarda pertinência com situações de cunho humanitário. Geralmente, o próprio detento ou algum familiar dirige correspondência ao Presidente da República, solicitando o referido ato de perdão. Os arts. 188 e segs. da LEP cuidam das diligências a serem observadas em tal hipótese, ressaltando-se que o procedimento culmina com o despacho do Presidente da República, deferindo ou não a medida. O indulto propriamente considerado (coletivo) tem raízes culturais e religiosas, possuindo, na atualidade, conotação político-penitenciária. Em outros termos, é praxe, no Brasil, a edição regular de indultos natalinos, por ser forma de enfrentamento da questão da superpopulação carcerária. Como têm caráter geral, os decretos de indulto estabelecem os requisitos objetivos e subjetivos da medida (v.g., cumprimento de determinado tempo de pena, bom comportamento carcerário etc.), competindo, assim, ao Juiz da execução penal, ouvidos o MP e o Conselho Penitenciário, decidir se defere ou não aquele benefício prisional. 35.4.3.1. Indulto e crimes hediondos
Conforme anteriormente mencionado, não é possível a concessão de indulto aos autores de crimes hediondos e assemelhados (art. 2o, da Lei no 8.072/1990). Contudo, alguns doutrinadores consideram que a referida restrição seria inconstitucional, pois o art. 5o, XLIII, da CF/1988, menciona, literalmente, a vedação de anistia e graça aos autores de crimes hediondos e assemelhados. Ocorre, porém, que graça e indulto têm não somente a mesma trajetória histórica, mas, também, a mesma natureza jurídica. Sendo assim, ao falar do indulto individual, quis o legislador constituinte abranger, naturalmente, o coletivo, guardando total pertinência a referida norma do art. 2o, da Lei dos Crimes Hediondos. 35.4.3.2. Comutação de pena
Ao lado da graça e indulto é possível existir, ainda, a comutação da pena, que consiste na redução de parte da pena privativa de liberdade, geralmente em percentual fixo (um terço, um quarto etc.). A comutação apresenta-se como um “meio-termo” entre a concessão integral do ato de clemência e a sua denegação. Sendo assim, os seus pressupostos são menos rigorosos do que os existentes no indulto coletivo ou individual. Para o apenado que cumpre pena privativa de liberdade de longa duração, a comutação funciona como um estímulo para um abreviado retorno à sociedade, possuindo, portanto, inequívoco valor político-penitenciário. Saliente-se, outrossim, que a comutação também depende de manifestação do Conselho Penitenciário (art. 192, da LEP), e ela pode ser deferida pelo Presidente da 550
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República, em pedidos de graça submetidos ao seu crivo, ou por sentença do Juiz das execuções, nos termos dos decretos de indulto coletivo anteriormente referidos. Observe-se, por fim, que o cometimento de falta grave, devidamente apurada por intermédio de procedimento administrativo disciplinar, implica o reinício da contagem do prazo da pena remanescente para a concessão de benefícios relativos à execução da pena, exceto para a comutação da pena (e livramento condicional).18 35.4.3.3. Indulto e separação de poderes
Graça e indulto têm sido considerados por parte da doutrina como exceções ou violações aos princípios do Estado de Direito, notadamente, ao princípio constitucional da separação de poderes, vez que se atribui ao Poder Executivo a prática de atos tipicamente legislativos.19 Nessa perspectiva, o instituto vem sendo tratado como norma de caráter derrogatório, recebendo interpretação restritiva, tanto em sede doutrinária quanto jurisprudencial e legislativa, de forma a restringir sua aplicação a hipóteses excepcionais e irrepetíveis, chegando-se, em alguns casos, a retirar do ordenamento jurídico a modalidade coletiva, como ocorreu, por exemplo, na França, na Revisão Constitucional de 2008.20 Seguindo orientação diversa, entende-se que a relação de oposição entre graça e indulto e os princípios do Estado de Direito carece de fundamento jurídico. Nesse sentido, procura-se interpretar as normas que regem a atribuição em consonância com as demais normas constitucionais, utilizando-se o instituto como instrumento de política criminal, orientada de acordo com critérios relativos às finalidades do pena.21 35.4.4. Abolição do crime
Abolição do crime (abolitio criminis) é sinônimo de descriminalização, ou seja, a revogação integral, por força de lei, de uma determinada figura delitiva. Não se deve confundir, porém, descriminalização com despenalização, consistente, no último caso, na substituição de pena de privativa de liberdade por sanção de outra natureza (pena alternativa). Embora infrequente, são exemplos recentes de abolitio criminis no Brasil: (1) a revogação dos delitos de adultério, sedução e rapto consensual (Lei no 11.106/2005); (2) a revogação da contravenção penal da mendicância (Lei no 11.983/2009); e (3) a abolição 18. Cf. HC 186011. STJ. Min. Napoleão Maia. Quinta Turma. DJ de 21/02/2011. No mesmo sentido: Súmula 441, do STJ. 19. Carvalho Filho, Aloysio, Comentários ao Código Penal Vol. IV. Rio de Janeiro: Forense, 1953. p. 153; Hüser, Klaus. Begnadigung und Amnistie als Kriminalpolitisches Instrumente. Hamburg: Universität, 1973. p. 16; Maiello, Vincenzo. Clemenza e Sistema Penale: Amnistia e Indulto...Napoli: Edizione Scientifiche Italiane, 2007. p.410; Gemma, Gladio. Principio Costituzionale di Eguaglianza e Remissione della Sanzione. Bologna, 1973. p. 294-296; Paniagua, Linde. Aministia e Indulto em Espagna. Madri: Tucar, 1976. P. 167; Sobremonte Martinez, José Henrique. Indultos y Amnistia. Valencia: Universidad de Valencia, 1980. p. 145. 20. Türk, Pauline. Le Droit de grâce présidentiel a l´issue de la révision du 23 juillet 2008. Revue Française de Droit Constitutionnel. 2009/03, n.79. Presses Universitaires de France. 21. Dimoulis, Dimitri. Begnadigung in Vergleichender Perspektive. Berlim: Duncker & Humblot, 1996. p. 262. Ferreira, Ana Lúcia Tavares. Indulto e Sistema Penal: Limites Finalidades e Propostas. 2011. Dissertação (Mestrado em Direito Penal). Faculdade de Direito. Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2011. 5 51
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temporária das condutas delituosas previstas no art. 12, da Lei no 10.826/2003, ou seja, a posse ilegal de armas de fogo, munição e artefatos explosivos, praticada dentro do período fixado no art. 30, daquele diploma legal.22 A propósito, com a promulgação da Lei no 11.343/2006, houve intensa discussão acerca da suposta abolição do consumo pessoal de drogas, que teria, segundo alguns, deixado de constituir delito passando, tão somente, a ser infração administrativa, à semelhança do que ocorrera em Portugal. Corroboraria esse entendimento a circunstância do art. 28 da Lei no 11.343/2006 não cominar pena privativa de liberdade, quer isolada, quer alternativa ou cumulativamente com pena de outra natureza (art. 1o, da Lei de Introdução ao Código Penal). No entanto, os tribunais rechaçaram esta tese, tendo o Supremo Tribunal, em questão de ordem em RE, fixado o entendimento de que a cominação de pena diversa da prisão não importa, necessariamente, na propalada abolição (descriminalização) do uso de droga, mas, sim, na sua despenalização, entendida como exclusão, para o tipo, das penas privativas de liberdade. Em suma, a questão de ordem foi resolvida no sentido de que a Lei no 11.343/2006 não implicou em abolitio criminis (art. 107, III, do CP), restando prejudicado o mencionado RE.23 Sobre abolição do crime, cumpre, ainda, registrar que a lei que retira do ordenamento penal determinado fato que era delituoso importa na extinção da punibilidade, com efeitos retroativos, consoante disposto no art. 2o, caput, do CP, não subsistindo quaisquer efeitos de natureza penal. Contudo, a abolitio criminis não acarreta efeitos extrapenais, permanecendo íntegra a obrigação de reparação do dano, fixada na sentença condenatória, bem assim o perdimento dos instrumentos ou do produto do crime. 35.4.5. Prescrição, decadência e perempção
Prescrição é a extinção do direito de punir pelo seu não exercício durante determinado lapso de tempo. Com exceção dos delitos capitulados no Estatuto do Tribunal Penal Internacional, bem como aqueles referidos no art. 5o, XLII e XLIV, da CF/1988, todos os crimes do ordenamento jurídico brasileiro são prescritíveis, consoante os prazos fixados no art. 109, do CP, ou em lei especial. Sobre a prescrição penal, vide o capítulo seguinte. Decadência, por sua vez, é a perda do direito de representação ou de oferecimento de queixa, respectivamente, na ação penal pública condiciona à manifestação de vontade do lesado ou nas hipóteses de ação penal privada. Insta salientar que, tratando-se de decadência, o prazo para a parte exercitar o direito de queixa ou representação é, em regra, de 6 (seis) meses, contados do dia em que veio a saber quem é o autor do crime ou do dia em que se esgota o prazo para o oferecimento da denúncia. Nesse sentido, a decadência, que opera antes de instaurada a ação penal, não se confunde com a perempção, verificada depois de iniciada a relação processual penal. 22. Cf. HC 95945. STJ. Min. Laurita Vaz. Quinta Turma. DJ de 08/02/2010. 23. RE 430105-QOSTF Min. Sepúlveda Pertence. Primeira Turma. DJ de 27/04/2007. 5 52
Capítulo XXXV | Extinção da punibilidade
Perempção (de “perimir, “por termo”) é a perda do direito de prosseguir na ação em virtude da inércia, desinteresse ou emulação do seu titular (art. 267, III, do CPC, e art. 60, do CPP). Cuida-se de sanção jurídica imposta à parte que não movimenta a relação processual. Na esfera penal, ocorre a perempção, na ação penal privada, quando: (1) o querelante deixa de promover o andamento do processo durante 30 (trinta) dias; (2) falecendo o querelante ou sobrevindo a sua incapacidade, não comparecer em juízo, para prosseguir no feito, dentro do prazo de 60 (sessenta) dias, qualquer das pessoas a quem couber fazê-lo; (3) o querelante deixar de comparecer, sem motivo justificado, a qualquer ato do processo a que deva estar presente, ou deixar de formular o pedido de condenação nas alegações finais; e (4) sendo o querelante pessoa jurídica, esta se extinguir sem deixar sucessor (art. 60, I a IV, do CPP).24 Enquanto a prescrição extingue diretamente o direito de punir, a decadência e a perempção extingue-o indiretamente, ou seja, por intermédio da extinção do direito de ação, que é a única forma de concretização do ius puniendi. 35.4.6. Renúncia ou perdão do ofendido
Como visto no Cap. XXXIV, renunciar significa deixar de exercer algum direito. Nesse sentido, em certas hipóteses, pode o ofendido renunciar, expressa ou tacitamente, ao exercício do direito de queixa, nos crimes de ação penal privada. O art. 104, do CP, prevê a renúncia somente para o direito de queixa, não sendo extensível ao direito de representação porque, in casu, o ofendido deve se manifestar no sentido da persecução penal, e, caso mude de opinião, retratar-se, a tempo, da representação oferecida (art. 102, do CP). Todavia, diplomas legais mais recentes, v.g., o art. 74, parágrafo único, da Lei no 9.099/1995, e o art. 16, da Lei no 11.340/2006 (violência doméstica), têm admitido a possibilidade de renúncia também para o direito de representação, em detrimento da disciplina do Código Penal. Com relação ao perdão do ofendido, igualmente extintivo da punibilidade, pode ocorrer, de forma expressa ou tácita, extra ou intraprocessual, após o oferecimento da queixa e até o trânsito em julgado. Difere, porém, da renúncia, não apenas porque o perdão ocorre somente após a deflagração da queixa, mas, igualmente, porque aquela é unilateral e, este, bilateral, não surtindo efeitos na hipótese de recusa do querelado (art. 106, do CP). 35.4.7. Retratação do agente
Retratar-se é retirar o que foi dito, é desdizer-se, manifestar-se de forma contrária àquela anteriormente emitida. A retratação, in casu, não se confunde com aquela referente ao direito de representação, porque, aqui, quem se retrata é o autor do delito, não 24. Frederico Marques acrescenta, ainda, uma hipótese de perempção, não prevista no rol do art. 60, do CPP, qual seja, o da morte do querelante no crime de induzimento a erro essencial e ocultação de impedimento (art. 236, do CP). (Marques, José Frederico. Op. cit., p. 496). 5 53
Curso de Direito Penal | Parte Geral
o lesado. Sendo assim, por razões de política legislativa, a retratação do agente, quando idônea e oportuna, produz a extinção da punibilidade nos delitos contra a honra (a exceção da injúria) e no falso testemunho ou falsa perícia. Nesse sentido, o art. 143, do CP, diz que a retratação do querelado – incidente, portanto, somente nos casos de ação penal privada –, quando cabal, acarreta a extinção da punibilidade na calúnia ou na difamação. Em tais hipóteses, o bem jurídico lesionado é a honra objetiva, ou seja, o conceito que o indivíduo goza no meio social, sua reputação. Com a retratação pública e cabal, restabelece-se o bom conceito, sendo político-criminalmente despicienda a reprimenda penal. O mesmo não ocorre com a injúria, vez que se atinge a honra subjetiva, ou seja, a dignidade ou o decoro de um indivíduo. Na injúria, uma hipotética retratação poderia redundar numa nova injúria, agravando a lesão ao bem jurídico em questão. Com relação ao crime de falso testemunho ou falsa perícia, a retratação ou declaração da verdade, acarreta, nos termos regulados no § 2o, do art. 342, a extinção da punibilidade do autor do perjúrio ou da falsa perícia, porque há o interesse superior da busca da verdade real. Dessa forma, mais vale a retratação da testemunha de um crime, mercê da extinção da sua punibilidade, do que a hipotética condenação do inocente ou a absolvição do culpado no processo penal onde ocorrera o falso testemunho. 35.4.8. Perdão judicial
O perdão judicial – que não guarda qualquer relação com o perdão do ofendido – consiste na possibilidade do juiz deixar de aplicar a pena, nas hipóteses expressamente previstas na lei. São situações em que, embora reconhecida a perpetração do delito, há circunstâncias de cunho moral ou social que justificam a não imposição da sanção penal. Com efeito, não se trata de hipótese excludente da antijuridicidade ou da culpabilidade do agente. Há o crime – conduta típica, antijurídica e culpável –, todavia não há necessidade da aplicação de pena. Vide, nesse sentido, o disposto nos arts. 121, § 5o; 129, § 8o; 140, § 1o; e 242, parágrafo único, do CP. A lei vigente dispõe que a sentença que conceder perdão judicial não será considerada para efeitos de reincidência (art. 120, CP). O STJ, sobre a matéria, editou a Súmula 18, que dispõe: “A sentença concessiva de perdão judicial é declaratória de extinção da punibilidade, não subsistindo qualquer efeito condenatório”. Anote-se, por oportuno, que o art. 13, da Lei no 9.807/1999, estendeu para a generalidade dos crimes a possibilidade de perdão judicial, nas hipóteses de réu colaborador, desde que se trate de colaboração efetiva e voluntária para com a investigação ou processo criminal. Não há que confundir, porém, a colaboração premiada, que poderá redundar em perdão judicial, com a figura da confissão espontânea, circunstância atenuante do art. 65, III, “d”, do CP.
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Capítulo XXXV | Extinção da punibilidade
35.5. Extinção e suspensão da punibilidade nos crimes previdenciários e tributários
P
das infrações praticadas sem violência ou grave ameaça a pessoa, a reparação do dano, até o recebimento da denúncia, por ato voluntário do agente, acarreta a redução de pena de um a dois terços (art. 16, do CP). No entanto, cuidando-se de delitos previdenciários ou tributários (arts. 168-A e 337-A, do CP, e arts. 1o e 2o, da Lei no 8.137/1990), o legislador tem adotado regra mais benéfica para o infrator que adota iniciativa reparatória do dano causado ao erário público. Sendo assim, consoante sucessivos diplomas legais, atrelados a planos governamentais arrecadatórios, o pagamento integral ou o parcelado do débito previdenciário ou fiscal gera referente àqueles delitos, causa reflexos na órbita penal, com a extinção ou suspensão, respectivamente, da pretensão punitiva estatal. Trataram da matéria os seguintes dispositivos legais: art. 14, da Lei no 8.137/1990; art. 34, da Lei no 9.249/1995; art. 15, da Lei no 9.964/2000; art. 9o, da Lei no 10.684/2003; arts. 68 e 69, da Lei no 11.941/2009. Na atualidade, a questão encontra-se regulada no art. 83, e §§, da Lei no 9.430/1996, com a redação dada pela Lei no 12.382/2011, que prevê a suspensão da pretensão punitiva dos delitos dos arts. 168-A e 337-A, do CP, e arts. 1o e 2o, da Lei no 8.137/1990, durante o período em que a pessoa física ou jurídica relacionada com o agente desses crimes estiver incluída no parcelamento, desde que o pedido de parcelamento tenha sido formalizado antes do recebimento da denúncia. Caso aquela pessoa física ou jurídica efetue o pagamento integral dos débitos oriundos dos tributos, inclusive acessórios, que tiverem sido objeto de concessão de parcelamento, deverá ser extinta a punibilidade do respectivo infrator, conforme dispõe o § 4o, do art. 83, da Lei no 9.430/1996, com a redação da Lei no 12.382/2011. Dessa forma, encontram-se revogadas as normas insertas no art. 168-A, § 2o e § 3o, I, e art. 337-A, § 2o, do Código Penal. ara a generalidade
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título
IV
capítulo
teoria ger a l da sa n ção p en a l
XXXVI
PRESCRIÇÃO PENAL 36.1. Considerações gerais
E
prescrição significa ordem expressa ou formal, indicação exata ou norma, preceito, regra.1 No âmbito da ciência jurídica, prescrição pode ser entendida como antítese de descrição ou – o que aqui interessa – a transmissão da noção de aquisição ou extinção de direitos em virtude do fator cronológico. Nesse particular, prescrição se associa às consequências jurídicas pelo transcurso do tempo. A propósito, Caio Mário da Silva Pereira leciona que o tempo domina os homens, seja na vida biológica, seja nas relações sociais. Dentre os efeitos que interessariam ao Direito, o lapso temporal pode, como dito, acarretar a aquisição de direitos, tornando inatacável e inabalável a situação que o titular vem exercendo continuamente (prescrição aquisitiva). Pode, ao contrário, conduzir a extinção de determinada relação jurídica, por não ter sido exercitada, dentro de certo período, por seu titular (prescrição extintiva).2 Para o Direito Penal é válida a mesma percepção. O fenômeno da prescrição penal acarreta tanto a aquisição (ou manutenção) do direito de liberdade como, inversamente, a extinção do direito de punir estatal. timologicamente , a pal avra
1. Holanda, Aurélio Buarque de. Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa. 3. ed., Curitiba: Positivo, 2004, p. 1625. 2. Pereira, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil. Vol. I., 17. ed., Rio de Janeiro: Forense, 1995, p. 433. 556
Capítulo XXXVI | Prescrição penal
Ou seja, o correr dos anos opera em desfavor da punição, restituindo, quando atingida a punibilidade, a segurança de que o infrator não será mais processado ou, conforme o caso, não mais cumprirá a pena que lhe fora imposta. Por conta disso, Jean Pradel assinala que a prescrição é um dos obstáculos à persecução criminal, cuja legitimidade é por todos discutida, sendo certo que os países a consideram conforme a maior ou menor gravidade das infrações. Para as infrações menos graves, há consenso geral no sentido da incidência dos seus efeitos depois de um certo lapso de tempo.3 Diversamente, para as infrações mais graves, os legisladores se mostram mais rigorosos, preponderando, assim, dois grandes modelos: (1) da prescrição somente após um longo período de tempo; e (2) da imprescritibilidade. O primeiro acolhe a prescrição, consoante a natureza da infração (crime, delito, contravenção etc.) ou de acordo com a quantidade de pena cominada ou aplicada (como ocorre, dentre outros, no Brasil). A seu turno, o segundo sistema afasta por completo a possibilidade daquelas infrações prescreverem, cuidando-se – segundo Jean Pradel – de hipótese rara nos países que se filiam ao direito romano-germânico, sendo prevista, quando muito, para crimes contra a humanidade ou passíveis de pena perpétua. Ao contrário, na common law, a imprescritibilidade é regra geral, possuindo, os Estados que seguem esse padrão, a prerrogativa de perseguir o delinquente até o dia da sua morte. De toda sorte, a prescrição, onde quer que exista, sempre será matéria de ordem pública e invocada, pela jurisprudência, em nome do princípio maior da segurança jurídica.4 Sob a vertente histórica, a prescrição da pretensão punitiva remontaria ao direito romano, embora, obviamente, variasse de época a época, de lugar para lugar. A seu turno, a prescrição da pretensão executória surgiu com o Código Penal Francês de 1791.5 No Brasil, a prescrição da pretensão punitiva foi prevista, pela primeira vez, no Código de 1830 e, a prescrição da pretensão executória, no Código de 1890.6 Como será visto adiante, há, no direito brasileiro, outras modalidades prescricionais. Feitas tais digressões, pode-se conceituar prescrição como sendo a perda de um direito pelo decurso do tempo sem que seja exercido. A prescrição penal faz desaparecer o direito de punir do Estado (jus puniendi), ou o seu direito à execução da pena imposta (jus punitionis). Trata-se de causa de extinção da punibilidade, arrolada no art. 107, IV, e regulada nos arts. 109 e seguintes, do CP, que deixa subsistir a ilicitude penal do fato. Em consequência, se a prescrição ocorrer após a condenação definitiva, a pena não mais se executa, mas subsistem os outros efeitos penais da sentença, inclusive a reincidência e a obrigação de reparação do dano.7 3. Cf. Pradel, Jean. Op. cit., p. 372. 4. Cf. Pradel, Jean. Op. cit., p. 372. A propósito, verbis: “(...) Por se tratar de matéria de ordem pública, é prescindível a provocação da parte ou a apreciação pelo órgão jurisdicional a quo para o reconhecimento da prescrição, devendo ser declarada, de ofício, em qualquer fase do processo, a teor do art. 61, do CPP, c/c o art. 107, IV, do CP.” (HC 121743. STJ. Min. Laurita Vaz. Quinta Turma. DJ de 07/02/2011). 5. Cf. Bitencourt, Cezar Roberto. Op. cit., p. 773. 6. Idem, ibidem. 7. Cf.: “Esta Corte Superior já pacificou o entendimento segundo o qual, por analogia à regra inserta no art. 748, do CPP, as 5 57
Curso de Direito Penal | Parte Geral
Por conta desta mesma motivação, os tribunais entendem que descabe interesse recursal nos casos em que for reconhecida a prescrição da pretensão punitiva.8
36.2. Razões político - criminais para a prescrição. Pertencimento ao Direito Penal ou Processual Penal
D
político criminais para a adoção do instituto da prescrição. Com exceção dos positivistas, que a rejeitavam, os demais doutrinadores reconhecem que os efeitos da prescrição são justos e adequados, basicamente pelos seguinte motivos. iscutem-se as razões
36.2.1. Pacificação social
Como dito acima, o decurso do tempo estabiliza as relações sociais, fazendo com que haja o esquecimento ou não se deseje ver condenado aquele que violou a lei penal no passado; ou, pelas mesmas razões, que ela não tolere que a pessoa, cuja condenação tenha sido proferida há tempos, venha a cumprir pena quando o fato originário deixou de ter qualquer relevância social. 36.2.2. Punição ao Estado por sua ineficácia
Ao arvorar para si o direito de punir, o Estado também assumiu o dever de o fazê-lo em um prazo razoável. Não é justo impingir ao cidadão que porventura tenha praticado um crime que fique eternamente aguardando a iniciativa dos órgãos de repressão. Não por outra razão, a duração razoável do processo e a adoção de meios que garantam sua celeridade foram elevados à categoria de garantia constitucional (art. 5o, LXXVIII, da CF/1988). Sendo assim, a burocracia, a desídia ou mesmo o desinteresse em levar a cabo a pretensão punitiva ou executória estatal gera, em seu desfavor, a sanção denominada prescrição penal. Em sentido inverso, quando o Estado demonstre estar interessado em perseguir criminalmente o autor da infração, a lei lhe concede alguns prêmios, tais como a suspensão e a interrupção dos prazos de prescrição (arts. 116 e 117, do CP). 36.2.3. Regeneração do infrator
A comissão da infração penal põe em marcha os mecanismos de controle social formal (polícia, justiça e prisão), mas estes não fazem desaparecer os meios informais de controle (família, escola, emprego, religião etc.), que continuam operando e podem, anotações referentes a inquéritos policiais e processos penais devem ser excluídas da Folha de Antecedentes Criminais nas hipóteses em que resultarem na extinção da punibilidade pela prescrição da pretensão punitiva, arquivamento, absolvição ou reabilitação.” (HC 119000. STJ. Min. Laurita Vaz. Quinta Turma. DJ de 22/11/2010). No mesmo sentido: “(...) 2. Há flagrante ilegalidade na consideração, como circunstâncias judiciais negativas, de condenações anteriores atingidas pelo instituto da prescrição da pretensão punitiva.” (RvCr. 974. STJ. Min. Maria Thereza Moura. Terceira Seção. DJ de 28/09/2010). 8. Cf.: “Esta Corte tem o pacífico entendimento de que não há interesse de agir no recurso no qual se impugna decisão penal em que se reconheceu extinta a punibilidade pelo fato investigado. Assim o é indiferentemente da tese nele veiculado. Agravo regimental desprovido.” (AgRg no EDcl no Ag 1113540. STJ. Min. Napoleão Maia. Quinta Turma. DJ de 09/11/2009). 5 58
Capítulo XXXVI | Prescrição penal
em conjunto com outros fatores, conduzir à recuperação do infrator. Assim, do ponto de vista das finalidades do Direito Penal, torna-se desaconselhável que, passados muitos anos, imponha-se pena contra alguém reintegrado socialmente. Em se tratando de condenação – lembra, ainda, Cezar Bitencourt –, o longo lapso de tempo decorrido sem que o réu haja praticado outro delito, evidencia que, por si mesmo, ele foi capaz de alcançar o fim que a pena tem em vista, “que é o de sua readaptação ou reajustamento social”. Contrario sensu, caso volte a delinquir, fica claro que o fator tempo não atingiu aquela expectativa, justificando-se, plenamente, a norma penal que determina a interrupção do prazo da prescrição da pretensão executória em razão da reincidência (art. 117, VI, do CP).9 36.2.4. Natureza penal ou processual penal
Sobre o assunto, discute-se se a prescrição é instituto de Direito Penal ou Processual Penal. A favor do primeiro argumento, tem-se que ela atinge o direito de punir do Estado, sendo, portanto, inequívoca a sua natureza material. Ao revés, a favor do segundo, tem-se que, historicamente, a prescrição objetivou paralisar o prosseguimento da demanda penal contra o infrator, sendo certo que não apenas a sua contagem, mas, também, as hipóteses de suspensão ou interrupção, estariam vinculadas aos institutos processuais penais. Em que pesem as justificativas de cada qual das correntes, o melhor entendimento é o de lhe conferir natureza mista: parte penal e parte processual. A despeito disso, conservando – como, de fato, conserva – parte de substância penal, as alterações legais no terreno prescricional somente retroagirão quando beneficiarem o réu (art. 5o, XL, da CF/1988, e art. 2o, parágrafo único, do CP), não podendo ser aplicadas aos casos ocorridos antes da sua vigência se importarem em novatio legis in pejus. Não há, portanto, a incidência da regra do art. 2o, do CPP (aplicação imediata). Exemplo: A Lei no 9.271/1996, alterou o art. 366, do CPP, dispondo que se o acusado, citado por edital, não comparecer, nem constituir advogado, deve o juiz decretar a suspensão tanto do processo como do curso do prazo prescricional. Enquanto a primeira providência (suspensão do processo) era benéfica aos réus revéis ao tempo da promulgação da Lei no 9.271/1996, a segunda (suspensão da prescrição), lhes era maléfica. Sendo assim, partindo da premissa de que não se pode “cindir” o art. 366, o entendimento que se formou foi no sentido da sua inaplicabilidade aos processos em curso, apesar da sua localização no CPP.10 9. Idem, p. 774. 10. Cf.: “É pacífico o entendimento de que sobressai a feição material da Lei n o 9.271/1996, que deu nova redação aos arts. 366, 367 e 368, do CPP, em vista de conter preceito relativo à prescrição. Dessa forma, não pode ser aplicada aos delitos praticados antes de sua vigência, por ser mais gravosa, já que determina tanto a suspensão do processo como do prazo prescricional caso o acusado, citado por edital, não comparecer ou constituir Advogado. É pacífica, ainda, a jurisprudência sobre a impossibilidade de aplicação da novel legislação de forma parcial.” (HC 110767. STJ. Min. Napoleão Maia. Quinta Turma. DJ de 03/05/2010). No mesmo sentido: HC 131009. STJ. Min. Og Fernandes. Sexta Turma. DJ de 03/08/2009. 5 59
Curso de Direito Penal | Parte Geral
Nesse mesmo sentido, as alterações promovidas pela Lei no 12.234/2010, ampliando o prazo mínimo de prescrição (de dois para três anos) e excluindo a possibilidade de prescrição antes do recebimento da denúncia (prescrição retroativa), não têm efeito retroativo e somente são aplicáveis aos fatos delituosos ocorridos depois da sua entrada em vigor. Por conta da mesma razão – isto é, sua natureza material –, a prescrição obedece à regra do art. 10, do CP, ou seja, o dia do começo inclui-se no cômputo do seu prazo, ao invés da regra do art. 798, § 1o, do CPP, que exclui do prazo o dia do começo, incluindo, porém, o do vencimento.
36.3. Crimes que nunca prescrevem
N
fundamentos apresentados no sentido da prescritibilidade geral das infrações, certo é que alguns delitos jamais prescrevem, porque atentam mais profundamente contra os valores da comunidade interna e internacional.11 O ordenamento jurídico brasileiro, seguindo a tradição da sistema romano-germânico, prevê poucas hipóteses de imprescritibilidade, em regra indicadas no texto constitucional, sendo discutível se o legislador poderia ampliá-las, conforme, inclusive, debatido no STF, por ocasião da análise do mencionado art. 366, do CPP.12 Sendo assim, a CF/1988 considera imprescritíveis: (1) a prática do racismo; e (2) a ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático (art. 5o, XLII e XLIV, da CF/1988). A prática do racismo está criminalizada na Lei no 7.716/1989 (alterada pelas Leis nos 8.081/1990, 9.459/1997 e 12.288/2010), justificando-se, a ausência de prescrição, como alerta às gerações de hoje e de amanhã, “para que se impeça a reinstauração de velhos e ultrapassados conceitos que a consciência jurídica e histórica não mais admitem”.13 No entanto, a ação de organizações civis, militares ou paramilitares, contra a ordem constitucional e a democracia brasileira, ressente-se de uma tipificação adequada, podendo-se, quando muito, ser extraída de algumas figuras capituladas na Lei no 7.170/1984 (crimes contra a segurança nacional, a ordem política e social) ou no Código Penal Militar, a despeito desses dois diplomas preverem a prescritibilidade de seus delitos (art. 6o, IV, da Lei no 7.170/1984, e art. 123, IV, do CPM). Sob outro aspecto, no plano supranacional, os delitos de genocídio, contra a humanidade, de guerra e de agressão, tipificados, com exceção do último, no Estatuto do Tribunal Penal Internacional (promulgado pelo Decreto no 4.388/2002), são também inatingíveis pela prescrição, conforme disposto no art. 29, do Estatuto do TPI. ão obstante os
11. HC 82.424. STF. Pleno. Min. Maurício Corrêa. DJ de 19/03/2004. 12. RE 460971. STF. Min. Sepúlveda Pertence. Primeira Turma. DJ de 30/03/2007. Nesse sentido: “Consoante orientação pacífica nesta Corte, o prazo máximo de suspensão do lapso prescricional, na hipótese do art. 366, do CPP, não pode ultrapassar aquele previsto no art. 109, do CP, considerada a pena máxima cominada ao delito denunciado, sob pena de ter-se como permanente o sobrestamento, tornando imprescritível a infração penal apurada.” (REsp 1113583. STJ. Min. Jorge Mussi. Quinta Turma. DJ de 13/10/2009). 13. HC 82.424. STF. Pleno. Min. Maurício Corriea. DJ de 19/03/2004. 560
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36.4. Espécies de prescrição
C
duas grandes modalidades de prescrição, reconhecidas pela generalidade dos ordenamentos jurídicos: (1) prescrição da pretensão punitiva; e (2) prescrição da pretensão executória. Além delas, o Direito Penal brasileiro reconhece, ainda, as seguintes espécies: prescrição intercorrente ou superveniente à sentença condenatória; prescrição retroativa (modificada pela Lei no 12.234/2010); prescrição da pena de multa; e prescrição da medida de segurança. Por fim, alguns advogam, ainda, a possibilidade da chamada prescrição virtual ou em perspectiva. onforme adiantado, há
36.4.1 Prescrição da pretensão punitiva
A prescrição da pretensão punitiva está prevista no art. 109, do CP, e regula-se pelo máximo da pena privativa de liberdade cominada ao crime, verificando-se: (1) em vinte anos, se o máximo da pena é superior a doze anos; (2) em dezesseis anos, se o máximo da pena é superior a oito e não excede a doze; (3) em doze anos, se o máximo da pena é superior a quatro e não excede a oito; (4) em oito anos, se o máximo da pena é superior a dois anos e não excede a quatro; (5) em quatro anos, se o máximo da pena é igual a um ano ou, sendo superior, não excede a dois; e (6) em três anos, se o máximo da pena é inferior a um ano (redação dada pela Lei no 12.234/2010). Sendo assim, a prescrição da pretensão punitiva é calculada pela pena abstratamente fixada no preceito secundário da norma penal, seja no tipo simples ou derivado (qualificado ou privilegiado). Com efeito, para se analisar se no caso concreto houve ou não essa modalidade de prescrição, cumpre tomar o quantum máximo cominado ao respectivo delito e verificar se ele se insere nos prazos acima relacionados. Exemplo: Homicídio doloso simples (art. 121, caput, do CP): máximo de pena cominado é vinte anos, prescreve a pretensão punitiva em vinte anos (art. 109, I, do CP). Homicídio culposo (art. 121, § 3o, do CP): máximo de pena cominado é três anos, prescreve em oito anos (art. 109, IV, do CP). Lesão corporal leve (art. 129, caput, do CP): máximo de pena cominado é um ano, prescreve em quatro anos (art. 109, V, do CP). Lesão corporal gravíssima (art. 129, § 2o, do CP): máximo de pena cominado é oito anos, prescreve em doze anos (art. 109, III, do CP). Rixa simples (art. 137, caput, do CP): máximo de pena cominado é dois meses, prescreve em três anos, para os casos ocorridos após a vigência da Lei no 12.234/2010, que alterou o prazo anteriormente fixado em dois anos.
No concurso de crimes (material, formal ou crime continuado), a prescrição é analisada em relação a cada infração de forma isolada (art. 119, do CP). Nesse sentido, a Súmula 497, do STF: “Quando se tratar de crime continuado, a prescrição regula-se pela pena imposta na sentença, não se computando o acréscimo decorrente da continuação”. Por outro lado, a contagem da prescrição da pretensão punitiva deve levar em consideração as causas de aumento e de diminuição de pena, previstas tanto na Parte Geral como na Parte Especial ou na legislação especial, adotando-se, caso não se trate 5 61
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de percentual fixo, o maior aumento ou a menor diminuição, haja vista predominar o interesse na persecução penal. Exemplos: 1) No roubo agravado, a contagem da prescrição da pretensão punitiva deve considerar, sobre o máximo cominado, o acréscimo da metade (art. 157, § 2o, do CP). 2) Nos crimes tentados, a contagem da prescrição deve considerar, sobre o máximo cominado ao respectivo delito, a diminuição mínima de um terço (art. 14, parágrafo único, do CP). 3) No crime de lavagem de dinheiro, a contagem da prescrição deve levar em conta, sobre o máximo cominado no art. 1o, da Lei no 9.613/1998, o acréscimo máximo de 2/3, caso se verifique a hipótese do § 3o, ou a diminuição mínima de 1/3, no caso do § 4o, do art. 1o, da Lei no 9.613/1998.
Contudo, as circunstâncias agravantes e atenuantes, bem como as circunstâncias judiciais, não interferem na contagem do prazo da prescrição da pretensão punitiva, até porque tais circunstâncias não podem ultrapassar o mínimo e o máximo de pena abstratamente cominado (Súmula 231, do STJ, e Repercussão Geral na QO-RE 597270, do STF). A única exceção é a atenuante da menoridade ou da senilidade (art. 115, do CP). 36.4.2. Prescrição da pretensão executória
A prescrição da pretensão executória está prevista no art. 110, caput, do CP, surgindo depois de transitar em julgado a sentença condenatória. Ela é regulada pela pena imposta e tem como referencial os mesmos prazos fixados no art. 109, do CP, os quais se aumentam de um terço se o condenado é reincidente. Dessa forma, consoante o mencionado art. 110, do CP, o cálculo da prescrição da pretensão executória se verifica, não pelo máximo abstratamente cominado, mas, sim, pela quantidade certa e concretizada na sentença definitiva, variando, como dito, de acordo com os lapsos previstos nos incisos do artigo anterior. Exemplo: “A” é condenado a seis anos de reclusão por homicídio simples (art. 121, caput, do CP), em sentença condenatória passada em julgado: o prazo de prescrição da pretensão executória (art. 110, caput, do CP) é de doze anos (art. 109, III, do CP). “B” é condenado a um ano de detenção por homicídio culposo (art. 121, § 3o, do CP), em sentença definitiva: o prazo de prescrição da pretensão executória (art. 110, caput, do CP) é de quatro anos (art. 109, V, do CP). “C” é condenado definitivamente a um mês de detenção pelo delito de injúria (art. 140, caput, do CP): o prazo de prescrição da pretensão executória é de três anos, se o fato ocorreu após a vigência da Lei no 12.234/2010; se o fato é anterior à citada Lei, a prescrição se opera em dois anos (art. 109, VI, do CP).
Na hipótese de substituição da pena privativa por uma ou duas restritivas de direitos, a prescrição continuará a ser regulada pela quantidade de pena de prisão inicialmente fixada, conforme disposto no parágrafo único, do art. 109, válido, portanto, para ambas as modalidades de prescrição. 5 62
Capítulo XXXVI | Prescrição penal
O prazo prescricional da pretensão executória é aumentado de um terço, caso a sentença condenatória transitada em julgado reconheça a circunstância agravante da reincidência (art. 110, caput, parte final). Não há que confundir a reincidência, pertinente ao crime anterior que gera o aumento do prazo de prescrição do segundo crime, com a reincidência mencionada mais adiante (art. 117, VI, do CP), relativa ao crime posterior, que acarreta a interrupção da contagem do prazo da prescrição da pretensão executória do primeiro crime. 36.4.3. Prescrição intercorrente
Além das sistemáticas prescricionais acima referidas, há a possibilidade da prescrição intercorrente ou superveniente à sentença condenatória, quando a acusação não recorra ou cujo recurso não for acolhido (art. 110, § 1o, com a redação da Lei no 12.234/2010). Cuida-se de exceção à regra geral da prescrição da pretensão punitiva, visto que não é regulada pela pena em abstrato, mas pela pena aplicada. Ela será passível de ocorrência nos casos em que exista o trânsito em julgado para a acusação ou, caso tenha apelado, quando haja improvimento do seu recurso.14 Isso se deve ao fato de que a pena aplicada não poderá mais ser alterada para maior, tendo em vista a vedação da reformatio in pejus (art. 617, do CPP). Exemplo: “A” é denunciado por homicídio simples: a prescrição da pretensão punitiva regula-se pelo prazo de vinte anos, pois o máximo abstratamente cominado no art. 121, caput, do CP, é vinte anos (art. 109, I, do CP). “A” é condenado a seis anos de reclusão, sendo que a acusação não recorre da sentença. A defesa de “A” apela ao Tribunal. A prescrição da pretensão punitiva passa, portanto, a ser regulada não mais em vinte anos, mas, doravante, em doze anos (art. 109, III, do CP). Caso o Tribunal demore mais do que doze anos para julgar o recurso de “A”, a pretensão punitiva estatal será alcançada pela prescrição (art. 110, § 1o, do CP, com a redação da Lei no 12.234/2010).
A prescrição intercorrente surgiu com a redação do art. 110, parágrafo único, do CP/1940, que assinalava: “A prescrição, depois de sentença condenatória de que somente o réu tenha recorrido, regula-se também pela pena imposta e verifica-se nos mesmos prazos.” A Reforma Penal de 1984 repetiu aquela disposição, acrescentando, contudo, a hipótese do improvimento do recurso da acusação. Segundo a Exposição de Motivos do CP/1984, a ausência de tal norma havia estimulado a interposição de recursos destinados a evitar tão somente a prescrição.15 A Lei no 12.234/2010 não alterou a prescrição intercorrente, conquanto tenha pretendido acabar com a prescrição retroativa.
14. Cf.: “Decorrido o transcurso do prazo de quatro anos (art. 109, V, do CP), contados a partir da publicação da sentença condenatória que se deu em 15/03/2006 (art. 117, IV, do CP), e verificado o trânsito em julgado para a acusação (art. 110, § 1o, do CP), é de ser reconhecida a extinção da punibilidade em razão da prescrição intercorrente da pretensão punitiva (art. 107, IV, do CP).” (HC 176669. STJ. Min. Napoleão Maia. Quinta Turma. DJ de 21/02/2011). 15. E. M. do CP/1984, item 99. 563
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É interessante observar que, embora prevista no art. 110, § 1o, do CP, a prescrição intercorrente ou superveniente diz respeito à prescrição da pretensão punitiva e não da pretensão executória. Por esse motivo, talvez fosse melhor se ela estivesse prevista no art. 109, do CP, ao invés de constar como um parágrafo do art. 110. Por fim, reitere-se que se trata de exceção à regra geral. Nesse sentido, caso a acusação apele objetivando a elevação da pena aplicada na sentença, acolhendo, o tribunal, o seu recurso, não há que falar da prescrição intercorrente ou superveniente. 36.4.4. Prescrição retroativa e a Lei n o 12.234/2010
Como visto, a prescrição intercorrente verifica-se da sentença para frente (até a subsequente causa interruptiva de prescrição), desde que não haja recurso da acusação ou na hipótese do mesmo ter sido improvido. A prescrição retroativa obedeceu à mesma premissa, mas teve por finalidade o alcance prescricional da sentença para trás. Segundo dispunha o art. 110, § 2o, do CP: “A sentença de que trata o parágrafo anterior, pode ter por termo inicial data anterior à da denúncia ou queixa”. Exemplo: “A” é denunciado por homicídio simples: a prescrição da pretensão punitiva regula-se pelo prazo de vinte anos, pois o máximo abstratamente cominado no art. 121, caput, do CP, é vinte anos (art. 109, I, do CP). “A” é condenado a seis anos de reclusão. A acusação recorre, não tendo êxito a sua apelação. A defesa de “A” também apela ao Tribunal. A prescrição da pretensão punitiva passa, portanto, a ser regulada não mais em vinte anos, mas, doravante, em doze anos (art. 109, III, do CP). Se entre a consumação do homicídio (art. 111, I, do CP) e o recebimento da denúncia (art. 117, I, do CP), tenha se passado mais de doze anos, terá ocorrido a prescrição retroativa da pretensão punitiva.
A prescrição retroativa baseia-se no princípio da pena justa, ou seja, a ideia de que a pena concretizada na sentença da qual a acusação não recorreu (ou cujo recurso não tenha sido provido) era, desde a prática do fato, a que deveria regular os prazos prescricionais. Aquele princípio foi consagrado pela Súmula 146, do STF: “A prescrição da ação penal regula-se pela pena concretizada na sentença, quando não há recurso da acusação”. Todavia, a possibilidade de prescrição antes mesmo da existência da ação sempre fora alvo de controvérsias doutrinárias, tendo, justamente por isso, o Código Penal de 1969 (que nunca entrou em vigor), vedado a prescrição retroativa. Consoante a Exposição de Motivos do CP/1969: “Em matéria de prescrição, o projeto expressamente elimina a prescrição pela pena em concreto, estabelecendo que, depois da sentença condenatória de que somente o réu tenha recorrido, ela se regula também, daí por diante, pela pena imposta. Termina-se, assim, com a teoria brasileira da prescrição pela pena em concreto, que é tecnicamente insustentável e que compromete gravemente a eficiência e a seriedade da repressão”.16 16. E. .M do CP/1969, item 37. 564
Capítulo XXXVI | Prescrição penal
A despeito das críticas, foi adotada pela Reforma Penal de 1984, consoante, como dito, a redação do art. 110, § 2o, do CP. A Lei no 12.234/2010 atendeu aos reclamos daqueles que se opunham a essa modalidade prescricional, tendo o seu art. 1o alterado o Código Penal, “para excluir a prescrição retroativa”. Para tanto, revogou expressamente o § 2o, do art. 110, do CP, passando, o § 1o, do mesmo dispositivo legal, a ter a seguinte redação: “A prescrição, depois da sentença condenatória com trânsito em julgado para a acusação ou depois de improvido seu recurso, regula-se pela pena aplicada, não podendo, em nenhuma hipótese, ter por termo inicial data anterior à da denúncia ou queixa”. Apesar de pretender acabar com a prescrição retroativa, fato é que a Lei no 12.234/2010 extinguiu a prescrição retroativa antes da denúncia, mas não vedou, diferentemente do que pretendia o CP/1969, a possibilidade dela existir antes da sentença condenatória, vale dizer, entre o recebimento da denúncia e a sentença recorrível propriamente considerada, desde que, é claro, a acusação não tenha recorrido ou cujo recurso não tenha sido acolhido pelo tribunal. Demais disso, em que pese não poder mais existir a prescrição pela pena em concreto em data anterior à da denúncia – ou do seu recebimento –, a Lei no 12.234/2010 não impede, obviamente, que possa existir a prescrição de pretensão punitiva em abstrato antes da denúncia. Do contrário, teria sido criada uma hipótese de imprescritibilidade, o que, com certeza, não foi a intenção do legislador.17 Tem-se, assim, que a Lei no 12.234/2010 desagradou tanto defensores quanto críticos da prescrição retroativa. Em relação aos últimos, a oposição se deveu à manutenção, ainda que não expressa, do instituto no direito brasileiro (entre o recebimento da denúncia e a sentença condenatória recorrível). Por sua vez, os favoráveis àquela modalidade prescricional assinalam que o que justificou – e deve continuar a justificar – a sua existência é a constatação de que, com a condenação transitada em julgado para a acusação, forma-se um novo patamar máximo de pena, fundado na culpabilidade do agente e na reprovação do comportamento, e é com base nesses que serão estabelecidos os prazos prescricionais. Segundo este posicionamento, negar efeito retroativo à pena em concreto, para cálculo de prazo prescricional, violaria os princípios da culpabilidade, da isonomia e da proporcionalidade.18 Em síntese, com a Lei no 12.234/2010, não existe mais, no ordenamento jurídico brasileiro, a figura da prescrição retroativa da pretensão punitiva referente ao lapso 17. Cf.: “Tendo em vista que a pena máxima cominada ao delito previsto no art. 330, do CP, é inferior a um ano, e consoante o disposto no art. 109, VI, do CP – com redação anterior à dada pela Lei n o 12.234/2010 –, o prazo da prescrição punitiva estatal é de 02 (dois) anos. Assim, deve ser declarada extinta a punibilidade do recorrido em razão da prescrição da pretensão punitiva estatal, eis que, entre a data dos fatos (14/05/2007) e a presente data, inexistindo qualquer outra causa interruptiva – pois a denúncia sequer foi recebida –, transcorreu lapso temporal superior a 02 (dois) anos. Ressalte-se, por oportuno, que o advento da prescrição ocorreu em data anterior à conclusão do presente feito a essa relatoria. Extinta a punibilidade de ofício. Prejudicado o recurso.” (REsp 1134503. STJ. Min. Felix Fischer. Quinta Turma. DJ de 20/09/2010). 18. Bottini, Pierpaolo Cruz. Novas regras sobre prescrição retroativa: comentários breves à Lei 12.234/2010. In: Boletim do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais. n. 18, São Paulo: IBCCrim, jun./2010, p. 7. 565
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de tempo anterior ao recebimento da denúncia. Por se tratar de novatio legis in pejus, as mudanças feitas no Código não são aplicáveis aos casos ocorridos antes da vigência daquele diploma legal (a Lei no 12.234 entrou em vigor em 06/05/2010). 36.4.5. Prescrição em perspectiva ou hipotética
Além das modalidades de prescrição acima analisadas, parte da doutrina e jurisprudência admite a hipótese da prescrição em perspectiva ou prescrição pela pena virtual, vale dizer, a prescrição pela pena que seria concretizada na sentença vindoura. Para tanto, adota-se como premissa a teoria da pena mínima, ou seja, a constatação, na fase de inquérito ou no curso da ação penal, de que o acusado, se condenado, receberia, em razão das circunstâncias judiciais e legais favoráveis, pena no mínimo cominado. Antevendo o quantum da hipotética condenação, o magistrado poderia, antecipadamente, em razão do lapso de tempo já decorrido entre a consumação do fato e o recebimento da denúncia ou entre esta última data e o momento em que se encontra o processo, decretar a prescrição da pretensão punitiva estatal. Em outros termos, pela ação penal estar fadada ao insucesso, constituindo-se, o seu prosseguimento, uma afronta não apenas aos direitos do réu, mas, igualmente, aos princípios da celeridade e da economia processual, seria de rigor o reconhecimento judicial da prescrição virtual. Assim agindo, mesmo na ausência de previsão legal, poderia o Juiz fazer cessar o desnecessário dispêndio de tempo e de atos processuais infrutíferos, canalizando, sua atividade jurisdicional, para fatos de maior gravidade e de concreta necessidade social. Por outro lado, há aqueles que admitem que em razão da prescrição em perspectiva não encontrar guarida na lei penal, poderia haver o seu reconhecimento por meio de outra figura jurídica, qual seja, por meio do pressuposto processual da justa causa (art. 395, III, do CPP, com a redação da Lei no 11.719/2008). Dessa maneira, ao formar o juízo acerca do recebimento da acusação, a mesma poderia ser rejeitada caso se verificasse, nos temos acima apresentados, que uma futura condenação redundaria apenas e tão somente na prescrição penal. Em que pesem os argumentos expostos, em particular a busca da eficácia e da economia processual, fato é que a jurisprudência dos tribunais superiores é contrária à prescrição em perspectiva. Nesse sentido, ratificando inúmeros precedentes, o STJ editou a Súmula 438, com o seguinte teor: “É inadmissível a extinção da punibilidade pela prescrição da pretensão punitiva com fundamento em pena hipotética, independentemente da existência ou sorte do processo penal”. Na mesma esteira, o STF, reconhecendo a existência de Repercussão Geral, deu provimento ao RE do Ministério Público, “reafirmando a jurisprudência da Corte acerca da inadmissibilidade de extinção da punibilidade em virtude da decretação da denominada prescrição em perspectiva”.19 19. RE 602527-QO. STF. Pleno. Min. Cezar Peluso. Repercussão Geral. DJ de 18/12/2009. A propósito, decidiu o STJ que a decretação da prescrição pela pena virtual ofende frontalmente o “princípio da legalidade”, constituindo-se “decisão teratológica”, sequer idônea para gerar “coisa julgada material”. Verbis: “1. É sabido que o ordenamento jurídico pátrio não prevê a prescrição 566
Capítulo XXXVI | Prescrição penal
36.4.6. Prescrição da pena de multa
Segundo o texto original da Reforma Penal de 1984, a prescrição da pena de multa operava-se em dois anos, quando fosse a única cominada, a única aplicada ou a única que não tivesse sido cumprida (art. 114, do CP/1984). Caso fosse cumulada com a pena privativa de liberdade, a multa prescrevia juntamente com ela, que é mais grave (art. 118, do CP). No entanto, alterou-se a disciplina jurídica da pena de multa, passando a ser considerada dívida de valor, com a aplicação das normas da legislação pertinente à dívida ativa da Fazenda Pública, inclusive no que concerne às causas interruptivas e suspensivas da prescrição (art. 51, do CP, com a redação da Lei no 9.268/1996). Neste particular, aquela lei deu nova redação ao art. 114, do CP, prevendo a prescrição da multa: (1) em dois anos, quando for a única cominada ou aplicada; e (2) no mesmo prazo estabelecido para prescrição da pena privativa de liberdade, quando ela for alternativa ou cumulativamente cominada ou aplicada (art. 114, I e II, do CP, com a redação da Lei no 9.268/1996). A nova redação do art. 114, do CP, omitiu a referência à prescrição da multa não cumprida porque, como dito, o seu inadimplemento (art. 50, do CP, e art. 164, da LEP), acarreta a transferência da sua cobrança para a Vara de Fazenda Pública, incidindo, a partir desse momento, as normas relativas ao executivo fiscal, inclusive no que diz respeito às causas de suspensão e interrupção da prescrição contidas na Lei no 6.830/1980. Ademais, constata-se que a multa se subsume ao prazo de dois anos do Código Penal quando isoladamente cominada ou isoladamente aplicada. Caso ela tenha sido cominada ou aplicada em conjunto com a pena privativa de liberdade, ela prescreverá, não mais em dois anos, mas nos prazos fixados para esta última, ou seja, nos lapsos temporais previstos nos incisos do art. 109, do CP. O art. 118, que não foi alterado pela Lei no 9.268/1996, corrobora essa assertiva.20 36.4.7. Prescrição da medida de segurança
Segundo o art. 96, parágrafo único, do CP, extinta a punibilidade, não se impõe medida de segurança nem subsiste a que tenha sido imposta. Desse modo, as causas de extinção da punibilidade, em particular, a prescrição penal, incidem sobre as medidas de segurança de internação em hospital de custódia e tratamento psiquiátrico ou de sujeição a tratamento ambulatorial. em perspectiva. Com efeito, impossível falar na existência de coisa julgada em favor do paciente, uma vez que o ato judicial atacado afronta a legislação penal vigente, bem como vários princípios constitucionais. (...) 4. No caso vertente, verifica-se que a controvérsia reside na circunstância de tal decisão ter sido proferida em desacordo com o princípio da legalidade, visto que o Magistrado de 1o grau não respeitou os ditames dos arts. 109 e 110, do CP, que regem a matéria a respeito da prescrição, atuando fora da esfera estabelecida pelo legislador. 5. Por conseguinte, é possível o conhecimento do mandado de segurança no âmbito penal, notadamente quando impetrado contra decisão teratológica, que, no caso, determinou o arquivamento de inquérito policial por motivo diverso do que a ausência de elementos hábeis para desencadear eventual persecução penal em desfavor do indiciado.(...)” (HC 123365. STJ. Min. Og Fernandes. Sexta Turma. DJ de 23/08/2010). 20. Nesse sentido: “(...) 3. Conforme a regra do art. 114, II, do CP, a prescrição da pena de multa ocorre no mesmo prazo da pena privativa de liberdade, quando com esta cumulativamente aplicada, [como é o] caso dos autos.” (REsp 839691. STJ. Min. Og Fernandes. Sexta Turma. DJ de 16/11/2010). 5 67
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Conforme já exposto, antes do trânsito em julgado da sentença penal que reconheça a inimputabilidade ou a semirresponsabilidade, os prazos prescricionais se subsumem à regra geral da prescrição da pretensão punitiva, ou seja, são regulados pelo máximo de pena em abstrato cominado ao fato perpetrado pelo agente (art. 109, do CP).21 Sobrevindo sentença absolutória definitiva (art. 386, VI, do CPP), o prazo prescricional para o cumprimento da medida de segurança dependerá da sua natureza, ou seja, se se trata de medida imposta ao inimputável (art. 26, caput, do CP) ou ao semirresponsável (art. 26, parágrafo único, do CP). Com relação ao inimputável, cumpre observar que não há a fixação de um quantum para a sua duração, sendo certo que ela irá perdurar enquanto não for averiguada, mediante perícia médica, a cessão de periculosidade (art. 97, § 1o, do CP). Sendo assim – e por não se tratar de hipótese de imprescritibilidade –, a jurisprudência dos tribunais superiores firmou entendimento de que, na ausência de disposição legal específica, deve a prescrição da pretensão executória continuar a ser regulada pelo máximo de pena em abstrato cominada para o respectivo delito.22 No caso de semi-imputável, deve-se observar que, a princípio, o mesmo sofre pena, embora substituída por medida de segurança, em razão de necessitar de especial tratamento curativo (art. 98, do CP). Sendo assim, a prescrição da pretensão executória de medida de segurança deve ser regulada não pelo máximo de pena abstratamente cominada, mas, sim, pela quantidade de pena inicialmente aplicada.23 Ainda sobre o assunto, cumpre salientar que a redução dos prazos prescricionais contemplados no art. 115, do CP, aplica-se ao agente inimputável ou ao semirresponsável.24 Da mesma forma, a interrupção do lapso prescricional em virtude do início ou continuação do cumprimento da sanção penal é, igualmente, extensível às medidas de segurança.25
36.5. Termo inicial da prescrição da pretensão punitiva
E
contagem da prescrição da pretensão punitiva inicia-se a partir do momento em que o crime se consuma (art. 111, I, do CP). Observa-se, no particular, que o Código filia-se à chamada teoria do resultado, ou seja, aquela que toma como m regr a , a
21. Cf.: “(...) A medida de segurança é espécie do gênero sanção penal e se sujeita, por isso mesmo, à regra contida no art. 109, do CP.” (HC 86888. STF. Min. Eros Grau. Primeira Turma. DJ de 02/12/2005). No mesmo sentido: HC 113993. STJ. Min. Laurita Vaz. Quinta Turma. DJ de 04/10/2010. 22. Cf. HC 97621. STF. Min. Cezar Peluso. Segunda Turma. DJ de 02/06/2009. 23. Cf.: “(...) Como a medida de segurança na hipótese vertente não é autônoma, mas substitutiva da sanção corporal, o prazo prescricional deve ser regido pelo tempo desta. Doutrina. Precedentes” (HC 121726. STJ. Min. Jorge Mussi. Quinta Turma. DJ de 13/12/2010). No mesmo sentido: HC 71253. STF. Min. Paulo Brossard. Segunda Turma, DJ de 19/12/1994. 24. Cf. HC 121726. STJ. Min. Jorge Mussi. Quinta Turma. DJ de 13/12/2010; e HC 59764. STJ. Min. Og Fernandes. Sexta Turma. DJ de 21/06/2010. 25. Cf. HC 98360. STF. Min. Ricardo Lewandowski. Primeira Turma. DJ de 23/10/2009. No mesmo sentido: HC 97621. STF. Min. Cezar Peluso. Segunda Turma. DJ de 26/06/2009. No STJ: HC 112227. Min. Jorge Mussi. Quinta Turma. DJ de 09/08/2010; e HC 113993. STJ. Min. Laurita Vaz. Quinta Turma. DJ de 04/10/2010. 5 68
Capítulo XXXVI | Prescrição penal
termo inicial (dies a quo) para a prescrição o momento em que estão reunidos todos os elementos constitutivos do tipo penal. Difere-se, assim, da chamada teoria da atividade ou da conduta, que toma como termo inicial a data da ação ou da omissão, ainda que em outra ocorra o resultado. Esta última teoria foi adotada para a definição do tempo do crime (art. 4o, do CP). Exemplo: “A”, com vontade de matar, atira em “B” que, em razão da lesão, é submetido a inúmeras cirurgias, vindo a falecer seis meses depois em virtude da falência múltipla dos órgãos. A prescrição do delito de homicídio (art. 121, do CP) começa a correr do dia da morte de “B” e não do dia do disparo de “A”.
O inc. II, do art. 111, do CP, excepciona a regra geral. Nesse sentido, cuidando-se de crime tentado, isto é, aquele em que não há o resultado, muito embora tenha se iniciado o momento da sua execução, passa-se a adotar a teoria da atividade, ou seja, começa a correr do dia em que cessou a atividade criminosa. Exemplo: No exemplo anterior, “B” consegue sobreviver após ser submetido às diversas intervenções cirúrgicas. Por não ter havido a consumação do homicídio (a morte de “B”), o prazo começa a ser contado do dia do disparo de “A”.
No caso de crime permanente, vale dizer, aquele cujo momento consumativo se prolonga no tempo, consoante a vontade do agente, retoma-se o princípio do resultado, tendo em vista que, durante toda a permanência, a consumação se verifica (art. 111, III, do CP). Citem-se os delitos de dano ao meio ambiente (v.g., art. 48, da Lei no 9.605/1998), de estelionato previdenciário (i.e., o recebimento mensal indevido por parte do beneficiário) e de manutenção, no estrangeiro, de valores não declarados à repartição competente (art. 22, parágrafo único, da Lei no 7.429/1986), como exemplos de crime permanente aos quais os tribunais atribuem o início da contagem prescricional após a cessação do ilícito.26 26. Cf.: “1. Não se pode confundir crime permanente, em que a consumação se protrai no tempo, com delito instantâneo de efeitos permanentes, em que as consequências são duradouras. 2. O crime imputado aos Pacientes configura-se como crime permanente, pois mesmo considerando que o dano ambiental tenha se iniciado com a construção das edificações há mais de vinte anos, a conservação e manutenção destas na área de conservação ambiental pode ter mantido os danos anteriores e impedido que a vegetação se regenerasse, prolongando-se assim os danos causados ao meio ambiente. (...) 4. Tratando-se de crime permanente, o lapso prescricional somente começa a fluir a partir do momento em que cessa a permanência, diretamente relacionada à vontade do sujeito ativo do delito, que pode fazer cessar ou não a consumação. Afastada, portanto, a prescrição da pretensão punitiva do Estado. 5. Precedentes desta Corte e do STF.” (HC 118842. STJ. Min. Laurita Vaz. Quinta Turma. DJ de 06/12/2010). Sobre estelionato previdenciário: “(...) 2. O crime de estelionato contra a Previdência Social, quando praticado pelo próprio beneficiário das prestações, tem caráter permanente, o que fixa como termo inicial do prazo prescricional a data da cessação da permanência.” (RHC 105761. STF. Min. Ricardo Lewandowski. Primeira Turma. DJ de 01/02/2011). No mesmo sentido: HC 115634. STJ. Min. Jorge Mussi. Quinta Turma. DJ de 28/06/2010. Sobre manutenção de depósito no estrangeiro: “Nos crimes permanentes, como o de depósito, no exterior, de valores não declarados à Receita Federal, a prescrição conta-se do dia que cessou a permanência, o que, no exemplo, ocorre à data da omissão na declaração de renda.” (HC 87208. STF. Min. Cezar Peluso. Segunda Turma. DJ de 19/05/2009). 5 69
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Caso ocorra uma sucessão de leis, ampliando ou criando novas hipóteses de suspensão ou interrupção do lapso prescricional, a lei nova será aplicável Nesse sentido, dispõe a Súmula 711, do STF: “A lei penal mais grave aplica-se ao crime continuado ou ao crime permanente, se a sua vigência é anterior à cessação da continuidade ou permanência”.27 Exemplo: “A” mantém “B” em cárcere privado (art. 148, do CP), no período de 07/04/2010 a 07/05/2010. Em 06/05/2010, entrou em vigor a Lei no 12.234, acabando com a prescrição retroativa (antes da denúncia) e aumentando o prazo mínimo de prescrição de dois para três anos. Trata-se de lei mais gravosa, mas que será aplicada ao fato praticado por “A”, mesmo tendo ele se iniciado antes da sua vigência.
Por fim, no caso de bigamia (art. 235) e nos de falsificação ou alteração do registro civil (art. 242, do CP), a prescrição da pretensão punitiva começa a correr da “data em que o fato se tornou conhecido” (art. 111, IV, do CP). Cuidam-se dos chamados crimina occulta, isto é, delitos aos quais não se pode identificar, com exatidão, a data em que a conduta lesiva se consumou. Sendo assim, visando o interesse da persecução penal, estabelece o Código, de maneira excepcional, que o prazo começará a fluir a partir da data em que o fato tornou-se conhecido (die scientiae). Tornar-se conhecido significa que o fato apareceu no mundo jurídico ou começou a produzir efeito. Nesse sentido, cumpre observar que a mesma dificuldade pode existir para os demais crimes de falso, em geral realizados às escondidas, longe de registros e de testemunhas. Na linha desse raciocínio, decidiu o STJ, em um caso envolvendo falsificação de documento público, que quando não houver possibilidade de se determinar a data da contrafação, a regra do art. 111, I, do CP, deve ceder em favor daquela contemplada no art. 111, IV, do CP. Em outros termos, toma-se como dies a quo do prazo prescricional, não a data da fabricação ou alteração do documento, mas a data em que o mesmo “começou a existir”, “teve o seu primeiro aparecimento no mundo jurídico” ou “foi utilizado para qualquer fim”.28
36.6. Termo inicial da prescrição da pretensão executória
O
CP, cuida do termo inicial da prescrição após a sentença condenatória irrecorrível. Desse modo, a prescrição da pretensão executória começa a correr: (1) na data em que transita em julgado a sentença condenatória para a acusação; (2) na data em que se revoga a suspensão condicional da pena ou o livramento condicional; e (3) na data em que se interrompe a execução, salvo quando o tempo da interrupção deva computar-se na pena. art. 112 , do
27. Nesse sentido: HC 116088. STJ. Min. Laurita Vaz. Quinta Turma. DJ de 11/10/2010. 28. RHC 1122. STJ. Min. Assis Toledo. Quinta Turma. DJ de 17/06/1991. 570
Capítulo XXXVI | Prescrição penal
A primeira hipótese (data do trânsito em julgado para a acusação) gera perplexidades pois, literalmente, o Código fixou a fluência do prazo da prescrição da pretensão executória para um momento em que ela sequer existe, pois depende também do trânsito em julgado para o réu. Como se sabe, a sentença só passa em julgado quando transitar para a acusação e para a defesa – e nessa sequência processual. Em outros termos, o art. 112, I, 1a parte, do CP, diz que a prescrição da condenação começa a ser contada do trânsito em julgado para a acusação, muito embora ela somente surja quando do trânsito em julgado para ambas as partes. A propósito, o trânsito em julgado para a acusação não tem significado unívoco. Isto pois se transitar para o membro do Ministério Público de 1o grau, apelando a defesa, após o julgamento da apelação defensiva, o processo terá necessariamente de retornar ao Ministério Público de 2o grau para ciência ou eventual interposição de recurso aos tribunais superiores. Portanto, existirão momentos processuais nos quais há trânsito em julgado para a acusação em uma instância, mas não o encerramento do feito, tendo em vista a necessidade de vista ao MP da instância superior – respeitado, é claro, o princípio da vedação da reformatio in pejus – até o esgotamento de todas as instâncias recursais. Ademais, não se pode olvidar que a prescrição significa espécie de punição ao Estado desidioso. O membro do MP que manifesta sua intenção de não recorrer, causando, assim, o trânsito em julgado para a acusação, por certo não age desidiosamente. Na hipótese do réu interpor recurso de caráter meramente protelatório, seria injusta a interpretação que concluísse que a acusação deveria assistir impassível o alcance prescricional quando, juridicamente, encontrava-se impedida de exercitar a pretensão executória. Como ressaltado por Guilherme Nucci, a regra penaliza a acusação, quando não houve desinteresse do Estado, nem inépcia, para fazer o condenado cumprir a pena, razão pela qual não deveria estar transcorrendo, em seu desfavor, da prescrição da pretensão executória.29 Com relação à segunda hipótese de início da prescrição da pretensão executória, ou seja, a partir da revogação da suspensão condicional da pena ou do livramento condicional (art. 112, I, parte final), assinale-se que enquanto o agente cumpre as condições do sursis ou do livramento, não há que falar de prescrição pois, na verdade, a pretensão estatal está sendo exercitada. No entanto, descumpridas as condições e decretada a revogação daqueles benefícios (arts. 81 e 86, do CP, e arts. 140 e 162, da LEP), com a expedição de mandado de prisão em desfavor do apenado, deflagra-se – na data da sentença do Juiz da execução penal – a prescrição da pretensão de impor a pena. No caso do livramento condicional, se o tempo em que esteve liberado o condenado for computado no total da pena imposta (art. 88, do CP, e art. 142, da LEP), a prescrição será regulada pelo tempo que resta a cumprir (art. 113, do CP). A terceira previsão legal de início da prescrição após a sentença condenatória irrecorrível diz respeito à hipótese de interrupção da execução (art. 112, II, do CP). Nesse 29. Nucci, Guilherme de Souza. Op. cit., p. 457. 571
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sentido, é possível, por exemplo, que o apenado fuja do regime fechado, não retorne ao cárcere após a autorização de saída temporária no regime semiaberto, abandone o regime aberto, dentre outras situações passíveis de interrupção do curso da execução, iniciando-se, dessa forma, a contagem da prescrição penal. O dispositivo prevê que a regra não se aplica aos casos nos quais “o tempo de interrupção deva computar-se na pena (art. 112, II, parte final). É o que ocorre, por exemplo, no caso de superveniência de doença mental (art. 41, do CP). Sendo recolhido a hospital de custódia e tratamento psiquiátrico, o tempo que estiver sob cumprimento de medida de segurança (art. 183, da LEP), será descontado da pena inicialmente imposta, razão pela qual não há que falar de fluência do prazo prescricional. Com relação à evasão do apenado, pari passu com o que ocorre com a revogação do livramento condicional, a prescrição da pretensão executória será regulada pelo tempo que resta da pena (art. 113, do CP).
36.7. Causas impeditivas ou suspensivas do prazo prescricional
A
ou suspensivas do curso do prazo prescricional compreendem situações nas quais a pretensão punitiva ou executória não pode ser exercitada, não por conta de desídia ou desinteresse estatal, mas, sim, devido a circunstâncias que obstam o regular prosseguimento do ius puniendi ou ius punitionis. O Código Penal arrola três hipóteses, duas relacionadas com a pretensão punitiva (art. 116, I e I, do CP) e, a terceira, com a pretensão executória (art. 116, parágrafo único, do CP). Com relação a todas elas, aplica-se a Súmula 415, do STJ: “O período de suspensão do prazo prescricional é regulado pelo máximo da pena cominada”. A propósito, cumpre ressaltar que impedimento tem o mesmo significado de suspensão, ou seja, a paralisação do curso prescricional, com o retorno, após o desaparecimento da circunstância que a causou, ao estágio em que encontrava. O prazo de prescrição sofre um hiato, recomeçando a correr depois que cessa a condição impeditiva, contando-se o tempo anterior para o cômputo final da prescrição. Nisso difere-se das causas interruptivas, contempladas no art. 117, do CP, porque, no caso de interrupção, a contagem do prazo retorna ao início; despreza-se o tempo anterior. Dito de outra forma, a interrupção acarreta um novo dies a quo, ao passo que o impedimento ou suspensão obsta o prosseguimento da contagem, mas sem apagar o tempo já decorrido. Ressalte-se, ainda, que as causas contempladas no art. 116, do CP, não são exaustivas (numerus clausus), pois há outras hipóteses de suspensão da prescrição no ordenamento jurídico brasileiro. Citem-se os seguintes exemplos: s causas impeditivas
1) Art. 89, § 6 o, da Lei no 9.099/1995. Determina que não corre a prescrição da pretensão punitiva durante a suspensão condicional do processo.
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2) Art. 366, do CPP (com a redação da Lei no 9.271/1996). Determina a suspensão da prescrição da pretensão punitiva do réu, citado por edital, que não comparece nem constitui defensor. 3) Art. 386, do CPP (com a redação da Lei no 9.271/1996). Determina a suspensão do curso da prescrição da pretensão punitiva do réu no estrangeiro, em lugar sabido, citado mediante carta rogatória. 4) Art. 83, § 3o, da Lei no 9.430/1996, com a redação da Lei no 12.382/2011. Determina a suspensão da pretensão punitiva referente aos crimes dos arts. 1o e 2o, da Lei no 8.137/1990, e arts. 168-A e 337-A, do CP, durante o período em que a pessoa física ou jurídica relacionada com o agente desses crimes estiver incluída no parcelamento, desde que o pedido de parcelamento tenha sido formalizado antes do recebimento da denúncia criminal. 5) Súmula Vinculante 24, do STF. Determina que, nos crimes materiais contra a ordem tributária, previsto no art. 1o, incs. I a IV, da Lei no 8.137/1990, não há o curso do prazo prescricional enquanto não constituído, em definitivo, o tributo.30 6) Art. 53, § 5o, da CF/1988 (com a Emenda Const. 35/2001). Determina que durante a sustação do processo penal, por força de decisão da Casa respectiva, suspende-se a prescrição da pretensão punitiva. Com relação às causas do art. 116, do CP, mencione-se, primeiramente, a paralisação da prescrição enquanto não resolvida, em outro processo, questão de que dependa o reconhecimento da existência do crime. Fez-se, assim, alusão às questões prejudiciais que se encontram disciplinadas nos arts. 92 e 93, do CPP, versando, a primeira delas, sobre controvérsia no juízo cível acerca do estado civil das pessoas e, a segunda, sobre questão de outra natureza, mas igualmente da competência do juízo cível. Na primeira, a suspensão é obrigatória e, na segunda, facultativa. Em quaisquer delas, contudo, a suspensão do curso da ação penal será decretada pelo juiz, “de ofício ou a requerimento das partes” (art. 94, do CPP). Exemplo: “A”, acusado de bigamia (art. 235, do CP), alega em sua defesa a invalidade do casamento anterior. Caso a ação anulatória, no juízo cível, venha a ser julgada procedente, 30. Cf.: “Crime contra o ordem tributária. Lapso prescricional que só se inicia com a constituição definitiva do crédito tributário. Precedentes desta Corte e do Pretório Excelso. Necessidade de delimitação do termo inicial. ‘Falta justa causa para a ação penal pela prática do crime tipificado no art. 1o, da Lei no 8.137/1990, enquanto não constituído, em definitivo, o crédito fiscal pelo lançamento. É dizer, a consumação do crime tipificado no art. 1o, da Lei no 8.137/1990, somente se verifica com a constituição do crédito fiscal, começando a correr, a partir daí, a prescrição. HC 81611. Min. Sepúlveda Pertence, Plenário, 10/12/03’.” (RHC 25393. STJ. Min. Felix Fischer. Quinta Turma. DJ de 22/06/2009). 573
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deixará de ser reconhecida a existência do crime de bigamia (art. 235, § 2o, do CP). Cuida-se de questão prejudicial de obrigatória suspensão.
Decretada, pelo magistrado, a suspensão da ação penal, restará igualmente suspenso o curso do prazo prescricional da pretensão punitiva. Não se pode tributar à esfera penal o ônus da prescrição ante a eventual demora do deslinde da questão na esfera cível. Esclarecida, no cível, a questão prejudicial, a prescrição penal recomeça a correr, mas computando o lapso de tempo anterior à suspensão, pois não pode ser tributado ao réu, por sua vez, o ônus da zeragem do lapso anterior, por ele não ter qualquer ingerência na separação das jurisdições penal e civil. Idêntico raciocínio vale para a hipótese contemplada no art. 116, II, do CP, sendo que, no caso, a questão gira em torno não das jurisdições penal e civil, mas das jurisdições nacional e estrangeira. Consoante o mencionado dispositivo, suspende-se a prescrição da pretensão de punir, enquanto o agente cumpre pena no estrangeiro. Por estar privado da liberdade fora do país, o agente não pode ser extraditado. Por esse motivo, que independe do maior ou menor empenho das autoridades nacionais, é compreensível que não corra o prazo prescricional da pretensão punitiva. De mais a mais, é possível que o tempo de cumprimento da pena no estrangeiro seja tal que o tempo da prescrição no Brasil corra por inteiro, o que inviabilizaria – não fosse a ressalva legal sob comento – o direito de punir estatal.31 O mesmo não pode ser dito caso o agente se encontre cumprindo pena dentro do território nacional, pois, no caso, a pretensão punitiva pode ser exercitada por intermédio dos mecanismos internos de colaboração penal. Não por outra razão, há previsão, no Código de Processo, da requisição do preso para interrogatório, dentro ou fora do Estado da Federação, facultando-se, excepcionalmente, a realização do interrogatório por sistema de videoconferência ou outro recurso tecnológico de sons e imagens em tempo real (art. 185, § 2o, do CPP, com a redação da Lei no 11.900/2009). A última previsão do Código Penal sobre impedimento ou suspensão do curso da prescrição, relaciona-se com a prescrição da pretensão executória, que não corre durante o tempo em que o condenado está preso por outro motivo (art. 116, parágrafo único). Aqui, qualquer que seja o motivo da prisão, isto é, definitiva ou preventiva, mas decorrente de outro fato, não pode, fisicamente, o agente descontar a pena que foi imposta pela sentença condenatória transitada em julgado. Há de se aguardar que desapareça o motivo da outra prisão, para, então, cessar o impedimento do curso da prescrição da pretensão executória. Em suma, não há inércia do Estado em executar a pena, mas, na verdade, a impossibilidade do condenado estar em dois lugares ao mesmo tempo. Por conta disso, fica suspensa a prescrição do ius punitionis.32 Por evidente, se o agente, inicialmente preso 31. Cf. Marques, José Frederico. Op. cit., p. 505. 32. Cf.: “A prescrição da pretensão executória começa a correr da data da fuga do condenado, quando em cumprimento da pena. Porém, suspende-se a contagem do prazo prescricional durante o tempo em que o recorrente está preso por qualquer outro motivo que não o da condenação nos autos originários.” (RHC 25207. STJ. Min. Laurita Vaz. Quinta Turma. DJ de 13/04/2009). 574
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por outro fato, for solto em razão de benefício prisional alternativo, não há que falar de impedimento ou suspensão do prazo prescricional da pretensão executória, sob pena de indevida analogia in malam partem.33
36.8. Interrupção do prazo prescricional
N
no item precedente, após a paralisação do lapso prescricional, ele é retomado com o cômputo do período anterior. Não obstante, nos casos de interrupção, contemplados no art. 117, do CP, forma-se um novo dies a quo, desaparecendo o anteriormente existente. Segundo os ensinamentos de Frederico Marques, a interrupção torna inútil o lapso de tempo decorrido, começando um novo curso, como se o crime tivesse sido praticado naquele dia.34 Todavia, este efeito não se aplica à interrupção pelo início ou continuação do cumprimento da pena (art. 117, V, do CP), justificável em razão de que, com o início ou prosseguimento do cumprimento da pena, a pretensão estatal está sendo satisfeita, não havendo que falar em prescrição (art. 117, § 2o, do CP). Sob outra vertente, a incidência das causas do art. 117, do CP, produzem efeitos em desfavor de todos os autores do crime, com exceção, é claro, daquelas pertinentes aos incs. V e VI, do art. 117, do CP (início ou continuação do cumprimento de pena e reincidência), que têm cunho pessoal ou subjetivo. A mesma regra de comunicabilidade da interrupção é verificada no caso de crimes conexos, que sejam objeto do mesmo processo (art. 117, § 1o, do CP).35 Observe-se, ainda, que as hipóteses de interrupção revestem-se, amiúde, de maior gravidade do que as de suspensão. Em outros termos, a interrupção do curso da prescrição configura-se, em geral, como uma espécie de “prêmio” ou reconhecimento de que o Estado não está leniente ou desidioso e que almeja efetivar a pretensão punitiva ou a pretensão executória contra o infrator. No entanto, é forçoso reconhecer que a interrupção pela reincidência (art. 117, VI, do CP) nada tem a ver com uma maior ou melhor eficiência estatal, mas, como visto no início do Capítulo, com o comportamento daquele que, mesmo com o decurso do fator tempo, não soube reintegrar-se socialmente. a forma analisada
36.8.1. Recebimento da denúncia ou queixa
Consoante o art. 117, I, do CP, a primeira causa interruptiva do prazo que se iniciou na forma do art. 111, do CP, ocorre pelo recebimento da denúncia ou da queixa. Recebimento não se confunde com o oferecimento da denúncia ou queixa. A simples apresentação ou protocolo em juízo não interrompe o lapso prescricional, mas, sim, o acolhimento judicial da peça deflagradora da ação penal. 33. Cf. HC 111599. STJ. Min. Arnaldo Lima. Quinta Turma. DJ de 02/02/2009. 34. Cf. Marques, José Frederico. Op. cit., p. 505. 35. Cf. HC 118813. STJ. Min. p/ acórdão Maria Thereza Moura. Sexta Turma. DJ de 23/03/2009. 575
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A rejeição da denúncia ou queixa não interrompe a prescrição. Entretanto, caso haja recurso contra a decisão de rejeição, o acórdão do tribunal que provê o inconformismo da acusação acarreta a referida interrupção. Na mesma esteira, a anulação, na instância superior, da decisão judicial de recebimento, acarretará a desconsideração jurídica da mencionada interrupção.36 No mesmo sentido, é pacífica a jurisprudência de que o recebimento da denúncia por Juízo incompetente não interrompe a prescrição.37 Por outro lado, o aditamento da denúncia ou queixa para correção de irregularidade, erro material ou dados não essenciais não interrompe a prescrição (art. 569, do CPP). A propósito, decidiu o STJ que o aditamento que apenas promove novo enquadramento típico formal, mas que não narre fato diverso, não constitui causa interruptiva do prazo prescricional.38 Todavia, caso ocorra a inclusão de fatos novos ou de novos corréus, demandando, portanto, um novo juízo de admissibilidade, acarretará a interrupção da prescrição. Sobre o assunto, deve ser ressaltado que, com a modernização do procedimento penal, passou-se a prever um controle jurisdicional mais efetivo das ações penais, com a possibilidade de exercício mais amplo da defesa do acusado. Na atualidade, oferecida a denúncia ou queixa, o juiz, se não a rejeitar liminarmente, “recebê-la-á e ordenará a citação do acusado para responder à acusação, por escrito, no prazo de dez dias” (art. 396, do CPP, com a redação da Lei no 11.719/2008). Após a fase de defesa preliminar, o juiz fará nova apreciação da inicial da ação penal, realizando, caso não absolva sumariamente o acusado, um novo recebimento da denúncia ou queixa, designando dia e hora para audiência e demais trâmites procedimentais (art. 399, do CPP, com a redação da Lei no 11.719/2008). Diante dessas modificações da lei processual, a dúvida que se instaurou diz respeito à definição de qual dos dois recebimentos acarreta a interrupção do curso do prazo prescricional. Para a interrupção prevista no art. 117, I, do CP, vale o art. 396 ou o art. 399, do CPP, ou ambos? Em que pese a controvérsia doutrinária, o melhor entendimento é no sentido de que o primeiro recebimento é que interrompe a prescrição (art. 396, do CPP). Isso porque o recebimento da peça acusatória é imperativo, salvo se não for o caso de indeferimento liminar. Após esse recebimento, o acusado é citado para responder a ação penal por escrito. A hipótese subsequentemente prevista de recebimento já pressupõe o estabelecimento da relação jurídica processual – ou seja, o evidente interesse público na persecução penal – e serve para contrastar com a decisão antagônica de absolvição sumária.39
36. Cf.: “(...) Reconhecida a nulidade a partir do recebimento da denúncia, não mais subsistem os marcos interruptivos da prescrição.” (HC 28667. STJ. Min. Og Fernandes. Sexta Turma. DJ de 27/04/2009). 37. Cf. HC 123859. STJ. Min. Napoleão Maia. Quinta Turma. DJ de 28/09/2009. 38. Cf. HC 121743. STJ. Min. Laurita Vaz. Quinta Turma. DJ de 07/02/2011. 39. Cf. Oliveira, Eugênio Pacelli; Fischer, Douglas. Comentários ao Código de Processo Penal e sua Jurisprudência. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p. 791. 576
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36.8.2. Sentença de pronúncia
O procedimento relativo aos processos da competência do Tribunal do Júri reveste-se de inequívoca complexidade, tendo em vista, dentre outros fundamentos, envolver delitos dolosos contra a vida. Bem por isso, o CPP prevê quase uma centena de artigos para tratar da matéria. Sendo assim, compreende-se que a lei penal, além da previsão da interrupção pelo recebimento da denúncia, estabeleça nova interrupção pela pronúncia (art. 117, II, do CP). A chamada sentença de pronúncia – na verdade, decisão interlocutória mista – importa no fundamentado juízo de convencimento acerca da materialidade do fato e de indícios suficientes de autoria ou de participação (art. 413, do CPP, com a redação da Lei no 11.689/2008). A pronúncia delimita o encerramento da fase instrutória e o início da fase de submissão ao júri popular. Dentre outras consequências que ela acarreta há, como dito, a interrupção do curso da prescrição da pretensão punitiva, ainda que o réu venha a ser absolvido em Plenário ou que ocorra a sua desclassificação para crime não doloso contra a vida. Nesse sentido, a Súmula 191, do STJ: “A pronúncia é causa interruptiva da prescrição, ainda que o Tribunal do Júri venha a desclassificar o crime”. Se, nessa fase processual, a decisão do juiz for de desclassificação do crime, mas para outro também da competência do Tribunal do Júri, essa decisão acarretará, evidentemente, a interrupção, uma vez que se cuida de pronúncia, nos termos do art. 117, II, do CP. 36.8.3. Decisão confirmatória da pronúncia
Na hipótese do acusado não se conformar com a decisão de pronúncia, recorrendo a instância ad quem, o acórdão confirmatório da pronúncia acarreta a interrupção do curso da prescrição da pretensão punitiva (art. 117, III, do CP). O acórdão que exclui qualificadora é, também, confirmatório da sentença de pronúncia, a teor do mencionado dispositivo, o que também causa a interrupção.40 Se o juiz não se convencer da materialidade do fato ou da existência de indícios suficientes de autoria ou de participação, impronunciado o acusado (art. 414, do CPP, com a redação da Lei no 11.689/2008), poderá a acusação obter, em grau de recurso, a reversão dessa decisão. Haverá, na data do acórdão de pronúncia, a interrupção do curso da prescrição. Da mesma forma, interromper-se-á o lapso prescricional a reforma, na instância ad quem, de decisões de absolvição sumária ou de desclassificação pelo juiz da causa (arts. 415 e 419, do CPP, com a redação da Lei no 11.689/2008). 36.8.4. Publicação da sentença ou acórdão condenatório recorrível
Nos termos do art. 117, IV, do CP, com a redação da Lei no 11.596/2007, interrompe o curso da prescrição da pretensão punitiva, a publicação da sentença ou acórdão recorrível. O objetivo da alteração legislativa foi o de dirimir as inúmeras controvérsias 40. RHC 99292. STF. Min. Eros Grau. Segunda Turma. DJ de 29/10/2009. 577
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que envolvem esse marco interruptivo. Ocorre, no entanto, que tal objetivo foi apenas em parte alcançado, pois remanescem algumas questões polêmicas tanto na doutrina como na jurisprudência. De toda sorte, a nova redação do art. 117, IV, do CP, sacramentou o entendimento que vinha sendo construído no sentido de que não apenas a sentença condenatória recorrível, como, igualmente, o acórdão condenatório recorrível, que reforma a anterior sentença absolutória de primeiro grau, interrompe a prescrição. Desse modo, não se discute mais que a publicação do acórdão que condena o agente, depois de prover recurso da acusação interposto contra sentença absolutória, constitui-se causa interruptiva do lapso prescricional da pretensão punitiva. Outro ponto que era nebuloso girava em torno do momento interruptivo da sentença ou do acórdão condenatório recorrível. De acordo com o citada alteração do art. 117, IV, do CP, a interrupção ocorre na data da publicação da decisão condenatória, ou seja, quando ela é entregue em mãos do escrivão (art. 389, do CPP), se não for proferida em audiência (arts. 403, 493 ou 534, do CPP). Cuidando-se de acórdão, observa Guilherme Nucci que o mesmo se reputa publicado na data da sessão de julgamento pela Câmara ou Turma, não havendo a menor necessidade de se aguardar a redação do acórdão e sua publicação em diário oficial, visto que a sessão é ato público ao qual todos, inclusive as partes, podem assistir.41 Todavia, há outros pontos que, como dito, não foram aclarados pela Lei no 11.596/2007. O mais polêmico diz respeito aos efeitos da publicação do acórdão confirmatório da condenação, ou seja, aquele que, negando provimento ao apelo da defesa, ratifica a condenação proferida em primeira instância. Discute-se se este acórdão constitui ou não causa interruptiva do lapso prescricional. Sobre o assunto, prepondera, na doutrina, a posição de ele não ser causa de interrupção da prescrição da pretensão punitiva, tendo em vista que a Lei no 11.596/2007 não o incluiu, ao menos expressamente, como modalidade interruptiva. Dessa maneira, entendimento diverso, ou seja, a favor da interrupção, conduziria à reprovável interpretação extensiva ou mesmo ao exercício de indevida analogia in malam partem.42 A jurisprudência que se formou a partir da vigência da Lei no 11.596/2007 também é no sentido de que, conquanto o acórdão constitua, na atualidade, marco interruptivo da prescrição – não só em virtude da lei nova, como consoante o entendimento que já vinha sendo esposado pelos tribunais superiores –, ele só assim atua quando se contrapõe a uma sentença absolutória de primeiro grau ou quando modifica o título da condenação, alterando a pena de modo considerável.43 41. Cf. Nucci, Guilherme de Souza. Op. cit., p. 464. Ressalta, ainda, o autor que a publicação do acórdão em diário oficial (eletrônico ou não) continua a prevalecer para a contagem de prazo para recurso, mas não para interromper a prescrição. (Idem, p. 464). 42. Nesse sentido: Nucci, Guilherme de Souza. Op. cit., p. 464; Jesus, Damásio E. de. Op. cit., p. 743; e Bitencourt, Cezar Roberto. Op. cit., p. 787. 43. HC 111502. STJ. Min. Jane Silva. Sexta Turma. DJ de 10/11/2008. 578
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Efetivamente, é forçoso reconhecer que o legislador não aproveitou a oportunidade para dar ao acórdão confirmatório da sentença condenatória o mesmo caráter conferido ao acórdão confirmatório da sentença de pronúncia (cf. art. 117, III, do CP). Todavia, não se pode com isso achar que ele é decisão de todo imprestável no terreno prescricional. Isso porque, cumpre atentar que o acórdão confirmatório da condenação também é confirmatório do interesse estatal na efetivação da pretensão punitiva. Por conta disso – consoante exposto em voto conduzido pela Ministra Ellen Gracie –, se ele surge antes de fluído o prazo prescricional, que fora interrompido com o advento da sentença condenatória recorrível, não há mais cogitar de prescrição da pretensão punitiva. O órgão de segundo grau de jurisdição atuou a tempo e modo. Em suma, o Estado não descurou de sua função jurisdicional. Com a confirmação da condenação, encerra-se a fase de prescrição da pretensão punitiva, iniciando-se a fase da prescrição da pretensão executória, cujo termo inicial poderá ser protraído em virtude de interposição de RE ou REsp.44 Outra questão polêmica é a concernente ao acórdão que, confirmando a sentença, altera a dosimetria da pena ou dá provimento ao apelo da acusação para a inclusão, na condenação, de delito que havia sido rejeitado pela sentença de primeiro grau. Quando o acórdão confirma a pena, mas a altera para menos, entende-se que não interrompe a prescrição. Se a confirmação neutra não interrompe, maior razão haverá para se entender que a confirmação que abranda a situação jurídico-penal do condenado também não interromperá o fluxo do prazo prescricional.45 Porém, quando a Câmara ou Turma do tribunal majora a sanção ou agrava a situação jurídica do condenado, a solução não é tão simples, predominando, na doutrina, a tese de servir como marco interruptivo da prescrição, por envolver a alteração da substância da pretensão punitiva.46 A jurisprudência, a seu turno, é controversa, preponderando, porém, o entendimento de que, para que se interrompa o curso da prescrição, é necessária a alteração substancial do quantum da pena, entendida, como tal, aquela que causa o redimensionamento para maior do prazo prescricional do art. 109, do CP.47 No mais, tratando-se de acórdão que reforma parcialmente a sentença para incluir, 44. HC 86125. STF. Min. Ellen Gracie. Segunda Turma. DJ de 02/09/2005. 45. Cf.: “Não pode ser considerado marco interruptivo da prescrição o acórdão que dá provimento parcial à apelação da Defesa para absolver o acusado de algumas condutas pelas quais havia sido condenado na sentença e, em consequência, reduz o total da reprimenda que lhe fora imposta.” (HC 149147. STJ. Min. Laurita Vaz. Quinta Turma. DJ de 09/03/2011). 46. Cf. Nucci, Guilherme de Souza. Op. cit., p. 464. Em sentido contrário: Jesus, Damásio E. de. Op. cit., p. 743. 47. No STF: HC 85556. STF. Min. Ellen Gracie. Segunda Turma. DJ de 02/09/2005. Em sentido contrário: HC 71424. STF. Min. Sydney Sanches. Primeira Turma. DJ de 17/03/1995. No STJ: “O acórdão que confere nova tipificação ao fato ou aumenta a pena, de forma a modificar o prazo prescricional, constitui novo marco interruptivo da prescrição, em adequada interpretação ao inc. IV, do art. 117, do CP.” (AgRg no REsp 941026. STJ. Min. Hamilton Carvalhido. Sexta Turma. DJ de 18/08/2008). No mesmo sentido: RHC 5456. STJ. Min. Assis Toledo. Quinta Turma. DJ de 01/07/1996. Em sentido contrário: “O STJ firmou compreensão de que a reforma parcial da sentença, tão somente em relação à dosimetria da pena, não desconstitui o decreto condenatório, que continua sendo marco interruptivo da prescrição, a teor do art. 117, IV, do CP.” (AgRg no REsp 730407. STJ. Min. Og Fernandes. Sexta Turma. DJ de 29/11/2010). No mesmo sentido: HC 143594. STJ. Min. Jorge Mussi. Quinta Turma. DJ de 02/08/2010. 579
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na condenação, crime do qual havia sido absolvido o acusado, prepondera, na jurisprudência, o entendimento no sentido de ser idôneo para interromper a prescrição. Isso porque não se cuidaria de mero acórdão confirmatório da sentença, uma vez que esta foi materialmente modificada para condenar o réu por crime não reconhecido pelo Juiz de primeiro grau.48 36.8.5. Início ou continuação do cumprimento de pena
Consoante o art. 117, V, do CP, interrompe a prescrição da pretensão executória o início ou continuação do cumprimento da pena. Com relação à primeira hipótese, cumpre ressaltar que, transitada em julgado a sentença condenatória, se o réu estiver ou vier a ser preso, o juiz ordenará a expedição de guia de recolhimento, iniciando-se, a partir daí, a fase de execução penal (art. 105, da LEP). Dessa feita, determina a lei penal que a prescrição de pretensão executória sofra interrupção pelo concreto início do desconto por parte do condenado. Enquanto o apenado estiver cumprindo pena, a pretensão estatal estará sendo satisfeita, não havendo que falar de fluência da prescrição. Porém, caso a execução sofra solução de continuidade, deflagra-se o curso da prescrição (art. 112, II, do CP). Retomado o cumprimento da pena, como, por exemplo, no caso do apenado evadido que for recapturado, há nova interrupção do curso do prazo prescricional, em virtude da continuação do cumprimento da pena. Se porventura houver nova solução de continuidade, reiniciará a contagem do referido prazo, não mais pelo quantum integral, mas pelo restante da pena que falta cumprir (art. 117, § 2o). Conforme supra mencionado, a presente causa interruptiva aplica-se às medidas de segurança. 36.8.6. Reincidência
A última previsão legal de interrupção da prescrição da pretensão executória decorre da reincidência (art. 117, VI, do CP). Cuidando-se de novo delito praticado depois de transitado em julgado a sentença condenatória, o prazo prescricional desta última é, como visto, interrompido, formando um novo dies a quo a partir desse momento. No particular, não há que confundir a reincidência, que afeta (interrompe) o curso da prescrição da pretensão executória, com o reconhecimento da reincidência, por ocasião da sentença condenatória, causa que é do aumento de um terço da prescrição da pretensão executória (art. 110, caput, parte final, do CP). Sobre o assunto, discute-se a necessidade de se aguardar o trânsito em julgado da condenação pelo novo delito ou se bastaria, para que se configure a hipótese interruptiva, a prática do mesmo. Aqueles que se filiam à primeira corrente, sustentam que 48. Cf. AI 759450. STF. Min. Ellen Gracie. Segunda Turma. DJ de 18/12/2009. No mesmo sentido: “1. Acórdão que altera o título da condenação, com modificação substancial da pena, constitui novo julgamento, revestindo-se da condição de marco interruptivo da prescrição. 2. Inocorrência, entre os marcos legais, dos lapsos exigidos pelo Código Penal para o reconhecimento da extinção da punibilidade.” (HC 92340. STF. Min. Ricardo Lewandowski. Primeira Turma. DJ de 08/06/2008). 58 0
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somente fica positivado que o agente cometeu novo crime quando passa em julgado a respectiva sentença condenatória. Sendo assim, em homenagem ao postulado da presunção de inocência, deve-se aguardar o momento em que a mesma se torna irrecorrível. Para a segunda corrente, cumpre observar que, nos termos do art. 63, do CP, verifica-se a reincidência quando o agente comete novo crime. É, portanto, nesse exato momento que ocorre a interrupção do curso prescricional do delito anterior. Na hipótese do agente vir a ser absolvido por conta desta segunda infração penal, a respectiva sentença absolutória retroagirá para desconstituir aquele marco prescricional. A doutrina majoritária filia-se a esta segunda corrente.
36.9. Contagem do prazo prescricional
N
os termos do art. 115, do CP, os prazos da prescrição da pretensão punitiva devem ser reduzidos de metade quando o infrator for menor de 21 (vinte e um) anos, ao tempo do crime, ou maior de 70 (setenta) anos, na data da sentença. Cuida-se de norma especial de redução da contagem prescricional que se aplica, de maneira indistinta, para a pretensão punitiva e para a prescrição executória, bem assim para as medidas de segurança. Na hipótese da menoridade relativa (entre 18 e 21 anos), deve-se considerar a expressão ao tempo do crime como significando a data da ação ou da omissão (teoria da atividade) e não a data do resultado, caso este não coincida com aquela. Sendo assim, tratando-se de homicídio, se o agente pratica a conduta de matar quando era menor de vinte e um anos e sobrevindo a morte da vítima após a maioridade penal, o agente será beneficiado com a redução dos prazos prescricionais.49 Com relação ao maior de setenta anos, deve-se ressaltar que as alterações promovidas pela Lei no 10.741/2003 (Estatuto do Idoso), com o rebaixamento da faixa etária da pessoa idosa, de setenta para sessenta anos, não influiu na matéria ora considerada. Isso porque, o Estatuto do Idoso foi taxativo ao alterar, pontualmente, a legislação penal, não interferindo, assim, na faixa etária da circunstância atenuante do art. 65, I, do CP, tampouco o citado art. 115, do CP.50 Ainda sobre o assunto, predomina o entendimento jurisprudencial de considerar que a redução pela metade somente beneficia aquele que completou mais de 70 anos
49. Cf. Jesus, Damásio E. de. Op. cit., p. 738. 50. No STF: “A circunstância do critério cronológico adotado pelo Estatuto do Idoso ser de 60 (sessenta) anos de idade não alterou a regra excepcional da redução dos prazos de prescrição da pretensão punitiva quando se tratar de pessoa maior de 70 (setenta) de idade na data da sentença condenatória. (...)” (HC 88083. STF. Min. Ellen Gracie. Segunda Turma. DJ de 27/06/2008). No mesmo sentido: HC 89969. Min. Marco Aurélio. Primeira Turma. DJ de 05/10/2007; e HC 86320. Min. Ricardo Lewandowski. Primeira Turma. DJ de 24/11/2006. No STJ: “(...) A Lei nº 10.741/2003 (Estatuto do Idoso) considera idosa a pessoa a partir dos 60 anos de idade. No entanto, isto não alterou o CP que, em seu art. 115, prevê a redução da metade dos prazos de prescrição quando o criminoso for, na data da sentença, maior de 70 anos. No caso, de acordo com os autos, o paciente tinha 63 anos de idade na data da sentença. Portanto, não há redução do prazo prescricional. Precedentes.” (HC 155437. STJ. Min. Napoleão Maia. Quinta Turma. DJ de 14/02/2011). No mesmo sentido: HC 95029. STJ. Min. Arnaldo Lima. Quinta Turma. DJ de 19/12/2008; e RHC 16856. STJ. Min. Gilson Dipp. Quinta Turma. DJ de 20/06/2005. 581
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antes da sentença condenatória de primeiro grau, não sendo extensível para os acórdãos confirmatórios nas instâncias superiores. Naturalmente, se a sentença de primeiro grau for absolutória e o tribunal vier a reformá-la após ter o acusado completado setenta anos, ele fará jus ao benefício da redução dos prazos prescricionais. Em suma, a sentença deve ser interpretada como a primeira condenação que venha a ser exarada após o cômputo dos setenta anos de idade.51 Sobre outro ângulo, discute-se se os efeitos da detração penal afetam a contagem da prescrição. Conforme o art. 42, do CP, computa-se, na pena definitiva, o tempo em que o agente esteve preso provisoriamente, no Brasil ou no estrangeiro. Segundo a jurisprudência do STF, esse abatimento do quantum de pena a ser cumprido não acarreta a diminuição dos prazos prescricionais. A detração relativa à prisão cautelar não pode ser computada para fins de prescrição, pois a regra do art. 42, do CP, aplica-se tão somente à finalidade de abatimento do cálculo final de cumprimento da pena, não se prestando para fins de redução da prescrição. A rigor, a detração penal é um corretivo, estribado no princípio da equidade, para que a prisão cautelar, que não consiste na antecipação de pena, não acarrete uma excessiva intervenção estatal. Dessa maneira, na hipótese do art. 113, do CP, isto é, evadindo-se o condenado, não se pode detrair, do cômputo do lapso prescricional do restante da pena, o período em que o mesmo se encontrava preso provisoriamente.52 Reitere, por fim, que a contagem do prazo prescricional obedece à regra do art. 10, do CP, ou seja, o dia do começo inclui-se no cômputo final. Além disso, os dias, meses e anos observam o calendário comum. A propósito, há muito tempo que o STF já pacificou o entendimento a respeito da contagem dos prazos do CP: como o dia do começo inclui-se no cômputo do prazo, este termina, não no dia idêntico do mês e ano seguinte, mas à meia-noite do dia anterior.53
51. Cf.: “(...) É firme a jurisprudência deste Supremo Tribunal Federal no sentido de que o benefício da redução dos prazos da prescrição não é aplicável aos casos em que o agente completa setenta anos de idade depois da publicação da sentença penal condenatória e dos acórdãos que mantiveram essa decisão. Precedentes.” (HC 94067. STF. Min. Cármen Lúcia. Primeira Turma. DJ de13/03/2009). No mesmo sentido: “Não cabe aplicar o benefício do art. 115, do Código Penal, quando o agente conta com mais de 70 (setenta) anos na data do acórdão que se limita a confirmar a sentença condenatória. (...)” (HC 86320. STF. Min. Ricardo Lewandowski. Primeira Turma. DJ de 24/11/2006). 52. Cf.: “Ação Penal. Detração. Período de prisão preventiva ou cautelar. Contagem ou cálculo para fim de prescrição da pretensão punitiva. Inadmissibilidade. Medida restrita à execução e cumprimento de pena. HC denegado. Inteligência dos arts. 42 e 113, do CP.” (HC 96287. STF. Min. Cezar Peluso. Segunda Turma. DJ de 22/05/2009). No mesmo sentido: RHC 85217. STF. Min. Eros Grau. Primeira Turma. DJ de 19/08/2005; e HC 69865. STF. Min. Celso de Mello. Primeira Turma. DJ de 26/11/1993. 53. HC 45648. STF. Min. Evandro Lins e Silva. Segunda Turma. DJ de 25/10/1968. 582
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