ANO 11 / NÚMERO 127
ESCALADA NUCLEAR
“INOCENTES ÚTEIS” DO PENTÁGONO POR SERGE HALIMI
R$ 14,90
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ARTIGO ESPECIAL
DESAFIOS DA ESQUERDA LATINO-AMERICANA POR RAFAEL CORREA
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EPIDEMIA DE OPIÁCEOS
VÍCIO VÍCIO COME COMEÇA ÇA NOS NOS CONSULTÓRIOS POR MAXIME ROBIN
00127
LE MONDE
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771981
752004
BRASIL
diplomatique diplomatique UM NOVO OLHAR SOBRE O MUNDO.
UM NOVO OLHAR SOBRE O BRASI L.
UNIVERSIDADES PÚBLICAS ABANDONADAS
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O ACORDO DE PARIS E O BRASIL
RETROCESSOS AMBIENTAIS POR CARLOS RITTL
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VIOLÊNCIA OBSTÉTRICA
A RO ROTI TINA NA DO PAR ARTO TO POR LUCIANA MOTOKI
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ESQUERDA E MACHISMO
HARVEY WEINSTEIN POR THOMAS FRANK
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Le Monde Diplomatique Brasil
FEVEREIRO 2018
ESTADOS UNIDOS
a r e v a J a r d n a S ©
Os “inocentes úteis” do Pentágono POR SERGE HALIMI*
E
m Washington, democratas e republicanos se entendem, pelo menos, quando se trata de combater a Rússia. Segundo eles, Vladimir Putin duvida da determinação dos Estados Unidos de defender seus aliados e quer preservar seu regime autoritário do contágio democrático e liberal. Por isso, teria se decidido pela agressão ao Ocidente. Então, a fim de garantir a paz e a democracia, o Exército norte-americano e os parlamentares dos dois partidos resolveram contra-atacar... Primeiro, o Exército norte-americano. Obedecendo a uma ordem da Casa Branca, o Pentágono acaba de completar um estudo que preconiza um emprego mais generoso das armas nucleares.1 Estas, atualmente destrutivas demais para que sua utilização seja sequer imaginável, não desempenham, portanto, seu papel de dissuasão; conviria, pois, miniaturizá-las,
para que possam servir contra um leque mais amplo de ameaças. Ameaças, inclusive, “não nucleares”: destruição de redes de comunicação, “armas químicas, biológicas, ciberataques” etc. Em 2016, sem saber muito bem quais eram os próprios fundamentos da dissuasão, o candidato Donald Trump teria perguntado a um de seus consultores: “Para que possuímos armas nucleares se não as usamos?”. 2 O documento do Pentágono dá uma resposta à sua maneira. Diante das “ambições geopolíticas” da Rússia (e também da China), o desejo de Moscou de “modificar pela força o mapa da Europa” e “questionar a ordem internacional instaurada após o fim da Guerra Fria”, os Estados Unidos devem apressar a “modernização de suas forças nucleares”, a fim de continuar no papel de “sentinelas fiéis da liberdade”. Essa abnegação democrática não tem preço – ou melhor, tem: a triplicação
do orçamento militar norte-americano destinado às ar mas nucleares. Esse alarmismo geopolítico a serviço de uma nova corrida armamentista suscitaria oposição nos Estados Unidos se, há um ano, a chamada esquerda norte-americana não viesse se esforçando para apresentar Trump como uma marionete de Moscou. 3 Ela chegou a ponto de obrigá-lo a entregar armas à Ucrânia (coisa que seu predecessor democrata se recusou a fazer) e a aumentar as sanções contra a Rússia. O ex-vice-presidente Joe Biden há pouco se rejubilou num artigo que é um primor de sutileza já no título: “Defen“Defender a democracia contra seus inimigos: como resistir ao Kremlin”.4 Ao mesmo mesmo tempo, os senadores senadores democratas da Comissão de Política Externa publicavam um relatório que analisava “o ataque assimétrico de Putin à democracia na Rússia e na Europa”. Ainda mais indignada que de cos-
tume, a jornalista pop star Rachel Maddow, porta-voz da “resistência” a Trump na cadeia NBC, replicou sem demora: “Nosso presidente não apenas deixou de extinguir esse incêndio como ficou observando o avanço das chamas!”. Ela pode dormir tranquila: o Pentágono saberá defendê-la. *Serge Halimi é diretor do Le Monde Diplomatique .
1 Ashley Feinberg, “Exclusive: here is a draft of Trump’s nuclear review. He wants a lot more nukes” [Exclusivo: eis um esboço da avaliação nuclear de Trump. Ele quer muito mais bombas nucleares], 11 jan. 2018. Disponível em:
. 2 Matthew J. Belvedere, “Trump “Trump asks why US can’t use nukes: MSNBC” [Trump pergunta por que os Estados Unidos não podem usar bombas nucleares: MSNBC], 3 ago. 2016. Disponível em: . 3 Ver “Trump “Trump acuado pelo partido anti-Rússia”, anti-Rússia”, Le Monde Diplomatique Brasil , set. 2017. 4 Foreign Affairs, Nova York, ja n.-fev. 2018.
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ESTADOS UNIDOS
a r e v a J a r d n a S ©
Os “inocentes úteis” do Pentágono POR SERGE HALIMI*
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m Washington, democratas e republicanos se entendem, pelo menos, quando se trata de combater a Rússia. Segundo eles, Vladimir Putin duvida da determinação dos Estados Unidos de defender seus aliados e quer preservar seu regime autoritário do contágio democrático e liberal. Por isso, teria se decidido pela agressão ao Ocidente. Então, a fim de garantir a paz e a democracia, o Exército norte-americano e os parlamentares dos dois partidos resolveram contra-atacar... Primeiro, o Exército norte-americano. Obedecendo a uma ordem da Casa Branca, o Pentágono acaba de completar um estudo que preconiza um emprego mais generoso das armas nucleares.1 Estas, atualmente destrutivas demais para que sua utilização seja sequer imaginável, não desempenham, portanto, seu papel de dissuasão; conviria, pois, miniaturizá-las,
para que possam servir contra um leque mais amplo de ameaças. Ameaças, inclusive, “não nucleares”: destruição de redes de comunicação, “armas químicas, biológicas, ciberataques” etc. Em 2016, sem saber muito bem quais eram os próprios fundamentos da dissuasão, o candidato Donald Trump teria perguntado a um de seus consultores: “Para que possuímos armas nucleares se não as usamos?”. 2 O documento do Pentágono dá uma resposta à sua maneira. Diante das “ambições geopolíticas” da Rússia (e também da China), o desejo de Moscou de “modificar pela força o mapa da Europa” e “questionar a ordem internacional instaurada após o fim da Guerra Fria”, os Estados Unidos devem apressar a “modernização de suas forças nucleares”, a fim de continuar no papel de “sentinelas fiéis da liberdade”. Essa abnegação democrática não tem preço – ou melhor, tem: a triplicação
do orçamento militar norte-americano destinado às ar mas nucleares. Esse alarmismo geopolítico a serviço de uma nova corrida armamentista suscitaria oposição nos Estados Unidos se, há um ano, a chamada esquerda norte-americana não viesse se esforçando para apresentar Trump como uma marionete de Moscou. 3 Ela chegou a ponto de obrigá-lo a entregar armas à Ucrânia (coisa que seu predecessor democrata se recusou a fazer) e a aumentar as sanções contra a Rússia. O ex-vice-presidente Joe Biden há pouco se rejubilou num artigo que é um primor de sutileza já no título: “Defen“Defender a democracia contra seus inimigos: como resistir ao Kremlin”.4 Ao mesmo mesmo tempo, os senadores senadores democratas da Comissão de Política Externa publicavam um relatório que analisava “o ataque assimétrico de Putin à democracia na Rússia e na Europa”. Ainda mais indignada que de cos-
tume, a jornalista pop star Rachel Maddow, porta-voz da “resistência” a Trump na cadeia NBC, replicou sem demora: “Nosso presidente não apenas deixou de extinguir esse incêndio como ficou observando o avanço das chamas!”. Ela pode dormir tranquila: o Pentágono saberá defendê-la. *Serge Halimi é diretor do Le Monde Diplomatique .
1 Ashley Feinberg, “Exclusive: here is a draft of Trump’s nuclear review. He wants a lot more nukes” [Exclusivo: eis um esboço da avaliação nuclear de Trump. Ele quer muito mais bombas nucleares], 11 jan. 2018. Disponível em: . 2 Matthew J. Belvedere, “Trump “Trump asks why US can’t use nukes: MSNBC” [Trump pergunta por que os Estados Unidos não podem usar bombas nucleares: MSNBC], 3 ago. 2016. Disponível em: . 3 Ver “Trump “Trump acuado pelo partido anti-Rússia”, anti-Rússia”, Le Monde Diplomatique Brasil , set. 2017. 4 Foreign Affairs, Nova York, ja n.-fev. 2018.
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EDITORIAL
E agora? POR SILVIO CACCIA BAVA BAVA
s u i d u a l C ©
om a condenação de Lula fica cada vez mais evidente a falência das instituições democráticas. A politização do Judiciário transformou-o num poderoso instrumento de perseguição política. Os demais poderes da República se alinham e se calam, em cumplicidade de classe social. O que vai acontecer com o Brasil, agora que nossa democracia foi suspensa, que nossos três poderes – Executivo, Legislativo e Judiciário – foram capturados e são controlados por grupos de interesse e quadrilhas que agem contra a democracia e contra os interesses das maiorias? Vale a pena legiti mar esta falsa democracia? Vale a pena votar nas eleições deste deste ano? Qual cami nho sobra para defendermos nossos direitos de cidadãos e cidadãs, para defendermos uma democracia que nos represente? As ruas? A desobediência desobediência civil? A insur reição? Os protestos contra as violações de direitos crescem, assim como crescem os grupos provocadores de direita. Mas todos eles ainda se restri ngem ao mundo da militância, muitos ostentando seus cabelos brancos. As novas gerações não conquistaram muito espaço. Movimentos como os de juventude, o movimento contra o genocídio da juventude negra, o movimento das jovens mulheres mulheres negras, necessitavam necessitavam ter um protagonismo maior. Mesmo que o governo Temer tenha 97% de reprovação e a vida tenha se tornado mais difícil, a sociedade civil ainda está relativamente quieta. As marchas e passeatas são diárias, mas
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aqueles que não são militantes, as maiorias espoliadas, as periferias das grandes cidades, continuam em silêncio. Há perplexidade e desesperança por toda parte. A proposta de reforma política se mantinha em pé enquanto era possível imaginar a possibilidade de uma Constituinte independente. Mas o atual Congresso, com os parlamentares em sua maioria organizados em lobbies para a defesa de interesses corporativos, muitos indiciados em crimes de corrupção, não aceita essa possibilidapossibilidade nem sob pressão popular. Esse Judiciário, que assume seu lado conservador e de direita, tem hoje a última palavra na política nacional. Ignora provas e se omite em casos flagrantes, como o do senador Aécio Neves, mas considera legítimo “intuir” a culpa de Lula. Esse Executivo criminoso e entreguista, o governo Temer, Temer, acaba de da r isenção tributária às grandes empresas petrolíferas internacionais que compraram, a preço de banana, nossas reservas do pré-sal. Há estimativas de que essas isenções possam chegar a R$ 1 trilhão. Quem autorizou o presidente Temer a dar esse presente às multinacionais?1 De um lado, o governo corta dinheidi nheiro da saúde, da educação e das políticas sociais; de outro, concede enormes isenções de impostos a multinacionais, deixando de receber impostos que poderia repassar às políticas sociais, algo estimado em R$ 40 bilhões por ano. A polari pol ari zação do cenário c enário políti co revigora o PT, reforçado pelas carava-
nas de Lula e por sua crescente preferência eleitoral, já batendo nos 45% 2 em dezembro passado. Mas a crise política não se resolve nem com a reabilitação do PT nem com a participação de Lula nas eleições. Ela é uma crise sistêmica. O que precisa mudar é o sistema político, são as regras que permitem às elites controlar e reprimir as maiorias. Na história, essas mudanças se dão por mobilização dos setores populares, quando os cidadãos buscam se reapropriar do poder de decidir sobre a própria vida, coletivamente. Em alguns casos, fortes movimentos de massa impuseram sua agenda e reformas às instituições políticas; em outros, esses movimentos foram às armas, como o exemplo das lutas contra o colonizador europeu na África. A construção das frentes Brasil Brasil Popular e Povo Sem Medo são importantes iniciativas para organizar mais a resistência democrática e a defesa de direitos. Essa resistência, porém, precisa ser mais ampla, convocar os cidadãos comuns a se organizarem em coletivos, comitês de luta pela democracia, tornar-se cada vez mais pública. A disputa di sputa política na sociedade se dá pela disputa das narrativa s. E os setores neoliberais e conservadores se armaram para essa disputa. São pesquisas, palestras, cursos, seminários, livros, filmes, programas de televisão e notícias que vão apresentando uma visão de mundo e as vantagens de suas crenças. Nem todos dispõem de recursos para atuar em ta ntas frentes, mas é preciso estar alerta para o fato de que
essa cadeia de conhecimentos e propaganda funciona. Entre os principais desafios para os próximos anos está estimular o pensamento crítico, produzir análises e debates que contribuam para a formação e instiguem os jovens e todos os setores discriminados a construir uma nova frente política e enfrentar o regime autoritário que se configura e a nova forma de espoliação dos trabalhadores, isto é, de todos aqueles que vivem de seu trabalho. É difícil prever a evolução da con juntura, mas com o acirramento dos movimentos sociais e da repressão começa a exist ir a necessidade de os que lutam pela democracia se organizarem, cada grupo em seu território, seja pela ativação de entidades locais, seja pela criação de organismos de base, coletivos horizontais, suprapartidários, formando núcleos de resistência. A aposta é refundar a democracia em bases populares, para a defesa dos interesses das maiorias. Se as eleições de 2018 2018 ainda são um importa nte marco dessa disputa, é preciso olhar para um horizonte mais amplo, organizar a resistência e entender que a construção de um pensamento hegemônico se faz no dia a dia, disputando ideias e políticas, fazendo a crítica das políticas atuais e apresentando alternativas para disputar corações e mentes.
1 Eduardo Militão, “Estudos apontam perda de R$ 1 tri em renúncia fiscal após leilão do pré-sal”, UOL, 31 out. 2017. 2 Pesquisa do Instituto Ipsos, dez. 2017.
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UNIVERSIDADES PÚBLICAS
Sobre o caráter da burguesia brasileira No projeto-programa em vigor no governo Temer, comandado por uma burguesia cosmopolita com “complexo de vira-latas”, não existe uma nação nem interesses nacionais. Assim, ele não necessita de universidades públicas que pratiquem, de forma integrada, o ensino, a pesquisa e a extensão – e ajudem a formar uma nação POR LUIZ FILGUEIRAS, GRAÇA DRUCK E UALLACE MOREIRA*
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m 2017, as universidades públicas brasileiras, em especial as federais, entraram na mira do governo Temer, tornando-se, concomitantemente, a “bola da vez” dos ataques da grande mídia corporativa. A ofensiva orquestrada, de tentativa de desqualificação e desmoralização dessas instituições, contou com a participação do Banco Mundial (Bird), do Poder Judiciário, do Ministério Público e da Polícia Federal – os três últi mos inspirados pela Operação Lava Jato. No plano do financiamento do Estado para as universidades federais, o governo Temer, apoiado na “PEC da morte”, que congelou os gastos correntes federais por vinte anos, reduziu o repasse de recursos para essas instituições – tanto os gastos com investimentos, com a paralisação de inúmeras obras que vinham sendo executadas, como os gastos correntes ordinários que garantem o funcionamento cotidiano das universidades federais. Na esfera do Ministério Público, do Poder Judiciário e da Polícia Federal, as universidades federais foram agredidas duplamente, numa tentativa de criminalização e desmoralização de sua comunidade e de seus dirigentes, no mesmo estilo e com o mesmo modus operandi empregado pela Operação Lava Jato. Tendo por justificativa a investigação de supostos desvios de recursos, foram invadidas as instalações de duas universidades federais, a de Santa Catarina (UFSC) e a de Minas Gerais (UFMG), com a “condução coercitiva” de dir igentes e professores, o uso de enorme aparato policial – homens mascarados portando armas de grosso calibre – e grande mobilização midiática, como se houvesse organizações criminosas agindo no interior dessas instituições, e professores professores e reitores fossem bandidos e operadores dessas supostas organizações. Tudo isso feito sem nenhuma convocação anterior desses servidores públicos para prestar esclarecimentos e sem nenhuma acusação formal. No caso mais dramático, o da UFSC, seu reitor, abalado psicologicamente – depois de conduzido arbitrariamente às instalações da Polícia Federal e de ter sido vítima de violência e humilhação em revista íntima, além de ficar proibido de entrar na universi-
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dade que dirigia –, suicidou-se, jogando-se de cima de um andar de um shopping de Florianópolis. Toda a operação foi executada sob a responsabilidade de uma delegada que havia trabalhado na Operação Lava Jato, com as mesmas arbitrariedades e utilizando os mesmos métodos de exceção da “República de Curitiba”. Para completar as agressões às universidades públicas, no final de 2017 apareceu na cena política um “estudo” (assim denominado para dar impressão de ser científico e, portanto, irrefutável) do Banco Mundial.1 Com 160 páginas e encomendado pelo então ministro da Fazenda do governo Dilma, Joaquim Levy, trata-se na verdade de um documento político de apoio às contrarreformas neoliberais e ao ajuste fiscal permanente que vêm sendo colocados em prática pelo governo Temer. Seu objeto central é o gasto corrente (primário) do governo federal, em especial os gastos sociais com a Previdência e a seguridade social, a saúde pública, a educação pública e os salários dos servidores públicos – na linha de que “o governo gasta demais e
gasta ineficiente e injustamente”. Portanto, deve-se, e pode-se, cortar esses gastos, tornando-os, supostamente, mais eficientes, equitativos e justos. No entanto, a parte dedicada ao ensino superior, em particular às universidades federais, resume-se a sete páginas, pois o foco do documento é a Previdência Social, 2 tida pelo capital financeiro como “a joia da coroa” por um motivo compreensível: depois dos gastos com o pagamento dos juros e amortizações da dívida pública, que consomem mais de 50% do orçamento do governo federal, a Previdência Social é o segundo maior gasto, correspondendo a pouco mais de 25%. Por sua vez, os gastos com saúde e educação representam de 3% a 4%, enquanto as demais rubricas, como habitação, saneamento, ciência e tecnologia etc., não chegam, cada uma, a 1%. 3 Portanto, é a Previdência Social que mais pode transferir recursos para o capital financeiro – diretamente, ao aumentar o superávit fiscal primário, e indiretamente, ao “empurrar” parte de seus beneficiários para os fundos de pensão privados.
A parte do “estudo” “estudo” dedicada dedicada à crítica às universidades públicas federais é de um primarismo e uma grosseria sem par, evidenciando a ligeireza e a má-fé com que foi realizada. O objetivo é um só: desqualificar essas instituições taxando-as de ineficientes, incompetentes e injustas, pois desperdiçam dinheiro público e favorecem os alunos pertencentes às famílias de nível de renda mais elevado. O corolário daí resultante é a defesa da instituição do ensino pago e da redução do financiamento das universidades públicas. Para demonstrar a ineficiência, o Bird compara o gasto por aluno das universidades federais com o das universidades privadas, apontando uma diferença enorme entre ambos: segundo ele, entre 2013 e 2015, o custo médio anual por estudante foi de R$ 40.900 nas universidades públicas federais e apenas R$ 14.850 nas universidades privadas com fins lucrativos. Por outro lado, para evidenciar o caráter regressivo dos gastos públicos, aponta que 65% dos estudantes das universidades federais pertencem aos 40% mais ricos da população, enquanto apenas 20% fazem parte dos 40% dos mais pobres. Com base nessas duas supostas constatações, o Bird propõe a redução dos recursos destinados às universidades federais, o que as obrigaria a “redefinir sua estrutura de custo e/ou buscar recursos em outras fontes”, e a introdução do ensino pago. Em suma, o “estudo” do Bird é a velha cantilena da necessidade de um ajuste fiscal, defendido desde sempre pelo capital financeiro e vocalizado pela grande mídia corporativa apoiada em “especialistas” (economistas ortodoxos) e editoriais focados no tema. Nesse contexto, os gastos públicos com o ensino superior, assim como todos os demais gastos sociais, também devem se adequar e ser reduzidos, favorecendo o aumento do superávit fiscal para o pagamento dos juros e amortizações da dívida pública. Antes de demonstrar demonstrar o caráter fraudulento desse “estudo” do Bird, é necessário esclarecer pelo menos três pontos acerca da dívida pública do Estado brasileiro e do “ajuste fiscal” do governo Temer, colocando em evidência os argumentos falaciosos dos “especialistas” do mercado.
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Primeiro: a enorme dívida pública atual não resultou do excesso de gastos correntes em relação às receita s dos sucessivos governos. Na verdade, ela decorreu de sucessivas políticas macroeconômicas executadas nas últimas quatro décadas, em especial o chamado “ajuste monetário do balanço de pagamento” – adotado pelo governo Figueiredo na década de 1980, por pressão do FMI, durante a crise da dívida externa dos países periféricos – e “o Plano Real e a abertura comercial-financeira” dos anos 1990 e 2000, postos em prática quando do aprofundamento do projeto-programa político neoliberal no país.4 Essas políticas acarretaram o endividamento do Estado aceleradamente; no primeiro caso, com a transformação da dívida externa privada em dívida externa pública, cujo pagamento, posteriormente, exigiu do Estado a emissão de títulos de dívida interna como contrapartida para a compra dos dólares gerados pelos exportadores privados. No segundo caso, a sustentação da âncora cambial como instrumento de combate à inflação, ao sobrevalorizar o real, implicou elevadas taxas de juros e g rande emissão de títulos de dívida pública interna – como forma de atrair capitais externos de curtíssimo prazo, condição para evitar uma crise cambial que, contudo, acabou eclodindo em fins de 1998 e começo de 1999. Ambas as políticas aumentaram radicalmente o montante da dívida pública, além de autonomizarem sua evolução com relação aos gastos correntes dos sucessivos governos; ou seja, a dívida pública cresceu mesmo com equilíbrio orçamentário ou superávit primário. De 1999 a 2013 – portanto, durante catorze anos –, os sucessivos governos obtiveram superávits primários e, assim mesmo, a dívida cresceu em termos absolutos e, em alguns anos, até mesmo como proporção do PIB. 5 Segundo: os déficits que passaram a ocorrer a partir de 2014 decorreram inicialmente da desaceleração da economia e posteriormente da política equivocada de desoneração fiscal patrocinada pelo primeiro governo Dilma, seguida pelo início de um ajuste fiscal em seu segundo governo, radicalizado violentamente pela “PEC da morte” do governo Temer. Em ambos os casos, o resultado foi a queda da arrecadação federal e o aparecimento dos déficits – portanto, um problema pelo lado da receita –; enquanto a economia cresceu, a regra foi a existência de superávit primário. Terceiro: na verdade, o problema das contas públicas são os gastos financeiros, com o pagamento de juros e amortizações da dívida, que absorvem mais de 50% do orçamento e crescem permanentemente, mesmo com
superávit. No entanto, o ajuste fiscal, como seria de esperar, não inclui o ajuste dos gastos financeiros. Com relação à suposta ineficiência e ao desperdício das universidades federais, o Bird rebaixa a complexidade delas ao compará-las às instituições de ensino privado que, com raríssimas exceções, limitam-se ao ensino, contando, para isso, com um corpo docente bem menos qualificado/titulado, em tempo parcial, mal remunerado e carregado de turmas para dar aulas. 6 As universidades federais têm como regra, além do ensino, atividades de pesquisa e extensão, hospitais universitários de alta complexidade, clínicas e laboratórios, museus, orquestras, teatros, cinemas, escritórios de assistência jurídica à população mais pobre etc., contando, para isso, com um corpo docente altamente qualificado/ titulado e, na maior parte, trabalhando em tempo integral. Como consequência dessa enorme diferença, afirmar que as universidades federais têm um custo por estudante maior do que as universidades privadas não tem a menor credibilidade, se não forem separados dos gastos totais realizados pelas primeiras os gastos com todas as outras atividades listadas anteriormente. Além disso, é preciso abater o pagamento das aposentadorias e pensões que, absurdamente, também faz parte e compõe o orçamento das universidades federais. Apenas depois dessa operação de subtração é que se pode fazer uma comparação do custo por estudante entre os dois tipos de institu ição. Estudo do professor Nelson Cardoso Amaral7 evidencia que, depois de realizada a devida subtração mencionada, o custo médio anual do ensino, por aluno, nas universidades federais, para o ano de 2015, foi de R$ 13.875 – menor do que a média da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE), de R$ 15.772. Esse mesmo estudo, baseado em uma pesquisa socioeconômica realizada com os estudantes, evidencia que pouco mais de 51% tem renda familiar de até três salários mínimos (R$ 2.811), tendo por base o valor do salário mínimo de 2017; se considerarmos todos aqueles cuja família tem renda de até seis salários mínimos (R$ 5.622), atingiremos 76% do total de estudantes das universidades federais. Apenas 10% deles estão no topo da distribuição, isto é, pertencem a famílias com renda acima de dez salários mínimos (R$ 9.370). O estudo de Amaral desmente também a afirmação do Bird de que os estudantes das universidades federais são egressos principalmente de escolas privadas de nível médio: em 2014, 64% dos estudantes das universidades federais cursaram o ensino médio integral-
mente, ou a maior parte dele, em escolas públicas e, em sentido oposto, 36% cursaram em escolas particulares. A violência contra as universidades públicas, assim como as demais iniciativas do governo Temer, expressa um projeto-programa político claro e coerente de natureza neoliberal, tal como efetivado nos países capitalistas periféricos e dependentes, que ocupam uma posição subordinada na divisão internacional do trabalho. Nesses países, a superexploração do trabalho é regra e a concentração de renda e riqueza é indecente: no Brasil de hoje, os cinco indivíduos mais ricos (cinco!) detêm um patrimônio equivalente ao da metade mais pobre do país (mais de 100 milhões de pessoas!). 8 Nesse projeto-programa comandado por uma burguesia cosmopolita com “complexo de vira-latas”, subordinada e subserviente ao imperialismo, não existe uma nação nem interesses nacionais; não há a pretensão de modificar a posição subalterna do país (exportador de commodities) na divisão internacional do trabalho; não cabem a defesa, a reserva e o uso dos recursos naturais do país em favor da maioria da população; tudo é avaliado pela lógica e a métrica do capital financeiro; não se admite distribuição de renda e da propriedade, com a efetivação de uma reforma agrária e a ta xação da riqueza, da herança e dos mais ricos; não se necessita de grandes empresas nacionais e estatais que desenvolvam tecnologia própria, nem de instituições públicas de pesquisa e inovação; em suma, não se necessita de universidades públicas que pratiquem, de forma integrada, o ensino, a pesquisa e a extensão – e ajudem a formar uma nação. Estas podem restringir sua atuação apenas ao ensino (pago) e, assim mesmo, em posição minoritária, pois atualmente as instituições privadas de ensino superior já absorvem 75% dos est udantes un iversitários do país – embora, em geral, ofereçam um “serviço” de péssima qualidade. Na verdade, a maior tragédia do Brasil é o caráter de sua grande burguesia. Constituída frágil e t ardiamente no contexto da expansão do capitalismo no plano mundial, ela não conseguiu fazer uma revolução democrática nem se defrontar com o imperialismo e dele se distinguir. Mais recentemente, aderiu de corpo e alma à lógica da financeirização difundida pela globalização, constituindo-se, sobretudo, como uma burguesia rentista e de negócio.9 O resultado final é que, diferentemente das burguesias dos países imperialistas, ela não conseguiu construir e liderar uma nação em sua plenitude. De fato, o Brasil é uma nação incompleta, desarticulada e sem coesão e identidade entre seus diversos
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segmentos sociais – que não sejam as características superficiais (a maior parte negativa) que supostamente definiria um brasileiro genérico. Por tudo isso, a finalização da ta refa de constituição de uma nação brasileira completa, articulada e coesa e de uma universidade pública que expresse e sirva a essa urgência não pode mais ser reali zada por suas classes dominantes al ienadas. Resta saber se, no contexto de uma (des)ordem mundializada, as classes subalternas ainda terão a capacidade política de levar adiante essa tarefa histórica. *Luiz Filgueiras, Graça Druck e Uallace Moreira são, respectivamente, professor titu-
lar de Economia, professora titular de Sociologia e professor adjunto de Economia da Universidade Federal da Bahia (UFBA).
1 Bird, “Um ajuste justo: análise da eficiência e equidade do gasto públi co no Brasil”, nov. 2017. 2 Aqui também a estratégia do capital financeiro e do Bird, com amplo apoio midiático, é desqualificar e desmoralizar a Previdência Social pública, vendendo a mentira da existência de um déficit estrutural insustentável – com base em manipulação metodológica que a retira da rubrica maior da seguridade social, composta ainda pela assistência social e a saúde, e some com parte significativa de suas fontes de financiamento –, além de taxá-la como injusta. 3 Essas informações constam no site do Tesouro Nacional, particularmente quando se considera a consolidação das contas públicas, segundo as despesas por função da União. 4 Ver Luiz Filgueiras, História do Plano Real , Boitempo, São Paulo, 2000, 2004 e 2016. 5 Em novembro de 1999, primeiro ano do segundo governo FHC, a dívida interna mobiliária federal já era de R$ 415 bilhões, ainda que durante o governo Collor e o primeiro de FHC 44 empresas estatais tenham sido privatizad as com o intuito de pagá-la. Catorze anos depois, em 2013, e após sucessivos superávits fiscais primários, essa dívida atingiu R$ 1,9 trilhão. A partir da crise eclodida em 2014, ela evoluiu para R$ 3,3 trilhões em setemb ro de 2017 (Banco Central do Brasil). 6 No ano passado, estimuladas pela entrada em vigor da reforma trabalhista, várias dessas instituições promoveram demissões em massa de professores com titulação e salários mais elevados, com o objetivo de recontratá-los de forma precária: a Estácio de Sá anunciou a demissão de 1,2 mil professores; a Faculdades Metropolitanas Unidas (FMU) demitiu pelo menos duzentos professores; a Anhembi Morumbi, que integra o mesmo grupo da FMU, demitiu ao menos 150; e a Universidade UniRitter, que atua na região sul do Brasil, demitiu mais de cem professores. 7 Andifes, “A hora da verdade para as universidades federais brasileiras: metas do PNE (2014-2024) e 10 mitos a serem debati dos e desvendados”, 2017. 8 Segundo a Oxfam, confederação de ONGs presente em 94 países que trabalha para a redução da desigualdade. Relatório de 2018. 9 Segundo a colunista social Hildegard Angel, em texto publicado pela Revista Fórum, “o rico brasileiro de verdade já desistiu do Brasil. Está pouco se lixando se tem gente pobre, vivendo e defecando nas ruas. Não é que ele seja insensível, é que ele não vive aqui. Ele está por aqui. Tem seu apartamento à beira-mar, frequenta seu clube, onde joga tênis, convive com seu reduzido círculo de amigos e ponto. Depois, embarca no seu jato para a residência lá fora. O Brasil é para ganhar dinheiro e remeter dinheiro. Esse rico não tem mais o embaraço da língua, como alguns ricos de gerações anteriores, pois os filhos e netos já dominam o inglês desde que nascem e [nem] sequer conhecem a nossa História. O rico brasileiro é globalizado, não tem brio patriótico, ao contrário, sente bastante preconceito e desprezo em relação ao nosso país, onde lamenta ter nascido”.
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NEOLIBERALISMO E A COLONIALIDADE DO SABER
A Unilab e o desmonte da educação
o ã c r a l A o t a n e R ©
A educação é uma frente bastante visada pelo movimento neoliberal. Projetos como o Escola sem Partido e os cortes maciços no orçamento têm o intuito de mantê-la sob as rédeas da colonialidade do saber, na qual o conhecimento possa continuar sendo privilégio de alguns grupos. Nesse contexto de ataques diretos, estão em jogo os projetos Unila e Unilab POR JACQUELINE COSTA E VICO MELO*
omo já dizia Wallerstein em seu livro Capitalismo histórico e civilização capitalista, o capitalismo é o processo da mercantilização de tudo – desde o objeto até a própria vida, humana ou não. O capitalismo, desde sua ascensão no século XIV com a expansão europeia por meio da exploração dos recursos naturais no continente americano e a escravização em massa de corpos ameríndios e africanos, baseou-se no processo de transformar o mundo da vida nas colônias num mundo da morte e da não existência. O colonialismo é parte integrante do capitalismo, e é por meio dele que este último põe em prática toda a sua “potencialidade”. A consolidação do capitalismo no sistema internacional não ocorre somente por vias econômicas, como muitas vezes somos levados a crer, imbuídos tanto de uma ótica liberal ou marxista ocidental determinista, mas ocorre, sobretudo, pelo fato de ser um projeto para além do econômico, sendo político, cultural (e de pensamento) e social. O processo de legitimação por esses meios permitiu (e permite) ao capitalismo promover toda a sua violência e exploração contra diversas sociedades, tornando-as espaços vazios homogêneos. O neoliberalismo que está a pleno vapor neste momento nada mais é que uma das várias faces do próprio capitalismo. Na América Latina, após uma década de governos abertamente neoliberais, o século XXI via em seu início o surgimento de governos de centro-esquerda e esquerda, modificando as relações entre o Estado e a sociedade, assim como entre o Sul global e o Norte global. É importante ressa ltar que, mesmo estando fora do poder, esses grupos que apoiavam o modelo neoliberal tiveram uma apropriação de riqueza sem comparação na história democrática brasileira, graças à alta das commodities no mercado internacional, ao tripé macroeconômico e a empréstimos a fundo perdido concedidos ao agronegócio. O discurso da justiça social e do
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combate à fome e à desigualdade social era o mote do debate nos fóruns internacionais, exigindo-se dos países mais ricos que realmente colocassem “as mãos na massa” para modificar o quadro de alta desigualdade existente em nível global. Nesse contexto destacamos as universidades públicas brasileiras (estaduais, federais e institutos federais) e o importante investimento feitos pelos governos dos ex-presidentes Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff. É possível afirmar que se criou um ambiente favorável para reivindicações por cidadania, pelo direito à educação formal e pela promoção da igualdade de oportunidades concretizadas por meio de uma agenda de ações positivas, que possibilitou a criação de espaços institucionais de produção do conhecimento salvaguardados pelas políticas afirmativas e de reparação, interiorização e internacionalização do ensino. Estamos nos referindo à criação da Universidade Federal da Integração Latino-Americana (Unila) e da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (Unilab), como resultado concreto de demandas dos movimentos sociais. Aqui destacamos os movimentos negro, indígena e dos(as) trabalhadores(as) rurais sem terra e os Núcleos de Estudos Afro-Brasileiros e Indígenas das universidades públicas brasileiras (Neab/Neabi), que do ponto de vista estatístico e em razão de pautas históricas de reivindicação lutaram pelo aumento e aprimoramento do acesso e da permanência no ensino superior. A Unilab, um projeto político desenhado por Lula e continuado por Dilma, foi pensada para promover a integração, a interiorização1 e a internacionalização do ensino superior, assim como para possibilitar a aproximação e um amplo diálogo com os países da cooperação Sul-Sul, pertencentes à Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP), com o objetivo de atender estudantes oriundos do Brasil, dos países africanos de língua portuguesa (Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau,
São Tomé e Príncipe, Moçambique) e do Sudeste Asiático (Timor-Leste). Criada pela Lei n. 12.289, de 20 de julho de 2010, possui quatro campi : Malês (São Francisco do Conde/BA), Palmares (Acarape/CE), Liberdade e Auroras (Redenção/CE), onde também funciona sua sede administrativa. Dados quantitativos da Diretoria de Registro e Controle Acadêmico(DRCA), de outubro de 2017, registram um total de 6.803 estudantes matriculados nos cursos de g raduação, pós-graduação, presencial e a distância. Nos cursos presenciais, foram registrados 3.995 estudantes, por nacionalidade: Brasil, 2.964; Guiné-Bissau, 622; Angola, 151; Cabo Verde, 91; São Tomé e Príncipe, 84; Timor-Leste, 51; e Moçambique, 32. Na pós-graduação stricto sensu presencial: 102. E em cursos a distância: pós-graduação lato sensu, 914; e pós-graduação lato sensu a distância, 1.792. Diante da conquista de ter como sede duas universidades estratégicas do ponto de vista da produção do conhecimento e da promoção da justiça social, hoje vemos o Brasil diante de um quadro basta nte desafiador. Desde agosto de 2016, após um golpe parlamentar-jurídico e de cu nho profundamente neoliberal/colonial, vem se impondo um conjunto de propostas que não foram referendadas pelo voto direto, colocando-se em perigo tudo o que se conquistou até este momento. Um exemplo concreto é a PEC 95, apresentada pelo governo federal e aprovada pelo Congresso Nacional, a qual congela por vinte anos os gastos públicos com saúde e educação. O país como um todo sofre com o impacto do projeto neoliberal e colonialista que mudou a prioridade das políticas públicas e externa, colocando-a nos Estados Unidos e no continente europeu, deixando em segundo plano a relação com os países da América Latina e do continente africano. O projeto colonial/neoliberal age de forma brutal, invisibilizando e silenciando grupos não conformados (indígenas, pobres, negros/as, LGBTT+), assim como por meio de expulsões de
lugares que “nunca foram destinados a tais grupos”, a exemplo das universidades públicas. A tais grupos sempre se destinou, ao imaginário e ao real, o lugar do trabalho, da exploração e da acumulação: os corpos-máquina. A educação, portanto, é uma frente bastante visada por esse movimento neoliberal, em que projetos como o Escola sem Partido e os cortes maciços no orçamento têm o intuito de mantê-la sob as rédeas da colonia lidade do saber, na qual o acesso e a transmissão do conhecimento possam continuar sendo privilégios de alguns grupos. Nesse contexto de ataques diretos à educação estão em jogo os projetos Unila e Unilab, que concentram corpos (negros/as, indígenas, pobres, LGBTT+) e currículos que contestam o status quo atual. A Unila e a Unilab representam projetos importantes de desenvolvimento, de sociedade, de descolonização do saber e de redefinição do projeto de sociedade. Esse cenário de ataques diretos requer de nós um envolvimento conjunto entre a comunidade acadêmica, a sociedade civil e movimentos sociais em defesa de uma universidade pública que garanta a integração, a interiorização e a internacionalização do ensino superior, e que, acima de tudo, possamos transgredir e transformar as fronteiras do saber, como bem nos convocava a ativista norte-americana bell hooks. *Jacqueline Costa é professora do IHL/
Unilab, coordenadora do Bacharelado de Humanidades e Letras (BHU) e doutora em Sociologia (Universidade Federal de São Carlos); e Vico Melo é professor do IHL/Unilab e doutor em Pós-Colonialismos e Cidadania Global (Universidade de Coimbra). 1 Durante os governos Lula e Dilma, esse conceito foi pensado em razão da expansão das instituições de nível superior nas cidades e nos municípios distantes dos grandes centros e das grandes capitais. Entre 2002 a 2014 foram criadas dezoito novas universidades federais, elevando o número de cursos presenciais ofertados no país de 2.047 a 4.867; o número de institutos federais foi ampliado em 31%, o de cursos de graduação, em 86%, e o de pós-graduação, em 316%. Esses dados el evaram o número de municípios atendidos por universidades federais de 114 para 289. Fonte: Inep, 2013.
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ESFORÇOS DO BRASIL E DE SEUS VIZINHOS PARA GARANTIR O DIREITO À EDUCAÇÃO
O dramático panorama do financiamento do ensino Contra postulados que veem a educação como um investimento como outro qualquer, aspecto reforçado na gestão Meirelles-Temer com o congelamento de gastos para os próximos vinte anos, é importante olhar os dados desse financiamento no Brasil e na América Latina e Caribe POR JOSÉ MARCELINO DE REZENDE PINTO*
ma das poucas coisas sobre as quais há um consenso mundial é a importância da educação. As famílias esforçam-se para garantir a melhor instrução possível para suas crianças e jovens. Já as pesquisas acadêmicas mostram o direito à educação como a porta de acesso para a garantia dos demais direitos. E até mesmo economistas que só pensam em lucros e dividendos reforçam o papel do ensino como fator de desenvolvimento econômico e aumento da renda. Em outras palavras, para estes últimos, com base na Teoria do Capital Humano,1 a educação é um investimento como qualquer outro, que deve ser realizado caso haja a possibilidade de retorno. Nessa perspectiva, ela deixa de ser um direito universal, a ser assegurado pelo Estado, e passa a ser entendida como um serviço, mais uma mercadoria a ser regulada pelo “deus mercado”. E aqui começam os problemas: em um mundo em que o setor financeiro amplia seu poder na definição das políticas públicas, a visão da educação como um investimento econômico passa a ser hegemônica. Segundo essa abordagem, quando muito, deve-se garantir a gratuidade nos anos iniciais do ensino fundamental; para os anos seguintes, em especial na educação superior, propõe-se a cobrança de mensalidades e, no caso daqueles que não podem pagar, a receita é o financiamento estudantil, como acontece no Chile, onde não existe ensino superior público gratuito. Aliás, esse princípio já constava na Constituição Federal brasileira de 1967, da ditadura militar, quando tal abordagem econômica comandava o país. Outro ponto de honra nesse tipo de abordagem despontou nos anos FHC e agora retoma com força redobrada na gestão Temer-Meirelles: é o postulado de que mais recursos (melhores salários aos profissionais da educação, equipamentos, redução no número de estudantes por turma etc.) não fazem diferença na qualidade do ensino. 2 E “qualidade de ensino” para essa tu rma
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é sinônimo de notas em testes padronizados, como a Prova Brasil, o Enem, o Programa Internacional de Avaliação de Alunos (Pisa) e tantos outros aos quais são submetidos os estudantes do Brasil e do mundo. Para melhorar a qualidade, ou seja, a nota obtida nesses testes, receitam pouco dinheiro e muita competição entre as escolas. Ou seja, mais mercado, mais “livre” barganha entre pais e escolas. E, mais uma vez, o Chi le é o grande timoneiro, por meio do sistema de “vouchers”, em que, em tese, a fam ília escolhe a escola em que vai matricula r seu filho ou filha. É importante lembrar que todas essas reformas educacionais foram colocadas em prática em plena ditadura de Augusto Pinochet e até hoje o regime que lhe seguiu tenta lidar com suas consequências, como o aumento da desigualdade no acesso à educação e a incapacidade das famílias de pagar o financiamento estudantil no ensino superior. Aliás, o mesmo acontece nos Estados Unidos, onde se vive uma “bolha” de inadimplência. Já o Brasil caminha celeremente nessa direção com o Fundo de Financiamento Estudantil (Fies), cuja inadimplência supera os 50% e cujo custo aos cofres públicos é superior a tudo o que se gasta com a folha de pagamento das universidades federais. 3 Outra característica interessante é que todas essas teorias, que tra zem receitas de mercado para a educação, se originam em países ricos, onde, curiosamente, não fazem muito sucesso. Nesses locais, a gratuidade do ensino é a regra e os va lores gastos por estudante no sistema público são muito superiores àqueles praticados nos países com menos recursos, ou remediados, como o Brasil. Aqui, seus discípulos locais, com enorme espaço na mídia, sempre afirmando que o país gasta o suficiente na rede pública de educação básica, não se envergonham em matricular seus filhos em escolas particulares, cujas mensalidades superam R$ 4 mil, um valor dez vezes superior ao gasto médio da rede pública de ensino. Para jogar luz nesse campo, a Campa-
nha Latino-Americana pelo Direito à Educação (Clade) lançou em setembro de 2017 o Sistema de Monitoramento do Financiamento do Direito Humano à Educação na América Latina e no Caribe (http://monitoreo.campanaderechoeducacion.org), que reúne dados do financiamento educativo público em vinte países da região referentes ao período de 1998 a 2015. Com esse instrumento, a Clade procura dotar os segmentos da sociedade civil que lutam por uma escola pública de qualidade de uma ferramenta útil de reivindicação e pressão política junto aos governos nacionais com base em indicadores concretos sobre o financiamento da educação. A Clade é uma rede plural de organizações da sociedade civil, com presença em dezesseis países da América Latina e do Car ibe, que tem como missão defender o direito humano a uma educação transformadora pública, laica e gratuita para todas e todos, durante toda a vida e como responsabilidade do Estado.
O custo do Fies aos cofres públicos é superior a tudo o que se gasta com a folha de pagamento das universidades federais As informações do Sistema de Monitoramento podem ser consultadas de maneira individual para cada país ou de modo comparativo para toda a região e estão organizadas em três dimensões de análise: esforço financeiro público, disponibilidade de recursos por pessoa em idade escolar e equidade no acesso escolar. A primeira dimensão (esforço financeiro público ) refere-se à quantidade total de recursos que cada Estado destina ao sistema educativo público, como parte do orçamento nacional to-
tal e da riqueza produzida no país (PIB). A segunda dimensão ( disponibilidade de recursos ) centra-se nos recursos públicos disponíveis para cada pessoa em idade escolar. Esse indicador é um avanço em relação às medidas utilizadas por organismos como Unesco e Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE), que consideram apenas o valor gasto com estudantes incluídos no sistema escolar. A Clade, por sua vez, considera todas as pessoas matriculadas na escola (pré-escola, ensino fundamental e ensino médio) e também aquelas da faixa etá ria correspondente que estão fora do sistema educativo. A terceira dimensão aborda a equidade no acesso escolar , observando-se em particular a diferença entre as taxas de acesso à escola do quintil de renda mais alta e do quinti l de renda mais bai xa da população de 13 a 19 anos de idade em cada país. Essa dimensão traça as desigualdades históricas que operam nos sistemas públicos de educação no que diz respeito ao acesso escolar para jovens de famílias com diferentes níveis de renda. Além de apresentar o va lor dos indicadores, o sistema de monitoramento mostra, para cada pa ís, o quanto ele se distancia de um parâmetro de referência considerado adequado. Assim, para o componente do gasto público em educação em relação à despesa total dos Estados, o parâmetro utilizado é de 20%, va lor estabelecido no Marco de Ação para a Educação 2030 4 e acordado entre os Estados da região na Reunião Regional de Ministros da Educação da América Latina e do Caribe que aconteceu em Lima, Peru, em 2014. Nessa mesma reunião, os Estados da região definiram como meta a lcançar um gasto público de 6% do PIB em educação. Portanto, para a d imensão esforço financeiro público , os parâmetros são 20% do gasto público total e 6% do PIB. Já para a di mensão disponibilidade de recursos , o parâmetro utilizado foi de US$ 7.221,60 anuais por pessoa em idade escolar, que é o valor médio investido por estudante
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pela metade dos países da OCDE com o valor desse PIB é pequeno quando menor PIB por habitante.5 Por fim, pa- comparado à sua população e, princira a dimensão equidade no acesso esco- palmente, quando confrontado com seus desafios educacionais. E é nesse lar , o parâmetro seria uma diferença igual a zero entre os níveis de acesso aspecto que a situação se configura escolar dos quintis de jovens de 13 a 19 dramática para os paí ses da região, coanos, com maiores e menores recursos mo mostra o Grá fico 3. Este apresenta da população urbana (os detalhes me- o valor disponível por criança ou jotodológicos de cada uma das dimen- vem em faixa de escolari zação (pré-essões do sistema de monitoramento es- cola, ensino fundamental e ensino tão explicados no site). médio) medido em dólares PPP (Poder Nos gráficos 1, 2 e 3 encontramos de Paridade de Compra, na sigla em inuma visão geral dos indicadores rela- glês), um indicador que busca tornar cionados ao esforço dos países e aos comparável os gastos nos diferentes recursos disponíveis por pessoa em países. idade escolar. Por limitação de espaço Lembrando que para esse indicador não será discutida a dimensão equi- o valor desejável adotado pela Clade é de US$ 7.221,60 por criança ou jovem dade , mas as informações encontram-se no site. em faixa de escolarização, percebe-se o O Gráfico 1 apresenta quanto o quão distante os países da região estão gasto público em educação representa do valor gasto por estudante dos países da despesa total dos governos. Consta- com menor renda per capita da OCDE. ta-se que apenas seis países atingem o Apenas Costa Rica e Chile estão ligeiraparâmetro dos 20% do gasto público mente acima da metade do valor de retotal como investi mento em educação ferência, e doze países estão abaixo de (Guatemala, Costa Rica, Paraguai, Ni- um terço desse parâmetro. No Brasil, é carágua, Venezuela e Chile), ficando a comum ouvir de diferentes governos Guatemala com uma participação de que o país gasta em educação um per24,1%, em uma melhor situação, e o centual do PIB equiva lente ao dos paíEquador, no polo extremo, com 12,8%. ses ricos, o que é verdade, mas, quando O Brasil, com 16%, situa-se 20% abaixo se analisa o recurso disponível, inforda meta estabelecida. mação que de fato importa, constataContudo, de pouco adianta um -se um valor inferior à metade daquele grande comprometimento do gasto disponível nos países com menos repúblico total com a educação se o país cursos da OCDE. Por isso, é fundamenapresenta uma carga tributária baixa tal, nas análises comparativas, consiem relação ao PIB. Por isso, no Gráfico derar o conjunto dos três indicadores, 2, analisa-se quanto esse gasto público ressaltando-se que aquele que realem educação representa do PIB de ca- mente impacta no dia a dia das escolas da país. E aqui o exemplo da Guatema- é o recurso disponível (Gráfico 3). la volta a ser interessante, pois, muito Os dados apresentados mostram a embora esse país destine 24,1% de sua importância do tamanho da econodespesa total para a educação pública, mia, medida em especial por meio de esse esforço representa apenas 2,96% seu PIB por habitante, para a garantia do PIB, ou seja, menos da metade dos de recursos adequados para suas polí6% do PIB, que são o valor de referên- ticas públicas. Por exemplo, a considecia. Apenas cinco países (Cuba, Bolí- rada baixa carga tributária de 26% do via, Costa Rica, Venezuela e Brasil) PIB dos Estados Unidos propicia aos atingem essa meta, ficando Cuba na governos cerca de US$ PPP 14,5 mil melhor posição. por habitante; já a carga tributária de Ainda sobre o Gráfico 2, chama 32% do PIB no Brasil, considerada alta atenção o fato de dez países não atingi- pelos economistas neoliberais, signifirem 5% do PIB e de dois deles não atin- ca apenas US$ PPP 5 mi l por habitante. girem nem 3% do PIB aplicados em Fica evidente, assim, o mal que faz em, educação pública (Guatemala e Repú- aos países da região, as política s recesblica Dominicana). Esse indicador sivas que estão sendo colocadas em mostra a importância da ex istência de prática em vários deles. No caso do sistemas tributários que permitam aos Brasil, retroagiu-se em 2016 ao PIB por Estados dispor de recursos para a apli- habitante de 2008; em outras palavras, cação de políticas públicas. Países co- nove anos de crescimento perdidos. mo Dinamarca, Finlândia e Suécia, O sistema de monitoramento lanque conseguiram construir um Estado çado pela Clade também permite anade bem-estar social, possuem uma lisar a evolução das diferentes dimencarga tributária acima de 40% do PIB. sões para o conjunto da região. Um Já a maioria dos países da América La- fato bastante positivo, por exemplo, é tina e do Caribe apresenta uma carga que Argentina, Brasil, Chile, Costa Riabaixo de 20% do PIB. O Brasil fica em ca, México, Uruguai e Venezuela auuma faixa intermediária, com uma mentaram significativa mente a dispocarga tributária de 32% do PIB.6 nibilidade de recursos por pessoa em Finalmente, não basta um país idade escolar desde 1998. Nos casos de destinar à educação pública um per- Argentina e Brasil, surpreende que os centual adequado em relação ao PIB se montantes disponíveis por pessoa em
Obs.: Maior valor entre 2013 e 2015, com exceção dos seguintes países, em que se usou o dado mais recente disponível: Venezuela (2009), Cuba e Nicarágua (2010), Uruguai (2011) e República Dominicana (2012).
Obs.: Maior valor entre 2013 e 2015, com exceção dos seguintes países, em que se usou o dado mais recente disponível: Venezuela (2009), Cuba e Nicarágua (2010), Uruguai (2011) e República Dominicana (2012).
Obs.: Maior valor em US$ PPP entre 2013 e 2015, com exceção dos seguintes países, em que se usou o dado mais recente disponível: Venezuela (2009), Nicarágua (2010), Uruguai (2011) e República Dominicana (2012). Não há informação para Cuba.
. e b i r a C e a n i t a L a c i r é m A a n o ã ç a c u d E à o n a m u H o t i e r i D o d o t n e m a i c n a n i F o d o t n e m a r o t i n o M e d a m e t s i S : s o c fi á r g s o d e t n o F
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idade escolar praticamente duplicaram entre o fim dos anos 1990 e os dois últimos triênios disponíveis (20102012 e 2013-2015 para a Argentina; 2007-2009 e 2010-2012 para o Brasil). No entanto, como já comentado, mesmo os países que apresentaram os maiores investimentos no período estudado ainda estão longe de atingir o valor de referência. O país mais bem colocado é a Costa Rica, que dedicou US$ 3.860,11 para cada pessoa em idade escolar, por ano, no triênio 20132015, valor que é praticamente a metade da referência. UM RÁPIDO OLHAR SOBRE O BRASIL
O Brasil, como se pode ver no item anterior, não faz bonito no que se refere ao esforço no financiamento da educação. Um resultado que surpreende, considerando que já estamos no segundo Plano Nacional de Educação (PNE) aprovado no período pós-ditadura. O primeiro deles (Lei n. 10.172/2001) determinava a ampliação dos gastos públicos no ensino público para 7% do PIB. Contudo, o veto do presidente Fernando Henrique Cardoso inviabilizou o cumprimento dessa meta. Já o atua l PNE (Lei n. 13.005/2014) estabelece um compromisso ainda maior com o fina nciamento da educação: atingir 7% do PIB até 2017 e 10% em 2024 (meta 20 do PNE). Além disso, determinava a criação, até 2016, do Custo Aluno Qualidade inicial (C AQi), um parâmetro de financiamento que visa assegu rar condições básicas de financiamento para todas as escolas públicas do Brasil.7 Se não houve veto à meta de financiamento do atual PNE, as políticas recessivas do início do segundo governo Dilma, acentuadas ao extremo pela gestão Temer-Meirelles, têm inviabilizado o avanço esperado no financiamento educativo público. O Gráfico 4 mostra a evolução, em termos reais, das despesas totais da União com a manutenção e o desenvolvimento do ensino, assim como os gastos com a educação superior. Os dados indicam que, desde 2012, a despesa total com educação vem caindo em termos reais e, no caso da educação superior, essa queda acontece desde 2014. No total, de 2012 a 2016 houve redução de R$ 14,2 bilhões, atingindo mais a educação básica. No caso da educação superior, a queda foi menor, mas seus efeitos são igualmente graves, pois a rede federal se encontra em um momento de crescimento. Por outro lado, como indica a Tabela 1, no mesmo período assistiu-se a um crescimento impressionante dos recursos públicos destinados às universidades privadas por meio do Fies. Os dados apontam para a mobilização de recursos públicos ao sistema privado de educação superior, seja por despesas diretas, seja com base em sub-
Fonte: Autor, com base em dados da Secretaria do Tesouro Nacional (STN). Deflator IPCA. TABELA 1. EVOLUÇÃO DOS VALORES DOS RECURSOS DO FIES (R$ BI CORRENTES)
Fies (R$ bi correntes)
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2012
2013
2014
2015
2016
Despesas financeiras Aportes ao FGEDUC Despesas administrativas Subsídio implícito Custo Total
1,8 0 0,05 0 1,9
4,5 0,1 0,2 0,5 5,3
7,6 0 0,1 0,6 8,3
13,7 1,3 0,07 1,8 16,9
14 0,5 0,7 6,7 21,9
19,3 0,6 1 11,4 32,3
Fonte: Diagnóstico Fies. Ministério da Fazenda, jun. 2017.
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Temer-Meirelles, por meio da Emenda Constitucional n. 95/2016, que congela os gastos primários do governo federal por vinte anos, jogou por terra qualquer possibilidade de efetivação do atual PNE, uma vez que as despesas com educação, assim como com as demais políticas sociais, não terão nenhum crescimento real, podendo inclusive sofrer redução. Além disso, estimulados pelo governo federal, estados e municípios estão colocando em prática suas versões locais da EC 95, particularmente porque a aderência a suas normas draconianas é condição para a rolagem de suas dívidas junto à União. Essas medidas acabam com a vigência do artigo 212 da Constituição Federal, que estabelece a vinculação de uma parcela da receita de impostos para a manutenção e o desenvolvimento do ensino. Somente a ditadura de Getúlio Vargas e a militar fizeram o mesmo. Para os milhões de pessoas jovens e adultas que têm o direito constitucional à educação pública de qualidade e veem seu futuro negado não há outra saída que não pa sse pela revogação da EC 95 e pela luta contra a recessão econômica. Luta que é também da população brasileira que atuou pela aprovação do PNE 2014-2024 e agora vê esse projeto de mudança sustentável da educação ser destruído por um governo que não tem legitimidade e está comprometido com as forças mais retrógrada s do país. Mas 2018 está só no começo. *José Marcelino de Rezende Pinto é pro-
fessor da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (USP) e vice-diretor da Campanha Latino-Americana pelo Direito à Educação (Clade) Brasil.
Fonte: Autor, com base nos dados consolidados divulgados pela Secretaria do Tesouro Nacional.
sídios, uma vez que o governo federal obtém esses recursos a juros de mercado e cobra de estudantes em va lores reduzidos. Impressiona o total de recursos mobilizados pelo Fies; em 2016, este já superou o gasto da União com manutenção e desenvolvimento do ensino na educação superior. De forma análoga, a partir de 2014 começou-se a reduzir os recursos do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb), principal fonte de financiamento da educação básica, como mostra o Gráfico 5. O que preocupa em relação ao Fundeb é que seus recursos apresentam
uma queda justamente quando as matrículas de estudantes que se beneficiam do fundo deveriam estar crescendo em função das metas do PNE 2014-2024, que implicam a ampliação da oferta em todas as etapas e modalidades, assim como a melhoria nas condições de oferta. Ou seja, são mais estudantes, para um bolo total de recursos em queda. Na prática, estados e municípios não estão ampliando suas matrículas e, para reduzir custos, fecham-se escolas e aumenta-se o número de estudantes por turma. Não bastassem os efeitos predatórios da recessão econômica para o financiamento da educação, o governo
1 Theodore W. Schultz, O valor econômico da educação, trad. Paulo Sérgio Werneck, Zahar, Rio de Janeiro, 1967; e Theodore W. Schultz, O capital humano: investimentos em educação e pesquisa , trad. Marco Aurélio de Moura Matos, Zahar, Rio de Janeiro, 1973. 2 Nigel Brooke e José Francisco Soares (orgs.), Pesquisa em eficácia escolar: origem e trajetórias , UFMG, Belo Horizonte, 2008; e José Marcelino Rezende Pinto, “Dinheiro traz felicidade? A relação entre insumos e qualidade na educação”, Archivos Analíticos de Políticas Educativas/Education Policy Analysis Archives, v.22, p.19, 2014. 3 Ministério da Fazenda, “Fundo de financiamento estudantil: ausência de sustentabilidade e suas causas”, jun. 2017. 4 Unesco, “Educação 2030: Declaração de Incheon e Marco de Ação – Rumo a uma educação de qualidade inclusiva e equitativa e à educação ao longo da vida para todos”, 2016. 5 Os dezessete países de menor PIB per capita da OCDE, em 2010, são: França, Itália, Nova Zelândia, Espanha, Coreia do Sul, Israel, Grécia, Eslovênia, Portugal, Eslováquia, República Tcheca, Hungria, Estônia, Polônia, Chile, México e Turquia. 6 Receita Federal do Brasil, Carga Tributária no Brasil, Brasília, set. 2016. 7 Para conhecer mais sobre o CAQi, visite a página da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, idealizadora desse mecanismo, que inverte a lógica do financiamento das políticas educacionais no Brasil: .
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OS DESAFIOS ESTR ATÉGICOS DA ESQUERDA LATINO-AMERICANA
Governar sob bombas... midiáticas A ruptura com seu sucessor e antigo colaborador Lenín Moreno fez Rafael Correa, presidente equatoriano entre 2007 e 2017, retomar o combate. Para além desse enfrentamento singular, ele testemunha conquistas e refluxos da esquerda latino-americana, e revela até que ponto a grande mídia se tornou uma arma a serviço dos partidos conservadores POR RAFAEL CORREA*
epois da longa noite neoliberal dos anos 1990 e a partir da eleição de Hugo Chávez na Venezuela em 1998, os bastiões da direita latino-americana ruíram como um castelo de cart as. No apogeu do fenômeno, em 2009, oito de dez países da América do Sul eram governados pela esquerda. Sem mencionar El Salvador, Nicarágua, Honduras, República Dominicana e Guatemala . Neste último, assim como no Paraguai, era a primeira vez que líderes progressistas chegavam ao poder. Os primeiros anos do século XXI foram marcados por grandes avanços econômicos, sociais e políticos, em um contexto de soberania, dignidade e autonomia geopolítica. Essas conquistas foram facilitadas pela alta dos preços das matérias-primas, mas ainda é necessário que essas riquezas se jam investidas no “bem viver” de nossos povos (ler reportagem na pág. 12 ).1 A América, assim, não conheceu uma época de mudança, mas uma mudança de época. Para os poderes de outrora e para os Estados hegemônicos, tornou-se urgente acabar com as dinâmicas que anunciavam a segunda etapa: a da independência regional. Se excluirmos o golpe de Estado (frustrado) contra Chávez em 2002, as tentativas de desestabilização começam no fim dos anos 2000: Bolívia (2008), Honduras (2009), Equador (2010) e Paraguai (2012). 2 A partir de 2014, essas forças antes dispersas se aproveitaram da reviravolta do ciclo econômico para operar uma restauração conservadora com apoio internacional, financiamento estrangeiro etc. A reação não conhece limites nem escrúpulos: hoje, toma a forma de sufocamento econômico na Venezuela, golpe de Estado parlamentar no Brasil e ainda judicialização da política, com as ameaças contra os ex-presidentes Luiz Inácio Lula da Silva e Cristi na Fernández de Kirchner (Argentina), mas igualmente contra o vice-presidente Jorge Glas, no Equador. 3 De modo que agora restam apenas três governos progressistas na América do Sul: na Venezuela, na Bolívia e no Uruguai. A estratégia reacionária repousa sobre dois argumentos: o modelo eco-
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Costa do Sauípe, dezembro de 2008: à época, oito dos dez presidentes sul-americanos eram de esquerda: Rafael Correa, Hugo Chávez, Cristina Kirchner, Evo Morales, Luiz Inácio Lula da Silva, Michelle Bachelet, Fernando Lugo e Tabaré Vázquez
nômico da esquerda teria fracassado; os governos progressistas teriam demonstrado sua falta de moral. Desde o fim de 2014, a região em seu conjunto sofre o contragolpe de um contexto econômico internacional desfavorável. Apesar da recessão, as dificuldades específicas do Brasil e da Venezuela ilustrariam a falência do socialismo. Mas o Uruguai, governado pela esquerda, não é o país mais desenvolvido ao sul do Rio Bravo? E a Bolívia não figura entre os melhores indicadores macroeconômicos do planeta? O Equador, de seu lado, enfrentou o que chamamos de “a tempestade perfeita”: a queda de nossas exportações foi agravada por uma forte valorização do dólar, moeda que utilizamos desde 2000. Os choques externos que nos desestabilizaram em 2015-2016 não tiveram precedente na história contemporânea do país. Pela primeira vez em trinta anos experimentamos queda das exportações por dois anos conse-
cutivos, perda equivalente a 10% de nossa produção anua l. Em 2016, o valor de nossas exportações alcançou apenas 64% do montante registrado dois anos antes. No primeiro trimestre desse mesmo ano, o preço do barril de petróleo equatoriano baixou para US$ 20, cifra que não permite cobrir os custos de produção. Ao mesmo tempo, o dólar passou de 0,734 euro para 0,948 euro entre janeiro de 2014 e dezembro de 2016, um salto de 30%, enquanto a moeda de nossos vizinhos colombianos se depreciava em mais de 70%, tornando suas exportações mais competitivas. Manchete: o fluxo de capital se inverteu entre o Estado e as empresas públicas petroleiras; o governo precisou investir US$ 1,6 bilhão nessas empresas para salvá-las da falência. Sem contar os litígios perdidos diante dos tribunais de arbitragem que nos obrigaram a pagar mais de 1% do PIB às empresas Oxy e Chevron.4 E para coroar, em 16 de abril de 2016, a zona costeira sofreu um terre-
moto de quase 8 pontos na escala Richter, com centenas de vítimas. A catástrofe e suas 4 mil réplicas provocaram uma queda de 0,7% no crescimento e acarretaram perdas equivalentes a 3% do PIB. Por essas razões passamos de um crescimento vigoroso de 4% em 2014 a somente 0,2% em 2015, e tivemos um recuo de 1,5% em 2016. Contudo, apesar de dificuldades tão severas e da ausência de uma moeda nacional, superamos a recessão em tempo recorde, com custos reduzidos: não houve recrudescimento da pobreza nem aumento das desigualdades – proeza inédita na América Latina. No Equador, as políticas heterodoxas demonstraram, assim, sua eficácia tanto em período de expansão quanto de recessão. Entre 2007 e 2017, a economia do país mais que dobrou, graças a um crescimento superior ao da região. Os menos favorecidos tiveram o maior aumento da renda da história do país, e 2 milhões de pessoas saíram da linha de pobreza.
O PRETEXTO DA CORRUPÇÃO
Essas análi ses econômicas, porém, contam pouco para a população. As pessoas percebem principalmente que, nos últimos anos, seus negócios não vão tão bem, seus filhos têm dificuldade de encontrar trabalho e os salários não aumentam no mesmo ritmo do custo de vida – sentimento do qual se aproveita a mídia, que prefere a manipulação à informação. Uma parte dos meios de comunicação apresenta essa recessão continental como o resultado de nossas opções políticas, e não como um fenômeno ligado às próprias estruturas de nossa economia. Outras sugerem, ao contrário, que poderíamos ter empreendido transformações mais profundas e que dessa forma não teríamos assinado nossa própria condenação. Enquanto reprovam os governos de direita por não terem feito nada, fustigam-nos por não termos feito tudo.
Não se trata mais de condenar com base em provas que eles teriam identificado, e sim de identificar provas que possam condená-lo O segundo eixo da crítica aos governos progressistas se dá no plano moral. O tema da corrupção fornece a ferramenta eficaz para fragilizar os processos nacionais populares. Evidentemente, o Brasil 5 aparece como exemplo, mas um fenômeno similar se observa atua lmente no Equador. Tudo começa por uma acusação mais espetaculosa que fundamentada. Depois aparecem os bombardeios midiáticos, que privam a vítima escolhida de seus apoios políticos. A culpabilidade presumida do dirigente perseguido passa então para segundo plano entre os juízes, suscetíveis à pressão da direita e da mídia: não se trata mais de, para eles, condenar com base em provas que eles teriam identificado, e sim de identificar provas que possam condená-lo. Quem pode se opor à luta contra a corrupção? Esse combate é uma de nossas primeiras vitórias no Equador: ao longo dos dez últimos a nos, erradicamos a corrupção institucionalizada que havíamos herdado. Mas, para a direita, a “luta contra a corrupção” representa hábitos novos de uma mesma preocupação: seja contra o narcotráfico nos anos 1990, seja no caso da guerra contra o comunismo nos anos 1970, trata-se sempre de, na realidade, organizar uma ofensiva política.
Falam em ausência de regulação, permissividade, corrupção sistemática. Mas que controles autorizam contas secretas em paraísos fiscais, por exemplo? No Equador, os controles são estritos: é preciso declarar a or igem de qualquer depósito superior a US$ 10 mil – obrigação que os paraísos fiscais não impõem... O Equador é o primeiro país do mundo a instaurar uma lei proibindo funcionários públicos de estabelecer qualquer tipo de interação privada com os paraísos fiscais. Para a imprensa, não há dúvida: a corrupção nasce no coração do Estado, do sistema público. Mas a rea lidade mostra que ela provém em grande medida do setor privado, como demonstra o escândalo da Odebrecht 6 e este fato: há até pouco tempo, as empresas alemãs tinham isenção fiscal sobre os depósitos ilícitos destinados ao nosso país. Sem dúvida, a esquerda também sofre o contragolpe paradoxal de suas conquistas. Segundo a Comissão Econômica das Nações Unidas para a América Latina e o Caribe (Cepalc), cerca de 94 milhões de pessoas saíram da pobreza para integrar a classe média durante a última década, em grande parte graças às políticas dos governos de esquerda. Contudo, entre os 37,5 milhões de pessoas que o Partido dos Trabalhadores (PT) tirou da pobreza, poucos se mobilizaram para apoiar a presidenta Dilma Rousseff quando esta estava ameaçada de destituição. É possível conhecer a prosperidade objetiva e ainda assim se sentir em um estado de pobreza subjetivo: apesar das melhorias no nível de vida, as pessoas continuam se sentindo pobres, não em relação ao que possuem (ou em relação ao que possuíam antes), mas em relação ao que aspiram. Não raro, as exigências da nova classe média se revelam não apenas distintas das dos pobres: muitas vezes são antagônicas, alimentadas pelo canto da sereia da direita, pelos meios de comunicação e por estilos de vida imaginados em Nova York. A esquerda sempre lutou contra a corrente, pelo menos no mundo ocidental. Lutara ela contra a natureza humana? O problema se complica se também forem levados em conta os esforços da direita para forjar uma cultura hegemônica – no sentido gramsciano –, de modo que os desejos da maioria servem aos interesses da direita. Um exemplo dramático: a rejeição da lei sobre sucessão e herança que tentamos instaurar no Equador. Enquanto apenas três em cada mil equatorianos recebem herança e a i ncidência do novo imposto se daria apenas pelos montantes mais importantes (menos de 0,5% das sucessões, ou 172 pessoas por ano, em uma população de 16 mi-
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lhões), muitos pobres e grande parte da classe média se manifestaram contra um dispositivo do qual eles poderiam se beneficiar.
“desafio estratégico” da esquerda latino-americana consiste talvez em se lembrar das contradições e dos erros que fazem parte do processo político: eles não podem conseguir que baixemos a guarda.
A imprensa às vezes desempenha um papel mais importante que os partidos políticos durante os processos eleitorais Nossas democracias deveriam ser rebatizadas como “democracias midiatizadas”. A imprensa às vezes desempenha um papel mais importante que os partidos políticos durante os processos eleitorais: convertida em principal força de oposição enquanto a esquerda governa, ela encarna o poder dos conservadores e do setor privado. A imprensa transformou o estado de direito em estado de opinião. PODEROSOS INIMIGOS
A esquerda também enfrentou o esgotamento do exercício de poder, mesmo que sua passagem tenha sido coroada de sucessos. Nenhum governo pode satisfazer a todos, ainda mais quando a dívida social é tão aguda como no caso do Equador. Recuperar a voz dos mais humildes, dar oportunidades aos mais pobres, direitos aos trabalhadores, dignidade aos camponeses, tirar poder dos bancos, da mídia e dos velhos partidos: tudo isso nos custou poderosos inimigos, que nos acusaram de “polarizar” o país. Eles esquecem que alcançar metade do que realizamos teria causado uma guerra civil há algumas décadas. A esquerda que se contenta em representar uma pequena minoria dos eleitores ignora o que implica governar: responder às tempestades econômicas, submeter-se às traições dos que sucumbem à tentação do poder ou do capital etc. Não há dúvida de que um revolucionário não tem o direito de perder a batalha moral. Um governo honesto não é aquele que desconhece casos de corrupção, e sim aquele que luta para erradicá-la. Parte dos milita ntes sofre ao não perceber essa diferença e se deixa afetar pela desmoralização que satisfaz os adversários. É preciso sempre demonstrar autocrítica. Mas também precisamos ter confiança em nós mesmos. Os governos progressistas sofrem ataques constantes das elites e dos meios de comunicação, que se baseiam no menor dos equívocos para nos enfraquecer. Por essa razão, o principal
*Rafael Correa é
ex-presidente da República do Equador (2007-2017).
1 No campo da saúde, por exemplo, as despesas do Estado equatoriano passaram de 0,6% do PIB em 2000 para 7,5% em 2013. (Todas as notas são da redação.) 2 Ler Maurice Lemoine, “América Latina: ‘golpes light’ e desestabilização moderna”, Le Monde Di plomatique Brasil , ago. 2014. 3 Vice-presidente de Rafael Correa a partir de 2013, Jorge Glas ocupou as mesmas funções sob a presidência de Lenín Moreno, eleito em abril de 2017 com o apoio do chefe de E stado que deixava o poder. Glas foi parar em 2 de outubro de 2017 no âmbito de uma investigação ligada ao escândalo de corrupção implicando a empresa Odebrecht. Os apoiadores de Correa analisaram o episódio como uma ilustração do conflito político que opunha o ex-presidente a seu sucessor, o primeiro acusando o segundo de romper com a herança que ele havia se comprometido a defender. 4 Ler Hernando Calvo Ospina, “A Chevron polui, mas não quer pagar suas multas no Equador”, Le Monde Diplomatique Brasil , mar. 2014. 5 Ler Laurent Delcourt, “Movimento contra a corrupção ou golpe de Estado disfarçado?”, Le Monde Diplomatique Brasil , maio 2016. 6 Ler Anne Vigna, “As ramificações do escândalo Odebrecht”, Le Monde Diplomatique Brasil , set. 2017.
UM F ILME DE
OLIVIER PEYON ESTRELANDO
ISABELLE CARRÉ RAMZY BEDIA MARÍA DUPLÁA “Um dilema moral lmado com sutileza. Uma interpretação sensível e delicada dos atores.” Studio Ciné Live
“Uma viagem existencial tratada com uma encenação suave, iluminada pela luz da América Latina.” Télérama
8 DE FEVEREIRO NOS CINEMAS VIRGINIA MÉNDEZ DYLAN CORTES LUCAS BARREIRO
DISTRIBUIÇÃO
APOIO
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CONQUISTAS E REFLUXOS
No Equador, a difícil construção de um serviço público de saúde Nos últimos dez anos, o governo equatoriano vem tentando restaurar o poder do Estado, em particular para garantir a todos os cidadãos acesso aos cuidados médicos – uma empreitada bastante auspiciosa, mas por vezes um tanto quanto inábil POR LOÏC RAMIREZ*, ENVIADO ESPECIAL
“S
igchos nos dá boas-vindas”, exclama o doutor César Molina apontando o dedo para o pico nevado que se revela ao longe sob a luz do sol. A subida demoraria uma hora, entre montanhas e encostas, até nosso veículo chegar ao hospital tinindo de novo. Desde sua abertura, em janeiro de 2017, cerca de cem pessoas estão trabalhando nesse estabelecimento de arquitetura sóbria, minimalista, moderna. Na fachada, figura o símbolo nacional instaurado pelo governo do ex-presidente Rafael Correa (2007-2017): um círculo cromático, ou a “marca do país”. “Antes da eleição de Rafael Correa, mais de um terço do orçamento nacional era destinado diretamente a ONGs”, contava Carlos Jativa em 2010, quando ocupava o cargo de embaixador do Equador em Paris. O presidente e seu movimento político, Alianza País, prometiam uma v irada de 180° e o restabelecimento do papel “fundamental” do Estado. As obras não faltaram, mas parecia um jogo de pega-varetas: quando se manipulavam algumas peças, outras podiam colapsar. Por exemplo, no campo da saúde. “Durante os trinta anos que precederam a eleição de Correa, nenhum hospital público foi construído”, ressalta Maria Verónica Espinosa, ministra da Saúde. “Isso ilustra a importância que era dada à saúde pública neste país”, completa. A Constituição de 2008 marca uma ruptura: o texto afirma a responsabilidade do Estado de assegurar o acesso gratuito a cuidados e medicamentos. E, quando se fala em dever, também se fala em recursos: entre 2008 e 2016, o governo investiu mais de US$ 15 bilhões (a moeda utilizada no país desde 2000), multiplicando por cinco a média anual de gastos de saúde no período de 2000 a 2006. Já o número de funcionários atuando no ministério passou de 11.201 para mais de 33 mil entre 2008 e 2015, um salto acompanhado de aumentos salariais1 (ver boxe ). COBERTURA SOCIAL UNIVERSAL
O governo de Correa, porém, herdou dificuldades estruturais, como a segmentação do sistema. Na esfera pú-
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blica, coexistem quatro entidades: o Ministério de Saúde Pública (MSP), o Instituto Equatoriano de Segurança Social (Iess), o Instituto de Segurança Social da Polícia Nacional (Isspol) e o Instituto de Segura nça Social das Forças Armadas (Issfa). “São quatro subsistemas no setor público, aos quais convém somar o setor privado, as ONGs. E cada um tem suas próprias normas, regras e limitações”, continua Espinosa. Imaginemos um cidadão equatoriano médio antes da eleição de Correa, em 2006. Por falta de recur sos, ele desiste de se filiar ao Iess (financiado por um sistema opcional de cotas patronais e salariais). De repente, adoece e deve se submeter a uma cirurgia delicada que os hospitais do Ministério da Saúde não realizam. Sem chance: as portas dos hospitais do Iess estão fechadas para ele, pois a entidade exige um mínimo de três meses de
carência antes de admitir um paciente. Sem possibilidade de negociação. Desde 2008, a Constituição impõe a busca de uma solução para essa dificuldade. Graças às receitas ligadas ao setor petroleiro, o novo poder instaura uma cobertura de saúde universal e obrigatória, assim como uma rede pública integral de saúde que assegura a admissão de pacientes e o reembolso de gastos médicos, independentemente do instituto de saúde pública ao qual o cidadão se apresente. Não contente em tornar a afiliação ao Iess obrigatória para os assalariados (e voluntária para os t rabalhadores informais), 2 dois anos depois o poder público estendeu a cobertura aos cônjuges e crianças sem custos adicionais. “O Iess conta hoje com mais de 3,5 milhões de inscritos [contra 2,5 milhões anteriormente], mas deve efetivamente cobrir cerca de 9 milhões de pessoas”, indica o econo-
mista José Martinez. Incapaz de atender a essa demanda, o organismo precisa transferir pacientes a clínicas, hospitais, laboratórios e profissionais privados. Entre 2008 e 2015, o instituto firmou 846 contratos com prestadores de serviço, por um montante de US$ 3,2 bilhões. 3 “O Iess se tornou o cliente mais rentável do setor privado”, conclui Martinez. Trata-se de um problema de fato? “Para uma pessoa que descobre o acesso aos cuidados, qual é a diferença se eles são oferecidos pelo Estado ou pelo setor privado?”, questiona-se Juan Cuvi, diretor da Fundação Donum. “A dificuldade é que grande parte dos investimentos realizados em saúde nos últimos dez anos terminou nos bolsos do setor privado, que, em geral, superfatura seus serviços. Dessa forma, atrasa-se o processo de tornar o Estado capaz de responder diretamen-
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te às demandas de saúde e também se facilita a corrupção”, analisa. Pela televisão, em 2 de janeiro de 2016, Correa chamava atenção para a enorme diferença entre o número de “complicações” (com custos adicionais exorbitantes) durante cirurgias realizadas no setor público e as registradas no privado: “Cerca de 20% nos estabelecimentos do Iess, e quantas no setor privado? Cerca de 80%. Há algo nisso, meus queridos compatriotas!”. Sobressalto? A tran sferência de pacientes diminuiu em um quarto entre 2015 e 2016 (últimos números disponíveis). Poderia passar por uma estufa onde repousariam plantas exóticas, em vez de pacientes. Estendendo-se por uma superfície de 36 mil metros quadrados, o hospital geral da cidade de Puyo revela sua arquitetura particular à beira da floresta amazônica, no leste equatoriano. “Abrimos em março de 2013 e dispomos de uma capacidade de 125 leitos”, anuncia Chri stian Ruiz, que gere a instituição. A entonação de nosso anfitrião evoca a do presidente Correa na inauguração do estabelecimento: na ocasião, ele convidou a população a visitar o hospital para “sentir orgulho da nova pátria”. ONGs SOB VIGILÂNCIA
Durante nossa visita, contudo, os serviços desti nados aos bebês prematuros estavam comprometidos por uma pane no ventilador neonatal, o único disponível. A responsável, incomodada por constatar o problema diante de um jornalista estrangeiro, pediu a transferência do pequeno paciente a outro hospital público, a duas horas dali. “Infelizmente, essas coisas acontecem em qualquer lugar”, comenta Ruiz. Qualquer pessoa que visitasse alguns hospitais franceses concordaria, sem hesitar. Mas o caso não é isolado. Para alguns observadores, ao contrário, esse tipo de falha revela um problema maior. Antes da eleição de Correa, o Equador conheceu um período de extrema instabilidade política. Entre 2000 e 2007, o país viu desfilar quatro presidentes, dos quais apenas dois terminaram seu mandato. “A equipe de Correa precisou correr para resolver os problemas mais visíveis e assim assegurar a permanência no poder e a vitória nas eleições seguintes. Foram tomadas medidas, como construir novos hospitais, que, embora tenham sido exibidos, ainda não dispõem de recursos materiais ou especialistas necessários para funcionamento”, explica Ivan Cevallos, ex-chefe do serviço de cirurgia do Hospital Carlos Andrade Marin (estabelecimento do Iess), em Quito. Pediatra no setor privado, Beatriz León tem uma posição mais dura: “Definiu-se a necessidade de refazer tudo, do zero”, ironiza. Abandonar até
o que não estava f uncionando tão mal. Para ilustrar sua crítica, ela conta a história do Instituto Nacional de Higiene e Medicina Tropical Leopoldo Izquieta Pérez. Em 2012, por decreto presidencial, ele foi substituído pelo Instituto Nacional de Saúde Pública e Pesquisa (Inspi), sob controle do Ministério da Saúde. “Sem dúvida, nem tudo era perfeito no Izquieta Pérez. Mas veja, um médico que exerceu 25 anos de profissão, mesmo não sendo um bom médico, tem 25 anos de experiência.” O Instituto Izquieta Pérez tinha setenta profissionais com esse perfil. Seu sucessor de bochechas rosadas ainda não demonstrou eficiência. Segundo uma publicação científica da Fundação Donum, o Izquieta Pérez produzia, por exemplo, um soro antiofídico eficiente, enquanto atualmente esse tipo de medicamento está sendo importado da Costa Rica.
“A equipe de Correa precisou correr para resolver os problemas mais visíveis e assim assegurar a permanência no poder nas eleições seguintes” Reconstruir o Estado equatoriano implicava principalmente restaurar o controle sobre setores dos quais ele estava afastado. No ápice do período liberal, essa retração do Estado era prioridade, tanto no Equador como em outros lugares. Depois de organizar a incapacidade de atender os pobres (com 45% da população em situação de pobreza extrema em 1990), Quito apelou às ONGs para terceirizar a política social. O número de organizações desse tipo passou de 104 entre 1960 e 1980 para 376 nos quinze anos subsequentes.4 Essa lógica desagradava a Correa, que, jacobino de espírito, criou em 2007 a Secretaria Técnica de Cooperação Internacional (Seteci), “um exemplo inédito de regulação de ativ idades de ONGs estrangeiras”, entusiasma-se Gabriela Rosero, secretária de Infraestrutura entre 2009 e 2016. “Tínhamos casos de ONGs internacionais que terceirizavam certas atividades a ONGs nacionais e transferiam fundos. A que eram destinados esses recursos? Era quase impossível determinar. Era preciso criar um marco, instaurar formas de controle”, explica. Entre as ferramentas jurídicas utilizadas, o decreto de 16 de junho de 2013 cristaliza as tensões. Ele enuncia uma série de motivos que justificam a dissolução de associações, entre os quais: “Consagrar-se a atividades políticas
partidárias”, desestabilizar “a paz pública” ou “ingerir-se em políticas públicas”. Em 2014, a medida conduziu à expulsão da sulfurosa organização Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional (Usaid), conhecida como um dos carros-chefe do intervencionismo norte-americano. Mas também atravancou a ação de ONGs que o Estado neoliberal havia recrutado com o convite de “entrar” para o campo das políticas públicas. Daí as tensões e certa desorganização, às vezes em detrimento dos pacientes. “Antes da chegada de Correa, nossa colaboração com o ministério funcionava melhor, estávamos mais implicados na tomada de decisão”, conta a médica Maria Elena Acosta nas instalações da associação Kimirina, que trabalha com HIV e doenças sexualmente transmissíveis. “E mais: eles estão centralizando tudo”, acrescenta. Posição antiestatal de nossa interlocutora? “De modo algum. Tudo isso poderia ser positivo, mas essa reestruturação é acompanhada de uma vontade de obter resultados imediatos. Ora, nesse campo da saúde, isso é impossível. Quando uma medida não funcionava imediatamente, ela era modificada. Continuamente. Essa maneira de proceder nos impediu de vislumbrar um t rabalho de longo prazo com o ministério”, explica. A isso, somam-se algumas divergências políticas. Quando perguntamos se poderia dar um exemplo de uma “medida considerada negativa que tenha sido desfeita”, nossa interlocutora evocou o programa Estratégia Intersetorial de Prevenção de Gravidez entre Adolescentes (Enipla). Criado em 2011, o programa se traduziu – entre outros elementos – pela abertura de uma linha telefônica gratuita com nome explícito: “Falemos seriamente, a sexualidade sem mistérios”. Em novembro de 2014, o presidente Correa nomeou para a direção do programa Mónica Hernández. Religiosa, próxima ao Opus Dei, ela redefiniu a relação das autoridades com os temas da prevenção: acabou com a linha telefônica e criou o programa Plano Família Equador, que visa “restaurar o papel da família”. Foi uma reviravolta em relação às medidas anteriores, explica Acosta, pontuando ainda que, “aqui, as primeiras experiências sexuais acontecem cedo, aos 12, 13 anos”. Na época, várias associações, como a Frente Equatoriana de Defesa dos Direitos Sexuais e Reprodutivos, denunciaram uma política de saúde carregada de “visão religiosa” e longe das “realidades científicas”. 5 AUTONOMIA DOS POVOS INDÍGE NAS
Por outro lado, também acontece de a máquina estatal se transformar em guardiã da autonomia das popula-
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PULSAÇÕES Esperança de vida
2005: 74,2 anos 2015: 75,8 anos Mortalidade infantil (por mil nascidos vivos)
2005: 33,3 2015: 17,6 Investimentos em saúde (porcentagem do PIB)
2005: 6,6 2014 (último número disponível): 9,2 Fonte: Comissão Econômica das Nações Unidas para a América Latina e o Caribe (Cepal).
ções, notadamente indígenas. Chugchilán, província de Cotopaxi. O doutor Molina e o funcionário Segundo Pilatasig nos conduzem pelo topo enevoado de uma montanha onde reside uma minúscula comunidade indígena. Homem de pequena estatura, Pilatasig é também indígena da comunidade Guayama Grande. Trabalha no “desenvolvimento da interculturalidade no campo da saúde”. Ao chegarmos ao destino, somos acolhidos por uma velha sen hora com um chapéu e rodeada de crianças. “É a parteira do vilarejo”, explica. Agente de intermediação entre o ministério e as populações indígenas da região, Pilatasig fala espanhol, quéchua e vários dialetos. Seu trabalho consiste em “desenvolver a articulação entre as técnicas modernas de medicina e os saberes ancestrais das comunidades. No caso das parteiras, entramos em contato com elas desde sua designação pela comunidade e com elas real izamos formações sobre medidas básicas de higiene e detecção de sinais de complicação durante a gestação, para que nesses casos possamos eventualmente assumir os c uidados da paciente”. Estado central izador? Estado erradicador de diferenças? “Pela primeira vez, a cultura indígena e suas práticas são reconhecidas e protegidas oficialmente. E atualmente isso está inscrito na Constituição”, responde ele. *Loïc Ramirez é jornalista.
1 “La reforma en salud en Ecuador” [A reforma da saúde no Equador], Pan American Journal of Public Health, n.41, Washington, maio 2017. Disponível em: . 2 Cerca de 35% da população ativa em março de 2017. 3 “Los últimos 5 presidentes diagnostican al IESS” [Os últimos cinco presidentes diagnosticam o Iess], El Telégrafo, Quito, 2 fev. 2016. 4 “Las ONGs y el modelo neoliberal” [As ONGs e o modelo neoliberal], Instituto Equatoriano para o Desenvolvimento Social (Inedes), Quito, 2001. 5 O decreto foi anulado pelo novo presidente, Lenín Moreno, integrante da Alianza País, em maio de 2017, logo após assumir sua s funções.
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200 MIL MORTES NOS ESTADOS UNIDOS
Overdoses de opiáceos com receita médica Eles matam mais que os acidentes de trânsito ou as armas de fogo. Após devastar os guetos negros nos anos 1990, os opiáceos dizimam os subúrbios e a baixa classe média norte-americana. Além da amplitude e do perfil das vítimas, essa epidemia de overdoses é inédita por sua origem: os consumidores tornaram-se dependentes tomando analgésicos prescritos por médicos POR MAXIME ROBIN*, ENVIADO ESPECIAL
n o r a M o n u r B ©
xistem dezenas de maneiras de morrer, mas no necrotério do Condado de Lorain, uma área suburbana de Ohio, só se registram cinco: “morte natural, homicídio, suicídio, acidente e causa indeterminada”. As overdoses são consideradas acidentes. Aqui, elas triplicaram em quatro anos, matando 132 pessoas em 2016. “São coquetéis de opiáceos em 95% dos casos”, revela o médico legista Stephen Evans, que às vezes classifica uma overdose como suicídio, quando as doses são muito grandes. “Entretanto, outros condados as classificam como homicídio, quando os traficantes vendem o pó misturado com fentanil, um narcótico cem vezes mais poderoso que a heroína. Os usuários pensam que estão injetando heroína, mas absorvem cem vezes a dose...” O Condado de Lorain, que agrupa cerca de 300 mil habitantes, situa-se na região de Cleveland. Delimitado ao norte pelas praias do Lago Erie, o território vai se tornando mais rural à me-
E
dida que avança para o sul. Após um primeiro pico de overdoses em 2012, a polícia pensou de início em um problema de droga adulterada, mas as análises toxicológicas não revelaram nada de surpreendente. Os consumidores de opioides por via intravenosa tinham, pura e simplesmente, se tornado mais numerosos no condado. O problema não se limitava mais aos bairros pobres e aos guetos negros de Cleveland e Cincinnati, mas contaminava agora os pequenos enclaves da classe média branca. Com mais de 4 mil mortes por overdose em 2016 (contra 365 em 2003), Ohio ocupa o segundo lugar no quadro norte-americano das devastações da droga, atrás apenas da Virgínia Ocidental. Os brancos constituem 90% das vítimas, enquanto os negros e hispânicos (16,5% da população do Estado) estão sub-representados: 8%.1 Na escala do país, a epidemia de overdoses contribuiu para a queda da expectativa de vida em 2016, pelo se-
gundo ano consecutivo.2 Com 65 mil mortes por ano, “ou seja, mais que a totalidade dos soldados abatidos no Vietnã”, lembra Evans, os derivados de ópio matam mai s que os acidentes nas estradas (37 mil mortos) ou que as armas de fogo (39 mil). Em comparação, 243 pessoas morreram de overdose na França em 2014, 2.655 no Reino Unido em 2015 e 1.226 na Alemanha no mesmo ano.3 O presidente Donald Trump, que durante sua campanha prometera agir, erigindo esse problema em símbolo dos sofrimentos da “América profunda”, declarou em outubro de 2017 “estado de emergência sanitá ria”. Mas, no Condado de Lorain, essas palavras são acolhidas com um dar de ombros. “Os fundos federais de emergência sanitária possuem uma reserva de US$ 156 mil”, suspira Thomas Stuber, que dirige a LCADA Way, uma rede local de clínicas e centros de acolhimento para toxicômanos. Na área penal, a situação se tornou tão crítica que um magistrado local
conseguiu da Corte Suprema de Ohio, há três anos, licença para criar um tribunal especial, reservado aos toxicômanos. Nesta manhã de terça-feira, no fim de novembro, véspera da festa de Ação de Graças, os trinta participantes se encontram diante da sala 702 do tribunal penal de Elyria, rebatizado de “tribunal da droga”. Esses jovens adultos – homens e mulheres em proporção quase igual – se conhecem bem, pois sempre se cruzam nessa convocação semanal. Eles dão rosto à pandemia que a imprensa do país, a mante dos superlativos, qualifica de a mais grave da história: um rosto branco, suburbano ou rural, que tem teto para dormir e estrutura familiar. O retrato-padrão de um drogado não é o de um astro do rock’n’roll ou de um negro pobre do Harlem, como sucedia durante a onda de opiáceos dos anos 1970. A morte golpeia a América dos condomínios e dos campos, aquela que possui garagem e às vezes dois car ros. O consumo de heroína explodiu em todas as categorias sociais, mas o aumento maior (77% de 2002 a 2013) foi constatado nos lares da classe média baixa, com renda entre US$ 20 mil e US$ 50 mil por ano.4 Uma vez nas mãos da justiça, os jovens do Condado de Lorain são transferidos dos centros de acolhimento de toxicômanos para as pri sões. O acordo que o juiz John Miraldi lhes propõe é simples: se eles se emendarem, evitarão a cadeia e retomarão a vida normal. Essa parece, claramente, ser a escolha mais racional, mas a dependência estabelece sua própria lógica. “O usuário não consegue, literalmente, funcionar sem sua dose. As crises de abstinência são muito violentas”, relata Stuber, que após 38 anos no ramo exibe um pessimismo profundo. Para escapar da engrenagem é necessária uma força sobre-humana, mas nem assim “a pessoa se cura realmente”, observa Ed Barrett, ex-toxicômano e dirigente do Primary Purpose Center, um centro de acolhimento em Elyria.
Largar o vício sozinho parece impossível. É preciso estar acompanhado o tempo todo durante pelo menos cem dias e mudar por completo os hábitos, “esquecer a vida a nterior e fugir dos velhos amigos”, explica Meghan Kaple, jovem que ficou “limpa” por 31 dias e se deixou voluntariamente revistar pela polícia há três semanas, “cansada de droga, cansada de tudo”. Está agora num centro de acolhimento para mulheres, onde segue um regime rigoroso, bem diferente da corrida diária aos opioides: “Levantar cedo, praticar ioga, terapia em grupo. Telefone proibido”. Ela começou a se drogar há onze anos: “Depois que meu médico de família me prescreveu analgésicos para uma dor nas costas...”. Como a senhora Kaple, a maior parte das vítimas não descobriu os opiáceos por meio de uma injeção, mas tomando medicamentos receitados por seu médico. A pandemia teve início nos consultórios, camuflada pela melhor das intenções: eliminar a dor dos pacientes dando-lhes analgésicos poderosos. “Pouquíssimos toxicômanos começaram direta mente pela heroína”, confirma Stuber. “Com frequência, foi um médico que prescreveu a primeira dose, para uma dor pequena qualquer. Eles então se tornaram dependentes e só depois passaram a usar heroína.” Nas epidemias anteriores de overdose, nos anos 1970 e 1990, cerca de 80% dos usuários de drogas pesadas eram homens. Na crise atual, a proporção é praticamente a mesma. Homem ou mulher, “todo mundo vai ao médico. O vício começa com uma visita ao médico de família, ao dentista, ao especialista em medicina esportiva. Muitas mulheres que praticaram esporte no colégio e na universidade estão em trata mento”. A caix a de Pandora foi aberta há vinte anos por diversos laboratórios farmacêuticos. Sobretudo pela Purdue Pharma e seu famoso medicamento, o OxyContin, considerado responsável pela catástrofe por todos os profissionais interrogados. Analgésico classificado como opioide antálgico dos mais fortes (nível III), o OxyContin é composto de oxicodona, um derivado da síntese do ópio. Era originalmente reservado aos doentes com câncer em fase terminal e às cirurgias de grande porte – um mercado bem modesto. A fim de ampliá-lo, o laboratório lançou em 1995 uma campanha de lobby agressivo, que propunha repensar por completo a relação com o sofrimento do paciente. A dor, não importa sua intensidade, tornou-se o novo inimigo do corpo médico. Estudos financiados pela empresa recomendavam aos profissionais considerá-la um “quinto sinal vital”, tanto quanto a pulsação, a temperatura, a pressão sanguínea e a respiração.
No ano seguinte, a Pu rdue lançou o OxyContin no mercado com sinal verde da Food and Drug Administration (FDA). O laboratório pôs em campo um exército de mais de setecentos representantes comerciais para propagandear os méritos do produto junto à classe médica do país. Divulgou vídeos, folhetos e jingles dedicados ao remédio miraculoso, além de imprimir 34 mil cupons oferecendo receitas gratuitas. Em 1996, as vendas do OxyContin renderam US$ 45 milhões. Quatro anos depois, chegaram a US$ 1 bilhão, ultrapassando o recorde do Viagra. Dos gabinetes de Washington ao consultório do médico de zona rural, todos os dispositivos de segurança foram ignorados. A carreira dupla de Evans – ele foi paramédico antes de se tornar legista – lhe oferece uma perspectiva histórica do fenômeno. “Quando saí da faculdade de medicina, no início dos anos 1980, jamais se ministravam analgésicos tão poderosos quanto o OxyContin para aliv iar dores em ambulatório. No fim da década de 1990, começou-se a prescrever narcóticos para a extração de dentes do siso, para torções de tornozelo... Dores fracas davam direito a uma dose de OxyContin ou de Percocet.” Os pacientes desenvolvem rapidamente tolerância a essas doses cavalares. Evans evoca uma época delirante, em que pessoas comuns, “com uma dorzinha qualquer”, corriam ao pronto-socorro para pedir comprimidos, como se fossem bombons. “Quando o médico não lhes dava Percocet, ameaçavam denunciá-lo! Fingiam estar doentes. Algumas cortavam os pulsos só para receber os comprimidos.” In junções do governo, exigências dos pacientes e política do satisfaction client (cliente satisfeito) do hospital: “A pressão vinha de todos os lados”. O OxyContin está bem instalado em Ohio, seguindo a corrente dos anos 2000. Em certas cidades deprimidas pelo fechamento de fábricas, o comércio desse medicamento reanimou por algum tempo a área central, graças à multiplicação dos pontos de distribuição. As falcatruas se generalizaram por causa da precariedade da a ssistência social. Cidadãos pobres, beneficiários do auxílio-doença, pegavam gratuitamente comprimidos em clínicas duvidosas, conhecidas como pill mills (literalmente “moinhos de pílulas”), e depois os revendiam no mercado negro, enriquecendo paralelamente os médicos cúmplices com o dinheiro do contribuinte. Em várias cidades do sudeste de Ohio, como Portsmouth, o “Oxy” se tornou moeda corrente de troca: trocava-se com o vizinho um comprimido por todo tipo de art igo.5 O número de receitas para opioides acabou atingindo índices absurdos. Em 2012, os médicos de Ohio prescre-
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veram 793 milhões de doses, isto é, 68 comprimidos por habitante.6 Para crescer, a Purdue Pharma teria agido como um cartel, identificando as regiões mais vu lneráveis do país, onde se concentram o desemprego de operários, os acidentes de trabalho e a pobreza. Além das prescrições dos médicos honestos, mas inconscientes da capacidade do produto de causar dependência, vazamentos de documentos internos revelaram que a empresa havia, conscientemente, encorajado a proliferação de clínicas duvidosas, estabelecimentos-fantoche destinados apenas ao escoamento do OxyContin.7
você for um bom cl iente, é como encomendar uma pizza”, explica Barrett. Quando o consumidor tenta se abster e não telefona mais para o vendedor, o vendedor telefona para ele ou bate à sua porta, oferecendo-lhe doses. Após a entrada no mercado do OxyContin, as ondas de drogas se superpõem como sedimentos nas margens do Lago Erie, sem que uma jamais desloque completamente a outra. Aos comprimidos com receita médica, como o OxyContin, depois à heroína, acrescentam-se agora outras substâncias sintéticas de poder aterrador. As autoridades enfrentam um monstro de várias cabeças e nenhuma delas ainda foi cortada. Indefesa, a população assume dois tipos de atitude. “Metade está afetada pelo vício de u m parente”, explica Stuber. “Sabe que a dependência é uma doença e necessita que se encontre uma solução. A outra metade acha que as drogas não têm desculpa. Estes, enquanto não veem seu próprio filho estendido sobre o tapete do quar to, pensam que o problema é dos outros.” Nas conferências de prevenção organizadas nas cidades, os profissionais ouvem com frequência que os traficantes devem morrer. “Mas o primeiro traficante é o médico de família ou a gaveta de remédios dos pais”, protesta Evans. “Oitenta por cento de nossas crianças se envolvem ao encontrar uma receita do papai ou da mamãe... Você tem 15 anos, seus amigos vêm dormir em sua casa, você rouba um Percocet. Papai e mamãe devem ser fuzilados por isso?”
A maior parte das vítimas não descobriu os opiáceos por meio de uma injeção, mas tomando medicamentos receitados por seu médico Os poderes públicos tardaram a reagir, pois a classe média baixa branca, principal vítima do fenômeno, não figurava entre as prioridades dos dirigentes políticos. Quando o governo percebeu o problema e iniciou a caça às receitas complacentes, já numerosos cidadãos, privados dos comprimidos, estavam procurando satisfazer sua dependência na rua. “Depois que o paciente se vicia e a validade da receita termina, ele tem de achar sua dose em algum lugar”, explica Evans. “Um Percocet, no mercado negro, custa US$ 50 o comprimido. Um saquinho de heroína , de US$ 5 a US$ 10. Mais barato que uma caixa de cerveja. Eis como convertemos toda uma população ao cu lto da heroína.” A mudança do consumo de medicamentos para a heroína se fez progressiva e furtivamente. Os vendedores de heroína mexicanos – quase sempre oriundos da região de Jalisco, especializada na cultura da papoula – investiram nesse imenso mercado rural, modernizaram suas técnicas de venda e agiram mais discretamente que os traficantes das grandes cidades. Apesar da forte concorrência, que explica o baixo preço da heroína no varejo, os traficantes do interior não precisam de armas de fogo para acertar suas contas ou defender seu território. O pó é encomendado por SMS e a entrega se faz de carro pelos vendedores, que adotaram o conceito de “cliente satisfeito”, distribuem cartões de visita e oferecem programas de fidelidade... “No começo, talvez você precise correr o risco de ir a lugares perigosos. Mas, feitas as conexões e se
*Maxime Robin é
jornalista.
1 “Opioid overdose death by race/ethnicity” [Mortes por overdose de opioides por raça/etnia], The Henry J. Kaiser Family Foundation, Menlo Park (Califórnia). Disponível em: . 2 Passou de 78 anos e 9 meses em 2014 para 78 anos e 7 meses em 2016. Cf. “Soaring overdose deaths cut US life expectancy for a second consecutive year, CDC says” [O aumento de mortes por overdose diminui a expectativa de vida nos Estados Unidos pelo segundo ano consecutivo, dizem os CDCs], Los Angeles Times, 20 dez. 2017. 3 Segundo os últimos números oficiais publicados pelos departamentos francês e europeus de combate às drogas e à toxicomania. 4 “Today’s Heroin Epidemic Infographics” [Infográficos da epidemia de heroína hoje], Centers for Disease Control and Prevention, Atlanta. Disponível em: . 5 Sam Quinones, Dreamland: The True Tale of America’s Opiate Epidemic [Terra dos sonhos: a verdadeira história da epidemia de opiáceos na América], Bloomsbur y Press, Londres-Nova York, 2015. 6 “Opioids prescribed to Ohio patients decrease by 162 million doses since 2012” [Doses de opioides prescritas a pacientes em Ohio diminuem em 162 milhões desde 2012], Board of Pharmacy, Estado de Ohio, 25 jan. 2017. 7 Harriet Ryan, Lisa Girion e Scott Glover, “More than 1 million OxyContin pills ended up in the hands of criminals and addicts. What the drugmaker knew” [Mais de 1 milhão de comprimidos de OxyContin terminaram nas mãos de criminosos e dependentes. O que o fabricante sabia], Los Angeles Times, 10 jul. 2016.
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RENOVAÇÃO DO ENGAJAMENTO POLÍTICO
Juventude palestina não se vê como vencida A decisão de Donald Trump de reconhecer Jerusalém como capital de Israel agravou o fracasso do “processo de paz” e provocou grandes protestos na Cisjordânia e na Faixa de Gaza – uma contestação duramente reprimida pelos israelenses. Os jovens palestinos, inclusive os menores de idade, são os mais visados. Vários deles rompem com as velhas fórmulas de militância POR AKRAM BELKAÏD E OLIVIER PIRONET*, ENVIADOS ESPECIAIS
s bandeiras palestinas se agitam ao vento no corredor principal da Universidade Birzeit, na periferia de Ramallah, cidade que é a sede da Autoridade Palestina. Não muito longe da estrela que homenageia os 28 estudantes “mártires” da institu ição, todos mortos pelo Exército israelense, um cortejo começa. Um responsável pela organização vai de uma ponta a outra. Encapuzado e sob um capacete de assalto, vestindo traje de combate camuflado com granadas e cinto de explosivos, ele dita o ritmo para moças e rapazes de uniforme verde-oliva, o rosto oculto por um keffiyeh. Todos gritam slogans em louvor da resistência armada. Agitam bandeiras coloridas do Fatah em homenagem ao falecido presidente Yasser Arafat (1929-2004), e bandeirolas que saúdam a memória do xeque Ahmed Yassine (1937-2004), o fundador do Movimento da Resistência Islâmica (Hamas). Os organi zadores desse desfile pertencem ao Movimento da Juventude do Fatah (Chabiba), o partido do presidente Mahmoud Abbas. Eles tomaram cuidado para que a reunião celebrasse as duas grandes facções políticas palestinas, que têm dificuldade para pôr em prática seu acordo de “reconciliação”, assinado em outubro de 2017. Espera-se que ele vire a página de mais de dez anos de rivalidade e enfrentamentos fratricidas. De fora, os estudantes de Sociologia observam a cena com ar de reprovação. “Isso é só folclore”, dispara Rami T.,1 de 20 anos. “Eis o que o Fatah e a Autoridade Palestina oferecem à juventude: gestos simbólicos. Isso é tudo menos ação política séria. O regime não pretende promover uma mobilização coletiva que possa realmente dar frutos. Teme que uma politização dos jovens conduza a uma revolta contra ele.” Como 70% da população tem menos de 30 anos, a politização da juventude constitui tema muito delicado para líderes palestinos, com a legitimidade cada vez mais contestada. Antes dos Acordos de Oslo, em 1993, e da criação da Autoridade Palestina, era o Alto Conselho para a Juventude e os
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Esportes, uma instância ligada à Organização de Libertação da Palestina (OLP), que garantia a formação ideológica, sobretudo por meio da organização de campos de férias e de voluntariado. Em 1993, um Ministério da Juventude e dos Esportes surgiu para “dar aos jovens o poder de agir no plano econômico, social e político”. Ao longo do tempo, as ações de enquadramento foram abandonadas e, em 2013, o ministério foi suspenso, com o Alto Conselho tendo retomado o serviço sob a égide de Abbas. Para Youssef, de 22 anos, também estudante de Sociologia, “a Autoridade Palestina quer distanciar os jovens de um ativismo autêntico, presente no campo, e impedi-los de elaborar novas maneiras de agir no plano político. Ora, desde o início dos anos 2000 e do fracasso do processo de Oslo, a juventude carece de balizamentos. Estamos com raiva. Não houve nenhum ganho político para o nosso povo. A divisão entre o Fatah e o Hamas nos deixa indignados. A ocupação é uma realidade permanente. Vivemos sua v iolência no dia a dia. Nossa situação social e econômica permanece precária. Todas as condições estão reunidas para que nasça uma mobilização em grande escala”. FOCINHEIRA NA CONTESTAÇÃO
Os jovens são “as primeiras v ítimas da luta contra a ocupação [israelense] em termos de mortos, feridos, prisões e detenções”, indica um recente estudo,2 e, dos 95 palestinos mortos pelo Exército israelense ou pelos colonos em 2017, cinquenta tinham menos de 25 anos.3 Mas também são afetados duramente pelas dificuldades enfrentadas pela economia, com uma taxa de desemprego estimada em 27% (18% na Cisjordânia, 42% em Gaza), ou seja, uma das “mais elevadas do mundo”, “de uma amplitude raramente atingida [...] desde a Grande Depressão”, segundo as Nações Unidas. 4 Houda A., de 20 anos, estuda Jornalismo na Universidade de Belém. Originária de Jerusalém Oriental, onde os estabelecimentos de ensino superior palestinos são proibidos por Israel, ela
leva três horas por dia para fazer o tra jeto de ida e volta entre a universidade e a Cidade Santa, distante 6 quilômetros, em ra zão dos bloqueios israelenses. Ela descreve uma situação que não para de se deteriorar. “A ocupação pesa sobre nossa vida de estudantes. Ela dita nossas escolhas, como a da universidade em que queremos estudar. Se moramos em Jerusalém, vamos pensar duas vezes antes de nos inscrevermos em Birzeit ou Nablus, simplesmente por causa das restrições da liberdade de movimento impostas por Israel.5 Mas a universidade permanece um casulo que não nos forma no pla no político para enfrentar essa situação. Para nossos irmãos mais velhos, entrar aqui significava escolher um partido e se engajar no ativismo. Não é mais o caso hoje em dia.” Muitos alunos e professores entrevistados lamentam que nem o Fatah nem o Hamas tenham um projeto político que possa mobilizar a juventude e favorecer a emergência de elites capazes de assumir a liderança de um movimento nacional exaurido. Ouvimos essa reclamação repetidamente. Por exemplo, na Universidade de Belém, onde assistir a uma manhã de atividades livres permite tomar a medida da ambiguidade da situação. De um lado, num pátio sombreado, cerca de duzentos estudantes joviais e barulhentos participam de um jogo de perguntas e respostas anunciadas ao som de canções ocidentais ou de músicas pop libanesas. Do outro lado, num anfiteatro pouco ocupado, com um ar de local voltado para os estudos, cerca de trinta pessoas acompanham um debate sobre a controversa Lei de Crime Eletrônico, adotada pela Autoridade Palestina em junho de 2017. Destinado oficialmente a regulamentar o uso da internet e das redes sociais, esse texto permite prender qualquer cidadão cujos escritos atentem contra “a integridade do Estado, a ordem pública, assim como a segurança i nterna ou externa do país”, ou ameacem “a unidade nacional e a paz social”.6 Considerada contrária aos direitos fundamentais por uma a mpla parte da sociedade
civil, a lei visa calar e punir os jornalistas adversários do regime e os opositores, mas também os ativistas e os jovens, muito ativos nas redes sociais, em que chovem críticas contra o poder. Exemplo disso é a interpelação pelos serviços de segurança palestinos, em setembro passado, de Issa Amro, líder da Juventude contra as Colônias, movimento sediado em Hebron (Al-Khalil), que tinha denunciado no Facebook a prisão de um jornalista que havia pedido a demissão de Mahmoud Abbas. Amro já havia sido preso pelo Exército israelense em fevereiro de 2016, após organizar uma manifestação pacífica contra a colonização...7 MOVIMENTO CONTRA A OCUPAÇÃO E A COLONIZAÇÃO
Yassir D., de 23 anos, inscrito no curso de Jornalismo, é um dos iniciadores desse debate. Ele também pouco se surpreende com a falta de interesse dos estudantes por um tema que, no entanto, tem tudo a ver com eles, nem com a ausência de mobilização contra uma legislação que desrespeita tanto a liberdade de expressão como a privacidade. “Nossos pais são incentivados pelo governo a contrair dívidas para consumir 8 e, por esse fato, hesitam em contestar a ordem estabelecida. Quanto aos jovens, suas condições de vida são tais que também querem se divertir. Então, é oferecida a eles a ilusão de que podem fazer isso como em qualquer outro lugar. Isso não quer dizer que eles não tenham consciência política, mas é justo que não se reconheçam em nenhuma dessas forças existentes.” Segundo um estudo, 73% dos palestinos de 15 a 29 anos afirmam não ser afiliados a nenhum partido e exprimem grande desconfiança em relação às instituições.9 Manal J., de 22 anos, aluna de Ciências da Comunicação, acompanha todo o debate. Sente-se pronta para se envolver no plano político? Constrangida, ela dá uma resposta: “Estou decidida a fazer isso, mas não é simples. Há uma regra que todos os jovens conhecem: fazer política é, cedo ou tarde, ir para a prisão, seja israelense ou pales-
tina. Para uma mulher, isso pode ter efeitos drásticos. Além das consequências físicas e morais do encarceramento, corremos o risco de jamais encontrar um marido, porque nossa sociedade permanece sendo muito conservadora, e todo tipo de boato pode prejudicar a reputação de uma mulher que esteve na prisão”. Desde 1967, cerca de 800 mil palestinos dos territórios ocupados foram encarcerados pelos israelenses, ou seja, dois homens adultos em cada cinco – com frequência sob o regime de prisão administrativa, sem acusação nem processo. Nesse total, contam-se 15 mil mulheres. Próximo da extrema esquerda, Wissam J., de 26 anos, na faculdade de Sociologia em Birzeit, também foi preso. Ele foi liberado em 2015, após ter passado três anos nas prisões israelenses – o que lhe custou um atraso equivalente em seus estudos. Por que motivo ele foi preso? “Fui preso e condenado por ‘ativismo’”, responde com um sorriso tímido, sem entrar nos detalhes. Como seus companheiros Rami e Youssef, Wissam milita no Nabd (“Ritmo”, em árabe), um movimento de jovens em luta contra a ocupação e a colonização israelense, “mas também contra a Autoridade Palestina, a div isão política interpalestina e a “normalização” com Tel Aviv promovida por certas ONGs e por autoridades do regime”, dispara Youssef. Nascido em Ramallah em 2011, na esteira do movimento de protesto popular lançado pelo Coletivo de 15 de março para chamar à unidade nacional diante de Israel, o Nabd se proclama “independente dos grandes partidos”, nos explica ele, acrescentando: “mas não agimos contra eles, mesmo que estejamos fora do quadro político tradicional, que mostrou seus limites”. Marcado “à esquerda”, como nos diz Rami, o movimento do qual alguns membros são igualmente oriundos da corrente islâmica espalhou-se por várias cidades da Cisjordânia e tenta estabelecer laços com os jovens de Gaza. Ele também se centra na educação popular e trabalha com a “reapropriação da identidade, da história e da memória coletiva palestinas, ameaçadas pela atomização da sociedade que favorece a política neoliberal da Autoridade Palestina, sob influência do Banco Mundial e dos ocidentais”. Os ativistas do Nabd também têm a intenção de lutar contra a fragmentação do território e evitar que a separação entre as gra ndes cidades da Cisjordânia – sem esquecer o isolamento de Gaza – firme definitivamente a imagem de “arquipélago de cidades autônomas” no imaginário palestino. “ Oferecemos ainda atividades culturais e artísticas. Por exemplo, um grupo de teatro foi criado nos campos de refugiados para insuflar nova vida na cultura popular do país”, acrescenta Wissam.
UM HORIZONTE COLETIVO PARA A “GERAÇÃO OSLO”
“Esses ativistas parecem fazer política de ‘outro jeito’”, analisa Sbeih Sbeih, sociólogo palestino e professor da Universidade de Aix-Marselha, que acompanha de perto a evolução desse movimento. “Ao discurso de nossos líderes sobre o ‘desenvolvimento da economia’, a ‘construção do Estado’ e a ‘paz’, eles opõem um modelo de resistência – contra Israel, mas também no plano econômico, político, educacional e cultural – em nome de um objetivo supremo, a libertação da Palestina. Essa é razão pela qual eles estão na mira das autoridades israelenses, mas também na dos serviços de segurança da Autoridade Palestina, como todos aqueles que questionam a ordem estabelecida.” Os israelenses não se enganaram em relação a isso: um dos fundadores do Nabd, preso no ano passado, continua a sete chaves, com o status de “preso administrativo”. Basil al-Araj, por sua vez, uma das figuras do movimento, foi abatido pelo Exército israelense em Al-Bireh (Ramallah) em 6 de março de 2017, ao final de uma longa caçada. Esse farmacêutico de 33 anos originário de Al-Walajah (Belém), muito ativo no campo da contestação, mas também em oficinas de educação popular, tinha sido libertado pouco tempo antes pelas forças de segurança palestinas, que o haviam acusado em abril de 2016 de “preparação de ação terrorista”, depois encarcerado durante seis meses. Para muitos, sua morte é fruto da coordenação de segurança entre os serviços de informação palestinos e seus equivalentes israelenses, muito criticada pela população dos territórios...10 O Nabd está longe de ser a única organização de jovens ativa na Palestina. Cerca de 40% dos que têm de 15 a 29 anos fazem parte de um movimento semelhante. Eles viram surgir vários coletivos, comissões e associações cuja palavra-chave é “a unidade do povo palestino”, como o Gaza Youth Breaks Out (Gybo) e o Jabal al-Mukabir Local Youth Initiative. Criado em 2011 por blogueiros de Ga za, o pri meiro denuncia ao mesmo tempo a ocupação israelense, a corrupção dos líderes políticos e a negligência dos principais part idos. O segundo, baseado em Jerusalém Oriental, tornou-se conhecido por organizar, em 16 de março de 2014, uma corrente humana em torno das muralhas da Cidade Santa para protestar contra a colonização judaica e reafirmar a identidade palestina. “Nossa geração quer inovar. Ela pretende repensar o discurso político tradicional, e isso explica a profusão de iniciativas que misturam cultura, aspecto social, envolvimento político e artes”, analisa Karim Kattan, pesquisador e escritor originário de Belém. Membro do projeto El-Atlal (“As ruí-
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nas”), que convida jovens artistas, pesquisadores e escritores, palestinos ou estrangeiros, para trabalhar e viver em Jericó, está convencido de que o recurso à criação “faz parte de novos modos de mobilização”. Isso permite também, segundo ele, repensar os laços de solidariedade entre ocidentais – mais particularmente franceses – e palestinos. “O tempo das ONGs que vêm passar três meses entre nós e vão embora com o sentimento de dever cumprido acabou. Os estrangeiros não devem mais vir ‘tomar conta’ de nós, mas trabalha r conosco.E aprender conosco como aprendemos com eles.”
13 mil moradores estão desempregados. Quando criança, ela conheceu a ofensiva israelense de abril de 2002 contra o campo, que fez oficialmente 52 mortos palestinos (pelo menos duzentos, segundo os moradores). Sem qualificação, ela trabalha como faxineira num complexo hoteleiro do norte da cidade cuja clientela é composta essencialmente de palestinos de Israel. Ela admite que muitas vezes pensa em recorrer à violência. “Eu penso um pouco, porque sei que os israelenses vão punir toda a minha família e que cada uma de nossas revoltas custou um alto preço, mas não suporto o destino do meu povo. Não posso me conformar. Admiro aqueles que deram a vida por nossa causa.” Para Houda, estudante de Jornalismo em Belém, “os ataques individuais dirigidos aos soldados nos bloqueios são um meio como outro qualquer de resistir à ocupação, de opor a força à violência exercida por Israel”. Youssef, de Birzeit, estima por seu lado que “essas ações extremas são fruto de uma imensa frustração diante da perpetuação da colonização, dos constrangimentos sofridos todos os dias nos postos de controle e de um horizonte completamente fechado” – ponto de vista que é expresso de maneira mais direta por um servidor de cerca de 20 anos empregado num café na cidade velha de Nablus: “Desde que nasci, os israelenses só me autorizaram a ir uma única vez a Jerusalém, e eu me sinto asfixiado aqui, trancado em meu próprio país. Não tenho poupança, não tenho mulher e não me formei. Sacrifiquei-me pela pátria ficando aqui, mas agora só quero uma coisa: ir embora para o estrangeiro. É isso, ou então me jogar sobre um soldado num bloqueio...”.
“Os ataques individuais dirigidos aos soldados nos bloqueios são um meio como outro qualquer de resistir à ocupação” Mas qual é a influência desses movimentos, seu peso na sociedade? Como diz Abaher el-Sakka, professor de Sociologia em Birzeit, “com certeza não se pode supervalorizar sua influência, relativamente limitada tendo em vista o espaço restrito no qual eles podem agir, os bloqueios ligados às estruturas de poder e, é claro, a repressão israelense. Mas movimentos como o Nabd podem criar uma nova dinâmica e preparar o terreno, a longo prazo, para importantes mudanças no plano sociopolítico. O que é certo é que eles oferecem uma solução em matéria de envolvimento coletivo aos jovens palestinos, vítimas do desencanto diante da falta de perspectivas de futuro e da impossibilidade de desempenhar um papel de decisão na sociedade. Muitos desses jovens, sentindo que foram postos de lado, rejeitam todos os partidos em bloco e se recolhem em si mesmos, com o risco de que alguns se voltem para a ação violenta”. Esse foi o caso, sobretudo, da revolta de 2015-2016, em que se multiplicaram os ataques isolados, muitas vezes com uma simples faca, contra os soldados israelenses e os colonos nos territórios ocupados. Esses ataques foram essencialmente obra de jovens de menos de 25 anos, independentes dos partidos e sem reivindicações.11 Eles deram origem a uma feroz repressão, com 175 mortos palestinos entre outubro de 2015 e fevereiro de 2016. Muitos de nossos i nterlocutores dizem compreender esses atos desesperados e se recusam a condená-los. Anissa D., de 25 anos, vive no campo de refugiados de Jenin, onde 70% dos
MUROS DE CONCRETO, POSTOS DE CONTROLE
Outros escolhem uma via diferente, como Majdi A., uma figura do campo de refugiados de Dheisheh, em Belém. Esse campo, um dos mais importantes da Cisjordânia, onde vivem 15 mil pessoas, permite que se tenha uma boa ideia da ociosidade da juventude. “Dheisheh está na mira do Exército israelense, que o invadiu muitas vezes, como a maior parte dos campos de refugiados”, explica-nos Majdi. A maioria das pessoas detidas é jovem, acusada de apelar para a violência no Facebook ou de lançar pedras contra os soldados. Mais de uma centena foi ferida em confrontos ao longo dos seis últimos meses. Há também dois mortos de 21 e 18 anos neste ano, e cerca de 84 crianças aleijadas, que foram propositalmente atingidas nas pernas. Quando lhe perguntamos sobre as ameaças que pesam sobre os jovens que se opõem à ocupação ou à política da Autoridade Palestina, ele nos responde sem rodeios: “Não pode-
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mos protestar nem ter atividades políticas outras que não aquelas controladas pelo poder; sofremos pressões de um lado e de outro. A única solução é se envolver de maneira pacífica. Eu, por exemplo, escolhi ficar aqui, não ir para o estrangeiro e trabalhar em favor da comunidade por meio de ações sociais e culturais. Permanecerei aqui para defender nossos direitos, mesmo que tenha de aqui deixar minha v ida”. Se permanecer na Palestina é um ato de resistência que exige soumoud (“tenacidade”, em árabe), voltar também o é. É a opin ião de Maher L., de 26 anos, comerciante na cidade velha de Hebron, perto do Tú mulo dos Patriarcas (ou Mesquita de Ibrahim). Trinta e cinco mil palestinos moravam aqui em 1997. Hoje eles não passam de 8 mil, submetidos à pressão permanente de oitocentos colonos particularmente agressivos e de cerca de 3 mil
soldados. Muros de concreto, postos de controle, catracas para filtrar as passagens, câmeras de vigilância e pórticos de detecção de metais instalados pelo Exército israelense, redes de malha colocadas pelos comerciantes para proteger as ra ras lojas ainda abertas de projéteis e de lixo lançados pelos colonos dos prédios, casas palestinas degradadas por estes últimos: viver aqui é um inferno. Com o rosto marcado, Maher reconhece, mas afirma que não quer mais deixar seu país depois de ter morado no estrangeiro por três anos. “Eu me exilei na Alemanha, mas o chamado de minha terra natal foi mais forte. Poderia ir embora de novo. Os colonos e as organizações que os apoiam nos estimulam a fazer isso: a lguns até oferecem dinheiro. Seria uma vantagem: meu comércio está moribundo, porque são poucos os ousados que assumem o risco de vir fazer com-
pras em nossas lojas. Mas não vou vender nunca e vou ficar aqui, aconteça o que acontecer. Eu espero. O tempo não é nosso inimigo.” *Akram Belkaïd e Olivier Pironet são jorna-
listas do Le Monde Diplomatique. 1 Todos os nomes de nossos interlocutores foram modificados, com exceção dos dois sociólogos e do escritor. 2 “Palestinian Youth” [Juventude palestina], Palestinian Academic Society for the Study of International Affairs (Passia), Jerusalém, abr. 2017. Disponível em: . 3 Cf. “Deaths in 2017” [Mortes em 2017], Israel-Palestine Timeline. Disponível em: . 4 “Rapport sur l’assistance de la Cnuced au peuple palestinien” [Relatório sobre a assistência da Unctad ao povo palestino], Unctad, Genebra, 10 jul.2017. 5 Sobre os atentados à liberdade de movimento dos palestinos na Cisjordânia, cf. o mapa-pôster inserido em “Palestine. Un peuple, une colonisation” [Palestina. Um povo, uma colonização], Manière de Voir , n.157, fev.-mar. 2018. 6 “Presidential Decree No. 16 of 2017 Regarding Cybercrime” [Decreto presidencial n. 16 de 2017
relativo a crimes cibernéticos], artigos 20 e 51, Ramallah, 24 jun. 2017. De seu lado, o Parlamento israelense adotou em primeira leitura, no início de 2017, uma lei que permite obrigar o Facebook a suprimir qualquer texto que incite à “violência” ou ao “terrorismo”. 7 Cf. “Farid Al-Atrash et Issa Amro”, La Chronique d’Amnesty , Paris, nov. 2017. 8 Salam Fayyad, primeiro-ministro da Autoridade Palestina de 2007 a 2013, colocou em prática em 2008 medidas que facilitam empréstimos para o consumo. Estima-se, por exemplo, que dois terços das famílias de Ramallah estejam endividadas. Cf. “Palestinian workers campaign for social justice” [Trabalhadores palestinos fazem campanha por justiça social], Middle East Report , Richmond (Estados Unidos), n.281, inverno de 2016. 9 “The Status of Youth in Palestine 2013” [A condição da juventude palestina em 2013], Sharek Youth Forum, Ramallah, 2013. 10 Cf. Shatha Hammad e Zena Tahhan, “Basil al-Araj was a beacon for Palestinian youth” [Basil al-Araj foi um ídolo para a juventude palestina], Al-Jazeera, 7 mar. 2017. Quanto à cooperação de segurança entre Israel e a Palestina, ler “Na Cisjordânia, o espectro da Intifada”, Le Monde Diplomatique Brasil , out. 2014. 11 Cf. Sylvain Cypel, “Pourquoi l’‘Intifada des couteaux’ continue” [Por que a “Intifada das facas” continua], Orient XXI , 24 fev. 2016. Disponível em: .
RESISTÊNCIA, ABERTURA E PODER
O Irã se reinventa como potência local Na guerra fria que o opõe à Arábia Saudita, o Irã pode apoiar-se num arquipélago de minorias xiitas. A República Islâmica lhes ofereceu apoio decisivo, especialmente para combater os jihadistas na Síria e no Iraque. Entretanto, a origem da rivalidade entre as duas potências do Golfo parece muito mais política do que étnica ou religiosa POR BERNARD HOURCADE*
om a intervenção da Guarda Revolucionária na Síria e no Iraque, o Irã, pela primeira vez em sua história moderna, venceu uma batalha militar fora de suas fronteiras. No dia 21 de novembro de 2017, o presidente Hassan Rohani proclamou o fim da Organização do Estado Islâmico, enquanto o general Ghassem Soleimani, comandante da força especial Al-Quds, celebrava essa “vitória decisiva”. O sucesso contra os jihadistas faz parte do renascimento do Irã no exterior, que inclui sua vitória diplomática de 14 de julho de 2015, com a assinatura, ao lado de seis gra ndes potências, de um acordo sobre a questão nuclear capaz de permitir que o país saia de seu isolamento diplomático e comercial. Na verdade, porém, o Irã não ganha quase nada com essas vitória s. Ao mesmo tempo que o país é acusado de ambições hegemônicas, o governo norte-americano de Donald Trump dificulta a renovação econômica tão esperada, recusando-se a suspender de fato as sanções. Claramente, após quase quatro décadas de marginalização, isolamento, embargo interna-
C
cional e ameaças de guerra, o Irã está longe de ser reconhecido como uma potência regional “normal”. O país se acostumou a viver separado, “resistir à agressão estrangeira” e estar à margem da globalização. O ISLÃ CAPTURADO PELO NACIONALISMO
Muitos analistas procuram a explicação de tal isolamento em um passado muitas vezes distante, evocando o Império Aquemênida, do século V a.C., a cultura persa, o xiismo e seu clero. Com exagerada frequência, negligenciam-se as profundas transformações observadas na sociedade e na vida política desde a revolução de 1979. Nacionalismo, islamismo, abertura: esses componentes estão o tempo todo em mudança, concorrência, composição. Nenhum deles desaparece, e seu exato equilíbrio é o que anima a vida política. Apesar da oposição dos religiosos, o sentimento nacional – que esteve no auge durante a dinastia Pa hlevi (19251941), a qual glorificava o passado pré-islâmico, e depois durante a nacionalização do petróleo, em 1953 – nunca enfraqueceu. Há um consenso em torno do mito do belo Irã eterno, terra dos
arianos – iranzamin –, que soube manter sua identidade, se não sua independência, resistindo às invasões de gregos, árabes, turcos e mongóis, além das ameaças dos impérios Otomano, Russo e Britânico.1 Paradoxalmente, a República Islâmica do Irã assumiu totalmente esse legado. Ela consolidou o Estado central,2 nos primeiros anos da revolução, combatendo três forças aliadas: o Iraque, as monarquias do petróleo e os países ocidentais. O ataque iraquia no de setembro de 1980 selou a imbricação entre o nacionalismo e o islamismo. As ambições universalistas da Revolução Islâmica rapidamente foram superadas pela necessidade de defender as fronteiras. Os guardas revolucionários e os milicianos (bassijis ) tornaram-se heróis da pátria. A vitória de Khorramshahr e a retomada da cidade, em 22 de maio de 1982, marcam a libertação do território nacional, e não a vitória do islamismo político, do qual ela representa, na verdade, um primeiro apagamento. A força do poder político do clero xiita e do líder supremo continua sendo uma realidade, mas se baseia na possibilidade de mobilizar milhões de vetera-
nos de guerra que defenderam o Irã e a jovem República Islâmica. O nacionalismo iraniano cultiva o espírito de “resistência”, mas não o de conquista. Durante sua longa história, o Irã foi diversas vezes invadido. E, desde sua criação como Estado moderno, no século XVI, perdeu guerras contra seus vizinhos, bem como territórios. Ele só conseguiu vencer algumas incursões, algumas razias, por exemplo, contra Délhi, em 1739, e Tbilisi, em 1795. Por ser ao mesmo tempo iraniano e xiita, cercado por populações turcas e árabes, sunitas e cristãs, o reino da Pérsia não tentou conquistar territórios exteriores, apenas manter influência sobre as zonas-tampão que cercam o Planalto Iraniano: a margem oriental do Tigre, o Cáucaso do Sul, o Mar Cáspio, a estepe turcomana, as províncias afegãs de Herat e Helmand e, claro, o Golfo Pérsico. Após a Segunda Guerra Mundial, a principal vocação do Exército do xá era enfrentar uma hipotética agressão soviética. A política m ilitar do Irã conformou-se a essa estratégia defensiva por necessidade – o embargo sobre os armamentos privava o país de qualquer
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mos protestar nem ter atividades políticas outras que não aquelas controladas pelo poder; sofremos pressões de um lado e de outro. A única solução é se envolver de maneira pacífica. Eu, por exemplo, escolhi ficar aqui, não ir para o estrangeiro e trabalhar em favor da comunidade por meio de ações sociais e culturais. Permanecerei aqui para defender nossos direitos, mesmo que tenha de aqui deixar minha v ida”. Se permanecer na Palestina é um ato de resistência que exige soumoud (“tenacidade”, em árabe), voltar também o é. É a opin ião de Maher L., de 26 anos, comerciante na cidade velha de Hebron, perto do Tú mulo dos Patriarcas (ou Mesquita de Ibrahim). Trinta e cinco mil palestinos moravam aqui em 1997. Hoje eles não passam de 8 mil, submetidos à pressão permanente de oitocentos colonos particularmente agressivos e de cerca de 3 mil
soldados. Muros de concreto, postos de controle, catracas para filtrar as passagens, câmeras de vigilância e pórticos de detecção de metais instalados pelo Exército israelense, redes de malha colocadas pelos comerciantes para proteger as ra ras lojas ainda abertas de projéteis e de lixo lançados pelos colonos dos prédios, casas palestinas degradadas por estes últimos: viver aqui é um inferno. Com o rosto marcado, Maher reconhece, mas afirma que não quer mais deixar seu país depois de ter morado no estrangeiro por três anos. “Eu me exilei na Alemanha, mas o chamado de minha terra natal foi mais forte. Poderia ir embora de novo. Os colonos e as organizações que os apoiam nos estimulam a fazer isso: a lguns até oferecem dinheiro. Seria uma vantagem: meu comércio está moribundo, porque são poucos os ousados que assumem o risco de vir fazer com-
pras em nossas lojas. Mas não vou vender nunca e vou ficar aqui, aconteça o que acontecer. Eu espero. O tempo não é nosso inimigo.” *Akram Belkaïd e Olivier Pironet são jorna-
listas do Le Monde Diplomatique . 1 Todos os nomes de nossos interlocutores foram modificados, com exceção dos dois sociólogos e do escritor. 2 “Palestinian Youth” [Juventude palestina], Palestinian Academic Society for the Study of International Affairs ( Passia), Jerusalém, abr. 2017. Disponível em: . 3 Cf. “Deaths in 2017” [Mortes em 2017], Israel-Palestine Timeline. Disponível em: . 4 “Rapport sur l’assistance de la Cnuced au peuple palestinien” [Relatório sobre a assistência da Unctad ao povo palestino], Unctad, Genebra, 10 jul.2017. 5 Sobre os atentados à liberdade de movimento dos palestinos na Cisjordânia, cf. o mapa-pôster inserido em “Palestine. Un peuple, une colonisation” [Palestina. Um povo, uma colonização], Manière de Voir , n.157, fev.-mar. 2018. 6 “Presidential Decree No. 16 of 2017 Regarding Cybercrime” [Decreto presidencial n. 16 de 2017
relativo a crimes cibernéticos] , artigos 20 e 51, Ramallah, 24 jun. 2017. De seu lado, o Parlamento israelense adotou em primeira leitura, no início de 2017, uma lei que permite obrigar o Facebook a suprimir qualquer texto que incite à “violência” ou ao “terrorismo”. 7 Cf. “Farid Al-Atrash et Issa Amro”, La Chronique d’Amnesty , Paris, nov. 2017. 8 Salam Fayyad, primeiro-ministro da Autoridade Palestina de 2007 a 2013, colocou em prática em 2008 medidas que facilitam empréstimos para o consumo. Estima-se, por exemplo, que dois terços das famílias de Ramallah estejam endividadas. Cf. “Palestinian workers campaign for social justice” [Trabalhadores palestinos fazem campanha por justiça social], Middle East Report , Richmond (Estados Unidos), n. 281, inverno de 2016. 9 “The Status of Youth in Palestine 2013” [A condição da juventude palestina em 2013], Sharek Youth Forum, Ramallah, 2013. 10 Cf. Shatha Hammad e Zena Tahhan, “Basil al-Araj was a beacon for Palestinian youth” [Basil al-Araj foi um ídolo para a juventude palestina], Al-Jazeera, 7 mar. 2017. Quanto à cooperação de seg urança entre Israel e a Palestina, ler “Na Cisjordânia, o espectro da Intifada”, Le Monde Diplomatique Brasil , out. 2014. 11 Cf. Sylvain Cypel, “Pourquoi l’‘Intifada des couteaux’ continue” [Por que a “Intifada das facas” continua], Orient XXI , 24 fev. 2016. Disponível em: .
RESISTÊNCIA, ABERTURA E PODER
O Irã se reinventa como potência local Na guerra fria que o opõe à Arábia Saudita, o Irã pode apoiar-se num arquipélago de minorias xiitas. A República Islâmica lhes ofereceu apoio decisivo, especialmente para combater os jihadistas na Síria e no Iraque. Entretanto, a origem da rivalidade entre as duas potências do Golfo parece muito mais política do que étnica ou religiosa POR BERNARD HOURCADE*
om a intervenção da Guarda Revolucionária na Síria e no Iraque, o Irã, pela primeira vez em sua história moderna, venceu uma batalha militar fora de suas fronteiras. No dia 21 de novembro de 2017, o presidente Hassan Rohani proclamou o fim da Organização do Estado Islâmico, enquanto o general Ghassem Soleimani, comandante da força especial Al-Quds, celebrava essa “vitória decisiva”. O sucesso contra os jihadistas faz parte do renascimento do Irã no exterior, que inclui sua vitória diplomática de 14 de julho de 2015, com a assinatura, ao lado de seis gra ndes potências, de um acordo sobre a questão nuclear capaz de permitir que o país saia de seu isolamento diplomático e comercial. Na verdade, porém, o Irã não ganha quase nada com essas vitória s. Ao mesmo tempo que o país é acusado de ambições hegemônicas, o governo norte-americano de Donald Trump dificulta a renovação econômica tão esperada, recusando-se a suspender de fato as sanções. Claramente, após quase quatro décadas de marginalização, isolamento, embargo interna-
C
cional e ameaças de guerra, o Irã está longe de ser reconhecido como uma potência regional “normal”. O país se acostumou a viver separado, “resistir à agressão estrangeira” e estar à margem da globalização. O ISLÃ CAPTURADO PELO NACIONALISMO
Muitos analistas procuram a explicação de tal isolamento em um passado muitas vezes distante, evocando o Império Aquemênida, do século V a.C., a cultura persa, o xiismo e seu clero. Com exagerada frequência, negligenciam-se as profundas transformações observadas na sociedade e na vida política desde a revolução de 1979. Nacionalismo, islamismo, abertura: esses componentes estão o tempo todo em mudança, concorrência, composição. Nenhum deles desaparece, e seu exato equilíbrio é o que anima a vida política. Apesar da oposição dos religiosos, o sentimento nacional – que esteve no auge durante a dinastia Pa hlevi (19251941), a qual glorificava o passado pré-islâmico, e depois durante a nacionalização do petróleo, em 1953 – nunca enfraqueceu. Há um consenso em torno do mito do belo Irã eterno, terra dos
arianos – iranzamin –, que soube manter sua identidade, se não sua independência, resistindo às invasões de gregos, árabes, turcos e mongóis, além das ameaças dos impérios Otomano, Russo e Britânico.1 Paradoxalmente, a República Islâmica do Irã assumiu totalmente esse legado. Ela consolidou o Estado central,2 nos primeiros anos da revolução, combatendo três forças aliadas: o Iraque, as monarquias do petróleo e os países ocidentais. O ataque iraquia no de setembro de 1980 selou a imbricação entre o nacionalismo e o islamismo. As ambições universalistas da Revolução Islâmica rapidamente foram superadas pela necessidade de defender as fronteiras. Os guardas revolucionários e os milicianos (bassijis ) tornaram-se heróis da pátria. A vitória de Khorramshahr e a retomada da cidade, em 22 de maio de 1982, marcam a libertação do território nacional, e não a vitória do islamismo político, do qual ela representa, na verdade, um primeiro apagamento. A força do poder político do clero xiita e do líder supremo continua sendo uma realidade, mas se baseia na possibilidade de mobilizar milhões de vetera-
nos de guerra que defenderam o Irã e a jovem República Islâmica. O nacionalismo iraniano cultiva o espírito de “resistência”, mas não o de conquista. Durante sua longa história, o Irã foi diversas vezes invadido. E, desde sua criação como Estado moderno, no século XVI, perdeu guerras contra seus vizinhos, bem como territórios. Ele só conseguiu vencer algumas incursões, algumas razias, por exemplo, contra Délhi, em 1739, e Tbilisi, em 1795. Por ser ao mesmo tempo iraniano e xiita, cercado por populações turcas e árabes, sunitas e cristãs, o reino da Pérsia não tentou conquistar territórios exteriores, apenas manter influência sobre as zonas-tampão que cercam o Planalto Iraniano: a margem oriental do Tigre, o Cáucaso do Sul, o Mar Cáspio, a estepe turcomana, as províncias afegãs de Herat e Helmand e, claro, o Golfo Pérsico. Após a Segunda Guerra Mundial, a principal vocação do Exército do xá era enfrentar uma hipotética agressão soviética. A política m ilitar do Irã conformou-se a essa estratégia defensiva por necessidade – o embargo sobre os armamentos privava o país de qualquer
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equipamento moderno: mísseis, aviação, tanques, artilharia –, mas especialmente por coerência com a tradição nacional. As Forças Armadas, concebidas para uma guerra assimétrica defensiva, em torno de forças populares e milícias, não tin ha condições de se projetar de forma sustentável no exterior. Assim, o Irã é nacionalista, porém não imperialista. Os veteranos da guerra contra o Iraque, que hoje detêm o poder e controlam as administrações, guardam a lembrança dos danos causados pelos mísseis iraquianos nos centros urbanos. É por isso que fizeram da produção de mísseis balísticos uma prioridade, ainda menos negociável quando se sabe que os países vizin hos contam com um arsenal infinitamente mais poderoso e eficaz, fornecido pelos países ocidentais. O consenso nacional a respeito desse assunto é ainda mais forte do que sobre a questão nuclear. Apesar dos desentendimentos quanto à necessidade de possuir arma atômica, a população concorda que o país tem o direito de decidi r sobre isso. A escolha da diplomacia para resolver a crise nuclear ampliou com sucesso o alcance do espírito de “resistência”. O Irã está orgulhoso de ter forçado grandes poderes a negociar com ele em pé de igualdade, sobre um assunto de grande importância. As autoridades não se cansam de afirmar seu compromisso com o direito internacional, buscando o apoio da União Europeia, da Rússia e da China, a fim de frustrar a reviravolta dos Estados Unidos. ANTIGUIDADE DAS RED ES LIBANESAS
O principal adversário da nova política de abertura continua sendo esse velho nacionalismo que faz a derrota, o “martírio” e a retirada serem preferíveis a uma v itória que envolva o contato com outros mundos. Mas o medo da desordem e da guerra que devastam os países vizinhos, bem como a memória dos dramas da revolução, favorecem a estabilidade do sistema. Desde sua eleição, em 2013, Rohani encarna esse espírito de moderação que permite preservar um jogo eleitoral certamente muito limitado, mas real, e o predomínio instit ucional do clero.3 O Estado iraniano moderno foi fundado no século XVI, em torno do xiismo, pela dinastia de língua turca safávida, mas o islã tornou-se um fator político marginal no Irã dos Pahlevi. Definindo-se como “islâmica”, a jovem república reatava com uma herança que facilitava a un idade contra o xá. E, embora o clero e o aiatolá Ruhollah Khomeini tenham capturado o processo revolucionário em seu benefício, eles tiveram de leva r em consideração a marginalidade dos xiitas iranianos no oceano sunita, afirmando a unidade da ummah, a comunidade
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Durante funeral em Nabatie (Líbano) de três combatentes do Hezbollah que lutavam na Síria, garotas carregam retratos dos aiatolás Khomeini e Khamenei
dos crentes, para não bloquear as ambições universalistas da revolução. A oposição radical a Israel foi imediatamente privilegiada como meio para ser aceito no mundo muçulmano. Na verdade, nada disso fu ncionou. Para defender o Estado e resistir à invasão iraquia na, o Irã logo teve de voltar-se para sua identidade ao mesmo tempo iraniana e x iita, a fim de encontrar a liados em um arquipélago de territórios dispersos, povoados por minorias étnicas ou religiosas. Armênios, tadjiques de língua persa do Afeganistão e até curdos do Iraque contrários ao domínio baathista do poder iraquiano nos a nos 1970 compunham esse arquipélago, constituído essencialmente por minorias xiitas, às vezes heterodoxas, espalhadas por todo o mundo árabe sunita ou turco. Essa geografia de ilhotas impede qualquer continuidade territorial, elevando o risco de cerco. O Hezbollah libanês é, sem dúvida, o carro-chefe desse arquipélago xiita. Por séculos, a forte comunidade xiita libanesa manteve laços estreitos com o Irã.4 A polícia do xá, a Savak, já era muito ativa no Líbano, na década de 1970, para apoiar o par tido xiita moderado Amal, mas principalmente para controlar os membros do clero xiita libanês, como o aiatolá Musa al-Sadr, que tinha relações com Khomeini. Essas redes libanesas foram imediatamente utilizadas pela República Islâmica do Irã para atacar, por meio de tomadas de reféns e atentados, os países que apoiavam o Iraque e cujas tropas ficaram no Lí bano, como a França e os Estados Unidos. A invasão israelense do Líbano, em ju lho de 1982,
ocorreu no momento em que o Irã, v itorioso na frente iraquiana, exigia – em vão – que a ONU reconhecesse o Iraque como agressor. Ela foi determinante para incitar o Irã a fortalecer suas posições no Líbano, com a perspectiva óbvia de prolongar a Guerra Irã-Iraque. O Hezbollah foi então construído para ser um aliado estável, de três maneiras: como ator político fundamental em um país árabe; como força armada capaz de ações militares ou não convencionais; e como ponta de lança da frente contrária a Israel. O sucesso dessa estratégia fica claro com o fim da ocupação israelense no sul do Líbano em maio de 2000, a participação do Hezbollah no governo libanês desde 2005 e seu papel central na guerra da Síria, ao lado das forças especiais iranianas e das milícias xiitas, em apoio ao regime de Bashar al-Assad. Esse é o único sucesso de fato alcançado pelo Irã. Os xiitas do Kuwait, da Arábia Saudita e do Bahrein têm uma forte e longa tradição de oposição política nacional, exemplificada sobretudo pelos apoiadores do aiatolá kuwaitiano Mohammad al-Shirazi. Mas, ainda que tenham contado com o apoio do Irã revolucionário, eles logo se distanciaram do novo Estado iraniano, cuja ingerência enfraquecia sua construção de uma oposição nacional unificada.5 No Afeganistão, o Irã sempre apoiou os xiitas hazara, oferecendo formação religiosa e milita r, bem como ajuda humanitária, em um contexto sempre instável; no entanto, essa população, muito minoritária, não passa de um aliado marginal. Ele precisou contar também com os tadjiques suni-
tas de língua persa para conter a influência dos talibãs. Todavia, os xiitas afegãos, bem como os paquistaneses, forneceram numerosos milicianos na Síria, com todas as forças estrangeiras representando cerca de 10 mil homens, sendo 2 mil a 3 mil deles irania nos, vindos principalmente da força especial Al-Quds. No Iêmen, a minoria xiita heterodoxa zaidita não tinha nenhuma relação com o Irã xiita duodecimano, mas a revolta dos houthis, que os une contra os interesses sauditas, dava ao Irã uma oportunidade de contrariar a política da Arábia Saudita na Síria. As relações com o Iraque são de uma natureza diferente e muito mais complexa. A rivalidade entre os xiismos persa e árabe acentua-se pelo antagonismo entre o Estado iraniano e o iraquiano, especialmente pela oposição do aiatolá Ali al-Sistani – muito influente no Iraque – à doutrina iraniana do líder supremo (doutrina do velayat-e faqih), que confere ao clero um papel preponderante. A derrubada de Saddam Hussein pelos Estados Unidos em 2003 permitiu ao Irã construir uma delicada relação de boa vizinhança: apoio ao novo governo de maioria xiita, relações comerciais intensas, manutenção de poderosas redes de influência e milícias. Muitas vezes invasiva, essa presença iraniana choca-se com um nacionalismo iraquiano, ainda forte. O primeiro-ministro iraquiano, Haider al-Abadi, aprecia o desenvolvimento das relações econômicas com o Irã e o apoio tanto da força A l-Quds como das milícias xiitas sustentadas ou controladas pelo país para lutar contra o Estado Islâmico, mas agora procura defender sua independência. A liberta-
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ção de Mossul foi inicialmente um feito da Legião de Ouro do Exército iraquiano, deixando pouco espaço para as forças diretamente controladas pelo Irã. A realpolitik e a prioridade da defesa nacional do Irã impõem cautela; o Iraque não tem outra escolha a não ser consolidar sua influência na zona-tampão ao longo da fronteira, de Basra ao Curdistão, nas cidades sagradas do xiismo, tentando ao mesmo tempo fortalecer um Estado iraquiano unificado e estável. Na Síria praticamente não existe uma população verdadeiramente xiita. Os alauitas fora m oficialmente chamados de “xiitas” na época do presidente Hafez al-Assad (1971-2000), para consolidar a aliança entre a Síria e o Irã. O ex-presidente sírio foi, depois de Yasser Arafat, o primeiro chefe de Estado a visitar o Irã após a vitória da República Islâmica, a fim de tirar o país do isolamento. Depois, essa aliança foi mantida em todas as guerras regionais, inclusive a luta contra as forças jihadistas. O Irã temia uma vitória jihadista na Síria e no Iraque, o que teria criado em sua fronteira um imenso território sob o domínio direto ou indireto da Arábia Saudita e das monarquias do petróleo.
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nente islâmico do sistema. Ele também preocupa os veteranos da Guerra Irã-Iraque e os revolucionários de 1979, que veem surgir rivais. Hoje, vemos que a socialização das mulheres, a ascensão de gerações mais jovens e o progresso da educação transformaram profundamente o Irã, que paradoxalmente se tornou um dos países mais secularizados da região. Embora o islã institucional continue bastante visível e repressivo, ele agora precisa responder às exigências de uma sociedade na qual a modernidade não é mais prerrogativa de uma minoria ocidentalizada.6 Após quatro décadas, o Irã busca sair sem grande crise da experiência do islamismo político, no momento em que muitos de seus vizinhos, especialmente após a Primavera Árabe, procuram em variantes desse movimento a solução para seus problemas. A originalidade do caso irania no está na existência de uma classe média ampla e diversa, que o Irã muita s vezes tem fortalecido à sua própria custa. Grande parte da população, entregue a si mesma na época do xá, viu sua situação melhorar. A Guerra Irã-Iraque acelerou a promoção social nas pequenas cidades das periferias e do ca mpo, mobilizando milhões de pessoas: quadros do Exército, gua rdas revolucionáREVOLTA DA NOVA CLASSE MÉDIA As relações com o arquipélago xiita rios e sobretudo simples milicianos ganham importância no contexto de (bassijis ). Todos esses veteranos tiveuma rivalidade exacerbada com a Ará- ram vantagens financeiras, sociais ou bia Saudita, preocupada com a reno- políticas que os fizeram entrar na nova vada influência iraniana. O Irã se be- classe média, e até na elite, em decorneficiou, sem ter buscado isso, com a rência principalmente da educação política de intervenção norte-ameri- pública e da democratização do ensicana na região – derrubada do Talibã no superior. Mesmo permanecendo liafegão em 2001 e de Saddam Hussein gada ao poder islâmico do qual emerem 2003 – e depois com as derrotas giu, essa nova classe média popular jihadistas. Aos olhos dos ira nianos, a começou a descobrir – e a apreciar – o Arábia Saudita simboliza a arrogância mundo exterior. de regimes monárquicos que aproveiOs tumultos de janeiro de 2018 nas taram a marginalização do Irã desde pequenas cidades tornaram visível es1979 para construir um império eco- sa população que durante muito temnômico, midiático e político que im- po esteve oculta. A revolta mobilizou o põe seus pontos de vista a toda a re- Irã profundo. Os veteranos da revolugião, com o apoio incondicional dos ção e da Guerra Irã-Iraque têm hoje Estados ocidentais. O conflito com a mais de 60 anos. Eles não são contrá Arábia Saudita e a luta contra os takfiri rios à abertura, mas, como pediu o lí(“excomungadores”) do Estado Islâmi- der supremo Ali Khamenei após aceico e da A l-Qaeda provocam um amplo tar o acordo sobre a questão nuclear, consenso, não para apoiar o regime de querem continuar “resistindo” a uma Al-Assad, considerado incompetente, abertura que não controlam e que carmas para evitar o cerco saudita, rega o risco de tira r seu poder. Seus fiapoiando um poder amigável, inde- lhos continuam inseridos na cultura da República Islâmica e sofrem seu pendente e estável na Síria. Uma nova geração de guardas revo- controle social, muito mais forte nas lucionários e milicianos, v itoriosos em cidades pequenas e médias do que nas uma guerra proativa e não mais de “re- grandes. Maciçamente escolarizados, sistência”, parece estar se formando. O eles também formam as mais numearquipélago xiita, novo instrumento de rosas gerações do país, com idade enpolítica externa, coloca questões não tre 25 e 40 anos. Conhecem o mundo apenas aos países vizinhos, mas tam- exterior melhor do que seus pais e se bém aos iranianos partidários da estri- atrevem a exigir mais justiça social e ta tradição nacionalista e sobretudo econômica. E começam a contestar o aos partidários da abertura, que te- poder, os métodos e a corrupção damem um fortalecimento do compo- queles que governam o país, mas a
quem estão ligados. Para eles, a questão não é mudar o regime – ambição até o momento inconcebível, por falta de solução alternativa –, mas, primeiro, melhorar as condições de vida. A gritante necessidade de um desenvolvimento econômico mais rápido enfrenta dois obstáculos. O pri meiro, que impede qualquer abertura internacional, é a ausência de uma reforma profunda das estruturas financeiras e bancárias e especialmente o peso de uma elite econômica corrupta. Durante muito tempo, esse problema pareceu insuperável para Rohani. Mas os protestos das novas classes médias e populares estão mudando as relações de forças, provocando acalorados debates entre aqueles que ainda querem resistir às mudanças e os que julgam preferível fazer concessões para manter o poder. O outro obstáculo à abertura econômica vem dos Estados Unidos. É verdade que Trump não denunciou formalmente o acordo sobre a questão nuclear: ele até o validou novamente em meados de janeiro, mas anunciou que seria a última vez. O Congresso dos Estados Unidos manteve e acentuou outras sanções, não reconhecidas pela ONU ou pela União Europeia, justificadas pela situação dos direitos humanos e pelo “terrorismo” (nesse caso, apoio ao Hezbollah). Violando as leis internacionais, os Estados Unidos proíbem as empresas europeias com interesses em seu país de investir no Irã ou comercializar com ele. Assim, impedem uma decolagem real das relações comerciais do Irã com o Ocidente, avivando a impaciência da população iraniana. Como as sanções norte-americanas são motivadas principalmente pelo apoio do Irã ao Hezbollah e por sua hostilidade a Israel, numerosas vozes se levantam, especialmente entre as gerações que não conheceram a revolução e a guerra, para que essa política apoiada no arquipélago xiita fique em segundo plano. No entanto, não há força constituída nem autoridades capazes de fazer tal mudança. UMA DINÂMICA DE ABERTURA
Conforme previsto por Olivier Roy,7 o islã foi pouco a pouco marginalizado pela política. Os iranianos permanecem fiéis à sua fé, mas se tornaram republicanos. Um novo consenso em favor da abertura do país aproxima hoje os diversos componentes da classe média, inclusive e principalmente aqueles que respeitam a herança da revolução, da resistência durante a guerra e do islã. Ver o Irã atual sob a dimensão exclusiva do xiismo e de um ativismo encarnado pelo Hezbollah seria um erro. Seria ignorar as mudanças sociais e políticas dos últimos quarenta anos. É
verdade que a República Islâmica está se tornando um ator importante no Oriente Médio e perturba a ordem regional, mas a força atual do país não estaria na capacidade de atração da república, na socialização das mulheres, na capacidade de desenvolvimento econômico, na influência de artistas e cineastas? A exportação da Revolução Islâmica, que também portava ambições de independência, liberdade e república, foi contida no in ício da década de 1980, mas a dinâmica atual de abertura internacional dá nova vida a suas palavras de ordem, especialmente entre o Afeganistão e o Lí bano, nesse conjunto de “repúblicas” onde, sem precisarmos remontar à época abássida, o Irã sempre teve influência. Já entre Omã e a Jordânia, em compensação, reinam monarquias sobre as quais o Irã realmente nunca teve ascendência. Após resistir afir mando sua identidade islâmica e nacional, e em seguida organizar sua rede regional de influência, o Irã, ou mais exatamente sua população, busca afirmar sua originalidade como potência econômica, industrial e cultural. A rivalidade com a A rábia Saudita provavelmente será duradoura, muito embora, para evitar uma escalada militar, fale-se cada vez mais, sobretudo em Paris, na busca por um pacto de não agressão comparável aos Acordos de Helsinque, de 1975, entre ocidentais e soviéticos. Isso porque essas duas potências emergentes, opostas em tudo, são também as únicas capazes de impor um mínimo de segurança na região, não mais apenas com o objetivo de assegurar as exportações de petróleo e gás do Golfo Pérsico, mas também para responder às aspirações de suas sociedades. *Bernard Hourcade é
diretor de pesquisa emérito do Centro Nacional de Pesquisa Científica (CNRS), Mundo Iraniano, Paris. 1 Xavier de Planhol, Les Nations du Prophète. Manuel géographique de politique musulmane [As nações do Profeta. Manual geográfico de política muçulmana], Fayard, Paris, 1993. 2 Bernard Hourcade, “Nationalism and the Islamic Republic” [Nacionalismo e a República Islâmica]. In: Meir Litvak (org.), Constructing Nationalism in
Iran: from the Qajars to the Islamic Republic [Construindo o nacionalismo no Irã: da dinastia Qajar à República Islâmica], Routledge, Abingdon, 2017. 3 Ver Philippe Descamps e Cécile Marin, “Une mollahrchie constitutionnelle” [Uma mularquia constitucional], Le Monde Diplomatique, maio 2016. 4 Houchang Chehabi e Hassan Mneimneh (orgs.),
Distant Relations: Iran and Lebanon in the Last 500 Years [Relações distantes: Irã e Líbano nos últimos quinhentos anos], I. B. Tauris, Londres, 2006. 5 Laurence Louër, Sunnites et chiites. Histoire politique d’une discorde [Sunitas e xiitas. História política de uma discórdia], Seuil, Paris, 2017. 6 Amélie Myriam Chelly, Iran, autopsie du chiisme politique [Irã, autópsia do xiismo político], Le Cerf, Paris, 2017. 7 Olivier Roy, L’Échec de l’islam politique [O fracasso do islã político], Seuil, 1992.
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A URGÊNCIA DE REFUNDAR O MULTILATERALISMO
Bombeiros piromaníacos da ordem internacional Ao transgredirem as resoluções da ONU sobre Jerusalém, os Estados Unidos ilustram um dos principais perigos da geopolítica atual: o enfraquecimento dos fundamentos da legalidade internacional, nascida em 1945. Com o fim da Guerra Fria, surgiu a oportunidade de reafirmar uma regra aceita por todos, mas os ocidentais privilegiaram seus próprios interesses POR ANNE-CÉCILE ROBERT*
xiste uma ladainha da mídia que acostuma as pessoas a determinada visão da sociedade internacional que parece resumir-se a um caos crescente (microconflitos, ondas migratórias etc.), marcado por manifestações de violência cega (atentados, massacres de civis), no qual se afirmam potências cínicas, como a Rússia, a Turquia e até mesmo os Estados Unidos de Donald Trump. Esse caos, muito evidente nos dias atuais, já estava latente desde o início dos anos 1990. A queda do Muro de Berlim gerou a crença no início de uma era totalmente nova, uma “globalização feliz” sob a ég ide protetora dos Estados Unidos, ilustrada pela Guerra do Golfo em 1990. Embora essa intervenção ainda estivesse circunscrita às balizas definidas pela ONU, a década de 1990 revelou a tentativa, por parte do poder norte-americano, de autorita-
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riamente forjar novas regra s. O laboratório disso foi a Guerra do Kosovo, com seus promotores tentando formalizar um direito de ingerência nos assuntos internos dos Estados. Essa vi são, temporariamente tornada possível pelo apagamento da Rússia e pela reserva chinesa, teve seu apogeu com a intervenção na Líbia, em 2011, revelando perigosas contradições. Desde 1945, a ordem internacional é abalada de tempos em tempos por crises e guerras. Porém, seus fundamentos oficiais continuavam sendo os princípios humanistas e sociais oriundos das grandes conferências do pós-guerra – a da Filadélfia, sobre os direitos sociais; e a de São Francisco, que criou a ONU, sobre a proibição da guerra. Mas a instabilidade que se desenvolveu diante de nossos olhos é global, tanto ideológica como econômica. Ainda que se tenha conseguido apresentar os crashs financeiros de 1998 e de 2008 como acidentes de percurso, a eleição de Trump ilustra uma contestação paradoxal, porém emblemática, do dogma do livre-comércio desde seu epicentro, ao mesmo tempo que conclui o enterro dos direitos sociais. A impressão de caos provém ainda da recomposição de forças (novas potências se afirmam, ao passo que outras patinam) e da mudança das regras do próprio jogo internacional, iniciada na década de 1990 e hoje criticada.
AMPLAS MARGEN S DE INTERPRETAÇÃO
De 1945 até os anos 1990, as regras do jogo eram claras, inscritas em pedra na Carta das Nações Unidas. Naturalmente, os países mais fortes, usando seu direito de veto ou o de uma potência protetora, sempre contornavam essas regras a fim de intervir militarmente em suas respectivas zonas de influência: a Rússia na Europa oriental, os Estados Unidos na América Central, Paris na África, Israel em sua vizin hança. No entanto, e este é o ponto-chave, tais potências não tentavam abertamente modificar as regras da Carta nem inventar outras. Elas tinham, inclusive, um cuidado especial em manter as aparências e não criar um enfrentamento aberto. A Carta das Nações Unidas não apenas servia de ponto de referência, mas também atuava como uma espécie de contrato de confiança internacional. As críticas mais fortes a ela (como o general De Gaulle denunciando o “troço” que contestava o neocolonialismo francês na África, ou Ronald Reagan praguejando contra uma burocracia anti-Estados Unidos) foram sempre pontuais, sem resultar na demolição de um edifício que – por meio do direito de veto – validava o status de grande potência. Assim, havia regras oficiais regendo o uso da força, mesmo sob o risco de permitir interpretações extensivas, por exemplo, ao invocar-se uma legítima defesa “preventiva”, contrária à própria noção de legítima defesa, necessariamente reativa. Aliás, nenhum organismo da ONU validou esse desvio semântico, utilizado sobretudo por Israel para justificar o bombardeio de uma usina nuclear iraquiana em 1980. A partir dos anos 1990, as coisas mudaram: vemos a tentativa de modificar as regras do jogo internacional, especialmente aquelas relacionadas ao direito da guerra. Imposta pelo Ocidente, sob a presidência de Bill Clinton (1993-2001), essa mudança é uma das causas da profunda i nstabilidade hoje verificada nas relações internacionais. Embora inicialmente tenha encontra-
do pouca oposição, ela parece ter chegado ao limite com a intervenção na Líbia, em 2011, e depois com o conflito na Síria – sem, contudo, desenhar-se nem um retorno à ordem de 1945 nem a instalação de uma nova ordem claramente definida. Em um primeiro momento, o colapso da União Soviética permitiu um exercício consensual do direito da guerra, pondo fim aos domínios da Guerra Fria. Assim, o Conselho de Segurança da ONU autorizou por unanimidade, em nome da segurança coletiva, a intervenção militar de 35 países contra o Iraque (2 de agosto de 1990-28 de fevereiro de 1991). Era quase um estudo de caso para um estudante de Direito Internacional, com a anexação de um país inteiro por outro – no caso, o Kuwait pelo Iraque – constituindo uma violação flagrante das regras mais solidamente ancoradas desde a Liga das Nações, que serviram de base para a Carta das Nações Unidas. Falava-se, então, com um entusiasmo inequívoco, em uma “nova ordem internacional” e no advento de uma verdadeira “comunidade internacional”, que finalmente faria reinar o direito contra a força, o bem contra o mal. Emblemática do universo político dos anos 1990, a intervenção da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) no Kosovo em 1999 marca uma fratura, quase não percebida como tal,1 das relações internacionais – uma fratura ainda aberta. A propaganda de guerra, transmitida pela mídia, que acompanhou o bombardeio de Belgrado, sem mandato das Nações Unidas e violando o direito da guerra, 2 marca o surgimento de um consenso ideológico destinado a minar o que fora penosamente adquirido em 1945. O orquestrado fracasso da Conferência de Rambouillet – durante a qual a diplomacia norte-americana literalmente manipulou, com o apoio alemão, as chancelarias europeias (em primeiro lugar a da França, aliada histórica da Iugoslávia) – significou uma escolha consciente pela alternativa militar, quando as vias
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pacíficas ainda poderiam ser utilizadas para impedir massacres que infelizmente eram muito reais.3
geral, da força. Apesar das tensões da Guerra Fria, o sistema das Nações Unidas continuava oficialmente assentado no banimento da guerra e na promulgação de princípios destinados a limitar suas causas. Essa ordem também correspondia aos interesses dos países pequenos, na medida em que proibia a ingerência de que os Estados, sobretudo os colonizadores, usavam e abusavam para impor seus pontos de vista a populações mais fracas. Ao limitar as condições do uso da força às “ameaças” à paz, a Carta das Nações Unidas priva as potências de argumentos mais subjetivos. No século X IX, os europeus alegavam, por exemplo, intervir no Império Otomano com o pretexto de proteger as minorias cristãs perseguidas (“intervenções humanitárias”).5 A década de 1990 abriu o caminho para uma mudança no equilíbrio político e jurídico ao ampliar as circunstâncias legítimas de entrada em guerra ( jus ad bellum). Essa época foi marcada pela disseminação de ideias como o dever ou o direito de ingerência, caros ao cientista político italiano Mario Bettati e ao f undador da entidade Médicos Sem Fronteiras (MSF), Bernard Kouchner.6 O poder de Estado e seus líderes deveriam submeter-se aos valores da ordem internacional. Produto desse universo ideológico, “a Guerra do Kosovo é lugar de uma prática de ingerência, sem dúvida nenhuma”, destaca o ex-presidente do MSF Rony Brauman, que aprovou a intervenção na época. “Foi a manifestação de um direito de ingerência armada? Podemos afirmar isso, e é isso que fazem os defensores do ‘direito’ de ingerência que o veem reaparecer triunfalmente na ONU”.7 Em 2005, uma resolução da Assembleia Geral das Nações Unidas reconheceu um novo princípio não previsto na Carta de 1946: a “responsabilidade de proteger”. Isso significa que um governo, mesmo sendo formalmente soberano, tem obrigações para com seus cidadãos, obrigações que a “comunidade internacional” pode definir e das quais pode lembrá-lo manu militari . Não é por acaso que esse princípio foi criado pela comissão de “personalidades de alto nível” que redigiu suas conclusões no momento da Guerra do Kosovo.8 Essa intervenção militar “certamente não era estranha a suas reflexões e propostas finais”, observa Brauman. A intervenção na Líbia em 2011, única ação militar oficialmente decidida pelo Conselho de Segurança com base na “responsabilidade de proteger”, é, portanto, filha daquela feita do Kosovo. A operação da Otan no Kosovo foi possível graças à ausência transitória de contrapoderes no cenário internacional. No universo da ONU, a década de 1990 é conhecida como “a década
DO KOSOVO À LÍBIA
A reunião de Rambouillet falhou em um, e somente um, ponto: o presidente Slobodan Milosevic havia aceitado o envio para a Sérvia de observadores internacionais da Organização para a Segurança e Cooperação na Europa (OSCE) ou da Comunidade Europeia, mas recusou-se a admitir os enviados da Otan, de cuja imparcialidade ele tinha boas razões para duvidar. Com esse pretexto e sem mandato do Conselho de Segurança da ONU, mas com a participação da França e do Reino Unido, os Estados Unidos lançaram uma vasta operação de bombardeio aéreo, em março de 1999, que culminou na rendição iugoslava três meses depois. Esse “uso da força” em condições não previstas pela Carta das Nações Unidas foi replicado na agressão dos Estados Unidos contra o Iraque em 2003, dessa vez sem o apoio da França.4 A intervenção da Otan no Kosovo parecia ainda menos justificável por resultar em uma contralimpeza étnica contra os sérvios do Kosovo e, de maneira geral, porque a explosão da Iugoslávia em 1991 levou, com o apoio da “comunidade internacional”, principalmente da União Europeia, à constituição de microestados sobre bases nacionalistas ou mafiosas, como o atual Kosovo. Enquanto os dirigentes sérvios foram, com razão, julgados na década de 2010 pelo Tribunal Penal Internacional para a ex-Iugoslávia por violação dos direitos fundamentais, os crimes de guerra da Otan ficaram impunes. O bombardeio intencional de alvos civis, inclusive o da Rádio Televisão da Sérvia, não foi punido. Essa conduta de “dois pesos e duas medidas” recai mais fortemente sobre as relações internacionais pelo fato de que a intervenção tinha o objetivo de validar, com base em informações falsas (como o chamado “Plano Ferradura” de Milosevic, inventado pela Alemanha), o questionamento de um princípio fundador da Carta das Nações Unidas, a inviolabilidade das fronteiras e o desmantelamento de um Estado-membro da ONU (a República Federativa da Iugoslávia). A atua l diplomacia russa fica, assim, muito à vontade para destacar, sempre que pode, a duplicidade dos ocidentais, que negam a Moscou o direito de fazer na Abcázia, na Ossétia e na Cri meia a mesma coisa que permitiram que outrora fosse feita no Kosovo. Naturalmente, os ocidentais refutam esse paralelo. Em 1945, as grandes potências estavam de acordo sobre as regras do jogo, especialmente quanto ao principal fator de problemas na cena internacional: o uso da guerra e, de maneira mais
das sanções”: dominado pelo “P3” (os três membros permanentes ocidentais do Conselho de Segurança: Estados Unidos, Reino Unido e França), o Conselho de Segurança adotou, com resultados às vezes questionáveis, uma série de medidas coercivas contra os Estados que “ameaçam a paz ou a segura nça internacional”. Por exemplo, a proibição de todo o comércio internacional imposta ao Iraque durante a Primeira Guerra do Golfo, em 1990, teve consequências não justificadas para a população civil (alimentação, saúde). Aprendendo com a ex periência e com as críticas, o Conselho de Segurança passou a especificar o alcance das sanções e sua duração, e a prever isenções por motivos humanitários.9 Mas a tendência é alargar as missões do órgão, da assistência técnica à adoção de sanções pessoais, fora dos quadros legais previstos. “Essas interpretações extensivas, até artificiais, das resoluções do Conselho”, observam os juristas Anaïs Schill e Mouloud Boumghar a respeito do Kosovo e do Iraque, “refletem [...] situações de contorno do sistema de segurança coletiva que enfraquecem a autoridade e a credibilidade desse órgão e, em última análise, ao multiplicarem as exceções à proibição do uso da força, levam ao questionamento de todo o edifício criado pela Carta [das Nações Unidas]”.10 UM RETORNO FRACASSADO
Essas inovações institucionais e políticas destilam a ideia de que a soberania é um princípio ultrapassado tanto do ponto de vista geopolítico quanto econômico. A década de 1990 viu, assim, o apogeu de uma ideologia globalista baseada no triunfo da democracia liberal de mercado, que deveria reger todo o planeta sob a direção norte-americana. A União Europeia seria um dos postos avançados de tal regime, encarregando-se de estender seus benefícios para toda a Europa central e oriental, pela mecânica da ampliação do bloco, bem como à África, por meio dos Acordos de Parceria Econômica.11 A Organização Mundial do Comércio foi criada em 1995 com o objetivo de estender o Acordo Geral de Tarifas e Comércio de Mercadorias aos serviços e à propriedade intelectual. Os países industrializados assentaram a autoridade de seu diretório neoliberal cooptando países do Sul, reduzidos ao papel dos espectadores (G5, G6, G7, G20). De aparência estável, essa nova ordem carrega as grandes tempestades atuais. Celebrada pela mídia e pelos pensadores dominantes, o questionamento do poder estatal westfaliano12 poupa as grandes potências, como os Estados Unidos e a França na África, mas também países como Israel, que violam aberta mente a lei sem ser inco-
modados. A proclamação de uma “comunidade internacional” pouco esconde o fato de que a virtude é imposta a alguns, enquanto o cinismo da realpolitik continua sendo prerrogativa de outros. Aliás, pouca atenção se dá à natureza e à legitimidade daqueles que definem os valores em questão e seus contornos precisos: a maioria, ocidentais. Impulsionada pela necessária luta contra a impunidade, a proliferação de tribunais penais internacionais também coincide com as fronteiras difusas do intervencionismo de geometria var iável da “comunidade internacional”: Iugoslávia, Serra Leoa, Ruanda e Ca mboja. Mas é especialmente a adoção do estatuto do Tribunal Penal Internacional (TPI), em Roma, em 1998, que deve consagrar o triunfo dos valores comuns de justiça e reparação, com o objetivo de curar as feridas de populações martirizadas. Daí a possibilidade, confiada a tais cortes, de julgar inclusive dirigentes em exercício, derrotando assim o princípio da imunidade diplomática. Mas, quando se faz isso, postula-se a visão de uma justiça apartada tanto das realidades locais como das relações de força internacionais. É desse momento ideológico “clintoniano” que a sociedade internacional está, dia nte de nossos olhos, dolorosamente saindo. Em primeiro lugar, os países ditos emergentes reivindicam seu espaço no grande banquete da ordem mundial: por que os donos da caneta das resoluções da ONU deveriam ser sempre os mesmos? É fato que 70% das resoluções do Conselho são redigidas pelo “P3”. Bom menino, o Conselho está abrindo seus cor redores para a “sociedade civil” e seus grupos de trabalho para mais Estados, a fim de ampliar o consenso presidindo a adoção de seus textos sem que as relações de forças sejam profundamente modificadas. Além disso, a Rússia está fazendo um ruidoso retorno ao cenário internacional. A intervenção russa na Ossétia e na Abcázia em 2008 revela sua determinação em afirmar-se pela oposição a um adversário simbolicamente fácil de criticar: a Geórgia, que quer de todo modo juntar-se a uma hesitante Otan. Em terceiro lugar – e este é, sem dúvida, o ponto de inflexão rumo à saída do universo ideológico dos anos 1990 e 2000 –, a intervenção franco-britânica na Líbia em 2011 minou de maneira profunda o consenso do “P5” (os cinco membros permanentes do Conselho de Segurança). A abstenção construtiva da Rússia e da China permitiu adotar uma resolução do Conselho de Segurança que autoriza os Estados-membros a tomar “todas as medidas necessárias” para “proteger as populações e zonas civis”, incluindo estabelecer uma “zona de exclusão aérea”, “excluindo-se a ins-
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talação de uma força de ocupação estrangeira”. Seja qual for o interesse do princípio da “responsabilidade de proteger”, sua aplicação constitui uma importante revisão da Carta das Nações Unidas, com todas as incertezas que isso implica. Esse texto, a fortiori em seus elementos estruturais, não pode ser revisto sem respeitar os procedimentos previstos, sob pena de suscitar uma crise de confiança entre os Estados, inclusive os mais poderosos. Na prática, a Otan ultrapassou o mandato conferido pelo Conselho de Segurança. A intervenção também resultou na queda de Muamar Kadafi, violando o direito internacional que proíbe a derrubada de um governo como propósito de guerra. O curso dos acontecimentos chocou a Rússia e a Chi na, que se consideraram ludibriadas e não cairiam novamente nessa situação. As discussões no Conselho de Segurança estão marcadas por esse evento, com os dois países se exibindo – com razão – no papel de lembrar os ocidentais das regr as da Carta das Nações Unidas, sobretudo o princípio da não i ngerência nos assuntos internos do Estados, embora eles mesmos façam pouco caso dos direitos fundamentais. Aderindo com estardalhaço ao acordo das Nações Unidas sobre o clima, a China coloca-se em um lugar proeminente no cenário internacional, desviando oportunamente a atenção, por exemplo, de sua recusa em aplicar a decisão do Tribunal Permanente de Arbitragem sobre a disputa com as Filipinas a respeito do Mar da China. O fim do mundo unipolar, tão cômodo para os ocidentais, revela-se na Síria, onde França e Estados Unidos, que bancavam os valentões contra o regime criminoso de Bashar al-Assad em 2012, viram a paz se desenhar sem eles. Enquanto a Carta das Nações Unidas tenta limita r e até proibir a guerra, as intervenções militares que deformam ou violam o direito internacional (“guerras humanitárias”) são muitas vezes criticadas, seja por seu caráter arbitrário, seja porque parecem um elefante numa loja de cristais, jogando mais lenha na fogueira de uma ordem instável. Embora o Conselho de Segurança ainda ocupe um lugar central na gestão da segurança coletiva, como confirma sua agenda bastante cheia, estabeleceu-se uma perigosa imprecisão quanto às regras do jogo internacional. Para além do teatro hipócrita e desestabilizador dos atores envolvidos, especialmente o “P5”, a sociedade internacional confronta-se com novas ameaças e problemáticas, que a Carta de 1945 não havia previsto e que chamam os senhores do jogo à reflexão e à responsabilidade. Muitos conflitos não cabem nos casos previstos. Eles não são internacionais nem internos:
são “internos i nternacionalizados”, ou seja, disputas locais que degeneram, envolvendo uma multidão de atores – às vezes Estados, mas também grupos transfronteiriços, mafiosos e terroristas. A proteção dos civis, que muitas vezes pagam um preço alto em relação às unidades de combate, tornou-se uma grande preocupação, que justifica, por exemplo, a extensão do ma ndato de algumas operações de manutenção da paz a medidas “ofensivas” em um perímetro limitado. Mas os guardiões da ordem internacional muitas vezes acabam desconcertados por essas crises de um novo tipo. “Ficamos sem saber se devemos garantir ajuda humanitária, conseguir um cessar-fogo ou encontrar u ma solução política”, constata o professor Alvaro de Soto. “Essa abordagem não pode ter outro resultado além de aumentar as expectativas e, portanto, diante do fracasso esperado, desvalorizar a moeda da negociação.”13 VISÃO ESTRATÉGICA NECESSÁRIA
Se a ONU está na berlinda, a União Europeia – cuja arquitetura moderna foi projetada na década de 1990 (Tratado de Maastricht em 1992) – encontra-se duravelmente fragilizada: um exemplo disso é a fratura entre sua parte oriental e os países fundadores sobre a questão da democracia; outro é a saída do Reino Unido, talvez antecipando o apagamento de uma União Europeia inadequada à nova geopolítica. Mais profundamente, é o status i nternacional do Estado que se coloca: a União Europeia continua professando a superação da soberania nacional, quando potências estabelecidas ou emergentes carregam a bandeira oposta (Estados Unidos, Rússia, Irã, Turquia). Quando recebeu Recep Tayyip Erdogan em Paris, no dia 5 de janeiro de 2018, o presidente francês, Emmanuel Macron, lembrou que a integridade e a estabilidade dos Estados, sejam eles amigos dos direitos humanos ou não, eram elementos fundamentais da ordem internacional. Isso anuncia o fechamento dos parênteses abertos na década de 1990? É a responsabilidade de proteger sendo enterrada pelo país que tanto agiu para que ela fosse posta em prática na Líbia, em 2011? Um sinal de retorno ao espírito da Carta das Nações Unidas? De qualquer modo, falta à sociedade internacional a visão estratégica de seu próprio futuro. Como resume o ex-ministro francês dos Assuntos Estrangeiros Hubert Védrine: “O mundo está em uma situação comparável à do século XIX, sem o Congresso de Viena” – ou seja, sem o momento em que os atores se reúnem para estabelecer seus papéis. Após o fim da União Soviética, o secretário-geral da ONU Boutros Boutros-Ghali (1992-1996) pediu em
vão uma grande conferência internacional para reconstruir um consenso sobre bases claramente discutidas e consentidas por todos os atores, condição de sua confiança mútua. Hoje essa necessidade se faz sentir cruelmente, à medida que os focos de tensão se multiplicam. A questão do direito de guerra, do uso da força e da proteção dos direitos humanos, cada vez mais desfigurada, inclusive pelos europeus em seu tratamento dos refugiados, seria um dos pontos essenciais. Em seu primeiro discurso na Assembleia Geral da ONU, em setembro de 2017, Macron elogiou o multilateralismo, diante de seu belicista colega norte-americano. Ele está pronto para arcar com as consequências disso, inclusive na África? “Se a reforma [da ONU] não estiver ligada a uma visão estratégica do futuro do multilateralismo, há um grande ri sco de que se perca uma transformação profunda e claramente desejada”, adverte Michèle Griffin, diretora de planejamento de políticas junto ao secretário-geral da ONU. “A próxima geração é que terá de consertar o estrago.” Hoje, conclui ela, “a confiança nas instituições multilaterais está em seu ponto mais baixo”.14 *Anne-Cécile Robert
é jornalista do Le
Monde Diplomatique.
1 André Bellon, “Dieu, que la guerre est jolie!” [Deus, como é bela a guerra!], Le Monde, 27-28 mar. 1999. 2 Ler Serge Halimi, Dominique Vidal, Henri Maler e Mathias Reymond, L’opinion, ça se travaille! Les
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O olhar da cidadania
Na luta pela construção de uma sociedade mais justa, solidária e
médias, les “guerres justes” et les “justes causes” [A opinião, isso se constrói! Mídia, “guerras
justas” e “justas causas”], Agone, Marselha, 2014 (1. ed.: 2000). 3 Ler Xavier Bougarel, “Dans les Balkans, dix années d’erreurs et d’arrière-pensées” [Nos Bálcãs, dez anos de erros e segundas intenções], Le Monde Diplomatique , set. 1999. 4 Cf. Jean-Marc de La Sablière, Dans les coulisses
sustentável.
du monde. Du Rwanda à la guerre d’Irak, un grand négociateur révèle le dessous des cartes [Nos
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bastidores do mundo. De Ruanda à Guerra do Iraque, um grande negociador revela as cartas ocultas], Robert Laffont, Paris, 2013. Ler “As vicissitudes do ‘direito de ingerência’”, Dossiê, jan-fev. 2012. Cf. Mario Bettati e Bernard Kouchner, Le Devoir d’ingérence. Peut-on les laisser mourir? [O dever de ingerência. Podemos deixá-los morrer?], Denoël, Paris , 1987. Cf. Rony Brauman, Guerres justes? Mensonges et intox [Guerras justas? Mentiras e manipulação], Textuel, Paris, 2018. Comissão Internacional sobre Intervenção e Soberania Estatal (Iciss), 2000. Cf. Alexandra Novosseloff (coord.), Le Conseil de
Quartas, às 17h, Rádio USP (São Paulo: 93,7 FM Ribeirão Preto: 107,9 FM)
Quartas, à meia-noite TV Aberta SP, canais 9 da NET, 8 da Vivo Fibra e 186 da Vivo.
sécurité des Nations unies. Entre impuissance et toute-puissance [Conselho de Segurança das Na-
ções Unidas: entre impotência e onipotência], CNRS Éditions, Paris, 2016. 10 Ibidem. 11 Ler Jacques Berthelot, “Comércio ameaça agricultura africana”, Le Monde Diplomatique Brasil , out. 2017. 12 O Tratado de Vestfália (1648) reúne, pela primeira vez, os grandes Estados da Europa que se reconhecem mutuamente soberanos e concordam com princípios para reger suas relações. 13 Alvaro de Soto, “Les nouveaux enjeux de la diplomatie” [Os novos desafios da diplomacia], France Forum, n.62, Paris, jul . 2016. 1 Michèle Griffin, “Un paysage mondial en mutation” [Uma paisagem mundial em mudança], France Forum, n.62, Paris, jul . 2016.
observatorio3setor observatorio3setor www. observatorio3setor.org.br
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DE PROTAGONISTA A “FÓSSIL DO DIA”
O Acordo de Paris e o Brasil Perante o sobe e desce no entusiasmo sobre o tema mudanças climáticas, é preciso entender o que é o Acordo de Paris, como ele surge, quais são os grandes desafios e obstáculos à sua aplicação, e qual é o papel e a responsabilidade do Brasil na agenda global de clima POR CARLOS RITTL*
m 12 de dezembro de 2015, cidadãos de todo o planeta, reunidos na França, celebraram a conclusão de um longo processo de negociação multilateral para um grande acordo global sobre mudanças climáticas. Emocionado, o ministro francês de Relações Exteriores, Laurent Fabius, batia o martelo que selava o nascimento do Acordo de Paris. Muitos governos ratificaram o acordo já no início de 2016, estimulando outros a fazer o mesmo. No dia 4 de novembro desse ano, menos de um ano após sua aprovação, o novo tratado do clima entrou em vigor. Nunca antes um acordo sobre qualquer tema, negociado no âmbito das Nações Unidas, tinha in iciado sua vigência tão rapidamente. Parecia que finalmente os políticos mundiais haviam tomado juízo e a agenda de clima virara prioridade. Mesmo com metas iniciais t ímidas ou insuficientes para limitar o aquecimento global dentro dos limites definidos no Acordo de Paris, o mundo ganhava uma chance de colocar, ao longo do tempo, as emissões globais de gases de efeito estufa no caminho da segurança climática. No entanto, a onda de otimismo não duraria muito tempo. Apenas cinco dias depois, veio o baque: o negacionista climático Donald Trump era eleito presidente dos Estados Unidos, com a promessa de reverter políticas regulatórias sobre carvão, petróleo e gás natural estabelecidas por seu antecessor, Barack Obama, de abandonar o Acordo de Paris e de formar um gabinete repleto de representantes da indústria fóssil. O mundo voltava a temer pelo fracasso do multilateralismo em enfrentar a crise climática com a urgência e a responsabilidade necessárias. Em 2017, Trump cumpriu suas promessas. Apoiado por um Congresso dominado por republicanos, jogou por terra as regulações da era Obama que visavam controlar a eficiência e as emissões de termelétricas a carvão, concedeu incentivos à indústria fóssil e anunciou a saída dos Estados Unidos do Acordo de Paris. As más notícias para o clima da y l l Terra em 2017, porém, não vieram ape e K o nas da Casa Branca. A Alemanha, anfi n u r triã da COP23, realizada ano passado B © sob a presidência das Ilhas Fiji, deu to-
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Floresta queimada em Apuí, no sul do Amazonas: Brasil é um país totalmente diferente daquele que arrancou aplausos do mundo nove anos atrás em Copenhague
das as indicações de que não atingirá sua meta de redução de 40% de suas emissões em 2020 em relação aos níveis de 1990. E o Brasil, muitas vezes visto como líder entre os países em desenvolvimento nas negociações de clima e em redução de emissões, pela queda nas taxa s de desmatamento, viu o presidente Michel Temer levar adiante uma agenda voltada ao atendimento de demandas da retrógrada bancada ruralista e do setor de petróleo e gás. Perante esse sobe e desce no entusiasmo sobre o tema mudanças climáticas, é preciso entender o que é o Acordo de Paris, como ele surge, quais são os grandes desafios e obstáculos à sua aplicação, e qual é o papel e a responsabilidade do Brasil na agenda global de clima. O Acordo de Paris é um tratado estabelecido entre os 196 países signatários da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima, cuja sigla em inglês é UNFCCC. A convenção de clima da ONU é uma das chamadas Convenções do Rio. Ela nasceu na Eco-92, juntamente com duas “irmãs”, a Convenção sobre Diversidade Biológica e a Convenção sobre Combate à Desertificação. A UNFCCC tem por gra nde objetivo evitar que a interferência humana
no sistema climático global ultrapasse limites considerados perigosos. As negociações para sua introdução iniciaram-se em 1995, com a pri meira COP, a Conferência das Partes (países) signatárias da convenção, sendo realizada em Berlim. Dois anos depois, em 1997, em Kyoto, no Japão, a COP3 aprovou o primeiro grande instrumento para regulação de emissões de gases de efeito estufa, o Protocolo de Kyoto. Na época em que o Protocolo de Kyoto foi negociado, a imensa maioria das emissões de gases de efeito estufa vinha dos países industriali zados, que tinham também a responsabilidade histórica pelo aquecimento observado até então. Países em desenvolvimento, maiores vítimas da mudança do clima, não tinham, até ali, grande responsabilidade sobre o problema. Portanto, não deveriam assumir o ônus de contribuir para sua solução. O Protocolo de Kyoto então definiu limites e metas de redução para as emissões de gases de efeito estufa de todos os países desenvolvidos e dos países das então chamadas economias em transição para a economia de mercado (países da ex-União Soviética e do Leste Europeu). O Protocolo de Kyoto só entraria em vigor quando pelo menos 55% dos países signatários da convenção de cli-
ma, desde que responsáveis por 55% das emissões globais de gases de efeito estufa, ratificassem o instrumento. Os Estados Unidos, que negociaram duramente o protocolo, nunca viriam a ratificá-lo. Mas em 2004, após a União Europeia retirar objeções à entrada da Rússia na Organização Mundial do Comércio, seu então presidente, Vladimir Putin, decidiu levar adia nte o processo de ratificação do protocolo. A adesão russa, em 2005, permitiu que Kyoto entrasse em vigor. Esses oito anos de atraso foram péssimos para o clima. As emissões globais subiram 23%, enquanto o Protocolo de Kyoto definia, em média, uma redução de emissões de 5,2% em relação a índices de 1990. Dois anos depois, em Bali, Indonésia, na COP13, o mundo se deu dois anos para negociar um acordo em “dois trilhos” para rodar a partir de 2013. Um deles era formado por países industrializados e seguiria o mesmo esquema de Kyoto. O outro era formado pelos Estados Unidos (ausente de Kyoto) e por países emergentes, cujas emissões já atingiam patamares significativos e viriam a superar as dos países ricos. A proposta era que os países nesse segundo trilho adotassem metas de redução de emissões voluntárias. Num cambalacho diplomático, ficou acertado que as metas voluntárias dos Estados Unidos não poderiam ser inferiores às dos países do primeiro trilho. A intenção foi boa, mas a proposta naufragou. Em 2009, na Conferência de Copenhague (COP15), o aguardado acordo internacional que enfim salvaria o planeta foi soterrado na neve da capital dinamarquesa, numa sabotagem conjunta de Estados Unidos e China, os dois maiores poluidores do mundo. Para o Brasil, porém, Copenhague teve efeito positivo e duradouro, graças ao oportunismo e ao talento político do então presidente Lula. No começo da conferência, o Brasil apresentou uma meta voluntária de reduzir as emissões de gases de efeito estufa de 36,1% a 38,9% até 2020 em relação ao cenário tendencial. Embora com um cenário tendencial bastante inflado – no setor de energia, por exemplo, o governo considerou que toda energia nova viria de fontes fósseis a partir de 2009, uma ficção –, era a pri-
meira vez que um país emergente colocava um compromisso significativo de limitação de suas emissões na mesa, pressionando outras grandes economias. A meta vinha sendo proposta pelo Ministério do Meio Ambiente, mas enfrentava forte oposição da ministra da Casa Civil, Dilma Rousseff. Lula atropelou sua escolhida e bancou a proposta, sabendo que Dilma ficaria fragilizada na eleição de 2010 diante de Marina Silva e José Serra (então governador de São Paulo, que tinha acabado de aprovar uma política de clima com metas de redução de emissões), caso o Brasil fosse para Copenhague de mãos abanando. A COP15 foi import ante para o Brasil também por outra razão: foi a última vez que o pa ís brilhou na cena internacional. O segundo discurso de Lula em Copenhague, criticando a falta de ação dos ricos e se comprometendo a botar dinheiro para o financiamento climático global, foi aplaudido de pé por líderes mundiais, delegados e até jornalistas. De volta ao Brasil, ainda para fazer frente a Marina, o presidente mandou inscrever as metas voluntárias de Copenhague na lei de mudanças climáticas em votação no Congresso. Os compromissos brasileiros no clima passaram, assim, a ser obrigatórios domesticamente – algo também i nédito entre países em desenvolvimento. Em 2011, na Conferência de Durban, o Brasil continuou demonstrando liderança ao ajudar a quebrar a resistência do grupo de países em desenvolvimento em torno de uma proposta de um novo acordo do clima “aplicável a todos”. Essa expressão formaria a essência daquilo que viria a ser o Acordo de Paris: um regime climático internacional no qual todos os países teriam de apresentar metas, embora as dos ricos fossem mais estritas. Pode-se dizer que o Acordo de Paris leva a convenção de clima da ONU a uma fase de plena aplicação. Primeiro, foi estabelecido um objetivo de longo prazo: limitar o aquecimento global a bem abaixo de 2 °C neste século e fazer esforços para limitá-lo a 1,5 °C. Depois, foi criado um jeito diferente de lidar com as metas nacionais. Em vez de obrigatórias, como em Kyoto, elas se dariam no esquema chamado pledge and review : cada país proporia um compromisso, conhecido como NDC (Contribuição Nacionalmente Determinada), de acordo com suas circunstâncias nacionais. Ao final de um dado período, estas seriam verificadas pela comunidade internacional. Por fim, Paris inovou decisivamente na maneira de fazer cumprir seu objetivo. Em vez de determinar períodos de compromisso e reabrir o acordo para negociação constantemente, ficou determinado que a cada
cinco anos serão feitas revisões globais para balizar o aumento de ambição. Assim, Paris não tem um “prazo de validade”: enquanto houver o problema (as emissões de carbono), o acordo estará de pé. O Brasil chegou a Paris numa situação paradoxal. Por um lado, a governança climática nacional estabelecida no governo Lula foi na prática desmantelada por Dilma. A petista se contentou em usar o poder de polícia para conter o desmatamento na Amazônia, enquanto planejava extensas obras de infraestrutura (causadoras de desmatamento) para a região e entregava o Cerrado à expansão do agronegócio. Entre 2011 e 2015, o Brasil perdeu protagonismo nas relações internacionais, e na cena climática não foi diferente. Por outro lado, o país apresentou a NDC mais robusta entre os países emergentes, com metas de corte absoluto de emissões para 2025 – 37% em relação aos níveis de 2005, o que faria o país chegar àquele ano emitindo 1,3 bilhão de toneladas de gás carbônico equivalente (CO2e). A pressão da sociedade civil foi decisiva para isso: em junho de 2015, o Observatório do Clima apresentou uma proposta de meta e um cálculo consistente demonstrando que o país poderia fazer mais e limitar suas emissões a 1 bilhão de toneladas brutas de CO2 equivalente em 2030. A proposta do Observatório do Clima pôs um sarrafo no nível de ambição e evitou que o país adotasse uma meta frágil como a de Copenhague, de reduções relativas. Ironicamente para um país que no passado tentou manter as florestas fora dos mecanismos de Kyoto em nome do “direito soberano a desmatar”, a NDC brasileira é fortemente baseada em políticas no setor florestal. Entre elas está a proposta – cuja falta de ambição é chocante – de zerar apenas o desmatamento ilegal e apenas na Amazônia em 2030. Há também um compromisso de restaurar ou reflorestar 12 milhões de hectares e, no setor agropecuário, de recuperar 15 milhões de hectares de pastagens degradadas. Uma coisa, porém, é ter uma meta. Outra, bem diferente, é colocá-la em prática. O sucesso do Acordo de Paris depende essencialmente do compromisso de cada um dos paí ses com suas políticas domésticas e com o aumento no nível de ambição climática. As metas atuais, no melhor dos cenários, seriam suficientes apenas para limitar o aquecimento global a 3 °C até o fim do século. Retrocessos em grandes emissores, sejam os Estados Unidos, a Alemanha ou o Brasil, tornam cada vez mais difícil colocar o mundo em um caminho de segurança climática. Desde a adoção da NDC, o Brasil viu suas emissões de gases de efeito estufa aumentar, na contramão de Paris: 3,5%
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em 2015 e 9% em 2016. Hoje o país é o sétimo maior emissor de gases-estufa do mundo, com 2,2 bilhões de toneladas jogadas na atmosfera no ano retrasado, segundo o Sistema de Estimativas de Emissões de Gases de Efeito Estufa do Observatório do Clima (Seeg). Pior ainda, isso aconteceu enquanto a economia afundava em uma das piores recessões da história nacional, dando ao Brasil a honraria duvidosa de ser o único grande país do mundo com emissões em expansão e PIB em retração. A disparada se deveu ao descontrole do desmatamento, na esteira da crise fiscal que fez secar a verba do Ibama e da crise política que sinalizou aos criminosos ambientais que qualquer ato ilegal seria a nistiado. A chegada de Michel Temer ao poder deu razão a quem pensava assim.
quer que estivesse a agenda de Michel Temer, ela não passava pela proteção das florestas e do clima. Ao mesmo tempo, o governo desenhava uma visão para o f uturo energético do país com ênfase no petróleo, como sua antecessora. Durante o governo Temer foi aprovada a quebra da exclusividade obrigatória da Petrobras no pré-sal, o que atraiu forte interesse de empresas estrangeiras e tende a acelerar a exploração. No final do ano, o pacote de boas-vindas ao setor foi finalizado com a sanção da Lei do Repetro, conhecida como “MP do trilhão”, que concede subsídios multibilionários ao setor de petróleo até 2040 – quando as petroleiras estimam que a demanda mundial por essa commodity atingirá seu pico. A MP fez a rede internacional de ONGs Climate Action Network conceder o antiprêmio “Fóssil do Dia” ao Brasil no ano passado, na COP23. A agenda de retrocessos continua em 2018, agora com ameaças ao licenciamento ambiental, a ser votado em fevereiro. Cereja do bolo, avança na Câmara um projeto do deputado governista Heráclito Fortes (o “Boca Mole” da planilha da Odebrecht) para cobrar royalties do vento, o que seria um desastre para a competitividade da energia eólica. Não fosse a recessão, que derrubou as projeções futuras de emissão do país, a NDC estaria em risco. Enquanto isso, China e Índia, pa rceiros de Brics (com a Rússia e a África do Sul) e de Basic (com a Á frica do Sul), tomam uma dianteira que o Brasil poderia partilha r na economia descarbonizada deste século. A China possivelmente está perto de cumprir antecipadamente sua meta de atingir o pico de suas emissões em 2030. A Índia vem usando a energia solar para ampliar o acesso de sua imensa população pobre à luz elétrica. Juntos, os dois países devem instalar quase 140 gigawatts (GW) – quase um Brasil inteiro (160 GW de capacidade instalada) – em energia solar entre 2016 e 2020. O último plano oficial do Brasil fala em 3,7 GW em 2020 e 9,7 GW em 2026. O Brasil, candidato a hospedar a COP25 em 2019 e em via de eleger seu próximo presidente em 2018, é, em resumo, um país totalmente diferente daquele que arrancou aplausos do mundo nove anos atrás em Copenhague. Se algum candidato espera recuperar algo do prestígio internacional do país e ao mesmo tempo inseri-lo numa agenda de desenvolvimento do século XXI, a área de mudança climática seria um excelente lugar para começar.
A COP15 foi importante para o Brasil também por outra razão: foi a última vez que o país brilhou na cena internacional Um dos primeiros atos de Temer, após ser oficializado na Presidência, em setembro, foi ratificar o Acordo de Paris. Seu ministro do Meio Ambiente, Sarney Filho, conseguiu recompor o orçamento do Ibama e botar a fiscalização no mato outra vez, o que ajudou a reduzir a taxa de desmatamento em 2017 em relação à disparada de quase 30% do ano anterior. Mas as boas notícias para o meio ambiente acabaram aí. Buscando no Congresso a legitimidade que não conquistou pelo voto, Temer costurou sua governabilidade com a numerosa bancada ruralista e outras forças do atraso social e econômico. Teve início um movimento, ainda longe de acabar, de desmonte de salvaguardas socioambientais: redução de unidades de conservação, anistia à grilagem de terras em grandes propriedades (de até 2.500 hectares) e uma investida sem precedentes sobre as terras indígenas, com o desmonte da Funai e a incorporação pela administração federal da tese rural ista do “marco temporal” – segundo a qual índios expulsos de suas terras antes de 1988 perdem para sempre o direito a elas. Dado que boa parte do carbono da Amazônia se encontra armazenado de forma segura em terras indígenas e unidades de conservação, as concessões aos ruralistas têm impacto direto na proteção do clima. O corte de 43% no já pífio orçamento do Ministério do Meio Ambiente em 2017 foi a prova fi nal de que, onde
*Carlos Rittl é
doutor em Ecologia e Recursos Naturais pelo Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa) e secretário executivo do Observatório do Clima, uma rede de 43 organizações da sociedade civil.
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À PROCURA DE MÃO DE OBRA BARATA
O sacro império econômico alemão A fratura leste/oeste da União Europeia não se resume à oposição entre governos autoritários e democracias liberais. Ela reflete uma dominação econômica das grandes potências sobre os países do antigo bloco oriental, utilizados como reserva de mão de obra barata. Desde os anos 1990, as indústrias alemãs foram para a Polônia, a República Tcheca, a Eslováquia e a Hungria POR PIERRE RIMBERT*
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onsiderada em 1999 o “homem doente da zona do euro” ( The Economist , 3 jun. 1999), a Alemanha estaria miraculosamente curada graças às leis de precarização dos assalariados (Leis Hartz), votadas entre 2003 e 2005. Essa s reformas teriam, sozinhas, restabelecido a competitividade das empresas, reanimando as vendas da Mercedes ao estrangeiro, e convencido Emmanuel Macron a aplicar a receita na França. Erro fatal. “Para compreender o sucesso da Alemanha como exportadora mundial”, explica o historiador da economia Stephen Gross, “é preciso olhar para além de suas fronteiras, pois o modelo repousa, em grau decisivo, na urdidura de uma rede de comércio com os países da Europa central e oriental”.1 Mais precisamente, nas trocas econômicas desiguais estabelecidas com a Polônia, a República Tcheca, a Hungria e a Eslováquia, um quarteto
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batizado de “Grupo de Visegrado”. Com efeito, após 25 anos, a rica A lemanha pratica com seus vizinhos o que os Estados Unidos fizeram com suas fábricas insta ladas no México: a deslocalização (a transferência de plantas produtivas para o exterior) industrial para a vizinhança. Solidamente estabelecidas entre o II Reich de Otto von Bismarck e o Império dos Habsburgo, no final do século XIX, as trocas econômicas privilegiadas entre a Alemanha e a Europa central não são de hoje. Limitadas pela Guerra Fria, elas reapareceram nos anos 1970 sob a forma de parcerias industriais, tecnológicas e bancárias, favorecendo a Ostpolitik (1969-1974) inaugurada pelo chanceler social-democrata Willy Bra ndt. A queda do Muro de Berlim chamou para o banquete das bestas. Desde o início dos anos 1990, as multinacionais a lemãs se servem das empresas estatais privatiza-
das num ambiente de apocalipse industrial. Se a retomada da fábrica de automóveis tchecoslovaca Škoda pela Volkswagen, em 1991, agitou os espíritos, o vizinho capitalista utilizou de início as instalações existentes como plataformas de terceirização. Ela se aproveita, para isso, de um velho mecanismo de deslocalização tão discreto quanto pouco conhecido: o tráfico de aperfeiçoamento passivo (TAP). Esse procedimento, codificado no direito europeu em 1986, autoriza a exportação temporária de bens intermediários (ou de peças avulsas) para um país não membro onde serão transformados e moldados – “aperfeiçoados” – antes de voltarem para o país de origem, beneficiando-se de uma isenção parcial ou total de taxas aduaneiras. 2 Após a ruína do Bloco do Leste, a ampliação da s cotas de importação oriunda dos países da Europa central abriu ao patronato alemão
perspectivas euforizantes. Confiar a cromagem de torneiras ou o poli mento de banheiras a operários tchecos superqualificados, mas que não reclamam? Entregar pano aos dedos ágeis de polonesas pagas em zlotys e receber de volta roupas a seguir vendidas com o nome de uma marca berlinense? Descascar crustáceos num país vizinho? Isso é possível desde 1990, como se as fronteiras da União Europeia já houvessem desaparecido. DA CORTINA DE FERRO ÀS MAQUILADORAS
“O tráfico de aperfeiçoamento passivo é a versão europeia da medida norte-americana que abriu caminho para o desenvolvimento das maquiladoras na região fronteiriça do México com os Estados Unidos”, 3 explica a economista Julie Pellegrin. Mais que qualquer outro país-membro, a Alemanha se vale dessa terceirização de acabamento, sobretudo nos têxteis,
mas também na eletrônica e no setor automobilístico: em 1996, as empresas renanas reimportaram 27 vezes mais (em valor) produtos aperfeiçoados na Polônia, República Tcheca, Hungria e Eslováquia que suas congêneres francesas. Nesse ano, o tráfico de aperfeiçoamento passivo representou 13% das exportações do Grupo de Visegrado para a União Europeia e 16% das importações alemãs oriundas dessa zona. Alguns setores vão mais longe: 86,1% das importações alemãs de têxteis e roupas da Polônia seguem esse regime. Em menos de uma década, constata Julie Pellegrin, “as empresas dos países da Europa central e oriental se integraram a cadeias de produção controladas principalmente pelas firmas alemãs”. Esse apresa mento de nações, ainda ontem ancoradas ao leste pelo Conselho de Assistência Econômica Mútua, dirigido por Moscou (Comecon, 1949-1991), foi tanto mais rápido quanto a exaltação do “consumidor liberado” pelo acesso aos produtos ocidentais compensou, durante algum tempo, o desespero do trabalhador subcontratado para dar acabamento a esses produtos. À medida que os acordos de liv re-comércio iam aplanando as tarifas aduaneiras, na segunda metade dos anos 1990, o tráfico de aperfeiçoamento passivo ia perdendo interesse em proveito de investimentos estrangeiros diretos (IED). As multinacionais já não se contentam em deslocalizar um pequeno segmento de sua produção, mas financiam a construção de fábricas filiais onde o trabalho custa menos. De 1991 a 1999, o fluxo de IED alemães para os países do Leste Europeu se multiplicou por 23.4 No início dos anos 2000, a Alemanha foi, sozinha, responsável por mais de um terço dos IEDs destinados aos países do Grupo de Visegrado e vem estendendo seu empreendimento capitalista à Eslovênia, à Croácia e à Romênia. As fábricas de autopeças (Bosch, Draexlmaier, Continental, Benteler), de plásticos e de eletrônica brotam como cogumelos. É que, de Varsóvia a Budapeste, os salários médios equival iam a um décimo dos vigentes em Berlim em 1990 e a um quarto em 2010. Esses trabalhadores se beneficiaram do sólido sistema de ensino profissional e técnico adotado no Leste. Bem mais qualificados que seus colegas asiáticos, eles estão, além disso, mais perto: são necessárias quatro semanas para um contêiner chegar de Xangai a Roterdã, ma s bastam cinco horas para uma carga volumosa de peças fabricadas nas oficinas de Mladá Boleslav, a nordeste de Praga, alcançar a matriz da Volkswagen em Wolfsburg. Assim, a Aleman ha se tornou, na virada do milênio, o principal parceiro comercial da Polônia, da Re-
pública Tcheca, da Eslováquia e da Hungria. Esses países representam, para Berlim, um quintal de 60 milhões de habitantes transformado em plataforma de produção deslocalizada. Sem dúvida, italianos, franceses e britânicos também se aproveitam desse comércio assimétrico, mas em escala menor. O sucesso dos Audi e dos Mercedes junto às classes superiores chinesas seria talvez menor se seu preço não incorporasse os baixos salários poloneses e húngaros.
“As novas possibilidades de transferir a produção ao estrangeiro modificaram a relação de forças entre assalariados e patrões alemães” Quando, em 2004, a União Europeia acolheu os países da Europa central, graças ao empenho incansável da Alemanha, o processo de anexação da região ao espaço industrial renano já estava bastante avançado e acelerou-se ainda mais depois de 2009, com a indústria automobilística alemã multiplicando suas deslocações para os países do Grupo de Visegrado a fim de compensar a perda de lucros por causa da crise financeira . “É um paradoxo da história”, observa o pesquisador Vladimir Handl, “o fato de justa mente a integração europeia, projetada para domar o gigante econômico alemão do pós-Guerra Fria, ter conferido à Alemanha um papel hegemônico.”5 A sombra que esse poderio projeta sobre o mapa do continente desenha um sacro império industrial cujo centro compra o trabalho mais ou menos qualificado de suas províncias. No noroeste, a Holanda (principal plataforma logística da indústria renana), a Bélgica e a Dinamarca têm esse grande vizinho como principal escoadouro comercial, mas suas indústrias de forte valor agregado e seus Estados desenvolvidos lhes garantem uma relativa autonomia. Ocorre o mesmo com a Áustria, ao sul, também integrada às cadeias produtivas e aos interesses alemães, ainda que tenha seus próprios pontos altos, sobretudo nas áreas de serviços e seguros. Mas, a leste, em posição subalterna, quando não colonial, as indústrias polonesas, tchecas, eslovacas, húngaras, romenas e búlgaras dependem de seu primeiro e principal cliente: Berlim. Sem essa China bem às portas, os industriais e di rigentes alemães teriam imensas dificuldades em impingir as Leis Hartz a seus assalariados. Como é
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mais fácil imaginar, tomando nosso emprego, antes um tcheco próximo do que um vietnamita longínquo, as deslocalizações de vizinhança exercem o poderoso efeito disciplinar descrito por uma equipe de economistas que ninguém pode acusar de esquerdismo: “As novas possibilidades de tra nsferir a produção ao estrangeiro, sem ir muito longe, modificaram a relação de forças entre assalariados e patrões alemães. Sindicatos e/ou comitês de empresas se viram obrigados a aceitar o descumprimento de acordos setoriais, que muitas vezes acarretou a diminuição dos salários dos trabalhadores”. Os representantes dos assalariados “perceberam que deviam fazer concessões”. 6 Resultado: a oposição às leis de flexibilização do emprego foi inconsistente. Os salários, então, baixaram. Diretor do Instituto Alemão para a Pesquisa Econômica, Marcel Fratzscher constatou em 2017 que, “para as pessoas pouco qualificadas, a taxa horária passou de 12 para 9 euros desde 1990” ( Financial Times , 12 jun. 2017).
Essa alienação veio à tona no final de junho de 2017, quando uma greve eclodiu pela primeira vez, desde 1992, numa fábrica gigante da Volkswagen em Bratislava.8 O governo eslovaco apoiou então a reivindicação de aumento de 16% nos salários. “Por que a empresa que fabrica um dos carros mais luxuosos e da maior qualidade, com elevada produtividade do trabalho, deve pagar a seus empregados eslovacos metade ou um terço do que paga aos mesmos empregados na Europa ocidental?”, interrogou-se o primeiro-ministro Robert Fico, um social-democrata que governa com os nacionalistas. 9 Um mês antes, seu colega tcheco Bohuslav Sobotka pôs em guarda os investidores estrangeiros em termos quase iguais.10 Renunciar ao papel de montadores, desenvolver produções soberanas para o grande mercado europeu: tal é a vertente econômica do contraprojeto europeu, autoritário e conservador, concebido pelos dirigentes do Visegrado.11 Sem isso, ainda que os salários locais subam vertiginosamente, essa prosperidade relativa só favorecerá a compra... de automóveis alemães.
UMA HEGEMONIA CONTESTADA
A administração de um quintal econômico se tornou, sob todos os aspectos, um bom negócio para os industriais alemães. Sucede que uma parte significativa dos fundos europeus destinados aos novos países-membros foi parar, como por mágica, em Berlim. “A Alemanha é, de longe, a maior beneficiária dos investimentos realizados nos países do Visegrado, conforme a política de coesão da União Europeia”, explica o economista polonês Konrad Poplawski. “Tais somas propiciaram exportações suplementares para esses países da ordem de 30 bilhões de euros no período de 2004 a 2015. O benefício acabou sendo tanto direto (os contratos assinados) quanto indireto: grande parte dos fundos foi para as infraestruturas, o que facil itou o trânsito de mercadorias entre a Alemanha e a Europa central e oriental. Ponto decisivo para as empresas automobilísticas alemãs, que precisavam de uma boa rede de transportes a fim de construir instalações modernas entre seus vizi nhos orientais.”7 No caso dos países do Visegrado, o desequilíbrio é maior. Por um lado, os investimentos alemães renovaram a base industrial, provocaram uma transferência maciça de tecnologia, aumentaram a produtividade e as remunerações e criaram inúmeros empregos secundários, por vezes qualificados, a ponto de alarmar o patronato, que agora teme uma redução da mão de obra. Entretanto, essa relação confina a região a uma economia subcontratada e subordinada: a máquina industrial pertence ao capital europeu do oeste, alemão em particular.
*Pierre Rimbert é
jornalista do Le Monde
Diplomatique .
1 Stephen Gross, “The German economy and East-Central Europe” [A economia alemã e a Europa centro-oriental], German Politics and Society , v.31, n.108, Nova York, outono de 2013. 2 Cf. o dossiê coordenado por Wladimir Andreff, “Union Européenne: sous-traiter en Europe de l’Est” [União Europeia: terceirizações no Leste Europeu], Revue d’Études Comparatives Est-Ouest , v.32, n.2, Paris, 2001. 3 Julie Pellegrin, “German production networks in Central/Eastern Europe: between dependency and globalisation” [Redes de produção alemãs na Europa central/oriental: entre dependência e globalização], Wissenschaftszentrum Berlin für Sozialforschung, 1999, de onde foram tirados os números deste parágrafo. 4 Fabienne Boudier-Bensebaa e Horst Brezinski, “La sous-traitance de façonnage entre l’Allemagne et les pays est-européens” [A terceirização de acabamento entre a Alemanha e os países do Leste Europeu], Revue d’Études Comparatives Est-Ouest , op. cit. 5 Vladimir Handl, “The Visegrád Four and German hegemony in the euro zone” [O Quarteto de Visegrado e a hegemonia alemã na zona do euro] , Visegrádexperts.eu, 2014. 6 Christian Dustmann, Bernd Fitzenberger, Uta Schönberg e Alexandra Spitz-Oener, “From sick man of Europe to economic superstar: Germany’s resurgent economy” [De homem doente da Europa a superstar econômico: o ressurgimento da economia alemã], Journal of Economic Perspectives, v.28, n.1, Nashville, inverno de 2014. 7 Konrad Poplawski, “The role of Central Europe in the German economy. The political consequences” [O papel da Europa central na economia alemã. As consequências políticas], Centre d’Études Orientales, Varsóvia, jun. 2016. 8 Ler Philippe Descamps, “Victoire ouvrière chez Volkswagen” [Vitória operária na Volkswagen] Le Monde Diplomatique, set. 2017. 9 Citado por Financial Times, Londres, 27 jun. 2017. 10 Ladka Mortkowitz Bauerova, “Czech leader vows more pressure on foreign investors over wages” [Líder tcheco pressiona investidores estrangeiros por melhores salários], Bloomberg, Nova York, 18 abr. 2017. 11 Ver “De Varsovie à Washington, un Mai 68 à l’envers” [De Varsóvia a Washington, um M aio de 1968 às avessas], Le Monde Diplomatique, jan. 2018.
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ANSIEDADE IDENTITÁRIA NA FRANÇA
Integração, a grande obsessão No incessante debate sobre a integração de árabes e africanos na França, alguns preferem se referir a uma época mítica em que italianos, portugueses, poloneses – que seriam “menos diferentes” – eram assimilados sem contratempos. Tomando a questão como essencialmente cultural, essa leitura negligencia as lições de mais de um século de história da imigração POR BENOÎT BRÉVILLE*
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fanfarra da identidade deseja um feliz 2018. Desde o réveillon, o espancamento de uma policial nas proximidades de uma festa em Champigny-sur-Marne, na região de Paris, deu início a uma controvérsia sobre violência na periferia. O caso se transformou em polêmica sobre a integração dos imigrantes quando um jornalista do Le Figaro publicou em sua conta no Twitter fotografias de crianças brincando na lama, com o seguinte comentário: “O bairro pobre de Champigny, que acolhia mais de 10 mil portugueses. Sem ódio nem violência”. Essa ideia foi rapidamente reciclada na televisão por Laurent Bouvet, cientista político e fundador do coletivo Primavera Republicana. “Nos anos 1960, como em muitas cidades de periferia, em Champigny existiam bairros pobres de portugueses, e não havia ag ressão de policiais”, afirma em um programa consagrado à “Laicidade, um valor ameaçado?” – um tema a priori sem grande relação com este assunto. 1 Em 3 de janeiro, as jornalistas do Le Monde Raphaëlle Bacqué e Ariane Chemin começaram um vasto tour midiático para promover La Communauté [A Comunidade] (Albin Michel), uma investigação sobre a cidade de
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Trappes que se assusta com o comunitarismo muçulmano. Enquanto isso, o ministro da Educação Nacional, Jean-Michel Blanquer, anuncia a criação de um “conselho dos sábios da laicidade”, do qual participaria principalmente Laurent Bouvet. Já Marlène Schiappa, secretária de Estado para a Igualdade das Mulheres e dos Homens, publicou o livrinho La Laïcité, point! [A laicidade e ponto!] (Éditions de l’Aube), que lhe valeu uma longa entrevista na revista Marianne . “Três anos após os atentados, ser ‘sempre Charlie’ é ser ‘sempre laico’?”, pergunta Reanud Dély (7 jan.). Ao final dessa primeira semana, a mídia descobriu com estupor e desolação um dado do instituto de pesquisa Ifop: 48% dos franceses consideram a imigração “um projeto político de substituição de uma civilização por outra”. Por que será...? Por trás das múltiplas e longas discussões sobre a laicidade, a religião ou o comunitarismo se escondem frequentemente as mesmas questões: os muçulmanos podem se dissolver no caldeirão francês? O islã é compatível com a República? O “modelo republicano”, que permitiu a integração de italianos, poloneses, espanhóis etc., pode funcionar com os magrebinos e
os africanos? “Os combates em torno da laicidade são apenas cortinas de fumaça que dissimulam a verdadeira questão de fundo, a da assimilação”, admite até mesmo o editorialista do Le Figaro, do Le Figaro Magazine e da rádio RTL Éric Zemmour, nostálgico do tempo em que os imigrantes se dobravam ao “antigo ditado: ‘Em Roma, faça como os roma nos’”. 2 POLONESES REBELDES
Comparar a integração das diversas ondas de imigração sempre foi um jogo muito apreciado por especialistas. Nos anos 1930, os demógrafos se divertiam em medir o “nível de assimilabilidade” dos estrangeiros; depois da guerra, analistas louvavam o mérito dos nórdicos em detrimento dos europeus da bacia mediterrânea. Há trinta anos, um consenso parece surgir para diagnosticar uma “crise da integração” inédita na história da França. “O que tinha funcionado – com voluntarismo, apesar do racismo, do antissemitismo e da xenofobia – para os belgas, os poloneses, os judeus da Europa central e oriental, os espanhóis, os italianos, os portugueses etc. como que se entravou assim que se começou a acolher, promover e reivindicar os trabalhadores oriundos de nossas imigrações colo-
niais e pós-coloniais”, analisa o diretor do Mediapart, Edwy Plenel, que situa o bloqueio na “inconsciência ainda recalcada da relação colonial, inclusive no seio da esquerda francesa”. 3 Laurent Bouvet refere-se também a uma “integração que funciona e que permitiu, geração após geração, a milhões de estrangeiros se tornarem franceses e, consequentemente, se tornarem a França”. 4 Mas, se ele fustiga a esquerda, é por razões opostas às de Plenel: ele a critica por ter promovido desde os anos 1980 o tema do “direito à diferença”, abrindo assim caminho para as reivindicações comunitárias e o encerramento identitário. Essa encenação da história conjuga dois pressupostos. O primeiro consiste em pensar que os estrangeiros se integrariam mais fácil e rapidamente ontem do que hoje. Não há dúvidas, os descendentes de imigrantes muçulmanos sofrem atualmente importantes discrimi nações em matéria de emprego, alojamento, controles policiais. Mas enfrentam de fato uma rejeição mais significativa do que seus predecessores? Parece inútil estabelecer uma gradação da xenofobia, e nenhum historiador se arriscaria a fazê-lo. Porém, diversos pesquisadores dão destaque à permanência dos mecanismos
de exclusão (social, urbana, simbólica) e aos estigmas que atingem as pessoas de origem estrangeira. Brutais, sujos, ladrões de emprego, agentes do exterior: italianos, poloneses, portugueses e espanhóis também tiveram de passar por isso e, mesmo sendo cristãos, eram considerados religiosos demais, supersticiosos, místicos. 5 A rejeição, por vezes, durou diversas décadas. Surgido no último quarto do século XIX, o racismo anti-italianos só se apagou realmente depois da Segunda Guerra Mundial.6
Brutais, sujos, ladrões de emprego, agentes do exterior: italianos, poloneses, portugueses e espanhóis também tiveram de passar por isso De acordo com o segundo pressuposto, discutido com menos frequência, os migrantes europeus seriam mais inclinados a “se assimilar”, a abandonar sua identidade de origem para abraçar plenamente a cultura francesa, do que seus homólogos originários das colônias. Nada é mais falso. Cada geração de migrantes teve a preocupação de preservar sua identidade de origem e transmiti-la a seus filhos; cada geração foi atravessada pelas diferenças entre aqueles que queriam se assimilar e aqueles que continuavam vinculados a suas par ticularidades. No final do século XIX , não era raro os italianos mandarem seus fil hos para seu país até os 12 anos, antes de trazê-los de volta para a França. Em Paris, Montreuil, Marselha, Nice e Nogent-sur-Marne, alguns bairros transbordavam de lojas de produtos transalpinos, cafés-hotéis que acolhiam os recém-chegados, bares onde os exilados se encontravam para jogar morra – um jogo de cartas tradicional – ou para escutar o acordeão, instrumento tipicamente italiano. Graças ao liberalismo da lei de 1º de julho de 1901, os italianos puderam cultivar esse “mundinho” fundando dezenas de associações culturais, esportivas, recreativas, de assistência, reservadas a seus compatriotas. Para satisfazer o estado civil – que impunha que escolhessem nomes franceses –, os i migrantes nomeavam, é verdade, seus filhos Albert e Marie, mas, fora da escola, todo mundo os chamava de Alberto e Maria. A part ir de 1922, a preservação da “italianidade” dos imigrantes, segundo o vocabulário em uso na época, tornou-se um objetivo do poder fascista, que queria impedir a assimilação de
seus emigrados pela França. O governo de Roma se empenhou então em tornar vivo o sentimento de vínculo patriótico, criando mais de duzentas seções da Associação Nacional dos Antigos Combatentes Italianos nas cidades francesas, colocando as associações italianas sob o controle dos consulados e reagrupando os cultivadores no seio de cooperativas que dependiam dos bancos italianos. Diante disso, os antifascistas encorajavam, ao contrário, os imigrantes a se integrarem na sociedade francesa participando das lutas sociais e políticas ao lado das forças populares. 7 Os poloneses chegados após a Primeira Guerra Mundial queriam ainda mais preservar sua “polonesidade”. Eles se casavam entre si, recusavam qualquer naturalização e proibiam seus filhos de falar francês dentro de casa. Algumas cidades do Pas-de-Calais contavam com dois times de futebol: um para os poloneses e outro para os franceses e demais estrangeiros. 8 Nas grandes festas religiosas, durante o período entreguerras, os membros da comunidade se vestiam com as roupas tradicionais, depois desfilavam em procissão entoando cânticos, o que não deixava de desagradar à população local. O clero polonês, que considerava a França uma terra ímpia, encorajava seus fiéis a cultivar sua identidade cultural, sob o olhar benevolente do patronato francês, que financiava a construção de presbitérios e igrejas, e até mesmo a viagem e o salário de capelães vindos da Polônia. Que melhor proteção do que a de um padre contra a agitação operária e a pretendida depravação do proletariado? Quando dos sermões (em polonês), os padres se entregavam à apologia de sua terra natal. Além de qualificarem como traidores aqueles que pediam a naturalização, eles nunca perdiam a oportunidade de criticar a imoralidade da França e seus objetivos assimi ladores. Em 1926, conta o historiador Ralph Schor, um capelão do Nord-Pas-de-Calais “insuflou tanto seus paroquianos contra os professores franceses que os alunos começaram a insultar seus mestres, o que deu início a um pequeno escândalo”. 9 O vínculo identitário dos filhos de imigrantes dimi nuiu progressivamente, mas pode, no entanto, atravessar gerações. Muitos netos dos poloneses chegados no período entreguerras manifestaram emoção quando João Paulo II se tornou papa em 1978 e, dois anos depois, diante das esperanças suscitadas pela Solidarnosc. Existem ainda centros culturais espanhóis abertos pelas primeiras gerações de migrantes, como a Colônia Espanhola em Béziers e, em Saint-Denis, o El Hogar de Los Españoles, um espaço fu n-
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dado em 1922 que pretende “conservar um lugar de convívio, trocas interculturais e intergeracionais, e permite à comunidade espanhola reforçar uma vida social rica”. Em julho de 2016, na noite da final da Eurocopa, centenas de pessoas celebraram na Avenida Champs-Élysées a vitória de Portugal contra a França. Ninguém viu nessa inundação de bandeiras vermelhas e verdes uma ameaça à coesão nacional. Assim como ninguém se constrange com o fato de que Matteo, Enzo, Esteban ou ainda Giulia e Elena figurem entre os cinquenta nomes mais dados em 2017 na França – uma lista que não contém nenhum nome de origem árabe, exceto Adam e Inès, que transcendem as culturas. Longe da assimilação fantasiada por alguns, a “integração à francesa” se parece mais com um caminho em direção à “invisibilidade, o que não quer dizer o fim das diferenças, mas a aceitação pelo meio de acolhida, quando ninguém se preocupa mais com as diferenças”.10 Esse “caminho em direção à transparência” 11 não foi traçado por circulares ministeriais, seminários universitários ou t ribunas sonoras na imprensa: foi o resultado de contatos e trocas cotidianas entre as populações minoritárias e seu meio de inserção, na maior parte das vezes um meio urbano, popular, operário.
pular antiga, que oferecia certa mistura social e étnica e cujas ruas animadas favoreciam os encontros entre pessoas de todas as origens. A maioria dessas trilhas hoje está fechada. Em um contexto de desemprego em massa e concorrência generalizada no seio das classes populares, o trabalho tem um papel de divisão em vez de aproximação. Os bancos das igrejas ficaram desertos, as organizações progressistas se esvaziaram e as periferias populares conhecem uma segregação socioétnica cada vez mais importante, que repercute na escola por meio da distribuição dos alunos no mapa (ou pela evasão pelas famílias menos favorecidas). Fazer da origem dos descendentes dos imigrantes a única fonte de seus “problemas de integração” leva a negligenciar o contexto social dessa integração e a transformar em questões de identidade demandas que são, em sua maioria, profundamente sociais: a igualdade diante do emprego, a escola, a polícia, a justiça, a habitação, o direito de praticar (ou não) sua religião.
Com desemprego em massa e concorrência generalizada no seio das classes populares, o trabalho tem um papel de divisão em vez de aproximação A história demarcou amplamente as trilhas dessa integração: o trabalho, em uma época em que a solidariedade operária, o sentimento de pertencimento profissional e a consciência de classe eram vivos; o serviço militar e as duas guerras mundiais, que reuniram sob a mesma bandeira franceses e descendentes de estrangeiros; a escola, então lugar de aclimatação à cu ltura dominante e instru mento de ascensão social para os filhos de imigrantes; a Igreja Católica, que tentava atrair para si os fiéis estrangeiros propondo patrocínio e serviços de auxílio; as lutas sociais e a mi litância no seio das organizações de esquerda, quando o Partido Comunista Francês, a Confederação Geral do Trabalho (CGT) e suas associações-satélite (Socorro Popular, União das Mulheres Francesas, Turismo e Trabalho...) serviam ainda como “máquinas de integrar”;12 a cidade po-
*Benoît Bréville é
jornalista do Le Monde
Diplomatique .
1 “28 minutes”, Arte, 4 jan. 2018. 2 Éric Zemmour, “Prêchi-prêcha Plenel” [Pregando Plenel], Le Figaro, Paris, 1º out. 2014. 3 Edwy Plenel, Dire non [Dizer não], Don Quichotte, Paris, 2014. 4 Laurent Bouvet, L’Insécurité culturelle [A insegurança cultural], Fayard, Paris, 2015. 5 Cf. sobre esse assunto “Étrangers, immigrés, Français” [Estrangeiros, imigrantes, franceses], Vingtième Siècle, n.7, jul.-set. 1985; ou, mais recentemente, Gérard Noiriel, Immigration, antisémitisme et racisme en France (XIX e – XX e siècle). Discours publics, humiliations privées [Imigração, antisse-
mitismo e racismo na França (séculos XIX-XX). Discursos públicos, humilhações privadas], Fayard, 2007. 6 Pierre Milza, Voyage en Ritalie [Viagem à Ritália], Payot, Paris, 2004. 7 Pierre Guillen, “L’antifascisme, facteur d’intégration des Italiens en France dans l’entre-deux guerres” [O antifascismo, fator de integração dos italianos na França no período entreguerras]. In: L’Emigrazione socialista nell a lotta contro il fascismo (19261939) [A emigração socialista na luta contra o
fascismo (1926-1939)], Sansoni, Florença, 1982. 8 Janine Ponty, Polonais méconnus. Histoire des travailleurs immigrés en France dans l’entre-deux guerres [Poloneses pouco conhecidos. História
dos trabalhadores imigrados na França no período entreguerras], Publications de la Sorbonne, Paris, 2005. 9 Ralph Schor, “Le facteur religieux et l’intégration des étrangers en France, 1919-1939” [O fator religioso e a integração dos estrangeiros na França, 1919-1939], Vingtième Siècle, n.7, jul.-set. 1985. 10 Marie-Claude Blanc-Chaléard, Pour en finir avec les bidonvilles. Immigration et politique du logement dans la France des Trente Glorieuses [Para
acabar com os bairros pobres. Imigração e política de habitação na França dos Trinta Gloriosos], Publications de la Sorbonne, 2016. 11 Judith Rainhorn, Paris, New York: des migrants italiens, années 1880 – années 1930 [Paris, Nova York: migrantes italianos, anos 1880-anos 1930], CNRS Éditions, Paris, 2005. 12 Patrick R. Ireland, “Race, Immigration and the Politics of Hate” [Raça, imigração e as políticas do ódio]. In: Anthony Daley (dir.), The Mitterrand Era. Policy Alternatives and Political Mobilization in France [A era Mitterrand. Políticas alternativas e
mobilização política na França], Palgrave Macmillan, Basingstoke e Londres, 1996.
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NASCIMENTO HUMANIZADO
A violência obstétrica como rotina Figurando como o segundo país com maior número de cesáreas do mundo, o Brasil segue desencorajando mulheres sobre a escolha do parto. A humanização do nascimento é o respeito ao protagonismo feminino e à sua fisiologia POR LUCIANA MOTOKI*
mulher engravidou. Conforme seu útero cresce, ela percebe que o corpo vai deixa ndo de ser somente dela. Desconhecidos colocam a mão em seu ventre sem pedir licença, enquanto perguntam: “Para quando é?”. Algumas respondem: “Está previsto para dia tal, mas vou aguardar o par to normal”. E escutam: “Corajosa! Conheço uma mulher que ficou aguardando o parto normal e o bebê passou da hora. Quando fizeram a cesárea foi tarde demais. Cuidado! Se eu fosse você, agendava logo a cesárea, para não correr esse risco”. Quantas grávidas passaram por situações semelhantes, em que alguém coloca a cirurgia como a forma mais segura de nascer? Pode ser o médico que acompanha o pré-natal, um familiar, um amigo ou até mesmo um estranho. Vivemos em um país em que a maioria dos nascimentos ocorre por via cirúrgica. O índice de cesarianas no Brasil é o segundo maior em todo o mundo, atrás apenas da Costa Rica. 1 O percentual de cesáreas em 2016, segundo dados do Ministério da Saúde, foi de 55,5%. Na rede pública, esse percentual atingiu 40,2%, enquanto na rede privada ficou em torno de alarmantes 85% (segundo dados da Agência Nacional de Saúde). A Organização Mundial da Saúde (OMS) considera aceitável que de 10% a 15% dos nascimentos ocorram por cesariana. A pesquisa “Nascer no Brasil”, divulgada pela Fiocruz em 2014, aponta que quase 70% das mulheres brasileiras desejam um parto normal no início da gravidez. No entanto, uma minoria o tem como desfecho. O que leva essas mulheres a terminar a gestação numa cesariana? Muitas são as causas atribuídas. Baixa remuneração dos planos de saúde para o parto (que pode demandar muitas horas de assistência) e comodidade para o médico (dia e hora marcados) estão entre as principais. Além disso, a visão equivocada de que a cesárea é mais segura e de que o parto normal envolve um sofrimento muito grande são fatores que influenciam o índice. No entanto, é bem estabelecido na literatura médica que a cesárea está associada a um maior número de complicações (hemorragias e infecções na mulher; dificuldade respiratória e necessidade de UTI nos recém-nascidos).
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m fi m o B a i v a l F ©
A assistência ao parto no Brasil é carregada de intervenções de rotina, muitas vezes desnecessárias e sem embasamento científico. A mulher, quando entra em trabalho de parto e procura assistência, tem de enfrentar um atendimento pouco empático nas maternidades: são privadas da presença de um acompanhante de sua escolha durante todo o processo ou parte dele (pré-parto, parto e pós-parto), ficam impossibilitadas de ficar na posição que lhes seja mais confortável para lidar com a dor, são submetidas a exames de toque excessivos e jejum prolongado. Além disso, escutam frases violentas em vez de palavras de incentivo. O exemplo clássico é: “Na hora de fazer não gritou, né?”. Por fim, têm as pernas amarradas em posição ginecológica e o períneo cortado rotineiramente, enquanto alguém sobe com força em seu abdome para “ajudar” o bebê a nascer porque “ela não está colaborando”. Quando finalmente nasce, o bebê não é colocado diretamente em seu colo e é separado para passar por procedimentos que poderiam aguardar, como pesar e vacinar. O recém-nascido também pode sofrer com o excesso de intervenções assim que nasce, como ter suas vias aéreas aspiradas sem indicação. Em muitas maternidades, esse bebê é encaminhado para um berçário e por lá fica algumas horas (às vezes muitas) em observação, sem estar em contato com a mãe e estabelecer um vínculo muito importante, especial-
mente para estimular a amamentação. Com esse tipo de assistência, é impossível que essa mulher fale da sua experiência de parto de forma positiva. É bem provável que ela não deseje um segundo parto normal. Cada vez mais, mulheres têm buscado informações para não sofrer violência no parto ou serem submetidas a cesarianas sem indicação. Existe um movimento, chamado humanização, que apoia e ajuda as mulheres que procuram outra forma de dar à luz. Ao contrário do que muitos pensam, a humanização não preconiza o parto natural a qualquer custo, tampouco ignora a segurança para mulher e bebê. É um modelo de assistência que respeita o protagonismo feminino e a fisiologia do parto, e, caso haja necessidade de intervir no processo, a mulher é informada sobre os riscos e os benefícios da intervenção, sempre proposta com base em evidências científicas. A mulher participa das decisões do parto e compartilha responsabilidades. Parto humanizado pode ser na água, de cócoras, deitada, natural ou com intervenções. Atualmente, existem grupos de apoio a mulheres que desejam ser atendidas nesse modelo de assistência. Boa parte desses grupos são gratuitos e semanais. Neles são discutidos diversos temas relacionados a gestação, parto e pós-parto, com ênfase maior na fisiologia do parto, que acaba sendo o momento de maior vulnerabilidade. Existem ainda grupos virtuais que facilitam o acesso à informação sobre o tema.
Essas iniciativas são de grupos independentes e não estão vinculadas a projetos governamentais. Infelizmente, essa assistência não é acessível a toda a população, já que a maioria das equipes que presta esse tipo de atendimento é particular. A usuária do SUS possui poucas opções de maternidades que oferecem atendimento humanizado, e mesmo assim conta com a sorte de a equipe de plantão respeitar seu plano de parto. As casas de parto são poucas (duas na cidade de São Paulo), e há dificuldade de transferência para um hospital que respeite e acolha as mulheres sem julga mentos. Em 2016, o Ministério da Saúde publicou o Protocolo Clínico de Diretrizes Terapêuticas para a Cesariana, com parâmetros que devem ser seguidos pelos serviços de saúde, visando reduzir o número de cesarianas desnecessárias. Em 2017, o Ministério da Saúde anunciou as Diretrizes para o Parto Normal e Humanizado, com medidas que devem ser incorporadas por todas as maternidades, centros de parto normal e casas de parto, visando ao respeito no acolhimento e dando mais informações para o empoderamento da mulher no processo de decisão ao qual tem direito. Apesar de importantes, as medidas são insuficientes para garantir assistência humanizada a todas as usuárias do SUS. As más práticas de atenção ao parto e ao nascimento, com suas altíssimas taxas de cesáreas e excesso de intervenções desnecessárias, contribuíram para que o Brasil não conseguisse atingir a meta da ONU de redução de mortalidade materna. Há necessidade urgente de mudança no sistema obstétrico do país para melhoria da assistência ao nascimento. Descentralizar da figura do médico a assistência ao parto de risco habitual, permitindo a atuação de obstetrizes e enfermeiras obstetras, é uma medida eficaz para reduzir o número de intervenções, com maior satisfação da mulher no momento do parto e sem aumentar o número de eventos adversos. É preciso discutir o nascer. Deixar que a mulher lute sozinha contra um sistema que oprime suas escolhas é mais uma forma de v iolência. *Luciana Motoki é médica.
1 Dados divulgados pela OMS em 2016.
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LUTA CONTRA A VIOLÊNCIA E DIREITO À CIDADE
Por um 2018 mais seguro para as mulheres Relatório da ActionAid fornece subsídios para a luta das mulheres contra todas as formas de violência ao constatar que, em todo o mundo, elas ainda não desfrutam plenamente do direito à cidade, estando mais suscetíveis que os homens a sofrer agressões quando transitam nos espaços públicos POR ANA PAULA FERREIRA, INGRID FARIAS E JÉSSICA BARBOSA*
m 2017, as mulheres brasileiras promoveram inúmeras mobilizações e denúncias sobre assédio, violência, retrocessos nos direitos e todas as formas de opressão sexista que, por muitos anos, permaneceram silenciadas no Brasil. Em diversos momentos, elas se apoderara m de espaços até então ocupados majoritariamente por homens, denunciando atitudes machistas. Foram relatados casos nos transportes públicos, nos ambientes de trabalho e, especialmente, nas ruas. As mulheres não recuaram. Denunciaram a reforma trabalhista, as revogações de direitos sexuais e reprodutivos, os altos í ndices de violência e feminicídios, entre outras violações contra seus direitos. Esse movimento encontra eco internacional. Aconteceram mobilizações similares das mulheres em diversos lugares do mundo. A Greve Internacional de Mulheres (International Women’s Strike) no dia 8 de março; o grito coletivo “Ni Una Menos”, nascido na Argentina e difundido por toda a América Latina; e as ações que se multiplicaram pelos 16 Dias de Ativismo pelo Fim da Violência contra a Mulher, celebrados em todo o mundo, são exemplos da força de uma mobilização que ultrapassa fronteiras. Na Arábia Saudita, as mulheres finalmente conquistaram o direito de dirigir veículos e ir a estádios de futebol. Na Islândia, foi promulgada a primeira lei do mundo de igualdade salarial entre homens e mulheres. Nos Estados Unidos, as denúncias de assédios sofridos durante anos pelas mulheres fizeram tremer as estruturas da indústria audiovisual. Tudo isso mostra o fortalecimento e a consolidação da articulação feminista. Não se trata tão somente de uma onda de conscientização de mulheres, mas da transformação dessa consciência em ação articulada para enfrentar os constantes ataques que sofremos nos contextos político, econômico e social. No entanto, por mais animadas que esse retrospecto nos faça sentir, pela afirmação da força da união entre
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mulheres, um breve olhar pelo mundo que nos rodeia revela o recrudescimento do conservadorismo, do neoliberalismo e do fundamentalismo não só no Brasil, mas também em outros países. Diante dessa conjuntura mundial, a organização internacional de combate à pobreza ActionAid lançou, em dezembro de 2017, um estudo comparativo sobre a segurança urbana para as mulheres em dez países onde realiza a campanha Cidades Seguras para as Mulheres – Brasil, Áf rica do Sul, Jordânia, Nepal, Nigéria, Zimbábue, Bangladesh, República Democrática do Congo, Libéria e Senegal. O relatório, denominado “De quem é a cidade?”, fornece subsídios para a luta das mulheres contra todas as formas de violência ao constatar que, em todo o mundo, elas ainda não desfrutam ple-
namente do direito à cidade, estando mais suscetíveis que os homens a sofrer agressões quando transitam nos espaços públicos. Foram utilizados diversos indicadores para medir a sensação de segurança das mulheres no ambiente urbano, além do nível de comprometimento dos governos com a garantia de uma vida sem violência para nós. O estudo contém um ranki ng dos países e recomenda medidas a serem adotadas pelos governos para tornar suas cidades livres da violência de gênero. O documento sistematiza também dados alarmantes. Em todo o mundo, três em cada dez mulheres já levaram socos e empurrões, foram arrastadas, ameaçadas com armas, estupradas ou vítimas de outras formas de violência, principalmente por seus parceiros.
Praticamente uma em cada dez mulheres já sofreu ataques sexuais de alguém que não o parceiro. Um terço de todos os assassinatos de mulheres é cometido por seus parceiros íntimos.1 Gerar informações sobre as condições de vida das mulheres é fundamental para cobrar do poder público e de toda a sociedade uma atuação pelo fim de todas as formas de opressão contra a mulher, tanto nos espaços públicos como nos privados. No que diz respeito ao direito à cidade, o relatório evidencia os efeitos da cultura machista, apresentando dados que confirmam a urgência de investir em políticas para que as mulheres tenham acesso a serviços públicos de qualidade, que devem ser sensíveis e acessíveis a gênero. Os impactos da violência na vida das mulheres não são somente físicos.
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Além das agressões em si, há o medo de circular nos espaços públicos, um mal que atinge a todas nós, independentemente de onde vivemos. Isso impede boa parte de nós de exercer uma cidadania plena. Um dos principais fatores apontados no relatório para essa ocorrência é a precariedade do transporte público. O estudo ainda aponta que deficiências nos sistemas de educação e no acesso a alimentação digna, saúde pública, saneamento básico, lazer e justiça também se configuram como fatores que perpetuam a discriminação de gênero. Essa discriminação se agrava por elementos étnicos, de casta, classe, idade e orientação sexual. O relatório dá um panorama sobre a forma como esses problemas têm sido, ou não, enfrentados e aponta recomendações aos governantes. Entre elas, estão coletar e sistematizar dados detalhados sobre a violência contra as mulheres em espaços públicos e usar essas informações para planejar programas de prevenção e resposta relacionados à segurança urbana; ga rantir que grupos de mulheres e sobreviventes de violência participem, em todas as etapas e processos de elaboração, monitoramento e auditoria, desses programas; abordar o persistente machismo institucional entre os principais órgãos de implementação desses programas, como a força policial, o Judiciário e o setor público como um todo; garantir que todos os serviços pú-
blicos sejam universais, acessíveis e sensíveis a gênero, incluindo serviços que previnam a v iolência contra a mulher e respondam a esse tipo de violência; colocar em prática políticas fiscais progressivas para garantir que os serviços públicos sejam adequadamente financiados; e remover incentivos que empresas possam ter que enfraqueçam o respeito e a proteção dos direitos da mulher. Comparativamente aos países estudados, o Brasil ficou em quarto lugar no ranking gerado pelo relatório – atrás de Nepal, Nigéria e Jordânia. O país ainda dispõe de dados, leis e planos destinados ao combate à violência contra as mulheres. Nos outros locais, há uma alarmante lacuna na produção de informações sobre as condições de vida das mulheres. A existência de dados e leis é um passo importante para o fim das desigualdades. Apesar disso, ainda estamos dista ntes da superação das injustiças sofridas pelas mulheres e da promoção de cidades mais seguras para elas. Essas iniciativas brasileiras de geração de dados e promulgação de leis têm permitido que governos, principalmente locais, procurem pôr em prática serviços para ampliar o direito das mulheres à cidade. São projetos iniciais, e alguns deles são compartilhados no relatório. Os exemplos brasileiros vêm de Heliópolis, na cidade de São Paulo, e de Garanhuns e Caruaru, em Pernambu-
co. Em ações que aconteceram no âmbito da campanha Cidades Seguras para as Mulheres, da ActionAid, foram desenvolvidas iniciativas articuladas pelas secretarias de Mulheres dessas cidades, que levaram iluminação pública de LED a 100% de bairros pobres, aprovaram leis para garantir paradas de ônibus mais seguras e construíram planos municipais de Cidades Seguras para as Mulheres. No município de Caruaru, foi criada uma Câmara Técnica de Cidades Seguras para as Mulheres, aproximando a sociedade civil das decisões e orientações sobre as políticas públicas elaboradas. Embora animadores, esses esforços foram pontuais e aplicados por gestões municipais mais favoráveis e sensíveis às pressões sociais, não chegando a se tornar políticas públicas permanentes. As recentes alterações no cenário político do Brasil estão levando a um retrocesso nos alcances obtidos em relação aos direitos das mulheres. O que se percebe atualmente é um verdadeiro desmonte de todas as iniciativas de ampliação da nossa cidadania. Houve extinção de ministérios que trabalhavam especificamente essa pauta no Executivo federal. Além disso, com a redução de repasses de recursos públicos aos governos estaduais e municipais, agravada pela crise econômica, está em curso no país um profundo enxugamento dos investimentos na melhoria de infraes-
trutura e serviços públicos, afetando diretamente as mulheres, em especial as de baixa renda e mais vulneráveis. Até mesmo os espaços de participação popular estão em risco. O ano de 2018 será muito importante para a luta feminista. Haverá eleições amplas e decisivas não apenas no Brasil, mas em vários países latino-americanos. Diante de uma onda conservadora, neoliberal e com forte fundamentalismo religioso, os movimentos de mulheres deverão desenvolver uma agenda ainda mais intensa, capaz de fazer frente a qualquer tentativa de retrocesso que ameace os direitos não só das mulheres, mas de toda a população. Se considerarmos o enfraquecimento brutal de nossa democracia, retomá-la significa defender radicalmente uma democracia participativa e representativa em diversidade. Nela, as mulheres exercem um protagonismo marcante, constituindo um poder social capaz de transformar nossas relações e pôr fim a todas as forma s de opressão sexista, classista, LGBTfóbica e racista. *Ana Paula Ferreira, Ingrid Farias e Jéssica Barbosa são responsáveis pelo Progra-
ma de Direitos das Mulheres da ActionAid no Brasil. 1 Monya Barker, “Violence Against Women at Epidemic Proportions” [Violência contra mulheres em proporções epidêmicas], Scientific American, 20 jun. 2013.
DISCURSO PÚBLICO VS. VIDA PRIVADA
O que a conduta de Harvey Weinstein nos diz sobre a esquerda POR THOMAS FRANK*
té o escândalo Harvey Weinstein surgir na primeira página dos jornais, eu jamais tinha ouvido falar dessa figura. Sem dúvida, era o único jornalista dos Estados Unidos a dar prova de tamanha e total ignorância. Quem era, então, esse produtor de cinema acusado de ter agredido sexualmente um número incalculável de mulheres? Ao começar a me inteirar do assunto, descobri que não fazia muito tempo ele era famoso por outro motivo completamente diferente: sua íntima relação com o Partido
A
Democrata e seu apoio generoso a uma série de personalidades e a diversas boas causas consideradas progressistas. Durante muito tempo, foi até mesmo considerado adversário inabalável do racismo, do sexismo e da censura. Deve-se a ele, por exemplo, uma grande quantidade de festas suntuosas destinadas a levantar fundos para a luta contra o HIV e a aids. Em 2004, ele havia mani festado seu apoio público a um grupo de mulheres batizado de “Mães que se opõem a Bush”. 1 Na sequência do ataque terrorista contra
o jornal francês Charlie Hebdo, ele brandiu bem alto a tocha da liberdade de expressão: “Ninguém jamais poderá destruir a capacidade que têm os grandes artistas de nos retratar nosso mundo”, proclamou em 11 de janeiro de 2015 nas páginas da revista Variety . Foi também um apoiador incondicional de Barack Obama e Hillary Cli nton. Ninguém encarnou melhor do que ele as ambiguidades dessa elite democrata representada pela Fundação Clinton. As festas de caridade que esta organizava garantiam a mesma fun-
ção que as boas obras anteriores de Weinstein: a de uma câmara de compensação social na qual os novos part icipantes do belo mundo recebem seus títulos de nobreza – na França, outrora, isso era chamado de savonnette à vilain [literalmente, “sabonete para vilão”; trata-se do título de nobreza vendido a plebeus no Antigo Regime]. Participa r de um evento da Fundação Clinton é novamente atingir o maior índice da bondade. Ali se encontra uma grande quantidade de celebridades, um leque de personagens
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Além das agressões em si, há o medo de circular nos espaços públicos, um mal que atinge a todas nós, independentemente de onde vivemos. Isso impede boa parte de nós de exercer uma cidadania plena. Um dos principais fatores apontados no relatório para essa ocorrência é a precariedade do transporte público. O estudo ainda aponta que deficiências nos sistemas de educação e no acesso a alimentação digna, saúde pública, saneamento básico, lazer e justiça também se configuram como fatores que perpetuam a discriminação de gênero. Essa discriminação se agrava por elementos étnicos, de casta, classe, idade e orientação sexual. O relatório dá um panorama sobre a forma como esses problemas têm sido, ou não, enfrentados e aponta recomendações aos governantes. Entre elas, estão coletar e sistematizar dados detalhados sobre a violência contra as mulheres em espaços públicos e usar essas informações para planejar programas de prevenção e resposta relacionados à segurança urbana; ga rantir que grupos de mulheres e sobreviventes de violência participem, em todas as etapas e processos de elaboração, monitoramento e auditoria, desses programas; abordar o persistente machismo institucional entre os principais órgãos de implementação desses programas, como a força policial, o Judiciário e o setor público como um todo; garantir que todos os serviços pú-
blicos sejam universais, acessíveis e sensíveis a gênero, incluindo serviços que previnam a v iolência contra a mulher e respondam a esse tipo de violência; colocar em prática políticas fiscais progressivas para garantir que os serviços públicos sejam adequadamente financiados; e remover incentivos que empresas possam ter que enfraqueçam o respeito e a proteção dos direitos da mulher. Comparativamente aos países estudados, o Brasil ficou em quarto lugar no ranking gerado pelo relatório – atrás de Nepal, Nigéria e Jordânia. O país ainda dispõe de dados, leis e planos destinados ao combate à violência contra as mulheres. Nos outros locais, há uma alarmante lacuna na produção de informações sobre as condições de vida das mulheres. A existência de dados e leis é um passo importante para o fim das desigualdades. Apesar disso, ainda estamos dista ntes da superação das injustiças sofridas pelas mulheres e da promoção de cidades mais seguras para elas. Essas iniciativas brasileiras de geração de dados e promulgação de leis têm permitido que governos, principalmente locais, procurem pôr em prática serviços para ampliar o direito das mulheres à cidade. São projetos iniciais, e alguns deles são compartilhados no relatório. Os exemplos brasileiros vêm de Heliópolis, na cidade de São Paulo, e de Garanhuns e Caruaru, em Pernambu-
co. Em ações que aconteceram no âmbito da campanha Cidades Seguras para as Mulheres, da ActionAid, foram desenvolvidas iniciativas articuladas pelas secretarias de Mulheres dessas cidades, que levaram iluminação pública de LED a 100% de bairros pobres, aprovaram leis para garantir paradas de ônibus mais seguras e construíram planos municipais de Cidades Seguras para as Mulheres. No município de Caruaru, foi criada uma Câmara Técnica de Cidades Seguras para as Mulheres, aproximando a sociedade civil das decisões e orientações sobre as políticas públicas elaboradas. Embora animadores, esses esforços foram pontuais e aplicados por gestões municipais mais favoráveis e sensíveis às pressões sociais, não chegando a se tornar políticas públicas permanentes. As recentes alterações no cenário político do Brasil estão levando a um retrocesso nos alcances obtidos em relação aos direitos das mulheres. O que se percebe atualmente é um verdadeiro desmonte de todas as iniciativas de ampliação da nossa cidadania. Houve extinção de ministérios que trabalhavam especificamente essa pauta no Executivo federal. Além disso, com a redução de repasses de recursos públicos aos governos estaduais e municipais, agravada pela crise econômica, está em curso no país um profundo enxugamento dos investimentos na melhoria de infraes-
trutura e serviços públicos, afetando diretamente as mulheres, em especial as de baixa renda e mais vulneráveis. Até mesmo os espaços de participação popular estão em risco. O ano de 2018 será muito importante para a luta feminista. Haverá eleições amplas e decisivas não apenas no Brasil, mas em vários países latino-americanos. Diante de uma onda conservadora, neoliberal e com forte fundamentalismo religioso, os movimentos de mulheres deverão desenvolver uma agenda ainda mais intensa, capaz de fazer frente a qualquer tentativa de retrocesso que ameace os direitos não só das mulheres, mas de toda a população. Se considerarmos o enfraquecimento brutal de nossa democracia, retomá-la significa defender radicalmente uma democracia participativa e representativa em diversidade. Nela, as mulheres exercem um protagonismo marcante, constituindo um poder social capaz de transformar nossas relações e pôr fim a todas as forma s de opressão sexista, classista, LGBTfóbica e racista. *Ana Paula Ferreira, Ingrid Farias e Jéssica Barbosa são responsáveis pelo Progra-
ma de Direitos das Mulheres da ActionAid no Brasil. 1 Monya Barker, “Violence Against Women at Epidemic Proportions” [Violência contra mulheres em proporções epidêmicas], Scientific American, 20 jun. 2013.
DISCURSO PÚBLICO VS. VIDA PRIVADA
O que a conduta de Harvey Weinstein nos diz sobre a esquerda POR THOMAS FRANK*
té o escândalo Harvey Weinstein surgir na primeira página dos jornais, eu jamais tinha ouvido falar dessa figura. Sem dúvida, era o único jornalista dos Estados Unidos a dar prova de tamanha e total ignorância. Quem era, então, esse produtor de cinema acusado de ter agredido sexualmente um número incalculável de mulheres? Ao começar a me inteirar do assunto, descobri que não fazia muito tempo ele era famoso por outro motivo completamente diferente: sua íntima relação com o Partido
A
Democrata e seu apoio generoso a uma série de personalidades e a diversas boas causas consideradas progressistas. Durante muito tempo, foi até mesmo considerado adversário inabalável do racismo, do sexismo e da censura. Deve-se a ele, por exemplo, uma grande quantidade de festas suntuosas destinadas a levantar fundos para a luta contra o HIV e a aids. Em 2004, ele havia mani festado seu apoio público a um grupo de mulheres batizado de “Mães que se opõem a Bush”. 1 Na sequência do ataque terrorista contra
o jornal francês Charlie Hebdo, ele brandiu bem alto a tocha da liberdade de expressão: “Ninguém jamais poderá destruir a capacidade que têm os grandes artistas de nos retratar nosso mundo”, proclamou em 11 de janeiro de 2015 nas páginas da revista Variety . Foi também um apoiador incondicional de Barack Obama e Hillary Cli nton. Ninguém encarnou melhor do que ele as ambiguidades dessa elite democrata representada pela Fundação Clinton. As festas de caridade que esta organizava garantiam a mesma fun-
ção que as boas obras anteriores de Weinstein: a de uma câmara de compensação social na qual os novos part icipantes do belo mundo recebem seus títulos de nobreza – na França, outrora, isso era chamado de savonnette à vilain [literalmente, “sabonete para vilão”; trata-se do título de nobreza vendido a plebeus no Antigo Regime]. Participa r de um evento da Fundação Clinton é novamente atingir o maior índice da bondade. Ali se encontra uma grande quantidade de celebridades, um leque de personagens
glorificados por seu altruísmo e seu infalível valor moral e que, muitas vezes, têm um nome simples, como o cantor Bono e a jovem paquistanesa Malala, que ganhou o Prêmio Nobel. Personagens santificados, beatificados, com os quais o contato gera uma reciprocidade que permite aos grandes peixes do mundo dos negócios obter, com a ajuda de contribuições financeiras, um brevê de bom samaritano. No centro desse jogo de ilusionismo, os Clinton são os mestres de cerimônia. Têm um pé em cada campo: o das grandes almas virtuosas e o menos reluzente dos negócios lucrativos empresariais. Weinstein personificaria melhor do que ninguém essa Bolsa de Valores morais. É ele o campeão da humanidade acusado de violências sexuais com uma frequência e gravidade inimagináveis. Eis que esse infatigável defensor da liberdade de imprensa se revela uma pessoa virtuosa na arte de manipular os jornalistas, com imunidade para molestá-los fisicamente quando eles insistem em fazer perguntas embaraçosas.2 Mas o produtor pop star de Hollywood soube também mostrar uma imagem afável, tecer uma rede de contatos que lhe devem obrigações, receber e recusar os que se encontram em ascensão. Em 2012, ele comprou os direitos de exploração no território norte-americano do Serment de Tobrouk (“O jura-
o d n o K l e i n a D ©
mento de Tobruque”), documentário dirigido por um ensaísta francês, Bernard-Henri Lévy, elegantemente vestido e obsti nado em promover, no cenário internacional, a destruição em 2011 do regime de Muamar Kadafi – mais conhecida nos Estados Unidos como “guerra de Hillary” e da qual a Líbia, sete anos depois, ainda não se recuperou. A descrição que Weinstein faz disso ilustra o nível de afetação e de pedantismo que é possível alcançar em um só parágrafo: “Este filme maravilhoso mostra a coragem incrível de BHL [Bernard-Henri Lév y] e a força do ex-presidente Nicolas Sarkozy, revelando ao mesmo tempo a inestimável liderança do presidente Barack Obama e da secretária de Estado, Hillary Clinton. Ele permite ao público norte-americano mergulhar nos bastidores em que o governo de nosso país e o da França trabalharam juntos para cessar o massacre de civis inocentes e conseguiram bril hantemente abater um regime”. Isso lhe valeria a seguinte devolução de afeição de Bernard-Henri Lévy: “Tenho uma profunda estima por Harvey Weinstein. Além de seu êxito cinematográ fico, ele é para mim antes de mais nada o homem que lançou a Amnesty International USA [Anistia Internacional Estados Unidos], lutou contra a pena de morte e um dos raros norte-americanos que conduziram a batalha contra os linchadores de [Roman] Polanski” – diretor de Chinatown e O bebê de Rosemary , acusado de agressões sexuais e de estupro de menores de idade (AFP, 18 maio 2012). O progressismo de Weinstein se media mais em louros que em dólares. O prodígio de Hollywood tinha assento no conselho de administração de diversos órgãos sem fins lucrativos; os filmes de sua produtora, a Miramax, ganharam Oscars e Globos de Ouro copiosamente; na França, ele chegou a receber a Legião de Honra. Em junho de 2017, quatro meses antes de estourar o escândalo de suas agressões e manobras para silenciar as vítimas de sua tirania sexual, o clube da imprensa de Los Angeles o premiou ainda com o Truthteller Award, o prêmio do “contador de verdade”. Uma impostura grosseira? É certo que sua consciência política não brilha nem por sua consistência nem por sua profundidade. Por exemplo, ele foi fortemente contra a candidatura de Bernie Sanders à primária
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democrata de 2016. Na noite da eleição presidencial de novembro de 2008, ele aplaudiu a vitória de Obama porque as “cotações na Bolsa de Valores [iam] subir em todo o mundo”. E seu humanismo se tinge às vezes de azinhavre. No dia 5 de novembro de 2012, por ocasião da estreia de Seal Team Six [no Brasil, O homem mais procurado do mundo ], filme de exaltação ao comando norte-americano que matou Osama bin Laden, coproduzido por sua produtora, ele decidiu prestar uma homenagem inflamada a um dos artífices mais depreciados da Guerra do Iraque: “Colin Powell, o maior gênio militar de nossos tempos, apoia o presidente Obama. E os militares o adoram. Fiz esse filme. Conheço os militares. Eles respeitam esse homem pelo que ele fez. Ele matou mais terroristas em u m breve exercício de sua função que George Bush em oito anos. É ele o verdadeiro falcão”. No mundo de Weinstein, o engajamento político se coloca sob o patrocínio da indústria do luxo, em Martha’s Vineyard assim como nos Hamptons – dois lugares privilegiados do jet-set norte-americano –, para cerimônias de apoio a um candidato e para uma fest a beneficente. Roger Ebert, influente crítico de cinema, assim relatou uma recepção que se deu em 2000, em Ca nnes, a favor da pesquisa contra a aids: “A venda privada nos leilões e o desfile de modas foram acompanhados de um jantar e de um leilão público dirigido pelo diretor da Miramax, Harvey Weinstein, que este ano não só leiloou uma massagem pela top model Heidi Klum, mas também convenceu [o ator Kenneth] Branagh e [o ator James] Caan a tirar a camisa e servir de cobaias para uma demonstração de seus talentos. A massagem foi arrematada por US$ 33 mil. ‘Karl Marx morreu’, observou o reali zador James Gray”.3 Cada partido tem seus estratagemas; Donald Trump está lá para nos lembrar disso toda semana. Mesmo de acordo com essa regra, Harvey Weinstein se destaca. Raramente um homem que defendeu com tanta pompa as boas causas se dedicou com a mesma intensidade a desrespeitá-las. Como compreender que ele tenha conseguido se identificar com ideias de esquerda? Talvez pelo gosto do poder, para desfrutar da vibração de ter alguém como Bill Clinton entre os amigos. Ou então pelo desejo de absolvição moral, o mesmo que incita o Walmart, o Goldman Sachs ou a Ex xonMobil a patrocinar obras de caridade. No mundo das grandes fortunas, o liberalismo funciona como máquina de lavar para tornar sua avidez mais apresentável. Não foi por acaso que, à guisa de primeira réplica desesperada às acusações acumuladas contra ele, Weinstein prometeu lutar contra a Associação Nacional de Rifles (NRA – National Rifle Associa-
tion), poderoso grupo de pressão norte-americano dos amantes de armas de fogo, e financiar bolsas de estudos reservadas às mulheres (The New York Times , 5 out. 2017). Com esse escândalo, sem dúvida trata-se também de algo mais profundo. Muita gente de esquerda se considera resistente à autoridade. Mas, aos olhos de algumas de suas lideranças, a esquerda moderna é um meio de justificar e exercitar um poder de classe – principalmente o da “classe criativa”, como alguns gostam de denominar a fina flor dos investidores de Wall Street, e dos empresários do Vale do Silício e de Hollywood. A idolatria da qual esses ícones do capitalismo são objeto resulta de uma doutrina política que permitiu aos democratas captar quase tanto dinheiro quanto seus rivais republicanos e se impor como representantes naturais dos bairros residenciais privilegiados. Não há o menor motivo para nos espantarmos com o fato de essa esquerda neoliberal mundana atrair personagens como Weinstein, com sua prodigiosa capacidade de levantar fundos e sua reverência pelos “grandes artistas”. Nesses círculos em que se mistura estar com a consciência tranquila e ter um sentimento de superioridade social, e em que se cultiva a ficção de uma relação íntima entre classes populares e celebridades do showbiz, o cofundador da Miramax estava como um peixe na água. São numerosos os frequentadores desse tipo de ambiente que, muito bem informados, se mostram agora escandalizados diante das baixezas de um dos seus. Sua cegueira é da mesma grandeza que a força de suas reações. Ultimamente, perambulam em um labirinto de espelhos morais deformantes derramando lágrimas de compaixão por suas próprias virtudes e elegância. *Thomas Frank é jornalista e escritor. Autor
de Pourquoi les riches votent à gauche [Por que os ricos votam na esquerda], Agone, Marselha, a ser publicado no próximo dia 17 de março.
1 O grupo Mothers Opposing Bush [Mães que se opõem a Bush] se formou para impedir a reeleição desse presidente porque se supunha que seu governo constituía um risco aos “valores de honestidade, compaixão, comunidade e patriotismo” que caracterizariam a América. 2 Foi o que fez em novembro de 2000 com o jornalista Andrew Goldman, do Observer . Ver Rebecca Traister, “Why the Harvey Weinstein sexual-harassment allegations didn’t come out until now” [Por que as alegações dos assédios sexuais por parte de Harvey Weinstein não tinham vindo à tona até agora], The Cut , 5 out. 2017. 3 Roger Ebert, “Elizabeth Taylor helps host surreal AIDS benefit” [Elizabeth Taylor ajuda cerimônia beneficente surreal contra a aids], 21 maio 2000. Disponível em: .
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GÊNERO
Mudanças na sexualidade, permanência do sexismo Libertada, a palavra das mulheres permitiu a conscientização a respeito da amplitude da violência e do assédio a que são submetidas cotidianamente. Por outro lado, como explicar essa proliferação de comportamentos sexistas em um cenário em que as práticas sexuais evoluíram no sentido de uma maior igualdade entre os parceiros? POR MICHEL BOZON*
O
sexismo brutal dos comportamentos do produtor Harvey Weinstein, denunciados no fim de 2017 pelo jornalismo investigativo após as revelações e mobilizações das mulheres, principalmente nas redes sociais, que tornaram visíveis diversos atos de assédio, agressão e violência sexuais, instigam a análise do sexismo como um sistema. Isso implica a ideia de uma hierarquia sistemática entre os sexos que permite a um dos dois impor sua dominação, de modo que seja dada preferência e até mesmo exclusividade a seus interesses. O sexismo não é um estereótipo ou um desequilíbrio presente em alguns homens que bastaria ser desmontado intelectualmente ou submetido a tratamento. Trata-se de um sistema cujas manifestações no âmbito da vida social são reforçadas pelas desigualdades em outras esferas, o que lhes dá uma poderosa coerência e as torna difíceis de serem alteradas: a desigualdade dos salários, a sobrecarga de trabalho doméstico das mulheres, sua maior precariedade profissional, sua fraca presença na política, na cultura e no esporte, seu difícil acesso aos espaços públicos, o uso sexista da língua, o assédio sexual e muitas outras assimetrias interligadas. Em suma, a força do sexismo é dupla, pois ele se constrói por meio de diversos focos e se recompõe facilmente quando a desigualdade se enfraquece em um campo de ação (por exemplo, na educação). Além disso, ele consegue resistir ao progresso das ideias e das normas de igualdade formal entre os sexos, deslocando permanentemente seus lugares e modos de justificativa. Por isso, a luta contra o sexismo também deve ser móvel. DESIGUALDADE ENRAIZADA NOS CORPOS?
Os comportamentos que suscitaram a indignação no outono de 2017 tocam na sexualidade de todos. Esta última desempenha um papel particular na gênese do sexismo? Ou haveria ocorrido uma degradação brutal
r e b r E a r u a L ©
nas relações entre os sexos, principalmente em matéria de sexualidade? Uma resposta afirmativa poderia se basear nos trabalhos da saudosa Françoise Héritier.1 Lembremos que, para a antropóloga, a desigualdade de gênero tem suas raízes em um pensamento diferencial original, f undamentado na observação dos corpos e da reprodução. Esse pensamento estabelece uma assimetria conceitual na qual o masculino e seus correlatos prevalecem sobre o feminino (maior/menor, primogênito/caçula, seco/úmido, sol/lua, claro/sombrio...). Com base nessa assimetria, os homens, que não podem parir, atribuem-se direitos sobre a descendência das mulheres e até mesmo se apropriam deles. A dicotomia ativo/ passivo na sexualidade decorre da “valência diferencial dos sexos” e seria uma das matrizes do que Françoise Héritier denomina a “licitude da pulsão masculina”, que não pode ser discutida nem contrariada. Haveria assim um desigualitarismo atávico e imutável da esfera sexual, enraizado na diferença dos corpos e inscrito nas representações do masculino e do feminino. A luta contra esse “pensamento da diferença” e suas consequências seria particularmente árdua. No entanto, a prática da sexualidade não é tão imutável como sugere essa
concepção. Dada a importância das mudanças em matéria de gênero e de sexualidade durante os últimos cinquenta anos, torna-se necessário que a reflexão antropológica de Françoise Héritier seja completada com uma leitura mais context ualizada dos comportamentos sexuais contemporâneos e das violências a eles associadas. Indiscutivelmente, abriram-se possibilidades para as mulheres, mas as resistências à igualdade envolveram também novas expressões entre os homens. A denúncia dos comportamentos sexistas baseia-se em práticas cada vez mais igualitá rias no que diz respeito à sexualidade. Relatemos as principais etapas da evolução dos comportamentos sexuais desde os anos 1960, deixando claro que elas se inscrevem em um conjunto de mudanças que afetaram a situação das mulheres, tais como o grande aumento de seu nível de instrução, o crescimento de sua participação no mercado de trabalho, as transformações da família e o estabelecimento de normas jurídicas de igualdade. Esses avanços ampliaram consideravelmente suas margens de manobra, sem recolocar em questão as principais relações de poder. Como consequência da difusão maciça de formas de contracepção eficaz (a partir da década de 1970 na
França), os poucos períodos de vida em que se pratica uma sexualidade destinada à reprodução e aqueles em que se pratica uma sexualidade não voltada para a reprodução foram a partir daquela época nitidamente separados. Aliás, os momentos em que as mulheres engravidam passam a ocupar apenas um lugar restrito em sua vida. A situação efetiva do período da juventude, que se alongou a partir dos anos 1980, mudou. Ele passou a ser amplamente vivenciado como uma fase de formação, graças à generalização da escolaridade secundária e do grande desenvolvimento do ensino superior. Tornou-se também, a partir de então, um momento da vida em que a sexualidade, vivenciada sem contrato material, é lícita para os dois sexos, tendo a idade da primeira relação das mulheres diminuído nitidamente a partir da década de 1960 (17,5 anos na França)2 e o horizonte do casamento se distanciado: o número de casamentos passou de 416 mil em 1972 para 235 mil em 2016 (7 mil destes entre pessoas do mesmo sexo) e, no caso das mulheres, eles passaram a se dar em média aos 35 anos de idade. 3 Foi uma grande mudança em comparação com os anos 1950 e o início da década de 1960: naquela época, as jovens eram obrigadas a se preservar para o casamento, enquanto os homens podiam desfrutar amplamente de sua juventude com mulheres mais velhas que eles ou com prostitutas. Houve também um prolongamento da vida sexual de pessoas com idade avançada: enquanto em 1970 somente 50% das mulheres casadas que tinham mais de 50 anos de idade tinham ativ idade sexual, na década de 2000 isso passou a ocorrer com 90% das mul heres casadas com a mesma idade. 4 Assim, a menopausa deixou de marcar o fim da vida sexual. PASSIVIDADE FEMININA DEIXOU DE SER NORMA
Por outro lado, um dos efeitos do declínio da instituição matrimonial a partir dos anos 1980 foi a diversifica-
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ção dos percursos de vida e, portanto, dos limites de exercício da sexualidade. A mudança é particu larmente clara no caso das mul heres. Enquanto em 1970 apenas um terço delas tinha tido mais de um parceiro na vida, em 2006 essa proporção chegou a dois terços, e a das que tiveram relações com mulheres aumentou. Após uma separação amorosa ou conjugal, experiência a partir de então frequente, o número das que encontram novos parceiros com os quais formam ou não casais, com os quais vivem ou não com jovens crianças é igua l ao número de homens na mesma situação. Nos anos 2000, a chegada das novas tecnologias de comunicação contribuiu para modificar o cenário de encontros afetivos e sexuais, que podem passar despercebidos; são inúmeras as jovens que as utilizam em proporções comparáveis com as dos homens (entre um terço e 40% dos 18 aos 25 anos de idade). 5 Sua atividade sexual não é mais limitada ao âmbito do casamento na idade de ter filhos. Em todos os ambientes, o espaço e o tempo da sexualidade se abriram para elas. Nas próprias relações sexuais, as práticas mais assimétricas recuaram e emergiu um novo cenário mais igualitário.6 Em 1970, a maioria das mulheres e dos homens declarou que eram estes últimos que tomavam a iniciativa das relações sexuais. Em suma, as relações aconteciam quando eles decidiam, sem que isso fosse considerado uma violência. Na segunda metade dos anos 2000, quatro quintos das mulheres e dos homens declararam que, em sua última relação, o desejo era tanto de um quanto do outro. A passividade feminina deixou de ser a norma. O desejo mútuo se tornou, a partir de então, um componente usual e esperado da relação sexual. As relações que não correspondem a esse modelo são consideradas insatisfatórias e até mesmo v iolentas. O repertório das práticas se ampliou, e o valor da reciprocidade entre os parceiros progrediu. As grandes pesquisas conduzidas na França nos últimos quarenta anos revelam a importância das carícias, da masturbação mútua e da sexualidade oral: nos anos 2000, 65% das mulheres de 25 a 49 anos declararam praticar a felação com frequência ou às vezes, e 70% dos homens a cunilíngua. A liás, tornou-se usual realizar a cunilíngua e a felação no mesmo ato. A atividade sexual tomou a forma também de relações sem penetração, prática frequente que constitui uma fonte de prazer plena.7 Há pouco tempo impensável, a masturbação solitária aumentou consideravelmente entre as mulheres. Da mesma maneira, 73% delas viram filmes pornográficos na vida, ou seja, a maioria, ainda que apenas 20% os te-
nham visto com regularidade. 8 A alta extraordinária, entre os anos 1970 e a década de 2000, da satisfação que elas expressam no que diz respeito à sua vida sexual e a proporção elevada das que declaram ter tido orgasmo na última relação (81% nos anos 2000) estão ligadas à sua atitude, a part ir de então, mais ativa durante a interação sexual. VIOLÊNCIA SERV E AOS OBJETIVOS DO PODER
Embora tenhamos visto nas últimas décadas uma abertura dos comportamentos e uma aproximação dos percursos e das práticas entre mulheres e homens, na verdade suas condutas sexuais não são avaliadas nem julgadas de acordo com os mesmos critérios. As pessoas entrevistadas nos anos 2000 se limitam a u ma percepção muito dicotômica de suas respectivas motivações. Assim, dois terços das mulheres e dos homens continuam a dizer que “os homens têm, por natureza, mais necessidades sexuais”. Além disso, a frase “Podemos ter relações sexuais com qualquer pessoa sem amá-la” é desaprovada (“não concordo”) por 54% das mulheres, mas por apenas 30% dos homens.
Dois terços das mulheres e dos homens continuam a dizer que “os homens têm, por natureza, mais necessidades sexuais” Assim, mantém-se uma percepção hierarquizada da interação sexual que já não corresponde mais à evolução das práticas. Haveria uma inadequação entre feminilidade e desejo sexual sustentado. A ideia dominante, aprovada por alguns psicólogos, é que as mulheres manifestam antes de mais nada um desejo reativo ou subalterno ativado pela demanda dos homens. Estes estariam sob a dependência de pulsões imperiosas. De acordo com essa percepção hierárquica da sexualidade, o desejo feminino continua a maior parte do tempo adormecido enquanto um homem não o acorda. Essa concepção é, de fato, uma palavra de ordem. Uma mulher que manifeste um desejo explícito não inscrito nas aspirações amorosas ou na heterossexualidade se vê severamente julgada e questionada por sua má conduta. As sanções relativas à reputação decorrentes do desejo em questão são temidas pelas mulheres de todos os meios. Enquanto o que está em jogo nos comportamentos sexistas denunciados é totalmente d iferente, alegam-se
sistematicamente os aspectos sexuais (presume-se que os “calhordas” não têm nenhuma discrição). V iolência sexual, assédio sexista e injúrias sexuais não decorrem de pulsões sexuais masculinas incontroláveis, mas são uma estratégia ou uma linguagem utilizadas para “recolocar as mulheres em seu devido lugar”, para censurá-las e tentar preservar, assim, a posição dos homens. De fato, as mulheres tornaram-se influentes, ou simplesmente mais presentes, nos novos espaços – no trabalho, na política, no espaço público, nas novas formas de comunicação e mesmo na família. Violência e assédio (inclusive o assédio cibernético) são ao mesmo tempo um ato de poder tradicional e uma estratégia sexista renovada, adaptada aos contatos cotidianos entre mulheres e homens nas sociedades contemporâneas. As violências denunciadas são uma reação ao progresso em direção a mais igualdade; essas violências são reacionárias. Servem para reafirmar hierarquias e posições. Em um ar tigo que apresenta alguns resultados da pesquisa Virage (acrônimo de Violence et rapports de genre) [Violência e relações de gênero], feita pelo Instituto Nacional de Estudos Demográficos (Ined),9 Amandine Lebugle e sua equipe distinguem cinco tipos de violência nos espaços públicos: as injúrias, a cantada inoportuna, a violência física, o assédio e os atentados sexuais, e a violência sexual. As jovens das grandes cidades são as mais atingidas, principalmente pelos tipos de violência com conotação sexual: cantada inoportuna, assédio e violência. Esses atos têm mais o objetivo de criar situações intimidadoras, e até mesmo humilhantes, para lembrar que o espaço público é lugar dos homens, do que “satisfazer necessidades sexuais”. São atos de poder unilateral. O mesmo ocorre com as injúrias, que compreendem geralmente qualificativos sexuais que desvalorizam as mulheres que frequentam o espaço público, contribuindo para distanciá-las desses espaços. No que se refere ao assédio sexista no trabalho, muito evidente nas revelações do outono de 2017, ele utiliza também a sexualidade para lembrar às mulheres sua ilegitimidade profissional ou sua subordinação aos homens. Trata-se de uma forma de discriminação no trabalho. O fato de o sexismo se expressar no campo da sexualidade não indica, portanto, que esta seria por natureza sexista, ou estaria na origem do sexismo, ou que as adolescentes e as jovens deveriam se distanciar da sexualidade, ou que nossa época teria se tornado sexualmente mais v iolenta. A indignação provocada pela revelação desses comportamentos de assédio, de agressão e de violência indica, ao contrário,
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uma revolta ligada ao progresso de cenários sexuais igualitá rios e a uma volta histórica da tendência antiga de “condenar as vítimas”. Defasada das práticas interpessoais mais igualitárias, a v iolência baseada na sexualidade ou em propostas sexuais não tem acima de tudo objetivos sexuais. Ela é praticada visando a um poder, a uma lembrança de que há fronteiras e privilégios de gênero, a uma depreciação daquelas que se afirmam. Impedir essa violência é uma tarefa política que nos diz respeito, que concerne a todos e todas nós. *Michel Bozon é
coordenador de pesquisas do Institut National d’Études Démographiques (Ined) e autor, fundamentalmente, de Pratique de l’amour. Le plaisir et l’inquiétude
[Prática do amor. O prazer e a inquietação], Payot, Paris, 2016. 1 Etnóloga e antropóloga, falecida em novembro de 2017, que publicou fundamentalmente Masculin/ Féminin. La pensée de la différence [Masculino/ feminino. O pensamento da diferença], Odile Jacob, Paris, 1996. 2 Pesquisa Baromètre Santé [Barômetro Saúde], Santé Publique France, Paris, 2010. 3 Ver coleção Insee Première, Bilan démographique 2016 [Balanço demográfico 2016], Institut National de la Statistique et des Études Économiques (Insee), Paris. 4 Salvo indicação particular, as cifras citadas são provenientes da pesquisa Contexte de la sexualité en France [Contexto da sexualidade na França], cujos resultados são apresentados na obra de Nathalie Bajos e Michel Bozon intitulada Enquête sur la sexualité en France. Pratiques, genre et santé
[Pesquisa sobre a sexualidade na França. Práticas, gênero e saúde], La Découverte, Paris, 2008. As que se referem a períodos mais antigos foram extraídas da obra de Pierre Simon e colaboradores, Rapport sur le comportement sexuel des Français [Relatório sobre o comportamento sexual dos franceses], René Julliard – Pierre Charron, Paris, 1972; assim como de Alfred Spira e Nathalie Bajos, L’Analyse des comportements sexuels en France (ACSF) [Análise dos comportamentos sexuais na França (ACSF)], La Documentation Française, Paris, 1993. 5 Marie Bergström, “Sites de rencontres: qui les utilise en France? Qui y trouve son conjoint?” [Sites de encontros: quem os utiliza na França? Quem encontra neles seu par?], Population et Sociétés, n.530, Institut National d’Études Démographiques (Ined), Paris, fev. 2016. 6 “Cinquante ans de sociologie de la sexualité. Évolution du regard et transformation des comportements depuis les années 1960” [Cinquenta anos de sociologia da sexualidade. Evolução do olhar e transformação dos comportamentos a partir dos anos 1960]. In: Paul Servais (org.), Regards sur la famille, le couple et la sexualité. Un demi-siècle de mutations [Olhar voltado para a família, o casal e a
sexualidade. Meio século de mutações], Academia/L’Harmattan, Louvain-la-Neuve/Paris, 2014. 7 Armelle Andro e Nathalie Bajos, “La sexualité sans pénétration. Une réalité oubliée du répertoire sexuel” [A sexualidade sem penetração. Uma realidade esquecida do repertório sexual]. In: Nathalie Bajos e Michel Bozon (org.), Enquête sur la sexualité en France, op. cit. 8 A propósito das inquietações adultas sobre a pornografia e a juventude, ver “Autonomie sexuelle des jeunes et panique morale des adultes. Le garçon sans frein et la fille responsable” [Autonomia sexual dos jovens e pânico moral dos adultos. O rapaz s em limites e a garota responsável], Agora Débats Jeunesse, n.60, Sciences Po Les Presses, Paris, 2012. 9 Amandine Lebugle e equipe da pesquisa Virage, “Les violences dans les espaces publics touchent surtout les jeunes femmes des grandes villes” [As violências nos espaços públicos atingem sobretudo as jovens das grandes cidades], Population et Sociétés, n.550, I ned, dez. 2017.
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O DESGASTE DO ESPÍRITO OLÍMPICO
Populações dos Alpes rejeitam os Jogos de Inverno Enquanto os XXIII Jogos Olímpicos de Inverno se iniciam em Pyeongchang, na Coreia do Sul, as populações dos Alpes não querem mais saber desses eventos, considerados artificiais, caros e destrutivos para o meio ambiente. O Comitê Olímpico Internacional se esforça para avaliar essa rejeição, expressa democraticamente, e para revisar seu modelo POR FRANÇOIS CARREL*
o Tirol austríaco, os eleitores rejeitaram por 53,5% dos votos, em 15 de outubro de 2017, o projeto de candidatura aos Jogos Olímpicos de Inverno de 2026. Em Innsbruck, sede dos Jogos em 1964 e 1976, a humilhação foi ainda maior: 64,4% de “não”. Em fevereiro, os cidadãos do cantão suíço dos Grisões ta mbém haviam rejeitado o projeto de Saint-Moritz e Davos para os mesmos Jogos de 2026, com 60% dos sufrágios. Essa desconfiança não é nova. Apresentada como um evento popular e universal, a Olimpíada é agora quase sistematicamente recusada pelas populações envolvidas quando sua opinião é consultada. Em 2013 e 2014, isso aconteceu com três projetos para os Jogos de Inverno de 2022 em Cracóvia (Polônia) e Bavária e Munique (Alemanha), como já acontecera nos Grisões. Pouco depois, a última candidatura europeia para 2022, a de Oslo, foi retirada após pesquisas desfavoráveis. Devemos esses resultados a vigorosos movimentos de oposição – como a organização Nolympia, da Bavária –, fre- ria, casa da cultura, alojamentos soquentemente liderados por ecologis- ciais na Vila Olímpica etc. São constas, mas que se estendem muito além, truções ainda utilizadas, ao contrário até o quadro político, gira ndo sobretu- da maior parte das instalações espordo em torno dos receios de desmandos tivas, que se tornaram mais ou menos orçamentários. obsoletas com o tempo: pista de bobsOs últimos Jogos alpinos foram os led, trampolim para saltos com esquis, de Turim, em 2006. Depois, ocorreram pista de velocidade ou ringue de patiem 2010 em Vancouver (Montanhas nação. A prefeitura decidiu celebrar o Rochosas canadenses) e em 2014 em jubileu a fim de permitir que “todos os Sochi (Cáucaso ru sso). Os deste inver- habitantes de Grenoble retomem a no começam no dia 9 de fevereiro em posse de uma parte de seu patrimônio Pyeongchang (Montes Taebaek, Co- cultural, urbanístico e socia l”. No préreia do Sul); os próximos, em 2022, dio da prefeitura, em forma de um moperto de Pequim – bem longe dos paí- derno castelo, também construído em ses alpinos, que sediaram os primei- 1968, Pierre Mériaux, encarregado do ros, em 1924, em Chamonix e se mos- turismo e da montanha, explica que traram zelosos organizadores de mais esse patrimônio não é fácil de gerir: “A onze edições de 22. grande dificuldade é o Palácio dos Esportes, a que só conseguimos dar vida com muito esforço, promovendo evenDESVIOS E GIGANTISMO Grenoble, na França, festeja este tos diferentes daqueles para os quais ano o 50º aniversário dos Jogos de ele foi concebido”. Grenoble poderia acolher de novo 1968, que permitiram à cidade receber ajuda maciça do Estado para a cons- os Jogos? O ecologista eleito sorri: “Isso trução de obras públicas: estradas de não é desejável nem possível. O Comirodagem, aeroporto, estação ferroviá- tê Olímpico Internacional (COI) não
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o d n o K l e i n a D ©
brilha nem por sua transparência financeira nem por seu funcionamento democrático ou suas preocupações ecológicas...”. A administração anterior esteve de olho nos Jogos de 2018, mas se viu às voltas com os imperativos olímpicos da era do gigantismo: “Uma cidade como Grenoble [450 mil habitantes] já era muito pequena para as exigências insanas do COI em termos de infraestrutura ou quantidade de alojamentos”, testemunha, apoiado no anonimato, um nome de destaque dessa candidatura. “Isso agora só pode ser um projeto de território apresentado por uma vontade estatal forte ou uma capital urbana muito grande.” Com efeito, o porte dos Jogos de Inverno aumenta sem parar: em 1968, em Grenoble, 1.158 atletas se inscreveram para 35 provas; em Pyeongchang, serão mais de 3 mi l para 102 provas. Codiretor da associação Mountain Wilderness, Vincent Neirinck denuncia esses Jogos desconectados da montanha natu ral: “Eles dão aos gestores a oportunidade de administrar vastos
recursos. Isso gera instalações que se tornam rapidamente obsoletas, conforme Turim já demonstrou em 2006, levando ao paroxismo a lógica v igente nas estações: excesso e artificialismo. As pistas são a rtificiais, homogêneas, as mesmas em toda parte, para todos os esquiadores”. Essa aberração culminou nos Jogos de Sochi,1 os mais caros da história, onde verão e i nverno se confundiram: 36 bilhões de euros, dos quais 4,6 milhões apenas para a organização.2 O resto foi para a infraestrutura de transporte e de esportes de inverno de rentabilidade hipotética, com forte impacto ecológico. Tudo isso sob um pano de fundo de corrupção e dopagem dos atletas ru ssos... “Nosso sonho? Os Alpes sem Olimpíadas, mostrando suas especificidades naturais, culturais, históricas, e não um volume exponencial de instalações padronizadas!”, conclui Neirinck. Albertvi lle guarda a entrada do Vale da Tarentaise, na região da Saboia, França, e sua imensa rede de espaços de esqui, o maior Lunapark europeu desse tipo, com 350 mil leitos turísticos para 53,5 mil habitantes permanentes. No final de 2017, os anéis olímpicos ainda cintilavam por toda parte na cidadezinha que acabava de comemorar o 25º aniversário da Olimpíada de 1992. Na Casa dos Jogos, a diretora, Claire Grangé, que foi membro do Comitê de Organização (Cojo), vela por sua memória: “Nosso sucesso se deveu a três ideias, então inovadoras e depois generalizadas: instalações provisórias e reutilização dos locais existentes para evitar seu abandono, valorização dos atletas e desenvolvimento do território, que permitiu associar a população aos Jogos”. O ringue de patinação de Pralognan, os trampolins de Courchevel e a pista de bobsled de La Plagne continuam em uso, mas são deficitários (o departa mento destina 110 mil euros anuais pa ra a pista de bobsled e 150 mil para os trampolins): “Desde o início, resolvemos pôr essas instalações em funcionamento, pois esse era o preço a pagar pela Olimpíada”, insiste Grangé.
Em se tratando de infraestrutura turística, isso teria permitido, a seu ver, “ganhar quinze anos” e reforçar a notoriedade internacional da Saboia. “Aconteceu há trinta anos”, prossegue ela. “Os Alpes ainda hoje precisam dos Jogos? Não é mero acaso que os países emergentes estejam organizando-os agora...” Nesses países, sobretudo na Ásia, a indústria dos esportes de inverno alimenta a esperança de um novo crescimento, enquanto a saturação ganha os mercados alpinos, marcados pela estagnação ou pelo recuo do número de pacotes de esqui vendidos durante a última década.3 “FLEXIBILIZAR O PRODUTO OLIMPÍADA”
Na cidade suíça de Lausanne, a sede do COI se ergue às margens do L ago Léman, de águas cinzentas e agitadas em meados de dezembro, enquanto os Alpes, bem próximos, permanecem ocultos na névoa. A paisagem reflete a organização olímpica, sacudida pelas investigações de corrupção nas quais estão implicados alguns de seus membros a propósito dos Jogos do Rio 2016 e de Tóquio 2020, pelo dossiê dos atletas russos dopados e pela derrota das candidaturas europeias. Essa derrota diz respeito apenas aos Jogos de Inverno: Hamburgo e Budapeste renunciaram aos Jogos de Verão de 2024, aos quais a população se opôs. Em setembro, na sessão do COI em Lima, dominada pela dupla atribuição dos Jogos de 2024 e 2028 a Paris e Los Angeles – candidatas únicas –, a instituição se gabou: “Graças à Agenda 2020, o Movimento Olímpico não descansa sobre seus louros, mas continua a lutar para permanecer um ator de mudanças positivo”, concluiu seu presidente, Thomas Bach. Entre as quarenta recomendações da Agenda 2020, figuram uma “nova filosofia” dos procedimentos de candidatura: a “redução de custos” – sobretudo graças a uma “importante contribuição financeira do COI”
– e a “consolidação e adaptação dos princípios de bom governo e ética” do comitê. Princípios regularmente violados, a despeito das promessas. 4 O COI adotou, em outubro último, uma variação expressa na Agenda 2020 para os Jogos de Inverno de 2026. 5 O suíço Christophe Dubi, diretor do COI encarregado dos Jogos, resume: “Era necessário flexibilizar o produto Olimpíada para que sua acolhida fosse simplificada e possível em toda parte. Trabalhamos no processo de atribuição e na lista de encargos. Trata-se de uma mudança profunda: já não temos um modelo único de Jogos. Há regiões com necessidades prementes de infraestrutura, e outras, como os Alpes, que já dispõem dela e sabem acolher grandes eventos com custo menor”. Ele insiste: “Queremos que a cidade utilize os Jogos e, mais ainda, que os Jogos utilizem a cidade. Não desejamos mais que uma infraestrutura de esportes seja desenvolvida se não tiver uma herança esportiva comprovada”. Dubi especifica os esforços de “coconstrução” empreendidos com as cidades candidatas para reduzir o porte e o custo dos eventos: limitação do público, do número de técnicos de televisão, do tamanho dos comitês de organização etc. Os Jogos de Pyeongchang ficarão bem longe desse “novo modelo”. Segundo o COI, o orçamento operacional, inicialmente de 1,5 bilhão de euros, ultrapassará os 2 bilhões. É uma prova daquilo que o economista Wladimir Andreff chama de “anátema do vencedor do leilão” olímpico, que vê o orçamento escapar ao controle de maneira sistemática.6 Pyeongchang aplicou 8 bilhões de euros em infraestrutura, sobretudo ferroviária. Esses Jogos de Inverno são anunciados como os mais caros depois dos de Sochi... “Não é o que queremos para o futuro”, reconhece Dubi. “O COI não foi ouvido pelos sul-coreanos, que pretendiam construir novos estádios e novas
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infraestruturas de gelo...” Ele garante que os Jogos de Pequim, em 2022, serão menos dispendiosos. Vão se conformar aos 3 bilhões de euros (dos quais 1,5 bilhão para a operação) anunciados? Seja como for, essa Olimpíada com sede em uma cidade que já organizou os Jogos de Verão revela o abismo enorme entre Jogos de Inverno e montanha. Parte das provas ocorrerá no próprio seio da megalópole chinesa. Para as de esqui, previstas em colinas baixas e com pouca neve, as autoridades vão criar pistas, algumas em sítios naturais vulneráveis. Estas ficarão totalmente dependentes da neve artificial, voraz consumidora de água e energia. Sion, graciosa cidadezinha do Valais suíço situada no fundo de um vale, entre as estações de Verbier e Crans Montana, é a última localidade alpina que disputa os Jogos de 2026. Seu projeto engloba lugares já existentes em vários cantões. Essa candidatura, de que o Comitê Olímpico nacional suíço tomou as rédeas, está avaliada em 1,7 bilhão de euros de orçamento operacional, mais 85 milhões de euros apenas em construção de infraestrutura e 225 milhões para a segurança. Serão os Jogos menos caros depois dos de Salt Lake City, em 2002? Frédéric Favre, consultor de Estado do Valais encarregado da segurança, das instituições e do esporte, afirma: “O COI procura um candidato confiável para pôr em prática sua Agenda 2020? A Suíça está em posição melhor de fazer isso. Queremos os Jogos do futuro. Não se construirá quase nenhuma infraestrutura e nenhum alojamento específico”. Nas ruas de Sion, reina o ceticismo. “Jogos, sim, mas de acordo com nossas condições, sem prejudicar o vale e com dirigentes motivados não apenas por glória e dinheiro”, adverte Dyonis Fumeaux, vereador da câmara municipal de Sion. O presidente (prefeito) de Sion, Philippe Varone, não esquece a prudência: “Queremos Jogos que acelerem nossos projetos já existentes. O COI nos
segue e nos diz: ‘Reagrupem, simplifiquem, economizem’. Caso se afastem dessa linha, desistiremos”. O Conselho Federal suíço se dispõe a entregar 850 milhões de euros a Sion para os Jogos de 2026; o COI, 770 milhões. O Parlamento tem lá suas dúvidas. Christophe Clivaz, parlamentar ecologista de Sion e professor do Instituto de Geografia e Sustentabilidade da Universidade de Lausanne,7 não acredita nessa candidatura: “É um mau sinal, num mau momento. É insistir no esqui e no inverno quando cumpre diversificar”. O forte recuo da prática do esqui nos Alpes e o desafio do aquecimento climático, agudo nessas regiões, deveria induzir a repensar a abordagem da montanha e a “mudar de modelo”, insiste. Ora, os Jogos de Inverno se inscrevem no modelo antigo, o modelo do ouro branco, caro e em locais já fortemente congestionados. “A perda de confiança no COI é enorme. O sonho olímpico não existe mais; é, em vez di sso, um pesadelo em potencial.” Os habitantes do Valais decidirão nas urnas, em junho. *François Carrel é jornalista. 1 Ver Guillaume Pitron, “Sochi, um elefante branco no Mar Negro?”, Le Monde Diplomatique Brasil , fev. 2014. 2 Números oficiais do governo e do comitê organizador russo em 2014. 3 Fonte: Domaines Skiables de France. 4 Yann Bouchez, “CIO: après le chantier de l’attribution des Jeux, celui de la corruption reste entier” [COI: após o escândalo da atribuição dos Jogos, o da corrupção continua intacto], Le Monde, 15 set. 2017. 5 “Le CIO adopte une nouvelle approche pour le processus de candidature aux Jeux Olympiques d’Hiver de 2026” [O COI adota uma nova abordagem para o processo de candidatura aos Jogos Olímpicos de Inverno de 2026], COI, 17 out. 2017. 6 Wladimir Andreff, “Pourquoi le coût des Jeux Olympiques est-il toujours sous-estimé? La ‘malédiction du vainqueur de l’enchère’ (winner’s curse)” [Por que os custos dos Jogos Olímpicos são sempre subestimados? O ‘anátema do vencedor do leilão’ (maldição do vencedor)], Papeles de Europa, Madri, 2012. 7 Autor, com Camille Gonseth e Cecilia Matasci, de Tourisme d’hiver. Le défi climatique [Turismo de inverno. O desafio climático], Presses Polytechniques et Universitaires Romandes, L ausanne, 2015.
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MISCELÂNEA
livros
internet NOVAS NARRATIVAS DA WEB
Sites e projetos que merecem o seu tempo
ENSAIOS SOBRE BRECHT
AUSTERIDADE: A HISTÓRIA DE UMA IDEIA PERIGOSA
Walter Benjamin, Boitempo
Mark Blyth, Autonomia Literária
C
onta-se que quando Bertolt Brecht e Walter Benjamin se conheceram, em 1929, por intermédio da teatróloga letã Asja Lacis, ambos sabiam que aquele era o encontro entre o maior poeta e o maior crítico da Alemanha. Nos anos seguintes, que os confrontariam com a ascensão do nazismo e o exílio, desenvolveu-se uma relação de amizade e colaboração intelectual que, da parte de Benjamin, resultou num conjunto ímpar de ensaios sobre os diversos aspectos da produção brechtiana: a prosa, a poesia, a escrita dramatúrgica, a direção cênica. Os Ensaios sobre Brecht , reunidos pela primeira vez em 1966 e publicados agora pela Boitempo em tradução competente de Claudia Abeling, fornecem ao leitor brasileiro a ocasião para percorrer esse amplo e diversificado território. O volume traz textos mais conhecidos, como “O que é o teatro épico?” e “O autor como produtor”, nos quais Benjamin avalia no calor da hora as inovações introduzidas por Brecht no aparelho teatral com o intuito de atender de modo consistente às exigências técnicas e políticas de uma produção artística verdadeiramente revolucionária. De quebra, ele ainda situa Brecht no panorama contemporâneo e desmonta oposições obsoletas como tendência política e qualidade artística. O leitor também encontrará escritos menos comentados, como uma instigante abordagem de um Brecht romancista, na resenha do Romance dos três vinténs, e um extenso comentário a duas décadas de produção lírica de Brecht, escrito nas vésperas da catástrofe da Segunda Guerra Mundial. Fechando o ciclo, as “Conversas com Brecht”, anotações de diário feitas por Benjamin durante estadias na casa de Brecht na Dinamarca, evidenciam que nem tudo era consenso entre os dois amigos. O debate em torno do ensaio de Benjamin sobre Kafka traz à tona pontos de discórdia a respeito da literatura contemporânea que, de viés, iluminam tanto a obra de Brecht quanto a posição de Benjamin perante o trabalho do amigo. Ao reconhecer a importância de gestos e parábolas de difícil tradução em ensinamentos práticos, não estaria Benjamin também apontando dificuldades nas posições mais manifestas do teatro épico? Essa é uma das muitas questões aguardando o leitor desses ensaios de Benjamin. [Luciano Gatti] Professor do Departamento de Filosofia da Unifesp. Publicou Constelações: crítica e verdade em Benjamin e Adorno (Loyola, 2009) e A peça de aprendizagem: Heiner Müller e o modelo brechtiano (Edusp/Fapesp, 2015).
O
instigante livro não é dirigido apenas a economistas, ainda que, diante da corrente de pensamento que se tornou dominante entre estes, sua leitura possa servir como uma verdadeira lufada de ar fresco no ambiente intelectualmente sufocante da disciplina, ou mesmo como um empurrão de bom senso diante do precipício de suas velhas e carcomidas visões ideológicas. Como se verá, a fluida, didática e divertida (mas não por isso menos rigorosa) cruzada do autor contra argumentações anticientíficas acaba nos municiando a todos, leigos ou estudiosos, de instrumentos para realizarmos por nossa conta o “ teste do olfato” diante da retórica apodrecida da austeridade nos mais diversos ambientes de produção e circulação de ideias. Seu mérito é, por isso, notável. Ao fim de sua robusta “arqueologia”, além de entendermos por que as finanças do Estado são algo bastante diferente das finanças familiares e empresariais, saímos aptos a detectar e desmontar as inúmeras premissas irreais e conclusões empiricamente falsas que sustentam o débil discurso mainstream em defesa da política da austeridade onde quer que ele apareça: universidades, meios de comunicação, movimentos sociais, partidos políticos e instituições de governo. Cumpre notar, seguindo a vastidão de dados apresentados nesse livro, que a austeridade, mesmo ignorando deliberadamente as incontornáveis necessidades da vida social e política, é contraproducente inclusive em alcançar o objetivo restrito a que supostamente se coloca: o de sanar as finanças públicas. Enganam-se, portanto, os que pensam ser esse um problema restrito a técnicos e especialistas. Fosse apenas um atentado à inteligência, essa “ideia-zumbi” – morta diante dos fatos, mas feita viva pelos perniciosos interesses políticos que a patrocinam – já seria, em si, problemática. O que a torna perigosa, no entanto, conforme o livro demonstra, são os estragos produzidos nas economias e, junto destes, a erosão da coesão social, os danos traumáticos e os sofrimentos a que têm se submetido as maiorias sociais em todo o mundo, inclusive no Brasil. Por onde passa, a política da austeridade deixa um enorme rastro de destruição. Mark Blyth, como poucos, persegue esse rastro para nos demonstrar, em suas origens e causas, por que a austeridade é em primeiro lugar e acima de tudo um problema político de distribuição, e não um problema econômico de contabilidade social. [Edemilson Paraná] Sociólogo.
A forma de apresentar grandes histórias tem se modificado nos últimos anos, especialmente no ambiente digital, incluindo aí a web. Abaixo, uma seleção de grandes reportagens para conhecer on-line. PORTO DE SUAPE
A ONG Repórter Brasil tem buscado narrativas diferentes para contar histórias que impactam o meio ambiente e a sociedade. Utilizaram agora um modelo em 3D do Porto de Suape, complexo industrial de Pernambuco. Moradores de comunidades tradicionais do local denunciam o governo por violações de direitos humanos, como ameaças e expulsões, com acusações que agora chegaram à ONU. MAPA DO ÓDIO
O Southern Poverty Law Center, dos Estados Unidos, mapeou 917 grupos de ódio que operam em território norte-americano atualmente. Anti-imigrantes, racistas, nacionalistas, Ku Klux Klan (KKK), anti-LGBT, católicos radicais, antimuçulmanos, distribuidoras de músicas racistas, entre outros, estão localizados e explicados. Um gráfico mostra que, desde o início do registro, em 1999, o número de extremistas nas ruas tem aumentado, especialmente após a última campanha presidencial, que flertou com essas ideias. Em 2016 existiam 160 grupos oficiais da KKK espalhados nos Estados Unidos, por exemplo. MUSEU DA INOCÊNCIA
Um par de brincos, um copo, um batom e um velocípede são objetos que compõem um museu organizado como lembrança de um caso de amor vivido por um homem trinta anos antes, em Istambul, Turquia. Essa história, romance de Orhan Pamuk, vencedor do Nobel de Literatura, foi concebida ao mesmo tempo como livro e como museu – vencedor do prêmio Museu Europeu do ano em 2014, inclusive. Numa narrativa que mescla a realidade física com a história do livro, várias camadas de informação se completam. O livro foi publicado em 2008, e o museu foi inaugurado em 2012, em Istambul. [Andre Deak] Diretor do Liquid Media Lab,
professor de Jornalismo na ESPM, mestre em Teoria da Comunicação pela ECA-USP e doutorando em Design na FAU-USP.
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CANAL DIRETO
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SUMÁRIO LE MONDE
BRASIL
diplomatique
Our Revolution
Excelente teoria para o Brasil?
Ano 11 – Número 127 – Fevereiro 2018 www.diplomatique.org.br
Pedro Marcos de Andrade
DIRETORIA Diretor da edição brasileira e editor-chefe
A guarda pan-arábica de Al-Assad
Assad ganhando a guerra contra o terrorismo. João Castro Castro
UNIDOS 2 ESTADOS Os “inocentes úteis” do Pentágono Por Serge Halimi
O que fazer do “brasil”?
Somente sei de uma coisa: vai piorar; o tecido social não conseguirá ser reconstruído, as oligarquias medrosas de avanços sociais terão mais renda concentrada em suas mãos, os salários e o tempo de trabalho vão piorar e a violência vai recrudescer. A saída? O aeroporto. E estou sendo otimista.
3 EDITORIAL E agora? Por Silvio Caccia Bava
4 CAPA Sobre o caráter da burguesia brasileira Por Luiz Filgueiras, Graça Druck e Uallace Moreira A Unilab e o desmonte da educação Por Jacqueline Costa e Vico Melo O dramático panorama do financiamento do ensino Por José Marcelino de Rezende Pinto
Eduardo Klein Fichtner
As três batalhas de Raduan Nassar
Muito bom ter acesso pelo Le Monde Diplomatique a uma narrativa diversa da mídia majoritária. Pontos de vista diversos propiciam a reflexão. A unanimidade na divulgação de informações apenas propicia a formação de maniqueístas. Cristiana Alvez
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Abgail Serva
México: a imprensa a serviço de uma tira nia invisível
Fiquei na dúvida se ainda chega a ser pior que no Brasil. Sergio Luiz Bezerra
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Rogerio Lima Barbosa
Felipe Cardoso
Vi um caso desses: corte unilateral do benefício, mesmo antes da perícia que analisaria sua continuidade. Se continuar assim, o INSS vai acabar pagando indenização por danos morais e patrimoniais.
Julio Gnap
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Assinaturas
Carolina M. de Paula, Frank de Oliveira, Lívia Chede Almendary, Rita Grillo e Wanda Brant ConselhoEditorial
Adauto Novaes, Amâ ncio Friaça, A nna Luiza Sa lles Souto, Ariovaldo Ramos, Betty Mindlin, Claudius Ceccon, Eduardo Fagnani, Heródoto Barbeiro, Igor Fuser, Ivan Giannini, Jacques Pena, Jorge Eduardo S. Durão, Jorge Romano, José Luis Goldfarb, Ladislau Dowbor, Maria Elizabeth Gri mberg, Nabil Bonduki, Raquel Rolnik, Ricardo Musse, Rubens Naves, Sebastião Salgado, Tania Bacelar de Araújo e Vera da Silva Telles. Assessoria Jurídica
Rubens Naves, Santos Jr. Advogados Escritório Comercial Brasília
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RESISTÊNCIA, ABERTURA E PODER O Irã se reinventa como potência local Por Bernard Hourcade
URGÊNCIA DE REFUN DAR O MULTILATER ALISMO 21 ABombeiros piromaníacos da ordem internacional Por Anne-Cécile Robert
PROTAGONISTA A “FÓSSIL DO DIA” 24 DE O Acordo de Paris e o Brasil Por Carlos Rittl
DE MÃO DE OBRA BAR ATA 26 ÀO PROCURA sacro império econômico alemão Por Pierre Rimbert
IDENTITÁ RIA NA FR ANÇA 28 ANSIEDADE Integração, a grande obsessão Por Benoît Bréville
HUMANIZADO 30 ANASCIMENTO violência obstétrica como rotina Por Luciana Motoki
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Maria Angelina Marzochi
Não se vê o mesmo empenho em cobrar das empresas em débito com o INSS.
Editor-web
Governar sob bombas... midiáticas Por Rafael Correa
DO ENGAJAMENTO POLÍTICO 16 RENOVAÇÃO Juventude palestina não se vê como vencida
Ricardo Carneiro
Desejo a morte para esse governo, lenta e dolorida.
Luís Brasilino
Arlete Martins
Por Maxime Robin, enviado especial
Corte de benefícios do INSS: o lucro com a miséria
Minha amiga está nessa situação, está sem condições de trabalhar devido a um acidente de trabalho, e o perito a mandou voltar a trabalhar.
Editor
OS DESAFIOS ESTRATÉGICOS DA ESQUERDA LATINO-AMERICANA
MIL MORTES NOS ESTADOS UNIDOS 14 200 Overdoses de opiáceos com receita médica
Vamos repensar os caminhos da esquerda?
São posicionamentos como esse que nos enchem de orgulho. Enquanto muitos outros países, inclusive europeus, sucumbiram, o Brasil mostra que há alternativas. Mas estas nunca virão de mão beijada!
Diretores
Anna Luiza Salles Souto, Maria Elizabeth Grimberg e Rubens Naves
Tradutores desta edição
O preço do inestimável
Mundinho fútil! Impossível observar tanta discrepância social e de prioridades existenciais e não ficar descrente de tudo isto aqui...
Silvio Caccia Bava
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LUTA CONTRA A VIOLÊNCIA E DIREITO À CIDADE Por um 2018 mais seguro para as mulheres Por Ana Paula Ferreira, Ingrid Farias e Jéssica Barbosa
DISCURSO PÚBLICO VS. VIDA PRIVADA O que a conduta de Harvey Weinstein nos diz sobre a esquerda Por Thomas Frank
34 GÊNERO Mudanças na sexualidade, permanência do sexismo Por Michel Bozon
DESGASTE DO ESPÍRITO OLÍMPICO 36 O Populações dos Alpes rejeitam os Jogos de Inverno Por François Carrel
38 MISCELÂNEA
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