Neuropsicologia: breve história e a atuação do neuropsicólogo
ARIANE BIZZARRI COSTA PIRES
“Quem não sabe o que procura não sabe interpretar o que acha.” Claude Bernard, fisiologista francês
O interesse e a curiosidade pelo funcionamento cerebral e sua relação com comportamento permeiam a história desde períodos mais remotos. Há diversos momentos históricos que retratam as primeiras investigações cerebrais. No período mesolítico era comum um ato chamado trepanação, que corresponde a perfurações no crânio com objetos pontiagudos. Naquela época, acreditavase que pessoas com transtornos mentais apresentavam comportamentos diferentes das demais, pois havia com elas um “mau espírito” e que por meio do ato de abrir o crânio (trepanação) esse espírito seria retirado. É importante lembrar que essas primeiras cirurgias foram realizadas sem nenhum tipo de anestesia e cuidados médicos resultando em hemorragias, muitas vezes, incontroláveis. Em museus geológicos podemos encontrar crânios com perfurações, sugerindo a prática da trepanação. Em algumas tribos africanas foram praticados rituais de trepanação sem recursos tecnológicos. A cultura egípcia também se destaca por meio de rituais, como a da mumificação, contribuindo com consideráveis investigações no campo do neuroanatomia. Nesse período já era muito comum a ocorrência de epilepsia em razão da grande incidência em casamentos consanguíneos. Nesse contexto também acreditava-se que a epilepsia era decorrente de “maus espíritos”. Pensadores gregos, como Pitágoras, Platão, Hipócrates e Aristóteles, contribuíram com diversas teorias e, no decorrer da história, surgiram inúmeros estudos importantes sobre as relações entre cérebro e comportamento. Entre eles, podemos destacar Franz J. Gall, Paul Broca, Wernicke, Vigotsky, entre outros. A Neuropsicologia está inserida no campo das neurociências que engloba o estudo da neuroanatomia, neurofisiologia, neuroquímica e as ciências do comportamento. No geral, a neuropsicologia compreende o estudo do sistema nervoso e suas ligações com toda a fisiologia do organismo, incluindo a relação entre cérebro e comportamento. A literatura nos mostra que a neuropsicologia se originou da convergência da neurologia com a psicologia
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com o objetivo de compreender aspectos comportamentais resultantes de lesões cerebrais. Hoje sabemos que é uma ciência interdisciplinar, sendo assim a atuação não é apenas do psicólogo. Profissões como fonoaudiologia, terapia ocupacional, pedagogia, fisioterapia, biologia, entre outras, integram a atuação. Nessa área é muito trabalhado o conceito de neuroplasticidade: uma capacidade do sistema nervoso central de se reestruturar. A neuroplasticidade ocorre, por exemplo, em processos de aprendizagem em que há alterações de sinapses (ligações entre os neurônios) para que seja possível gravar uma informação nova e integrar com outra. Podemos pensar também na presença de lesões cerebrais, nesse caso como tentativa de integrar funções similares ou recuperar uma função cognitiva é que ocorre a neuroplasticidade. Na atuação, o profissional da psicologia pode trabalhar desde dificuldades de aprendizagem com crianças até em processos demenciais com idosos buscando o diagnóstico e as formas de intervenções. O neuropsicólogo clínico pode atuar com avaliação e reabilitação neuropsicológica, além de contribuir, caso seja seu interesse, com produções científicas acerca de suas pesquisas e resultados de suas avaliações. Desde sua origem, a neuropsicologia é muito mais experimental do que psicométrica, com tarefas e conceitos que auxiliam na interpretação de processo. Nos últimos anos, conhecimentos de psicometria têm sido agregados à área, aumentando consideravelmente a qualidade das avaliações, mas sua base é essencialmente experimental e teórica, exigindo raciocínio clínico interpretativo. Os testes neuropsicológicos têm contribuído para interpretações cognitivas, mas a atuação neuropsicológica exige conhecimento para a interpretação dos desempenhos obtidos. Alguns pacientes não respondem a testes neuropsicológicos, mas mesmo assim o profissional precisa estar preparado para uma avaliação. Tirapu-Ustárroz (2011) descreve que a atuação do neuropsicólogo clínico se baseia no conhecimento dos déficits
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cognitivos (avaliação) e, a partir disso, no planejamento individualizado para o trabalho na reabilitação. Hoje sabe-se que as funções cognitivas (memória, atenção, por exemplo) atuam em conjunto. Quando realizamos uma tarefa de estudo, por exemplo, que exige nossa atenção concentrada, utilizamos recursos que aprendemos anteriormente para ter uma compreensão do novo conhecimento, acionando áreas cerebrais da memória e da linguagem. É tarefa do neuropsicólogo avaliar o desempenho dessas funções cognitivas. Avaliar é determinar um valor, mensurar ou procurar algo, e dentro da neuropsicologia é um posicionamento teórico e técnico. A partir da avaliação é estabelecido um perfil que auxilia na intervenção ou reabilitação neuropsicológica, esta que pode ser feita pelo psicólogo ou por outro profissional que esteja apto atuar; como exemplo são comuns encaminhamentos para psicopedagogos ou fonoaudiólogos. Além de avaliar e interpretar, é dever do psicólogo a devolutiva, que é feita por meio de um laudo neuropsicológico e de forma oral ao paciente e aos envolvidos no processo. A devolutiva geralmente é a parte mais difícil, pois exige o raciocínio final para um planejamento de intervenção. Como mencionado, uma grande área de atuação do neuropsicólogo é o trabalho com crianças com dificuldades de aprendizagem, que são de ordem pedagógica ou com transtornos de aprendizagem que podem sugerir disfunção do sistema nervoso central. Muitas vezes, além das dificuldades escolares, a criança pode apresentar problemas de comportamento, desmotivação para aprender diante de suas dificuldades, rótulos entre outros. Sendo assim, o profissional pode oferecer auxílio elencando dificuldades e traçando planos de intervenção. Antes de qualquer atuação, é preciso conhecer a verdadeira queixa, realizar uma boa e completa anamnese, entrevistas com familiares; no caso de crianças, entrar em contato com a escola, entender como é o comportamento e sua interação com os demais; em casos de medicações, investigar quais são os possíveis efeitos que possam surgir e
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interferir em bons desempenhos. O neuropsicólogo pode trabalhar com crianças e adolescentes com transtorno de atenção e hiperatividade (TDAH), discalculia (dificuldade com matemática), dislexia do desenvolvimento (dificuldade no reconhecimento de palavras), com alterações nas funções executivas (envolvem planejamento, tomada de decisão, entre outras) na avaliação da linguagem, etc., independentemente do grau de comprometimento ou dificuldade enfrentado pela criança. Nesse campo de atuação o psicólogo pode, por exemplo, usar um jogo psicopedagógico e ter um olhar neuropsicológico sobre aquele instrumento; o conhecimento técnico e científico é essencial para um bom processo. A partir da emissão do comportamento, o profissional precisa saber interpretar as respostas do ponto de vista neuropsicológico e entender que tipo de processamento o paciente teve para dar aquela resposta, saber quais áreas cerebrais são ativadas com a aplicação de testes ou outras técnicas e, se necessário, quais áreas cerebrais estão comprometidas por meio de exames de neuroimagem. Déficits cognitivos podem ocorrer em crianças que apresentam um desenvolvimento normal e podem interferir negativamente em suas atividades diárias cujos sintomas mais comuns são: fácil distração, problemas de organização, de perseveração, prejuízo na abstração, baixa flexibilidade mental, dificuldades em compreensão e lentidão na realização de tarefas. Já em atividades escolares as dificuldades mais comuns são: dificuldades na pronúncia e escrita de palavras, em leitura, na organização dos sentidos de um texto, na realização de cálculos que, muitas vezes, pode ocorrer não por um déficit cognitivo, mas por uma fobia chamada ansiedade matemática, definida com um sentimento de tensão perante a atividade, na qual a criança pode apresentar ansiedade, sudorese, fuga e pensamentos ruminativos, sinalizando sua visão de baixa eficácia, dificuldades em atividades motoras finas e todas essas dificuldades interferem no rendimento escolar e consequentemente no funcionamento socioemocional.
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Todo diagnóstico clínico é feito por meio de critérios comportamentais, cognitivos e de exclusão. Quando falamos em diagnósticos na infância, é preciso uma maior cautela, pois a criança está em fase de desenvolvimento e pode apresentar melhorias nas habilidades que aparentemente poderiam levar a um quadro diagnóstico. Na infância, em muitos casos os diagnósticos são trabalhados como hipóteses diagnósticas e reavaliadas após um período para verificar se os critérios para determinado transtorno ou dificuldade permaneceram, pois diferentemente do adulto, o cérebro da criança ainda tem níveis de maturação a serem atingidos. No entanto, é importante ressaltar que é uma prática errônea subestimar sintomas: se não diagnosticado corretamente, levando-se em conta o tempo da maturação cerebral que a criança ainda terá e que esse sintoma desaparecerá, muitas vezes o prejuízo pode ser maior. Além de não desaparecer pode acarretar outros problemas, principalmente escolares, em se tratando da infância. Dessa forma, destacam-se a importância da qualificação profissional e a correta decisão sobre cada diagnóstico. O psicólogo interessado nessa área deve buscar o conhecimento do desenvolvimento infantil, funções neuropsicológicas, funções neurológicas na infância, neurologia e fisiologia do sistema nervoso central, transtornos de aprendizagem, transtornos psiquiátricos, entre outros, além do conhecimento de manuais de diagnósticos (Classificação Internacional de Doenças – CID-10) e de problemas relacionados à Saúde e (Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais – DSM-5). Além da atuação com crianças e adolescentes, também pode ser trabalhado o auxílio no mapeamento de algumas funções cognitivas específicas em adultos dentro das dificuldades apresentadas. São comuns, por exemplo, queixas de memória e de atenção, e um bom profissional da área estará apto a auxiliar no reconhecimento de possíveis declínios cognitivos e traçar planos de intervenção para melhorar a qualidade de vida desse sujeito, a fim de tentar reduzir possíveis impactos negativos futuros. Outro grande
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campo de atuação do neuropsicólogo é na avaliação de idosos. Nessa fase da vida há declínio de algumas funções cognitivas já esperadas dentro de desenvolvimento humano. Podemos observar a presença de quadros demenciais, entre eles, o Alzheimer, que é um dos mais comuns e que ocorre com maior frequência nessa fase. O Alzheimer é uma doença orgânica que ocorre, geralmente, a partir dos 65 anos, quando a probabilidade de manifestação dos sintomas é maior. Não é uma doença emocional, porém ocorre em comorbidade com outros sintomas, como a depressão. No quadro de Alzheimer há declínio da memória recente e podem ocorrer dificuldades de linguagem, muitas vezes, associadas à memória, dificuldades em troca palavras, na nomeação errada de objetos, na compreensão, em encontrar as palavras, na realização de tarefas básicas diárias e, em alguns casos, em dificuldades no reconhecimento de pessoas, geralmente, as mais próximas (não se recordam dos filhos, por exemplo). É muito comum também problemas com desorientação temporoespacial: não sabe informar em que mês está, onde está ou até mesmo informações básicas sobre si, idade, nome e questões de sua própria identidade. Quando o neuropsicólogo recebe essa população, precisa avaliar se a queixa é mesmo de demência junto com depressão ou se ocorre a depressão sem a demência. Em idosos é comum a queixa de depressão com declínio de memória e é necessário avaliar o tempo das alterações cognitivas. Na depressão geralmente ocorrem primeiro os sintomas emocionais para depois virem à tona as outras queixas. Quando a atuação do neuropsicólogo é feita com rigor e eficiência, é possível detectar sintomas sutis da demência antes mesmo que se atinja um limiar diagnóstico. É importante lembrar que esse declínio ocorre de forma progressiva e gradual. Quando identificados precocemente indícios da doença, ao longo dos anos o profissional da neuropsicologia poderá levantar um perfil cognitivo com as funções cognitivas preservadas e quais apresentam declínio
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e, com outros profissionais como psiquiatrias e neurologistas, auxiliará no diagnóstico e em ações para melhoria na qualidade de vida desse indivíduo. Na atuação com idosos, geralmente as avaliações neuropsicológicas são solicitadas a partir de encaminhamentos médicos. O neuropsicólogo precisa em sua anamnese de relatos de um informante confiável, alguém que conviva com o sujeito ou tenha uma boa relação com o paciente. É comum o uso e escalas que avaliem as atividades diárias desse idoso e muitas vezes a investigação com a ajuda de relatos de alguém que conviva com ele; além das Escalas, são utilizados testes neuropsicológicos como o NEUPSILIN (Fonseca, Salles & Parente, 2009), que realiza uma avaliação global breve e contribui para escolha de outros instrumentos específicos, se necessário. Após a avaliação o profissional trabalhará com a estimulação cognitiva e outras orientações com ajustes necessários como a convivência com um cuidador, encaminhamento para psicoterapia, inserção em atividades de lazer, exercícios físicos, entre outros, de acordo com o que foi identificado no processo e justificado na devolutiva. O neuropsicólogo pode atuar também na avaliação antes e depois de uma neurocirurgia, sendo assim possível documentar o quadro para comparação do pré e póscirúrgico, permitindo investigar as funções cognitivas. Com a avaliação antes e após a cirurgia, o profissional pode evidenciar melhorias ou não em aspectos da cognição. Pode realizar uma avaliação antes de um tratamento psicofármaco e posteriormente para verificar se houve melhorias com a medicação e outros tratamentos recebidos, e ainda atuar com indivíduos saudáveis a fim de elencar potenciais e possíveis prejuízos cognitivos. Há muito a se desenvolver dentro das neurociências. A neuropsicologia vem crescendo e devolvendo instrumentos neuropsicológicos, técnicas, pesquisas científicas, proporcionando novas descobertas e se fortalecendo em atuações para busca de melhorias na relação entre aspectos cognitivos e comportamentais.
REFERÊNCIAS Tirapu-Ustárroz, J. (2011). Neuropsicología: neurociencia y las ciencias “Psi”. Cuadernos de Neuropsicología , 5(1), 11-24. Recuperado de http://pepsic. bvsalud.org/scielo.php?pid=S0718-41232011000100002&script=sci_ arttext. Fonseca, R. P., Salles, J. F. & Parente, M. A. M. P. (2009). Instrumento de Avaliação Neuropsicológica Breve Neupsilin. São Paulo, Brasil: Vetor.
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