que provocou uma enxurrada de lágrimas, foi tema de inspirado sermão na missa do domingo e das conversas em todo lugar pelo resto da semana. Daí para frente foi um desfilar de “O Gordo e o Magro”, “Os Três Patetas”, Mazzaropi, “Os Cangaceiros”, de Lima Lima Duarte, Mickey Mouse, “Cinderela” “Cinderela” e tantos outros na medida em que Juvenal ia descobrindo fornecedores. Na Semana Santa “A Paixão de Cristo” era recomendada do púlpito. Dois anos depois Juvenal negociou um projetor trinta e cinco milímetros e a platéia foi conhecendo os grandes clássicos, os grandes atores e atrizes. O negócio ia muitíssimo bem. O espaço abrigava folgadamente duzentas pessoas. Havia uma sessão no sábado e outra no domingo ambas lotadas. Juvenal amealhava capital e distribuía cultura, lazer e diversão. Foi por essa época que Perilo começou a traduzir as “bulas” dos filmes. As latas dos rolos traziam colada uma etiqueta larga datilografada. Uma tarde na serraria Juvenal mostrou-lhe uma. -
O quê é isso? Você consegue ler o que está escrito aí?
Perilo ajeitou os óculos, tomou a lata nas mãos e meditou uns segundos. -
É inglês, sem dúvida nenhuma. É como se fosse uma bula. Parece que traz informações sobre o filme... Dá para traduzir? Posso tentar...
Na verdade Perilo mal se continha ansioso por correr ao LEP e às suas anotações. Caramba! Uma oportunidade de mostrar seus conhecimentos conhecimentos do idioma. O que estaria escrito ali? Algumas palavras podia reconhecer de pronto, ali mesmo, mas não era o suficiente para compreender o texto. Pediu uma folha de papel e ciosamente tomou nota de tudo em letras de fôrma, bem legíveis. Dobrou com cuidado, enfiou no bolso do paletó, apanhou o chapéu e quase ia saindo sem se despedir, a cabeça já fervendo. Trabalhou naquele dia até tarde da noite debruçado no pedaço de papel, manuseando o caderninho de notas e o LEP, anotando, fazendo conjeturas, tentando obter sentidos. De vez em quando chegava à janela e olhava o céu onde Órion já ia alto e acendia um cigarro soprando a fumaça devagar em direção as estrelas que tremiam no espaço gelado. Depois voltava à carga, obstinado, quase febril. Terminou antes que o galo cantasse três vezes e, não fora madrugada alta, teria saído correndo para a serraria de pijamas. Adormeceu num misto de cansaço e deleite, prêmio do trabalho bem sucedido, repetindo mentalmente o texto traduzido. Quando Escorpião passou no céu Perilo roncava em inglês. Acordou pouco depois do sol. Agitado, enfiou-se rapidamente nas roupas sem cuidar do chuveiro matinal que era hábito velho, nem foi à cozinha fazer o café, nem abriu a farmácia 6
e despencou em quase correria direto para a serraria, onde Juvenal, madrugador, já trabalhava. Foi entrando e, afastando com a mão alguns objetos na mesa, arranjou espaço para abrir orgulhosamente uma folha de papel manuscrita em bonita caligrafia. -
Está aqui: a “bula” traduzida!
Gable is a hard-boiled newspaperman who thinks that those who learned the business in a college don't know what they are writing about. A professor at a local college has asked him to guest-lecture at an evening session, and he writes a scathing letter in response. When his h is boss orders him to comply with the professor's wish, he reluctantly drags himself to the class and walks in late, just in time to hear the teacher, Day, commenting on the letter he's written. Gable figures he'd better just sit there and pretend to be a student. Day's late father was a Pulitzer Prize-winning journalist, and she uses his work as an example for the class. She is dating psychologist Young, but Ga- ble, who is rapidly falling for Day, gets the rival out of the way adroitly. He also helps Day to see the work of her father, whom she idolizes, more realis- tically. Gable continues to pose as a student throughout all this, and his work is so good that Day tries to get him a job at the local paper. When the publisher whom she visits calls in his editor, who, of course, turns out to be Gable, she is miffed. Then Gable learns that one of his own reporters is, in fact, a former student of Day; Gable and Day make up and love rears its head for good. The film is filled with delightful moments.
Gable é um jornaleiro cozido que pensa que esses que aprenderam o negócio em um colégio não sabem sobre o que estão escrevendo. A professora de um colégio local lhe perguntou sobre o convite de uma palestra na sessão da tar- de, e ele escreveu uma carta severa em resposta. Quando seu chefe ordena que ele obedeça ao desejo da professora, ele se arrasta atrasado à classe e entra só a tempo de ouvir a professora, Dia, que faz um comentário sobre a carta que ele escreveu. Gable figura que ele justamente melhoraria se sentando lá e pre- tender ser um estudante. O recente pai de Dia era um Pulitzer o jornalista prêmio-vencedor, e ela usa o trabalho dele como um exemplo para a classe. Ela está datando o psicólogo Young, mas Gable que está caindo rapidamente por Dia obtém o rival fora do caminho com hábil uso das mãos. Ele também ajuda Dia para ver o trabalho do pai dela quem ela idolatra, mais realistica- mente. Gable continua posando como um estudante ao longo de tudo isso e o trabalho dele é tão bom que Dia tenta obter-lhe um trabalho no papel local.
7
Quando o publicador a quem ela visita chama o editor dele quem, é claro, vol- ta para fora é Gable, ela é petulante. Então Gable aprende aquilo que um dos próprios repórteres dele é, na realidade, um estudante formador de Dia; Gable e Dia fazem para cima e amam atrás das cabeças por bom. O filme está cheio de momentos deliciosos.
Essa foi a primeira “bula” de filme traduzida por Perilo. Pediu a Juvenal permissão para afixá-la no quadro de avisos da farmácia de maneira que todos pudessem tomar conhecimento do tema do filme da semana.. Foi sem dúvida uma sensação. Estava ali, aos olhos de todos, mais um testemunho do saber de Perilo. Era impressionante que ele pudesse entender o que estava escrito e tornar possível que todos lessem. A leitura da “bula” do quadro de avisos da farmácia tornou-se hábito obrigatório dos cinéfilos de Parnaso da Conceição, que não eram poucos. Formavam-se rodinhas diante da caixa de porta de vidro e fundo de feltro verde, enquanto Perilo, em pé na n a porta, sorria... -
“ ...jornaleiro cozido...”, porque “cozido”, seu Perilo? Gíria... modo de falar...
Danado o seu Perilo P erilo da Mezinha... danado. Depois do filme às vezes acontecia: -
seu Perilo, o homem era jornalista. Pois é, trabalhava com jornal, deve ser como dizem lá...
Uma sucessão de “bulas” e Perilo foi “pegando jeito” e ficava mais fácil traduzir embora muitas vezes as frases não fizessem muito sentido apesar da correta tradução palavra por palavra. Uma vez , em Sobral, tinha conhecido um paulista que quando queria dizer que as coisas estavam de cabeça para baixo, usava a expressão “de ponta-cabêça”. Havia de ser coisa do gênero, jeito de falar dos lugares que não fazia muito sentido para os o s outros. A Teologia de padre Fininho
Pode-se dizer que o padre era um homem solitário. Não que lhe faltassem amigos ou mesmo admiradores. O padre era querido. Vinha do seu mister a solidão. Praticava uma vida quase ascética, ascética, digo quase porque os pequenos prazeres a que suas parcas parcas carnes sucumbiam, ainda que existissem eram de pouca monta. Gostava da comida de Rita de Cássia, de fato saborosa, feita com asseio e a exata proporção dos condimentos e às vezes, mesmo sem se dar conta, uma pontinha de gula o fazia salivar perto da hora do almoço. Do russo Pavlov o padre nunca ouviu falar. Apreciava o vinho que era pouco encontradiço por lá, uns docinhos caseiros que lhe davam de vez em quando, um cálice de licor de jenipapo e era o que bastava b astava à carne despretensiosa. despretensiosa. “Vigiai e orai, para que não entreis em tentação; o espírito, na verdade, está pronto, mas a carne é fraca.” (Mateus, 26:41)
8
Filho de família humilde, menino quieto e sonhador, o seminário foi a única escola que conheceu, na verdade mais que escola, a casa onde cresceu ao abrigo das vicissitudes e sofrimentos que vergastavam os filhos do interior do Ceará. Amou sinceramente a Cristo e Seu sagrado padecimento, temeu o Deus irado que falava a Abraão “Então o Senhor, da sua parte, fez chover do céu enxofre e fogo so- bre Sodoma e Gomorra.” (Gênesis, 13:24)
enterneceu-se com a vida edificante dos santos e mais moço rejubilou-se com o brilho intelectual de Agostinho, Tomas de Aquino, Tereza D’Ávila, João da Cruz. e Vieira. A boa biblioteca do Seminário lhe deu portas para Cervantes, Dante Alighieri, Camões, Ovídio e Homero. assim nos Formou-se piedoso e imbuído do papel de pastor e pregador da Palavra porque assim nos “
ordenou o Senhor: Eu te pus para luz dos gentios, a fim de que sejas para salvação até os confins da terra.”(Atos, 4:47)
Muitos de seus contemporâneos contemporâneos de seminário estavam estavam em paróquias de Fortaleza ou Sobral vivendo nessas cidades grandes, privando de encontros com o bispo, mas levando, no seu entender vidas comuns quase distanciadas do seu verdadeiro sentido pastoral. Rejubilou-se quando foi designado para Parnaso da Conceição e, quando pela primeira vez botou os olhos na Matriz baixou a mala ao chão, tomou o capelo contra o peito e murmurou: “És tu melhor do que Tebas, que se sentava à beira do Nilo, cercada de águas, tendo por baluarte o mar, e as águas por muralha,” (Naum, 3:8)
Tinha perfeita consciência de seu papel perante aquelas mil e quinhentas almas. Perilo à vezes brincava com ele chamando-o de “nosso querido Núncio Apostólico” ao que ele sempre retrucava com humildade: -
Por favor mestre Perilo, o Núncio é o embaixador de Sua Santidade perante os governos temporais... E Vossa Reverendíssima é o quê entre nós, caríssimo amigo? A mim, humildemente, me cabe o trabalho do pastor, mestre Perilo. “ Ai de vós, quando todos os homens vos louvarem! porque assim fazi- am os seus pais aos falsos profetas.” (Lucas, 7:26)
E quedava pensativo no seu dever. Era o único entre as almas dos seus paroquianos e a ganância sanguessuga do demônio. O guardião gu ardião da sagrada pedra: “Pois também eu te digo que tu és Pedro, e sobre esta pedra edificarei a minha igreja, e as portas do inferno não prevalecerão contra ela;” (Mateus, 16:18)
E não estavam ali por perto os falsos profetas? Rondando as localidades vizinhas, até mesmo em Oiticica, estabelecendo seus falsos templos e ludibriando a fé dos homens desencaminhando aquelas almas incautas para as garras do cão? 9
“Guardai-vos dos falsos profetas, que vêm a vós disfarçados em ove- lhas, mas interiormente são lobos devoradores.” (Mateus, 7:15) “porque hão de surgir falsos cristos e falsos profetas, e farão grandes sinais e prodígios; de modo que, se possível fora, enganariam até os escolhidos.” (Mateus, 7:24)
Fininho não se enganava e nem deixava enganar ao seu rebanho. Pois ainda ano passado um desses arautos do Tinhoso não tinha ousado pisar o chão de d e Parnaso consagrado que era à Divina Conceição? Não conseguiu ficar nem trinta minutos. Mal abriu seu falso livro na praça e arriscou a pregação e topou com padre Fininho brandindo o guarda-sol descorado como se fora a espada flamejante flamejante de São Miguel. E com a providencial ajuda ajuda de um magote de senhoras muito pias e dois ou três cães que estranharam o forasteiro, botou-o para correr até que o visse desaparecer na estrada. “Pois os visitarei com quatro gêneros de destruidores, diz o Senhor: com espada para matar, e com cães, para os dilacerarem ...”(Jeremias, 22:3) “ Vigiai pois, porque não sabeis nem o dia nem a hora.”(Mateus, 21:13)
Era daí que advinha a solidão. Aquela era uma responsabilidade indivisível e indelegável. “Porque o Senhor consolará a Sião; consolará a todos os seus lugares assolados, e fará o seu deserto como o Éden e a sua solidão como o jardim do Senhor; gozo e alegria se acharão nela, ação de graças, e voz de cântico.” (Isaías, 32:3)
Além de homem de fé, Fininho era um profissional muito sério. Não se pode dizer que fosse propriamente feliz. Era antes um estóico de poucos prazeres entre os quais a presença dos amigos. -
Guardião da Fé, Muralha de Jerusalém, matador do bezerro de ouro, parco de carnes pleno de espírito, amigo dedicado e constante...
Discursou Perilo uma vez por ocasião do aniversário do padre. Bom padre Fininho! Aquelas mãos compridas, ossudas, de couro mole curtido que os meninos beijavam na praça -
“bença” padre Deus abençoe... Deus abençoe...
Eram também as mãos que benziam os ramos, os bichos, os enfermos, que acenavam desa jeitadas do outro lado da rua, que ficavam cruzadas no peito enquanto os polegares se agitavam, um rondando o outro, sentado no vime da farmácia proseando enquanto não vinha a hora da janta.
10
A ferrovia
Ler jornais não era um hábito costumeiro dos habitantes de Parnaso da Conceição. Anos atrás o próprio Juvenal havia desistido do projeto da “Voz Parnasiana”, jornal que chegou a pretender editar muito motivado por Perilo e padre Fininho. Mas negócios são negócios e o povo não tinha interesse. Ao invés, montou o serviço de alto-falante na praça, esse sim bastante apreciado, que aceitava por uns centavos pedidos de músicas que podiam ser oferecidas a alguém. Render dinheiro o negócio não rendia, mas como tampouco gerasse despesas significativas e de fato alegrasse muito as noites da cidade durante o “footing” ficou. Jornais de fora não vinham, exceto quando eram trazidos por alguém que viajasse a Crateús. As notícias mais importantes sempre arranjavam um jeito de chegar, fosse pelo pessoal que trabalhava na ferrovia, algum viajante de passagem ou entre os zumbidos altissonantes com que chegavam as ondas da Voz do Brasil captada por Perilo em ondas curtas. Televisão era impossível. Nenhum sinal chegava forte o suficiente para gerar uma imagem que se distinguisse dos ruídos de fundo e das interferências nas escarpas da serra. As notícias que interessavam mesmo eram as do lugar que, qu e, essas sim, corriam com fartura de boca em boca. -
A vaca de Alírio pariu inda ontem... Dizem que o admirador secreto de Rita de Cássia é Libório. Juvenal convidou a banda de Oiticica pra tocar na festa do Sagrado...
Às vezes alguma notícia bombástica chegava e causava espécie. O atentado de setembro de 2001 contra as torres do World Trade Center Center foi muito debatido na farmácia farmácia embora nessas conversas as motivações e alcance político do ocorrido tivessem sua compreensão muito prejudicada. Espantava, e muito, a quase qu ase inacreditável altura altura dos edifícios e parecia absurdo que alguém se dispusesse a arremeter um avião contra um prédio. A palavra terrorismo que aparecia na bem posta leitura que Perilo ia fazendo em voz alta, era algo quase sem sentido. Por que alguém ia querer aterrorizar os habitantes de uma cidade? O que se ganhava com isso? Inda mais morrendo na prática do ato. Mais tarde souberem que os americanos foram à forra e atacaram um país onde morava o mandante do crime. Essas notícias chegavam com um ar quase inverossímil, coisa sem pé nem cabeça. Duvidar, porém, quase ninguém duvidava. Estava estampado no jornal. E saiu outro cavalo, um cavalo vermelho; e ao que estava montado nele foi dado que tirasse a paz da terra, de modo que os homens se matassem uns aos outros; e foi-lhe dada uma grande espada. (Apocalipse, 6:4)
Só podia ser sinal do fim do mundo. Outros sinais assustadores viriam...Naquela noite Fininho teve pesadelos com cavaleiros que surgiam dentre as nuvens negras de tempestade brandindo espadas, espalhando morte e terror. A guerra, a peste, a fome e a miséria. Notícia demais atrai notícias e tira a tranqüilidade das pessoas. Pois começou a correr que o governo do estado pretendia vender a ferrovia. Os trilhos atravessam o Piauí ligando Teresina a Crateús na serventia de inúmeras cidades, entre as quais Parnaso. A estação local despachava e recebia cargas, era a porta de entrada de quase toda mercadoria consumida na
11
cidade, era por onde saíam os produtos locais, chegava e saía gente e abrigava uma agência dos correios. -
Mas sim, senhor prefeito, que história é essa que vão vender a ferrovia?
Padre Fininho era geralmente formal. -
Privatização, padre, é isso que o governo do Estado quer fazer. Muita coisa já foi privatizada no Brasil, empresas, estradas, ferrovias, bancos, de tudo. tudo . Mas o quê da ferrovia querem vender? Tudo Perilo. Trens, locomotivas, estações, trilhos, dormentes e até o cascalho.
Os três quedaram pensativos por um momento. -
-
Será isso bom? Indagou por fim o padre. Hum, sei não... resmungou Perilo olhando para Juvenal como se a ele, como político e empresário, coubesse a resposta. Tem gente contra e tem tem gente a favor. A situação, situação, é claro, está a favor e a oposição contra. E o senhor, que pensa? Voltou o padre. Veja, a serraria é minha e não do governo e isso não faz mal a ninguém. Por outro lado... Por outro lado... Por outro lado a serraria serve a quem precisa de madeira, isto é, parte das pessoas que ocasionalmente vão construir alguma coisa, fazer uma cerca e coisas assim. A serraria facilita a vida de quem vive aqui e não precisa ir a Oiticica ou Crateús para isso. Já a ferrovia tem uma grande importância para a cidade toda e não só Parnaso, mas todas as cidades pequenas que são servidas por ela. Possuir a ferrovia é possuir muito poder. Então que fique na mão do governo. Por pior que seja, num regime democrático como é o nosso, o governo é escolhido para representar o povo e de certa forma a ferrovia é como se fosse nossa. Opinou Perilo. Também sempre pensei nela assim. Como se fosse coisa de todo mundo. Acrescentou o padre. O governo diz que tem de governar, manter as escolas públicas, postos de saúde e coisas da infraestrutura e não ser dono de ferrovias ou empresas. Que isso cabe à iniciativa privada. Sei não... Sei não... Pois é...
E ficaram de novo em silêncio cismando. De um modo geral a notícia não foi bem recebida na cidade. Ninguém gostou da idéia de alguém ser dono da ferrovia. Sendo do governo era como se fosse de ninguém, ou de todo mundo, o que vem a dar no mesmo. Todo mundo ali nasceu e se criou ouvindo o apito do trem de uma ferrovia que não tinha dono. Tinha chefe de estação, tinha despachante, bilhe12
teiro, carregador, engenheiro que vinha de vez em quando, mas não tinha dono. O próprio governador do Estado era outro a cada quatro anos. Era assim que se manifestava o sentimento pelo patrimônio público. Além do mais havia aquele argumento levantado por Juvenal. Ser dono da ferrovia era muito poder. Assustava a idéia de alguém poder mandar e desmandar, aumentar o preço dos bilhetes impor regras e sabe Deus o que. E se o novo dono decidisse que Parnaso não valia uma estação? Um certo desassossego ficou no ar. As pessoas têm uma resistência natural à mudanças, um certo conservadorismo que prefere as coisas do jeito em que estão, um sentimento de que mudar é arriscado. O próprio padre Fininho foi recebido com reservas quando chegou.. Há muito tempo, mesmo a chegada da eletrificação eletrificação encontrou receios confusos. “Toda boa dádiva e todo dom perfeito vêm do alto, descendo do Pai das luzes, em quem não há mudança nem sombra de variação.” (Tiago, 12:17)
Perilo ia lendo para o grupo reunido na farmácia. farmácia. -
-
“Os grupos interessados devem fazer o credenciamento credenciamento preliminar, após o que terão sessenta dias de prazo para avaliar os ativos da ferrovia. O governo então fixará o prazo final para entrega dos envelopes contendo as propostas.” Tem um grupo inglês interessado... disse Perilo olhando por cima dos óculos. Ainda por cima estrangeiros! Bradou Libório com desaprovação. “Bode” ser que é bom.. O ingleis é bovo muito organizado... foi arriscando arriscando Elias, no sotaque árabe que herdara do pai, porque era brasileiro nascido no sertão do Estado. Bode uma ova, que bode! Gritou Alírio dando um tapa no balcão. Senhores, a compostura! Advertiu o padre. Um grupo inglês? Desta vez foi Juvenal. Uma associação anglo-canadense, segundo o jornal. Que é que eles querem aqui afinal, longe long e de casa? Dinheiro, seu Libório, dinheiro não tem pátria... “Pecúnia non olet...” Pois o meu dinheiro não hão de ver. Mestre Perilo, o que quer dizer exatamente “avaliar os ativos...”?
Foi Juvenal quem respondeu: 13
-
É a verificação verificação do patrimônio. Ver tudo o que a ferrovia tem tem e em que estado estão estão as coisas. O que tem e o que deve. Como, “em que estado”? Ta tudo no Piauí. Aqui mesmo. Disse Libório. Me refiro ao estado de conservação. Como todo mundo faz quando quer comprar alguma coisa. Vai lá ver primeiro. Então vem um monte de gente fuçar por aí... Parece que vem. Guem sabe é bom brá negócio... Elias era dono do armarinho.
O evento mais marcante daquele fim de ano em Parnaso acabou sendo o filme “A Noviça Rebelde” exibido no cine Epopéia em duas semanas consecutivas a pedido do público. Apesar disso se alguém um dia perguntar na cidade por um filme chamado “A Noviça Rebelde” , não encontrará quem o tenha visto. Essa culpa não cabe a Perilo, o tradutor das “bulas” cinematográficas. Os filmes do cine Epopéia eram apresentados com os seus títulos originais traduzidos para o português.
Como se sabe, Perilo era praticamente autodidata em inglês e fora alguns pecadilhos aqui e ali, que aliás estavam fora das possibilidades de julgamento de qualquer um, suas traduções eram muito apreciadas. Para ele mesmo eram de enorme importância. Eram enfim seu único contato com a língua, o que felizmente se renovava toda semana. As “bulas” eram agora datilografadas para afixação no quadro da farmácia.
14
O inglês chegou logo depois do carnaval. Desceu na estação usando um casaco cáqui sem mangas, um chapéu australiano e um cachimbo na boca. Na bagagem uma máquina fotográfica e equipamentos de topografia. Falava um português recheado de palavras em espanhol, aparentava uns quarenta anos apesar do rosto marcado por fortes sulcos na testa e logo abaixo das bochechas, tinha um sorriso simpático e gostava de prosear. Ficou na pensão de Rita de Cássia. C ássia. Por dois dias andou fotografando tudo, caminhou vários quilômetros pelos trilhos, contratou dois moleques para carregar carregar as coisas e segurar a estádia estádia de topógrafo, armou o apareaparelho umas tantas vezes, mediu aqui, mediu ali e foi embora. O que ficou do inglês foi um exemplar do Herald Tribune esquecido no criado-mudo do quarto da pensão. “ E espalhou-se a notícia disso por toda aquela terra.” terra.” (Mateus, 9:26)
Mesmo Rita de Cássia se deu conta de que aquilo era inglês, acostumada a olhar as “bulas” do quadro da farmácia. Seu Perilo podia querer ler, pensou logo. E o jornal foi parar na farmácia. Manuseando o tablóide durante a tarde calorenta Perilo ia passando os olhos pelas p elas manchetes procurando alguma coisa inteligível. Seu forte era mesmo a tradução, apoiado no material que dispunha. Numa Nu ma das notícias duas palavras lhe chamaram a atenção: Terrorismo e Papa . A notícia vinha de d e Roma. Havia de interessar ao padre Fininho e deixava a ele mesmo curioso devido à palavra terrorismo que também aparecia na manchete. Lembrou-se do atentado aos edifícios de Nova Iorque. O que teria o papa a ver com aquilo?
15
-
Então quer dizer que “Pope” é o mesmo que Papa? Perguntou o padre.
Perilo mostrou o jornal e a notícia no final da tarde durante a prosa costumeira anunciando que traduziria a matéria para que todos, e em particular o padre, se atualizassem com as novas vindas do Vaticano. -
Lembra que a notícia dizia que aquele ataque terrorista ia mudar o mundo? E daí? Não mudou nada... pelo menos por aqui. Quem sabe mudou em algum lugar e é disso que o Papa está falando... Se não estou enganado a palavra “f-a-i-t-h” quer dizer fé. Ajuntou Perilo. Mais que tem o fé brá b rá ver com terorismo? Esse era Elias. Coisa nenhuma! Então Sua Santidade está colhendo na roça alheia... Não diga blasfêmias Libório. Em matéria de fé o Papa é infalível. Já lhes expliquei que nesses assuntos o Santo Padre é inspirado diretamente pelo Espírito Santo e portanto não pode errar. Interferiu padre Fininho. Pois aguardemos então a tradução.
Todos concordaram e mudou-se de assunto. Mais tarde Perilo e o padre jantaram juntos na Rita de Cássia. -
Tava bom o picadinho padre? Gostou do jornal seu Perilo?
Muito gentil a Rita. -
Uma delícia como sempre dona Rita! Obrigado Rita, sim, tem lá uma notícia que parece do interesse de todos e vou traduzir. 16
-
Vai pregar no quadro da farmácia também? também? Por que não? Por que não? falou quase através do guardanapo à boca.
Caminharam juntos até a praça. O alto-falante anunciava um oferecimento musical para a moça de vestido azul. Era sábado e a noite estava alegre. Caminharam entre o povaréu cumprimentando um e outro com um toque elegante à aba do chapéu, comeram pipoca quentinha feita na hora, sentaram-se um pouco afastados do alto-falante para poder conversar. A digestão foi soprando o sono entre bocejos. Uma hora mais tarde despediram-se. Perilo nunca se casou. Desde a morte de dona Mezinha morava num pequeno apartamento edificado sobre a laje da farmácia. Abriu a janela do quarto e deixou que a música entrasse, depois vestiu o pijama e sentou-se à escrivaninha onde fazia a contabilidade e as traduções. Dobrou o jornal na notícia que interessava, tirou da gaveta o LEP e os vocabulários manuscritos e principiou: “ Ataques terroristas podem aproximar o Papa e a Fé Islâmica ” Pensou em Elias. Segundo ele próprio o pai não era católico mas islâmico e costumava orar cinco vezes ao dia sobre um pequeno tapete. Elias, até que o pai morresse quando ainda não passava de um menino, havia recebido esses ensinamentos mas hoje não parecia ter qualquer religião e não freqüentava a missa. Podia ser apenas cisma sua, mas acreditava ter percebido uma ponta de simpatia pelos terroristas muçulmanos por parte de Elias. Bobagem, bobagem! Elias era um manso, boa alma. Afundou-se na tradução e, à medida que a coisa ia tomando forma, apavorou-se que lhe tremiam as mãos e os suores do nervosismo juntaram-se aos da noite quente. Não acreditava no que lia. Voltava atrás, traduzia de novo, enfiava as mãos pelos cabelos, relia cuidadosamente o jornal, dava voltas pelo quarto, fumava nervoso. Veio a madrugada e as estrelas todas desfilaram pelo céu até que o leste empalideceu empalideceu anunciando o dia que se aproximava. Padre Fininho rezou a primeira missa do dia, como sempre, às sete horas. Do púlpito não lhe escapou o nervosismo de Perilo, inquieto, mãos nervosas, o paletó vestido sobre a camisa do pijama, cabelos em desalinho. Depois, na sacristia, mal podia esperar que os outros se retirassem e quando se viram a sós foi o padre quem falou primeiro: -
Por Deus mestre Perilo! Que se passa? Precisamos conversar. Um assunto da maior gravidade. Diga homem que já me assusta! Aqui não. Pode chegar alguém... Agora não posso sair, em trinta minutos tenho a outra missa. Reze sua missa e me encontre na farmácia. Deixo aberta a porta do lado.
17
E saiu atarantado. Nunca em sua vida padre Fininho rezou uma missa com tão pouca concentração. Depois livrou-se rapidamente das beatas e foi ter à farmácia apressado para o misterioso encontro solicitado tão nervosamente por Perilo. Ficava do outro lado da praça. Procurou a porta lateral pelo corredor estreito, abaixo da escada que conduzia ao segundo andar e encontrou-a aberta. Não bateu e foi entrando. -
Deus meu! O que há meu filho?
“Ao ouvirmos a notícia disso, afrouxam-se as nossas mãos; apoderam-se de nós angústia e dores, como as de parturiente.” (Jeremias, 33:24)
Tremendo, Perilo estendeu-lhe uma folha de papel: -
Eis a tradução da notícia do jornal inglês. Veja com seus próprios olhos.
ROMA – Os recentes ataques terroristas têm dado causa para alarme para as autoridades eclesiásticas católicas, que têm medo de que os fundamentalistas islâmicos possam fazer pontaria nos templos e santuários cristãos, como tem ocorrido de tarde no Paquistão e em outros países. O papa se apresentou com os sacerdotes islâmicos islâmicos na última terça-feira terça-feira para discutir a corrente de tensão, alternando sua usual atitude de reserva observando os casos amorosos do intestino das outras religiões, com algumas opiniões para a ameaça que os terroristas islâmicos islâmicos podem representar representar para a cristandade. cristandade. “Não houve argumento”, disse um líder religioso muçulmano, “nossos sacerdotes acordaram com o papa hoje de manhã, porque nós todos devemos chegar juntos na cara de um terrorista azarado”. O papa também expressou o seu desejo de se converter para o Islamismo , simpático ao antagonismo que alguns comunistas muçulmanos formalmente mostraram para com a igreja católica, a qual, de acordo com Sua Santidade, agora pertence ao passado . “O fundamentalismo islâmico concerne muito ao papa”, explicou um porta-voz do Vaticano. E ele aderiu: “Todas as fés merecem respeito, mas as pessoas têm que entender que é hora de adotar o Islamismo para o terceiro milênio”.
O padre lívido quase desfaleceu. Perilo repetia quase em demência: -
O Papa não pode pod e errar em matéria de fé!
O domingo foi amanhecendo preguiçoso, o alto-falante começou a tocar...
“E eles guardaram o caso em segredo, indagando entre si o que seria o ressurgir dentre os mortos.” (Marcos, 13:10)
18