Obra publicada com a colaboração da
UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
Reitor:
Prof. Dr. Waldyr Muniz Oliva
EDITORA DA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO Presidente:
Prof. Dr. Mário Guimarães Ferri
Comissão Editorial: Presidente:
Prof. Dr. Mário Guimarães Ferri (Instituto de
Biociências). Membros: Prof. Dr. Antonio Brito da Cunha (Instituto de Biociências), Prof. Dr. Carlos da Silva Lacaz (Faculdade de Medicina), Prof. Dr. Pérsio de Souza Santos (Escola Politécnica) e Prof. Dr. Roque Spencer Maciel de Barros (Faculdade de Educação).
A C R ÍT I C A E O D ES E N VO L V I M EN T O DO CONHECIMENTO I m r e L a ka t o s e A la n Mu sg ra v e (o r g s . )
Dois livros, em particular, exerceram decisiva influência na Filosofia da Ciência contemporânea: A Lógica da Pesquisa Científica, d e Karl R. Popper e A Estrutura das Revoluções Científicas, de Thomas S. Kuhn. Ambos esses livros concordam quanto à importância das revoluções na Ciência, mas discordam quanto ao papel da crítica no seu desenvolvimento. Um dos colaboradores do presente volume alega que, para Kuhn, a mudança revo lucionária é um problema de "psicologia da multidão”. Kuhn rejeita tal interpretação de seu pensamento, mas insiste em que "qualquer que seja o progresso cientifico, devemos expli- cá-lo examinando a natureza do grupo científico, descobrindo o que este valoriza, o que tolera e o que desdenha". nasceu de A CRÍ TI CA E O DESENVOLVI M ENTO DO C ONH ECI M ENTO um simpósio acerca da obra de Kuhn, presidido por Popper e realizado por ocasião de um colóquio internacional em Londres (1965). Não se trata de um simples registro das discussões então travadas, pois vários dos ensaios aqui reunidos foram reescritos e expandidos. O livro começa com um texto de Kuhn no qual ele enuncia a sua posição, seguindo-se sete textos de outros autores, de crítica e análise das formulações de Kuhn, e concluindose com a resposta deste. Eis, pois, um livro que se destina a estudantes e rofessores de Filosofia e História da Ciência, bem como a quantos se interessem por esse setor fundamentai do conhecimento humano.
E D I T O R A C U L T R I X E D IT O R A D A U N I V E RS I D AD E D E SÃO P A UL O
Título do srcinal: CRITICISM AND THE GROWTH OF KNOWLEDGE Copyrigth © 1970, Cambridge University Press
Traduzido por OCTAVIO MENDES CAJADO Revisão técnica de PABLO MARICONDA (do Departamento de Filosofia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo)
MCMLXXIX Direitos de tradução para a língua portuguesa adquiridos com exclusividade pela EDITORA CULTR1X LTDA.
Rua Conselheiro Furtado, 648, fone 278-4811, 01511 São Paulo, SP que se reserva a propriedade literária desta tradução Impresso no Brasil
Printed in Brazil
SUMÁRIO
1
Pr ef áci o N ota sobr e a Terc eir a I mpr essão
T. S. KUHN: Lógica da Descoberta ou
Psicologia da Pesquisa?
5
D i scu ssão:
J. W. N. WATK1NS:
Contra a “Ciência Normal”
33
S. E. TOULMIN: É Adequada a Distinção entre Ciência Normal e Ciência Revolucioná ria?
49
L. PEARCE WILLIAMS: Ciência Normal, Revoluções Científicas e a História da Ciência K. R.
60
POPPER: A Ciência Normal
MARGARET MASTERMAN:
e seus Perigos A Natureza de um
63 Paradigma
72
I. LAKATOS: O Falseamento e a Metodologia dos Programas de
P. K. T. S.
Pesquisa Científica FEYERABEND:
Consolando
o Especialista
KUHN: Reflexões sobre os meus Críticos
109 244 285
CIP-Brasil. Catalogação-na-Fonte Câmara Brasileira do Livro, SP
C951
A crítica e o desenvolvimento do conhecimento : quarto volume das atas do Colóquio Internacional sobre Filosofia da Ciência, realiz ado em Londres em 1965 / organizado por I mre Lakatos e Alan Musgrave ; [traduzido por Octa- vio Mendes Cajado ; revisão técnica de Pablo Mariconda]. — São Paulo : Cultrix : Ed. da Universidade de São Paulo, 1979. Bibliografia. 1. Ciência — Filosofia I. Colóquio Internacio nal sobre F ilosofia da Ciência, Londres, 1965. II. Lakato s, Imre. III. Musgrave, Alan.
79-0113 índices para catálogo sistemático: 1. Ciência — Filosofia 501 2. Filosofia da ciência 501
CDD-501
A CRÍTICA E O DESENVOLVIMENTO DO CONHECIMENTO Quarto volume das atas do Colóquio Internacional sobre Filosofia da Ciência, realizado em Londres em 1965
Organizado por
IMRE LAKATOS
Ex-professor de Lógica da Universidade de
Londres
e
ALAN MUSGRAVE
Professor de Filosofia da Universidade de Otago
E D I T O R A C U L T R I X São Paulo EDITORA DA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
Ou tr as obr as de in ter esse :
A LÓGICA DA PESQUISA CIENTÍFICA* — Kar l Pop per AUTOBIOGRAFIA INTELECTUAL* — Kar l Popp er AS ID IA S D E P O PP ER * — Br ian M ag ee AS IDÉIAS DE BERTRAND RUSSEL * — A. J . Aye r AS IDÉIAS DE EINSTEIN * — Jeremy Bern ste in AS IDÉIAS DE WITTGENSTEIN * — David Pea r s FILOSOFIA DA CIÊNCIA* — Sidn ey M or genbes ser INTRODUÇÃO A FILOSOFIA DA CIÊNCIA * — K. L amb er t e G. G. Br ittan, Jr . DEFINIÇÕES: TERMOS TEÓRICOS E SIGNIFICADO * — L eotti das H egettbe r g ESCOLHA E ACASO:
UMA INTRODUÇÃO
X LÓGICA I NDUT IVA * —
Br ian S kyrms
INICIAÇÃO A LÓGICA E A METODOLOGIA DA CIÊNCIA ----- D i verso s autor es
—
LÓGICA E FILOSOFIA DA LINGUAGEM * — Gottlob F r ege
( Cont. na outra dob
r a)
A CRÍTICA E O DESENVOLVIMEN
TO DO CONHECIM ENTO
PREFACIO
Este livro constitui o quarto volume das Atas do Seminário Internacion al sobre Filosofia da Ciência de 1965 realizado no Bedford College, Regent's Park, Londres, de 11 a 17 de julho de 1965. O Seminário foi organizado conjuntamente pela British Society for the Philosophy of Science (Sociedade Britânica de Filosofia da Ciência) e pela London School of Economics and Political Science (Escola de Economia e Ciência Política de Londres), sob os auspícios da Divisão de Lógica, Metodologia e Filosofia da Ciência da União Internacional de História e Filosofia da Ciência. O Seminário e as Atas foram generosamente subsidiados pelas instituições patrocinadoras, assim como pela Leverhulme Foundation (Fundação Leverhulme) e pela Alfred P. Sloan Foundation (Fundação Alfred P. Sloan). O Comitê Organizador foi formado por W.C. Knea- le (Presidente), I. Lakatos (Secretário Honorário), J. W. N. Watkins (Segundo Secretário Honorário), S. Köber, Sir Karl Popper, H. R. Post e J. O. Wisdom. Os três primeiros volumes das Atas foram publicados pela North- Holland Publishing Company, de Amsterdã, sob os seguintes títulos: Lakatos (org.): Problems in the Philosophy of Mathematics (Problemas da Filosofia da Matemática), 1967. Lakatos (org.): The Problem of Inductive Logic (O Problema da Lógica Indutiva), 1968. Lakatos e Musgrave (orgs.): Problems in the Philosophy of Science (Problemas da Filosofia da Ciência), 1968. Todo o programa do Seminário está impresso no primeiro volume das Atas. Este quarto volume obedece à política editorial seguida nos três primeiros é mais uma reconstrução racional e uma ampliação dos debates do que propriamente um mero registro dos mesmos. Todo o volume se desenvolve a partir de um único simpósio, ocorrido no dia
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13 de julho sobre A Crítica e o Desenvolvimento do Conhecimento. De acordo com os planos srcinais, o Professor Kuhn, o Professor Feyerabend e o Dr. Lakatos deveriam ser os principais oradores mas, por motivos diferentes (veja mais adiante, à p. 33), as colaborações do Professor Feyerabend e do Dr. Lakatos só chegaram depois do Seminário. O Professor Watkins concordou, em substituílos. Professor Sir Popper assumiu a presidência acirradoPearce debate do qual Oparticiparam, entreKarl outros, o Professor Stephen Toulmin, odoProfessor a Williams, a Srt. Margaret Masterman e o Presidente. Os textos dos trabalhos, tais como aqui se imprimiram, foram concluídos em diferentes ocasiões. O artigo do Professor Kuhn está impresso essencialmente na orma em que foi lido pela primeira vez. Os trabalhos dos Professores John Watkins, Stephen Toulmin, Pearce William e de Sir Karl Popper são versões ligeiramente modificadas das colaborações srcinais. Por outro lado, a contribuição da Srt. a Masterman só foi terminada em 1966, ao passo que as do Dr. Lakatos e do Professor Feyerabend, juntamente com a réplica final do Professor Kuhn, foram concluídas em 1969. Os Organizadores — auxiliados por Peter Clark e John Worrall — desejam agradecer a todos os colaboradores sua amável cooperação. Confessam-se igualmente gratos à Srt. a Christine Jones e à Srt. a Mary McCormick elo trabalho consciencioso e cuidadoso no preparo dos manuscritos para a ublicação. OS ORGANIZADORES Londres, agosto de 1969.
NOTA SOBRE A TERCEIRA IMPRESSÃO A terceira impressão de A Crítica e o Desenvolv imento do Conhecimento só difere da primeira pela eliminação de uns poucos erros de impressão e pela introdução de correções menores, essencialmente bibliográficas e estilísticas. Desde que se publicou a primeira impressão, as idéias discutidas neste volume foram ainda mais desenvolvidas por alguns autores: Thomas Kuhn publicou uma segunda edição de sua The Struc- ture of Scientific Revolutions (A Estrutura das Revoluções Científicas) com um posfácio, que aperfeiçoa sua teoria dos paradigmas (Chicago University Press, 1970).
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Stephen Toulmin publicou o primeiro volume da sua Human Understanding (Compreensão Humana — Princeton University Press e Clarendon Press, 1972). Paul Feyerabend expôs o seu anarquismo metodológico no livro Against Method (Contra o Método) (New Left Books, 1974). Imre Lakatos desenvolveu ainda mais sua teoria dos programas de pesquisa científica em History of Science and Its Rational Recons- truction (História da Ciência e Sua Reconstrução Racional) e em suas Replies to Critics (Respostas aos Críticos), ambas publicadas na obra organizada por R. C. Buck e R. S. Cohen PSA 1970, Boston Studies in the Philosophy of Science, 8 (PSA 1970, Estudos Bostonianos de Filosofia da Ciência, 8) (Reidel Publishing House, 1971) e em seu trabalho Popper on Demarcation and Induction (Popper [fala] sobre Demarcação e Indução) na obra organizada por P. A. Schilpp: The Philosophy of Karl R. Popper (A Filosofia de Karl R. Popper), Open Court, 1974. [Elie Zahar aperfeiçoou substancialmente a metodologia de Lakatos em seu Why did Einstein’s Programme Supersede Lo- rentz’s ? (Por que o Programa de Einstein Suplantou o de Lorentz’s?), no n.° 24 do The Britsh Journal for the Philosophy of Science, pp. 95-123 e 223-62, aperfeiçoamento esse de também aplicado à reinterpretação da Revolução Coperniciana no trabalho Lakatos e Zahar: Why did Copernicu’s Programme Supersede Ptolemy's? (Por que o Programa de Copérnico Suplantou o de Ptolomeu?) e no livro organizado por R. Westman: The Copernican Achievement (A Realização Coperniciana), (Califórnia Universit y Press, 1975).] OS ORGANIZADORES Londres, janeiro de 1974.
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LÓGICA DA DESCOBERTA OU PSICOLOGIA DA PESQUISA? 1 THOMAS S. KUHN Princeton University Meu objetivo nestas páginas é justapor o ponto de vista sobre o desenvolvimento científico esboçado em meu livro, The Structure of Scientific Revolutions (A Estrutura das Revoluções Científicas ), aos pontos de vista mais conhecidos do nosso presidente, Sir Karl Popper. 2 Normalmente eu me negaria a um empreendimento dessa natureza, pois sou menos otimista que Sir Karl quanto à utilidade das confrontações. Por outro lado, admirei por tanto tempo a sua obra que, a esta altura, não me é fácil criticá-la. Apesar disso, estou persuadido de que, nesta ocasião, a tentativa há que ser feita. Antes mesmo de meu livro ser publicado há dois anos e meio, eu começara a descobrir características especiais e freqüentemente enigmáticas da relação entre minhas opiniões e as dele. Essa relação e as reações divergentes por ela provocadas dão a entender que uma comparação disciplinada entre as duas pode elucidar muita coisa. Permitam-me dizer por que isso me parece possível.
1 . Este ensaio f oi inicialmente prepar ado a convi te de P. A. Schil pp para seu volum e prestes a sair The Phil osophy of Kar l R. Poppe r (A F il osofia de Kar l R. Pop per ), que será publicad o po r The Open Court Pub lishing Co mpany, La Salle , 111., em The Library of Living Philosophers (A Biblioteca dos Filósofos Vivos). Confesso-me profundamente grato ao Professor Schilpp e aos editores pela autorização que me concederam para imprimi-lo como parte das atas deste simpósio antes de aparecer no volume para o qual foi primeiro solicitado. 2. Para p reparar este tr abalho, reli de Si r Karl Popper L og ic of Scie ntif ic Di sco very, Conj ectur es and Re fu tations e The Po verty of H islori cis m. Também fiz referências ocasionais à sua L ogik de r F ors chung e a Th e Open Society and it s Enemi es. Minha The Struct ure o Scie ntif ic Re vo luti ons proporciona um relato mais extenso de muitas questões adiante discutidas.
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Em quase todas as ocasiões em que nos voltamos explicitamente para os 3 mesmos problemas, nossas opiniões sobre ciência são quase idênticas. Interessa-nos muito mais o processo dinâmico por meio do qual se adquire o conhecimento científico do que a estrutura lógica dos produtos da pesquisa científica. Em face de sse interesse, ambos enfatizamos, como dados legítimos, os fatos e o espírito da vida científica real, e ambos nos voltamos com freqüência para a história no intuito de encontrá -los. Desse conjunto de dados partilhados, chegamos a muitas mesmas conclusões. Ambos rejeitamos o parecer de que a ciência progride pordas acumulação; em lugar disso, enfatizamos o processo revolucionário pelo qual uma teoria mais antiga é rejeita- da e 4 substituída por uma nova teoria, incompatível com a anterior; e ambos sublinhamos enfaticamente o papel desempenhado nesse pro- cesso pelo fracasso ocasional da teoria mais antiga ao enfrentar desafios lançados pela lógica, experimentação ou observação. Finalmente, Sir Karl e eu estamos unidos na oposição a algumas das teses mais características do positivismo clássico. Ambos enfatizamos, por exemplo, o embricamento íntimo e inevitável da observação com a teoria científica; conseqüentemente, somos céticos quanto aos esforços para produzir qualquer linguagem observacional neutra; e ambos insistimos em que os cientistas podem, com toda propriedade, procurar inventar teorias que expliquem os fenômenos observados, e que façam isso em termos de objetos reais, seja qual for o significado da última expressão. Conquanto não esgote as questões a cujo respeito Sir Karl e eu concordamos, 5 essa lista já é suficientemente extensa para nos colocar
3. Uma simples coin cidência não pode Conquanto eu não tivesse lido nenhuma obra de
ser respons ável por essa ex tensa superp osição. Si r Karl antes do aparecimento, em 1959, da sua
Logik der Forschung
(ocasião em que meu livro estava no rascunho), ouvi discutido repetidamente certo número de suas idéias principais. Ouvi-o, sobretudo, discutir algumas delas como "Conferencista William James'’ em Harvard na primavera de 1950. Tais circunstâncias não me permitem especificar uma dívida intelectual para com Si r Karl, mas deve haver uma.
4. Utilizei alhures o termo “paradigma” em lugar de “teoria” para deno tar o que é rejeitado e substituído durante as revoluções científicas. Algumas razões para a mudança do termo surgir ão mais adiante. 5. O realce dado a uma área adicional de concordância a cujo resp eito tem h avido muitos mal-entendidos pode pôr ainda mais em foco o que, no meu entender, constitui as verdadeiras diferenças entre os pontos de vista de Si r Karl e os meus. Ambos insistim os em que a fidelidade a uma tradição desempenha papel essencial no desenvolvimento científico. Ele escreveu, por exemplo, "Quanti tativa e qualitativamente a fonte mais importante d
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o nosso
no mesmo grupo minoritário entre os filósofos da ciência contemporânea. Presumo que seja por isso que os seguidores de Sir Karl têm sido, com alguma regularidade, meu público filosófico mais compreensivo, ao qual continuo a sentir-me grato. Minha gratidão, contudo, não é sem reservas. A mesma concordância, que provoca a simpatia desse grupo, não raro lhe dirige mal o Sir Karl são capazes de ler grande interesse. Ao que tudo indica, os adeptos de parte do meu li vro como capítulos de uma revisão tardia (e, para alguns, drástica) de sua obra clássica The Logic of Scientific Discovery (A Lógica da Descoberta Científica). pergunta a visão da matéria ciência esboçada na minha Scientific RevolutionsUm nãodeles constituiu por se muito tempo de conhecimento comum. Um segundo, mais caritati- vo, limita minha srcinalidade à demonstração de que as descobertas de fato têm um ciclo vital muito semelhante ao das inovações-dateoria. Outros, ainda, declaravam-se satisfeitos de uma maneira geral com a leitura do livro, mas discutem apenas as duas questões, comparativamente Sir Karl é mais explícita: a secundárias, a cujo respeito minha discordância com ênfase que dou à importância de um compromisso profundo com a tradição e meu descontentamento com as implicações do termo “falseamento”. Resumindo, todos esses homens leram meu livro com óculos muito especiais e há outra maneira de lê-lo. A visão que se tem através desses óculos não está errada — minha Sir concordância com Karl é real e substancial. Entretanto, os leitores fora do círculo properiano quase invariavelmente deixam de notar até que a concordância existe, e são eles que com mais freqüência reconhecem (nem sempre com simpatia) as questões que me parecem mais importantes. Chego à conclusão de que uma mudança de gestalt divide os leitores do meu livro em dois ou mais grupos. O que um deles vê como notável paralelismo é virtualmente invisível para outros. O desejo de compreender tudo isso é o que motiva a presente comparação da minha visão com a de Sir Karl. A comparação, todavia, não deve limitar-se a uma justaposição ponto por ponto. O que exige atenção é menos a área periférica em que se devem isolar nossas divergências secundárias ocasionais, do que a região central em que parecemos concordar. Sir Karl e eu apelamos para os mesmos dados; vemos, numa extensão incomum, as mesmas linhas no mesmo papel; indagados sobre essas linhas e esses
— tirando o conhecimento inato — é a tradição” (Popper, Conjectures and Ref u ta íion s, p. 27). De maneira ainda mais pertinente, já em 1948, escrevia: “Não me parece que conhecimento
poderemos , algum dia, libertar -nos de todos os laços da trad içã o, A chamada libertação, na (Conjectur es and Relutati ons , 1953, real idade, é apenas a mudança de uma tradição para outra” p. 122).
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dados, damos, não raro, respostas virtualmente idênticas ou, pelo menos, respostas que inevitavelmente parecem idênticas na limitação imposta pelo processo de pergunta e resposta. Não obstante, experiên cias como as que já mencionei convencem-me de que nossas intenções são muitas vezes totalmente diversas quando dizemos as mesmas coisas. Se bem as linhas sejam análogas, as figuras que delas emergem não o são. Por isso chamo ao que nos separa mudança de gestalt e não discordância e por isso me sinto, ao mesmo tempo, perplexo e intrigado sobre a melhor maneira de examinar a separação. Como poderei persuadir Sir Karl, que sabe tudo o que sei acerca do desenvolvimento científico e que já o disse num ou noutro lugar, de que o que ele chama de pato pode ser visto como um coelho? Como poderei ensiná-lo a usar meus óculos quando ele já aprendeu a olhar através dos seus para tudo o que posso apontar? Nesta situação, impõe-se uma mudança de estratégia, e a seguin te se sugere. Relendo mais uma vez alguns dos principais livros e ensaios de Sir Karl, torno a encontrar uma série de expressões que se repetem e que, embora eu as compreenda e não as desaprove de todo, são expressões que nunca teria usado nos mesmos lugares. Sem dúvida, trata- se na maior parte das vezes, de metáforas retoricamente aplicadas a situações das quais Sir Karl forneceu alhures descrições inatacáveis. Contudo, parainadequadas os propósitos correntes, metáforas que se me afiguram manifestamente — podemtais revelar-se mais úteis — do que descrições diretas. Isto é, podem sintomatizar diferenças contextuais que uma expressão literal cuidadosa esconde. A ser assim, tais expressões funcionam, não como linhas-sobre-o-papel, mas como a orelha-de-coelho, o xale ou a fita-na-garganta que se isola quando se está ensinando um amigo a transformar seu modo de ver um diagrama de gestalt. Essa, ao menos, é minha esperança no que a elas se refere. Tenho em mente quatro diferenças de expressões e delas tratarei seriatim. I Uma das questões fundamentais a cujo respeito
Sir Karl e eu concordamos
é a insistência em que uma análise do desenvolvimento do conhecimento científico deve levar em consideração a maneira pela qual a ciência é realmente praticada. Assim sendo, algumas das suas repetidas generalizações me surpreendem. Uma delas aparece no início do primeiro capítulo de A Lógica da Descoberta Científica: “Um cientista”, diz Sir Karl, “seja teórico, seja experimentador, apresenta enunciados, ou sistemas de enunciados, e os testa pouco a pouco. No campo das ciências empíricas, mais particularmente, ele constrói hi
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póteses, ou sistemas de teorias, e os põe à prova à luz da experiência, pela observação e pela experimentação”.'' O enunciado é virtualmente um clichê e, no entanto, apresenta três problemas em sua aplicação. É ambíguo porque não especifica qual das duas espé cies de “enunciados" ou “teorias” está sendo testada. Não há dúvida de que essa ambigüidade pode ser eliminada por referência a Sir Karl, mas a generalização que dela resulta e outras passagens dos escritos de historicamente equivocada. De mais a mais, o equívoco revela-se importante, pois a forma não ambígua da descrição omite exatamente a característica da prática científica certo modo, distingue as de outras criativas. Há que, uma de espécie de “enunciado” ouciências “hipótese” que osatividades cie ntistas submetem repetidamente ao teste sistemático. Tenho em mente os enunciados das conjeturas de um indivíduo acerca da maneira apropriada de ligar seu problema de pesquisa ao corpo do conhecimento científico aceito. Ele pode conjeturar, por exemplo, que determinada incógnita química contém o sal de uma terra rara, que a obesidade dos seus ratos experimentais se deve a um componente específico da dieta deles, ou que um modelo espectral recém-descoberto deve ser compreendido como um efeito do spin nuclear. Em cada caso, os passos seguintes de sua pesquisa se destinarão a testar a conjetura ou hipótese. Se esta passar por uma quantidade suficiente ou suficientemente persuasiva de testes, o cientista fez uma descoberta ou, pelo menos, resolveu- o enigma em cuja solução estava empenhado. Caso contrário, terá de abandonar inteiramente o enigma ou tentar resolvêlo com o auxílio de outra hipótese qualquer. Embora nem todos, muitos problemas de pesquisa assumem essa forma. Os testes desse tipo representam um componente comum do que denominei “ciência normal” ou “pesquisa normal”, responsável pela imensa maioria do trabalho realizado em ciência básica. Esses testes, porém não são dirigidos, em nenhum sentido usual, para a teoria corrente. Ao contrário, quando está às voltas, com um problema de pesquisa normal, o cientista deve postular a teoria corrente como a regra do seu jogo. Seu objetivo e resolver uma charada, de preferência uma charada em quê outros falharam, e a teoria corrente é indispensável para defini-la e para assegurar que, em havendo 7
talento suficiente, a charada poderá ser resolvida. a um tal empreendi
É evidente que quem se propõe
6. Popper, Lo gic of Sc ientifi c Di sc over y, 1959, p. 27. 7. Sobre uma extensa discussão da ciência normal, a atividade para cujo exercício os profissionais são treinados, veja minha The Struclure of Scientific Revolutions, pp. 23-24 e 135-42. É Sir Karl o importante notar que, quando descrevo o cientista como um solucionador de enigmas e descreve como um
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mento precisa testar com freqüência a solução conjetural do enigma que seu engenho lhe sugere, Mas só é testada a sua conjetura pessoal. Se ela não passar pelo teste, só se impugna a capacidade do cientista e não o corpo da ciência corrente. Em suma, conquanto ocorram com freqüência na ciência normal, esses testes são de um gênero peculiar pois na análise final, é o cientista e não a teoria vigente que se põe à prova. Não é essa, todavia, a espécie de teste que Sir Karl tem em men- te. Interessam-no, acima de tudo, os processos por cujo intermédio a ciência se desenvolve, e elepor estáac umulação convencido mas de que “desenvolvimento” não ocorreda teoria principalmente pelao derrubada revolucionária 8 aceita e pela substituição por uma teoria melhor. (Considerar que “crescimento” inclui “derrubada repe - tida” é uma singularidade lingüística cuja raison d'être poderá tornar-se visível à medida que prosseguirm os.) Segundo este ponto de vista, os testes enfatizados por Sir Karl são os que se realizam para explorar as limitações da teoria aceita ou para submeter a teoria vigente a uma tensão máxima. Entre seus exemplos favoritos, todos .de resultados surpreendentes e destrutivos, estão as experiências de Lavoi- sier sobre oxidação, a expedição de 1919 para estudar o eclipse e as recentes experiências sobre a conservação da paridade. 9 Trata-se, naturalmente, de testes clássicos mas, ao utilizá-los para caracterizar a atividade científica, Sir Karl passa por alto um pormenor importantíssimo a respeito deles. Tais episódios são muito raros no desenvolvimento da ciência. Sobrevem, quase sempre, provocados pôr uma crise anterior no campo pertinente (as experiências de Lavoisier oú as de Lee e Yang 1 ") ou pela existência de uma teoria que compete
solucionador de problemas (por exemplo em seu Conjectures and Refutations, pp. 67, 222), a similaridade de nossos termos disfarça uma divergência fundamental. Escreve Si r Karl (os grifos são meus), “Não há dúvida de que nossas expectativas e, portanto, nossas teorias, pode m até preceder, his toricamente, nossos problemas. En tr etan to a ciênc ia só com eça com pr ob le ma s. Os problemas afloram sobretudo quando estamos decepcionados em nossas expectativa s, ou quando nossas teorias nos envolvem em dificuldades, em contradições.” Emprego o termo "enigma” no intuito de enfatizar que as dificuldades que de ordinário são enfrentadas até pelos melhores cientistas são, como enigmas de palavras cruzadas ou charadas de xadrez, desafios apenas ao seu engenho. É ele quem está em dificuldade, não a teoria vigente. Meu ponto de vista é quase oposto ao de Si r Karl.
8. Cf. Popper, Conjectures and Refutations, pp. 129, 215 e 221, sobre enunciados particularmente vigorosos dessa posição. 9. Por exemplo, Popper, Conjectures and Refutations, p. 220. 10. Sobre a obra acerca da oxidação, veja Guerlac, Lavois ie r — The Crucial Year, 1966. à paridade veja-se Hafner e Presswood. Sobre os antecedentes das experiências relativas “Strong Interjerence and Weak Interactions"
10
, 1965.
com os cânones existentes da pesquisa (relatividade geral de Eins- tein). Estes são, todavia, aspectos do que em outro lugar chamei de “pesquisa extraordinária” ou ocasiões para ela, atividade em que os cientistas exibem muitas das características enfatizadas por Sir Karl, mas que, pelo menos no passado, só surgiram com intermitências e em circunstâncias muito especiais em qualquer especialidade científica." A meu ver, portanto, Sir Karl caracterizou toda a atividade científica em termos que só se aplicam a suas partes revolucionárias ocasionais. Sua ênfase é natural e comum; os feitos de um Copérnico ou de um Einstein constituem leitura mais aprazível que os de um Brahe ou de um Lorentz; Sir Karl não seria o primeiro se tomasse o que chamo de ciência normal por uma atividade intrinsecamente desinteressante. Apesar isso, nem a ciência nem o desenvolvimento do conhecimento têm probabilidades de ser compreendidos se a pesquisa foi vista apenas atra vés das revoluções que produz de vez em quando. Por exemplo, embora os compromissos básicos só sejam testados na ciência extraordinária, é a ciência normal que revela, ao mesmo tempo, os pontos que devem ser testados e a maneira de testá- los. Ou ainda, é para a prática normal, e não para a prática extraordinária da ciência, que se treinam profissionais; se eles, entretanto, forem muitíssimo bem-sucedidos nas substituições das teorias de que depende a prática normal, esta singularidade terá de ser explicada. Finalmente, e à atividade tal é por enquanto o meu ponto principal, um olhar cuidadoso dirigido científica dá a entender que é a ciência ’ normal, onde não ocorre os tipos de testes de Sir Karl, e não a ciência extraordinária que quase sempre distingue a ciência de outras atividades. A existir um critério de demarcação (entendo que não devemos procurar um critério nítido nem decisivo), só pode estar na parte da ciência que Sir Karl ignora. Num de seus ensaios mais sugestivos, Sir Karl remonta a origem “ da tradição da discussão crítica [que] representa o ú nico modo praticável de expandir nosso conhecimento” até os filósofos gregos entre Tales e Platão, homens que, no seu entender, fomentaram a discussão crítica não só entre as escolas mas também dentro delas. 12 A descrição do discurso pré-socrático é muito bem feita, mas o que
se descreve em nada se parece com ciência. É antes a tradição de
11.
O argumento é desenvolvido de maneira circunsta nciada em minha The S tru cture of
Scienti fi c Re voluti ons , 1962, pp. 52-97.
12. Popper, Conj ectur es and Re ju tations. capítulo 5, especialmente pp. 148-52.
razões, contra-razões e debates sobre questões fundamentais que, exceto talvez durante a Idade Média, caracterizassem a filosofia e boa parte da ciência social desde então. Já por volta do período helenís- tico a matemática, a astronomia, a estática e as partes geométricas da ótica haviam abandonado esse tipo de discurso em favor da solução de enigmas. Outras ciências, em quantidades cada vez maiores, sofreram depois disso a mesma transição. Em certo sentido, para virar do avesso o ponto de vista de Sir Karl, -é precisamente o abandono do discurso crítico que assinala a transição para uma ciência. Depois que um campo opera essa transição, o discurso crítico só se 13 repete em momentos de crise, quando estão em jogo as bases desse campo. Apenas quando precisam escolher entre teorias concorrentes os cientistas se comportam como filósofos. É por isso provavelmente que ã brilhante descrição de Sir Karl das razões da escolha entre sistemas metafísicos se parece tanto com minha descrição das razões da escolha entre teorias científicas. 14 Em nenhuma das escolhas, como logo tentarei demonstrar, o sistema dos testes desempenha papel decisivo. Há, contudo, uma boa razão para que o teste pareça desempenhar esse papel e, ao estudá-lo, o pato de Sir Karl pode, afinal, conver- ter-se no meu coelho. Não existirá nenhuma atividade de solução de enigmas se os seus praticantes não partilharem de critérios que, para aquele grupo e aquele momento, determinam o instante em que cert o enigma é solucionado. Os mesmos critérios determinam necessariamente o fracasso na obtenção de uma solução, e quem quer que escolha, pode ver esse fracasso como o fracasso de uma teoria em passar por um teste. Normalmente, porém, como já tenho dito, não se vê dessa maneira. Só se censura o praticante, não se lhe censuram os instrumentos. Mas em condições especiais, que provocam uma crise na profissão (como, por exemplo, um grande malogro, ou o malogro repetido dos profissionais mais brilhantes) a opinião do grupo pode mudar. Um fracasso visto antes como pessoal parece então o fracasso da teoria que está sendo testada. Dali por diante, por ter nascido de um enigma e ter critérios determinados de solução, o teste se revela, ao mesmo tempo, mais severo e mais difícil de eludir do que os que se encontram dentro de uma tradição ,cujo processo normal é muito mais o discurso crítico do que a solução de enigmas.
13. Conquanto eu não estivesse então procurando um critério de demarcação, são exatamente esses os pontos desenvolvidos em minha The Structure oj Scientific Revolutions, pp. 10-22 e 87-90. 14. Cf. Popper, Conjectures and Rejutations, pp. 192-200, com minha The Structure of
Scientijic Revolutions,
12
pp. 143-58.
Num sentido, portanto, a severidade dos critérios -de-teste é tão- -só um lado da moeda cujo verso é a tradição de solução-de-enigmas. Daí que a linha de demarcação de Sir Karl e a minha coincidam com tanta freqüência. A coincidência, contudo, está apenas no resultado delas; o processo de aplicá-las, muito diferente, isola aspectos distintos da atividade a cujo respeito deverá ser tomada a decisão — ciência ou não-ciência. Examinando, por exemplo, os casos mais debatidos, a psicanálise ou a historiografia marxista, para os quais, no dizer 15 de Sir Karl, seu critério foi inicialmente destinado, concordo em que eles não podem ser apropriadamente qualificados de “ciência”. Mas chego a essa conclusão por um caminho muito mais seguro e direto do que o dele. Um breve exemplo talvez mostre que, dos dois critérios, o dos testes e o da solução de enigmas, este último é o menos equívoco e o mais fundamental. A fim de evitar controvérsias contemporâneas sem importância, prefiro focalizar a astrologia a focalizar, digamos, a psicanálise. A astrologia é o Sir Karl de uma “pseudociência”. 16 Diz exemplo mais freqüentemente citado por ele: “Fazendo suas interpretações e profecias suficientemente vagas, eles [os astrólogos] conseguiram explicar de modo plausível tudo o que poderia ter sido uma refutação da teoria se a teoria e as profecias tivessem sido mais precisas. No 17 intuito de escapar ao falseamento eles destruíram a testabilidade da teoria”. Tais generalizações captam algo do espírito da atividade astrológica. Tomadas, no entanto, literalmente, como o terão de ser para fornecer um critério de demarcação, são insustentáveis. A história da astrologia durante os séculos em que foi intelectualmente respeitável registra inúmeros vaticínios que falharam de forma categórica. l, s Nem mesmo os expoentes mais convencidos e veementes da astrologia duvidavam da repetição desses malogros. A astrologia não pode ser excluída das ciências pela forma com que eram feitos seus prognósticos. Tampouco pode ser excluída em virtude do modo com que seus praticantes explicavam o malogro. Assinalavam os astrólogos, por exemplo, que, quanto à diferença das predições gerais acerca das pro-
15. Popper, Conjectures and Rejutations,
p. 34.
16. O índice do livro de Popper Conjectures and Rejutations é "a astrologia como pseudociência típica". 17. Popper, Conjectures and Rejutations, p. 37.
tem seis verbetes cujo título
18. Sobre exemplos, veja Thorndike, A Hi story of Ma gic and Ex perimental Sci en ce, 5, pp. 225 e seguintes; 6, pp. 71, 101, 114. 13
pensões de um indivíduo ou de uma calamidade natural, o prenúncio do futuro de um indivíduo era uma tarefa imensamente complexa, que exigia a máxima habilidade e extrema sensibilidade aos menores erros em dados importantes. A configuração das estrelas e dos oito planetas mudava constantemente; as tabelas _ astronômicas utilizadas para computar a configuração po ocasião do nascimento de um indivíduo não primavam pela perfeição; poucos homens conheciam o 1( 1 instante do seu nascimento com a indispensável precisão. Não era de se admirar, portanto, que as previsões falhassem com freqüência. Só depois que a própria astrologia se tornou implausível começaram esses argumen tos a dar 20 impressão de que consideravam certo precisamente o que estava em questão. Hoje se empregam amiúde argumentos semelhantes para explicar, por exemplo, malogros na medicina ou na meteorologia. Em ocasiões de dificuldades eles também são apresentados pelas ciências exatas, em campos como a física, a química e a astronomia. 21 Não havia nada de não-científico na explicação do fracasso dada pelo astrólogo. Não obstante, a astrologia não era uma ciência. Ao invés disso, era um ofício, uma das artes práticas, que apresentava íntimas semelhanças com a engenharia, a meteorologia e a medicina, pela maneira com que se exercitavam há pouco mais de um século. Os paralelos com uma medicina mais antiga e com a psicanálise contemporânea são, a meu ver, particularmente rigorosos. Em cada um desses campos a teoria partilhada só era adequada para estabelecer a plausibilidade da disciplina e fornecer uma base -racional às várias regras-deofício que governavam a prática. Tais regras tinham demonstrado sua utilidade no passado, mas nenhum profissional as supunha suficientes para impedir a repetição do fracasso. Faziam-se mister uma teoria mais inteligível e regras mais poderosas, mas teria sido absurdo aban donar uma disciplina plausível e muito necessária, com uma tradição de êxito limitado, só porque ainda não se haviam alcançado tais desi- deratos. Na ausência deles, no entanto, nem o astrólogo nem o médico poderiam fazer pesquisas. Conquanto tivessem regras para aplicar,
19. 4,
Sobre reiteradas explicações de malogro, veja, ibid., I, pp. 11 e 514; 368; 5, 279.
20. Um apanhado i nteligente de al gumas das razõ es por qu e a astrologi a perdeu sua plausibilidade está inc luíd o no ensaio de Stahlman, “Astrology in Colonial America: An Extended Query”, (á no estudo de Thorndike, “The True Place of Astrology in the History of Science", o leitor encontrará uma explicação do fascínio exercido anteriorm ente pela astrologia. 21.
14
Cf. minha The Struclure of Scientific Revolutions,
pp. 66-76.
não tinham enigmas para resolver e, portanto, não ti nham ciência para praticar. 22 Comparem-se as situações do astrônomo e do astrólogo. Se a pre- dição de um astrônomo falhasse e seus cálculos conferissem, ele poderia esperar corrigir a situação. Os dados podiam estar errados: velhas observações podiam ser reexaminadas e novas mensurações feitas, tarefas que criavam uma quantidade de quebra-cabeças de cálculo e instrumentação. Ou talvez a teoria necessitasse de ajustamento, quer pela manipulação de epiciclos, excêntricos, equantes, etc., quer por reformas mais fundamentais de técnica astronômica. Por mais de u m milênio tais foram os enigmas teóricos e matemáticos em torno dos quais, juntamente com suas contrapartidas instrumentais, se constituiu a tradição da pesquisa astronômica. O astrólogo, em compensação, não tinha esses quebra-cabeças. A ocorrência de fracassos poderia ser explicadã, mas os fracassos particulares não deram srcem a enigmas da pesquisa, pois nenhum homem, por mais habilitado que fosse, poderia utilizá-las na tentativa construtiva de revisar a dificuldade, em sua maioria fora do conhecimento, do controle ou da responsabilidade do astrólogo. Os fracassos individuais eram correspondentemente não-informativos, e não se refletiam na competência do prognosticador aos olhos de seus colegas profissionais. 23 .
22 . Essa formulação dá a entender que o cr itério de demarcação de Sir Karl pode ser salvo enunciando-o de uma forma ligeiramente diferente, inteiramente de acordo com sua intenção aparente. Para que um campo seja uma ciência suas conclusões precisam ser logicamente deriváveis de premissas partilhadas. Sob esse aspecto há que excluir a astrologia, não porque suas previsões não sejam testáveis, mas porque só as previsões mais gerais e menos tes táveis podiam ser po de derivadas da teoria aceita. Visto que qualquer campo capaz de satisfazer a essa condição suportar uma tradição de soluciona- mento de enigmas, a sugestão é claramente proveitosa. Está bem próxima de fornecer uma condição suficiente para que um campo seja uma ciência. Mas nesta forma, pelo menos, não é sequer uma condição suficiente e por certo não é uma condição necessária. Ela admitiria, por exemplo, a agrimensura e a navegação como ciências e excluiria a taxonomia, a geologia histórica e a teoria da evolução. As conclusões de uma ciência podem ser precisas e cogente s ao mesmo te mpo, sem ser plename nte deriváveis, pela lógica, de premissas aceitas. Cf. minha The Slructure of Scientific Revolutions, pp. 35-51, e também a discussão na Seção III, mais adiante.
23 . Isto não quer dizer que os astrólogos não se criticavam uns aos outros. Ao contrário, como praticantes de filosofia e de algumas ciências so ciais, pertenciam a uma variedade de escolas diferentes, e a luta entre as escolas, às vezes, era acirrada. Mas esses debates, de ordinário , giravam em torno da Im pla us ib ilidade da teoria adotada por uma ou por outra escola. Òs rríalogros de pred ições ind ividuais desempe nhavam um papel muito pequeno. Co mpare-se A Hi sl or y of Magic and Experimental Science de Thorndike, 5, p. 233.
15
Embora a astronomia e a astrologia fossem quase sempre praticadas pelas mesmas pessoas, incluindo Ptolomeu, Kleper e Tycho Brahe, nunca existiu um equivalente astrológico da tradição astronômica de solução de charadas. E sem charadas, que pudessem primeiro desafiar e depois atestar o engenho do profissional, a astrologia não poderia ter-se tornado ciência, ainda que as estrelas controlassem, de fato, o destino humano. Em suma, conquanto os astrólogos fizessem predições que poderiam ser testadas e reconhecessem que essas predições às vezes falhavam, não podiam empenhar-se, e não se empenhavam, nos tipos de atividades que normalmente caracterizam todas as ciências reconhecidas. Sir Karl está certo ao excluir a astrologia do rol das ciências, mas sua superconcentração nas revoluções ocasionais da ciência o impede de ver a razão mais segura para fazê-l o. Esse fato, por seu turno, pode explicar outra singularidade da historiografia de Sir Karl. Embora sublinhe repetidamente o papel dos testes na substituição de teorias científicas, vê-se também obrigado a reconhecer que muitas teorias, como por exemplo a de Ptolomeu, foram substituídas antes de terem sido realmente testadas. 24 Em algumas ocasiões, pelo menos, os testes não são imprescindíveis às revoluções através das quais progride a ciência. Mas isso não é verdade em relação aos enigmas. Se bem que as teorias citadas por Sir Karl não tenham sido postas à prova antes da sua substituição, nenhuma delas foi substituída antes de haver deixado de sustentar convenientemente uma tradição de solução-de-enigmas. O estado da astronomia era um escândalo no início do século XVI. Não obstante, a maioria dos astrônomos acreditava que os ajustamentos normais de um modelo basicamente ptolemaico corrigiriam a situação. Nesse sentido a teoria não falhou ao ser testada. Mas alguns astrônomos, entre os quais Copérnico, entendiam que as dificuldades deviam estar no próprio enfoque ptolemaico e não nas versões particulares da teoria ptolemaica até então desenvolvidas, e os resultados dessa convicção já foram registrados. A situação é típica. 25 Com ou sem testes, uma tradição de soluçãode-enigmas pode preparar o caminho para a própria substituição. Confiar no teste como marca de uma ciência é passar por alto o que os cientistas mais fazem e, com isso, o traço mais característico da sua atividade.
24. Cf. Conjectur es and Re fu tations, de Popper, p. 246. 25. Cf. minha The S tr uctur e of Sc ientif ic Rev olut ions, pp. 77-87.
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II
Com o pano de fundo fornecido pelos reparos precedentes podemos descobrir logo a ocasião e as conseqüências de outra expressão favorita de Sir Karl. O prefácio escrito para Conjectures and Refuta- tions (Conjecturas e Refutações) inicia- se com esta sentença: “Os ensaios e conferências de que se compõe este livro são variações sobre um tema muito si mples — a tese segundo a qual podemos aprender com nossos erros.” O grifo é de 2,Sir Karl; a mesma tese 1 repete-se em seus escritos desde uma data bem anterior; tomada isoladamente, ela obriga inevitavelmente ao assentimento. Todos podemos aprender, e aprendemos, com nossos erros; o processo de isolá-los e corrigi-los é uma técnica essencial no ensino das crianças. A retórica de Sir Karl tem raízes na experiência cotidiana. Apesar disso, nos contextos para os quais ele invoca esse imperativo familiar, suas aplicações parecem decididamente torcidas, pois não estou certo de que tenha sido cometido um erro, pelo menos um erro, com o qual se possa aprender. Não há necessidade de confrontar os problemas filosóficos mais profundos apresentados pelos erros para ver o que está agora em debate. É um erro somar três mais três e obter cinco, ou conclui r de ‘ Todos os homens são mortais” que “Todos os mortais são homens”. Por motivos diferentes, é um erro dizer “Ele é minha irmã” ou afirmar a presença de um campo elétrico forte quando as cargas experimentais não a indicam. Presume-se que haja ainda outras espécies de erros mas todos os erros normais tendem a possuir a s seguintes características. Um erro é feito, ou cometido, num tempo e num lugar especificáveis, por determinado indivíduo. Esse indivíduo deixou de obedecer a alguma regra estabelecida de lógica, de linguagem, ou das relações entre uma delas e a experiência. Ou deixou de reconhecer as conseqüências de determinada escolha entre as alternativas que as regras lhe facultam. O indivíduo só pode aprender com o seu erro porque o grupo cuja prática incorpora essas regras pode limitar o fracasso individual na aplicação delas. Em suma, as espécies de erros
26. A citação é do livro Conj ectur es and Re ju tations, de Popper, p. vii, num prefácio datado de 1962. Anteriorm ente, Si r Karl equiparara “aprender com nossos erros a "aprender por ensaio-e- erro” ( Conj ectur es and Rejutati ons, p. 216), e a formu lação de ensaio -e-erro data, pelo menos, de 1937 ( Conjectur es and Rejutati ons , p. 312) e é, em espírito, mais velho do que isso. Muita coisa dita mais adiante s obre a noção de “equívoco” de Si r Karl aplica-se igualmente ao seu conceito de “erro”.
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a que se aplica o imperativo de Sir Karl de modo mais óbvio estão numa falha de compreensão ou deconhecimento do indivíduo dentro de uma atividade governada por regras preestabelecidas. Nas ciên- cias, tais erros ocorrem com maior freqüência, e talvez de forma exclusiva, na prática da pesquisa normal dê solução-de-enigmas. Não é aí, todavia, que Sir Karl os procura, pois o seu conceito de ciência obscurece até a existência da pesquisa normal. Ele os procura nos episódios extraordinários ou revolucionários do desenvolvimento científico. Os erros. para os quais aponta geralmente não são atos, senão teorias científicas do passado: a astronomia ptólémai- ca, a teoria do flogisto ou a dinâmica newtoniana, e “aprender jcom nossos erros” é o que acontece, correspondentemente, quando 27 uma comunidade científica rejeita uma dessas teorias e a substitui por outra. Se isto não parece de imediato uma utilização estranha, a razão principal é porque apela para o resíduo indutivista que existe em todos nós. Acreditando que as teorias válidas são o produto de induções corretas a partir dos fatos, ,o indutivista também sustenta que uma teoria falsa resulta de um erro de indução. Em princípio, pelo menos, ele está preparado para responder a perguntas: que erro se perpetrou, que regra foi violada, quando e por quem, para se chegar, digamos, ao sistema ptolemaico? Ao homem para o qual essas perguntas são sensatas, e só a ele, a expressão de Sir Karl não apresenta problemas. Mas nem Sir Karl nem eu somos indutivistas. Não acreditamos que existem regras para induzir teorias corretas a partir dos fatos, nem mesmo que as teorias, corretas ou incorretas, são induzidas. Ao invés disso, nós as encaramos como suposições imaginativas, que se
27. Conjectures and Refutations, de Popper, pp. 215 e 220. Nessas páginas Si r Karl esboça e ilustra sua tese de que a ciência se desenvolve através de revoluções. Ao fazê-lo, nunca justapõe o termo “erro” ao nome de uma teoria científica superada, presumivelme nte porque o seu sólido instinto histórico não lhe permite incorrer num anacronismo tão grosseiro. Não obstante, o anacronismo é fundamental para a retórica de Si r Karl, que reiteradamente fornece pistas conducentes a diferenças mais sub stanciais entre nós. A menos que as teorias superadas sejam erros, não há maneira de reconciliar, digamos, o parágrafo inicial do prefácio de Si r Karl para o livro Conjectures and Refutations, p. vii, "aprender com nossos erros”, “nossas tentativas freqüente mente equivocadas de resolver nossos problem as”, “testes que podem ajudar nos na descoberta de nossos erros”, com a opini ão ( Conjectures and Refutations, p. 215) de que “o crescimento do conhecimento científico... [consiste na] repetida derrubada de teorias científicas e sua substituição por teorias melhores e mais satisfatórias”.
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inventam em um só bloco para serem aplicadas à natureza. E se bem assinalemos que essas suposições podem encontrar, e geralmente acabam encontrando enigmas que não lhes é dado resolver, também reconhecemos que tais confrontações incômodas raro ocorrem durante algum tempo depois de inventada e aceita a teoria. Em nossa opinião, portanto, não se perpetrou nenhum erro para Sir Karl tem em chegar ao sistema ptò- lemaico, e acho difícil compreender o que mente quando chama de erro esse sistema, ou qualquer outra teoria superada. Poder-se-á querer dizer no máximo que uma teoria que não era um erro passou a sê-lo ou que um cientista errou ao aferrar-se a uma teoria por um tempo demasiado longo. E nem mesmo tais expressões, a primeira das quais pelo menos é extremamente inábil, nos devolve o sentido de erro com o qual estamos mais familiarizados. Esses erros são os erros normais que um astrônomo ptolemaico (ou coperniciano) faz dentro do seu sistema, talvez observando, calculando ou analisando dados. Isto é, pertencem ao tipo de erros que se podem isolar e logo depois corrigir, deixando intacto o sistema srcinal. No sentido de Sir Karl, por outro lado, um erro contamina todo um sistèma e só pode ser corrigido substituindo-se todo o sistema. Não há expressões nem similaridades capazes de disfarçar essas diferenças fundamentais, nem se pode esconder o fato de que, antes de instalar-seconhecimento a contaminação, o sistema tinha a plena integridade do que ora denominamos sólido. Sir Karl possa ser recuperado, É muito possível que o sentido de “erro” de mas uma operação bem-sucedida de recuperação terá de privá-lo de certas implicações ainda correntes. Como o termo “teste”, o termo “erro” foi tomado da ciência normal, onde o seu uso é razoavelmente claro, e aplicado a episódios revolucionários, onde sua apli- çação, na melhor das hipóteses, é problemática. Essa transferência cria, ou pelo menos reforça, a impressão predominante de que teorias inteiras podem ser julgadas pela mesma espécie de critérios que se empregam para julgar as aplicações de pesquisa individual de uma teoria. A descoberta de critérios aplicáveis torna-se, então, um deái- derato fundamental para É estranho que Sir Karl se entre da eles, pois aMas pesquisa opõe muitos. à mais srcinal e frutuosa investida de encontre sua filosofia ciência. não se posso compreender de outra maneira seus escritos metodológicos desde a Logik der Forschung. Parece-me que ele, a despeito de repúdios explícitos, procurou sistematicamente processos de avaliação que se podem aplicar a teorias com a segurança apodítica característica das técnicas pelas quais se identificam os erros na aritmética, lógica ou mensuração. Receio que ele esteja perseguindo um fogofátuo nascido da mesma conjunção de
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ciência normal e ciência extraordinária que fez que os testes parecessem um traço tão fundamental das ciências. III
Em sua Logik der Forschung, Sir Karl sublinhou a assimetria entre uma generalização e sua negação na relação delas com a evidência empírica. Não se pode mostrar que uma teoria científica se aplica de maneira bem-sucedida a todos os casos possíveis, mas pode mos- trar-se que ela foi malsucedida em determinadas aplicações. A ênfase emprestada a esse truísmo lógico e às suas implicações afigura-se um passo à frente do qual não há que voltar atrás. A mesma assimetria desempenha um papel fundamental em minha Structure of Scientific Revolutions , onde a incapacidade de uma teoria de fornecer regras para identificar quebracabeças solúveis é encarada como a srcem de crises profissionais que não raro resultam na substituição da teoria. Minha idéia está muito próxima da de Sir Karl, e bem posso tê-la tirado do que ouvi sobre a obra dele. Mas Sir Karl descreve como “falseamento” ou “refutação” o que acontece quando uma teoria fálhá na tentativa de aplicação, e estas são as primeiras de uma série de expressões que me parecem suma mente estranhas. Tanto “falseamento” quanto “refutação”, antônimos de “prova”, são tiradas prin cipalmente da lógica e da matemática formais; as cadeias de raciocínio a que elas se aplicam rematam-se com um “Q.E.D.”; a invocação desses termos supõe a capacidade de obrigar ao assentimento qualquer membro da comunidade profissional pertinente. Ninguém entre os aqui presentes, no entanto, precisa ainda que se l he diga que os argumentos raros são tão apodíticos nos casos em que está em jogo toda uma teoria ou, com maior freqüência, até uma lei científica. Todas as experiências podem ser contestadas, quer quanto à relevância, quer quanto à exatidão. Todas as teorias podem ser ad hoc sem por isso deixar de ser, modificadas por uma variedade de ajustamentos em suas linhas gerais, as mesmas teorias. De mais a mais, é importante que assim seja, pois é amiúde contestando observações ou ajustando teorias que se desenvolve o conhecimento científico. Contestações e ajustamentos são uma parte comum da pesquisa normal na ciência empírica, e os ajustamentos, pelo menos, representa m também um papel dominante na matemática não-formal. A brilhante análise das contra-réplicas permissíveis às refutações matemáticas levadas a efeito pelo Dr. Lakatos fornece os
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argumentos mais impressionantes que conheço contra a posição fal- seacionista ingênua. 28
Sir Karl não é, obviamente, um falseacionista ingênuo. Sabe tudo o que acaba de ser dito e enfatizou-o desde o princípio da sua carreira. Em sua Logic of Scientific Discovery (A Lógica da Descoberta Científica), por exemplo, escreve: “Na verdade, nunca se po derá produzir a refutação concludente de uma teoria; pois é sempre possível dizer que os resultados experimentais não merecem confiança ou que as discrepâncias que se afirmam existir entre os resultados experimentais e a teoria29 são apenas aparentes e desaparecerão o processo nosso entendimento.” Enunçiados como esse mostram mais um com paralelo entre a de visão da ciência de Sir Karl e a minha, mas o que fazemos com eles dificilmente poderia ser mais diferente. Para a minha visão eles são fundamentais, não só como evidência mas também como fonte. Para a visão de Sir Karl, no entanto, são uma qualificação essencial que ameaça a integridade da sua posição básica. Tendo excluído a refutação, concludente, ele não providenciou um substituto para ela, e a relação que continua a empregar é a do falseamento lógico. Conquanto Sir Rarl, no meu entender, pode ser não seja um falseacionista ingênuo legitimamente tratado como tal. Se ele só se interessasse pela demarcação, os problemas colocados peia falta de disponibilidade refutações concludentes menos severos talvez elimináveis. Isto é, de a demarcação poderia con- seriam seguir-se mediante um ecritério 30 exclusivamente sintático. A posição de Sir Karl seria então, e talvez assim o seja, que uma teoria é científica se e somente se os enunciados de observação — sobretudo as negações de enunciados existenciais singulares — puderem ser logicamente deduzidos dela, talvez em conjunção com o conhecimento básico expresso. As dificuldades (às quais logo voltarei) para decidir se o resultado de determinada operação de laboratório justifica a asserção de determinado enunciado de observação seriam então irrelevantes. Talvez se pudessem eliminar da mesma maneira as dificul
28.
“Proofs and Refutations”, de Lakatos.
29.
Lo gi c of Scie nti fi c Discov er y, de Popper, p. 50.
30. Se bem que o meu pon to seja um pou co diferente, d evo meu r eco nhecimento da necessidade de enfrentar essa questão às críticas dirigidas por C. G. Hempel aos que interpretam erroneamente Si r Karl atribuindo-lhe uma crença no falseamento absolu to em lugar de uma crença no falseamento relativo. Veja os seus As pe cts of Sc ientific Ex pl an at ion, p. 45. Reconheço-me também devedor do Professor Hempel por sua crítica atenta e ' inteligente deste ensaio quando ainda não passava de um rascunho.
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dades igualmente graves para decidir se um enunciado de observação deduzido de uma versão aproximada (por exemplo, matematicamente controlável) da teoria deva ser considerado conseqüência da própria teoria, embora a base para fazê-lo seja menos aparente. Problemas como esses não pertenceriam à sintaxe, mas à pragmática ou á semântica da linguagem em que a teoria foi moldada, e não desempenhariam, portanto, papel algum na determinação do seu status como ciência. Para ser científica, a teoria precisa ser falseável apenas por um enunciado de observação e não pela observação real. A relação entre enunciados, à diferença da que existe entre um enunciado e uma observação, poderia ser a refutação concludente familiar da lógica e da matemática. Por motivos sugeridos acima (p. 15, nota de rodapé n.° 22) e desenvolvidos logo depois, duvido que as teorias científicas possam ser moldadas, sem uma mudança decisiva, numa forma que permita os julgamentos puramente sintáticos exigidos por essa versão do critério de Sir Karl. Mas ainda que o pudessem ser, essas teorias reconstruídas só proporcionariam uma base para o seu critério de demarcação, è hão para a lógica do conhecimento tão intimamente associada a ele. Esta última, entretanto, tem constituído o interesse mais persistente de Sir Karl, e a noção que ele tem dela é bem precisa. “A lógica do conhecimento...” escreve ele, “consiste tão -só em investigar os métodos empregados nos testes sistemáticos a que toda idéia nova tem de ser submetida para ser tomada 31 seriamente em consideração.” Dessa investigação, continua ele, resultam regras ou convenções me todológicas como as seguintes: “Depois que uma hipótese tiver sido proposta e testada, e tiver demonstrado sua têmpera, não se deve permitir que seja posta de lado sem uma ‘boa razão’. Uma ‘boa razão’ pode 32 ser, por exemplo. . . o falseamento de uma das suas conseqüências.” Regras como essa e, com elas, toda a atividade lógica aci ma descrita, já não são simplesmente sintáticas em sua importância. Requerem que tanto o investigador epistemológico quanto o cientista pesquisador sejam capazes de relacionar sentenças derivadas de uma teoria não com outras sentenças mas com observações e experiências reais. Esse é o contexto em que precisa funcionar o termo “falseamento” de Sir Karl, e Sir Karl mantém absoluto silênci o sobre como isso pode ser feito. Que é o falseamento se não é a refutação conclu
31. Popper, Lo gi c of Sc ient if ic Di sc ov er y, p. 31. 32. Popper, ibidem, pp. 53 e seguintes.
dente? Em que circunstâncias exige a lógica do conhecimento que o cientista abandone uma teoria previamente aceita quando se defronta, não com enunciados sobre experiências, mas com as próprias experiências? Até a elucidação dessas questões, não me parece muito claro que o que Sir Karl nos deu seja uma lógica do conhecimento. A meu ver, embora igualmente valiosa, Sir Karl nos trata-se de coisa muitíssimo diversa. Em lugar de uma lógica, ofereceu uma ideologia; em lugar de regras metodológicas, ele nos deu máximas de procedimento. Cumpre, todavia, adiar essa conclusão até que se lance um derradeiro e mais profundo olhar à srcem das dificuldades surgidas com a noção de falseamento de Sir Karl. Ela pressupõe, como já sugeri, que se pode moldar ou remoldar, sem distorção, uma teoria numa forma que permite aos cientistas classificar cada evento concebível como um caso que confirma a teoria, como um caso que a falseia ou como um caso que é irrelevante para a teoria. Para que uma lei geral seja falseável requer-se obviamente que, a fim de testar a a generalização (x) Ø ( x ) aplicando-a à constante a, sejamos capazes de dizer se se encontra ou não dentro do âmbito da variável x e se é o caso de que 0 (a) ou não. A mesma pressuposição é ainda mais aparente na medida de verossimilhança recém-elaborada por Sir Karl. Ela requer que se produza primeiro entre a classe todas as conseqüências da teoria e as depois se escolham essas de conseqüências, com a ajuda dológicas conhecimento básico, 3 classes de todas as conseqüências verdadeiras e de todas as falsas/* Pelo menos será preciso fazê-lo se o critério de verossimilhança tiver de resultar num método de escolha de teorias. Entretanto, nenhuma dessas tarefas pode ser levada a cabo se a teoria não for totalmente articulada logicamente e se os termos através dos quais ela se liga à natureza não tiverem sido suficientemente definidos para determinar-lhes a aplicabilidade em cada caso possível. Na prática, todavia, nenhuma teoria científica satisfaz a essas exigências, e muita gente já sustentou que, se o fizesse, a teoria deixaria de ser útil à pesquisa. 34 Eu mesmo apresentei alhures o termo “paradigma” com o propósito de destacar a dependência da pesquisa
33. Popper, Conjectures and Rejutations, pp. 233-5. Note-se também, no pé da última dessas páginas, que a comparação de Sir Karl da relativa verossimilhança de duas (eorias depende do fato de “não haver mudanças revolucionárias em nosso conhecimento básico”, suposição que ele não desenvolve em parte alguma e que é difícil de harmonizar com a sua concepção da mudança científica mediante revoluções. 34. Braithwaite, Scientific Explanation, pp. 50-87, especialmente p. 76, e minha The Structure of Scientific Revolutions, pp. 97-101.
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científica para com exemplos concretos, que lançam uma ponte sobre o que de outro modo seriam lacunas na especificação do conteúdo e na aplicação das teorias científicas. Não se podem repetir aqui os argumentos pertinentes. Mas um breve exemplo, embora altere temporariamente minha linha de discurso, talvez seja ainda mais útil. Meu exemplo tem a forma de um resumo construído a partir de conhecimentos científicos elementares. Esse conhecimento refere- se aos cisnes e para isolar-lhe as características atualmente pertinentes farei três perguntas a respeito: (a) Quanto se pode saber a respeito de cisnes sem introduzir generalizações explícitas como esta: “Todos os cisnes são brancos?” (b) Em que circunstâncias e com que conseqüências convém acrescentar tais generalizações ao que era sabido sem elas? (c) Em que circunstâncias se rejeitam as generalizações depois de feitas? Ao formular essas perguntas meu objetivo é sugerir ”] que, embora a lógica seja um instrumento poderoso e essencial da investigação científica, é possível ter um conhecimento sólido em formas a que escassamente se pode aplicar a lógica. Sugiro outrossim que a articulação lógica não é um valor em si mesma, mas só deve; ser buscada quando as circunstâncias a exigem e na medida em que' a exigem. Imagine, o leitor, que lhe foram mostrados, e você pode lembrar- se deles, dez pássaros peremptoriamente identificados como cisnes; imagine ainda que possui uma familiaridade semelhante com patos, gansos, pombos, rolinhas, gaivotas, etc., e que está informado de que cada um desses tipos constitui uma família natural. Você já sabe que uma família natural é um grupo observado de objetos semelhantes, suficientemente importantes e suficientemente discretos para exigir um nome genérico. Com maior precisão, embora eu aqui simplifique mais do que o requer o conceito, uma família natural é uma classe cujos membros são mais parecidos uns com os outros do que com os membros de outras famílias naturais. 35 A experiência das gerações tem confirmado até agora que todos os objetos observados cabem numa ou noutra família natural. Isto é, mostrou que toda a população do mundo pode ser dividida (embora não de uma vez por
35. Note-se que a semelhança entre os membros de uma família natural é aqui uma relação aprendida e uma relação que pode ser desaprendida. Pondere-se o antigo provérbio: “Para um ocidental, todos os chineses são parecidos.” Esse exemplo também põe em destaque a mais drástica das simplificações introduzidas neste ponto. Uma discussão mais completa teria de tomar em consideração hierarquias de famílias naturais com relações de semelhança entre famílias nos níveis mais elevados.
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todas) em categorias perceptivamente descontínuas. Acredita-se que nos espaços perceptivos entre as categorias não existe objeto algum. O que você aprendeu a respeito de cisnes pela exposição a paradigmas é muito parecido com o que as crianças aprendem primeiro acerca de cães e gatos, mesas e cadeiras, mães e pais. Claro está que é impossível especificar-lhes o âmbito e o conteúdo especí- fico mas, apesar de tudo, é conhecimento sólido. Derivado da obser- vação, pode ser invalidado por uma observação ulterior e, entremen- tes, proporciona uma base de ação racional. Ao ver um pássaro muito parecido com os cisnes que já conhece, você poderá com razão supor que ele come o que comem os outros e dar-lhe o mesmo alimento. Se os cisnes constituem uma família natural, nenhum pássaro que se pareça muito com eles à primeira vista exibirá características radicalmente diferentes a um exame mais atento. É claro que você talvez tenha sido mal informado acerca da integridade natural da família dos cisnes. Mas isso pode ser descoberto pela experiência, como por exemplo a descoberta de certo número de animais (observe-se que mais de um são necessários) cujas características estabeleçam uma ponte entre os 36 cisnes e, digamos, os gansos por intervalos vagamente perceptíveis. Até que isso ocorra, entretanto, você saberá muita coisa a respeito de cisnes, embora não esteja plenamente seguro do que sabe nem tem certeza do que é um cisne. Suponha agora que todos os cisnes que você realmente observou são brancos. Deverá adotar a generalização “Todos os cisnes são brancos”? O fazê -lo mudará muito pouco o que você sabe; essa mudança só terá utilidade no caso pouco provável de você encontrar um pássaro não-branco que sob outros aspectos se pareça com um cisne; fazendo a mudança você aumenta o risco de que se prove que a família dos cisnes não é, apesar de tudo, uma família natural. Nessas circunstâncias você tenderá a abster-se de generalizar, a menos que haja razões especiais para fazê-lo. Talvez, por exemplo, você precise descrever cisnes a homens que não se podem expor diretamente a paradigmas. Sem uma cautela sobre-humana, tanto de sua parte quanto da parte dos seus leitores, sua descrição adquirirá
36. Essa experiência não exige o abandono da categoria “cisnes” nem o abandono da categoria "gansos”, mas exige a introdução de um limite arbitrário entre elas. As famílias “cisnes” e “gansos” deixariam de ser famílias naturais, e não se poderia concluir coisa alguma acerca do caráter de um novo pássaro semelhante a um cisne que também não fosse verdadeiro em relação aos gansos. O espaço perceptual vazio é essencial para que a qualidade de membro da família tenha conteúdo cognitivo.
a força de uma generalização; tal é, muitas vezes, o problema do taxiólogo. Ou você talvez tenha descober to alguns pássaros cinzentos, que se parecem em outros sentidos com os cisnes, mas que comem comida diferente e têm uma conformação defeituosa. Você poderá então generalizar para evitar um equívoco de comportamento. Ou poderá ter uma razão mais teórica para pensar que a generalização vale a pena. Talvez tenha observado, por exemplo, que os membros de outras famílias naturais possuem a mesma coloração. A especificação desse fato de modo que faculte a aplicação de técnicas lógicas poderosas, ao que você sabe, pode permitir-lhe aprender mais a respeito da cor animal em geral ou da reprodução animal. Ora, tendo feito a generalização, que fará você se encontrar um pássaro preto que de outra forma se parece com um cisne? Quase as mesmas coisas, penso eu, que faria se já não estivesse comp rometido com a generalização. Examinará o pássaro com cuidado, externamente e talvez internamente também, a fim de encontrar outras características que distingam esse espécime dos s eus paradigmas. O exame será particularmente demorado e completo se você tiver razões teóricas para acreditar que a cor caracteriza as famílias naturais ou se o seu ego estiver profundamente envolvido na generalização. É muito provável que o exame revele outras diferenças, e você anunciará a descobert a de uma nova família natural. Ou, não encontrando tais diferenças, poderá anunciar o achado de um cisne preto. A observação, contudo, pode forçá-lo a essa conclusão falseadorà, s5teóricas você, de vez em quando sa irianão perdendo se isso acontecesse. Consideraçõe podem sugerir que a cor basta para demarcar uma família naturail: o pássaro não é um cisne porque é preto. Ou você poderá simplesmente adiar a questão enquanto espera a descoberta e o exame de outros espécimes. Só se já se tiver comprometido com uma plena definição de “cisne”, uma definição que lhe especifique a apli cabilidade a todo objeto concebível, poderá você ser logicamente forçado a rescindir sua generalização. 37 . E por que teria oferecido tal definição?* Ela não teria nenhuma função cognitiva e o exporia a
37. Novas provas da desnaturalidade de uma definição dessa natureza são fornecidas pela pergunta seguinte. Deve incluir-se a "brancura” entre as características que definem os cisnes? Em caso afirmativo, a generalização “Todos os cisnes são brancos” será imune à experiência. Mas se se excluir a “brancura” da definição, será preciso incluir outra característica qualquer capaz de substituir a “brancura”. As decisões a respeito das característ icas que fazem parte de uma definição e estarão disponíveis para o enunciado de leis gerais são amiúde arbitrárias e, na prática, raramente se fazem. O conhecimento, em regra geral, não se articula dessa maneira.
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tremendos riscos. 38 Está visto que, muitas vezes, vale a pena assumir riscos, mas dizer mais do que se sabe, só por amor ao risco, é temeridade. Tenho para mim que o conhecimento científico, embora logicamente mais articulado e muito mais complexo, é desse tipo. Os livros e os mestres onde ele se adquire apresentam exemplos concretos a par de uma infini dade de generalizações teóricas. Ambos são veículos essenciais do conhecimento e é, pois, pickwickiano procurar um critério metodológico que suponha o cientista capaz de determinar ante- cipadamente cada caso im aginável se ajustará à sua teoria ou a falseará. Os critérios que eie dispõe,nosexplícitos e implícitos, são suficientes responderdea essa pergunta casos que se ajustam só claramente ou quepara são claramente irrelevantes. Esses são os casos que eie espera, e para os quais o seu conhecimento foi planeja- do: Defrontando-se com o inesperado, ele deve sempre fazer novas pesquisas a fim de articular melhor a sua teoria na área que acaba de tornar-se problemática. Poderá então rejeitá-la em favor de outra e pior uma boa razão. Mas critérios exclusivamente lógicos não podem dita r sozinhos a conclusão que ele deve obter.
IV Quase tudo o que foi dito até agora são variações sobre um único tema. Os critérios com que os cientistas determinam a validade de uma articulação ou de uma aplicação da teoria existente não bastam por si mesmos a determinar a escolha entre teorias concor- rentes. Sir Karl errou transferindo características escolhidas de pesquisa cotidiana para os episódios revolucionários ocasionais em que o avanço científico é mais óbvio, ignorando, inteiramente a partir daí, a atividade de todos os dias. Ele procurou, em particular, resolver o problema da escolha adateoria teoriajádurante pelos lógicos quando pode serrevoluções pressuposta. Estacritérios é a maior partesódaaplicáveis minha teseíntegra neste trabalho e poderia ser toda ela se eu me contentasse em deixar completamente abertas as questões aventadas. Como é que os cientistas procedem à escolha
38. Essa in completude da s defi nições é muitas v ezes denom inada "textu ra aberta” ou “vagueza de significado”, mas tais expressões parecem decidi damente enviesadas. As definições talvez sejam incompletas, mas não há nada de errado com os significados. Ê dessa maneira que se comportam os significados!
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entre teorias concorrentes? Como havemos nós de compreender o modo com que a ciência progride? Seja-me permitido esclarecer de pronto que, tendo aberto essa caixa de Pandora, não tardarei em fechá-la. Há muita coisa em relação a tais questões que eu não entendo, nem devo fingir que as compreendo. Mas acredito ver as direções em que as respostas devem ser buscadas, e concluirei com uma breve tentativa para mostrar o caminho. Perto do seu fim tornaremos a encontrar um conjunto de expressões características de Sir Karl. Preciso perguntar primeiro que é o que ainda requer explicação. Não é que os cientistas descobrem a verdade a respeito da natureza, nem que eles se aproximam ainda mais da verdade. A não ser, como sugere um dos meus críticos, 39 que definamos simplesmente o enfoque da verdade como o resultado da atividade dos cientistas, não podemos reconhecer o progresso na direção dessa meta. Precisamos antes explicar por que a ciência — nosso exemplo mais seguro de conhecimento sólido — progride, e precisamos descobrir primeiro como de fato o faz. Ainda se conhece surpreendentemente pouco sobre a resposta a essa questão descritiva. Ainda se faz necessária grande quantidade de cuidadosa investigação empírica. Com o passar do tempo, as teorias científicas tomadas em grupo tornam-se obviamente mais e mais articuladas. Nesse processo, equiparamse à natureza em um número cada vez maior de pontos e com crescente precisão. Ou o número de temas a que se pode aplicar o enfoque da solução de enigmas cresce claramente com o tempo. Há uma contínua proliferação de especialidades científicas, em parte pela extensão dos limites da ciência e em parte pela subdivisão dos campos existentes. Tais generalizações, no entanto, são apenas um princípio. Não sabemos, por exemplo, quase nada sobre o que um grupo de cientis- tas está disposto a sacrificar a fim de lograr os ganhos que uma nova teoria invariavelmente oferece. Minha impressão, embora não seja mais do que isso, é que uma comunidade científica raro ou nunca adotara uma nova teoria a não ser que esta resolva todos ou quase 40 todos os enigmas quantitativos e numéricos que se deparavam à sua predecessora. Por outro lado. eles sacrificarão o poder expla- natório, embora com relutância, deixando às vezes abertas questões
39. Hawkins, crítica da "The
Structure of Scientific Revolutions”, de Kuhn.
40. Cf. Kuhn, The Structure of Scientific Revolutions,
28
pp. 102-8.
anteriormente resolvidas e, às vezes, declarando-as inteiramente não- científicas. 4r Voltando-nos para outra área, pouco sabemos acerca das mudanças históricas ocorridas na unidade das ciências. Apesar de êxitos espetaculares, a comunicação através das fronteiras entre especialidades científicas torna-se cada vez pior. Crescerá com o tempo o número de pontos de vista incompatíveis empregados pelo número sempre maior de comunidades de especialistas? A unidade das ciências representa sem dúvida um valor para os cientistas, mas em favor do que serão eles capazes de renunciar a ela? Ou ainda, conquanto o volume do conhecimento científicoresolvidos aumente nos claramente tempo, diremos da ignorância? Os problemas últimos com trintao anos nãoque existiam como questões abertas há um século. Em qualquer época, o saber científico já disponível esgota virtualmente o que há para saber, só deixando quebra-cabeças visíveis no horizonte do conhecimento existente. Não será possível, nem mesmo provável, que os cientistas contemporâneos saibam menos do que há para saber a respeito do seu mundo do que sabiam a respeito do seu os cientistas do século XVIII? Cumpre lembrar que as teorias científicas só se ligam à natureza aqui e ali. Serão agora talvez os interstícios entre os pontos de ligação maiores e mais numerosos do que no passado? Enquanto não pudermos responder a mais perguntas como essas, não saberemos direito oPorqueoutro é o lado, progresso e não esperar explicá-lo. pouco científico faltará para que poderemos, as respostas portanto, a essas perguntas forneçam a explicação desejada. As duas vêm quase juntas. Já devia estar claro que a explicação, na análise final, precisa ser psicológica ou sociológica. Isto é, precisa ser a descrição de um sistema de valores, uma ideologia, juntamente com uma aná lise as instituições através das quais o sistema é transmitido e imposto. Sabendo a que os cientistas dão valor, podemos esperar compreender os problemas pelos quais se responsabilizarão e as escolhas que farão em determinadas circunstâncias de conflito. Duvido que se possa encontrar outra espécie de resposta. A forma que a resposta assumirá, naturalmente, é outro assunto. Neste pontoporém, termina também minha consciência doilustrarão controle osdotipos meudetema. Mais uma vez, algumas generalizações de amostras respostas que se devem procurar. Para um cientista, a solução de um difícil enigma conceptual ou instrumental
41.
Cf. Kuhn, “The Function of Measurement in Modern Phvsical Science”.
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representa uma meta principal. O seu êxito nessa tentativa é recom- pènsado pelo reconhecimento de outros membros do seu grupo profissional e só deles. O mérito prático da solução, na melhor das Hipóteses, é um valor secundário, e a aprovação de homens fora do grupo especialista é um valor negativo ou não é nenhum valor. Tais valores, que muito contribuem para ditar a forma da ciência normal, são também às vezes significativos quando é preciso escolher entre teorias. Um homem treinado para solucionar enigmas desejará preservar o maior número possível de soluções já obtidas pelo seu grupo, e desejará também maximizar o número de enigmas até esses valores freqüentemente conflitam entre si e passíveis outros há de quesolução. tornam oMas problema da escolha ainda mais difiçil. É exatamente nesse sentido que seria mais significativo um estudo daquilo a que os cientistas renunciarão. A simplicidade, a precisão e a compatibilidade com as teorias utilizadas em outras especialidades saõ valores expressivos para os cientistas, mas nem todas ditam a mesma escolha nem serão aplicadas da mesma maneira. Nessas circunstâncias, importa igualmente que a unanimidade do grupo seja um valor soberano, levando o grupo a minimizar as ocasiões de conflito e a congregar-se rapidamente em torno do mesmo conjunto de regras para a solução de enigmas, ainda que para isso lhe seja preciso subdi42 vidir a especialidade ou excluir um membro anteriormente produtivo. Não estou dizendo que estas são as respostas certas ao problema do progresso científico, mas apenas os tipos de respostas que devem ser procurados. Poderei esperar que Sir Karl me faça companhia nesta maneira de ver a tarefa que ainda está por ser feita? Durante algum tempo presumi que ele não o faria, visto que um conjunto de expressões que se repetem em sua obra parece impedilo de assumir essa posição. Ele rejeitou reiteradamente “a psicologia do conhecimento” ou o “subjetivo” e insistiu em que o seu interesse se resumia no 43 “objetivo” ou na “lógica do conhecimento”. O título de sua contribuição mais fundamental para o nosso campo é A Lógica da Descoberta Científica, e é ali que ele afirma da maneira mais positiva que o seu interesse diz muito mais respeito aos estímulos lógicos para conhecimento do que aos impulsos psicológicos dos indivíduos. Até há pouco tempo eu supunha que essa maneira de encarar o problema excluiria a solução que tenho advogado.
42. Cf. The Structure of Scientific Revolutions, de minha autoria, pp. 161-9. 43. Popper, Lo gi c of Sc ie nt if ic Discov ery, pp. 22 e 31 e seguintes, 46; e
Re fut at io ns , p. 52.
30
Conjectures and
Sir Karl Mas agora estou menos seguro, pois há outro aspecto da obra de não muito compatível com o que precede. Quando ele rejeita “a psicologia do conhecimento”, o seu interesse explícito é apenas negar a importância metodológica da fonte de inspiração do indivíduo ou da consciência de certeza do indivíduo. Disso não posso discordar. Vai, todavia, uma longa distância entre a rejeição das idiossincrasias do indivíduo e a rejeição dos elementos comuns induzidos pela criação e pela educação na composição psicológica da situação de membro licenciado de um grupo científico. A dispensa de um não impõe a do outro. E isso também Sir Karl parece reconhecer às vezes. Embora insista em que está escrevendo sobre a lógica do conhecimento, um papel essencial em sua metodologia é desempenhado por trechos que só posso interpretar como tentativas de inculcar imperativos morais aos membros do grupo científico. “Presumamos”, escreve Sir Karl, “que nos impusemos delibe radamente a tarefa de viver neste nosso mundo desconhecido; ajustar- nos a ele da melhor se possível (não precisamos presumir que maneira que pudermos;. ... e explicá-lo, o seja) e até onde for possível, com a ajuda de leis e teorias explanatórias. Se nos impusermos essa tarefa, não existe processo mais racional que o método da. . . conjetura e da refutação : de ousadamente propor teorias; de envidar nossos melhores esforços para mostrar que estas são errôneas; e de aceitá-las como tentativas se nossos esforços críticos forem malsucedidos.” 44 Entendo que não devemos compreender o êxito da ciência sem compreender toda a força de imperativos como estes, reto- ricamente induzidos e profissionalmente partilhados. Ainda mais institucionalizados e articulados (e também um tanto diversamente) tais máximas e valores talvez expliquem o resultado de escolhas que não poderiam ter sido ditas só pela lógica e pela experiência. O fato de passagens como estas ocuparem um lugar proeminente nos escritos de Sir Karl é, portanto, mais uma prova da semelhança dos nossos pontos de vista. E o fato de continuar ele, no meu entender, sem os ver como os imperativos gestalt sociopsicológicos que são é mais uma prova da existência da mudança de que ainda nos divide profundamente.
44. Popper,
p. 51. O grifo está no srcinal. Con j ecíur es and Reju tati cms,
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32
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I sis , 46 , pp. 273-
CO NT RA A " CI NC IA NO RM AL ” JOHN WATKINS London School of Economics
I Há algumas semanas fui convocado para responder na tarde de hoje ao Professor Kuhn. Feyerabend e Lakatos forneceriam os outros ensaios; mas o primeiro não pôde vir e o segundo descobriu que, ao organizar este seminário, gerara um monstro de muitas cabeças e só para atender às suas exigências, que se multiplicavam, estaria ocupado aproximadamente vinte e quatro horas por dia. O convite inesperado deixou-me muito feliz. Kuhn goza de uma posição única no mundo de fala inglesa como historiador com mentalidade filosófica e como filósofo da ciência com espírito histórico. Entendi que seria um privilégio e um prazer responder ao seu trabalho. Para Kuhn, todavia, a mudança de programa foi menos agradável. Ele esperava que Feyerabend e Lakatos escrevessem ensaios independentes, de modo que o seu só precisaria estar pronto hoje à tarde. Soube, então, que ,eu responderia ao seu ensaio, o que significava que eu deveria vê-lo com alguma antecedência. Reagiu heroicamente, enviando pedaços do seu trabalho através do Atlântico à medida que lhe saíam da máquina de escrever. Durante grande parte da última semana senti-me como o leitor de um folhetim sensacional, aguardando ansioso, o capítulo seguinte. Dessa maneira, meu próprio ensaio foi escrito de um só fôlego; e receio que isto tenha agravado minha tendência para não levar em conta detalhes e sutilezas na tentativa de medir forças com as idéias de alguém. No tumulto dos últimos dias tive um grande auxiliar. A obra de Kuhn, The Structure of Scientific Revolutions, é um livro famoso,
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com o qual me acho razoavelmente familiarizado. Tive o privilégio de lê-lo quando ainda manuscrito em 1961 e de discuti-lo com o autor. Em 1963 foi ele Sir Karl Popper, em que o Sr. tema de extensos debates no seminário de Hattiangadi apresentou um estudo a seu respeito (e que, mais tarde, desenvolveu em interessantíssima dissertação). Mais adiante, citarei alguma coisa que Popper disse na ocasião; não me surpreenderá que meu ensaio contenha empréstimos feitos inconscientemente às nossas discussões durante o seminário. De modo que o meu trabalho versará tanto sobre o livro de Kuhn quanto o ensaio que ele acaba de ler. O que não deixa de ser conveniente, visto que em seu estudo, Kuhn adotou uma política muito parecida com a política sukarniana de confrontação entre a visão da ciência proposta em seu livro e a visão popperiana da ciência. Alegra-me que o tenha feito. Lembro-me de haver-lhe sugerido em 1961 que desenvolvesse e discutisse em seu livro o choque entre sua visão da comunidade científica como sociedade essencialmente fechada, constantemente abalada por colapsos nervosos coletivos seguidos da restauração da harmonia mental, e a visão de Popper do que deve ser, e realmente é, em grau c onsiderável a comunidade científica: uma sociedade aberta em que nenhuma teoria, por mais dominante e bem- sucedida que seja, nenhum “paradigma”, para usar o termo de Kuhn, é sagrado. Na ocasião Kuhn não seguiu a sugestão, mas hoje fez, sem dúvida, uma “amende honorable”. Duas coisas, todavia, me deixaram um tanto i nsatisfeito com a maneira p elo qual ele organizou a confrontação. Em primeiro lugar, a forma como ele a apresenta não é tão séria quanto poderia ser. Logo no come ço, diz: “Em quase todas as ocasiões em que nos voltamos explicitamente para os mesmos problemas, nossas opiniões so bre ciência são quase idênticas.” 1 Minha meta será apresentar os conflitos maiores entre os dois pontos de vista. A esta altura limitar-me-ei a citar uma observação incluída no ensaio de Kuhn que, por assim dizer, resume o conflito principal numa sentença: “é pre cisamente o abandono do 2 discurso crítico que assinala a transição para uma ciência.” A segunda causa da minha insatisfação é diferente. Uma confrontação ao estilo de Sukamo envolve não só um grande choque ideológico mas também grande quantidade de escaramuças locais. Espero que Kuhn me perdoe por limitar a maior parte das minhas
1. N este volu me, pp. 5-6. 2. N este volu me, p. 11,
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3 contra-escaramuças a uma nota de pé de página. Em meu texto con- centrar-meei na idéia dele — idéia srcinal e estimulante — da Ciência Normal. Haverá certa injustiça inconsciente ou, pelo menos, certa parcialidade em minha discussão da idéia. Acredito que ela tenha considerável importância sociológica. Um sociólogo que investigasse a profissão científica como poderia investigar, digamos, a profissão médica, bem andaria se a utilizasse como seu tipo i deal. Mas eu a considerarei de um ponto de vista metodológico, e a metodologia, tal como a
compreendo, mais respeito à ciência que ela tem de melhor, ou à ciência como deveria diz ser dirigida, do que à ciêncianovulgar. Meu programa será o seguinte. Começarei, na seção II, confrontando o relato da Ciência Normal de Kuhn com a apreciação que Popper faria de uma situação científica em harmonia com a idéia da Ciência Normal de Kuhn. Depois, na seção IH, perguntarei por que Kuhn afirma que a Ciência Normal, tal como se opõe ao que ele denomina Ciência Extraordinária, constitui a essência da ciência. Por fim, na seção IV, perguntarei se a Ciência Normal pode ser como Kuhn a descreve e, sem embargo disso, dar srcem à Ciência Extraordinária. Minha resposta será “Não”; e mostrarei que essa resposta refuta f elizmente a visão de Kuhn da normalidade científica como sociedade fechada de mentes fechadas.
3. O método de Kuhn consiste em escolher certas “expressões características”, e erigir sobre elas uma construção que ele possa censurar à vontade. Mas suas construções têm às vezes leve semelhança com o que foi dito nos livros onde se colheram as expressões. (O próprio Kuhn admite às vezes que suas construções nem sempre se ajustam perfeitamente. Assim, na p. 14, escreve: “Conquanto não seja um falseacionista ing ênuo, Si r Karl, no meu entender, pode ser legitimam ente tratado como tal.”) Kuhn, por exemplo, pon dera com muitas sacudidelas de cabeça a “expressão” que “podemos aprender com nossos erros”. Ele parece incapaz de admitir que Popper usasse a palavra “erro” numdesentido alegremen te despojado de sentimento de culpa, sem ne sugestão de fracasso pessoal, transgressão de regras, etc. O físico
nhuma
I. E. Wheeler empregou a palavra num espírito popperiano quando escreveu: “Todo o nosso problema é co meter erros o mais depressa possível” (Wheeler, “A Septet of Sibyls, Aids in the Search for Truth”, p. 360). Como o alvo principal de Kuhn era o critério de demarcação de Popper, e como Popper o enunciou com suma nitidez, seria de esperar que aqui, ao menos, Kuhn fizesse uma citaçlo precisa. Mas não, ele prefere mais uma vez apresentar uma construção sua: “A demarcação poderia conseguir-se por um critério exclusivamente sintático. Si r Karl entenderia então, e talvez assim o entenda, que uma teoria só será científica se os enunciados de observação — sobretudo as negações de enunciados existenciais singulares — puderem ser logicamente Logik de r F ors chung de Popper, seção 21, ver-se-á deduzidos delas...” (p. 144). Se se consultar a que isso está cheio de erros (no sentido de Kuhn).
35
II
Considerando a idéia de Ciência Normal de Kuhn de um ponto de vista popperiano, é natural que eu me concentre noque diz Kuhn acerca dos testes dentro da Ciência Normal. Realizam-se testes, diz ele, o tempo todo, mas “esses testes são de um gênero peculiar pois, na análise final, é o cientista e não a teoria vigente que se põe à prova”. 4 Sua idéia é essa. O chamado “teste” em Ciência Normal não é teste de teorias, e sim parte de uma atividade de solução-de-enig- mas. A Ciência Normal é governada por algum paradigma (ou teoria dominante). Confia-se implicitamente no paradigma; mas ele não se ajusta com perfeição aos achados experimentais. Sempre haverá dis- crepâncias ou anomalias aparentes. A Pesquisa Normal consiste, em grande parte, na solução dessas anomalias através de ajustamentos adequados, que deixam intacto o paradigma. Toma-se então o paradigma como garantia da existência de uma solução para cada enigma gerado pelas discrepâncias aparentes entre ele e as observações. Daí que, embora os “testes” realizados dentro da Ciência Normal pareçam testes da teoria predominante quando vistos através de óculos popperianos, são, na verdade, testes de outra coisa, a saber, da habilidade do experimentador em solucionar enigmas. Se for negativo, o resultado de um “teste” dessa natureza não atingirá a teoria, mas atingirá desfavoravelm ente o experim entador, cujo pres tígio poderá s er diminuído pelo malogro da sua tentativa de solucionar o enigma; mas o prestígio do paradigma dentro de cuja estrutura foi feita a tentativa é tão elevado que dificilmente será abalado por dificuldadezinhas locais dessa natureza. Segundo Kuhn, é apenas num momento do que ele denomina Ciência Extraordinár ia, quando a própria teoria predominante está sendo atacada, que p ode ocorrer alguma coisa como teste autêntico de teorias. Nesse caso, o resultado negativo de um teste pode ser considerado, não como o fracasso pessoal do experimentador, mas como o fracasso da teoria. Para usarmos as palavras de Kuhn, “Um fracasso visto antes como pessoal parece então o fracasso da teoria que está sendo testada”. 5 Para Kuhn, a Ciência Normal, como o próprio nome o sugere, é a condição normal da ciência; a Ciência Extraordin ária é uma condição anorm al; e, repetimos, dentro da Ciência Normal, o teste
4. 5.
36
Neste vol ume, p. 10. Neste vol ume, p. 11.
autêntico das teorias predominantes torna-se impossível de algum misterioso modo psicossociológico. Não admira que Kuhn se surpreenda com um reparo que ele considera “virtualmente um clichê”, 6 a saber, a observação de Popper de que os cientistas propõem enunciados e os testam passo a passo. Para Kuhn virtualmente um clichê dizer que os cientistas empenham-se normalmente numa infinidade de testes: testam suas soluções com relação a enigmas gerados por anomalias; e para ele é surpreendentemente incorreto dizer que os cientistas costumam testar teorias. Popper nunca negou a conveniência de se defender uma teoria com algum dogmatismo, de modo que ela não seja posta de lado com demasiada rapidez, antes que os seus recursos tenham sido cabalmente examinados; mas esse dogmatismo só será saudável enquanto houver outras pessoas por perto que não se inibam de criticar e pôr à prova uma teoria defendida com tenacidade. Se todos se achassem sob alguma compulsão misteriosa para preservar as teorias vigentes da ciência contra resultados incômodos, essas teorias, no entender de Popper, perderiam seu status científico e degenerariam em algo parecido com doutrinas metafísicas. Temos assim o seguinte conflito: a condição da ciência que Kuhn considera normal e apropriada é uma condição que, se fosse realmente obtida, Popper consideraria não-científica, um estado de coisas em que a ciência crítica se teria convertido em metafísica defensiva. Popper sugeriu por divisa da ciência: Revolução permanente! Para Kuhn, parece mais apropriada a máxima: Panacéias, não; normalidade, sim! No seu trabalho de hoje Kuhn falou na ênfase dada por Popper à assimetria entre a falseabilidade e a não-verificabilidade das generalizações científicas, como “um passo à frente do qual não há voltar atrás”. 7 Acrescentou que a “mesma assimetria desempenha um papel fundamental em minha Structure of Scientific Revolutions. . . bem posso tê-lo tirado do que ouvi sobre a obra dele.” Mas a memória de Kuhn parece ter-lhe pregado uma peça neste ponto: em seu livro ele se referiu explicitamente à tese de8 Popper de que não há verificação e de que o falseamento é o que importa, e o fez no intuito de dispensar essa tese por irrealística, sob a alegação de que na Ciência Normal não há falseamento de teorias, ao passo que na Ciência Extraordinária a prova que se aceita como falseadora do paradigma
6. A l este vol um e, p. 11. 7. Neste vo l ume, p. 11. 8. Kuhn, Th e Str uctur e of Scie nti fi c Re voluti ons, p. 145.
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que se despede é também aceita como verificadora do novo paradigma que já se admite. 9 Em sua Structure of Scientific Revolutions Kuhn não apresentou nenhum critério de demarcação para a ciência; limitou-se a pôr de lado o critério de falseabilidade de Popper. Agora propõe um critério alternativo próprio: Finalmente, e tal é por enquanto o meu ponto principal, um olhar cuidadoso dirigido à atividade científica dá a entender que é a Ciência Normal — onde não ocorrem os tipos de testes de Si r Karl — e não a Ciência Extraordinária que quase sempre distingue a ciência de outras atividades. A existir um critério de demarcação (entendo que não devemos procurar um critério nítido nem decisivo), só pode estar na parte da ciência que Si r Karl ignora. 10
Isso foi cautelosamente redigido. Mas na página seguinte, mais ousado, Kuhn afirmou: “dos dois critérios, o dos testes e o da solu ção de enigmas, este 11 último é o menos equívoco e o mais funda mental”. De minha parte, lançarei aos ventos a cautela de Kuhn e lhe reenunciarei a sugestão sem qualquer preocupação de prudência: a Ciência Normal (em que verdadeiramente não há teste algum de teorias) é ciência autêntica; a Ciência Extraordinária (em que ocorre teste autêntico de teorias) é tão anormal, tão diferente da ciência genuína, que mal se pode chamar de ciência. Kuhn explica que, por se confundir com tanta facilidade o solucionamento de enigmas com o teste, “a linha de demarcação de Sir Karl e a 12 minha coincidem com tanta freqüência”. Bem, as linhas podem coincidir; mas elas dividem o material de maneiras opostas. O que é genuinamente científico para Kuhn mal chega a ser ciência para Popper, e o que é genuinamente científico para Popper mal chega a ser ciência para Kuhn. Kuhn apresenta a seguinte consideração contra o critério de Popper e a favor do seu: tem acontecido freqüentemente na história da ciência de uma teoria ser substituída antes de haver fracassado num teste, mas nenhuma o foi “antes de haver deixado de sustentar convenientemente uma tradição de solução-deenigmas”. 13 Daí que
9. “Mas o falseamento, embora oco rra seguramente... também pode ser chamado de verificação, uma vez que consiste no triunfo de urji novo paradigma sobre o antigo” (Kuhn, Th e Structu re of S cientif ic Re voluti ons, p. 146). 10. 11. 12. 13.
38
Neste Neste Neste Neste
volume, volume, volume, volume,
p. 11. p. 12. p. 12. p. 17.
o teste não seja, afinal de contas, tão importante assim. “Confiar no teste como marca de uma ciência é passar por alto o que os cientistas mais fazem e, com isso, o traço mais característico de sua a tividade.” 14 Em primeiro lugar, porém, Popper não confia, como marca de uma teoria científica, no fato de ter sido ela realmente testada mas no de ser testável, e quanto mais testável melhor (mantendo-se iguais as outras coisas). Por isso está totalmente de acordo com a sua filosofia da ciência a substituição de uma teoria científica por uma teoria mais testável, mesmo que a anterior ainda não tenha falhado num teste. Em segundo lugar, contrastando com a idéia relativamente clara da testabilidade, a noção de deixar de “sustent ar convenientemente uma tradição de solução-de- enigmas” é essencialmente vaga; pois vis to que Kuhn insiste em que 15 há sempre anomalias e enigmas não solucionados, a diferença entre sustentar e deixar de sustentar uma tradição de solução-de-enigmas é uma simples diferença de grau: deve haver um nível crítico em que uma quantidade tolerável de anomalias se transforma numa quantidade intolerável. Como não sabemos qual é o nível crítico, esse é o tipo de critério que só pode ser usado retrospectivamente: permite-nos declarar, depois de ocorrida uma mudança de paradigma, que a pressãobem empírica o velho radigma deve ter-sereinante tornado exerce intolerável. (Isto se ajusta à idéiasobre de Kuhn de paque um paradigma tamanha influência sobre o espírito dos homens que só uma vigorosa pressão empírica pode desalojá-lo.) Mas a história da ciência contém exemplos importantes de uma teoria dominante, empiricamente bem-sucedida, suplantada por uma teoria incompatível e mais testável. Permitam-me citar um exemplo disso. Antes de Newton, as leis de Kepler constituíam a teoria dominante do sistema solar. Parece-me que já não é necessário demonstrar que a teoria newtoniana é rigorosamente incompatível com as leis srcinais de Kepler — se falarmos da incorporação das últimas nas primeiras da sua subordinação a elas, deveremos acrescentar que são versões 16 significativamente modificadas dessas leis que provêm da teoria de Newton. Se Kuhn admitir que a teoria de Kepler
14. N este volu me, p. 17. 15. Kuhn, The S tr uctur e of Sc ientif ic Re volut ions, p. 81. 16. Há mais de cinqüenta anos Pierre Duhem escreveu: “O
pr i ncípi o da gr avi dade u n i ver sal, mu i to l on ge de ser der i vável por gener al i zação e in du ção das l eis observ aci on ai s de Kepler, as contr adiz f or mal mente. S e a te or i a de N ewton f or corr eta , as leis de Kep l er são necessariamente falsas” or i e Physiqu e: son Obj et et sa S tr uc tu r e, p. 193 da (Duhem, L a th é
tradução inglesa de
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era um paradigma incompatível com o paradigma newtoniano, terá de admitir, creio eu, que este foi um caso de mudança de paradigma. De forma que surge a pergunta: é plausível afirmar que o paradigma kepleriano “deixou de sustentar convenientemente uma tradição de solução-deenigmas”? Havia, antes de Newton, um enigma não-solucionado ligado às leis de Ke pler. O próprio Newton menciona “uma perturbação da órbita de Saturno em toda conjunção desse planeta com Júpiter, tão sensível, que os astrônomos estão 17
perplexos ela”. Mas eq vistouivalerá que, para Kuhn, há sempre enigmas não resolvidos, com isto dificilmente à incapacidade “de sustentar uma tradição de solução-de- enigmas”. Newton, de qualquer maneira, parece ter esta do longe de considerar o sistema kepleriano como tendo fracassado. Na Proposição a que está anexada a supracitada observação, ele enunciou as duas primeiras leis de Kepler de forma incorreta, 18 contribuindo com isso para a srcem da lenda perpetuada por Halley, que, em sua crítica dos Principia, escreveu, “Aqui [no Livro III] está demonstrada a verdade da Hipótese de Kepler”. 19 Parece que uma teoria dominante é passível de ser substituída, não em virtude de uma crescente pressão empírica (que pode ser pequena), porém graças a uma teoria nova e incomparável (inspirada talvez por uma diferente concepção metafísica) livremente desenvolvida: uma crise científica talvez tenha causas mais teóricas do que empíricas. 20 Se isto for assim, há maior liberdade de pensamento na
1954). Sobre uma análise mais circunstanciada das inconsistências entre a teo ria newtoniana e as leis de Kepler — inconsistências que significam que as últimas terão de ser corrigidas de maneiras importantes antes de poderem ser explicadas pela primeira — veja “The Aim of Science”, e Conj ectur es and Re fu tations, de Popper, p. 62 n. 17. Newton, Phil osophiae Natur alis Prin cipia M athe matica, Livro III, Prop. xiii. O Professor J. Agassi chamou-me a atenção para esse trecho. (Ele o discute em seu livro Towar ds an H istori ography of Sc ience , na nota de rodapé n.° 5 da p. 79.) 18. Newton, Phil osophiae Natur alis Prin cipia M athe matica , Livro III, Prop. xiii. Quanto à terceira lei de Kepler, veja Livro I, Prop. iv, cor. vi., e também The Cor r espondence of I saac Newton. 19. Halley, Crítica dos Pri ncipia, Phi
los ophical T ransa ctions , de Newton, p. 410.
20. O pont o mais próximo disso a que chega Kuhn está em sua admissão de que pode emergir um novo paradigma "pelo menos em embrião, antes que uma crise se tenha desenvolvido muito (Kuhn, The S tr uctur e of S cienti fi c R evolu tion s, p. 86; o grifo é meu). A possibilidade de que o paradigma chegue a emergir antes que se tenha sequer desenvolvido a crise, e de que ele possa gerar a crise, é excluída por sua idéia da predominância do paradigma dentro da Ciência Normal.
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ciência do que presume Kuhn. Voltarei a esse problema na última seção. III Mais adiante, demonstrarei que, se for capaz de dar srcem à Ciência Extraordinária (ou Revolucionária), a Ciência Normal não pode ter o caráter que Kuhn lhe atribui. Por ora, no entanto, suporei que a história da ciência exibe com efeito um padrão kuhniano; isto é, suporei que um ciclo típico consiste num período longo de Ciência Normal, que dá lugar a um período curto e agitado da Ciência Extraordinária, depois do qual sobrevém um novo período de Ciência Normal. A pergunta que faço é a seguinte: Por que se empenha Kuhn em superestimar a Ciência Normal e em subestimar a Ciência Extraordinária? Essa pergunta é provocada por diversas considerações. Primeiro, a Ciência Normal me parece maçante e não-heróica comparada com a Ciência Extraordinária. O próprio Kuhn considera um equívoco, mas um equívoco perfeitamente natural, encarar a 21 Ciência Normal como “uma atividade intrinsecamente desinteressante”, e admite que a Ciência Normal é relativamente estéril em matéria de novas idéias. Determinações mais exatas de constantes físicas — eis o que realizam as 22
“operações de limpeza do terreno” constituem Ciência“oNormal. Kuhn reiterou hoje à tarde que ele,quecomo Popper,a rejeita parecer de queSegundo, a 2: i ciência progride por acu mulação”; mas se lhe perguntassem de que maneira progride a Ciência normal, diria, presumivelmente, que ela progride de maneira ordenada, não-dramática, gradativa, isto é, por acumulação. Por que, e de outro livro, ainda mais famoso, sobre as revoluções científicas médio se adquire o conhecimento científico”, 21 chega Kuhn a identificar a ciência com seus períodos de estagnação teórica? Terceiro, por que o autor de um livro excelente sobre a revolução coperniciana e de outro livro, ainda mais famoso, sobre as revoluções científicas em geral , veio a ter uma espécie de aversão filosófica pelas revoluções científicas? Por que está tão enamorado da laboriosa e não-crítica Ciência Normal? Uma resposta, embora eu desconfie que não seja a principal, é que se deixou impressionar por considerações meramente quantitati
21. 22. 23. 24.
N este vo l ume, p. 11. Kuhn, Th e Str uctur e ofScientif ic Re voluti ons , pp. 24 e 27. N este volu me, p. 5. N este volu me, p.5; o grifo é
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vas: há muito mais Ciência Normal, medida em horas de trabalho, do que Ciência Extraordinária. A Ciência Normal, diz Kuhn, “é res ponsável pela imensa maioria do trabalho realizado em ciência bá sica”. 25 Os desenvolvimentos científicos com que Popper se preocupa são “muito raros”. 28 De um ponto de vista sociológico pode ser correto não dar crédito a algo em função de sua raridade. Mas de um ponto de vista metodológico, algo raro em ciência — uma nova idéia capaz de novos caminhos ou uma experiência crucial entre duas teorias importantes — pode ter muito mais peso do que alguma coisa que acontece o tempo todo. Não creio, todavia, que essas considerações quantitativas fossem decisivas para Kuhn. Desconfio que estava funcionando uma espécie muito diferente de consideração. Como o assunto é um tanto pessoal e delicado, e minha prova foi toda tirada do livro de Kuhn, não exporei minhas conjeturas imediatamente, mas chegarei a elas passo a passo. Começarei considerando até que ponto o critério de demarcação de Kuhn consegue excluir certas disciplinas intelectuais que poucos dentre nós chamaríamos científicas. É interessante que o próprio Kuhn tenha dito, a esse respeito, que não “quer acompanhar Sir Karl quando este rotula a astrologia de metafísica em lugar de ciência”. 27 E não é difícil ver por quê: a cuidadosa elaboração de um horóscopo, ou de um calendário ajusta-se à idéiaestável de Kuhn sobre a Pesquisa Normal. Oastrológico, trabalho é feito sob aperfeitamente égide de um corpo de doutrina, não desacreditado, aos olhos dos astrólogos, por fracassos que se podem prever. Mais interessante, a propósito das possíveis razões de Kuhn para depreciar a ciência revolucionária, é outra espécie de caso que pa
25. N este vol um e, p. 9. 26. N este vol um e, p. 10. 27. Esta citação foi tirada do rascunho srcinal do ensaio de Kuhn. Ele agora diz que “Sir Karl está certo ao excluir a astrologia do rol das c iências” (p. 11, o grifo é meu) — certo, mas pelos motivos errados: pois havia malogros pr.editivos na astrologia (se bem esses malogros sempre pudessem ser “explicados”); por outro lado, os astrólogos “não tinham enigmas para resolver e, portanto, não tinham ciência para praticar” (p. 9). Esta nova revelação da sutileza do conceito-de-enigma de Kuhn me deixa alarmado. Eu sabia que um malogro preditivo podia ser considerado como simples anomalia enigmática, e poderia mais tarde, quando se modificasse a estrutura, vir a ser encarado como refutação. Eu não percebera que pode haver malogros prediti- vos que não são vistos como refutações nem como colocadores de enigmas.
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rece ajustar-se com perfeição à sua idéia de Pesquisa Normal. Ima- gina-se um estudioso de teologia trabalhando numa inconsistência aparente entre duas passagens bíblicas. A doutrina teológica lhe as segura que a Bíblia, convenientemente compreendida, não contém inconsistência. Sua tarefa consiste em fornecer uma interpretação que ofereça uma reconciliação convincente entre as duas passagens. Esse trabalho parece essencialmente análogo à pesquisa científica “normal” descrita por Kuhn; e há elementos para supor que ele não The Structure of Scientific Revolutions repudiaria a analogia. Pois contém inúmeras sugestões, algumas explícitas, outras implícitas, na escolha da linguagem, de um paralelismo significativo entre a ciência, mormente a Ciência Normal, e a teologia. Kuhn discorre acerca de uma edu cação científica como um “processo de iniciação profissional” 28 que “prepara o estudante para a condição de membro de determinada comunidade científica”. 29 Diz ele que “é uma educação estreita e rí gida, provavelmente mais estreita e mais rígida que qualquer outra, exceto talvez a da teologia ortodoxa”. 30 Diz também que a educação científica envolve a reescrita, em manuais, da história de trás para diante, o que indica “um dos aspectos do trabalho científico que mais claramente o distingue de qualquer outra atividade criativa, exceto talvez a teologia": 31 Em outros lugares, a sugestão de um paralelismo entre a ciência e a teologia, embora menos explícita, não é menos óbvia. Diz ele, por exemplo, que a Ciência Normal “suprime freqüen temente novidades fundamentais por serem necessariamente subversivas dos seus compromissos básicos.” 32 E quando Kuhn discute o processo pessoal de repudiar um velho paradigma e abraçar um novo, descreveo como uma “experiência de conversão”, 33 acrescentando que “uma decisão des se gênero só pode ser feita com base a fé.” 34 Entendo, portanto, que, para Kuhn, há uma analogia entre a comunidade científica e a comunidade religiosa e a ciência é a religião do cientista. Assim sendo, talvez se possa perceber por que coloca ele a Ciência Normal acima da Ciência Extraordinária: esta última corresponde, do lado religioso, a um período de crise e cisma, confusão e desespero, a uma catástrofe espiritual. 11
28. Kuhn, Th e Str uctur e of Scie nti fi c Re voluti ons, p. 47. 29. Op. cit., p. 11. 30. Op. cit., p. 165; o grifo é meu. 31. Op. cit., p. 135; o grifo é meu. 32. Op. cit., p. 5. 33. 34.
cit., Op. p. 150. 157. Op. cit., p.
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IV Até aqui, andei considerando as avaliações comparativas de Kuhn da Ciência Normal e da Ciência Extraordinária na suposição de que a história da ciência apresenta, de fato, um ciclo Ciência Normal/ Ciência Extraordinária/Ciência Normal. Contestarei agora essa suposição. Um modo de contestar seria apontar para exemplos históricos contrários, isto é, para longos períodos de história científica em que não emergiu nenhum paradigma claro e durante o qual estive ram ausentes os típicos sintomas da Ciência Normal. Lembro-me de Popper ter dito (no correr das nossas discussões durante o simpósio, sobre o livro de Kuhn) que, embora o newtonianismo se transformasse em algo par ecido com um paradigma no sentido kuhniano, nenhum paradigma dessa natureza emergiu durante a longa história da teoria da matéria 35 : aqui desde os pré-socráticos até os dias atuais tem havido debates infindáveis entre os conceitos contínuos e descontínuos da matéria, entre várias teorias atômicas de um lado, e teorias etéreas, ondulatórias e de campo, de outro. Desejo colocar uma objeção diferente, que diz respeito à possibilidade da emergência de um novo paradigma no fim de um período de Ciência Normal. Não criticarei o relato epidemi ológico que ele apresentou em seu livro, sobre como, depois de um novo paradigma haver contagiado uns poucos agentes transmissores, a epidemia pode espalhar-se pela comunidade científica. Nas primeiro cientista a aceitar o linhas que se seguem concentrarei a atenção no novo paradigma. Minha tese será que um novo paradigma nunca emergirá da Ciência Normal tal como esta foi caracterizada por Kuhn. Começarei recapitulando algumas teses kuhnianas relativas à mudança do paradigma. (1) É da natureza do paradigma gozar de um monopólio em sua influência sobre o pensamento do cientista. O paradigma não tolera rivais: está incluído no conceito de paradigma de Kuhn a noção de que o cientista, enquanto se acha sob a sua influência, não pode pensar seriamente num paradigma rival. Se começou a brincar com um paradigma rival, isso quer dizer que o velho paradigma já está morto para ele. Chamo-a de tese do Monopólio do Paradigma.
35. Um argumento semelhante foi apresentado independentemente por Shapere: cf. o seu trabalho sobre ‘‘The Structure of Scientific Revolutions”, p. 387.
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Du- dley
(2) É pequeno ou nulo o interregno entre o fim do reinado do velho paradigma sobre a mente do cientista e o começo do reinado do novo. O cientista não anda por aí durante um período substancial de tempo sem nenhum paradigma para guiá-lo. Só abandona um paradigma para abraçar outro. (Como se gritasse, O Paradigma morreu. Viva o Paradigma .) Eu chamo-lhe a tese do Nenhum Interregno. (3) O novo paradigma será incompatível com o paradigma por ele 3f i 37 suplantado. na verdade,com vaiomais ainda e mais afirmaadiante que oa novo paradigma será(Kuhn, incomensurável velho.longe Discutirei relação entre incompatibilidade e incomensurabilida- de.) Chamo à tese de Kuhn sobre o choque entre o velho e o novo paradigma de tese da Incompatibilidade. (É evidente que ela reforça a tese do Monopólio do Paradigma.) (4) Da conjunção das três teses acima segue-se que a conversão do cientista de um paradigma velho para um novo tem de ser rápida e decisiva. Kuhn endossa enfaticamente essa implicação. Já o vimos referir-se à mudança de paradigma como a uma “conversão”; e de outras passagens de seu livro se depreende que, no seu entender, tais conversões são aceleradas. Diz ele que uma mudança de paradigma é “um evento relativamente súbito e não -estruturado como a mudança de gestalí ”, 38 e que “não se pode fazer a transição entre paradigmas concorrentes dando um passo por vez. . . Como a mudança de gestalí, ela tem de 39 ocorrer de uma vez (embora não necessariamente num instante)”. Chamo a esta a tese da Mudança de Gestalt. (5) Considerem-se agora as implicações das teses anteriores para a invenção de um novo paradigma. O ponto de vista de Kuhn admite que o paradigma, depois de inventado, pode levar muito tempo para conquistar a aceitação geral. A pergunta é esta: quanto tempo pode levar o inventor srcinal para juntar os rudimentos do novo para digma? Ou digamo-lo de outra maneira: que espécie de pré-história pode ter o novo paradigma? A resposta implícita na tese da Mudança de Gestalt parece ser esta: nenhuma. Antes de mudar -se para ele, pensamento do cientista se exercitava ao longo de linhas irreconcilia - velmente
diferentes (segundo Monopólio tem do Paradigma e da Incompatibilidade). Sua mudança paraasoteses novodoparadigma de ser considerada idêntica à sua invenção do novo paradigma. (Estou
36. 37.
Kuhn, TheS tr uctur e of S cienti fi c R evoluti ons , pp. 91 e 102. 102, 111 e O p. cit., pp. 4,
38. 39.
Op. cit., p. Op. cit., p.
121. 149.
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presumindo que ele foi inventado no interior da comunidade cientí fica e não importado de fontes extracientíficas.) E visto que a mudança para ele foi “relativamente súbita”, sua invenção também deve ter sid o relativamente súbita. Kuhn endossa a implicação. Em seu livro escreveu: “O novo paradigma, ou uma sugestão suficiente para permitir uma articulação posterior emerge de uma vez, às vezes no meio da noite, espírito de um homem profundamente imerso na 11 crise”. 10 E hoje à tarde ele repetiu que as teorias “se inventam em bloco”.' 11 0
Chamo a esta, maliciosamente, a tese Paradigma Instantâneo. café instantâneo leva mais que um instante para do ser feito; mas fazse “de(Ouma vez”, à diferença de uma torta de carne e de rins, da qual se pode dizer que “se faz dando um passo por vez”.) Precisamos lembrar-nos de que o novo paradigma é imediatamente tão poderoso que induz o nosso cientista a voltar-se contra o bem expresso e nãorefutado paradigma que lhe dominou o pensamento científico até então. Isso quer dizer, creio eu, que o novo paradigma não pode começar como se fosse um mero conjunto de idéias fragmentárias mas, desde o princípio, precisa ser suficientemente grande e definido para que suas surpreendentes capacidades latentes sejam manifestas ao seu inventor. A ser assim, afigura-se-me que a tese do Paradigma Instantâneo é escassamente digna de fé do ponto de vista psicológico. Não sei quanto um gênio só é capaz de realizar no meio da noite, mas desconfio de que essa tese espera demasiado dele. Como quer que seja, no entanto, existem exemplos históricos contrários a ela. Para citar apenas um: a Lei do Inverso do Quadrado era um componente importante da teoria newtoniana (que Kuhn considera o paradigma dos paradigmas); e Pierre Duhem remontou a longa evolução da Lei do Inverso do Quadrado, passando por Hooke, Kepler e Copér- nico, até a idéia de 42 Aristóteles de que os corpos procuram o centro da terra. Concluo que se impõe a rejeição da tese do Paradigma Instantâneo.
40. Op. cit., p. 89. 41. N este volu me, p. 40. 42. Duhem, op. c it . capítulo vii, seção 2. O próprio Duhem propõe esse exemplo em apoio da sua resposta enfaticamente negativa "Seguramente não” à pergunta: “A mente [de um homem] é suficientement e poderosa para criar uma teoria física de uma só vez?” (op. cit., capítulo vii, seção 2). Agassi rotulou a própria concepção de Duhem da evolução das idéias cientí ficas de “a teoria da continuidade” (Agassi, Towards an H istori ography of S cience , pp. 31 e seguintes). Agassi ataca o método historiográfico patrocinado por essa concepção; ele, naturalmente, não propõe a contra-afirmação de que as teorias são inventadas de uma só vez.
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A tese do Paradigma Instantâneo proveio da tese da Mudança de Gestalt quando esta última foi aplicada ao primeiro homem que mudou para o novo paradigma. E a tese da Mudança de Gestalt proveio da conjunção das teses do Monopólio do Paradigma, do Nenhum Interregno e da Incompatibilidade. Daí que, se se rejeitar a tese do Paradigma Instantâneo, terá de ser rejeitada uma dessas três. Considerarei primeiro a da Incompatibilidade. Parece haver certa incoerência interna na versão de Kuhn dessa tese. Ele 43 afirma o que “emerge de uma revolução científica nãoantes”. é só incompatível a miúdoque realmente incomensurável com o que se passou Masmas poderiam duas teorias incomensuráveis ser logicamente incompatíveis? Se alguém sustentar, digamos, que os mitos bíblicos e as teorias científicas são incomensuráveis, pertencem a diferentes universos de discurso, estará presumivelmente querendo dizer que o relato da Criação que se lê no Gênese não deveria ser encarado como logicamente incompatível com a geologia, o darwinis- mo, etc.: eles são compatíveis e podem coexistir de modo pacífico exatamente por serem incomensuráveis. Mas se o sistema ptolemaico é logicamente incompatível com o coperniciano, ou a teoria newto- niana com a da Relatividade, a coexistência pacífica não é possível: elas eram alternativas rivais ; e se houve possibilidade de se fazer uma escolha racional entre elas, isso se deveu, em parte, à possibilidade de planejar com elas experiências cruciais (paralaxe estelar, deslocamento de estrelas, etc.). Seja-nos, portanto, permitido desenredar a tese da Incompatibilidade de Kuhn da idéia contrária da incomensurabilidade. Assim purificada, a tese histórica de Kuhn se harmoniza felizmente com a tese metodológica de Popper. Pois para que a teoria seja altamente testá- vel, como o exige a metodologia de Popper, é mister que produza (não só algumas predições notáveis, que ultrapassem o âmbito profético das teorias existentes, mas também) algumas predições que con- flitem com as das teorias existentes, de preferência em áreas em que as teorias existentes foram bem testadas e, até o momento, não apresentaram falhas. Popper diz, com efeito, que os principais avanços teóricos da
ciência devem ter caráter revolucionário; e Kuhn diz, com efeito, caráter revolucionário. Muito bem. Concordemos, portanto, em quequea eles tese da têm Incompatibilidade deve ficar. Nesse caso, a tese do Monopólio do Paradigma e/ou a tese do Nenhum Interregno devem ir embora. Mas estas realmente não se largam. Diz a segunda que o pensamento profissional do cientista é
43. Kuhn, The S tr uctur e oj Sc ienti fi c Re volu ti ons, p. 102.
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sempre dominado por paradigmas, e diz a primeira que ele, em todos os momentos, é dominado por um paradigma. Contra isso sustentei que leva tempo — mais uma questão de anos que de horas — para que um novo paradigma potencial se desenvolva até o ponto de po der desafiar um paradigma estabelecido, de sorte que o pensamento herético começa a funcionar muito antes que possa ocorrer a mudança de paradigma. Isso quer dizer que não é verdade que um paradigma reinante exerça uma influência tão monopolizadora sobre o espírito cientistas que os incapacite para considerá-loadocomtá-las). espíritoIsso crítico, ou para dos brincar com alternativas (sem necessariamente quer dizer que a comunidade científica não é, afinal de contas, uma sociedade fechada que tem por característica principal “o abandono do discurso crítico”.
REFERENCIAS Agassi [1963]: Towards an H istori o gr aphy of Science , 1963. Duhem [1914]: L a th é or i e Ph ysiqu e: son Obj et e t sa S tr uc tur e, 1914. Principia, Philosophical Transactions, Halley [1687]: Crítica dos de Newton, 1687. Reimpressa no livro organizado por I. B. Cohen: I saac N ewton' s Pap ers and L etters on Natur al Phil osophy , 1958, pp. 405-11. Kuhn [1962]: The S tr uctur e of Sc ientif ic Rev olut ion s, 1962. Newton [1669]: Manuscrito, reimpresso no livro organizado por Tumbull: The Cor r espondence of I saa c Newton, 1, pp. 297-303. Newton [1687]: Phil osophiae Natur alis Pri ncipia M athe matica, 1687. Popper [1934]: L og ik der F orsc hung, 1935. Popper [1957]: “The Aim of Science”, Ratio, 1, pp. 24-35. Popper [1963]: Conjectur es and Re fu tations, 1963. Shapere [1964]: “The Structure. of Scientific Revolutions”, Th e Phil osophical Review, 73 , pp. 383-94. Wheeler [1956]: “A Septet of Sibyls: Aids in the Search for Truth”, Th e Ameri can Sc ientist, 44 , pp. 360-77.
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É ADEQUADA A DISTINÇÃO ENTRE CIÊNCIA NORMAL E CIÊNCIA REVOLUCIONÁRIA? STEPHEN TOULMIN University of Michigan
A contribuição do Professor T. S. Kuhn para este simpósio pode ser vista de dois ângulos: como crítica do enfoque de Sir Karl Popper da filosofia da ciência, à luz dos seus contrastes com as opiniões do Professor Kuhn ou, alternativamente, como parte adicional do desenvolvimento da análise de Kuhn do processo da mudança científica. O que aqui me interessa é o segundo desses dois aspectos. Chamare : a atenção para certas mudanças significativas na posição que Kuhn parece agora estar ocupando em relação às que adotou, primeiro em seu ensaio srcinal sobre “A Função do Dogma na Pesquisa Científica” lido no Worcester College, Oxford, em 1961,* e depois em seu livro The Structure of Scientific Revolutions publicado em 1962. E à luz das mudanças, mostrarei como podemos enxergar nosso caminho além da teoria da “revolução científica” de Kuhn para uma teoria mais apropriada da mudança científica. O grande mérito da insistência do Professor Kuhn no caráter “revolucionário” de algumas mudanças na teoria científica foi ter ela obrigado muita gente que a enfrentar pela primeira vez toda a profundidade das transformações conceptuais assinalaram, em certas ocasiões, o desenvolvimento histórico das idéias científicas. Desde o princípio, no entanto, ficou claro para muitos espectadores que o enunciado srcinal da posição de Kuhn, pelo menos em dois sentidos, era apenas provisório. Temos esperado com interesse para ver a direção a que o seu desenvolvimento intelectual o levou depois disso. Em primeiro lugar, embora a sua escolha da palavra “ dogma”
1. Impresso no livro organizado por Crombie, Scienti fi c Change , de 1963, pp. 347-69.
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servisse perfeitamente no título de um trabalho muito interessante na reunião do Worcester College, bastou um exame um pouco mais atento para revelar que sua própria efetividade provinha de certo exagero retórico implícito ou de um jogo de palavras. (Dizer que “toda - a ciência normal repousa numa base de dogma” eqüivalia a dizer “somos todos realmente loucos”; o que talvez funcione numa ou noutra ocasião, mas. . .) A natureza desse de aos palavrasPrincipia tornar-se-á contrastarmos a o aplicação da análise dejogo Kuhn de evidente Newton, seconsiderados como documento fundamental da mecânica clássica, com sua aplicação à Opticks de Newton, que tanta influência exer ceu sobre a física do século XVIII. Tomando primeiro os Principia, podemos enunciar da seguinte maneira um ponto filosófico proveitoso: a função intelectual de um esquema conceptual estabelecido é determinar os padrões da teoria, as questões significativas, as interpretações legítimas, etc., dentro das quais a especulação teórica estará presa enquanto esse determinado esquema conceptual exercer autoridade intelectual sobre a ciência natural a que se refere. Isso (repito) é um ponto filosófico, que indica alguma coisa do que se subentende quando se diz que os processos científicos, tanto na área teórica quanto na prática, são “metódicos” e marcados pelo simples bom senso. Esse determinado ponto, no entanto, nada faz para estabelecer que o dogma desempenha um papel qualquer na teoria científica. Ao contrário, era totalmente razoável — e não-dogmático — para os físicos entre 1700 e 1880 aceitar a dinâmica de Newton como ponto de partida provisório. E é sempre facultado aos cientistas contestar a autoridade intelectual do plano fundamental de conceitos dentro do qual estão trabalhando provisoriamente — sendo o direito permanente à contestação dessa autoridade uma das coisas que assinala como “científico” (como Sir Karl Popper sempre insistiu) o processo intelectual. Por falar nisso, esse primeiro ponto filosófico foi enunciado com maior clareza e menor ambigüidade, há uns vinte e cinco anos, por R. G. Collingwood em seu Essay on Metaphysics (Ensaio sobre Metafísica) 2 . A função intelectual dos “paradigmas” de Kuhn é precisamente a das “pressuposições absolutas” de Collingwood. Alternativamente, se tomarmos como nosso exemplo a Opticks de Newton, poderemos estabelecer um ponto sociológico da seguinte
An Ess ay on M etaphys ics, 2. Collingwood, especialmente capítulos iv-vi. O argumento de Collingwood é discutido, em paralelo com1940, o de Kuhn, em meuosestudo de 1966, “Conceptual Revolutions in Science”.
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maneira: os trabalhadores secundários da ciência tendem a ver apenas parte do quadro intelectual do assunto que lhes interessa, e a restringir a escolha das hipóteses por cujo intermédio interpretam seus dados, por deferência ao suposto exemplo que lhes deixou um trabalhador primário, por eles considerado seu mestre e diante de cuja autoridade magistral se inclinam. O ponto é mais sociológico do que filosófico: nesse caso, pode falar-se com efeito no papel desempe nhado pelo “dogma” no desenvolvimento das idéias científicas. Mas o verdadeiro princípio da sabedoria em qualquer tentativa para compreender a natureza do desenvolvimento intelectual da ciência há de ser, sem dúvida, distinguir entre a autoridade intelectual do esquema conceptual estabelecido e a autoridade magistral do indivíduo dominante. E só quando trabalhadores secundários insistem em reter, digamos, uma teoria corpuscular da luz por respeito à autoridade de Newton, mesmo depois de terem sido aventadas alternativas legítimas com idêntico apoio experimental, é que a palavra “dogma” tem alguma pertinência para a ciência. Ao passar do seu ensaio de Oxford para o livro de 1962, Kuhn retirou sua insistência no termo “dogma”, mas tentou con servar uma distinção central entre “ciência normal” e “revoluções científicas”. Em todo o correr do livro considerou que a idéia dascientífica. “revoluções” tinha algum poder de iluminar e explicar fases da mudança Ncise sentido, sua análise, na melhor dascertas hipóteses, também foi provisória. Como nos ensina a história política, a palavra “revolução” pode servir de rótulo descritivo útil, mas faz muito tempo que perdeu o valor como conceito explanatório. Tempo houve em que, diante das mudanças políticas de uma variedade peculiarmente drástica, os historiadores não titubeavam em dizer, “. . . e então houve uma revolução”, e tudo ficava por isso mesmo; a implicação era que, no caso de mudanças drásticas dessa natureza, não se poderia dar nenhuma explicação racional como as que justificadamente exigimos no caso de desenvolvimentos políticos normais. No devido tempo, porém, eles foram obrigados a reconhecer que a mudança política nunca envolve, de fato, uma solução tão absoluta e tão completa de continuidade. Quer consideremos a Revolução Francesa, quer examinemos a Revolução Norte-americana ou a Revolução Russa, em qualquer um desses casos as c ontinuidades da estrutura e da prática políticas e administrativas são tão importantes quanto as mu danças. (Considerem-se, por exemplo, o sistema legal norte-americano, a prática russa de escoltar turistas e o código francês da herança: o efeito da revolução política foi mudar cada uma delas apenas marginalmente, e o estado de coisas correspondente em cada país antes e depois da revolução em tela eram muito mais sem elhantes
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do que as condições pré-revolucionárias ou pós-revolucionárias nos diferentes países.) Dessa forma, na esfera política, os enunciados a respeito da ocorrência de “revoluções” são apenas pre liminares de perguntas acerca dos mecanismos políticos envolvidos na mudança revolucionária. No nível explanatório, a diferença entre mudança normal e mudança revolucionária na esfera política revelou-se, afinal de contas, mera diferença de grau. A posição adotada pelo Professor Kuhn em seu livro sempre me pareceu exigir restrições similares. De acordo com esse argu mento, as diferenças entre as espécies de mudança que ocorrem durante as fases “normais” e “revolucionárias” do desenvolvimento científico sã o, no nível intelectual, absolutas. Em resultado disso, a sua exposição foi longe demais ao implicar a existência, na teoria científica, de descontinuidades muito mais profundas e muito menos explicáveis do que seu novo trabalho, e le p arece afastar-se um pouco dessa posição srcinal, exposta, para uma posição menos extremada; entretanto, ao fazê-lo (como eu sustentarei) demole inteiramente sua distinção srcinal entre as fases “normais” e as “revolucionárias”. Esta não é, evidentemente, a sua intenção, mas (no meu modo de ver) não se pod e fugir à conseqüência. Seja-me permitido explicar, com a ajuda de uma analogia tirada da história da paleontologia durante os anos que medearam entre 1825 e 1860, por que digo isso. Durante esses anos, construiu-se um dos dois mais influentes sistemas paleontológicos em torno da teoria das “catástrofes”, exposta primeiro por George Cuvier na França e extensamente desenvolvida por Louis Agassiz em Harvard, que enfatizava as descontinuidades absolutas encontradas no registro geológico e paleontológico. Ela possuía o mérito considerável de contestar a suposição (que formava um axioma metodológico básico para os seguidores de James Hutton, incluindo Charles Lyell em seus primeiros anos) de que todos os agentes envolvidos na mudança geológica e paleontológica — tanto inorgânica como orgânica — tinham sido exatamente da mesma espécie e tinham agido exatamente partindo das mesmas emsrcinal, todas autêntica, as fases das da descontinuidades história da terra. Entretanto, da suamaneiras observação geológicas e paleontológicas, Cuvier foi mais adiante, insistindo em que tais descontinuidades eram prova de acontecimentos “sobrenaturais” — isto é, mudanças tão súbitas e violentas que não podiam explicar-se em termos de processos naturais físicos e químicos. As descontinuidades, como ele disse, eram prova de “catástrofes”, e estas (como as “revoluções” originais dos historiadores políticos), algo
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que se não podia ligar intelectualmente. Quando um geólogo dizia, . e então houve uma catástrofe”, estava dizendo que, para a mudança em questão, não havia nenhuma explicação racional, em termos de mecanismos geológicos naturais, como, por exemplo, os responsáveis pela formação de estratos sedimentares normais. Essa interpretação teórica das descontinuidades geológicas e paleontológi- cas foi longe demais. É verdade que, em alguns sentidos, as descontinuidades observadas na crosta da terra eram tão nítidas quanto afirmara Cuvier; mas, à proporção que prosseguia a investigação, verificou-se que elas não eram universais em sua extensão e tampouco se achavam além de toda e qualquer esperança de explicação razoável. Como se resolveu a oposição entre a teoria uniformista e a teoria das catástrofes? Este é o ponto significativo para o nosso propósito aqui. Com o passar do tempo, aconteceram duas coisas. De um lado, geológos e paleontólogos algumas da geração de Lyell viram-se obrigados, aos poucos, a reconhecer que mudanças que constituíam o tema das suas indagações tinham sido de fato mais dramáticas do que eles haviam suposto. Charles Darwin, por exemplo, observou nas costas do Chile os efeitos de terremotos recentes que tinham alterado a localização relativa de vários estratos geológicos numa extensão de até seis metros, num único tremor de terra, e esse descobrimento convenceu Lyell de que terremotos passados, afinal de contas, poderiam tej sido mais severos do que ele supusera. Do lado uniformista, por conseguinte, as idéias foram-se tornando mais e mais “catastróficas”. Nesse meio tempo, no campo ca - tastrofista, as idéias se desenvolveram na direção oposta. Os estudos de Louis Agassiz, em particular, obrigaram-no a multiplicar o número de catástrofes invocadas para explicar a prova geológica real e para diminuir -lhes o tamanho. Em razão disso, as catástrofes ori ginais, “drásticas e inexplicáveis”, finalmente se tornaram tantas, e tão insignificantes, que principiaram a revelar uniformidades, convertendo-se dessa forma em fenômenos geológicos e paleontológicos por si mesmas. Como tais, a afirmativa de que não estavam sujeitas a uma explicação mecanicista ou naturalista um deixou de dos ser mecanismos plausível, e aenvolvidos necessidade —irrespondível. até no caso delas apresentar relato tornou-se Numa — de palavra, as “catástrofes” originais passaram a ser uniformes e governadas por leis exatamente como quaisquer outros fenômenos geológicos e palentoló- gicos. O que os paleontólogos catastrofistas não apreciaram de pronto foi que essa mudança aparentemente inocente, ocorrida dentro da estrutura da sua teoria, lhes destruiu o critério srcinal para distin
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guir entre as mudanças “normais” (ou naturais) e “catastróficas” (ou sobrenaturais) na crosta da terra, e que dessa maneira a própria distinção entre o “normal” e o “catastrófico” desmoronou. Seja-me agora permitido aplicar a analogia. Lendo o atual relato da sua posição, escrito pelo Professor Kuhn, verifico que ele se afas tou da dicotomia srcinal “normal”/“revolucionária” na me sma direção em que Agassiz se afastou da teoria srcinal de Cuvier. Mais uma vez se tornava proveito so e importante, no princípio, insistir em que o desenvolvimento de idéias científicas supõe, por vezes, mudanças tão drásticas que introduzem profundas incongruências conceituais entre as i déias aceitas por sucessivas gerações de cientistas. Ne nhuma teoria de crescimento e desenvolvimento científico seria adequada se não reconhecesse tais descontinuidade s intelectuais e lhes fizesse justiça. Nos seus pri meiros relatos — o livro de 1962, assim como o ensaio de 1961 — Kuhn descreveu essas descontinuid ades “revolucion árias” como absolutas. Elas criaram uma situação em que havia, inevitavelmente, completa incompreensão no nível teórico entre os adeptos do sistema mais velho e os do sistema mais novo de pensamento científico; como, por exemplo, entre um adepto da dinâmica newtoniana mais antiga e um da novao momento dinâmica einsteiniana.suaEraexper inevitável incompreen são adepto porque, chegado de organizar iência, osa dois homens não compartilhavam de uma língua comum, ou de um ponto de vista comum, nem mesmo de uma gestalt comum. Em conseqüência disso, nem a linguagem newtoniana nem a linguagem einsteiniana bastariam para explicar o ponto de vista de cada um dos adeptos ao outro. A ocorrên - car o ponto de vista de cada um dos adeptos. A ocorrência de uma “revolução científica” (ao que parecia) deixou as tentativas de co municação tão completamente fora dos eixos que assegurou a incompreensão. Havia sempre, contudo, um elemento de exagero retórico neste enunciado do assunto, assim como no emprego de Kuhn, a princípio, da palavra “dogma”. Afinal de contas, as carreiras profissionais de inúmeros físicos estenderam-se de 1890 a 1930, e esses homens assistiram à mudança do sistema de pensamento newtoniano para o eins- teiniano. Se o completo colapso da comunicação científica, considerado por Kuhn como característica essencial da revolução científica tivesse de fato ocorrido durante esse período, teria sido possível documentá-lo com a experiência dos mesmos homens. Que descobrimos? Se a mudança conceptual envolvida na transição foi tão profunda quanto o afirma Kuhn, esses físicos pareceram curiosamente inconscientes do fato. Ao contrário, porém, muitos deles foram capa
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zes de dizer após o evento, por que haviam alterado sua posição pessoal, passando de uma atitude clássica para uma atitude relativista — e quando digo “por quê” quero dizer “por que razões. . No entanto, nas palavras de Kuhn, uma mudança de posição dessa natureza só poderia resultar de uma “conversão” — o tipo de mudança mental que um homem descreveria dizendo: “Já não posso ver a Natureza como a via antes...” — ou alternativamente mais como o resultado de “causas” que de “razões” — “Einstein foi tão persua sivo... quanto”,o ou meu“Surpreendi trabalho. . .”.-me mudando sem saber por quê... ”, ou “Isso valia tanto Pode-se admitir, por conseguinte, que o desenvolvimento do pensamento científico supõe importantes descontinuidades concep- tuais, e que os sistemas conceptuais que se substituem dentro de uma tradição científica podem basear-se freqüentemente em princípios e axiomas muito diferentes e até incongruentes; devemos, porém, acau- telar-nos para não acompanhar até o fim a hipótese “revolucionária” srcinal de Kuhn. Pois a substituição de um sistema de conceitos por outro é algo que acontece em virtude de razões perfeitamente boas, ainda que essas “razões” não se possam formalizar em concei tos ainda mais latos ou em axiomas ainda mais gerais. Pois o que pressupõem ambas as partes num debate dessa ordem — tanto os que se aferram à opinião mais antiga, quanto os que apresentam uma opinião nova — não é um corpo comum de princípios e axiomas: é antes um conjunto comum de “processos de seleção” e “regras de seleção”, que são menos “princípios científicos” do que “princípios constitutivos da ciência”. (Eles também podem mudar no curso da história, como o demonstrou Imre Lakatos no caso dos critérios da prova matemática; fazem-no, contudo, mais devagar do que as teorias em cujo julgamento são empregados.) Suponhamos, então, que se conceda a Kuhn que “incompatibili dades conceptuais” entre as idéias de sucessivas gerações de cientistas introduzem efetivamente descontinuidades reais no desenvolvimento do pensamento científico. Se for esta a essência da sua visão do problema, teremos de acompanhá-lo até a fase seguinte do seu argumento, que corresponde ao “catastrofismo modificado” de Agassiz. Pois ao passo que na exposição srcinal de Kuhn as revoluções científicas eram algo que tendia a acontecer em determinado ramo da ciência apenas uma vez em duzentos anos, ou coisa que o valha, as “incompatibilidades conceptuais” com que ele agora se preocupa es sujeitas a aparecer com muito mais freqüência. Numa escala suficientemente pequena, com efeito, são muito freqüentes; e talvez cada
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nova geração de cientistas com idéias srcinais ou “opiniões” próprias se surpreenda, em certos pontos e em certos sentidos, ocupando uma posição oposta à da geração imediatamente anterior. Pode-se perguntar, de fato, se alguma alguma ciência natural, possuidora de um sério componente teórico desenvolve-se vez por um processo exclusivo de “acumulação”. Nesse caso, entretanto, a ocorrência de uma “revolução cientí fica” já não eqüivale a uma dramática interrupção da consolidação contínua e “normal” da ciência; ao invés disso, toma-se uma sim ples “unidade de variação” dentro do próprio processo da mudança científica. Como na paleontologia, desaparece o aspecto hiper-racio- nal das descontinuidades, e — no processo — desmorona a própria base da distinção entre mudança “normal” e mudança “revolucioná ria” na ciência, fundamento e essência da teoria de Kuhn. Pois a “natureza absoluta” da transição envolvida na revolução científica fornecia o critério srcinal para reconhecer a ocorrência de uma mudança. E, assim que reconhecemos que nenhuma mudança conceptual da ciência é absoluta, só nos resta uma seqüência de modificações conceptuais maiores e menores, que diferem uma da outra em grau. Destrói-se dessa maneira o elemento distintivo da teoria de Kuhn, e ficamos a olhar para além dela, à procura de uma nova teoria de mudança científica. Essa teoria terá de ultrapassar o conceito de “revoluções” de Kuhn e dos ingênuos pontos de vista uniformistas a que ele renunciou, assim como a reinterpretação evolucionária da paleontologia de Darwin ultrapassou o catastrofismo de Cuvier e o unifor- mismo de Lyell. Como o Professor Kuhn, acredito que a nova teoria — quando a tivermos — terá de basear-se, em parte, nos resultados de novos estudos empíricos do crescimento e desenvolvimento reais da ciência; que, como resultado, terá de trazer a lógica da ciência para mais perto da sua sociologia e da sua psicologia. Sir Karl Popper) evitar Continuará, todavia, a ser importantíssimo (como enfatiza identificar os critérios lógicos para apreciar novas hipóteses científicas com generalizações acerca da prática real dos cientistas, quer tomados individualmente querdeveria tomados coletivamente como grupos profissionais. Que forma assumir uma teoria dessa natureza? Mais uma vez, a experiência de outras disciplinas históricas poderá dar- nos uma sugestão. Pois mais uma vez tem sido idêntica a proveitosa direção para escapar ao impasse entre os pontos de vista revolucionário e uniformista da mudança histórica: investigar mais atentamente os mecanismos envolvidos e, em particular, os mecanismos da variação e da perpetuação. (Confrontem-se, por exemplo, a Origin of
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Species, de Charles Darwin e a Anatomy of Revolution. de Crane Brinton.) Permitam-me estender um pouco mais a sugestão, ainda que assim antecipe uma exposição que será apresentada detalha damente em outro lugar. 3 Suponha- se que deixemos de pensar nas “micro -revoluções” e m pequena escala de Kuhn como unidades de mudança efetiva na teoria científica, e as variação. Ver-nos-emos então diante encaremos, em vez disso, como unidades de de um quadro da ciência em que as teorias comumente aceitas em cada fase servem de ponto de partida para grande número de variantes sugeridas; mas em que apenas reduzida fração dessas variantes de fato sobrevive e se estabelece no corpo de idéias transmitido à geração seguinte. Dessa maneira, a simples pergunta “como ocorrem as revoluções na ciência?” tem de ser reformulada e dá srcem a dois grupos distintos de perguntas. De um lado precisamos inquirir: “Que fatores determinam o número e a natureza das variantes teóricas apresentadas à consideração numa determinada ciê ncia em determinado perío do?” — contrapartida, na evolução biológica, da pergunta genética sobre a srcem das formas mutantes. De outro lado precisamos indagar: “Que fato res e considerações determinam as variantes intelectuais que logram aceitação, a fim de se estabelecer no corpo de idéias que serve de ponto de partida para o turno seguinte de variações?” — contrapartida das perguntas biológicas sobre seleção. Como em outras disciplinas históricas, portanto, o problema da mudança histórica pode ser proveitosamente reenunciado como um problema de variaçãoe-perpetuação-seletiva. As vantagens desse reenunciado não se podem expor cabalmente aqui, mas uma coisa pelo menos vale a pena indicar. Ele não só nos ajuda a localizar a ambigüidade que leva o debate entre Kuhn e Popper ao desentendimento — a ambigüidade entre a filosofia da ciência, empenhada em descobrir a consideração que deve determinar apropriadamente a seleção entre novas variantes, e a psicologia ou sociologia da ciência, empenhada em atinar com as considerações que de fato resolvem o assunto. Mas também acredito que possa ajudar-nos a resolver algumas velhas perplexidades tocantes à relação entre os fatores externos e internos do desenvolvimento de uma tradição intelectual. Se tratarmos a mudança científica como caso especial de um fenôme no mais
3. Meu ensaio de 1966, “Conceptual Revolutions in Science”, apresenta breve análise do argumento. Uma exposição cabal será dada a lume num livro que está para aparecer sobre a evolução conceptual e o problema do entendimento.
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genérico de “evolução conceptual”, poderemos distinguir pelo me nos três quantidade, de v inovação aspectos diversos dessa evolução. O volume real, ou que se processa num dado campo em qualquer ocasião pode ser distinguida da direção para a qual tende de modo predominante a mesma inovação; e ambas podem ser diferenciadas, por sua vez, dos critérios de seleção que determinam as variantes perpetuadas no interior da tradição. Uma vez que tais distinções sejam feita s com clareza é desejável considerar separadamente até que ponto cada aspecto da mudança científica responde a fatores internos ou externos e será ingênuo supor que haja necessidade de conflito entre as duas espécies de exposição. Aqui vai uma sugestão: o volume de inovação que se processa em qualquer ciência depende, presumivelmente, em grande parte, das oportunidades que se oferecem naquele contexto social para realizar um trabalho srcinal na ciência em questão — daí que o coeficiente de inovação responde substancialmente a fatores externos à ciência. Por outro lado, os critérios de seleção para apreciar as inovações conceptuais na ciência serão, em grande parte, assunto profissional e, portanto, interno: muitos cientistas, de fato, teriam a expectativa de que se trata de assuntos inteiramente internos, profissionais — muito embora isso talvez não passe, na prática, de um ideal irrealizá- vel. Finalmente, a direção da inovação em determinada ciência depende de uma complexa mistura de fatores, internos e externos: as fontes de novas hipóteses são muito variadas e sujeitas a influências e analogias distantes dos problemas pormenorizados que estão à mão. As ramificações mais completas de uma teoria “evolucionária” de mudança científica (que contraste com o “catastrofismo” de Kuhn) devem ser deixad as para outra ocasião. Por enquanto, seja -me permitido rematar este estudo formulando duas perguntas, que ajudarão a encontrar com absoluta precisão o caráter de transição da presente posição de Kuhn. (1) Quão extensas terão de ser as incompatibilidades conceptuais entre as idéias de uma geração científica e as da geração seguinte, a fim de que a transição entre elas constitua uma “revolução científica” segundo a atual exposição de Kuhn? (Pre - sumo que nenhuma foi jamais, na realidade, suficientemente extensa para satisfazer ao seu critério srcinal; portanto, precisamos agora de um novo critério para substituí-la.) (2) Se alguma mudança conceptual entre as teorias de gerações sucessivas capazes de provar incompreensão entre elas tiver de ser aceita como “revolução”, não poderemos exigir uma exposição geral do papel de todas as mudan
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ças conceptuais dessa natureza dentro do desenvolvimento do pensamento científico? Não estamos autorizados, numa palavra, a tratar essas “microrrevoluções” como contrapartidas das “microcatástrofes” de Agassiz e dos últimos geólogos catastrofistas? E, a ser esse o caso, não estaremos, de fato, deixando inteiramente para trás as im plicações originais do termo “revolução"? Os estudiosos da história política, a esta altura, já abandonaram qualquer confiança ingênua na idéia das “revoluções”. Se eu tiver razão, e as “microrrevoluções” da atual posição de Kuhn forem as unidades de toda a inovação científica, a idéia da “revolução científica” terá de seguir a das “revoluções políticas”, abandonando a categoria de conceitos expla - natórios a fim de figurar na categoria dos rótulos meramente descritivos.
R E F E R N C IA S Collingwood [1940]: A n E ssay on M etaphysics, 1940. Crombie ( or g .) [1963]: Scienti fi c Change , 1963. Toulmin [1966]: “Conceptual Revolutions in Science”, no livro organizado por Cohen Wartofsky: Boston Studi es i n the Phi l oso phy oj Science, 3, 1967, pp. 331-47.
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CIÊNCIA NORMAL, REVOLUÇÕES CIENTÍFICAS E A HISTÓRIA DA CIÊNCIA L. PEARCE WILLIAMS Cornell University
Eu gostaria de fazer ura rapidíssimo comentário sobre a divergência entre Kuhn e Popper a respeito da natureza essencial da ciência e a gênese das revoluções científicas. Se bem entendi o pensamento de Sir Karl Popper, a ciência se acha, de um modo básico e constante, potencialmente à beira da revolução. Basta que uma refutação seja bastante grande para constituir uma revolução dessa ordem. Sustenta o Professor Kuhn, por outro lado, que a maior arte do tempo dedicado ao exercício da ciência é o que ele denomina ciência “normal” — isto é, solucionamento de problemas ou resolução de cadeias de argumentos implícitos em trabalhos anteriores. Nessas condições, uma revolução científica, para Kuhn, leva muito tempo para ser construída e só ocorre de tempos em tempos porque a maioria das pessoas não tenta refutar as teorias vigentes. Ambos os lados apresentaram suas posições com detalhes consideráveis, mas a mim me parece haver uma brecha muito importante nas duas teorias. É simplesmente esta: como sabemos de que trata a ciência? A pergunta talvez soe surpreendentemente ingênua, mas tentarei justificá-la. essencialmente, duas maneiras de responder à pergunta. Uma éHá, sociológica; a comunidade científicarespeitáveis pode ser tratada como qualquer outra comunidade e está sujeita à análise sociológica. Notese que isso “pode” ser feito, mas ainda não o foi. Para dizê -lo de outro modo, a maior parte da atividade científica pode ser dirigida para a refutação ou para a “solução do problema”, mas não sabemos se o é ou não. A propósito direi que não estou impressionado com a observação da Srta. Masterman segundo a qual o paradigma é ansiosamente apreendido pelos pesquisadores em campos
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como a ciência dos computadores e as ciências sociais. Afinal de contas, a imagem do homem que se afoga e do pedacinho de palha é familiar. Não acredito que o Dr. Kuhn tencionasse restringir sua análise às ciências embrionárias e estou interessado em saber o que os praticantes das ciências naturais acreditam estar fazendo. Repetindo, acontece simplesmente que não temos essa informação. As dificuldades para compilá-la são enormes. Desejamos apenas uma amostra quantitativa? O que a maioria dos cientistas faz é de fato pertinente ao que constitui a ciência a longo prazo? Pesamos a opinião, digamos, de Peter Debye da mesma maneira que a de um homem que mede acuradamente amostragens nucleares? Não sou sociólogo, mas creio que enfocar o problema através da sociologia seria seguir um caminho espinhoso. Entretanto, deveria notar-se que tanto Kuhn quanto Popper baseiam seus sistemas (no caso de Kuhn) no que os cientistas fazem (sem nenhuma prova sólida de que fazem ciência dessa maneira) ou (no caso de Popper) no que deviam fazer (com pouquíssimos exemplos para persuadir-nos de que isso está certo). Tanto Kuhn quanto Popper realmente baseiam suas concepções da estrutura da ciência na sua história e o ponto principal de minhas observações é que a história da ciência não pode suportar essa carga por ora. Simplesmente não sabemos o suficiente para permitir que se erija uma estrutura filosófica sobre uma base histórica. Por exemplo, não podelevadas haver melhor da “ciência do que as pesquisas experimentais a efeitoilustração por Michael Faradaynormal” no terreno da eletricidade na década de 1830. Começando com a descoberta “acidental” da indução eletromagnética em 1831, cada novo passo parecia provir claramente do anterior. Aqui estava a solução-de-problemas mais evidente possível. Esse é o ponto de vista tradicional de Fara day, mestre experimentador, que, a crermos em Tyndall, ou mesmo em Thompson, nunca teve uma idéia teórica em sua vida. Entretanto, assim que passamos dos escritos publicados para o Diário, as notas e as cartas manuscritas, vemos surgir um estranho Faraday. Desde 1821 ele estava testando hipóteses fundamentais sobre a natureza da matéria e da força. Quantos cientistas “normais” (tais como se de finem pelos seus escritos publicados) são, no fundo, realmente revolucionários? Espera-se que, um dia, a história da ciência seja capaz de responder a isso mas, por enquanto, ninguém pode dizer. Antes que os seguidores de Popper, fiquem demasiadamente satisfeitos eu gostaria de erguer diante deles o espectro da história da espectroscopia entre os anos de 1870 e 1900. Creio que se pode com toda justiça descrever esse período como um período de levan
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tamento cartográfico, em que os espectros dos elementos eram descritos com precisão cada vez maior. Aqui se processa uma pequena e precisa “refutação” e, não obstante, seria difícil negar a Angstrõm o título de cientista. Nem se deveria esquecer que um dos “soluciona - dores de problemas” mais bem -sucedidos da história da ciência foi Max Planck, que se distinguiu também como um dos revolucionários mais relutantes de todos os tempos. Como cumpre-me ver tanto Popper quanto Kuhn com um olho maishistoriador, ou menos portanto, deformado. Ambos ventilaram questões de importância fundamental; ambos forneceram visões profundas da natureza da ciência; mas nenhum reuniu provas sólidas bastantes para levar-me a crer que a essência da busca científica foi capturada. Continuarei a usar os dois como guias nas minhas pesquisas, tendo sempre em mente a observação de Lorde Boling - broke de que “a história é o ensino da filosofia pelo exemplo”. Preci samos de um número muito maior de exemplos.
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A C I NC IA N OR MA L E S EU S P ER IG OS KARL POPPER London School of Economics
A crítica do Professor Kuhn às minhas opiniões sobre ciência é a mais interessante que já encontrei até agora. Há, reconhecidamente, alguns pontos, mais ou menos importantes, em que ele não me entende ou me interpreta mal. Kuhn, por exemplo, cita com desaprovação um trecho do início do primeiro capítulo do meu livro, The Logic of Scientific Discovery (A Lógica da Descoberta
Ceintífica). Pois eu gostaria de citar uma passagem que ele deixou passar, constante do Prefácio da Primeira Edição. (Na primeira edição a passagem em apreço vinha logo antes do trecho citado por Kuhn; mais tarde inseri o Prefácio da Edição Inglesa entre as duas passagens.) Ao passo que o breve trecho citado por Kuhn poderá soar, fora do contexto, como se eu não estivesse a par do fato, destacado por ele, de que os cientistas desenvolvem necessariamente suas idéias dentro de uma estrutura teórica definida, seu imediato predecessor de 1934 soa quase como uma antecipação desse ponto central da opinião de Kuhn. Depois de duas epígrafes tiradas de Schlick e de Kant, meu livro começa com as seguintes palavras: “Um cientista empenhado numa pesquisa, digamos no campo da física, pode atacar diretamente o seu problema. Pode ir logo ao âmago do assunto: isto é, ao coração de uma estrutura organizada. Pois já existe uma estrutura de doutrinas científicas; e, com ela, uma situação — problema geralmente aceito. É por isso que ele pode deixar para outros o ajuste de sua contribuição à estrutura do conhecimento científico.” E, a seguir, prossigo dizendo que o filósofo se encontra em posição diferente. Agora parece muito claro que a passagem citada descreve a situação “normal” do cien tista de modo muito semelhante a Kuhn: há um edifício, uma estrutura organizada da ciência que fornece a o cientista uma situação — problema geralmente aceito a que o seu
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próprio trabalho pode ajustar-se. Isso se parece muito com um dos pontos principais de Kuhn: a saber, que a ciência “normal", como ele a chama, ou o trabalho “normal” do cientista, pressupõe uma estru tura organizada de suposições, ou uma teoria, ou um programa de pesquisas, necessário à comunidade de cientistas a fim de poderem discutir racionalmente o seu trabalho. O fato de haver Kuhn passado por alto esse ponto de concordância e de haver-se aferrado ao que vinha imediatamente depois, e que ele supunha fosse um ponto de discordância meexpectativas parece significativo. Mostra só lemos compreendemos um livro com definidas em nossaque mente. Isso, dee fato, pode ser considerado uma das conseqüências de minha tese de que abordamos tudo à luz de uma teoria preconcebida. Assim também um livro. Em conseqüência disso, estamos sujeitos a escolher as coisas de que gostamos ou desgostamos ou que desejamos, por outros motivos, encontrar no livro; e assim fez Kuhn ao ler o meu livro. Entretanto, apesar desses pontos secundários, Kuhn me compreende muito bem — melhor, creio eu, do que a maioria dos críticos que conheço; e suas duas críticas principais são muito importantes. A primeira dessas críticas sustenta, em poucas palavras, que passei totalmente por alto o que ele denomina ciência “normal”, e me empenhei exclusivamente em descrever o que ele denomina “pesquisa extraordinária” ou “ciência extraordinária”. Creio que a distinção entre as duas espécies de atividades talvez não seja tão nítida quanto o quer Kuhn; entretanto, estou pronto para admitir que, na melhor das hipóteses, não tive mais que uma obscura consciência dessa distinção; e o que é mais, que a distinção aponta para algo de sum a importância. Nessas circunstâncias, é relativamente secundário serem ou não os termos de Kuhn, ciência “normal” e ciência “extraordinária”, até ce rto ponto petições de princípio e (no sentido de Kuhn) “ideológi cos”. Creio que são tudo isso; o que, porém, não diminui meus sentimentos de gratidão a Kuhn por haver assinalado a distinção e por haver assim aberto meus olhos para uma série de problemas que eu ainda não tinha visto com clareza. A ciência “normal”, no sentido de Kuhn, existe. É a atividade do profissional não-revolucionário, ou melhor, não muito crítico: do estudioso da ciência que aceita o dogma dominante do dia; que não deseja contestá-lo; e que só aceita uma nova teoria revolucionária quando,; quase toda a gente está pronta para aceitá-la — quando
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ela passa a estar na moda, como uma candidatura antecipadamente vitoriosa a que todos, ou quase todos, aderem. Resistir a uma nova moda exige talvez tanta coragem quanto criar uma. Vocês talvez digam que, ao descrever dessa maneira a ciência “normal” de Kuhn, eu o estou criticando implícita e sub-repticiamen- te. Afiançarei, portanto, mais uma vez, que o que Kuhn descreveu existe, e precisa ser levado em consideração pelos historiadores da ciência. O fato de tratar-se de um fenômeno de que não gosto (porque o considero perigoso para a ciência), ao pass o que Kuhn, apar entemente, não desgosta dele (p orque o considera “normal”) é outro assunto ; assunto, aliás, muitíssimo importante. A meu ver, o cientista “ normal”, tal como Kuhn o descreve, é uma pessoa da qual devemos ter pena. (Consoante as opiniões de Kuhn acerca da história da ciência, muitos grandes cientistas devem ter sido “normais”; ent retanto, como não tenho pena deles, não creio que as opiniões de Kuhn estejam muito certas.) O cientista “normal”, a meu juízo, foi mal ensinado. Acredito, e muita gente acredita como eu, que todo o ensino de nível universitário (e se possível de nível inferior) devia consistir em educar e estimular o aluno a utilizar o pensament o crític o. O cientis ta “normal”, descrito por Kuhn, foi ma) ensinado. Foi ensinado com espírito dogmático: é uma vítima da doutrinação. Aprendeu uma técnica que se pode aplicar sem que seja preciso perguntar a razão pela qual pode ser aplicada (sobretudo na mecânica quântica). Em conseqüência cientista aplicado, em contraposição disso, tornou- se o que pode ser chamado ao que eu chamaria cientista puro. Para usarmos a expressão de Kuhn, ele se contenta em resolver “enigmas”. 1 A escolha desse termo parece indicar que Kuhn deseja destacar que não é um problema realmente fundamental o que o cientista “normal” está preparado para enfrentar: é, antes, um problema de rotina, um problema de aplicação do que se aprendeu; Kuhn o descreve como um problema em que se aplica a teoria dominante (a que ele dá o nome de “paradigma”). O êxito do cientista “normal” consiste tão -só em mostrar que a teoria dominante pode ser apropriada e satisfatoriamente aplicada na obtenção de uma solução para o enigma em questão.
1. Não sei se o emprego do termo "enigma” por parte de Kuhn tem alguma coisa que ver com o emprego de Wittgenstein. Wittgenstein, naturalmente, empregou-o em conexão com sua tese de que n ão h á pr ob l ema s gen u ín os em filosofia — apenas enigmas, isto é, pseudoproblemas ligados ao uso impróprio da linguagem. Seja como for, o emprego do termo “enigma" em lugar de “problema” indica, por certo, um desejo de mostrar que os problemas assim descritos não são muito sérios nem muito profundos.
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A descrição do cientista “normal” feita por Kuhn lembra -me claramente uma conversa que tive com meu falecido amigo, Philipp Frank, por volta de 1933. Nessa ocasião Frank se queixava amargamente do enfoque da ciência sem espírito crítico característico da maioria dos estudantes de engenharia. Eles queriam simplesmente “conhecer os fatos”. Rejeitavam as teorias ou hipóteses problemáticas, que não fossem “geralmente aceitas”: elas intranqüilizavam os estudantes, que só queriam conhecer as coisas, os fat os, que pudessem aplicar em sã consciência semesse análises introspectivas. Admito eque tipo de atitude existe; e existe não só entre engenheiros, mas também entre pessoas educadas como cientistas. Só posso dizer que vejo um grande perigo nisso e na possibilidade que tem de tornar-se normal (assim como vejo um grande perigo no aumento da especialização, outro fato histórico inegável): um perigo para a ciência e, na verdade, para nossa civilização. O que mostra por que considero tão importante a ênfase dada por Kuhn à existência desse tipo de ciência. Acredito, porém, que Kuhn se equivoca quando sugere que é normal o que ele chama de ciência “normal”. Claro está que eu nem sonharia brigar por causa de um termo. Mas gostaria de sugerir que poucos cientistas lembrados pela história da ciência foram “normais” no sentido de Kuhn, se é que houve algum que o fosse. Em outras palavras, discordo de Kuhn não só no tocante a certos fatos históricos, mas também no tocante ao que é característico da ciência. Tome-se por exemplo Charles Darwin antes da publicação de The Origin of Species (A Origem das Espécies). Mesmo depois dessa publicação ele foi o que se poderia descrever como um “revolucionário relutante”, para usarmos a bela descrição de Max Planck feita pelo Professor Pearce Williams; antes dela, Darwin não tinha nada de revolucionário. Nada se assemelha a uma atitude revolucionária consciente em sua descrição de The Voyage of the Beagle (A Viagem do Beagle). Mas ela está cheia de problemas; problemas autênticos, novos e fundamentais, e engenhosas conjeturas — conjeturas que competem freqüentemente umas com as outras — a respeito de possíveis soluções. Dificilmente haverá uma ciência menos revolucionária do que a botânica descritiva. Não obstante, o botânico descritivo enfrenta constantemente problemas autênticos e interessantes: problemas de distribuição, problemas de localizações características, problemas de diferenciação de espécies ou subespécies, problemas como os da sim-
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biose, inimigos característicos, doenças características, variedades re sistentes, variedades mais ou menos férteis, e assim por diante. Muitos problemas descritivos obrig am o botânico a empreg ar um enfo que experimental; e isso leva à fisiologia das plantas e, assim, a uma ciência teórica e experimental (em lugar de uma ciência puramente “descritiva”). As várias fases dessas transições fundem-se de modo quase imperceptível e surgem em cada fase problemas autênticos em lugar de “ enigmas”. Mas talvez Kuhn chame “enigma” ao que eu cham aria “proble ma”; e o fato é que não queremos brigar por causa de palavras. Seja- me, portanto, permitido dizer alguma coisa mais geral a respeito da tipologia dos cientistas de Kuhn. Afirmo que entre o “cientista normal” de Kuhn e o seu “cientis ta extraordinário” há muitas gradações; e é preciso que haja. Tome -se Boltzmann, por exemplo; haverá poucos cientistas maiores do que ele. Dificilmente, porém, se poderá dizer que sua grandeza consiste em haver ele prepar ado uma revolução importante porque era, em extensão considerável, um seguidor de Maxwell. Mas estava tão longe de ser um “cientista normal” quanto se pode estar; lutador co rajoso, resistiu à moda imperante em seu tempo — moda que, a propósito, só imperou no continente e teve poucos seguidores, naquela época, na Inglaterra. Acredito que a idéia de Kuhn de uma tipologia dos cientistas e dos períodos ci entíficos é importa nte, mas necessita de restrições. O seu esquema de períodos “normais”, dominados por uma teoria impe rante (um “paradigma”, segundo a terminologia de Kuhn) e segui dos de revoluções excepcionais, parece ajustar-se muito bem à astronomia. Mas não se ajusta, por exemplo, à evolução da teoria da matéria; nem à evolução da teoria das ciências b iológicas desde, d igamos, Darwin e Pasteur. Em relação ao problema da matéria, sobretudo, tivemos pelo menos três teorias dominantes que competiram desde a Antigüidade: as teorias da continuidade, as teorias atômicas e as teorias que tentavam combinar as duas primeiras. Além disso, tivemos por algum tempo a versão de Berkeley feita por Mach — a teoria de que a “matéria” era um conceito mais metafísico do que científico: de que não havia nada parecido com uma teoria física da estrutura da matéria; e de que a teoria fenomenológica do calor deveria tornar-se o paradigma por excelência de todas as teorias físicas. (Emprego aqui a palavra “paradigma” num sentido um pou co diferente do que lhe dá Kuhn: não para indicar uma teoria dominante, mas um programa de esquisa — um modo de explicação
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considerado tão satisfatório por alguns cientistas que eles exigem a sua aceitação geral.) Conquanto eu considere importantíssimo o descobrimento de Kuhn do que ele chama de ciência “normal”, não concordo com a afirm ativa de que a história da ciência lhe apóia a doutrina (essencial à sua teoria da comunicação racional) segundo a qual “normalmente” temos uma teoria dominante — um paradigma — em cada domínio científico, e ainda segundo a qual a história de uma ciência consiste numa seqüência de teorias dominantes, com períodos revolucionários intervenientes de ciência “extraordinária”; períodos que ele descreve como se a comunicação entre cientistas se houvesse interrompido mercê da ausência de uma teoria dominante. Essa imagem da história da ciência conflita com os fatos tais como os vejo. Pois sempre houve, desde a Antigüidade, constante e proveitosa discussão entre as teorias dominantes concorrentes da m atéria. Agora, em seu atual ensaio, Kuhn parece propor a tese de que a lógica da ciência tem pouco interesse e nenhum poder explanatório para o historiador da ciência. Afigura-se-me que, vinda de Kuhn, essa tese é quase tão paradoxal quanto o foi a tese “Eu não uso hipóteses” exposta na Optics de Newton. Pois assim como Newton usava hipóteses, assim Kuhn usa a lógica — não só para argumentar, mas também no mesmíssi- mo sentido em que me refiro à Lógica da Descoberta. Ele emprega, todavia, uma lógica da descoberta que, em certos pontos, difere radicalmente da minha: a lógica de Kuhn é a lógica do relativismo histórico. Permitam-me mencionar primeiro alguns pontos de concordância. Acredito que a ciência é essencialmente crítica; que consiste em conjeturas audazes e, portanto, pode ser descrita como revolucionária. Sem pre acentuei, todavia, a necessidade de algum dogmatismo: o cientista dogmático tem um papel importante para representar. Se nos sujeitarmos à crítica com demasiada facilidade, nunca descobriremos onde está a verdadeira força das nossas teorias. Mas Kuhn não quer saber desse dogmatismo. Acredita no domínio de um dogma imperante por períodos consideráveis; e não acredita que o método da ciência seja, normalmente, o método de conjeturas audazes e de crítica. Quais são os seus principais argumentos? Não são psicológicos nem históricos — são lógicos: Kuhn sugere que a racionalidade da ciência pressupõe a aceitação de uma referencial comum. Sug ere que
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a racionalidade depende de algo como uma linguagem comum e um conjunto comum de suposições. Sugere que a discussão racional e a crítica racional só serão possíveis se estivermos de acordo sobre questões fundamentais. Essa é uma tese amplamente aceita e, com efeito, está na moda: a tese do relativismo. E é uma tese lógica. Considero-a equivocada. Admito, naturalmente, que é muito mais fácil discutir enigmas dentro de um referencial comum aceito e ser levado pela maré de uma nova moda imperante a um referencial novo referencial, do que discutir princípios fundamentais — isto é, o próprio de nossas suposições. Mas a tese relativista de que a estrutura não pode ser discutida criticamente pode ser discutida criticamente e não resiste à crítica. Dei-lhe o nome de O Mito do Referencial, e discuti-a em várias ocasiões. Considero-a um equívoco lógico e filosófico. (Lembro-me de que Kuhn não gosta do meu emprego da palavra “equívoco”; mas essa aversão é simplesmente parte do seu relativismo.) 2 Eu gostaria de dizer em poucas palavras por que não sou relativista: acredito na verdade “absoluta” ou “objetiva”, no sentido de Tarski (embora, naturalmetne, não seja um “absolutista”, pois não penso que eu, nem qualquer outra pessoa, temos a verdade no bolso). Não duvido de que este seja um dos pontos em que estamos mais profundamente divididos; e é um ponto lógico. Admito que a qualquer momento somos prisioneiros apanhados no referencial das nossas teorias; das nossas expectativas; das nossas experiências passadas; da nossa linguagem. Mas somos prisioneiros num sentido pickwickiano; se o tentarmos, poderemos sair de nosso refe rencial a qualquer momento. Ê verdade que tornaremos a encontrar-nos em outro referencial, mas este será melhor e mais espaçoso; e poderemos, a quaisquer momento, deixá-lo também. O ponto central é que é sempre possível uma discussão crítica e uma comparação dos vários referenciais. Não passa de um dogma — e um dogma perigoso — o que estatui que os diversos referenciais são como é que nem línguas totalmente linguagens mutuamente intradutíveis. O fato diferentes (como o inglês e o hopi, ou o chinês) são intraduzíveis, e que existem inúmeros índios ou chineses que aprenderam a dominar perfeitamente o inglês.
2. Veja, por ex emplo, o Capítulo 10 das m inhas Conj ectur es a nd Re fu - tati ons, e o primeiro Addendum à 4.* (1962) e à últ ima edição do volume ii de minha
Open Socie ty.
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O Mito do Referencial, em nosso tempo, é o baluarte central do irracionalismo. A tese que lhe oponho é que ele simplesmente exagera a dificuldade, transformando-a numa impossibilidade. Não se pode deixar de admitir a dificuldade da discussão entre pessoas educadas situadas em diferentes referências. Mas nada é mais proveitoso que uma discussão dessa natureza; do que o embate cultural que estimulou algumas das maiores revoluções intelectuais. Admito que uma revolução intelectual se assemelha com freqüência a uma conversão religiosa. Uma nova visão das coisas pode apanhar-nos como o fuzilar de um raio. Mas isso não quer dizer que não podemos avaliar, crítica e racionalmente, nossos pontos de vista anteriores à luz dos novos. Seria, desse modo, simplesmente falso dizer que a transição da teoria da gravidade de Newton para a de Einstein é um salto irracional e que as duas não são racionalmente comparáveis. Existem, ao contrário, inúmeros pontos de contato (tais como o papel da equação de Poisson) e pontos de comparação: segue-se da teoria de Einstein que a teoria de Newton é uma excelente aproximação (a não ser no que concerne aos planetas e cometas que se movem em órbitas elípticas com excentricidades consideráveis). Nessas condições, em ciência, à diferença do que acontece na teologia, é sempre possível o confronto crítico das teorias concorrentes, dos referenciais que competem entre si. E a negação dessa possibilidade representa um equívoco. Na ciência (e só na ciência) podemos dizer que fizemos progressos genuínos e que sabemos mais agora do que sabíamos antes. Assim sendo, a diferença entre mim e Kuhn remonta, de maneira fundamental, à lógica. E o mesmo acontece com toda a teoria de Kuhn. À sua proposta: “A Psicologia em lugar da Lógica da Desco berta” podemos responder: todos os seus argumentos advêm da tese de que o cienti sta é logicamente obrigado a aceitar um referencial, visto que nenhuma discussão racional é possível entre referenciais. Eis aí uma tese lógica — mesmo que seja uma tese equivocada. De fato, como já expliquei alhures, o “conhecimento científico” pode ser considerado como destituído de objeto. 3 Pode ser encarado como um sistema de teorias do qual trabalhamos como trabalham
3. Veja agora minha palestra intitulada “Epi stemology Without a Kno- wing Subject” estampada nas Atas do Te r ceir o Congr esso I ntern acional de L ógica, M etodologia e F i l oso f i a da Ciênci a, que se realizou em Amsterdã, no ano de 1967.
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os pedreiros numa catedral. A meta é descobrir teorias que, à luz da discussão crítica, cheguem mais perto da verdade. Desse modo, a meta é o aumento do 4 conteúdo de verdade das nossas teorias (o que, como já demonstrei, só pode ser conseguido pelo aumento do seu conteúdo). Não posso concluir sem assinalar que, no meu en tender, é surpreendente e decepcionante a idéia de recorrer à sociologia ou à psicologia (ou ainda, como Pearce Williams recomenda, à história da ciência) a fim de informar-se a respeito das metas da ciência e do seu progresso possível. De fato, cotejadas com a física, a sociologia e a psicologia estão cheias de modas e dogmas não-controlados. A sugestão de que podemos encontrar aqui algo parecido com uma “descrição pura, objetiva” está claramente equivocada. Além disso, como pode o retrocesso a tais ciências, a miúdo espúrias, ajudar-nos a resolver essa dificuldade? Não será sociológica (nem psicológica, ou histórica) a ciência a que vocês desejam recorrer a fim de decidir quanto monta a pergunta “Que é ciênciaT’ ou “Que é, de fato, normal em ciência?” Pois vocês, evidentemente, não querem recorrer à orla lunática sociológica (ou psicológica ou histórica)? E a quem desejam consultar: ao sociólogo (ou psicólogo, ou historiador) “normal” ou ao “extraordinário”? Por isso considero tão surpreendente a idéia de recorrer à sociologia ou à psicologia. E considero-a tão decepcionante porque ela mostra que foi baldado tudo o que eu disse até agora contra as tendências e processos sociologistas e psicologistas, especialmente na história. Não, esta não é a maneira, como a simples lógica pode mostrar; e assim a resposta à pergunta de Kuhn “Lógica da Descoberta ou Psicologia da Pesquisa?” é a seguinte: enquanto que a Lógica da Descoberta tem muito pouca coisa para aprender com a Psicologia da Pesquisa, esta tem muito que aprender com aquela.
4.
Veja meu estudo intitulado ‘‘A Theorem on Truth
- Content”, publicado na obra
M ind, M atte r, and M ethod , de Feigl Festschrift, organizado por P. K. Feyerabend e Grover
Maxwell, em 1966.
71
A NA TUR EZ A DO P ARA DIG MA MARGARET MASTERMAN Cambridge
Language Research Unit
1. 2.
3.
4.
A dificuldade inicial: as múltiplas definições de paradigma dadas por Kuhn. A originalidade da noção sociológica do paradigma de Kuhn: o paradigma é algo que pode funcionar quando não existe a teoria. A conseqüência filosófica da insistência de Kuhn na centrálidade da ciência normal', filosoficamente falando, o paradigma é um artefato que pode ser utilizado como expediente na solução de enigmas; e não como visão metafísica do mundo. O paradigma precisa ser uma “ima gem concreta usada analogi- camente; porque precisa ser um "modo de ver’’.
5.
Conclusão : visão prévia das características lógicas do paradigma.
O propósito deste estudo é elucidar a concepção de paradigma de T. S. Kuhn; e foi escrito na suposição de que T. S. Kuhn é um dos mais notáveis filósofos da ciência do nosso tempo. É curioso que, até agora, nenhuma tentativa tenha sido feita para elucidar essa noção de paradigma, fundamental a toda con
1. Este ensaio é uma versfio ulterior de um trabalho que me pediram para apresentar quando fosse discutida a obra de T. S. Kuhn neste Simpósio; e que não pude escrever por ter sido acometida de severa hepatite infecciosa. Dedic o, portanto, esta nova versão aos médicos, às enfermeiras e ao pessoal do Pavilhão n.° 8 do Norwich Hospital, que permitiram fosse um índice dos assuntos ventilados por Kuhn feito numa cama de hospital. Foi-lhe dada uma forma capaz de conformar-se da melhor maneira possível com a contribuição convalescente que acabei fazendo da platéia do Simpósio.
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cepção da ciência de Kuhn tal como ele a expôs em sua The Structure of Scientific Revolutions? Isso talvez aconteça porque esse livro é, ao mesmo tempo, cientificamente claro e filosoficamente obscuro. Está sendo muito lido, e cada vez mais apreciado, pelos verdadeiros pesquisadores científicos, de modo que deve ser (até certo ponto) cientificamente bem expresso. Por outro lado, os filósofos lhe têm dado interpretações muito diversas, o que nos faz supô-lo filosoficamente obscuro. O motivo dessa dupla reação, a meu ver, deriva de haver Kuhn olhado realmente para a ciência, em diversos campos, em lugar de restringir a sua esfera de leitura ao campo da história e da filosofia da ciência, ou seja, a um só campo. Até agora, portanto, na medida em que o seu material é reconhecível e familiar aos cientistas verdadeiros, estes lhe consideram o pensamento fácil de compreender. Na medida em que o mesmo material é estranho e pouco familiar aos filósofos da ciência, estes consideram opaco qualquer pensamento que nele se baseie. Na realidade, porém, a forma de pensar de Kuhn não é opaca, senão complexa, já que reflete, filosofica mente falando, a complexidade do seu material. De um modo semelhante, em Proofs and Refutations 3 introduziu Lakatos nova complexidade e novo realismo em nossa concepção da matemática, porque examinou com atenção o que os matemáticos realmente fazem quando refinam e mudam os dispositivos e idéias uns dos outros. Como filósofos, por conseguinte, devemos progredir além do novo “ponto de realismo” relativo à ciência estabelecido por esses dois, e não regredir aquém dele. E, como cientistas, cabenos examinar com suma atenção a obra dos dois destacados pensadores, visto que, mesmo como um simples guia geral, podem ser de efetiva utilidade no interior da ciência. O presente estudo é escrito mais de um ponto de vista científico do que de um ponto de vista filosófico; embora deva ser dito de início que não me ocupo de ciências físicas, mas das ciências do computador. Nessas condições, longe de expressar dúvidas a respeito da existência da “ciência normal” de Kuhn, aceito -a por verdadeira. Não há necessidade de continuar aqui invocando a história. Que existe ciência normal — e que ela é exatamente como Kuhn a descreve — é o fato notável, esmagadoramente óbvio, que se depara a se dispõe, de um modo prático ou tecnoló
qualquer filósofo da ciência que
2. A concepção apresentada neste estudo baseia-se no livro de Kuhn The St r ucture of e não no resto da sua obra publicada. Todos os números de páginas incluídos no texto referem-se a esse trabalho de Kuhn. Scientific Revolutions,
3.
Lakatos, “Proofs and Refutations”.
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gico, a empreender alguma pesquisa científica real. Foi por haver Kuhn — finalmente — notado o fato central a propósito de toda ciência real (pesquisa básica, aplicada, tecnológica, são todas iguais aqui), de que se trata normalmente de uma atividade governada por hábitos, de solução-de-enigmas, e não uma atividade fundamentalmente perturbadora ou falseadora, (isto é, de que não se trata de uma atividade filosófica), que os verdadeiros cientistas estão agora, cada vez mais, lendo Kuhn em vez de ler Popper: tanto que, sobretudo nos novos campos científicos, a “palavra correta” passou a ser “paradigma” e deixou de ser “hipótese”. É pois cientificamente urgente e filosoficamente importante tentar descobrir o que é o paradigma kuhniano. Sendo científico o meu ponto de vista global, o presente estudo também aceita por verdadeiro que a ciência como é realmente exercida — a saber, a ciência mais ou menos como Kuhn a descreve — é também a ciência como deve ser exercida. Pois se não houver algum mecanismo autocorretor que opere no interior da própria ciência, não haverá esperança de que, cientificamente falando, as coisas venham a emendar-se depois de desandar. Pois a única coisa que os cientistas que trabalham não farão é modificar sua maneira de pensar, no exercício da ciência, ex more philosophico, porque Popper e Feyera- bend pontificam para eles como se fossem teólogos do século XVIII; prin cipalmente porque tanto Popper quanto Feyerabend costumam pontificar ainda mais que os teólogos do séc ulo XVIII. 4 Receio que o prefácio me tenha saído um tanto agressivo; a necessidade de comprimir o material e a indignação que me causou o que chamarei no estudo o “eterismo -da-filosofia-da- ciência” foram a razão disso. Em todo caso, sobretudo 5 em vista de algumas expressões menos moderadas de Watkins, um pouco de agressividade em favor de Kuhn injetada neste simpósio não fará mal a ninguém.
4. Feyerabend, “Explanation, Reduction and Empiricism”, p. 60. (Essa explosão mais do que profética inclui dentro em si mesma uma metaexplosão contra a filosofia lingüística contemporânea de Oxford.) Veja também, mais sucintamente, Watkins no presente simpósio. 5. Por e xemplo, na comparação entre a concepção de Kuhn da “comuni dade científica como sociedade essencialmente fechada, intermitentemente sacudida por colapsos nervosos coletivos seguidos de um uníssono mental res taurado”, e a (nobre) concepção de Popper da mesma sociedade como sociedade aberta; veja Watkins, neste volume, p. 34, nota de pé de página 2 e pp. 29-30. Esta última contém uma deformação realmente muito grosseira da verdadeira concepção de Kuhn — deformação repetida nas pp. 31-32, e em todo o tom do trecho, em que acusa Kuhn de “ver a ciência como a religião do cientista”; e no trecho em que discute o que ele denomina “A
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1 . A DIFICULDADE INICIAL: AS MÚLTIPLAS DEFINIÇÕES DE PARADIGMA DADAS POR KUHN. Duas dificuldades vitais se apresentam aos que le vam a sério a “nova imagem da ciência” de Kuhn/’ Na primeira, que é a sua con cepção de verificação da experiência (ou a ausência dela), não concordo com ele e nisso me parece que o mundo filosófico empirista tem argumentos contra ele. Mas no segundo, que é a sua concepção do paradigma, sobejam-lhe argumentes contra esse mundo. Pois não somente o paradigma de Kuhn, a meu ver, é uma idéia fundamental e nova na filosofia da ciência e, portanto, uma idéia que merece ser examinada, mas também, conquanto dependa dela toda a concepção geral de Kuhn da natureza das revoluções científicas, os que o atacam nunca se deram ao trabalho de descobrir do que se trata. Ao invés disso, presumem sem discutir que o paradigma é uma “teoria básica” ou um “ponto de vista metafísico geral”; ao passo que, a meu juízo, é muito fácil mostrar que, em seu sentido primário, ele não pode ser uma coisa nem outra. Kuhn, naturalmente, com o seu estilo quase poético, torna a elucidação do paradigma autenticamente difícil para o leitor sup erficial. De acordo com a minha contagem, ele emprega a palavra “paradigma” em pelo menos vinte e um sentidos diferentes em sua The Structure of Scientific Revolutions. Assim descreve um paradigma: (1) Como uma realização científica universalmente reconhecida (p. x): “ [Paradigmas] são, no meu entender, realizações científicas universalmente reconhecidas que, durante algum tempo, fornecem modelos de problemas e soluções para uma comunidade de profissionais.” (2) Como mito (p. 2): “Os historiadores defrontam -se com dificuldades crescentes no distinguir o componente “científico” da observação e da crença passadas daquilo que os seus predecessores rotularam de "erro” e "superstição”. Quanto mais cuidadosamente estudam, digamos, a dinâmica aristotélica, a química flogística, a termodinâmica calórica, mais seguros se sentem de que essas concepções outrora vigentes da natureza não eram, no seu todo, menos científicas nem mais recorrentes da idiossincrasia humana do que as concepções hoje dominantes. Se tais crenças antiquadas podem ser denominadas mitos, os mitos
Tese do Paradigma Instantâneo’’. Diga -se a bem da justiça que Watkins se desculpa duas vezes pela desnecessária violência do estilo; de uma feita, quando se acusa corretamente de “certa injustiça inconsciente”; e, de outra, quando confessa estar falando “um tanto maldosamente". Mas que um filósofo sério do seu calibre se considere justificado em ser, ao mesmo tempo, superficial e inexato na crítica e violento no estilo — não é apenas motivo de comentários, mas também de surpresa. 6. Kuhn, Th e Str uctur e of S cientif ic Re voluti ons, pp. 1 e 3.
podem ser produzidos pelos mesmos tipos de métodos e mantidos pelos mesmos tipos de razões que hoje conduzem ao conhecimento científico. Se, por outro lado, elas tiverem de ser chamadas ciência, então a ciência incluiu corpos de crenças totalmente incompatíveis com as que sustentamos hoje.” (3) Como “filosofia” ou constelação de perguntas (pp. 4 -5): “[Nenhuml grupo científico pode exercer seu ofício sem um conjunto qualquer de crenças recebidas. Nem isso torna menos importante a constelação a que o grupo, em dado momento, está de fato ligado. A pesquisa eficaz dificilmente começará antes que a comunidade científica pense ter adquirido respostas firmes a perguntas como estas: De que entidades fundamentais se compõe o universo? Como interagem elas entre si e com os sentidos? Que perguntas podem ser legitimamente formuladas a respeito dessas entidades e que técnicas se podem empregar na busca de soluções?” (4) Como manual, ou obra clássica (p. 10): “‘Ciência Normal’ significa pesquisa firmemente baseada em realizações científicas passadas, realizações que alguma comunidade científica reconhece por algum tempo como propiciadoras da base da sua prática subseqüente. Hoje tais realizações são relatadas, se bem que raramente na forma srcinal, pelos manuais científicos, elementares e avançados. Esses manuais expõem o corpo da teoria aceita, ilustram muitas ou todas as suas aplicações bem-sucedidas, e comparam tais aplicações com observações e experiências exemplares. Antes que esses livros se tornassem populares no princípio do século XIX (e até mais tarde nas ciências recém-desenvolvidas), muitos dos famosos clássicos da ciência desempenharam função semelhante. A F ísi ca de Aristóteles, o Almageslo de Ptolomeu, os Pr i nc ípi os e a Ótica de Newton, a Eletricidade de Franklin, a Qu ím i ca de Lavoisier e a
Geologia de Lyell — estas e muitas outras obras serviram, durante algum tempo, implicitamente, para definir os problemas e métodos legítimos de um campo de pesquisa para sucessivas gerações de profissionais. Elas puderam fazê-lo porque partilhavam de duas características essenciais. Sua realização era tão sem precedentes que atraía um grupo duradouro de adeptos, desviando-os de tipos concorrentes de atividade científica. Ao mesmo tempo, era tão aberta que deixava a solução de todas as espécies de problemas para o grupo redefinido de profissionais. Às realizações que partilharem dessas duas características chamarei, daqui por dian te, ‘paradigmas’. ”
(5) Cómo toda uma t radição e, em certo sentido, como modelo ( pp. 10 -11): “... alguns exemplos aceitos da prática científica verdadeira — exemplos que incluem ao mesmo tempo a lei, a teoria, a aplicação e a instrumentação — fornecem modelos dos quais emanam tradições coerentes de pesquisa científica. São as tradições que, para o historiador, pertencem a rubricas como “astronomia ptolemaica” (ou “coperniciana”), “dinâmica aristotélica” (ou “newtoniana”), "ótica corpuscular” (ou "ondulatória”), e assim por diante. O estudo de paradigmas, incluindo inúmeros outros muito mais especializados do que os acima mencionados, prepara o aluno para fazer parte de determinada comunidade científica com a qual praticará mais tarde.” (6) Como realização científica (p. 11): “Vis to que neste ensaio o con ceito de paradigma substituirá uma variedade de noções familiares, urge dizer mais alguma coisa acerca das razões da sua introdução. Por que a realização científica concreta, como local de compromisso profissional, é anterior aos vários conceitos, leis, teorias e pontos de vista que podem ser abstraídos dela? Em que sentido é o paradigma partilhado numa unidade fundamental para o estudioso do desenvolvimento científico, unidade que não se pode reduzir ple-
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namente a componente s logicamente atômicos, capazes de funcionar em seu lugar?” (7) Como analogia (p. 14): "Um grupo primitivo de teorias, que se seguiram à prática do século XVII, considerava a atração e a geração produzidas pelo atrito como os fenômenos elétricos fundamentais. Esse grupo tendia a tratar a repulsão como efeito secundário, que se devia a uma espécie de rebote mecânico e também a adiar para o mais tarde possível a discussão e a pesquisa sistemática do recém-descoberto efeito de Gray, a condução elétrica. Outros “eletricistas” (o termo é deles mesmos) consideravam a atração e a repulsão manifestações igualmente elementares da eletricidade e modificaram, nessa conformidade, suas teorias e sua pesquisa. (Na verdade, esse grupo é notavelmente pequeno — a própria teoria de Franklin nunca tanta explicou cabalmente a mú o tua repulsãogrupo de dois corpos com carga negativa.) Mas ele encontrou dificuldade quanto primeiro para explicar simultaneamente qualquer um dos efeitos menos simples de condução. Esses efeitos, no entanto, forneceram o ponto de partida para um terceiro grupo, que tendia a falar em eletricidade como um “fluido” capaz de correr através de condutores em lugar de um “eflúvio" que emanava de não condutores.” (8) Como espe cula ção met afí sic a bem-su cedi da (pp . 17- 18): " . . . na s fases iniciais do desenvolvimento de qualquer ciência, homens diferentes que enfrentam a mesma série de fenômenos, mas nem sempre os mesmos fenômenos, descrevem-nos e interpretam-nos de maneiras diferentes. O que surpreende e talvez seja único em seu grau para os campos a que chamamos ciência, é que essas divergências iniciais sempre desaparecem... Para ser aceita como paradigma, uma teoria precisa parecer melhor do que suas concorrentes, mas não precisa explicar, como de fato nunca explica, todos os fatos com que se pode defrontar.” (9) Como dispositivo aceito na lei comum (p. 23): “Em seu uso esta belecido, o paradigma é um modelo ou padrão aceito, e esse aspecto do seu significado me facultou, por falta de palavra melhor, apropriar-me aqui da pa lavra “paradigma”. Logo, porém, se tornará claro que o sentido de “model o" e “padrão” que permite a apropriação não é exatamente o sentido habitual da definição de “paradigma". Em gramática, por exemplo, um paradigma porque mostra o modelo que se deve usar na conjugação “amo, amas, amai" é de grande número de outros verbos latinos como, por exemplo, na produçã o de " laudo, lauda s, laudat”. Nessa aplicação normal, o paradigma funciona permitindo a reprodução de exemplos que poderiam, em princípio, servir para substituí-lo. Numa ciência, por outro lado, o paradigma raro é objeto de reprodução. Ao invés disso, como decisão judicial aceita na lei comum, é objeto de articulação e especulação subseqüentes sob novas e mais rigorosas condições.” (10) Como font e de inst rumen tos (p. 37) : " . . . os inst rume nto s conceptuais e instrumentais fornecidos pelo paradigma.” (11) Como ilustração normal (p. 43): "Atenta investigação histórica de determinada especialidade em dado momento revela uma série de ilustrações recorrentes e quase normais de várias teorias em suas aplicações conceptuais, observacionais e instrumentais. Tais são os paradigmas da comunidade, revelados em seus manuais, conferências e exercícios de laboratório. Estudando-os e praticando com eles, os membros da comunidade correspondente aprendem o seu ofício. O historiador, é claro, descobrirá, além disso, uma área de penumbra ocupada por consecuções cujo status ainda se acha em dúvida, mas a essência
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dos problemas resolvidos e das técnicas será geralmente claro. A despeito de ambigüidades ocasionais, os paradigmas de uma comunidade científica desenvolvida podem ser determinados com relativa facilidade.” (12) Com o exp edien te, ou tipo de inst rumen ta ção (pp . 59-60 ): " . . . ele s negaram antecipadamente a tipos paradigmáticos de instrumentação o seu direito a esse título. Em suma, conscientemente ou não, a decisão de empregar determinada parte do aparato e usála de certo modo traz consigo a suposição de que só surgirão determinadas circunstâncias. Há expectativas tanto instrumentais quanto teóricas, e elas têm desempenhado com freqüência um papel decisivo no desenvolvimento científico. Uma expectativa dessa natureza, por exemplo, faz parte da história do descobrimento do oxigênio. Utilizando um teste comum destinado a avaliar “a qualidade do ar”, tanto Priestley quanto Lavoisier mis turaram dois volumes do seu gás com um volume de óxido nítrico, sacudiram a mistura s obre a água e mediram o volume do resíduo gasoso. A experiência precedente, da qual surgira esse processo comum, asseguravalhes que, em se tratando do ar atmosfé rico, o resíduo seria de um volume e que, em se tratando de qualquer outro gás (ou de ar poluído), o resíduo seria maior. Nas experiências que fizeram com o oxigênio, os dois cientistas encontraram um resíduo de aproximadamente um volume, e assim identificaram o gás. Só muito mais tarde e graças, em parte, a um acidente, renunciou Priestley ao processo comum e tentou misturar óxido nítrico com o seu gás em outras proporções. Descobriu então que, com o quádruplo do volume de óxido nítrico, quase não havia resíduo. Seu compromisso com o procedimento srcinal do teste — procedimento sancionado por muitas experiências anteriores — havia sido igualmente um compromisso com a não-existência de gases capazes de comportar-se como se comportava o oxigênio. Poderíamos multiplicar as ilustrações desse tipo reportando-nos, por exemplo, à identificação da fissão do urânio. Um dos motivos por que essa reação nuclear se revelou especialmente difícil de reconhecer foi que os homens que sabiam o que deviam esperar ao bombardear o urânio escolhiam testes químicos que visavam sobretudo a elementos da extremidade superior da tabela periódica. Deveremos, acaso, concluir da freqüência com que tais ligações instrumentais se revelam falazes que a ciência deve abandonar os testes e os instrumentos comuns? Isso resultaria num método inconcebível de pesquisa. Os processos e aplicações do paradigma são tão necessários à ciência quanto as leis e as teorias do paradigma. . .” (13) Como um baralho de cartas anômalo? 7 (14) Como fábrica de máquinas-ferramentas (p. 76): “Enquanto os ins trumentos fornecidos por um paradigma continuarem a revelar-se capazes de resolver os problemas que ele define, a ciência caminhará mais depressa e penetrará mais fundo através do emprego confiante desses instrumentos. A razão é clara. Assim como acontece na manufatura assim acontece na ciência — a renovação do equipamento é uma extravagância que deve ser reservada para a ocasião oportuna.” (15) Como figura de gestalt que pod e se r vi sta de du as m anei ras ( p. 8 5): " . . . as marcas no papel vistas primeiro como um pássaro são vistas agora como um antílope, ou viceversa. Esse paralelo pode ser ilusório. Os cientistas não vêem alguma coisa como outra; simplesmente a vêem. Já examinamos alguns
7. Cf. a discussão de Kuhn da exp eriência de Bruner-P ostman, op. cit., pp. 62-3.
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problemas criados dizendo que Priestley viu oxigênio como ar deflogisticado. Além disso, o cientista não preserva a liberdade do sujeito da gestalt a fim de brandi-la de um lado para outro, entre maneiras de ver. Não obstante, a mudança de gestalt, principalmente por ser hoje tão familiar, é um protótipo elementar útil para o que ocorre numa mudança de paradigma em escala normal.” (16) Com o con jun to de inst itui ções pol íti cas (p. 92) : " . . . só a cri se atenua o papel das instituições políticas, como já a vimos atenuar o papel dos paradigmas." (17) Como “modelo” aplicado à quase -metafísica (p. 102): “E assim como o problema muda, assim muda, com freqüência, o modelo que distingue a verdadeira solução científica de uma simples especulação metafísica, de um jogo de palavras ou de um jog o m ate má tic o." (18) Como princípio organizador capaz de governar a própria percepção (p. 112): “Examinando a rica literatura experimental da qual f oram tirados esses exemplos somos levados a suspeitar que algo semelhante a um paradigma é um prérequisito da própria percepção." (19) Com o pon to de vist a epis tem oló gico gera l (p. 120 ): " . . . o par a digma filosófico iniciado por Descartes e desenvolvido ao mesmo tempo como a dinâmica newtoniana.” (20) Como um novo modo de ver (p. 121): “Os cientistas... falam conseqüentemente em “véus que caem dos olhos” ou no “relâmpago luminoso” que “inunda” um enigma até então obscuro, permitindo que seus componentes sejam vistos de um novo modo.. (21) Como algo que define ampla extensão de realidade (p. 128): paradigmas determinam grandes áreas de experiência ao mesmo tempo.”
“Os
É evidente que nem todos esses sentidos de “paradigma” são incompatíveis entre si: alguns podem ser elucidações de outros. Sem embargo, dada a diversidade, é obviamente razoável perguntar: “Ha verá alguma coisa em comum entre todos? Haverá, filosoficamente falando, alguma coisa definida ou geral acerca da noção de paradigma que Kuhn está tentando esclarecer? Ou ele não passa de um poeta-historiador que descreve sucessos diferentes ocorridos no decurso da história da ciência e a eles se refere empregando a mesma palavra paradigma?” de sentidos responder essa pergunta textuala deixamTentativas claro quepreliminares os vinte e um de a“paradigma” de pela Kuhncrítica pertencem três grupos principais. Pois quando equipara o “paradigma” a um conjunto de crenças (p. 4), a um mito (p. 2), a uma especulação metafísica bem-sucedida (p. 17), a um modelo (p. 102), a um novo modo de ver (pp. 117-21), a um princípio organizador que governa a própria percepção, (p. 120), a um mapa (p. 108), e a alguma coisa que determina uma grande área de realidade (p. 128), é evidente que ele tem muito mais em mente uma noção
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ou entidade metafísica do que uma noção ou entidade científica. Chamarei, portanto, aos paradigmas desse tipo filosófico paradigmas metafísicos ou meiaparadigmas', e estes representam a única espécie de paradigma a que, pelo que sei, se referiram os críticos filosóficos de Kuhn. O segundo sentido principal de “paradigma” de Kuhn, no entanto, dado por outro grupo de empregos, é sociológico. Assim, ele define “paradigma” como realização científica universalmente reconhecida (p. x), como realização científica concreta (pp. 1011), como conjunto de instituições políticas (p. 91), e também como decisão judicial aceita (p. 23). Chamarei a esses paradigmas de natu reza sociológica de paradigmas sociológicos. Finalmente, Kuhn em prega a palavra “paradigma” de modo ainda mais concreto, como verdadeiro manual ou obra clássica (p. 10), como fornecedor de instrumentos (pp. 37 e 76), como instrumentação real (pp. 59 e 60); lingüisticamente, como paradigma gramatical (p. 23), ilustrati- vamente, gestalt e como como analogia (v.g. à p. 14); e psicologicamente, como figura de um baralho de cartas anômalo (pp. 63 e 85). Chamarei aos paradigmas dessa espécie paradigmas de artefato ou paradigmas de construção. A partir deste momento presumirei (embora peça algumas desculpas aos estudiosos) que a crítica textual de Kuhn só nos dá, no fim, paradigmas metafísicos, sociológicos e de construção; e discutirei primeiro o sentido sociológico de “paradigma”.
2.
A ORIGINALIDADE DA NOÇÃO SOCIOLÓGICA DO PARADIGMA DE KUHN: O PARADIGMA É ALGO QUE PODE FUNCIONAR QUANDO NÃO EXISTE A TEORIA.
Visto sociologicamente (em contraposição à sua concepção filosófica) o paradigma é um conjunto de hábitos científicos. Seguin do esses hábitos a solução bem-sucedida de problemas pode continuar; eles tanto são intelectuais, verbais, comportamentais, quanto mecânicos e tecnológicos, pertencendo a qualquer um desses gêneros ou a todos ao mesmo tempo; tudo depende do tipo de problema que está sendo resolvido. A única definição explícita de paradigma, com efeito, que Kuhn apresenta é em função desses hábitos, conquanto os reúna a todos sob o nome de realização científica con creta. “Ciência normal”, diz ele (p. 10), significa “pesquisa baseada numa ou em mais de uma realização científica passada, que alguma
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comunidade reconhece durante algum tempo como fornecedora dos fundamentos da sua prática ulterior”. Tais realizações (i) “suficien temente sem precedentes para atrair um grupo duradouro de adep tos, desviando-os de modos concorrentes de atividade científica ’’, e (ii) “suficientemente abertas para deixar todas as espécies de problemas ao grupo redefinido de profissionais a fim de que os resolvam. Às realizações que partilharem das duas características chamarei, daqui por diante, paradigmas". Assim, atribuindo o lugar central, na ciência real, a uma realização em lugar de atribuí -lo a umadeteoria abstrata, Kuhn, únicoque entre os filósofosconcreta da ciência, coloca-se em condições dissipar a preocupação tanto aturde o cientista que trabalha ao defrontar-se pela primeira vez com a filosofia da ciência profissional: “Como poderei utilizar uma teoria que não existe?” Além disso, o próprio Kuhn não tem dúvida de que os seus paradigmas, assim sociologicamente definidos, são anteriores à teoria. (Essa é parte da razão por que ele deseja uma nova palavra, que não seja “teoria” para descrevê -los.) Pois “por que”, pergunta a si mesmo (p. 11), é o paradigma, ou realização científica, “como um local de compromisso profissional, anterior aos vários conceitos, leis, te orias e pontos de vista que dele se podem abstrair?” Infeliz mente (e tipicamente) tendo formulado essa pergunta tão pertinente, Kuhn não dá a si mesmo resposta alguma, e ao leitor cabe encontrar a resposta, se puder. Mas, pelo menos, torna-se claro que, para Kuhn, algo sociologicamente descritível e, acima de tudo, concreto, já existe na fases i niciais da ciência real, quando a teoria não existe. Também merece ser observado que, sejam quais forem os padrões sinonímicos que Kuhn tenha sido levado a estabelecer no auge de sua argumentação, ele, na realidade, jamais equipara “paradigma” — em nenhum dos seus principais sentidos — a “teoria científica”. Pois o seu metaparadigma é algo muito mais amplo do que a teoria e ideologicamente anterior a ela: isto é, toda uma Weltanschauung. Seu paradigma sociológico, como vimos, também é anterior à teoria, e diferente dela, por ser algo concreto e observável: a saber, um conjunto de hábitos. E o seu paradigma de construção é menos que uma teoria, visto que pode ser algo tão pouco teórico quanto uma simples parte de um aparato: isto é, qualquer coisa capaz de provocar a ocorrência real de uma solução de enigma.
Assim sendo, as tão difundidas opiniões de que Khun, n a rea lidade, não está dizendo nada de novo; ou de que, na medida em que é um filósofo, suas opiniões são essencialmente idênticas às de Feyerabend; ou ainda de que ele deve estar tentando dizer as mesmas coisas que Popper (visto que Popper disse primeiro tudo o que há de verdadeiro na filosofia da ciência), mas de que ele não as diz com muita eficiência nem com o tipo certo de ênfase; todas essas opiniões, 8 depois de um exame verdadeiro do texto de Khun, se revelam falsas. São, com efeito, as diferenças entre a “nova imagem” da ciência segundo Khun (ou, como lhe chamarei a partir de agora, a “concepção paradigmática” da ciência) e todas as outras filosofias da ciência de que tenho conhecimento, que fazem com que o livro de Khun seja tão extensamente lido e que eu me prepare para escrever este ensaio. Tentarei dizer, portanto, na próxima seção, o que me parece encontrar-se na concepção paradigmática que, estabelecendo com êxito o cientificismo característico da ciência, combate vitoriosamente o filosofismo etéreo da “metafísica falsável”, que caracteriza a conc epção popperiana. Depois disso tentarei dizer alguma coisa sobre o efeito que a concepção paradigmática de Kuhn tem sobre a “concepção hipotético -dedutiva” mais antiga e mais fechada; pois a concepção paradigmática, surpreendentemente, me parece muito mai s próxima da segunda dessas concepções que a primeira. Em conclusão, aludirei ao que, na minha opinião, serão as características lógicas distintivas e revolucionárias do paradigma de Kuhn, depois de despojado do seu meio sociológico e depois de encarado de um modo geral e filosófico. Derivarei todas essas características lógicas da propriedade básica do paradigma, à qual darei o nome de con- cretismo ou “crueza”. Antes de começar tudo isso, e para rematar convenientemente esta seção, tentarei esboçar, de maneira impressionista, as diferenças que observei entre a concepção de ciência de Kuhn e a concepção de Feyerabend, visto que este, além de ser o filósofo da ciência que, até agora, mais se aproxima de Khun, é também o que maiores estudos dedicou à sua obra. 9 A principal diferença, ao meu juízo, é que, mercê do seu preconceito sociológico geral, os interesses de
8. Eu poderia documentar tudo isso: m as n ão o farei. 9. Feyerabend, “Explanation, Reduction and Emplricism”, p. 32. O que aqui se encontra é um relato muito descuidado do ensaio de Feyerabend, pelo que desejo pedir desculpas, que dei uma impressão positiva e sumária do que é, na realidade, uma série de resultados visto negativos.
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Kuhn são muito mais amplos que os de Feyerabend. Kuhn se interessa tanto pela ascensão quanto pela queda da ciência, por todo o processo de seres humanos que tentam chegar a uma explicação científica. Feyerabend se interessa apenas pela queda; suas análises giram todas em torno desse sentido de explicação que ele supõe sinônimo de redução; Feyerabend, por exemplo, pressupõe a existência de pelo menos uma teoria plenamente inteligível. Mas Kuhn não pressupõe coisa 10 alguma; de início, nem mesmo os seus paradigmas. Vasculha a verdadeira história e põe-se a refletir; lê manuais científicos de ensino e se interroga. Por conseguinte, uma investigação que tenha por objetivo a srcinalidade de Kuhn será também uma investigação das formas cruas e das fases iniciais da ciência. E é isso, acima de tudo, que torna o seu trabalho atraente para os cientistas em novos campos; principalmente, é claro, para os estudiosos das ciências sociais e da psicologia experimental. Uma das razões por que a filosofia da ciência profissional parece etérea aos verdadeiros cientistas da pesquisa, é qu e os modernos filósofos da ciência, tomados como grupo, têm trabalhado para trás. Primeiro tivemos a concepção hipotético-dedutiva, cuja base é o sistema dedutivo único, aparentemente articulado, coerente, plenamente inteligível, completo e bem interpretado — ideal que nenhuma ciência alcança, mas do qual, se Kuhn estiver certo, todos os manuais de ensino, numa ciência difícil avançada, tenta 11
aproximar-se. Depois disso tivemos a mais nova concepção de Feyerabend (que se seguiu à de Popper), da fase que vem antes: isto é, de duas teorias muito mais novas, muito menos bem rematadas que concorrem para cobrir o que se pode chamar “o mesmo campo” (embora apenas num sentido pickwickiano). Nenhum filósofo da ciência moderna, até agora, retrocedeu mais cedo às fases em que não há quaisquer teorias, como direi na seção seguinte, ou em que há um número excessivo delas (se a palavra “teoria” for usada metafísica ou coloquialmente) e nenhum campo claro. Entretanto, em vista da atual proliferação das pretensas novas ciências, para que a filosofia da ciência pudesse tornar-se como deve ser, um guia cientificamente útil para pesquisadores verdadeiros, já devia ter sido feito algum movimento filosófico retrocedente. Na minha opinião, Kuhn fez esse movimento; ou tentou fa zê-lo.
10. Antes de assumir a sua atual posição intelectual, o desenvolvimento de Kuhn estendia-se por certo número de campos e passava pelo menos por seis fases (veja a sua The Structu r e of S cientif ic Re voluti ons , prefácio, pp. vii-x). The S tr uctu r e of S cientif ic Re voluti ons, p. 1; pp. 1-2; p. 10; pp. 135 e 11. p. Kuhn, seguintes; xi; e veja também a seção IV, mai s adian te.
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3.
A CONSEQÜÊNCIA FILOSÓFICA DA INSISTÊNCIA DE KUHN NA CENTRALIDADE DA CIÊNCIA NORMAL: FILOSOFICAMENTE FALANDO, O PARADIGMA É UM ARTEFATO QUE PODE SER UTILIZADO COMO EXPEDIENTE NA SOLUÇÃO DE ENIGMAS, E NÃO COMO VISÃO METAFÍSICA DO MUNDO.
Os que estão impressionados com a primazia analítica dada por Kuhn à sociologia em oposição à filosofia, como a indicar as pistas principais dos funda mentos da verdadeira ciência, poderiam dizer: “Por que é que você insiste na idéia do ‘paradigma’? Trata -se apenas do nome dado por Kuhn a um conjunto de hábitos. Esses hábitos existem, não há dúvida; mas o fa to não tem importância filosófica.” Isso não está certo, nem mesmo em relação a Kuhn. Além dos seus paradigmas sociológicos (sentido 2), ele tem paradigmas me tafísicos (sentido 1) e paradigmas de artefato ou paradigmas de construção (sentido 3). È fácil mostrar que tem pelo menos esses. Mas deixando de lado que Kuhn, tomado agora como filósofo, disse realmente a respeito de paradigmas, há uma razão mais profunda e imediata para não nos contentarmos com um sentido puramente sociológico de “paradigma”; e essa razão é que qualquer definição deste último não pode deixar de ser circular. Pois, a fim de estabelecer a prioridade (temporal) do paradigma em relação à teoria na ação científica, temos de defini-lo, sociologicamente, como realização científica concreta já conhecida, ou conjunto já estabelecido de hábitos. Mas como poderá o próprio cientista, numa nova ciência, descobrir primeiro que está seguindo numa futura realização científica concreta, se não souber que está seguindo um paradigma? Há aqui claramente uma circularidade: primeiro definimos o paradigma como realização já concluída; depois, de outro ponto de vista, descrevemos a realização como construída em torno de um paradigma já existente. Poder-se-ia argumentar, naturalmente, que, se empreendêssemos seriamente o estudo sociológico pormenorizado, através da observação, de novas ciências contemporâneas, em lugar de limitar-nos à análise histórica detalhada, através da percepção tardia, de passadas ciências rançosas, essa circularidade, para propósitos práticos, po deria ser quebrada; visto qu e, se existissem, poderíamos descobrir paradigmas no processo de formação. Mas mesmo então, como saberíamos que estávamos procurando paradigmas, e não outras coisas,
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a não ser que já soubéssemos, não-sociologicamente, o que era um paradigma? É evident e que o sentido primário de “paradigma” tem de ser filosófico; e o paradigma tem de existir antes da teoria. Es tabelecido isto, o homem que diz; “Que é, na realidade, este ‘paradigma’, que é essa entidade?”, pode ser convidado, como resposta, a verificar o que está acontecendo num novo campo científico. Pois numa ciência nova, não só é quase certo que falta a teoria formal; mas também muita atividade científica de grande poder se dirige para a escolha precisa do momento em que valerá a pena o trabalho de construí-la. A alternativa é “continuar como estamos indo agora”; isto é, com algum truque, ou técnica embrionária, ou imagem, e um discernimento da sua aplicabilidade nesse campo. E é esse truque, mais esse discernimento que, juntos, constituem o paradigma. A metafísica explícita (o que o próprio cientista denomina “a filosofia” ou “o gás”), a mais plena inovação matematizante, os processos experimentais mais desenvolvidos — todas essas coisas cujo conjunto, no depois, virá a ser “a realização científica concreta estabelecida” — quase sempre aparecem muito depois do truque- -prático-inicial, que trabalha-o-suficiente-para-que-a-suaescolha-encor- pore-uma-visão-potencial, isto é, depois do primeiro teste do paradigma. De fato, na ciência genuína e viva, o próprio esforço para estabelecer uma “realização científica concreta” precisa justificar -se. Para que a teoria resultante (e/ou a técnica mais exata e dispendiosa) seja aceitável, é preciso que ela permita a obtenção de resultados que não se poderiam obter de outra maneira. Nenhum bom cientista deseja estabelecer uma realização dessa natureza só para figurar mais tarde em livros de filosofia da ciência. Menos ainda desejará teoricamente limpar o seu tema removendo da descrição coloquial dos fatos até aqui usada qualquer análise possível dos verdadeiros centros de dificuldade. Assim, o problema real na obtenção de uma filosofia da nova ciência consiste em descrever filosoficamente o truque ou expediente srcinal em que se funda o paradigma sociológico (isto é, o conjunto de hábitos). Com tudo isso em mente, é esclarecedor voltarmo-nos de novo comparativamente ao primeiro e ao terceiro sentidos de “paradigma” de Kuhn. Como já vimos, se perguntarmos o que é um paradigma kuhniano,todavia, o hábitoo das definições múltiplas de Kuhn coloca um problema. Se perguntarmos, que faz um paradigma, logo se torna claro (presumindo-se sempre a existência da ciência nor mal) que o fundamental é o sentido de construção de “paradigma”, e não o sentido metafísico ou metaparadigma. Pois só com um artefato se podem solucionar enigmas. E conquanto tenha afirmado ini
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cialmente (p. 36) que vai empregar a palavra “enigma” no sentido literal, comum, de dicionário, e mais tarde fraqueje e fale (p. 42) sobre “a metáfora que relaciona a ciência normal com a solução de enigmas”, Kuhn possui, de um modo geral, uma idéia firme, literal e muito concreta do que dizer com a atividade de solução de enigmas da ciência normal. Um enigma científico normal tem sempre uma solução (p. 36) garantida pelo paradigma, mas que requer engenho e perspicácia para ser encontrada. Tipicamente (p. 35), a solução é conhecida com antecipação, como acontece com qualquer outro enigma, mas o caminho passo a passo que conduz a ela não o é. O cientista normal é um adepto da solução de enigmas (p. 37); e é nessa solução de enigmas — não apenas um vago “soluciona - mento de problemas”, mas uma solução de enigmas — que consiste prototipicamente a ciência normal. E um enigma é sempre um artefato. Está certo dize r que o paradigma “fornece instrumentos” (pp. 37 e 76) ou, vagamente, que possibilita solução de problemas. Continua a ser verdade que no tocante a qualquer enigma que deva ser solucionado pelo emprego do paradigma, este terá de ser uma construção, um artefato, um sistema, um instrumento; juntamente com o manual de instruções para utilizá-lo com êxito e um método de interpretação do que ele faz. Entretanto, a ser verdade que o paradigma de construção de Kuhn, e nenhum dos seus outros dois sentidos princip ais de “paradigma”, é o que proporciona a chave filosófica da verdadeira natu reza dos paradigmas de uma nova ciência, localizando com precisão o truque ou expediente que põe em movimento uma nova ciência; enfim, a ser verdade tudo isso, então por que razão todos os filósofos da ciência, exceto eu, entenderam ser evidente que por “paradigma” Kuhn aludia a uma visão metafísica do mundo, e que o seu sentido fundamental de “paradigma” era o sentido 1 e não o sentido 3? A explicação imediata é fácil. Eles não levaram a sério a descrição da ciência normal feita por Kuhn. Entretanto, ainda se poderá pensar que, dizendo tudo isso, eu pretenda repudiar o que os filósofos da ciência estão dizendo atualmente sobre a ciência que emerge da metafísica (a concepção “metafísica falseável”); ou que estou ig 12 norando o que diz o próprio Kuhn a propósito da ciência pré-para- digmática ; ou que estou promulgando de um m odo marxista a
12. E, com efeito, estou sendo descuidada acerca do que diz Kuhn no tocante à ciência pré-paradigmática, exatamente como fui descuidada antes a respeito de Feyerabend. Veja, todavia, a discussão do assunto no fim desta seção.
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lei sobre a motivação de toda ciência nova para ser tecnológica. Isso não acontece. É óbvio que uma das raízes da realização científica é metafísica, como Popper, o próprio Kuhn e muitos outros já disseram. Mas a predisposição filosófica vigente tem-se inclinado tanto no sentido de examinar o que é conceituai, ao pensar acerca da natureza de qualquer ciência, que os filósofos quase se esqueceram de tomar em consideração o que é prático. Desse modo, ao discutir o problema da verificação, Kuhn não viu a importância da aplicação tecnológica final; 13 e, ao discutir a emergência da ciência do seio da metafísica e da filosofia, Popper não viu a importância do truque técnico que dá início a cada nova ciência. Embora deva ter ouvido o velho dito segundo o qual a ciência é um casamento entre a metafísica e a tecnologia, Popper nunca pergunta a si mesmo como ocorre a cópula; por conseguinte, a fraqueza fatal da concepção popperiana da ciência está em que os popperianos não po dem responder à pergunta: “Se um sistema científico é essencialmente um sistema metafísico falseável, como pode a própria metafísica ser usada como modelo e submetida a testes?” Isso me leva à comparação que p rometi fazer entre Kuhn e Popper; ou, mais precisamente, à comparação entre a concepção paradigmática da nova ciência e a concepção popperiana. Pois a grosseira lacuna que afirmo existir na concepção popperiana — a saber, que Popper não pode explicar como começa de repente qualquer nova linha de pesquisa — não se deve, como alegam por vezes os cínicos, ao fato de serem os filósofos popperianos da ciência incapazes de compreender a tecnologia, nem ao fato de serem os tecnólogos incapazes de pensar como os popperianos sobre a filoso fia da ciência. Nenhuma dessas afirmativas é verdadeira e ambas são irrelevantes. A causa da dificuldade, no meu entender, é a excessiva confiança em Newton. Exatamente por haver durado tanto tempo, a mecânica newtoniana está numa posição única, entre as teorias científicas, de poder ser considerada como quase-metafísica, como o verdadeiro protótipo da teoria deduti va, ou ainda (agora) como tecnologia, dependendo da maneira com que olharmos para ela. Ademais, a confiança na mecânica newtoniana, como se ela estivesse sempre ali para ser ambiguamente apontada em qualquer crise como a ciência, é abjeta. Se todos os filósofos da ciência que derivam de Kant não tivessem podido equiparar a ciência à mecânica newtoniana, onde andaria a filosofia da ciência? O próprio
S trfora uctur of S cienti fi c R evoluti ons, pp. xii, 19, 69 e 166-7; no 13.a tecnologia Kuhn, The de Kuhn, está da eesfera da filosofia da ciência.
entender
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Popper, com efeito, em Conjectures and Refutations, encontra grande dificuldade para fazer a comparação; mas enquanto Popper su põe que a dificuldade reside (para nós, mas não para Kant) no fato de precisarmos agora considerar a teoria de Newton “como uma hipótese cuja verdade é problemática” pois “Einstein demonstrou que e possível, pelo emprego de princípios básicos muito distantes dos de Newton, fazer justiça a toda a série dos dados da experiên cia”, 11 a dificuldade de fato apresentada pela mecânica newtoniana é que ela funciona tão completamente que agora se tornou parte da tecnologia, ou seja, da tecnologia de pôr em órbita satélites espaciais. Segundo os princípios kuhnianos, portanto, eu penso também nos princípios de Popper, ela já deixou de ser objeto da filosof ia da ciência. Prescindindo Newton, daí por diante, Popper apresenta uma exposição realista muito mais pobre do pensamento criativo na ciência. “Nós inventamos 15 nossos mitos e nossas teorias e os pomos à prova”, diz ele — ao que a resposta é: “Como?” “Quando?” “Onde?” “Vêem -se as teorias como livres criações de 16 nossas men tes”, continua ele, “o resultado de uma intuição quase poética” — e a resposta curta para isso é: “Quem as vê assim?” “Não ten tamos prová-las. . . senão refutá- las.” 17 De mais a mais, na primeira oportunidade, Popper abandona de todo a discussão das teorias científicas a fim de voltar-se para as filosóficas, em ordem a analisá-las, brilhantemente, e verificar se elas também não são refutáveis, de um modo mais direto. Em seguida, excetuando uma pequena margem, equipara estas últimas às teorias científicas 18 ; e a gente desconfia de que — à parte Newton — foram estas, e não a ciência tal como realmente é, que ele teve em mente durante todo esse tempo. Tal equiparação virtual (excetuando-se Newton) do pensamento científico ao pensamento filosófico especulativo, mais do que qualquer outra coisa, é que dá srcem atualmente ao que descrevi no princípio como a “filosofia etérea da ciência”. Em contraste com essa “abstração”, Kuhn, insistindo na importância sociológica do conjunto real de hábitos que, de fato, caracteriza toda ciência nova, e é anterior a qualquer formulação teórica, conseguiu estabelecer, como elemento central de sua filosofia, o concretismo essencial, ca
14. Popper, Conj ectur es and Refutati ons, p. 191. 15. Popper, Conj ectur es and Re fu tations, p. 192. 16. L oç. ci t. L oc. c it. 17. 18. Popper, Conj ectur es a nd Refut ations, pp. 199-200.
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racterístico da ciência; isto é, refazendo a distinção que o próprio cientista faz entre a “imagem” real, ou “modelo”, e a “filosofia”. Esse “modelo (cuja operação já descrevi como o truque, ou expe diente, que põe em movimento qualquer ciência ou linha de pesquisa nova) passa a ser para Kuhn o seu paradigma de construção (paradigma no sentido 3), cuja utilização permite seja levada a cabo a solução de enigmas da ciência normal. E a identificação, por seu turno — - isto é, o fato de que o sentido primário do pa radigma de Kuhn tem de ser o sentido de constr ução e não o sentido metafísico — lhe permite estabelecer uma nova relação recíproca entre o emprego do modelo e a metafísica. Pois em vez de perguntar “Como é que um sistema metafísico pode ser usado como modelo?” — isto é, em lugar de fazer a pergunta a que eu disse antes que os poppe- rianos não poderiam responder — Kuhn pode perguntar agora: “Como é que uma construção de solução de enigma (isto é, um paradigma no sentido 3) pode ser usado metafisicamente? Como é que um paradigma de construção pode, na verdade, transformar-se num ‘modo de ver’?” O exame dessa pergunta nos obriga a passar abruptamente da impressão popperiana da ciência em geral para uma reavaliação mais sofisticada da concepção hipotético-dedutiva da função exata da teoria científica. Pois, afinal de contas, um sistema hipotético- -dedutivo — se puder ser construído — por sua natureza, é um artefato de solução de problemas. Antes, porém, de prosseguirmos nisso, cumpre esclarecer uma confusão, a saber, o que o próprio Kuhn diz acerca da natureza da ciência nova, ou primeira fase, ou pré-paradigma. Pois já tive ocasião de afirmar que um exame da srcinalidade de Kuhn era também uma investigação das srcens cruas, e das primeiras fases, de qualquer ciência; e confirmei-o enumerando razões para pensar — e para mostrar que Kuhn também pensa — que já existem paradigmas quando ainda não existe teoria. Mas isso provoca logo a pergunta seguinte: “E então, o que Kuhn pensa existir antes do próprio paradigma?” Esse é um dos pontos em que discordo de Kuhn, em que sua visão geral da ciência pré-paradigmática confusa eentre não três totalmente analisada. Como vejo o assunto, ele deixa me de parece fazer distinção importantes estados de coisas, aos quais chamarei respectivamente ciência não-paradigmática, ciência multiparadigmáti- ca e ciência biparadigmática. A ciência não-paradigmática é um estado de coisas que se observa logo no princípio do processo reflexivo sobre qualquer aspecto do mundo, isto é, na fase em que n ão
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existe paradigma. Sobre esse estado de coisas diz Kuhn (p. 15) que nele só os fatos facilmente acessíveis são coligidos, e assim mesmo de forma casual, a não ser que a tecnologia tenha tornado acessíveis alguns fatos mais recônditos; que isso acontece porque, nessa fase, todos os fatos parecem igualmente importantes; e que conjuntos de fatos diferentes, mas imbricados, são interpretados de maneiras dife rentes, metafísicas ou quase irreais. Ele diz mais (p. 11) que “pode haver uma espécie de pesquisa científica sem paradigmas. . .”, mas que é não esotérica; e (pp. 13, 100 e 163) que numa pesquisa dessa natureza “embora o resultado líquido da atividade deles era algo menos do que ciência” Observa ainda (p. 20) que, em tais situações, o livro (em oposição ao artigo) possui “a mesma relação com a realização profissional que ainda conserva em outros campos criativos”; que todo cientista recomeça do princípi as outras (p. 25); que há uma contínua discussão filosófica sobre questões fundamentais (p. 159); e nenhum progresso (pp. 159 e 163). Em suma, a ciência não-paradigmática mal se distingue, se é que chega a distinguirse da “filosofia” do objeto pertinente, e é coberta pela análise popperiana. Esse estado de coisas pré-científico e filosófico contrasta nitidamente, no entanto, com a ciência mulliparadigmática, com o estado de coisas em que, longe de não haver paradigma, há, pelo contrário, um excesso de paradigmas. (Esta é a atual situação global nas ciências psicológicas, sociais e de informação.) Aqui, dentro do sub- campo definido por cada técnica paradigmática, a tecnologia, às vezes, pode tornar-se muito avançada e permitir o progresso da solução normal de enigmas pela pesquisa. Mas cada subcampo definido por sua técnica é tão mais trivial e acanhado que o campo definido p ela intuição, e as várias defi nições operacionais dadas pelas técnicas divergem tão grosseiramente umas das outras, que persiste a discussão sobre as questões fundamentais, e o progresso a longo prazo (em oposição ao progresso local) deixa de ocorrer. Esse estado de coisas chega ao fim quando alguém inventa um paradigma mais profundo, embora mais cru (p. 23), que proporciona uma visão mais central da natureza do campo, se bem que restrinja e torne a sua pesquisa mais rígida, esotérica, precisa (pp. 18 e 37). Este paradigma (p. 16), quer provocando o colapso dos paradigmas rivais, mais superficiais, quer, alternativamente, ligandoos de um modo ou de outro a si mesmo, triunfa sobre o resto, de modo que pode iniciar-se o trabalho científico avançado, tendo apenas um
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paradigma total. Desse modo, a ciência multiparadigmática é a ciência plena, de acordo com os próprios critérios de Kuhn; contanto que esses critérios sejam aplicados tratando-se cada subcampo como um campo separado. No entanto, durante o período de crise imediata anterior a uma revolução científica, diz Kuhn (pp. 84 e 86) que muitas características da ciência préparadigmática recomeçam a mani festar-se, “ex ceto que o núcleo de divergência [entre as escolas concorrentes] é menor e mais difinido”. Durante esse período há sempre dois paradigmas a competir entre si e a lutar pelo domínio (pp. 75 e 91); descrevia-a, portanto, como ciência biparadigmátira. A razão por que Kuhn deixa de distinguir suficientemente a ciência nãoparadigmática da ciência multiparadigmática e, portanto, de ligar suficientemente a ciência multiparadigmática à ciência bi- paradigmática, deve-se, em parte, a uma confusão; depois de dizer que pode haver uma espécie de pesquisa científica sem paradigmas, acrescenta: “ou, pelo menos, sem nenhum tão inequívoco e cogente quanto os acima nomeados” (p. 11), como se esses dois estados cie coisas fossem idênticos. Deve-se também, em parte, ao lugar insuficiente dentro da ciência que ele concede à tecnologia, que existe em abundância e às vezes até em excesso na ciência multiparadigmática, mas apenas de modo insignificante, se é que existe realmente, na ciência não-paradigmática. Em oposição a este complicado e confuso exame pré-paradig- mático da teoria de Kuhn (e levando a sério sua noção de “ciência normal”) simplifiquei a posição dizendo francamente que, quando a “ciência normal” principia, em qualquer lugar, ali teremos ciência, e onde ela não principia, ali teremos filosofia ou qualquer outra coisa, menos ciência, e que é sempre algum truque de soluçãode-enigmas, de emprego de construções, que dá início à ciência normal. Essa afirmativa me expõe a dois tipos de ataques. Em primeiro lugar, posso ser atacada por não poder distinguir uma única linha nova de \pesquisade uma ciência nova total (veja, porexemplo, a passagem anterior em que equiparo uma à outra) e, portanto, na terminologia supracitada, por não poder distinguir a ciência multiparadigmática da ciência madura com um único paradigma. Esse ataque procede. Na minha opinião, as duas só podem distinguir-se uma da outra mais tarde, pela retrospecção, quando uma nova ciência total com um vasto paradigma tiver sido finalmente criada pela convergência de algumas linhas de pesquisa orientadas por paradigmas, que projetam luz umas sobre as outras. O segundo ataque que me pode ser
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dirigido é que, se eu distinguir “ciência” de “filosofia” só porque dentro da ciência sempre ocorre em algum lugar a ciência normal, que dizer do caso oposto em que a “ciência normal” principia pre maturamente de maneira injustificada, graças a um grupo de cientistas que seguem a moda e começam a imitar-se uns aos outros sem um apropriado exame prévio do paradigma (isto é, sem que a alegada visão da importância de certo paradigma para determinado campo seja uma visão genuína)? A isso respondo o seguinte: “E daí?” Acaso não vemos uma “ciência normal” prematura (que críticos irritados também chamam de “c iência fajuta” e “pseudociên - cia”) começando em toda a nossa volta como se fosse um pesadelo, nas ciências mais novas, mor mente onde se podem usar grandiosos computadores para dar uma impressão espúria de autêntica eficiência científica? Mas o fato de poder a nova ciência ser excessivamente má não a impede de ser uma ciência má (em oposição à má filosofia, à má pintura ou a outra qualquer coisa má). No fim, desmoronam as linhas pseudocientíficas de pesquisa ci entífica normal, ou deixam de produzir resultados, ou são derrubados ou se ev aporam — ou é o que se espera; e assim no passado (como, por exemplo, no caso da astrologia, que era, como diz Watkins, excessivamente “normal” em alguns sentidos) isso ficou finalmente provado. Tendo feito o que se pode fazer para estabelecer não-sociolo- gicamente um paradigma kuhniano como um truque ou expediente genuinamente compreensivo de solução-de-enigmas, examinemos agora não só a natureza do expediente mas também, se possível, a natureza dessa compreensão.
4.
O PARADIGMA PRECISA SER UMA “IMAGEM” CON CRETA USADA ANALOGICAMENTE, PORQUE PRECISA SER UM “MODO DE VER”.
Se o paradigma fosse apenas uma construção ou artefato inter- pretável cujo uso se tivesse convertido em instituição social estabelecida, talvez fosse difícil distinguir a concepção paradigmática da ciência de Kuhn de alguma concepção hipotético-dedutiva sociologicamente sofisticada; sobretudo porque, a meu ver, pode demonstrar-se que a visão paradigmática da ciência de Kuhn tem um pouco mais em comum com a concepção hipotético-dedutiva do que o daria a entender uma leitura superficial do seu livro. Pois a despeito do seu estilo aparentemente vago e poético, tanto ele quanto os hipotético- deduti-
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vistas lutam para dizer alguma coisa exata a respeito do desenvolvimento da ciência. O que distingue as duas concepções é que um paradigma para a solução de enigmas, à diferença de um sistema hipo- tético-dedutivo para a solução de enigmas, também precisa ser um “modo de ver” concreto. Tendo em mente o sistema hipotético-dedutivo, vejamos o que diz Kuhn. Ele compara repetidamente a mudança de um paradigma científico para outro à operação de “rever” uma figura ambígua de gestalt19 ou a estar sujeito a uma 20 experiência psicológica de gestalt.' Note-se, portanto, que cada um deles é um artefato comple tamente especificável, especialmente construído para um “modo de ver”; na verdade, para ser dois modos alternativos de ver. Quando, porém, comparamos o próprio paradigma a uma figura de gestalt, a comparação torna-se trivial; porque se nós, para fazê-lo, nos perguntarmos como é uma figura de gestalt quando ela representa apenas um modo de ver, recebemos a resposta trivial de que ela é uma imagem perfeitamente comum de um simples objeto concreto. Além disso, a comparação da figura de gestalt falha também em outro sentido, a saber, que uma figura ambígua de gestalt, à diferença de um paradigma, não pode ser estendida nem desenvolvida, visto que qualquer detalhe adicional que for 21 acrescentado pór certo a fará pender para uma outra das suas interpretações. Que Kuhn deve precaver-se ao falar sobre um artefato, que é também um ‘modo de ver”, é uma afirmação, não sobre a natureza do artefato, mas sobre o seu uso; a saber, que sendo ele a imagem de uma coisa, é usado para representar outra — por exemplo, um modelo geométrico feito de arame e contas, embora seja antes de tudo a idealização de uma espécie bem conhecida de brinquedo de criança, é usado em ciência para representar uma molécula de proteína. Kuhn, de fato, está procurando artefatos reais usados analogi - camente como o fizeram muitos filósofos da ciência, de Norman Campbell a Hesse. Mas o artefato de Kuhn, à diferença do de Hesse, 22 não pode ser uma simples analogia de gestalt quatro pontos nem uma analogia material, porque precisa ser uma organizada para a solução
19. Kuhn, Th e Structu r e of S cientif ic Re volut ions, pp. 85, 110, 113, 116, 119, 121, 125 e 149. 20. Ibid. pp. 62, 64, 111, 112 e 115. 21. Isso pode ser visto de modo particularmente claro num exame das figura s de gestalt perpetuamente ambíguas em Gregory, Eye a nd Br ain, 1966. 22. Hesse, M ode l s and An alogi es in Scie nce, 1963, pp. 70-3.
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de enigmas, que é, por sua vez a “imagem” de alguma coisa, A, se tiver de ser aplicada, de maneira não-óbvia, a fim de prop orcionar um novo “modo de ver” alguma outra coisa, B. À diferença, porém, da figura de gestalt bidirecional de Kuhn, o seu paradigma não precisa ser ambíguo assim como não-óbvio em sua aplicação; pode, portanto, como outras analogias, ser desenvol vido com a devida cautela. Mas surge a pergunta: como deve ser desenvolvido? E haverá algum sentido real em que uma analogia, em contraste com um modelo ou um sistema matemático, para ser um artefato? Antes de que, para concluir, discutamos essa questão, é preciso dizer mais sobre como se deve distinguir o paradigma de Kuhn de uma teoria científica hipotético- dedutiva pelo fato de ser um “modo de ver”. Não basta dizer que é uma “imagem” ou um dispositivo con creto construído usado analogicamente. Pois se poderia replicar que até um sistema matemático, mesmo quando nãointerpretado, é, noto riamente, um “modo de ver” muito abstrato. Pois sempre se poderá perguntar ao homem que o está usando, em especial numa ciência nova, por exemplo, “Por que você está usando esse sistema matemá tico, e não outro?”, ou, “Você temdecerteza de que máticaquando que estáa construindo dará o tipo espaço de essa que imagem precisarámate mais tarde sua prova lhe experimental tiver sido organizada com maior clareza?” Ademais, de acordo com o ponto de vista hipo- tético-dedutivo, a matemática usada em ciência não é nãointerpretada. É colorida — “ligeiramente matizada” seria uma descrição melhor, pois o mecanismo de colorir nunca é bastante esclarecido — pelas verdades concretas mais altamente coloridas que formam as partes inferiores, mais particulares, do sistema. Vistas por esse prisma, supõe-se que o concretismo e a interpretação transpiram, de alguma maneira, das partes inferiores mais concretas para as partes mais altas, mais abstratas e etéreas; fazendo assim de todo o edifício hipotético-dedutivo um artefato que pode ser considerado um “modo de ver” par excellence. O ‘“modo de ver” do paradigma de Kuhn, entretanto, realmente difere disso — e não só porque, como já se afirmou, o seu paradigma já existe quando a teoria ainda não existe. Difere porque o seu para digma é uma “imagem” concreta de alguma coisa, A, usada analogicamente para descrever outra coisa concreta, B. (Ou seja, o truque que, como eu já disse, começa toda a ciência nova, é que uma construção conhecida, um artefato, torpa- se um “veículo de pesquisa” e,
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ao mesmo tempo, se tiver êxito, um paradigma, ao ser aplicado a um novo material e de um modo não-óbvio.) Ele tem assim duas espécies de concretismos, e não uma: o concretismo que trouxe consigo por ser uma “imagem” de A, e o segundo concretismo, que agora adquiriu, por ser aplicado a B. Essa segunda espécie de concretismo é a espécie que a concepção hipotético-dedutiva da ciência procura explicar; mas a primeira não é explicada de forma alguma pela concepção hipotético-dedutiva. Se, contudo, complicarmos a concepção 23
hipotético-dedutiva como mas como Hesse,decreio eu, não diz, 24 que dizendo, há sempre umaCampbell analogia de oufato um diz, modelo concreto no fundo qualquer matemática usada em ciência, e que esse modelo não é apenas alguma coisa acrescentada depois, para ser usada heurís- ticamente ou como ajuda mecânica; se dissermos mais, como Campbell, de fa to, diz mais uma vez, que essa é a analogia que orienta e restringe a expressão da teoria, agitando e removendo, pela necessidade de preservá-la, as possibilidades de outro modo excessivas de desenvolvimento abstrato inerente a toda matemática, a primeira espécie de concretismo (chamo-lhe concretismo-A) é explicada como a segunda espécie (chamo-lhe concretismo-B). Pois o concretismo-A torna-se agora o concretismo que a analogia leva consigo para a matemática antes de ser uma analogia, quando não passava umapara “imagem” de A; ao passo o concretismo -B As é o que transpira de de volta a matemática vindo do que campo de aplicação, B. entidades abstratas da teoria resultante podem então ser duplamente interpretadas — como de fato o terão de ser numa nova ciência — em primeiro lugar à maneira de A, em termos da analogia geradora, e em segundo lugar à maneira de B (isto é, operacionalmente, e, à medida em que a teoria se desenvolve, cada vez mais) em termos de dados tirados do campo a que a teoria está sendo aplicada. Assim que os filósofos da ciência começarem a procurar à sua volta ciências novas em lugar de olhar apenas para trás em busca de
23.
Campbell, F oundati ons o f Science -, veja especialmente as páginas 129-30.
24. A mente de Hesse está dividida sobre a questão de saber se a analogia está no âmago da teoria, como diz Campbell, ou se é apenas um auxiliar da mes ma teoria. Em seus M ode ls and ela argumenta brilhantemente, com efeito, em favor da concepção Analogies in Science campbelliana; mas em seu ensaio “The Explanatory Function of Metaphor”, diz apenas que “o modelo dedutivo da explicação científica deveria ser modificado e completado com uma concepção de explicação teórica como redescrição metafórica do domínio do esplanandum” (p. 1), colocando assim, ainda uma vez, o carro matemático adiante dos bois metafóricos.
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ciências rançosas, ou alternativamente, numa tentativa auto-atordoante de atualizar-se, olharem só de longe para a crescente variedade do caos na mecânica quântica teórica, ver-se-á que há, evidentemente, componentes de A e de B nas teorias científicas. O exemplo mais notável que conheço da distinção é fornecido pelo Código Genético. Aqui o concretismo-A inicial é dado por uma “imagem” da lingua gem, que agora se estendeu para incluir não só “letras” e “palavras”, mas também “sentenças” e “pontuação”; ao passo que a reinterpre - tação-B operacional em termos de processos operacionais é bioquímica. Presumirei doravante que estabeleci a existência de dois componentes operacionais, o componente-A e o componente-B, até numa teoria científica idealizada; e que, enquanto a concepção hipotético- -dedutiva só leva em consideração o segundo, a concepção paradigmática de Kuhn destaca o primeiro. Ambos têm de ser distinguidos, no comportamento, dos seus trajes matemáticos comuns: as considerações adicionais que concorrem para a elaboração dessa distinção são apresentadas na conclusão adiante. Já se disse o suficiente, no entanto, para mostrar que, dentro da esfera atual da filosofia da ciência, o empreendimento essencial, no afã de descobrir a natureza filosófica do paradigma consiste extrairmatemático o componente de uma teoria desenvolvida,kuhniano, o paradigma, do seu em invólucro também-Ainterpretável 25 por B.
5.
CONCLUSÃO: VISÃO DAS CARACTERÍSTICAS LÓGICAS DO PARADIGMA
Se o paradigma precisa ter a propriedade do concretismo, ou “crueza”, isso quer dizer que ele precisa ser, literalmente, um modelo; ou, literalmente, uma imagem; ou, literalmente, uma seqüência analo- gia-desenho de usos de palavra na linguagem natural; ou alguma combinação destas três coisas.
25. Vale a pena observar que, segundo essa concepção, o domínio do paradigma filosófico, (ou paradigma bruto) visto historicamente e de maneira retrospectiva é mais limitado do que o domínio do paradigma sociológico, que inclui dentro de si mesmo tudo aquilo cuja operação poderia converter-se em hábito, além de incluir idealmente a parte matemática e a experimentação de um sistema hipotético-dedutivo.
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Em qualquer um desses casos, desejo dizer que um paradigma estabelece uma “analogia crua”; e, em seguida, definir a analogia crua como uma analogia com as seguintes características lógicas: (a) uma analogia crua é finita em sua extensibilidade; (b) é incomparável com qualquer outra analogia crua; (c) é extensível somente por um processo inferencial de “rep rodução”, que pode ser examinado usando -se a técnica de pro gramação de computador chamada de “complementação inexata” (“inexact matching”), mas não pelos métodos normais de exame de inferências. O problema de dizer algo filosófico e, no entanto, exato a respeito de um paradigma dessa natureza (que agora se transforma no problema de dizer algo geral e exato acerca da natureza e dos métodos de operação de um artefato concreto, construído de pigmentos, de arame, ou de linguagem) não pode ser atacado dentro dos limites deste ensaio; tanto mais que é, creio eu, o mesmo problema que Black tenta atacar quando procura descobrir a natureza de um arquétipo, 26 ou quando pergunta a si mesmo como formalizará a “concepção 27 interativa” de metáfora usada na linguagem. Na minha opinião, o novo “modo de ver” produzido pela “interação” metafórica de Black é uma forma alternativa do “modo de ver” produzido pela mudança de gestalt de Kuhn. Aqui assinalarei apenas, para concluir, que, uma vez assegurado o concretismo, ou “crueza”, de um paradigma inicial, pode obter -se grande simplificação em várias áreas da filosofia da ciência. Por exemplo, quando Kuhn diz que seus paradigmas não são diretamente comparáveis uns com os outros, a palavra que emprega para dizê -lo é “incomensurável”, e o contexto deixa claro que ele está pensando em ciência avançada. Mas se tentarmos construir uma noção geral e exata dessa incomensurabilidade, como faz Feyerabend, creio que se pode demonstrar que a tentativa conduz a grandes difi culdades filosóficas, além de produzir uma reducíio ad absurdum da ciência real. E se apenas encararmos um paradigma concreto que estabelece uma analogia crua, esta, notoriamente, na medida em que é realmente crua, não será diretamente comparável com nenhuma outra an alogia crua. (Como, por exemplo, se p ode comparar “O ho mem, o modelo dos animais”, com “O homem, esse lobo”?) Note -se
26. Black, M ode ls and M etaphors, 1962, capítulo xiii. 27. Ibid., capítulo iii.
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também que a ineomparabilidade aceita depende da crueza. Ela não subsiste quando o paradigma em apreço se engastou numa forma matemática, exceto na medida em que é o componente-A e não o componente-B que está em jogo. Pois, sendo concreto, o compo- ncnte-A estabelece uma analogia crua; ao passo que, sendo matemático e operacional, o componente-B só estabelece uma analogia matemática, se é que estabelece alguma analogia; e as analogias entre peças de matemática não se tornam incomensuráveis mas, ao contrário, comparáveis. A propriedade da crueza permite que se faça uma simplificação semelhante das asserções de Kuhn para demonstrar que o paradigma precisa ser finito em extensibilidade. Pois na medida em que a analogia crua estabelecida pelo paradigma não é somente parecida com a analogia crua estabelecida por alguém que fale numa linguagem natural mas éuma analogia crua, torna-se notório que ela não pode ser muito desenvolvida (todos os poetas sabem disso); ao passo que, por contraste, sempre se imagina que a extensibilidade mate mática é capaz de aumentar por acumulação, indefinidamente. Neste assunto devo confessar (inspirada por Feyerabend) que também não fiquei contente com a simplificação produzida pelo postulado de crueza do paradigma, mas tentei construir uma noção geral abstrata da inextensibilidade. Comecei com o expediente tradicional generalizante da analogia empregado pelos lógicos — e tal como o expõe, digamos, Jevons 28 — e depois tentei provar a finitude na extensibilidade utilizando a lógica dos termos. Para fazê-lo é necessário dizer que o tipo de analogia que desejamos, isto é, uma analogia que faça a aplicação de toda uma organização-A a um campo-B, serve de exemplo da qualificação de um nome geral, ou “substantivo” por um “adjetivo” complexo. Se pudéssemos admiti-lo, poderíamos dizer que a lei de intensão-extensão da lógica dos termos se aplicaria também a esse caso, de forma que, quando o significado-em- intensão de um “adjetivo -substantivo” dessa natureza fosse inde finidamente aumentado pela adição de outros “adjetivos”, o seu sig - nificado-em-extensão seria correspondentemente diminuído. Desse modo, seja qual for o limiar ou o limite zero de significado inteligível que estabelecermos, surgirá uma fase em que a seqüência que se estende continuamente o ultrapassará; exibindo dessa maneira o fe
28. Jevons, Th e P r in cipi es o f Science , 1873: veja Analogy no índice; e veja também o capítulo ii, sobre a lógica dos termos, e especialmente as pá ginas 25-7.
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nômeno da “morte por um milhar de qualificações". Mas não creio que o desenvolvimento da analogia do paradigma, feita quando se inicia uma boa e nova linha de pesquisa científica, possa valer como uma qualificação de termo adicional e direta, visto que tudo se resume no fato de que ela provoca o descobrimento de novas características do campo de aplicação, que nunca teriam aumentando assim o signisido notadas sem a ajuda da analogia paradigmática, ficado-em-extensão de toda a seq üência do termo pelo aumento do que ele denota, isto é, o campo. Nessas condições, falhou minha tentativa de ser abstrata em relação à extensibilidade do paradigma, e vi-me envolvida com a propriedade inevitável da crueza, tentando explicar o ignolum per ignotius; isto é, tentando explicar uma entidade logicamente desconhecida, um paradigma, por meio de uma propriedade lógica ainda mais desconhecida, a crueza. O cerne do problema consiste em encarar uma analogia crua expressa em palavras ambíguas como um artefato; imagens e modelos de arame podem ajustar-se com relativa facilidade, depois que o problema central tiver sido enfrentado. E é preciso que o seja. Porque o fato evidente é que o cientista que trabalha numa nova ciência está construindo e estendendo uma analogia crua pelo emprego do discurso, com ou sem a ajuda de aparatos mecânicos ou da matemática. E se ele, com efeito, estiver fazendo isso, o fato de o estar fazendo — esse esqueleto — tem de sair do armário filosóficológico. Isto é assim principalmente porque um número crescente de escritos na literatura agora discute a “semântica” ou os “significados” dentro da ciência e, pela ausência de uma confrontação explícita com o problema da ambigüidade da palavra, diz, com efeito, algumas coisas muito extraordinárias a respeito. 29
29. Veja não só Feyerabend, “Explanation, Reduction and Empiricism”, mas ta mbém Brodbeck, “Explanation, Prediction and 'Imperfect Knowledge”’ e Putnam, ‘‘The Analytic and the Synthetic”; e a bibliografia anterior de Ryle - -Toulmin-Scriven, a que eles se referem. Destes, o erro de Feyerabend me parece ser filosófico: fulminando indiscriminadamente os filósofos lingüísticos, ele não distingue os tr u ísm os da linguagem natural dos recursos combinatórios da linguagem natural. Brodbeck faz afirmações para demonstrar que a conversação coloquial dos físicos é elíptica, alusiva e lacônica, assim como presa ao contexto, ao passo que os seus relatórios oficiais são explícitos, compreensíveis, logicamente completos e livres do contexto; ou, pelo menos, quando não o são, a razão é porque não conseguem aproximar-se de um relatório físico platônico e ideal qu poderiam ter escrito mas não escreveram (pp. 237-8). Ela também tece considerações não-sofisticadas do tipo que os filósofos da linguagem comum criticaram corretamente, como, por exemplo para demonstrar que a frase “é necessário que os cavalos brancos sejam bra ncos” é uma afirmação
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A própria exposição de Kuhn acerca dos limites e da extensibi- lidade do paradigma é incompleta e falha, pelo que ele mesmo se desculpa. 30 Por outro lado, o modo como descreve o desmoronamento de um paradigma pela emergência, em seu interior, de uma anomalia que se aprofunda até converter-se em crise é, a um tempo, esclarecedor e realista, quando aplicado a uma nova ciência. Essencialmente, uma anomalia é uma inverdade, ou um problema que deveria ser solúvel mas é insolúvel, ou um resultado pertinente porém indesejável, ou uma contradição, ou um 31 absurdo, abandonada pelo próprio aradigma quando levada demasiado longe ; não apenas um argumento incidental contrário à teoria, nem um fato inconveniente, que Kuhn caracteriza 32 corretamente como simplesmente “irritante”. Tampouco é uma novidade 33 extraparadigmática, ou um problema que costumava existir dentro do campo numa fase anterior,
da prosa normal, ao passo que, na realidade, é um exemplo óbvio de um livro de lógica, ou uma observação poética inverídica, mas esplêndida, que tanto pode referir-se a ondas quanto a bares, autores favoritos e transporte angélico, bem como a animais naturais (p. 238). Ela diz mais a linguagem dos é util ao filósofo “precisamente porque e apenas que éque a reconstrução de lógicos uma grande parte da linguagem que falamos” Putnamemluta (ibid.)na medida profundamente com o “Todos os solteiros são celibatários” de Quine; mas ao fazê -lo, afirma não só que “solteiro” está livre do contexto (esquecendo-se assim dos botões dos solteiros, dos bacharéis em humanidades, dos assistentes dos cavaleiros medievais [as três acepções da palavra bachelor: solteirão, bacharel e cavaleiro que servia sob pendão de outro — N. do T.] — e Fodor e Katz); mas também que não é agrupado pela lei (esquecendo-se igualmente do efeito sobre o uso da palavra “macho”, das expe riências com a testerona e das aberrações crotnossômicas dos intersexos). Da mesma forma — posto que num artigo interessantíssimo — ele faz a temerária asserção (p. 362) de que não há sinonímias nem analiticidades implícitas na linguagem (afinal de contas, pode ser que Strawson tenha razão); e a falsa asserção de que os lingüistas sabem descrever uma linguagem natural em função de um conjunto de regras (pp. 389-90). Está visto que, quando pensadores excepcionais emitem observações como estas, o assunto todo está necessitando de uma nova espécie de visão interior.
30. Kuhn, The S tr uctur e of S cienti fi c Re voluti ons , pp. 86 e 90. Só num ponto Kuhn argumenta que os paradigmas precisam ser não-extensíveis (nas pp. 95-6); na maior parte das vezes ele apenas se refugia na história e diz que o são. 31. Kuhn, Th e Structu r e of S cientif ic Re volut ions, p. 65 (veja também pp. 5, 52 e 78). 32. Kuhn, The S tr uctur e of S cientif ic Re voluti ons, pp. 78-9. A expressão real de Kuhn (à p. 78, linha 12) é "irritante menor". 33. Veja acima, nota de pé de página n.° 31; especialmente a p. 5, sobre a supressão da novidade fundamental; e todos os outros trechos que figurariam numa lista correspondente ao item "novidade” num índice de Kuhn, se houvesse um índice de Kuhn. Veja também, no mesmo índice imaginado, "anomalia”.
100
mas que os encarregados de desenvolver o paradigma suprimiram e tornaram 34 invisível, por ser inco mpatível com o “compromisso básico” do paradigma. Para ser verdadeira, a anomalia tem de ser produzida dentro do paradigma. De sorte que, se este tiver de ser concebido como analogia crua, a anomalia, em sua forma mais simples e mais crua, corresponderá à analogia neutra de Hesse, que se revela uma analogia negativa 35 ; isto é, um conjunto de afirmações (ou leis) desenvolvidas no interior da própria analogia, que teria sido verdadeira se tivesse resistido até esse ponto, mas que, não tendo resistido, até esse ponto, se revela falsa. Nessa situação simples, será inevitável que se façam tentativas para ajustar a analogia; na situação mais complexa, matematizada, fazem-se tentativas para eliminar as restrições impostas à matemática ou para complicá-la, para produzir variantes da teoria, para descobrir as suposições fundamentais da teoria, ou para tentar reajustar a analogia. 36 A analogia se aprofunda e transforma em crise quando falham essas tentativas; quando, por exemplo, a complexidade da teoria 37 aumenta mais depressa do que a sua exatidão ; ou a área de dificuldade se dilata, e não acanha, até que os próprios princípios fundamentais do paradigma sejam postos em dúvida 38 ; ou, alguns estranhos, com um ponto de vista completamente diferente e uma nova técnica rudimentar, conseguem solucionar com
34. Kuhn, The Structur e of Scie ntif ic Revo lu tions: p. 5 de novo (sobre a noção de "compro misso básico) ; p. 102, " . . . a recepçã o de u m no vo paradigma exig e fr eqüent emente uma redefinição da ciência correspondente. Alguns velhos problemas podem ser relegados a outra ciência ou declarados inteiramente ‘não -ci en tí fi co s’ p . 3 7, “ . . . u m a das coisas que uma comunidade científica adquire com o paradigma é um critério para escolher problemas que. embora o paradigma seja tido por axiomático, podem presumir-se solúveis. São estes, em grande parte, os únicos problemas que a comunidade admitirá como científicos ou estimulará seus membros a encarar. Outros problemas, incluindo muitos que anteriormente haviam sido tomados como padrão, são rejeitados como metafísicos, como matéria de outra disciplina ou, às vezes, como sendo tão problemáticos que não vnlem o tempo perdido”. Sobre exemplos de pro blemas básicos que a ciência ulterior tornou “invisíveis” veja pp. 103 -7; sobre a discussão geral da “invisibilidade”, veja todo o capítulo acerca das R evo l u ções co m o M u da n ças n a C on cepção de M undo.
35. Hesse, M ode ls and A nalogi es in Science , pp. 9 e seguintes. 36. Kuhn, The Structure of Scientific Revolutions, p. 90; “A prolifera ção das articulações concorrentes, a disposição para tentar qualquer coisa, a expressão do descontentamento explícito, o recurso à filosofia e aos debates sobre princípios fundamentais, são todos sintomas de uma transição da pesquisa normal para a pesquisa extr aordinária.” Veja também a comparação entre a ciência em crise e a ciência pré-paradigmática (p. 84). 37. Kuhn, Th e Structu r e of S cientif ic Re volut ions, pp. 68-70. 38. lbid., p. 65. 101
facilidade o problema principal que estava causando todo o transtorno, de modo que o paradigma presente, juntamente com todos os seus compromissos, derivações e suposições, assume um aspecto de sonho. Falando de um modo mais geral, não é só o caso de um paradigma plenamente desenvolvido, ou teoria, que chega a um ponto em que suas extensões adicionais produzem menores lucros. A situação é pior. O próprio paradigma se estraga se for estendido em demasia, produzindo inconsistência conceptual, absurdos, expectativas errôneas, desordem, complexidade e confusão, exatamente da maneira com que o faz uma analogia crua, se for pressionada em excesso, digamos, num poema, mas de modo muito diferente daquele com que o faz um sistema de matemática pura, quando dá fórmulas irresolú- veis ou contradições, ou não fornece provas; isto é, quando ainda se pode fazer uma declaração exata do que está errado. Nenhum filósofo da ciência antes de Kuhn descreveu essa dete rioração. Todos haviam censurado o desmoronamento gradual de várias teorias científicas pelo fato de terem sido eventualmente falseadas pela experiência, pela emergência, digamos, de novos fatos; ou seja, pela não-cooperação, por assim dizer, da natureza. Ninguém o censurou pelo fato de que as teorias, porque têm de ter em seu âmago paradigmas analógicos concretos para definir-lhes os compromissos básicos, e porque o efeito desses paradigmas é restringir-lhes drasticamente os campos, desmoronam quando levadas muito longe por sua própria constituição; e sem que se faça necessária qualquer irritação agravante da natureza. E agora, para rematar, chegamos ao âmago do assunto: a necessidade de encarar uma analogia crua como um artefato. E a essência disso consiste em formular a pergunta: “Como se estende um paradigma cru?” ou “Que é o que Kuhn quer dizer com a palavra ‘reprodução’ (se é que ele quer dizer alguma coisa)?” Começarei com a segunda pergunta, visto que ela conduz à primeira. Um sinal de que Kuhn leva a sério a noção de que a ciência normal consiste na solução de enigmas (e, portanto, de que um paradigma tem de ser um artefato) é que ele pergunta imediatamente a si mesmo (p. 38): “Se há solução de enigmas, onde estão as regras?” Mas é obrigado a parar (pp. 42 -6) porque, em três quartas partes do tempo, não há regras. Diante da própria incapacidade de encon trar regras, Kuhn opta por duas saídas incompatíveis. A primeira (pp. 42-4) é afirmar realisticãmente que não há necessidade de regras. A segunda, caracteristicamente, é dizer (pp. 38- 9) que por “regra” ele não subentende realmente “regra”, mas “preconcepção”,
102
ou “ponto de vista estabelecido”. Esta segunda sugestão, na solução de enigmas, simplesmente não funciona, pois as regras ou são regras ou não são; e que Kuhn sabe disso mostra-o efetivamente o fato de que, a partir desse momento, e através de todo o livro, ele prossegue em seu primeiro empreendimento de tentar descobrir como operam os paradigmas independentemente de regras. Suas sugestões são as seguintes. Talvez, diz ele, os paradigmas acrescentem novos desen volvimento e partes a si mesmos explorando “uma rede de semelhanças familiares imbricadas e entrecruzadas” wittgensteinianas (p. 45), em que cada semelhança só se sustenta com relação a algumas propriedades e entre algumas partes. Ou talvez os paradigmas “possam rela - cionar-se pela semelhança e pela modelagem com uma ou outra parte do corpo científico que a comunidade em questão já reconhece como figurando entre suas realizações e estabelecidas...” (p. 45). Ante riormente (p. 23), ao definir “paradigma”, ele falara numa exata relação gramatical de rep rodução, que, todavia, “raro se mantém entre um paradigma e suas exemplificações”; e mais adiante (pp. 32 e seguintes) falam da “articulação” ou “reformulação” do paradig ma como um processo que, ocorrendo numa ciência qualitativa, não pode ser descrito em termos de inferência matemática normal. É possível, naturalmente, que todas essas relações kuhnianas de semelhan ça não formem(ver um mais gênero : podem todas diferir umas das“paradigma”), outras; repito,que, porém acima, a discussão dosessencialmente diferentes sentid os de se elas diferirem, Kuhn, filosoficamente falando, não estará dizendo nada definido. Se elas, todavia, formarem um gênero; e, ainda mais, se todas elas — como, a partir deste momento, pressuporei — forem modos diferentes de fazer a mesma coisa; nesse caso, Kuhn estará dizendo algo filosoficamente novo. Dentro da ciência normal (diz Kuhn, nessa palestra) os paradigmas são capazes de expansão e desenvolvimento de dois modos muito diversos. Desenvolvem-se, no fim, por inferência matemática ou por outra inferência governada por regras — a única que permite a solução de enigmas verdadeiros. Mas também se desenvolvem, ini cialmente, por “articulação” intuitiva (ou “semelhança de família” ou “modelagem direta”, ou “reprodução”, num sentid o extenso — por qualquer um desses processos ou por todos eles). O segundo processo também é uma forma de inferência num sentido mais amplo qualquer tipo de permissão para — no sentido em que “inferência” é literalmente passar de uma unidade, seqüência de unidades ou estados de coisas para outra unidade, seqüência de unidades ou estados de coisas — mas é intuitivo; não se sujeita a regras.
103
E isso nos traz de volta à nossa primeira pergunta, sobre como se desenvolve um paradigma cru. Se a resposta for “Por inferência intuitiva”, perguntaremos em seguida: “Que é essa chamada infe rência intuitiva, e será realmente intuitiva?” Pois se houver uma ope ração menos intuitiva do que qualquer outra, essa é a operação inteiramente mecanizável de fazer uma réplica, B’, de um srcinal, B. Tal reprodução, portanto, não pode ser o que Kuhn quer dizer. Ele quer dizer muito mais que, quando B' é uma réplica de B, B' reproduz o que , por algum propósito conhecido P, se consideram os traços principais de B. Quando um modelo matemático, M, por exemplo, se acha “bem preso” a um paradigma cru, C, da maneira que temos descrito, M, para algum P, reproduz os traços principais de C. Pode ser, como diz Max Black, 39 ao descrever essa forma de relação entre o srcinal e o modelo, que muitos dos que superficialmente parecem ser os traços principais de Aí — por exemplo, sua escala — podem ser irre levante s para con str uir a ré plic a en tre M e C ; não estã o in cluíd os na declaração do propósito P. Mas, como entre M e C , deve haver alguns traços principais correspondentes; de outro modo, não diríamos que M é um modelo de C. Há agora duas formas de pensamento formal pertinentes à análise da reprodução do traço principal; as duas emergiram das ciências do computador. A primeira, sobre a qual há agora toda uma literatura, 40 é a matemática da classificação, ou dos “grupos”; isto é, a formalização do processo de encontrar famílias wittgensteinianas. A segunda, sobre a qual quase não há literatura, se 41 excetuarmos a literatura geral sobre o reconhecimento do padrão organizado, é o conjunto de processos para levar um computador digital a fazer uma “combinação inexata” (“inexact match”) entre duas fórmulas muito semelhantes uma à outra, mas não exatamente iguais. Em ambos esses métodos, os conglomerados de dados em apreço precisam ser caracterizados reportando-se a um conjunto de pro
39. Black, M ode ls and M etaphors, pp. 219-23. Como Black o mostra, a forma srcinal do modelo de relação tende a ser, na verdade, mais complicada do que eu a defini aqui. 40. Parker- Rhodes e Needham, “The Theory of Clumps”; Parker -Rhodes, “Contributions to the Theory of Clumps”; Needham, "The Theory of Clumps, II” e “Research on Information Retrieval, Classification and Clumping”; Ne edham, "A Method for Using Computers in Information Classification”; Needham e Spãrck -Jones, “Keywords and Clumps”, e Needham, “Applications of the Theory of Clumps”. 41. Class”.
104
Ver, por exemplo, Barus, “A Scheme for Recognizing Patterns for an Unspecif
ied
priedades em relação às quais é sempre possível dar uma resposta à pergunta “Tem este conglomerado esta propriedade ou não?” Se tiver, escreve -se um l em suas características; se não tiver, um O. No fim da caracterização, números binários de comprimento iguais terão sido produzidos para todos os conglomerados de dados; e, no caso de todos dados que, de acordo com a caracterização, surgem exatamente iguais, os números binários, naturalmente, surgem iguais. Mas nos casos em que há “alguma similaridade”, como dizemos, mas não semelhança completa, é possível fazer duas coisas: (a)12na ma temática dos grupos pode ser formulado um critério de similaridade, de acordo com o qual todos os conglomerados examinados como semelhantes surgirão como pertencentes à mesma família ou grupo; ou (6) pesar algumas propriedades dos dados, ou algumas combinações de propriedades, como seus “traços principais”, de tal maneira que se poderá dar uma resposta única à pergunta “Qual, de todo esse conjunto de conglomerados de dados, D,. . . Dn, é ‘mais semelhante em seus traços principais’ a outro conglomerado de dados, D t , que vem de fora do conjunto; isto é, qual é o D que ‘se combina inexatamente’ com D’?” Esse último processo é que é tão difícil de reduzir à forma de programa (não que a programação da matemática dos grupos, por si mesma, fácil); nado realidade, tãodados. difícil que 43 se converteu num conhecido horror seja não-númérico programadoré de Não obstante, pode ser apresentado um vigoroso argumento prima facie para dizer que a “combinação inexata”, quando puder ser c oncluída e se o puder ser, é a “relaçã o de reprodução”
42. Vários critérios de similaridade são mencionados no s trabalhos cita dos na n ota d pé de página n.° 40, da p. anterior. O primeiro a ser formulado foi o de Tanimoto, “An Elementary M athematical Theory of Classification and Prediction”. Ver também Sneath e Sokal, Principies of N ume ri cal Taxonomy .
43.
Um retrocesso vicioso infinito pode estabelecer -se da seguinte forma: (i) os testes de similaridade dos traços principais acima de um certo limiar não podem ser aplicados enquanto não tiverem sido aplicados, primeiro, testes de principalidade de traços, Terá de ser criado, desse modo, um segundo cálculo de prin cipalidade. (ii) Os testes de principalidade de traço não podem ser aplicados enquanto não tiverem sido ordenados primeiro, visto que eles se revelam nãoindependentes uns dos outros. Terá de ser assim criado um terceiro cálculo que dê a ordenação dos critérios para testar a principalidade dos traços. (iii) Essas próprias considerações de ordenação dependem de considerações de conexão. .. (etc.). Em outras palavras, o processo da detecção progressiva da complexidade aumenta
maisdepressa do que a invenção dos
meios para lidar com ela.
105
que estamos procurando. Não sabemos ao certo o sentido em que ela é uma relação: é reflexiva e simétrica, por exemplo, mas não transitiva (do fato de A ter seus traços principais semelhantes aos de B, e B aos de C, não se segue de modo algum que A tenha seus traços principais semelhantes aos de C, a não ser que cada reprodução tenha um P idêntico). Dessa maneira, a lógica da relação de reprodução, em seu estado bruto, é uma lógica de um passo por vez, que nunca sai do chão; uma lógica em que todo o esforço pretendido consiste em ver condições, o peso, a retroalimentação de informações para mudar o peso, e o custo para a riqueza e a completeza do plano de caracterização, com que se pode estabelecer uma quantidade limita da de “recursividade” dentro de determinado padrão seqüencial de reproduções. Há um traço de lógica sempre transitivo, a saber, o da sucessão temporal; pois se A, numa seqüência de reprodução, ocorre antes do que B, e B antes do que C, A ocorre mais cedo do que C; e isso pode ser importante se o que estiver sendo estudado for a acentuação gradual, através de uma seqüência de seqüências de reprodução, cada qual reatroalimentando algum outro como sua produção, de algum traço principal pré-escolhido. Nem sequer é certo que a reprodução, rigorosamente falando, seja uma forma de inferência. Não vejo, por exemplo, como se pode provar com isso algum teorema de inferência. De fato, contrastada com a dedução normal simples, a reprodução, bem como as reproduções controladoras, é logicamente horrível. De todas as coisas, porém, é a que o cérebro humano, em seus processos inconscientes de reconhecimento, parece fazer com maior facilidade; os homens 44 da inteligência artificial projetaram nova luz sobre ele ; e é (creio eu) como se estende o paradigma de Kuhn. Fizeram-se, com efeito, alguns sistemas muito simples da reprodução; dentro do campo de recuperação de informações, por exemplo, todo algoritmo de recuperação ligado a um processo de escala de pertinência vale por um sistema de reprodução segundo a descrição que dei, como acontece com cada processo de busca que distingue os traços principais e que foi construído como um leitor de caracteres. Ainda não se pensou, contudo, nesses geral processos em termos gerais, de modo não se fez nenhuma análise da operação de reconhecimento dos que traçosainda principais.
44.
Veja particularmente a noção de "regeneração* em Good,
Gonce r nin g the F ir st Ultr a-lntelli gent M achine , 1965.
106
Specula-
tions
Em vista das manifestas dificuldades de manusear, até com uma máquina, uma entidade como aquela em que se converteu o paradigma bruto de Kuhn (isto é, se estou certa quanto ao resultado da sua conversão) e em vista do óbvio ceticismo que deverá despertar até a sugestão de que devemos levar a sério e filosoficamente o paradigma de Kuhn, vale a pena lembrar-nos, num parágrafo final, do que acontecerá se não continuarmos a seguir o pensamento de Kuhn; ist o é, o que acontecerá se abandonarmos toda a sua idéia do paradigma? Pode ser difícil determinar o pensamento de Kuhn e desenvolvê-lo; mas se não fizermos um esforço nesse sentido, creio que ficaremos numa posição sumamente perturbadora. Pois, como historiadores, por mais que possamos sofismar as conclusões de Kuhn, não seremos capazes de voltar para onde estávamos antes de Kuhn e seus predecessores imediatos começaram a alcançarnos. O protesto deles contra a desonestidade inconsciente e as oscilações de predisposições com que a história da ciência tem sido tratada em manuais científicos até agora corta muito fundo; como corta fundo seu alerta contra a concepção acumulativa demasiado simples, e deformada, da ciência, resultante da leitura dos compêndios como se estes fossem a verdadeira história. Por outro lado, se um cuidado maior com a história da ciência não resultar numa concepção global mais adequada da ciência, que vantagem haverá em fazer essa história —a não ser talvez como um passatempo esotérico? Por sua natureza como parte da história das idéias, a história da ciência tem de ser uma disciplina capaz de ajudar os cientistas a obter uma visão mais profunda da verdadeira natureza da sua ciência. Se não fizer isso, trivializar-se-á — não será mais que uma coleção pedagógica de fatos menores. Assim sendo, se fugirmos de toda e qualquer consi deração adicional da “nova imagem” da ciência de Kuhn, correre mos o risco de desligar totalmente a história realística, de estilo novo, da ciência, da sua filosofia de estilo antigo: um desastre. E se seguirmos em frente, e se minha análise estiver certa, precisaremos reexaminar o que é verdadeiro na analogia à luz do que Kuhn mostrou ser verdadeiro nos paradigmas. REFERÊNCIAS Barus [1962]: “A Scheme for Recognizing Patterns for an Unspecified Class”, no livro organizado por Fischer, Pollock, Raddack e Stevens, Optical Char acte r Rec ogniti on, 1962.
107
Black [1962]: M odels and M etaphor s, 1962. Brodbeck [1962]: “Explanatio n, Prediction and ‘Imperfect Knowledge’ ”, no livro organizado por Feigl e Maxwell: M in nes ota S tudi es in th e Phil oso phy of Science , 3, pp. 231-72. Campbell [1920]: F oundati ons o f Science , 1920. Feyerabend [1962]: “Explanatio n, Reduction and Empir icism”, no livro orga nizado por Feigl e Maxwell: M in nes ota S tudi es in t he Phi losophy of Science , 3, pp. 28 -97. Good [1965]: Specul ation s Concerni ng the F ir st Ul tr a-íntell igent M achi ne, 1965. Gregory [1966]: Eye and Br ain, 1966. Hesse [1963]: M odels and An alogies in Science , 1963. Hesse [1964]: “The Explanatory Function of Metaphor”, estampado no livro organizado por Bar-Hillel: L ogic, M ethodology and Phi losophy of S cience , 1966, pp. 249-59. levons [1873]: The Pr in cipi es of Science , 1873. Kuhn [1962]: The S tru cture of Scientif ic Rev oluti ons , 1962. Lakatos [1963- 64]: “Proofs and Refutations”, nas pp. 1 -25, 120-39, 22143 e 296-342 da publicação The Br iti sh Jour nal for the Philoso phy of Scie nce , 14 . Needham [1961a]: “The Theory of Clumps, II”, trabalho estampado na pu blicação Cambri dge L anguage Resear ch U ni t Wor ki ng Pape r s, 139.
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108
O FALSEAMENTO E A METODOLOGIA DOS PROGRAMAS DE PESQUISA CIENTÍFICA
1
IMRE LAKATOS London School of Economics
1.
Ciência: razão ou religião?
2.
Falibilismo versus falseacionismo. (a) Falseacionismo dogmático (ou naturalista). A base empírica. (b) Falseacionismo metodológico. A ‘base empírica’. (c) Falseacionismo sofisticado versus falseacionismo ingênuo. Mudanças progressivas e degenerativas de problemas.
3.
Uma metodologia dos programas de pesquisa científica. (a) Heurística negativa; o "núcle o” do programa. (b) Heurística positiva; a construção do "cinto de proteção" e a relativa autonomia da ciência teórica. (c) Duas ilustrações: Prout e Bohr. ( cl ) Prout: um programa de pesquisa que progride num oceano de anomalias.
1. Este en saio é uma ve rsão co nsideravelmente melhorada de meu tra lho “Criticism and the Methodology of Scientific Research Pr ogrammes 1 ’, de 1968, e uma tosca versão de meu trabalho de 1973. Algumas partes do primeiro foram aqui reproduzidas sem alteração com licença do organizador das Procee din gs oj the Ar istote ii an Socie ty. Na preparação da nova versão recebi muita ajuda de Tad Beckman, Colin Howson, Clive Kilmister, Larry Laudan, Eliot Leader, Alan Musgrave, Michael Suk ale, John Watkins e fohn Worrall.
109
(c2) Bohr: um programa de pesquisa que progride sobre fundamentos inconsistentes. (d) Um novo olhar dirigido a experiências cruciais: o fim da racionalidade instantânea. (dl) A experiência Michelson-Morley. ( d2 ) As experiências Lummer-Pringsheim. ( d3) Desintegração-beta versus leis da c onservação. ( d4 ) Conclusão. O requisito do desenvolvimento contínuo. 4. O Programa de pesquisa popperiano versus o programa de pesquisa kuhniano. Apêndice: Popper, falseacionismo e a ‘‘tese Duhem -Quine”. 1. CIÊNCIA: RAZÃO OU RELIGIÃO? Durante séculos o conhecimento significou conhecimento provado — provado pela força do intelecto ou pela prova dos sentidos. A sa bedoria e a integridade intelectual exigiam que o homem abrisse mão das afirmativas nãoprovadas e minimizasse, até em pensamento, o hiato existente entr e a especulação e o conhecimento estabelecido. A força demonstrativa do intelecto ou dos sentidos foi posta em dúvida pelos céticos há mais de dois mil anos; mas eles foram intimidados e confundidos pela glória da física newtoniana. Os resultados de Einstein tornaram a virar a mesa e, agora, pouquíssimos filósofos ou cientistas ainda pensam que o conhecimento científico é, ou pode ser, o conhecimento demonstrado. Poucos compreendem, porém, que, com isso, toda a estrutura clássica dos valores intelectuais desmorona e precisa ser substituída: não se pode simplesmente jogar por terra o ideal da verdade demonstrada — como fazem alguns empiristas lógicos — reduzindo- o ao ideal da “verdade provável” 2 nem — como fazem alguns sociólogos do conhecimento — à “verd ade pelo consen so [mutável]”. 3
2. O principal protagonista contemporâneo do ideal da “verdade provável” é Rudolf Carnap. Sobre os antecedentes históricos e uma crítica dessa posição, cf. “Changes in the Problem of the I nductive Logic”, de Lakatos, de 196 8. 3. Os principais protagonistas contemporâneos do ideal da “verdade por consenso” são Polanyi e Kuhn. Sobre os antecedentes históricos e uma crítica dessa posição, cf. Impersonal Knowledge, de Musgrave, 1969, e a crítica feita por Musgrave do trabalho de Ziman: “Public Knowledge: An Essay Concer - ning the Social Dimensions of Science”, 1969. 110
O mérito de Popper baseia-se principalmente no fato de haver ele compreendido todas as implicações do colapso da teoria científica mais bem corroborada de todos os tempos: a mecânica newtoniana e a teoria newtoniana da gravitação. Na sua opinião, a virtude não está na cautela em evitar erros, mas na implacabilidade com que se eliminam esses erros. Audácia nas conjeturas de um lado e austeridade nas refutações de outro: essa é a receita de Popper. A honestidade intelectual não consiste em tentar alguém entrincheirar-se ou firmar sua posição demonstrando-a (ou probabilizando-a) — a honestidade intelectual consiste antes em especificar precisamente as condições em que uma pessoa está disposta a renunciar à sua posição. Marxistas e freudianos comprometidos recusam-se a especificar tais condições: essa é a marca distintiva da sua desonestidade intelectual. A crença pode ser uma fraqueza biológica lamentavelmente inevitável que deve ser mantida sob o controle da crítica: mas o compromisso, para Popper, é um crime sem limites. Kuhn já pensa de maneira diferente. Ele também rejeita a idéia de que a ciência cresce pela acumulação de verdades eternas. 4 Também se inspira na derrubada também da física énewtoniana a caboMas por aoEinstein. O seu principalcom problema a revoluçãolevada científica. passo que, de acordo Popper, a ciência é “revolução permanente” e a crítica é o cerne do empreendimento científico, de acordo com Kuhn a revolução é excepcional e, na verdade, extracientífica, e a crítica, em épocas “normais”, é maldição. Ao parecer de Kuhn, com efeito, a transição da crítica para o compromisso assinala o ponto em que o progresso — e a ciência “normal” — principia. Para ele, a idéia de que na “refutação” se pode exigir a rejeição (a eliminação de uma teoria) é falseacionismo “ingênuo”. A crítica da teoria dominante e propostas de novas teorias só são permitidas nos raros momentos de “crise”. Esta última tese kuhni ana tem sido amplamente criticada 5
4. Ele apresenta, com efeito, seu livro The S tr ucture of Scie nti fi c Re vo- l uti ons , de 1962, argumentando contra a idéia do “desenvolvimento por acumulação” do crescimento científico. Intelectualmente, porém, ele deve mais a Koyré do que a Popper. Koyré mostrou que o positivismo proporciona má orientação ao historiador da ciência, pois a história da física só pode ser compreendida no contexto de uma sucessão de programas “metafísicos” de pes quisa. Assim sendo, as mudanças científicas estão ligadas a vastas revoluções metafísicas cataclísmicas. Kuhn desenvolve essa mensagem de Burtt e Koyré e o enorme êxito do seu livro deveu-se, em parte, à sua crítica objetiva e direta da historiografia jus tif ica ci onis ta — que criou sensação entre os cientistas e historiadores comuns da ciência, ainda não alcançados pela mensagem de Burtt, Koyré (nem pela de Popper). Infelizmente, porém, sua mensagem tinha implicações autoritárias e irracionalistas.
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e não a discutirei. O que me interessa é que Kuhn, tendo reconhecido o fracasso do justificacionismo e do falseacionismo no proporcionar explicações racionais do desenvo lvimento científico, parece agora re cair no irracionalism o. Para Popper a mudança científica é racional ou, pelo menos, pode ser racionalmente reconstruída e cai no domínio da lógica da descoberta. Para Kuhn a mudança científica — de um “paradigma” a outro — é uma conversão mística, que não é, nem pode ser, governada por regras da razão e cai totalmente no reino da psicologia (social) da descoberta. A mudança científica é uma espécie de mudança religiosa. / • ' O choque entre Popper e Kuhn não se verifica em torno de um mero ponto técnico de epistemologia. Refere-se aos nossos valores intelectuais centrais, e tem implicações não só para a física teórica mas também para as ciências sociais subdesenvolvidas e até para a filosofia moral e política. Se nem mesmo na ciência há outro modo de julgar uma teoria senão calculando o número, a fé e a energia vocal dos seus apoiadores, isso terá de ocorrer principalmente nas ciências sociais: a verdade está no poder. Assim a posição de Kuhn reivindica, sem dúvida, nãointencionalmente, o credo político básico dos maníacos religiosos contemporâneos (“estudantes Neste -revolucionários”). ensaio mostrarei primeiro que na lógica da descoberta científica de Popper se fundem duas posições diferentes. Kuhn só compreende uma delas, o “falseacionismo ingênuo” (prefiro a expressão “falseacionismo metodológico ingênuo ”); entendo que a crítica qu e ele faz dele é correta, e até a reforçarei. Kuh n, no entanto, não compreende uma posição mais sofisticada cuja racionalidade não se baseie no falseacionismo “ingênuo”. Tentarei explicar — e reforçar ainda mais — a posição mais forte de Popper que, creio eu, escapa às críticas de Kuhn e apresenta as revoluções científicas não como se constituíssem conversões religiosas, mas como progresso racional.
2. FALIBILISMO VERSUS FALSEACIONISMO. Para ver com maior clareza as teses conflitantes, precisamos reconstruir a situação do problema tal como se apresentav a na filosofia da ciência após o colapso do “justificacionismo”. 5. Cf., por exemplo, as contribuições de Watkins e Feyerabend para este volume.
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De acordo com os "justificacionistas", o conhecimento científico consistia em roposições demonstradas. Tendo reconhecido que as deduções estritamente lógicas nos permitem apenas inferir (transmitir a verdade) mas não demonstrar (estabelecer a verdade), eles discordavam em relação à natureza dessas proposições (a xiomas) cuja ver dade pode ser provada por meios extralógicos. Os intelectualistas clássicos (ou "racionalistas” no sentido estrito do termo) admitiam espécies muito variadas — e poderosas — de “demonstrações” extra - lógicas pela revelação, intuição intelectual, experiência. Com a ajuda da lógica, estas lhes permitiam provar toda a sorte de proposições científicas. Os empiristas clássicos só aceitaram como axiomas um conjunto relativamente pequeno de “proposições fatuais” que expressavam os “fatos concretos”. O seu valor de verdade foi estabelecido pela experiência e elas constituíram a base empírica da ciência. Para poder provar teorias científicas partindo apenas da rigorosa base empírica, eles precisavam de uma lógica muito mais poderosa do que a lógica dedutiva dos intelectualistas clássicos: a “ lógica indutiva”. Todos os justificacionistas, intelectualistas ou empiristas, concordavam em que uma afirmação singular que expressa um “fato concreto” pode provar a falsidade de uma teoria universal; 6 mas poucos dentre eles julgaram que uma conjunção finita de proposições fatuais fosse suficiente para provar “indutivamente” uma teoria universal. 7 O justificacionismo, isto é, a identificação do conhecimento com o conhecimento provado, foi a tradição dominante do pensamento racional no correr dos séculos. O ceticismo não negou o justificacionismo: apenas asseverava que não havia (nem poderia haver) conhecimento provado e portanto qualquer espécie de conhecimento. Para
6. Os justi ficacionistas acentuaram repetidamente essa assimetria entre o s enunciado s fatuais singulares e as teorias universais. Cf. por exemplo a discussão sobre Pascal no ensaio de Popkin, “Scepticism, Theology and the Scien tific Revolution in the Seventeenth Century", de 1968, p. 14, e o enunciado de Kant no mesmo sentido citado no novo moto da terceira edição alemã da Logik de r F ors chung de Popper, de 1969. (A escolha feita por _Popper dessa pedra angular tradicional da lógica elementar como moto da nova edição da sua obra clássica demonstra sua preocupação principal: combater o probabilismo, em que a assimetria se mostra irrelevante; pois as teorias probabilistas podem tornar-se quase tão bem estabelecidas quanto as proposições fatuais.) 0. Com efeito, até alguns desses poucos, seguindo Mill, passaram do problema obviamente insolúvel da prova indutiva (de proposições universais a partir de proposições particulares) ao problema pouco menos obviamente insolúvel de provar proposições fatuais particulares a partir de outras proposições fatuais particulares.
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os céticos o “conhecimento” nada mais era do que a crença animal. Dessa maneira, o ceticismo justificacionista ridicularizou o pensamento objetivo e abriu as portas para o irracionalismo, o misticismo, a superstição. Essa situação explica o esforço enorme feito pelos racionalistas clássicos a priori do in- telectualismo e pelos na tentativa de salvar os princípios sintéticos empiristas clássicos na tentativa de salvar a certeza de uma base empírica e a validade da inferência indutiva. Para todos eles a honestidade científica exigia que não se afirmasse nada que não estivesse provado. Ambos, contudo, foram derrotados: os kantianos pela geometria não-euclidiana e pela física nãonewtoniana, e os empiristas pela impossibilidade lógica de estabelecer uma base empírica (como os kantianos assinalaram, fatos não provam proposições) e de estabelecer uma lógica indutiva (nenhuma lógica pode aumentar o conteúdo infalivelmente). Verificou-se que todas as teorias são igualmente indemonstráveis. Os filósofos demoraram em reconhecê-lo, por motivos óbvios: os justificacionistas clássicos temiam que, se admitissem a indemons - trabilidade da ciência teórica, teriam também de concluir que ela é sofisma e ilusão, uma probabilismo (ou fraude desonesta. A importância filosófica do “ neojustificacionismo ”) está na negação da neces sidade de uma conclusão dessa natureza. O probabilismo foi elaborado por um grupo de filósofos de Cam- bridge em cujo entender, embora as teorias científicas sejam igualmente improváveis, elas têm diferentes graus de probabilidade ( (no sentido do cálculo dás probabilidades) relativos à evidência empírica disponível. 8 A honestidade científica, portanto, requer menos do que se havia suposto: ela consiste em proclamar apenas teorias altamente prováveis; ou até em especificar apenas, para cada teoria científica, a evidência e a probabilidade da teoria à luz dessa evidência. Está claro que a substituição da prova pela probabilidade foi um recuo importante do pensamento justificacionista. Mas até esse recuo se revelou insuficiente. Logo se evidenciou, graças sobretudo aos per- sistentes esforços de Popper, que em condições muito gerais todas as
8. Os fundadores do probabilismo eram int electualistas; o s últimos esforços de Carnap para construir uma classe empirista de probabilismo malogrou. Cf. meu ensaio “Changes in the Problem of Inductive Logic”, de 1968. p. 367 e também p. 361, nota de rodapé n.° 2.
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teorias têm uma probabilidade zero, seja qual for a evidência; todas as teorias não são apenas igualmente indemonstráveis mas também igualmente improváveis. 9 « j
Muitos filósofos argumentam que a incapacidade de obter pelo menos uma solução probabilística do problema da indução significa que nós “jogamos fora /1
quase tudoque que precisamos a ciência e oapreciar bom senso con sideram conhecimento.” É nesse contexto a mudança dramática acarretada ° pelo falseacionismo na avaliação das teorias e, em geral, nos padrões de honestidade intelectual. Em certo sentido, o falseacionismo foi um novo e considerável recuo do pensamento racional. Mas, sendo um recuo de padrões utópicos, esclareceu muita hipocrisia e muito pensamento confuso, de modo que, na realidade, acabou representando um avanço.
(a) .Falseacionismo dogmático (ou naturalista). A base empírica. Discutirei primeiro uma das classes mais importantes de falseacionismo: o falseacionismo dogm ático (ou “ nauralísta”). 11 O falseacionismo dogmático admite a fabilidade de todas as teorias científicas sem qualificação, mas retém uma espécie de base empírica infalível. É estritamente empirista sem ser indutivista: nega que a Desse modo, o falseacerteza da base empírica pode ser transmitida a teorias. cionismo dogmático é a classe mais fraca de justifícacionismo.
Ê extremamente importante sublinhar que a admissão de uma contra-evidência empírica [ fortificada] como árbitro final contra uma teoria não faz de ninguém um falseacionista dogmático. Qualquer kantiano ou indutivista concordará com essa arbitração. Mas tanto o kantiano quanto o indutivista, embora se curvem diante de uma experiência crucial negativa, também especificarão condições sobre como estabelecer e fortificar, mais do que outra, uma teoria não refutada. Os kantianos sustentavam que a geometria euclidiana e a mecânica newtoniana foram estabelecidas com certeza; os indutivistas sustentavam que elas tinham probabilidade 1. Para o falseacionista dogmáti-
9. Sobre uma discussão pormenorizada, cf. meu ensaio "Changes in the Problem of Inductive Logic”, de 1968, especialmente à p. 353 e segu intes. 10.io nis “Reply 1943, à nfi p. nit 683. uma doons of jus ti fí cac mo detoRuCritics”, ss el l, cf . de me uRussell, en sa io de de 196 2, “I e ReSobre gre ss an d thdiscussão e Fo und ati Mathematics”, sobretudo à p. 167 e seg uintes. 11. Sobre uma explicação desse t erm o, cf. mais adiante, à p. 116, not a de p é de página n.° 12. 115
co, porém, a contra-evidência empírica é o único árbitro capaz de julgar uma teoria. A marca distintiva do falseacionismo dogmático é, pois, o reconhecimento de que todas as teorias são igualmente conjeturais. A ciência não pode provar teoria alguma. Mas se bem não possa provar, pode refutar: ela “pode executar com certeza lógica completa [o ato de] repúdio do que é falso”, 12 isto é, há uma base empírica de fatos absolutamente firme que se podé usar para refutar teorias. Os falsea- cionistas fornecem novos uma padrões — muito modestos — denão honestidade dispõemse a considerar proposição como “científica” só se forcientífica: uma proposição 1 fatual provada, 'mas também se não passar de uma proposição falseável, isto é, se houver técnicas experimentais e matemáticas disponíveis na ocasião que designem certas afirmações como falseadores potenciais. 13 A honestidade científica, portanto, consiste em especificar, de antemão, uma experiência de tal natureza que, se o resultado contradisser a teoria, a teoria terá de ser abandonada .14 Q falseacionista exige que, uma vez refutada a proposição, não haja evasão da verdade: a proposição tem de ser rejeitada incondicionalmente. O falseacionista dogmático executa sumariamente as proposições (não-tautológicas): que não podem ser falseadas : classifica- as de “metafísicas” e nega - lhes uma posição científica. Os falseacionistas dogmáticos traçam uma demarcação nítida entre o teórico e o experimentador: o teórico propõe, o experimentador — r em nome da Natureza — dispõe. Como diz Weyl: “Desejo registrar minha admiração sem limites pela obra do experimentador em sua luta para arrancar fatos interpretáveis de uma Natureza obstinada, que tão bem sabe enfrentar nossas teorias com um Não decisivo — ou com um Sim inaudível.” 15 Braithwaite apresenta uma exposição particularmente lúcida do falseacionismo dogmático. Ventila o prpble-
12. The Ar t of the S olubl e, de Medawar, 1967, p. 144. Veja também mai s adiant e, à p. 224, nota de pé de página n.° 341.
, 13. Essa discussão já indica a importância vital sobre o falacionista dogmático de uma demarcação entre proposições fatuais que se Podem provar e proposições teóricas que não se podem provar. 14. “Os cr i té r i os de ref utação têm de ser estabelecidos com antecedência: é preciso que haja concordância sobre as situações observáMçis que, sendo realmente observadas, significam que a teoria é ref utada” (Poppèr, 'von/ecíures and Rejutati ons , p.- 38, nota de rodapé n.° 3). Citado plenamente”. na Logik der F ors chung, de Popper, 1934, seção 85, com o comentário de Popper:15. “Concordo 116
ma da objetividade da ciência: “Até que ponto, portanto, deve um sistema científico dedutivo estabelecido ser considerado uma livre criação da mente humana, e até que ponto deve ele ser considerado fornecedor de um relato objetivo dos fatos da natureza?” Sua resposta é a seguinte: “A forma do enunciado de uma hipótese científica e seu emprego para expressar uma proposição geral é um expediente humano; o que se deve à Natureza são os fatos observáveis, que refutam ou não a hipótese científica. . . [Na ciência] deixamos à Natureza a tarefa de decidir se algumas das conclusões contingentes de nível mais baixo são falsas. Esse teste objetivo de falsidade é o que faz o sistema dedutivo, em cuja construção temos grande liberdade, um sistema dedutivo de hipóteses científicas. O homem propõe um sistema de hipóteses: a Natureza dispõe da s ua verdade ou falsidade. O homem inventa um sistema científico e depois descobre se o sistema se harmoniza ou não com o fato observado.” 16 De acordo com a lógica do falseacionismo dogmático, a ciência cresce mediante o repetido derrubamento de teorias com a ajuda de fatos concretos. Por exemplo, de acordo com essa concepção, a teoria gravitatória dos vértices de Descartes foi refutada — e eliminada — pelo fato de se moverem os planetas em elipses e não em círculos cartesianos; a teoria de Newton, contudo, explicava com êxito os fatos então disponíveis, tanto os que tinham sido explicados pela teoria de Descartes quanto os que a haviam refutado. Por isso a teoria de Newton substituiu a teoria de Descartes. De maneira semelhante, segundo os falseacionistas, a teoria de Newton, por sua vez, foi refutada — provando-se que era falsa — pela anomalia do periélio de Mercúrio, que Einstein, por sua vez, explicou. Desse modo, a ciência avança através de especulações ousadas, que nunca são demonstradas nem mesmo probalizadas mas algumas das quais, mais tarde, são eliminadas por refutações concretas e conclusivas e logo substituídas por novas especulações ainda mais ousadas, e, pelo menos no início, não - refutadas.
16. Braithwaite, Scientifi c Ex planation, 1953, pp. 367- 8. Sobre a “incor - rigibilidade” dos fatos observados de Braithwaite, cf. o seu ensaio, “The Re - levance of Psychology to Logic”, 1938. Embora no trecho citado Braithwaite dê uma resposta vigorosa ao problema da objetividade científica, em outro passo ele assinala que “excetuando -se as generalizações diretas de fatos observáveis ... a refutação completa já é tão impossível quanto a prova completa” (Scientif ic Ex planation, p. 19). Veja também mai s adian te, à p. 138, nota de rodãpé n.° 86.
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O falseacionismo dogmático, no entanto, é insustentável. Repousa sobre duas suposições falsas e sobre um critério demasiado rigoroso de demarcação entre o científico e o não-científico. ' 1 A primeira suposição é que há uma fronteira natural, psicológica, entre as proposições teóricas ou especulativas de um lado e as proposições fatuais ou observacionais (ou básicas) de outro. (Isto, natural mente, faz parte do “enfoque 17 naturalista” do método científico. A segunda suposição é que se uma proposição satisfaz ao critério psicológico de ser fatual ou observacional (ou básica), ela é verdadei ra; é possível afirmar que foi demonstrada a partir dos fatos. (Cha marei a esta a doutrina da prova observacional (ou experimental J. 18 Essas duas suposições asseguram às contundentes refutações dos falseacionistas dogmáticos uma base empírica a partir da qual a falsi dade provada pode ser transferida, pela lógica dedutiva, à teoria que está sendo testada. Tais suposições são completadas por um 'critério de demarcaçãoT* só são “científicas” as teorias que impedem certos estados de cõisas observáveis e, portanto, são fatualmente refutáveis. Ou, uma teoria será "científica” se tiver uma base empírica . 19 Mas as duas suposições são falsas. A psicologia depõe contra a primeira, a lógica contra a segunda e, finalmente, o julgamento metodológico depõe contra o critério de demarcação. Discutirei cada um deles de per si. (l)jum primeiro olhar endereçado a uns poucos exemplos característicos solapa a primeira suposição. Galileu afirmava- se capaz de “observar” montanhas na lua e manchas no sol, e que tais “obser vaçõe s” refutavam a teoria tradicional de que os corpos celestes são
17. Cf. L og ik de r F orsc hun g, 1934, de Popper, seção 10. 18. Sobre essa s suposições e su a criti ca, cf. Popper, L og ik de r F orsc hun g, 1934, seções 4 e 10. Ê por causa dessa s uposição que — seguindo Popper — chamo a esta classe de falseacionismo naturalista. As “proposições básicas” de Popper não se devem confundir com as proposições básicas discutidas nesta seção; cf. mais adiant e, à p. 129, nota de pé de página n.° 47. Importa assinalar que essas duas suposições são também partilhadas por muitos ju s ti fi ca ci oni st as qu e nã o sã o fa ls ea ci oni st as : el es po de m ac re sc en ta r às pr ova s experimentais “provas intuitivas” — como fez Kant — ou “provas indutivas” — como fez Mill. O nosso falseacionista só aceita provas experimentais. 19. A base empírica de uma teori a é o conjunto do s seus falseadores potenciais: o conjunto das proposições observacionais que podem refutá -la.
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bolas impecáveis de cristal. Mas suas “observações” não eram “ob - servacionais” no sentido de serem observadas unicamente pelos sentidos, a credibilidade delas dependia da credibilidade do telescópio do observador — e da teoria ótica do telescópio — violentamente contestada pelos contemporâneos. Não foram as observações — puras, não- -teóricas — de Galileu que se defrontaram com a teoria aristotélica, senão as “observações” de Galileu à luz da sua teoria ótica que se defrontaram comdeixa as “obsrevações dos aristotélicos à luz daprima teoriafacie aristotélica dos de céus. 20 Isso nos com duas teorias discrepantes, em igualdade condições. Alguns empiristas podem conceder esse ponto e concordar em que as “observações” de Galileu não eram observações genuínas; mas ainda s ustentam que há uma “demarcação natural” entre as afirmações impre ssas diretamente pelos sentidos numa mente vazia e passiva — só estas constituem “conhecimento imediato” autêntico — e as afirmações sugeridas por sensações impuras, impregnadas de teorias. Com efeito, todas as classes de teorias justificacionistas do conhecimento que reconhecem os sentidos por srcem (sejam eles uma srcem, ou sejam a srcem) do conhecimento estão sujeitas a conter uma psicologia da observação. Tais psicologias especificam o estado “correto”, “normal”, “saudável”, “sem preconceitos”, “cuidadoso” ou “científico” dos sentidos — ou melhor, o estado da mente como um todo — em que eles observam a verdade tal como ela é. Por exemplo, Aristóteles — e os estóicos - — - pensavam que a mente correta era a mente sadia do ponto de vista médico. Os pensadores modernos reconheceram que, para a mente ser correta, não lhe basta ter “saúde”. A mente correta de Descartes é temperada no fogo da dúvida cética, que não deixa nada a não ser a solidão final do cogito em que o ego pode ser restabelecido e, uma vez encontrada a mão orientadora de Deus, reconhecer a verdade. Todas as escolas do moderno justificacionismo podem ser caracterizadas pela psicote- rapia particular com a qual se propõem preparar a mente para receber a graça da verdade provada no curso de uma comunhão mística. Para os empiristas clássicos, em particular, a mente correta é uma tabula rasa, esvaziada de todo conteúdo srcinal, libertada de todos os preconceitos da teoria. Transpire, porém, da obra de Kant e Popper — e da obra dos psicólogos influenciados por eles — que essa psicote- rapia empirista nunca pode ter êxito. Pois não há, nem pode haver, sensações não-impregnada de expectátivas e, portanto, não há de-
20. A propósito, Galileu também mostrou — com a ajuda da sua ótica — que, se fosse uma bola de cristal sem jaça, a lua seria invisível. Galileu, Di alogo de i M assim i Siste mi , 1632.
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marcação natural (isto é, psicológica) entre as proposições observa- cionais e as teóricas. 21 ' (2) Mas mesmo que houvesse uma demarcação natural dessa espécie, a lógica ainda assim destruiria a segunda suposição do falseacionismo dogmático. Pois o valor-de- verdade das proposições “obser - vacionais” não pode ser indubitavelmente decidido: nenhuma proposição jatual pode ser provada a partir de uma experiência. As proposições só se podem derivar de outras proposições, não 22 experiências se podem de fatos: se pode provar com “como nãoderivar se podem provarnão dando murros na afirmações mesa.” Este é um dos pontos— básicos da lógica elementar, mas ai nda hoje compreendido relativamente por pouca gente. 23 Se não se podem provar, as proposições fatuais são falíveis. Se são falíveis, os choques entre teorias e proposições fatuais não são “fa lseamentos” mas apenas discrepâncias. Nossa imaginação pode desempenhar um papel maior na 24 formulação de “teorias” do que na formulação de “proposições fatuais”, mas ambas são falíveis. Assim sendo, r\ão podemos provar teorias e tampouco podemos refutá-las. 52 A demarcação entre as “teorias” francas, não -provadas, e
21. É verdade qu e a maioria dos psicólogos que se volta ram contra a idéia do sensacionalismo justificacionista o fizeram sob influência de filósofos pragmatistas, como William James, que negava a possibilidade de qualquer espécie de conhecimento objetivo. Mas, mesmo assim, a influência de Kant através de Oswald Ktilpe, Franz Brentano e a influência de Popper através de Egon Brunswick e Donald Campbell influíram na formação da psicologia moderna; e se a psicologia vier um dia a sobrepujar o psicologismo, isso se deverá à maior compreensão da linha principal de filosofia objetivista de Kan t e Popper.
22. Cf. Popper, Logik der F ors churtg, 1934, seção 29. 23. Parece que o primeiro filó sofo a da r ênfase a isto fo i Fries em 1837 ( cf. Popper , Logik der F ors chung, 1934, seção 29, nota de rodapé n.° 3). Tra- ta-se, naturalmente, de um caso especial da tese geral de que as relações lógicas, como a probabilidade ou a consistência, se referem a pr op osi ções. As sim, por exemplo, a proposição “a natureza é consistente” é falsa (ou, se preferirem, carente de significado), pois a natureza não é uma proposição (nem uma conjunção de proposições). 24. A propósit o, até isso é duvidos o. Cf. mais adian te, pp. 155 e seguintes. 25. Como diz Popper; "Nunca se poderá apresentar uma refut ação co nclusiva de uma teoria”; os que esperam uma refutação infalível antes de eli minar uma teoria terão de esperar para sempre e “nunca se beneficiarão da experiência" (.Logik de r F orsc hun g, 1934, seção 9).
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a ‘base empírica” forte, provada , não existe: todas as proposições da ciência são 2f i teóricas e incuravelmente falíveis. (3) Finalmente, mesmo que houvesse uma demarcação natural entre os enunciados da observação e as teorias, e mesmo que o valor- -de-verdade dos enunciados da observação pudesse ver estabelecido de modo indubitável, o falseacionismo dogmático ainda assim seria inútil para eliminar a classe mais importante das comumente consideradas teorias científicas. Pois mesmo que as experiências pudessem provar relatórios o seuaspoder de cientíjicas refutação ainda assim seria miseravelmente restrito: experimentais, são exatamente teorias mais admiradas que simplesmente falham em proibir qualquer estado observável de coisas. Em apoio da última alegação, contarei primeiro uma história característica e, a seguir, proporei um argumento geral. A história é a respeito de um caso imaginário de mau comportamento planetário. Valendo-se da mecâ nica de Newton, da sua lei da gravitação, (N), e das condições iniciais aceitas, /, um físico da era pré-einsteiniana calcula o caminho de um planetazinho re- cém-descoberto, p . Mas o planeta se desvia da trajetória calculada. O nosso físico newtoniano acaso, que orefuta desvioa era proibido pela teoria de Newton e, portanto, considera, uma vez estabelecido, teoria N I Não. Sugere que deve existir um planeta p ’ , até então desconhecido, que perturba a trajetória de p . Calcula a massa, a órbita, etc., desse planeta hipotético e, em seguida, pede a um astrônomo experimental que teste sua hipótese. O planeta p ' é tão pequeno que nem o maior dos telescópios disponíveis pode observá-lo: o astrônomo experimental solicita uma verba de pesquisa a fi m de construir um telescópio ainda maior. 27 Em três anos o novo telescópio fica
26 . Tanto Kant quanto o seu seguidor inglês, Whewell, compreenderam que todas as proposições científicas, quer a p ri ori, quer a pos te r ior i. são igualmente teóricas; mas ambos sustentavam que elas são igualmente demonstrá- veis. Os kantianos viam claramente que as proposições da ciência são teóricas no sentido de que não são escritas por sensações na tabula rasa de uma mente vazia, nem induzidas ou deduzidas de tais proposições. Uma proposii ção fatual é apenas um gênero especial de proposição teórica. Nisto Popper sé colocou ao lado de Kant contra a versão empirista do dogmatismo. Popper, todavia, deu um passo à frente: em sua concepção, as proposições da ciência não são teóricas mas também f al ívei s, conjecturais para sempre. 27 . óticos Se o minúsculo planeta conjectural estivesse fora do alcance até dos maiores telescópios possívei s, ele poderia experimentar um instrumento totalmente novo (como um radiotelescópio) que lhe permitisse “observá -lo", isto é, interrogar a Natureza a respeito dele, ainda que apenas de forma in-
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pronto. Se o planeta desconhecido p’ fosse descoberto seria saudado cotno uma nova vitória da ciência newtoniana. Mas não o é. Porventura o nosso cientista abandona a teoria de Newton e sua idéia do planeta perturbador? Não. Sugere que uma nuvem de poeira cósmica esconde o planeta de nós. Calcula a localização e as propriedades dessa nuvem e solicita uma verba de pesquisa para enviar um satélite ao espaço a fim de pôr à prova os seus cálculos. Se os instrumentos do satélite (possivelmente instrumentos novos, baseados numa teoria pouco testada ainda) registrassem a existência da nuvem hipotética, o resultado seria saudado como uma vitória extraordinária da ciência newtoniana. Mas a nuvem não é encontrada. Por acaso o nosso cientista abandona a teoria de Newton, juntamente com a idéia do planeta perturbador e a idéia da nuvem que o esconde? Não. Sugere a existência de um campo magnético naquela região do universo que perturbou os instrumentos do satélite. Um novo satélite é enviado ao espaço. Se o campo magnético fosse encontrado, os newtonianos comemorariam o encontro como uma vitória sensacional. Mas ninguém o encontra. Isso é considerado como uma refutação da ciência newtoniana? Não. Ou se propõe outra engenhosa hipótese auxiliar ou.. . toda a história é sepultada nos poentos volumes das publicações especializadas, e nunca mais se toca no assunto. 28 Essa história dá a entender vigorosamente que até a mais respeitada teoria científica, como a dinâmica e a teoria da gravitação de Newton, pode falhar em proibir qualquer estado observável de coisas. 29 De fato, algumas teorias científicas só impedirão a ocorrência de um acontecimento em alguma região espaço-temporal inita especificada (ou, em poucas palavras, um “acontecimento singular”) se nenhum outro fator (possivelmente escondido em algum canto espaço-temporal distante e não-especificado do universo) tiver alguma influência sobre ela. Mas, nesse caso, tais teorias nunca con-
direta. (A nova teoria “observacional” talvez não fosse adequadamente inte ligível, e muito menos severamente testada, mas ele não se importaria com isso, como Galileu não se importou.) 28. Pelo menos enquanto um novo programa de pesquisa não suplantar o programa de Newton, que explica este fenômeno, anteriormente recalcitrante. Nesse caso, o fenômeno será exumado e entronizado como “experiência crucial”; cf. mais adiant e, pp. 190 e seguintes. 29. Popper pergunta: “Que espécie de respostas clínicas refutaria, para satisfação do analista, não só um diagnóstico particular mas a própria psica nálise?” (Conjectures and Rejutations, p. 38, nota de rodapé n.° 3.) Mas que espécie de observação refutaria, para satisfação dos newtonianos, não só determinada versão mas também a própria teoria newtoniana?
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tradizem sozinhas uma afirmação "básica"; cotradizem, quando muito, a conjunção de um enunciado básico que descreve um acontecimento espaço-temporalmente singular e de um enunciado universal de não-existência que afirma que nenhuma outra causa pertinente se encontra em ação em algum lugar do universo. E o falseacionista j dogmático não pode afirmar, de maneira alguma, que tais enunciados universais de não-existência pertencem à base empírita: qtie po-' dem ser observados e provados pela experiência. Outra maneira de dizer a mesma coisa é declarar que algumas teorias científicas são normalmente interpretadas como se contivessem uma cláusula ceteris paribus' M: em tais casos é sempre uma teoria específica, juntamente com essa cláusula, que se pode refutar. Mas tal refutação é irrelevante para a teoria específica que está sendo testada porque, substituindo a cláusula ceteris paribus por outra diferente, a teoria específica poderá sempre ser mantida, digam o que disserem os testes. Nessas condições, o processo de refutação “inexorável" do fal - seacionismo mesmo que haja uma base empírica dogmático deixa de funcionar em tais casos firmemente estabelecida para servir de plataforma de lançamento para a seta do 31 modus tollens: o alvo principal continua irremediavelmente esquivo. E o fato é que são exatamente as teori as mais importantes, “maduras”, da história da ciência que são prima facie irrefutáveis dessa maneira. 32 Ademais, pelos padrões do falseacionismo dogmático todas as teorias probabilísticas também figuram nessa categoria: pois nenhuma amostra finita poderá jamais refutar > uma teoria probabilística universal; 33 as teorias probabilísticas, como as teorias com uma cláusula ceteris paribus, não têm base empírica. Mas então o falseacionista como ele próprio o dogmático relega as teorias científicas mais importantes, reconhece , à metafísica, onde a discussão racional — que consiste, de acordo com os seus
30. [Acrescentada no prelo]: Essa cláusula " ceteri s paribus" não precisa ser normalmente interpretada como premissa separada. Sobre uma discussão, veja mais adiante, à p. 231. 31. A propósito, podemos persuadir o falseacionista dogmático de que o s eu critério de demarcação foi um erro sumamente ingênuo. Se ele o abandonar mas retiver suas duas suposições básicas, terá de eliminar da ciência as teorias e considerar o crescimento desta última como acumulação de enunciados bás icos provados. Isso. com efeito, é a fase final do empirismo clássico depois de evaporar-se a esperança de que os fatos podem provar ou, pelo menos. refutar teorias. 32. 33.
Isso não é coincidência; cf. mais adiant e, pp. 217 e seguintes. Cf. Popper, Logik de r F orsc hun g, 1934, capítulo VIII.
123
padrões, em provas e refutações — não tem lugar, visto que uma teoria metafísica não pode ser provada nem refutada. O critério de demarcação do falseacionismo dogmático, dessa maneira, é assim ainda vigorosamente antiteórico. (Além disso, pode argumentar-se facilmente que as cláusulas ceteris paribus não são exceções, senão a regra na ciência. A ciência, afinal de contas, precisa ser separada de uma loja de curiosidades onde engraçadas singularidades locais — ou cósmicas — são coli- gidas e expostas. O enunciado “todos os britânicos morreram de cân cer do pulmão entre 1950 e 1960” é logicamente possível, e podia até ter sido verdadeiro. Mas se foi apenas a ocorrência de um evento com mínimas probabilidades, teria apenas um valor de curiosidade para o excêntrico coletor de fatos, seria um macabro valor de entretenimento, mas nenhum valor científico. Só se pode dizer que uma proposição é científica quando ela visa a expressar uma conexão causai; essa conexão entre ser britânico e morrer de câncer do pulmão pode até nem ser tencionada. Semelhantemente, o enunciado “todos os cisnes são brancos”, se fosse verdadeiro, seria uma simples curio sidade, a não ser que afirmasse que o fato de ser um cisne causa a brancura. Mas nesse caso num cisne preto não refutaria essa proposição, visto que poderia apenas indicar outras causas operando simultaneamente. Assim, “todos os cisnes são brancos” é uma sin gularidade e facilmente refutável ou uma proposição científica com uma cláusula ceteris paribus e, portanto irrefutável. A tenacidade de uma teoria contra a evidência empírica seria então um argumento mais a favor do que contra a sua qualificação como "científica". A " ir refutabilidade” tornar -se-ia uma marca distintiva da ciência.) 34 Resumindo: os justificacionistas clássicos só admitiam teorias provadas; os justificacionistas neoclássicos, teorias prováveis: os fal- seacionistas dogmáticos compreenderam que em nenhum desses casos eram admissíveis as teorias. Decidiram admitir teorias se fossem refutáveis — refutáveis por um número finito de observações. Mas mesmo que existam tais teorias refutáveis — as que podem ser contraditadas por um número finito de fatos observáveis — ainda estão logicamente demasiado próximas da base empírica. Por exemplo, nos termos do falseacionista dogmático, uma teoria como “Todos os pla netas se movem em elipses” pode ser refutada por cinco observa ções; por conseguinte, o falseacionista dogmático a considerará cien tífica. Uma teoria como “Todos os planetas se movem em círculos”
34.
124
Sobre um caso muito mais forte, cf. mais adian te, seção 3.
pode ser refutada por quatro observações; por conseguinte, o falsea cionista dogmático a considerará mais científica ainda. A culminância da cientificidade será uma teoria como “Todos os cisnes são brancos”, que pode ser refutada por uma única observação. Por outro lado, ele rejeitará todas as teorias probabilísticas juntamente com as de Newton, Maxwell, Einstein, por não-científicas, uma vez que nenhum número finito de observações poderá refutá-las. Se aceitarmos o critério de demarcação do falseacionismo dogmático, e também a idéia de que os fatos podem provar proposições “fatuais”, teremos de declarar que as teorias mais importantes, se não todas elas, propostas na história da ciência são metafísicas, que a maior parte do progresso aceito, se não todo ele, é pseudoprogresso, que quase todo, se não todo, o trabalho feito é irracional. Se, todavia, ainda aceitando o critério de demarcação do falseacionismo dogmático, negarmos que os fatos podem provar proposições, acabaremos por certo no mais completo ceticismo: nesse caso, toda ciência será, sem dúvida, metafísica irracional e deverá ser rejeitada. As teorias científicas não são apenas igualmente impossíveis de ser provadas, e igualmente improváveis, mas também são igualmente irrefutáveis. Mas_o reconhecimento de que não só as proposições teóricas mas todas as proposições em ciência são falíveis, significa o colapso total de todas as formas de justificacionismo dogmático como teorias da racionalidade científica. (b) Falseacionismo metodológico. A "base empírica”. O colapso do falseacionismo dogmático sob o peso dos argumentos falibilísticos nos traz de volta ao início. Se todas as afirmações científicas são teorias falíveis, só podemos criticá-las por serem inconsistentes. Mas nesse caso, em que sentido, se houver algum, a ciência é empírica? Se as teorias científicas não podem ser provadas, ''riem probabilizadas, nem refutadas, os céticos parecem ter finalmente razão: a ciência não passa de uma vã especulação e não existe progresso no conhecimento científico. Ainda podemos opor -nos ao ceticismo? Podemos salvar a crítica científica do falibilismo? É possível ter uma teoria falibilística do progresso científico? Em particular, se a crítica científica é falível, baseados em que poderemos algum dia eliminar uma teoria? falseacionismo Uma resposta sumamente intrigante nos é fornecida pelo metodológico. O falseacionismo metodológico é uma classe de convencionalismo;’portanto, a fim de compreendê -lo, precisamos primeiro discutir o convencionalismo em geral.
125
Há uma demarcação importante entre as teorias " passivista” e "ativista” do conhecimento. Sustentam os “passivistas” que o verda deiro conhecimento é a marca impressa pela Natureza numa mente perfeitamente inerte: a atividade mental só pode resultar em parcialidade e distorção. A escola passivista mais influente é o empirismo clássico. Os “ativistas” sustentam que não podemos ler o livro da Natureza sem atividade mental, sem interpretá-lo à luz das nossas expectativas ou teorias. 35 Agora os' ativistas conservadores sustentam que nós nascemos com nossas expectativas básicas; com elas transformamos o mundo no “nosso mundo” mas, depois, temos de viver para sempre na prisão do nosso mundo. A idéia de que vivemos e morremos na prisão de nossos “referenciais conceituais” foi desen volvida primeiramente por Kant; os kantianos pessimistas pensavam que o mundo real é para sempre incognoscível por causa dessa prisão, ao passo que os kantianos otimistas pensavam que Deus criou nosso referencial conceituai para ajustá-lo ao mundo. 36 Mas os ativistas revolucionários acreditam que os referenciais conceituais podem ser desenvolvidos e também substituídos por novos e melhores referenciais; somos nós que criamos nossas “prisões” e 37 também podemos, com espírito crítico, demoli-las. Novos passos do ativismo conservador para o ativismo revolu cionário foram dados por Whewell e depois por Poincaré, Milhaud e Le Roy. Whewell afirmava que as teorias são desenvolvidas por ensaio-e-erro — nos “prelúdios das épocas indutivas” — por uma longa consideração essencialmente a priori, que ele denominava “in tuição progres siva”. As “épocas indutivas” são seguidas por “seqüelas das épocas indutivas”: desenvolvimentos cumulativos de teorias
35.
Essa demarcação — e terminologia — deve-se a Popper; cf. especialmente sua 1934, seção 19, e seu 1945, capítulo Logik r Fdeorsc g, 23 e ade nota pé hun de página n.° 3 do capítulo 25. Th e Open So ci ety and its En emies , 36. Nenhuma versão do ativismo con servador explicou por que a teo ria gravitacional de Newton deveria ser invulnerável; os kantianos restringiam-se à e xplicação da tenacidade da geometria euclidiana e da mecânica newtoniana. A respeito da gr avi t ação e da óti ca newtonianas (ou outros ramos da ciência), assumiam uma posição ambígua e, ocasionalmente, indutivista. 37. Não inclu o Hegel entre o s " at ivist as revolucionários”. Para Hegel e seus seguidores, a mudança verificada nas referências conceptuaís é um processo predeterminado, inevitável, em que a criatividade individual ou a crítica racional não desempenham um papel essencial. Os que correm na frente estão tão errados quanto os que ficam atrás dessa "dialética”. O homem inteligente não é o que cria uma “prisão" melhor, nem o que demole com espírito crítico a prisão velha, mas o que está sempre em harmonia com a história. É assim que a dialética explica a mudança sem crític a.
126
auxiliares. 38 Poincaré, Milhaud e Le Roy eram avessos à idéia de prova pela intuição progressiva e preferiam explicar o continuado êxito histórico da mecânica newtoniana por uma decisão metodológica tomada por cientistas: depois de um período considerável de êxito empírico inicial, os cientistas podem decidir não permitir que a teoria seja refutada. Uma vez tomada essa decisão, resolvem (ou dissolvem) as aparentes anomalias por meio de hipóteses auxiliares ou outros “estratagemas convencionalistas” . 39 Esse convencionalismo conservador, no entanto, tem a desvantagem de rios incapacitar para sair das prisões que nós mesmos nos impusemos, depois de se haver escoado o primeiro período de ensaio-e-erro e de haver sido tomada a grande decisão. Ele não pode resolver o problema da eliminação das teorias que triunfaram durante um longo período. De acordo com o convencionalismo conservador, as experiêncais podem ter força bastante para refutar teorias jovens, mas não têm força para refutar teorias velhas, estabelecidas: à proporção que a ciência cresce, a força da evidência empírica diminui. 40 Os críticos de Poincaré recusaram-se a aceitar sua idéia de que, embora os cientistas construam seus referenciais conceituais, chega uma ocasião em que esses referenciais se transformam em prisões que não podem ser demolidas. Essa crítica deu srcem a duas escolas rivais
38. Cf. Whewell, H istory of t he I nducti ve Science s, fr om the Ee ar li est to the Pres ent Time, 1837; Phi losophy o f th e I nducti ve Science s, Fou nded upon th e H istory, 1840; e Novum Organum Renovat um, 1858. 39.
Cf. especialmente Poincaré, “Les géometries non euclidiennes”, 1891; e L a Sci ence 1902; Milhaud. "La Science Rationelle”, 1896; e Le Roy, "Science et Philosophie”, 1889, e “Un Positivisme Nouveau”, 1901. Foi um dos principais méritos filosóficos dos convencionalistas dirigir os refletores para o fato de que qualquer teoria pode ser salva das refutações por “estratagemas convencionalistas”. (A expressão "estratagema convencionalista” é de Popper, que discute com espírito crítico o convencionalismo de Poincaré em sua L ogik d er F orsc hun g, especialmente nas seções 19 e 20.)
et l’Hypothèse,
40. Poincaré elabo rou primeiro o seu convencionalismo somente em relação à geometria (cf. o seu ensaio “Les géometries non euclidiennes”). De pois Milhaud e Le Roy generalizaram a idéia de Poincaré para cobrir todos os ramos da teoria física aceita. La Sc ie nc e et l’ Hy po t hè se de Poincaré começa com uma vigorosa crítica do bergsoniano Le Roy, contra o qual ele defende o cará ter empírico (falseável ou “indutivo”) de toda a física, com ex ceção da geometria e da mecânica. Duhem, por seu turno, criticou Poincaré, em cuja concepção havia uma possibilidade de derrubar até a mecânica newtoniana.
127
de convencionalismo revolucionário: o simplicismo de Duhem e o falseacionismo metodológico de Popper. 41 Duhem aceita a posição dos convencionalistas de que nenhuma teoria física desmorona jamais sob o peso de “refutações”, mas afian ça que ela ainda pode desmoronar sob o peso de “reparos contínuos e de inúmeros esteios emaranhados”, quando as “colunas comidas pelos vermes” não podem suportar por mais tempo “o sdifício vaci lante”; 42 a teoria perde sua simplicidade srcinal e precisa ser substituída. Mas o falseamento é entregue então ao gosto subjetivo ou, na melhor das hipóteses, à moda científica, e deixa-se muita margem à adesão dogmática a uma teoria favorita. 13 Popper dispôs-se a encontrar um critério que fosse, ao mesmo tempo, mais objetivo e mais agressivo. Ele não poderia aceitar a debilitação do empirismo, inerente até ao enfoque de Duhem, e propôs uma metodologia que faculta às experiências serem poderosas até na ciência “madura”. O falseacionismo metodológico de Popper é convencionalista e falseacionista a um tempo, mas ele “difere dos convencionalistas [conservadores] por sustentar que ps enunciados decididos por consenso não são [espaço-temporalmente] universais mas [espaçotemporalmen te] singulares” 44 ; e difere do falseacionista dogmático por sustentar que o valor-de-v erdade de tais afirmações não pode ser provado por fatos mas, em alguns casos, pode ser decidido por consenso.
45
41. Os loci class ici são L a Th é or i e Physiqu e, Son O bj el et Sa S tr uct ur e, 1905, de Duhem, e a Logik der Forschung de Popper. Duhem não era um convencionalista revolucionário coerente. De maneira muito semelhante a Whe- well, achava que as mudanças conceptuais são apenas preliminares da “classi ficação natural" final — ainda que talvez distante: “Quanto mais se aperfeiçoa uma teoria, tanto mais apreendemos que a ordem lógica em que ela arranja as leis experimentais é o reflexo de uma ordem ontoiógica.” Em particular, realmente desmoronando e caracterizou a teoria da recusou-se a ver a mecânica de Newton relatividade de Einstein como a manifestação de uma “c orrida frenética e febril no encalço de uma idéia nova”, que “converteu a física num verdadeiro caos, onde a lógica se desgarra e o bom senso foge espavorido” (Prefácio — de 1914 — para a segunda edição de sua obra supracitada). 42. Duhem, L a T hé or i e Physiqu e, Son O bj et et Sa Str uct ur e, 1905, capítulo VI, seção 10. 43. Sobre uma discussão adicional do convencionalismo, veja
mais adian te, pp. 228-
233. 44. Popper, L ogik der F orsc hung, 1934, seção 30. 45. Ne st a se çã o di sc ut o a va ri an te “i ng ên ua ’’ do fa ls ea ci on is mo me to do l ógico de Po pp er . De ss e mo do , em to do o co rr er da se çã o, “f al se ac io ni sm o m et od ol óg ic o” qu er di ze r “falseacionismo metodológico ingênuo sobre essa "ingenuidade”, cf. pp. 140-141. mais adiante,
128
O convencionalista conservador (ou “justificacionista metodo lógico”, se se quiser) torna não-falseáveis por decreto algumas teorias (espaço-temporalmente) universais, que se distinguem por seu poder explanatório, sua simplicidade ou sua beleza. O nosso convencionalista revolucionário popperiano (ou “falseacionista metodoló gico”) torna não -falseáveis por decreto alguns enunciados (espaço- temporalmente) singulares que se podem distinguir pelo fato de existir ná ocasião uma “técnica pertinente” tal que “quem quer que a tenha aprendido” será capaz de decidir que o e nunciado é “aceitável”. 46 Um enunciado dessa ordem pode ser 47 cognominado “observa - cional” ou “básico”, mas apenas entre aspas. Com efeito, a própria seleção de todos esses enunciados é uma questão de decisão, que não se baseia em considerações exclusivamente psicológicas. Essa decisão é então seguida de uma segunda espécie de decisão relativa à separação do conjunto de enunciados básicos aceitos do resto. Essas duas decisões correspondem às duas suposições do falsea- cionismo dogmático. Mas há diferenças importantes. Acima de tudo, o falseacionista metodológico não é um justificacionista, não tem ilu sões a respeito de “provas experimentais” e tem plena consciência da falibilidade das suas decisões e dos riscos que está assumindo. O falseacionista metodol ógico.compreende que nas “técnicas experimentais” 48 do cientista estão envolvidas teorias falíveis, à “luz” das quais ele interpreta os fatos. Apesar disso, “aplica” essas teorias, encara -as no contexto dado, não como teorias que estão sendo testadas, mas como t conhecimento não-problemático de undo “que nós aceitamos (tentativamente) como não -problemático enquanto testamos a teoria”. 49 Ele pode chamar a essas teorias — e as afirmações cujo valor-deverdade decide à sua luz — “observacionais”: mas isto é apenas um modo de falar que herdou do falseacionismo naturalista. 50 O falseacionista metodológico usa nossas teorias mais bem sucedidas como extensões dos nossos sentidos e amplia a extensão das
46. Popper, Logik de r F orschung, 1934, seção 27. 47. Op. c it . seção 28. Sobre a não-basicidade desses enunciados metodo- logicamente "básicos”, cf. por exemplo Popper, Logik de r F orschung, 1934, passim e Popper, The Logic of Scientif ic Di scov er y, 1959, p. 35, nota de ro dapé n.” 2. 48. Cf. Popper, Logik der Forschung, 1934, fim da seção 26 e também seu ensaio “Remarks on the Pr oblems of Demarcation and Rationality”, pp. 291 -2. 49. 50.
Cf. Popper, Conj ectur es and Re f utati ons , 1963, p. 390. Efetivamente, Popper, cauteloso, colocou “observacionais” entre L ogik de r F orsc hu ng, seção 28.
as pas; cf. sua
129
teorias que podem ser aplicadas no procedimento de teste muito além da gama de teorias estritamente observacionais do falseacionista dogmático. Imaginemos, por exemplo, que se descubra uma grande ra- dioestrela com um sistema de radioestrelas satélites descrevendo órbitas ao seu redor. Gostaríamos de testar alguma teoria gravitacional nesse sistema planetário — assunto de considerável interesse. Imaginemos agora que Jodrell Bank consiga proporcionar um conjunto de coordenadas espaço-temporais dos planetas que contradiga a teoria. Tomaremos esses enunciados como falseadores potenciais. Está claro que tais enunciados básicos não são “observacionais” no sehtido usual mas apenas ‘“observacionais”’. Eles descrevem planet as que nem o olho humano nem os instrumentos óticos podem alcançar. Chega-se ao seu valor-de-verdade por meio de uma “técnica experimental”. Essa “técnica experimental” baseia -se na “aplicação” de uma teoria bem corroborada de radiótica. Chamar “observacionais” a essas afirmações outra coisa não é senão um modo de dizer que, no contexto do seu problema, isto é, no procedimento de teste de nossa teoria gravitacional, o falseacionista metodológico usa a radiótica sem espírito crítico, como “conhecimento de fundo”. A necessidade de decisões para demarcar a teoria que está sendo testada do conhecimento de fundo não-problemático é um traço característico dessa classe de falseacionismo metodológico .51 (Esta situação, na verdade, não difere da “observação” de Gal ileu dós satélites de Júpiter: além disso, como assinalaram com razão alguns contemporâneos de Galileu, ele se apoiava numa teoria ótica virtualmente inexistente — então menos corroborada e até menos bem expressa do que a radiótica atual. Por outro lado, chamar “observacionais” aos relatos do nosso olho humano só indica que nos “apoiamos” em alguma vaga teoria fisiológica da visão humana. 52 ) \ Essa consideração mostra o elemento convencional em conceder — num dado contexto — um status (metodologicamente) “ observa- cional” a uma teoria. 53 De maneira semelhante, há um considerável elemento convencional na decisão relativa ao valor-de-verdade real de um enunciado básico que fazemos depois de haver decidido que
51.
Essa demar cação desempenha um papel não só n o primeiro
quarto tipo de decisões do falseacionista metodológico. (Sobre a adiante, p. 134.)
mas também no
quarta decisão, veja
mais
52. Sobre uma discussão fascinante, veja Feyerabend, “Problems of Em - piricism II”, 1969. 53. Ficamos a imaginar se n ão seria melhor acabar com a terminologia do falseacionismo naturalista e rebatizar as teorias observacionais com o nome de “teorias de pedra de toque” (“touchston e theories”).
130
“teoria observacional” aplicar. Uma única observação pode ser o resultado fortuito de algum erro trivial; no intuito de reduzir tais riscos, os falseacionistas metodológicos prescrevem algum controle de segurança. O mais simples desses controles consiste em repetir a experiência (o número de vezes é uma questão de convenção), fortifi cando assim o falseador pçtencial por meio de uma “hipótese fal- seadora bem corroborada”. 54 O falseacionista metodológico também assinala que, na realidade, essas convenções são institucionalizadas e endossadas pela comunidade científica; a lista de fal seadores “aceitos” é fornecida pelo veredito dos cientistas 55 experimentadores. É assim que o falseacionista metodológico estabelece sua “base empírica”. (Ele usa aspas a fim de “dar uma ênfase irônica” à ex pressão. 56 ) Essa “base” dificilmente poderá ser chamada de “base” pelos padrões justificacionistas: não há nada provado no que diz respeito a ela — ela denota “estacas colocadas em um pântano”. 57 Com efeito, se essa “base empírica” colide com uma teoria, a teoria pode ser dita “falseada”, mas não é falseada no sentido em que é refutada. O “falseamento” metodológico é muito diferente do falseamento dog mático. Se uma teoria for falseada, provou- se que é falsa; se for “falsificada”, ainda poderá ser verdadeira. Se seguirmos essa espécie de “falseamento” pela “eliminação” real de uma poderemos acabar repugnante eliminando ao uma teoria verdadeira e aceitando uma falsa teoria, (possibilidade totalmente justificacionista antiquado). Não obstante, é exatamente isso que o falseacionista metodo - , lógico nos recomenda que façamos. O falseacionista metodológico compreende que, se quisermos conciliar o falibilismo com a racionalidade (não-justificacionista), recisamos encontrar um jeito de eliminar algumas teorias. Se não o conseguirmos, o crescimento daj ciência não será mais do que um caos cada vez maior. Por conseguinte, o falseacionista metodológico sustenta que “[se quisermos] fazer funcionar o método de seleção por eliminação
54 Cf. Popper, Logik de r F ors chung, 1934, seção 22. Muitos filósofos passaram por alt o a im po rt an te re st ri çã o de Po pp er se gu nd o a qu al um en un cia do b hipótese falseadora bem corroborada. 55. Cf. Popper, L ogik d er F orsc hun g, 1934, seção 30. 56. Popper, Conj ectur es and Refutati ons, 1963, p. 387. 57. Popper, Logik der For schun g,1934, seção 30; cf.
também
a
seção
29: “A Relatividade dos Enunciados Básicos”. 131
e assegurar a sobrevivência apenas das teorias mais aptas, devemos tornar severa sua luta pela vida”. 58 Depois que uma teoria tiver sido falseada a despeito do risco envolvido, precisa ser eliminada: “[com as teorias só trabalhamos] enquanto elas suportam os testes”. 59 A eliminação deve ser metodologicamente conclusiva: “Em geral en caramos um falseamento intersubjetivamente testável como definitivo. . . Uma avaliação corroborativa feita em data ulterior. .. pode substituir um grau positivo de corroboração por um negativo, mas não vice- versa. Essa é a explicação do falseacionista metodológico sobre como sair de um atoleiro: “É sempre a experiência que nos impede de seguir um caminho que não conduz a parte alguma.” 61 O falseacionista metodológico separa a rejeição da refutação, que o falseacionista dogmático havia fundido. 62 É um falibilista, mas o falibilismo não lhe enfraquece a posição crítica; converte propo sições falíveis numa “base” para uma política de linha dura. Com esse pretexto, propõe um novo critério de demarcação: somente são “científicas” as teorias — isto é, proposições não“observacionais” — que proíbem certos estados de coisas “observáveis” e, portanto, podem ser uma teoria é "científica” (ou “falseadas” e rejeitadas; ou, em poucas palavras, ", aceitável ”) se tiver uma “base empírica”. Esse critério põe de manifesto, com 63 nitide#, a diferença entre o falseacionismo dogmático e o metodológicoí 60
58. Popper, The Po ver ty of H isto r icism, 1957, p. 134. Em outros lugares, Popper enfatiza que esse método não “assegura” a sobrevivência do mais apto. A seleção natural pode desandar: é possível que os ma is aptos pereçam e monstros sobrevivam. 59. Popper, “Induktionslogik und Hypothesenwahrscheinlichkeit”, 1935. 60. Popper, L ogik de r F orsc hu ng, 1934, seção 82. 61. Popper, Logik der F ors chung, 1934, seção 82. 62. Essa espécie de “falseamento ” metodológico, à diferença do falsea mento dogmático (refutação) , é uma i déia pragmática, metodológi ca. Mas en tão que é o que devemos exatamente entender por ela? Responde Popper — que porei de lado — que o “falseamento” metodológico indica a "necessidade urgente de su bstituir uma hipótese falseada por uma hipótese melhor” (Popper, The Logic of Scientif ic D isco very, 1959, p. 87, nota de rodapé n.° 1). Eis aí uma excelente ilustração do processo que descrevi em meu ensaio “Proofs and Refutations”, de 196 34 , po r cuj o int erméd io a dis cus sãoc rít ica tra ns f problema srcinal sem mudar necessariamente os velhos termos. Os subprodu tos desses processos são tr ansfer ênci as de sign i f i cado. Sobre uma discussão adicional, cf. mais adian te, à p. 149, nota de rodapé n.° 127, e p. 193, nota de rodapé n.° 245.
63. O critério de demarcação do falseaci onista do gmático era o seguinte: uma teoria será “científica” se tiver uma base empírica (veja mais acima, à p. 118).
132
Esse critério metodológico de demarcação é muito mais liberal do que o dogmático. O falseacionismo metodológico abre novas avenidas para a crítica: um número muito maior de teorias pode ser qualificado de “científico”. Já vimos que 04 existem mais teorias “obser - vacionais” do que teorias observacionais e, 05 portanto, há mais enunciados “básicos” do que enunciados básicos. Além disso, as teorias probabilísticas fazem jus agora à qualificação de “científicas”; em bora não sejam falseáveis, podem facilmente tornarse “falseáveis” por uma decisão adcional (de terceiro tipo) que o cientista pode tomar especificando certas regras de rejeição capazes de pro tornar- babilística”. a evidênciar,fi estatisticamente interpretada “inconsistente” com a teoria Mas nem essas três decisões são suficientes para permitirnos “falsear” uma teoria que não pode explicar nada “observável” sem uma cláusula ceteris 67 aribus. Nenhum número finito de “observações” será bastante para “falsear” uma teoria nessas condições. Entretanto, se for esse o caso, como se pode razoadamente defender u ma metodologia que afirma “interpretar leis naturais ou teorias como ... enunciados parcialmente decidíveis, isto é, que não são, por razões lógicas, verificáveis mas, de um modo assimétrico, falseá veis. ..”? 15 8 Como se podem interpretar teorias, como a teoria newto-
64. Veja mais acima. pp. 118-119. 65. A propósito, em sua Logik de r F orsc hun g, 1934, Popper não parece ter visto com clareza este ponto. Escreve ele: “É reconhecidamente possível interpretar o conceito de um even to ob ser vável num sentido psicologista. Em- prego-o, porém, num sentido tal que ele bem pode ser substituído por ‘um vento que envolve posição e movimento de corpos físicos macroscópicos' ”, (Logik de r F orsc hu ng, seção 28.) À luz da nossa discussão, por exemplo, podemos considerar um posítron que passa através de uma câmara de Wilson no momento to como um evento “observável”, a despeito do caráter não -ma- croscópico do posítron.
66. Popper, Logik der Forschung, 1934, seção 68. Com efeito, esse falseacionismo metodológico é a base filosófica de alguns dos desenvolvimentos mais interessantes da estatística moderna. Todo o enfoque Neyman -Pearson repousa no falseacionismo metodológico. Cf. também Braithwaite, Scientifi c Expl anation, 1953, capítulo VI. (Infelizmente, Braithwaite reinterpreta o critério de demarcação de Popper como se este separasse proposições significativas de proposições carentes de significado, em lugar de separar proposições científicas de proposições não-científicas.) 67. Cf. mais acima, pp. 122-4. 68. teme”, 1933.
Popper, “Ein K riterium des empirischen Charakters theoretischer Sys-
133
6S niana da dinâmica e da gravitação, de “unilateralmente decidíveis”? Como podemos fazer em casos assim genuínas “tentativas de suprimir teorias falsas — de encontrar os pontos fracos de uma teoria a fim de rejeitá-la se ela for falseada pelo teste”? 70 Como podemos levá-las ao domínio da discussão racional? O falseacionista metodológico resolve o problema tomando mais uma decisão (de quarto tipo): quando ele testa uma teoria juntamente com uma cláusula cete- ris aribus e descobre que essa conjunção foi refutada, precisa decidir se deve tomar a refutação também como refutação da teoria específica. Por exemplo, pode aceitar o periélio “anômalo” de Mercúrio como refutação da tripla conjunção N} da teoria de Newton, das condições iniciais conhecidas e da cláusula ceteris aribus. Em seguida, testa “severamente” 71 as condições iniciais e pode decidir relegá- las ao “conhecimento de fundo não - problemático”. Essa decisão implica na refutação da dupla conjunção N2 da teoria de Newton e da cláusula ceteris aribus. Agora lhe cabe tomar a decisão crucial: se também relega a cláusula ceteris paribus ao fundo comum do “conheci mento de fundo não- problemático”. ceteris paribus está bem Será isso o que fará, se lhe parecer que a cláusula corroborada. Como se pode testar severamente uma cláusula ceteris paribus ? Pressupondo que há outros fatores influentes, especificando tais fatores e testando as suposições específicas. Se muitas forem refutadas, a cláusula ceteris paribus será considerada bem corroborada. A decisão, porém, de “aceitar” uma cláusula ceteris paribus é muito arriscada mercê das graves conseqüências que implica. Se se decidir aceitá-la como parte desse conhecimento de fundo os enunciados que descrevem o periélio de Mercúrio desde a base empírica de N2 são convertidos na base empírica da teoria específica de Newton Nt e o que era antes uma simples “anomalia” em relação a Nlt passa a ser agora uma prova crucial contra ela, seu falseamento. (Podemos chamar a um acontecimento descrito por um enunciado A uma “ anomalia em relação a uma teoria T’, se A for um falseador potencial da conjunção de T e uma cláusula ceteris paribus, mas torna-se um falseador ceteris paribus potencial da própria T depois de haver decidido relegar a cláusula ao “conhecimento de fundo não -
70. Popper, The Po ver ty of H isto ri cism, 1957, p. 133. 71. Sobre uma discussão desse impo rtante con ceito da metodologia pop - periana, cf. meu ensaio, “Changes in the Problem of Inductive Logic”, 1968 , pp. 397 e seguintes.
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- problemático.” 72 ) como, para o nosso selvagem falseacionista, os falseamentos são metodologicamente conclusivos, 73 a decisão fatal eqüivale à eliminação metodológica da teoria de Newton, irraciona- lizando o trabalho subseqüente nela. Se o cientista fugir a essas deci sões ousadas, “nunca se beneficiará da experiência”, “acreditando, talvez, que é sua obrigação defender um sistema bem 7i sucedido contra a crítica enquanto nao tiver sido conclusivamente refu tado”. Degenerará num apologista que sempre proclamará que “as discre - pâncias que se afirmam existir entre os resultados experimentais e a teoria são apenas aparentes e 75 desaparecerão com o avanço de nosso entendimento”. Mas para o falseacionista 76 e não é isto é “exatamente o inverso da atitude crítica própria do cientista”, permissível. Para usar uma das expressões favoritas do falseacionista metodoló gico, a teoria “precisa ser obrigada a deixar a cabeça de fora”. O falseacionista metodológico vê-se numa situação séria quando chega o momento de decidir onde traçar a demarcação, nem que seja apenas num contexto bem definido, entre o problemático e o não- -problemático. A situação é mais dramática ainda quando ele tem de tomar uma decisão sobre cláusulas ceteris aribus, quando lhe cabe promover um dentre as centenas de “fenômenos anômalos” numa “experiência crucial”, e decidir que nesse caso a experiência foi “controlada”. 77 78 o nosso falseacionista Assim, com a ajuda desse quarto tipo de decisão, metodológico conseguiu finalmente interpretar como “científicas” até teorias como a teoria de Newton. 70
72.
Sobre uma “explicação " melhorada, veja
mais adian te, p. 195, nota de rodapé n.°
251. 73. Cf. mais acima, à p. 132, o texto correspondente às notas de pé de página n.°' 59 e 60. 74. Popper, L ogik de r F orsc hun g, 1934, seção 9. 75. Ibid. 76. Ibid. 77. Pode d izer-se qu e o problema da “experiência controlada” nada mais é que o problema de arranjar condições experimentais de maneira que reduza ao mínimo o risco envolvido nessas decisões. 78. Esse tipo de decisão pertence, num sentido importante, à mesma categoria a qu e pertence a primeira: separa, por decisão, o conhecimento problemático do conhecimento nãoproblemático. Cf. mais acima, à p. 30, o texto correspondente à nota de rodapé n.° 51. 79. Nossa exposição mo stra clarament e a complexidad e das decisões nece ssárias à definição do “conteúdo empírico” de uma teoria — isto é, o conjunto dos seus falseadores potenciais. O “conteúdo empírico” depende da nossa deci são sobre as “teorias observacion ais” que são nossas e as anomalias
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Com efeito, não há razão para que ele não deva dar mais um passo. Por que não decidir que uma teoria — que nem essas quatro decisões podem converter numa teoria empiricamente fals eável — é falseada se entra em conflito com outra teoria que é científica por alguns dos motivos anteriormente especificados e é igualmente bem corroborada? so Afinal de contas, se rejeitamos uma teoria porque verificamos que um dos seus falseadores potenciais é verdadeiro à luz de uma teoria observacional, por que não rejeitar outra teoria por completar diretamente com uma que pode relegada por ao co nhecimento de fundo não-problemático? Isso nosser permitiria, um quinto tipo de decisão, eliminar até teo rias “sintaticamente metafí sicas”, isto é, teorias que, como enunciados do tipo “ todos -alguns” 81 ou enunciados puramente existenciais, devido a sua forma lógica, não podem ter falseadores potenciais espaço-temporalmente singulares. Resumindo: o falseacionista metodológico oferece uma solução interessante ao problema de combinar a crítica vigorosa com o fali- bilismo. Não só oferece uma base filosófica para o falseamento depois que o falibilismo puxou o tapete debaixo dos pés do falseacionista dogmático, mas também amplia de modo considerável a extensão dessa crítica. Colocando o falseamento num cenário novo, salva o atraente código de honra do falseacionista dogmático: que a honestidade científica consiste em especificar, de antemão, uma experiência de tal ordem que, se o resultado contradisser a teoria, esta terá de ser abandonada.
82
que devera ser promovidas a exemplos contrários. Se tentarmos comparar o conteúdo empírico de diferentes teorias científicas a fim de verificar qual é o “mais científico”, ver nos-emos envolvidos num sistema de decisões comple- xíssimo e, portanto, irremediavelmente arbitrário a respeito de suas classes respectivas de “enunciados relativamente atômicos” e .seus “campos de aplicação”. (Sobre o significado desses termos Logik de r F orsc hu ng, seção 38.) Mas uma comparação dessa (muito) técnicos, cf. Popper, natureza só é possível quando uma teoria suplanta outra (cf. Popper, The Logic of Scientif ic Di scove ry, 1959, p. 401, nota de rodapé n.° 7). E mesmo assim pode haver dificuldades (as quais, todavia, não se somariam à irremediável “incomensura - bilidade”).
80. Isto foi sugerido por J. D. Wisdom: cf. seu ensaio de 1963: “The Refutability of 'Irrefutable’ Laws”. 81. Por exemplo: “Todos os metais têm um solvente”; ou “Exist e uma substância que pode transformar todos os metais era ouro”. Sobre discussões dessas teorias, cf. especialmente Watkins, “Between Analytical and Empirical”, 1957, e Watkins, “When are Statements Empirical?”, 1960. Mas cf. mai s adian te, pp. 154-5 e pp. 227-8. 82. Veja mais acima, p. 116.
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O falseacionismo metodológico representa um avanço considerável para além do falseacionismo dogmático e do convencionalismo conservador. Recomenda decisões arriscadas. Mas os riscos são tão ousados que atingem as raiaà da temeridade e a gente pergunta a si mesmo se não haverá um meio de atenuá-los. Examinemos primeiro, com mais atenção, os riscos envolvidos. As decisões desempenham um papel crucial nessa m etodologia — como em qualquer classe de convencionalismo. As decisões, todavia, podem levar-nos para o mau caminho. metodológico o primeirodesastrosamente a admiti-lo. Mas isso, argumenta ele,Oéfalseacionista o preço que temos de pagaré pela possibilidade de progresso. Cumpre apreciar a atitude diabolicamente atrevida do nosso falseacionista metodológico. Ele se tem na conta de um herói que, defrontando-se com duas alternativas catastróficas, teve a coragem de refletir friamente sobre os méritos relativos de cada uma e escolheu o menor dos males. Uma das alternativas era o falibilismo céti co, com sua atitude de “vale tudo”, o abandono desesperado de todos os padrões intelectuais, e com estes a idéia do progresso científico. Nada pode se restabelecido, nada pode ser rejeitado, nada se quer pode ser comunicado: o crescimento da ciência é um crescimento do caos, uma verdadeira Babel. Durante dois mil anos, de cientistas filósofos espíritoa esse científico escolheram ilusões justificacionistas alguma eespécie paradeescapar pesadelo. Alguns afirmaram que temos de escolher entre o justificacionismo indutivista e o irracionalismo: “Não vejo nenhuma saída, fora a afirmação dogmática de que conhecemos o princípio indutivo ou algum equivalente; a única alternativa é jogar 83 fora quase tudo que a ciência e o bom senso consideram como conhecimento”. O nosso falseacionista metodológico rejeita orgulhosamente esse escapismo: ousa medir todo o impacto do falibilismo é, ainda assim, escapar ao ceticismo através de uma atrevida e arriscada política con- vencionalista, sem é preciso escolher dogmas. Tem plena consciência dos riscos mas insiste em que entre uma espécie de falseacionismo metodológico e o irracionalismo. Oferece um 84 jogo em que desistir. temos poucas esperanças de vencer, mas afirma que ainda é melhor jogar do que
83. Russell, “Reply to Critics”, 1943, p. 683. 84. Estou certo de que alguns acolherão o falseacionismo metodológico como filosofia “existencialista” d a ciência.
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Com efeito, esses críticos do falseacionismo ingênuo, que não oferecem nenhum método alternativo de crítica, são inevitavelmente impelidos para o irracionalismo. Por exemplo, o argumento confuso de Neurath de que o falseamento e a conseqüen te eliminação de uma hipótese podem resultar em “um obstáculo ao progresso da ciên cia”, 85 não terá peso algum enquanto a única alternativa que ele parece oferecer é o caos. Hempel, sem dúvida, está certo ao acentuar que a “ciência apresenta vários exempl os [quando] o conflito entre uma teoria altamente confirmada e uma sentença experimental recal- citrante 8B ocasional serobstante, resolvidaele pela anulação emnenhum lugar deout sacrificar primeira”puder ; não admite não desta poderúltima oferecer ro a“padrão 87 fundamental” além do falseacio nismo ingênuo. Neurath — e, aparentemente, Hempel — rejeita o falseacionismo como “pseudo -racionalismo” 85 ; mas onde está o “racionalismo”? Popper advertia já em 1934 que a metodologia per missiva de Neurath (ou melhor, a sua falta de metodologia) tornaria a ciência não-empírica e, portanto, irracional: “Precisamos de um conjunto de regras para limitar a arbitrariedade de “suprimir” (ou “aceitar”) uma sentença protocolar. Neurath deixa de dar essas regras e, assim, inadvertidamente, atira o empirismo pela janela. . . Todo sistema se torna defensável se nos for permitido (e toda a gente tem essa permissão, no entender de Neurath) simplesmente “suprimir” uma 89 sentença protocolar por ser inconveniente’’. Popper concorda com Neurath em que todas as proposições são faííveis; mas defende com vigor o ponto crucial de que não podemos fazer
85. Neurath, “Pseudorationalismus der Falsifikation”, 1935, p. 356. 86. Hempel, “Some Theses on Empirical Certainty”, 1952, p. 621. Agassi, em seu ensaio de 1966, “Sensationalism", segue Neurath e Hempel, sobretudo às pp. 16 e seguintes. É divertido observar que Agassi, ao defender esse ponto de vista, pense estar pegando em armas contra “toda a literatura relativa aos métodos da ciência” . Com efeito, muitos cientistas tinham plena consciência das dificuldades inerentes à “confrontação da teoria e dos fatos”. (Cf. Einstein, “Autobiogra - phical Notes”, 1949, p. 27.) Vários filósofos simpáticos ao falseacionismo en fatizam que “o processo de refutação de uma hipótese científica é mais com plicado do que parece à primeira vista” (Braithwaite, Scientific al. Explanation, 1953, p. 20). Mas apenas Popper ofereceu uma solução construtiva, racion 87. Hempel, “Some Theses on Empirical Certainty”, 1952, p. 622. As agudas “teses sobre a certeza empírica” de Hempel não fazem outra coisa senão tirar o pó dos velhos argumentos de Neurath — e alguns de Popper — (contra Carnap, creio e u); deploravelmente, contudo, ele não menciona seus predecessores nem seus adversários. 88. Neurath, “Pseudorationalismus der Falsifikation” , 1935. 89. Popper. L ogik de r F orsc hun g, 1934, seção 26.
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progresso sem uma estratégia ou método racional firme para guiar - nos quando elas colidem. 90 Mas a estratégia firme da classe do falseacionismo metodológico discutida até aqui não será fi rme de mais ? As decisões que ela advogada não est arão fadadas a ser demasiado ar bi tr ár ias ? Alguns podem até sustentar que a única coisa que distingue o falseacionismo metodológico do dogmático é que ele éf al i bi l i sta da boca par a for a\
Criticar uma teoria da crítica é quase sempre muito difícil. O falseacionismo naturalista era relativamente fácil de refutar, pois repousava numa psicologia empírica da percepção: bastava mostrar que ele era falso. Mas como se pode falsear um falseacionismo metodológico? Nenhum desastre pode jamais refutar uma teoria não-jus- tificacionista da racionalidade. Ademais, como podemos reconhecer algum dia um desastre epistemológico? Não temos meios para julgar 91 se a verossimilhança das nossas teorias sucessivas aumenta ou diminui. Até o momento, ainda não desenvolvemos uma teoria geral da crítica nem mesmo para 92 as teorias científicas, quanto mais para as teorias da racionalidade ; portanto, se quisermos falsear nosso falseacionismo metodológico, teremos de pôr mãos à obra antes de ter uma teoria sobre como fazê-lo. Se observarmos a história da ciência, se tentarmos como alguns dos falseamentos mais célebres aconteceram, teremos que chegarverà conclusão de que algumas delas ou são claramente irracionais ou se apóiam em princípios de racionalidade radicalmente diferentes dos princípios que acabamos de discutir. Primeiramente, o nosso falseacionista deve deplorar o fato de que teóricos obstinados contestem com freqüência vereditos experimentais e os invertam. Na concepção falseacionista da “lei e da ordem” científica que descrevemos não há lugar para tais apelos bem-sucedidos. Outras dificuldades surgem do falseamento de teorias a que se acr escenta uma cláusula ceteri s pa-
90. O ensaio de Neurath, "Pseudoration alismus der F alsifikation ”, 1935, mostra que ele jamais apreendeu o argumento simples de Popper. 91. Estou empregando aqui o termo “verossimilhança” no sentido de Popper: a diferença entre o conteúdo de verdade e o conteúdo de falsidade de uma teoria. Sobre os riscos envolvidos na sua avaliação, cf. meu ensaio, “Changes in the Problem of Inductive Logic”, 1968, especialmente as pp. 395 e seguintes. 92. Tentei desenvo lver uma t eoria ge ral da critica em meus trabalh os de 1971 e 1972.
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ribusP Seu falseamento, tal como ocorre na história real, é prima facie irracional segundo os padrões do nosso falseacionista. Segundo estes padrões os cientistas parecem ser com freqüência irracional mente lentos: por exemplo, oitent a e cinco anos decorreram entre a aceitação do pcriclio dc Mercúrio como anomalia e sua aceitação como falseamento da teoria de Newton, apesar de ser a cláusula ceteris aribus razoavelmente bem corroborada. Por outro lado, os cientistas parecem, não raro, irracionalmente impetuosos: Galileu e seus discípulos, por exemplo, aceitaram a mecânica celeste helio- cêntrica de Copérnico apesar das abundantes evidências contra a rotação da Terra; e Bohr e seus discípulos aceitaram uma teoria de emissão da luz embora esta última contrariasse a bem corroborada teoria de Maxwell. De fato, não é difícil ver pelo menos duas características cruciais, comuns ao falseacionismo dogmático e ao nosso falseacionismo metodológico, que destoam claramente da verdadeira história da ciência: a saber (1) um teste é — ou deve-se fazer que seja — uma luta, de dois adversários, entre a teoria e a experiência de modo que, na confrontação final, só as duas se defrontem; e (b) o único resultado interessante dessa confrontação é o falseamento (conclusivo): ‘‘[aí únicas genuínas] descobertas são refutações de hipóteses científi cas.” 84 Entretanto, a história da ciência sugere que (1’) os testes são — pelo menos — lutas, de três adversários, entre as teorias ri vais c a experiência e (2’) al gumas das experiências mais interessantes resultam, prima faciej antes em confirmação do que em falseamento. Mas se a história da ciência — como parece ser o caso — não confirma nossa teoria da racionalidade científica, temos duas alternativas. Uma delas é abandonar os esforços para dar uma explicação racional do êxito da ciência. O método científico (ou “lógica da des coberta"), concebido como disciplina da avaliação racional das teo
93.
O falseamento das teorias depen de do alto grau de corroboração
da cl áusula
cetcr is pa r ibu s. Tal corroboração, todavia, muitas vezes falta. Eis aí por que o falseacionismo nietodológico pode aconselhar- nos a confiar em nosso “instinto científico" (Popper, Logik de r Forschung, 1934, seção 18, nota de rodapé n." 2) ou cm n osso “palpite" (Braithwaite, Scientif ic Ex planation, 1953, p. 20).
94.
Agassi, “How are Facts Discovered?” 1959, chama à idéia de ciência de Popper (Agassi, “The Novelty of Popper’s Philo - sophy of Science", 1968).
“seientia negativa"
140
rias científicas — e dos critérios de progresso — desaparece. Está claro que ainda podemos tentar explicar mudanças em “paradigmas” em termos de psicologia social. 95 Esse é o caminho de Polanyi e de Kuhn. 96 A outra alternativa é tentar, ao menos, reduzir o elemento convencional do falseacionismo (não podemos de maneira alguma eliminá-lo) e substituir as versões ingênuas do falseacionismo metodológico — caracterizadas pelas teses (1) e (2) acima — - por uma versão sofisticada que daria um novo fundamento lógico ao falseamento e, por esse modo, salvaria a metodologia e a idéia de progresso científico. Este é o caminho de Popper, e o caminho que pretendo seguir. (c) Falseacionismo metodológico sofisticado versus falseacionismo metodológico ingênuo. Transferência progressiv a e degenerativa de problemas. O falseacionismo sofisticado difere d o falseacionismo ingênuo assim nas regras de aceitação (ou “critério de demarcação”) como nas regras de falseamento ou eliminação. Para o falseacionista ingênuo qualquer teoria que se possa interpretar como 97 experimentalmente falseável é “aceitável” ou “científica”. Para o sofisticado uma teoria só será “aceitável” ou “científica” se tiver um excesso corroborado de conteúdo empírico em relação à sua predecessora (ou rival), isto é, se levar à descoberta fatosumnovos. Essade condição pode ser analisada duas cláusulas: nova teoriadetem excesso conteúdo empírico (“ em aceitabilidade i”) ae parte desse excesso de conteúdo é verificada (aceitabilida
95. o
Dever-se-ia mencionar aqui que o cético kuhniano ainda fica com que eu denominaria o “dilema do cético cientifico": qualquer cético científico
ainda tentará explicar crenças e encarará suasprópriaentido teoriaé psicológica uma teoria que, sendo mudanças mais que em simples crença, em certo “científica”.como Enquanto tentava apresentar a ciência como mero sistema de crenças com o auxílio da sua teoria da aprendizagem estímulo-resposta, Hume nunca ventilou o problema de saber se sua teoria da aprendizagem também se aplica a si pr ópria. Em termos contemporâneo s, podemos perguntar se a popularidade da filosofia de Kuhn indica que as pessoas lhe reconhecem a verdade. Nesse caso, ela seria refutada. Ou essa popularidade indica que as pessoas a consideravam como atraente moda nova? Nesse caso, ela seria “verificada”. Mas gostaria Kuhn dessa “verificação”? 96. Feyerabend, que contribuiu provavelmente mais do que ninguém para a difusão das idéias de Popper, parece agora ter passado para o campo inimigo. Cf. o seu intrigante ensaio “Against Method”, 1970. 97. p. Cf. mais acima, 132. 141
98 de 2 ”). A primeira cláusula pode ser conferida instantaneamente por uma análise lógica a priori\ a segunda só pode ser conferida era- piricamente e isso talvez leve um tempo indefinido. Para o falseacionista ingênuo uma teoria é falseada por um enunciado 99 “observacional” (“fortificado” ) que conflita com ela (ou que ele decida interpretar como conflitando com ela). Para o sofisticado uma teoria científica T só será falseada se outra teoria T' tiver sido proposta com as seguintes características: (1) T' tem um excesso de conteúdo empírico em relação a T\ isto 10 T °, ou mesmo é, prediz fatos novos, a saber, fatos improváveis à luz de proibidos por ela; (2) 7” explica o êxito anterior de T, isto é, todo o conteúdo não-refutado de T está incluído (dentro dos limites de erro observacional) no conteúdo de T’; e (3) parte do conteúdo excessivo de 7” é corroborado. 101 A fim de poder avaliar tais definições, precisamos compreender- lhes os antecedentes problemáticos e suas conseqüências. Primeiro, precisamos lembrarnos da descoberta metodológica dos convencio- nalistas de que nenhum resultado experimental pode jamais matar uma teoria; qualquer teoria pode ser salva de exemplos contrários por alguma hipótese auxiilar ou por uma adequada reinterpretação de seus termos. Os falseacionistas ingênuos resolveram esse problema relegando — em contextos cruciais — as hipóteses auxiliares ao reino
do conhecimento de fundo não-problemático, eliminando-as do modelo dedutivo de situação de teste e obrigando dessa maneira a escolhida a um isolamento lógico, em que ela se converte num alvo fácil para o ataque de experimentos de teste. Mas como esse processo não oferecia orientação adequada a uma reconstrução racional da história da ciência, podemos também repensar completamente nosso enfoque. Por que visar o falseacionismo a qualquer preço? Por que não impor certos padrões aos ajustamentos teóricos com os quais nos é permitido salvar uma teoria? Alguns desses padrões, na verdade, são conheci dos há séculos e vemo-los expressos em epigramas seculares dirigidos contra as explicações ad hoc, os subterfúgios vazios, as eva
98 . 99 .
Mas cf. mais adiant e, pp. 191-3. Cf. mai s acima, p. 131, o texto correspondente à nota de pé de página n.° 54.
100. Emprego “prediçáo” num sentido lato, que inclui “pós - dição”. 101. Sobr e u m a d i scu ssão p or men or i zada dessas r egr as de ac ei ta ção e r ejei ção e sob r e r ef er ên ci as àobr a de Po pper , cf. meu ensaio “Changes in the Problem of Inductive Logic”, 1968, pp. 375-90. Sobre alguma restrições (concernentes à continuidade e à consistência como princípios reguladores), cf. mais adiant e, pp. 161-2 e 173-180.
142
sivas, os truques lingüísticos. 102 Já vimos que Duhem prenunciou esses padrões 10 3 em termos de “simplicidade” e “bom senso”. Mas quando a falta de “simplicidade” no cinto protetor dos ajustamentos teóricos atinge o ponto em que a teoria precisa ser abandonada? 10 1 Em que sentido foi a teoria coperniciana, por 105 exemplo, “mais simples” que a ptolemaica? A vaga noção da “simplicidade’ duhemiana deixa a decisão, como o falseacionista ingênuo argumentou 1(Mi corretamente, à mercê do gosto e da moda. Pode-se melhorar o enfoque de Duhem? Popper melhorouo. Sua solução — uma versãoPopper sofisticada de falseacionismo metodológico em—que é mais rigorosa. concorda com os convencionalistas as objetiva teorias ee mais proposições fatuais podem sempre harmonizar-se com a ajuda de hipóteses auxiliares: concorda em que o problema consiste em como demarcar entre os ajustamentos científico e pseudocientífico, entre as mudanças racionais e irracionais da teoria. De acordo com Popper, salvar uma teoria com a ajuda de hipóteses auxiliares que satisfazem a certas condições bem definidas representa progresso científico; mas salvar uma teoria com a ajuda de hipóteses auxiliares que não satisfazem a essas condições, representa degeneração. Popper chama a essas ad hoc, meros expedientes hipóteses auxiliares inadmissíveis hipóteses 107 lingüísticos, “estratagemas convencionalistas”. Mas nesse caso qualquer teoria
102. Molière, por exemplo, ridicularizou os médicos do seu M alade hi w- ginair e, que ofereciam a vir tus do rmi tiva do ópio como resposta à pergunta sobre a razão por que o ópio produzia sono. Pode-se até argumentar que o famoso dito de Newton hypolh eses non fi ngo era realmente dirigido contra explicações ad hoc — como sua própria explicação das forças gravitacionais por um modelo do éter a fim de responder às objeções cartesianas. 103. Cf. mais acima, pp. 127-8. 104. A propósito, Duhem con cordava com Bernard que as experiências po r si sós — sem considerações de simplicidade — podem decidir o destino de teorias em fisiologia. Mas na (L a T hé or i e Physiqu e, S on Obj et et Sa Str uct ur e, 1905, capítulo física, argüia ele, não podem VI, seção 1). 105. Koestler assina la corretament e que apenas Galileu criou o mito de qu e a teoria coperniciana era simples (Koestler, Th e Slee pwal kers, 1959, p. 476); de fato, “o movimento da terra [não tinhal feito muita coisa para simplificar as velhas teorias, pois embora os equantes objetáveis houvessem desaparecido, o sistema ainda possuía um grande número de círculos auxiliares” (Dreyer, H istory of the Planetary Sys tems fr om Th ales to Keple r , 1906, capítulo XIII). 106. Cf. mais acima, pp. 127-8. 107. Popper, L ogik d er F orsc hu ng, 1934, seções 19 e 20. Discuti c om alguns detalhes — sob os títulos de "exclusão- monstro”, "exclusão da exceção”, “ajustamento - monstro” — estratagemas como os que aparecem na matemática informal, quase empírica; cf. meu ensaio. “Proofs and Refutation s” .
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científica precisa ser avaliada juntamente com suas hipóteses auxilia- res, condições iniciais, etc., e, sobretudo, com suas predecessoras para podermos ver a espécie de mudança que foi produzida. Está visto que, nesse caso, avaliamos uma série de teorias e não teorias isoladas. Agora nos é fácil compreender por que formulamos os critérios de 1 8 aceitação e rejeição do falseacionismo metodológico como o fizemos. " Mas talvez valha a pena reformulá-los um pouco, expressando-os explicitamente em termos de séries de teorias. Tomemos uma série de teorias, Tx, T2, Tj. . . em que cada teoria subseqüente resulta da adição de cláusulas auxiliares à teoria anterior (ou das reinterpretações semânticas da teoria anterior) a fim de acomodar alguma anomalia, tendo cada teoria pelo menos tanto conteúdo quanto o conteúdo nãorefutado da sua predecessora. Digamos que uma série de teorias nessas condições será teoricamente progressiva (ou “constituirá uma transferência de problemas teoricamente progressiva ”) se ca da nova teoria tiver algum excesso de conteúdo empírico em relação à sua predecessora, isto é, se ela predisser algum fato novo, até então inesperado. Digamos que uma série teoricamente progressiva de teorias será também empiricamente progressiva (ou “co nstituirá uma transferência de problemas empiricamente progressiva ”) se parte desse conteúdo empírico excessivo for também corroborado, isto é, se cada teoria nova nos conduzir à descoberta real de algum fato novo. 10 9 Finalmente, seja-nos permitido chamar progressiva à transferência de problemas se ela for, ao mesmo tempo, teórica e empiricamente progressiva, e degenerativa se não o for. 11 0 Só “aceitamos” as transferências de problemas como “científicas” se elas forem pelo menos teoricamente progressivas; se
mais acima, p. 141. 108. 109. Cf. Se já conheço P, “O cisne A ébranco”, P co ‘‘Todos os cisnes são brancos” não representa progresso porque só pode conduzir à descoberta de outros fatos semelhantes, como Pi : “O cisne B ébranco”. As chamadas “generalizações empíricas” não constituem progresso. Um fato novo deve ser improvável ou mesmo impossível à luz do conhecimento anterior. Cf. mais acima, p. 141, e mais adiante, pp. 191 e seguintes.
110. A propriedade da expressão “transferência de problemas” para uma série de teorias, em lugar de problemas, pode ser contestada. Escolhi-a, em parte, por não haver encontrado alternativa mais apropriada — "transferência de teorias” soa horrivelmente —e, em parte, porque as teorias são sempre problemáticas, nunca solucionam todos mais natural “programa de pesquisa” susbstituirá “transferência de problemas” nos contextos mais importantes.
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não o forem, “rejeitamo -las" como “pseudocientíficas”. O progresso mede -se pelo grau em que uma transferência de problemas é progressiva, pelo grau em que a série de teorias nos conduz à descoberta de fatos novos. Consideramos “falseada” uma teoria da série quando ela é suplantada por uma teoria com um conteúdo corroborado mais elevado. 11 1 Essa demarcação entre as transferências progressvias e degenerativas de problemas projeta nova luz sobre a avaliação de explicações científicas — ou, melhor, progressivas . Se apresentarmos uma teoria para resolver uma contradição entre teoriadeanterior um exemplo contrário de tal que maneira que oa conteúdo, nova explicação teoria,uma em lugar oferecere uma (científica) aumente só ofereça uma reinterpretação (lingüística) que diminui o conteúdo, a contradição se resolverá de modo meramente semântico, não-cientí- fico. Um fato dado só será explicado cientificamente se um fato novo também for explicado com ele. n2 Dessa maneira, o falseacionismo sofisticado transfere o problema da séries de teorias. Só de uma avaliação de teorias para o problema da avaliação de série de teorias se pode dizer que é científica ou não-científica, nunca de uma teoria isolada; aplicar o termo “científico” a vma única teoria é incorrer num erro 113 de categoria.
111. Sobre “fals eamento" de certas séries de teorias (“programas de pesquisa”) em oposição ao “falseamento" de umateoria no interior da série, veja mais adiant e, pp. 191 e seguintes. 112. Com efeito, no manuscrito srcinal do meu ensaio intitulado “Chan ges in the Probl em of Inductive Logic”, de 1968, escrevi: "Uma teoria sem excesso de corroboração não tem excesso de poder explanatório; por tan to, de acor do com Popper , não representa crescimento e não é “científica"; devemos dizer, pois que ela não tem poder explanatório ” (p. 386). Suprimi a metade grifada da sentença pressionado por meus colegas,
para os quais ela soava muito excêntrica. Agora me arrependo de tê
-lo feito.
113. A fusão de “teorias" e “séries de teorias” de Popper impediu -o de comunicar com melhor êxito as idéias básicas do falseacionismo sofisticado. Seu emprego ambíguo redundou em formulações desconcertantes como “O marxismo [como centro de uma série de teorias ou de um “programa de pesquisa”] é irrefutável” e, ao mesmo tempo, “O marxismo [como conjunção especial desse centro, de algumas hipóteses auxiliares, de condições iniciais e de uma cláusula ceter is par ibu s] foi refutado.” (Cf. Popper, Conj ectur es and Re j utati ons, 1963.) Claro está que não erramos no dizer que uma teoria isolada, singular, é “científica” quando representa um progresso sobre a sua predecessora, enquanto compreendemos claramente que nessa formulação avaliamos a teoria como resultado de certo desenvolvimento histórico e no contexto desse de senvolvimento.
145
O tradicional critério empírico para julgar satisfatória uma teoria era a concordância com os fatos observados. Nosso critério empírico para uma série de teorias é a £rodugão_dgJat Sjxayjas. A idéia de crescimento e o conceito de caráter empírico estão soldados num só. Essa forma revisada do falseacionismo metodológico tem muitos traços novos. Primeiro, nega que, “no caso de uma teoria científica, nossa decisão depende dos resultados dos experimentos. Se estes confirmarem a teoria, poderem os aceitá -la até encontrar uma teoria melhor. Se a contradisserem, rejeitá-laemos.” 114 Nega que “o que finalmente decide o destino de uma teoria é o resultado de um teste, isto é, uma concordância em torno de enunciados básicos”. 115 Contrariando o falseacionismo ingênuo, nenhuma experiência, nenhum relato experimental, nenhum enunciado de observação ou hipótese falseadora de baixo nível bem corroborada pode levar sozinha ao falseamento. llf ’ Não há jalseamento antes da emergência de.Mtna teoria melhor.117 Mas nesse caso o caráter distintamente negativo do falseacionismo ingênuo desaparece; a crítica torna-se mais difícil, e também positiva, construtiva. Mas é claro que, se depender da emergência de teorias melhores, da invenção de teorias que antecipam fatos novos, o falseamento não será simplesmente uma relação ..entrp a teoria e a base empírica, mas uma relação múltipla entre às teorias concorrentes, a “base empírica” srcinal e o crescimento empírico resultante da lu competição. Pode dizer-se assim que o falseamento tem “caráter histórico” Além 9
.
disso, algumas teorias que dão srcem
114. Popper, The Open Society and its Enemies, vol II, p. 233. A atitude mais sofisticada de Popper vem à tona na observação de que “conse qüências concretas e práticas podem ser mais diretamente testadas pela experiê ncia” (ibid., o grifo é meu). 115.
Popper, L og ik der F orsc hung,
pr agm áti co o caráter acima, 116. p. 132,Sobre nota de pé de página n.° 62. d o
1
1934, seção 30. ‘falseamento’ metodológica,
cf. mais
117. Na maioria dos casos, antes de falsear uma hipótese, temos outra na manga do paletó (Popper, The Logic of Sc ientif ic D iscov er y, 1959, p. 87, nota de pé de página n.° *1). Como o demonstra nosso argumento, precisamos ter uma. Ou, como disse Feyerabend: “A melhor crítica é proporcionada pelas teorias que podem substituir as ri vais por elas eliminadas” (“Reply to Cri - ticism”, 1965, p. 227). Observa ele que, em al gun s casos , “as alternativas serão indispensáveis ao propósito da refutação” (ibid. p. 254). Mas de acordo com o nosso argumento a r efu tação sem um a al ter nat i va mostr a apenas a pobr eza Veja o. também da no ssa i mag i na ção no f or necer um a hi pótese de salv ament mai s adiant e, p. 148, nota de rodapé n.° 123. 118. seguintes. 146
Cf. o meu ensaio “Changes in the Problem of Inductive Logic’*, 1968, pp. 387, e
ao falseamento são freqüentemente propostas depois da “evidência contrária”. Isso pode parecer paradoxal a pessoas doutrinadas no falseacionismo ingênuo. Na realidade, essa teoria epistemológica da relação entre a teoria e a experiência difere nitidamente da teoria epistemológica do falseacionismo ingênuo. O próprio termo “evidência contrária” tem de ser abandonado no sentido de que nenhum re sultado experimental precisa ser interpretado diretamente como evidência contrária. Se ainda quisermos conservar esse termo tradicional, teremos de redefini- lo do seguinte modo: “a evidência contrária de 7Y é um exemplo corroborante de 7' 2 incompatível com T, ou independente de 7"i (coin a condição de que T2 seja uma teoria que explique satisfatoriamente o sucesso empírico de 7,). Isso most ra que a “ evidência contrária crucial" — ou ‘‘experiências cruciais" — pode ser reconhecida como tal entre muitas anomalias, apenas mediante a ercepção tardia, à luz de al guma teoria que suplante a anterior. 119 Desse modo, o elemento crucial falseamento é saber se a nova teoria oferece alguma informação nova, excedente, comparada com sua predecessora, e se parte dessa informação excedente é corroborada. Os justificacionistas avaliaram os casos “confirmadores” de uma teoria; os falseacionistas ingênuos puseram em destaque os casos “refutados”; para os falseacionistas metodológicos os casos corroboradores — mais raros — de informação excedente é que são os cruciais e recebem toda a atenção. Já não nos interessam os milhares de casos triviais de verificação nem as centenas de anomalias prontamente acessíveis: os poucos casos cruciais de verificação de excedente são decisivos. 12 0 Essa consideração reabilita — e reinter- preta — o velho provérbio: Exemplum docet, exempla obscurant. O “falseamento” no sentid o do falseacionismo ingênuo (evidência contrária corroborada) não é condição suficiente para eliminar 110
119. No espelho deformante do falseacionismo ingênuo , as novas teorias que substituem as velhas teorias refutadas nascem não-refutadas. Por conseguinte, os falseacionistas ingênuos não acreditam que haja uma diferença importante entre anomalias e evidências contrárias cruciais. Para eles, anomalia é um eufemismo desonesto de evidência contrária. Mas na história real novas ( teorias nascem refutadas: herdam muitas anomalias da teoria velha. Freqüentemente, além disso, somente a nova teoria prediz dramaticamente o fato que funcionará como evidência. contrária crucial contra sua predecessora, ao pas so que “velhas” anomalias podem continuar perfeitamente co mo “novas” anomalias. Tudo isso ficará mais claro quando apresentarmos a idéia do “programa de pesquisa”: cf. mais adian te, pp. 166 e 218 e s eguintes. 120. O f alse acioni smo s ofi sticado p r enunci a uma nova te or ia da apren dizag em -, cf. mais adiante, p.
147
uma teoria específica; apesar de centenas de anomalias conhecidas, não consideraremos que a teoria está falseada (isto é, eliminada) enquanto não tivermos outra melhor. 12 1 Nem o “falseamento” no sentido ingênuo é necessário ao falseamento no sentido sofisticado: uma transferência progressiva de problema não precisa ser entremeada de “refutações”. A ciência pode crescer sem “refutações” que lhe mostrem o caminho. Os falseacionistas ingênuos sugerem um crescimento linear da ciência, no sentido de que as teorias são seguidas de poderosas refutações, que as eliminam; tais refutações, por seu turno, são seguidas de novas teorias. 12 2 É perfeitamente possível que teorias sejam apresentadas “progressivamente” em tão rápida suces são que a “refutação” da enésima su rja apenas como corroboração da enésima-primeira. A febre de problemas da ciência é muito mais suscitada pela proliferação de teorias rivais do que pela proliferação de exemplos contrários ou anomalias. Isso mostra que o slogan da proliferação de teorias é muito mais importante para o falseacionismo sofisticado do que para o falseacionismo ingênuo. Para este último a ciência cresce através do repetido derrubamento experimental de teorias; novas teorias rivais propostas antes de tais “derrubamentos” podem 12 3 acelerar o crescimento mas não são absolutamente necessárias ; a proliferação
121. É claro que a teoria 7” pode ter excesso de conteúdo empírico corroborado em relação a outra teoria T, ainda que ambas, T e 7” sejam re futadas. O conteúdo empírico nada tem com a verdade nem com a falsidade. Conteúdos corroborados também podem ser comparados independentemente do conteúdo refutado. Assim podemos ver a racionalidade da eliminação da teoria de Newton em favor da teoria de Einstein, conquanto se possa dizer que a teoria de Einstein — como a de Newton — nasceu "refutada”. Temos apenas de lembrar -nos de que “confirmação qualitativa” é um eufemismo de “desconfirmação quantitativa”. (Cf. meu ensaio “Changes in the Problem of Inductive Logic”, 1968, pp. 384 -6.)
122.
Cf. Popper, L ogik d er F orsc hun g, 1934, seção 85, p. 279 de tradução inglesa de
1959. 123. É verdade que se permite qu e certo tipo de pro liferação de teori as rivais desempenhe um papel heurístico acidental no falseamento. Em muitos casos o falseamento he u risticamente “depende da [condição] de que um nú mero assaz .grande e assaz diferente de teorias seja oferecido” (Popper, “What is Dialectic?” 1940). Por exemplo, podemos ter uma teoria T aparentemente não-refutada. Mas pode ser que se proponha uma nova teoria T' , incompatível com T , que também s e ajuste aos fatos disponíveis: as diferenças são menores do que a amplitude do erro observacional. Em tais casos a incompatibilidade nos incita a aprimorar nossas “técnicas experimentais” e, assim, a refinar a "base empírica”, de sorte que tanto T quanto 7” (ou incidentalmente as duas) podem ser falseadas: "Precisamos de uma nova teoria a fim de descobrir onde
constante de teorias é opcional, mas não é compulsória. Para o falseacionista sofisticado a proliferação de teorias não pode esperar que as teorias aceitas sejam “refutadas” (ou que os protagonistas passem por uma crise kuhniana de confiança). 124 Ao passo que o falseacio nismo ingênuo sublinha “a urgência de substituir uma hipótese falseada por outra melhor” ,12 5 o falseacionismo qualquer hipótese por outra melhor. sofisticado sublinha a ' urgência de substituir O falsea mento não pode “compelir o teórico a procurar uma teoria me lhor”, 126 simplesmente porque o falseamento não pode preceder a t eoria melhor . A transferência de envolve problema uma do falseacionismo ingênuo Para para oo falseacionismo sofisticado dificuldade semântica. falseacionista ingênuo a “refutação” é um resultado experimental que, por força de suas decisões, é levado a conflitar com a teoria que está sendo testada. Mas de acordo com o falseacionismo sofisticado não se devem tomar tais decisões antes que o alegado “caso refuta - dor” se tenha transformado no caso confirmador de uma teoria nova e melhor. Por conseguinte, sempre que toparmos com termos como “refutação”, “falseamento”, “contra -exemplo”, devemos verificar em cada caso se esses termos são aplicados em virtude de decisões tomadas pelo 12 7 falseacionista ingênuo ou. pelo falseacionista sofisticado. O falseacionismo metodológico sofisticado oferece novos padrões t para a honestidade intelectual. A honestidade justificacionista exigia a aceitação apenas do que estava provado e a rejeição de tudo o que não estivesse provado. A honestidade neojustificacionista exigia a especificação da probabilidade de qualquer hipótese à luz da evidência empírica disponível. A honestidade do falseacionismo ingênuo
era deficiente a teoria antiga” (Popper, Conjectur es and Re /ut ation s, 1963, p. 246). Mas o papel dessa proliferação é acidental no sentido de que, uma vez refinada a base empírica, a luta se trava entre essa base empírica refinada e a teoria T que está sendo testada; a teoria rival 7" agiu apenas como catalisadora. (Veja também mais acima, p. 146, nota de rodapé n.° 117.) 124. Cf. Também Feyerabend, “Reply to Criticism", 1965, pp. 254-5. 125. Popper, The Logic of Scientij ic Di scov ery, 1959. p. 87. nota de pé de página n.° *1. 126. Popper, Logik de r F orsc hu ng, 1934, seção 30. 127. Cf. também pé de página n.° 62. mais acima, p. 132, nota de Talvez fosse melhor no futuro abandonar de todo essas [Acrescentado no prelo:] expressões, assim como abandonamos expressões como “prova indutiva (ou experimental)”. Assim poderemos chamar às anomalias de “refutações” (ingênuas) e, de teorias “falseadas” (sofisticadamente) às teorias "suplantadas”. Nossa linguagem comum está impregnada não só de dogmatismo “indutivista” mas também de dogmatismo falseacionista. Uma reforma nesse sentido já devia ter sido feita.
149
exigia o teste da teoria falseável e a rejeição das teorias não-falseá- veis e das falseadas. Finalmente, a honestidade do falseacionismo_so- fisticado exigia que se tentasse olhar para as coisas de pontos He ! vista diferentes, apresentando novas teorias que antecipassem fatos | novos, e rejeitando teorias que tivessem sido suplantadas por outras, mais vigorosas. O falseacionismo metodológico sofisticado mistura várias tradições diferentes. Dos empiristas herdou a determinação de aprender principalmente com a experiência. Dos kantianos tirou o enfoque ativista da teoria do conhecimento. Com os convencionalistas aprendeu a importância das decisões em metodologia. Eu gostaria de pôr aqui em relevo mais um traço distintivo do empirismo metodológico sofisticado: o papel crucial do excedente de corroboração. Para o indutivista, aprender alguma coisa sobre uma nova teoria é aprender até que ponto a evidência confirmada a sustenta; a respeito de teorias refutadas nada se aprende (aprender, afinal de contas, é edificar conhecimento provado ou provável). Para o falseacionista dogmático, aprender alguma coisa acerca de uma teoria é aprender se ela foi refutada ou não; em relação a teorias confirmadas nada se aprende (não se pode provar nem probabilizar coisa alguma), a respeito 128 de teorias refutadas aprende-se que elas são refutadas. Para o falseacionista sofisticado, aprender alguma coisa no tocante a uma teoria é aprender, em primeiro lugar, que novos fatos foram por ela antecipados; com efeito, para a espécie de empirismo popperiano que advogo, a única evidência pertinente é a empiricidade (ou caráter científico) e o progresso antecipada por uma teoria, e a teórico estão ligados inseparavelm ente . 12 !' A idéia não é inteiramente nova. Em sua famosa carta a Con- ring em 1678, por exemplo, Leibnitz escreveu: “A maior recomen dação de uma hipótese (depois da verdade [provada]) é poder fazer com sua ajuda predições até a respeito de fenômenos ou experiências não- tentadas.” 13 0 A concepção de Leibnitz foi amplamente aceita
128. Sobre uma defesa da teoria de “aprender com a experiência”, cf. Agassi, "Popper on Le arning from Experience”, 1969. 129. Tais observações mostram que “aprender com a experiência” é uma idéia nor mati va; port anto, toda s as teori as pur ame nte “ empíricas” da aprendizagem não atinam com o â mago do pr obl ema.
130. Cf. Leibnitz , Carta a Conring, 1678 . A expr essão entre colchetes mostra que Leibnitz colocava esse critério em segundo lugar e entendia que as melhores teorias são as provadas. Desse modo, a posição de Leibnitz — como a de Whewell — está muito longe do falseacionismo sofisticado em pleno desenvolvimento.
150
pelos cientistas. Mas como a avaliação de uma teoria científica, an tes de Popper, significava avaliação de seu grau de justificação, essa posição foi considerada insustentável por alguns lógicos. Em 1843, por exemplo, Mill queixa-se, horrorizado: “parece que se pensa q ue uma hipótese... faz jus a uma recepção mais favorável se, além de expli car todos os fat os anter ior mente con hecid os,co nduzi u à ant eci pa conflitava não só com o justificacionismo mas também com o pro- babilismo; por provocaria mais do que se já fosse que um acontecimento antecipado pela teoria conhecido prova fosse oser único critério do caráter científico deanteriormente? uma teoria, o Enquanto critério de aLeibnitz só poderia considerado como 13 2 irrelevante. Outrossim, a probabilidade de uma teoria dada a evidência não pode sofrer a influênc ia, como Keynes observou, do momento em que a evidência foi produzida: a probabilidade de uma teoria dada a evidência só pode depender da teoria e da evidência, 133 e não de ter sido esta produzida antes ou depois daquela. Apesar dessa crítica justificacionista convincente, o critério persistiu entre alguns dos melhores cientistas, visto que lhes expressava a vigorosa aversão pelas explicações meramente ad hoc, que “embora expressem realmente os fatos [que se propõem explicar] não são corroboradas por quai squer outros fenômenos”. 13 1 Mas as foipoucas apenasobservações Popper quem reconheceu que contra a incompatibilidade prima facie entre estranhas e casuais as hipóteses ad hoc de um lado e o imenso edifício de filosofia justificacionista do conhecimento precisa ser solucionada demolin
131. Mill, A System of L ogic, Racion ative and I nducti ve, f íeing a Con - n ecte d Vi ew of lh e Pri ncipies of E vide nce , and lhe M ethods of Scie nti fi c I n - ve stigation,
1843, vol. II, p. 23.
132. Esse e ra o argumento de J. S. Mill ( ibid .). Ele dirigiu-o contra Whewell, segundo o qual “a confluência de induções” ou predição bem -sucedida de acontecimentos improváveis verifica (isto é, prova) uma teoria. (Whewell, Novum Or ganum Reno vatum, 1858, pp. 95-6.) A co n tr ad i ção bási ca , sem dúvida, da fi l osof i a da ci ênci a, tanto de Whewe ll quan to de D uh em, a f usão qu e el es operam entr e o poder de pr edição e a ver dade pr ovada. Popper se~ par ou os dois.
133. Keynes. A Tr eatis e o n Pr oba bil ity, 1921, p. 305. Mas cf. o meu ensaio, “Changes in the Problem of Inductive Logic”, de 1968, p. 394. 134. Este é o comentário crítico de Whewell sobre uma hipótese auxiliar ad hoc da teoria da luz de Newton (Whewell, Novum Or ganum Renov atum, vol. II, p. 317.)
151
do-se o justificacionismo e apresentando novos critérios não- -justificacionistas para avaliar teorias científicas baseadas no caráter anti adhoc. Atentemos para alguns exemplos. A teoria de Einstein não é melhor que a de Newton porque a teoria de Newton foi “refutada” e a de Einstein não o foi; exis tem muitas “anomalias” conhecidas na teoria einsteiniana. A teoria de Einstein é melhor do que — isto é, representa progresso quando comparada com — a teoria de Newton armo 1916 (isto é, as leis da dinâmica, a lei da gravitação, o conjunto conhecido de cõ ndições iniciais; “menos” a lista de anoma lias conhecidas, como o periélio de Mercúrio) porque explicava tudo que a teoria de Newton explicara com êxito, e explicava também, até certo ponto, algumas anomalias conhecidas e, além disso, proibia acontecimentos como a transmissão da luz ao longo de linhas retas perto de grandes massas, a cujo respeito a teoria de Newton nada dissera, mas que haviam sido permitidos por outras teorias científicas bem corroboradas do tempo; ademais, pelo menos parte do inespe- j rado excedente de conteúdo einsteiniano era de fato corroborada (por exemplo, pelas experiências do eclipse). Por outro lado, de acordo com esses padrões sofisticados, a teoria de Galileu, segundo a qual o movimento natural dos objetos terrestres era circular, não introduziu melhoramento algum visto que não proibiu nada que não tinha sido proibido pelas teorias pertinentes que ele, Galileu, pretendia melhorar (isto é, pela física aristotélica e pela cinemática celeste coperniciana). Essa teoria era portanto ad hoc e portanto — do ponto de vista heurístico — sem valor. 13 5 Um belo exemplo de teoria que satisfazia apenas à primeira parte do à segunda parte critério de progresso de Popper (excedente de conteúdo), mas não (excedente corroborado de conteúdo) foi dado pelo próprio Popper: a teoria de Bohr-Kramers-Slater de 1924, cujas novas predições foram todas refutadas , 13 6
135. Na terminologia do meu ensaio, “Changes in the Problem of Inductive Logic”, de 1968, essa teoria era “ad hoc,’’ (cf. op. cit., p. 389, nota de rodapé n.° 1); o exemplo me foi srcinalmente sugerido por Paul Feyerabend como paradigma de uma vali osa te or ia ad hoc. Mas cf. mais adian te, p. 174, especialmente a nota de rodapé n.° 194. 136. Na terminologi a do meu ensaio "Changes in the Probl em of Inductive Logic”, de 1968, essa teoria não era “ad hoc^’, mas “ad hoc 2 " (cf. op. cit ., p . 389, nota de rodapé n.° 1). Sobre uma ilustração simples, porém artificial, veja ibid., p. 387, nota de pé de página n.° 3. (Sobre ad hoc v cf. mais adiant e, p. 217, nota de pé de página n.° 323.) 152
Consideremos finalmente quanto convencionalismo subsiste no falseacionismo sofisticado. Menos, por certo, do que no falseacionismo ingênuo. Precisamos de menos decisões metodológicas. A “ decisão de quarto tipo ”, essencial à versão ingênua, 137 tornou-se completamente redundante. Para mostrálo basta-nos compreender que quando uma teoria científica, que consiste em algumas “leis da natureza”, condições iniciais, teorias auxiliares (mas sem cláusula ceteris paribus) conflita com algumas proposições fatuais, não precisamos decidir que parte — explícita ou “oculta” — cumpre substituir. Po demos tentar parte e sóaumen quandotaesbarramos num explicação da anomalia comsubstituir a ajuda 3è qualquer alguma mudança dora do conteúdo (ou hipótese auxiliar), e a natureza a corrobora passamos a eliminar o complexo “refutado”. Assim, o falseament sofisticado é um processo mais lento, porém possivelmente mais se guro, do que o falseamento ingênuo.
Tomemos um exemplo. Suponhamos que a trajetória de um planeta difira da trajetória prevista. Alguns concluem disso que o fato refuta a dinâmica e a teoria gravitacional aplicadas; as condições iniciais e a cláusula ceteris paribus foram engenhosamente corroboradas. Outros concluem que o fato refuta as condições iniciais usadas nos cálculos; a dinâmica e a teoria gravitacional têm sido so berba mente corroboradas nos últimos duzentos anos e todas as sugestões relativas a fatores adicionais em jogo falharam. Outros, todavia, concluem que o fato refuta a suposição implícita de que não havia outros fatores em jogo além dos uqe foram tomados em consideração: é possível que essas pessoas sejam motivadas pelo princípio metafísico de que qualquer explicação é apenas aproximativa devido à infinita complexidade dos fatores envolvidos na determinação de um único acontecimento . Devemos, acaso, elogiar o primeiro tipo como “ crítico", renegar o segundo como “mercenário” e condenar o terceiro por “ apologético ”? Não. Não precisamos concluir coisa alguma dessa “refutação”. Nunca rejeitamos uma teoria específica simplesmente por decreto. Quando se nos depara uma incompatibilidade como a mencionada, não precisamos decidir quais os ingredien tes da teoria que consideramos problemáticos nem os que considera mos à luz do não-pro- blemáticos: basta-nos considerar todos eles problemáticos enunciado básico aceito conflitante e tentar substituí-los. Conseguindo substituir algum ingrediente de modo “progressivo” (isto é, de modo que o substituto tenha mais conteúdo empírico corroborado do que o srcinal), diremos que está “falseado”.
137. Cf. mais acima,
p. 133.
153
Tampouco necessitamos da decisão de quinto tipo do falseacio- nista ingênuo. 1 - 18 A fim de mostrá-lo atentemos de novo para o problema das teorias (sintaticamente) metafísicas — e para o problema de sua retenção e eliminação. A solução “sofisticada” é óbvia. Re temos uma teoria sintaticamente metafísica enquanto os casos problemáticos podem ser explicados por mudanças que i:i# aumentam o conteúdo nas hipóteses auxiliares associadas a ela. Tomemos, por exemplo, metafísica cartesianaporC:princípios “Em todos naturais há umIsso é mecanismoa de relógio regulado (a os processos priori) que o animam.” sintaticamente irrefutável: não colide com nenhum “enunciado básico” espaço temporalmente singular. Está claro que pode colidir com uma teoria refutável fm i m2/r 1 que age a distância". Mas N como N: “a gravitação é uma força igual a só colidirá com C se a “ação a distância” for interpretada literalmente e tal vez, além disso, como representando uma verdade final, irredutível a uma causa mais profunda. (Popper a chamaria de interpretação “essencia - lista”.) Alternativamente podemos considerar a “ação a distância” como causa indireta. Nesse caso, interpretamos “ação a distância” figurativamente, considerando-a como uma síntese para algum mecanismo oculto de ação por contato. (Podemos chamá-la inter “nominalista”.) Nessasfísicos condições, explicar Ndepor C pretação — o próprio Newton e diversos francesespodemos do séculotentar XVIII tentaram fazê-lo. Se uma teoria auxiliar que leva a cabo essa explicação (ou, se quiserem, “redução”) produz fatos novos ou seja, é “independentemente testável”), a metafísica cartesiana deve ser considerada boa, científica, empí rica, geradora de uma transferência progressiva de problemas. Uma teoria metafísica (sintaticamente) progressiva produz uma transferência progressiva sustentada em seu cinto protetor de teorias auxiliares. Se a redução da teoria à estrutura “metafísica” nã o produz um novo conteúdo empírico, e muito menos fatos novos, a redução representa uma transferência flegene- rativa de problemas; é um mero exercício lingüístico. Os esforços cartesianos para sustentar sua “metafísica” a fim de explicar a gra-
138. Cf. mais acima, p. 136. 139. Só podem os f or mu l ar essa con di ção com notável cl ar eza em f un ção da m etodol ogi a dos pr ogr amas de pesqui sa que s erá expli cada no § 3: conservamos um a teori a sin tati camente metafísica como “núcleo’’ de um pro gr ama de pe squisa, enqu ant o a sua h eur ística posit iv a associada produz uma transferência progressiva de problema no “cinto protetor" das hipóteses auxiliares. Cf. mais adiante, pp. 166-7.
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vitação newtoniana é um exemplo notável de uma redução meramente lingüística dessa natureza. 14 0 Assim, não eliminamos um a teoria (sintaticamente) metafísica se ela colidir 1 com uma teoria científica bem corroborada, como sugere o falseacionismo ingênuo. Eliminámo-la se ela produz uma trans- / ferência degenerativa a longo prazo e quando há uma metafísica rival, melhor, para substituí-la. A metodologia de um programa de pesqui- j sa com um núcleo “metafísico” não difere da metodologia de um programa de pesquisa com um núcleo “refutável”, exceto, talvez, no que concerne ao nível lógico das incoerências que são a força con; dutora do programa. 141 (Cumpre acentuar, todavia, que a própria escolha da forma lógica em que se há de expressar a teoria depende, em grande parte, da nossa decisão metodológica. Por exemplo, em vez de formular a metafísica cartesiana como um enunciado do tipo ‘todos -alguns”, po demos formulá-la como um enunciado do tipo “todos. . todos os processos naturais são mecanismos de relógios”. Um “enunciado básico” que o contradissesse seria: “a é um processo natural e não é um mecanism o de relógio”. A questão é saber se, de acordo com as “técnicas “x não é experimentais”, ou melhor, com as teorias interpretativas do momento, um mecanismo de relógio” pode ou não ser “estabelecido”. Assim a escolha racional da forma lógica de uma teoria d epende do estado do nosso conhecimento; por exemplo, o que hoje é um enunciado metafísico do tipo “todos -alguns” pode tornar-se, amanhã, com a mudança do nível de teorias observacionais, um enunciado científico do t ipo “todos. . .”. Já afirmei que somente séries de teorias e não teorias isoladas podem ser classificadas como científicas ou não-científicas; agora indiquei que até a forma lógica de uma teoria só pode ser racionalmenteescolhida com base numa avaliação crítica do estado do programa de pesquisa em que ela está encaixada.) Entretanto, as decisões do pri meiro, do segundo e do terceiro tipos do falseacionismo ingênuo 14 2 não podem ser evitadas mas,
140. Esse fenômeno foi descrito num belo trabalho de Whewell intitu lado “On the Transformation of Hy potheses in the History of Science” (1851); mas ele não pôde explicá -lo metodologicamente. Em lugar de reconhecer a vitória do programa newtoniano progressivo sobre o programa cartesiano degenerativo, entendeu ser essa a vitória da verdade provada sobre a falsidade. Acerca de uma discussão geral da demarcação entre a redução progressiva e a redução degenerativa, cf. Popper, “A Realist View of Logic, Physics and History”, de 1969. 141. Cf. mais acima,p. 142. Cf. maispp. acima,
, nota de rodapé n.° e
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tava T, aplicou 7’,. Interpretou o que viu à luz de I,: e o resultado foi Rt. No entanto, no modelo monoteórico da teoria explicativa submetida a teste essa teoria interpretativa não aparece. E se Th a teoria interpretativa, for falsa? Por que não “aplicar” T em lugar precisam de T, e sustentar que os pesos atômicos ser números inteiros? Nesse caso, este será um “fato concreto” à luz de T, e T, será derrubada. Talvez novos processos purificadores adicio nais devam ser inventados e aplicados. portanto, enão é quando devemos aferrar- nosnão a uma “ teoria" “fatos conhecidos" é o que dianteOdeproblema, quando não devemos. O problema fazer quando “teorias” colidem com “fatos”. Uma “colisão” dessa natureza só é sugerida pelo “modelo dedutivo monoteórico”. O fato de uma proposição ser um “fato" ou uma “teoria" no contexto de uma situação de teste depende da nossa decisão metòdológica. A^“base empírica de uma teoria” é uma noção monoteóriòa, é relativa a uma estrutura dedutiva monoteórica. Podemos empregá-la como primeira aproximação; mas em caso de “ape lo” feito pelo teórico, precisamos usar um modelo pluralístico. No modelo pluralístico a colisão não se verifica “entre teorias e fatos” mas entre duas teorias de alto nível: entre uma teoria interpretativa para fornecer os fatos e uma teoria explanatória para explicá-los; e a teoria interpretativa pode estar num nível tão elevado quanto á teoria explanatória. O choque, portanto, já não se verifica entre uma teoria de nível logicamente mais elevado e uma hipótese falseadora de nível inferior. O problema não deveria ser colocado em termos de se saber se uma “refutação" é contradição entre a “teoria real ou não. O problema é como reparar uma explanatória” que está sendo testada e as teorias “interpretativas” — explícitas ou ocultas; ou, se quiserem, o problema é saber que teoria considerar como a teoria interpretativa, que fornece os fatos “concretos” e que teoria consi derar como a teoria explanatória, que “tentativamente’’ os explica. Num modelo monoteórico teoria explanatória que consideramos a teoria de nível mais elevado como uma será julgada pelos "fatos” obtidos de fora (pelo experimentador autorizado); no 148 caso 3e conflito rejeitamos a explicação. Num modelo pluralístico podemos
148. A decisão de usar um modelo monoteórico é claramente vital para o falseacionista ingênuo, pois lhe permite rejeitar uma teoria sob o único pretexto da evidência experimental. E stá de acordo com a nece ssi dade que e le tem de div i dir ni ti damente, pe lo men os n um a si tu ação de teste, o co r po d a ci ênc i a em d oi s: o pr obl emáti co e o não pr obl emáti co (Cf. mais acima, p. 130.) Só a teor ia que ele de ci de considerar pr oblemáti ca por ele arti cul ada e m se u m odelo deduti vo de c r íti ca.
decidir, alternativamente, considerar a teoria de nível mais elevado como teoria interpretativa para julgar os "fatos” obtidos de fora; em caso de conflito podemos rejeitar os “fatos” como “monstros”. Num modelo pluralístico de teste, várias teorias — mais ou menos dedutivamente organizadas — estão soldadas umas nas outras. Só esse argumento bastaria para mostrar a correção da conclusão, extraída de um argumento anterior diferente, de que as experiências simplesmente não derrubam teorias, de que nenhuma teoria proíbe um estado de coisas especificável de antemão. 11 9 Não se trata de propormos uma teoria e a Natureza poder gritar NÃO; trata-se de propormos um emaranhado de teorias, e a Natureza poder gritar INCOMPATÍVEIS. 15 0 O problema é então transferido do velho problema de substituir úma teoria refutada por “fatos” para o novo problema de como resolver incompatibilidades entre teorias intimamente associadas. Qual das teorias mutuamente incompatíveis deve ser eliminada? O falseacionista sofisticado pode responder com facilidade à pergunta: precisamos tentar substituir primeiro uma, depois a outra, depois j talvez as duas, e optar pela nova organização, que proporciona o | maior aumento de conteúdo151 corroborado, que proporciona a trans-/ ferência mais progressiva de problemas. Estabelecemos assim um processo de apelo para o caso de querer o teórico contestar a sentença negativa do experimentador. O teórico pode exigir que o experimentador especifique sua “teoria inter -
149. Cf. mais acima, p. 120. 150. Seja-me aqui p ermitido responder a uma po ssível o bjeção: "Por certo não precisamos de que a Natureza nos diga que um conjunto de teorias é inconsistente. A inconsistência — à diferença da falsidade — pode ser determinada sem a ajuda da Natureza”. Mas o “NÃO” real da Natureza numa metodologia monoteórica assume a forma de um “falseador potencial” forti ficado, isto é, uma sentença que, nessa maneira de falar, afirmamos ter sido proferida pela Natureza e que é a n egação da n ossa t eor i a. A “INCONSISTÊNCIA” real da N aturez a numa metodogia pluralística assume a forma enunciado “fatual” expresso à luz de um a das teo ria s env ol vid as, que pro cla mam os t propostas, produz um sistema inconsistente.
151. Por exemplo, em nosso exemplo anterior (cf. mais acima, p. 129 e seguintes) alguns podem tentar substituir a teoria gravitacional por uma nova e outros podem tentar substituir a radiótica por uma nova: escolhemos o processo que oferece o crescimento mais espetacular, a transferência mais progr essiva de problemas.
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pretativa”, 15 2, podendo então substituí-la - — para contrariedade do experimentador — por outra melhor, a cuja luz sua teoria srcinalmente 153 “refutada” recebe uma avaliação positiva. Mesmo esse apelo, porém, não pode fazer mais do que adiar a decisão convencional. Pois a sentença do tribunal de apelação também não é infalível. Quando decidimos se é a substituição da teoria “interpretativa” ou a substituição da teoriada“explanatória” pro deduzenunciados fatos novos, precisamos outra vez acerca aceitação ou que rejeição básicos. Nesse decidir caso, porém, teremos apenas adiado — e possivelmente melhorado — a decisão; não a teremos evitado. 15 4 As dificuldades que dizem respeito à base empírica com as quais se defrontoil o falseácionis mo “ingênuo” também não podem ser evitadas pelo falseacionismo “sofisticado”. Mesmó~ que consideremos “fatual” uma teoria, isto é, se a nossa imaginação limitada, de movimentos lentos, não puder oferecer uma alternativa para ela (como Feyerabend costumava dizê-lo), precisamos tomar, Jielo menos ocasional e temporariamente, decisões a respeito do seu valor- -de-verdade. Mesmo assim, a experiência continua sendo, num sentido importante, o ",árbitro imparcial” 15 5 da controvérsia científica.
152. A crítica não presume uma estrutura dedutiva plenamente inteligível: cria-a. (A propósito, esta é a tese principal do meu ensaio de 1963 - 4, "Proofs and Refutations”.) 153. Um exemplo clás sico desse modelo é a relação entre Newton e Flamsteed, o primeiro astrônomo real. Newton, por exemplo, visitou Flamsteed no dia 1.° de setembro de 1694, quando trabalhava o dia inteiro em sua teoria lunar; pediu-lhe que reinterpretasse alguns dos seus dados, que lhe contradiziam a própria teoria; e explicou-lhe exatamente como deve ria proceder. Flamsteed obedeceu e escreveu a Newton no dia 7 de outubro: “Depois que o senhor foi para casa, examinei minhas observações para determinar as maiores equações da órbita da terra e considerar os lugares da lua nessas ocasiões. .. Verifico que (se, como o senh or af ir ma, a terr a se i ncl i na par a o lado e m que e stáa l ua) o senhor pode d escontar cerca de 20” dela...” Assim Ne wton criticava e corrigia constantemente as teorias observaçiona ls cie Flamsteed. Newton ensinou-lhe, por exemplo, uma teoria melhor do poder de refração da atmosfera; Flamsteed aceitou- o e corrigiu seus “dados” srcinais. Pode compreender -se a constante humilhação e a fúria crescente desse grande observador ao ver seus dados criticados e aprimorados por um homem que, como ele mesmo confessava, não fazia observações por si próprio: e desconfio muito de que foi esse sentimento a srcem de uma rancorosa controvérsia entre ambos.
154. O mesmo se aplica a o terceiro t ipo de decisão. Se só rejeitarmo s uma hipótese aleatória por outr a que, ao nosso entender, a suplanta, a forma e xata das “regras de rejeição” se tornará 155. menos importante. Popper, Th e Open So ci ety and I ts E nemi es, 1945, vol. II, capítulo 23 , p. 218.
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Não poderemos livrar -nos do problema da “base empírica”, s e qui - ) sermos aprender com a experiência 15 e; mas podemos tornar nosso aprendizado menos dogmático — mas também menos rápido e me- I nos dramático. Encarando como problemáticas algumas teorias obser- . vacionais podemos tornar mais flexível nossa metodologia, mas não podemos expressar e incluir todo o “conhecimento de fundo” (ou “ignorância de fundo”?) em nosso modelo dedutivo crítico. Esse processo está fadado a realizar-se aos poucos e é preciso traçar uma linha convencional a qualquer tempo dado. Há uma objeção até para a versão sofisticada do falseacionismo metodológico à qual não se pode responder sem fazer uma concessão ao “simplismo” duhemiano. A objeção é o chamado “paradoxo de rodeios” (“tacking paradox”). De acordo com nossas definições, acrescentar hipóteses de baixo nível completamente desconexas a uma teoria dada pode constituir uma “transferência progressiva”. É difícil eliminar tais transferências provisórias sem exigir que as asserções adicionais devam ser ligadas à asserção srcinal mais intimamente do que por simples conjunção. Claro está que isso é uma espécie de requisito de simplicidade que asseguraria a continuidade na série de teorias que, segundo se pode dizer, constitui uma transferência de problemas. Isso nos conduz a novos problemas. Poi s um dos traços cruciais do falseacionismo sofisticado é substituir o conceito de teoria, como ) conceito da descoberta, pelo da série de teorias. Ê uma sucessão de teorias e não uma teoria determinada que se avalia como científica I óu pseudocientífica. Mas os elementos continuidade, que os dessa série de teorias costu - . mam estar ligados por notável solda em progra- 'l mas de pesquisa. Essa continuidade — que lembra a “ciência nor mal” kuhniana — desempenha um papel vital na história da ciência;/ os principais problemas da lógica da descoberta só podem ser satis-j fatoriamente discutidos na estrutura de uma metodologia dos pro-i gramas de pesquisa. 3.
UMA METODOLOGIA DOS PROGRAMAS DE PESQUISA CIENTIFICA Discuti o problema da avaliação objetiva do crescimento científico em termos de transferências progressivas e degenerativas de pro-
156. Agassi, portan to, está errado em sua tese de qu e "os relatos de o bservação podem ser aceitos como falsos e, por conseguinte, assim se elimina o problema da base empíric a” (Agassi, "Sensationalism”, 1966, p. 20). 161
blemas em séries de teorias científicas. As mais importantes dessas séries no crescimento da ciência caracterizam-se por certa continuidade que liga seus elementos. Essa continuidade se desenvolve de um autêntico programa de pesquisa esboçado a princípio. O progra ma consiste em regras metodológicas; algumas nos dizem quais são os caminhos de pesquisa que devem ser evitados ( heurística negativa), outras nos dizem quais são os caminhos que devem ser palmilhados (heurística positiva) . 15 7 A própria ciência como um todo pode ser considerada um imenso programa de pesquisa com a suprema regra heurística de Popper: “arquitetar conjeturas que tenham maior conteúdo empírico do que as predecessoras.” Essas regras metodológicas podem ser formuladas, como Popper assinalou, como princípios metafísicos. 15 8 Por exemplo, a regra anticonvencionalista úniversal contra a exclusão da exceção pode ser formulada como o princípio metafísico: “A natureza não admite exceções”. Por isso é que Watkins chamava a tais regras “metafísica influente”. 15 9 Mas o que tenho sobretudo em mente não é a ciência como um todo, senão programas particulares de pesquisa, como o conhecido por “metafísica cartesiana”. A metafísica a teoria mecanicista do universo — de acordo com a qual o cartesiana, universo éisto umé,itnenso mecanismo de relógio (e um sistema de vórtices) que tem o impulso como única causa do movimento — funcionou como poderoso princípio heurístico. Desestimulava o trabalho em teorias científicas que — como [a versão “essencialista” da] teoria de Newton de ação a distância — fossem incompatíveis com ela ( heurística negativa) e, de outro lado, estimulava o trabalho sobre hipóteses auxi-
157. Pode-se assinala r que a heurística negativa e a positiva dão uma definição tosca (implícita) do “referencial conceptual” (e conseqüentemente da linguagem. O reconhecimento de que a história da ciência é a história dos programas de pesquisa mais do que dás teorias pode, portanto, sêF visto como uma justificação parcial do ponto de vista de que a história da ciência é a história de estruturas conceptuais ou das linguagens científicas. ■" 158. Popper, Logik de r F orschung, 1934, seções II e 70. Uso “metafí sicos” como termo técnico do falseacionismo ingênuo: uma proposição contin gente será “metafísica” se não tiver “falseadores potenciais”. 159. Watkins, "Influential and Confirmable Met aphysics”, 1958. Watkins adverte que “a lacuna lógica entre os enunciados e as prescrições no campo metafísico -metodológico é ilustrado fatoenquanto de poder lhe uma pessoa rejeitar doutrina([metafísica] forma de exposiçãopelo de fatos subscreve a versãouma prescritiva" pp.sua 356-7). Ibid .,em
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liares que poderiam tê-la salvo da aparente evidência contrária keplerianas ( heurística positiva) . 16 0 (a) Heurística negativa: o “núcleo” do programa.
— como as elipses
Todos os programas de pesquisa científica podem ser caracterizados pelo “núcleo”. A heurística negativa do programa nos proibe dirigir o modus tollens para esse “núcleo”. Ao invés disso, precisamos utilizar nosso engenho para articular ou mesmo inventar “hipóteses auxiliares”, que formam um cinto de proteção em torno do núcleo, e precisamos redirigir o modus tollens para elas. Ê esse cinto de proteção de hipóteses auxiliares que tem de suportar o impacto dos testes e ir se ajustando e reajusando, ou mesmo ser completamente substituído, para defender o núcleo assim fortalecido. O programa de pesquisa será bemsucedido se tudo isso conduzir a uma transferência progressiva de problemas, porém mal sucedido se con- dilzlr a uma transferência degenerativa de problemas. O exemplo clássico de programa de pesquisa bem-sucedido é á teoria gravitacional de Newton; talvez seja até o mais bem-sucedido programa de pesquisa já levado a cabo. Quando foi produzido pela primeira vez, viu -se submerso num oceano de "anomalias” (ou, se quiserem, de “contra -exempl os”), 161 e enfrentou a ! oposição das teorias observacionais que sustentavam tais anomalias. Os newtonianos, contudo, transformaram, com tenacidade e engenho brilhantes, ' um contraexemplo depois do outro em exemplos corroborativos, í principalmente derrubando as 1 teorias observacionais srcinais a cuja luz essa “evidência contrária” foi estabelecida. No processo, eles mes- j mos produziram novos contra-exemplos, que novamente resolviam. 1 “Converteram cada nova dificuldade numa nova vitória do seu pro- I grama”. 16 2 No programa de Newton a heurística negativa nos sugere que desviemos o modus tollens das três leis da dinâmica e da lei de gravi- tação de Newton. Esse “núcleo” é “irrefutável” por decisão metodo
-
160. Sobre esse programa de pesquisa cartesia no, cf. Popper, “Philoso - phy and Physics”, 1958, e Watkins, “Influential and Confirmable Metaphysics”, pp. 350 -1. 161. Sobre o esclarecimento dos conceitos de “exemplo contrário” e “anomalia”, cf. mais acima, p. 133, e sobretudo mais adian te, p. 195, o texto correspondente à nota de pé de página n.° 251. 162. Laplace, E xposi ti on du Système du M on de, 1796, livro IV, capítulo ii.
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lógica de seus protagonistas: as anomalias só devem conduzir a mudanças no 163 cinto “protetor” da hipótese auxiliar, “observacional” e das condições iniciais. Dei um microexemplo inventado de uma transferência progressiva newtoniana, de problemas. 16 4 Se o analisarmos, veremos que cada elo sucessivo nesse exercício prediz um fato novo; cada passo representa um aumento do conteúdo empírico: o exemplo constitui uma transferência teórica coerentemente progressiva. Outrossim, cada predição se verifica no fi m; embora em três ocasiões 165 Ao subseqüen tes as predições pareçam ter sido momentaneamente “refutadas”. passo que o “progresso teórico” (no sentido aqui descrito) pode ser verificado imediatamente, 16 6 o “progresso empírico” não pode, e num programa de pesquisa somos, àk vezes, frustrados por uriiã lon ga série de “refutações” antes que hipóteses auxiliares, engenhosas e felizes, capazes de aumentar o conteúdo, convertam — retrospectivamente — uma cadeia de derrotas numa ressòáhtè Kistõría"^ê su cesso, quer revendo alguns “fatos” falsos, quer acrescentando novas hipóteses auxiliares. Podemos dizer então que precisamos exigir de cada passo de um programa de pesquisa que aumente consistente- mente o conteúdo: que cada passo constitua uma transferência teórica consistentemente progressiva de problemas. Além disso, só precisamos, pelo menos de vez em quando, que se veja que o aumento de conteúdo foi retrospecti vamente corroborado; o programa como um todo deve também exibir uma transferência empírica intermitentemente progressiva. Não exigimos que cada passo produza imediatamente um fato novo observado. Nosso termo “ intermitentemente ” dá suficiente amplitude racional para a adesão dogmática a um programa em face de “refutaçõ es” prima facie. A idéia da “heurística negativa” de um programa de pesquisa científica racionaliza de forma considerável o convencionalismo clássico. Podemos decidir racionalmente não permitir que “refutações” ! tra nsmitám falsidade ao núcleo enquanto aumenta o conteúdo empírico corroborado do cinto protetor de hipóteses auxiliares. Nossa
163. O núcleo real de um programa não emerge, na re alidade, completamente armado — como Atenas da cabeça de Zeus. ge^envolve-se. ads poucos, por um longo processo preliminar de ensaio-e-erro. Neste ensaio não se discute o citado processo. 164. Cf. mais acima, pp. 120-1. 165. A “refutação” foi, todas as vezes, desviada com êxito para “lemas é, para lemas que emergem, por assim dizer, da cláusula 166. Mss cf. mais adian te, pp. 190-2.
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ceter is par ibus.
ocultos”; isto
abordagem, porém, difere do convencionalismo justificacionista de Poincaré no sentido de que, à diferença de Poincaré, sustentamos que . na hipótese de o programa deixar de antecipar fatos novos, e quando isso acontecer, o seu núcleo nosso núcleo, à diferença do de Poincaré, talvez tenha de ser abandonado; isto é, o pode desintegrar-se em certas condições. Nesse sentido estamos com Duhem, 10 7 segundo o qual era preciso t omar em consideração essa possibilidade; mas para, 18 8 Duhem a razão da desintegração é puramente estética, ' ao passo ^ que pára nóá èlã ê sobretudo lógica e empírica. (b)
Heurística positiva: a construç ão do “cinto de proteção" e a relativa autonomia da ciência teórica.
Os programas de pesquisa, além da sua heurística negativa, caracterizam-se também pela sua heurística positiva. Até os programas mais rápida e coerentemente progressivos de pesquisa só podem digerir sua “evidência contrária” aos poucos: as anomalias nunca se esgotam de todo. Não se deve pensar, porém, que anomalias ainda não-explicadas — “quebra -cabeças” como Kuhn lhes poderia chamar — são compreendidas ao acaso, e o cinto de eclética, sem nenhuma preconcebida. A proteção ordem construído costuma de sermaneira decidida no gabinete do ordem teórico, in dependentemente das anomalias conhecidas. Poucos cientistas teóricos empenhados num programa de pesquisa dão indevida atenção a “refutações”. Eles têm uma política de pesquisa a longo prazo que as antecipa. Essa política, ou ordem, de pesquisa é exposta — com maiores ou menores minúcias — na heurística positiva do programa de pesquisa. A heurística negativa especifica o “núcleo" do progra - ) ma, que é “irrefutável” por decisão metodológica dos seus protagonistas; a heurística positiva consiste num conjunto parcialmente arti culado de sugestões ou palpites sobre como mudar e desenvolver as “variantes refutáveis” do programa de pesquisa, e so bre como modi-, ficar e sofisticar o cinto de proteção “refutável”. A heurística positiva do programa impede que o cientista se confunda no oceano de anomalias. A heurística positiva apresenta um programa que inclui uma cadeia de modelos, cada vez mais complicados, que simulam a realidade: a atenção do cientista focaliza-se na construção dos modelos de acordo com as instruções que figuram
167. Cf. mais acima, 168. Ibid.
p.
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na parte positiva do programa. Ele ignora os contra-exemplos reais, os “dados” disponíveis. 16 9 Newton elaborou primeiro o seu programa para um sistema planetário com um ponto fixo como sol e um único ponto como planeta. Desse modelo, derivou sua lei do inverso do quadrado para a elipse de Kepler. Mas esse modelo foi proibido pela própria terceira lei da dinâmica de Newton e, portanto, precisou ser substituído por outro em que tanto o sol quanto o planeta gira vam em torno do seu centro comum de gravidade. A mudança não foi motivada por nenhuma observação (os dados não sugeriram aqui “anomalia” alguma) mas por uma dificuldade teórica no desenvolvimento do programa. Em seguida, Newton desenvolveu o programa para um número maior de planetas, como se houvesse apenas forças heliocêntricas mas não houvesse forças interplanetárias. Ato contínuo, desenvolveu a hipótese de não serem o sol e os planetas pontos- -massa, mas bolas- massa. E para essa mudança tampouco precisou da observação de uma anomalia; a densidade infinita era proibida por uma teoria (não-expressa) que servia de critério e, por conseguinte, os planetas tinham que ter extensão. A mudança supunha consideráveis dificuldades matemáticas, retardou o trabalho de Newton — e atrasou a publicação dos Principia por mais de um decênio. Tendo solucionado esse “enigma”, ele pôs -se a trabalhar em esferas giratórias e suas oscilações. A seguir, admitiu a existência de forças interplanetárias e começou a trabalhar em perturbações. Nesse ponto principiou a olhar com maior ansiedade para os fatos. Muitos eram magnificamente explicados (qualitativamente) pelo modelo, muitos não o eram. Foi então que começou a trabalhar com planetas irregulares, em lugar de planetas redondos, etc. Newton desprezava as pessoas que, à semelhança de Hooke, tropeçavam num primeiro modelo ingênuo mas não tinham a tenacidade nem capacidade para desenvolvê-lo e transformá-lo num programa de pesquisa, e encaravam uma primeira versão, um mero aparte, como uma “descoberta”. Sustou a publicação até que o seu programa logrou uma notável transferê ncia progressiva. 17 0
169. Quando um cientista (o u mat emático) tem uma heurística po sitiva, r ecusa -se a 1 ser atraído para a observação. “Deita -se em seu sofá, fecha os olhos e esquece-se dos dados ’. (Cf. meu ensaio, “Proofs and Refutations”, 1963 -4, especialmente às pp. 300 e seguintes, onde se encontra um estudo circunstanciado de um programa dessa natureza.) Ocasionalmente, é claro, ele fará à Natureza uma pergunta ladina, e sentir-se-á animado pelo SIM da Natureza, mas não se sentirá desanimado pelo seu NÀO. 170.
Seguindo Cajori, Rei chenbach dá uma ex plicação diferent e do atraso da
publicação dos Principiais nãodeconcordavam Newton: “Para resultados observaciona com osseu seusdesapontamento ele descobriu que os
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A maioria, se não todos, os “enigmas” newtonianos, que conduziram a uma série de novas variantes que se sucediam umas às outras era previsível ao tempo do primeiro modelo ingênuo de Newton, que sem dúvida os previu, como os devem ter previstos os seus colegas; Newton deve ter tido plena consciência da falsidade berrante de suas primeiras variantes. Nada mostra com maior clareza a existência de uma heurística positiva num programa de pesquisa do que este fato; por isso se fala em “modelos”, em programas de pesquisa. Um “ modelo ” é um conjunto de condições iniciais (possivelmente jühto com algumas teorias observacionais) que se sabe condenado a ser substitíudo durante o subseqüente desenvolvimento do programa, e que até se sabe, mais ou menos, como o será. Isso mostra mais uma vez o quanto são irrelevantes as “refutações” de qualquer variante específica num programa de pesquisa. A existência delas é plenamente esperada, a heurística positiva lá está como estratégia não só para as predizer (produzir) mas também para as digerir. Com efeito, se se expuser claramente a heurística positiva, as dificuldades do programa serão muito mais matemáticas do que empíricas. 17 ' Pode formular- se a “heurística positiva” de um programa de pesquisa como um princípio “metafísico”. Pode formular -se, por exemplo, da seguinte maneira o programa de Newton: “os planetas são essencialmente piões giratórios de forma aproximadamente esfé rica e dotados de gravitação”. Essa idéia nunca foi rigidamente mantida: os planetas não são apenas gravitacionais, possuem também, por exemplo, características eletromagnéticas que podem influenciar- lhes o movimento. Desse modo, a heurística positiva, em geral, é mais flexível do que a negativa. Além disso, acontece ocasionalmente que, quando um programa de pesquisa entra numa fase degenerativa, uma revoluçãozinha ou uma transferência criativa em sua heurística
cálculos. Entretanto , em lugar de propor uma teoria qualquer, por mais bo nita que fosse, antes dos fatos, Newton engavetou o manuscrito da sua teoria. Uns vinte anos mais tarde, depois que uma expedição francesa realizou novas medições da circunferência da terra, Newton constatou que as cifras em que baseara o seu teste eram falsas e que os novos resultados concordavam com seus cálculos teóricos. Só depois disso publicou sua lei... A história de Newton é uma das mais notáveis ilustrações do método da ciência moderna” (Rei - chenbach, The Rise oj Scie nl ij ic Philosophy, 1951, pp. 101-2). Feyerabend crtica o relato de Reichenbach (Feyerabend, "Reply to Criticism”, 1965, p. 229), mas não apresenta um funda mento lógico alternativo. 171. Sobre esse ponto cf. Truesdell, “The P rogram toward Rediscove - ring the Rational Mechanics in the Age of Reason”, 1960.
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positiva pode empurrá -lo de novo para a frente. 47 2 É melhor, portanto, separar o “núcleo” dos princípios metafísicos mais flexíveis que expressam a heurística positiva. Das nossas considerações se depreende que a heurística positiva avança aos poucos, com dificuldade, e com descaso quase completo das “refutações”; pode parecer que as “verificações”, 173 mais do que as refutações, fornecem os pontos de contato com a realidade^ Conquanto se deve assinalar que qualquer “verificação” da enésima -pri- meira versão do programa é uma refutação da enésima versão, não podemos negar que sempre se prevêem algumas derrotas das versões subseqüentes: são as “verificações” que mantêm o programa em an damento, apesar dos casos recalcitrantes. Podemos avaliar os programas de pesquisa, mesmo depois da sua “eliminação”, pela sua força heurística ; quantos fatos novos produziram, até onde ia “a capacidade deles para explicar suas refutações no decorrer do crescimento”? 17 4
(Podemos avaliá-los também pelo estímulo que dão à matemática. As dificuldades reais para o cientista teórico nascem mais das dificuldades matemáticas do programa do que das anomalias. A grandeza do programa newtoniano procede, em parte, do desenvolvimento — por newtonianos — da análise infinitesimal clássica, pré- -condição crucial do seu bom êxito.) De modo que a metodologia dos programas de pesquisa científica explica a relativa autonomia da ciência teórica: fato ínstorico cuja racionalidade não pode ser explicada pelos primeiros falseàcio- nistas. Os problemas racionalmente escolhidos por cientistas que trabalham em poderosos programas de pesquisa são determinados pela heurística positiva do programa, muito mais do que pelas anomalias psicologicamente preocupantes (ou tecnologicamente urgentes). Embora arroladas, as anomalias são postas de lado na esperança de“q'ue j se transformem, com o tempo, em corroborações do programa. Só
172. A contribuição de Soddy para o programa de Prout ou a contribuição de Pauli para o programa de Bohr (a antiga teoria quântica) são exemplos típicos dessas transferências criativas. 173. Uma “verificação” é uma corroboração do excesso de conteúdo no programa em expansão. Mas uma “verificação”, naturalmente, não verifica um programa: apenas lhe mostra a força heurística. 174. Cf. meu ensaio “Proofs and Refutations”, 19634, pp. 324 -30. Infelizmente, em 1963-4 eu ainda não fizera uma clara distinção terminológica entre teorias e programas de pesquisa, o que me prejudicou a exposição de um programa de pesquisa da matemática informal, quase empírica.
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precisam concentrar sua atenção em anomalias os cientistas empe nhados em 17 5 exercícios de ensaio-e-erro ou que trabalham numa fase degenerativa de um progra ma de pesq uisa quando a heurística positiva perde o gás. (É claro que tudo isso há de parecer repugnante aos falseacionistas ingênuos, segundo os quais, depois que uma teoria é “refutada” pela experiência (segundo o livro de regras deles), é irracional (e desonesto) continuar a desenvolvê-la: cumpre substituir a velha teoria “refutada” por uma teoria nova, não -refutada.) (c)
Duas ilustrações: Prout e Bohr.
A dialética da heurística positiva e negativa num programa de pesquisa pode ser melhor esclar ecida por meio de exemplos. Esbo çarei, portanto, alguns aspectos de dois programas de pesquisa espetacularmente bem-sucedidos: o progra ma de Prout 17íi , baseado na idéia de que t odos os átomos são composto s de átomos de hidrogênio, e o programa de Bohr, baseado na idéia de que a emissão da luz se deve a elétrons que saltam de uma órbita para outra no interior dos átomos. (Ao redigir o estudo de um caso histórico deve-se, creio eu, adotar o seguinte rocedimento: (1) faz-se uma reconstrução racional; (2) tenta-se cotejar essa
reconstrução racional com a história real e criticar tanto a reconstrução racional or falta de historicidade quanto a história real por falta de racionalidade. Dessa maneira, todo estudo histórico deve ser precedido de um estudo heurístico: a história da ciência sem a filosofia da ciência écega. Neste estudo não é minha intenção entrar seriamente na segunda fase.) (c 1) Prout: um programa de pesquisa que avança num oc eano de anomalias. Num ensaio anônimo de 1815, Prout afir mou que os pesos atô micos de todos os elementos químicos puros eram números inteiros. Ele sabia muito bem que as anomalias eram abundantes, mas disse que elas surgiam porque as substâncias químicas tal como c ostumavam se apresentar eram não impuras: “técnicas experimentais” pertinentes que existiam nessa época mereciamisto é, as confiança ou, em outras palavras, as teorias “observacionais” contemporâneas ,a cuja luz foram estabelecidos os valores -de-verdade dos enunciados
mais adian te, p. 216. 175. 176. Cf. Já mencionado mais acima,
pp. 156-
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básicos de sua teoria, eram fa lsas. 17 7 Os defensores da teoria de Prout lançaram-se, portanto, numa grande aventura: derrubar as teorias que proporcionavam a evidência contrária à sua tese. Para isso era-lhes preciso revolucionar a química analítica estabelecida naquela época e, correspondentemente, revisar as técnicas experimentais com que se haviam de separar os elementos puros. 178 A teoria de Prout, na realidade, derrotou as teorias anteriormente aplicadas na purificação de substâncias químicas, uma depois da outra. Mesmo assim, os químicos cansaram-se do programa de pesquisas e renunciaram a ele, visto que os sucessos ainda estavam longe de indicar uma vitória final. Stas, por exemplo, frustrado por alguns casos obstinados e recalcitrantes, concluiu em 1860 que a teoria de Prout “não tinha fundamentos”. 17 9 Outros, porém, se sentiram mais animados pelo progresso do que desanimados pela falta de sucesso completo. Marignac, por exemplo, retrucou imediatamente que “embo ra [ele estivesse convencido de que] as experiências de Monsieur Stas são perfeitamente exatas, [não há prova] de que as diferenças observadas entre seus resultados e os requeridos pela lei de Prout não podem ser explicadas pelo caráter imperfeito dos métodos experimentais”. 18 0 Como disse Crookes em 1886: “Não poucos químicos de reconhecida eminência consideram que temos aqui [na teoria de Prout] uma expressão da verdade, mascarada por alguns fenômenos residuais ou colaterais que ainda não conseguimos eliminar.” 18 1 Isto
177. Tudo isso, infelizmente, é mais reconstrução racional do que história verdadeira. Prout negou a existência de quaisquer anomalias. Ele afirmava. por exemplo, que o peso atômico do cloro era exatamente 36. 178. Prout estava ciente de algu ns traços metodológicos bá sicos do seu programa. Permitam-nos citar as primeiras linhas do seu ensaio de 1815, "On the Relation between the Specific Gravities of Bodies in their Gas eous State and the Weights of their Atoms”: “O autor do ensaio que se segue submete-o à apreciação do público com a maior desconfiança... Ele se fia, contudo, de que sua importância percebida de que lhe empreenderá o exame e, assim, verificará ou refutará suasserá conclusões. Seeestas se alguém revelarem errôneas, novos fatos ainda poderão ser trazidos à luz, ou velhos fatos poderão ser melhor estabelecidos, mas se elas vierem a verificar-se, uma luz nova e interessante se projetará sobre toda a ciência da química.” 179. Clerk Maxw ell estava do lado de Stas: ele acreditava ser impossível que houvesse dois tipos de hidrogênio, “pois se algumas [moléculas] fos sem de massa ligeiramente maior do que outras, temos meios de separar as moléculas de massas diferentes, uma das quais seria um pouco mais densa do que a outra. Como isso não pode ser feito, temos de admitir [que todas são iguais]” (Maxwel, Theo r y of H eat, 1871). 180. Marignac, “Commentary on Stas’ Researches on the M Weig hts”, 1850.
utual Rela - tions of Atomic
181. 1886. Crooks, Di scurso Presiden cial Dirig ido à Seção de Química da Brit ish Association,
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é, devia haver alguma falsa suposição oculta adicional nas teorias “observacionais” em que se baseavam as “técnicas experimentais” para a purificação química e com cuja ajuda foram calculados os pesos atômicos; no entender de Crookes mesmo em 1886 “alguns pesos atômicos atuais representavam tão-somente um valor mé dio”. 182 Com efeito, Crookes prosseguiu no afã de dar a essa idéia uma forma científica (aumentadora de conteúdo): propôs novas teo rias concretas de “fracionamento”, um novo “Demônio classifica- dor”. 18 3 Infelizmente, todavia, suas novas teorias observacionais revelaram-se falsas quanto ousadas e, sendo antecipar umconstru fato ída). novo sequer,tão foram eliminadas da históri a daincapazes ciência (rade cionalmente Como se verificou uma geração depois, uma suposição oculta básica escapou aos pesquisadores: a de que dois elementos puros devem ser separáveis por métodos qu ími co s. A idéia de que dois elementos puros diferentes podem comportar-se de maneira idêntica em todas as reações qu ími ca s mas podem ser separados por métodos f ísi co s exigia uma mudança, uma “ exten são ” do conceito de “elemento puro” que constituía uma mudança — uma ex pa n são da ex ten são do c on cei t o — do próprio programa de pesquisa. 18 4 Essa tr ansf erên ci a revolucionária, altamente 18 S criativa, foi tomada apenas pela escola de Rutherford ; e então, “ depois de inú meras vicissitudes e das mais convincentes refutações aparentes, a hipótese levantada tão ligeiramente por Prout, médico de Edimbur- go, em 1815, tornouse, um século mais tarde, a pedra angular das modernas teorias da estrutura dos átomos”. 18 1 ’ Esse passo criativo, no entanto, foi, de fato, apenas um resultado colateral do progresso num programa de pesquisa diferente e, com efeito, distante; carecendo desse estímulo externo, os proutianos nunca pensaram em tentar, por exemplo, construir máquinas centrífugas poderosas para separar elementos. (Quando se elimina uma teoria “observacional” ou “interpre - tativa”, as mensurações “precisas” lev adas a ca bo no interior do re
182. Ibid. 183. Ibid., p. 491. 184. Sobre “estiramento de conceito”, cf. meu ensaio, “Proofs and Re - futations", 1963-4, parte IV. 185. A transferência é antecipada no fa scinante Relatório Apresentado à Reunião Geral Anual da Chemical Society, em 1888, por Crookes, onde ele indica que a solução deveria ser buscada numa nova demarcação entre o “físico” e o “químico”. Mas a antecipação permaneceu filosófica; coube a Rutherford e a Soddy o desenvolvimento dela e sua transformação, depois de 1919, em teoria científica. 186. Soddy, The I nte r preta tion of the Atom, 1932, p. 50.
ferencial desprezado podem parecer — considerando-as retrospectivamente — um tan to tolas. Soddy ridicularizou a “precisão experimental” a suas próprias custas: “Há, sem dúvida, algo semelhante a uma tragédia, ou capaz de transcendê-la, no destino que se abateu de repente sobre a obra a que dedicou sua vida a distinta galáxia de químicos do século XIX, reverenciados com razão pelos seus con temporâneos como representando o cúmulo da perfeição da mensu- ração científica exata. Os resultados que conseguiram com tanto es forço parecem, pelo menos por enquanto, tão despidos de interesse e de importância 18 7 coleção de garrafas, algumas quanto determinação peso vazias.” médio de uma cheias eaalgumas mais oudomenos Acentuemos que, à luz da metodologia dos programas de pesquisa aqui proposta, nunca houve uma razão racional para eliminar o programa de Prout. O programa, com efeito, produzia uma bela e progressiva transf erência, ainda que, 18 8 nos intervalos, surgissem consideráveis transtornos. Nosso esboço mostra como um programa de pesquisa pode desafiar um volume considerável de conhecimento científico aceito; plantado, por assim dizer, num ambiente hostil, pouco a pouco o sujeito se transformou. Outrossim , a história real do programa de Prout ilustra bem demais até que ponto o justificacionismo e o falseacionismo ingênuo estorvaram e ret ar dara m o
progresso da Uma ciência. (Aração oposição à teoria atômica século XIXsobre foi fomentada por ambos.) elabo da influência da má no metodologia a ciência pode ser um progra ma de pesq uisa recompensador para o historiador da ciência. (c 2) Bohr: um programa de pesquisa que progride sobre fundamentos inconsistentes. Um rápido resumo do program a de pesquisa de Bohr sobre a emisão da luz (no princípio da física quântica) ilustrará ainda mais — e até expandirá — nossa tese. 18 9
187. Ibid. 188. Esses transtornos induz em inevitavelmente muitos cien tistas individuais a arquivar ou a jogar fora o programa e a participar de outros programas de pesquisa em que acontece a heurística positiva oferecer, na ocasião, êxitos mais fáceis: a história da ciência não pode ser cabalmente compreendida sem a psicologia das multidões. (Cf. mais aba ix o, pp. 21922.) 189. Esta seção pode impressionar novamente o historiado r menos como esboço do que como caricatura; mas espero que sirva ao seu propósito (Cf. mais acima, p. 169). Alguns enunciados não devem ser tomados com uma pitada, senão com toneladas de sal.
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A história do programa de pesquisa de Bolir pode ser caracterizada por (1 ) seu problema inicial; (2) sua heurística negativa e sua heurística positiva; (3) os problemas que ele tentou resolver no decurso do seu desenvolvimento; e (4) seu ponto de degeneração (ou, se quiserem, seu “ponto de saturação") e, finalmente, (5) o programa pelo qual foi ultrapassado. O problema básico era o enigma de como os átomos de Ruther- ford (isto é, minúsculos sistem as planetários com elétrons que des crevem órbitas em torno de um núcleo positivo) podem permanecer estáveis; pois, de ac ordo com a teoria bem corr oborada Mawell - Lorentz também do eletromagnetismo, elesA deviam desintegrar-se. Mas adeteoria de Rutherford era bem corroborada. sugestão de Bolir consistia em ignorar por ora a incongruência e desenvolver conscien temente um programa de pesquisa cujas versões “refutáveis" fossem 11 incompatíveis com a teoria de Maxwell-Lorentz. '" Ele propôs cinco postulados como núcleo do seu programa: “(1) que a radiação de energia [no interior do átomo] não é emitida (nem absorvida) da maneira contínua presumida na eletrodinâmica comum, mas apenas durante a passagem dos sistemas entre diferentes estados “estacio nários". (2) Que o equilíbrio dinâmico dos sistemas nos estados estacionários é governado pelas leis ordinárias da mecânica, ao passo que essas leis não vigem em relação à passagem dos sistemas entr e os diferentes estados.estacionários (3) Que a radiação emitida durante deentre um sistema entre dois estados é homogênea, e que a ra transição elação a freqüência E c dada por E = liv, sendo li a v e a quantidade total de energia emitida constante de Planck. (4) Que os diferentes estados estacionários de um sistema simples, composto de um elétron que gira em torno de um núcleo positivo, são determinados por uma condição: que o quociente entre a energia total, emitida durante a formação da configuração, e a freqüên cia da revolução do elétron seja um múltiplo inteiro de l/2/i. Presumindo-se que a órbita do elétron é circular, essa suposição eqüivale à suposição de que o momento angular do elétron em h/2n . (5) Que o estado torno do núcleo é igual a um múltiplo inteiro de “permanente" de qualquer sistema atômico, isto é, o estado de máxima energia emitida, é
190. Isto. natu ralmente, é mais um argumento contra a tese de I. O. Wisdom de qu e as teorias metafísicas podem ser refutadas por uma conflitante e bem corroborada teoria científica (Wisdom, "The Refutability of Trrerulable’ Laws". 1963). Cf. também mais acima. p. 136. texto corresponden te à nota de r odapé n." 80, e pp. 154 -55.
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determinado por uma condição: que o momento angular de cada elétron em torno do centro de sua órbita seja igual a h/nr 1!M Temos de avaliar a diferença metodológica crucial entre a incompatibilidade introduzida pelo programa de Prout e a incompatibilidade introduzida pelo programa de Bohr. O programa de pesquisa de Prout declarou guerra à química analítica do seu tempo: sua heurística positiva destinava-se a derrubá-la e a substituí-la. Mas o programa dc pesquisa de Bohr não continha uma intenção semelhante: sua heurística positiva, ainda que fosse totalmente bem-sucedida, teria deixado sem solução a incompatibilidade com a teoria de 1 Maxwell-Lorentz. '-’Para sugerir uma idéia dessa natureza fazia-se mister uma coragem maior que a de Prout; a i déia cruzou a mente de Einstein mas este a achou inaceitável e I!,:l rejeitou-a. De fato, alguns dos mais importantes programas de pesquisa da história da ciência enxerta- vam-se em programas mais antigos com os quais eram francamente incompatíveis. Por exemplo, a astronomia coperniciana foi “enxer tada” na física aristotélica; o programa de Bohr foi enxertado no programa de Maxwell. Tais “enxertos" são irracionais para o justi ficacionista e para o falseacionista ingênuo, nenhum dos quais aprova o crescimento sobre fundamentos incompatíveis. Por isso são habitualmente escondidos por estratagemas ad hoc — como a teoria de Ga- lileu da inércia circular ou a correspondência de Bohr e, mais tarde, o princípio da complementaridade — cujo único propósito era escon der a “deficiência". 19 1 À medida que o jovem progra ma enxertado se fortalece, a coexistência pacífica c hega ao fim, a simbiose torna-se competitiva e os defensores do novo programa tentam substituir completamen te o velho programa. Talvez tenha sido o sucesso do seu “programa enxertado” que mais tarde induziu erroneamen te Bohr a acreditar que tais incompa tibilidades fundamen tais em programas de pesquisa podem e devem
191. Bohr, “On the Constitution of Atoms and Molecules", 1913, p. 874. 192. Bohr sustentava n essa ocasião que a teoria d e Maxw ell e Lorentz de ser substituída (a teoria do fóton de Einstein já indicara essa necessidade).
finalmente
teria
193. Hevesy, “Carta a Rutherford em 14.10.1913”; cf. também mais acima. p. 166, texto correspondente à nota de rodapé n.“ 170. 194. Em no ssa metodo logia não há necessidade de tais estratagemas protetores ad hoc. Por outro lado, eles serão inofensivos enquanto forem clara mente vistos como problemas e não como soluções.
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ser tolerados em princípio, que não apresentam nenhum problema sério e que basta a gente acostumar-s e com elas. Bohr tentou, em 1922, abaixa r os padrões da crítica científica; argumentava ele que “o máximo que se pode exigir de uma teoria [isto é, programa] é que a classificação [que ela estabelece] seja empurrada tão longe que possa contribuir para o desenvolvimento do campo de observação pela predição de novos fenômenos." 19 5 (Esse enunciado de Bohr é semelhante ao de d’Alembert quando se lhe deparou a incompatibilidade nos fundamen tos da teoria infi - nitesimal: “Allez en avant et la foi vous viendra." De acordo com Margenau, “é compreensíve l que, na excitação provocada pelo êxito, os homens passassem por alto uma malformação na arquitetura da teoria; pois o átomo de Bohr se apoia como uma torre barroca 19 8 na base gótica da eletrodinâmica clássica.” Na realidade, porém, a “malformação” não foi “passada por alto”: todos tinham consciên cia dela, e apenas a ignoraram — mais ou menos — durante a fase progressiva do programa. 197 Nossa metologia de programas de pesquisa mostra a racionalidade dessa atitude, mas também mostra a irracionalidade da defesa de tais “malformações” depois de encerrada a fase progressiva. Nesse ponto, deve-se ressaltar que nas décadas de 30 e 40 Bohr abandonou a exigência de “novos fenômenos” e preparou -se para “proceder à tarefa imediata de coordenar as múltiplas evidências relativas aos fenômenos atômicos, que se acumulavam dia a dia na exploração desse novo campo de conhecimento”. 108 Isso indica que Bohr, a esse tempo, voltara a “salvar os fenômenos”, ao passo que Einstein insistia, sarcástico, em que “toda teoria é verdadeira contanto que se associem adequadamente seus símbolos com quantida des observadas”. 19 9 ) Mas a compatibilidade — num sentido forte do termo 20 0 — deve continuar a ser um princípio regulador importante (acima do
195. Bohr, "The Structure of the A tom” , 1922; o grifo é meu. 196. Margenau, The Natur e o f Phys ical Reality, 1950, p. 311. 197. Sommerfeld ignorou-o mais do que Bohr: cf. mais adian te, p. 185, nota de rodapé n.° 227. 198. Bohr, “Discussion with Einstein on Epistemological Problems in Atomic Physics ”, 1949, p. 206. 199. Citado em Schrõd inger, " Might p erhaps Energy be merely a Stat is - tical Concept?”, 1958, p. 170. 200. Duas propo sições serão inconsistentes s e sua conjunção não tiver modelo, isto é , se não houver interpretação dos seus termos desc ritivos em que a conjunção é verdadeira. Mas no discurso informal empregamos maior
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requisito da transferência progressiva de problemas); e as inconsistências (incluindo anomalias) devem ser vistas como problemas. A razão é simples. Se a ciência visa à verdade, deve visar à consistência; se ela renuncia à consistência, renuncia à verdade. Afirmar que “devemos ser modestos em nossas exigências”, 20 1 que devemos resignar-nos às inconsistências — fracas ou fortes — continua a ser um vício metodológico. Por outro lado, isso não quer dizer que a descoberta de uma inconsistência — ou de uma anomalia — precisa deter imediatamente o desenvolvimento de um programa: pode ser racional colocar a ad hoc, e prosseguir com a heurística inconsistência em quarentena temporária, positi va do programa. Isso tem sido feito até em matemática, como o revelam os exemplos dos primórdios do cálculo infinitesimal e da teoria ingênua de conjuntos 20 2
número de termos formativos do que no discurso formal: a alguns termos descritivos se dá uma interpretação fixa. Nesse sentido informal duas proposições podem ser (fracamente) inconsistentes em face das interpretações comuns de alguns termos característicos ainda que formalmente, numa interpretação não- -tencionada, elas possam ser consistentes. Por exemplo, as primeiras teorias do spin eletrônico eram inconsistentes com a teoria especial da relatividade se se desse a “spin” sua interpretação comum (“forte”) e ele fosse, por esse modo, tratado como um termo formativo; mas a incompat ibilidade desaparece quando “spin” é tratado como um termo descritivo não-interpretado. A razão por que não devemos renunciar com demasiada facilidade às interpretações comuns é porque essa emasculação de significados pode emascular a heurística positiva do programa. (Por outro lado, tais transferências de significado podem ser progressivas em alguns casos: cf. mais acima, p. 154.) Sobre a demarcação progressiva entre os termos formativos e descritivos no discurso informal, cf. meu ensaio, “Proofs and Refu tations”, 1963 -4, 9 (b), especialmente p. 335, nota de pé de página n.° 1.
201.
Bohr, "The Structure of the Atom”, 1922, último parágrafo.
202. Os falseacionistas ingênuos tendem a considerar esse liberalismo co mo um crime con tr a a r azão. O seu principal a rgumento reza deste teor: “Se tivéssemos de aceitar contradições, teríamos abrir mão a espécieprovando de atividade queadmitirem significariadois um colapso total da de ciência. Issodepode toda mostrar-se que científica: seo se enu nci ados contr aditóri os, qual que r ti po de e nu nci ado te r áde ser admiti do-, pois de um par de enunciados contraditórios se poderá inferir validamente qualquer enunciado, seja ele qual for... Uma teoria que envolve uma contradição, por conseguinte, é inteiramente inútil como tiça que se frise que Popper, aqui, teoria” (Popper, “What is Dialectic?”, 1940). Manda a jus está argumentando contra a dialética hege- liana, em que a inconsistência se torna uma virtude; e es tá absolutamente certo qu ando lhe assinala os perigos. Mas Pop per nunca analisou padrões de progresso empírico (ou não-empírico) sobre fundamentos inconsistentes; com efeito, na seção 24 da sua Logik de r F ors chung (1934), ele faz da consistência e da falseabilidade requisitos obrigatórios de qualquer teoria científica. Discuto esse problema mais circunstanciadamente em meu ensaio intitulado “History of Science and its Rational Reconstruction s”, de 1970.
(Desse ponto de vista, o “princípio de correspondência” de Bohr desempenhou interes sante papel duplo em seu progr ama. De um lado, funcionou como princípio heurístico importante, que sugeriu inúmeras hipóteses científicas, as quais, por seu turno, conduziram a fatos novos, mormente no 20 3 campo da intensidade das linhas do espectro. De outro lado, funcionou também com o mecanismo de defesa, que “tentou utilizar na máxima extensão os conceitos das teorias clássicas da mecânica e da eletrodinâmica, a despeito do 20 4 contraste entre essas teorias e o quantum de ação”, em lugar de enfatizar a urgência de um programa unificado. Nesse segundo papel reduziu o grau de problematicidade do pr ograma. 20 5 ) Não há dúvida de que o pr ograma de pesquisa da teoria quân - tica como um todo foi um “programa enxertado” e, por conseguinte, repugnante aos físicos de concepções profundamente conservadoras, como Planck. Existem duas posições extr emas e igualmente irracionais em relação ao pr ograma enxertado. A posição conservadora consiste em sustar o novo programa até que a incompatibilidade básica com o velho tenha sido, de um modo ou de outro, reparada: é irracional trabalhar sobre fundamentos incompatíveis. Os “conservadores” concentrarão seus esforços em eli minar a incompatibilidade explicando (aproximadamente) o postulado do novo programa em termos do velho: parece-lhes irracional continuar com o novo programa sem uma redução bem-sucedida do gênero mencionado. O próprio Planck escolheu esse ca minho. Não teve êxito, apesar da década de trabalho intenso que lhe dedicou. 20 ' 1 Por conseguinte, a observação de Laue, segundo a qual sua palestra do dia 14 de dezembro de 1900 foi “a data do nascimento da teoria quântica” não é totalmente exata: essa foi a data do nascimento do
Cf., po r ex emplo, K ramers, "D as Ko rrespondenzprinzip und der Schalenbau des Atoms”,203. de 1923. 204. Bohr, "Light and Lif e”, 1933. 205. Em seu ensaio de 1954, "The Statistical Interpretation of Quantum Mechanics”, Born apresenta um vigoroso relato do princípio de correspondência que sustenta robustamente essa dupla avaliação: “A arte de adivinhar fórmulas corretas, que se a partam das clássicas e que, no entanto, as contêm como um caso -limite. .. foi levada a um alto grau de perfeição.” 206. Sobre a história fascinante dessa longa série de malogros frustrantes, cf. Whittaker, H isto ry of the The ories of A ether and El ectri city (1953), vol. II, pp. 103-4. O próprio Planck dá uma dramática descrição desses anos: “Minhas fúteis tentativas de enquadrar o quantum elementar de ação na teoria clássica continuaram por alguns anos e me custaram grande soma de esforços. Muitos dos meus colegas viram nisso algo que beirava a tragédia...” (Planck, Scientifi c Autobiography, 1947).
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programa de redução de Planck. A decisão de prosseguir com fun damentos temporariamente incompatíveis tomou-a Einstein em 1905, mas até ele hesitou em 1913, quando Bohr voltou a fazer progressos. A posição anárquica em relação a programas enxertados é louvar a anarquia nos fundamentos como virtude e considerar a incompatibilidade [fraca] propriedade básica da natureza ou limitação final do conhecimento huma no, como o fizeram alguns seguidores de Bohr. A posição racional é melhor caracterizada pela posição de Newton, que enfrentou uma situação até certo ponto semelhante à situação discutida. A mecânica cartesiana do impulso, em que foi srcinal mente enxertado o programa de Newton, era (fracamente) incompatível com a teoria newtoniana da gravitação. Newton trabalhava não só em sua heurística positiva (com êxito) mas também num programa reducionista (sem êxito), e desaprovou tanto os cartesianos que, como Huyghens, entendiam não valer a pena perder tempo com um programa “ininteligível”, quanto alguns dos seus dis cípulos temerários que, como Cotes, entendiam que a incompatibilidade não apresentava problema algum. 20 7 A posição racional em relação a programas “enxertados ” é , pois, explorar lhes a força heurística sem se resignar ao caos fundamental em que ela está crescendo. De um modo geral, essa atitude dominou a velha teoria quântica de antes de 1925. Na nova teoria quântica, pós1925, a posição “anarquista” passou a dominar e a física quân tica moderna, em sua “interpretação de Copenhague”, tomou-se um dos principais porta-estandartes do obscurantismo filosófico. Na nova teoria, o notório “princípio de complementaridade” de Bohr entro - nizou a incompatibilidade [fraca] como um traço básico e final da natureza, e fundiu o positi vismo subjetivista, dialética antilógica e até a filosofia da linguagem comum numa aliança ímpia. Depois de 1925, Bohr e seus colaboradores introduziram uma nova e sem precedentes diminuição dos padrões críticos para teorias científicas. Isto levou a uma derrota da razão dentro da física moderna e a um culto
207. Está visto que um programa reduci onista só é cien tífico qu ando explica mais do que se propunha explicar; a não ser assim, a redução n ão écientífica (cf. Popper, "A Realist View of Logic, Physics and History”, 1969). Quando a redução não produz um novo conteúdo empírico e muito menos fatos novos, a redução representa uma transferência degenerativa de problema — é um mero exercício lingüístico. Os esforços cartesianos para apoiar sua metafísica a fim de poder interpretar a gravitação newtoniana em seus termos, representam um exemplo notável de uma redução dessa natureza puramente lingüística. Cf. mais acima, p. 155, nota de rodapé n.° 140.
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anarquista do caos incompreensível. Einstein protestou: “A tranqüi lizante filosofia — ou religião? — de Heisenberg-Bohr é tão delicadamente planejada 20 8 que, por ora, fornece um macio travesseiro para o verdadeiro crente”. Por outro lado, os padrões demasiado altos de Einstein podem muito bem ter sido a razão que o impediu de descobrir (ou talvez apenas de publicar) o modelo de Bohr e a mecânica ondulatória. Einstein e seus aliados não venceram a batalha. Os compêndios de física, hoje em dia , estão cheios de enunciados como este: “Os dois pontos de vista, a força quântica e a força do campo eletromagnético são complementares no sentido de Bohr. Essa complementaridade é uma das grandes consecuções da filosofia natural em que a interpretação de Copenhague da epistemologia da teoria quântica resolveu o conflito secular entre as duas teorias da luz, a teoria corpuscular e a teoria ondulatória. Desde as propriedades de reflexão e de propagação retilínea de Hero de Alexandria no primeiro século d e nossa era, diretamente através das propriedades interferen ciais e e ondulatórias de Young e Maxwell no século XIX, essa controvérsia estendeu-se violenta. A eoria çuântica da radiação, durante o último meio século, de uma forma notavelmente hegeliana, solucionou completamente a dicotomia”. 20 9
208. Einstein, Carta a Schrõdinger de 31.5.1928. Entre os críticos do “anarquismo" dc Copenhague deveríamos mencionar — alem de Einstein — Popper, Landé, Schrõdinger, Margenau, Blokhinzev, Bohm, Fényes e Jánossy. Sobre uma defesa da interpretação de Copenhague, cf. Hcisenberg, “The De - velopment of the lnterpretation of Quantum Theory", 1955; sobre uma crítica enérgica e recente, cf. Popper, “Quantum Mechanics without ‘The Òbserver"', 1967. Em seu ensaio de 19689, “On a Recent Critique of Complementarity”, Feyerabend se utiliza de algumas inconsistências e vacilações da posição de Bohr para um tosco falseamento apologético da filosofia de Bohr. Feyerabend desfigura a atitude crítica de Popper, Landé e Margenau em relação a Bohr, não dá ênfase suficiente à oposição de Einstein e parece ter-se esquecido completamente de que, em alguns dos seus primeiros trabalhos, ele era mais poppe- riano do que o próprio Popper acerca dessa questão.
209. Power, lntroduclory Quantum Electrodynamics, 1964, p. 31 (o grifo é meu). é tomado aqui de forma literal. Como lemos em Nature (222, 1969, pp. 10345): “É absurdo pensar que qualquer elemento fundamental da teoria [quântica] pode ser falso.. Os argumentos de que os resultados ci ent ífi cos são sempre temporários não procedem. Temporárias são as concepções dos filósofos sobre a física moderna, porque eles ainda não compreenderam quão profundamente os descobrimentos da física quântica influem em toda a epistemologia... A afirmativa de que a linguagem comum é a última fonte da não-ambigüidade da descrição física verifica-se da maneira mais convincente pelas condições observacionais da
“Completamente”
física quântica.” 179
Voltemos agora à lógica da descoberta da velha teoria quântica e, em particular, concentr emo-nos em sua heurística positiva. O plano de Bohr era descobrir primeiro a teoria do átomo de hidrogênio. Seu primeiro modelo devia basear-se num núcleo fixo de próton com um életron numa orbita circular; em seu segundo modelo ele quis c alcular uma órbita elíptica num plano fi xo; depois, pretendeu eliminar as restrições claramente artificiais do núcleo fixo e do plano fixo; depois, pretendeu eliminar as restrições claramente artificiais do núcleo fixo e do plano fixo; em seguida, pensou em tomar em consideração o possível giro do elétron 21 0 e, por fim, esperou estender o seu programa à estrutura de átomos e moléculas complicadas e ao efeito de campos eletromagnéticos sobre eles, etc., etc. Tudo isso estava planejado desde o princípio: a idéia de que os átomos eram análogos a sistemas planetários prenunciou um longo, difícil mas 21 1 otimista programa e indicou claramente a política de pesquisa. “Dir -se-ia nessa ocasião — no ano de 1913 — que a chave autêntica dos espectros fora finalmente encontrada, como se apenas* fossem necessários tempo e paciência para resolver completamente os seus enigmas.” 21 2 O famoso primeiro ensaio de Bohr, em 1913, continha o passo inicial do programa de pesq uisa. Continha o seu primeir o modelo (chamar -lhe-ei M { ) que já predizia fatosde até não-preditos por denenhuma anterior: os comprimentos ondaentã daso linhas do espectro emissão teoria do hidrogênio. Conquanto alguns desses comprimentos de ondas fossem conhecidos antes de 1913 — a série de Balmer (1885) e a série de Paschen (1908) — a teoria de Bohr predizia muit o mais do que as duas séries conhecidas. E os testes
210. Isso é reconstrução racional. Em re alidade, Bohr só aceitou essa idéia em su a Carta a Nature de 1926. 211. Além dessa analogia, havia ou tra idéia básica na heurística positiva de Bo hr: o "princípio da correspondência”, que ele já indicava em 1913 (cf. o segundo dos seus cinco postulados citados acima, à p. 173), mas que só desenvolveu mais tarde, quando passou a usálo como princípio orientador na solução de alguns problemas dos modelos sofisticados mais recentes (como as intensidades e os estados de polarização). Uma singularidade dessa segunda parte da sua heurística positiva era que Bohr não acreditava na sua versão metafísica: supunha tratar-se de uma regra temporária até a substituição do e letromagnetismo clássico (e possivelmente da mecânica). 212. Davisson, "The Discovery of Electron Waves”, 1937. Euforia semelhante foi experimentada por MacLaurin em 1748 diante do programa de New ton: “fundando -se na experimentação e na demonstração, a filosofia [de Newton] não falhará enquanto a ra zão ou a natureza das coisas não tiverem mudado... [Newton] deixou à posteridade pouco mais para fazer além de observar o céu e computar de acordo com o s seus modelos” (MacLaurin, Ac co un t of Si r Is aa c Ne wt on ’s Ph il os op hi ca l Di sc ov er i es , 1748, p. 8).
180
logo corroboraram o seu novo conteúdo: uma série adicional de Bohr foi descoberta por Lyman em 1914, outra por Brackett em 1922 e uma terceira por Pfund em 1924. Visto que as séries de Balmer e Paschen eram conhecidas antes de 1913, alguns historiadores apresentam a história como exemplo de “ascensão indutiva” baconiana: (1) o caos das linhas do espectro, (2) uma “lei empírica” (Balmer), (3) a explicação teóri ca (Bohr). Isto se parece, os tr “pavimentos” (“floors”) de sem Whewell. Mas o progressosemda dúvida, ciência com pouco seêsteria atrasado se nos faltas os louváveis ensaios e erros do engenhoso mestre-escola suíço: a linha principal especulativa da ciência, levada adiante pelas ousadas especulações de Planck, Rutherford, Einstein e Bohr teriam produzido dedutivamente os resultados de Balmer, como enunciados- - testes de sua teoria, sem o chamado “pioneirismo” de Balmer. Na reconstrução racional da ciência há escassa recompensa para os trabalhos dos descobrido res de “conjeturas ingênuas”. 21 3 Na verdade, o problema de Bohr não consistia em explicar as séries de Balmer e Paschen, mas em explicar a estabilidade paradoxal do átomo de Rutherford. Além disso, Bohr nem sequer ouvira falar nessas fórmulas antes de 21 4
escrever a primeira versão do seu trabalho. Nem todo o conteúdo novo do primeir o modelo de Bohr foi corroborado. O de Bohr, por exemplo, afirmava predizer todas as linhas do espectro de emissão do hidrogênio. Mas havia uma prova experimental da existência de uma série de hidrogênio, ao passo que, de acordo com a M\ de Bohr, não deveria haver nenhuma. A série anômala era a série ultravioleta de Pickering -Fowler.
213. Uso aqui “conjectura ingênua” como t ermo técnico no sentido do meu ensaio “Proofs and Refutations”, de 1963 -4. Sobre o estudo de um caso e uma crítica minuciosa do mito da “base indutiva” da ciência (natural ou matemática) cf. ibid., seção 7, especialmente pp. 298- 307, onde mostro que a “conjectura ingênua” de Descartes e Euler de que para todos os poliedros V — E+F=2 era irrelevante e supérflua para o desenvolvimento ulterior; como exemplos adicionais podemos mencionar que os esforços de Boyle e seus sucessores para estabelecer pv = RT não influíram no desenvolvimento teórico ulterior (a não ser para desenvolver algumas técnicas experimentais), assim como as três leis de Kepler podem ter sido supérfluas para a teoria newtoniana da gravitação. Sobre uma discussão adiciona] desse ponto, cf. mais adian te, p. 216.
1966. 214.
Cf. Jammer, The Conce ptual D evelopment of Quant um M echani cs,
181
Pickering descobriu essa série em 1896 no espectro da estrela Puppis. Fowler, depois de haver descoberto sua primeira linha também no sol em 1898, produziu tod a a série num tubo de descarga que conti nha hidrogênio e hélio. É verdade que se poderia argumentar que a li nha-monstro nada tinha que ver com o hidrogênio — - afinal de contas, o sol e Puppis contêm muitos gases e o tubo de não poderia ter sido descarga também continha hélio. Efetivamente, a linha produzida num tubo de hidrogênio puro. Mas a “técnica experimental” de Pickering e Fowler, que conduziu a uma hipótese falseadora da lei de Balmer, possuía uma base teórica plausível, embora nunca severamente te stada: (a) a série deles tinha o mesmo número de convergência da série de Balmer e, portanto, foi conside rada como uma série de hidrogênio e ( b ) Fowler deu uma explicação plausível da razão por que o hélio não poderia ser responsável pela produção das séries. 21 5 Bohr, todavia, não ficou muito impressionado com os físicos experimen tais “autorizados”. Não lhes contestou a “precisão experimental” nem a “fidedignidade das observações”, mas contestou -lhes a teoria observacional. Na verdade, propôs uma alternativa. Primeiro, elaborou um novo modelo ( M 2 ) do seu programa de pesquisa: o modelo do hélio ionizado, com um próton duplo a cuja volta um elétron descrevia uma órbita. Ora, esse modelo prediz uma série ultravioleta no espectro do hélio ionizado que coin cid e com a série de PickeringFowler. Isso constituía uma teoria rival. Bohr sugeriu, então, uma “experiência crucial”: predisse que a série de Fowler pode ser produzida, possivelmente com linhas até mais fortes, num tubo cheio de uma mistura de hélio e cloro . Ademais, explicou aos
215. Fowler, "Observatio ns o f th e Principal and Other Series of Lines in the Spectrum of Hydrogen”, 1912. Incidentemente, sua teoria “observacional” foi propiciada pelas “investigações teóricas de Rydberg”, que, “na ausên cia de uma prova experimental rigorosa, [ele] considerava como justificativa de [sua] conclusão [experimental] ” (p. 65). Mas seu colega teórico, o Professor Nicholson, referiuse três meses depois aos achados de Fowler como “con firmações de laboratório da deduçã o teórica de Rydberg” (Nicholson, “A Po - ssible Extension of the Spectrum of Hydrogen”, 1913). Essa historieta, creio eu, corrobora minha tese favorita de que a maioria dos cientistas tende a entender um pouco mais de ciência do que os peixes de hidrodinâmica. No Relatório do Conselho Endereçado à Nonagésima Terceira Reunião Geral Anual da Royal Astronomical Society, a “observação [de Fowler] em experiências de laboratório” de novas “linhas de hidrogênio que durante tan to tempo se furtaram aos esforços dos físicos” é descrita como “um progresso de grande interesse” e como “um triunfo do trabalho experimental bem diri gido”.
182
experimentadores, sem sequer olhar para o aparelhamento deles, o papel catalisador do hidrogênio na experiência de Fow ler e de clo ro na experiência por 21 6 ele sugerida. Em realidade, ele estava certo. 21 7 Dessa maneira, a primeira derrota aparente do programa de pesquisa converteu-se numa vitória retumbante. A vitória, contudo, foi i mediatamen te posta em dúvida. Fowler reconheceu que sua série não era uma série de hidrogênio, mas uma série de hélio. 21 8 Assinalou, porém, que o ajustamento-monstro de Bohr ainda falhava: os comprimentos de ondas na série de Fowler diferem significativamente dos valores preditos pela M2 de Bohr. Desse modo, a série, embora não refute A/,, ainda refuta M 2 e, mercê da íntima conexão entre M, e M2, solapa M,! 21 9 Bohr rejeitou o argumento de Fowler: é claro que ele nunca pretendera que M 2 fosse levado muito a sério. Seus valores tinham por base um cálculo tosco, baseado no elétron que descrevia uma órbita em torno de um núcleo fixo; é claro que essa órbita se descreve em torno do centro comum de gravidade; é claro que cumpre substituir, como acontece quando se enfrentam problemas de dois corpos, a massa por ma ssa reduzida: m’ e = m e / [1 + ( m / e mn)]. 22 8 Esse modelo modificado era o M 3 de Bohr. E o próprio Fowler precisou admitir que Bohr tinha razão outra vez. 221 aparente refutação de M 2 converteu-se numa vitória para que MA 2 e teriam sido des envolvidos dentro do progra
M }\ e era claro
216. Bohr, Carta a Rutherford de 6.3.1913. 217. Evans, “The Spectra of Helium and Hydrogen”, 1913. Sobre um exemplo semelhante de um físico teórico que ensina um experimentador amante de refutações o que ele — experimentador — realmente observara, cf. mais acima, p. 160, neta de pé de página n.° 153. 218. Ajustamento-monstro: transformar um exemplo contrário, à luz de uma nova teoria, em um exemplo. Cf. meu ensaio. “Proofs and Refutations’’, de 1963 -4, pp. 127 e seguintes. Mas o "ajustamento- monstro” de Bohr era em - piricamente “progressivo”: predizia um fato novo (o aparecimento da linha 4686 em tubos que não continham hidrogênio). 219. Fowler, “The Spectra of Helium and Hydrogen”, 1913. 220. Bohr, “The Spectra of Helium and Hydrogen”, 1913. Esse ajustamento-monstro também era “progressivo”: Bohr predisse que as observações de Fowler deviam ser ligeiramente imprecisas e que a "constante” de Rydberg devia ter uma es trutura fina. 221. Fowler, “The Spectre of Helium and Hydrogen”, 1913. Mas ele notou, cético, que o programa de Bohr ainda não explicara as linhas do espectro do hélio comum, não- i on i zado. Entretanto, logo abandonou o seu ceticismo e entrou a participar do programa de pesquisa de Bohr (Fowler, “Series Lines in Spark S pectra”, 1914) .
183
ma de pesquisa — talvez até M n ou M 20 — sem nenhum estímulo da observação ou da experiência. Foi nessa fase que Einstein disse da teoria de Bohr: “É uma das maiores descobertas.” 22 2 O programa de pesquisa de Bohr continuou, então, como fora planejado. O passo seguinte consistia em calcular órbitas elípticas. Isso foi feito por Sommer feld em 1915, mas com um resultado inespe rado: o número aumentado de possíveis órbitas regulares não aumentou o número de possíveis níveis de energia, de modo que parecia não haver possibilidade de uma experiência crucial entre a teoria elíptica e a circular. Entretanto, os elétrons descrevem órbitas em torno do núcleo com altíssima velocidade de sorte que, ao acelerarem seu movimento, sua massa deve mudar de maneira notável, se a mecânica einsteiniana for exata. Com efeito, calculando tais correções relativistas, Sommerfeld conseguiu um novo conjunto de níveis de energia e, assim, a “estrutura fina” do espectro. A transferência para o novo modelo relativista exigia muito maior habilidade matemática e muito mais talento do que o desenvolvimento dos primeiros modelos. A realização de Sommerfeld foi principalmente matemática. 22 3 Por curioso que pareça, as duplicações do espectro de hidrogênio já tinham 22 4 Moseley assinalou imediatamente sido descobertas em 1891 por Michelson. após a primeira publicação de Bohr que “ela não explica a segunda linha mais 22 5 fraca encontrada em cada espectro”. Bohr não se deixou impressionar, convencido que estava de que a heurí stica positiva do seu programa de pesquisa, 221 a seu tempo, explicaria e até corrigiria as observações de Michelson. ’’ E foi o que aconteceu. A teoria de Sommerfeld, naturalmente, era incompatível com as primeiras versões de Bohr; as experiências da estrutura fina — com as velhas observações corrigidas! — forneceram a prova crucial em seu favor. Inúmeras derrotas dos primeiros modelo s de Bohr
222. Cf. Hevesy, “Carta a Rutherford de 14.10.1913” . “Quando eu lhe falei do espectro de Fowler, os grandes olhos de Einstein pareceram maiores ainda e ele me disse: “Nesse caso é uma das maiores descobertas.” 223.
Sobre o s aspecto s matemát icos v itais dos pro gramas d e pesqui sa, v eja mais acima,
p. 168. 224. Michelson, “On the Application of Interference Methods to Spec - troscopic Measurements, I- II”, 1891 -2, especialmente as pp. 287-9. Michelson nem sequer menciona Balmer. 225. Moseley, “Letter to Nature”, 1914. 226.
184
Sommerfeld, “Zur Quantentheorie der
Spektrallinien”, 1916, p. 68.
foram convertidas por Sommerfeld e sua escola de Munique em vitórias do progra ma de pesq uisa de Bohr. É interessante notar que, assim como Einstein se aborreceu e moderou sua marcha no meio do progresso espetacular da física quân- tica por volta de 1913, Bohr se aborreceu e moderou sua marcha por volta de 1916; e assim como Bolir, em 1913, tomara a iniciativa de Einstein, assim Sommerfeld tomou a iniciativa de Bohr em 1916. A diferença entre a atmosfera da escola de Copenhague de Bohr e a da escola de Munique de Somm erfeld era notável: “A [escola de] Munique usava formulações mais concretas e era, portanto, compreendida com maior facilidade; fora bem sucedida na sistematização dos espectros e no emprego do modelo vetorial. [A escola de] Copenhague, no entanto, acreditava que ainda não se descobrira uma linguagem adequada para os novos [fenômenos], mostrava-se reticente em face de formulações demasiado definidas, expressava-se com maior cautela e em termos mais gerais e era, portanto, muito mais difícil de compreender.” 22 7 Nosso esboço mostra que uma transferência progressiva pode empr estar credibilidade — e uma base lógica — a um programa inconsistente. Em seu necrológio de Planck, Born descreve com vigor esse processo: “Claro está que a mera introdução do quantum de ação não signi fica ainda que se estabeleceu uma verdadeira Teoria Quân- tica. . . Já aludimos às dificuldades que a introdução do quantum de ação na teoria clássica solidamente estabelecida encontrou desde o princípio. Elas tê m aumentado gradativamente em vez de diminuir; e conquanto a pesquisa em sua marcha, tenha passado por cima de algumas, as lacunas restantes na teoria são as que mais consternam o físico teórico consciencioso. Com efeito, o que na teoria de Bohr serviu como base das leis de ação foram hipóteses que todo físico da geração anterior, teria sem dúvida, categoricamente rejeitado. Poder-
227. Hund, “Gõttingen, Copenhagen, Leipzig im Rückblick”, 1961. Isto é discutido com alguns pormenores no ensaio de Feyerabend intitulado “On a Recent Critique of Complementari ty”, de 1968 -9, pp. 83-7. Mas o trabalho de Feyerabend é pesadamente preconceituoso. O objetivo principal da sua análise é passar por alto o anarquismo metodológico de Bohr e mostrar que Bohr se opun ha à interpretação de Copenhague do novo (depois de 1925) programa quântico. A fim de fazê-lo, Feyerabend, de um lado, dá uma ênfase exagerada à infelicidade de Bohr no que concerne à inconsistência do velho (anterior a 1925) programa quântico e, de outro lado, empresta demasiada importância ao fato de Sommerfeld preocupar-se menos do que Bohr com a problematicidade dos fundamentos inconsistentes do velho programa.
185
se-ia conceder perfeitamente que, dentro do átomo, certas órbitas quan- tizadas (isto é, escolhidas pelo princípio quântico) desempenhassem um papel especial; mas algo menos fácil de aceitar era a suposição adicional de que os elétrons que se movem nessas órbitas curvilíneas e, portanto, acelerados, não irradiam energia. Mas um teórico que tivesse sido educado na escola clássica teria considerado monstruoso e quase inconcebível que a freqüência do quantum de luz emitida fosse diferente da freqüência do quatum emissor. Mas como são os números as transferências de problemas que decidem, viraram-se[ouas melhor, mesas. Embora no princípioprogressivas fosse uma questão de ajustar] com o menor esforço possível um elemento novo e estranho num sistema existente geralmente considerado estabelecido, o intruso, depois de haver conquistado uma osição segura, assumiu a ofensiva', e agora parece estar a pique de mandar pelos ares o velho sistema em algum ponto. A única pergunta que se pode fazer é esta: 22 8 em que ponto, e até que ponto, isso acontecerá? Uma das coisas mais importantes que s e aprendem estudando os programas de pesquisa é que relativamente poucas experiências são de fato importantes. A orientação heurística que o físico teórico recebe de testes e “refutações” é de ordinário tão trivial que o procedimento de teste em larga escala — ou até uma excessiva dados já disponíveis — digam pode ser perda de tempo. Napreocupação maioria dos com casososdispensamos refutações que nos queuma a teoria está urgentemente necessitada de substituição: a heurística positiva do programa nos impele para a frente de qualquer maneira. De mais a mais, dar uma severa “interpretação refutável” à versão incipiente de um programa é uma perigosa crueldade metodológica. As primeiras ver sões podem até “aplicar -se” somente a casos “ideais” não -existentes; pode-se levar decênios de trabalho teórico para chegar aos primeiros fatos novos e mais tempo ainda para chegar a versões interessantemente testáveis dos programas de pesquisa, na fase em que as refutações já não são previsíveis à luz do próprio programa. A dialética dos programas de pesquisa, portanto, não é necessariamente uma sérieentre alternada de conjecturas especulativas empíricas. A pode interação o desenvolvimento do programa e as e refutações verificações emp íricas ser muito variada — o modelo realmente realizado depende apenas do acidente histórico. Permitam-nos mencionar três variantes típicas.
228. meus.
186
Bom, “Max Karl Ernst Ludwig Planck”, 1948, p. 180;
os grifos são
(1) Imaginemos que cada uma das três primeiras versões consecutivas, H1, H 2 , H 3 prediz alguns fatos novos com êxito mas outros sem êxito, isto é, cada versão é corroborada e, por seu turno, refutada. Finalmente se propõe H 4 , que prediz alguns fatos novos mas resiste aos testes mais severos. A transferência de problemas é progressiva e também temos um excelente exemplo em que se 239 alternam popperiana- mente conjecturas e refutações. As pessoas admirarão esse fato como um exemplo clássico de trabalho teórico e experimental que caminha de mãos dadas. (2) Outro modelo poderia ter sido um Bohr solitário (possivelmente sem que Balmer o precedesse), elaborando H 1, H2 , H 3 , H 4 mas, por uma questão de autocrítica, retendo a publicação até H . Depois H 4 é testado: todas as evidências 4 se revelam corroborações de H 4 , a primeira (e única) hipótese publicada. O teórico — sentado à sua mesa — é visto aqui trabalhando à frente do experimentado r: temos um período de relativa autonomia do progresso teórico. (3) Imaginemos agora que todas as evidências empíricas mencionadas nesses três modelos já estão ali ao tempo da invenção de H , H 1 2 , H 3 , H 4 . Nesse caso, H 1, H 2 , H 3 e H 4 não representarão uma transferência de problemas empiricamen te progressiva e, portanto, embora todas as evidências lhe apoiem as teorias, o cientista precisa continuar a trabalhar para provar o valor científico do seu programa. 23 0 Tal estado de coisas pode ser provocado por já ter um programa de pesquisa mais antigo (desafiado pelo que conduziu a H , H 1 2 , H 3 , H 4 ) produzido todos esses fatos — ou por haver dinheiro em demasia, do governo, destinado à obtenção de dados acerca das linhas do espectro, tendo as tentativas tropeçado com todos os dados. O último caso, todavia, é muito pouco provável pois, como Cullen costumava dizer, “o número de fatos falsos, à solta pelo mundo, excede infi nitamente o das teorias falsas” 23 1 ; na maioria desses casos o progra ma de pesquisa colidirá com os “fatos” disponíveis, o teórico exami
229. Nos tr ês primei ros mo delos não envolvemos complicações tais como apelos bem sucedidos contra o veredito dos cientistas experimentais. 230. Isso mostra que se as mesmas teorias e a mesma evidência forem ra cionalmente reconstruídas em diferentes ordens de tempo, poderão constituir uma transferência progressiva ou uma transferência degenerativa. Cf. também meu ensaio “Changes in the Problem of Inductive Logic”, de 1968, p. 387. 231. Cf. McCulloch, The Prin cipies of Poli tical E conomy : W ith a Sketc h of th e Ri se and Pr ogr ess of t he S ci ence , 1825, p. 21. S obre um vigoroso argumento acerca da extrema improbabilidade de um
modelo dessa natureza, veja
mais aba i xo, pp. 156-7.
187
nará as “técnicas experimentais” do experimentador e, tendo derru bado e substituído suas teorias observacionais, corrigirá seus fatos produzindo, por essa meneira, fatos novos.' 232 Concluída essa excursão metodológica, voltemos ao programa de Bohr. em todos os desenvolvimentos do programa foram previstos e planejados no esboçar-se pela primeira vez a heurística positiva. Quando algumas lacunas curiosas apareceram nos modelos sofisticados de Sommerfeld (algumas linhas perdidas nunca apareceram), Paulo propôs uma hipótes e auxiliar profunda (o seu “princípio de exclusão”) que não só explicou as lacunas conhecidas mas também remodelou a teoria incipiente do sistema periódico de elementos e antecipou fatos então desconhecidos. Não é minha intenção apresentar aqui um relato circunstanciado do desenvolvimento do programa de Bohr. Mas o seu estudo pormenorizado do ponto de vista metodológico é uma verdadeira mina de ouro: seu progresso maravilhosamente rápido — sobre fundamentos inconsistentes! — foi emocionante, a beleza, a srcinalidade e o sucesso empírico de suas hipóteses auxiliares, propostas por cientistas brilhantes e até geniais, não tiveram 23 3
precedenteexigia na história vez em quando, a versão seguinte programa apenas da umafísica. melhoriaDetrivial, como a substituição da massadopela massa reduzida. De vez em quando, entretanto, para chegar à versão seguinte, fazia-se mister uma nova matemática sofisticada, como a matemática do problema de n-corpos, ou novas teorias auxiliar es físicas sofisticadas. A matemát ica ou a física adicionais eram tiradas de alguma parte do conhecimento existente (como a teoria da relatividade) ou inventad as
232. Talvez se deva mencionar que a mania da coleção de dado s — e da “exagerada” precisão também — impede até a formação de hipó teses “empíricas” ingênuas como a de Balmer. Se Balmer tivesse tido conhecimento dos espectros finos de Michelson, teria acaso encontrado sua fórmula? Ou, se os dados de Tycho Brahe tivessem sido mais precisos, a lei elíptica de Kepler teria sido algum dia apresentada? O mesmo se aplica à primeira versão ingênua da lei geral dos gases, etc. A conjectura de Descartes e Euler sobre os poliedros talvez nunca tivesse sido feita não fora a escassez de dados; cf. meu ensaio de 1963-4, intitulado “Proofs and Refutations”, pp. 298 e seguintes. 233. "Entre o a parecimento da grande t rilogia de Bohr em 19 13 e o advento da mecânica ondulatória em 1925, surgiu grande número de estudos que desenvolviam as idéias de Bohr numa impressionante teoria de fenômenos atômicos. Foi um esforço coletivo e os nomes dos físicos que contribuíram para isso constituem uma lista imponente: Bohr, Bom, Epstein, Debye, Schwarz43).
188
schild, Wilson...” (Ter Haar,
The Old Quan tum T heory, 19 67, p.
(como o princípio de exclusão de Pauli). No último caso temos uma “transferên cia criativa” da heurística positiva. Mas até esse grande programa chegou a um ponto em que sua força heurística se esgotou. Multiplicaram-se as hipóteses ad hoc e não puderam ser substituídas por explicações aumentadoras de conteúdo. Por exemplo, a teoria dos espectros (faixa) moleculares de Bohr predisseram a seguinte fórmula para as moléculas diatômicas:
h
v= ________
[(m + 1)
2
- m2]
8 π2 I
Mas a fórmula foi refutada. Os adeptos de Bohr substituíram o termo m² or m(m + 1): este se ajustava aos fatos mas era tristemente ad hoc. Veio depois o problema de alguns desdobramentos não explicados nos espectros de álcalis. Landé explicou-os e m 1924 por uma “regra divisória relativista” ad hoc; Goudsmit e Uhlenbeck em 1925, pelo giro do elétron. Se a explicação de com Landéa era hoc , a da de Goudsmit e Uhlenbeck se revelou inconsistente teoria ad especial relatividade: pontos detambém superfície no elétron aumentado tinham de viajar mais depressa do que a luz, e o elétron tinha até de ser maior do que o átomo todo. 23 4 Fazia-se mister muita coragem para propô-lo (Kronig teve a idéia pr imeiro, mas absteve-se de publicá -la por supô - la inadmissível. 23 5 ) Mas a temeridade em se propor veementes inconsistências não colheu novas recompensas. O programa ficou para trás da descoberta de “fatos”. Anomalias não-digeridas inundavam o campo. Com inconsistências cada vez mais estéreis e hipóteses cada vez mais ad hoc, começara a fase degenerativa do programa de pesq uisa: este princi - paira — para usarmos uma das frases favoritas de Popper — “a perder
234. Uma nota de rodapé no trabalho deles diz o seguinte: “Deveria observar -se que [de acordo com a nossa teoria] a velocidade periférica do eléctron excederia de maneira considerável a velocidade da luz” ílJhlenbeck e Goudsmit, “Ersetzung der Hypothese von unmechanischen Zwang durch eine Forderung bezüglich des inneren Verhaltens jedes einzelnen Electrons”, 1925 ). 235.
Jammer, The Conce ptual D evelopment of Quantu
m M ecli ani cs, 1966, pp. 146-8 e
151.
189
seu caráter empírico”. 23 6 Tampouco se poderia esperar que muitos problemas, como a teoria das perturbações, fossem resolvidos dentro dele. Logo apareceu um programa de pesquisa rival: a mecânica ondula- tória. Não somente o novo programa, até em sua primeira versão (de Broglie, 1924), explicava as condições quânticas de Planck e de Bohr; mas também conduzia a um fato novo emocionante, a experiência de Davisson-Germer. Em suas versões ulteriores, ainda mais sofisticadas, oferecia soluções para problemas que tinham estado completam do alcancedo do programa de pesquisa de Bohr, e explicava aas hoc fora teorias ad ente subseqüentes citado programa por teorias que satisfaziam elevados padrões metodológicos. A mecânica ondulatória não tardou a alcançar, vencer e substituir o programa de Bohr. O trabalho de Broglie surgiu na ocasião em que o programa de Bohr estava degenerando. Mas isso não passou de coincidência. Ficamos a perguntar-nos o que teria acontecido se de Broglie tivesse escrito e publicado seu estudo em 1914 em lugar de fazê-lo em 1924.
(d)
Um novo olhar dirigido a experiências cruciais: o fim da racionalidade instantânea.
Seria erroesgotado supor quetoda precisamos conservar um programa pesquisa até que se um tenha a sua força heurística, que nãode devemos apresentar um programa rival antes de haverem todos concordado em que foi provavelmente atingido o ponto de degenera - ção. (Embora se possa compreender a irritação do físico quando, no meio da fase progressiva de um programa de pesquisa, se lhe depara uma prolif eração de vagas teorias 23 7 metafísicas que não estimulam nenhum progresso empírico. ) Nunca devemos permitir que um programa de pesquisa se converta num Weltanschauung, ou numa espécie de rigor científico, arvorando-se em árbitro entre a explicação e a não- -explicação, como o rigor matemático se arvora em árbitro entre a prova e a não-prova. Esta, infelizmen te, é a posição que Kuhn tende
236. Sobre uma ex celente de scrição de ssa fase d egenerativa do prog rama de Bohr, cf. Margenau, The Natur e o / Physical Re ali ty, 1950, pp. 311-3. Na fase progressiva de um programa o principal estímulo heurístico provém da heurística positiva: as anomalias são largamente ignoradas. Na fase degenerativa a força heurística do programa some aos poucos. Na ausência de um programa rival essa situação pode refletir-se na psicologia dos cientistas por uma hipersensibilidade inusitada às anomalias e por uma sensação de "crise” kuh niana. 237. Isto é o que mais deve ter irritado Newton na “cética proliferação de teorias” pelos cartesianos.
190
a advogar: na verdade, o que ele denomina “ciência normal" nada mais é que um progra ma de pesquisa que logrou monopólio. Mas, em realidade, o s programas de pesquisa só lograram monopólio completo em raras ocasiões e, mesmo assim, por períodos relativamente curtos, a despeito dos esforços de alguns cartesianos, newtonianos e bohria- nos. A hi stór ia da ci ênci a tem s i do, c de ve ser , uma h istóri a de pr ogr amas d e pesqui sa competit iv os (ou, se qui ser em, de " par adigm as" ), mas não tem s ido, nem deve vir
a ser , u ma suc essão de pe r íodos de ci ên ci a nor mal : qu an to an tes se in i ci ar a
O “pluralismo teórico” é prefer ível no “monismo teórico”: nesse ponto Popper e Feyerabend estão certos e Kuhn está errado. 238 A idéia de programas de pesquisa científica concorrentes conduz- nos ao problema: como são el i mi nado s os pr ogr amas de pesqu i sai Transpirou de nossas considerações anteriores que uma transferência degenerativa de problemas não é uma razão mais forte para eliminar um programa de pesquisa do que uma “refutação" antiquada ou uma “crise” kuhniana. Pode haver a l gum a r azão obj eti va (em oposição às razões sociopsicológ icas) par a r ejeitar um pr ogr ama, i sto é,par a eli mi nar -l he o núcleo e o progr ama a f im de c onstru ir cin tos protetores ? Nossa resposta, em linhas gerais, resume-se nisto: uma razão objetiva dessa natureza é proporcionada por um pr ograma de pesquisa rival que explica o êxito anterior de fo rç a he ur ís t ic a. ™ seu rival e o suplanta por uma demonstração adicional de O critério da “força heurística", no entanto, depende muito de como interpretamos a "novidade fatual'’. Até agora temos presumido que se pode imediatamente determinar se uma nova teoria prediz ou competi ção, t an to m elh or par a o pr ogr esso.
238. Não obstante, há qualquer coisa para ser dita ao menos a respeito de
algumas
pessoas que se aferram a um programa de pesquisa até que ele atinge seu “ponto de saturação"; desafia-se então um novo programa a responder pelo pleno sucesso do velho. O fato de um argumento rival ter podido, ao ser proposto pela primeira vez, explicar todo o sucesso do primeiro programa; não constitui argumento contra isso; não se pode predizer o crescimento de um programa de pesquisa — capaz de estimular importantes teorias auxiliares próprias imprevisíveis. Outrossim, se uma versão An de um programa de pesquisa é matematicamente equivalente a uma versão A m de um rival P 2 devemos desenvolver os dois: a força heurística deles ainda pode ser multo diferente.
239. Emprego aqui " f or ça heur ísti ca" como termo técnico a fim de caracterizar a força de um programa de pesquisa para antecipar teoricamente fatos novos em seu crescimento. Eu poderia empregar, naturalmente, " pode r é xpl anat ór i o" : cf. mais acima, p. 145, nota de pé de página n. u 112. 191
não um fato novo. 24 0 Mas a novidade de uma proposição fatual muitas vezes só ode ser vista depois da passagem de um longo período. A fim de mostrá-lo, começarei com um exemplo. A teoria de Bohr implicava logicamente a fórmula de Balmer para as 24 1 linhas de hidrogênio como conseqüência. Tratava-se de um fato novo? Poderíamos sentir-nos tentados a negá-lo, uma vez que a fórmula de Balmer, afinal de contas, era bem conhecida. Mas esta é uma meia verdade. Balmer apenas “observou” Bt: que as linhas de hidrogênio obedecem à fórmula de Balmer. Bohr predisse B2\ que as diferenças nos níveis de energia em diferentes órbitas do elétron de hidrogênio obedecem à fórmula de Balmer. Agora podemos dizer que B\ á encerra todo o conteúdo puramente “observacional” de B2. Mas dizê-lo pressupõe que pode haver um “nível observaci onal” puro, não conta minado pela teoria, e impermeável à mudança teórica. Com efeito, Bi só foi aceito porque as teorias óticas, químicas e outras aplicadas por Balmer foram bem corroboradas e aceitas como teorias interpretati- vas, sempre passíveis de ser postas em dúvida. Talvez fosse possível argumentar que podemos “purgar” até B{ de suas pressuposições teóricas, e chegar ao que Balmer realmente “observou”, que poderia ser expr esso num asserção mais modesta, B0: que as linhas emitidas em
certos tubos em determinadas circunstâncias bem especificadas (ou no correr de uma “experiência controlada” 242 ) obedecem à fórmula de Balmer. Ora, alguns argumentos de Popper mostram que nunca chegaremos, dessa maneira, a nenhum mínimo “observacional” concreto; pode mostrar -se facilmente que teorias 24:i “observacionais ” estão envol vidas em B 0 . Por outro lado, como o programa de Bohr, depois de um longo desenvolvimento progressivo, havia mostrado sua força heu
240. Cf. mais acima, p. 142, texto correspondente à nota de pé de página n.° 98, e p. 164, texto corresponden te à nota de pé de página n.° 166. 241. Cf. mais acima, p. 180. 242. Cf. mais acima, p. 135, nota de pé de página n.° 77. 243. Um dos argumentos de Popper é pa rticularmente importante: "Há uma crença generalizada de que o enunciado ‘Vejo que esta mesa aqui é bran ca’ possui alguma profunda vantagem sobreo enunciado ‘Estamesa aqui é b ranca’, do ponto de vista da epistemologia. Mas do ponto de vista da ava liação dos seus possíveis testes objetivos, o primeiro enunciado, ao falar sobre mim, não parece mais seguro do que o segundo, que fala a respeito da mesa aqui” ( Logik der Forschung, 1934, seção 27). Neurath faz um comentário carac- teristicamente estúpido acerca desse trecho: “Para nós esses enunciados proto - colares têm a vantagem de ter maior go estabilidade. Podemos conservar o enun ciado ‘As pessoas no século XVI viram espadas de fo no céu’ ao mesmo tempo que riscamos ‘Havia espadas de fogo no céu”’ (Neurath, “Pseudorationalismus der Falsifikation”, 1935, p. 362).
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2, 4 rística, o próprio núcleo se teria tornado bem corroborado e, portanto, qualificado como teoria “observacional” ou interpretativa. Mas nesse caso B2 não será visto como mera reinterpretação teórica de Bu e sim como um fato novo por méritos próprios.
Tais considerações emprestam nova ênfase ao elemento retrospectivo de nossas avaliações e conduzem a uma liberalização subseqüente de nossos padrões. Um novo pr ograma de pesquisa que acabasse de entrar na competição poderia começar explicando “fatos antigos” de um modo novo, mas poderia levar muito tempo para pro duzir fatos “genuinamente novos”. Por exemplo, a teor ia cinética do calor pareceu ir, durante décadas, a retoque dos resultados da teoria fenomenológica antes de alcançá-la finalmente com a teoria de Eins- teinSmoluchowski do movimento browniano, em 1905. Depois disso, o que antes parecera uma reinterpretaç ão especulativa de fatos velhos (acerca do calor, etc. ) revelou-se uma descoberta de fatos novos (acerca de átomos). Tudo isso dá a entender que não devemos pôr de lado um programa de esquisa incipiente só porque não conseguiu, até esse momento, alcançar poderoso rival. Não devemos abandoná-lo se ele, supondo-se que o rival não estivesse resente, constituísse uma transferência progressiva de problemas . 24 5 E devemos,
or certo, considerar fato recém-interpretado como um fato novo, Enquanto ignorando um as insolentes pretensões um à prioridade de coletores amadores de fatos. rograma incipiente de pesquisa puder ser racionalmente reconstruído como transferência progressiva de problemas, deverá ser resguardado durante algum tempo de um poderoso rival estabelecido. Tais considerações, de um modo geral, ressaltam a importância da tolerância metodológica, e deixam ainda sem resposta a pergunta sobre como sã o eliminados os program as de pesquisa. O leitor pode
244. E sta obse r vação, a pr opós i to, def i ne u m ' gr au de corroboração’ para os núcleos ' i r r efu táveis' dos pr ogr amas de pesquisa. A teori a de Newton ( iso la da) n ão ti nh a conteú do empír ico e, n o entan to, n esse sent i do era al tamente cor r obor ada. 245. A propósito , na metodo logia do s program as de pesquisa, o signif icado pragmático de "rejeição” [de um programa] toma -se cristalinamente claro: significa a deci são de par ar de trabalhar
ne le.
246. Alguns podem considerar — cautelosamente — esse período abrigado de desenvolvimento como “ pr é -ci en tífi co" (ou “teórico”) ; e só estão preparados para reconhecerlhe o caráter verdadeiramente ci ent ífi co (ou "empí rico”) quando ele começa a produzir fatos “genuinamente novo s” — mas, nesse caso, o seu reconhecimento terá de ser retroativo.
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até desconfiar de que tanto destaque dado à falibilidade liberaliza, ou melhor, abranda nossos padrões a ponto de imbuir-nos de ceticismo radical. Até as célebres “experiências cruciais”, nesse caso, não terão força para derrubar um programa de pesquisa; tudo vale. 2 ' 7 Mas essa desconfiança é infundada. Dentro de. um programa de pesquisa as “ experiências cruciais menores ” entre versões subseqüentes são muito c omuns. As experiências “decidem” facilmente entre enési - ma e enésima-primeira versão científica, vistotambém que a aenésima-primeira não somente é inconsistente a enésima, mas suplanta. Se a enésima-primeira versão possuicom mais mesmo programa e à luz das mesmas teorias conteúdo corroborado à luz do observacionais bem corroboradas, a eliminação é um assunto relativamente de rotina (só relativamente, pois mesmo aqui a decisão pode estar sujeita a uma apelação). Os processos de apelação também são ocasionalmente fáceis: em muitos casos a teoria observacional contestada, longe de ser bem corroborada, é de fato uma suposição mal expre ssa, ingênua, “escondida”; só a contestação revela a existência da suposição oculta, e lhe provoca a expressão, o teste e a queda. Vez por outra, contudo, as próprias teorias observ acionais estão inseridas em algum programa de pesquisa e, nesse caso, o processo de apelação conduz um choque entre dois programas: em tais circunstâncias podemos precisar de uma “experiência crucial importante Quando dois programas de pesquisa competem entre si, seus primeiros modelos “ideais" geralmente tratam de diferentes asp ectos da questão (assim, por exemplo, o primeir o modelo da ótica simicor- puscular de Newton descrevia a refração da luz, o primeiro modelo da ótica ondulatória de Huyghens descrevia a interferência luminosa). À medida que se expandem, os programas de pesq uisa rivais invadem, pouco a pouco, o território uns dos outros e a enésima versão do primeiro será flagrantemente, dramaticamente incompatí vel com a enési ma versão do segundo. 24 8 Realiza-se repetidamente uma experiência e, como resultado, enquanto o primeiro é derrotado nessa batalha, o segundo vence. Mas aderrotas guerradessa não natureza. acabou: aAqualquer única de programa de pesquisa é lícito sofrer algumas
247. Incidentalmente, po de dizer-se com raz ão que o conflito entre a falibilidade e a crítica é o problema principal — e a força propulsora — do programa da pesquisa p opperiano na teoria do conhecimento. 248. Um caso especialmente interessante de compet ição d essa natu reza é a simbiose competitiva, quando se enxerta um programa novo num programa velho, incompatível com ele; cf. mais acima, p. 174.
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que ele precisa para reabilitar-se é produzir uma enésima-primeira versão (ou n + k) aumentadora de conteúdo e uma verificação de parte do seu novo conteúdo. Se a reabilitação, depois de um esforço sustentado, não se verificar, a guerra estará perdida e a experiência srcinal será vista, retrospectivamente, como tendo sido “crucial”. Mas se o programa derrotado for um programa jovem, que se desenvolve depr essa, e se deci dirmos dar suficiente c rédito aos seus êxitos pré-científicos, experiências pretensamente cruciais dissolver-se-ão uma depois da outra na esteira da sua investida. Mesmo que seja um programa 249 o velho, es tabelecido e “cansado”, perto do seu “ponto natural de saturação”, programa derrotado pode continuar a resistir por muito tempo e a manter -se com engenhosas inovações aument adoras de conteúdo, ai nda que estas não sejam com o sucesso empírico. É muito difícil derrotar um programa de pesquisa sustentado por cientistas talentosos e imaginativos. Alternativamente, defensores teimosos do programa derrotado podem oferecer explicações ad hoc das experiências ou uma “redução” ad hoc do programa vitorioso ao programa derrotado. Mas devemos rejeitar tais esforços como não-ci entíficos. 25 0 Nossas considerações explicam por que experiências cruciais só são vistas como cruciais décadas mais tarde. De um modo geral, as elipses de Kepler só foram admitidas como prova crucial a favor de Newton e contra Descartes uns cem anos depois da reivindicação de Newton. O comportamento anômalo do pcriclio de Mercúrio foi conhecido, durante decênios, como uma das muitas dificuldades ainda não resolvidas do programa de Newton; mas só o fato de que a teoria de Einstein o explicava melhor transformou uma aborrecida anomalia numa brilhante “refutação” do programa de pesquisa de Newton. 25 1
249. Não existe essa coisa que se poderia denominar "ponto natural de saturação”; em meu ensaio,' “Proofs and Refutations”, 1963 -4, sobretudo nas páginas 327-8, eu era mais hegeliano e supunha que existisse; agora uso a expressão com ênfase irônica. Não há uma limitação predizível nem determi- nável que se possa impor à imaginação humana na invenção de novas teorias aumentadoras de conteúdo, nem à “astúcia da razão” ( L ist d er Ve r nunf t) no recompensá-las com algum sucesso empírico ainda que elas sejam falsas ou ainda que a nova teoria tenha menos verossimilhança — no sentido de Popper — do que a sua predecessora. (Provavelmente todas as teorias científicas já proclamadas pelos homens são falsas: ainda assim poderão ser recompensadas pelo sucesso empírico e até apresentar uma crescente verossimilhança.) 250. 251.
Sobre um exemplo, cf. mais acima. p. 155. nota de rodapé n.° 140. Dess a maneir a, uma anom al ia n um pr ogr ama de pesquisa é um j ertô meno que consider amos como al go que deve s er expl icado em f un ção do pr ogr ama. D e um modo mai s ger al, pode mos falar , segui ndo K uh n. ace r ca de
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Young afirmou que sua experiência da dupla fenda em 1802 constituiu uma experiência crucial entre o programa corpuscular e o programa ondulatório da ótica; sua afirmação, todavia, só foi reconhecida muito mais tarde, depois que Fresnel desenvolveu o programa ondulatório muito mais “progressivamente” e se tornou claro que os newtonianos não poderiam igualar-lhe a força heurística. A anomalia, já conhecida havia décadas, só recebeu o título honorífico de refutação, e a expe riência o de “experiência crucial”, depois de um longo período de desenvolvimento desigual dos dois programas rivais. O moviment o browniano esteve, durante quas e um século, bem no meio do campo de batalha antes de ser visto derrotando o programa de pesquisa fe- nomenológica e fazendo pender a balança da guerra em favor dos atomistas. A “refutação” da série de Balmer feita por Michelson foi ignorada por toda uma geração até que o triunfante program a de pes quisa de Bohr passou a dar-lhe o necessário apoio . Talvez valha a pena esmiuçar alguns exemp los de experiências cujo caráter “crucial” só se tomou manifesto a posteriori. Examinarei primeiro a célebre experiência de Michelson e Morley em 1887, que, segundo se diz, falseou a teoria do éter e “conduziu à teoria da relatividade”; depois, as experiências de Lummer e Pringsheim, as quais, afirma-se, falsearam a teoria clássica da 25 2
radiação e que “conduziram à teoria quântica”. Finalmente, experiência muitos físicos imaginaram que se revelaria contrária àsdiscutirei leis da uma conservação mas que, na verdade, acabou sendo sua mais triunfante corroboração.
(d 1) A experiência de Michelson e Morley Michelson foi o primeiro a idear uma experiência no intuito de pôr à prova as teorias contraditórias de Fresnel e Stokes acerca da influência do movimento da terra sobre o éter, 25 3 durante a visita que
"enigmas": um "enigma” num programa é um problema que e ncar amos como um des af i o a esse pr ogr ama. U m " enigma” pode ser resolvido de três maneiras: solucionando -o de ntr o do programa o r igin al (a a nomali a tr ans for ma-s e em exe mplo); n eutr alizando-o , is to , solu cion ando-o de ntr o de um pr ograma i ndep ende nte, in dif er ente (a anomali a de saparece ); ou, por mim, solucionando-o dentro de um programa rival (a anomalia converte-se num exe mpl o co ntr ár i o).
252. Cf. Popper, Logik de r F orsc hun g, 1934, seção 30. 253. Cf. Fresnel, “Lettre à François Arago sur ITnfluence du Mouve- ment Terrestre dans quelques Phénomènes Optiques”, 1818; Stokes, “On the Aberration of Light”, 1845, e “On FresnePs Theory of the Aberration of Light”, 1846. Sobre uma excelente e breve exposição cf. Lorentz, Versuch einer Th eo- r ie d er electri schen und optische n Er schein ungen in bewegte n Kõr pen, 1895.
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fez ao instituto de Helmholtz em Berlim no ano de 1881. De acordo com a teoria de Fresnel, a terra se move através de um éter em repouso, mas o éter dentro da terra é parcialmente carregado com ela; a teoria de Fresnel, por conseguinte, exigia que a velocidade do éter fora da terra em relação à terra fosse positiva (isto é, supunha a existência de um “vento de éter”). De acordo com a teoria de Stokes, a terra arrastava o éter e imediatamente sobre a sua superfície a velocidade do éter era zero (isto é, não havia vento de éter na superfície). Stokes julgou, a princípio, que as duas teorias eram observacio- nalmente equivalentes; com adequadas suposições auxiliares, por exemplo, ambas explicavam a aberração da luz. Michelson, porém, proclamava que sua experiência de 1881, provava a teoria de Stokes. 25 4 Sustentava ele experiência crucial entre as duas, que a velocidade da terra em relação ao éter era muito menor do que a supunha a teoria de Fresnel. Na realidade, concluía que de sua experiência “se infere a conclusão necessária de que a hipótese [de um éter estacionário] é errôneo. Essa conclusão contradiz frontalmente a explicação do f enômeno da aberração, o qual. . . pressupõe que a terra se move através do éter, permanecendo este em repouso”. 25 5 Como acontece freqüentemente, Michelson, o experimentador, recebeu uma lição de um teórico. Lorentz, o principal físico teórico do período, no que Michelson descreveu mais tarde como “uma análise muito circ uns25 6 tanciada. . . de toda a experiência”, mostrou que Michelson “in terpretou erroneamente” os fatos e que o que ele observara, com efeito, não contrariava a hipótese do éter estacionário. Lorentz demonstrou que os cálculos de Michelson estavam errados; a teoria de Fresnel predizia apenas a metade do efeito que Michelson calculara. lorentz concluiu que a experiência de Michelson não refutava a teoria de Fresnel e tampouco provava a de Stokes. Lorentz prossegu iu mostrando que a teoria de Stokes era inconsistente: presumia que o éter à superfície da terra estava em repouso em relação a esta última e exigia que a velocidade relativa tivesse um potencial; mas as duas condições são incompatíveis. Entretanto, ainda que Michelson tivesse refutado uma teoria do éter estacionário, o programa continuaria intocado: podem-se imaginar facilmente várias outras versões do programa do éter, que predizem valores muito pequenos para os ventos
254. Isso t ranspira, obliquamente, da seção final do seu en saio de 1881 intitulado, “The Relative Motion of the Earth and the Luminiferous Ether”. 255. Michelson, “The Relative Motion of the Earth and the Luminifer ous Ether”, 1881, p. 128. O grifo é meu. 256. Michelson e Morley, " On th e Relativ e Mot ion of the Earth and th e Lu minif erous Ether”, 1887, p. 335.
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de éter e ele, Lorentz, imediatamente produziu a sua. A teoria testável e Lorentz 25 7 submeteu-a, orgulhosamente, ao veredito da experiência. Michelson, juntamente com Morley, aceitou o desafio. A velocidade relativa da terr a no tocante ao éter pareceu de novo ser zero, contrariando a teoria de Lorentz. Desta vez, porém, mais cauteloso na interpretação dos seus dados, Michelson até pensou na possibilidade de que o sistema solar pudesse ter-s e movido como um todo na direção oposta à da terra; portanto, decidiu repetir a experiência “a 25 8 intervalos de três meses e, assim, evitar toda e qualquer incerteza”. Em seu segundo trabalho, Michelson já não fala em “conclusões necessárias” nem em “contradições diretas”. Apenas é de opi nião que, da sua ex periência, “parece, de tudo o que precede, razoadamente certo que, se houver algum movimento relativo entre a terra e o éter luminífero, este terá de ser pequeno', suficientemente pequeno para refutar de todo a explicação de Fresnel da aberração” 25 9 Assim, nesse trabalho, Michelson ainda afirma ter refutado a teoria de Fresnel (e também a nova teoria de Lorentz); mas nele não se lê uma única palavra acer ca de sua velha afirmativa, feita em 1881, de que refutara “a teoria do éter estacio nário” em geral. (Pois acreditava que, para poder fazê - lo, ser-lheia preciso testar o vento do éter também em grandes altitu des, “no pico de uma montanha isolada, por exemplo”. 26 0 Ao passo que alguns teóricos do éter — como Kelvin — não se fiavam da “habilidade experimental”, 26 1 de Michelson, Lorentz assinalou que, apesar da afirmativa ingênua de Michelson, nem a sua
257. Lorentz, "De 1’Influence du Mouvement de la Terra sur les Phéno - mènes Lumineux”, 1886. Sobre a incompatibilidade da teoria de Stokes, cf. também o ensaio de Lorentz de 1892 intitulado, “Stokes' Theory of Aberra - tion”. 258. Michelson e Morley, “On the Relative Motion of the Earth and the Luminiferous Ether”, 1887, p. 341. Mas Pearce Williams assinala que ele nunca o fez. (Pearce William 1968, p. 34.) Relati vity Theory: I ts Ori gins a nd I mpac t on Mode m Thought, 259.
Ibid. p. 341. O grifo é
s,
meu.
260. Michelson e Morley, “On the Relative Motion of the Earth and the Luminiferous Ether”, 1887. Como se depreende desse reparo, Michelson compreendia que sua experiênci a de 1887 era perfeitame nte compatível com um vento de éter mais alto. Em seu trabalho de 1920, isto é, trinta e três anos mais tarde, Max Born afirmou que da experiência de 1887 “precisamos concluir que o vento de éter não existe”. (O grifo é meu.) 261. Kelvin disse no Congresso Internacional de Física de 1900 que “a única nuvem [existente] no céu claro da teoria [do éter] era o resultado nulo da experiência MichelsonMorley” (cf. Miller, “Ether - Drift Experiments at Mount Wilson”, 1 925) e imediatamente persuadiu Morley e Miller, que ali estavam, a repetir a experiência.
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nova experiência “fornece subsídios para a questão pela qual foi em 2 2 preendida”. ® Pode considerar-se a teoria de Fresnel perfeitamente como uma teoria interpretaliva , que interpreta os fatos, em lugar de ser refutável por eles e, como Lorentz mostrou, “a importância da experiência de Michelson e Morley reside antes no fato de poder ela ensinar-nos alguma coisa sobre as mudanças das dimensões'' 2*™: as dimensões dos corpos são afetadas pelo seu movimento através do éter. Lorentz elaborou essa “transferência criativa” dentro do progra ma de Fresnel com grande engenho e por essa maneira afirmou haver “afastado a 26 4
contradição a teoriadasdeforças Fresnelmoe o resultado M ichelson”. Mas para admitiu que, “sendo entre a natureza lecularesdeinteiramente desconhecidas 26 5 pelo menos por enquanto ela não pode nós, é impossível testar a hipótese”; predizer fatos novos. 266
262. 263. 264.
Lorentz, “The Relative Motion of the Earth
and the Ether”, 1892.
Ibid. O grifo é meu. Lorentz, Versuch e in er T heori e der electri schen und optische in bewegte n K õr per n, 1895.
n Er s- chein ungen
265. Lorentz, “Stokes’ Theory of Aberration”, 1892. 266. Ao mesmo tempo, indepen dentemente de Lorentz, Fitzgerald produziu uma versão testável dessa "transferência criativa” que foi logo refutada pelas experiências de Trouton, Rayleigh e Brace: era teórica mas não empi- ricamente progressiva. Cf. Whittaker, F rom Eucli d to Ed dingto n, 1947, p. 53 e Whittaker, H isto ry of the The ori es of Aethe r and Elecfricity, vol. II, 1953, pp. 28-30. Existe uma concepção amplamente difundida da " ad hocida de" da teoria de Fitzgerald. Mas os físicos contemporâneos queriam dizer que a teoria era ad hoc , (cf. mais acima, p. 152, nota de rodapé n.° 136): que não havia dela. (Cf. por " evi dên cia independente [positivo]” exemplo. Larmor “On the Ascer - tained Absence of Effects of Motion through the Aether, in 1 Relation to the Constitution of Matter, and on the Fitzgerald-Lorentz Hypothesis ’, 1904, p. 624.) Mais tarde, sob a influência de Popper, o termo " ad hoc " foi principalmente usado no sentido de ad hoc,, que n ão havia teste i ndepe ndente possível para ele. Mas, como mostram as experiências refutantes, é um erro proclamar, c omo faz Popper, que a teoria de F itzgerald era ad hoc , (cf. Popper, Logik der Forschung, 1934, seção 20). Isso mostra mais uma vez a importância de separar ad hoc , de ad hoc 2 . Quando Grünbaum, em seu ensaio de 1959, “The Falsifiability of the Lorentz -Fitzgerald Contraction Hypothesis”, mostrou o erro de Popper, este o reconheceu, mas replicou que a teoria de Fitzgerald era, sem dúvida, mais ad hoc do que a de Einstein (Popper, “Testability and ‘ad - Hocness’ of the Contraction Hypothesis”, 1959), e que isso proporciona outro “... excelente exemplo de 'graus de ad hoci dade ' e de uma das principais teses do [seu] livro — que os graus de ad hocidade se relacionam (inversamente) com os graus de testabilidade e importância”. A diferença, porém, n ão é simplesmente uma questão de graus de ad hoci dade , única que pode ser medida pela testabilidade. Cf. também mai s adian te, p. 216.
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Nesse intervalo, em 1897, Michelson levou a cabo a experiência longamente planejada de medir a velocidade do vento do éter no topo das montanhas. Não encontrou nenhum. Como supusera haver provado a teoria de Stokes que predizia um vento de éter a uma altitude maior, sentiu-se perplexo. Se a teoria de Stokes continuasse correta, o gra diente da velocidade do éter teria de ser muito reduzido. Michelson teve de concluir que “a influência da terra 5117 sobre o éter se estendia a distâncias da ordem do diâmetro da terra”.'' Supôs que este fosse um resultado “improvável” e concluiu que, em 1887, obtivera a conclusão errada da sua experiência: era a teoria de Stokes que devia de ser rejeitada a de Fresnel devia de ser incluindo aceita; e decidiu hipótese eauxiliar razoávelquepara salvá-la, a teoria aceitar de Lorentz dequalquer 1892. 2fi8 Agora parecia preferir a contração Fitz- gerald-Lorentz e, por volta de 1904, seus colegas em Case estavam tentando descobrir se essa contração varia com materiais diferentes. 26 9 Enquanto a maioria dos físicos tentava interpretar as experiências de Michelson dentro da estrutura do programa do éter, Einstein, sem tomar conhecimento de Michelson, Fitzgerald e Lorentz, mas estimulado sobretudo pela crítica de Mach dirigida à mecânica newto niana, chegou a um novo e progressivo programa de pesquisa. 27 0 Esse novo programa não só “predisse” e explicou o resultado da experiência de Michelson e Morley mas também vaticinou uma série imensa de fatos com os quais até então ninguém sonhara e que obtiveram dramáticas corroborações. Só então, vinte e cinco anos depois, veio a experiência de Michelson e Morley a ser encarada c omo “a maior 27 1 experiência negativa da história da ciência”. Mas isso não poderia ser visto instantaneamente. Ainda que a experiência fosse negativa, uma coisa não ficara muito clara: negativa exatamente em relação ao quêl Além disso, em 1881, Michelson também a julgava positiva:
267.
Michelson, “On the Relative Motion of the Earth and the Ether”, 1897, p. 478.
268. Lorentz, com efeito, comentou de pronto: “Embora [Michelson] considere improvável uma influência de tão longo alcance da terra, eu, ao contrário, a esperaria” (Lorentz, "Concerning the Problem of the Dragging Along of the Ether by the Earth”; o grifo é meu). 269. Morley e Miller, Carta e Kelvin, 1904. 270. Houve consideráv el controvérsia a respeito do s antecedentes histó- ricoheurísticos da teoria de Einstein, à luz da qual este enunciado pode reve - lar-se falso. 271. Bernal, Science i n H istory, 1965, p. 530. Para Kelvin, em 1905, foi apenas uma “nuvem no céu claro”; cf. mais acima, p. 198, nota de pé de página, 261.
ele sustentava que havia refutado a teoria de Fresnel, porém verificado a de Stokes. O próprio Michelson e depois Fitzgerald e Lorentz explicaram o resultado 27 2 positivamente dentro do programa do éter. Como se dá com todos os resultados experimentais, sua negatividade em relação ao programa velho só mai s tarde foi estabelecida, pela lenta acumulação de tentativas ad hoc para explicá-la dentro do velho programa em fase de degeneração e pelo gradativo estabelecimento de um novo e vitorioso programa progressivo em que ela se tornou um caso positivo. Mas a possibilidade de reabilitação de alguma parte do programa velho “que degenerava” nunca poderia ser excluída ra cionalmente. Só um difícildee suplantar indefinidamente longoe pode estabelecer um processo programaextremamente de pesquisa capaz o seu rival; não convém empregar a expressão “experiência crucial” com excessiva precipitação. Mesmo quando se vê eliminado pelo seu pre- decessor, um programa de pesquisa não é eliminado por uma expe riência “crucial”; e ainda que uma experiê ncia crucial desse gênero seja mais tarde posta em dúvida, o novo programa de pesquisa não pode ser sustado sem uma vigorosa e progressiva ascensão do velho programa. 27 3 A negatividade e a importância da experiência de Michelson e Morley residem sobretudo na transferência progressiva no novo programa de pesquisa a que ele veio empr estar poderoso apoio, e sua “grandeza” é apenas um reflexo da grandeza dos dois programas envolvidos. Serianas interessante fazer uma da análise das sob transferências envolvidas fortunas declinantes teoriaminuciosa do éter. Mas a influênciarivais do falseacionismo ingênuo, a fase degenerativa mais interessante da teoria do éter, depois da “experiência crucial" de Michel -
272. De fato , o excelente compêndio de física de Chwo ls on dizia, em 1902 , que a probabilidade da hipótese do éter estava à beira da certeza. (Cf. Einstein, “Uber die Entwicklung unserer Anschauungen über das Wesen und die Konstitution der Strahlung”, 1909, p. 817.) 273. Polanyi conta-nos, com gusto, que, em 1925, em seu discurso presidencial pronunciado perante a American Physical Society, Miller anunciou possuir, a despeito dos relatórios de Michelson e Morley, “esmagadora evidência” de um redemoinho de éter; apesar de tudo, o público se manteve fiel à teoria de Einstein. Polanyi tira disso a conclusão de que nenhuma “estrutura ‘objetivista’” pode ser responsabilizada pela aceitação ou rejeição de teo rias por parte do cientista (Polanyi, Per sonal Kn owledg e, Towar ds a Po st- cri ticai Phi losophy, 1958, pp. 12-14). Minha reconstrução, todavia, faz da tenacidade do programa de pesquisa einsteiniano, em face da pretensa evidência contrária, um fenômeno completamente racional e por esse modo solapa a mensagem mística e “pós -crítica” de Polanyi.
201
son, é simplesmente ignorada pela maioria dos einsteinianos. Acreditam eles que a experiência de Michelson e Morley, sozinha, derrotou a teoria do éter, cuja tenacidade se deveu exclusivamente ao conserva- cionismo obscurantista. Por outro lado, o período pós-Michelson da teoria do éter é examinado com espírito crítico pelos antieinsteiniano s, para os quais a teoria do éter não sofreu revés algum: o que é b om na teoria de Einstein estava essencialm ente na teoria do éter de Lorentz e a vitória de Einstein só se deve à moda positivista. Na realidade, porém, a longa série de experiências de Michelson de 1881 a 1935, realizadas com a finalidade de pôr à prova versões subseqüentes do programa do éter, fornece um exemplo fascinante de transferência degenerativa de problemas. 274 (Mas os programas de pesquisa podem sair de depressões degenerativas . Todos sabem que a teoria do éter de Lorentz pode ser facilmente fortalecida de maneira que se torna, num sentido interessante, equivalente à teoria do não-éter de Einstein. 275 No cont exto de uma “transferência criativa” importan te o ét er ainda pode voltar. 27 6 )
274. U m si n al típi co d a degener ação de u m p r ogr ama , n ão di scu ti do n este e nsai o, éa roliferação de “fatos" contraditórios. Usando uma teoria falsa como teoria interpretativa, — pr oposi ções fat u ai s pode m conse gui r -se — sem comentar nenhum “equívoco experimentai” contr aditóri as, res ul tados exper imentai s incongr uentes . Michelson, que se manteve fiel ao éter até o fim, viu-se principalmente frustrado pela incompatibilidade dos fatos que obteve por intermédio das suas mensurações ultraprecisas. Sua experiência de 1887 “mostrou” que não havia vento de éter sobre a superfície da terra. Mas a aberração “mostrou” que havia. Ademais, sua própria experiência de 1925 (ou nunca mencionada ou, como no trabalho de Jaffe em 1960, Michelson and the Speed of Light, apresentada incorretamente) também “provou” que havia (cf. Michelson e Gale, “The Effect of the Earth’s Rotation on the Velocity of Light”, 1925, e, sobre uma crítica aguda, Runge, “Ãthe r und Relativitátstheo- rie”, 1925).
275. Cf. por exemplo Ehrenfest, “Zur Krise der Lichtãther - Hypothese”, 1913, pp. 17 18, citado e discutido por Dorling em seu ensaio de 1968, “Lenght Contraction and Clock Synchronisation: The Empirical Equivalence of th e Einsteinian ad Lorentzian Theories”. Não se deve esquecer, contudo, que du as teor i as específ i cas, embo r a ma temáti ca ( e observacionalmente) equivalentes, podem estar engastadas em diferentes programas de pesqu i sa r i vai s, e a f or ça da heur ísti ca posit i va dess es pr ogr amas pode ser di f erent e.
Esse
ponto foi passado por alto pelos que propuseram tais provas de equivalência (um bom exemplo é a prova de equivalência entre o enfoque da física quântica de Schrõdinger e o de Heisenberg). Cf. também mais acima, p. , nota de pé de página n.° 276. Cf. por exemplo Dirac, “Is there an Aether?”, 1951: “Se reexami namos a questão à luz do conhecimento atual, descobriremos que o éter já não é excluído pela relatividade, podemos agora apresentar boas razões para postular u m éter.” Cf. também o parágrafo final de Rabi, “Atomic Structure”, 1961, e Prokhovnik, The Logic of Spe cial Relati vity, 1967.
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O fato de avaliarmos retrospectivamente as experiências explica por que, entre 1881 e 1886, a experiência de Michelson não foi sequer mencionada na literatura. Com efeito, quando um físico francês, Po- tier, mostrou a Michelson o seu erro de 1881, Michelson decidiu não publicar uma nota de correção. Ele explica o motivo dessa decisão numa carta a Rayleigh em março de 1887: “Tenh o tentado repetidamente, mas debalde, interessar meus amigos científicos nessa experiência, e nunca publiquei a correção (envergonho-me de confessá-lo) por sentir -me desanimado pela pouca atenção que o trabalho recebia, e não achar que valesse a pena.” 27 7 Essa carta, a propósito, foi a resposta a uma carta de Rayleigh chamando a atenção de Michelson para o trabalho de Lorentz, que desencadeou a experiência de 1887. Mas mesmo depois de 1887, e até depois de 1905, não se considerava a experiência de Michelson e Morley, de um modo geral, como refutação da existência do éter, e com muita razão. Isso talvez explique por que Michelson não recebeu o seu Prêmio Nobel (em 1907), por “refutar a teoria do éter”, mas “por seus instrumentos óticos de pre cisão e pelas investigações espectroscópicas e metodológicas levadas a efeito com a ajuda deles” 27 8 ; e por que a experiência de Michelson e Morley não foi sequer mencionada nos discursos de apresentação. Em sua Nobel Lecture, Michelson não fez alusão a ela; e calou o fato de que, embora pudesse haver srcinalmente ideado seus instrumentos para medir com precisão a velocidade da luz, viu-se compelido a aprimorá-los para testar algumas teorias específicas do éter, tendo sido a “precisão” da sua experiência de 1887 mot ivada, em grande parte, pela crítica teórica de Lorentz: fato que a literatura contemporânea clássica nunca menciona. 279 Finalmente, tendemos a esquecer que, ainda que a experiência de Michelson e Morley tivesse mostrado a existência de um “vento
277. Shan kland, “Michelson -Morley Experiment", 1964, p. 29. 278. O grifo é meu. 279. O próprio Einstein ten dia a acreditar que Mi chelson inventara o seu interferômetro com a finalidade de testar a teoria de Fresnel. (Cf. Einstein, “Gedenkworte auf Albert A. Michels on”, 1931.) A propósito, as primeiras experiências de Michelson acerca das linhas do espectro — como o seu ensaio “On the Application of Interference Methods to Spectroscopic Measurements, I- 1I”, 1891 -2 •—• foram também importantes para as teorias do éter do seu tempo. Michelson só superenfatizava o seu sucesso em “mensurações precisas” quando se via frustrado pela falta de êxito no avaliar-lhes a importância para as teorias. Einstein, que não gostava da precisão por amor da precisão, perguntou-lhe por que de dicava a ela tanta energia. A resposta de Michelson foi “porque a achava divertida”. (Cf. Einstein, Carta a Shrõdinger de 31.5.1928.)
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de éter”, o programa de Einstein poderia ter sido vitorioso. Quando Miller, ardente defensor do clássico programa do éter, publicou sua sensacional afirmação de que a experiência de Michelson e Morley estava sendo feita com desleixo e que de fato havia um vento de éter, o noticiarista de Science escreveu, jubiloso, que “os resultados do Professor Miller derrubam radic almente a teoria da relatividade”. 27 0 No entender de Einstein, contudo, ainda que Miller tivesse relatado o verdadeiro estado de coisas “ [só] a forma atual da teoria da relati28 1 vidade” teria de ser abandonada. Com efeito, Synge assinalou que os resultados de Miller, mesmo tomado s pelo seu valor aparente, não conflitam com a teoria de Einstein: o que conflita é a explicação de Miller. Pode substituir-se com facilidade a teoria auxiliar de corpos rígidos existente por uma teoria nova, de Gardner e Synge e, nesse caso, os resultados de Miller serão totalmente digeridos pelo programa de Einstein. 28 2
(d 2) As experiências de Lummer e Pringsheim Discutamos outra chamada experiência crucial. Planck afirmava que as experiências de Lummer e Pringsheim, que “refutavam” as leis da radiação de “conduziram ” — ou “até deram Wien, Rayleigh e Jeans no princípio do século 28 3 srcem” — à teoria quântica. Mais uma vez, porém, o papel dessas experiências é muito e está perfeitamente de acordo com eo nosso enfoque. Não semais trata complicado simplesmente de que as experiências de Lummer Pringsheim puseram fim ao enfoque clássico, mas que também foram muito bem explicadas pela física quântica. De um lado, algumas versões primitivas da teoria quântica dc Einstein exigem a lei de Wein e, portanto, não foram menos refutadas pelas experiências de Lummer e Pringsheim do que a teoria clássica. Por outro lado se ofereceram várias explicações
28 1
280. Science, 1925. 281. Einstein, “Neue Experimente tiber den Einfluss der Erdbewegung a uf die Lichtgeschwindigkeit relativ zur Erde”, 1927. O grifo é meu. 282. Synge, "Effects of Acceleration in the Michelson-Morley Experi- ment”, 1952^4. 283. Planck, “Zwanzig Jahre Arbeit am Physikalischen Weltbilt”, 1929. Na seção 30 de sua L ogik d er F orschung, 1934, e à p. 37 do seu Th i r ty Ye ars that S hook Pli ysics, 1966, Popper e Gamow, respectivamente, utilizam-se dessa locução. É evidente que os enunciados de observação não "conduzem” a uma teoria unicamente de terminada. 284. Cf. Ter Haar, The Old Quantum T heo ry, 1967, p. 18. Um programa de pesquisa que se desenvolve geralmente começa explicando “leis empíricas” já refutadas — e isso, à luz do meu enfoque, pode ser racionalmente encarado como um sucesso.
204
clássicas da fórmula de Planck. Na reunião de 1913 da Associação Britânica para o Progresso da Ciência, por exemplo, houve uma reunião especial sobre radiação, à qual assistiram, entre outros, Jeans Rayleigh, J. J. Thompson, Larmor, Rutherfo rd, Bragg, Poynting, Lorentz, Pringsheim e B ohr. Pringshe im e Rayleigh mantiveram-se estu- dadamente neutros em relação às especulações quânticas teóricas, mas o Professor Love “representava os pontos de vista mais velhos e sustentava a possibilidade de explicar os fatos da radiação sem adotar a teoria dos quanta. Criticou a aplicação da teoria da eqüipartição da energia, sobre a qual repousa partecom da teoria quântica.daAfórmula evidência máximarelativa para a teoria quântica é a concordância a experiência de Planck à emissividade de um corpo negro. Do ponto de vista matemático pode haver muitas outras fórmulas que concordariam igualmente com as experiências. Ventilou-se uma fórmula devida a A. Korn, que deu resultados numa ampla esfera e mostrou concordar tão bem com a experiência quanto a fórmula de Planck. Numa afirmação adicional de que os recursos da teoria comum não estão esgotados, ele mostrou que pode ser possível estender a outros casos o cálculo, devido a Lorentz, da emissividade de uma chapa fina. Para esse cálculo nenhuma expressão analítica simples representa os resultados em toda a série de comprimentos de ondas, e pode ser que, no caso geral, não exista nenhuma fórmula simples aplicável a todos os mais comprimentos de ondas. A fórmula de 2s r ’ Um Planck, com efeito, pode não ser nada que uma fórmula empírica." exemplo de explicações clássicas deveuse a Callendar: “A dis cordância entre a conhecida fórmula de Wien e a experiência no tocante à partição da energia em plena radiação explicar -se-á pronta mente se supusermos que ela representa apenas a energia intrínseca. O valor correspondente da pressão deduz-se com muita facilidade mediante referência ao princípio de Carnot, como Lorde Rayleigh indicou. A fórmula que propus (Phil. Mag., outubro de 1913) é simplesmente a soma da pr essão e da dens idade da energia assim obtidas, e concorda de modo muito satisfatório com a experiência, tanto no que concerne à radiação quanto no que concerne ao calor específico. Prefiro-a à fórmu la de Planck (entre outras razões) por não se poder conciliar esta última com a termodinâmica clássica e envolver a concepção de um quantum, ou unidade indivisível de ação, que é inadmissível. Em minha teoria, a magnitude física correspondente , que
285.
Nature, ''Physics at lhe British Ass
ociation ’’, 1913 -14.
205
denominei em outro lugar molécula de calórico, não é necessariamente indivisível, mas tem uma relação muito simples com a energia intrínseca do átomo, que é tudo o que se requer para explicar o fato de poder a radiação, em casos especiais, ser emitida em unidades atômicas, que são múltiplos de uma magnitude determinada. ” 28 6 É possível que estas citações tenham sido tediosamente longas mas, pelo menos, tornam a mostrar, de forma convincente, a ausência de experiências cruciais instantâneas. As refutações de Lummer e Pringsheim não eliminaram a abordagem clássica do problema da radiação. A situação pode ser melhor 28 7 descrita se assinalarmos que a fórmula “ad hoc" srcinal de Planck — que se ajustou aos dados de Lummer e Pringsheim (e os corrigiu) — poderia ser explicada progressivamente pelo novo programa quântico t eórico, 28 8 ao passo que nem sua fórmula “ad hoc ”, nem seus rivais “semi -empíricos” po deriam ser explicados pelo programa clássico, exceto à custa de uma transferência degenerativa de problemas. A propósito, o desenvolvi mento “progressivo” dependia de uma “transferência criativa”: a subs tituição (por Einstein) da estatística de Boltzman-Maxwell pela de
286.
Callendar, “The Pressure of Radiation and Carnot’s Principie”, 1914.
287. Estou-me referin do à fórmula de Pl anck t al como foi dada em seu trabalho de 1900, “Über eine Verbesserung der Wienschen Spektralgleichung”, em que ele admitiu que depois de haver tentado provar durante muito tempo que “a lei de Wien deve ser necessariamente verdadeira”, a “lei” fo i refutada. Por isso ele deixou de provar leis eternas sublimes para “construir expressões completamente arbitrárias”. Claro está, todavia , que toda teoria física se revela “completamente arbitrária" pelos padrões justificacio nistas. Com efeito, a fórmula arbitrária de Planck contou essa parte da história em sua autobiografia científica.) É claro que, num sentido importante, a fórmula da radiação de Planck era srcinal "arbitrária”, “formal”, “ad hoc”: mais uma fórmula isolada que não fazia parte do programa de pesquisa. (Cf. adiante, p. 217, nota de pé de página n.° 323.) Como ele mesmo o disse: "Ainda quea se presuma a validade absolutamente da feliz, fórmula radiação, enquanto ela ocupar posição de uma lei descoberta por umaprecisa intuição não da se poderá esperar que possua mais que uma importância formal. Por essa razão, no mesmo dia em que a formulei, principiei a dedicar-me à tarefa de conferir-lhe um verdadei ro sentido físico” (Scientific e Biography, p. 41). Mas a importância principal de “conferir à fórmula um sentido físico” — não necessariamente unj “verda deiro sentido físico” — é que uma interpretação dessa natureza conduz com freqüência a um programa sugestivo de pesquisa e ao crescimento.
288. Primeiro pelo próprio Planck, em seu ensaio d e 1900, “Zur Theorie des Gesetzes der Energieverteilung im Normalspektrum”, que “fundou” o programa de pesquisa da teoria quântica.
206
Bose-Einstein. 28 9 A progressividade do novo desenvolvimento foi claríssima: na versão de Planck ele predizia corretamente o valor da constante de BoltzmanPlanck e na versão de Einstein predizia uma série estonteante de fatos novos adicionais. 29 0 Mas a ntes da invenção das novas hipóteses auxiliares do programa velho — novas, porem tristemente ad hoc — , antes do desenrolar do programa novo, e antes da descoberta dos novos fatos que indicavam uma transferência progressiva de pr oblemas neste último, a importância objetiva das expe riências de Lummer-Pringshe im era muito limitada.
(d 3 ) Desintegração beta versus leis da conservação. Finalmente, contarei a história de uma experiência que quase se tornou “a maior experiência negativa na história da ciência”. A his tória também ilustra as supremas dificuldades que encontramos para decidir exatamente o que aprendemos com a experi ência, o que esta “prova’ e o que “refuta”. A parte da experiência submetida a exame será a “observação” da desintegração beta, de Chadwick, em 1914. A história mostra uma experiência apresentando, a princípio, um enigma de rotina num programa de pesquis a, depois quase promovida ao posto de “experiência crucial”, e depois novamente rebaixada para apresentar um (novo) enigma de rotina, tudo isso dependendo de todo o mutável 29 1 panorama teórico e empírico. A maioria dos relatos convencionais, confundidos por essas mudanças, prefere falsificar a história.
Quando Chadwick descobriu o espectro contínuo da desintegração radioativa beta em 1914, ninguém supôs que esse curioso fenômeno tivesse alguma relação com as leis da conservação. Ofereceram-
289. Isso Já tinha sido feito por Planck, mas apenas inadvertidamente e, po r assim The Old Quantum Th eory, de 1967, p. 18. Com efeito, o papel dizer, por engano. Cf. Ter Haar, de Pringsheim e Lummer foi estimular a análise crítica das deduções informais na teoria quântica da radiação, dedu ções carregadas de “lemas ocultos” vitais, expressos apenas no desenvolvimen to subseqüente. Um passo importantíssimo nesse “proceso de articulação” foi o de Ehrenfest, “Welche Züge der Lichtquantenhypothese spielen in der Theo - rie der Warmestrahlung eine wesentliche R olle?”, 1911. 290. Cf., por exemplo, a lista de 1910 de Joffé (Joffé, “Zur Theorie der Strahlungserscheinungen” , 1911, p. 547). 291. Notável ex ceção pa rcial é o relato de Pauli ( Pauli, "Zu r ãlteren und neueren Geschichte d es Neutrinos”, 1958). Nas linhas que se seguem tento, ao mesmo tempo, corrigir a história de Pauli e mostrar que sua racionalidade pode ser facilmente vista à luz do nosso enfoque.
207
se em 1922 duas engenhosas explicações rivais, ambas dentro da estrutura da física atômica da época, uma de L. Meitner, outra de C. D. Ellis. De acordo com a Srta. Meitner, os elétrons eram, em parte, elétrons primários do núcleo e, em parte, elétrons secundários da envoltória eletrônica. De acordo com o Sr. Ellis, eram todos elétrons primários. Ambas as teorias continham sofisticadas hipóteses auxiliares, mas ambas predisseram fatos novos. Os fatos preditos se contradisseram uns aos outros e o testemunho experimental sustentou Ellis contra Meitner.- 112 A Srta. Meitner ap elou; o “tribunal de apelação” experimental recusou-lhe apoio, mas sentenciou que uma hipótese auxiliar 29 3
crucial O resultado da briga foi um empate.da teoria de Ellis tinha de ser rejeitada. Mesmo assim ninguém pensaria que a experiência de Chadwick desafiasse a lei da conservação da energia, se Bohr e Kramers, exatamente na ocasião da controvérsia entre Ellis e Meitner, não tivessem chegado à conclusão de que só poderiam desenvolver uma teoria coerente se renunciassem ao princípio da conservação da energia em processos simples. Um dos traços principais da fascinante teoria de Bohr-Kramers-Slater em 1924 era que as leis clássicas da conserv ação da energia e do momento tinham sido substituíd as por leis estatísti cas. 29 4 Essa teoria (ou, melhor, “programa”) foi imediatamente “refutada” e nenhuma das suas conseqüências corroborada; com efeito, nunca foi suficientemen te desenvolvida para (não explicar beta. Masque lhe a despeito do abandono imediato do programa só pora desintegração causa das “refutações” opuseram as experiências de Compton- Simon e de Bothe-Geiger, mas também por causa da emergência de um poderoso rival: o programa Heis enberg Schrõdinger 29 5 ), Bohr permaneceu convencido de que as leis não -estatísticas da conservação
292.
Ellis e Wooster, "The Average Energy of Desintegration of Radium E”, 1927.
293. Meitner e Orthmann, “Über eine absolute Bestimmung der Ener - gie der primáren — Strahlen von Radium E”, 1930. 294. Slater só cooperou com relutância no sacri fício do princípio de conservação. E screveu a van der Waerden em 1964: “Como você suspeitava, a idéia da conservação estatística da energia e do momento foi posta em teoria por Bohr e Kramers, contrariando o meu ponto de vista.” Van der Waerden faz comicamente o que pode para exonerar Slater do crime terrível de ser responsável por uma teoria falsa (van der Waerde, Source of Quantu m Mechanics, 1967. 295. Popper não tem razão quando sugere que essas “refutações” foram suficientes para provocar a derrocada da teoria. (Popper. Gonjectur es and Refut ations, p. 242.)
208
teriam de ser finalmente abandonadas e que a anomalia da desintegração beta só seria explicada quando essas leis fossem substituídas; e, nessa ocasião, a desintegração beta seria vista como uma experiência crucial contrária às leis da conservação. Conta-nos Gamow que Bohr tentou usar a idéia da não-conservação da energia na desintegração beta para uma engenhosa explicação da produção 29 0 aparentemente eterna de energia nas estrelas. Só Pauli, em seu anseio 29 7 mefistofélico de desafiar o Senhor, permaneceu conservador e engenhou, em 1930, sua teoria do neutrino para explicar a desintegração beta e salvar o princípio da conservaçã energia. Comunicou carta ele faceta dirigida a uma conferência oemdaTübingen — - pois emsua vez idéia de ir ànuma conferência preferiu ficar em Zurique para assistir a um baile. 29 8 Aludiu a ela, pela primeira vez, numa conferência pública em 1931 em Pasadena, mas não permitiu que a conferência fosse publicada, porque se sentia “inseguro” em relação à idéi a. Bohr, nessa ocasião (1932), ainda pensava que — pelo menos em física nuclear 29 9 — talvez fosse preciso “renunciar à própria idéia do equilíbrio da energia”. Pauli decidiu afinal publicar sua palestra sobre o neutrino, que pronunciou na conferência de S olvay em 1933, conquanto “ a recepção do congresso, : excetuando-se dois jovens físicos, fosse céi ca”. 30 0 Mas a teoria de Pauli possuía méritos metodológ icos. Salvou não só o pri ncípio da conservação da energia mas também o princípio da conservação do spin e da estatística: explicava não só o espec tro da desintegração beta mas também, ao mesmo tempo, a “anomalia
296. Gamow, Th ir ty Ye ars that Shook Physics , 1966, pp. 72-4. Bohr nunca publicou essa teoria (que, tal como se achava não poderia ser testada) “ma s tinha- se a impressão” — escreveu Gamow — “de que ele não ficaria muito surpreendido se ela fosse verdadeira”. Gamow não precisa a data da teoria não-publicada, mas parece que Bohr se ocupou dela em 1928-9, quando Gamow trabalhava em Copenhague. 297. Cf. a divertida peça “Fausto” produzida no instituto de Bohr em 1932; publicada por Gamow como apêndice do seu livro Thi r ty Ye ars that S hook Phyhi cs, 1966. 1958.
298.
Cf. Pauli, "Zur alteren und
neueren Geschichte des
Neutrinos”,
299. Bohr, “Light and Life”, 1933. Ehrenfest também ficou do lado de Bohr contra o neutrino. O descobrimento do nêutron, levado a efeito por Chadwick em 1932, abalou-lhes apenas levemente a oposição: eles ainda temiam a idéia de uma partícula sem carga e até, possivelmente, sem massa (em repouso), e tendo apenas spin “desencorpado”. 300.
Wu, “Beta Decay”, 1966. 209
do nitrogênio”. 301 Consoante os padrões Whewellianos, essa “confluên cia de induções” deveria ter sido suficiente para estabelecer a respeita bilidade da teoria de Pauli. De acordo, porém, com os nossos critérios, fazia-se mister a predição bem-sucedida de alguns fatos novos. Isso também foi propiciado pela teoria de Pauli, que tinha uma conseqüência observável interessan te: se estivesse certa, os espectros-^ teriam de ter uma área superior clara. Essa questão, na oportunidade, 302 não ficou decidida, mas Ellis e Mott passaram a interessar-se e, logo, um aluno de Ellis, Henderson, mostrou que as experiências confirma vam o programa de Pauli. 303 Bohr não se deixou impressionar. Sabia que, se se encetasse algum dia um programa importante baseado na conservação estatística da energia, o cinto crescente de hipóteses auxiliares daria conta da evidência de aspecto mais negativo. De fato, nesses anos, a maioria dos físicos mais notáveis supôs que na física nuclear as leis da conservação da energia e do aumento deixariam de funcionar. 30 4 A razão foi exposta claramente por Lise Meitner, que só em 1933 admitiu a derrota: “Todas as tentativas para defender a validade da lei da simples exigiam um segundo conservação da energia também em processos processo [na desintegração beta] . Mas esse processo não foi encontrado...” 305 : isto é, o programa de conservação relativo ao núcleo mostrava uma transferência de problema degenerativo. diversas tentativas engenhosas paraempiricamente explicar o espectro contínuo deFizeram-se emissão beta sem presumir a 30 1 existência de uma “partícula ladra”. '’ Embora tenham
30 1. Sobre uma fascin ante discu ssão dos pr oblema s abert os apre sentado s pela desintegração beta e pela anomalia do nitrogênio, cf. a Conferência Faraday de Bohr em 1930, lida antes mas publicada depois da solução de Pauli (Bohr, “Chemistry and the Quantum Theory of Atomic Constitution”, 1930, especialmente as pp. 380-3). 302. Ellis e Mott , “Energy Relations in the /3 -Ray Type of Radioactive Desintegrations”, 1933. 303. Henderson, “The Upper Limits of the Continuou s /J-ray Spectra of Thorium C and C 11”, 1934. 304. Mott, "Wellenmechanik und Kernphysik”, 1933. Heisenberg, no seu célebre trabalho de 1932, em que apresentou o modelo prótonnêutron do núcleo, assinalou que “Em virtude do colapso da conservação da energia na decomposição beta não se pode dar uma definição única da energia aglutinadora do elétron dentro do nêutron” (p. 164). 305.
Meitner, “Kernstruktur”, 1933, p. 132.
306. Como, por exemplo, Thomson, “O n the Waves associated with /J - rays, and the Relation between Free Electrons and theis Waves”, 1929, e Kudar, “Der wellenmechanische Charakter des /J-Zerfalls, I-IIIII”, 1929 -30.
210
30 7 sido discutidas com grande interesse, essas tentativas foram abandonadas porque não conseguiram estabelecer uma transferência pro gressi va.
Nesse ponto, Fermi entrou em cena. Em 1933 -4 ele reinterpretou o problema da emissão beta na estrutura do pr ograma de pesq uisa de uma nova teoria quântica. Dessa maneira, deu início a um pequeno e novo programa de pesquisa do neutrino (que mais tarde veio a ser o pr ogra ma das interações 30 8 fracas). Calculou alguns dos primeiros modelos toscos. Se bem sua teoria ainda não tivesse predito nenhum fato novo, deixou claro que isto era apenas uma questão de algum trabalho futuro. Dois anos se passaram e a promessa de Fermi ainda não se tinha cumprido. Mas o novo programa de física quântica desenvolveu-se depressa, pelo menos no que dizia respeito aos fenômenos não-nuclea- res. Bohr convenceu-se de que algumas das idéias srcinais básicas do programa Bohr-Kramers-Slater se achavam agora firmemente engastadas no novo programa quântico e que o programa novo resolvera os problemas teóricos intrínsecos do velho progra ma quântico sem tocar nas leis da conservação. Por isso mesmo, Bohr acompanhou o trabalho de Fermi com simpatia e, em 1936, numa insólita seqüência de acontecimentos, apoiou-o publicamente, conquanto a sua atitude, pelos nossos padrões, fosse um ta nto premat ura. Em 1936 Shankland ideou um novo teste de teorias rivais de espalhamento de fótons. Seus resultados pareciam dar apoio à teoria refugada de BohrKramers-Slater e solapar a confiabilidade de experiências que, mais de uma década antes, a refutavam. 3 " 1 ’ O trabalho de Shankland causou sensação. Os físicos que detestavam a nova tendência deram-se pressa a saudar a experiência de Shankland. Dirac, por exemplo, não tardou a dar as boas-vindas ao programa “refutado” de Bohr -Kramers-Slater, que voltava, escreveu um artigo incisivo contra a “chamada eletrodinâmica quântica” e exigiu “uma profunda alteração das idéias teóricas atuais, envolvendo um afastamento das l eis da conservação fim de) obter uma mecânica quântica relati-
307. Sobre uma discussão interesantíssima, cf. Rulherford, Chadwick
e Ellis,
\a
Radiations
f r om Radioacti ve Substances , 1930, pp. 335-6.
308. Fermi, “tentativo di una teoria deiremissione dei raggi ‘beta"’, 1933 e “Versuch einer Theorie der /3- Strahlen. I”, 1934. 309. Shankland, “Michelson - Morley Experiment”, 1936.
vista satisfatória”. 31 0 No artigo, Dirac tomou a sugerir que a desintegração beta pode muito bem revelar-se uma peça de evidência cru cial contra as leis da conservação e ridiculari zou a “nova partícula inobservável, o neutrino, especialmente postulado por alguns investigadores na tentativa de preservar a conservação da energia, presumindo que a partícula inobservável lograria o equilíbrio”. 31 1 Logo depois Peierls se juntou à discussão e sugeriu que a experiência de Shankland talvez fosse até capaz de refutar a conservação estatística da energia. E acrescentou: “Isso também parece satisfatório, depois que tiver sido abandonada a conservação particularizad a.” 312 No instituto de Boh em Copenhague, as experiências de Shan kland foram imediatamente repetidas e postas de lado. Jacobsen, colega de Bohr, relatou esses fatos numa carta a Nature. Os resultados de Jacobsen foram acompanhados por uma carta do próprio Bohr, que saiu firmemente a campo contra os rebeldes e em defesa do novo programa quântico de Heisenberg. Empenhou-se, sobretudo, na de fesa do neutrino contra Dirac: “Observe -se que as razões para dúvidas sérias no tocante à rigorosa validade das leis da conservação no problema da emissão dos raios-/ 3 dos núcleos atômicos foram agora em grande parte removidas pelo acordo sugestivo entre a prova experimental, que aumenta rapidamente, tocante aos fenômenos dos raios-£ e as conseqüências das 3 neutrino de Pauli, tão notavelmente desenvolvidas na teoria de hipóteses31do Fermi.” Em sua primeira versão, a teoria de Fermi não teve nenhum sucesso empírico notável. Com efeito, até os dados disponíveis, especialmente no caso de RaE, em que centralizou a pesquisa da emissão beta, contradiziam vigorosamente a teoria de Fermi de 1933-4. Ele queria tratar desses dados na segunda parte do seu trabalho, que, todavia, nunca se publicou. Ainda que se interprete a teoria de Fermi de 1933-4 como a primeira versão de um programa flexível, por volta de 1936 não era possível detectar nenhum sinal sério de uma autoridade transferência progressiv a. 31 4 Mas Bohr desejava colocar sua
310.
Dirac, "Does Conservation of Energy Hold in
311. 312. 313.
Ibid.
Atomic Processes?”,
1936. Peierls, “Interpretation of Shankland’s Experiment”, 1936. Bohr, “Conservation Laws in Quantum Theory”, 1936.
314. Entre 1933 e 1936, v ários físico s ofereceram alternativas o u propuseram mudanças ad hoc da teoria de Fermi; cf., por exemplo, Becke e Sitte, “Zur Theorie des /J Zerfa lls”, 1933, Bethe e Peierls, “The ‘Neutrino’”, 1934,
212
por trás da ousada aplicação de Fermi ao núcl eo do novo grande pr o grama de Heisenberg; e como a experiência de Shankland e os ataques de Dirac e Peierls haviam focalizado na desintegração beta a crítica do novo grande programa, ele pôs nas nuvens o pr ograma do neutrino de Fermi, que prometia preencher uma lacuna sensível. Esse último desenvolvimento, sem dúvida, poupou a Bohr uma dramática humilhação: os programas baseados nos princípios da conservação progrediram, ao mesmo tempo que não se fez nenhum progress o no ca mpo rival. 31 5 A moral da do história, maisdauma vez, é que o emstatus umaenvolvida. experiência “crucial” depende status competição teórica que sedeacha À tão maneira que crescem ou minguam as fortunas dos campos concorrentes, a interpretação e a avaliação da experiência podem mudar. Nosso folclore científico, no entanto, está impregnado de teorias de racionalidade instantânea. A história que contei, falseada na maioria dos relatos, foi reconstruída nos termos de alguma teoria errônea da racionalidade. Até nas exposições mais populares abundam esses falseamentos. Permitam-me mencionar dois exemplos. Num ensaio aprendemos o seguinte acerca da desintegração beta: “Quando esta situação foi enfrentada pela primeira vez, as alternativas
Konopinski e Uhlenbeck, “On the Fermi theory of /} -radioactivity", 1935. Wu e Moszkowski escreveram, em 1966, que “a teoria [isto é, o programai dc desintegração beta de Fermi, da desintegração, mas também a forma dos espectros beta". Mas acentuam que “logo no c om e ç ativos artificiais, RaE era o único candidato que satisfazia belamente a muitos requisitos experimentais como uma fonte $ para a investigação da forma do seu espectro. Como poderíamos ter sabido que o espectro 0 de RaE se revelaria apenas um c aso muito especial, um caso cujo espectro, na verdade, só foi compreendido muito recentemente? Sua dependência peculiar da energia desafiava o que se esperava da simples teoria de Fermi da desintegração /J e retardou de forma considerável o ritmo do progresso inicial da teoria fisto é. do programa]” (Wu e Moszkowski, B eta D ecay , 1966, p. 6).
315. É muito duvidoso que o programa do neu trino de Fermi fosse progressivo ou degenerativo mesmo entre 1936 e 1950; e depois de 1950 o vere- dito ainda não está cristalinamente claro. Discutirei, porém, o assunto em outro lugar qualquer. (A propósito, Schrõdinger defendeu a interpretação estatística dos princípios de conservação a despeito do seu papel crucial no desenvol vimento da nova física quântica; cf. seu ensaio intitulado, “Might perhaps Energy be merely, a Statistical Concept?”, 1958.)
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pareciam sombrias. Os físicos tinham de aceitar o desmoronamento da lei da conservação da energia ou supor a existência de uma partícula nova e não-vista. Essa partícula, emitida juntamente com o próton e o elétron na desintegração do nêutron, poderia salvar o pilar central da física ficando com a energia faltante. Isso aconteceu no começo da década de 1930, quando a introdução de uma nova partícula não era o assunto casual de hoje. Não obstante, só depois da mais breve 3, 6 Está claro que as das vacilações, os físicos ootaram nela segunda alternativa.” alternativas discutidas foram bem mais do que duas e que a “vacilação” não fo por certo, “a mais breve”.
i,
Num conhecido comnêndio de filosofia da ciência aprendemos que (1) “a lei (ou princípio) da conservação da energia foi seriamente contestada pelas experiências sobre a desintegração dos raios beta. cujo resultado não poderia ser negado”; que (2) apesar disso, a lei não foi abandonada, presumindo -se a existência de uma nova espécie de entidade (chamada “neutrino”) a fim de estabelecer a concordância entre a lei e os dados experimentais”; e que (3) “a razão fundamental dessa suposição é que a rejeição da lei da conservação privaria grande parte do nosso conhecimento físico de sua coerência sistemática”. 317 Mas os três pontos estão errados; (1) está errado porque nenhuma lei pode serelaboram “seriamente contestada” só por experiências; ( 2) está errado porque não se hipóteses só para preencher lacunas científicas entre os dados e a teoria, senão para predizer fatos novos; e (3) está errado porque, na ocasião, pa recia aue só a rejeição da lei da conservação asseguraria a “coerência sistemática” do nosso conhecimento físico.
(d 4) Conclusão. O resultado do desenvolvim ento contínuo. Não existem esperiências cruciais, pelo menos não existem se por elas se entenderem experiências capazes de derrubar instantaneamente um programa de pesquisa. Com efeito, quando um progra ma de pesquisa sofre uma derr ota e é suplantado por outro, podemos — numa longa visão retrospectiva — chamar crucial a uma experiência se se verificar que ela propiciou uma corroboração espetacular do programa vitorioso e o fracasso do programa derrotado (no sentido de que nunca foi “explicada progressivamente — ou, numa palavra, “expli -
316. Treiman, “The Weak Interactions”, 1959; o grifo é meu. 317. Nagel, The Stru ctur e of S cience , 1961, pp. 65-6. 318. Cf. mais acima, p. 145, nota de pé de página n.° 112.
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cada” 31 8 — pelo programa derrotado). Está visto, porém, que os cientistas nem sempre julgam corretamente situações heurísticas. Um cientista precipitado pode afirmar que sua experiência derrotou um programa, e partes da comunidade científica podem até, precipitadamente, aceitar-lhe a afirmativa. Mas se um cientista do campo “derrotado” apresentar, alguns anos depois, uma explicação cienlífica da pretensa “experiência crucial” no programa pretcnsamcnte derrotado, o título honorífico pode ser retirado e a "experiência crucial" pode converter-se, de uma derrota, numa nova vitória para o programa. Os exemplos abundam. muitas experiências no século que foram, de um ponto de vista Fizeram-se histórico-sociológico, amplamente aceitasXVIII como evidência “crucial” contra a lei da queda livre de Galileu e a teoria da gravitação de Newton. No século XIX houve diversas “experiências cruciais” baseadas em mensurações da veloci dade da luz que “refutavam” a teoria corpuscular e que, mais tarde, se revelaram errôneas à luz da teoria da relatividade. Tais “experiên cias cruciais” foram depois eliminadas dos compêndios justificacio - nistas como manifestações de vergonhosa miopia ou até de inveja. (Recentemente reapareceram em alguns manuais, desta feita para ilustrar a inevitável irracionalidade das modas científicas.) Entretanto, nos casos em que “experiências” ostensivamen te “ cruciais” foram, de fato, confirmadas mais tarde pela derr ota resapreço tacharam dea estúpidos, invejosos e aduladores do do pai programa, do programaosdehistoriado pesquisa em os que elas resistiram. (“Sociológos do conhecimento” que estão na moda — ou “psicólogos do conhecimen to” — tendem a explicar posições em termos puramente sociais ou psicológicos quando, na realidade, elas são determinadas por princí pios de racionalidade. Um exemplo típico é a explicação da oposição de Einstein ao princípio da complementaridade de Bohr sob a alegação de que “em 1926 Einstein tinha quarenta e sete anos. Quarenta e sete anos podem ser a plenitude da vida, mas não para físicos”. 31 9 )
319. Bernstein, A Compr ehensible Wo r ld: On M odem Sc ience and its Ori gin s, 1961, p. 129. A- fim de avaliar elementos progressivos e degenerativos em transferências de problema rivais precisamos compreender as i dé i as envolvidas. Mas a sociologia do conhecimento serve com freqüência de cobertura de sucesso para a ignorância: a maioria dos sociólogos do conhecimento não entende as idéias nem mesmo se interessa por elas; limita-se a observar os modelos sociopsicológicos de comportamento. Popper costumava contar uma história a respeito de um “psicólogo social", o Dr. X, que estudava o compor tamento de um grupo de cientistas. Tendo participado de um seminário de física no intuito de estudar a psicologia da ciência, observou a "emergência de um líder”, o “efeito de agrupamento em torno” em alguns e a “reação de
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À luz de minhas considerações, a idéia da racionalidade instantânea pode ser vista como utópica. Mas essa idéia utópica é a marca registrada da maior parte das epistemologias. Os justificacionistas queriam que as teorias científicas fossem provadas antes até de ser publicadas; os probabilistas esperavam que uma máquina pudesse dar instantaneamente o valor (grau de confirmação) de uma teoria, em fase da evidência; os falseacionistas ingcnuos esperavam que a expeeliminação fosse ao menos o resultado instantâneo do veredito da 32 0 riência r. Espero haver demonstrado que todas essas teorias da racionalidade
instantânea — e de aprendizado instantâneo — fracassam. Os estudos de casos desta seção mostram que a racionalidade trabalha muito mais devagar do que a maioria das pessoas tende a pensar e, mesmo assim, falivelmente. A coruja de Minerva voa ao cair da noite. Também espero ter mostr ado que a continuidade na ciência, a tenacidade de algumas teorias, a racionalidade de certa dose de dogmatismo só poderão ser explicados se interpretarmos a ciência como um campo de batalha onde pelejam programas de pesquisa muito mais do que teorias isoladas. Pode compreende r-se muito pouco do cres cimento da ciência quando o nosso paradigma de uma quantidade apreciável do conhecimento científico é uma teoria isolada como “Todos os cisnes são brancos”, que permanece à distância, sem se achar envolvida num programa importante de pesquisa. Meu relato implica um novo critério de demarcação entre a
"ciência matura”, que con siste em programas de pesquisa, e "ciência imatura”, que consiste simplesmente
num remendado padrão de ensaio-e-erro. 321 Podemos, por exemplo, fazer uma conjectura, vê-la refutada e depois salva por uma hipótese auxiliar que não é ad hoc nos sentidos discutidos anteriormente. Ela talvez prediga fatos novos, alguns dos quais podem até
defesa" em outros, a correlação entre a idade, o sexo e o comportamento agressivo, etc. (O Dr. X afirmava ter usado algumas técnicas sofisticadas de pequenas amostras de estatística moderna.) No fim do entusiástico relato Pop per perguntou ao Dr. X: ‘‘Qual era o problema que o grupo estava discutindo?” O Dr. X ficou surpreso: “Por que pergunta? Não prestei atenção às palavras ! Afinal de contas, que é o que tem isso com a psicologia do conhecimento?”. 320. É claro que o s falseacio nistas ingên uos talv ez levem algum tempo par a chega r ao “veredito da experiência”: a experiência tem de ser repetida e considerada com espírito crítico. Mas depois que a d iscussão termina num acordo entre os entendidos, e assim se torna “aceito” um “enunciado básico”, e se decide qual foi a teoria específica atingida por ele, o falseacionista ingê nuo terá pouca paciência com os que ainda “prevaricarem”. 321. A elabora ção dessa demarcação nos do is parágra fos segu intes foi melhorada no prelo, depois de discussões inestimáveis com Paul Meehl em Minneapolis em 1969.
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ser corroborados. 322 Ainda assim é possível alcançarse tal “ progres so” com uma série arbitrária e remendada de teorias desconexas. Mas para os bons cientistas esse progresso témporário não será satisfatório; eles poderão até rejeitá-lo por não ser genuinamente científico. Qualificarão tais hipóteses auxiliares simplesmente de “formais”, “arbitrárias”, “empíricas”, “semi -empíricas”, ou mesmo “ ad hoc".™
A ciência matura consiste em programas de pesquisa em que se antecipam não só fatos novos mas também, num sentido importante, novas teorias auxiliares; a ciência madura — á diferença do ensaio- -e-erro corriqueiro — tem “força heurística”. Não nos esqueçamos de que na heurística positiva de um programa poderoso, desde o começo, há um esquema geral de construção dos cintos protetores: essa força heurística gera a autonomia da ciência teórica.* 21 O requisito do crescimento contínuo é minha reconstrução racional do requisito amplamente reconhecido da “unidade" ou “beleza” da ciência. Ele focaliza a fraqueza de dois tipos — aparentemente muito diferentes — da teorização. Primeiro, mostra a fraqueza de programas que, como o marxismo ou o freudismo, são sem dúvida, “unificados”, e dão um apanhado geral da espécie de teorias auxiliares que usarão na absorção de anomalias, mas que planejam infalivelmente suas teorias auxiliares reais na esteira de fatos sem, ao mesmo tempo, antecipar outros. (Que fato novo predisse, o marxismo, digamos, desde 1917?) Em segundo lugar, mostra séries remendadas.
322. Anteriormente, em meu ensaio de 1968 , “Changes in the Problem of Inductive Logic”, distingui, acompanhando Popper, dois critérios de ad- -hoci dade . Chamei ad hoc, às teorias que prediziam fatos novos mas falhavam completamente: nada do seu excesso de D conteúdo foi corroborado (cf. também 135, e p. mais acima, à p. 152, nota de pé de página n. 152, nota de pé de página n.° 136). 323. A fórmula da radiação de Planck — dada em seu ensaio de 1900, “Über eine Verbesserung der Wienschen Spektralgleichung” — é um bom e xemplo: cf. mais acima, p. 206, nota de rodapé n.° 287. Podemos chamar a essas hipóteses, que não são ad hoc,, nem ad hoc s, mas ainda insatisfatórias no s entido especificado no texto, ad hoc* . Esses três empregos de ad h oc — infalivelmente pejorativo s — proporcionarão um verbete satisfatório ao Oxford Engli sh Dictionary.
É curioso notar que os termos “empírico" e "formal" são usados como sinônimos do nosso ad hoc a. Em seu brilhante ensaio de 1967, "Theory Testing in Psychology and Physics: a Methodolo gical Paradox”, Meehl refere que na psicologia contemporânea — especialmente na psicologia social — muitos pretensos “programas de pesquisa” consistem, na realidade, em cadeias de estratagemas ad hoci. 324. Cf. mais acima, p. 168.
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destituídas de imaginação, de ajustamentos “empíricos” corriqueiros, •tão freqüentes, por exemplo, na moderna psicologia social. Com a ajuda das chamadas “técnicas estatísticas”, tais ajustamentos podem fazer algumas predições “novas” e podem até fazer com que nelas apareça algumas sementes sem importância de verdade. Mas essas teorizações não têm idéia unificadora, não têm força heurística, não têm continuidade. Não significam um autêntico programa de pesq uisa e são, de um modo geral, inteiramente sem valor. 32 5 Conquanto baseado no deidéias Popper, meuEndosso relato daaté racionalidade afasta-se de algumas das suas gerais. certo pontocientífica não só o convencionalismo de Le Roy em relação às teorias, mas também o convencionalism o de P opper em relação às proposições básicas. Neste sentido os 326 cientistas (e, como já demonstrei, os matemáticos também ) não são irracionais quando tendem a ignorar exemplos contrários ou, como preferem chamar-lhes, exem plos “recalcitrantes” ou “residuais”, e seguem a seqüência de problemas tal como foi prescr ita pela heurís tica positi va do seu programa, e 32 7 elaboram — e aplicam — suas teorias sem dar-lhes maior atenção.
325. Depois de ler o ensaio de Meehl, “Theory Testing in Psychology and Physics” (1967) e o de Lykken, “Statistical Significance in Psychological Research” (1968) ficamos a imaginar se a função das técnicas estatísticas nas ciências sociais não é, principalmente, fornecer um maquinismo para produzir corroborações espúrias e, desse modo, uma aparência de “progresso científico” onde, na verdade, não há nada mai s que um acréscimo de lixo pseudo-inte- lectual. Meehl escreve que "nas ciências físicas, o resultado habitual de um aperfeiçoamento do modelo exprimental, da instrumentação ou da massa numérica de dados, é aumentar a dificuldade da "barreira observaciona l” que a teoria física do interesse precisa sobrepujar com êxito; ao passo que na psicologia e em algumas ciências aliadas do comportamento, o efeito costumeiro dessa melhoria na precisão experimental é fornecer uma barreira que a teoria transpõe com maio r facilidade”. Ou, como disse Lykken: “A importância estatística [em psicologia] talvez seja o atributo menos importante de uma boa experiência; nunca é condição suficiente para se afirmar que uma teoria foi utilmente corroborada, que se estabeleceu um fato empírico significativo, ou que um relato da experiência deve ser publicado.” Parece -me que a maior das teorizações condenadas por Meehl e Lykken talvez seja ad hoto. Desse modo, a metodologia dos programas de pesquisa talvez nos ajude a elaborar as leis para deter essa poluição intelectual, capaz de destruir nosso meio cultural antes até que a poluição industrial e do tráfego destrua nosso meio físico.
326. Cf. meu ensaio de 1963- 4 intitulado “Proofs and Refutations”. 327. Assim se esvai a assimetria metodológica entre os enunciados universais e os singulares. Podemos adotar qualquer um dos dois por convenção: no “núcleo” decidimos “aceitar” enunciados universais; na “base empírica”, enunciados singulares. A assimetria lógica entre os enunciados universais e os singulares só é fatal para o indutivista dogmático que só quer aprender com
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Contrariando a moral falseacionista de Popper, os cientistas freqüente e racionalmente proclamam “que os resulta dos experimentais não merecem confiança, ou que as discrepâncias que se afirmam existir entre os resultados experimentais e a teoria são apenas aparentes e desaparecerão com o progresso do nosso entendimento”. 328 Pode ser que, ao fazê-lo, eles não estejam “adotando 32 0 o próprio inverso da atitude crítica que. . . é a atitude apropriada ao cientista”. Popper, na verdade, tem razão ao acentuar que “a atitude dogmática de afer rar-se a uma teoria pelo maior tempo possível é de considerável importância. Sem ela, talvez nunca descobríssemo s o que há numa teoria — abriríamo s mão da teoria antes de ter uma oportunidade real de descobrir -lhe a força: e, em conseqüência disso, nenhuma teoria seria jamais capaz de representar o seu papel de trazer ordem ao mundo, de preparar-nos para acontecimentos futuros, de chamar nossa atenção para acontecimentos que, de outro modo, nunca observaría mos”. 33 0 Assim, o “dogmatismo” da “ciência normal” não impede o crescimento enquanto o combinamos com o reconhecimen to poppe- riano de existência de uma ciência normal, progressiv a e boa e de uma ciência normal, degenerati va e má, e enquanto mantemos a determinação de eliminar, sob certas condições objetivamente definidas, alguns programas de pesq uisa. A atitude dogmática na ciência — que explicaria seus períodos estáveis — foi descrita po r Kuhn como um traço fundamental da “ ciência normal”. 33 1 Mas a estrutura conceptual de Kuhn para lidar com a continuidade na ciência é sociopsicológica: a minha é normativa. Olho para a continuidade na ciência através de “óculos popperia -
a experiência e a lógica. É claro que o convencionalista pode "aceitar” a assi metria lógica: ele não tem de ser (embora possa sê- lo) também um indutivista. “Aceita” enunciados universais, mas não porque afirma deduzi-los (ou induzilos) dos singulares. 328.
Popper, L ogi k de r F orschung,
1934, seção 9.
329. Ibid. 330. Popper, “What is Dialectic?”, primeira nota de pé de página. En contramos um reparo semelhante em seu livro Conjectur es and Rejutati ons , 1963, p. 49. Mas esses reparos estão em contradição prima facie com algumas de suas observações (L ogik d er F orschung, 1934) (citadas mais acima, à p. 135 e, por conseguinte, só podem ser interpretados como sinais de uma percepção popperiana cada vez mais aguda de uma anomalia não-digerida em seu próprio programa de pesquisa. 331. Com efeito , meu critério de demarcação entre a ciência madu ra e a imatu ra pode ser interpretado como absorção popperiana da idéia de “normalidade” de Kuhn como marco distintivo de ciência [madura]; e também
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nos”. Onde Kuhn vê “paradigmas”, racionais.
também vejo “programas de pesquisa”
4. O PROGRAMA DE PESQUISA POPPERIANO VERSUS O PROGRAMA DE PESQUISA KUHNIANO Sumariem os agora a controvérsia Kuhn -Popper. Mostramos que Kuhn está certo quando faz objeçõés ao falseacionismo tenacidade ingênuo e quando acentua a continuidade do crescimento científico, a de algumas teorias científicas. Mas Kuhn está errado ao pensar que, pondo de lado o falseacionismo ingênuo, pôs de lado, por essa maneira, todas as classes de falseacionismo. Kuhn opõe objeções a todo o programa popperiano de pesquisa e exclui qualquer possibilidade de reconstrução racional do crescimento da ciência. Numa sucinta comparação entre Hume, Camap e Popper, Watkins assinala que o crescimento da ciência é indutivo e irracional segundo Hume, indutivo e racional segundo Carnap, não-indutivo e racional segundo Popper. 33 2 Mas a comparação de Watkins pode ser estendida para acrescentar No entender de Kuhn não pode que ele é não-indutivo e irracional segundo Kuhn.
haver lógica, mas apenas psicologia da descoberta .333 Na concepção de Kuhn, por exemplo, as anomalias e i ncoerências sempre abundam na ciência, mas em períodos “normais” o paradigma dominante assegura um padrão de cres cimento finalmente derrubado por uma “crise”. Não existe nenhuma cau sa racional determinada para o aparecimento de uma “crise” kuhniana. “Crise” é um conceito psicológico; é um pânico contagioso. Emerge então um novo “paradigma”, incomensurável com o seu pre - decessor. Não existem padrões racionais para a sua comparação. Cada
reforça meu argumento anterior contra considerar os enunciados altamente falseáveis como eminentemente científicos. (Cf. mais acima, p. 123.) A propósito, essa demarcação entre ciência madura e ciência imatura já aparece em meus ensaios “Infinite Regre ss and the Foundations of Mathematics” (1962) e “Proofs and Refutations” (1963 -4), onde chamei à primeira "adivinhação dedutiva” e à segunda “ensaio -e erro ingênuo”. (Veja, por exem plo, no ensaio de 1963-4, a seção 7(e): "Adivinhação dedutiva contra adivinha ção ingênua”.) 332.
Watkins, “Hume, Carnap and P
opper”, 1968, p. 281.
333. Kuhn, “Logic of Discovery or Psychology of Research?” 1965. Mas essa posição já se ac ha im pl íc it a em su a ob ra de 19 62 , The S tru ctur e of Scientif ic Rev oluti ons .
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paradigma contém seus próprios padrões. A crise leva embora não só as velhas teorias e regras, mas também os padrões que nos fizeram respeitá-las. O novo paradigma traz uma racionalidade totalmente nova. Não há padrões superparadigmáticos. A mudança é um efeito de adesão de última hora. Assim sendo, de acordo com a concepção de Kuhn, a revolução científica é irracional, uma questão de psicologia das multidões. A redução da filosofia da ciência à psicologia da ciência não começou com Kuhn. Uma onda anterior de “psico logismo" seguiu- se ao desmoronamento do justifícacionismo. Para muitos, o justifica- cionis mo repr esentava a única forma possível de racionalidade: o fim do justifícacionismo signif icava o fim da racionalidade. O colapso da tese de que as teorias científicas são prováveis, de que o progresso da ciência é cumulativo, fez que os justificacionistas entrassem em pânico. Se “descobrir é provar" e nada é provável, não pode haver descobertas, apenas proclamações de descobertas. Os justificacionistas desapontados — ex-justificacion istas — cuidavam que a elaboração de padrões racionais era uma atividade inútil e que a única coisa que se pode fazer é estudar — e imitar — a Mente Científica, tal como é exemplificada em cientistas famosos. Depois do colapso da física newtoniana, Popper elaborou padrões críticos novos, não-justi- ficacionistas. Alguns dos que já haviam sabido do colapso da racionalidade ficaramque sabendo, em osua maioriaAchandopor ouvir dizer, dos coloridosjustificacionista slogans de Popper sugeriam ingênuo. os insustentáveis, identificaram o colapso do ingênuo com o fim da própria racionalidade. A elaboração de padrões racionais foi novamente considerada uma empresa inútil; o melhor que se pode fazer, tornaram eles a pensar, é estudar a Mente Científica.' 1 ' 1 ' A filosofia crítica seria substituída pelo que Polanyi denominou filosofia “pós -crítica”. Mas o programa de pesquisa kuhniano contém um novo traço: não devemos estudar a mente do cientista individual, mas a mente da Comunidade Científica. A psicologia individual é substituída pela psicologia social; a imitação dos grandes cientistas pela submissão à sabedoria coletiva da comunidade. Kuhn fez grossa para falseacionismo de Popper e para oMas programa de vista pesquisa que elea iniciou. Poppersofisticado subs
334. A propósito , assim como alguns ex-justificacion istas an teriores dirigiram a onda do irracionalismo cético, assim agora alguns ex-falseacionistas dirigem a nova onda do irracionalismo cético e do anarquismo. Isso está melhor exemplificado em Feyerabend, “Against Method”, 1970.
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tituiu o problema central da racionalidade clássica, o velho problema dos undamentos pelo novo problema do crescimento crítico-falível, e pô-se a elaborar padrões objetivos desse crescimento. Neste ensa io tentei desenvolver um pouco mais o seu programa. Creio que este pequeno desenvolvimento é suficiente para escapar às censuras de Kuhn. 33 5 A reconstrução do progresso científico como proliferação de programas rivais de pesquisa e transferências progressivas e degenerativas de problemas fornece uma imagem da atividade científica que é de muitas maneiras diferente da imagem peladerrubamentos. sua reconstrução como uma sucessão de teorias ousadas e proporcionada seus dramáticos Seus principais aspectos foram desenvolvidos das idéias de Popper e, em particular, da sua condenação dos estra tagemas “convencionalistas”, isto é, diminuidores de conteúdo. A prin cipal diferença em relação à versão srcinal de Popper, creio eu, é que na minha concepção a crítica não mata nem deve matar — tão depressa quanto Popper imaginava. A crítica destrutiva, pura mente negativa, como a "refutação” ou a demonstração de uma inconsistência não elimina um programa. A crítica de um rograma é um processo longo e amiúde frustrante, e os programas em desenvolvimento devem ser tratados sem severidade ,336 Pode-se, naturalmente, mostrar a degeneração de um programa de pesquisa, mas só a crítica construtiva pode, com a ajuda de programas de pesquisa rivais, obter êxitos reais; e os resultados espetaculares e dramáticos só se tornam visíveis a posteriori e através da reconstrução racional.
335. De fato , co mo eu já havia mencionado, meu co nceito de um " pro grama de pe sq ui sa ” po de se r i nt er pr e ta do c om o um ob je ti v o, um a re c on st ru ção " do te rceiro mundo” do conceito sociopsicológico de “paradigma” de Kuhn: desse modo a “transferência de gestalt" kuhniana pode ser executada sem que seja preciso, para isso, tirar os óculos popperianos. (Não tratei da afirmativa de Kuhn e Feyerabend de que as teorias não podem ser eliminadas por nenhum motivo objetivo mercê da “incomensura - bilidade” das teorias rivais. As teorias incomensuráveis não são incompatíveis entre si nem comparáveis no que concerne ao conteúdo. Mas, segundo um dicionário, podemos torná-las incompatíveis e tornar-lhes o conteúdo comparável. Se quisermos eliminar um programa, necessitamos de determinação metodológica. Essa determinação é o centro do falseacionismo metodológico; por exemplo, nenhum resultado de amostragem estatística é incompatível com uma teoria estatística a não ser que as f açam os incompatíveis com a ajuda das regras popperianas de rejeição. Cf. mais acima, p. 132.)
336. A relutância dos eco nomistas e de out ros cientistas sociais em a ceitar a metodologia de Popper pode de ver-se em parte, ao efeito destrutivo do falseacionismo ingênuo sobre os programas de pesquisa que estão come çando.
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Kuhn mostrou, por certo, que a psicologia da ciência revela verdades importantes e, de fato, tristes. Mas a psicolog ia da ciência não é autônoma; pois o crescimento — racionalmente reconstruído — da ciência se verifica essencialmente no mundo das idéias, no “terceiro mundo" de Platão e de Popper , no mundo do conhecimento inteligível, que o independe de sujeitos do conhecimento.' 1 ' 17 O programa de pesquisa de Popper visa a uma descrição desse crescimento científico objetivo. 338 O programa de pesquisa de Kuhn parece visar a uma descrição da mudança na mente científica (‘normal”) (individual ou comunal). 339 Mas a imagem-espelho do terceiro mundo na mente do indivíduo — - até na mente dos cientistas “normais”
337. O primeiro mundo é o mundo material, o segun do éo mundo da consciência, o terceiro é o mundo das proposições, da verdade, dos padrões: o mundo do conhecimento objetivo. Os loci classici modernos sobre o assunto são os dois ensaios de Popper, “Epistemology without a Knowing Subject” e “On the Theory of the Objective Mind”, ambos de 1968; cf. também o impressionante programa de Toulmin exposto em seu trabalho de 1967, “The Evolutionary Development of Natural Science”. Cumpre mencionar aqui que muitos trechos de Popper em sua Logik der Forschung (1934) e até em suas Conjectures and Refutations (1963)Mas parecem descrições degístas um contraste psicológico entre a Mente Crítica ea Mente Indutivista. os termos psicolode Popper podem ser reinterpretados, numa
grande extensão, em termos do terceiro mundo: veja Musgrave, "The Objectivism of Popper’s Epistemo logy”, 1974.
338. Com efeito, o pro grama de Popper estende-se além da ciência. Os conceitos de transferências “progressivas” e “degenerativas” de problemas e a idéia da proliferação de teorias podem ser generalizadas para abranger qualquer espécie de disc ussão racional e, assim, servir de instrumentos para uma teoria geral da crít ica; cf. meus trabalhos “Popper zum Abgrenzungs- und Induktionsproblem” e “History of Science and its Rational Recons tructions”, ambos de 1971. Meu ensaio de 1963 -4, “Proofs and Refutations”, pode ser visto como a história de um programa progressivo e não-empírico de pesquis a; e meu ensaio de 1968, “Changes in the Problem of Inductive Logic” contém a história de um programa degenerativo e não-empírico de lógica indutiva.)
339. Estados de espírito reais, crenças, etc., pertencem ao segundo mundo; estados do espírito normal pertencem a um limbo entre o segundo e o terceiro. O estudo das mentes científicas reais pertence à psicologia; o estudo da mente “normal” (ou "sadia”, etc.) pertence à fi l osof ia psicol ogista da ciên ci a. Existem duas espécies de fi l osof ias psicol ogistas da ciê nci a. De acordo com uma delas não pode haver filosofia da ciência: só uma psicologia de cientistas individuais. De acordo com a outra, há uma psicologia da mente “científica”, "ideal” ou "normal”: isso transforma a filosofia da ciên cia numa psicologia da mente ideal e, ademais, oferece uma psicoterapia para transformar nossa mente na mente ideal. Discuto circunstanciadamente alhures esse segundo tipo de psicologismo. Kuhn não parece haver notado a distinção.
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— é geralmente unia caricatura do srcinal; e descrever essa caricatura sem relacioná-la com o terceiro mundo srcinal pode perfeitamente redundar na caricatura de uma caricatura. Não se pode compreender a história da ciência sem levar em conta a interação dos três mundos.
APÊNDICE
POPPER, O FALSEACIONISMO E A “TESE DUHEM - QUINE”
Popper começou como falseacionista dogmático na década de 1920; mas logo compreendeu a insustentabilidade de sua posição e não publicou coisa alguma antes de inventar o falseacionismo me todológico. Idéia de todo nova na filosofia da ciência, tem sua srcem claramente em Popper, que a aventou como solução para as dificuldades do falseacionismo dogmático. Com efeito, o conflito entre as teses de que a ciência é crítica e falível ao mesmo tempo é um dos problemas centrais da filosofia popperiana. Embora oferecesse uma formulação coerente e uma crítica do falseacionismo dogmático, Popper nunca fez uma distinção nítida entre o falseacionismo ingênuo e o sofisticado. Nu m ensaio anter ior , 340 distingui três Poppers: Pop- per 0 , Po pperi e Popper 2 . Popper 0 é o falseacionista dogmático que nunca publicou uma palavra: foi 341 inventado — e “criticado” — primeiro por Ayer e depois por muitos outros. Espero que este ensaio
340. Cf. meu ensaio de 1968, “Changes in the Problem of Inductive Logic”. 341. Ayer parece ter sido o primeiro a atribuir o falseacionismo dogmá tico a Popper. (Ayer também inventou o mito de que, de acordo com Popper, a “confutabilidade definida” era um critério não só do caráter empírico mas também do caráter significativo da proposição: cf. o seu L anguag e, Tr uth and L og ic, 1936, capítulo 1, p. 38 da segunda edição.) Ainda hoje, muitos filósofos (cf. Juhos, Über die empirische Induktion”, 1966, ou Nagel, “What is True and F alse in Science: Medawar and t he Anatomy of Research”, 1967) criticam o homem-de-palha Popper. Em seu livro publicado em 1967, The Art of the Soluble, Medawar chamou ao falseacionismo do gm áti co "uma das idéias mais vigorosas” da metodologia de Popper. Ao fazer uma crítica do livro de Medawar, Nagel criticou-o por “endossar” o que ele também acredita serem "afirmações de Popper” (Nagel, “What is True and False in Science: Medawar and the Anatomy of Research”, 1967, p. 70). A crítica de Nagel convenceu Medawar de que “o ato de falseamento não está imune ao erro humano” (Medawar, lnductio n and Intui tion in Scie ntifi c Thought,
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acabe matando o seu fantasma. Popper, é o falseacionista ingênuo e Popper 2 é o falseacionista sofisticado. O verdadeiro Popper desen- volveu-se passando da versão dogmática para a versão ingênua do falseacionismo metodológico na 'regras de aceitação” do falseacionismo sofisticado década de 1920 e chegou às na década de 1950. Mar- cou-lhe a transição o haver ele acrescentado ao requisito srcinal de testabilidade o “segundo" requisito de “testabilidade independen te” 34 2 e, a seguir, o “terceiro” requisito de que alguns desses testes 34 3
independentes em corroborações. Mas o verdadeiro Popper nunca abandonou suasresultassem primeiras (ingênuas) regras de falseamento. Ele tem exigido, até o presente, que “se estabeleçam de antemão os critérios de refutação: urge que haja consenso em torno das situa ções observáveis , se realmente observadas, que significam que a teo ria está refutada”. 34 4 Ele ainda interpreta “falseamento” como resultado de um duelo entre a teoria e a observação, sem que outra teoria melhor esteja necessariamente envolvida. O verdadeiro Popper nunca explicou circunstanciadamente o processo de apelação por cujo intermédio alguns “enunciados básicos aceitos” podem ser eliminados. Desse modo, o verdadeiro Popper consiste em Popperi com alguns elementos de Popper 2. A idéia de uma demarcação entre as transferências progressivas e as degenerativas de problemas, como foi discutida neste trabalho, baseia-se na obra de Popper: sua demarcação, na verdade, é quase idêntica ao seu célebre critério demarcatório entre a ciência e a me tafísica. 3 *5
1969, p. 54). Medawar e Nagel, porém, não souberam ler Popper: a Logik de r F ors chung deste último é a mais forte das crí ticas ao falseacion ismo dogmático que já se escreveu. Pode ter-se uma visão caridosa do erro de Medawar: para cientistas brilhantes cujo talento especulativo sob a tiraniaestava de uma lógica indutivista descoberta, o falseacionismo, até se emviu suafrustrado forma dogmática, destinado a ter umdatremendo efeito liberatório. (Além de Medawar, outro detentor do Prêmio Nobel, Eccles, aprendeu com' Popper a substituir sua cautela srcinal por uma arrojada especulação falseável: cf. Eccles, “The Neurophysiological Basis of Experience”, 1964, pp. 274-5.)
342. 343.
Popper, Popper,
“The Aim Cotxj ectur es
of Science”, 1957. and Refutati ons, 1963, pp. 242 e seguintes.
344. Popper, pá Conj ectur es and Refutati ons, 1963, p. 38, nota de pé gina n.° 3. 345. Se o leito r estiver em dúvida qu anto à autenticidade de minha reformulação do critério de demarcação de Popper, releia as partes importantes de Popper ( Logik der F or schun jç), tendo Musgrave (“On a Demarcation Dispute”, 1968) por guia. Musgrave
escreveu o supracitado ensaio contra
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Originalmente, Popper só tinha em mente o aspecto teórico das transferências de problemas, o que é lembrado na seção 20 da sua Logik der Forschung e desenvolvido em seu The Poverty of Histori- cism. 3M Só depois empírico das transferências de problemas em ajuntou uma discussão do aspecto suas Conjectures and Rejutations , 34 7 Entretanto, a condenação de Popper aos “estratagemas convencionalistas”, em certos sentidos, é muito forte e, em outros, muito fraca. É muito forte pois, segundo Popper, uma nova versão de um programa pr ogressivo nunca adota um estratagema diminuidor de conteúdo para absorver uma anomalia, e nunca diz coisas como esta: “todos os corpos são newtonianos, exceto dezessete corpos anômalos”. Mas visto que sempre abundam anomalias não explicadas, admito tais formulações; uma explicação é algumas um passo dado à frente (isto é, “ científica”) quando explica pelo menos anomalias prévias que não foram explicadas “cientificamente” por sua predecessora. En quanto as anomalias forem consideradas problemas autêntic os (embora não necessariamente urgentes), pouco importa que as dramatizemos como “refutações” ou que as despojemos de dramaticidade como “exceções”: a diferença, nesse caso, é apenas lingüística. (O grau de tolerância de estratagemas ad hoc nos permite progredir até sobre fundamentos inconsistente s. As transferências de problemas podem então ser progressivas a despeito das 34 8
inconsistências. diminuido res de
) Entretanto, a condenação de Popper dos estratagemas
Bartley, que, no seu trabalho do mesmo ano, "Theories of Demarcation between Science and Metaphysics”, atribuiu erroneamente a Popper o cri tério de demarcação do falseacionismo ingênuo, tal como foi formulado mais acima, à p. 109. 346. Em sua Logik de r F ors chung (1934), Popper preocupou-se principalmente com uma proscrição dos ajustamentos ad h oc su br eptíci os. Popper (Popper,) exige que o objetivo de uma experiência crucial potencialmente negativa seja apresentado juntamente com a teoria, e depois que a sentença do júri experimental seja humildemente aceita. Disso se segue que os estra tagemas convencionalistas, que depois da se ntença torcem retrospectivament e a teoria srcinal a fim de escapar à sentença, são eo ipso excluídos. Mas se admitirmos a refutação e depois reformularmos a teoria com a ajuda de um estratagema ad hoc, podemos admiti-lo como “nova" teoria; e se ela for testável, Popper, a aceitará para uma nova crítica: “Sempre que descobrimos que um sistema foi salvo por um estratagema convencionalista, tomamos a testálo, e rejeitamo- lo, se as circunstâncias o exigirem” (Popper, L ogik d er F orsc hu ng, seção 20).
347. Sobre detalhes, cf. meu ensaio “Changes in the Problem of Inductive Logic”, 1968, especialmente as pp. 388 -90. 348. Cf. mais acima, pp. 174 e seguintes. Essa tolerância raro se encontra, se é que se encontra alguma vez, em compêndios de método científico.
conteúdo é também demasiado fraca: não pode lidar, por exemplo, com o “paradoxo de rodeios”, 34 9 e não condena estratagemas 35 0 ad hoc }, que só são eliminados pelo requisito de que as hipóteses auxi- liares deveriam ser formadas de acordo com a heurística positiva de um programa de pesquisa autêntica. Esse continuidade na ciência. novo requisito nos leva ao problema da O problema da continuidade na ciência foi levantado por Popper e seus seguidore s háprogramas muito tempo. minha teoria do a seguir, crescimento baseado na idéia de de Quando pesquisapropus concorrentes, tornei e tentei melhorar, a tradição popperiana. O próprio Popper, em sua Logik der Forschung, já sublinhara a importância heurística da “metafísica influente”, 35 1 e foi visto por alguns membros do Círculo de Viena como defensor da perigosa metafísica. 35 2 Quando o seu interesse pelo papel da metafísica reviveu na década de 1950, ele escreveu um “Epílogo Metafísico” inte ressantíssimo a respeito de “program as de pesquisa metafísica” para o seu PostScript: After Twenty Years — no prelo desde 1957. 35 3
349. Cf. mais acima, p. 160. 350. Cf. mais acima, à p. 217, nota de rodapé n.° 323. 351. Cf., por exemplo, sua Logik de r F orschung, fim da seção 4; cf. também seu ensaio de 1968 intitulado “Remarks on the Problems of Demar - cation and Rationality”, p. 93. Não nos esqueça que tal importância foi negada à metafísica por Comte e Duhem. As pessoas que mais fizeram para inverter a maré antimetafísica na filosofia e na historiografia da ciência foram Burtt, Popper e Koyré. 352. Na crítica que fizeram do livro, Carnap e Hempel trat aram de defender Po pper dessa acusação (cf. Carnap, Crítica do livro de Popper, Logik der F ors chung, 1953, e Hempel, Crítica do livro de Popper, L ogik der F orsc hun g, 1937). Hempel escreveu: “[Popper] acentua vigorosamente certas características do seu enfoque, comuns com as características do enfo que de alguns pensadores que seguem uma orientação metafísica. Espera-se que esse valioso trabalho não seja mal interpretado como se tencionasse permitir o advento de uma metafísica nova, talvez até logicamente defensável.” 353. Uma passagem desse PostScript merece se r aqui citada: “O ato mismo é um .. . excelente exemplo de uma teoria meta física não-testável, cujainfluência sobre a ciência excedeu a de muitas teorias testáveis... A mais recente e mais ampla até agora foi o programa de Faraday, Maxwell, Einstein, de Broglie e Schrodinger, de conceber o mundo... em termos de campos contínuos... Cada uma dessas teorias metafísicas funcionou, muito antes de tornar-se testável, como programa para a ciência, indicando a direção em que se podem encontrar satisfatórias teorias explanatórias de ciência, e possibilitando algo semelhante a uma avaliação da profundidade de uma teoria. Em biologia, a teoria da evolução, a da célula e a da infecção bacteriana desempenharam papéis semelhantes, pelo menos durante algum tempo. Em psicologia, o sensualismo, o atomismo (isto é, a teoria de que todas as expe elementos, tais como, por exemplo, os
riências são compostas de últimos
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Popper, no entanto, não associava a tenacidade com a irrefutabilidade metodológica, mas com a irrefutabilidade sintática. Por “metafísica” entendia enunciados sintaticamente especificáveis como enunciados do tipo “todos alguns” e enunciados puramente existenciais. Nenhum enunciado básico poderia entrar em conflito com eles devido a sua forma lógica. Nesse sentido, por exemplo, “para todos os metais há um solvente” seria ‘metafísico”, ao passo que 35 1
adécada teoria de da 195Ü, gravitação de Newton, o seria. Popper também tomada suscitouisoladamente, o problemanão crítico das teorias Na metafísicas e sugeriu soluções. 35 5 Agassi e Watkins publicaram diversos estudos interessantes sobre o papel dessa “metafísica” da ciência, que todos ligavam à 35 0 continuidade do progresso científico. Meu tratamento difere do deles porque vou muito mais longe do que eles no apag ar a demarcação entre “ciência” [de Popper] e “metafísica” [de Pop per] : nem sequer empr ego mais o termo científica cujo núcleo é “metafísico”. Só me refiro a programas de pesquisa irrefutável não por razões sintáticas mas por razões metodológicas que nad a têm que ver com a forma lógica. Em segundo lugar, separando nitidamente o problema descritivo do papel psicológico-histórico da metafísica do problema normativo de distinguir os programas de pesquisa progressivos dos programas de pesquisa degenerati vos, desenvolvi o problema além do que eles já o tinham feito.
dados dos sentidos) e a psicanálise devem ser mencionados como programas de pesquisa metafísica... Até asserções puramente existenciais têm-se revelado, às vezes, sugestivas e proveitosas na história da ciência, ainda que nunca tenham feito parte dela. Efetivamente, poucas teorias metafísicas exerceram maior influência sobre o desenvolvimento da ciência do que a seguinte teoria puramente metafísica: "Existe uma substância capaz de transformar me t ais vis em ouro (isto é, a pedra filosofal)”, embora se trate de uma teoria não-falseável, que nunca foi verificada e na qual, hoje em dia, nin
guém acredita.”
354. Cf. especialmente Popper, L ogik de r F ors chung, 1934, seção 66. Na edição de 1959 ele acrescentou uma nota de rodapé esclarecedora (nota de rodapé n.° *2) a fim de acentuar que nos enunciados m eta f ísi cos do tipo todos- -alguns o quantificador existencial precisa ser interpretado como “ilimitado”; mas, naturalmente, ele já deixara esse pormenor absolutamente claro na seção 15 do texto srcinal. 355. Cf. especialmente o seu livro Conj ectur es and Re fu tations, 1963, pp. 198-9 (publicado pela primeira vez em 1958). 356. Cf. os ensaios de Watkins, “Between Analytic and Empirical” (1957) e “Influential and Confirmable Metaphysics” (1958) e os de Agassi, “The Confusion between Physics and Metaphysics in the Standard t Histories of Sciences” (1962) e "Scientific Problems and Their Roots in Metaphysics” (1964).
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Finalmen te, eu gostaria de discutir a o falseacionismo. 35 7
"tese Duhem- Quine” e sua relação com
De acordo com a “tese Duhem -Quine”, em havendo imagina ção suficiente, qualquer teoria (quer consista numa proposição, qúer consista numa conjunção finita de muitas proposições) pode ser salva p ermanent emente da “refutação” por algum ajustamento adequado no conhecimento de fundo cm que está incluída. Como diz “aconte ça o que acontecer, qualquer pronunciamento pode ser considerado verdadeiro, se fizermos ajustamentos suficientemente drásticos em outros pontos do sistema. . . Inversamente, nenhum enunciado é imune à revisão.” 35 8 De mais a mais, o “sistema” é nada menos que “o con junto da ciência”. “Uma experiência recalcitrante pode ser acomo dada por uma de várias reavaliações alternativas em vários pontos alternativos do sistema total 53 9 [incluindo a possibilidade de reavaliar a própria experiência recalcitrante].” Essa tese tem duas interpretações muito diferentes. Em sua interpretação fraca apenas afirma a impossibilidade do atingimento experimental direto de um alvo teórico rigorosamente especificado e a possibilidade lógica de modelar a ciência de maneiras muito diferentes. A interpretação fraca só atinge o falseacionismo dogmático e não o metodológico: apenas nega a possibilidade de uma refutação de qualquer componente separado de um sistema teórico. Em sua interpretação forte a tese Duhem-Quine exclui qualquer regra de seleção racional entre as alternativas; essa versão é incompatível com todas as formas de falseacionismo metodológico. As duas interpretações não foram claramente separadas, embora a diferença seja metodologicamente vital. Duhem parece ter conservado apenas a interpretação fraca: para ele a seleção é uma questão de “sagacidade”: precisamos escolhe r sempre certo a fi m de chegar mais 38 0 perto da “classificação natural”. Por outro lado, Quine, na tra
357.
Esta parte final do A pên di ce foi acrescentada no prelo.
358. Quine, F r om a L og ical Point of View, 1953, capítulo ii. 359. Ibid. A cláusula entre os colchetes é minha. 360. Segundo Duhem, uma experiência nunca pode condenar sozinha uma teoria isolada (tal como o núcleo de um programa de pesquisa): para uma “condenação” dessa natureza t am bé m precisamos de "senso comum”, "sagacidade” e bom instinto metafísico que nos conduza na direção de (ou para) "certa ordem eminentíssima”, (Veja o fim do A pên di ce T hé or i e Phy siq ue, Son Obj et et Sa da segunda edição do seu livro publicado em 1906, La Structure.
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dição do pragmatismo norte-americano de James e Lewis, parece manter uma posição muito próxima da interpretação forte. 361 Examinemos agora mais atentamente a tese Duhem-Quine. Façamos uma “experiência recalcitrante” expressa num “enunciado de observação” O' incomp atível com uma conjunção de enunciados teó ricos (e “ observacion ais”) h u h2. . . h n, I , I2. . . In , em que h são teorias e I as condições inicia is h . . . h n , I . . . I n logicamente correspondentes. No “modelo dedutivo”, supõem O; obser va-se, porém, que O' supõe não-O. Suponhamos também que as pre missas são independen tes e todas necessárias para deduzir O. Nesse caso podemos restaurar a consistência alterando qualquer uma das sentenças do nosso modelo dedutivo. Seja, por exemplo, h\\ “sempre que um fio estiver carregado com um peso que exceda o que caracteriza o esforço de fração h2: “o peso característico para esse fio é 1 libra”; do fio, este se romperá”; seja seja /i 3 : “o peso colocado neste fio foi de 2 libras”. Seja, finalmente, O: “colocou -se um peso de ferro de 2 libras sobre o fio localizado na posição espaço- -tempo P e este não s e rompeu”, Pode resolver -se o problema de muitas maneiras. Para dar alguns exemplos: (1) Rejeitamos h\\ substituímos a expressão “é carregado com um peso” por “é puxado por uma força”; introduzimos uma 1
1
1
1
1
nova condição inicial: havia um ímã (ou uma força até então desconhecida). escondido no forro do laboratório. (2) Rejeitamos /i 2 ; propomos que o esforço de tração dependa do grau de umidade dos fios; o esforço de tração do fio real, O; o fio não se desde que ele se umedeceu, foi de 2 libras. (3) Rejeitamos rompeu; apenas se observou que ele não se rompeu, mas o professor que propôs h, & h2 & h } era um conhecido burguês liberal e seus assistentes revolucion ários de laboratório viram-lhe as hipóteses sistematicamente refutadas quando, na realidade, elas foram confirmadas. (5) Rejeitamos ft 3 ; o fio não era um “fio”, era 31 2 um “su - perfio”, e os “superfios” nunca se rompem. ’ Poderíamos prosse
361 . Quine fala de enunciados que têm "distâncias variáveis de uma periferia sensocial" e estão, assim, mais ou menos expostos à mudança. Mas tanto a periferia sensorial quanto a métrica são difíceis de definir. Segundo Quine, “as considerações que dirigem [o homem] na deformação da própria herança científica para ajustar-se às suas continuadas perife rias sensociais são racionais, pragmáticas” (Quine, F rom a L og ical Point of Vi ew, 1953). Mas o “pragmatismo” para Quine, como para James ou Le Roy, não passa de conforto psicológico: e parece- me irracional chamar a isso "racional”. 362. Sobre tais “defesas resumidoras de conceitos” e “refutações amplia conceitos", cf. meu ensaio de 1963-4, intitulado "Proofs and Refu tations”.
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- doras de
guir indefinidamente. Na verdade, há um número infinito de possibilidades de substituir — em havendo imaginação suficiente — qualquer uma das premissas (no modelo dedutivo) invocando uma mudança em alguma parte distante do nosso conhecimento total ( f o r a do modelo dedutivo) e por essa maneira restaurar a consistência. Podemos formular esa observação trivial dizendo que “ cada teste é um desafio ao conjunto do nosso conhecimento ”? Não vejo nenhu ma razão para não o fazer. A resistência de alguns falseacionistas a esse “dogma holístico do caráter 36 3 deve- se apenas a uma fusão semântica de duas ‘global’ de todos os testes” noções diferentes de “teste” (ou “desafio”) que um resultado experimental recalcitrante apresenta ao nosso conhecimento. A interpretação popperiana de um ‘‘teste" (ou “desafio”) é que o resultado (O) contradiz (“desafia”) uma conjunção finita, bem especi ficada de premissas ( T ) : O & T não podem ser verdadeiros. Mas nenhum protagonista do argumento Duhem-Qu ine negaria esse ponto. A interpretação quineana do “teste” (ou “desafio") é que a substituição de O & T pode invocar alguma mudança também fora de O e T. O sucessor de O & T pode ser incompatível com H em alguma parte distante do conhecimento. Mas nenhum negaria essede ponto. A popperiano fusão das duas noções procedimento de teste conduziu a alguns malentendidos e erros lógicos. Algumas pessoas sentiram intuitivamente que o modus tollens da refutação pode “repercutir” nas premissas muito distantes em nosso conhecimento toíal e, portanto, viram-se apanhadas na ideia de que a “cláusula ceteris- paribus" é uma premissa que se associa conjuntivamente às premissas ób vias. Logra-se, porém, essa “repercussão” não pelo modus tollens mas como resultado da substituição subseqüente do nosso modelo dedutivo srcinal. 364
363. Popper, Conj ectur es and Re fu tation, 1963, capítulo 10, seção XVI. 364. O locus cl assicu s desta confusão é a crítica teimosa de Popper levada a efeito por Canfield e Lehrer em seu ensaio de 1961, “A Note on Prediction and Deduction”; Stegmüller seguiu-os ao pântano lógico no seu trabalho de 1966 a que deu o título de ‘‘Explanation, Prediction, Scient ific Systematization and Non- Explanalory Information” (p. 7). Coffa contribuiu para a elucidação do problema num ensaio publicado em 1968: “Deductive predictions”. Infelizmente, minha própria fraseologia neste trabalho em certos lugares dá a entender que a “cláusula ceteris paribus” tem de ser uma premissa independente na teoria que está sendo testada. Minha atenção foi chamada para essa falha facilmente reparável por Colin Howson.
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Desse modo, a “tese fraca de Quine” mantém -se trivialmente. Mas a “tes e forte de Quine” encontrará vigorosa oposição não só do falseacionista ingênuo mas também do sofisticado. O falseacionista ingênuo insiste em que, se tivermos uma série inconsisten te de enunciados científicos, primeiro teremo s de escolher dentre eles (1) uma teoria que esteja sendo testada (para servir de noz)\ depois precisamos martelo) e o resto será escolher (2) um enunciado básico aceito (para servir de conhecimento de fundo não- -contestado (para servir de bigorna). E para dar a devida força a essa po stura, precisamos oferecer um método de “endurecer” o “martelo” e a “bigorna” para poder quebrar a “noz” e, assim, realizar uma “experiência crucial negativa”. Mas a “adivinhação” ingênua dessa divisão é demasiado arbitrária, não nos dá nenhum endurecimento sério. (Grünbaum, por outro lado, aplica o teorema de Bayes para mostrar que, pelo menos em certo sentido, o “martelo” e a “bigorna” têm altas probabilidades posteriores e, portanto, são “duras” bastante para ser usadas como quebra -nozes. 36 5 ) O falseacionista sofisticado permite que qualquer parte do corpo da ciência seja substituído mas só sob a condição de que seja substituído de modo “progressivo”, de sorte que a substituição ante cipe com êxito fatos novos. Em sua reconstrução racional do falseament o, “experiências cruciais negativas” não desempenham papel algum. Ele não vê nada de errado num grupo de cientistas brilhantes conspirando para acondicionar tudo o que podem no seu progra ma de pesquisa (“referencial conceituai”, se quiserem) fa vorito com um núcleo sagrado. Enquanto o gênio — e a sorte — lhes permitem expandir o programa “ progressivamente ”, enquanto permanecerem
365. Grünbaum assumiu anteriormente uma posição de falseacionismo dog mático e afirmou, referindo-se aos seus estudos interessantes de geometria física, que podemos verificar falsidade de algumas hipóteses científicas (por exemplo, “The Falsifiability of the Lorentz- Fitzgerald Contraction Hypothesis”, de 1959, e “The Duhemian Argument”, de 1960). Ao primeiro desses ensaios seguiu-se o ensaio de Feyerabend, “Comments on Griinbaum’s ‘Law and Convention in Physical Theory’” (1959), em que o autor argumentou que “as refutações só são finais enquanto faltam explicações alternativas engenhosas e não triviais da evidência”. Em seu trabalho de 1966, intitulado “The Falsifiability of a Component of a Theoretical System”, Grünbaum modifica sua posição e depois, em resposta à crítica de Mary Hesse (Hesse, Crítica de Grünbaum, 1968) e outros, restringiu-a ainda mais: “Pelo menos em alguns casos, p odemos determinar a falsidade de uma hipótese componente para todas as finalidades científicas, embora não possamos falseá-la além de qualquer possibilidade de reabi litação subseqüente” (Grünbaum, “Can We Ascertain the Falsity of a Scientific Hypothesis ?” 1969, p. 1.092).
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leais ao seu núcleo, eles terão permissão para fazê-lo. E se um gênio aparecer decidido a substituir (“progressivamente”) uma teoria não - -contestada e corroborada, que não lhe agrada por motivos filosóficos, estéticos ou pessoais, felicidades para ele. Se dois grupos desen volvendo programas rivais de pesquisa competirem, o que tiver mais talento criativo tenderá a ser bem-sucedido — a não ser que Deus o castigue com uma extrema falta de êxito empírico. A direção da ciência é determinada principalmente pela imaginação criativa humana e não pelo universo de fatos que nos cerca m. A imaginação criativa tem probabilidades de encontrar uma nova evidência corro- boradora até para o programa mais “absurdo”, se a busca for conve nientemente orientada. 36 6 Essa busca de uma nova evidência corrobo- radora é perfeitamente permissível. Os cientistas sonham com fantasias e depois se empenham numa caçada altamente seletiva de fatos novos que se ajustem a essas fantasias. Esse processo pode ser d es crito como a “ciência criando seu próprio universo” (enquanto nos lembrarmos de que aqui se usa “criando” num sentido provocativo - -idiossincrático). Uma escola brilhante de estudiosos (patrocinada por uma sociedade rica desejosa de financiar alguns testes bem planejados) pode ter êxito na execução de qualquer programa fantástico ou, alternativamente, se tiver inclinação para tanto, no derruba- mento de qualquer pilar arbitrariamente escolhido do “conhecimento estabelecido”. O falseacionista dogmático erguerá as mãos aos céus horrorizado por esse enfoque. Verá o espectro do instrumentalismo de Bellar- mino erguer-se do entulho debaixo do qual o êxito newtoniano da “ciência provada” o havia enterrado. Acusará o falseacionista sofisticado de construir sistemas procustianos arbitrários e forçar os fatos a ajustar -se a eles. Pode até brandi-lo como revitalização da profana aliança irracionalista entre o pragmatismo tosco de James e o volun- tarismo de Bergson, triunfantemente vencido por Russell e Steb-
366. Um exemplo t ípico dessa natureza é o princípio de Newton de atra ção gravitacional, de acordo com o qual os corpos se atraem uns aos outros instantaneamente de imensas distâncias. Huyghens descreveu a idéia como “absurda”, Leibnitz como “oculta”, e os melhores cientistas do tempo “entraram a indagar como [Newton] pudera dar -se a tanto trabalho fazendo um número tão grande de investigações e cálculos difíceis sem outro fundamento além desse mesmo princípio” (cf. Koyré, Newtoni an Studie s, 1965, pp. 117-18). Eu já sustentara anteriormente que não é verdade que o mérito do progresso teórico pertence ao teórico, mas que o sucesso empírico é apenas uma questão de sorte. Se o teórico for mais imaginativo, é mais provável que o seu programa teórico obtenha, pelo menos, algum sucesso empírico. Cf. meu ensaio, "Changes in the Problem of Inductive Logic", 1968, pp. 387-90.
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bing. :!G? Mas o nosso falseacionismo sofisticado combina “instrumen - talismo” (ou “convencionalismo”) com um vigoroso requisito empi - rista que nem os “salvadores de fenômenos” medievais, como Bel - larmino, nem pragmatistas como Quine e nem bergsonianos como Le Roy tinham apreciado: o requisito de Leibnitz-Whewell-Popper de que a construção — bem planejada — de compartimentos há de prosseguir muito mais depressa do que o registro de fatos que devem ser guardados neles. Enquanto esse requisito for satisfeito, pouco importará que ac entuemos o aspecto “instrumental” dos progra mas de pesquisa imaginativos para descobrir fatos novos e fazer prediç ões merecedoras de fé, ou que acentuemos a “verossimilhan ça” poppe - riana crescente e putativa (isto é, a diferença estimada entre o conteúdo de verdade e o conteúdo de falsidade) de suas versões sucessivas. 36 8 O falseacionismo sofisticado combina assim os melhores elementos do voluntarismo, do pragmatismo e das teorias realistas do crescimento empírico. O falseacionis ta sofisticado não toma o partido de Galileu nem o do Cardeal Bellarm ino. Não toma o partido de Galileu porque afirm a que todas as nossas teorias básicas podem ser igualmente absurdas e inverossímeis para a mente divina; e não toma o partido de Bellarmino, a não ser que o cardeal concordasse em que as teorias científicas ainda podem conduzir, a longo prazo, a conseqüências cada vez mais verdadeiras e cada vez menos falsas e, nesse sentido estritamente técnico, podem ter crescente “verossimilhança”. 36 9
367.
Cf. Russell, The Philosophy of Bergson (1914), Russel, History of Western (1946) e Stebbing, Pragmatis m and F rench Voluntar ism (1914). lustificacionista, Russell desprezava o convencionalismo: “Assim como a vontade subiu na escala, o conhecimento desceu. Essa foi a mudança mais notável que se verificou na disposição de espírito da filosofia do nosso tempo, preparada por Rousseau e Kant..." ( H istory of We ste r n Philosophy
p. 787). Popper, naturalmente, foi buscar parte da sua inspiração em Kant e Bergson. (Cf. sua L ogik de r F orsc hung, 1934, seções 2 e 4). Philosophy,
368.
Sobre “verossimilhança” cf. Popper, Conj ectur es and Re ju tations, capítulo 10, e mais adiante, a nota de pé de página seguinte; sobre dignidade” cf. meu ensaio de 1968, “Changes in the Problem of Inductive Logic”, pp. 390 e também meu trabalho de 1971, “Popper zum Abgrenzungs - und Induktionsproblem”. 1963,
" fide -
369. “Verossimilhança” tem dois significados distintos, que não se devem confundir. Primeiro, o termo pode ser usado para significar a intuitiva semelhança à verdade da teoria; nesse sentido, no meu entender, todas as teorias científicas criadas pela mente humana são i gualmente inverossímeis e “ocultas”. Segundo, ele pode ser usado para significar uma diferença conjunto-teorética entre as conseqüências verdadeiras e falsas de uma teoria que nunca poderemos conhecer mas que podemos presumir. Foi Popper quem empregou Conjectures “ver ossimi lhança” como termo técnico para denotar essa espécie de diferença (
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científicas provavelme nte está crescendo; mas, ao mesmo tempo, não são “realistas”, pois concordam, por exemplo, em que o enfoque de campo einsteiniano está mais intuitivamente próximo do Esquema do Universo do que a ação newtoniana à distância. O " ob jetivo d a ciência”, portant o, pode e star aumentando a " ver ossimi l han ça" poppe r ian a, mas nã o pr eci sa estar aum entan do a verossimi l han ça c l ássi ca. Esta última, como diz o próprio Popper, à diferença da primeira, é uma “idéia perigosamente vaga e metafísica" (Con- jectur es and Refutation, 1963, p. 231).
A “verossimilhança empírica” de Popper, em certo sentido, reabilita a idéia do vo na ciência. Mas a força propulsora do crescimento cumulativo na "verossimilhança empírica" é conflito revolucionário na "verossimilha nça intuitiva”. Quando Popper estava escrevendo seu “Truth. rationality and the growth of knowledge”, senti -me apreensivo quanto à sua identificação dos dois concr escimento cumulati
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ceitos de verossimilhança. De fato, fui eu quem lhe perguntou: “Podemos real mente falar em melhor correspondência? Existem coisas como graus de verdade? Não será perigosamente enganoso falar como se a verdade tarskiana estivesse localizada em algum lugar, numa espécie de espaço métrico ou, pelo menos, topológico, de modo que podemos dizer t , e uma teoria ulterior /, sensatamente de duas teorias — digamos uma teoria anterior — que í 3 suplantou í, ou progrediu além de í,, aproximandose mais da verdade do que <,?” (Popper, Conjectures and Refutations, 1963, p. 232). Popper rejeitou minhas vagas apreensões. Ele achava — com razão — que estava propondo uma nova idéia importantíssima. Enganava-se, porém, ao acreditar que sua concepção nova e técnica da “verossimilhança” absorvia completamente os problemas na velha "verossimilhança” intuitiva. Diz Kuhn: “Dizer, por exemplo, de uma teoria de campo que ela “está mais próxima da verdade” do que uma teoria mais antiga de matéria e força deveria significar, a menos que as pal avr as estejam sendo es tr anh ament e usadas , que os constituintes finais da natureza são m ais parecidos com campos do que com matéria e força” ( nes te volu me, mais adiante, p. 327; o grifo é meu). Na verdade, Kuhn está certo, mas as palavras de fato, costumam ser “estranhamente usadas”. Espero que esta nota contribua para o esclarecimento do problema em apreço.
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CO NSO LAND O O ESP ECIA LIST A PAUL FEYERABEND Vniversiíy of Califórnia, Berkeley
“Há anos venho enforcando gente, mas nunca vi tamanho estardalhaço.” (Observação feita por Edward “Lofty” Milton, carrasco em meio -expediente, na Rodésia, por ocasião das demonstrações con tra a pena de morte.) “Ele era — diz a revista Time (15 de março de 1968) — profissionalmente incapaz de compreender a comoção.” 1. Introdução. 2. Ambigüidade da apresentação. 3. Solução de enigmas como critério de ciência. 4. Função da ciência normal. 5. Três dificuldades do raciocínio funcional. 6. Existe a ciência normal? 7. Em defesa do hedonismo. 8. Uma alternativa: o modelo de mudança científica de Lakatos. 9. O papel da razão na ciência.
1 . INTRODUÇÃO Nos anos de 1960 e 1961, quando Kuhn era membro do departamento de filosofia da Universidade da Califórnia em Berkeley, tive a felicidade de poder discutir com ele vários aspe ctos da ciência. Es
1. Uma versão anterior deste ensaio foi lido no seminário do Professor Popper em março de 1967 na London School of Economics. Eu gostaria de agradecer ao Professor Popper a oportunidade bem como sua crítica circunstanciada. Confesso-me também grato aos Srs. Howson e Worall pela valiosa ajuda editorial e estilística.
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sas discussões me foram enormemente valiosas e, a partir de então, passei a olhar 2 para a ciência de um novo modo. Entretanto, enquanto pensava, eu reconhecia os problemas de Kuhn; e enquanto tentava explicar certos aspectos da ciência para os quais ele me chamara a atenção (a onip resença das anomalias é um teoria da ciênçia que exemplo); senti-me totalmente incapaz de concordar com a ele mesmo propôs; e estava ainda menos preparado para aceitar a ideologia geral que supus constitui r a base do seu pensamento. Pare cia -me que essa ideologia só poderia pr oporcionar ao mais dotacanho e preesunçoso especialismo, pois tenderiaconforto a inibir o progresso conhecimento aumentariatipo de fatalmente as tendências anti-humanitárias que são uma característica tão inquietante de grande parte da ciência pós -newtonian a. :i Sobre todos esses pontos minhas discussões com Kuhn permaneceram inconclusivas. Mais de uma vez ele interrompeu um dos meus longos sermõe s, assinalando que eu o interpretara mal, ou que nossas concepções se achavam mais p róximas do que eu as fizera parecer. Agora, relembrando nossos debates, 1 bem como os trabalhos que Kuhn publicou desde que partiu de Berkeley, não tenho muita certeza de que fosse esse o caso. E sinto-me fortalecido pelo fato de que quase todos os leitores da Structure of Scientific Revolutions de Kuhn o interpretam como eu o faço, e que certas tendências que se observam na sociologia e na psicologia modernas são exatamente o resultado desse gênero de interpretação. Por conseguinte, espero que Kulin me perdoe, mais uma vez, por ventilar as velhas questões e não me leve a mal a maior ou menor grosseria em meu esforço por ser breve.
2.
AMBIGÜIDADE DE APRESENTAÇÃO
Todas as vezes que leio Kuhn, perturba-me a seguinte pergunta: estamos aqui diante de prescrições metodológicas que dizem ao cientista como há de proceder; ou diante de uma descrição, isenta de qualquer elemento avaliativo das atividades geralmente rotuladas de “científicas”? Parece -me que os escritos de Kuhn não conduzem a 2. A crítica de algun s traços da metodologia contemporânea, que aparece em meus ensaios "Problems in Empiricism, part 2" , de 1969, e “Classical Em - piricism”, de 1970, é apenas um efeito secundário atrasado. 3. Cf. meu ensaio de 1970, “Against Method”. 4. Alguns dos quais foram travados no o ra desaparecido na CaféOld Europe Telegraph Avenue e divertia sobremodo os demais fregueses pela sua amistosa veemência.
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uma resposta direta. São ambíguas no sentido de que são compatíveis com ambas as interpretações e a ambas dão apoio. Ora, essa ambigüidade (cuja expressão estilística e cujo impacto mental têm muita coisa em comum com ambigüidades semelhantes em Hegel e Wittgenstein) não é, de modo algum uma questão secundária. Tem tido um efeito definido sobre os leitores de Kuhn e fê -los olhar para o seu assunto e lidar com ele de maneira não de todo vantajosa. Mais de um cientista social me assinalou que agora, afinal, aprendeu a transformar seu campo em “ciência — querendo dizer com isso, naturalmente, que aprendeu a aperfeiçoá-lo. De acordo com essa gente, a receita consiste em restringir a crítica, reduzir a um o número de teorias compreensivas e criar uma ciência normal que tenha por paradigma essa teoria. 5 Devem impedir-se os estudiosos de especular ao longo de linhas diferentes e os colegas mais irrequietos precisam ser induzidos a conformar- se e a “realizar trabalho sério”. É isto o que Kuhn G deseja conseguirl É sua intenção fornecer uma justificação histórico-científica para a necessidade cada vez maior de identificar-se com algum grupo? Deseja ele que todo assunto imite o caráter monolítico, digamos, da teoria quântica de 1930? Acredita ele que uma disciplina construída dessa maneira se encontra em melhor situação? Que levará a resultados melhores, mais numerosos e mais interessantes? Ou é o seu grupo de seguidores, entre os sociólogos, um efeito secundário e não-pretendido de um trabalho cujo úni
5. Veja, por exemplo, Reagan, “Basic and Applied Research: A meaning - ful Distinction?”, 1967, p. 1385. Afirma ele: “Nós [isto é, nós, os cientistas sociais] estamos no que Kuhn poderia denominar um estádio “pré -paradigmá- tico" dc desenvolvimento, em que o consenso ainda lem de surgir de conceitos básicos e suposições teóricas.” 6. A neurofisiologia, a fisiologia e certas partes da psicologia estão muito adiante da física contemporânea no sentido de que conseguem fazer da discussão de fundamentos uma parte essencial até da pesquisa mais específica. Os conceitos nunca se estabilizam de todo mas permanecem abertos e são elucidados, ora por uma, ora por outra teoria. Não há indicação de que o progresso é estorvado pela atitude mais “filosófica” que, de acordo com Kuhn, funda menta um procedimento dessa natureza (cf. este volu me, p. 11). (Desse modo a falta de clareza acerca da idéia de percepção conduziu a muitas investigações empíricas interessantes, algumas das quais deram resultados de todo inesperados e muitíssimo importantes. Cf. Epstein, Var ieties of Pe rceptual L earn in g, 1967, mormente as pp. 6-18.) Muito ao contrário, encontramos uma consciência maior dos limites do nosso conhecimento, da sua conexão com a natureza humana, e encontramos também uma familiaridade maior com a história do tema e a capacidade não só de registrar, mas também de usar ativamente idéias passadas para o avanço de problemas contemporâneos. Não devemos admitir que tudo isso contraste de modo muito favorável com a dedicação sem humor e com o estilo constipado de uma ciência “normal”?
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co propósito é referir “wie es wirklich gewesen” sem implicar que as características referidas são dignas de imitação? E se este é o único propósito do trabalho, por que então o constante mal -entendido, e por que o estilo ambíguo e, de vez em quando, altamente morali- zante?
pretendida e que Kuhn Aventuro-me a conjeturar que a ambigüidade é deseja explorar plenamente suas potencialidades propa- gandísticas. Deseja, de um lado, dar um apoio sólido, objetivo e histórico a julgamentos de valor que ele, como muitas outras pessoas, parece considerar arbitrários e subjetivos. Por outro lado, deseja deixar para si mesmo uma segunda linha segura de retirada: os que desgostam da derivação implícita de valores a partir de fatos sempre poderão ouvir dizer que essa derivação não se faz e que a apresentação é puramente descritiva. Minha primeira série de perguntas, portanto, é a seguinte: por que a ambigüid ade? Como deve ela ser interpretada? Qual é a atitude Kuhn para com a espécie de seguidores que descrevi? Não terão eles sabido lê-lo? Ou são os legítimos seguidores de uma nova visão da ciência? 3.
SOLUÇÃO E ENIGMAS COMO CRITÉRIO DE CIÊNCIA Deixemos de lado o problema da apresentação e suponhamos que o
objetivo de Kuhn seja, com efeito, dar apenas uma históricos e instituições influentes.
descrição de acontecimentos
De acordo com essa interpretação, é a existência de uma tradição de solução de enigmas que, de fato, aparta as ciências de outras atividades. Apartaas de modo “muito mais seguro e mais direto”, de maneira “ao mesmo tempo. . . menos equívoca e. . . mais funda mental”, 7 do que outras propriedades mais recônditas que as ciências também possuem. Mas se a existência de uma tradição de solução de enigmas é tão essencial, a ocorrência dessa propriedade unifica e caracteriza uma disciplina específica e bem reconhecível; nesse caso não vejo como poderemos excluir de nossas considerações, digamos, a filosofia de Oxford ou, para tomar um exemplo ainda mais extremo, o crime organizado. Pois tudo indica que o crime organizado é a solução de enigmas par excellence. Todo enunciado feito por Kuhn a respeito da ciência normal permanece verdadeir o quando substituímos “ciência normal” por “crime organizado”; e todo enunciado que ele escreveu acerca
7. Cf. este volu me, p. 12.
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do “cientista” individual aplica -se com a mesma força, digamos, ao arrombador de cofres individual. 8 O crime organizado mantém a pesquisa fundacional em um nível mínimo embora haja indivíduos notáveis, como Dillinger, que introduzem idéias novas e revolucionárias. 9 Conhecendo mais ou menos, em suas linhas gerais, os fenô menos que devem ser esperados, o arrombador de cofres profissional “deixa de ser um explorador. . . ou, pelo menos, um explorador do desconhecido [supõe-se, afinal de contas, que ele conheça todos os tipos existentes de cofres]. Ao invés disso, luta para. . . concretizar o conhecido [isto é, descobrir as idiossincracias do cofre com que está lidando], destacando para essa tarefa 10 muitos aparelhos especiais e muitas adaptações especiais da teoria”. Segundo Kuhn, o malogro da consecução reflete-se, por certo , “na competência do [arrombador de cofres] aos olhos dos co legas de profissão” 11 de modo que “é o indivíduo [o arrobador de cofres] e não a teoria vigente [do eletromagnetismo, por exemplo] que está sendo posto à prova” 12 ; “só o profissional é censurad o, não os seus instrumentos” 1: 1 — e assim podemos continuar passo a passo, até o derradeiro item da lista de Kuhn. A situação não melhora pelo fato de assinalarmos a existência de revoluções. Primeiro, porque estamos lidando com a tese de que é a ciência normal se caracteriza atividade solução de enigmas. E, segundo, porque nãoque há razão para ac pelareditar que ode crime organizado ficará para trás no domínio das principais dificuldades. De mais a mais, é a pressão derivada do número sempre crescente de anomalias que leva, primei ro a uma crise, depois a uma revolução; e quanto maior a pressão, tanto mais cedo ocorrerá a crise. Ora, pode-se esperar que a pressão exercida sobre os membros de uma gangue e seus “colegas profissionais” excede as pressões exercidas sobre o cientista — este último dificilmente terá de haver-se com a polícia. Para onde quer que olhasse — a distinção que desejamos traçar não existe.
8. Cf. o ensaio de Kuhn de1961 intitulado: "The Function of Dogma in Scientific Research”, p . 357. 9. Dillinger aprimorou consideravelme nte a técnica dos assaltos aos ban cos encenando ensaios gerais com modelos em tamanho natural dos bancos que pretendia assaltar e que construía em sua fazenda. Refutou,por esse modo, o “Pioneirismo não Compensa” de Andrew Carnegie. 10. Kuhn, “The Functionof Dogma in Scientific 11. Neste volume, p. 15; cf.também 12 e nota de pé de pág. n.° 7, 12. Neste volume, p. 9. Neste volume, p. 13. 12; cf. também livro de Kuhn, The S tr ucture
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p. o
É claro que isto não constitui surpresa. Pois Kuhn, tal como o interpretamos agora e como ele mesmo muitas vezes deseja ser interpretado, deixou de fazer uma coisa i mportante. Deixou de discutir a finalidade da ciência. Todo criminoso sabe que, além de obter êxito em sua profissão e ser popular entre os criminosos seus semelhantes, ele deseja uma coisa: dinheiro. Também sabe que sua atividade criminosa normal lhe dará exatamente isso. Sabe que receberá mais dinheiro e subirá mais depressa na escada profissional quanto melhor solucionador enigmas se revelar e quanto melhor à Qual seé aajustar comunidade criminosa.deSua finalidade é o dinheiro. finalidade do cientista? E, tendo em vista essa finalidade, a ciência normal poderá conduzir a ela? Ou os cientistas (e os filósofos de Oxford) serão menos racionais do que os gatunos por “fazerem o que fazem” independentemente de qualquer finalidade? 14 São essas as perguntas que se formulam quando desejamos restringir-nos ao aspecto puramente descr itivo do relato de Kuhn. 4.
A FUNÇAO DA CIÊNCIA NORMAL A fim de responder a essas perguntas precisamos considerar não só a
estrutura ciênciapressuposição normal kuhniana, mas também sua função. A ciência normal, dizreal ele, édauma necessária das revoluções. De acordo com essa parte do raciocínio a atividade vulgar associada à ciência “madura” exerce efeitos de longo alcance — não só sobre o conteúdo de substan- cialidade. Tal atividade, tal nossas idéias, mas também sobre sua preocupação com “minúsculos enigmas” conduz a um rigoroso ajustamento entre a teoria e a realidade, e precipita o progresso. Isso acontece por várias razões. Em primeiro lugar, o paradigma aceito orienta o cientista: “Como demonstrará um olhar dirigido a qualquer história natural baconiana ou a um apanhado do desenvolvimento pré-paradigmático de qualquer ciência, a natureza é tão complexa que não pode ser estudada nem aproximada mente ao acaso”. 15 Esse ponto não é novo. A tentativa de criar conheci mento necessita de orientação, não pode começar do nada. Mais especificamente, necessita de uma teoria, um ponto de vista que per
14.
"Estou fazendo o que estou fazendo” era uma observação favorita de Austin.
15.
Kuhn, "The Function o f Dogma in Sci entific Research”, 1961, p. 363
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mita ao pesquisador separar o relevante do irrelevante, e que lhe mostre as áreas em que a pesquisa será mais proveitosa. A essa idéia comum adiciona Kuhn um toque específico pessoal. Ele defende não só o uso de suposições teóricas, mas também a escolha exclusiva de um conjunto particular de idéias, a preocupação monom aníaca com um ponto de vista isolado. E defende tal modo de proccdcr porque este último desempenha um papel na ciência real tal como ele a vê. Eis aí a ambigüidade entre a descrição e a recomendação, de que já tratamos. Mas defende-o também por uma segunda razão, um pouco mais recôndita por não terem sido explicitadas as preferências que se escondem atrás dela. Defende -o por acreditar que sua adoção acabará conduzindo à derrubada do mes- míssimo paradigma a que os cientistas se restringiram em primeiro lugar. Se falhar até o esforço mais adequado para ajustar a natureza às suas categorias; se se frustrarem repetidamente as expectativas muito definidas, criadas por essas categorias, então seremos forçados a procurar algo novo. E só não somos forçado s a fazê -lo por uma discussão abstrata de possibilidades que não toca a realidade, mas é 18 antes guiada por nossas simpatias e antipatias ; somos forçados a fazê-lo por processos que estabeleceram íntimo contato com a natureza e, portanto, em última instância, pela própriadesinibida natureza. Os da “freqüentemente pré-ciênciadirigidos com sua crítica universal e sua proliferação de debates idéias são 17 assim aos membros de outras escolas como. . . à natureza”. A ciência matura, sobretudo nos períodos tranqüilos que antecedem imediatamente a tempestade, parece dirigir-se tão-somente à natureza e pode, portanto, esperar uma resposta definida e objetiva. A fim de obter essa resposta precisamos de mais do que de uma coleção de fatos reunidos a esmo. Mas também precisamos de mais do que de uma discussão interminável de ideologias diferentes. O que precisamos é a aceitação de uma teoria e a tentativa inexorável de ajustar a natureza ao seu padrão. Creio ser esta a principal razão por que a rejeição, por uma ciência madu ra, da batalha desinibida entre ■ alternativas seria defendida por Kuhn não só como fato histórico, mas também como movimento racional. É aceitável essa defesa?
16. “Se qualquer um oferece conjecturas acerca da verdade das coisas partindo da mera possibilidade da hipótese, não vejo como se pode determinar a certeza em qualquer ciência; pois é sempre possível engenhar hipóteses, uma depois da outra, que conduzem, segundo se verifica, a novas dificuldades” (Newton, Carta a Pardies, de 10.6.1672). 17. Kuhn, The S tr uctur e of S cienti fi c R evoluti ons, 1962, p. 13.
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5. TRES D IFICU LDAD ES DO RA CIO C NIO FU NCIO NAL A defesa de Kuhn é aceitável contanto que as revoluções sejam desejáveis e contanto que o modo particular com que a ciência normal conduz às revoluções também seja desejável. Ora, não vejo como a desejabilidade das revoluções pode ser estabelecida por Kuhn. As revoluções ocasionam uma mudança de paradigma. Seguindo, porém, o relato feito por Kuhn dessa mudança, ou “transferência de gestalt" como ele lhe chama é impossível dizer que elas conduziram a algo melhor. É impossível dizê-lo porque os paradigmas pré-revolucionários e pós18 Esta, para mim, seria a revolucionários são frequentemente incomensuráveis. primeira dificuldade do raciocínio funcional usado em conexão com o resto da filosofia de Kuhn. Em segundo lugar, temos de examinar o que Lakatos denominou “estrutura fina” da transição: ciência norma l/revolução, capaz de revelar elementos que não desejamos tolerar. Tais elementos nos for çariam a considerar maneiras diferentes de provocar uma revolução. Assim sendo é perfeitamente imaginável que cientistas abandonem um paradigma por efeito da frustração e não por terem argumentos contra ele. (Matar os representantes do status quo seria outra maneira de acabar com um paradigma. 19 ) Como procedem realmente os cientistas? E como desejaríamos nós que eles procedessem? Um exame dessas perguntas leva a uma segunda dificuldade do raciocínio funcional. No intuito de mostrá -la tão claramente quanto possível, consideremos primeiro os seguintes problemas metodológicos: É possível dar razões para proceder como procede, segundo Kuhn, a ciência nor mal, isto é, tentando aferrar-se a uma teoria apesar da existência de uma evidência prima jacie, refutadora de argumentos contrários lógicos e matemáticos? E presumindo-se que seja possível dar tais razões — será possível abandonar a teoria sem violar as mencionadas razões? Nas linhas que se seguem chamarei ao conselho para escolher, dentre certo número de teorias, a que promete conduzir aos resulta
18. Cf. mai s adian te, seção 9. 19. É assim que as ou as dout r i nas políti cas doutrinas religiosas freqüentemente substituídas. O princípio subsiste ainda hoje, conquanto o assassinato já não seja o método aceito. O leitor deve também refletir no reparo de Max Planck segundo o qual as velhas teorias desaparecem porque morrem os seus defensores.
eram
dos mais proveitosos, e ao conselho para aferrar-se a essa teoria, ainda que as princípio da dificuldades reais que ela encontre sejam consideráveis, o 20 tenacidade. O problema, pois, é como defender, esse princípio, e como mudar nossa fidelidade aos paradigm as de modo que seja compat ível com ele ou talvez até ditado por ele. Não nos esqueçamos que estamos aqui lidando com um problema metodológico e não com a questão de saber como procede realmente a ciência. Lidamos com ele porque esperamos que sua discussão nos aguce a percepção histórica e nos conduza a interessantes descobertas históricas. Agora a solução do problema é direta. O princípio da tenacidade é racional porque as teorias são capazes de desenvolvimento, porque podem ser melhoradas, e porque podem finalmente ser capazes de acomodar as mesmíssim as dificuldades que, em sua forma srcinal, se mostravam totalmente incapazes de explicar. Ademais,
20. Essa formulação do princípio foi sugerida por u ma o bjeção levantada por Levi contra uma versão anterior.
Isaac
princípio de tenacidade, tal como foi formulado no texto, não deve ser confundido com a Or egr a de tenacidade de Putnam (Putnam, “ ‘Degree of Confirmation’ and Inductive Logic", 1963, p. 772). Pois ao passo que a regra de Putnam exige que uma teoria seja conservada “ a n ão ser qu e ela se torne incompatível com os dados" (o grifo é dele), a tenacidade, tal como Kuhn e eu a compreendemos, exige que ela seja conservada ainda que haj a dados i n comp atíveis com el a. Essa versão mais forte cria problemas que não aparecem na metodologia de Putnam e que, sugiro eu, só poderão ser resolvidos se estivermos preparados para utilizar uma multiplicidade de teorias mutuamente incompatíveis a qual quer m omento do de senvol vim ento do n oss o conheciment o. Parece-me que nem Kuhn nem Putnam estão preparados para dar esse passo. Mas enquanto Kuhn vê a necessidade de usar alternativas (veja mais adiante) Putnam exige que o número delas seja sempre reduzido a um ou a zero (ibid. pp. 770 e seguintes). Lakatos diverge do relato apresentado no texto em dois sentidos. Distingue entre teoria e pr ogr amas de pesqui sa. E só aplica a tenacidade aos programas de pesquisa. Ora, se bem eu admita que a distinção e o uso que ele faz dela possam aumentar a clareza, continuo inclinado a permanecer fiel ao meu termo “te o ria”, muito mais vago, (sobre uma explicação parcial desse termo, cf. minha nota de rodapé n.° 5, “Reply to Criticism”, 1965) que tanto abrange ac “teorias” quanto os “programas de pesquisa” de Lakatos, para ligá-lo com tenacidade, e eli mi nar de todo as formas mais simples de refutação. Uma razão dessa preferência é dada pelo próprio Lakatos: até simples refutações envolvem uma pluralidade de teorias (veja especialmente o seu ensaio nes te vol um e, pp. 147 e seguintes). Outra razão é a minha crença de que só a interação ativa de "teorias” diferentes gera o progresso, o que, naturalmente, presume que o componente “programa de pesquisa” não aparece de vez em quando, m as está pr esen te o t empo to do (cf. também mai s adian te, seção 9).
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não é muito prudente confiar demasiado em resultados experimentais. Seria, com efeito, uma surpresa completa e até motivo de suspeita se toda a evidência disponível viesse a sustentar uma única teoria, mesmo que acontecesse ser essa teoria verdadeira. Experimentadores diferentes estão sujeitos a cometer erros diferentes e é preciso geralmente que se passe muito tempo antes que todas as 21 experiências sejam reduzidas a um denominador comum. A esses argumentos em favor da tenacidade, o Professor Kuhn ajuntaria que uma teoria também fornece critérios de perfeição, de malogro, de racionalidade, e que se deve sustentá-la o maior tempo possível, a fim de manter o discurso racional o maior tempo possível. O ponto mais importante, todavia, é este: quase nunca acontece sexem as teoria s comparadas diretamente “aos fatos” ou “à evidência”. O que conta e o que não conta como evidência relevante geralmente depende da teoria bem como de outros temas que podem ser convenientemente denominados “ciências auxiliares” (“teorias que servem como pedra de toque” é a acertada expressão de Imre Lakatos 22 ). Tais ciências auxiliares podem funcionar como premissas adicionais na derivação de enunciados testáveis. Mas também podem contaminar a própria linguagem de observação, fornecendo os conceitos em cujos termos se expressam os resultados experimentais. Desse modo, um teste da concepção coperniciana envolve, de um lado, suposições relativas à atmosfera terrestre,suposições o efeito do movimento sobre objetoa movido (dinâmica); e, de outro, envolve tocantes à relaçãoo entre experiência dos sentidos e “o mundo” (incluindo as teorias da cog - nição e as da visão telescópica). As primeiras suposições funcionam como premissas, ao passo que as últimas determinam quais são as impressões vcrídicas e, assim, nos permitem não só avaliar mas também constituir nossas observações. Ora, não há garantias de que uma mudança fundamental em nossa cosmologia, como, por exemplo, a mudança de um ponto de vista geostático para um ponto de vista heliostático, caminhará de mãos dadas com um aprimoramento de todos os assuntos auxiliares pertinentes. Ao contrário: esse desenvolvimento é sumamente improvável. Quem esperaria, por exemplo, que a invenção do copercia- nismo e do telescópio fosse logo seguido pela ótica fisiológica a
pro
21. Foi preciso que se passassem uns vinte e cinco anos para que as perturbações da repetição da experiência de Michelson e Morley por D. C. Miller fossem explicadas de modo satisfatório. H. A. Lorentz havia desistido, desesperado, muito antes disso. 22.
Cf. o seu ensaio de 1968, “Changes in the Problem of Inductive Logic”.
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priada? Teorias básicas e assuntos auxiliares estã o muitas vezes “em desacordo”. Em decorrência disso, obtemos instâncias refutadoras que não indicam que uma nova teoria está fadada ao fracasso, mas apenas que não se ajusta por enquanto ao resto da ciência. Sendo esse o caso, os cientistas devem desenvolver métodos que lhes permitam reter suas teorias em face de fatos refutadores evidentes e sem ambigüidades, ainda que não sejam eminentes explicações testá- veis para o choque. O princípio da tenacidade (ao qual só dou o nome de “princípio” por 23motivos mnemônicos) é um primeiro passo na construção de tais métodos. Tendo adotado a tenacidade, já não podemos empregar fatos re calcitrantes para remover uma teoria, T, ainda que os fatos sejam tão evidentes e diretos quanto a própria luz do dia. Mas podemos usar outras teorias, 7”, T”, T’”, etc., que acentuam as dificuldades de T se bem prometam, ao mesmo tempo, meios para a sua solução. Nesse ca so, a eliminaçã o de T é exigida pelo próprio princípio da te nacidade. 24 Daí que, se a nossa finalidade é a mudança de paradigmas, devemos estar preparados para introduzir e expressar alterna tivas de T ou, como o diremos (novamente por motivos mnemônicos), precisamos estar preparados para aceitar um princípio de proliferação. Proceder de acordo com esse princípio é um método de precipitar revoluções. É um método racional. realmente usa? Ou os cientistas se mantêm fiéis Mas é o método que a ciência aos seus paradigmas até o fim e até que a repulsa, a frustração e o tédio lhes impossibilitem de todo continuar? Que é o que acontece no fim de um período normal? Vemos que nosso pequeno conto de fadas metodológico nos leva, com efeito, a encarar a história com a vista aguçada. Lamento dizer que não me satisfaz o que Kuhn tem para oferecer neste ponto. De um lado, ele enfatiza com firmeza os traç os dóg-
23. Sobre pormenores relativos à “diferença de fase” entre as teorias e as ciências auxiliare s correspondentes, cf. meu trabalho intitulado “Problems in Empiricism, part 2”. A idéia já ocorre no ensaio de Lakatos de 19634, “Proofs and Refutations”; é um lugar -comum para Lenin e Trotsky (cf. meu ensaio de 1969, “Problems in Empiricism, part 2" ). 24. Claro está que essa não é to da a história — mas este esboço é mais do que suficiente para o nosso propósito.Observe-se que o argumento de Kuhn em favor da tenacidade (necessidade de um fundo racional de raciocínio) também não é violado, visto que a melhor teoria também fornecerá, naturalmente, melhores padrões de racionalidade e excelência.
máticos, 25 autoritários 26 e tacanhos 27 da ciência normal, o fato de que ela conduz a um temporário “fechamento da mente” 28 que o cientista que dele participa “deixa em grande parte de ser um explorador. . .ou, pelo menos, um explorador do desconhecido. Em lugar disso, ele luta para articular e concretizar o conhecido...” 29 de sorte que “é [quase sempre] o cientista individual, muito mais do que [a tradição de solução de enigmas, ou até alguma] teoria vigente que está 31 sendo testada”. 30 “Só o profissional é censurado, seus instrumentos, não.” Ele compreende, naturalmente, que uma ciência específica, como a física, pode conter mais de uma tradição para a solução de enigmas, mas ele lhe enfatiza a “quase independência”, afirmando que cada uma delas é “guiada por seus 32 próprios paradigmas e enfrenta seus próprios problemas”. Por conseguinte, uma só tradição será guiada por um só paradigma. Este é um lado da his tória. De outro lado, ele assinala que a solução de enigmas é substituída por argumentos mais “filosóficos” assim que se faz a escolha “entre teorias concorrentes”. 33 Ora, se a ciência normal é de facto tão monolítica quanto o quer Kuhn, de onde vêm as teorias concorrentes? E se estas efetivamente surgem, por que haveria Kuhn de levá-las a sério e permitir- lhes que provoquem uma mudança do estilo argumentativo do “científico” (solução de enigmas) para o “filosófico”? 34 Lembro-me muito bem de que Kuhn criticou Bohm por haver perturbado a unif or midade da teoria quântica contemporânea. Não se permitiu à teoria de Bohm que modificasse o estilo argumentativo. Einstein, que Kuhn menciona na citação aci ma, tem permissão para fazê-lo, talvez porque sua teoria esteja agora mais bem entrincheirada que a de Bohm. Significa isso, porventura, que se permite a proliferação contanto que as alternativas concorrentes estejam bem entrincheiradas? Mas a pré-
25. 26. 27. 28. 29. 30. 31.
Kuhn, “The Function of Dogma in Scientific Research”, 1961, p. 349. Ibid. p. 393. Ibid. p. 350. Ibid. p. 393. Kuhn, “The Function of Dogma in Scientific Research”, 1961, p. 363. N este volu me,p. 9. Kuhn, N este volu me, p. 12; cf. também The Stru cture ofSc ientifi c 79. Revolutions, p. 32. Kuhn, "The Function of Dogma in Scientific Research”, 1961, p. 388. 33. N este volu me, p. 12. 34. “Filosófico” no sentido de Kuhn (e de Popper) e filosofia lingüística contemporânea.
n ão no sentido, digamos, da
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-ciência, que possui exatamente essa característica, é considerada inferior à ciência. De mais a mais, a física do século XX contém uma tradição que deseja isolar a teoria geral da relatividade do resto da física, e restringi-la ao muito amplo. Por que Kuhn não sustentou essa tradição, que está de acordo com sua concepção da “quase independência” dos paradigmas simultâneos? Inversamente, se a existência de teorias concorrentes envolve uma mudança do estilo argumen- tativo, não devemos duvidar dessa pretensa quase independência? Não fui capaz de encontrar nos escritos de Kuhn uma resposta satisfatória a essas perguntas. Levemos o ponto um pouco mais adiante. Kuhn não se limitou a admitir que a multiplicidade das teorias modifica o estilo de argumentação. Também 35 atribuiu uma função definida à multiplicidade. Mostrou mais de uma vez, em perfeita harmonia com nossas breves observações metodológicas, que as refutações são impossíveis sem a ajuda das alternativas. Ademais, descreveu com alguns pormenores o efeito de aumento que têm as alternativas sobre as 36 anomalias e explicou o modo com que esse aumento produz revoluções. Disse, portanto, que os cientistas criam revoluções de acordo com o nosso modelozinho e não inexoravelmente abandonando-ometodológico de repente quando os p seguindo roblemas se agigantam. um paradigma e Tudo isso conduz agora, sem perda de tempo, à dificuldade nú mero três, a saber, à suspeita de que a ciência normal ou “madura”, tal como foi descrita por Kuhn, não é sequer um fato histórico. 6.
EXISTE A CIÊNCIA NORMAL? Relembrem os o que até aqui descobrimos ter sido afirmado por Kuhn. Em primeiro lugar, ele asseverou que as teorias não podem ser refutadas senão com a ajuda de alternativas. Em segundo lugar, afiançou que a proliferação também representa um papel histórico
35. Cf. o ensaio de Kuhn de 1961 intitulado "Measurement in Modern Physical Science” e também o meu reconhecimento no meu ensaio, “Explana - tion, Reduction and Empiricism”, de 1962, p. 32. 36. Um distúrbio de menor importância, ainda acessível ao tratamento, pode ver-se, de outro ponto de vista, como exemplo contrário, e assim, como causa de crise” (Kuhn, The Stru cture of Scie ntif ic Re volutions , p. 79). “A pro posta astronômica de Copérnico... criou uma crise crescente para... o para digma de que ela se srcinara” (ibid. p. 74; o grifo é meu). “Os paradigmas não são corrigíveis pela ciência normal grifo é meu).
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de maneira alguma” (ibid.
p. 121; o
no derrubamento de paradigmas. Paradigmas têm sido derrubados mercê do modo com que as alternativas têm a mpliado as anomalias existentes. Finalmente, Kuhn em qualquer ponto da história de um mostrou que as anomalias existem 37 paradigma. A idéia de q ue as teorias são inatacáveis durante decênios e mesmo durante séculos, até surgir uma grande refutação que as derruba — - essa idéia, afirma ele, não passa de um mito. Ora, se isso é verdade, por que não damos início imediatamente à proliferação e nunca permitimos que uma ciência normal venha a existir? E será excesso de otimismo esperar que os cientistas pensam dessa maneira e que os períodos normais, se alguma vez existiram, não possam haver durado muito tempo e não possam haver-se estendido tampouco por campos extensos? Um rápido olhar dirigido a um exemplo, como o último século, mostr a que este parece t er sido efetivamente o ca so. No segundo terço desse século existiam, pelo menos, três para digmas diferentes e mutuamente incompatíveis. Eram eles: (1) o ponto de vista mecânico, que encontrou expressão na astronomia, na teoria cinética, nos vários modelos mecânicos da eletrodinâmica, assim como nas ciências biológicas, sobretudo na medicina (aqui a influência de Helmholtz foi fator decisivo); (2) o ponto de vista teoria do calor independente e fenomenológica, que ligado à invenção de uma finalmente se revelou incompatível com a mecânica; (3) o ponto de vista implícito na eletrodinâmica de Faraday e Maxwell, desenvolvido e libertado dos seus concomitantes mecânicos por Hertz. Ora, esses diferentes paradigmas estavam longe de ser “quase independentes”. Ao contrário, foi a ativa interação deles que acarretou a queda da física clássica. As dificuldades que conduziram à teoria especial da relatividade não poderiam ter nascido sem a tensão que existia entre a teoria de Maxwell, de um lado, e a mecânica de Newton, de outro (Einstein descreveu a situação em termos maravilhosamente simples em sua autobiografia; Weyl apresentou um relato igualmente breve, porém mais técnico, em Raum, Zeit,
Materie; Poincaré já se refere essa tensão em possível 1899, e utilizar depois novamente 1904, em sua conferência de St.aLouis). Nem era o fenômenoem do movimento browniano para uma refutação direta da segunda lei da teoria fenomenológica. 38 A teoria cinética tinha de ser
37.
Kuhn, The S tr uctur e of S cienti fi c R evoluti ons, 1962, pp. 80 e seguintes e p. 145.
38. Cf. minha discussão na seção VI do meu ensaio de 1965, “Problems of Empiricism”.
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apresentada desde o princípio. Aqui, mais uma vez, seguindo Boltz- mann, Einstein mostrou o caminho. As investigações que prepararam o terreno para a descoberta do quantum de ação, para mencionar outro exemplo, juntaram disciplinas diferentes, incompatíveis e, às vezes, até incomensuráveis como a mecânica (a teoria cinética tal como foi usada na derivação de Wien da sua lei da radiação), a termodinâmica (o princípio de Boltzmann da igual distribuição de energia por todos os graus de liberdade) e a ótica ondulatória; e elas teriam sofrido um colapso houvesse sido a “quase independência” desses assuntos respeitada por todos os cientistas. Claro está que nem todo o mundo participou dos debates e a grande maioria pode ter continuado a lidar com os seus “minúsculo s enigmas”. Entretanto, se levarmos a sério o que o próprio Kuhn nos ensina, não foi essa atividade que srcinou o progresso, mas a atividade da minoria prolife- radora (e dos experimentadores que atenderam aos problemas da minoria e às suas estranhas pred ições). E podemos perguntar se a maioria não continua solucionando os velhos enigmas através das próprias revoluções. Mas se isto é verdade, o relato de Kuhn que separa temporalmeníe períodos de proliferação e períodos de monis- mo desmorona completamente. 39 7.
EM DEFESA DO HEDONISMO
Parece, portanto que a interação entre a tenacidade e a proliferação que descrevemos em nosso pequeno conto de fadas metodológico é também um traço essencial do desenvolvimen to real da
39. Poder-se-á obj etar que a atividade de resolução de enigmas, embora insuficiente ara provocar uma revolução, én ecessár i a, pois cria o material que acaba conduzindo à dificuldade: a resolução de enigmas é responsável por algumas condições de que depende o rogresso científico. Os pré-socráticos que progrediram (suas teorias não se limitaram a mudar, foram também aprimoradas) sem dar a menor atenção a enigmas refutam essa objeção. Está visto que eles não produziram o padrão: ciência normal-revolução-ciência ormal- revolução, etc., em que a estupidez profissional é periodicamente substituída por explosões filosóficas só para voltar de novo a um “nível mais elevado”. Não há dúvida, porém, de que esta é uma vantagem, que nos permite ter a mente aberta durante o tempo todo e não apenas no meio de uma catástrofe. Além disso — não é a “ciência normal” cheia de “fatos” e “enigmas” qUe pertence, não ao paradigma vigente, mas a al gun s prede cessores ? E não se dá ambém o caso de fatos anômalos serem freqüentemente apresentados pelos críticos de um aradigma, em lugar de serem usados por el es como ponto de partida da crítica? E se isso é erdade, disso não se segue que a proliferação, muito mais que o padrão normalidaderoliferação-normalidade, caracteriza a ciência? De modo que a posição de Kuhn seria não só etodologicamente insustentável (veja a seção anterior) mas também historicamente falsa?
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ciência. Parece que não é a atividade de solução de problemas a responsáve l pelo crescimento do nosso conhecimento, mas a ativa interação de várias concepções sustentadas com tenacidade. Além disso, a invenção de novas idéias e a tentativa de assegurar-lhes um lugar digno na competição conduzem ao derrubamento de velhos e familiares paradigmas. Essa atividade inventiva ocorre durante o tempo todo. Entretanto, a atenção só se volta para ela durante as revoluções. Essa mudança da atenção não reflete nenhuma mudança estrutural profunda (como, por exemplo, a transiç ão do soluciona- mento de problemas para a especulação filosófica e o teste dos fundamentos). Não é nada mais que uma mudança de interesse e publicidade. Esta é a imagem da ciência que emerge da nossa breve análise. Será uma imagem atraente? Tornará ela proveitosa a busca da ciência? Ser-nos-á benéfica a presença de tal disciplina, o fato de termos de viver com ela, estudá-la, compreendê-la, ou será ela talvez capaz de corromper-nos o entendimento e diminuir-nos o prazer? É muito difícil hoje em dia abordar essas questões com o espírito certo. O proveitoso e o não-pr oveitoso são determinados em tã o grande extensão pelas instituições e formas de vida existentes que dificilmente chegamos a uma 40 avaliação correta dessas mesmas instituições. As ciências especialmente estão rodeadas de uma aura de perfeição que susta qualquer indagação sobre o seu efeito benéfico. Usam- se com liberalidade frases como “busca da verdade” ou “o mais alto objetivo da humanidade”. Elas enobrecem, sem dúvida, o seu objeto, mas também o afastam do terreno da discussão crítica (Kuhn deu mais um passo nessa direção, conferindo dignidade até à parte mais cacete e corriqueira da atividade científica: a ciência nor mal). Entretanto, por que se haveria de permitir a um produto do engenho humano que ponha fim às mesmíssimas perguntas a que ele deve sua existência? Por que haveria a existência desse produto de impedir-nos de formular a pergunta mais importante de todas: até que ponto aumentou a felicidade dos seres humanos e até que ponto aumentou a sua liberdade? O programa sempre foi logrado pela sondagem de formas de vida b em entrincheiradas e bem fundadas com valores impopulares e infundados. Foi assim que o homem, pouco a pouco, se libertou do medo e da tirania dos sistemas não-examinados.
40.
Os filósofos analíticos modetnos
estão tentando mostrar que essa avaliação é at é — com uma diferença: faltalhes o saber, a perceptividade e o espírito do mestre. l ogi cam ent e im possível. Nisto são apenas seguidores de Hegel
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Nossa pergunta, portanto, é a seguinte: que valores escolheremos pa ra sondar as ciências de hoje? Afigura-se-me que a felicidade e o pleno desenvolvimento de um ser humano é agora, como sempre foi, o mais alto valor possível. Esse valor não exclui os valores que fluem de formas institucionalizadas de vida (verdade, coragem, altruísmo, etc.). Antes, os encoraja mas apenas até o ponto em que podem contrib uir para o avanço de algum indivíduo. O que se exclui é o uso de valores institucionalizados para a condenação, ou talvez até a eliminação, dos que preferem arranjar suas vidas de maneira diferente. O que se exclui é a tentativa de “educar” crianças de maneira que percam seus múltiplos talentos, de modo que fiquem restritas a um domínio estreito de pensamento, ação e emoção . Adotando esse valor básico desejamos uma metodologia e um conjunto de instituições que nos permitam perder o menos possível do que somos capazes de fazer e nos obriguem o menos possível a desviar-nos de nossas implicações naturais. Ora, o pequeno conto de fadas metodológico que esboçamos na seção n.° 6 diz que a ciência q ue tenta desenvolver nossas idéias e emprega meios racionais para a eliminação até das conjecturas mais fundamentais precisa um princípio de tenacidade juntamente com um princípio de proliferação. Urge que lhe permitam reter idéias em face de dificuldades; e urge que lhe permitam apresentar novas idéias ainda que as concepções populares pareçam plenamente justificadas e sem defeitos. Descobrimos também que a ciência real ou, pelo menos, a parte da ciência real responsável pela mudança e pelo progresso, não é muito diferente do ideal esboçado no conto de f adas. Mas esta é deveras uma feliz coincidência! Estamos agora de pleno acordo com nossos desejos expressos acima! A proliferação sign ifica que não há necessidade de suprimir nem o mais estranho produto do cérebr o humano. Todos podem seguir suas inclinações e a ciência, concebida como empreendimento crítico, aproveitará essa atividade. Tenacidade: significa que se estimula a pessoa não só a seguir apenas suas inclinações, mas também a desenvolvê-las, a erguê-las, com a ajuda da crítica (que envolve uma comparação com as alternativas existentes) a um nível mais elevado de expressão e, por esse modo, a erguer-lhes a defesa a um nível mais alto de consciência. A interação entre a proliferação e a tenacidade também importa na continuação, num novo nível, do desenvolvimento biológico da espécie e pode até aumentar a tendência para mutações biológicas úteis. Pode ser o único meio possível de impedir que nossa espécie se estagne. Para mim, este é o argumento final e mais importante
260
contra a “ciência madura” descrito por Kuhn. Tal empreendimento não é só mal concebido e inexistente; sua defesa é também incompatível com uma visão humanitária. 8.
UMA ALTERNATIVA: O MODELO DA MUDANÇA CIENTIFICA DE LAKATOS
Permitam-me agora apresentar em sua totalidade a imagem da ciência que, no meu entender, deve substituir o relato de Kuhn. Essa imagem é a síntese das duas descobertas seguintes. Primeiro, contém a descoberta de Popper de que a ciência progride pela discussão crítica de visões alternativas. Segundo , contém a descoberta de Kuhn da função da tenacidade que ele expressou, erroneamente a meu ver, mediante o postulado da existência de períodos de tenacidade. A síntese consiste na afir mação de Lakatos (desenvolvi da em seus próprios comentários sobre Kuhn) de que a proliferação e a sucessivos da história da ciência, mas estão tenacidade não pertencem a períodos il sempre co-presentes. Quando falo em
“descoberta” não quero dizer que as idéias mencionadas
são inteiramente que são agora numamontanhas. forma nova. Muitodeao contrário. Algumasnovas, dessasouidéias tãoaparecem velhas quanto A idéia que o conhecimento progride através de uma luta de visões alternativ as e que ele depende da proliferação foi primeiro aventada pelos pré-socráticos (isso foi enfatizado pelo próprio Popper) e depois desenvolvida numa filosofia geral por Mill (especialmente em On Liberty). A idéia de que uma luta de alternativas é decisiva para a ciência também foi apresentada por Mach ( Erkenntnis und lrrtum) e Boltzmann (veja suas Populaer- wissensschaftliche Vorlesungen) , principalmente sob o impacto do darwinismo. A necessidade de tenacidade foi enfatizada pelos materi alistas dialéticos que objetaram a vôos “idealísticos” extremos da imaginação. E a síntese, finalmente, é a própria essência do materia- lismo dialético na forma em que este aparece nos escritos de Engels, Lenin e Trotsky. Pouca coisa a esse respeito sabem os filósofos “analíticos” ou “empiristas” de hoje, que ainda sofrem muito a influência
41. Creio que a análise de Lakatos pode ser ainda aperfeiçoada se se abandonar a distinção entre teorias e programas de pesquisa (cf. mais acima, p. 252, nota de rodapé n.° 20) e se admitir a incomensurabilidade (saltando da quantidade para a qualidade na linguagem do materialismo dialético). Melhorada dessa maneira, seria um relato verdadeiramente dialético do nosso conhecimento.
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do Círculo de Viena. Considerand o esse contexto estreito, embora “moderno”, podemos falar, portanto, em “descobertas” genuínas, se bem que muito atrasadas. No entender de Kuhn, a ciência madura é uma sucessão de períodos normais e revoluções. Os períodos normais são monísticos; os cientistas tentam resolver enigmas resultantes da tentativa de ver o mundo em função de um único paradigma. As revoluções são plura - lísticas até que emerge um novo paradigma que ganha apoio suficiente para servir de base a um novo período norm al. Esse relato deixa sem resposta núm problema: como se processa a transição de um período normal para uma revolução? Na seção n.° 6 indicamos que a transição pode ser conseguida de um modo razoável: compara-se o paradigma central com as teorias alternativas. O Profess or Kuhn parece ser da mesma opinião. De mais a mais, ele mostra que é isso o que realmente acontece. A proliferação já se manifesta antes da revolução e serve de instrumento à sua produção. Mas isso significa que o relato original é falso. A proliferação n ão começa com a revolução; precede-a. Alguma imaginação e um pouco mais de pesquisa histórica mostram que a proliferação não só precede imediatamente as revoluções, mas também se acha presente durante o tempo todo. A ciência que conhecemos não é uma sucessão temporal de períodos normais e períodos de proliferação; é a sua justaposição. Vista desse modo, a transição da pré-ciência para a ciência não substitui a proliferação desinibida nem a crítica universal da primeira pela tradição de solução de enigmas de uma ciência normal. Completa-a com essa atividade ou, para expressá -lo ainda mel hor, a ciência madura une duas tradições muito diferentes que estão com freqüência separadas, a tradição da crítica filosófica pluralística e uma tradição mais prática (e menos humanitária — veja a seção 8) que explora as possibilidades de um material dado (de uma teoria; de um pedaço de matéria) sem ser impedida pelas dificuldades que podem surgir e sem dar atenção a maneiras alternativas de pensar (e de agir). Aprendemos com o Professor Popper que a primeira tradição está intimamente ligada à cosmologia dos pré-socráticos. A segunda é melhor exemplificada pela atitude dos membro s de uma sociedade fechada em relação ao seu mito básico. Kuhn conjeturou que a ciência madura consiste na sucessão desses dois modelos diferentes de pensamento e ação. Ele está certo na medida em que notou o elemento normal, conservador ou anti-humanitário. Es ta é uma
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descoberta genuína. Mas está errado na medida em que representou erroneamente a relação entre esse elemento e os processos mais filosóficos (isto é, críticos). Sugiro, de acordo com o modelo de Laka- tos, que a relação correta é uma relação de simultaneidade e interação. Falarei, portanto, do componente normal e do componente filosófico da ciência e do período normal e do período da revolução. Parece-me que um relato dessa natureza supera muitas dificuldades, tanto lógicas quanto tempo, fatuais, que o ponto de vista 42 de Kuhn tão fascinante mas, ao mesmo tãotomam insatisfatório. Ao considerá-lo não deveria desencaminhar-nos o fato de o componente normal quase sempre pesar mais do que a sua parte filosófica. Pois o que estamos investigando não é o tamanho de função (um homem só pode revolucionar uma certo elemento da ciência, mas sua época). Nem devemos ficar excessivamente impressionados pelo fato de que a maioria dos cientistas consideraria o componente “filosófico" situado fora da ciência propriamente dita e poderia apoiar essa atitude mostrando a própria falta de agudeza filosófica. Pois não são eles que realizam o aprimoramento fundamental mas os que promovem a interação ativa do componente normal e do componente filosófico (essa interação consiste quase sempre na crítica do que está bem entrincheirado e é não-filosófico pelo que é periférico e filosófico). Ora, admitindo-se tudo isso, por que parece existir uma flutuação definida no estado da ciência? Se a ciência consiste na constante interação entre uma parte filosófica; se é essa interação que a faz progredir, por que os elementos revolucionários só se tornam visíveis em raras ocasiões como essas? Não é este simples fato histórico suficiente para apoiar o relato de Kuhn sobre o meu? Não é típico sofisma filosófico negar um fato histórico tão óbvio? Creio que a resposta a essa pergunta é evidente. O componente normal, grande, está bem entrincheirado. Daí que uma mudança do componente normal seja muito notável. Assim também é a sua re
42. Para tornar apenas um exemplo, Kuhn escreve (neste volum e, p. 11) que “os profissionais são treinados para a prática normal e não para a prática extraordinária da ciência; se se mostram, apesar disso, eminentemente bem- -sucedidos no suplantar e no substituir as teorias de que depende a ciência normal, essa é uma singularidade que precisa ser explicada”. É, sem dúvida, uma singularidade no relato de Kuhn. Em nosso relato só precisamos chamar a atenção para o fato de serem as revoluções feitas, em sua maioria, por membros do componente filosófico que, embora cônscios da prática normal, são também capazes de pensar de maneira diferente (no caso de Einstein a capacidade autoprofessada de escapar do treinamento normal era essencial à sua liberdade de pensamento e a suas descobertas).
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sistência à mudança. Ela se torna especialmente forte e notável nos períodos em que a mudança parece iminente. É dirigida contra o componente filosófico e o traz à consciência pública. A geração mais jovem, sempre ansiosa por coisas novas, apodera-se do novo material e estuda-o com avidez. Os jornalistas, sempre à espreita de manchetes — quanto mais absurdas, melhor — fazem publicidade das novas descobertas (que são os elementos do componente filosófico que discordam mais radicalmente das concepções vigentes enquanto ainda possuem algum a plausibilidade e talvez até algum apoio fatual). Es tas são algumas razões das diferenças que percebemos. Não creio que devamos procurar algo mais profundo. Ora, no que tange à mudança do próprio componente normal não há razão para esperar que ele siga um modelo clarament e reconhecível e lógico. Kuhn, como outros filósofos antes dele (estou aqui pensando principalmente em Hegel) presume que uma mudança histórica tremenda pr ecisa exibir uma ló gica própria e que a mudança de uma idéia deve ser razoável no sentido de que ex iste um elo entre o fato da mudança e o conteúdo da idéia que está mudando. Eis aí uma suposição plausível enquanto lidamos com pessoas razoadas: as mudanças do componente filosófico, muito provavelmente, podem ser explicadas como o resultado de argumentos claros e sem ambigüidade. Mas presumir que pessoas que habitualmente resistem à mudança; que carregam o cenho a qualquer crítica feita a coisas que lhes são caras; e cujo propósito mais elevado é solucionar enigmas numa base não-co- nhecida nem compreendida; presumir que pessoas assim modificarão sua fidelidade de um modo razoável é levar o otimismo e a busca da racionalidade longe demais. Os elementos normais, isto é, os que têm o apoio da maioria, podem mudar porque a geração mais jovem não pode dar-se ao incômodo de seguir seus maiores; ou porque alguma figura pública mudou de idéia; ou porque algum membro influente do estabelecimento morreu e não deixou atrás de si (talvez em razão de sua natureza suspicaz) uma escola forte e influente, ou porque uma instituição poderosa e não-científica impele o pensamento numa direçã o definida. 43 As revoluções, portanto, são as manifestações
43. Ê plausível presumir que u m a das causas da transição para a ciência madura com suas várias tradições “quase independentes” d eve ser procurada no decreto da Igreja Católica Apostólica Romana contra o ponto de vista coperniciano. “Isso há de ser levado em conta pelos que tentam explicar o desenvolvimento especial das muitas ciências individuais e a ausência de uma base filosófica consciente e segura considerando-a como peculiaridade da cultura italiana do século XVII... Uma interpretação dessa natureza presume...
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exteriores de uma mudança do componente normal que não pode ser responsabilizado de nenhum modo razoável. São a substância de anedotas, embora aumentem e tomem visíveis os elementos mais racionais da ciência, ensinando-nos desse modo o que a ciência poderia ser se houvesse por perto pessoas mais razoadas. 9.
O PAPEL DA RAZAO NA CIÊNCIA
(1)(Existem Até agora critiquei Kuhndiferenças, de um ponto vistaminha quaserelutância idêntico aoemde Lakatos. algumas ligeiras tais de como 41 separar teorias e programas de pesquisa, mas não se fará caso delas. Quando falo em “teorias” sempre me refiro a teorias e/ou programas de pes quisa.) Quero agora defender Kuhn contra Lakatos. Mais especialmente, quero sustentar que a ciência é, e deveria ser, mais irracional do que Lakatos e Feyerabend, (o autor popperiano 3 das seções precedentes deste ensaio e dos “Problemas do Empirismo”) estã o preparados para admitir. 45 A transição da crítica para a defesa não quer dizer que mudei de idéia. Nem pode ela ser completamente explicada pelo meu cinis mo vis-à-vis da questão da filosofia da ciência. Liga-se antes à natureza da própria ciência, à sua complexidade , ao fato de que ela tem
que a condenação de Galileu foi apenas uma pressão externa, que não poderia ter influído no desenvolvimento de assuntos espirituais. Entretanto, considerou-se o julgamento romano como restrição de consciência que só se poderia quebrar com risco de vida e da salvação... Era permitido o desenvolvimento de disciplinas individuais. Ninguém foi impedido de esquadrinhar os céus, estudar os fenômenos físicos, pensar matematicamente... e promover a cultura material por meio de uma atividade dessa natureza. Sacerdotes e ordens religiosas, e até os jesuítas, responsáveis pelo destino de Galileu, exerceram, diligentes, essas tarefas restritas. Mas a consciência individual, assim como os onipresentes “directeurs de conscience”, os funcionários, as escolas, as igrejas, o Estado observavam com cuidado essa luta simples pelo saber a fim de que ninguém se atrevesse a utilizar-lhe os resultados na especulação filosófica". (Leonardo Olschki, Gerschinchte der neusprachlichen wiss ens chaftli - che n Li ter atur, 3, Gali lei u nd s ein e Zeit, 1927, p. 400). F oi ass im que a “ciência madura" veio a existir, pelo menos nos países católicos. Cf. também o capítulo IX de Gali leo und sein Kamp für die Kope r ni kani sche L ehr e, 2, 1926, de Wohlwill, onde o desenvolvime nto depois da morte de Galileu é esboçado com minúcias.
44. Cf. mai s acim a, p. 252, nota de pé de página n.° 20. 45. Os índices são projetados como crítica irônica de Lakatos, “Criti cism and the Methodology of Scientific Research Programmes”, 1968, em que foi apresentada pela primeira vez a prática de dividir um sujeito em três. (Cf. também neste vo l ume, p. 224.) Essa criou muita confusão e retardou os filósofos que tentavam encontrar os pontos fracosprática do racionalismo crítico.
265
aspectos distintos, de que não pode ser prontamente separada do resto da história, de que sempre utilizou e continua a utilizar todos os talentos e todas as sandices do homem. Argumentos contrários trazem à luz características diferentes que ela contém, desafiam-nos a tomar uma decisão, desafiam-nos a aceitar esse monstro de muitas caras e ser devorados por ele, ou a mudá-lo de acordo com nossos desejos. Vejamos agora o que se pode dizer contra o modelo do crescimento, científico de Lakatos. (2) O falseacionismo ingênuo julga (isto é, aceita ou condena) uma teoria assim que ela é introduzida na discussão. Lakatos dá tempo à teoria, permite que ela se desenvo lva, permite que ela mostre sua força oculta, e só a ju lg a “de poi s de mu it o te mp o”. Os “p ad rõ es cr ít ic os” que emprega 46 proporcionam um intervalo de hesitação. São aplicados “a posteriori” , São aplicados depois da ocorrência das transferências “progressivas” ou “degenerativas” do problema. Agora é fácil ver que os padrões desse gênero só têm força prática quando combinado s com um limite de tempo ( o que parece uma transferên cia degenerativa do problema pode ser o começo de um período muito mais longo de progresso). Mas introduza-se o limite de tempo e o argumento contra o
falseacionismo ingênuo reaparece apenas com uma modificação sem importância (se lhe é permitido esperar, por que não espera um pouquinho mais?) Dessa maneira, os padrões que Lakatos deseja defender ou são vãos — não se sabe quando devem ser aplicados — ou podem ser criticados por motivos muito semelhant es ao que conduziram a eles em primeiro lugar. Em tais circunstâncias pode fazer-se uma de duas coisas. Pode- se parar de apelar para padrões permanentes, que permanecem em vigor em todo o correr da história e governam todos os períodos isolados de desenvolvimento científico e toda transição de um período para outro. Ou podem reter-se tais padrões como ornamento verbal, como lembrete de tempos mais felizes, quando ainda se julgava possível dirigir um negócio complexo, e não raro catastrófico, como a ciência seguindo umas poucas regras simples e “racionais”. Tudo faz crer que Lakatos deseja escolher a segunda alternativa. (3) Escolher a segunda alternativa significa abandonar padrões permanentes de fato embora os retendo em palavras. De fato, a posição de Lakatos agora parece idên tica à de Popper tal como foi sin
46.
266
N este vol um e,
pp. 164. 194 e 214.
tetizada num adendo maravilhoso (porque autodestrutivo) da quarta edição da Opeti Society , 47 Segundo Popper não “precisamos de ne nhum . . . sistema definido de referência para a nosa crítica”, pode mos até revisar as regras mais fundamentais e abandonar as exigências mais fundamentais se surgir a 48 necessidade de uma medida diversa de estimação. É irracional essa posição? Supõe ela que a ciência é irracional? Sim e não. Sim — porque já não existe um conjunto isolado de regras que nos guie através de todas as curvas e voltas da história do pensamento (ciência), quer como participantes, quer como forçar historiadores que desejam reconstruir-lhe o curso. Pode-se, naturalmente, a história num modelo dessa natureza, mas os resultados serão sempre mais pobres e muito menos interessantes do que foram os acontecimentos reais. Não — porque cada episódio particular é racional no sentido de que alguns dos seus traços podem ser explicados em função de razões aceitas ao tempo da sua Sim — porque ocorrência, ou inventadas no decurso do seu desenvolvimento. nem essas razões lógicas que mudam de uma idade para outra bastam a explicar todas as características importantes de determinado episódio. Precisamos acrescentar acidentes, preconceitos, condições materiais (como a existência de um tipo particular de vidro num país e não em outro), as vicissitudes da vida de casados, superficialidade, orgulho, muitas outras coisas se obter inadvertênum quadro cia, completo. Não — porquee transportados para opara clima do período que é objeto de consideração e dotados de uma inteligência viva e curiosa, podemos ter tido ainda mais para dizer, podemos ter tentado superar acidente s e “racionalizar” até a mais caprichosa se qüência de acontecimentos. Mas — e agora chegamos a um ponto decisivo — como se realizará a transição de certos padrões para outros padrões? Mais especialmente, que acontece a nossos padrões (em contraposição às nossas teorias) durante um período de revolução? São mudados à maneira popperiana, por uma discussão crítica de alternativas, ou existem processos que desafiam uma análise racional? Essa é uma das perguntas formuladas por Kuhn. Vejamos a resposta que podemos darlhe! (4) O próprio Popper enfatizou que os padrões não são sempre adotados na base do argumento. As crianças, diz ele, “apren dem a imitar os outros. . . e, assim, aprendem a considerar padrões de comportamento como se estes consistissem em regras fi xas, ‘da
388.
47.
Popper, “Fact, Standards, and Truth: a further criticism of relati
48.
L oc. cit. p. 390.
- vism”, 1961, p.
267
das’. . . e coisas como simpatia e imaginação podem representar um papel importante nesse desenvolvimento”. 49 Considerações semelhantes aplicam-se aos adultos que desejam continuar aprendendo que estão decididos a expandir seus conhecimentos e sua sensibilidade. Não podemos presumir, por certo, que o que é possível no caso de crianças — deslizar, à menor provocação, para padrões de reação inteiramente novos — deveria estar fora do alcance de adultos e inacessível a uma das mais notáveis atividades adultas, a ciência. Além diso, é provável que mudanças catastróficas, freqüente desa pontamento de expectativas, crises no desenvolvimento do nosso conhecimento se modifiquem e talvez multipliquem os padrões de reação (incluindo os padrões de argumentação) exatamente como uma crise ecológica multiplica as mutações. Isso pode ser um processo inteira mente natural, como aumentar de tamanho, e a única função do discurso racional talvez consista em aumentar a tensão mental que precede e causa a explosão comportamental. Ora — não é exatamente esta a espécie de mudanças que podemos esperar em períodos de revolução científica? Não restringe ela a eficácia dos argumentos (exceto como agente causativo que conduz a desenvolvimentos muito diferentes do que é exigido pelo seu conteúdo )? A ocorrência de uma mudança dessa natureza não mostra que a ciência, que faz parte da evolução do homem, não é nem pode ser inteiramente racional? Pois se há acontecimentos, e não necessariamente argumentos que nos fazem adotar novos padrões, não caberá aos defensores do status quo fornecer, além dos argumentos, causas contrárias ? E se as velhas formas de argumentação se revelam uma causa contrária demasiado fraca, não devem elas desistir ou recorrer a meios mais fortes e mais “irracionais”? (É muito difícil, e talvez inteiramente impossível, combater os efeitos de uma lavagem cerebral por meio de argumentos.) Até o racionalista mais puritano se verá forçado a deixar os argumentos e a usar, digamos, propaganda, não porque alguns dos seus argumentos deixaram de ser válidos, mas porque as condições psicológicas que lhe permitem argumentar eficazmente e influenciar os outros desapareceram. E que adianta um argumento que deixa as pessoas indiferentes? (5) Considerando perguntas como essas um popperiano responderá que novos padrões, com efeito, podem ser descobertos, inventados, aceitos, comunicados aos outros de maneira muito irracional, mas que sempre resta a possibilidade de criticá-los depois que forem
49. 268
L oc. cit. p. 390.
adotados, e que essa possibilidade mantém racional o nosso conheci mento. “Em que, então, devemos coníiar?” pergunta Popper depois de uma anális e de 50 posíveis fontes de padrões. “Que devemos acei tar? A resposta é: devemos confiar apenas provisoriamente no que quer que aceitemos, recordando sempre que estamos de posse, na melhor das hipóteses, da verdade (ou correção) parcial, e fadados a incorrer pelo menos em algum erro ou julgamento incorreto em algum lugar — não só com respeito a fatos mas também com respeito aos padrões lugar, só devemos (ainda que provis oriaadotados; mente) em em nossasegundo intuição se tivermos chegado a confiar ela em c onseqüência de muitas tentativas para usar a imaginação, de muitos erros, de muitos testes, de muitas dúvidas e da crítica inves tigadora.” Ora, essa referência a testes e à crítica que se supõe garanta a racionalidade da ciência e, talvez, de toda a nossa vida tanto pode relacionar-se a processos bem definidos, sem os quais é imposível dizer que ocorreu uma crítica ou um teste, quanto pode ser puramente abstrata, de sorte que nos cabe a tarefa de preenchê-la ora com este, ora com aquele conteúdo. O primeiro caso acaba de ser discutido. No segundo temos apenas um ornamento verbal, exata mente como a defesa feita por Lakatos de seus próprios “padrões objetivos” e se revelou um ornamento As perguntas da seção n.° 4 permanecem não-respondidas em qualquer umverbal. dos casos. (6) De certo modo essa situação também foi descrita por Popper, para o qual o “racionalismo está necessariamente longe de ser compreensivo ou auto 51 suficiente”. Mas Kuhn não pergunta se há limites para a razão; a questão resume-se em saber onde estão situados esses limites. Estão fora das ciências, de modo que a própria ciência permanece inteiramente racional, ou as mudanças irracionais são uma parte essencial até da atividade mais racional já inventada pelo homem? O fenômeno histórico “ciência” conté m ingredientes que desafiam uma análise racional? O objetivo abstrato de chegar mais perto da verdade pode ser alcançado de modo inteiramente racional, ou é talvez inacessível aos que decidem enfrentarcontar agora. apenas com a argu
mentação? Tais são os problemas que
devemos
(7) Considerando esses problemas adicionais, Popper e Lakatos r a “psicologia das multidões” 52 e afirmam o caráter racional
ejeitam
50. 51. 52.
L oc. cit. p. 391. Popper, Th e Ope n Society and i ts Enemi es, 1945, capítulo 24. N este volu me, p. 220.
269
de toda ciência. De acordo com Popper é possível chegar a um jul gamento sobre qual das duas teorias está mais próxima da verdade, ainda que as teorias tivessem sido separadas por uma sublevação catastrófica, como uma revolução científica. (A teoria T estará mais próxima da verdade do que a teoria 7”, se a classe das conseqüências verdadeiras de 7”, o chamado conteúdo de verdade de T’, exceder a classe das conseqüências verdade iras de T sem aumento do conteúdo de falsidade.) De acordo com Lakatos, as características aparentemente desarrazoadas da ciência só estã ocorrem no mundo materialdase idéias, no mundo do pensamento (psicológico); o ausentes do “mundo do ‘terceir o mundo’ de Platão e de Popper”. 53 É nesse terceiro mundo que se verifica o crescimento do saber e que se torna possível um julgamento racional de todos os aspectos da ciência. Cumpre assinalar, todavia, que o cientista, infelizmente, também lida com o mundo da matéria e do pensamento (psicológico) e que as regras que criam ordem no terceiro mundo podem ser totalmente inadequadas à criação da ordem nos cérebros dos seres humanos vivos (a não ser que esses cérebros e suas características estruturais sejam colocados no terceiro mundo, 54 circunstância que o relato de Popper não deixa muito clara). Os numerosos desvios do caminho reto da ra cionalidade, que observamos na ciência atual, bem podem ser necessários se quisermos alcançar o progresso com o material quebradiço e indigno de confiança (instrumentos, cérebro, etc.) que temos a nossa disposição. Não há necessidade, contudo, de levar mais adiante a objeção. Não há necessidade de argumentar que a verdadeira ciência pode diferir da sua imagem do terceiro mundo precisamente nos sentidos qu possibilitam o progresso. 55 Pois o modelo popperiano de um enfoque da verdade ruirá até nos limitarmos exclusivamen te a idéias. Ruirá porque existem teorias incomensuráveis.
53. N este volu me, p. 222. 54. Aqui me refiro aos ensaios de Popper intitulados “Epistemology without a Knowing Su bject” e "On the Theory of the Objective Mind”, am bos de 1968. No primeiro se atribuem ninhos de passarinho ao “Terceiro Mundo” (p. 341) e presume -se uma interação entre eles e os mundos restantes. São atribuídos ao Terceiro Mundo por causa da s ua f u n ção. Mas também se encontram pedras e rios nesse terceiro mundo, pois um pássaro pode pousar numa pedra ou banhar-se num rio. Em realidade, tudo o que é notado por algum organismo (e, portanto, desempenha um papel em seu Umwelt) será encontrado no terceiro mundo que conterá, por conseguinte, todo o mundo material e todos os erros que a humanidade cometeu. Conterá também a “psicologia das multidões”. 55.
Cf. meu ensaio “Problems in Empiricism, part
2" , de 1969.
(8) Com a discusão da incomensurabilidade, chego a um ponto da filosofia de Kuhn que aceito com entusiasmo . Refiro- me à sua afirmativa de que os paradigmas sucessivos só podem ser avaliados com dificuldade e que eles podem ser de todo incomparáveis, pelo menos na medida em que estão em jogo os padrões mais familiares de comparação (eles podem ser prontamente comparáveis cm outros sentidos). Não sei qual de nós foi o primeiro a usar o termo “inco - mensurável" no sentido usado aqui. Aparece no livro de Kuhn, Struc- titre of Scientifi c Revolutio ns. e em meu ensai o “Explanation, Rc - duetion, and Empiricism”, ambos aparecidos cm 1962. Ainda me lembro de que me senti maravilhado diante da harmonia presta- belecida que nos fez não só defender idéias semelhantes mas também usar as mesmas palavras para expressá-las. É claro que a coincidência está longe de ser misteriosa. Eu tinha lido os primeiros rascunhos do livro de Kuhn e discutira o conteúdo com o próprio autor. Nessas discussões ambos concordamos em que novas teorias, embora fossem freqüentemente melhores e mais minuciosas do que as prcdecessoras, nem todo s os problemas a que sua sempre eram tão ricas que pudessem lidar com predecessora dera uma resposta definida e pr ecisa. O crescimento do conhecimento ou. mais especificamente, a substituição de uma teoria compreensiva por outra tanto envolve perdas quanto ganhos. Kuhn gostava de comparar a concepção científica do mundo do século XVII com a filosofia aristotélica. ao passo que eu usava exemplos mais recentes, como a teoria da relatividade e a teoria quântica. Vimos também que poderia ser dificílimo comparar teorias sucessivas da maneira habitual, isto é, através dc um exame tias classes dc conseqüências. O esquema aceito foi o seguinte {fig. 7 ): 7 é suplantada por 7". 7" explica por que 7 falha onde falha (em /• '): explica também por que T foi, pelo menos em parte, bem-sucedida (em S ) \ e faz predições adicionais. (A). Ora, para que esse esquema
T
Fig. 1
Fig. 2 271
funcione é preciso que haja enunciados que se seguem (com ou sem a ajuda de definições e/ou de hipóteses de correlação) tanto de T quanto de 7”. Casos há, poré m que convidam a um julgamento com parativo sem satisfazer às condições que acabamos de expor. A relação entre tais teorias é a que se vê na Fig. 2. 58 Um julgamento que envolva uma comparação de classes de conteúdos é agora claramente impossível. Não se pode dizer, por exemplo, que T está mais próximo ou mais afastado da verdade do que T. (9) Como exemplo de duas teorias incomensuráveis discutamos brevemente a mecânica celeste clássica (CM) e a teoria especial da relati vidade (SR). Para começar, é mister enfatizar que a per gunta “CM e SR são incomensuráveis?” não é completa. As teorias podem ser interpre tadas de maneiras diferentes. Elas serao comen- suráveis em algumas interpretações, incomparáveis em outras. O ins- trumentalismo, por exemplo, torna comensuráveis todas as teorias relacionadas com a mesma linguagem de observação e interpretadas nessa base. Por outro lado, desejando apresentar um relato unificado de questões observáveis e inobserváveis, um realista empregará os termos mais abstratos de qualquer teoria que esteja estudando com esse fim. O é inteiramente natural. SR, como nos sentiríamos inclinados dizer, nãoprocesso se limita a convidar-nos a repensar o comprimento, a massa e a aduração inobservados', ela parece encerrar o caráter relacionai de todos os comprimentos, massas e durações, observados ou inobservados, observáveis ou inobserváveis. Ora, a extensão dos conceitos de uma nova teoria T a todas as suas conseqüências, incluindo os relatórios observacionais, pode mudar tanto a interpretação das conseqüências que elas desaparecem das classes de conseqüência de teorias anteriores. Essas teorias anteriores serão, então, incomensuráveis com T. A relação entre SR e CM é um caso ilustrativo. O conceito de comprimento usado em SR e o conceito de comprimento pressuposto em CM são diferentes. São ambos relacionais, e muito complexos (considere-se a determinação do comprimento em função do comprimento de ondas de uma linha espectral especificada). Mas o c omprimen to relativista (ou a forma relativista) envolve um elemento ausente do conceito clássico e é, em princípio, excluído dele. 57 Envolve a velocidade relativa do objeto em tela em
56. A área debaixo de 7” deveria ser imaginada como se jazesse defr onte d a área debaixo de T , ou atr ás dela, de modo que não há sobreposição. 57. É po ssível basear as estruturas de espaço e tempo unicamente nesse novo elemento e evitar a contaminação por modos anteriores de pensar. A única coisa que precisamos fazer é substituir distâncias por tempos-luz e tratar os intervalos de tempo da maneira relativista, por exemplo, usando o Cál cu l o-K .
272
algum sistema de referência. É verdade que o esquema relativista amiúde nos dá números praticamente idênticos aos que obtemos de CM — mas isso não torna os conceitos mais semelhantes. Nem o caso c — »eo (ou v — »co ) que dá predições rigorosamente idênticas pode ser usado como argumento para mostrar que os conceitos precisam coincidir pelo menos neste caso: magnitudes diferentes baseadas em conceitos diferentes podem dar valores idên ticos cm suas
(Cf. o capítulo II do 'ensaio de Synge intitulado “Introduction to General Relati vity", de 1964. Sobre o cál cu l o- K , cf. o livro de Bondi publicado em 1967 Assumption ad Myth in Physical Theory, pp. 29 e seguintes, bem como o capítulo XXVI da obra de Boiim publicada em 1965, Th e Special T heory of Relativi ty). Os conceitos resultantes (de distância, velocidade, tempo, etc.) são uma parte necessária da relatividade no sentido de que todas as idéias ulteriores. como a do comprimento definido pelo transporte de hastes rígidas precisam ser mudadas e adaptadas a eles. Eles bastam, portanto, para explicar a relatividade. Marzke e Wheeler, cm seu ensaio de 1963. “Gravitation and Geometry: the geometry of space-time and geometrodynamical standard meter", apresentaram um relato circunstanciado da maneira com que a leoria da relatividade pode ser libertada de ingredientes externos. Adotampor o princípio, Bohrpara c Rosenfeld, "que toda teoria adequada deve prover si mesmaque aos atribuem próprios ameios definir asdequantidades com que lida. De acordo com esse princípio, à relatividade geral clássica cumpriria admitir aferições de espaço e tempo livres de qualquer referência ao quantum de ação [para relógios atômicos ou distâncias mínimas|" ou "hastes rígidas" como as descritas, digamos, pela teoria não-relativisla da elasticidade (p. 48). Eles passam a construir relógios c medidores que só usam as propriedades das trajetórias da luz e da partícula inerte (pp. 53-6). A igualdade das distâncias medidas por esses relógios e medidores é intransitiva num universo clássico, transitiva num universo relativista. Os resultados das medidas de distância desse tipo são invariantes de translações num universo relativista, porém menos invarian- tcs num universo clássico. Dois acontecimentos diferentes são sempre separados por uma distância finita num universo relativista. mas nem sempre são tão separados num universo clássico. A unidade de mensuração no universo relativista é o intervalo entre os dois equinócios efetivos de 1900 e pode ser comparada com qualquer intervalo (espacial ou temporal) de um modo inva- riante. x
Nenhuma comparação dessa natureza possível no cone caso de clássico 62). O número nunca aparece. A importância dos raiosé de luz e do luz na(p. geometria intrínseca3.10 da física vem mais diretamente à superfície. A verdadeira função da velocidade da luz já não se confunde com a tarefa trivial de relacionar duas unidades separadas de intervalo, o metro e o segundo, de srcem puramente histórica e acidental" (p. 56). A teoria da relatividade geral, portanto, como se vê, “provê aos próprios meios de definir intervalos de espaço e tempo" (p. 62) e os intervalos assim definidos são incomensuráveis com os intervalos clássicos. A falta de espaço não nos permite apresentar com detalhes este caso interessante, mas espera-se que os que giram em torno do problema da inco- mnsurabilidade se utilizem de Marzke e Wheeler como base para uma discussão concreta.
273
respectivas escalas sem deixar de ser magnitudes diferentes (a mesma observação aplica-se à tentativa de identificar a massa clássica com a massa relativa em repouso). 58 Tomada seriamente, essa disparidade conceituai contamina até as situações mais “ordinárias”: o conceito relativista de certa forma, como uma mesa, ou de certa seqüência temporal, como eu dizer “sim”, também diferirá do conceito clá ssico corresponden te. Será, portanto, vão esperar que derivações suficientemente longas possam fazer-nos voltar às idéias mais velhas. 59 As classes de conseqüência de SR e CM relacionam-se entre si como na Fig. 2. Não se pode fazer uma comparação de conteúdo nem um julgamento de verossimilhança. (10) No que se segue discutir ei umas poucas objeções que têm sido erguidas, não contra esta análise particular da relação entre SR e CM, mas contra a própria possibilidade, ou desejabilidade de teorias incomensuráveis (quase todas as objeções contra a incomensu- rabilidade são desse tipo geral). Elas expressam idéias metodológicas que precisamos criticar se quisermos aumentar nossa liberdade vis-à- vis das ciências. Uma das objeções mais populares procede da versão de realismo que acabei de descrever em (9). “Um realista”, dissemos, “deseja apresentar um relato unificado de questões observáveis inobserváveis, e para empregará os termos mais abstratos de qualquer teoria quee esteja considerando esse fim.” Empregará esses termos a fim de dar significado a sentenças de observação, ou a fim de substituir- lhes a interpretação costumeira (por exemplo, usará as idéias de SR a fim de substituir a costumeira interpretação de CM dos enunciados cotidianos acerca de formas, seqüências temporais, etc.). Contra isso se assinala que os termos teóricos recebem sua interpretação por
The 58. Sobre este ponto e sobre argumentos adicionais, cf. o livro de Ed- dington, (1924), p. 33. 59. Isto liquida uma objeção que John Watkins levantou em vá rias ocasiões. 60. Sobre outros pormenores, especialmente relativos ao conceito de massa, à função das “leis de ponte” ou "regras de correspondência”, e ao modelo de duas linguagens, cf. seção IV do meu ensaio de 1965 , “Problems of Empiricism”. É claro que, dada a situação descrita no texto, não podemos derivar a mecânica clássica da relatividade, nem mesmo aproximadamente (por exemplo, não podemos derivar a lei clássica da conservação da massa de uma lei relativista correspondente). A possibilidade de ligar as fórmulas das duas disciplinas de modo capaz de satisfazer a um matemático puro (ou a um instrumentalista) não está, porém, excluída. Sobre uma situação análoga no caso da mecânica quântica cf. a seção n.° 3 do meu ensaio de 19689, “On a Recent Critique of Complementarity”. Cf. também a seção n.° 2 do mesmo ensaio sobre considerações mais gerais. M athe matical Th eory of Relativity
274
estar ligados a uma linguagem observacional preexisten te ou a outra teoria que já esteve ligada a uma linguagem de observação dessa natureza e que, sem essa K1 conexão, eles são destituídos de conteúdo. Desse modo, afirma Carnap que “não há interpretação indepen dente para Lt [a linguagem em função da qual se formula certa teoria, ou certa concepção do mundo|. O sistema T [que consiste nos axiomas da teoria e nas regras de derivação | é por si mesmo um sistema postulado não-interpretado. [Seus] termos obtê m apenas uma interpr etação indireta e incompleta pelo fato de estarem alguns ligados pelas [regras de correspondênc ia] C a termos observacion ais”. Ora, se os termos teóricos não têm “interpretação independente”, não podem ser usados para corrigir a interpretação dos enunciados de observação, que é a sua única fonte de significado. Donde se colhe que o realismo, tal como o descrevemo s, é uma doutrina impossível. A idéia orientadora que existe por trás dessa objeção é que não se podem introduzir linguagens novas e abstratas de forma direta: elas precisam ser ligadas primeiro a um idioma observacional já existente e presumivelmente estável. 1 ' 2 Essa idéia orientadora é imediatamente refutada pelo modo com que as crianças aprendem a falar e com que os antropólogos e lingüistas aprendem a linguagem desconhe cida de uma tribo recém-des- coberta. O primeiro exemplo é instrutivo por outras razões também, pois a incomensurabilidade desempenha um papel importante nos primeiros meses do li:i desenvolvimento humano. Piaget e sua escola ensinam que a percepção da criança se desenvolve através de vários eslá-
61.
Cf. Carnap, “The Meth odological Character of Theorelical Concepts, 1956, p. 47.
62. Um princípio ainda mais conservador é às vezes usado quando se discute a possibilidade de linguagens com uma lógica diferente da nossa. Assim, no ensaio que escreveu em 1968, "Convencionalism and the Indeterminacy of Translation”, discutindo, c não apenas expondo o princípio, diz Strout que "qualquer possibilidade presumivelmente nova precisa poder ajustar-se ao nosso atual aparelho conceituai ou lingüístico, ou ser compreendida em função des se aparelho”; disso se segue que “qualquer ‘alternativa’ é algu ma coisa que já compreendemos e que lem sentido para nós. ou não é nenhuma alternativa". O que se passa por alto é que uma alternativa inicialmente não compreendida pode ser aprendida do modo pelo qual aprendemos uma língua nova e não-familiar, não por t r adu ção, mas por vivermos com os membros da comunidade em que a língua é falada.
guisad,de1954. exemplo, convida-se o leitor a consultar Piaget, Re ality 63. i n theÀChil
The Constructi on o /
275
dios antes de atingir a forma adulta, relativamente estável. Num estádio os objetos parecem comportar-se c omo pós-imagens 64 — e são tratadas como tais: a criança segue o objeto com os olhos até que este desaparece e não faz a menor tentativa para recuperá-lo, ainda que isto requeira um esforço físico (ou intelectual) mínimo; esforço, aliás, que já está dentro do alcance da criança. Não há sequer uma tendência para procurar — e isso é muito apropriado, “conceitual - mente” falando. Pois teria sido com efeito disparatado “procurar” uma pós- imagem. Seu “conceito” não propicia uma operação dessa natureza. A chegada do conceito e da imagem perceptual de objetos materiais modifica dramaticamente a situação. Ocorre uma drástica re- orientação de padrões comportamentais e, pelo que podemos conje- turar, de pensamento, ainda existem pós-imagens ou coisas parecidas, mas são agora difíceis de encontrar e precisam ser descobertas por métodos especiais (a palavra visual anterior desaparece literalmente). Tais métodos procedem de um novo esquema conceptual (as pós- -imagens ocorrem em seres humanos, não no mundo físico externo, e estão presas a eles) e não podem conduzir de volta aos fenômenos exatos do estádio prévio (a esses fenômenos deveria dar-se, portanto, um nome diferente, como, por exemplo, “pseudouma -pósimagens”). às pós -imagens, nem às pseudo-pós-imagens se confere posição especial Nem no mundo novo. Elas, por exemplo, não são tratadas como evidência em que se supõe que repouse a nova noção de um objeto material. Tampouco podem ser usadas para explicar esta noção: as pós -imagens nascem juntamente com ele e estão ausentes da mente dos que ainda não reconhecem objetos materiais; e as pseudo-pós- -imagens desaparecem assim que se verifica tal reconhe cimento. Cumpre admitir que todo estádio posui uma espécie de “base” observa - cional, à qual se dá especial atenção e da qual se recebe uma multidão de sugestões. Entretanto, ess a base (1) muda de estádio para estádio; (2) faz parte do aparelho conceituai de determinado estádio, e não é sua única fonte de interpretação. comomaterial” esses, podemos que a famíliaConsiderando dos conceitos desenvolvimentos cujo centro é o “objeto e a famíliasuspeitar dos conceitos cujo centro são as “pseudo -pós- imagens” são income nsuráveis precisamente no sentido que está sendo debatido aqui. É razoado esperar que mudanças conceituais desse tipo ocorram
64. Piaget, The Co nst ru ction of Rea li ty in th e Chil d (1954), pp. 5 e seguintes.
276
apenas na infância? Devemos acolher o fato — se é que se trata de um fato de que um adulto está preso a um mundo perceptivo estável e a um sistema conceituai estável, que o acompanha e que ele pode modificar de muitas maneiras, mas cujos contornos gerais se imobilizaram para sempre? Ou não será mais realista presumir que ainda são possíveis mudanças fundamentais, que acarretam a incomensu- rabilidade, e que elas devem ser estimuladas a fim de não licarmos excluídos para sempre do que pode ser um estádio superior de conhecimento e consciência? Além disso, a questão da mobilidade do estádio adulto, de qualquer maneira, é uma questão empírica que precisa ser atacada pela pesquisei e não pode ser resolvida por um decreto metodológico. Uma tentativa para transpor os limites de de terminado sistema conceituai e escapar ao alcance dos “óculos pop - perianos” 65 é parte essencial dessa pesquisa. 66 (11) Olhando agora para o segundo elemento da refutação — campo de trabalho antropológico — - vemos que o que é aqui um anátema (e por bons motivos) é ainda um princípio fundamental para os representantes contemporâneos da filosofia do Círculo de Viena. De acordo como Carnap, Feigl, Nagel e outros, os termos de uma teoria recebem sua interpretação, de modo indireto, por estarem relacionados com um sistema conceituai diferente, que é uma teoria mais antiga ou uma li nguagem de observação . 07 Não se adotam as teorias mais antigas ou as linguagens de observação em virtude da sua excelência teórica (não seria possível que o fossem: as teorias
65. Cf. o ensaio de Lakatos,
neste vol um e, à p. 222, nota de pé de página n.° 335.
66. Sobre a condição da pesquisa formulada na última sentença, cf. a seção n .° 8 de meu ensaio "Reply to Criticism", de 1965. Sobre o papel da observação, cf. a seção n.° 7 do mesmo trabalho. Sobre a aplicação da obra de Piaget à física e, mais especialmente, à teoria da relatividade, cf. o apêndice do livro de Bohm, Th e Special Theory oj Relati vity (1965). Bohm e Schu- macher também analisaram as diferentes estruturas informais que fundamentam nossas teorias. Uma das principais conclusões da sua obra é que Bohr e Einstein argumentaram de pontos dc vista incomensuráveis. Visto desse modo, o caso de Einstein, Podolski c Rosen não pode refutar a interpretação de Copenhague, nem pode ser refutado por ela. Temos assim duas teorias, uma que nos permite formular a experiênciapensamento de Einstein-Podolski-Rosen, outra que não fornece a maquinaria necessária a essa formulação, de modo que precisamos encontrar meios independentes de decidir qual delas adotar. Sobre novos comentários acerca desse problema, cf. a seção n.° 9 do meu ensaio "On a Recent Critique of Complementarity”, de 1968 -9.
67.
Sobre o que se segue, veja também minha Crítica da "Structure of Science”, de
Nagel.
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mais antigas são geralmente refutadas). Adotamse porque “são usa das por uma certa comunidade de linguagem como meio de comu nicação”.'’ 8 De acordo com esse método, a frase “tendo uma massa relativista muito maior do que. . .” é parcialmente interpr etada ligando-a primeiro com alguns termos pré-relativistas (termos clássicos; termos do senso comum) que são “comumente compreendidos” (pre sumivelmente como o resultado de um ensino prévio em conexão com métodos toscos de pesagem). Isso é até pior do que a exigência outrora popular de esclarecer pontos duvidosos traduzindo-os para o latim. Pois embora o latim fosse escolhido por ser mais preciso, mais claro e também concepitualmente mais rico, do que os idiomas vulgares que evoluíam lentamente, a escolha de uma linguagem de observação ou de uma teoria mais antiga como base da interpretação deve-se ao fato de serem eles “antecedentemen te compreendido s”, deve -se à sua popularidade. Além disso, se os termos pré-relativistas, que estão muito distantes da realidade — especialmente em vista do fato de procederem de uma teoria incorreta — podem ser ensina dos ostensivamente, por exemplo, com a ajuda de métodos toscos de pesagem (e temos de presumir que eles podem ser ensinados dessa maneira pois, caso contrário, todo o esquema desmorona) por que não haveríamos de introduzir diretamente os termos relativistas, e sem a ajuda dos termos de outro idioma? Finalmente, manda o simples senso comum que o ensino, ou aprendizado, de linguagens novas e desconhecidas não seja contaminado por material externo. Os lingüistas nos lembram que uma tradução perfeita nunca é possível, ainda que usemos complexas definições contextuais. Essa é uma das razões da importância do trabalho de campo quando se aprendem novas linguagens a partir do zero e da rejeição, por inadequado, de qualquer relato estribado na tradução (completa ou parcial). Entretanto, o que se maldiz em lingüística é agora aceito naturalmente pelos empiristas lógicos, “uma linguagem de observação” mí tica que substitui o inglês dos tradutores. Comecemos o trabalho de campo também neste domínio e encetemos o estudo da linguagem de teorias novas, não nas fábricas de definição do modelo duplo de linguagem, mas em companhia dos metafísicos, experimentadores, teóricos, dramaturgos cortesãos, que construíram novas concepções de mundo! Isso remata nossa discusão do princípio orientador da primeira objeção contra o realismo e a possibilidade de teorias inco mensuráveis.
68. Carnap, “The Methodological Character of Theoretical Concepts” (1956), p. 40. Cf. também Hempel, Phi losop hy of Natur al S cience (1966), pp. 74 e seguintes.
278
(12) Em seguida lidarei com uma mistura de apartes que nunca foram apresentado s de maneira sistemática e que podemos liquidar em poucas palavras. Para começar, há a suspeita de que as observações interpretadas em função de uma nova teoria já não podem ser utilizadas para refu tar a mencionada teoria. Essa suspeita c abrandada assinalando-se que as predições de uma teoria dependem de seus postulados, das regras gramaticais associadas bem como das condições iniciais, quegramaticais o significadoassociadas): das noções primitivas depende dos postulados (e ao daspasso regras é possível sórefutar uma teoria por uma experiência inteiramente interpre tada em seus termos. experiências Oütro ponto que se destaca com freqüência é a existência de cruciais que refutam uma de duas teorias presumivelmente incomensuráveis e confirm am a outra. Por exemplo: a expe riência Michelson-Morley, a variação da massa de partículas elementares, o efeito transversal de Doppler refutam CM e confirmam SR. A resposta ao problema também não é difícil: adotando o ponto que naturalmente não de vista da relatividade, descobrimos que as experiências, serão descritas em termos relativistas , utilizando as noções relativistas de comprimento, duração, velocidade, etc., 69 são pertinentes à teoria e também constatamos a sustentam. Adotando CM ou sem éter) tornamosdaa descobrir queque as elas experiências (agora descritas nos(com termos muito diferentes física clássica, mais ou menos como Lorentz as descreveu) são pertinentes, mas também descobrimos que elas solapam (a conjunção de eletrodinâmica clássica e de) CM. Por que seria necesário possuir uma terminologia que nos permita dizer que a mesma experiência confirm a uma teoria e refuta a outra? Nós mesmos não usamos essa terminologia? Em primeiro lugar, deveria ser fácil, embora um tanto laborioso, express ar o q ue acaba de ser dito sem declarar a identidade. Em segundo lugar, está claro que a identificação não contraria a nossa tese, pois agora não estamos usando os termos da relatividade, nem da física clássica, como se faz um teste, mas nos referimos a eles e à sua relação com o mundo esse discurso pode ser clássica, relativista físico. A linguagem em que se profere ou comum. Não adianta insistir em que os cientistas agem como se a situação fosse muito menos complicada. Agindo dessa maneira, eles são instrumentalistas (veja mais acima, seção n.° 9) ou estão equivocados: muitos cientistas se interessam,
69.
Sobre exemplos dessas descrições cf. Synge, "Introduction to Gene ral Relativity”
(1964).
279
hoje em dia, por fórmulas enquanto discutimos interpretações. Também é possível que, esta ndo fa miliar izados com CM e SR ao mesmo tempo, eles passam tão depressa de uma teoria para a outra q ue dão a impr essão de permanecer dentro de um único domínio de discurso. (13) Diz-se também que, admitido o ingresso da incomensura- bilidade na ciência já não podemos decidir se uma nova concepção explica o que se presume que expliq ue ou se vagueia por campos diferentes. Não saberíamos, por exemplo, se uma teoria física recém- -inventada ainda lida com problemas de espaço e tempo ou se o seu autor não fez por engano uma afirmativa biológica. Mas não há necessidade de possuir tal conhecimento. Pois assim que se admite o fato da incomensurabilidade, não se formula a pergunta que fundamenta a objeção (o progresso conceituai nos impede muitas vezes de fazer certas perguntas; desa maneira, já não podemos fazer per guntas sobre a velocidade absoluta de um objeto — ao menos enquanto encararmos com seriedade a relatividade). Esta não é, porém, uma perda séria para a ciência? De maneira alguma! O progresso se fez através do mesmo “vaguear por campos diferentes” cuja “inde - cidibilidade” agora exercita tão grandemente o crítico: Aristóteles via o mundo como um super organismo, isto é, uma entidade biológica, ao passo que um elemento essencial da nova ciência de Descartes, Galileu e dos seus seguidores em medicina e em biologia é a perspectiva exclusivamente mecanística. Deverão ser proibidos esses desenvolvimentos? E se o não forem, que sobrará do protesto? Uma objeção estreitamente ligada emana da noção de explicação, ou redução, e enfatiza a continuidade de conceitos pressuposta por essa noção (poderiam usar-se outras noções para iniciar exatamente a mesma espécie de argumento). Ora, tomado nosso exemplo acima, supõe-se que a relatividade explica as partes válidas da física clássica e, portanto, não pode ser incomensurável com ela! A resposta é óbvia de novo. Por que se preocuparia o relativista com o destino da mecânica clássica a não ser como parte de um exercício histórico? Só existe uma tarefa que podemos exigir legitimamente de uma teoria, a saber, que ela nos forneça um relato correto do mundo. Que relação têm os princípios da explicação com essa exigência? Não é razoável presumir que um ponto de vista como o da mecânica clássica, que se revelou deficiente em vários sentidos, não pode ter conceitos inteiramente adequados, e não é igualmente razoável tentar substituir-lhe os conceitos pelos de uma cosmologia mais bem-sucedida? Ademais, por que seria a noção da explicação sobrecarregada pela exigência de uma continuidade conceituai? Verificou-se que essa
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noção era antes demasiado estreita (exigência de derivabilidade) e teve de ser ampliada para incluir conexões parciais e estatísticas. Nada nos impede de ampliá- la ainda mais para admitir, digamos, a “explicação pela equivocação”. (14) Teorias incomensuráveis, por conseguinte, podem ser refutadas por referência a suas próprias espécies respectiv as de experiência (na ausência de alternativas comensuráveis, no entanto, essas refutações são bastante 71
conteúdo fracas). delas não pode sersercomparado é possível um ju lg am ent’ oOde verossimilhança a não dentro dos. Nem confins de umafazer teoria particular. Não se pode aplicar nenhum dos métodos que Popper deseja utilizar para racionalizar a ciência, e o que se pode aplicar, a refutação, é grandemente reduzido em sua força. O que sobra são julgamentos estéticos, ju lg am en to s de go st o, e no ss os pr ópr io s des ej os su bje ti vos . Que re rá is to diz er que vamos acabar no subjetiv ismo? Quererá isto dizer que a ciência se tomou arbitrária, que ela se tornou um elemento do rclati- vismo geral que Popper deseja atacar? Vejamos. Para começar, parece-me que uma atividade cujo caráter humano pode ser visto por todos é preferível a uma atividade que se afi gura ‘objetiva” e 71
inacessível às ações e aos desejos todos humanos. ciências,que afinal contas, são nossa própria criação, incluindo os severosAspadrões elasdeparecem impor-nos. É bom ter sempre presente o fato de que a ciência, como hoje a conhecemos, não é inelutável e que nós podemos construir um mundo em que ela não desempenhe papel algum (atrevo-me a sugerir que um mundo assim seria mais agradável do que o mundo em que vivemos). Que melhor lembrete existe do que a compreensão de que a escolha entre teorias suficientemente genéricas para fornecer-nos uma visão ampla do mundo e empiricamente desconexas pode tornar-se uma questão de gosto? Que a escolha da nossa cosmologia básica pode tornar-se uma questão de gosto? Em segundo lugar, as questões de gosto não estão completamente além do alcance do raciocínio. poemas, por exemplo, podemritmo, ser comparados gramática, estrutura dosOssons, conjunto de imagens, e podem em ser avaliados nessa base (cf. Ezra Pound
70. Sobre este ponto cf. a 1* seção do meu ensaio “Reply to Criticism”, bem como o meu ensaio “Problems of Empiricism”, ambos de 1965. Nationalokonotni este problema de “alienação” cf.ambos Marx,os tr.i balhos e “Zur 71. KritikSobre der Hegelschen Rechtsphilosophie”, de 1844.
e uncl Phi loso phie
sobre o progresso na poesia). 72 Até o estado de espírito mais esquivo pode ser analisado, e precisa ser analisado se a finalidade for apresentá-lo de modo que possa ser apreciado ou que aumente o inven tário emocional (cognitivo, perceptivo) do leitor. Todo poeta que não é de todo irracional compara, aprimora e argüi até encontrar a formulação correta do que deseja dizer. ™ Não seria maravilhoso se esse processo desempenhasse um papel também nas ciências? Finalmente, há maneiras mais vulgares de explicar o mesmo assunto que talvez sejam um pouco menos repulsivas aos ouvidos de um filósofo da ciência profissional. Podemos considerar o comprimento das derivações que conduzem dos princípios de uma teoria à sua li nguagem de observação, e também podemo s chamar a atenção para o número de aproximações feitas no correr de derivação (todas as derivações precisam ser padronizadas para essa finalidade de modo que se possa julgar o comprimento sem ambigüidade s; essa padroni zação refereconteúdo dos conceitos usados). Um se à forma da derivação, não se refere ao comprimento menor e um número menor de aproximações pareceriam preferíveis. Não é fácil ver o modo com que se pode compatibilizar esse requisito com a exigência de simplicidade e generalidade que, segundo parece, tende a aumentar os dois parâmetros. Seja comoe for, há muitas nos são franqueadas depois de compreendido levado a sériomaneiras o fato que da incomensu ra- bilidade. (15) Comecei mostrando que o método científico, abrandado por Lakatos, é apenas um ornamento que nos faz esquecer a adoção de uma atitude de “vale tudo”. Considerei então o argumento de que o método das transferências de problemas, embora talvez se mostre inútil no primeiro mundo , pode fornecer uma explicação correta do que acontece no terceiro, e talvez nos permita abrangê-lo com a vista através de “óculos popperianos”. A resposta foi que também há difi
72. Popper t em reiterado, tanto nas conferências quanto nos escritos que enquanto há progresso nas ciências não há progresso nas artes. Ele baseia sua afirmativa na crença de que o conteúdo de teorias que se sucedem pode ser comparado e que é possível fazer um ju lg am e nt o de ve ro ss im il ha nç a. A re fu ta çã o de ss a cr en ça el im in a um a di fe re nç a im p or ta nt e (talvez a única diferença importante) entre a ciência e as artes e permite que se fale em estilos e preferências na primeira e em progresso nas segundas. 73. Cf. Bre cht, “Über das Zerpflücken von Gedichten” (1964), p. 119. Nas conferências que tenho pronunciado sobre minha teoria do conhecimento costumo apresentar e discutir a tese de que descobrir uma nova teoria para determinados fatos é como descobrir uma nova produção para uma peça conhecida. Sobre pintura, cf. também Gombrich, Ar t and lll us ion, 1960.
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culdades no terceiro mundo e que a tentativa de julgar cosmologias pelo seu conteúdo talvez tenha de ser posta de lado. Longe de ser indesejável, um desenvolvimento dessa natureza muda a ciência, trans- formando-a de amante exigente e severa em atraente e condescendente cortesã, disposta a antecipar-se a todos os desejos do amante. Claro está que depende de nós a escolha de um dragão ou de um gatinho por companheiro. Creio que não preciso explicar minhas preferências.
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284
RE FL EX Õ ES SO BR E M EU S C R TI CO S THOMAS S. KUHN Princelon University
4. 5. 6.
Introdução. Metodologia: o papel da história e da sociologia. Ciência Normal: sua natureza e funções. Ciência Normal: sua busca através da história. Irracionalidade e Escolha da Teoria. Incomensurabilidade e Paradigmas.
1.
INTRODUÇÃO
1. 2. 3.
Já se passaram quatro anos desde que o Professor Watkins e eu trocamos pontos de vista mut uamente impenetráveis no Colóquio Internacional de Filosofia da Ciência, realizado em Bedford College, Londres. Relendo nossas colaborações, juntamente com as que depois disso lhes foram me tentado a postular a existência de dois Thomas Kuhn. Kuhnacrescidas, o autor deste ( é sintoensaio e do primeiro artigo deste volume. Também publicou em 1962 um livro chamado “A Estrutura das Revoluções Científicas, o mesmo que ele e Master mann discutiram em outra parte. Kuhn 2 é o autor de outro livro com
1. Embora minha batalha com o último prazo para a entrega de o rigi nais a uma publicação não lhes desse tempo para isso, meus colegas C. G. Hempel e R. E. Grandy conseguiram ler meu primeiro manuscrito e oferecer úteis sugestões para o seu aperfeiçoamento conceituai e estilístico. Fico-lhes muitíssimo agradecido, mas eles não devem ser censurados pelos meus pontos de vista.
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o mesmo título. É ele quem é aqui citado repetidamente por Sir Karl Popper e pelos Professores Feyerabend, Lakatos, Toulmin e Watkins. O terem os dois livros o mesmo título não será de todo acidental, pois os pontos de vista que apresentam coincidem com freqüência e, de qualquer maneira, são expressos com as mesmas palavras. Chego, porém, à conclusão de que suas preocupações centrais são em geral muito diferentes. Segundo afirmam seus críticos (não me foi possível, infelizmente, conseguir-lhe o srcinal), Kuhn 2 parece, em algumas ocasiões, r pontos de vista que subvertem aspectos essen ciais da posição delineada defende pelo seu homônimo. Falta-me espírito para estender esta fantasia introdutória e, em vez disso, explicarei por que a empreendi. Muita coisa neste volume comprov a o que antes descrevi como a mudança de gestalt que divide em dois grupos os leitores de minhas Scientific Revolutions. Juntamente com esse livro, esta coleção de ensaios, portanto, proporciona um exemplo do que denominei em outro lugar comunicação parcial ou incompleta — o falar — um-através-do-outro que caracteriza regularmente o discurso entre participantes em pontos de vista incomensuráveis. Esse colapso da comunicação'é importante e exige muito estudo. À diferença de Paul Feyerabend (pelo menos como eu e outros o lemos), não acredito que seja total nem irreversível. Onde ele fala em incomensurabilidade tout court, tenho falado regularmente também em comunicação parcial, que acredito suscetível de melhora até onde as circunstâncias o requeiram e a paciência o permita, assunto que será desenvolvido mais adiante. Não acredito, porém, como Sir Karl, que o sentido em que “somos prisioneiros apanhados no referencial das nossas teorias, das nossas expectativas, das nossas experiências passadas, da nossa linguagem” é meramente “pickwickiano”. Nem acredito que “poderemos sair do nosso referen cial a qualquer momento. . . [para] entrar em outro melhor e mais espaçoso. . . do qual poderemo, a qualquer momento, escapar.. . de novos” 2 . Se essa possibilidade fosse rotineiramente disponível, não haveria dificuldades muito especiais em penetrar no referencial de outra pessoa a fim de avaliá-lo. As tentativas dos meus críticos para penetrar no meu referencial dão a entender, todavia, que as mudanças desse referencial, de teoria, de linguagem ou de paradigma colocam problemas mais profundos, tanto de princípio quanto de prática, do que o admi tem as citações precedentes. Esses problemas não são simplesmente
2. N este vol um e, p. 69. 286
os do discurso comum, nem serão resolvidos pelas mesma técnicas. Se o pudessem ser, ou se as mudanças de referencial fo ssem normais e ocorressem à vontade e a qualquer momento, elas não seriam comparáveis, na frase de Sir Karl, “ao(s) embate(s) cultural(ais) que têm estimulado algumas das maiores 3 revoluções intelectuais.” É a próprio possibilidade dessa comparação que os toma tão importantes. Um aspecto especialmente interessante deste volume, portanto, é que ele fornece um exemplo desenvolvido de um embate cultural menor, das grandes dificuldades de comunicação que caracterizam tais embates, e das técnicas lingüísticas desenvolvidas na tentativa de acabar com eles. Lido como exemplo, poderia ser objeto de estudo e análise, fornecendo informações concretas relativas a um tipo de episódio de desenvolvimento a cujo respeito sabemos muito pouco. Desconfio que, para alguns leitores, o maior interesse deste livro será o referido fracasso dos ensaios em alcançar zonas de acordo acerca de questões intelectuais. Com efeito, porque essas incapaci- dades ilustram um fenômeno central do meu ponto de vista, o livro tem esse interesse para mim. Sou, contudo, demasiado participante, estou envolvido com demasiada profundidade, para fornecer a análise que o colapso da comunicação requer. Ao invés ensaio fundamentalmente das questões levantadas por meus disso, críticostratarei atuais,neste embora esteja convencido de que dirigem com freqüência sua atenção de modo errôneo, o que obscurece repetidamente as diferenças mais profundas entre os pontos de vista de Sir Karl e os meus. Esses pontos, excetuando-se por enquanto os que foram tratados no ensaio estimulante da Srta. Masterman, podem ser incluídos em três categorias coerentes, cada uma das quais ilustra o que acabo de denominar como o fracasso de nossa discussão em chegar a zonas de acordo. O primeiro, para as finalidades da minha discussão, é a diferença percebida em nossos métodos: lógica versus história e psicologia social; normativo versus descritvo. Estes, como daqui a pouco tentarei mostrar, são contrastes singulares com os quais se discriminam os colaboradore s deste volume. Todos nós, à diferença dos membros do que foi até recentemente o principal movimento na filosofia da ciência, fazemos pesquisa histórica e ao desenvolver nossos pontos de vista confiamos tanto nela quanto na observação dos cientistas contemporâneos . Nesses pon tos de vista, além do mais, o descritivo e o normativo estão inextricavelmente misturados. Embora possamos
3. Neste vol um e, p. 70.
287
diferir em nossos padrões e diferimos seguramente no tocante a algumas questões substânciais, dificilmente poderemos ser distinguidos por nossos métodos. O título do meu ensaio anterior, “Lógica da Descoberta ou Psicologia da Pesquisa?” não foi escolhido para suge rir o que Sir Karl devia fazer, senão para descrever o que ele faz. Quando Lakatos escreve “Mas o referencial conceituai de Kuhn. . . é sociopsicológ ico: o meu é normativo ”, 4 só posso pensar que ele está fazendo uma escamoteação a fim de reservar para si o manto filosófico. Feyerabend tem razão, por certo, quando afirma que minha obra faz reiteradas afirmações normativas. Com a mesma razão, conquanto o ponto ainda exija mais discussão, a posição de Lakatos é sociopsicológica em sua repetida dependência de decisões não-go- vernadas por regras lógicas mas pela sensibilidade madura do cientista treinado. Se difiro de Lakatos (ou de Sir Karl, Feyerabend, Toulmin ou Watkins ), é mais com respeito à substância do q ue com respeito ao método. Quanto à substância, nossa diferença mais aparente se relaciona com a ciência normal, tópico ao qual voltarei imediatamente depois de discutir o método. Uma parte desproporcion ada deste volume é dedicada à ciência normal, e evoca uma das retóricas mais singulares: a ciência normal não existe e é desinteressante. Sobre este ponto discordamos, masanão, eu, em das maneiras que meus críticos supõem. Quando me referir ele creio tratarei parte das dificuldades reais que existem na recuperação das tradições científicas normais da história, mas meu objetivo primeiro e central será lógico. A existência da ciência normal é um corolário da existência de revoluções, um ponto implícito no trabalho de Sir Karl e explícito no de Lakatos, Se ela não existisse (ou se fosse não-essencial, dispensável à ciência), as revoluções também estariam comprometidas. Sobre isso, porém, eu e meus críticos (excetuando-se Toulmin) concordamos. As revoluções através da crítica não exigem menos a ciência normal do que as revoluções através da crise. Inevitavelmente, a expressão “intenções contrárias” apreende melhor a natureza do nosso discurso do que a palavra “desacordo”. A discussão da ciência normal suscita o terceiro conjunto de questões para o qual se dirigiu a crítica: a natureza da mudança de uma tradição científica normal para outra e das técnicas pelas quais se resolvem os conflitos resultantes. Meus críticos respondem às minhas opiniões sobre este assunto com acusações de irracionalidade,
4. Neste vol um e, p. 220.
288
relativismo e defesa da regra das multidões. Todos são rótulos que rejeito categoricamen te, até quando usados em minha defesa por Feyerabend. Dizer que, em questões de escolha de teoria, a força da lógica e da observação não pode, em princípio, ser compulsiva não é descartar a lógica e a observação nem sugerir que não haja boas razões para favorecer uma teoria em detrimento de outra. Dizer que os cientistas treinados são, nesses assuntos, o mais alto tribunal de apelação não é defender a regra das multidões nem sugerir que os cientistas poderiam ter deci dido aceitar qualquer teoria. Nessa área, meus críticos e eu divergimos também, mas nossos pontos de divergência ainda não foram vistos pelo que são. Essas três séries de questões — método, ciência normal e regra das multidões — são as que mais avultam neste volume e, por essa razão, em minha resposta. Minha resposta, porém, não pode terminar sem dar um passo além delas a fim de considerar o problema dos paradigmas a que o ensaio da Srta. Masterman é dedicado. Coincido com sua opinião de que o termo “paradigma” aponta para o aspecto filosófico central do meu livro, mas o tratamento que ali se deu é muito confuso. Nenhum aspecto do meu ponto de vista evoluiu mais desde que o livro foi escrito, e o trabalho dela ajudou esse desenvolvimento. Conquanto minha atual posição difira da dela em muitos detalhes, abordamos o problema com o mesmo espírito, incluindo uma convicção comum da importân cia da filosofia da li nguagem e da metáfora. Não me será possível aqui lidar plenamente com os problemas apresentados pelo meu tratamento inicial dos paradigmas, mas duas considerações exigem que eu os mencione. Até uma breve discussão permitirá o isolamento das duas maneiras totalmente diversas com que o termo é desenvolvido em meu livro, eliminando-se assim a constelação de confusões que me criaram obstáculos, bem como aos meus críticos. Além disso, o esclarecimento resultante me permitirá sugerir o que, a meu ver, constitui a Sir Karl. srcem da diferença fundamental e singular entre mim e Ele e os seus seguidores partilham, com os mais tradicionais filósofos da ciência, da suposição de que se pode resolver o problema da escolha da teoria por técnicas semanticamente neutras. As con seqüências observacionais de ambas as teorias são expostas pela primeira vez num vocabulário básico partilhado (não necessariamente completo nem permanente). Alguma medida comparativa da contagem de sua verdade/falsidade forne ce então a base para a escolha
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entre elas. Para Sir Karl e sua escola, tanto quanto para Camap e Reichenbach, os cânones de racionalidade derivam assim, exclusivamente, dos cânones da sintaxe lógica e lingüística. Paul Feyerabend proporciona a exceção que prova essa regra. Negando a existência de um vocabulário adequado a relatos neutros de observação, ele conclui de pronto pela irracionalidade intrínseca da escolha de teorias. A conclusão é seguramente pickwickiana. Não se pode rotular de “irracional” nenhum processo essencial ao desenvolvimento cien tífico sem fazer enorme violência ao termo. Portanto, é uma sorte que a conclusão seja desnecessária. Pode-se negar, como o fazemos Feyerabend e eu, a existência de uma linguagem de observação partilhada em sua inteireza por duas teorias e ainda esperar preservar boas razões para escolher entre elas. Para atingir essa meta, no entanto, os filósofos da ciência precisarão seguir outros filósofos contemporâneos no exame, numa profundidade até agora sem precedentes, da maneira com que a linguagem se ajusta ao mundo, indagando como os termos se ligam ã natureza, como se aprendem essas ligações e como são transmitidas de uma geração a outra pelos membros de uma comunidade lingüística. E por serem fundamentais às minhas próprias tentativas de responder a perguntas, dessa espécie, num dos dois sentidos separáveis do termo, os paradigmas também precisam encontrar um lugar neste ensaio.
2.
A METO DOL OGIA: O PAPEL DA HIST RIA E DA SOCIOLOGIA As dúvidas acerca da propriedade dos meus métodos para chegar
às minhas
conclusões muitos contidos volume. os meus críticos que unem a história e aensaios psicologia socialneste não são uma Sustentam base adequada de conclusões filosóficas. Suas objeções não formam, entretanto, um todo se- riatim, as formas um tanto diferentes que uniforme. Considerarei, portanto, elas assumem nos ensaios assinados por Sir Karl, Watkins, Feyerabend e Lakatos.
Sir Karl conclui o seu trabalho assinalando que , para ele, “é surpreend ente e decepcionante a idéia de recorrer à sociedade ou à psicologia (ou.. . à história da ciência) a fim de informar-se a respeito das metas da ciência e do seu possível pr ogresso... como”, pergunta ele, “pode o retrocesso a tais ciências freqüentem ente es 290
5 púrias ajudar -nos a resolver essa dificuldade?” Confesso que não sei a que visam esses reparos, pois creio que, nessa área, não há diferenças entre mim e Sir Karl. Se ele quer dizer que as generalizações que constituem as teorias aceitas na sociologia e psicologia (e na história?) são palhas muito fracas para com elas tecer uma filosofia de ciência, eu não poderia estar mais decididamente de acordo com ele. Tanto o meu trabalho quanto o dele não se firmam nelas. Se, por outro la do, ele está pondo em dúvida a importâ ncia para a filosofia da ciência dos tipos de observações coligidas por historia dores e sociólogos, não sei
como o seu próprio trabalho será compreendido. Seus escritos estão cheios de exemplos históricos e de generalizações acerca do comportamento científico, alguns discutidos em meu ensaio anterior. Ele escreve sobre temas históricos e cita esses artigos em suas obras filosóficas principais. Um interesse sistemático pelos pr oblemas históricos e uma disposição para empenhar-se em pesquisas históricas srcinais distinguem os homens que ele treinou dos membros de qualquer outra escola atual de filosofia da ciência. Nesses pontos me confesso popperiano impenitente. John Watkins expressa um tipo diferente de dúvida. No princípio do seu ensaio, ele escreve que “a metodologia. .. diz mais res - pento à ciência no que ela tem de melhor, ou à ciência como deveria ser dirigida, do que à ciência 6
vulgar,” ponto com o qual, pelo menos numa formulação mais cuidadosa, concordo completamente. Mais adiante, sustenta que o que denominei ciência normal é ciência vulgar, e ele então pergunta por que tanto “me empenho em 7 sobrestimar a Ciência Normal e em subestimar a Ciência Extraordinária?” Na medida em que essa pergunta se refere à ciência normal em particular, reservo minha resposta para mais tarde (num ponto em que tentarei ta mbém desenredar a extraordinária distorção de minha posição feita por Watkins). Mas Watkins também parece estar fazendo uma pergunta mais geral, que se relaciona intimamen te com uma questão ventilada por Feyerabend. Ambo s concedem, pelo menos em defesa do seu argumento, que os cientistas se comportam como afirmei que o fazem (mais tarde examinarei as restrições que eles, opõem a essa concessão). Por que haveria o filósofo ou o metodólogo, perguntam então, de levar os fatos a sério? Ele não está, afinal de contas, preocupado com uma descrição completa da ciência, mas com a descoberta dos fundamentos da atividade, isto é, com a reconstrução
5. 6. 7.
N este volu me, N este volu me, N este volu me,
racional. Mas com que direito e em obediência a que critérios o observadorhistoriador ou observador-sociólogo diz ao filósofo quais são os fatos da vida científica que lhe é preciso incluir em sua reconstrução ou que pode ignorar? No intuito de evitar longas dissertações sobre a filosofia da his tória e da sociologia, restrinjo-me a uma resposta pessoal. Não estou menos interessado na reconstrução racional, na descoberta dos fundamentos, do que os filósofos da ciência. Meu objetivo também é a compreensão da ciência, das razões de sua eficácia, do status cognitivo de suas teorias. À diferença, porém, da maioria dos filósofos ciência, comecei comoTendo historiador da ciência, examinando atentamente os da fatos da vida científica. descoberto, no decorrer do processo, que muito comportamento científico, incluindo o dos maiores cientistas, violava persistentemente câ nomes metodológicos aceitos, tive de perguntar por que essa inconformidade com os citados cânones não parecia tolher o êxito da atividade. E quando," mais taide, descobrir que uma visão alterada da natureza da ciência transform ava o que anteriormente parecera comportamento aberrante numa parte essencial da explicação do êxito da ciência, a descoberta me deu confiança na nova explicação. Por conseguinte, meu critério para dar ênfase a qualquer aspecto particular do comportamento científico não é simplesmente que ete ocorre, nem é tão-somente que ele ocorre com freqüência, senão que se ajusta a uma teoria do conhecimento científico. Inversamente, minha confiança nessa teoria deriva de sua capacidade de dar um sentido coerente a muitos fatos que, segundo uma concepção mais antiga, tinham sido aberrantes ou irrelevantes. Os leitores observarão uma circularidade no argumento, mas este não é vicioso, e sua presença não distingue, de modo algum, minha concepção da dos meus críticos atuais. Aqui também me comporto como eles. O fato de serem significativamente teóricos meus critérios para discriminar entre os elementos essenciais e os não -essenciais do comportamento científico observado fornece também uma resposta ao que Feyerabend denomina de ambigüidade da minha apresentação. As observações de Kuhn a propósito do desenvolvimento científico » devem ser lidas como descrições ou prescrições? pergunta ele. 8 A resposta, naturalmente, é que elas devem ser lidas das duas maneiras
8. Neste volum e, p. 245. Sobre um exame muito mais profundo e cuidadoso de alguns contextos em que se fundem o descritivo e o normativo, veja Cavell, "Must We Mean What We Say?”.
292
ao mesmo tempo. Se eu tiver uma teoria sobre como e por que opera a ciência, ela terá de ter por força i mplicações para a maneira com que os cientistas devem proceder para que sua atividade fl oresça. A estrutura do meu ar gumento é simples e, creio eu, irrepreensível: os cientistas comportam-se das seguintes maneiras; essas maneiras de proceder (aqui entra a teoria) têm as seguintes funções essenciais; na ausência de um modo alternado que sirva a funções semelhantes, os cientistas devem proceder essencialmente como procedem quando se preocupam em aprimorar o conhecimento científico. Note-sedoque nada nesse ar gumento estabelece o valor da própria ciência, e9 que a “defesa hedonismo” de Feyeraben d é c orrespondentemen te irrelevante. Em parte por haverem eles interpretado erroneamente minha prescrição (ponto esse ao qual voltarei), tanto Sir Karl quanto Feyerabend encontram ameaça na atividade que des crevi. É “capaz de corromper -nos o entendimento e diminuirnos o prazer” (Feyerabend); é “um perigo. . . de fato para a nossa civilização” (Sir Karl). 10 Não sou conduzido para essa avaliação, nem o são muitos dos meus leitores, mas nada no meu argumento depende de um erro que ele possa encerrar. Explicar por que uma atividade funciona não é aprová-la nem desaprová-la. O ensaio de Lakatos aventa um quarto problema acerca do método e é o mais fundamental de todos. Já confessei minha incapacidade de compreender o que ele. quer dizer quandológico: faz afirmaçõ es deste teor: conceituai de Kuhn. . é sociopsicoo meu é normativo”. Se“o nosreferencial perguntamos, todavia, não o que ele pretende, mas por que lhe parece apropriada essa espécic de retórica, surge um ponto importante, um ponto que está quase explícito no primeiro parágrafo de sua seção n.° 4. Alguns dos prin cípios desenvolvidos em minha explicação da ciência são irredutivel- mente sociológicos, pelo menos por enquanto. Em particular, confrontada com o problema da escolha da teoria;'a estrutura da minha resposta é aproximadamente a seguinte: tome-se um grupo das pessoas mais capazes com a motivação mais apropriada; adestrem-se essas pessoas em al guma ciência e nas especialidades pertinentes à escolha em perspectiva; incuta-se-lhes o sistema de valores e a ideologia vigentes em sua disciplina (e numa grande extensão em aoutros campos também); e, finalmente, permita-se-lhes fazerem escolha. Se científicos essa técnica não explicar o desenvolv imento ci entífico
9. N este volu me, p. 258. 10. N este vol um e, pp. 258 e 65.
293
como nós o conhecemos, nenhuma outra o fará. Não pode haver um conjunto de regras adequadas de escolha que se possam impor ao desejado comportamento individual nos casos concretos que os cientistas encontrarão no decorrer de suas carreiras. Seja o que for o processo científico, temos de explicá-lo examinando a natureza do grupo científico, descobrindo o que ele valoriza, o que ele tolera e o que ele desdenha. Essa posição é intrinsecamente sociológica e, como tal, um afastamento importante dos cânones de explicação licenciados pelas tradições que Lakatos rotula de justificacionismo e falseacionismo, assim dogmático como ingênuo. Mais adiante a especificarei melhor e a defenderei. Neste momento, porém, interessa-me simplesmente a sua estrutura, que tanto Lakatos quanto Sir Karl acham inaceitável em princípio. E pergunto: por que o fariam eles? Ambos empregam, repetidame nte, argumentos da mesmíss ima estrutura. É verdade que Sir Karl não o faz durante todo o tempo. A parte do seu ensaio que procura um algoritmo para a verossimilhança, se tiver êxito, eliminará toda a necessidade de recurso aos valores de grupo, aos julgamentos feitos por mentes preparadas de determinada maneira. Mas, como assinalei no fim do meu ensaio anterior, existem muitos trechos em todos os escritos de Sir Karl que só podempossuir ser lidos como descrições e atitudes que os cientistas deverão se, quando as coisas dos não valores vão bem, eles quiserem triunfar fazendo progredir seu empreendimento . O falseacionismo sofisticado Lakatos vai até mais longe. Em quase todos os sentidos, apenas dois dos quais são essenciais, sua posição está agora muito próxima da minha. Entre os sentidos em que concordamos, embora ele ainda não o tenha percebido, figura o nosso emprego comum de princípios explanatórios que são de estrutura basicamente sociológica ou ideológica. O falseacionismo sofisticado de Lakatos isola certo número de questões a cujo respeito os cientistas que empregam o método precisam tomar decisões, individual ou coletivamente. (Desconfio do termo “decisão” neste contexto, visto que ele supõe deliberação consciente sobre cada questão antes de supor uma atitude de pesquisa. Por enquanto, contudo, o usarei. Até a última seção deste ensaio muito pouca coisa dependerá da distinção entre tomar uma decisão e encontrar-se na situação decorrente do fato de havê-la tomado.) Os cientistas precisam, por exemplo, decidir quais são os enunciados que deverão ser tornados “ infalseáveis por decreto" e quais os que
294
de
não deverão sê-lo. 11 Ou, lidando com uma teoria probabilista, precisarão decidir sobre um limiar de probabilidade abaixo do qual a evidência estatística será 12 reputada “incompatível” com essa teoria. Acima de tudo, encarando teorias como programas de pesquisa que deverão ser avaliados a seu tempo, os cientistas precisam decidir se determinado programa em determinado momento é “progressivo” (e, portanto, científico) ou “degenerativo” e, portanto, pseudocientífi- co). 13 No primeiro caso, terá de ser continuado; no segundo, rejeitado. Observem agora que a exigência para a tomada de decisões desse tipo pode ser interpretado de duas maneiras. Pode ser tomada para nomear ou descrever pontos de decisão para os quais ainda será preciso fornecer procedimentos aplicáveis em casos concretos. No tocante a essa interpretação, Lakatos ainda terá de contar-nos como os cientistas escolherão os enunciados particulares que decreto ; e também precisa especificar critérios deverão ser infalseáveis pelo seu que possam ser usados na ocasião para distinguir um programa de pesquisa degenerativo de um programa de pesquisa progressivo, etc. A não ser assim, ele não nos terá dito coisa alguma. Alternativamente, suas observações sobre a necessidade de decisões particulares podem ser interpretados como descrições já completas (pelo menos na forma — seu conteúdo particular pode ser preliminar) de diretrizes, ou máximas, quediretiva ao cientistas seguir. essacientista, inter- você pretação, a terceira decisão teria ocumpre seguinte teor:Sobre “C omo não pode abster-se de decidir se o seu programa de pesquisa é progressivo ou degenerativo, e precisa arcar com as conseqüências da s ua decisão, abandonando o programa num caso, pros seguindo nele no outro.” Correspondentemente, a segun da diretiva seria a seguinte: “Trabalhando com uma teoria probabilista, você precisa perguntar constantemente a si mesmo se o resultado de alguma experiência determinada não é tão improvável que chegue a ser inconsistente com a sua teoria, e precisa, como cientista, responder também.” Finalmente, a primeira diretiva seria enunciada da seguinte maneira: “Como ci entista, você terá de assumir riscos, escolhendo enunciados como base do seu trabalho e ignorando, todos pelo os menos até reais que esepotenciais tenha desenvolvido o seueles.” programa de pesquisa, ata ques dirigidos contra
12 .
Neste volume, p. 128. Neste volume, p. 132.
13 .
Neste volume, pp. 144
11 .
e seguintes.
295
Está claro que a segunda interpretação é muito mais fraca do que a primeira. Exige as mesmas decisões, mas não fornece nem promete fornecer regras que lhes ditariam os resultados. Em lugar disso, incorpora tais decisões a julgamentos de valor (ass unto ao qual terei de voltar mais adia nte) mais do que a mensurações ou computações, digamos, de peso. Não obstante, concebidas tão-só como imperativos que obrigam o cientista a tomar determinadas espécies de decisões, essas diretrizes são tão fortes que influem profundamente no desenvolvimento científico. Um grupo cujos membros não se sentissem obrigados a lutar com tais decisões (mas que, ao notavelmente contrário, enfatizassem ou nenhuma delas) comportar-se-ia de maneiras diferentes,outras e sua disciplina se modificaria de acordo com isso. Se bem o exame dessas diretrizes de decisão feito por Lakatos seja, não raro, equívoco, acredito que é justamente dessa segunda espécie de eficácia que depende a sua metodologia. Ele pouco fez, por certo, para especificar algoritmos por cujo intermédio as decisões que exige deverão ser tomadas, e o teor de sua exposição sobre falseacionismo ingênuo e falseacionismo dogmático dá a entender que ele já não acha possível uma especificação dessa natureza. Nesse caso, todavia, seus imperativos de decisão apresentam-se na forma, embora nem sempre no conteúdo, idêntico aos meus. Especificam compromissos ideológicos que os cientistas têm de compartilhar para que sua at ividade seja bem -s ucedida. São, portanto, irredutivelment e sociológicos no mesmo sentido e na mesma extensão em que o são meus princípios explanatórios. Nessas circunstâncias, não sei ao certo o que Lakatos está criti cando nem o que, nessa área, no seu entender, constitui um ponto de divergência entre nós. Uma estranha nota de pé de página, entretanto, no fim do seu ensaio, nos fornece uma pista 14 : "Existem duas espécies de f il oso f i as ps icol ogistas da ci ênci a. De acordo com uma espécie não pode haver filosofia da ciência: só uma psicologia de cientistas. De acordo com a outra espécie há uma psicolo gia da mente “científica”, "ideal” ou “normal”: isso transforma a filosofia da ciência numa psicologia da mente ideaL .. . Kuhn não parece haver notado a distinção.”
Se o compreendo corretamente, Lakatos identifica comigo a primeira espécie de filosofia psicologista da ciência, e a segunda consigo mesmo. Mas ele me compreendeu maL Não estamos tão distantes
14. Neste vol um e, p. 223, nota de rodapé n.° 339.
296
um do outro quanto dá a entender a sua descrição e, onde diferimo s, sua posição literal exigiria uma renúncia da nossa meta comum. Parte do que Lakatos rejeita são explicações que exigem recurso aos fatores que distinguem determinados cientistas (“a psicologia do cientista” contra “a psicologia d a . . . mente ‘normal’”). Mas isso não nos separa. Tenho recorrido exclusivamen te à psicologia social (pr efiro “sociologia”), campo muito diferente da psicologia individual reiterada n vezes. Similarmente, minha unidade para propósitos de explicação é o grupo científico normal (isto é, não -patológico), levando-se em conta o fato de que seus membros diferem mas sem ter em conta aquilo que faz que cada indivíduo seja único. Além disso, Lakatos gostaria de rejeitar até as características das mentes científicas normais, que as tornam mentes de seres humanos. Aparentemente, ele não vê outra maneira de reter a metodologia de uma ciência ideal ao explicar o êxito observado da ciência real. Sua maneira, porém, não funcionará se ele esperar explicar uma atividade exercida por pessoas. Não existem mentes ideais, e a “psicologia da mente ideal” é, portanto, inexeqüível como base de explicação. Nem o modo utilizado por Lakatos para apresentar o ideal é indispensável à consecução do seu objetivo. Ideais partilhados influem no comportamento sem tomar ideais os que os alimentam. O tipo de pergunta que faço tem sido, portanto: como influirá no comportamento de grupo determinada constelação de crenças, valores e imperativos? Minhas explicações decorrem da resposta. Não estou certo de que Lakatos pretende outra coisa mas, se não o pretende, não há nada nesta área a cujo respeito possamos divergir. Tendo interpretado erroneamente a base sociológica da minha posição, Lakatos e meus outros críticos inevitavelmente deixam de reparar numa característica especial que decorre do fato de tomar como unidade o grupo normal em vez da mente sormal. Dado um algoritmo partilhado adequado, digamos, à escolha individual entre as teorias concorrentes ou à identificação de uma grave anomalia, todos os membros de um grupo científico chegarão à mesma decisão. Este seria o caso ainda que o algoritmo fosse probabilístico, pois todos osdeque se ideologia utilizassem dele avaliariam a evidência da mesma maneira. efeitos uma partilhada, no entanto, são menos uniformes, pois Os seu modo de aplicação é de uma espécie diferente. Dado um grupo cujos membros estão todos comprometidos em escolher entre teorias alternativas e também em tomar em consideração valores como a precisão, a simplicidade, a liberdade de ação, etc., enquanto estiverem fazendo sua escolha, as decisões concretas de
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membros individuais em casos individuais, apesar de tudo, variarão. Os compromissos partilhados influirão de forma decisiva no comportamento do grupo, mas a escolha individual será também uma função da personalidade, da educação e do padrão anterior de pesquisa profissional. (Essas variáveis são o domínio da psicologia individual.) A muitos dos meus críticos tal variabilidade se atigura uma fraqueza da minha posição. Entretanto, quando considerar os problemas de cris e e de escolha da teoria, hei de querer sustentar q ue se trata, na verdade, uma deliberado força. Se uma precisa serjulgamento tomada em pode circunstâncias em que até odemais e odecisão mais ponderado estar errado, talvez seja vitalmente importante que indivíduos diferentes decidam de maneiras diferentes. De que outra maneira poderia o grupo, como um todo, cobrir suas apostas? 15
3.
CI NCIA NORM AL: SUA NAT UREZ A E FUN ÇÕES No tocante aos métodos, os que emprego não diferem significa tivamente
dos métodos dos meus críticos popperianos. Aplicando-os, é claro que obtemos conclusões um tanto distintas, mas nem mesmo estas se encontram tão longe uma da outra quanto vários dos meus críticos supõem. Em particular, todos nós, com exceção de Toulmin, compartilhamos da convicção de que os episódios centrais do progresso científico — os que tornam o jogo digno de ser jogado e a atividade digna de ser estudada — são as revoluções. Watkins inventa um adversário imaginário ao afirmar que tenho “menosprezado” as revoluções científicas, sentindo por elas uma “aversão filo sófica” ou sugerindo que elas 16 “dificilmente poderão ser chamadas de ciência.” Foi a descoberta da natureza enigmática das revoluções que me levou para a história e a filosofia da ciência. Quase tudo o que escrevi desde então se refere a elas, fato que Waltkins assin ala e depois ignora. Ora, se concordamos nisso, não podemos discordar de todo acerca da ciência normal, o aspecto da minha obra que mais perturba meus críticos atuais. Por sua própria natureza as revoluções não po
15. Se não estivesse em causa a motivação humana, poder-se-ia conseguir o mesmo efeito computando primeiro uma probabilidade e depois atribuindo certa fração dos membros da classe a cada uma das teorias concorrentes, sendo que a fração exata depende do resultado da computação probabilista. De algum modo, essa alternativa prova meu ponto de vista por r eductio ad abs ur dum. 16. N este volu me, pp. 41, 42 e 38.
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dem constituir toda a ciência: é forçoso que algo diferente se intercale entre elas. Sir Karl estabelece admiravelmente o ponto. Sublinhando o que sempre reconheci como uma das nossas áreas principais de concordância, ele acentua que “os cientistas desenvolvem necessariamente suas idéias dentro de um referencial teórico definido”. 17 Para ele, como para mim, as revoluções exigem tais referenciais, visto que sempre supõem a rejeição e a substituição de um referencial ou de algumas de suas partes integrantes. E como a ciência que denomino normal é precisamente a pesquisa dentro de um referencial, ela só pode ser o reverso de uma mo eda cujo anverso são as revoluções. Não admira que Sir Karl “não tivesse visto claramente a distinção” entre ciência normal e revoluções. 18 Isso se segue das suas premissas. Mas outra coisa também se segue. Se os referenciais são necessários aos cientistas, se romper com um é inevitavelmente entrar em outro — pontos que Sir Karl adota e xplicitamente — a influência de um referencial sobre a mente do cientista talvez não possa ser explicada tão-só como conseqüência de haver sido 19 ele “mal ensinado,. . . uma vítima da doutrinação”. Nem poderia ela, como Watkins supõe, ser explicada inteiramente em conexão com o prevalecimento de mentes de terceira categoria, aptas apenas para o trabalho “laborioso, não crítico”. 20 Essas coisas existem e a maioria delas é prejudicial. Apesar disso, se os referenciais são o pré-requisito da pesquisa, seu domínio da mente não é apenas “pickwickiano”, nem pode ser muito certo dizer que “se tentarmos, poderemos sair do nosso referencial a qualquer momento”. 21 Ser ao mesmo tempo essencial e livremente dispensável é praticamente uma autocontradição. Meus críticos tor- nam-se incoerentes quando a adotam. Nada disso é dito num esforço paar mostrar que meus críticos efetivamente concordam comigo, mas não o sabem. Eles não concordam! O que estou tentando fazer, eliminando irrelevâncias, é descobrir os pontos a cujo respeito discordamos. Sustentei até agora que a expressão de Sir Karl “revoluções permanentes”, tanto quanto a ex - presão “círculo quadrado”, não descreve um fenômeno que poderia existir. É preciso viver os referenciais, e explorá-los, antes que eles
17. N este volu me, p. 63, o grifo é meu. A não ser que s e esclareça explicitamente, todas as passagens grifadas nas citações feitas neste ensaio estão no srcinal. 18. 19. 20. 21.
p. p. N este este volu volu me, me, p. N N este volu me, p. N este volu me,
64. 65. 42. 69.
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possam romper-s e. Mas isso não quer dizer que os cientistas não devem objetivar um perpétuo rompimento de referenciais, por mais inacessível que seja essa meta. ‘Revoluções permanentes” poderia ser o nome de um importante imperativo ideológico. Se Sir Karl e eu discordamos a respeito da ciência normal, é sobre esse ponto. Ele e o seu grupo sustentam que o cientista deve tentar sempre ser um crítico e um proliferador de teorias alternativas. Insisto na desejabi- lidade de uma estratégia alternada que reserve tal comportamen to para ocasiões especiais. Limitando-se à estratégia da pesquisa, esse desacordo já é mais estreito do que o visto pelos meus críticos. Para que se possa ver o que está em jogo será preciso estr eitá -lo ainda mais. Tudo o que foi dito até agora, posto que expresso para a ciência e para os cientistas, aplica-se igualmente a certo número de outr os campos. Minha prescrição metodológica, todavia, dirige-se exclusivamente às ciências e, entre elas, aos campos que ostentam o padrão especial de desenvolvimento conhecido como progresso. Sir Karl apreende claramente a distinção que tenho em mente. Iniciando o seu ensaio escreve ele: “ ‘Um cientista empenhado numa pesquisa. . . pode ir logo ao âmago de. . . um referencial organizado. . . [e de] uma situação de problema geralmente aceita. .. [deixando] para outr os o aj uste de sua contribuição à estr utura do conheci mento ci entífico.’. 22 Não obstante, .. o filósofo”, continua ele, “se encontra em posição diferente.” Sir Karl depois disso a ignora, re comendando a tendo apontado para a diferença, mesm a estratégia tanto a cientistas quanto a filósofos. No processo, ele chega às conseqüências, para o projeto da pesquisa, do detalhe e da precisão especiais com que, diz ele, o referencial de uma ciência madura instrui os que a praticam sobre o que têm de fazer. Na ausência da orientação detalhada, a estratégia crítica de Sir Karl me parece a melhor disponível. Ela não provocará o padrão especial de desenvolvimento que caracteriza, digamos, a física, mas tampouco o fará qualquer outra prescrição metodológica. Dado, porém, um referencial que forneça tal orientação, pretendo que a ele se apliquem minhas recomendações metodológicas.
Consid.ere-se por um momento a evolução da filosofia ou das artes desde o fim do Renascimento. Trata-se de campos que se opõem
22. N este vol ume, p. 63. Os leitores que conhecem meu livro The S tructur e o f Scie ntif ic Revolutions reconhecerão que a frase de Si r Karl "deixando para outros o ajuste de sua contribuição ao referencial do conhecimento científico" capta com muita exatidão as implicações essenciais de minha descrição da ciência normal.
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freqüentem ente às ciências estabelecidas como camp os que não progridem. Esse contraste não pode dever-se à ausência de revoluções nem uma prática normal no intervalo entre duas revoluções. Ao contrário, muito antes de reparar na estrutura similiar do desenvolvimento científico, os historiadores retrataram esses campos como se eles se desenvolvessem através de uma sucessão de tradições entre- cortadas de alterações revolucionárias de estilo e gosto artísticos ou de pontos de vista e metas filosóficos. Tampouco se pode dever o contraste à ausência, na filosofia e nas artes, de uma metodologia popperiana. 23 estes são Como observa a Srta. Masterman no que concerne à filosofia, justamente os campos em que ele está melhor exemplificado, em que os seus praticantes encontram a tradição vi gente asfixiante, em que pelejam para romper com ela e procuram regularmente um estilo ou um ponto de vista filosófico próprio. Nas artes, sobretudo, o trabalho de homens mal sucedidos na inovação descreve- se como “derivativo”, termo depreciativo, significativamente ausente do discurso científico, mas que se refere, por outro lado, repetidamente, a “modas”. Em nenhum desses campos, sejam eles das artes ou da filosofia, o profissional que não consegue alterar a prática tradicional tem um impacto 2 significativo sobre o desenvolvimento da disciplina. '* São estes, em suma, os campos para os quais é essencial o método de Sir Karl porque sem uma crítica constante e a proliferação de novos modos de prática não haveria revoluções. A substituição de minha própria metodologia pela de Sir Karl produziria a estagnação exatamente pelas razões que meus críticos sublinham. Em nenhum sentido óbvio, contudo, a metodolog ia dele é causa de progresso. A relação entre a prática pré-revolucionária e a prática pós-revolucionária nesses campos não é a que aprendemos a esperar das ciências desenvolvidas. Meus críticos sugerirão que as razões para a diferença são manifestas. Campos como a filosofia e as artes não se proclamam ciências, nem satisfazem ao critério de demarcação de Sir Karl. Em outras palavras, não geram resultados que possam, em princípio, ser testados através de um cotejo ponto-por-ponto com a natureza. Mas esse argumento me parece equivocado. Sem satisfazer ao critério de Sir Karl, tais campos poderiam não ser ciências mas, apesar disso , po
23. N este volu me, pp. 85 e seguintes. 24. Sobre uma discussão mais completa das diferen ças exi stentes entre as co munidades científicas e as artísticas e entre os padrões correspondentes de desenvolvimento, ver meu comentário sobre as relações entre ci ência e arte (1969).
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deriam progredir como progridem as ciências. Na Antigüidade e durante o Renascimento, as artes, mais do que as ciências, forneciam os paradigmas aceitos do progresso. 25 Poucos filósofos encontram razões de princípio por que o seu campo não deve progredir com firmeza, embora muitos lamentem seu fracasso nesse sentido. Em todo o caso, há muitos campos — eu lhes chamarei protociências — em que a prática gera conclusões testáveis mas que, não obstante, têm maior semelhança com a filosofia e as artes do que com as ciências estabelecidas em seuepadrão de desenvolvimento. exemplo, em campos como a química a eletricidade em meados doPenso, séculopor XVIII, no estudo da hereditariedade e da filogenia em meados do século XIX, ou em muitas ciências sociais de hoje. Nesses campos, embora satisfaçam ao critério de demarcação de Sir Karl, a crítica incessante e a luta contínua por uma nova largada também são forças primárias e é preciso que o sejam. Mas também não resultam, como na filosofia e nas artes, em progresso nítido. Concluo, em suma, que as protociências, como as artes e a filosofia, carecem de algum elemento que, nas ciências maduras, permite as formas mais patentes de progresso. Esse elemento, con tudo, é algo que não pode ser proporcionado por uma prescriç ão metodológica. À diferença dos meus críticos atuais, e entre eles, nesse ponto, incluo Lakatos, não reivindico nenhuma terapêutica para auxiliar a transformação de uma protociência numa ciência, nem suponho que se possa obter alguma coisa nesse sentido. Se, como sugere Feyerabend, alguns cientistas sociais me atribuem o parecer de que podem melhorar o status do seu campo legislando primeiro um acordo no que tange a os seus aspectos fundamentais e depois se entregam à solução de enigmas, estão 26 interpretando de maneira muito errônea o meu ponto de vista. Uma sentença que usei antigamente quando discutia a eficácia especial das teorias matemáticas aplica-se igual mente aqui: “Como acontece no desenvolvimento individual, acontece no grupo científico: a maturidade vem mais seguramente para os que sabem esperar.” 27 Afortunadamente, ainda que nenhuma prescrição a force, a transição para a maturidade chega para muitos campos, e vale a pena esperar e lutar para atingi-la. Cada uma das
25. Gombrich, Ar t and I llu sion, 1960, pp. 11 e seguintes. 26. N este volum e, p. 246. Note-se, contudo, que o trecho citado por Feyerabend na nota de pé de página n.“ 5 não diz, de forma alguma, o que ele relata. 27. Veja a p. 190 do meu ensaio intitu lado "The Function of Measu- r ement in Modem Physical Science”, 1961.
302
ciências atualmente estabelecidas emergiu de um ramo anteriormente mais especulativo da filosofia natural, da medicina ou dos ofícios num período do passado relativamente bem definido. Outros ca mpos experimentarão por certo a mesma transição no futuro. Só depois que ela ocorre, o progresso se toma característica óbvia de um campo. E só então minhas prescrições, que meus críticos censuram , entram em ação. Sobre a natureza dessa mudança escrevi longamente em minhas Scientific
Revolutions e de maneira mais sucinta enquanto discutia os critérios de demarcação em minha colaboração anterior para este volume. Aqui me contentarei com um resumo descritivo abstrato. Limite sua atenção primeiro a campos que visam a explicar circunstancialmente alguma classe de fenômenos naturais. (Se, como assinalam meus críticos, minha descrição ulterior se ajusta à teologia e aos assaltos aos bancos, isso não cria problema algum.) Um campo dessa natureza obtém primeiro a maturidade quando munido de teoria e técnica que satisfazem às quatro condições seguintes. Em primeiro lugar, o critério de demarcação de Sir Karl, sem o qual nenhum campo é potencialmente uma ciência: para certas classes de fenômenos naturais as predições concretas terão de emergir da prática do campo. Em segundo lugar, para algumas subclasses interessantes fenômenos, queastronomia quer que ptolemaica passe por sucesso deveaser sistematicamedente alcançado.o(A sempre preditivo pre disse posição planetária dentro de li mites de erro amplamente reco nhecidos. A tradição astrológica acompanhante não poderia, excetuando-se as marés e o ciclo menstruai médio, especificar de antemão a predição que vingaria e a que falharia.) Em terceiro lugar, as técnicas preditivas precisam ter raízes numa teoria que, embora metafísica, simultaneamente as justifique, explique seu sucesso limitado e sugira meios para melhorá-las não só na precisão mas também no alcance. Finalmente, o aprimoramento da técnica preditiva precisa ser uma tarefa desafiadora, que exige em certas ocasiões a mais alta dose de talento e devoção. Tais condições, é claro, eqüivalem à descrição de uma boa teoria científica. Mas uma vez que se abandonam as esperanças de uma prescrição perapêutica, não há razão para esperar menos do que isso. Minha afirmativa tem sido — é meu único desacordo genuíno com Sir Karl em relação à ciência normal — que, tendo à mão uma teoria assim, já se foi o tempo para a crítica firme e a proliferação da teoria. Os cientistas, pela primeira vez tê m, uma alter nativa que não é uma simples imitação do que já se passou. Ao invés
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disso, podem aplicar seus talentos aos enigmas que se encontram no que Lakatos ora denomina o “cinto protetor”. Um dos seus objetivos é amp liar a esfera de ação e a precisão da experiência e da teoria existentes assim como melhorar o ajuste entre elas. Outro é eliminar conflitos não só entre as diferentes teorias empregadas em seu trabalho mas também entre os modos com que se usa uma única teoria em diferentes aplicações. (Watkins tem razão, entendo agora, quando censura meu livro por dar um papel demasiado pequeno a esses enigmas interteóricos e intrateóricos, mas a tentativa de Lakatos de reduzir a ciência à matemática, não deixando nenhum papel significativo para a experiência, vai longe demais. Ele não poderia, por exemplo, estar mais enganado a respeito da irrelevância da fórmula de Balmer para o desenvolvimento do modelo do átomo de Bohr. 28 Tais enigmas e outros como eles constituem a principal atividade da ciência normal. Embora eu não possa voltar a argumenatr aqui sobre esse ponto, eles não como pensa Watkins, e tampouco, como pensa Sir Karl, se parecem com os problemas da ciência e da engenharia aplicada. É claro que os homens fascinados por eles são uma raça especial, mas o mesmo se pode dizer de filósofos e artistas. No entanto, mesmo em face de uma teoria que permita a ciência normal, os cientistas não precisam medir-se com os enigmas que ela fornece. Ao invés disso, poderiam comportar-se como devem fazê-lo os praticantes das protociências; isto é, poderiam procurar pontos fracos potenciais, que existem sempre em grande quantidade, e tentar erguer teorias alternativas em torno deles. A maioria dos meus críticos atuais acredita que eles devem fazê-lo. Eu discordo, mas só por motivos estratégicos. Feyerabend me apresenta incorretamente de um modo que lamento muito quando afirma, por exemplo, que critiquei “Bohm por haver perturbado a uniformidade da teoria quântica contemporânea”. 29 Seria difícil conciliar minha fama de encrenqueiro com essa afirmativa. De fato, confessei a Feyerabend que eu partilhava do descontentamento de Bohm mas supunha que sua atenção exclusiva a isso quase certamente falharia. Ninguém, sugeri, tinha probabilidades de resolver os paradoxos da teoria quântica enquanto
28. Neste volume,p. 180, sobre as observações aceita da fórmula de Balmer. Essa atitude para com o papel da experiência é encontrada em muitos pontos do ensaio de Lakatos. Sobre o papel real da fórmula de Balmer na obra de Bohr, veja o ensaio citado na nota de pé de página n.° , p. mai adiante.
29.
Neste volume,p. 255.
Uma
resposta implícita eo contraste traçado
por Feyerabend ticos será encontradaentre maiminhas s adiant atitudes e, nas pp. 317 e seguintes.
304
para com Bohm e Einstein como crí
não pudesse relacioná-los com algum enigma técnico concreto da física atual. Nas ciências desenvolvidas, à diferença da filosofia, são os enigmas técnicos qu e fornecem a ocasião habitual e, não raro, os materiais concretos para a revolução. Sua disponibilidade, juntamen te com a informação e os sinais que proporcionam, explica em grande parte a natureza especial do progresso científico. Porque podem, de ordinário, ter como líquida e certa a teoria vigente, preferin do explorá-la a c riticá-la, os praticantes das ciências maduras têm liberdade para explorar a natureza até uma profundidade esotérica e um detalhe de outro modo inimagináveis. Porque essa exploração acabará isolando severos pontos de perturbação, eles podem confiar em que o exercício da ciência normal os informará sobre quando e onde po derão tornar-se utilmente críticos popperianos. Até nas ciências desenvolvidas há um papel essencial para a metodologia de Sir Karl. É a estratégia apropriada para as ocasiões em que alguma coisa sai errado com a ciência normal, quando a disciplina esbarra na crise. Expus longamente esses pontos em outro lugar e não os desenvolverei aqui. Seja-me permitido, em vez disso, rematar esta seção voltando à generalização com a qual a iniciei. A despeito da energia e do espaço que meus críticos lhe dedicaram, não creio que a posição que acabo de esboçar se afaste em demasia da posição de Sir Karl. Nesie conjunto de questões, nossas divergências são de nuances. Sustento que, nas ciências desenvolvidas, as ocasiões para a crítica não precisam ser deliberadamente procuradas , nem devem sê-lo pela maioria dos praticantes. Quando se encontram, a primeira resposta apropriada é uma reserva decente. Embora veja a necessidade de defender uma teoria quando atacada pela primeira vez, Sir Karl dá mais ênfase do que eu à busca deliberada de pontos fracos. Não há muita coisa para escolher entre nós. Por que se dá, então, que os meus críticos atuais vêem aqui nossas diferenças cruciais? Já sugeri uma das razões: o sentido deles — que não compartilho mas que, de qualquer maneira, carece de importância — de que minha descrição estratégica infringe uma moral mais elevada. Uma segunda razão, que discutirei na seção seguinte, é a aparente incapacidade deles de ver em exemplos históricos as funções pormenorizadas do colapso da ciência normal ao preparar o palco para as evoluções. Os casos históricos de Lakatos, nesse particular, são especialmente interessantes, pois ele descreve com clareza a transição da fase progressiva para a fase degenerativa de um programa de pesquisa (a transição da ciência normal para a crise) e depois parece negar a importân cia crítica do que disso re
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sulta. Neste ponto, todavia, devo focalizar uma terceira razão, que emerge de uma crítica proferida por Watkins, a qual, no contexto presente, serve a uma propósito que não estava de maneira alguma nos planos dele. “Contrastando com a idéia relativamente clara da testabilidade,” escreve Watkins, “a noção [da ciência normal] “de deixar de ‘sus tentar convenientemen te uma tradição de solução de enigmas’ é es sencialmente vaga.” :!0 Com a acusação de vagueza eu concordo, mas é um erro supor que ela sirva para distinguir minha posiçã o da de Sir Karl. O que é exato no que concerne à posição de Sir Karl, como também assinala Watkins, é a idéia da testabilidade em princípio. Nisso me fio também, pois nenhuma teoria que não fosse em rincípio testável poderia funcionar ou deixar de funcionar adequadamente quando aplicada ao soliicionamento científico de enigmas. A despeito da estranha incapacidade de Watkins de percebê-lo, levo realmente muito a sério a idéia de Sir Karl da assimetria entre falseamento e confirmação. O que é vago, no entanto, a respeito da minha posição são os critérios reais (se é isto o que se requer) que devem ser aplicados quando se decide se determinada incapacidade de resolução de enigmas há de ser ou não atribuída à teoria fundamental, tom an do-se assim uma ocasião de profunda preocupação. Essa decisão, contudo, é idêntica em espécie à decisão sobre se o resultado de determinado teste falseia ou não determinada teoria, e sobre esse assunto Sir Karl é necessariamente tão vago quanto eu. No intuito de traçar uma separação entre nós nessa questão, Watkins transfe re a cl areza da testabilidade em princípio para a área absurda da testabilidade na prática, sem a menor alusão à maneira com que se há de efetuar a transferência. Não se trata de um equívoco sem precedentes, e faz sistematicamente a metodologia de Sir Karl parecer, mais um lógica e menos uma ideologia do que ela realmente é. Ademais, retornando ao ponto deiendido no fim da última seção, é legítimo perguntar se o que Watkins denomina vagueza constitui uma desvantagem. Cumpre ensinar todos os cientistas — trata-se de um elemento vital de sua ideologia — a ficarem alertas ao colapso da teoria e a saberem responder-lhe, seja ele descrito como severa anomalia, seja descrito como falseamento. Além disso, é mister fornecer-lhes exemplos do que se pode esperar que façam suas teorias com cuidado e habilidade suficiente. De posse apenas desses elementos, obviamente, eles chegarão com freqüência a julgamentos dife
30. Neste vol um e, p. 39.
306
rentes em casos concretos: onde um enxerga uma causa de crise o outro não vê mais do que evidência de um talento limitado para a pesquisa. Mas eles emitem julgamentos e a falta de unanimidade que os distingue pode ser o que lhes salva a profissão. A maioria das opiniões, segundo as quais uma teoria deixou de sustentar adequadamente uma tradição de resolução de enigmas, revela-se errônea. Se todos esposassem os mesmos pontos de vista, não sobraria ninguém para mostrar que a teoria existente explica a anomalia aparente, co mo costuma fazer. Se, por outro lado, ninguém estivesse disposto a assumir o risco e pr ocurar depois uma teoria alternativa, não haveria nenhuma das transformações revolucionárias de que depende o desenvolvimento centífico. Segundo diz Watkins, “deve haver um nível crítico em que uma quantidade tolerável de 31 anomalias se transforma numa quantidade intolerável”. Não é mister, porém, que esse nível seja o mesmo para todos, nem os indivíduos precisam especificar de antemão seu próprio nível de tolerância. Basta-lhes estar certos de que possuem um nível e ter consciência de algumas discrepâncias que os impeliria m para ele.
4.
CIÊNCIA NORMAL: SUA BUSCA ATRAVÉS DA HISTÓRIA
Sustentei até agora que, se há revoluções, é preciso que haja ciência normal. Pode-se, contudo, perguntar legitimamente se qualquer uma delas existe. Toulmin o fez, e meus críticos popperianos encontram dificuldade para descobrir na história uma ciência normal significativa, de cuja existência depende a existência das revoluções. As perguntas de Toulmin têm um valor especial, pois a resposta que lhes foi dada me obrigará a enfrentar algumas dificuldades genuínas apresentadas por minhas Scientific Revolutions
e a
modificar, de acordo com eias, minha apresentação srcinal. Infelizmetne, todavia, não são essas as dificuldades que Toulmin enxerga. Para que possam ser isoladas, cumpre varre r a poeira que ele espalhou. Conquanto tenha havido mudanças importante s em minha po sição nos sete anos que decorreram após a publicação do meu livro, não figura entre elas a mudança de uma preocupação com macror- revolução para uma concentração em microrrevolução. Sem embargo disso, Toulmin descobre parte dessa mudança cotejando um ensaio
31. Nes te vol um e, p. 39.
307
lido em 1961 com um livro publicado em 1962. 32 O ensaio, todavia, foi escrito e publicado depois do livro, e sua primeira nota de pé de página especifica a relação que Toulmin inverte. Toulmin vai buscar outra prova da mudança numa 33 comparação entre o livro e o manuscrito do meu primeiro ensaio deste volume. Mas ninguém mais, que eu saiba, chegou sequer a notar as diferenças que ele sublinha, e o livro, de qualquer maneira, é muito explícito no que se refere à centralidade do interesse que Toulmin só encontra em minha obra mais recente. Entre as revoluções discutidas no corpo do livro estão, por exemplo, descobertas como dos raiose do‘revolução’ planeta Urano. “Reconhece -se”, declara “que aasextensão [do Xtermo a episódios como estes] força umo prefácio, uso habitual. Não obstante, continuarei a falar até das descobertas como revolucionárias, porque é justamente a possibilidade de relacionar-lhes sua estrutura, digamos, com a da revolução coperniciana que faz com que a concep34 ção ampliada me pareça tão importante.” Meu interesse, em suma, nunca se concentrou nas revoluções científicas como em “algo que te nde a acontecer em determinado ramo da ciência apenas uma vez em cada duzenos anos, ou coisa que o valha”. 35 Mas sim que se dirigiu ao que Toulmin acredita que eu cheguei somente após abandonar aquele interesse: um tipo pouco estudado de mudança conceituai que ocorre com freqüência na ciência e é fundamental para o seu progresso. A analogia geológica de Toulmin é inteiramente apropriada a esse interesse, mas não como ele a emprega. Toulmin enfatiza o aspecto do debate uniformismocatastrofismo que lidava com a possibilidade de atribuir catástrofes a causa naturais, e que, depois de resolvida essa questão, “as ‘catástrofes’ passaram a ser uniformes e governadas por leis exatamente como quaisquer outros fenômenos geológicos e paleontológicos”. 36 Mas essa in serção do termo “uniformes” é gratuita. Além da questão das causas naturais, o debate tem um segundo aspecto central: a questão de saber se as catástrofes
32. Neste volume, pp. 49 e seg. 33. Veja também Toulmin, “The Evolutionary Development of Natural Science” (1967), especialmente à p. 471, nota de rodapé n.° 8. A publicação dessa inexatidão biográfica antes do artigo em que ela afirma basear-se deu-me muito trabalho. 34. Cf. minha The St r uctur e o f Scientif ic Revoluti ons , 1962. À p. 6, a possibilidade de estender a concepção a microrrevoluções é descrita como “uma tese fundamental’’ do livro. 35. N este vol um e, p. 55. 36. N este vol um e, p. 54; o grifo é meu.
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existem, se se deveria atribuir um papel importante na evolução geológica a fenômenos como terremotos e ações vulcânicas, que agiam mais súbita e destrutivamente do que a erosão e a deposição sedimentar. Os uniformistas perderam essa parte do debate. Quando ele terminou, os geólogos reconheceram duas espécies de mudança geológica, não menos distintas porque ambas se deviam a causas naturais; uma delas atuava gradual e uniformemente; a outra, súbita e catastroficamente. Mesmo hoje não consideramos os maremotos como casos especiais de erosão. De maneira análoga não afirmei que as revoluções eram acontecimentos inescrutáveis de unidade, senão que na ciência, como na geologia, há duas espécies de mudança. Uma delas, a ciência normal, é o processo geralmente cumulativo por cujo intermédio as crenças aceitas de uma comunidade científica ganham substância e são expressas e ampliadas. É o que os cientistas foram treinados para fazer, e a principal tradição da filosofia da ciência de fala inglesa deriva do exame das obras exemplares em que esse treinamento está incluído. Infelizmente, como mostro em meu ensaio anterior, os proponentes dessa tradição filosófica geralmente escolhem seus exemplos de mudanças de outra espécie, que são então adaptadas para servir a este propósito. O resultado é a incapacidade a pre ponderânciaconceituais das mudanças em que precisam ser de jogados foradee reconhecer subs tituídos compromissos fundamentais à prática alguma especialidade científica. Obviamente, como diz Toulmin, as duas espécies de mudanças se interpenetram: como em outr os aspectos da vida, as revoluções na ciência não são totais, mas o reconhecimento da continuidade através das revoluções não levou os historiadores, nem ninguém, a abandonar a idéia. Foi uma falha de minhas Scientific Revolutions o fato de só poder nomear, e não analisar, o fenômeno a que se referiu repetidamente pelo nome de “comunicação parcial”. Mas a comunicação parcial nunca foi, como o queria 37 Toul min, “completa incompreensão [mútua] ”. Nomeava um problema que devia ser trabalhado e não elevado à inescrutabilidade. A menos que possamos aprender mais sobre ele (oferecerei algumas sugestões na seção seguinte), continuaremos a interpretar mal a natureza do progresso científico e talvez do conhecimento. Nada no ensaio de Toulmin me convence de que seremos bemsucedido s se continuarmos a tratar todas as mudanças científicas como uma coisa só.
37. Nes te vol um e, p. 54.
309
Subsiste, contudo, o desafio fundamental deste trabalho. Podemos diferençar meras expressões e extensões de crença partilhada de mudanças que envolvem reconstrução ? A resposta em casos e xtremos é manifestamente “Sim”. A teoria do aspecto do hidrogênio de Bohr foi revolucionária como não o foi a teoria da estrutura fina do hidrogênio de Sommerfeld; a teoria astronômica de Copémico foi revolucionária, mas a teoria calórica da compressibilidade adiabática não o foi. Estes exemplos, contudo, são tão extremos que não chegam a ser plenamente informativos: existem demasiadas diferenças entre as teorias contrastadas, e as mudanças revolucionárias afetaram muita gente. Felizmente, porém, não esta mos restrit os a eles: a teoria de Ampère do circuito elétrico foi revolucionária (ao menos entre os eletricistas franceses), porque separava a corrente elétrica dos efeitos eletrostáticos, até então conceitualmente unidos. A Lei de Ohm também foi revolucionária e também encontrou resistência, porque exigia uma reintegração de conceitos anteriormetne aplicados separadamente à corrente e à carga. 38 Por outro lado, a lei de Joule-Lenz relacionando o calor gerado num fio à resistência e à corrente foi um prod uto da ciência normal, pois se achavam à mão assim os efei tos qualitativos como os conceitos necessários à quantificação. Da mesma forma, num nfvel menos obviamente teórico, a descober ta do oxigênio levada a cabo por Lavoisier (embora talvez não o fosse a de Scheele e por certo não foi a de Priestley) foi revolucionária, pois era inseparável de uma nova teoria da combustão e da acidez. O descobrimento do néon, todavia, não o foi, pois o hélio já fornecera a noção de gás inerte e a necessária coluna da tabela periódica. Ê lícito perguntar-se todavia, até onde e até que grau de universalidade pode ser levado esse pr ocesso de discriminação. Perguntam-me repeti damente se este ou aquele desenvolvimento foi “normal ou revolucionário”, e por via de regra respondo que não sei. A resposta a cada caso concebível não depende da minha capacidade, nem da capacidade de qualquer outra pessoa, mas da aplicabilidade da discriminação a um número de casos muito maior do que o dos fornecidos até agora. Parte da dificuldade em responder reside no fato de que a discriminação entre episódios normais e revolucionários exige um estudo histórico acurado, e poucas partes da história da ciência já foram estudadas assim. Precis amos saber não só o nome da mudança, mas tam bém a naturez a e a estrutura dos compromissos
38. Sobre esses tópicos, veja Brown, “The Electric Current in Eearlv Nineteenth Century French Physics” (1969) e Schagrin, “Resistance to Ohm’s Law” (1963).
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-
de grupo e depois da sua ocorrência. Muitas vezes, para determiná- los, é necessário conhecer também a maneira com que a mudança foi recebida quando proposta pela primeira vez. (Não há outra área em que eu esteja mais profundamente cônscio da necessidade de uma pesquisa histór ica adicional, se bem que não concorde com as conclusões obtidas por Pearce Williams e duvide que os resultados da investigação me aproximem ainda mais de Sir Karl.) Minha dificuldade, porém, tem um aspecto mais profundo. Posto que muito dependa de novas pesquisas, as investigações necessárias não são simplesmente da espécie acima indicada. Além do mais, a estrutura do argumento em minhas Scientific Revolutions obscurece um pouco a natureza do que falta. Se eu estivesse reescrevendo o livro agora, modificaria significativamente sua organização. A essência do problema é que para responder à pergunta “nor mal ou revolucionária?” precisamos perguntar primeiro, “para quem?” Às vezes, a resposta é fácil: a astronomia coperniciana foi uma revolução para todos; o oxigênio foi uma revolução para químicos, mas não o foi, digamos, para astrônomos matemáticos, a menos que eles estivessem também interessados, como Laplace, em assuntos químicos e térmicos. Para o segundo grupo o oxigênio não passava de um gás a mais, cujo descobrimento significava mero acréscimo de saber; nada que lhes fosse essencial como astrônomos teria de ser alterado na assimilação da descoberta. Em regra geral, no entanto, não é possível identificar grupos que compartem de compromissos cognitivos pela simples enunciação de uma disciplina científica — astronomia, química, matemática, etc. Mas isto foi o que acabei de fazer aqui e o que fiz antes em meu livro. Alguns assuntos científicos, como, por exemplo, o estudo do calor, têm pertencido a diferentes comun idades científicas em diferentes ocasiões, às vezes a diversas ao mesmo tempo, sem se tomar domínio especial de nenhuma. Além disso, conquanto os cientistas se inclinem muito mais para a unanimidade em seus compromissos do que os que praticam, digamos, a filosofia e as artes, existem escolas em ciência, comunidades que abordam o mesmo assunto de pontos de vista muito diferentes. Os eletricistas franceses nos primeiros decênios do século XIX eram membros de uma escola que não incluía quase nenhum eletricista britânico do tempo, e assim por diante. Se estivesse agora reescrevendo o meu livro, eu começaria, portanto, discutindo a estrutura comunitária da ciência e não me fiaria exclusivamente de temas partilhados ao fazê-lo. A estrutura comunitária é um tópico a cujo respeito possuímos hoje muito poucas informaçõe s, mas q ue
311
se tornou recentemente uma das principais preocupações dos sociólogos, e dela 39 se ocupam também cada vez mais os historiadores. Os problemas de pesquisa envolvidos não são nada triviais. Os historiadores da ciência que deles tratam devem deixar de confiar exclusivamen te nas técnicas do historiador intelectual e empregar também as do historiador social e cultural. Posto que o trabalho mal haja começado, há razões de sobra para esperar que ele tenha êxito, sobretudo no tocante às ciências desenvolvidas, as que cortaram suas raízes históricas nas comunidades filosóficas ou médicas. O que teríamos então seria um rol dos diferentes grupos de especialistas através dos quais a ciência progrediu em vários períodos de tempo. A unidade analítica seriam os praticantes de determinada especialidade, homens reunidos por elementos comuns em sua educação e aprendizado, cônscios do trabalho um do outro, e caracterizado s pela rela tiva plenitude de sua comunicação profissional e pela relativa unanimidade do seu julgamento profissional. Nas ciências maduras os membros de tais comunidades se veriam, e seriam vistos pelos outros, como os responsáveis exclusivos por determinada matéria e por determinado conjunto de metas, incluindo o treinamento dos seus sucessores. A pesquisa, entretanto, revelaria também a existência de escolas rivais. As comunidades típicas, pelo menos na cena científica contemporânea, podem consistir numa centena de membros e, às vezes, num número nitidamente inferior. Indivíduos, particularmente os mais capazes, podem pertencer a vários grupos, simultânea ou sucessivamente, e mudarão ou, pelo menos, ajustarão sua maneira de pensar ao passar de um para outro. Sugiro que grupos como esses sejam considerados as unidades produtoras do conhecimento científico. Está claro que não poderiam funcionar sem ter os indivíduos por membros, mas a própria idéia do saber científico como produto particular apresenta os mesmos problemas intrínsecos apresentados pela idéia de uma linguagem particular, paralelo ao qual voltarei. Nem o conhecimento nem a linguagem serão os mesmos depois de concebidos como algo que o indivíduo pode possuir e desenvolver sozinho. É, portanto, com resp eito a grupos como estes que se deve formular a pergunta “normal ou revolucionária?”. Muitos episódios deixarão de ser, então, revolucionários para todas as comunidades, muitos o serão apenas para um
39.
Uma discussão um pou co mais circunstanciada d essa reor ganização e uma pequena
bibliografia preliminar estão incluídas em meu ensaio de 1972 intitulado "Second Thoughts on Paradigms”.
312
grupo, outros o serão para várias comunidades ao mesmo tempo, e uns poucos para toda a ciência. Formula da dessa maneria, a per gunta terá, creio eu, respostas tão precisas quanto as que requer minha distinção. Ilustrarei num momento uma razão para pensar assim, aplicando este enfoque a alguns casos concretos usados por meus críticos para suscitar dúvidas acerca da existência e do papel da ciência normal. Em primeiro lugar, no entanto, preciso indicar um aspecto de minha atual posição que, muito mais claramente do que a ciência normal, o de Sir Karl.representa uma linha divisória profunda entre meu ponto de vista e O programa que acaba de ser esboçado torn a ainda mais clara do que antes a base sociológica da minha posição. E o que é mais importante, ressalta o que talvez ainda não tenha ficado claro, a extensão em que considero o conhecimento científico como sendo, intrinsecamente, o produto de um agregado de comunidade de especialistas. Sir Karl vê “um grande perigo na. . . especialização”, e o contexto em que faz essa avaliação dá a entender que o perigo é o mesmo que ele vê na ciência normal. 10 Mas no tocante ao primeiro, pelo menos, a batalha foi claramente perdida desde o princípio. Isso não quer dizer que possamos não desejar, por bons motivos, opor-nos à especialização e até ser bem sucedidos no fazê-lo, senãociência. que oTodas esforço redundaria à própria necessariamente numa oposição as vezes em que Sir Karl contrasta a ciência com a filosofia, como no início do seu ensaio, ou a física com a sociologia, a psicologia e a história, como no fim, contrasta uma disciplina esotérica, isolada e largamente autônoma, com outra que ainda visa comunicar-se com um público maior que o dos seus profissionais e a persuadilo. (A ciência não é a única atividade cujos praticantes podem ser agrupados em comunidades, mas é a única em que cada comunidade é seu público e seu juiz próprio e exclusivo. 11 O contraste não é novo, característico, digamos da Grande Ciência e da cena contemporânea. A matemática e a astronomia eram assuntos esotéricos na Antigüidade; a mecânica tornou-se assim depois de Galileu e Newton; a eletricidade depois de Coulomb e Poisson; e assim até a econom ia nos dias de hoje. A transição para um grupo fechado de especialistas, quase sempre, fazia parte da transição para a maturidade que discuti há pouco ao considerar a emergência da solução de enigmas. É difícil acreditar que se trata de uma caracterís
40 .
Neste volume,
41.
Veja o meu co mentário d e 1969 sobre as relações entre a ciência e a arte .
p. 65.
TI
tica dispensável. A ciência talvez pudesse voltar a ser semelhante à filosofia, como Sir Karl deseja, mas desconfio de que ele, nesse caso, a admirar ia menos. A fim de rematar essa parte da minha discussão, recorro a alguns casos concretos, através dos quais meus críticos ilustram suas dificuldades para encontrar a ciência normal e suas funções na história, tomando primeiro um problema suscitado por Sir Karl e Wat kins. Ambo s assinalam que nada parecido com um consenso a res peito de fundamentos “emergiu durante a longa história da teoria da matéria', desde os pré-socráticos até os dias atuais tem havido debates infindáveis entre os conceitos contínuos e descontínuos da matéria, entre várias teorias atômicas de um lado, e teorias etéreas, ondulatórias e de campo de outro”. 12 Feyerabend defende uma tese muito semelhante em relação à segunda metade do século XIX contrastando os enfoques mecânicos, fenomenológicos e teóricos de campo com problemas de física. 43 Concordo com todas as descrições deles do que aconteceu. Mas a expressão “teorias da matéria”, pelo menos até os últimos trinta anos, não diferencia sequer os interesses da ciência dos interesses da filosofia e muito menos se fixa numa comunidade ou num pequeno grupo de comunidades res ponsável pelo assunto e especialista nele. Não estou insinuando que os cientistas não tê m e não usam teorias da matéria, nem que o seu trabalho não sofre a influência de tais teorias, nem mesmo que os resultados de suas pesquisas não desempenham um papel nas teorias da matéria sustentadas por outros. Mas até este século as teorias da matéria têm sido mais um instrumento para os cientistas do que um tema. O fato de especialidades diferentes terem escolhido instrumentos diferentes e, às vezes, criticado as escolhas uns dos outros, não significa que elas não praticassem a ciência normal. A generalização freqüentemen te ouvida de que, antes do advento da mecânica ondulatória, físicos e químicos estadea- vam teorias características e irreconciliáveis da matéria é demasiado simplista (em parte porque se pode dizer o mesmo igualmente bem, nos dias de hoje, acerca de diferentes especialidades químicas). Mas a própria possibilidade de uma generalização dessa natureza dá a entender o modo com que a questão levantada por Watkins e
Sir
42. N este volu me, pp. 45 e seguintes e pp. 66-7. Como nota Watkins, Dudley Shapere defendeu um ponto de vista similar em seu ensaio de 1964 intitulado "The Structure of Scientific Revolutions” em conexão com o papel do atomismo na química na primeira metade do século XIX. Trato desse caso logo adiante. 43.
314
N este volu me, p. 256.
Karl deve ser abordada. Quanto a isso, os praticantes de determinada comunidade ou escola não precisam compartir sempre de uma teoria da matéria. A química, na primeira metade do século XIX é um caso ilustrativo. Embora muitos dos seus instrumentos fundamentais — proporção constante, proporção múltipla, pesos combinados, etc. — fossem desenvolvidos e se tornassem propriedade comum através da teoria atômica de Dalton, os homens que os usaram puderam, após o acontecimento, adotar atitudesAamplamente variáveis respeito da natureza da existência dos átomos. disciplina deles ou, apelo menos, muitas edeatésuas partes, não dependia de um modelo partilhado da matéria. Até onde admitem a existência da ciência normal, meus críticos sempre encontram dificuldade para descobrir a crise e seu papel. Watkins proporciona um exemplo, cuja resolução decorre imediatamente da análise desenvolvida acima. As Leis de Kepler, recorda-nos Watkins, eram incompatíveis com a teoria planetária de Newton, mas os astrônomos, até então, não se haviam mostrado insatisfeitos com eles. E Watkins afirma, portanto, que o tratamento revolucionário dispensado por Newton aos movimentos planetários não foi precedido de uma crise astronômica. Mas por que o teria sido? Em primei ro lugar, a transição das órbitas keplerianas as órbitas não precisaria ter representado (f alta -me para a prova para newtoeu ternianas a certeza) uma revolução para os astrônomos. A maioria deles seguia Kepler e explicava a forma das órbitas planetárias em termos mecânicos em lugar de explicá-la em termos geométricos. (Isto é, a sua explicação não se utilizava da “ perfeição geométrica" da elipse, nem de outra característica de que a órbita se visse privada por efeito de perturbações newtonianas.) Conquanto a transição do círculo para a elipse tenha sido parte de uma revolução para eles, um ajustamento secundário do mecanismo explicaria, como aconteceu com Newton, o afastamento da elipticidade. E o que é mais importante, o ajustamento feito por Newton das órbitas keplerianas era um subproduto do seu trabalho em mecânica, campo ao qual a comunidade astrônomos matemáticos se referia de passagem em seus prefácios, mas que,dosa partir de então, representou apenas o papel mais global em seu trabalho. Na mecânica, porém, onde Newton provocou uma revolução, registrara-se uma crise amplamente reconhecida desde a aceitação do copernicianismo. O exemplo contrário de Watkins é o melhor grão que eu poderia desejar para o meu moinho. Volto-me, finalmen te, para um dos ca sos históricos mais desenvolvidos de Lakatos, o do programa de pesquisas de Bohr, pois ilus
tra o que mais me intriga em seu ensaio, amiúde admirável, e dá a entender quão profundo e até residual pode ser o popperia nismo. Conquanto sua terminologia seja diferente, seu aparelho analítico está tão próximo do meu quanto o que mais o esteja: núcleo, trabalho no cinto de proteção e fase degenerativa são paralelos bem próximos dos meus paradigmas, ciência normal e crise. Lakatos, contudo, não vê como funcionam essas noções partilhadas nem mesmo quando as aplica ao que c para mim um caso ideal. E isso é importante. Permi- tam-me ilustrar algumas coisas que ele poderia ter visto e poderia ter dito. Minha versão, como a sua ou como qualquer outro trechoaos de narrativa será uma reconstrução racional. Mas não pedirei leitores histórica, que apliquem “toneladas de sal” nem acrescentem notas de pé de página assinalando que o q ue está dito em meu texto é falso." Considere- se a narrativa de Lakatos da srcem do átomo de Bohr. “O problema básico”, escreve ele, “era o enigma de como os átdmos d e Rutherford. . . podem permanecer estáveis; pois, de acor do com a teoria bem corroborada do eletromagnetismo de Maxwell- -Lorentz, eles deveriam desintegrarse.” 45 Eis aí um genuíno problema popperiano (e não um enigma kuhniano) nascido do conflito entre duas partes da física cada vez mais bem estabelecidas. Estivera disponíve l, além disso, por algum t empo, como foco potencial de crí tica. Não se srcinou do uma modelo de Rutherford em 1911; instabilidade radioativa era igualmente dificuldade para a maioria dos amodelos mais velhos de átomo, incluindo o de Thompson e o de Na- gaoka. De mais a mais, foi esse problema que Bohr (em certo sentido) resolveu em seu famoso ensaio tripartido de 1913, inaugurando
44. N este volum e, pp. 169 e 172, 179 e alhures. Pode-se indagar razoavelmente da força evidenciai de exemplos que exigem essa espécie de qualificação (e será “qualificação” a palavra realmente certa?). Em outro contexto, no entanto, eu me mostrarei muito grato por esses “casos históricos” de Lakatos. Mais claros, porque mais explícitos, do que quaisquer exemplos que conheço, eles ilustram as diferenças entre o modo com que os filósofos e os historiadores costumam fazer história. O problema não consiste nas probabilidades que têm os filósofos de cometer erros — Lakatos conhece os fatos melhor do que muitos historiadores que escreveram sobre esses assuntos, e os historiadores cometem erros monumentais. Mas um historiador não in clui ri a em sua na r rativa um relato fatual que soubesse ser falso. Se o tivesse feito, achar-se ia tão sensível ao próprio deslize que não comporia uma nota de pé de página chamando a atenção para ele. Ambos os grupos são escrupulosos, mas diferem quanto ao objeto dos seus escrúpulos. Discuti algumas diferenças dessa espécie em minha Conferência de Isenberg não- publicada, “The Relations between History and Philosophy of Science”, pronunciada em março de 1968.
45. 316
N este volu me, p. 173.
desse modo uma revolução. Não admira que Lakatos quisesse fazer dele o “problema básico” para o programa de pesquisa que produziu a revolução, mas não o conseguiu. lf i Ao invés disso, a base era um enigma inteiramente norm al. Bohr propôs -se melhorar as aproximações físicas num ensaio de C. G. Darwin sobre a energia perdida por partículas carregadas que passam pela matéria. No processo, fez a descobert a, para ele surpreendente, de que o átomo de Rutherford, à diferença de ad outros modelos correntes, era mecanicamente instável e de que um dispositivo hoc, semelhante ao de Planck, para estabilizá-lo fornecia uma promissora explicação das periodicidades na tabela de Mendeleiev, outra coisa que ele não estava procurando. Nesse ponto o seu modelo ainda não tinha estados excitados, nem Bohr tencionava aplicá-lo aos espectros atômicos. Tudo isso aconteceu, no entanto, quando ele tentou conciliar seu modelo com o modelo aparentemente incompatível desenvolvido por J. W. Nicholson e, entrementes, encontrou a fórmula de Balmer. Como grande parte da pesquisa que produz revoluções, as maiores realizações de Bohr em 1913 foram , portanto, produtos de um programa de pesquisa dirigido para metas muito diferentes das que se alcançaram. Conquanto não pudesse ter estabilizado o modelo de Rutherford pela quantização se não tivesse tido conhecimento da crise que a obra de Planck introduzira na física, sua própria obra ilustra com muita clareza a eficácia revolucionária dos enigmas normais de pesquisa. Examine-se, finalmente, o último trecho, do caso histórico de Lakatos, a fase degenerativa da velha teoria quântica. Ele conta bem a maior parte da história e eu me limitarei a chamar a atenção para ela. A partir de 1900, os físicos entraram a reconhecer, cada vez mais amplamente, que o quantum de Planck introduzira uma incoerência fundamental em física. A princípio, muitos tentaram eliminá- la mas, depois de 1911 e sobretudo depois da invenção do átomo de Bohr, esses esforços críticos foram abandonados. Por mais de um decênio, Einstein foi o único físico de nota que continuou a dirigir suas energias para a busca de uma física consistente. Outr os aprenderam a viver com a inconsistência e tentaram, em vez disso, resolver enigmas técnicos com os instrumentos de que dispunham. Sobretudo nas áreas dos espectros atômicos, da estrutura atômica e dos calores específicos, suas realizações não tiveram precedentes. Embora a in
46.
Sobre o que se segue, veja Heilbron e Kuhn, "The
Genesis of the Bohr Atom”
(1969).
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consistência da teoria física fosse largamente reconhecida, os físicos, apesar de tudo, puderam explorá-la e, ao fazê-lo, realizaram descobertas fundamentais num ritmo extraordinário entre 1913 e 1921. De repente, no entanto, a partir de 1922, esses mesmos êxitos isolaram três problemas obstinados — o modelo do hélio, o efeito anômalo de Zeeman e a dispersão ótica — que não poderiam ser resolvidos por nada que lembrasse a técnica existente, coisa de que os físicos se persuadiam cada vez mais. Em resultado disso, muitos modificaram sua atitude de pesquisa, passando a multiplicar as versões da velha teoria quântica, cada qual mais descabida que a anterior, projetando e experimentando cada uma delas contra os três pontos reconhecidos de perturbação . É a esta última fase, de 1922 em diante, que Lakatos chama o estágio degenerativo do programa de Bohr. Para mim é um caso típico de crise, claramente documentado em publicações, correspondência e anedotas. Vêmo-lo praticamente do mesmo modo. Lakatos poderia, portanto, ter contado o resto da história. Para os que esta- vam experimentando a crise, dois dos três problemas que a provocaram revelaram-se imensamente informativos, a dispersão e o efeito anômalo de Zeeman. Por uma série de medidas correlatas, demasiado c omplexas para serem esboçadas aqui, a procura deles conduziu primeiro à adoção em Copenhague de um modelo de átomo em que os chamados osciladores virtuais juntavam estados quânticos discretos, depois a uma fórmula para a dispersão teórica quântica e, finalmente, para a mecânica das matrizes que encerrou a crise três anos depois do seu início. Para essa primeira formulação da mecânica quântica, a fase degenerativa da velha teoria quântica forneceu, a um tempo, a ocasião e muita substância técnica detalhada. A história da ciência, pelo que s ei, não oferece outro exemplo tão claro, tão circunstanciado e tão convincente das funções criativas da ciência normal e da crise. Lakatos, entretanto, ignora este capítulo e salta para a mecânica ondulatória, a segunda e, a princípio, muito diversa formulação de uma nova teoria quântica. Primeiro, descreve a fase degenerativa da velha teoria quântica como cheia de “inconsistências” cada vez mais estéreis e de hipóteses cada vez mais “ad hoc" (os termos “ad hoc" e “inconsistências” estão certos; “estéreis” não poderia estar mais errado; essas hipóteses não somente conduziram à mecânica de matrizes mas também ao spin eletrônico). Em seguida, apresenta a inovação que resolve a crise como um mágico tira um coelho da cartola: “Logo apareceu um programa de pesquisa rival: a mecânica
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ondulatória... [que] não tardou a alcançar, vencer e substituir o programa de Bohr. O trabalho de Broglie surgiu na ocasião em que o programa de Bohr estava degenerando. Mas isso não passou de coincidência. Ficamos a perguntar-nos o que teria acontecido se de Broglie tivesse escrito e publicado seu estudo em 1914 em lugar de fazê- lo em 1924.” 17 A resposta à pergunta retórica, que remata o período, é clara: absolutamente nada. Tanto o ensaio de de Broglie quanto o caminho seguido desde o citado ensaio até à equação ondulatória de Schrodin- ger dependem, detalhadamente de acontecimentos verificados depois 1914: dodotrabalho Einstein e do próprio Schrondinger, assim como da de descoberta efeito de de Compton em 1922. 18 Ainda que esse ponto não pudesse ser documentado com detalhes, não estará sendo muito forçada a coicindência quando se usa para explicar a emergência simultânea de duas teorias independentes e, a princípio, muito diferentes, ambas capazes de resolver uma crise que fora visível só por três anos? Permitam que eu seja escrupuloso. Se bem deixe escapar inteiramente as funções criativas essenciais da crise da velha teoria quântica, Lakatos não erra de todo no tocante à s ua importância para a invenção da mecânica ondulatória. A equação ondulatória não foi uma resposta à crise que começou em 1922, senão para a voltou crise que data do trabalho de Planck em 1900 para a tenazmente qual a maioria dos físicos as costas depois de 1911. Se Einstein não see tivesse recusado a pôr de lado sua profunda insatisfação com as incompatibilidades fundamentais da velha teoria quântica (e se não lhe tivesse sido possível ligar esse descontentamento aos enigmas técnicos concretos dos fenômenos de flutuação eletromagnética — algo para o qual ele não encontrou equivalente depois de 1925), a equação ondulatória não teria emergido quando e como emergiu. O caminho de pesquisa que conduz a ela não é o mesmo que conduz à mecânica das matrizes. Mas as duas tampouco são independentes, nem a simultaneidade do seu término se deve tão-só à coincidência. Entre os vários episódios de pesquisa que as ligam figura, por exemplo,daaluz, convincente demonstração de Compton das propriedades corp usculares
47. N este vol um e, p. 190; o grifo é meu. 48. Veja Klein, “Einstein and the Wave -Particle Duality” (1964), e Ro “Why Was It Schrõdinger Who Developed de BrogIie’s Ideas?” (1969).
- man e Forman,
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subproduto de uma parte muito específica de pesquisa normal sobre a dispersão dos raios-X. Antes de poder pensar na idéia das ondas da matéria, os físicos tinham primeiro de levar a sério a i déia do fóton, o que pouca gente havia feito antes de 1922. O trabalho de de Broglie começou como uma teoria do fóton, sendo que o seu esforço principal visou a conciliar a lei da radiação de Planck com a estrutura corpuscular da luz; as ondas da matéria entraram no meio do caminho. O próprio de Broglie talvez não tivesse precisado da descoberto de Compton para levar o fóton a sério, mas o seu público, francês e estrangeiro, sem dúvida precisava. Conquanto a mecânica ondulatória em nenhum sentido se seguisse ao efeito de Compton, existem laços históricos entre os dois. No caminho para a mecânica das matrizes o papel do efeito de Compton é ainda mais claro. A primeira utilidade do modelo do oscilador virtual em Copenhague foi mostrar que esse efeito poderia ser explicado sem recorrer ao fóton de Einstein, conceito que Bohr relutara notoriamente em aceitar. Aplicou-se, em seguida, o mesmo modelo à dispersão e encontraram-se as pistas para a mecânica das matrizes. O efeito de Compton é, portanto, uma ponte estendida sobre o abismo que Lakatos escon de sob o nome de “coincidência”. Tendo fornecido em outros lugares muitos outros exemplos dos papéis significativo s da ciência normal e da crise, não continuarei a multiplicá -los aqui. A míngua de pesquisas adicionais eu não poderia, de qualquer maneira, fornecêlos em quantidade suficiente. Quando for completada, essa pesquisa talvez não confirme o que digo, mas o que já foi feito, até agora não ajuda, por certo, os meus críticos. Eles precisam continuar procurando exemplos contrários .
5.
IRRACIONALIDADE E ESCOLHA DA TEORIA
Passo agora a tecer considerações sobre um derradeiro conjunto de temas que merecem consideração, mencionados pelos meus críticos atuais, que os partilham com outros filósofos, e que decorr em princ ipalmente de minha descrição dos processos pelos quais os cientistas escolhem entre teorias concorrentes, e resultam em acusações agrupadas em tomo de termos como “irracionalidade”, “regra das multidões” e “relativismo”. Nesta seção pretendo eliminar os mal- -entendidos pelos quais meu próprio passado retórico é, sem dúvida, parcialmente responsável. Em minha seção final, que se segue a esta, tratarei de alguns assuntos mais profundo s, provocados pelo proble
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ma da escolha da teoria. Nesse ponto, os t ermos “paradigma” e •‘incomen surabilidade”, que até agora evitei quase que de todo, tor narão a entrar na discussão. Em minhas Scientific Revolutions descrevo a ciência normal, a certa altura, como “tentativa enérgica e dedicada de forçar a natu reza a entrar nas caixas conceituais fornecidas pela educação profis sional.” 49 Mais tarde, discutindo os problemas que cerca m a escolha entr e os conjuntos concorr entes de caixas, 50 teorias ou paradigmas, eu os descrevi como : acerca de técnicas de persuasão, ou acerca de argumentos e con- traargumentos numa situação em que. .. não estão em jogo nem a demonstração nem o erro. A transferência de lealdade de paradigma a paradigma é uma experiência de conversão que se não pode forçar. A resistência que dura a vida toda. . . não é uma violação de padrões científicos, mas um índice da natureza da própria pesquisa científica ... Conquanto sempre possa encontrar homens — como Priestley, por exemplo — desarragoados a ponto de resistir o quanto resistiram, o historiador não encontrará um ponto em que a resistência se torna ilógica ou não-científica. Na pior das hipóteses, poderá querer dizer que o homem que continua a resistir depois de todos os seus colegas se haverem convertido deixa, ipso facto, de ser um cientista.
Não admira (ainda que eu mesmo tenha ficado muito surpreen dido) que trechos como esse sejam interpretados por certos grupos como querendo dizer que, nas ciências desenvolvidas, a força faz o direito. Eu teria afirmado, segundo dizem, que os membros de uma comunidade científica podem acreditar em tudo o que quiserem, bastando para isso que decidam primeiro sobre o objeto do seu consenso, para impô-lo depois aos colegas e à natureza. Os fatores determinantes daquilo em que decidem acreditar são fundamentalmente irracionais, questões fortuitas e de gosto pessoal. Nem a lógica, nem a observação, nem a boa razão estão implicadas na escolha da teoria. Seja ela o que for, a verdade científica é completamente rela tivista. Estes mal-entendidos são todos danosos, não importando qual seja minha responsabilid por críticos, possibilitá-los. Posto que deixe uma profunda divisão entre mim e osade meus a eliminação dosainda mal-entendidos é indispensável até para descobrir nossa diver
49.
Cf. minha Th e St r uctur e of S cienti fi c Re volut ions, 1962, p. 5.
50. Op. cit. p. 151.
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gência. Antes de tratá-los individualmente, no entanto, cabe aqui um reparo de ordem geral. Os tipos de mal-entendidos que acabo de esboçar são expressos apenas por filósofos, grupo já familiarizado com os pontos a que viso em trechos como o que acabo de citar. À diferença dos leitores para os quais o ponto é menos fa miliar, eles às vezes supõem que eu pr etendo mais do que realmente pretendo. O que quero dizer, no entanto, é apenas o seguinte. Num debate sobr e a escolha de teorias, nenhuma das partes tem acesso a um argumento que setanto assemelhe a umaquanto prova as da regras lógica deouinferência da matemática formal. Nesta última, as premissas são estipuladas de antemão. Em havendo divergência no tocante às conclusões, as partes que figurara m no debate podem reconstituir os passos dados, um por um, conferindo cada passo com a estipulação anterior. No fim do processo, um ou outro terá de admitir que, num ponto isolado da discuss ão, se enganou, i nfringiu ou aplicou mal uma regra anteriormente aceita. Depois dessa admissão, não lhe resta nenhum outro recurso e a prova do adversário é irrecusável. Só quando os dois descobrem, em vez disso, que diferem a propósito do significado ou da aplicabilidade de uma regra estipulada, que seu consenso anterior não fornece uma base suficiente de prova, é que o debate se parece com o que ocorre inevitavelmente na ciência. Nessa tese relativamente familiar nada deveria sugerir que os cientistas não fazem uso da lógica (e da matemática) em seus argumentos, incluindo os que têm por fim persuadir um colega a renunciar a uma teoria e abraçar outra. Estou Sir Karl de condenar-me por autocontradição porque atônito com a tentativa de 51 eu mesmo emprego argumentos lógicos. O que melhor se pode dizer é que espero que meus argumentos, pelo simples fato de serem lógicos, sejam irrecusáveis. Sir Karl enfatiza o meu ponto, e não o seu, quando os descreve como lógicos porém equivocados, e não tenta destacar o equívoco nem explicitar seu caráter lógico. O que ele quer dizer é que, apesar da lógica dos meus argumentos, discorda da minha conclusão. Nosso desacordo há de girar em torno de premissas ou da maneira com que elas devem ser aplicadas, situação comum entre cientistas que debatem a escolha de teorias. Quando isso acontece, elas recorrem à persuasão como prelúdio da possibilidade de demonstração. Citar a persuasão como recurso do cientista não é sugerir a i nexistência de razões excelentes para escolher uma teoria em detri
51 Neste vol um e, pp. 68 e 70.
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mento de outra. 52 Não creio positivamente que “a adoção de uma nova teoria científica seja um assunto intuitivo ou místico, um caso de descrição psicológica, muito mais que de codificação ló gica ou metodológica”. 5 '* Ao contrário, o capítulo das minhas Scientific Re- volutions de que foi tirada a citação precedente nega explicitamente “que os novos paradigmas triunfem finalmente através de alguma estética mística”, e as páginas que antecedem essa negativa contêm uma codificação preliminar de boas razões para a escolha de teoria. 51 Existem, além disso, razões do mesmo tipo comum na filosofia da ciência: exatidão, amplitude, simplicidade, produtividade e outras. É vitalmente importante que os cientistas aprendam a avaliar essas características e que lhes sejam fornecidos exemplos que as ilustrem na prática. Se eles não adotassem valores como esses, suas disciplinas se desenvolve riam de modo muito diferente. Note-se, por exemplo, que os períodos em que a história da arte f oi uma história de progresso também foram os períodos em que a meta do artista era a exatidão da representação. Com o abandono desse valor, o padrão de desenvolvimento alterou-se drasticamente embora continuasse um desenvolvimento muito significativo. 55 Não nego, portanto, a existência de boa razões, nem que essas razões sejam da espécie habitualmente descrita. Insisto, todavia, em que elas são valores que se usam a fazer escolhas e não regras de escolha, o que não impede que os cientistas que delas compartem possam fazer escolhas diferentes na mesma situação concreta. Dois fatores estão profundamente envolvidos nisso. Primeiro, em muitas situações concretas, valores diferentes, ainda que todos representem boas razões, dita m conclusõ es diferentes, escolhas diferentes. Nos casos de conflito de valor (uma teoria, por exemplo, é mais simples, mas a outra é mais precisa), o peso relativo colocado sobr e valores diferentes por indivíduos diferentes representa um papel decisivo na escolha individual. E o que é mais importante, se bem que os cientistas compartilhem desses valores e tenham de continuar a fazê-lo para que a ciência sobreviva, nem todos os aplicam da mesma maneira. A simplicidade, o alcance, a produtividade e até a precisão podem ser julgados de modo muito diverso (o que não quer dizer que pos
52. Sobre uma versão da opin ião de que Kuhn in siste em que "a s decisões de um grupo científico para adotar um novo paradigma não podem basear-se em boas razões de espécie alguma, fatuais ou quaisquer outras”, veja Shapere, “Meaning and Scientific Change”, especialmente a p. 67. 53. Cf. Scheffler, Science and Subjectivi ty, 1967, p. 18. Th e Str uctur e of Sc ientif ic Rev olu tion s, 1962, p. 157. 54. Cf. minha 55. Gombrich, Ar t a nd Il lusio n. 1960, pp. 11 e seguintes.
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sam ser julgados arbitrariamente) por pessoas diversas. E estas, mais uma vez, podem diferir em suas conclusões sem violar nenhuma regra aceita. A variabilidade de julgamento, como já tive ocasião de sugerir em conexão com o reconhecimento das crises, talvez seja até essencial ao progresso científico. A escolha de uma teoria, que também é, como diz Lakatos, a escolha de um programa de pesquisa, envolve grandes riscos, sobretudo nos estágios iniciais. Em virtude de um sistema de valores que difere do sistema comum em sua aplicabilidade, alguns cientistas precisam escolhê-la logo para que ela possa desenvolver-se até chegar ao ponto de lograr a capacidade geral de persuasão. Entretanto, as escolhas ditadas por esses sistem as atípicos de valores geralmente são erradas. Se todos os membros da comunidade aplicassem valores da mesma maneira arriscada, a atividade do grupo cessaria. Creio que Lakatos passa por alto este último ponto e, com ele, o papel essencial da variabilidade individual no que só mais tarde é a unânime decisão do grupo. Como Feyerabend também “caráter histórico ” ou sugerir que elas são enfatiza, dar a essas decisões um tomadas apenas “ retrospectivamente” é privá-las de sua fun ção/’ 6 A comunidade científica não pode esperar pela história, embora alguns membros individuais o façam. Os resultados necessários são logrados, em lugar disso, distribuindo-se pelos membros do grupo o risco que deve ser aceit o. Alguma coisa neste argumento dá a entender, por acaso, a propriedade de r 7 expressõe s como decisão pela “psicologia das multidões”? ’ Creio que não. Ao contrário, uma característica da multidão é a rejeição de valores de que seus membros costumam compartilhar. Feito por cientistas, o resultado seria o fim da sua ciência, como o dá a entender o caso Lysenko. Meu argumento, porém, vai ainda mais longe, pois enfatiza que, à diferença da maioria das disciplinas, a responsabilidade por aplicar valores científicos partilhados deve ser deixada ao grupo de especialistas. 58 Pode não se estender a todos os ci entistas, muito meno s a todos os leigos cultos, e menos ainda à multidão. Se o grupo de especialistas se comporta como uma multidão, renunciando aos seus valores normais, a ciência já não tem salvação.
56.
N este volu me, pp. 147, 265 e seguintes.
57. N este volu me, pp. 172, nota de pé de páginas n.“ 188 e 221. 58. Cf. meu Th e St r uctur e of S cienti fi c Re voluti ons , p. 167.
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Pela mesma razão, nenhuma parte do meu argumento aqui ou em meu livro supõe que os cientistas podem escolher qualquer teoria que lhes agrade na medida em que concordam em sua escolha e conseqüentemente a põem em prática. 5S A maioria dos enigmas da ciência normal é diretamente apresentada pela natureza, e todos envolvem indiretamente a natureza. Conquanto soluções diferentes tenham sido recebidas como válidas em diferentes ocasiões, não se pode forçar a natureza a ajustar-se a um conjunto arbitrário de caixas con ceituais. Pelo contrário, a história da protociência mostra que a ciência normal só é possível com caixas muito especiais, e a história da ciência desenvolvida mostra que a natureza não se deixará enclausurar indefinidamente em nenhum conjunto construído até agora pelos cientistas. Se digo, às vezes, que qualquer escolha feita por cientistas com base em sua experiência passada e em conform idade com seus valores tradicionais é ipso jacto ciência válida para o seu tempo, estou apenas sublinhando uma tautologia. As decisões tomadas de outras maneiras ou as que não poderiam ser tomadas desse modo não proporcionam base para a ciência e não seria m científicas. Subsistem as acusações de irracionalidade e relativismo. Sobre a primeira, no entanto, já falei, pois discuti as questões, excetuando a incomensurabilidade, de que ela parece nascer. Entretanto, não vejo com otimismo esse assunto, pois eu não entendia antes e não entendo agora o que meus críticos querem dizer quando empregam termos como “irracional” e “irracionalidade” para caracterizar meus pontos de vista. Essgs rótulos me parecem meras relíquias, barreiras que impedem uma atividade conjunta, seja para a discussão, seja para a pesquisa. Minhas dificuldades para compreender, todavia são ainda mais claras e mais agudas quando se empregam esses termos, não para criticar minha posição, senão para defendê-la. Há manifes tamente muita coisa na última parte do ensaio de Feyrabend com a qual estou de acordo, mas descrever o argumento como defesa da irracionalidade na ciência me parece não só absurdo mas também vagamente obsceno. Eu o descreveria, como descrevo o meu, como
59. A seguin te anedota pode dar uma id éia da minha surpresa e da minh a mortifi cação provocadas por isso e pelas maneiras correlatas de ler o meu livro. Durante uma reunião, eu conversava com uma amiga e colega com a qual só me encontrava de raro em raro, mas que eu sabia, através de uma crítica publicada, ser entusiasta do meu livro. Ela virou-se para mim e disse, "Bem, Tom, parece-me que o seu maior problema agora émostrar em que sentido a ciência pode ser empírica”. Meu queixo caiu e ainda está meio bambo. Tenho uma recordação visual total dessa cena, a única depois da entrada de de Gaulle em Paris em 1944.
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uma tentativa para mostrar que as teorias existentes de racionalidade não são totalmente corretas e que precisamos reajustá-las ou modificá-las para explicar por que a ciência opera como opera. Supor, em lugar disso, que possuímos critérios de racionalidade independentes de nossa compreensão dos fundamento s do processo científico é abrir a porta para a fantasia utópica. Uma resposta à acusação de relativismo precisa ser mais complexa do que as que precedem, pois a acusação não nasce apenas do mal-entendido. Num sentido do termo eu talvez seja relativista; mas num sentido mais essencial não o sou. Só posso esperar aqui separar os dois. Já deve estar claro que minha concepção do desenvolvimento científico é fundamentalmente evolucionária. Imagine-se, portanto, uma árvore evolucionária que representa o desenvolvimento das especialidades científicas a partir da sua srcem comum, digamos, na filosofia natural primitiva. Imagine-se, além disso, uma linha traçada nessa árvore desde a base do tronco até a ponta de um galho primário sem voltar sobre si mesma. Duas teorias, sejam elas quais forem, ao longo desta linha estão relacionadas entre si por descendência. Considerem-se agora duas teorias assim colhidas em pontos não muito próximos da srcem. Creio que será fácil conceber uma série de critério — incluindo a máxima precisão de predições, grau de especialização, número (mas não extensão) de soluções de problemas concretos — que permitam a qualquer observador não envolvido com nenhuma delas dizer qual é a mais velha e qual a descendente. Para mim, portanto, o desenvolvimento científico, como a evolução biológica, é unidirecional e irreversíve l. Uma teoria cie ntífica não é tão boa quanto outra por fazer o que fazem normalmente os cientistas. Nesse sentido não sou relativista. Mas existem razões por que me chamam de relativista, e elas se relacionam com os contextos em que sou cauteloso na aplicação do rótulo “verdade”. No atual contexto, seus empregos intrateóricos me parecem não problemáticos. Os membros de determinada comuni dade ci entífica geralmente se porão de acordo sobre as conseqüências de uma teoria comum capazes de suportar o teste da experiência e que, portanto, são verdadeiras, sobre as que são falsas segundo a atual aplicação da teoria, e sobre as que ainda não foram testadas. Lidando com a comparação de teorias destinadas a abranger a mesma extensão de fenômenos naturais, sou mais cauteloso. Quando se trata de teorias históricas, como as que foram examinadas mais acima, posso dizer com Sir Karl que cada uma delas foi havida por verdadeira em sua época e depois posta de lado por falsa. De mais a mais, posso dizer
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que a teoria mais recente é a melhor das duas como instrumento para a prática da ciência normal, e espero acrescentar o suficiente acerca dos sentidos em que era melhor explicar as principais características evolutivas do desenvolvimento das ciências. Podendo chegar a esse ponto, não me sinto relativista. Não obstante, há outro passo, ou espécie de passo, que muitos filósofos da ciência desejam dar e que eu recuso. Eles desejam comparar teorias como representações da natureza, como enunciados sobre “o que há realmente lá fora”. Admitindo -se que nenhuma teoria de um par histórico é verdadeira, eles procuram, apesar disso, um sentido em quePor a mais maissinto pertoqueda severdade. Acredito alguma que nada disso exista. outrorecente lado, está já não tenha perdido coisa por assumir essa posição, muito menos a capacidade de explicar o progresso científico. O que estou rejeitando será esclarecido com referência ao ensaio de Sir Karl e a seus outros escritos. Ele propôs um critério de verossimilhança que lhe permite escr ever que “uma teoria mais recente. . . t 2 suplantou Z( . . . por aproximar- se mais da verdade do que íi”. Outrossim, ao discutir uma sucessão de referenciais, ele fala de cada membro mais recente da série como “melhor e mais espaçoso" do que os predecessores; e dá a entender que o limite da série, pelo menos se levada ao infinito, é a verdade “'absoluta' ou ‘objetiva', no sentido de 60
Tarski”. Essas posições, contudo, apresentam dois problemas, e confesso que tenho dúvidas sobre a posição de Sir Karl em relação ao primeiro deles. Dizer, por exemplo, de uma teoria de campo que ela “está mais perto da verdade” do que uma teoria mais velha de matéria-e-força deveria significar, a menos que as palavras esteja m sendo usadas de maneira estranha, que os constituintes finais da natureza são mais parecidos com campos do que com matéria e força. Mas nesse contexto ontológico está longe de ser claro o modo com que se há de explicar a expressão “mais parecido”. A compa ração de teorias históricas não indica que suas ontologias se estão aproximando de um limite: de alguns modos fundamentais a relatividade geral de Einstein se parece mais com a física de Aristóteles do que com a de Newton. De qualquer maneira, a evidência da qual se acerca de um limitedas ontológico não é a comparação dasdevem teoriastirar em conclusões seu todo senão a comparação suas conseqüências empíricas. Este salto é importante, sobretudo em face do teorema segundo o qual qualquer conjunto finito de conseqüên
60. Popper, Conj ectur es and Rejutati ons , 1963, capítulo 10, sobretudo a p. 232; e, neste vol um e, p. 69; o grifo é meu.
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cias de determinada teoria pode ser derivado de outro conjunto incompatível. A outra dificuldade, mais fundamental, é enfatizada pela referência de Sir Karl a Tarski. A concepção semântica da verdade é regularmente sumariada no exemplo: “A neve é branca” é verdade se e somente se a neve é branca. Para aplicar essa concepção na comparação de duas teorias, preqisamos supor, portanto, que seus proponentes concordam acerca dos equivalentes t écnicos de coisas práticas, como o saber se a neve é branca. Se essa suposição se referisse exclusivamente à observação objetiva da natureza, não apresentaria problemas insuperáveis, mas ela envolve também a suposição de que os observadores objetivos em apreço compreendem “a neve é branca” da mesma maneira, assunto que poderá não ser óbvio se a sentença tiver o seguinte teor: “os elementos combinam-se em cons tante proporção pelo peso”. Sir Karl considera como necessariamente verdadeiro que os proponentes de teorias concorrentes compartilhem de uma linguagem neutra adequada à comparação desses relatos de observação. Estou prestes a afirmar que eles não o fazem. Se eu estiver certo, tanto “verdade” como “prova” podem ser termos de aplicações apenas intrateóricas. Enquanto não se resolver o problema de uma linguagem neutra de observação, a confusão será perpetuada pelos que assinalam (como o faz Watkins quando responde aos meus reparos rigorosamente paralelos acerca de “equívocos” 51 ) que o termo é regularmente usado como se a transferência de contextos intrateórico s para contextos interteóricos não fizesse diferença.
6.
INCOMENSURABILIDADE E PARADIGMAS
Chegamos, afinal, à constelação central de questões que me separam da maioria dos meus críticos. Lamento a extensão da jornada até este ponto mas só aceito uma responsabilidade parcial pelos obstáculos que foi preciso tirar do caminho. Infelizmente, a necessidade de relegar essas questões à seção final resulta num tratamento relativamente apressado e dogmático. Só posso esperar isolar alguns aspectos do meu ponto de vista, para os quais meus críticos fizeram vista grossa ou que puseram de lado, e fornecer motivos para novas leituras e discussões .
61. Neste vol um e, p. 35, nota de pé de página n.° 3.
A comparação ponto por ponto de duas teorias sucessivas exige uma linguagem em que pelo menos as conseqüências empíricas de ambas possam ser traduzidas sem perda nem alteração. Pelo menos desde o século XVIII, quando os filósofos supunham a neutralidade dos relatos de sensação pura e buscavam um “caráter universal” que expusesse todas as linguagens para expressá -las em uma só, muita gente tem presumido que é fácil encontrar uma linguagem dessa natureza. Idealmente, o vocabulário primitivo de uma linguagem assim consistiria em termos de dados-dos-sentidos puros acrescidos de conetivos sintáticos. filósofos aagora a esperança alcançar esse ideal, mas muitosOscontinuam suporabandonaram que as teorias podem serdecomparadas mediante recurso a um vocabulário básico que consiste inteiramente em palavras ligadas à natureza de maneiras não-problemáticas e, na extensão necessária, independentes da teoria. Esse é o vocabulário em que se estruturam os enunciados básicos de Sir Karl. Ele o exige a fi m de comparar a verossimilhança de teorias alternativas ou mostrar que uma é “mais ampla” do que a predeces - sora (ou a inclui). Feyerabend e tu argumentamos exaustivamente que não se encontra um vocabulário nessas condições. Na transição de uma teoria para a teoria seguinte as palavras alteram seus significados ou condições de aplicabilidade de maneiras sutis. 02 Conquanto a maioria dos mesmos sinais seja usada antes e depois de uma revolução — como, por exemplo, força, massa, elemento, composto, célula — os modos com que algumas se ligam à natureza modifica- ram-se um pouco. Por isso dizemos que as teorias que se sucedem são incomensuráveis. Nessa escolha do termo “incomensurável” incomodou inúmeros leitores. Se bem não signifique “incomparável" no ca mpo do qual foi tirado, os críti cos têm insistido sistematicamente em que não podemos interpretá-lo literalmente, visto que homens que sustentam teorias diferentes se comunicam e, às vezes, trocam idéias uns com os outros. (i;! E o que é mais importante, os críticos não raro passam da existência observada de tal comunicação, que eu mesmo destaquei, à conclusão de que ela não apresenta problemas essenciais. Toulm in parece con
62. Em seu ensaio intitulado “The Structure of Scientific Revolution s”, de 1964, Shapere critica, em parte com muita propriedade, o modo com que discuto a mudança de significado em meu livro. No processo ele me desafia a especificar o “saldo” entre uma mudança de significado e uma alteração na aplicação de um termo. Devo dizer que, no estado atual da teoria do significado, não há nenhuma. Pode-se defender o mesmo ponto usando qualquer um dos termos. 63.
Veja, por exemplo, neste voi um e, pp. 54-5.
329
tentar- se com admitir “incongruências conceituais” e depois prosse guir como ,i4 antes. Lakatos insere entre parênteses a frase “ou de reinterpretações semânticas” quando nos diz como comparar teo rias sucessivas e (i r conseqüentemente trata a comparação como puramente lógica. ’ Sir Karl exorcisa a dificuldade de um modo que tem um interesse especial: “É apenas um dogma — um dogma perigoso — o que estatui que os diversos referenciais são como linguagens mutuamente intraduzíveis . O fato é que nem línguas totalmente dife rentes (como o inglês e o hopi, ou o chinês) são intraduzíveis, e que existem inúmeros índios ou chineses que aprenderam a dominar per feitamente o inglês.” 66 Aceito a utilidade, aceito até a importância do paralelo lingüístico e por isso me estenderei um pouco sobre ele. Presume-se que Sir Karl o aceite também, visto que se utiliza dele. Se o aceita, o dogma à que faz objeção não é que os referenciais são como as linguagens, senão que as linguagens são intraduzíveis . Mas nunca ninguém acre ditou que o fossem! O que as pessoas têm acreditado, e o que toma importante o paralelo, é que as dificuldades para aprender uma segunda língua diferem das dificuldades da tradução e são muito menos problemáticas do que elas. Embora precisamos conhecer duas línguas para poder traduzir o que quer que seja, e embora a tradução sem pre possa ser levada a cabo até certo ponto,Ele aprteráesenta não raro,osgraves dificuldades até para o mais competente poliglota. de encontrar melhores compromissos disponíve is entre objetivos incompatíveis. Há que preservar os matizes, mas não ao preço de sentenças tão longas que se rompa a comunicação. A literalidade é desejável mas deixará de sê-lo se exigir a introdução de muitas palavras estrangeiras que tenham de ser discutidas separadamente num glossário ou apêndice. Para as pessoas profundamente comprometidas com a precisão e com a felicidade de expressão, ao mesmo tempo, a tradução é penosa, e algumas não conseguem fazê-la de maneira alguma. A tradução, em suma, sempre envolve compromissos que alteram a comunicação. O tradutor precisa decidir quais são as alterações aceitáveis. Para fazê-lo, cumpre-lhe conhecer os aspectos do srcinal que importa preservar e alguma coisa sobre a cultura e a experiência dos que lerão a sua obra. Não admira, portanto, que
64. N este volu me, p. 55. 65. N este volu me, p. 146. Talvez apenas em razão de sua excessiva brevidade, a outra referência de Lakatos a este problema na p. 222, nota n.° 335, é igualmente pouco útil. 66.
p. 69. N este volu me,
330
seja hoje uma questão profunda e aberta o saber como seria uma tradução perfeita, e até que ponto uma tr adução real pode aproxi- mar-se do ideal. Quine concluiu recentemente que “sistemas rivais de hipóteses analíticas [para a preparação de traduções] podem confor mar-se com todas as disposições da fala e ditar, não obstante, num sem-número de casos, uma tradução inteiramente diferente.. . Duas traduções desse tipo tal vez sejam até manifestam ente contrárias em valor-de- verdade.” fl 7 Não preciso ir muito longe para reconhecer que a referência à tradução isola os problemas que nos levaram, a Feyerabend e a mim, aexistência falar emdeincomensurabilidade, os está resolve. Para mim menos, a traduções sugere que mas esse não recurso à disposição dosaocientistas que esposam teorias incomensuráveis. O recurso, contudo, não precisa ser o pleno reenunciado numa lingua gem neutra das próprias conseqüências das teorias. Subsiste o problema da comparação de teorias. Por que a tradução, seja entre teorias, seja entre linguagens, é tão difícil? Porque, como tem sido freqüentemente observado, as linguagens cortam o mundo de maneiras diferentes, e não temos acesso a um meio sublingüístico neutro de relatar. Quine mostra que, embora o lingüista empenhado numa tradução radical possa descobrir prontamente que o seu informante nativo pronunciou a palavra “Ga - vagai” por ter visto u m coelho, é mais difícil descobrir “espécie como “Gavagai” deve ser de traduzido. o lingüista vertêou por -la por “coelho”, de coelho”, “parte coelho”,Deverá “ocorrência de coelho", outra expressão que ele talvez nem tenha pensado em formular? Ampliamos o exemplo supondo que, na comunidade que está sendo examinada, os coelhos mudam de cor, de comprimento de pelo, de jeito característico de andar, etc., durante a estação chuvosa, e que o seu aspecto nessa época gera o termo “Bavagai'’. Deverá o termo “Bavagai” traduzir -se por “coelho molhado”, “coelho peludo”, “coelho manco”, tudo isso junto, ou deverá o lingüista concluir que a comunidade nativa não reconheceu que “Bavagai” e “Gavagai” se referem ao mesmo animal? A evidência relativa a uma escolha entre as alternativas emergirá da investigação adicional, e o resultado será uma hipótese analítica razoável com implicações para a tradução de outros termos também. Mas isso é apenas uma hipótese (nenhuma das alternativas, há pouco consideradas, precisa estar certa); o resultado de qualquer erro podem ser dificuldades ulteriores de comunicação; quando elas ocorrem, não se sabe se o problema é com a tradução e, assim, onde se encontra a raiz da dificuldade.
67.
Quine, Wor d and Object,
1960, pp. 73 e seguintes.
331
Esses exemplos dão a entender que um manual de tradução encerra inevitavelmente uma teoria, que oferece os mesmos tipos de recompensa, mas também tende a correr os mesmos riscos que as demais teorias. Para mim eles sugerem também que a classe dos tradutores tanto inclui o historiador da ciência quanto o cientista que tenta comunicar-se com um colega que abraça uma teoria diferente. B8 (Note-se, todavia, que os motivos e sensibilidades correlatas dos cientistas e historiadores são muito diferentes, o que explica inúmeras diferenças sistemáticas em seus resultados.) Eles têm com freqüência a vantagem inestimável de serem idênticos, ou quase, os sinais usados nas duas linguagens, de funcionar a maioria deles da mesma maneira em ambas as linguagens, e de haver, onde a função se modificou, razões informativas para conservar o mesmo sinal. Mas essas vantagens acarretam desvantagens, ilustradas não só no discurso científico como também na história da ciência. Tornam excessivamente fácil ignorar as mudanças funcionais, que seriam aparentes se fossem acompanhad as da mudança de sinais. O paralelo traçado entre a tarefa do historiador e a do lingüista acentua um aspecto da tradução com que Quine não lida (nem precisa lidar) e que tem 69 causado transtornos aos lingüistas. Ao ensinar a física aristotélica a estudantes, mostro sistematicamente que a matéria (na Física, não na Metafísica ), justamente por causa da sua onipresença e da sua neutralidade qualitativa, é um conceito fisicamente dispensável. O que povoa o universo aristotélico, explicando-lhe, a um tempo, a diversidade e a regularidade, são as “naturezas” ou “essências” imateriais; o paralelo apropriado à tabela periódica contemporânea não são os quatro elementos aristotélicos, mas o quadrângulo de quatro formas fundamentais. De maneira semelhante, ao ensinar o desenvolvimento da teoria atômica de Dalton, assinalo que ela indicava uma nova concepção da combinação química, disso resultando que a linha que separa os objetos de refe rência dos termos “mistura” e “combinação” se modificava; as 70 ligas eram combinações antes de Dalton, misturas depois. Tais observa
68. Algumas dessas idéias a respeito de tradução foram desenvo lvidas em meu seminário de Princeton. Não posso agora distinguir minhas contribuições das dos estudantes e colegas que participaram do citado seminário. Um ensaio da autoria de Tyler Burge foi, entretanto, particularmente útil. 69. Veja sobretudo Nida, “Linguistics and Ethnology in Translation -Pro- blems”, 1964. Sinto-me muito grato a Sarah Kuhn por haver chamado minha atenção para esse ensaio. 70.problemas Esse exemplo deixa ticularmente a inadequação da sugestão de Scheffle r de que os levantados porpar Feyerabend e porclara mim desa
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ções fazem parte da minha tentativa de traduzir teorias mais velhas em termos modernos, e meus alunos interpretavam materiais que deviam ser traduzidos, se bem já existisse uma tradução inglesa, de maneira caracteristicamente diferente depois das minhas observações do que o faziam antes. Pela mesma razão, um bom manual de traduçã o, sobretudo para a língua de outra região e cultura, deve incluir parágrafos discursivo s que expliquem como os nativos encaram o mundo e as espécies de categorias ontológicas que eles desenvolvem. Parte de aprendizagem da tradução de uma linguagem ou de uma teoria consiste em aprender a descrever o mundo em que funcionam a linguagem ou a teoria. Tendo apresentado a tradução para ilustrar a elucidação que se obtém considerando as comunidades científicas como comunidades de linguagem, deixo-a agora por alguns momentos a fim de examinar um aspecto particularmente importante do paralelismo. Ao apr ender uma ciência ou uma linguagem, adqu ire-se via de regra o vocabulário juntamente com uma bateria de generalizações que o apresentam aplicado à natureza. Em nenhum caso, porém, as generalizações encerram mais que uma fração do conhecimento da natureza adquirido no processo de aprendizagem. Grande parte dele está encerrado no mecanismo , seja este qual f or, que se usa para ligar os ter mos à natureza. Tanto a linguagem natural quanto a científica se destinam a descrever o mundo como ele é, e não o mundo que se pode conceber. É verdade que a primeira se adapta à ocorrência inesper ada com maior facilidade do que a última mas. muitas vezes, à custa de longas sentenças e uma sintaxe dúbia. Coisas que não podem ser ditas prontamenlè numa linguagem são coisas que os que a falam esperam não precisar dizer. Se nos esquecemos diss o ou lhe subestimamos a importância é provavelmente porque o inverso não funciona. Podemos descrever prontamente muitas coisas (unicórnio s, por exemplo) que não esperamos ver.
parecem quando se substitui a igualdade-de-significado pela igualdade-de-refe- rência (Scheffler, Science and Subjectivity, 1967, capítulo 3). Seja qual for, a referência de “composto” neste exemplo se modifica. Mas, como o indicará a discussão seguinte, a igualdade-de-referência não está mais livre de dificuldade do que a igualdade-de-significado em qualquer uma das aplicações que nos interessam, a mim e a Feyerabend. Será a referência de “coelho” a mesma de "tipo de coelho” ou de “ocorrência de coelho"? Considerem -se os critérios de individuação e auto-identidade que se ajustam a cada um dos termos. 71. Sobre u m exemplo extenso, veja m eu ensaio de 19 64, intitulado “A Function for Thought Experiments”. Uma discussão mais analítica será en contrada em meu outro ensaio, este de 1972, subordinado ao título “Second Thoughts on
Paradigms”.
333
Como, então, adquirimos o conhecimento da natureza que está inserido na linguagem? Quase sempre pelas mesmas técnicas e ao mesmo tempo que adquirimos a própria linguagem, cotidiana ou científica. Partes do processo são bem conhecidas. As definições de um dici onário dizem -nos alguma coisa a respeito do que significam as palavras e simultaneamente nos informam dos objetos e situações a cujo respeito podemos precisar ler ou falar. No que concerne a algumas dessas palavras aprendemos mais, e no que concerne a outras tudo o que sabemos, ao encontrá-las numa infinidade de sentenças. Em tais circunstâncias, como o demonstrou Carnap, adquirimos leis da natureza e um conhecimento de significados. Com uma definição verbal de dois testes, ambos definitivos, da presença de uma carga elétrica, aprendemos não só o que é possível saber sobre o termo “carga” mas também que um corpo que passa por um teste passará também pelo outro. Tais processos de aprendizagem da natureza da linguagem são, contudo, puramente lingüísticos. Relacionam umas palavras com outras e, assim, só funcionarão se já possuir mos um vocabulário adquirido por um processo não-verbal ou incompletamente verbal. É presumível que essa parte da aprendizagem se faça por ostensão ou por algum desenvolvimento dela, a correspondência direta de palavras ou frases inteiras com a natureza. Se Sir Karl e eu travamos uma disputa filosófica fundamental, esta gira em torno da importância do último tipo de aprendizagem da natureza e da linguagem para a filosofia da ciência. Embora saiba que muitas palavras de que os cientistas precisam, em especial para a formulação de sentenças básicas, são aprendidas por um processo não totalmente lin güístico, ele trata esses termos e o conhecimento adquirido com eles como não-problemáticos, pelo menos no contexto da escolha das teorias. Tenho para mim que Sir Karl passa por alto um ponto pun- damental, o mesmo que me levou a apresentar a noção de paradigmas em minhas Scientific Revolutions. Quando falo em conhecimento engastado em termos e frases aprendidas por um pr ocesso não-lingüístico como a ostensão, estou defendendo o mesmo ponto que meu livro visava defender por meio de reiteradas referências ao papel dos como soluções de problemas, objetos exemplares umaparadigmas ostensão . Quando digo queconcretas esse conhecimento é importante para a de ciência e para a construção de teorias, estou identificando o que a Srta. Masterman acentua acerca de paradigmas ao afirmar que eles “podem funcionar quando a teoria não está presente”. 72 Não é provável, no entanto,
72. Neste vol um e, p. 80.
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que esses laços se tornem aparentes para quem quer que tenha levado a noção de paradigma menos a sério do que a Srta. Masterman, pois, como ela própria enfatiza com muita propriedade, tenho usado o termo de maneiras diferentes. Para descobrir qual é a maneira atual, farei uma breve digressão a fim de desenredar confusões , neste caso de minha exclusiva responsabilidade. Na Seção 4, acima, observei que uma nova versão das minhas Scientific Revolutions começaria com uma discussão da estrutura da comunidade. Tendo isolado um grupo de especialistas eu perguntaria em enigmas seguida eo lhes que foi que seus membros partilharam eindividuais, que lhes permitiu solucionar explicou a relativa unanimidade na escolha de problemas e na avaliação de soluções de problemas. Uma das respostas que meu livro sugere para essa pergunta é “um paradigma” ou “um conjunto de paradigmas”. (Este é o sentido sociológico do termo da Srta. Masterman.) Eu preferiria agora empregar outra expressão, talvez “matriz disciplinar”: “disciplinar” por ser comum aos que praticam uma disciplina especificada; e “matriz” por consistir em elementos ordenados que requerem especificação individual. Todos os objetos de compromisso descritos em meu livro como para digmas, partes de paradigmas ou paradigmáticos encontrariam um lugar na matriz disciplinar, mas não seriam reunidos como paradigmas, individual ou coletivamente. Entre eles haveria: generalizações simbólicas partilhadas, como “/ = ma", ou “elementos se combinam em constante proporção pelo peso”; mo delos partilhados, quer metafísicos, como o atomismo, quer heurísticos, como o modelo hidrodinâmico do circuito elétrico; valores partilhados, como o destaque dado à precisão da predição, discutida acima; e outros elementos dess e gênero. Entre os últimos, eu enfatizaria em particular as soluções de problemas concretos, os tipos de exemplos comuns de problemas solucionados que os cientistas encontram em laboratórios enquanto estudantes, nos problemas que rematam capítulos de textos científicos e nos exames. Se pudesse, eu chamaria paradigmas a essas soluções de problemas, pois foram elas que me levaram a escolher o termo em primeiro lugar. Tendo, porém, perdido o controle da pa lavra, eu os descreverei, 7: i
daqui por diante, como exemplares.
73. Esta modificação e quase tudo o mais do que resta neste ensaio são discutidos com maiores detalhes e com maior evidência em meu ensaio de 1972, "Second Thoughts on Paradigms”. Remeto a ele os leitores até para referências bibliográficas. Cabe aqui, no entanto, um reparo adicional. A alteração que acabo de esboçar em meu texto priva-me do recurso às expressões “período pré -paradigmático” e “período pós -paradigmático" quando descrevo 335
De ordinário, as soluções de problemas desta espécie são vistas como meras aplicações da teoria já aprendida. O estudante as faz para praticar, para adq uirir facilida de no emp rego do que já sabe. Essa descrição é válida, sem dúvida, depois que tiver sido resolvido um número suficiente de problemas, mas nunca no começo. Resolver prob lema s é aprender a lingua gem de uma teoria e adq uirir o conhe cimento da natureza imerso nessa linguagem. Em mecânica, por exemplo, muitos problemas envolvem aplicações da Segunda Lei de Newton, normalmente enunciada como “/ = ma". Essa expressão simbólica, no entanto, é mais o esboço de uma lei do que uma lei. Precisa ser reescrita numa forma simbólica diferente a cada problema especial antes que se lhe apliquem a dedução lógica e a matemática. Para a queda livre ela se torna
md²s mg = ______; para o pêndulo é dt²
mg
d²Ø ; para osciladores harmônicos conjugados Sen Ø = — ml ______ dt² transforma-se em duas equações, a primeira das quais pode ser escrita da seguinte maneira:
mg
e assim por diante. Como me fal ta espaço para desenvolv er um argumento, limit ar- me -ei a afirmar que os físicos compartilham de poucas regras, explí citas ou implícitas, com as quais operam a transição do esboço de lei para as formas simbólicas específicas exigidas pelos problemas individuais. Ao invés disso, a exposição a uma série de soluções de problem as exemplares os ensina a ver diferentes situações físicas co -
a maturação de uma especialidade científica. Visto retrospectivamente, isto me parece muito bom, pois em ambos os sentidos do termo, todas as comunidade s cientí ficas sempre possuíram paradigmas, incluindo as escolas do que deno minei anteriormente “período pré- paradigmático”. O fato de não ter eu podido ver antes esse ponto ajudou por certo a dar ao paradigma um aspecto de entidade ou propriedade quase mística, que, como o carisma, transforma os que ele contamina. Note-se, contudo, como o indica a Seção 3, que essa alteração na terminologia não modifica de maneira alguma minha descrição do processo de maturação. Os primeiros estádios do desenvolvimento da maioria das ciências caracterizam-se pela presença dc certo número de escolas concorrentes. Mais tarde, geralmente em decorrência de uma notável realização científica, todas essas escolas, ou o maior número delas, desaparecem, e a mudança faculta aos membros da comunidade restante um comportamento profissional muito mais vigoroso. As observações da Srta. Masterman (mais acima, pp. 85-88) sobre todo esse problema me portem muito válidas.
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mo parecidas umas com as outras; elas são vistas, se vocês quiserem, numa gestalt newtoniana. Depois que os estudantes adquirem a capacidade de ver assim certo número de situações de problemas, podem escrever ad libitum as formas simbólicas exigidas por outras situações dessa natureza à medida que surgem. Antes de tal aquisição, entretanto, a Segunda Lei de Newton era para eles pouco mais que uma seqüência de símbolos não interpretados. Embora a partilhassem, não sabiam o que sign ificava e ela, portanto, pouco lhes dizia a respeito da natureza. Mas o que ainda lhes restava aprender não se achava incorporado em formulações simbólicas adicionais. Isso se logrou atra vés de um processo como a ostensão, a exposição direta a uma série de situações, todas newtonianas. Ver situações de problemas semelhantes umas às outras, sujeitas à aplicação de técnicas similares, é também parte im portante do tra balho científico normal. Vejamos um exemplo ilustrativo. Galileu descobriu que uma bola que rola por um plano inclinado adquire exatamente a velocidade suficiente para voltar à mesma altura vertical num segundo plano inclinado de inclinação qualquer, e aprendeu a ver essa situação experimental como semelhante ao pêndulo cujo peso é a massa de um ponto. Huyghens entã o resolveu o problema do centro de oscilação de um pêndulo físico imaginando o corpo estendido deste último composto de pêndulos de pontos de Galileu, cujos elos poderiam ser liberados em qualquer ponto da oscilação. Liberados os elos, os pêndulos de pontos individuais oscilariam livremente, mas o seu centro coletivo de gravidade, quando cada qual estivesse no ponto mais alto, estaria a uma altura que seria igual à altura do centro de gravidade do pêndulo primitivo quando este começou a cair. Finalmente, Daniel Bernoulli, ainda sem nenhuma ajuda das Leis de Newton, descobriu como fazer que o fluxo de água de um orifício no tanque de armazenagem se assemelha ao pêndulo de Huyghens. Determina-se a descida do centro de gravidade da água no tanque e do jato durante um período infinitesimal de tempo. Ima- gine-se, a seguir, que cada partícula de água se move separadamente para cima até alcançar à máxima altura com a velocidade que possuíaseparadas no fim do intervalo de descida. subida dodocentro de de gragravidade partículas deve então igualar A a descida centro vidade dadas água no tanque e do jato. Dessa visão do problema seguiu- se de pronto a longamente procurada velocidade do efluxo. Esses exemplos mostram o que a Srta. Masterman tem em mente quando diz que um paradigma é fundamentalmente um artefato que transforma problemas em enigmas e permite que sejam resolvidos até na ausência de um corpo adequado de teoria.
337
Está claro que estamos de volta à linguagem e a sua ligação com a natureza? Somente uma lei foi usada em todos os exemplos precedentes. Conhecida como o Princípio da vis viva, era geralmente enunciada como “A descida real iguala a subida potencial”. O exa me dos exemplos é uma parte essencial (embora apenas uma parte) da aprendizagem do que significam individual e coletivamente as palavras dessa lei, ou da aprendizagem do modo com que se ligam à natureza. É igualmente uma parte da aprendizagem de como se comporta oso problemas mundo. Asdos duas não podem O mesmo papel duplo representam compêndios em separar-se. que os estudantes aprendem, por exemplo, a descobrir forças, massas, acelerações na natureza, e no processo descobrem o que significa “/ = ma” e como se liga à natureza e legisla sobre ela. É claro que em nenhum desses casos os exemplos funcionam sozinhos. O estudante precisa conhecer matemática, um pouco de lógica e, acima de tudo, a linguagem natural e o mundo a que ela se aplica. Mas o último par foi aprendido em extensão considerável, da mesma maneira, por uma série de ostensões que o ensinaram a ver sua mãe sempre igual a si mesma e diferente de seu pai e da irmã, e que o ensinaram a ver cães semelhantes uns aos outros e diferentes dos gatos, etc. Essas relações aprendidas de similaridade são as que todos desenvolvemos dia após dia, não-problematicamente, mas sem poder nomear as características pelas quais fazemos as identificações e discriminações. Isto é, são anteriores a uma lista de critérios que, reunidos numa generalização simbólica, nos permitiriam definir nossos termos. São, antes, partes de um modo de ver o mundo condicionado pela linguagem ou correlacionado com ela. Enquanto não as tivermos adquirido, não veremos mundo algum. Sobre um relato menos apressado e mais desenvolvido desse aspecto do paralelo entr e a teoria e a linguagem remeterei os leitores ao ensaio anteriormente citado do qual foi tirada muita coisa que figura nos último parágrafos. Entr etanto, antes de voltar ao problema da escolha de teorias, preciso pelo menos expor o ponto prin cipal defendido, por aquele ensaio. Quando falo em aprendizagem da linguagem e da natureza por ostensão e, sobretudo, quando falo em aprendizagem do agrupamento dos objetos de percepção em conjun tos de similaridade sem responder a perguntas como, “semelhante com respeito ao quê?”, não me refiro a algum processo místico que possa ser coberto pelo rótulo de “intuição” para ser depois deixado em paz. Ao contrário, a espécie de processo que tenho em mente pode ser modelado num computador e, assim, comparado com o modo mais familiar de aprendizagem que recorre a critérios, em lugar
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de recorrer a uma relação aprendida de similaridade. Estou agora nos primeiros estágios desse tipo de comparação, e espero, entre outras coisas, descobrir algo a respeito das circunstâncias em que cada uma das duas estratégias opera com maior eficácia. Em ambos os programas o computador receberá uma série de estímulos (modelados como conjuntos ordenados de números inteiros) juntamente com o nome da classe em que cada estí mulo f oi escolhido. No programa de aprendizagem do critério a máquina recebe instruções para abstrair critérios que lhe permitam classificar estímulos adicionais e pode, depois, descartar-se do conjunto srcinal com o qual aprendeu a fazer o serviço. No programa de aprendizagem da similaridade, a máquina, ao invés disso, recebe instruções para reter todos os estímulos e classificar cada estímulo novo através de uma comparação global com os exemplares reunidos que já encontrou. Ambos os programas funcionarão, mas não darão resultados idênticos. Diferem em muitos dos mesmos modos e por muitas das mesmas razões por que a jurisprudência difere da lei codificada. Uma das minhas afirmativas, portanto, é que nós ignoramos durante muito tempo a maneira com que o conhecimento da natureza pode ser tacitamente incorporado em experiên cias totais sem que in - tervenha a abstração de critérios ou de generalizações. Tais experiências nos são apresentadas no correr da educação e da iniciação profissional por uma geração que já as conhece como exemplares. Assim ilando um número suficiente de exemplares, aprendemos a re conhecer e a trabalhar com o mundo com que nossos professores já estão familiarizados. Minhas principais aplicações anteriores dessa afirmação têm sido, naturalmente, à ciência normal e à maneira com que ela é alterada pelas revoluções, mas vale a pena notar aqui uma aplicação adicional. O reconhecimento da função cognitiva de exemplos também pode remover a eiva de irracionalidade de minhas observações anteriores a propósito das decisões que descrevi como tendo uma base ideológica. Em face de exemplos do que faz uma teoria científica e obrigados por valores partilhados a continuar fazendo
-
ciência, não precisamos decaso critériosdepara descobrir que alguma coisa ainda saiu err ou para fazer escolhas em conflito. Ao contrário, embora me falte ada uma prova cabal, acredito que uma das diferenças entre meus programas de similaridade e meus programas de critérios será a eficiência especial com que os primeiros lidam com situações dessa ordem. Levando em conta essas observações, voltemos afinal ao problema da escolha de teorias e ao recurso oferecido pela tradução.
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Uma das coisas de que depende a prática da ciência normal é a capacidade aprendida de agrupar objetos e situações em classes primitivas de similaridade, primitivas no sentido de que o agrupamento se faz sem responder à pergunta, “similar em relação ao quê?” Um aspecto de todas as revoluções é que, nesse caso, mudam algumas relações de similaridade. Objetos que estavam antes agrupados no mesmo conjunto agrupam-se depois em conjuntos diferentes e vice- -versa. Pensem no Sol, na Lua, em Marte e na Terra antes e depois de Copérnico; na queda livre, no movimento pendular e no movimento planetário antes e depois de Galileu; ou em sais, ligas e numa mistura de enxofre e limalhas de ferro antes e depois de Dalton. Visto que a maioria dos objetos até mesmo dentro dos conjuntos alterados continua a ser agrupada junta, preservamse em geral os nomes dos conjuntos. Não obstante, a transferência de um subconjunto pode influir crucialmente na trama de relações recíprocas entre os conjuntos. A transferência dos metais do conjunto da combustão, da acidez e da diferença entre a combinação física e a química. Essas mudanças se espalharam imediatamente por todo o ca mpo da química. Quando ocorre uma redistribuição dessa natureza de objetos entre conjuntos de similaridade, dois homens cujo discurso se processou por algum tempo com uma compreensão aparentemente total poderão ver-se, de repente, respondendo ao mesmo estímulo com descrições ou generalizações incompatíveis. Só porque nenhum deles pode dizer, então, “Emprego a palavra elemento (ou mistura, ou planeta, ou movimento irrestrito) em obediência a tais e tais critéri os”, a srcem do colapso da comunicação entre eles poderá ser extraordinariamente difícil de isolar e contornar. Não quero dizer que não haja um recurso em situações seme lhantes, mas antes de perguntar que tipo de recurso é esse, seja-me permitido enfatizar a profundidade que soem apresentar tais diferenças. Elas não dizem resp eito apenas a nomes ou à linguagem, mas também e inseparavelmente à natureza. Não podemos dizer sequer com segurança que os dois homens vêem a mesma coisa e possuem os mesmos dados, mas os identificam ou interpretam de maneira diferente. O que estão respondendo diferentemente são estímulos, e os estímulos recebem muito processamento nervoso antes de alguma c oisa ser vista ou algum dado ser oferecido aos sentidos. Visto sabermos agora (o que Descartes não sabia) que a correlação entre o estímulo e a sensação não é biunívoca nem independe da educação, podemos razoadamente suspeitar que ela varia entre uma comunidade e outra, correlacionando-se a variação com as diferenças corres
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pondentes na interação entr e a natureza e a linguagem. As espécies de colapsos da comunicação que agora estão sendo consideradas são provavelmente evidência de que os homens envolvidos processam certos estímulos de maneira diferente, recebendo deles dados diferentes, vendo coisas diferentes ou as mesm as coisas diferentemente. Eu mesmo considero provável que muita coisa do agrupamento de estímulos em conjuntos de similaridade, ou todo ele, ocorre na porção estí mulo- -para-sensação do nosso aparelho de processamento nervoso; que a programação educacional desse aparelho ocorre quando nos são apresentados estímulos que nos afirmam emanar de membros da mesma classe de similaridade ; e que, completada a programação, reconhe ce mos, digamo s, gatos e cães (ou coligimos forças, massas e coerções) porque eles (ou as situações em que aparecem) se assemelham, pela prime ira vez, aos exemplos que vimos antes. Apesar disso, é necessário que haja um recurso. Conquanto não tenham acesso direto a eles, os estímulos a que respondem os participantes do colapso da comunicação são os mesmos, sob pena de soli- psismo. Como é o mesmo o seu aparelho nervoso geral, por mais diferente que seja a programação. Além disso, com exceção de uma área de experiência pequena, mas importantíssima, a programação precisa ser a mesma, pois os homens envolvidos compartem de uma história (excetuando-se o passado imediato), de uma linguagem, de um mundo cotidiano e, em sua maioria, de um mundo científico. Conhecendo o que partilham, podem descob rir muita coisa tocante às suas diferenças. Pelo menos poderão fazê-lo se ti verem suficiente vontade, paciência e tolerância da ambigüid ade ameaçadora, características que, em assuntos desse tipo, não podem ser consideradas necessariamente verdadeiras. Com efeito, as espécies de esforços terapêuticos, para os quais me volto agora, raro são levados muito longe por cientistas. Em primeiro lugar, e o que é mais importante, os homens que experimentam o colapso da comunicação podem descobrir por experiência — às vezes pela experiência do pensamento, ciência de poltrona — a área em que ele ocorre. Muitas vezes o centro lingüístico da dificuldade envolve um conjunto de termos, como elemento e composto, que ambos os homens desenvolvem de maneira não-problemá- tica, mas que ligam à natureza, como pode ser visto agora, de maneiras diferentes. Para cada um deles, estes termos pertencem a um vocabulário básico, pelo menos no sentido de que o seu uso normal intragrupal não gera discussões, nem pedidos de explicações, nem divergências. Tendo descober to, porém, que para a discussão intergrupal essas pa
lavras são o centro de dificuldades especiais, nossos homens recorrem aos vocabulários cotidianos partilhados numa tentativa adicional de elucidar dificuldades . Isto é, ca da qual tenta descobrir o que outro veria e diria quando se lhe apresentasse um estímulo ao qual sua resposta visual e verbal fosse diferente. Com tempo e habilidade, eles podem aprender muito sem a predizer a conduta do outro, coisa que o historiador aprende a fazer (ou deveria aprender) quando lida com teorias científicas mais velhas. O que os um colapso naturalmente, foi participantes um modo de detraduzir a teoriadaumcomunicação do outro emdescobriram, sua própria linguagem e, simultaneamente, descrever o mundo a que essa teoria ou essa linguagem se aplicam. Sem dar, ao menos, alguns passos preliminares nessa direção, não haveria processo que nos sentiríamos sequer tentados a descrever como escolha de teorias. A única coisa que estaria envolvida seria a conversão arbitrária (se bem eu duvide da existência de uma coisa dessas em qualquer aspecto da vida). Note-se, contudo, que a possibilidade de tradução não torna inade quado o termo “conversão”. Na ausência de uma linguagem neutra, a escolha de uma nova teoria é a decisão para adotar uma linguagem nativa diferente e desenvolvê-la num mundo correspondentemente diferente. A essa espécie de transição, entretanto, não se ajustam muito bem os termos “escolha” e “decisão”, embora sejam claras a s razões para desejar aplicá-los após a transição. Explorando uma teoria alternativa por meio de técnicas como a que acima se esboçou, é provável descobrirmos que já a estamos usando (como notamos, de repente, que estamos pensando numa língua estrangeira, e não a estamos traduzindo). Em ponto algum tivemos consciência de haver chegado a uma decisão, de haver feito uma escolha. Esse tipo de mudança, no entanto, é conversão, e as técnicas que a induzem bem podem sei descritas como terapêuticas, ainda que seja só por ficarmos sabendo, quando dão certo, que estávamos doente s. Não admira que haja re sistência às técnicas e que a natureza da mudança seja disfarçada em relatos subseqüentes .
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