ANO 11 / NÚMERO 128
MEDICALIZAÇÃO DA VIDA
A EXPLOSÃO DOS REMÉDIOS TARJA PRETA POR GÉRARD POMMIER
R$ 14,90
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UM EXÉRCITO SINGULAR
CUBA, O PAÍS DO VERDE-OLIVA POR RENAUD LAMBERT
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THE POST
QUEM ESCOLHE OS HERÓIS? POR PIERRE RIMBERT
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LE MONDE
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BRASIL
diplomatique diplomatique TRIBUNAIS DE EXCEÇÃO
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NUNCA SE VAI DEPRESSA O BASTANTE
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A ofensiva geral POR SERGE HALIMI*
m ex-ministro da Economia socialista que, mais ta rde, fundou um partido liberal à sua imagem e semelhança explicou certa vez a ar te e o modo de criar uma sociedade de mercado: “Não tentem avançar passo a passo. Definam claramente seus objetivos e se aproximem deles em saltos qualitativos, para que os interesses de classe não tenham tempo de se mobilizar mobilizar e atrapal har vocês. A rapidez é essencial e nunca se vai depressa o bastante. Iniciado o programa de reformas, não parem até vê-lo concluído: o fogo do ini migo perde em precisão quando tem de atingir um adversário sempre em movimento”. Emmanuel Macron? Não, Roger Douglas, ministro das Finanças da Nova Zelândia entre 1984 e 1988, um ano após deixar o cargo. Ele dava então as receitas da contrarrevolução que seu país acabava de v iver.1 Cerca de trinta anos depois, o presidente francês manipula todos os ve-
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lhos cordões dessa “doutrina de choque”. que”. Empresa Nacional das Ferrovias Francesas (SNCF, na sigla em fra ncês), serviço público, hospital, escola, direito trabalhista, fiscalização do capital, imigração, TV pública: para onde olhar e como resistir quando, sob o pretexto de uma catástrofe que se aproxima, uma dívida prestes a explodir e a “vergonha da República”, a engrenagem das “reformas” gira a todo vapor? As ferrovias ? Um relatório confiado a um compadre retomou o inventário das preces liberais até então não atendidas (fim do est atuto dos ferroviários, transformação da empresa em sociedade anônima, fechamento das linhas deficitárias). Cinco dias após sua publicação, uma “negociação” teve início para disfarçar a medida ditatorial que se queria impingir aos sindicatos. É necessário se aproveitar sem demora do clima de desmobilização política, de divisão sindical, de exasperação dos usuários diante
dos atrasos, acidentes, péssimo estado de conservação das li nhas, preço exorbitante das passagens..., pois o ministro dos Transportes quer “rapidez na ação”. Quando surge a oportunidade, “nunca se vai depressa o bastante”, bastante”, como insistia Douglas. O governo francês conta igualmente com as notícias falsa s das grandes mídias para disseminar “elementos de linguagem” favoráveis a seus projetos. A ideia – aceita imediatamente depois de divulgada – de que “a SNCF custa mil euros a cada francês, mesmo àqueles que não tomam trem”, lembra o famoso “cada francês pagará 735 euros para liquidar a dívida grega” que, em 2015, contribuiu para o sufocamento financeiro de Atenas pela União Europeia. Às vezes, a verdade verdade vem à tona, mas mas tarde demais. Inúmeras “reformas” da previdência foram justificadas pelo aumento geral da expectativa de vida. No entanto, um estudo oficial acaba de
concluir que, “para as gerações de 1951 e seguintes”, isto é, 80% da população francesa, “o tempo de vida como aposentado deverá cair um pouco em comparação com o da geração de 1950”. 2 Ou seja, um progresso histórico acaba de se inverter. Esse t ipo de informação não feriu nossos tímpanos. E Macron não nos avisou que era “urgente agir” nessa frente... *Serge Halimi é diretor do
Le Monde
Diplomatique .
1 Ver Le grand bond en arrière. Comment l’ordre libéral s’est imposé au monde [O grande salto para trás. Como a ordem liberal se impôs ao mundo], Agone, Marselha, 2012 (1. ed.: 2004). 2 “L’âge âge moyen de départ à la retraite a augmenté de 1 an et 4 mois depuis 2010” [A idade média de aposentadoria aumentou em 1 ano e 4 meses a partir de 2010], Études et Résultats, Résultats, n.1052, Direction de la Recherche, des Études, de l’Évaluation et des Statistiques (Drees), Ministério da Saúde, Paris, fev. 2018.
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EDITORIAL
De mal a pior POR SILVIO CACCIA BAVA BAVA
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hega a ser desesperador. O Executivo, o Legislativo e o Judiciário se alinharam com a oligarquia financeira e estão destruindo o Brasil e nossa democracia. No plano econômico estão destruindo trui ndo os instrumentos para uma política econômica soberana e, em suas próprias palavras, essa verdadeira quadrilha, sem plano a lgum de governo, declara: “Vamos privatizar tudo que é público e seja privatizável”. Esquartejaram a Petrobras, entregaram o pré-sal para as multinacionais a preço de banana, apequenaram o BNDES, querem privatizar a Caixa, o Banco do Brasil, a Eletrobras... Como se isso não bastasse, continuam distribuindo isenções tributárias para quem não precisa, como no caso das multinacionais estrangeiras que compraram o pré-sal (isenções estimadas em R$ 40 bilhões/ano, apenas neste caso). No plano social, a “PEC do fim do mundo”, aquela que congela os gastos sociais por vinte anos, o fim da CLT, o aumento do desemprego, o ataque à Previdência, os cortes em saúde e educação, o estrangulamento das finanças dos municípios e estados, tudo leva ao colapso do sistema público (policiais e professores sem receber salários, por exemplo) e a uma crescente precarização das condições de vida em geral. É bom que se diga com todas as letras que essas ações foram decisões políticas, não são inevitáveis nem decorrentes de uma crise herdada. A crise foi fabricada para que pudessem fazer o que estão fazendo, transferindo para empresas privadas o patrimônio público e a exploração de serviços e equipamentos de interesse comum, rebaixando as
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condições de vida e trabalho. O aumento nos preços dos serviços públicos, numa lógica de mercado, faz crescer a espoliação das maiorias. No plano político, o governo golpista endurece e elege, com oportunismo eleitoral, o combate à v iolência como prioridade. Sua resposta para a insatisfação social, para as manifestações coletivas e para a violência gerada pelo desamparo é mobilizar o Exército e cercar as favelas, isto é, cercar os pobres e impor aí um estado de sítio. Na questão social, nem se fala – ignoram por completo as causas da v iolência. Os mandatos coletivos de busca e apreensão, a licença para matar ao transferir para a justiça militar o julgamento dos “excessos” praticados pelo Exército nas favelas ocupadas, o controle militar do espaço público nas cidades, tudo isso mostra uma guinada mais do que brutal desse governo. As palavras de ordem para tratar as questões sociais são controle e repressão. Os direitos de cidadania hoje só são defendidos pelos movimentos sociais, representações coletivas dos mais pobres e dos trabalhadores, e por algumas entidades de profissionais de classe média. A Fiesp, a CNI e as representações patronais, de maneira geral, dão suporte ao golpe e a este começo de uma nova ditadura. A TV, liderada pela Globo, cria o medo e a insegurança na população para que ela se submeta ao arbítrio e aceite a violência institucional, os assassinatos da polícia, como única maneira de manter a ordem. Os brasileiros estão sendo atacados por um governo e uma classe patronal que não medem a violência e a exclusão que suas políticas públicas
provocam nas maiorias. Na verdade, não se importa m com isso. Porém, em ano eleitoral, essa é uma receita para perder as eleições. Mesmo os partidos de direita buscam se afastar desse governo, rejeitado por mais de 70% da população. Mas nem no grupo do governo nem nos part idos de direita surge um candidato com possibilidades de vencer as eleições. Bolsonaro é o único com apoio popular, em segundo lugar nas preferências eleitorais, mas com tamanha fragilidade em sua candidatura e projeto de governo que não deve aguentar os primeiros debates eleitorais. Ora, se as pesquisas dão 37% de votos para Lula e dizem que, mesmo que ele seja impedido de se candidata r, seu poder de transferência de votos levará para o segundo turno o candidato do PT, o cenário se complica para os golpistas. Se houver eleições, eles podem perder. E isso é inadmissível para os governantes, até porque, caso se restabeleça a democracia, quando deixarem o cargo estarão seriamente ameaçados de ir para a cadeia. Isso va le para a maioria dos integrantes tanto do Executivo quanto do Legislativo. O ensaio de ocupação militar das áreas urbanas pobres, que após a fase das UPPs recrudesce agora no Rio de Janeiro, pode se estender para outras cidades com os mesmos problemas. Os militares adquiriram experiência no Haiti sobre o controle de áreas urbanas. Há indícios ainda de que no interior das Forças Armadas há uma disputa e uma a la que defende defende a intervenção militar em razão da falência das instituições.
Esse cenário nos leva a questionar se teremos mesmo eleições este ano. É necessário abrir a discussão sobre essa possibilidade para debatermos os caminhos da resistência política democrática, agora e também no caso de não termos eleições. A conjuntura nos mostra uma disputa de visões e valores na sociedade civil como nunca houve antes. A direita se organizou com apoio internacional e hoje, segundo empresários brasileiros, já conta com mais de cem entidades e think tanks no no Brasil que cotidianamente propagandeiam sua visão, seus valores e suas políticas em espaços mais especializados de discussão e para a população de maneira geral. Quando Lula foi condenado, os discursos em protesto à decisão falavam de organizar a resistência, com comitês populares em defesa da democracia nos lugares de trabalho e moradia. Essa discussão precisa ser levada a sério, e precisamos olhar com atenção o movimento organizado nos Estados Unidos pelos defensores da candidatura de Bernie Sa nders. O Our Revolution (https://ourrevolution.com) foi criado para manter mobilizados os jovens que aderiram à sua plataforma política, que previa, entre outras coisas, dobrar o salário mínimo. Eles fundaram um movimento político, mas não partidário, que em seu primeiro ano já conta com mais de seiscentos comitês locais, presentes em todos os estados dos Estados Unidos. 1 Eduardo Militão, “Estudos apontam perda de R$ 1 tri em renúncia fiscal após leilão do pré-sal”, UOL, 31 out. 2017. 2 Pesquisa do Instituto Ipsos, dez. 2017.
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CAPA
Poder Judiciário: a ponta de lança da luta de classes
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O papel do Judiciário Judiciário na canalização das disputas e a crença disseminada de que os tribunais são capazes, em algum grau, de aplicar a lei tal como ela está formulada fazem nascer uma sensação de abandono quando deparamos com uma situação de arbitrariedade judicial indisfarçada. A quem vamos recorrer, quando até a Justiça é injusta? POR LUIS FELIPE MIGUEL*
golpe de 2016 representou um duríssimo revés na percepção até então dominante de que a democracia brasileira, mesmo com todos os seus problemas e aos trancos e barrancos, caminhava para sua “consolidação”. Não foi apenas porque as classes dominantes abandonaram o respeito às regras do jogo e decidiram vi rar a mesa quando perceberam que, novamente, eram incapazes de impor seus preferidos por meio da eleição popular. O impeachment ilegal da presidenta Dilma Rousseff e o acelerado retrocesso em direitos e liberdades que se segue a ele mostram que as institu ições não só não cumpriram seu papel de proteger a ordem constitucional e a democracia, como também participaram ativamente de sua subversão. O que a onda global de desdemocratização e os golpes brandos ocorridos principalmente na América Latina vêm revelando é que o ordenamento político da democracia liberal pode ser usado para impedir o progresso social, bloquear as demandas por igualdade e, embora mantendo uma aparência de normalidade, despir os mecanismos democráticos de qualquer efetivi-
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dade a que possam aspirar. No Brasil, chama atenção o protagonismo assumido pelo Poder Judiciário. O papel do Judiciário na deflagração e convalidação do golpe político é perceptível para qualquer observador. Mas a ação cotidiana de juízes de todas as instâncias também corrobora o viés favorável aos grupos dominantes, como mostram as sentenças diferenciadas conforme a posição social dos acusados – por exemplo, a posse de uma pequena quantidade de droga ilegal pode levar a desenlaces completamente diferentes de acordo com a cor da pele e a classe social do portador. Em seu conjunto, o Poder Judiciário atua como avalista da desigualdade e das relações vigentes de dominação – o que corresponde, aliás, à posição do direito como “código da violência pública organizada”, como escreveu Poulantzas. O que chama atenção do Brasil é que o Judiciário ocupa a posição de ponta de lança da luta de classes , cumprindo papel crucial na produção, aplicação e, em particular, legitimação das medidas que implicam retrocessos para a classe t rabalhadora e outros grupos em posição subalterna. O que permitiu isso foram mudanças
ocorridas nas últimas décadas e saudadas em geral como “avanços”. Desde a promulgação da Constituição de 1988, observadores da política brasileira têm falado do crescente protagonismo do Poder Judiciário. A Carta constitucional garantiu prerrogativas estendidas e propiciou mudanças de comportamento dos agentes, levando aos fenômenos paralelos da “judicialização da política”, que faz as disputas passarem a ser resolvidas nos tribunais, e do “ativismo judiciário”, pelo qual o poder relativiza sua ca racterização tradicional como “inerte”, avoca a si a iniciativa da ação e toma decisões que seriam do Legislativo ou do Executivo. Outra inovação da Constituição foi a enorme ampliação do âmbito de atuação do Ministério Público, órgão vinculado ao Poder Executivo, mas que cumpre funções judiciárias. No período de ascensão democrática que se seguiu à promulgação da nova Constituição, esse alargamento dos poderes de juízes e procuradores foi, em geral, visto de forma positiva pelas correntes mais progressistas. A defesa de interesses coletivos e difusos, atribuída ao MP, prometia uma ampliação – necessária e urgente – da
proteção a grupos oprimidos ou ao meio ambiente. As decisões tomadas no âmbito das cortes superiores podiam representar, por vezes, uma usurpação do poder de legislar, mas se mostravam mais avançadas do que aquelas advindas de um parlamento notoriamente corrompido e no qual era crescente a capacidade de chantagem de grupos fundamentalistas. O Tribunal Superior Eleitoral introduziu regulações na disputa partidária (a chamada “verticalização” das coligações, depois revogada em 2002), no exercício parlamentar (a perda de mandato parlamentar por desfiliação, em 2007) e no funcionamento das cotas eleitorais para mulheres (com o entendimento de que o descumprimento da regra levaria à impugnação da lista partidária, em 2010) que se alinhavam ao ideal normativo da competição democrática compartilhado por liberais esclarecidos e por grande parte da esquerda brasileira. O Supremo Tribunal Federal estabeleceu direitos de minorias sexuais (reconhecimento da união civil homoafetiva, em 2011) e ampliou direitos reprodutivos (extensão do direito de aborto no caso de anencefalia fetal, em 2012), em sintonia com ban-
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deiras progressistas. Sem discutir o mérito das decisões, elas com certeza extrapolam o que era a intenção original do legislador. Nenhuma delas teria passado no Poder Legislativo. O desenvolvimento talvez mais surpreendente foi a aprovação em 2010, pelo próprio Congresso, de legislação que confere ao Judiciário um poder de veto na seleção de candidatos às eleições. A chamada Lei da Ficha Limpa, apresentada como iniciativa popular, apoiada pela quase unanimidade dos parlamentares e sancionada entusiasticamente pela Presidência da República, em meio a um verdadeiro clamor midiático, determinou a tutela do Judiciário sobre a soberania popular. Ainda assim, poucas vozes se ergueram contra ela. Diante das dificuldades para elevar a educação política média dos brasileiros, a Ficha Limpa parecia um atalho seguro para a “moralização” do Estado. Trata-se de um elemento constante: o elogio da ação política do Poder Judiciário, no momento em que ela alavancava causas progressistas, é tingindo por uma percepção elitista (juristas capacitados podem decidir com mais competência) e pelo desânimo quanto à possibilidade de produzir uma opinião popular mais engajada e esclarecida. Outra característica do Brasil é que o ativismo judiciário não é privilégio das cortes superiores. Até mesmo juízes de primeira instância podem tomar decisões de enorme repercussão coletiva – os casos de bloqueio de aplicativos de smartphones com milhões de usuários servem ser vem de exemplo. Na crise política brasileira, o juiz paranaense Sérgio Moro ocupou posição central ao liderar a Operação Lava Jato. Embora a justificativa para o impeachment impeachment nada nada tivesse a ver com a operação, apoiando-se em operações de crédito junto a bancos estatais (as chamadas “pedaladas fiscais”), ela foi instrumental para criar o clima de opinião que sustentou a derrubada do governo. Declaradamente inspirado na operação italiana Mãos Limpas, Moro julga que é importante dar grande v isibilidade isibilidade midiática e obter o “apoio da opinião pública” ao combate à corrupção. A Lava Jato revelou parte da corrupção sistêmica da política brasileira por meio de operações espetaculares que, no entanto, atingiram de forma muito desproporcional o PT e seus aliados. Seu modus operandi privilegiado, a “delação premiada”, dá grande margem a que o agente da lei oriente o curso da investigação. Muitas vezes, seus resultados dependem da desobediência ao devido processo legal e de formas de intimidação contra testemunhas e suspeitos. Não custa lembrar que Moro é o tradutor do artigo de um juiz norte-ameri-
cano que ensina como coagir acusados para que denunciem seus cúmplices. 1 Em vários momentos, sua atuação se mostrou claramente casada com o cronograma da derrubada da presidenta Dilma, culminando na divulgação do áudio de uma escuta telefônica ilegal, com uma conversa entre ela e Lula. Embora o juiz tenha sido obrigado a um envergonhado pedido de desculpas e ao reconhecimento de que a divulgação da conversa fora “equivocada”, ele continuou chefiando a operação. Atualmente, como se sabe, Moro e o tribunal de recursos ao qual sua vara está vinculada, o TRF-4, são instrumentais no impedimento à candidatura presidencial do ex-presidente Lula, que é outro importante passo no esvaziamento do que restava de esperança de respeito ao princípio básico da democracia liberal – a consulta ao povo para a escolha dos governantes. Como um juiz de primeira instância foi capaz de acumular tamanho poder? A resposta se vincula tanto às peculiaridades da organiz ação do Poder Judiciário no Brasil a partir da Constituição de 1988 quanto à bem-sucedida ofensiva do juiz Sérgio Moro junto à opinião pública, orquestrada com os meios de comunicação hegemônicos. Moro se tornou o emblema vivo do combate à corrupção e, portanto, intocável. As muitas arbitrariedades que cometeu ao longo do processo foram quase sempre abafadas após exposição mínima, e denúncias de graves irregularidades que o chamuscavam, como aquelas que transparecem no depoimento do advogado Rodrigo Tacla Duran, foram simplesmente deixadas de lado. A pergunta mais importante, importante, porém, é outra: por que as instâncias superiores do Judiciário não intervieram diante de abusos tão patentes nas investigações? Questão intrigante, sobretudo quando se lembra que, dos onze ministros do Supremo Tribunal Federal no período da derrubada de Dilma, oito tinham sido nomeados por ela ou por Lula. Qualquer explicação deve levar em conta que o STF não ficou imune ao clima de opinião formado a partir da Lava Jato – e a vulnerabilidade aumentada à pressão da “opinião pública” e da mídia é uma das características do Judiciário ativista. E também que os governos petistas não foram capazes de apresentar indicações para o Supremo que estivessem à margem do establishment jurídico jurídico e político. Pelo contrário, optaram quase sempre por demonstrar moderação, preferindo juristas conservadores conserv adores e com com trânsito nos partidos de direita. Também aqui a política de conciliação concil iação cobrou seu preço. É preciso ponderar, porém, que se trata de uma situação difícil, não algo que se pudesse resolver por um mero ato de vontade do ocupante da Presi-
dência da República. Por um lado, a indicação de juristas aberta mente comprometidos com as causas populares seria encarada como rompimento do pacto que permitia a permanência do PT no poder e a implantação de políticas tím idas (mas mesmo assim importantes) de resgate da dívida social. A atuação do Supremo como avalista dos retrocessos é um indício, entre muitos outros, de que as condições de manutenção desse pacto foram erodidas. Essa é a ficha que falta cair para uma parcela da esquerda brasileira.
Em seu conjunto, o Poder Judiciário atua como avalista da desigualdade e das relações vigen vigentes tes de dominação Por outro lado, o campo jurídico possui seus próprios filtros e mecanismos internos para forçar a adaptação às posições mais conformistas, mormente quando se alcançam funções de mais prestígio, poder e visibilidade. Como em outros campos (o jornalismo serve de exemplo), o conservadorismo transita como “imparcialidade”, mas visões críticas e comprometidas com a justiça social aparecem como sectárias, dificultando, portanto, a ascensão na carreira. Certamente há juízes progressistas, mas estão em situação parecida à de oficiais militares progressistas nos anos 1960. As iniciativas do Conselho Nacional de Justiça com vistas à perseguição de dissidentes ainda têm encontrado resistência, mas mostram que, na conjuntura aberta com o golpe, é possível que o Poder Judiciário se torne ainda menos arejado. No início deste ano, dois eventos dissimilares apontaram para mudanças no cenário. Um deles foi a exposição, pela mídia hegemônica, de vantagens imorais auferidas por grande parte dos juízes, incluído aí o próprio Sérgio Moro, em em particular particu lar um “auxílio-mora “auxí lio-mora-dia” dado a quem evidentemente não precisa dele. Ao que parece, setores da coalizão golpista decidiram indicar ao Judiciário que ele não é intocável. O outro foi o anúncio, a núncio, pelo ocupante da Presidência, da intervenção federal no Rio de Janeiro, que concede peso e visibilidade a um ator que, até agora, era mantido à sombra: as Forças Armadas. Ar madas. Quaisquer que sejam as mudanças a que levem as disputas internas entre os grupos que deram o golpe em 2016, é ilusório pensar que o Judiciário pode ser um agente do retorno à democracia. Recursos ao STF, como ocorreram
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quando da deposição de Dilma e ocorrem agora com a condenação de Lula, cumprem muito mais um papel de denúncia, já que a corte demonstrou mais de uma vez seu desprezo pela legalidade fraturada. É uma situação dramát ica porque, se a lei é um código da v iolência do Estado, como diz a citação de Poulantzas referida antes, ela também organiza, inibe e torna predizível essa violência. Sua imparcial idade ostensiva e os valores civilizatórios que ela tem de aparentar encarnar são concessões arrancadas pela luta dos grupos dominados. Também podem ser usados contra os dominantes e constrangem o exercício arbitrário do poder. O império da lei não é a garantia de uma sociedade justa, já que a lei reflete a correlação de forças dentro dessa sociedade. Mas a ruptura do sistema legal, que permite à dominação social se exibir em toda a sua nudez, retira dos mais frágeis as garantias que eles foram capaz es de obter. Quando a discricionariedade extralegal do sistema judicial, que nunca deixou de operar em prejuízo das populações mais pobres e periféricas, atinge o coração do sistema político, a democracia liberal entra em colapso. Significa que a ordem instituída não permite mais sequer que suas próprias promessas sejam mobilizadas para conter sua violência. Significa que a pressão dos dominados, que era aceita, desde que controlada, como parte do jogo, agora deve ser extirpada. O papel do Judiciário na canalização das disputas e a crença disseminada de que os tribunais são capazes, em algum grau, de aplicar a lei tal como ela está formulada fazem nascer uma sensação de abandono quando deparamos com uma situação de arbitrariedade judicial indisfarçada. A quem vamos recorrer, quando até a Justiça é injusta? É a realidade de um país que passou de uma democracia formal, limitada, para uma democracia menos que formal, cujas instituições não se preocupam mais em disfarçar sua tendenciosidade em favor dos poderosos. Como instituição política que é, o Poder Judiciário é sensível à correlação de forças na sociedade. É a resistência contra os retrocessos, o aumento na mobilização social, o protesto contra as arbitrariedades e a desobediência civil que podem restaurar o funcionamento mínimo de uma justiça burguesa que, ainda que sem perder o qualificativo “burguesa”, possa aspirar ao nome de “justiça”. *Luis Felipe Miguel é professor do Institu-
to de Ciência Política da Universidade de Brasília. 1 Ver Stephen S. Trott, Trott, “O uso de um criminoso como testemunha”, Revista CEJ , n.37, 2007.
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O PREÇO DE SE TORNAR UM ATOR POLÍTICO
A Justiça no centro da crise política Mesmo composto por grupos distintos, instâncias e atribuições específicas, o Judiciário hoje é um ator tão conhecido como completamente envolvido nas decisões políticas do Brasil. E, sim, isso muda o jogo. Sejam quais forem os rumos que o país vai tomar nos próximos anos, essa conta também recairá sobre a Justiça POR GRAZIELLE ALBUQUERQUE*
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oje, praticamente todos os temas políticos debatidos no país passam pelo Supremo Tribunal Federal (STF). Efeito, entre outras questões, do que a academia chama de “judicialização da política”.1 O fato é que a Constituição Federal de 1988 desenhou um modelo de sistema de justiça com um protagonismo ímpar. De todos os integra ntes desse sistema, que engloba, entre outros, Ministério Público e Defensoria Pública, o Judiciário é sem dúvida um poder que deixou de orbitar à margem da tomada de decisões para se instalar no centro da crise política brasileira. Só nos primeiros meses do ano, o julgamento do ex-presiden ex-presidente te Lula no Tribunal Regional Federal da 4 a Região (TRF4) e as pautas sobre o auxílio-moradia demonstram como o a ntes “ilustre desconhecido” Judiciário não pode mais ganhar essa denominação. Voltando um pouco no calendário, na virada de dezembro de 2017, 2017, foi o indulto de Natal que bateu à porta do Supremo. As pautas são diversas e podemos enumerá-las à exaustão. O foco atual quase sempre recai sobre o STF e a Operação Lava Jato, mas seria uma inverdade dizer que os holofotes se limitam a ambos.
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Em 2018, certamente a Justiça Eleitoral ganhará destaque e, para completar a exposição, a cobertura sobre a intervenção federal/militar no Rio de Janeiro dá conta de uma nota de apoio às Forças Armadas assinada por membros da magistratura e do Ministério Público integrantes do Movimento de Combate à Impunidade (MCI). A nota não é um fato extraordinário ou isolado de um movimento desconhecido. Embora alguns ministros do Supremo tenham dado declarações questionando a ação, o Judiciário está imbricado nela, como se pode ver pela admissão de dispositivos jurídicos como os “mandados coletivos” de busca e apreensão, do ponto de vista jurisprudencial, e pelo apoio institucional dado à intervenção, verificado em reuniões como a ocorrida no Palácio da Guanabara, no dia 17 de fevereiro. Na ocasião, o presidente do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, o desembargador Milton Fernandes de Souza, colocou o Judiciário estadual à disposição do i nterventor. nterventor. Muitos pontos de análise podem ser levantados com base nesse quadro, em especial a velha tensão relativa ao pacto entre os três poderes e o papel do Judiciário como árbitro. Em outros ter-
mos: como recorrer a uma instituição que já se posicionou? De todas as questões, aqui me concentro em uma: mesmo composto por grupos distintos, instâncias e atribuições específicas, o Judiciário hoje é um ator tão conhecido como completamente envolvido nas decisões políticas do Brasil. E, sim, isso muda o jogo. Sejam quais forem os rumos que o país vai tomar nos próximos anos, essa conta também recairá sobre a Justiça. VISIBILIDADE TARDIA
Talvez seja difícil perceber a importância dessa observação em primeiro plano, mas um breve panorama histórico ajudará nesse exercício. Grande parte dessa “descoberta” pública só ocorreu no final da década de 1990 (vide CPI do Judiciário, em 1999) e ao longo dos anos 2000 (vide Reforma do Judiciário, em 2004), não apenas pela demora em sentir os efeitos da Constituição de 1988, mas também porque, sem ser um poder eletivo e estando distante dos questionamentos relativos à democratização do país e dele próprio – enquanto instituição –, o Judiciário passou ileso às faturas cobradas no período de abertura. Ao contrário de outros países da América
Latina, como a Argentina, que teve uma Justiça de transição atuante, o Brasil até hoje se esquiva de prestar contas sobre a ditadura milita r. Com o Ato Institucional n. 2, o AI-2, o general Castelo Branco transferiu os processos políticos da Justiça comum para a Justiça militar. O AI-2, baixado em outubro de 1965, dava início à mudança que seria solidificada em 1967, com a entrada em v igor da nova Constituição e, sobretudo, com a emissão do Ato Institucional n. 5, o AI-5, que em dezembro de 1968 suspendeu até mesmo a apreciação de habeas corpus de crimes políticos, crimes contra a segurança nacional, a ordem econômica econômica e social e a economia popular. É claro que o Judiciário era parte da estrutura do Estado e do próprio regime ditatorial, e isso merece um olhar acurado, mas, do ponto de vista de uma exposição mais a mpla, a Justiça comum ficava fora da “jogada”. “jogada”. Estava à margem e não tinha a v isibilidade de agora. Esse e outros fantasmas pareceram ressuscitar diante da aprovação pelo Congresso Nacional, em outubro de 2017, da Lei n. 13.491, que transfere da Justiça comum para a militar o julgamento de homicídios cometidos por militares durante operações especiais
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de segurança pública em território nacional, e também com declarações como a do comandante do Exército, general Eduardo Villas Bôas, sobre a preocupação de que se instale uma nova “Comissão da Verdade” após o fim da intervenção. Voltando ao ponto da exposição e do jogo de poder, nos anos 1960, 1970 e 1980, qualquer análise midiática e política certamente incluiria os militares numa relação direta com Executivo e Legislativo. Agora, além da caserna, o Judiciário e Ministério Público fazem, litera lmente, parte da rede. Essa não é uma ironia, é mesmo uma avaliação técnica. O pesquisador Fábio Malini 2 fala que, se procuradores e juízes já brilharam no Twitter, chegou o momento em que militares entraram no palco. Fazendo análise de cartografia de redes políticas brasileiras desde 2012, Malini afirma que nunca generais e o Exército apareceram como atores relevantes em seus mapas. Agora, temos Executivo, Legislativo, Judiciário e militares todos no mesmo “balaio”. Ainda que ca ibam diversas distinções, ratifico meu ponto: não importam as pautas, se das questões mais classistas aos bastidores palacianos, passando pela agenda de governo (que agora sai da Reforma da Prev idência e se concentra na segurança pública), a Justiça brasileira está presente. Nesse sentido, grosso modo, mesmo sabendo de todas as tensões internas, pode-se falar de uma imagem de Justiça que aparece na ponta como “una”. Lá no final da linha, pode-se supor que a opinião pública enxergue “uma Justiça” e só depois passe a lhe distinguir os segmentos. Indo além, no centro dessa hipótese, por tudo já elencado aqui, é pertinente admitir que o que surge dessa exposição é mesmo uma Justiça que se comporta como ator político. E isso tem um preço. RECADOS PÚBLICOS
Se fizermos um recorte sobre a atuação política da Justiça, talvez o foco no STF nos dê a amostra mais adequada. Muitas críticas públicas se voltam para o comportamento díspar do Tribunal, julgando casos semelhantes de forma diversa. Em um artigo na Folha de S.Paulo (28 jan. 2018), Conrado Hübner Mendes, professor de Direito Constitucional da Universidade de São Paulo (USP), fala que o Supremo passou de poder moderador a poder tensionador, sionador, agred indo a democracia brasileira. Seleciono algumas indagações: “Se Delcídio [do] Amaral (PT-MS), Eduardo Cunha (M DB-RJ), Renan Calheiros (MDB-AL) e Aécio Neves (PSDB-MG) detinha detinha m as mesmas prerrogativas parlamentares, por que, diante das evidências de crime, receberam tratamento diverso? Se houve desvio
de finalidade no ato da presidente Dilma Rousseff (PT) em nomear Lula (PT) como ministro, por que não teria havido na conversão, pelo presidente Michel Temer (MDB), de Moreira Franco (MDB) em ministro? ”. Deixo as perguntas no a r e desloco o raciocínio do plano normativo e decisório para o da comunicação. Também do ponto de vista midiát ico, os recados que o Supremo dá são diversos e denotam, sim, um comportamento político. Vejamos alguns exemplos: 1. Em novembro de 2015, após a divulgação da gravação do ex-senador Delcídio do Amaral (PT-MS), revelando que era preciso “centrar fogo” no STF (o áudio citava os ministros Teori Zavascki, Dias Toffoli, Edson Fachin e Gilmar Mendes), o Supremo Supremo reagiu de forma imediata, determinando a prisão de Delcídio. Na sessão que homologou a prisão, a ministra Cármen Lúcia foi enfática ao dizer que os corruptos não passarão sobre os juízes. Além disso, tanto Toffoli como Mendes se pronunciaram negando qualquer interferência. 2. Em março de 2016, a escuta liberada pelo juiz Sérgio Moro, em que o ex-presidente Lula chamava o Supremo de acovardado, teve seu conteúdo criticado no dia seguinte pelo ministro Celso de Mello. O decano do STF se referiu às declarações de Lula como uma ofensa grave à dignidade institucional do Judiciário, um insulto inaceitável e passível de repulsa. No dia seguinte, em um evento em Manaus, o presidente do Tribunal, Ricardo Lewa ndowski, também criticou as declarações, afirmando que o Supremo jamais esteve acovardado. Contudo, em outro episódio de natureza semelhante, ocorrido na sequência, pode-se ver uma postura distinta por parte dos ministros. 3. Em maio de 2016 houve a divulgação dos áudios de Romero Jucá (PMDB-RR), Renan Calheiros (PMDB-AL) e José Sarney (PMDB-MA), todos fazendo menções diretas ao Supremo em uma atitude de cumplicidade com o impeachment que se combinaria com o arrefecimento da Lava Jato (a fala de Jucá foi repetida à exaustão na imprensa e nas redes sociais, referindo-se a uma “mudança” no governo federal que resultaria em um pacto para “estancar a sangria”, um acordo “com o Supremo, com tudo”). Mesmo diante da repercussão das gravações, houve apenas uma nota oficial do STF e uma declaração de Luís Roberto Barroso publicada no El País 3 negando qualquer interferência. Nenhuma fala em plenário ou reação mais contundente. Os três episódios tiveram similaridades, mas receberam respostas distintas e, como o debate não se restringe ao campo jurídico, o STF vê-se diante do aprendizado de que a cobrança se dará também em outra ordem. Ao lar-
go de toda a discussão sobre a legalidade dos vazamentos, quando se cruza a fronteira do campo político, a questão da opinião pública entra em cena. E os vazamentos são um exemplo bem representativo dos diversos momentos em que a Justiça passou a ter um papel político na crise, tendo de se posicionar publicamente sobre ela, ingressando em uma disputa midiática. Quem não se lembra das discussões entre os ministros Cezar Peluso e Eliana Ca lmon sobre os poderes de investigação do Conselho Nacional de Justiça (CNJ)? Ou de quando o CNJ levantou a bandeira de combate ao nepotismo? Cito esses exemplos por seu conteúdo ligado à atuação da própria Justiça e para destacar que, ainda assim, nem de longe esses casos estavam restritos aos aspectos jurídicos. Aliás, nenhum dos exemplos levantados aqui está. No fim das contas, é a imagem da Justiça que aparece.
Também do ponto de vista midiático, os recados que o Supremo dá são diversos e denotam, sim, um comportamento político POSIÇÃO E COBRANÇA
A gama de exemplos levantados é, sem dúvida, extensa, mas sua amplitude é proposital. O que ela demonstra é que em diversos planos o Judiciário (e não apenas ele, o Ministério Público também entra nessa conta, embora com suas peculiaridades) passa a ser observado. Tecnicamente, ele foi agendado. É parte da agenda midiática e pública. Mas não é apenas isso. Ele também está ligado a um enquadramento, a um framing framing . Ou seja, mostra-se e o faz de determinada forma. Essa forma é política e seletiva. Por que com uns e não com outros? Por que dessa forma e não daquela? Por que veloz nesse processo e devagar naquele? Essas são perguntas que começam a ser feitas por uma opinião pública que passa não só a reconhecer a Justiça, mas também perceber sua maneira de agir, seu comporta mento. Com isso, questões históricas sobre a falta de democratização da Justiça aparecem. Contudo, deve-se ressaltar que elas não surgem como algo passado, mas estão na conta do dia de quem segue os ministros do Supremo no Twitter, Twitter, de quem vê a cobertu ra política (sim, o Judiciário hoje está completamente inserido nas editorias de política), de quem assiste às sessões do Supremo na TV Just iça ou as vê no You-
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Tube e, agora também, de quem vai acompanhar de perto as pautas da segurança pública (do sistema carcerário carcomido ao desenrolar da intervenção no Rio de Janeiro). A Justiça brasileira está nas manchetes. Todo esse emaranhado talvez leve as instituições do sistema de justiça a perceber que essa não é uma função acessória. Ao embarcar na agenda do Executivo e do Legislativo, ou mesmo de determinados grupos de interesse e pressão, o Judiciário se acopla a eles. Isso acontece nos debates da cúpula, mas é bem provável que, com a questão da segurança nacional em pauta, as cobranças explodam também nas questões mais cotidianas da sociedade. Em dezembro de 2015, 2015, em um artigo aqui para o Le Monde Diplomatique Brasil ,4 arrematei meu raciocínio afirmando que “quem se expõe acaba sempre tendo de responder”. É fato. O que digo agora é que não se trata de mera exposição; ao assumir determinada posição, a Justiça será cobrada por ela. Na América Latina como um todo, o empoderamento do Judiciário foi uma aposta num sistema de garantias e direitos que se antagonizasse ao horror dos truculentos regimes militares. Agora, a Justiça está diante de um duplo impasse: lidar com questões que traz de seu próprio passado e com uma necessidade urgente de democratização interna, e lidar com posicionamento político em relação aos outros poderes e com a missão de atuar nessa nova democracia. Há um imenso risco de a Justiça, que tanto tentou se colocar como heroica e apolítica, tomar o lugar inverso. A relação com a opinião pública pode ser vista à parte, mas o que ela talvez faça de mais potente seja expor esse dilema e sua devida fatura. Um Judiciário político que escolhe um lado arcará com as consequências dessa escolha. *Grazielle Albuquerque é jornalista e dou-
toranda em Ciência Política pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), e foi visiting doctoral research no German Institute of Global and Area Studies (Giga), em Hamburgo. Seu trabalho se volta para a atuação do sistema de justiça, em especial para sua interface com a mídia. 1 Segundo C. Neal Tate e Torbjörn Vallinder, a expressão pode ser vista como uma maneira de entender as causas e consequências da expansão do poder judiciário no processo decisório das democracias contemporâneas. Mais detalhes podem ser vistos no trabalho de Koerner e Maciel, que fazem um balanço teórico da discussão sobre o tema. Andrei Koerner e Débora Alves Maciel. Sentidos da judicialização da política: duas análises. Lua Nova, n.57, p.113-134, 2002. Disponível em:
. 2 “No Twitter, vampiro vampiro cola mais em Temer Temer do que intervenção”, Piauí , 24 fev. 2018. 3 Ver “Barroso: ‘Modelo do Brasil não é capitalismo, é socialismo para os ricos’”, El País, 24 maio 2016. 4 “Entre o espetáculo e o controle: a Justiça e seus holofotes”, Le Monde Diplomatique Brasil , dez. 2015.
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WELFARE, WARFARE E LAWFARE
Quando Quando os ilegal ilegalismos ismos ultrapassam as fronteiras dos espaços populares O que há de comum entre Rafael Braga e Luiz Inácio Lula da Silva? É enorme a distância que separa essas pessoas, personagens recentes da história de nosso país. Nada os aproxima em sua trajetória de vida nem nas escolhas cotidianas que fizeram. Talvez então o que os ligue sejam os tempos em que vivemos, de exceção POR MÁRCIA PEREIRA LEITE E JULIANA FARIAS*
que mudou na história recente do Brasil, quando a gestão diferencial de ilegalismos que transformou favelas e periferias em espaços de indeterminação, 1 onde os direitos da população são sistematicamente violados, desborda as fronteiras dos espaços populares e atinge a “cidade” formal e outros segmentos populacionais? O que mudou quando os jogos de poder passaram a usar os ilegalismos não apenas em relação aos “de baixo”? Muitos de nós só então começaram a questionar nossa democracia e a alertar sobre estarmos vivendo um estado de exceção. As “fronteiras das leis como campo de disputa”2 parecem não mais se referir estritamente aos espaços populares e, por isso mesmo, despertam atenção e interesse dos que não se importavam muito quando os ilegalismos estavam restritos às favelas e periferias das grandes cidades. E o que há de comum entre Rafael Braga (negro e catador de materiais recicláveis) e Luiz Inácio Lula da Silva (l íder metalúrgico, fundador do Partido dos Trabalhadores, deputado federal e presidente do Brasil por dois mandatos)? É enorme a distância que separa essas pessoas, personagens recentes da história de nosso país. Nada os aproxima em sua trajetória de vida nem nas escolhas cotidianas que fizeram. Talvez então o que os ligue sejam os tempos em que vivemos, de exceção. Refletir sobre isso é a proposta deste artigo. Há alguns anos, cientistas sociais, militantes de movimentos e defensores de direitos humanos discutem como, mesmo quando se pensava estar em uma normalidade democrática, favelas e periferias se transformaram em espaços de exceção. Se é certo que os grupos de traficantes de drogas ilícitas são um de seus operadores, pelo despotismo que impõem aos que ali habitam, 3 também é certo que, nesses espaços, a administração da exceção se faz por agentes do Estado, não por
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despreparo ou desvio de conduta, mas como um modo – pensado, deliberado – de governar os pobres. A face mais visível da administração da exceção é posta em prática pelas forças policiais que ali operam, ora pelo uso da força desmedida4 (para além da norma constitucional) contra criminosos e moradores (incluindo a prática de homicídios), ora pela permissividade com o crime, administrando “mercadorias políticas” 5 em seu benefício privado. Mas peritos, gestores de políticas públicas, outros funcionários do Estado e políticos também se situam nesse campo, tratando os moradores não como cidadãos com direitos, mas como populações a controlar: ora os reprimindo em seu cotidiano e suas ações coletivas, ora autorizando implicitamente seu extermínio por meio do dispositivo do auto de resistência, e sempre rebaixando suas reivindicações por políticas públicas e bens de cidadania. 6
Afinal, Afinal, que quem m (ou (ou o que que)) nos governa – nós, que acreditamos (ou acreditávamos) na democracia, nos procedimentos, na Justiça, na lei?
Foucault, pensando no exercício do poder, forjou a noção de “gestão diferencial de ilegalismos” como uma forma de “organizar a transgressão das leis numa tática geral de sujeições”. Pondo em relevo as positividades dos ilegalismos, compreendeu o Estado e as formas de governo não por suas imperfeições ou lacunas na aplicação da lei, mas pelos agenciamentos realizados como ações possíveis na composição dos jogos de poder que negociam os parâmetros da lei e da or-
dem: “A penalidade seria então uma maneira de gerir as ilegalidades, de dar terreno a alguns, de fazer pressão sobre outros, outros, de excluir u ma parte, de tornar útil a outra, de neutralizar estes, de tirar proveito daqueles. [...] a penalidade não ‘reprimiria’ pura e simplesmente as ilegalidades; ela as ‘diferenciaria’, faria sua ‘economia geral’. E se podemos falar de uma justiça não é só porque a própria lei ou a maneira de aplicá-la servem aos interesses de uma classe, é porque toda a gestão diferencial das ilegalidades por intermédio da penalidade faz parte desses mecanismos de dominação”. 7 É dessa perspectiva que lemos a entrevista de Eduardo Farias, professor da USP e da FGV, que sustenta “uma mudança no conceito de prova, de processo e de delito” ao analisar as tensões entre duas “arquiteturas jurídicas” em choque no Brasil da Lava Jato.8 Nela, muitas argumentações referentes às novas tecnologias de poder, mas nenhuma referência aos nossos preceitos constitucionais: “[...] há aqui uma questão importante para verificarmos a mudança das gerações principalmente no campo do Direito Penal e no campo do Direito Econômico, mudança decorrente de uma atuação cada vez mais sofisticada do crime organizado e das organizações terroristas na Europa. Os países europeus que vinham estudando nos anos 1980 a possibilidade de formar uma União Europeia, saindo da mera zona econômica e constitui ndo uma comunidade integrada, perceberam que seria necessário dar um passo semelhante na área do Direito Penal, o qual deveria ser globalizado. Esse processo foi pensado a partir da premissa de que em vez de reprimir o crime organizado nas suas consequências seria melhor asfixiá-lo financeiramente, – o mesmo valeu para o terrorismo”. Farias nos esclarece o sentido desse agenciamento: “Com esse propósito, em 1989 foi constituído em Paris um grupo chamado Gafi [Grupo de Ação
Financeira] para operar na Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE) e que formará uma minuta de uma legislação penal econômica para todos os países-membros da OCDE. A ideia seria trabalhar com o princípio da globalização econômica, o que exigiria, com o tempo, também a globalização de partes do Direito – não de todo ele, evidentemente. [...] A minuta foi adotada pelos países-membros da OCDE e [...] alguns [outros países], como é o caso do Brasil, foram convidados a adotar essa legislação em troca de uma série de vantagens, como acesso a mercados, novas tecnologias, linhas de financiamento com juros ju ros favorecidos...”. favorecidos...”. 9 Afinal, quem (ou o que) nos govergoverna – nós, que acreditamos (ou acreditávamos) na democracia, nos procedimentos, na Justiça, na lei? A entrevi sta revela como estamos desajustados aos tempos em que vivemos. A Constituição de 1988 não conta mais nestes tempos em que o ajuste ao novo capitalismo selvagem se sobrepõe à primazia da lei e das garantias procedurais? Pode-se mudar o conceito de prova porque assim o determina o Gafi? O ônus da prova não cabe mais ao acusador? Bastam convicções, mesmo sem provas, como na condenação de Lula no caso Petrobras-Guarujá? 10 Inquéritos podem dispensar a oitiva de testemunhas e acatar somente palavras de policiais, como no caso Rafael Braga?11 Mesmo sem amparo constitucional, delação premiada torna-se prova substantiva? A condução condução coercitiva e a prisão provisória visando acordos de delação podem ser acatadas pelos tribunais superiores graças a essa lógica da repressão ao crime financeiro e do ajustamento às necessidades da globalização? A brecha legal para t udo isso parece estar, entre outros instrumentos jurídicos, na Lei n. 13.260, que regulamenta o disposto no artigo 5 o da Constituição Federal, reformulando o conceito de terrorismo, disposições investigatórias e processuais.12
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Para compreender essa mudança, vale examinar os argumentos de Huberman, em seu excelente artigo sobre o lawfare .13 O autor considera law “uma forma de conflito na qual a fare “uma lei é usada como arma de g uerra [...]: o emprego de manobras jurídico-legais como substituto de força armada, visando alcançar determinados objetivos de políticos”. No caso da condenação de Lula, como no dos petistas do caso Mensalão e no impeachment de Dilma Rousseff, usou-se a teoria do domínio de fato, 14 cuja aplicação em casos de corrupção passiva, ele sustenta, é questionável. “Segundo Alaor Leite [aluno de Roxin], ‘a teoria do domínio do fato não serve para fundamentar responsabiliresponsabilidade penal pela mera posição de destaque no interior de uma estrutura hierárquica’. Ou seja, os juízes precisam provar a relação, não apenas deduzi-la. [Entretanto,] todos tiveram, em comum, entre as justificativas de suas condenações, não exatamente provas legais, mas o ‘conjunto da obra’.” obra’.”15 Acompanha ndo Huberman, mas retornando a Foucault, consideramos que o que se atualiza aqui é uma nova tecnologia de poder, que opera pela “gestão diferencial dos ilegalismos”, exercendo a dominação por meio do uso da lei e de sua aplicação diferenciada em relação aos definidos como amigos ou inimigos do bloco no poder. 16 Stephen Graham sustenta que vivemos em tempos em que a possibilidade de integração social dos cidadãos a um Estado de bem-estar ( welfare ) foi substituída, perante as exigências do capitalismo financeiro, por uma forma de gestão de territórios e populações que envolve a militarização da vida (warfare ), ), apoiada na doutrina do novo urbanismo militar: “[...] manifesta no uso da guerra como metáfora dominante para descrever a condição constante e irrestrita das sociedades urbanas – em guerra contra as drogas, o crime, o terror, contra a própria insegurança urbana”. urbana”.17 No Brasil dos últimos anos, transitamos do welfare (ao (ao menos como promessa) para o warfare (sobretudo (sobretudo nos espaços populares, mas também em relação a movimentos sociais e políticos tidos como ameaçadores da ordem e da segurança interna). 18 Nos dias que correm, o caminho para o lawfare pa parece bem pavimentado. Vivemos no Rio de Janeiro mais um agenciamento que aprofunda a exceção: a intervenção militar decretada por Temer. 19 Não podemos nos deter no tema, mas assinalamos a ex istência de diversos debates sobre o sentido, a eficácia e a constitucionalidade da intervenção federal. E destacamos um dos elementos que embasam nosso argu mento da vigência do lawfare , atualizado por
meio de uma “gestão diferencial de ilegalismos”: a entrevista do ministro da Justiça, Torquato Torquato Jardim, qualificando a intervenção como guerra assimétrica: “Na guerra assimétrica, você não tem território, qualquer um pode ser inimigo, não tem uniforme, não sabe qual é a arma. Você está preparado contra tudo e contra cont ra todos, todo o tempo. [...] se passar um guri de 15 anos de idade, você vê a foto dele, já matou quatro, entrou e saiu do centro de recuperação, uma dúzia de vezes, e está ali com um fuzil exclusivo das Forças Armadas, você vai fazer o quê? quê? Prende. Prende. O guri v ai lá e sai, na quarta ou quinta vez que você vê o fulano, vai fazer o quê? Você tem uma reação humana aí que deve ser muito bem trabalhada psicologicamente, emocionalmente, no PM ou no soldado. Você está no posto, mirando a distância, na alça da mira aquele guri que já saiu quatro, cinco vezes, está com a arma e já matou uns quatro. quat ro. E agora? Tem que esperar ele pegar a arma para prender em flagrante ou elimino a distância? Ele é um cidadão sob suspeita porque não está praticando o ato naquele momento ou é um combatente inimigo? Os EUA enfrentaram esse tema como um inimigo combatente. É a noção de guerra assimétrica, estamos vivendo uma guerra g uerra simétrica”.20 O ministro ainda defendeu alterações jurídicas de proteção àqueles que cometerem crimes intencionais, 21 considerando insuficiente a Lei n. 13.491/2017, sancionada por Temer, 22 a qual transfere para a Justiça Militar o julgamento de militares que cometerem crimes contra civis nas “missões de garantia da lei e da ordem”, como no recente caso do cerco à Rocinha. Para concluir, voltamos aos casos de Rafael Braga e de Lula. O que eles nos ensinam? O primeiro desvenda que o Judiciário é peça fu ndamental da engrenagem racista de Estado que vemos funcionar a pleno vapor no Brasil de 2018. 2018. O seg undo, a condenação de Lula, evidentemente não inaugura a seletividade penal no Brasil, mas adiciona elementos importantes para o debate. Entre eles, que hoje os jogos de poder podem e usam dos ilegalismos também em relação aos “de cima”, dispondo de um extenso e crescentemente atualizado repertório no campo do lawfare . Os conflitos sociais são geridos e a guerra aos “inimigos” é realizada por meio de uma negociação dos parâmetros da lei e da ordem e de sua aplicação diferenciada em relação a territórios e segmentos específicos para permitir a realização dos interesses excludentes do bloco no poder. Se não entendermos isso e se não considerarmos e agirmos pela democracia não só para os “de cima”, pouca esperança nos restará como nação.
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*Márcia Pereira Leite é professora associa-
da do Departamento de Ciências Sociais e do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (PPCIS/Uerj); Juliana Farias é do Núcleo de Estudos de Gênero Pagu, da Unicamp.
1 Giorgio Agamben, Estado de exceção, Boitempo, São Paulo, 2004. 2 Vera Telles, Telles, “Fronteiras da lei como campo de disputa: notas inconclusas a partir de um percurso de pesquisa”. In: Patricia Birman et al. (orgs.), Dispositivos urbanos e trama dos viventes: ordens e resistências , FGV, Rio de Janeiro, 2015. 3 Luiz Antonio Machado da Silva (org.), Vida sob cerco: violência e rotinas nas favelas do Rio de Janeiro, Nova Fronteira, Rio de Janeiro, 2008.
4 Jean-Paul Brodeur, “Por uma sociologia da força pública: considerações sobre a força policial e militar”, Caderno CRH , v.XVII, n.42, 2004. 5 Michel Misse, Crime e violência no Brasil contem porâneo, Lumen Juris, Rio de Janeiro, 2006. 6 Juliana Farias, Governo de mortes: uma etnografia da gestão de populações de favelas no Rio de Janeiro, tese de doutorado (Sociologia), UFRJ, 2014;
e Marcia P. Leite, “State, market and administration of territories in the city of Rio de Janeiro” [Estado, mercado e administração de territórios na cidade do Rio de Janeiro], Vibrant , a sair. 7 Michel Foucault, Vigiar e punir , Vozes, Petrópolis, 2004, p.226-227 p.226-227.. 8 “‘Há uma mudança no conceito de prova, de processo e de delito’: Entrevista com José Eduardo Faria”, O Estado de S. Paulo, 6 fev. 2018. 2018 . 9 Idem. 10 “Afinal, procurador da Lava Jato disse ‘não temos prova, temos convi cção’? ”, G1, 15 15 set. 2016. 11 “Por que o caso de Rafael Braga não choca o Brasil?”, Justifi cando, 26 abr. 201 2017. 7. 12 Aprovada pelo Congresso Nacional, a lei antiterrorismo foi sancionada pela presidenta Dilma, sob pressão do Gafi , em 16 de março de 2016. 13 “Estudiosos do direito já inventaram um nome para isso: ‘lawfare’. Formada pela conjunção das palavras inglesas ‘law’ (‘lei’), e ‘warfare’ (guerra), o termo pode ser traduzido para algo como ‘guerra jurídica’”. Bruno Huberman, “De Gaza a Porto Alegre, a lei como arma de guerra”, Outras Palavras, 28 jan. 201 2018. 8. 14 “Criada pelo jurista alemão Claus Roxin nos anos 1960 [para] lidar com os mandantes dos crimes cometidos durante o período [nazista] [...], [sustenta que] quem ocupa posição dentro de um chamado aparato organizado de poder e dá o comando para que se execute um delito, tem de responder como autor e não só como partícipe”. Idem. 15 Idem. 16 Ver Ver o não indiciam ento do senador Perrella pela Polícia Federal no caso do contrabando de cocaína em helicóptero de sua propriedade, como seria de esperar em termos dos procedimentos legais usuais (https://veja.abril.com.br/brasil/o-helicoptero-de-perrella-e-helicoptero -de-perrella-e-as-acoes-controla as-acoes-controla-das/) e os casos de corrupção tornados públicos e também não averiguados pela L ava Jato. 17 Stephen Graham, Cidades sitiadas: o novo urbanismo militar , Boitempo, São Paul o, 2016, p.26. 18 Ver os casos de aplicação da Lei de Garantia da Lei e Ordem (prevista no art. 142 da Constituição Federal, disciplinada pela Lei Complementar n. 97/1999 e regulamentada pelo Decreto n. 3.897/2001) nos governos Dilma e Temer. “Dilma também acionou militares contra protestos, em 2013”, Valor , 24 maio 2017. 19 Decreto n. 9.288, de 6 de fevereiro de 2018. 20 “‘Não há guerra que não seja letal’, diz Torquato Jardim ao Correio”, Correio Braziliense, 20 fev. 2018. 21 “Não temos legislação totalmente adequada. [...] Nesse pacote que está sendo discutido pelo deputado Rodrigo Maia e pelo senador Eunício de Oliveira, é provável que esses temas sejam enfrentados”. Idem. O mesmo sentido tem a reivindicação de “anistia prévia” do general Eduardo Villas Boas, comandante do Exército, que se queixa da “insegurança jurídica” para a gir no âmbito da interven-
ção sem o risco de uma nova Comissão da Verdade. “Autoanistia prévia na intervenção civil-militar do Rio”, Filhos e Netos, 20 fev. 2018. 22 “Lei que autoriza Justiça Militar julgar morte de civil é sancionada”, C onsultor Jurídico, 16 out. 2017. 2017.
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CONJUNTURA
A contrarrevolução no Brasil A oligarquia amedrontada associou-se com interesses internacionais contrários à nossa soberania que lhe permitiram somar forças para uma contrarrevolução antidemocrática de natureza preventiva. Seu objetivo é evitar que as contradições da desigualdade e da exclusão que ela própria gera continuem a se converter em força política adversa à sua continuidade POR WOLFGANG LEO MAAR*
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stá em curso no Brasil um movimento contrarrevolucionário, contra a sociedade democrática. Não é um movimento contra uma “revolução”, mas um movimento em moldes “revolucionários” – revolução não é necessariamente de esquerda! – que recorre à ruptura e não exclui o uso da violência. A contrarrevolu contrarrevolução ção é preventiva: preventiva: volta-se contra mudanças democráticas, pacíficas e ordeiras, representadas pelos governos eleitos do PT, que colocaram em xeque os interesses oligárquicos. É mais perene e danosa do que um golpe, por deixar em seu rastro a formação de hábitos, de práticas consolidadas na cultura do país. E como sempre lembra o ex-presidente do Uruguai José Mujica, muito mais difícil do que mudar a realidade é mudar a cultura. Ao contrário de um u m discurso propagado com frequência pela grande imprensa, mas também por instituições, entre as quais alguns setores do Judiciário e da polícia, as classes perigosas e promotoras da desordem não são as dos contingentes populares e de
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trabalhadores, seus partidos e organizações, mas justamente aquelas classes presentes na oligarquia. A violência da luta de classes no Brasil insta la-se por meio da classe dominante. A oligarquia do capitalismo brasileiro é muito perigosa, haja vista que, por suas práticas, demonstradas agora sobejamente, faz mal à saúde, à educação, às eleições, ao emprego, à justiça, à soberania nacional, à nossa integridade física, às nossas reservas naturais, ao nosso fut uro... A classe capitalista brasileira não vaci la no recurso à violência quando julga que seu poder oligárquico é ameaçado por práticas democráticas e pacíficas. Há pouco mais de uma década houve uma disputa eleitoral democrática no Brasil. A eleição conduziu ao poder novas práticas sociais que operaram uma transformação na sociedade brasileira e facultaram um progressivo despertar da consciência nacional acerca da desigualdade em largas camadas da população, e assim possibilitaram um deslocamento das condições de reprodução do poder oligárquico.
Pela visão oligárquica, colocaram-se em risco os interesses do capitalismo no país. Sob o manto de aparente estabilidade nas práticas sociopolíticas, econômicas e, sobretudo, culturais da coligação de forças nacional e internacional que a sustenta, as oligarquias têm muita resiliência, derivada de costumes erguidos em raízes firmes desde os primórdios deste país com o nome de commodities, estabelecido como colônia de exploração comercial e que evoluiu com base na mais longeva ordem social escravocrata do planeta. O resultado é uma socialização capitalista que se pode denominar “semissociedade”: um ordenamento econômico válido para todos, chamado “mercado”, que faz as vezes de uma sociedade dotada de direitos e part icipação, mas só para uma restrita faixa da população. Ou seja, uma situação de enorme desigualdade econômica, social e política, apoiada em intolerância cultural e violência institucional repressiva, tudo junto e misturado com um ming minguado uado senso público e de solidariedade a conviver num extremado individualismo.
Essa situação, muito favorável à consolidação do neoliberalismo, evidencia que o que se apresenta como capitalismo no Brasil é incompatível com práticas democráticas, democráticas, part icipativas e públicas. Justamente essas práticas democráticas constituem o alvo da contrarrevolução para estancar comportamentos sociais que questionam as barreiras que mantêm o poder restrito à “panela” dos sócios oligárquicos. Pela primeira e única vez em nossa história, nos governos do PT, houve uma – imperdoável, donde o ódio despertado e o golpe realizado – disputa de poder real, em que se enfrentou o olhar oligárquico. As novas práticas não são ideias ou projetos, conflitos ou manifestações isoladas, mas práticas que, por serem sociais, são também políticas, econômicas, culturais, com consequências no ethos , nos hábitos que moldam o processo de reprodução da sociedade brasileira. Essas práticas implicam a configuração de novos nexos de coesão social, contraditórios em relação aos laços tradicionais, que pareciam estabilizados sob o poder
dos interesses capitalistas, isto é, no seio da oligarquia nacional e suas ramificações internacionais. Não são, de um lado, as práticas prática s utópicas de uma esquerda revoltada, desprovida de base para ameaçar o poder, nem, de outro, as práticas de uma esquerda adaptada, que aceita o poder em vigor ao reivindicar a participação em sua gestão. Ambas dispensariam a oligarquia do recurso à contrarrevolução. O que se tornou intolerável são práticas de esquerda que atingem o âmbito macropolítico nacional, por meio de sua articulação com micropolíticas. Estas são de inclusão pela educação, de combate à miséria, de cotas racia is e de gênero, de tolerância tolerância à diversidade, de ampliação da cobertura da saúde, de cobertura de serviços públicos, de inserção habitacional, de consultas com participação popular na elaboração de políticas, de valorização do salário mínimo, de reforço da formalização das relações no mundo do trabalho etc. Essas novas práticas, ao ampliarem a concepção pública dos bens comuns para contemplar a totalidade da população, colocam em xeque os interesses representados no Estado oligárquico. Os beneficiários deste, mediante suas práticas sociais seculares, formularam sua própria concepção privada dos bens comuns nacionais, isto é, dos direitos que os brasileiros mereceriam usufruir. Agora se encontram atemorizados diante da existência, ainda que não consolidada e em construção, de práticas inclusivas e universalizáveis de bens comuns, apreendidos como públicos por parcela majoritária da população pobre e trabalhadora. Essas novas práticas, de natureza democrática, denunciam que a parcela excluída por sua desigualdade de condições não nasce desigual, mas é construída em sua desigua ldade na orordem do “mercado”, usurpador da sociedade dos iguais por ação do direito oligárquico. Agora esse controle oligárquico é ameaçado em sua continuidade pelas contradições sociais geradas pela produção da desigualdade. A contrar revolução, posta em movimento para realizar os interesses da oligarquia capitalista, precisa contrariar essas práticas democráticas. Foi assim que a oligarquia parlamentar impôs e a oligarquia jurídica chancelou o golpe, a contrarreforma trabalhista, a destruição das verbas públicas para saúde, educação, ciência, habitação etc. No entanto, a contrarrevolução, mediante o exercício cotidiano de contrapráticas antidemocráticas, propõe-se a converter estas últimas última s em hábitos geradores de coesão social dirigida à sustentação da oligarquia – contrapráticas que não excluem o recurso à violência, seja ela material, simbólica ou de
perda da equidade na justiça. É um caldo de cultura política protofascista. Essas práticas antidemocráticas, porém, não conseguem se impor diretamente; exigem mediações. O melhor exemplo é a equivocada condenação do ex-presidente Lula. Ela se insere em uma semidemocracia que, erigida como “sociedade do espetáculo”, leva ao proscênio da opinião pública a “justiça” de uma pretensa política de probidade anticorrupção, enquanto, longe das vistas, a ordem do mercado continua em operação, com sua parcialidade capitalista. A oligarquia, apesar de sua consoliconsolidada estrutura de dominação nas relações capital-trabalho, atentou ao risco de deixar de ser classe dirigente na sociedade, até porque nem sequer consegue dirigi r a produção nacional. Sua condução da política nacional seria questionada pelas novas práticas de uma “revolução pacífica”, democrática e antioligárquica, inclusiva e participativa, dotada do efeito de reanimar a economia do país. Transformações sociais envolvendo grandes contingentes populares – entre um quarto e u m quinto da população – geraram novos nexos de reconhecimento mútuo e novos vínculos com as instituições e os processos sociais. Aqui se inclui a crescente consciência de direitos sociais em relação aos efeitos decorrentes da desigualdade causada pela privatização de políticas ligadas à economia especulativa e predatória dominante. A democracia democracia já não constitui só um ideal a ser conquistado, mas é construída por práticas realizadas em políticas públicas diversificadas e abrangentes. Não foi somente a democracia que se apresentou em sua idealidade à sociedade. Foi também a sociedade, em grandes contingentes, que se moveu em direção aos direitos, à ideia de democracia. A democracia já não é só uma ideia fora do lugar , alheia e deslocada da vida real, como eram as ideias liberais na ordem escravista, conforme expos Roberto Schwarz. Novas ligas de brasileiros, de natureza diversa e plural, misturados nas universidades, nas redes sociais, nas manifestações culturais, em ambientes de trabalho etc. vieram para ficar, porque, graças a esses contextos, os direitos – e com eles a ideia de democracia – conseguem ser praticados concretamente. No entanto, como lembrava Antonio Candido, a democracia é muito trabalhosa. Além de ser uma prática constante, demanda uma perseverante formação cultural para firmar sua própria concepção de sociedade. A perda de terreno pode ser rápida... A oligarquia amedrontada associou-se com interesses internacionais contrários à nossa soberania, que lhe permitiram somar forças para uma
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contrarrevolução antidemocrática de natureza preventiva. Seu objetivo é evitar que as contradições da desigualdade e da exclusão que ela própria gera continuem a se converter em força política adversa à sua continuidade. Para tanto necessita garantir a continuidade da cultura social e institucional. Se até há pouco o Brasil se caracterizou como um Estado de di reito aberaberto à democracia, hoje se volta a passos largos rumo a um Estado de direito oligárquico. Não se trata de um jogo de palavras; há uma mudança profunda acerca do que é Estado, sociedade e racionalidade social.
se submeter a totalidade do contexto social. A rigor, ao “judicializar” o plano político, o Estado é adequado à direção necessária para a continuidade do poder nos moldes oligárquicos existentes. A não política resultante da “judicialização” é a política congelada na situação em que se encontra e desfalcada de sua própria identidade. É muito nítido o trânsito de um “Estado de direito” democrático, embora com uma oligarquia dominante, para um semidemocrático Estado de “direito oligárquico”. Nessa reconstrução, a própria natureza do “social” é submetida a uma mudança estrutural. Os “bens comuns públicos”, que a rigor incluem participação e decisão do público, passam a ser bens comuns dotados de “publicidade”. Em substituição ao caráter público do social na sociedade, que reincide praticamente sobre esta, convertendo-a em formação viva, inst ala-se mediante a “publicidade” um sucedâneo dessa dimensão do que é público, agora reduzido à exposição pública do existente partilhado passivamente. É o que ocorre nas redes sociais, que parecem substituir o social, embora apenas o confirmem em seu formato vigente. Mas o “horror thatcheriano”, a sociedade, existe e é uma realidade prática, efetiva. Nela a diferença em relação aos comportamentos derivados da lógica de mercado está na ordem do dia por incluir a democracia. A diversidade, diversidade, por exemplo, exemplo, impõe-se por cima dos critérios mercantis; de outra parte, a intolerância reinante no individualismo do mercado neoliberal precisa ocultar permanentemente sua afinidade com os privilégios econômicos. As interações no “mundo digital”, que pareciam restringir-se inteiramente às relações no plano de indivíduos e famílias, apenas reforçando certas posições tomadas de antemão e obstruindo seu debate real na sociedade, mais e ma is convertem-se em meios a serem usados nas interações efetivamente sociais. Apenas em sociedade os seres humanos conseguem se individualizar. Em uma ordem mercantil capitalista, quando muito, são alçados à condição de vendedores, compradores ou mercadorias. Aprofundar a exposição e as práticas públicas democráticas na sociedade, em suas instituições e organizações, constitui o único antídoto à contrarrevolução antidemocrática e aos seus agentes no mercado, no parlamento, na grande imprensa e na justiça oligárquicos. Assim será possível resistir às suas imposições e ampliar as contradições que elas geram.
Não se trata de um jogo jogo de palavra palavras; s; há uma mudança profunda acerca do que é Estado, sociedade e racionalidade racionalidade social socia l No plano oligárquico, o centro do poder soberano e público, o Estado, limita-se a ser detentor do monopólio da violência. A sociedade é “o mercado”, bastando para essa constatação acompanhar o zelo com que a grande mídia tradicional reconstrói diariamente essa pretensa identidade entre ordem econômica e sociedade. Práticas sociais, como eleições, inclusão social, direitos humanos, debates públicos, são fatores de perturbação da lógica social mercantil. “Social” significa aqui apenas um coletivo de indivíduos privados, e não uma concepção de totalidade pública. Não seria outro o motivo da famosa proclamação de Margaret Thatcher, recentemente lembrada por Geraldo Alckmin: “Isso que chamamos sociedade não existe; há somente famíl ias e i ndivíduos”. ndivíduos”. Temem uma sociedade em que a direção do todo pode ser outra, diversa e contrária àquela consolidada na socialização capitalista em vigor. Se à mídia compete a construção de uma noção de sociedade oligárquica e de seus agentes, à justiça oligárquica cabe um papel decisivo na produção do poder de direção social. Cabe a ela evitar que os direitos universais, praticados na sociedade igualitária, contaminem o adequado funcionamento dos agentes do mercado na produção da desigualdade. Está em causa garantir a operacionalidade da socialização conforme a racionalidade imposta no sentido oligárquico. A lei e a jurisprudência são, por si mesmas, uma concretização prática da direção legal universal a que deve
*Wolfgang Leo Maar é
professor titular de Ética e Filosofia Política da Universidade Federal de São Carlos e pesquisador do Cenedic da FFLCH-USP.
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ELEIÇÕES
Jair Bolsonaro: o candidato da (in)segurança pública
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e todos os presidenciáveis para as eleições de 2018, Jair Bolsonaro é aquele que busca, de maneira mais enfática, se apresentar como o candidato capacitado a solucionar o problema da violência que assola o país. Na ausência de um programa, é possível recorrer ao farto material disponível na internet, de modo a antecipar aquilo que provavelmente será sua proposta para a segurança pública. As declarações presentes em vídeos, reportagens e entrevistas ajudam a fazer uma leitura interessante desse personagem que, mesmo sem nunca ter concorrido à Presidência, consegue ter mais seguidores no Facebook do que qualquer outro político brasileiro.1 Nas entrevistas, a retórica de Jair Bolsonaro caracteriza-se pelo uso de frases feitas, pela repetição de respostas prontas que suposta mente dão cercerto e pela impostação imperativa da voz. Quando não concorda com os pressupostos de uma pergunta, uma de suas estratégias recorrentes é desqualificá-la como algo procedente de um campo político que ele considera ilegítimo em si mesmo. Nesse caso, é suficiente enquadrar uma questão como “esquerdismo”, “direitos humanos” ou “ideologia de gênero” para não precisar levá-la a sério. Esse ponto é importante. Se antes de ganhar a visibilidade que tem hoje Bolsonaro se recusava a debater com a “pauta da esquerda” porque seu posicionamento ideológico era de confrontação total e irreconciliável com esse grupo – como o da esquerda mais
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Em seu horizonte mental não há lugar para uma sociedade menos violenta. Sua definição do trabalhador policial como um “matador” profissional e sua proposta de dobrar o número de mortos pela polícia como forma de combater o crime denotam que, de sua perspectiva, a violência não pode ser reduzida, apenas canalizada para o extermínio de pessoas vistas como ameaça POR LEANDRO GAVIÃO E ALEXANDRE VALADARES*
radical em relação a ele –, agora essa recusa implica a deslegitimação da esquerda como interlocutora política em qualquer sentido. Essa posição tem sido incorporada ao discurso dos jovens que se politizam à direita e idealizam o clã Bolsonaro. Sobre a segurança pública, as falas do candidato caracterizam-se pela negação reiterada de qualquer aspecto social da criminalidade. Seu refrão preferido, nesse caso, é dizer que, para a esquerda, o “bandido é vítima da sociedade”, como se ali residisse uma tentativa ingênua de isentá-lo de responsabilidade. Com efeito, trata-se de uma distorção reducionista e desonesta de uma perspectiva segundo a qual a violência tem causas mais complexas do que a redução analítica aos atos do agente que a comete. Toda abordagem que isole o indivíduo de seu meio econômico, social e cultural se mostrará incapaz de revelar fenômenos cujas origens se encontram em dimensões mais amplas. Edgar Morin diz que “um pensamento mutilado leva a decisões erradas ou ilusórias”. É exatamente o que acontece quando se atomiza a conduta do criminoso, separando-o do campo de forças das estruturas socioeconômicas. A consequência consequência previsível e inevitável é a elaboração de argumentos frágeis, levando a conclusões como a da suposta essência degenerada do agente. Pouco importa, por exemplo, que indicadores de criminalidade citados em estudos de segurança pública reafirmem padrões e tendên tendências cias estatist icamente correlacionados a variáveis
econômicas e sociais. Segundo Bolsonaro, a atitude delinquente é sempre redutível ao infrator, sendo explicada por meio de sua índole ou caráter. De fato, ao recusar qualquer consideração das condições sociais da violência, o que resta é uma concepção biológica e moral da figura do delinquente. delinquente. O humanista católico ing inglês lês Tomás Tomás Morus, em sua magnum opus A A utopia utopia (1516), já repreendia – com cinco séculos de antecedência – a visão estreita do senso comum sobre a essência perversa do criminoso. Seu comentário era eloquente: “Vocês “Vocês deixam desviar-se e deteriorar-se aos poucos o caráter das pessoas desde a primeira infância, e punem adultos por crimes cuja promessa garantida eles carregam desde os primeiros anos”. anos”.2 Ao ca recer de uma abordagem de viés holístico, que busque retotalizar o indivíduo ao inseri-lo num campo de forças que vai agir na formação de sua personalidade e em sua relação com o meio onde vive, torna-se fácil acreditar em falsas conclusões. No âmbito da delinquência, sempre será mais simples lidar com a individualização da culpa do que entender a complexidade das causas profundas dos processos sociais. Não causa espanto, portanto, que o (não) programa de Bolsonaro seja tão bem recebido pelo eleitorado médio. Em um país com vocação conservadora e de longa tradição autoritária, uma plataforma política comprometida comprometida em instituir, na prática, um regime de exceção que permitiria aos agentes do aparato repressivo combater a violên-
cia com mais violência 3 e atuar como grupos de extermínio 4 parece atrair um eleitorado que já está cansado de lidar com o cri me em seu cotidiano. Se, por um lado, a violência é um fenômeno complexo que se explica por um conjunto de condicionantes socioeconômicos – e justamente por isso é possível identificar seus padrões de ocorrência e definir contextos em que esses atos são mais ou menos frequentes –, seus efeitos são, por outro lado, percebidos como perdas e sofrimentos individuais ou familiares, capazes de ati ngir qualquer um em qualquer lugar. Vale lembrar que 90% dos brasileiros brasileiros são favoráveis à redução da maioridade penal – cujo apoio é maior entre os estratos mais pobres,5 embora seja também expressivo entre a classe média. O discurso da guerra incondicional à criminalidade tem forte apelo junto à classe média não só porque ela julga que seus filhos jamais serão vítima s da violência policial, mas também porque, como minoria relativamente favorecida numa sociedade desigual, ela tem sempre presente a fragilidade de sua posição, cuja sensação contínua de insegura nça é um epifenômeno. De outra parte, a exposição direta e cotidiana das classes pobres à violência – estatisticamente, os estratos sociais mais baixos são as maiores vítimas de crimes como roubo e assassinato –, agravada pelas condições adversas de moradia em bairros sem infraestrutura e em uma dura luta pela sobrevivência em jornadas exaustivas de trabalho, torna-as sensíveis ao discurso da repressão policial.
A rigor, se a violência v iolência se apresenta como uma dinâmica geral de estruturação das relações sociais, ela é, todavia, seletiva em seus efeitos. De acordo com dados do Ministério da Justiça, 6 três em cada quatro vítimas de homicídio no país são negras. Ademais, a taxa de jovens negros de 15 a 29 anos assassinados é três vezes superior à dos brancos (79,4 contra 26,6 a cada 100 mil habitantes). Essas proporções encontram correspondência nos dados do sistema prisional: em 2014, dois terços da população carcerária do país eram compostos por negros. Diante de uma política de segurança pública que, entre 2000 e 2014, fez crescer 119% o índice de encarceramento no país7 – variação bem acima, por exemplo, da taxa de homicídios por 100 mil habitantes, habitantes , que subiu 10,6% 10,6% entre 2005 e 2015 8 –, Bolsonaro se exime de demonstrar qualquer preocupação com as condições dos presídios do país. Seu ponto de vista corrobora a realidade: as prisões têm servido menos para ressocializar os detentos detentos que para retirar da v ida social indivíduos identificados como “potencialmente perigosos”. Ao comemo comemorar, rar, por exemplo, exemplo, os massacres ocorridos em presídios – como em Pedrinhas, no Maranhão, em 2014 9 –, Bolsonaro dá a entender que, para ele, a superlotação, superlotação, as chacinas e as práticas cotidianas de maus-tratos e tortura que ocorrem no interior dos cárceres não são problemas de segurança pública, e sim soluções. Ao se recusar a reconhecer os condenados como sujeitos de direitos e ao manifestar sua disposição a dar “carta branca” para a polícia mata r, Bolsonaro se coloca como o candidato que cumpriria uma espécie de mandato tácito outorgado pela maioria da sociedade, que se declara a favor do acirramento da repressão policial. Mais ainda, ele se faz port a-voz da ideologia ideologia punitivista que ataca os princípios básicos dos direitos humanos. De seu
ponto de vista, esses direitos constituem um problema porque “protegem” os bandidos. Sendo assim, nada mais são do que obstáculos legais ao exercício irrestrito da autoridade. Os projetos de lei mais recentes da atuação parlamentar de Bolsonaro refletem sua visão sobre a criminalidade. São iniciativas que pautam o aumento das penas de crimes contra a propriedade (PL 7.700/2017 e 7.701/2017), a ampliação do direito de porte de armas (PL 7.282/2014) e o alargamento das ressalvas legais aos atos praticados em legítima defesa e em defesa de terceiros (PL 7.105/2014). O endurecimento penal e a tendência a priorizar estratégias de combate ao crime que isolam e individualizam a conduta criminal reiteram a negação do caráter social – ou socialmente estruturado – da v iolência no país. país. Esses elementos permitem supor que, na hipótese de um governo Bolsonaro, as questões de fundo que geram a violência permaneceriam intocadas. Se para ele a criminalidade é o resultado agregado de milhares de decisões particulares de sujeitos propensos a delinquir, Bolsonaro não verá, em princípio, qualquer razão para propor uma política preventiva à violência – exceto, talvez, uma política que identifique indivíduos “suscetíveis” a cometer crimes e os persiga “preventivamente”. Em seu horizonte mental não há lugar para uma sociedade menos violenta. Sua definição do trabalhador policial como um “matador” profissional e sua proposta de dobrar o número de mortos pela pol ícia como forma de combater o crime 10 denotam que, de sua perspectiva, a violência não pode ser reduzida, apenas canalizada para o extermínio de pessoas vistas como ameaça. Por outro lado, a especial insistência com que Bolsonaro apregoa sua pretensão de garantir que todo cidadão tenha uma arma 11 demonstra que,
A fábula das abelhas Esta obra-prima britânica do século XVIII desencadeou uma grande controvérsia ao rejeitar uma visão positiva da natureza humana e argumentar pela necessidade do vício como fundamento de uma economia capitalista emergente. Clássico de Bernard de Mandeville considera que a insensibilidade geral é condizente com o interesse supremo do Estado e, consequentemente, da ordem pública.
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em síntese, ele não tem um projeto de segurança pública. Em primeiro lugar, porque seu foco se restringe à repressão dos crimes cometidos e, em segundo lugar, porque uma política de segurança cuja proposta mais emblemática é armar cidadãos particulares não pode ser dita pública. Afora os riscos imprevisíveis que acarreta – discussões no trânsito, desavenças domésticas, brigas em locais públicos e outros tipos de conflitos que podem fazer vítimas fatais –, essa “coparticipação” de cidadãos comuns na prerrogativa do Estado de combater a violência pode significar, numa sociedade dramaticamente desigual como a nossa, a privatização da segurança individual num cenário de guerra hobbesiana.
comemorar uma intervenção federal militarizada no estado em que se reelegeu como o deputado federal mais votado em 2014. Contudo, o tom crítico e distanciado de seu posicionamento público a respeito do decreto12 denota que ele já percebeu a fumaça suspeita que se adensa sob o foguetório midiático: enunciada por um presidente presidente impopular que busca melhorar os índices de aprovação de seu governo e não descarta se lançar como candidato nas próximas eleições, a intervenção federal no Rio de Janeiro parece ter motivações mais políticas que administrativas ou técnicas. Além de projetar os militares na cena política, ela desarma o deputado federal de seu principal recurso ideológico: o discurso de guerra contra o crime.
CONSEQUÊNCIAS DA INTERVENÇÃO FEDERAL
Para além dos resultados sociais que a militarização da segurança pública pode desencadear, o decreto de intervenção federal no estado do Rio de Janeiro coloca de vez o tema da violência e do enfrentamento à criminalidade no centro dos debates políticos pré-eleitorais. À primeira vista, essa mudança no cenário favoreceria candidaturas cujo discurso tem reivindicado a necessidade de intensificar a repressão policial, de endurecer as penalidades e de sacrificar direitos e garantias i ndividuais em nome da “pacificação” das ruas. Em tempos de crise econômica e desemprego, com aumento dos indicadores de violência e da sensação de insegurança, o populismo penal tem, de fato, se mostrado uma estratégia retórica eficaz. Insistindo em qualificar os conflitos sociai s como situações de “guerra”, “guerra”, essa doutrina da intolerância difunde a crença de que é preciso adotar, com urgência e sem concessões humanitárias, soluções de força para derrotar os “inimigos internos” da ordem. Bolsonaro, encarnação mais celebrada do gênero, teria, a princípio, razões para
*Leandro Gavião é
doutor em História Política (Uerj) e professor da Universidade Católica de Petrópolis (UCP-RJ); Alexandre Valadares é doutor em Filosofia (UFRJ).
1 Até o fechamento desta edição, sua página contava com mais de 5 milhões de seguidores, contra 3 milhões de Lula. 2 Tomás Morus, A utopia, L&PM, Porto Alegre, 2010. 3 “Para Bolsonaro, ‘violência, se for o caso, se combate com violência’”, O Popular , 30 maio 2017. 4 “Bolsonaro: Vou combater a corrupção e a violência com radicalismo”, Valor , 14 dez. 2017. 5 “Nove emcada dez apoiam redução da maioridade penal, diz Datafolha”, Jornal do Brasil , 22 jun. 2015. 6 Ver em: . 7 Ministério da Justiça, “MJ divulga novo relatório sobre população carcerária brasileira”, 24 jun. 2016. 8 “Taxa de homicídios no Brasil aumenta mais de 10% de 2005 a 2015”, G1, 5 jun. 2017. 9 “A única coisa boa do Maranhão é o presídio de Pedrinhas, di z Bolsonaro”, UOL, 11 fev. 2014. 2014. 10 “Policial que não mata não é policial ”, HuffPostBrasil, 27 nov. 2017. 11 Ver, por exemplo, os vídeos da palestra que o deputado realizou no Clube Hebraica do Rio de Janeiro, em 3 d e abril de 201 2017. 7. 12 Ver, por exemplo: “Apesar de crítica, Bolsonaro vota a favor de intervenção federal no Rio”, UOL, 20 fev. 2018.
Autobiografia de Autobiografia Norberto Bobbio
Conversando com Gaspare Spatuzza
Um dos maiores intelectuais italianos conta sua vida e dá seu testemunho, em primeira pessoa, sobre os temas e angústias, as contradições e os sentidos que perpassam o século XX. Organizado e comentado pelo jornalista Alberto Papuzzi, traz documentos do acervo pessoal do pensador ao lado de escritos originais.
Em seu testemunho direto e pulsante, coletado pela jurista Alessandra Dino em local secreto, Spatuzza conta a história do jovem de Palermo atraído e cooptado pelo crime, e permite um mergulho nas complexidades envolvidas em seu percurso. O retrato resultante mostra Máfia e mafioso em cores ao mesmo tempo esclarecedoras, esmerizantes, trágicas e brutais. Produzir conteúdo Compartilhar conhecimento. Desde 1987. www.editoraunesp.com.br
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CONFUSÃO ENTRE PATOLÓGICO E EXISTENCIAL
A medicalização da experiência humana Variação do humor ou momentos de tristeza e tensão são sempre sinais de doença? Por muito tempo, a psiquiatria europeia soube avaliar a gravidade e definir uma prescrição apropriada, da droga ao tratamento psicanalítico. A indústria farmacêutica incita, contudo, à transformação de dificuldades normais em patologias, às quais ela oferece uma solução POR GÉRARD POMMIER*
iante da realidade do “sofrimento psíquico” – uma das mais importantes patologias modernas –, entrou em ação, há algumas décadas, uma maquinaria diagnóstica nunca antes vista, cujo objetivo é explorar esse enorme mercado potencial. Para isso, foi necessário primeiro substituir a grande psiquiatria europeia, que, graças a observações clínicas múltiplas e coerentes, reunidas durante os dois últimos séculos, havia repertoriado os sintomas, classificando-os em grandes categorias: neuroses, psicoses e perversões. Munido desses conhecimentos, o especialista podia dar um diagnóstico e distinguir os casos graves dos causados por circunstâncias passageiras. Ele separava, então, o que exigia o uso de medica mentos daquilo que poderia ser solucionado melhor com a conversa. A psiquiatria psiquiatria clássica e a psicanálise haviam chegado às mesmas conclusões. Essas duas abordagens tão distintas se auxiliavam e se enriqueciam mutuamente. O mercado de medicamentos ainda guardava proporções razoáveis, o que deve ter dado o que pensar à “Big Pharma” – apelido conveniente para o enorme poder dos laboratórios farmacêuticos, que fazem uma corte assídua tanto aos clínicos gerais quanto às mais altas instâncias do Estado e dos serviços de saúde, com os quais sabem se mostrar bem generosos (oferecendo, por exemplo, cruzeiros de “formação” aos jovens psiquiatras). A jornada de conquista conquista desse grande mercado começou nos Estados Unidos, com a Associação dos Psiquiatras Americanos (APA) e seu primeiro manual de diagnóstico e estatística dos problemas mentais, o Diagnostic
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and Statistic al Manual of Mental Disor (Manual de Diagnóstico e Estatísders (Manual
tica dos Transtornos Mentais, ou DSM), em 1952.1 Em 1994, a Organização Mundial da Saúde (OMS) adotou no capítulo “Psiquiatria” da Classificação Internacional das Doenças as nomenclaturas do DSM-IV, o que levou
vários países a fazer o mesmo. Seguiu-se uma inflação de patologias repertoriadas. Havia sessenta em 1952, mas 410 em 1994, no DSM-IV. EXTINGUIR O VULCÃO
Negócio é negócio. O método DSM tem de ser simples: não se cogita buscar a causa dos sintomas nem saber a que estrutura psíquica eles correspondem. Basta encontrar o caso que se conforme ao comportamento visível do paciente. Essa prática esquece que um sintoma não é jamais uma causa. A conversa com o psiquiatra mal pode ser considerada necessária, pois serve apenas para repertoriar os “transtornos” superficiais: “transtornos” do comportamento, da alimentação, do sono... enfim, “transtornos” de todos os tipos, até a recente invenção dos “transtornos” pós-atentados. A cada um corresponde – maravilha! – um medicamento. Foi nessas águas perturbadas que naufragaram os antigos diagnósticos. O lobby da Big Pharma conquistou também as faculdades de Medicina, onde só se ensina o DSM. Mais: os próprios laboratórios transm item os ensinamentos – numenumerosos conflitos de interesses foram denunciados. A grande cultura psiquiátrica acabou esquecida, de sorte que, diante de um paciente, o novo clínico made in DSM não sabe mais se está lidando com uma psicose, uma neurose ou uma perversão. Ele não distingue um problema grave de um estado circunstancial. E, na dúvida, receita psicotrópicos... “Depressão”, por exemplo, é palavra que faz par te do vocabulário corrente. O blues (tristeza) pode dominar qualquer pessoa, a qualquer momento da vida. Mas por que dar esse sentido ao conceito de “depressão”? Ela foi elevada à dignidade de uma doença à parte. Contudo, a tristeza pode ser um sintoma tanto de melancolia – acarretando risco elevado de suicídio – quanto de um estado passageiro e mesmo normal, como o luto. Confúcio recomendava recomendava ao filho
um luto de três anos após a morte do pai; hoje, se você continua triste depois de quinze dia s, está doente. Vão lhe dar antidepressivos, que podem temporariamente aliviar o problema, mas não o resolverão. resolverão. Entretanto, como não convém interromper o tratamento de repente, a prescrição dura às vezes a vida inteira.
Enquanto a vida segue seu curso, nós todos somos normalmente “bipolares”, hoje hoje alegres, a legres, amanhã tristes O marketing do DSM é simples: basta inventar, a intervalos regulares, novos transtornos que misturem a patologia e o exi stencial. Isso é muito fácil, já que a existência se apoia naquilo que nos faz ir em frente. Aquilo que não funciona – em nossa vida – nos dá energia para evitá-lo. É necessário chorar antes de rir. Estamos à beira de um vulcão: extingui-lo com medicamentos que não passam de drogas é extinguir uma vida, porquanto viver é correr riscos o tempo todo. “O patológico só tem sentido para o improdutivo”, dizia o escritor Stefan Zweig. 2 O nome de alguns medicamentos parece corroborar essa ideia, mas em uma acepção no mínimo discutível: em certas formas agudas de psicose, os psicotrópicos são imprescindíveis para acalmar a s alucinações e os delírios. Tais medicamentos são chamados de antipsicóticos. Na cabeça do fabricante, essas moléculas estariam então destinadas a acabar de vez com a pessoa que sofre de psicose? O fabricante esquece uma coisa: coi sa: o “paciente” é sempre maior que seu padecimento. Esses remédios deviam chamar-se de preferência “pró-psicóticos” ou “filopsicóti-
cos”, pois um psicótico libertado de seus delírios é frequentemente um grande inventor (o matemático Georg Cantor), um grande poeta (Friedrich Hölderlin), um grande pintor (Vincent van Gogh) ou um grande filósofo (Jean-Jacques Rousseau). Mas a Big Pharma pouco se importa com a liberdade reencontrada pelo paciente, que no fim poria em causa sua empresa. Ela prefere o ópio. E seus vapores se instalam com facilidade, porque o “transtorno” é associado às manifestações efetivas do sofrimento psíquico. Não bastasse isso, mais vale que o número de “transtornos” cresça e se multiplique. Entre os mais recentes, o “transtorno bipolar” se beneficiou de uma ampla promoção midiática, embora apenas patologize a doença universal do desejo: este se atira, rindo, para o objeto de seu sonho, mas, quando o apanha, o sonho está mais longe ainda e o riso se transforma em lágrimas. Enquanto a vida segue seu curso, nós todos somos normal mente “bipolares”, hoje alegres, amanhã tristes. Acontece, porém, que nas psicoses melancólicas o objeto de desejo é a própria morte ou a explosão de um surto maníaco. O diagnóstico de “bipolaridade” se torna então criminoso, pois não faz distinção entre o ciclo maníaco-depressivo das psicoses – com o risco de passagem ao ato grave justificando a prescrição de neurolépticos – e a euforia-depressão das neuroses. Essa distinção, riscada dos DSMs, provoca inúmeras situações dramáticas.3 O “transtorno” mais comum e inquietante, pois diz respeito às crianças, que sofrem sem saber o motivo e não podem se queixar, é sem dúvida o “transtorno do déficit de atenção com ou sem hiperatividade” (TDAH). Essas dificuldades da infância vêm sendo enfrentadas há tempos por psiquiatras infantis e psicanalistas, pioneiros na matéria. Mas, como se trata de problemas peculiares a cada criança, eles não ousaram rotulá-los sob um “transtorno” geral. Graças a isso, são hoje acusados de não propor medidas,
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principalmente pelas associações de pais, algumas delas subvencionadas por laboratórios farmacêuticos (por exemplo, a associação Hypersupers TODA/H France, apoiada pelos laboratórios Mensia, Shire, HAC Pharma e NLS Pharma). A imprecisão desse pretenso diagnóstico equivale a dizer, por exemplo, que a tosse é uma doença. E o exemplo vem de cima: em 29 de setembro de 2017, houve na Universidade de Nanterre uma conferência em favor do diagnóstico de TDAH sob o patrocínio do presidente francês, Emmanuel Macron, e da ministra da Saúde, Agnès Buzyn. Os psicanalistas inscritos para o colóquio se viram pura e simplesmente impedidos de entrar pelos porteiros. O TDAH não existe nas classificações francesas, seja a Classificação Francesa dos Transtornos da Criança e do Adolescente (CFTMEA), fiel à psiquiatria francesa, ou mesmo a Classificação Internacional das Moléstias (CIM-10), que acolhe as opções do DSM. Elas descrevem apenas os problemas de agitação. E agitação não é doença. Pode ter várias causas (problemas familiares, dificuldades na escola etc.); exige primeiro que as crianças e a família sejam ouvidas, e isso muitas vezes basta para resolver tudo. Com o TDAH, o sintoma se transforma em doença e, mais grave ainda, atribuem-lhe causas “neurodesenvolvimentistas”. mentistas”. Essa a firmação não repousa sobre nenhuma base científica, ao passo que provas não faltam das dificuldades causadas por problemas no seio da famí lia ou na escola...
Jerome Kagan, professor de Harvard, declarou em uma entrevista de 2012: “O TDAH não é uma patologia, mas uma invenção. [...] Oitenta por cento dos 5,4 milhões de crianças tratadas com Ritalina nos Estados Unidos não apresentam nenhuma anormalidade metabólica”.4 Na França, Patrick Landman mostrou em seu livro Tous hiperactifs? [Todos hiperativos?] (Albin Michel, 2015) que o TDAH não tem nenhuma causa biológica identificável: seus sintomas não são específicos e não apresentam indicadores biológicos. Nenhuma hipótese neurobiológica foi validada. Leon Eisenberg, inventor da sigla “TDAH”, declarou em 2009, sete meses antes de falecer: “O TDAH é o exemplo típico de uma doença inventada. A predisposição genética para o TDAH é tota lmente superestimada”. 5 Todavia, com a ajuda do lobby, cerca de 11% das crianças com idade entre 4 e 17 anos (6,4 milhões) receberam o diagnóstico de TDAH desde 2011 nos Estados Unidos, segundo os Centros de Prevenção e Controle das Doenças norte-americanos. Segue-se quase sempre uma prescrição de Ritalina (metilfenidato), que contém moléculas consideradas estupefacientes nas classificações francesas. A prescrição dessa anfetamina em grande escala poderia provocar um escândalo sanitário semelhante aos do Mediator e do Levothyrox. Essas substâncias viciam, e não se exclui – possibilidade ainda em discussão – uma correlação entre as crianças que tomaram Ritalina e os adolescentes que se drogam.
As cri anças não são poupadas pelos transtornos da sociedade, que lhes impõe o imperativo do sucesso rápido, da competitividade, da obediência a normas que não se aplicam à sua idade. As recalcitrantes são facilmente consideradas hoje “deficitárias”. É, portanto, inquietante ver surgir em um site do Ministério da Educação Nacional da França uma mensagem endereçada aos professores afirmando, sem provas, que o TDAH é uma “doença neurológica” e fornecendo uma receita detalhada para o estabelecimento de diagnósticos prévios. Os “sinais indicativos” propostos poderiam se aplicar a quase todas as crianças. Sempre a mesma mistura de problemas normais e patologia... A INFÂNCIA NA LINHA DE FRENT E
Há tempos, Michel Foucault pôs em evidência a repressão, notadamente pelos Estados e as religiões, desse “mal-estar na cultura” que é a sexualidade. Hoje, a camisa de força de um patriarcado de direito divino está em via de margina lização. Como a repressão vai se organizar daqui por diante, supondo-se que o termo “sexualidade” deva ser entendido em sentido amplo? A indústria farmacêutica é que pretende tomar as rédeas da ciência. A mensagem é clara : “Não vos inquieteis, ó vós que tendes insônias, momentos de desconsolo, excitação exagerada, ideias suicidas! A culpa não é vossa, é de vossos genes, de vossos hormônios; sofreis de um déficit neurodesenvolvimentista, neurodesenvolvimentista, e nossa farmacopeia vai consertar tu-
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do”. Trata-se de fazer crer que tudo se resume a problemas de neurotransmissores e de mecânica, nos quais o humano não entra. Seria necessário esquecer que as mazelas deliciosas e cotidianas das relações entre homens e mulheres, as questões jamais resolvidas de filhos com pais, as relações de forças angustiantes com a hierarquia e o poder deitam raízes na s profundezas da infância. Por todos os lados, a infância está na linha de frente, o que torna o caso do TDAH ainda mais “perturbador” que os outros. Em todos os tempos e lugares, a criança é a primeira a ser reprimida, espancada, formatada. Quando um professor da velha escola puxava as orelhas de um aluno ag itado, isso era – por mais chocante que pareça – quase mais humano do que exigir-lhe um diagnóstico de deficiência. Preservava-se uma relação pessoal, que a pseudociência elimina. Pela primeira vez na história, é em nome de uma pretensa ciência que as crianças são “espancadas”. Todos os anos o Papai Noel, esse mito de múltiplas estratificações (como bem mostrou o etnólogo Claude Lévi-Strauss),6 traz para a s crianças presentes a fim de consolá-las. Hoje, a Big Pharma pretende vestir o capuz do Papai Noel. Mas não nos esqueceremos de que, sob a roupa vermelha, esconde-se uma sombra muito parecida com o Açougueiro da Festa de São Nicolau.7 *Gérard Pommier é
médico psiquiatra, psicanalista, professor universitário emérito e diretor de pesquisa na Universidade Paris 7. Autor, principalmente, de Comment les neu- rosciences démontrent la psychanalyse [Como as neurociências dão suporte à psicanálise], Flammarion, Paris, 2010, e de Féminin, révolution sans fin [Feminino, revolução sem fim], Pauvert, Paris, 2016.
1 Ver “La bible américaine de la santé mentale” [A bíblia americana da saúde mental], Le Monde Di plomatique plomatiq ue, dez. 2011. 2 Stefan Zweig, Le Combat avec le démon: Kleist, Hölderlin, Nietzsche [A luta com o demônio: Kleist, Hölderlin, Nietzsche], Le Livre de Poche, Paris, 2004 (1. ed.: 1925). 3 Eu mesmo acompanhei em Saint-Anne um paciente melancólico a que um psiquiatra, ignorante de tudo o que não está no DSM, deu alta. Ele se suicidou. Vi inúmeros casos semelhantes. 4 “What about tutoring instead of pills?” [Que tal monitoramento em vez de pílulas?], Spiegel Online, 2 ago. 2012. Disponível em: . 5 “Schwermut ohne Scham” [Tristeza sem vergonha], Der Spiegel , Hamburgo, 9 fev. 2012. 6 Claude Lévi-Strauss, Le Père Noël supplicié [Papai Noel supliciado], Seuil, Paris, 1994. 7 Na França, é bastante difundida a lenda de São Nicolau, precursor do Papai Noel. Durante o inverno, três crianças bateram à porta do açougueiro Pierre Lenoir. Ele aceitou abrigá-las durante a noite. Porém, assim que elas entraram, ele as matou. Em outra noite, São Nicolau passava pela região e buscou abrigo na mesma casa. Enquanto dormia, ele sonhou com o assassinato das crianças e rezou até que elas ressuscitassem, tornando-se assim protetor das crianças.
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UM BENEFÍCIO AO MESMO TEMPO COLETIVO E INDIVIDUAL
Por que consumir orgânicos? A associação francesa Gerações Futuras divulgou, no dia 20 de fevereiro, um relatório sobre a presença de pesticidas nos produtos agrícolas: 73% das frutas e 41% dos legumes analisados nos últimos cinco anos estavam contaminados. Motivo para reforçar o interesse na agroecologia. Mas o que dizem os estudos sobre os benefícios desta para o meio ambiente? POR CLAIRE LECOEUVRE*
agricultura orgânica remete às práticas que procuram favorecer a preservação dos ecossistemas e a equidade na classe dos agricultores. É sobretudo a ausência de pesticidas sintéticos que reduz consideravelmente seu impacto no ambiente e na saúde. Fabricadas em laboratório, as moléculas que compõem os produtos fitossanitários acompanharam o aumento da produção agrícola em todo o planeta. Mas, após algumas décadas, aprofundou-se a consciência dos efeitos do emprego intensivo dos produtos químicos cada vez mais numerosos. Exemplo: depois de vinte anos, registrou-se uma poluição generalizada das águas superficiais e subterrâneas por nitratos e substâncias fitossanitárias. Segundo os últimos dados das agências responsáveis pelo controle das águas, em 2014 87% dos rios vistoriados continham pelo menos um pesticida.1 As duas substâncias mais frequentemente encontradas são o Ampa, um metabólito do glifosato, e o próprio glifosato, o famoso herbicida classificado como provável cancerígeno pela Organização Mundial da Saúde. De 1994 a 2013, 39% das interrupções de captações de água potável se deveram à poluição por nitratos e pesticidas.2 Essa poluição e seu t ratamento custariam entre 6 40 milhões e 1,140 1,140 bilhão de euros por ano. 3 “Sabemos que mais va le prevenir que remediar”, diz Patricia Blanc, diretora-geral da agência de controle de águas Seine-Normandie. “Há vinte anos, nossas agências começaram a financiar pro jetos de mudança mudança das práticas agrícolas, pois temos um verdadeiro problema de poluição das águas.” A agricultura convencional convencional também produz efeitos sobre a biodiversidade. “Todas “Todas as ativ idades caminham no mesmo sentido: a diminuição do número de espécies de insetos”, resume Axel Decourtye, diretor científico do Instituto Nacional de Pesquisa Agronômica (Inra, na sigla em francês). Em outubro de 2017, um novo estudo revelou uma perda de 76% a 82% da biomassa dos insetos em vinte anos, em diversas regiões da Alemanha.4 Quanto aos pássaros, a quantidade de espécies no ambiente agrícola
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caiu pela met ade de 1989 a 2013. 2013. 5 Não é fácil, é claro, determinar as causas exatas da dim inuição da biodiversidabiodiversidade. A dif usão de doenças, o desaparecimento de hábitats e o emprego de produtos fitossanitários são os principais motivos aventados. Todavia, segundo um artigo solidamente fundamentado, mentado, os pesticidas desempenham um papel decisivo no declínio dos insetos polinizadores. 6
A expo exposi sição ção direta direta a diversos produtos fitossanitários causa inúmeros problemas de saúde (câncer, malformações etc.) Em se tratando de hábitats, os agr icultores orgânicos favorecem as pradarias com a rotação de culturas, a plantação de cercas-vivas e ainda as associações de plantas. “A diversificação é um elemento-chave da agroecologia”, confirma Natacha Sautereau, engenheira agrônoma e economista do Instituto Técnico de Agricultura Orgânica (Itab, na sigla em francês). Essas práticas aumentam o número de plantas, aracnídeos, minhocas, coleópteros, pássaros e até mamíferos. O aumento dos recursos alimentares disponíveis favorece também algumas espécies ditas auxiliares – morcegos, ouriços, répteis, certos insetos e ácaros –, que minimizam a pressão dos depredadores. IDENTIFICAR OS EFEITOS DOS PESTICIDAS
Os solos são, com frequência, os grandes esquecidos quando observamos o impacto das atividades humanas. No entanto, o emprego excessivo de pesticidas, de nitrogênio e de fósforo não os poupa. Muito adubo os acidiacid ifica e provoca fenômenos de proliferação de algas, como as “marés verdes” da Bretanha. Os pesticidas sintéticos contaminam os solos e destroem a vida microbiana que ali se encontra. Já a
agricultura orgânica favorece a cobertura dos solos, evitando a erosão. De maneira geral, os solos das fazendas agroecológicas têm quantidades maiores de matéria orgânica, estimadas em 37,4 toneladas de carbono orgânico por hectare, contra 26,7 na agricultura convencional. convencional.7 As grandes culturas orgânicas integram 64% de pradarias, contra 16% na agricultura convencional, mas também mais leguminosas gumi nosas nas rotações e uma melhor cobertura dos solos no inverno. 8 O conjunto dessas práticas favorece o sequestro do carbono, o que pode contribuir para a contenção do aquecimento climático. Avaliar sistemas ag rícolas implica levar em conta seus efeitos sociais. Por exemplo, a diversificação dos produtos e dos métodos de venda na agricultura orgânica, com mais circuitos curtos, exige mais assalariados. Um relatório sobre os elementos secundários da agricultura orgânica revela que, em dois terços das plantações, ela gera muito mais empregos.9 Além disso, em diversas atividades que apresentam dificuldades financeiras aos agricultores, a passagem para a agricultura orgânica se torna uma a lternativa viável, explicando por que, de 2005 a 2016, a superfície agrícola orgânica passou de 2% para 5,7% do total. Observamos isso na produção de leite, frutas e legumes. “De início, são as vicissitudes econômicas que provocam a mudança”, explica Marc Benoît, economista e diretor adjunto do Comitê Interno de Agricultura Orgânica do Inra. “Está “Está em jogo aí a famosa compressão compressão dos preços: o dos gêneros diminui, enquanto aumenta o da energia, dos adubos e dos fitossanitários. No caso do leite, os criadores percebem que o sistema orgânico é melhor, mais rentável.” Estranhamente, esses elementos são raramente destacados. Fala-se mais nos que estão ligados à saúde. A agricultura orgânica produz efeitos nessa área? Para verificar, é necessário levar em conta as exposições diretas e indiretas aos produtos fitossanitários. Diferentemente dos agricultores e ribeirinhos, os consumidores não ficam em contato direto com esses produtos. No entanto, o efeito global do sistema
de agricultura orgânica vai além do indivíduo, sendo interessante considerar o benefício para o conjunto da população. Notemos, num primeiro momento, que certos produtos da agricultura orgânica contêm, paradoxalmente, traços de pesticidas sintéticos: segundo um relatório de 2016, 45% dos produtos convencionais contêm pesticidas, mas também 12% dos provenientes da agricultura orgânica.10 Isso se deve, sobretudo, à contaminação pelas glebas vizinhas e durante o beneficiamento. A exposiçã exposição o direta direta a diversos diversos produ produ-tos fitossanitários causa inúmeros problemas de saúde (câncer, malformações etc.). Em 2013, num relatório produzido por diversos especialistas do Instituto Nacional de Saúde e Pesquisa Médica (Inserm, na sigla em francês), passou-se em revista a literatura científica referente aos efeitos dos pesticidas na saúde.11 “Observamos, em primeiro lugar, que os agricultores são menos su jeitos jeitos que que o resto resto da população população aos cânceres digestivos, do cólon e do reto, bem como aos ligados ao tabagismo, como o do pâncreas, da bexiga e das vias superiores. Isso depende, contudo, da idade e do tipo de trabalhador”, afirma Pierre Lebailly, professor da Universidade Caen-Normandia e pesquisador do Centro François Baclesse. Em contrapartida, foram detectadas ligações entre o emprego de agentes sintéticos e o aumento do risco de desenvolver mal de Parkinson, linfomas não Hodgkin (LNH, cânceres do sistema linfático), mielomas múltiplos (cânceres do sangue) ou mal de Alzheimer. As pessoas que aplicam os pesticidas e os empregados que os produzem teriam de 12% a 28% de riscos suplementares de ter câncer de próstata, sem que seja possível associá-lo mais precisamente a determinada substância. No caso de mulheres expostas durante a gravidez, os estudos mostram a possibilidade de associação na presença, em crianças, de malformações congênitas ou leucemia. Entre as substâncias pesquisadas, o lindano, o DDT e a malationa são frequentemente associados ao desenvolvimento de linfomas não Hodgkin. Ao término de uma longa batalha, o mal
de Parkinson e os linfomas não Hodgkin passaram a ser reconhecidos também como doenças profissionais. Em seguida, outros estudos trouxeram novos elementos probatórios. O grupo Agrican, que atua desde 2006, tem por objetivo avaliar a incidência de câncer entre os agricultores num período de pelo menos dez anos. “Por enquanto, observamos um excesso de 5% a 30%, com relação ao resto da população, de linfomas não Hodgkin, de câncer de próstata e de câncer de pele, como o melanoma”, melanoma”, revela Pierre Lebailly. Vários Vários estudo estudoss apontam apontam para para o inseticiinseticida clorpirifós, que, em caso de exposição durante o período pré-natal, pode acarretar problemas de desenvolvimento cerebral. “O que é certo hoje é que o DDT e o clorpirifós são perigosos para o desenvolvimento desenvolvi mento do cérebro. Entretanto, mais de uma centena de pesticidas poderiam afetar e sse órgão. Precisamos de mais provas para afirmá-lo. Existem já várias pesquisas, mas registramos com frequência exposições mistas que complicam o isolamento de um pesticida”, insiste Philippe Grand jean, epidemiol epidemiologista ogista da Universida Universidade de do Sul da Dinamarca. Nathalie Jas, historiadora do Inra, sustenta que a realidade dos problemas de saúde ligados aos produtos fitossanitários está mascarada pela penúria de dados e por causa da má visibilidade das afecções e da dificuldade de associá-las a exposições a doses fracas. Ela nota também, na França, um desinteresse de mais de trinta anos por esses problemas, considerados “o preço a pagar pelos progressos técnicos da agric ultura”.12
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Desde os anos 1980, estudos vêm avaliando a qualidade dos alimentos produzidos pela agricultura orgânica. “Eles mostram que os orgânicos contêm uma quantidade maior de carotenoides, ácidos graxos e vitamina E”, diz Denis Lairon, diretor emérito de pesquisas do Inserm, especializado em nutrição. Em outubro de 2017, um deles sintetizou o conjunto dos progressos obtidos nessa área. 13 “Nos resultados mais seguros, notamos uma diferença com relação aos polifenóis, existentes em maior quantidade nas frutas e nos legumes orgânicos, que além disso revelaram uma presença menor de cádmio [um metal tóxico]. Entretanto, os resultados não apresentam uma di ferença muito grande”, grande”, contemporiza Axel Mie, um dos autores do artigo e pesquisador do Instituto Karolinska, na Suécia. MENOS RISCO DE OBESIDADE
Um ambicioso estudo epidemiológico foi publicado na França em 2011 pelo grupo NutriNet-S Nutri Net-Santé. anté. Segundo os primeiros resultados, comer alimentos orgânicos reduziria em 23% o risco de excesso de peso e em 30% o de obesidade.14 “Notamos uma obesidade menor quando conseguimos separar os fatores ligados ao modo de vida. Chegamos mesmo a notar certa diferença entre pessoas que consomem uma alimentação equilibrada”, declara Emmanuelle Kesse-Guyot, epidemiologista do Inra encarregada desse estudo. Duas hipóteses são aventadas para explicar o fenômeno. Por um lado, a quantidade maior de ácidos graxos do tipo ômega 3 e de
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antioxidantes nos produtos orgânicos amenizaria amenizar ia a síndrome metabólica. Por Por outro, as pessoas consideradas adeptas de uma alimentação equilibrada consomem mais frutas e legumes; todavia, quando estes não são da agricultura orgânica, contêm numerosos produtos fitossanitários. Ora, muitos estudos constataram um vínculo entre a exposição aos pesticidas e um aumento de obesidade e diabetes de tipo 2. Os problemas de saúde ligados aos produtos fitofarmacêuticos já têm uma longa história. “As primeiras substâncias químicas utilizadas na agricultura que suscitaram uma barulhenta controvérsia foram os arsenicais, lá pelo fim do século X X”, X”, relata Nathalie Jas. O arsênico só foi suprimido definitivamente em 2001, após inúmeras restrições de uso. Do mesmo modo, com o tempo, várias substâncias foram eliminadas. Entre as mais conhecidas, temos a família dos organoclorados e alguns organofosforados. organofosforados. Para muita gente, essas supressões provam o bom funcionamento do sistema de regulação dos produtos sintéticos. Acontece, no entanto, que isso às vezes vem tarde demais e os produtos continuam produzindo efeitos bem depois de sua interdição: por exemplo, a clordecona nas Antilhas e a atrazina, proibida pela União Europeia em 2003, mas que ainda é encontrada na maior parte dos rios. Longe de ensejar a descoberta de outras soluções além dos pesticidas, cada proibição abre caminho para o surgimento de novas substâncias apresentadas como menos perigosas. A toxicidade pode mudar, mas nem
por isso é menor. menor. “Proibiram-se as que se mantinham por muito tempo nos tecidos animais ; as novas, porém, têm afinidade com a água e se acumulam ainda mais nos solos”, explica Axel Decourtye. Sob pressão dos interesses financeiros, a máquina administrativa e sanitária que gerencia os riscos associados aos pesticidas parece um pouco enferrujada, ainda que o acúmulo de dados científicos devesse conduzir a uma adoção bem mais rápida de modos de produção mais sustentáveis. *Claire Lecoeuvre é
jornalista.
1 “Surveillance des pesticides dans les eaux françaises” [Supervisão dos pesticidas em águas francesas], Ministère de la Transition Écologique et Solidaire, Paris, 19 jun. 2017. 2 “L’eau eau et les milieux aquatiques, chiffres-clés” [A água e os meios aquáticos, números-chave], Commissariat Général au Développement Durable, Paris, fev. 2016. 3 “C oûts des principales pollutions agricoles de l’eau” [Custo das principais poluições agrícolas da água], Commissariat Général au Développement Durable, set. 2011. 4 Vários autores, “More than 75 75 percent decline over 27 years in total flying insect biomass in protected areas” [Mais de 75% de declínio, em 27 anos, no total da biomassa de insetos voadores, em áreas protegidas], PLOS One, 18 out. 2017. Disponível em: . 5 “Évolution de l’abondance des oiseaux communs” [Evolução da abundância dos pássaros comuns], Ministère de la Transition Écologique et Solidaire, 24 out. 2014. 6 Ben A. Woodcock, “Impacts of neonicotinoid use on long-term population changes in wild bees in England” [Impactos do uso de neonicotinoide em mudanças de longo prazo na população de abelhas selvagens na Inglaterra], Nature Communica2016. tions, Londres, n.7, 16 ago. 2016. 7 Andreas Gattinger, “Enhanced top soil carbon stocks under organic farming” [Mais carbono na superfície do solo em agricultura orgânica], PNAS , Washington, 30 out. 2012. 8 “Enquêtes pratiques culturales 201 2011” 1” [Pesquis as práticas de culturas 2011], Agreste Les Dossiers, Ministère de l’Agriculture et de l’Alimentation, Paris, n. 21, jul. 2014. 9 Natacha Sautereau, Marc Benoît e Isabelle Savini, “Quantifier et chiffrer économiquement les externalités de l’agriculture biologique?” [Quantificar e avaliar economicamente os elementos secundários da agricultura orgânica?], Institut Technique de l’Agriculture Biologique, Paris, nov. 2016. 10 “The 2013 European Union report on pesticide residues in food” [Relatório de 2013 da União Europeia sobre resíduos de pesticidas nos alimentos], EFSA Journal , Autorité Européenne de Sécurité des Aliments, Parma, 12 mar. 2012. 11 “Pesticides: effects sur la santé. Synthèse et recommandations” [Pesticidas: efeitos sobre a saúde. Resumo e recomendações], Inserm, Paris, jun. 2013. 12 Nathalie Jas, “Pesticides et santé des travailleurs agricoles en France. Questions anciennes, nouveaux enjeux” [Pesticidas e saúde dos trabalhadores agrícolas na França. Questões antigas, desafios novos], Courier de l’Environnement de l’INRA, Paris, n.59, out . 2010. 13 Vários autores, “Human health implications of organic food and organic agriculture: a comprehensive review” [Implicações para a saúde humana de alimentos orgânicos e agricultura orgânica: uma análise abrangente], Environmental Health, 27 out. 2017. 14 Vários autores, “Contribution of organic food to the diet in a large sample of French adults (the NutriNet-Santé Cohort Study)” [Contribuição dos alimentos orgânicos para a dieta em uma ampla amostra de adultos franceses (o NutriNet-Santé Cohort Study)], Nutrients, Basileia, 21 out. 2015.
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NA ÁFRICA DO SUL, HERDEIRO DE MANDELA TEM SUA REVANCHE
Congresso Nacional Africano, nas origens de um partido-Estado Depois de longos meses de negociações e nove pedidos de impeachment pelo Parlamento, o presidente sul-africano, Jacob Zuma, implicado em diversos escândalos de corrupção, acabou renunciando no dia 14 de fevereiro. O Congresso Nacional Africano, verdadeiro verdadeiro partido-Estado, partido-Estado, enfrenta graves tensões internas internas que fragilizam a hegemonia conquistada com o fim do apartheid, em 1991 1991 POR SABINE CESSOU*
amoso por ter se tornado o primeiro bilionário negro da África do Sul, Cyril Ramaphosa foi eleito, em 18 de dezembro de 2017, presidente do Congresso Nacional Africa no (CNA). Provavelmente, ele será o próxi mo presidente da RepúbliRepública em 2019, depois do mandato interino que ocupa desde a demissão forçada de Jacob Zuma por corrupção, em 14 de fevereiro de 2018. O percurso tumultuoso desse veterano da luta contra o apart heid se explica amplamente pelas engrenagens e cultura políticas particulares do mais antigo partido político da África . De tendência tendência social-democrata e membro da Internacional Socialista, o CNA é, como a Frente de Libertação Nacional (FLN) na Argélia e a União Nacional Africana do Zimbábue – Frente Patriótica (Zanu-PF, -PF, na sigla em i nglês), um desses antigos movimentos de libertação nacional que passaram pela luta armada antes de chegar ao poder. Apesar de suas tensões internas, os escândalos dos últimos anos e o desmoronamento desmoronamento de seus resultados eleitorais desde 2014, essa máquina sofisticada, ligada às suas regras de funcionamento democráticas, continua provocando chuva e sol na África do Sul.1 Fundado em 1912, sob a colonização britânica, para contestar a espoliação das terras ocupadas pela maioria negra, o CNA atravessou o século XX se renovando constantemente. Ele deu ao mundo não ocidental seu primeiro Prêmio Nobel da Paz bem antes de Desmond Tutu (1984) e Nelson Mandela (1993): em 1960, o presidente Albert Lutuli, reverendo zulu pacifista, tinha sido coroado após o gigantesco massacre de Sharpeville. Sessenta e nove pessoas que faziam uma manifestação contra o pass (direito (direito de passar) imposto aos negros para circular na cidade foram então assassinadas pela polícia.
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RECUSA EM JOGAR A CARTA RACIAL
Proibido em consequência do massacre, ao mesmo tempo que o Congresso Pan-Africano (PAC) e o Partido Comunista Sul-Africano (SACP), o
CNA, legalista e não violento em seu início, só passou à luta armada em 1961. Para muitos, isso resultou na clandestinidade e no exílio. Sob a di reção de Oliver Tambo, os exi lados se organiza ram em Lusaka, na Zâmbia, onde o partido estabeleceu sua sede. Outros militaram de dentro contra o regime racista, como Ramaphosa e toda a “geração perdida”. Esta se lançou na luta contra o apartheid sob a bandeira do CNA e de seu braço armado junto às revoltas escolares de 16 de de junho de 1976 em Soweto, reprimidas com sangue. Esses militantes se reuniram em 1983 sob o esta ndarte da Frente Democrática Unificada (UDF), a face legal do CNA no interior do país, agregando as associações, as Igrejas e os sindicatos não proibidos. As relações entre a UDF e os exilados do CNA eram constantes e orgânicas, mas marcadas por uma suspeita: os segundos queriam manter o controle e chegavam até a se perguntar se o próprio Mandela não traíra a causa quando começou a negociar, sozinho, da prisão, a partir de 1986, com os nacionalistas africâneres. Com o fim do apartheid, em 1991, o CNA, aureolado dos anos de luta e gozando do prestígio de Mandela, primeiro presidente negro eleito da nova África do Sul, Su l, se tornou hegemônico. Ele ganhou eleição atrás de eleição. O “camarada” Mandela tinha confiado a íntimos sem nunca dizer abertamente: mais do que Thabo Mbeki, ele teria preferido que fosse Ramaphosa que lhe sucedesse ao final de seu primeiro e único mandato presidencial em 1999. Entre 1982 e 1992, esse jurista de formação, filho de policial, que cresceu em Soweto, transformou o Sindicato dos Mineradores (NUM) em uma organização de massa de mais de 200 mil filiados. Negociador sem par, ele provou seu valor nas difíceis discussões com o Part ido Nacional de FredeFrederik de Klerk em torno da transição pós-apartheid. Aos olhos de Mandela, ele apresentava também a vantagem de pertencer a uma etnia minoritária do norte da África do Sul, os Venda. Essa
escolha teria assim regulado, resolvendo-a, a questão do equilíbrio entre zulus e xhosas, os dois grupos dominantes (cerca de 20% da população cada um) – questão polít ica delicada, levando-se em conta a recusa do CNA de jogar com a carta racial, manipulada amplamente pelo regime do apartheid: para dividir a maioria negra, os dirigentes exageravam as violências entre os nacionalistas zulus do Partido Inkatha da Liberdade (IFP) e os militantes do CNA, que marcaram toda a transição (1990-1994).
Com o fim do apartheid, em 1991, o CNA, aureolado dos anos de luta e gozando do prestígio de Mandela, se tornou hegemônico Ramaphosa ameaçava o que estava descrito nas entrelinhas, por detrás das cortinas do CNA, como “Xhosa Nostra” – ou seja, o controle dos xhosas, a etnia de Mandela, de Tambo e de Walter Sisulu, sobre o aparelho do partido. Histórica, essa dominação se deve à presença da Universidade de Fort Hare no país Xhosa, antigo Transkei e atual província do Cabo Oriental. A instituição britânica, que queria formar executivos negros, produziu, contra seu desejo, os heróis da independência da África austral, como Mandela, Kenneth Kaunda (Zâmbia) e Robert Mugabe (Zimbábue). Enquanto inzile , militante do interior que ficou na África do Sul para lutar frontalmente contra o regime racista, Ramaphosa desafiava também o campo com menos “exi lados”. lados”. Preservando-se de qualquer tipo de autocracia, Mandela se contentou em observar os jogos aos quais se entregavam os candidatos à sua sucessão. Rompido Rompido com os a rcanos do partido e hábil manobrista, Mbeki se impôs em
1994 na vice-presidência do CNA – e do país. Ramaphosa tinha então se distanciado da política e reciclado seu talento nos negócios, ao mesmo tempo que se mantinha como um dos membros menos ruidosos, mas mais populares do Comitê Executivo Nacional – a mais alta instâ ncia de decisão do CNA, que conta com 86 membros, dos quais uma metade estatutária de mulheres. Uma regra não escrita exige que um candidato à presidência suba os degraus sucessivos: eleição pela base à vice-presidência do CNA, seguida de uma nomeação automática à v ice-presidência da República, depois uma confirmação à presidência do partido quando de seu congresso quinquenal, que, desde 1997, acontece dois anos antes das eleições legislativas. O presidente é em seguida eleito pelo Parlamento, no qual o CNA goza de uma maioria esmagadora desde 1994. Esse dispositivo inaugurado por Mandela oferece ao mesmo tempo visibilidade e experiência ao candidato designado. 2 Em sua luta pelo poder, porém, Mbeki fez uma escolha com grandes consequências. Ele legitimou Jacob Zuma, antigo chefe de informações do braço armado do CNA, como seu v ice-presidente, em 1997, para afastar os perfis de presidenciáveis de maior credibilidade. Mais que isso, depois de sua própria reeleição em 2004, para um segundo mandato presidencial, e três anos antes de um congresso do partido previ sto para o fi m de 2007, 2007, ele abriu os “arquivos”. Um processo por corrupção foi tentado em 2005 contra Zuma pelos subornos que ele teria recebido quando da negociação de consideráveis contratos de armamento em 1998. Um processo por estupro, sobre uma queixa feita em 2006 por uma moça, “amiga da família” Zuma, foi classificado pelo acusado como outra manobra política. Bastante tensa, a conferência do CNA em Polokwane, em 2007, viu os campos Zuma e Mbeki se alfinetarem sobre questões ao mesmo tempo pessoais e políticas. Com seus cantos de luta contra o apartheid, Zuma apre-
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sentou um registro populista para se diferenciar de um Mbeki julgado policiado demais e distante das massas. Ele também apostou nas frustrações da ala esquerda do partido diante da eclosão de uma burguesia negra ligada ao poder e à gestão neoliberal do país – sob fundo de crescimento econômico, mas de desemprego (27% dos ativos) e de pobreza (42% da população) persistentes. A queda de braço se resolveu pela vitória de Zuma, levada por um vasto movimento denominado denominado “Os amigos de JZ”. Este reunia todos os decepcionados com a “Thabocracia”, a ala esquerda do CNA, vinculada a um ideal socialista de redistribuição das riquezas, e dos eleitores seduzidos por promessas firmes de criação de 500 mil empregos. Esse compromisso não foi mantido por causa da crise financeira internacional, ao final de 2008, mas também em função da gestão centralizadora de Zuma e de uma corrupção que se tornou endêmica. O único mercado emergente do continente africano foi desclassificado a partir de 2015 pelas agências de classificação de risco internacionais em razão de suas perspectivas “negativas”. À depreciação contínua do rand, moeda local, se acrescentou uma recessão em 2017. Em dezembro de 2017, o futuro da África do Sul esteve novamente novamente em jogo no congresso do CNA – e em nenhum outro lugar. Uma diferença de 179 votos entre 4.708 se manifestou a favor de Ramaphosa, contra Nkosazana Dlamini Zuma, ex-mulher ainda próxima de Zuma, ex-ministra das Relações Internacionais e ex-presidente da Comissão da União Africana. Ramaphosa, cujo programa se resume em algumas palavras (“o retorno aos valores originais dos fundadores do CNA”), longe da corrupção, do clanismo e do populismo do regime Zuma, colocou fim às angústias dos sul-africanos sobre a impunidade previsível do presidente que deixaria o cargo caso sua ex-mulher ganhasse. Esses valores irrigam a Carta da Liberdade, adotada em 1955 por todos aqueles que o país contava então como oponentes: 3 mil delegados, dos quais trezentos indianos, duzentos mestiços e uma centena de brancos. O CNA era então apenas um de seus signatários, antes de fazer dela seu programa político. Esse texto fundador carrega um ideal claro: o sufrágio universal, a igualdade de oportunidades e a “democracia multirracial”, pela qual diversas gerações de sul-africanos fizeram sacrifícios demais para esquecê-la esquecê-la tão rápido. Tendo se tornado um partido de massa ao final do apartheid em 1991, hoje contando com 70 mil membros, o CNA continua sendo o caldeirão das dinâmicas políticas mais importantes da África do Sul. Fortalecido por sua legitimidade histórica, ele representa
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Presidente Cyril Ramaphosa presta homenagem ao ex-presidente Jacob Zuma por sua contribuição ao desenvolvimento durante os nove anos em que ficou no comando da África do Sul ao mesmo tempo uma garantia de estabilidade para uma das mais jovens democracias da África e sua principal fraqueza, em razão de sua hegemonia. Seus dirigentes, que também são ministros e governadores de província, têm o controle sobre a nomeação de todos os cargos importantes – até no setor privado – e sobre os contratos públicos. Seus desvios, portanto, são capazes de afetar todo o país. Apesar dos dos escândalos e das das muitas reuniões ruidosas do comitê nacional executivo, o chefe de Estado continua apoiado pelo aparelho do partido, que ele controla por dentro, principalmente em seu local de origem, o Kwazulu-Natal. Na cultura política do CNA, a “organização”, “organização”, como di zem seus militantes, importa mais que os indivíduos. O que era uma necessidade vital sob o apartheid, para resistir à repressão, permitiu ao partido sobreviver quaisquer que fossem seus chefes, produzindo sem cessar novos dirigentes através de seus “ramos” (o equiva lente aos núcleos dos partidos de esquerda). A cada congresso, as ca rtas são redistribuídas. A eleição justa de Ramaphosa à presidência do CNA pelos representantes de seus “ramos” pode ser interpretada, como explica o cientista político sul-africano William Gu mede, como um “sobressalto da base para salvar o que ainda pode ser salvo”. CONCORRÊNCIA E DIVISÕES
O partido saiu danificado das eras Mbeki e Zuma. A demissão deste últi-
mo só foi obtida após oito moções de desconfiança pelo Parlamento desde 2015. Sua preferência começou a declinar, passando de 65,9% em 2009 para 62,15% em 2014, depois a menos de 54% nas municipais de agosto de 2016. Assim o CNA perdeu perdeu três grandes cidades: Johannesburgo, Pretória e Port Elizabeth. A concorrência da oposição se tornou cada vez mais rrude. ude. No centro-direita, a Aliança Democrática (22,23% dos votos em 2014 e 26,9% em 2016), formação majoritariamente branca e mestiça em via de desracialização, é dirigida por um jovem negro, Mmusi Maimane. Ela agrega prometendo fazer o que o CNA não conseguiu: “lutar contra as desigualdades e redistribuir as riquezas”, já que os lares negros ganham seis vezes menos (6,6 mil euros por ano em média segundo a Statistics SA) que os brancos (36,5 mil euros). À esquerda, os Combatentes pela Liberdade Econômica (EFF), um partido fundado em 2013 pelo dissidente do CNA Julius Ma lema (6,35% dos votos em 2014 e 8,19% em 2016), reivindica a nacionalização das minas – 9% do PIB – e a expropriação de cerca de 50 mil fazendeiros brancos (a agricultu ra representa 2,5% do PIB), com base no modelo do Zimbábue de Mugabe. O CNA está sendo, além disso, atravessado por fortes tensões internas. O grande sindicato negro dos metalúrgicos (Numsa), excluído em 2014 2014 do Congresso dos Sindicatos Sul-Africanos (Cosatu, aliado histórico do CNA) por suas críticas virulentas ao
poder, ameaça fundar um partido de trabalhadores independente. independente. Impulsionado a presidente interino após a demissão de Zuma, em 14 de fevereiro de 2018, Ramaphosa, antigo líder sindical e principal acionista do McDonald’s McDonald’s na Áfr ica do Sul, deve organizar-se em torno de um antigo slogan “Uma vida melhor para todos”, que soa um pouco falso. Ele não promete nada menos que escola gratuita para as famílias mília s que recebem menos de 22,8 mil euros por ano, redistribuição efetiva das terras, criação de uma comissão de investigação sobre a corrupção, assim como uma política econômica liberal concebida para atrair os investidores e renovar com o crescimento. Na medida em que o CNA não marcou uma ruptura clara com a década Zuma, o futuro permanece incerto. Ele elegeu para sua vice-presidência o controverso David Mabuza, de 57 anos, nomeado em 2009 governador da província de Mpumalanga como recompensa por seu apoio a Zuma – um percurso a ser acompanhado, já que ele também é acusado de corrupção e, inclusive, suspeito de ter se envolvido com assassinatos políticos. *Sabine Cessou é jornalista.
1 Ler “L’Afrique “L’Afrique du Sud lassée de ses libérateurs” [A África do Sul cansada de seus libertadores], Le Monde Diplomatique, jun. 2017. 2 Cf. Raphaël Porteilla, Judith Hayem, Marianne Séverin e Pierre-Paul Dika (orgs.) (orgs.),, Afrique du Sud. 20 ans de démocratie contrastée [África do Sul. 20 anos de democracia em contraste], contraste], L’Harmattan, Paris, 2016.
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PODER EGÍPCIO ESTÁ MAIS REPRESSOR DO QUE NUNCA
Praça Tahrir, sete anos depois Os egípcios vão eleger seu presidente no dia 26 de março. A oposição denuncia um jogo de cartas marcadas, com todos os candidatos de envergadura impedidos de enfrentar o atual presidente, Abdel Fattah al-Sissi. As esperanças que surgiram em janei janeiro ro de 201 2011 evap evapor orara aram, m, enqua enquant ntoo a pop popul ulaçã açãoo enf enfre renta nta a deg degra radaç dação ão econ econôm ômica ica e a mão mão de de ferr ferroo do do reg regim imee POR PIERRE DAUM*
raça Tahrir, uma noite de dezembro. No piso lustrado do edifício Mogamma, um enorme prédio administrativo da década de 1950 construído pela ex-URSS em um pesado estilo soviético, um grupo de jovens anda de skate la nçando desafios, sob o olhar de dois policiais indulgentes. Casais de todas as idades, sentados nas muretas de pedra dispostas aqui e ali, assistem ao espetáculo. Todos parecem indiferentes ao ruído ensurdecedor dos carros e à poeira, dois flagelos de Cai ro que nenhuma revolução foi capaz de vencer. Parece distante o tempo em que centenas de milhares de egípcios, lado a lado nesta enorme praça, derrubavam um regime moribundo aos gritos de “Mubarak, vá embora!” e “‘Aïch, Horia, ‘Adala Edjtéma’ïa! ” (“Pão, liberdade e justiça social!”). Dois anos e meio após a “revolução de janeiro”, como os egípcios a chamam hoje – sem mencionar o dia de seu início (25) nem o a no em que ocorreu (2011) (2011) –, nesta Praça Tahr ir que se tornou o lugar obrigatório da expressão popular, um número tão grande de egípcios qua nto em janeiro de 2011, se não maior, exigia a saída do presidente democraticamente eleito em junho de 2012, Mohamed Morsi, membro da Irmandade Muçulmana. Após um golpe de Estado desejado por parte da população, o Exército assumiu o poder em 30 de junho de 2013. 1 A resistência pró-Morsi tentou se organizar, e foi reprimida com um banho de sangue algumas semanas depois: foram mil mortos no dia 14 de agosto de 2013 2013 na Praça Rabaa, no Cairo. Milhares de pessoas foram presa s. Um ano depois, em junho de 2014, o marechal Abdel Fattah al-Sissi foi eleito para a presidência da República, com 97% dos votos. Desde então, o que se passa? Como se vive no Cairo?
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TVs NAS MÃOS DO GOVERNO
À primeira vista, não pior do que antes. Os cafés populares, onde as pessoas fumam narguilé por horas enquanto assistem ao futebol ou discutem qualquer coisa com os amigos, estão sempre cheios. Os que preferem
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beber uma cerveja, moças e rapazes misturados, se reúnem nos bares que ocupam os terraços dos edifícios ao redor. Pode-se ir ao cinema, assistir a shows ou admirar o trabalho de artistas contemporâneos, por exemplo, na Galeria Townhouse, soberbo local de exposição insta lado em uma antiga fábrica de papel, a algumas centenas de metros da Praça Tahrir. Com um magnífico estacionamento subterrâneo e uma imensa bandeira egípcia plantada na superfície, a própria praça parece esforçar-se para esquecer que um dia a população esteve ali pedindo a cabeça de dois presidentes.2 As avenidas à sua volta exalam ordem e limpeza, e o Ministério do Interior, alvo da fúria revolucionária, foi prudentemente deslocado para um bairro distante. Salvo alguns agentes de trânsito com uniformes azuis e talão de multa em mãos, a presença policial parece inexistente. Apesar de tudo isso, em outubro passado a Anistia Internacio-
nal publicou um relatório denunciando o clima político perigoso no Egito. “Advogados, jornalistas, adversários políticos, ativistas, defensores dos direitos humanos, nenhuma voz crítica escapa à repressão maciça das autoridades egípcias, que conti continuam nuam detendo, perseguindo ou encarcerando pessoas pelo simples exercício pacífico de seu direito à liberdade de expressão”, denuncia a organização.3 Miran F., F., uma jovem que conhecemos com seus amigos perto da Praça Tahrir, não concorda. “Se eu me sinto vivendo sob uma ditadura? Não, na verdade não!” Nascida há trinta anos em uma família da pequena burguesia do Cairo – pai engenheiro, mãe dona de casa –, ela “obviamente” participou da revolução de 2011 e depois das manifestações populares de 2013. 2013. “Minha mãe é Sissi roxa! Ela o adora! Meu pai é mais crítico, acha que ele não sabe conduzir a economia, que desde que chegou tudo está muito caro. Eu fico
entre os dois. Não morro de amor por Sissi, mas acho que ele herdou uma situação econômica catastrófica e faz o que pode.” E a repressão, as pessoas presas, isso não a assusta? “Sim, um pouco. Mas entre eles há terroristas também. Além disso, Sissi deve saber o que está fazendo. Quando as coisas melhorarem, ele vai soltá-los.” De qualquer forma, Miran e seus amigos não têm medo de falar de política nos cafés abertos para a rua, onde, apesar do constante barulho dos carros, qualquer estranho na mesa ao lado pode ouvir a conversa. “Até no Facebook eu não tenho medo de criticar o governo, nem mesmo o presidente! Nunca me preocupei com isso.” Seu amigo Ahmed T. intervém: “De todo modo, o que realmente interessa não é a liberdade, é o dinheiro. E hoje todo mundo está sofrendo com a crise econômica!” (ver boxe) . Para além das reflexões dispersas coletadas ao acaso nas conversas – cheias de opiniões tão divididas como as da família de Miran –, é difícil saber o que os egípcios pensam do reg ime, o qual se empenha em desencorajar qualquer atitude contestatória. “Gente que não sabe nada sobre o que é um Estado quer intervir e fazer declarações. Isso é inaceitável”, declarou em janeiro um ameaçador Sissi, lançando lançando um aviso a personalidades e partidos de oposição que pediam boicote à eleição presidencial, prevista para o fim de março. Esses opositores argumentam que a eleição é um “teatro do absurdo”, absurdo”, por causa da pris ão, da retirada mais ou menos forçada ou do impedimento de inúmeros adversários do presidente. “Garantimos estabilidade e segurança, senão é o caos”, continuou Sissi. “Eu não ameaço ninguém. O que aconteceu no Egito há sete anos não se repetirá.” O clima político também se caracteriza por um forte retorno dos militares a todos os lugares de poder, especialmente na economia. “O Exército há muito tempo goza de uma imagem positiva”, lembra Tewfik Aclimandos, professor da Universidade do Cairo. “Com razão ou não, ele é considerado menos corrupto que a polícia, mais
eficaz que as administrações civis, e parece uma emanação do povo. No Egito, todo mundo tem um parente ou conhecido no Exército.” Quanto a saber o que as pessoas acham do presidente, “é proibido, de qualquer forma, fazer verdadeiras pesquisas de opinião sobre ele”, diz o acadêmico. “Temos de nos contentar com sinais de otimismo. A partir daí, parece quase certo que o entusiasmo que levou o presidente Sissi ao poder em 2013-2014 caiu muito, especialmente após o ataque ao avião russo, em 2015. 4 Mas ele ainda tem uma base sólida.” Para manter uma taxa suficiente de opiniões favoráveis, o regime conta com uma ferramenta muito poderosa: o controle da mídia, principalmente a mais consumida delas, a televisão. 5 Sob a presidência de Hosni Mubarak e depois nos anos após a revolução, surgiram canais privados, com programas de entrevistas muito populares, que traziam verdadeiros debates. Tudo isso desapareceu. Hoje, todos os canais estão nas mãos do regime e de seus amigos. O mesmo ocorre com a mídia impressa, com exceção do jornal Al-Masri Al-Masri Al-Yo Al-Youm um, um diário com tiragem de 120 mil exemplares – para uma população de quase 100 milhões. “Somos independentes”, comenta Doaa Eladl, famosa cartunista do jornal. “Mas existem linhas vermelhas – mal definidas, por sinal, o que complica ainda mais meu trabalho. Qualquer assunto pode irritar o regime. Eu tento não me autocensurar, mas sei o que faço.” É inimaginável, por exemplo, desenhar o presidente. Em compensação, em novembro de 2017 ela conseguiu publicar um cartum mostrando jovens egípcios presos, no momento em que o presidente Sissi abria o Fórum Mundial da Juventude em Sharm el Sheikh. “Tenho um problema mais sério”, continua. “Se o assunto for muito delicado, nenhum jornal, nem o nosso, fala sobre ele.” ele.”
A Irman Irmandad dade e Muçulmana, que durante décadas foi a única força de oposição, foi literalmente eliminada da paisagem política Essa censura permitiu ao governo incutir em muitos espíritos o fantasma paranoico da espionagem estrangeira. “Nos programas de TV, nos jornais, sempre há um capanga do regime pronto a explicar que os Estados Unidos e seus aliados europeus apoiaram a sociedade civil egípcia para derrubar Mubarak”, diz o escritor Khaled al-
-Khamissi, autor de uma famosa coleção de contos, Taxi (2007), (2007), e do romance A arca de Noé (2009). (2009).6 “Ou que um complônorte-americano-sionistaquer dar parte do Sinai para os palestinos. Mas que, felizmente, o presidente Sissi conseguiu frustrar essas conspirações e salvar o Egito!” E funciona. Basta começar a tirar fotos pela janela de um ônibus para que, em alguns instantes, um passageiro mande parar “imediatamente!”. Por quê? “É uma questão de segurança nacional!”
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jornalista literária da revi sta semanal s emanal Akhbar Al-Adab e autora de um delicado romance sobre a necessidade de escrever, Jabal al-zomorrod al-zomorrod [O [O monte esmeralda] (2014). 8 Sentada no Chesa, “café suíço” (está escrito na frente) da Rua Adly, não muito longe da Praça Tahrir e de seu jornal, ela continua: “Eu sobrevivi lendo, escrevendo e me concentrando nas pequenas coisas da vida. Com meu marido e meus filhos, mudamos para New Cairo, um bairro longe daqui. Lá, tenho a impressão de viver em outro lugar, longe de Tahri Tahrir” r”..
democracia de Morsi, depois de Sissi. E hoje a situação é pior do que era com Mubarak. Às vezes eu acho que não há esperança, que Sissi ficará para sempre. Mas, se eu parar de militar, me sentirei traindo todos os que estão mortos ou na prisão”. Apesar de sua aparente onipotência – com a mídia sob controle e uma oposição aniquilada –, o regime encarnado por Sissi parece ter um medo profundo do povo. “Como que pressionado pelo medo obsessivo de uma ‘nova Tahrir’, o regime faz de tudo para conter eventuais impulsos da sociedade”, de”, analis a Karima Kari ma H., cientista político francês residente de longa data no Cairo, que prefere ficar anônimo, “pois, nos dias de hoje, é melhor ter cuidado”. Qualquer manifestação ou reunião um pouco maior é estritamente proibida. Sob o pretexto do “perigo terrorista”, foram construídas paredes de concreto curvas de 4 metros de altura em torno de cada ministério, bem como do Banco Central, e soldados armados protegem suas entradas. Toda sexta-feira, dia de descanso em que normalmente acontecem as grandes manifestações, policiais de capacete e bota posicionam-se nas sete artérias que levam à Praça Tahrir, enquanto caminhões antimotim se organizam ao seu redor, prontos para intervir. Nos últimos dois anos, ocorreram apenas duas manifestações, em outras partes da cidade: uma contra a transferência para a Arábia Saudita de duas pequenas ilhas desabitadas do Mar Vermelho, Tiran e Sanafir, em abril de 2016; 9 e outra contra a decisão de Donald Trump de reconhecer Jerusalém como capital de Israel, no início de dezembro de 2017 – decisão criticada por todos os egípcios, ainda muito sensíveis à Questão Palestina. No final da manifestação, alguns gritaram: “Pão! Liberdade! Abaixo o regime !”. Os instigadores foram imediatamente jogados na prisão. No início de fevereiro, dezessete pessoas foram condenadas à prisão perpétua por terem se manifestado, em 2014, 2014, contra a candidatura de Sissi à presidência. presidência.
IRMANDADE MUÇULMANA APAGADA
Nesse contexto, os espaços de dissidência reduzem-se ao extremo. As organizações egípcias de direitos humanos falam em “60 mil presos políticos”, esclarecendo que é impossível obter números confiáveis. Muitas pessoas são presas e depois liberadas sob fiança. A maioria está ligada à Irmandade Muçulmana ou simplesmente é suspeita de simpatia a Morsi. A elas se somam militantes do campo revolucionário. A Comissão Egípcia por Direitos e Liberdades (ECRF, na sigla em inglês) fala em quarenta desaparecimentos forçados por mês. A Irma ndade Muçulmana, que durante décadas foi a única força de oposição, foi literalmente eliminada da paisagem política, tanto pela repressão quanto por causa dos profundos conflitos internos. Milhares de membros se refugiaram na Turquia. “E os que ficaram no Egito, se não estão presos, vivem como fantasmas”, diz a pesquisadora Fatiha Amal Abbassi, autora de uma tes e em fase de conclusão sobre a Irmandade. “Mudaram suas roupas, sua maneira de falar, e a usra, reunião semanal da qual os membros tinham de participar, foi suspensa. Também há muitos que, em completo desacordo com seus líderes, se distanciaram da organização.” Alguns provavelmente se uniram a organizações terroristas, mas não é possível investigar esse fenômeno, descaradamente instrumentalizado pelas autoridades, para as quais qualquer oponente é “terrorista”. Quanto aos militantes de 2011, aqueles que foram o motor da revolução – “um grupo de alguns milhares de pessoas, no início”, de acordo com o cientista político fra nco-egípcio Youssef el Chazli, “em torno do qual se somaram dezenas de milhares de simpatizantes, sem jamais, no entanto, chegarem a constituir uma organização ou um partido” –, a maioria deles cessou toda a atividade política. Alguns estão presos; outros decidiram morar no exterior; muitos passaram por um período de depressão.7 “É muito doloroso ter participado de algo tão grande como a revolução, ter realmente sonhado em mudar a cara de seu país e virar testemunha da própria derrota”, derrota”, lamenta Ma nsoura Ez-Eldin,
Conseguimos conversar conversar livremente, livremente, mas muitos dos entrevistados disseram: “Não escreva isso, senão eu vou vou pres preso!” o!”
REUNIÕES IMPORTANTES PROIBIDAS
Alguns ex-revolucio ex-revolucionários nários prolonprolongam seu engajamento em ONGs de defesa dos direitos humanos. É o caso de Malek Adly, chefe da rede de advogados Egyptia n Center for Economic and Social Rights (ECESR), que passou quatro meses na prisão em 2016: “Somos assediados pela polícia, a maioria de nós está proibida de sair do país, temos julgamentos suspensos por receber fundos estrangeiros ou por ‘atentar ‘atentar contra a segurança do Estado’, corremos o risco de passar décadas na prisão, mas continuamos! E continuaremos até a morte, se for preciso!”. A proibição de receber financiamento externo, que as autoridades justificam pela necessidade de lutar contra a “mão estrangeira”, é uma verdadeira máquina de destruir organizações militantes. E também afeta muitos espaços culturais. Uma vez que o Ministério da Cultura não oferece nenhum tipo de subsídio, essas estruturas passaram, há anos, a funcionar graças à ajuda ocidental. Agora precisam encontrar outras formas de fina nciamento, ou fechar as portas. Em maio de 2017, foi promulgada uma nova lei sobre as ONGs, que deve eliminar eliminar as últimas que ainda estão em atividade: além da proibição de receber fundos estrangeiros, todas terão de apresentar um pedido de renovação do registro a uma comissão formada por militares. Esraa Abdel Fattah, conhecida na época da revolução como “The Facebook Girl”, exibe o mesmo desencanto: “Eu vivi os dezoito dias de 2011 [de 25 de janeiro a 11 de fevereiro, dia da renúncia de Mubarak] como uma magnífica utopia. Mas fomos idiotas. Idiotas em acreditar nas promessas de
MUITOS TABUS FORAM QUEBRADOS
Em locais públicos, é possível discutir política com os amigos, como faz Miran F. Para esta reportagem, muitas entrevistas foram realizadas sem nenhum problema. Mas há um limite que não pode ser cruzado: abordar estranhos e levá-los a criticar o regime. Conversamos com Mahmoud S. perto de sua casa, em Ain Shams, um dos tantos bairros arrasados pela miséria na tentacular Cairo de 20 milhões de habitantes, a mais de uma hora de táxi da Praça Tahrir. “Não consigo deixar de falar, de discutir nos cafés do meu bairro”, explica o desempregado desempregado de 30 anos, que esteve nas manifestações de
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2011. “A situação é verdadeiramente terrível. Todo mundo está morrendo de fome, não há liberdade. Mas, há três dias, uns amigos me disseram que policiais à paisana vieram fazer perguntas sobre mim. Isso aconteceu com um amigo meu, e ele está preso. É um aviso, não falo mais com ninguém.” Manter a população em liberdade vigiada com avisos desse tipo é a tática para conter qualquer indício de rebelião. Conseguimos conversar livremente, mas muitos dos entrevistados disseram: “Não escreva isso, senão eu vou preso!”. No meio universitário, o aviso foi a morte, em condições obscuras, em janeiro de 2016, 2016, do pesquisador pesquisador italiano Giulio Regeni, após seu rapto em plena rua. Segundo Seg undo a Reuters, o jovem teria sido detido por policiais à paisana e transferido para uma delegacia da capital, antes de desaparecer e ser encontrado morto, com o corpo torturado e mutilado.10 As autoridades egípcias apresentaram diversas vias de investigação, inclusive a de sequestro malsucedido e a de crime sexual, que não convenceram ninguém.11 “Se foi um erro ou um crime encomendado, o fato é que todos estamos muito cautelosos”, confessa um pesquisador francês, obrigado a realizar “clandestinamente” suas pesquisas junto à população.
Apesar de seu profundo desânimo diante de uma situação de opressão que consideram por unanimidade “pior do que era com Mubarak”, Mubarak ”, todos os veteranos da “revolução de janeiro” admitem, contudo, que ela “deixou “deixou marcas positipos itivas indeléveis” na sociedade. “AS PESSOAS SE SENTEM MENOS SUBMETIDAS”
Para Ghada Abdel Aal, de 38 anos, que em 2008 publicou o famoso livro A ronda dos pretendentes ,12 “a revolução permitiu quebrar muitos tabus no debate público e nas conversas nas redes sociais. Hoje, podemos falar de relações sexuais antes do casamento, de homossexualidade, de agressão sexual, e questionar alguns princípios religiosos, até a própria crença em Deus. O governo, que permanece muito conservador nessas questões, continua punindo. Mas, na sociedade, o debate existe”. Há três anos, ela mesma se permitiu uma ação que tornou pública em sua pági na do Facebook, com 180 mil seguidores: tirou o hijab que era forçada a usar desde a infância, “por mero código socia l”. l”. Segundo Georges Seif, médico voluntário na Praça Tahrir em 2011, “as pessoas se sentem menos submetidas ao olhar alheio. Mesmo o bawab, uma espécie de porteiro-espião que
aterroriza todos os edifícios, perdeu um pouco de seu poder”. Antes de 2011, acrescenta Sarah Mohamed, militante da primeira hora, “quando as pessoas viam uma mulher fumando em um café, automaticamente a consideravam uma v agabunda. Hoje já não é assim” assi m”.. Na rua, ou em uma repartição pública, pessoas vítimas da arbitrariedade de um funcionário ou de um policial hoje se atrevem a dizer “não” e exigir que seus direitos sejam respeitados. “Antes, isso era impensável!” Para além da política e das discussões sobre o bloqueio da eleição presidencial, os egípcios estão empolgados com um assunto muito mais mobilizador: após 28 anos fora da competição, o Egito se classificou para a Copa do Mundo de Futebol, que acontecerá em junho, na Rússia. Se o regime sabe que que isso desviará a atenção da população durante algumas semanas, ele também não ignora que uma classificação para a segunda fase ou, ao contrário, uma derrota humilhante bastariam para encher a Praça Tahrir novamente. Com tudo que isso implica em termos de possíveis transbordamentos e protestos de caráter político. *Pierre Daum é jornalista.
1 Ler Alain Gresh, “A “A revolução egípcia à sombra dos militares”, Le Monde Diplomatique Brasil , ago. 2013. 2 Após vários julgamentos, Mubarak foi libertado em março de 2017. Morsi, que chegou a ser ameaçado com a pena capital, cumpre sentença de 45 anos de prisão. 3 “Égypte: les voix critiques réduites au silence” [Egito: vozes críticas reduzidas ao silêncio], Anistia Internacional, Pa ris, 21 out. 201 2017. 7. 4 Em 31 de outubro de 2015, 2015, a explosão de um avião russo no Sinai, pouco depois de decolar da cidade balneária de Sharm el Sheikh, fez 224 vítimas. Primeiro de uma longa série, o atentado foi reivindicado por um grupo islâmico afiliado à Organização do Estado Islâmico. 5 Ler Aziz El Massassi , “La presse égyptienne mise au pas” [Imprensa egípcia sob controle], Le Monde Diplomatique, nov. 2015. 6 Ambos em francês pela Actes Sud, Arles, Arles, respectivamente 2009 e 2012. Sem tradução para o português. 7 Ver o filme de Pauline Beugnies Rester vivants [Continuar vivendo] (2017, 110 110 min), documentário que faz o retrato de quatro manifestantes da Praça Tahrir, com percursos muito diferentes. 8 Em francês pela Actes Sud, 2017. 2017. Sem versão em português. 9 “Le pouvoir égyptien dans l’imbroglio de l’affaire des îles Tiran et Sanafir” [Governo egípcio no imbróglio do caso das ilhas Tiran e Sanafir], OrientXXI.info, 25 jan. 2017 (tradução de um artigo em árabe do Mada Masr, Cairo, 17 jan. 2017). 10 “Exclusive: Egyptian police detained Italian student before his murder” [Exclusivo: polícia egípcia deteve estudante italiano antes de ele ser assassinado], Reuters, 21 abr. 2016. 11 Hélène Sallon e Philippe Ridet, “L’Italie doute de la version égyptienne de la mort de l’étudiant Giulio Regeni” [Itália duvida da versão egípcia da morte do estudante Giulio Regeni], Le Monde, 26 mar. 2016. 12 La ronde des prétendants , Éditions de l’Aube, Avignon, 2013. Sem tradução para o português.
UMA VIDA MUITO CARA
S
eja um vendedor de rua em um bairro informal do Cairo,1 um funcionário em uma repartição pública ou um escritor famoso em um belo apartamento em Wust el-Balad (nome árabe do centro da cidade, em torno da Praça Tahrir), em resposta à pergunta “O que mudou depois de 2011?”, 2011?”, todos os nossos interlocutores interl ocutores exclamam imediatamente: imediatamente: “A vida está muito cara, está terrível! ”. Essa alta dos preços começou a ser sentida em 2014, logo após as eleições presidenciais, quando o governo do marechal Abdel Fattah al-Sissi iniciou “reformas estruturais” impostas pelo FMI, em troca de uma ajuda anual de US$ 12 bilhões a US$ 15 bilhões. “Trata-se de passar gragradualmente de um sistema de subvenção generalizado dos bens de consumo para uma ajuda financeira específica voltada às pessoas com rendimentos muito baixos”, explica Marie Vannetzel, pesquisadora do Centro Nacional de Pesquisa Científica (CNRS, na sigla em francês), atualmente no Cairo para estudar o tema. No antigo sistema, produtos essenciais, como pão, açúcar, óleo, feijão etc., além de gasolina, gás e eletricidade, eram fortemente subsidiados. Antes da reforma, por exemplo, o pãozinho redondo e oco, item fundamental da dieta egípcia, custava 5 libras (R$ 0,90) em uma padaria subsidiada, contra 36 libras no mercado livre. Todos tinham direito a ele, e em quantidade ilimitada. Bastava se dispor a enfrentar as filas às vezes intermináveis das padarias. Para outros produtos alimentícios, era necessário ter um carnê, no qual o vendedor anotava a compra, limitada a uma cota mensal. Esses carnês, teoricamente atribuídos por critérios sociais, eram na verdade detidos por 85% da população. Hoje, o número de pães é limitado a vinte por família por dia. Esses vinte custam 1 libra egípcia (R$ 0,18). Mas raramente eles são suficientes para as famílias, frequentemente grandes. Ainda mais quando, em tempos de pobreza crescente, o pão
torna-se o alimento básico. Então ele precisa ser comprado a um preço alto: 20 libras (R$ 3,65) a cada vinte pães. Para os outros alimentos básicos, um cartão com chip substituiu o carnê, recebendo uma provisão mensal de 200 libras (R$ 36,50) para uma família de quatro pessoas. Embora o número de titulares de cartões seja aproximadamente o mesmo de detentores do antigo carnê, o preço dos produtos subsidiados aumentou muito. Entre 2014 2014 e 2017, 2017, “o quilo de açúcar passou de 4,5 4, 5 para 10 libras [R$ 0,82 para R$ 1,83]; o litro de óleo, de 6,5 para 14 libras [R$ 1,19 para R$ 2,56] etc.”, detalha Marie Vannetzel – isso em um país onde um médico de um hoshos pital ganha 1.300 libras por mês (R$ 238); um diretor da administração administração pública, 4.500 libras (R$ 822); e um trabalhador é considerado “bem pago” quando recebe 1.200 libras (R$ 219). Para as pessoas mais pobres – 9 milhões, de acordo com os critérios em vigor –, concede-se um benefício mensal extra de cerca de 700 libras (R$ 128) por família. O governo também reduziu bruscamente o subsídio da energia, que beneficiava todos os egípcios. Em três anos, o preço da gasolina e do gás triplicou, e o da eletricidade ficou quatro ou cinco vezes mais caro. Não é de admirar, então, que a taxa da população abaixo da linha de pobreza nacional tenha aumentado, de acordo com o Banco Mundial, de 25% em 2010 para quase 28% em 2015 – hoje provavelmente já ultrapassou a marca de 30%. Ainda mais porque, com a queda brutal da libra em novembro de 2016, todos os preços aumentaram, enquanto os salários evoluíram muito pouco. Esse sofrimento econômico sentido pelos egípcios, em todas as classes sociais, provocou, principalmente no interior, alguns movimentos sociais rapidamente reprimidos.2 Muitos ainda acreditam que, q ue, “quando chegou ao poder, Sissi encontrou os cofres do Estado em uma situação
terrível” e que ele “faz o que pode”. O Exército, já presente em muitos setores (turismo, construção, indústria) e que, desde a queda de Hosni Mubarak, tem se inserido maciçamente em todos os setores da economia, sob o pretexto de que “sem [ele] nada funciona”, parece querer servir de amortecedor, ao mesmo tempo que cultiva sua imagem de instituição próxima do povo. “Em uma manhã qualquer, podemos ver caminhões do Exército chegando a um bairro pobre cheios de carne para ser vendida a um preço muito inferior ao do mercado”, conta Vannetzel. Nesses mesmos bairros, mães de família obrigadas a alimentar seus dez filhos e netos, todos os dias, com “apenas pão e batata”, dizem com a voz embargada: “Se isso continuar, as pessoas vão para a rua! O Exército pode atirar na gente, não vamos ligar!”. Como explica o cientista político Karima H. , o presidente Sissi “parece determinado a realizar as reformas que seus predecessores Sadat e Mubarak tentaram e foram obrigados a desistir por causa da ira popular”. Há risco de grandes manifestações, comcom paráveis às que foram realizadas em 1977, 1977, sob o governo de Anwar el-Sadat? O acadêmico não acredita nisso. “Motins esporádicos, talvez, mas não mais que isso.” Em março de 2017, 2017, os egípcios protesta ram contra o aumenaumento do preço do pão, mas o movimento não chegou à esfera política. Entre uma mídia submissa, uma oposição destruída e um contexto regional usado como elemento de contraste – guerras civis na Líbia, Síria e Iraque –, o regime parece manter o povo sob controle. (P.D.) 1 Megalópole caótica de 20 milhões de habitantes, o Cairo é formado por uma miríade de bairros, a maioria deles construída sem a intervenção das autoridades públicas. Mesmo quando é de alvenaria, a habitação nesses “bairros informais” é quase sempre muito precária. 2 Ler Mustafa Bassiouni, “Nada detém os operários egípcios”, Le Monde Diplomatique Brasil , ago. 2014.
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INTERVENÇÃO NA SÍRIA, PRESSÃO NO LÍBANO, GUERRA NO IÊMEN
O impasse impasse saudita saudita no Oriente Médio A Arábia Saudita tenta impedir a eclosão de um movimento democrático na região e conter a influência de seu rival iraniano. O novo poder multiplica as iniciativas, mas a maioria fracassa. Incapaz de favorecer a derrota do regime de Bashar al-Assad, Riad afunda-se no conflito no Iêmen e não consegue enquadrar o Catar POR GILBERT ACHCAR*
chave para a especificidade do Oriente Médio não é o islã, mas o petróleo. A riqueza da região do Golfo Pérsico levou o Império Britânico a criar ou consolidar no flanco árabe entidades artificiais em diferentes graus. Os Estados-membros do Conselho de Cooperação do Golfo (CCG) apresentam a particularidade de ter estrangeiros constituindo a maior parte da força de trabalho. Na maioria desses Estados (Arábia Saudita, Omã, Kuwait, Bahrein, Emirados Árabes Unidos e Catar), eles eles represenrepresentam a maior par te da população. Chegam a 90% dela, no Catar e nos Emirados Árabes Unidos! A riqueza petrolífera da região do Golfo levou o Império Britânico a consolidar ou instaurar os sistemas monárquicos mais arcaicos do mundo contemporâneo. Explorando e revivendo sucessões tribais, transformou grupos de clãs em “famílias reinantes”, estabelecendo poderes absolutistas de tipo patrimonial, com a esperança de que elas se mantivessem como poder tutelar até seus recursos de hidrocarbonetos estarem esgotados. Essa riqueza levou os Estados Unidos a agir da mesma forma com seu mais antigo protetorado de fato na região: o reino saudita. O líder do “mundo livre” apoia o Estado mais antidemocrático, misógino e fundamentalista do planeta, o único em que o Corão e a Sunnah (tradição) assumem o lugar da Constituição. A autonomia autonomia extrema do Estado, Estado, possibilitada pela renda obtida com o petróleo e o gás, permitiu que se perpetuassem esses sistemas arcaicos, encravados em instituições estatais e economias capitalistas contemporâneas. Ali, o poder poder obedece obedece tanto menos menos à racionalidade socioeconômica habitual – a dos sistemas políticos em que os interesses de uma classe capitalista ou de uma camada burocrática delimitam as escolhas possíveis – quanto mais concentrado ele é: quanto mais restrito é o círculo di rigente, ao mesmo tempo dispondo de um tesouro natural para financiar um Estado que ele trata como
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h a l l u d b A d e l a h K / s r e t u e R ©
Mulheres participam de manifestação para apoiar o movimento houthi em Sanaa, no Iêmen sua propriedade privada, menos esse círculo obedece a restrições estruturais e mais sua margem ma rgem de manobra se alarga. Em tais circunstâncias, suas decisões podem sofrer mudanças bruscas, que parecem erráticas e caprichosas. Lá onde as grandes máquinas estatais, como os navios, movem-se lentamente, os poderes estatais ultraconcentrados estão sujeitos a viradas abruptas, como um bote a motor. Dois Estados da zona do Golfo escaparam da configuração sociopolítica compartilhada pelos outros, porque abrigavam civilizações urbanas muito antigas e herdaram populações mais numerosas e sociedades mais desenvolvidas: o Irã e o Iraque. Eles são os dois únicos países da região onde a monarquia foi derrubada. No Iraque, isso acabou levando à constituição de um regime reg ime patri monial “republicano”, “republicano”,
mantido com mão de ferro por uma família reinante que reproduzia os vícios das monarquias absolutistas – até sua derrubada, em 2003, após a invasão liderada pelos Estados Unidos. No Irã, isso levou ao surgimento do único Estado estritamente teocrático (com exceção do Vaticano). Ao contrário de seus vizinhos do Golfo, o Irã é governado por instituições e leis, e não por uma família, embora o Líder Supremo goze de um poder exorbitante. 1 Consequentemente, é o único Estado da região que atua com base em uma estratégia coerente, facilmente identificável: o expansionismo da Guarda Revolucionária e a exacerbação da tensão regional que o país produz reforçam a legitimidade de seu poder. 2 O quadro da atual dinâmica geopolítica do Golfo foi determi nado pelo advento da República Islâmica do Irã, em
1979. A revolução iraniana apavorou as monarquias árabes vizinhas, ainda mais com os Estados Unidos no ponto mais baixo de seu declínio pós-vietnamita e paralisados diante dos muitos desafios daquele ano: revolução na Nicarágua, invasão soviética no Afeganistão. A ofensiva do Iraque contra o Irã em 1980 permitiu que os Estados Unidos e seus aliados regionais se restabelecessem: eles facilitaram a destruição mútua dos dois Estados em luta. A guerra terminou “empatada “empatada””, após oito anos de um massacre absurdo (quase 1 milhão de mortos, segundo a estimativa mais comum). Sem conseguir livra r-se r-se das dív idas contraídas junto a seus financiadores monárquicos, Saddam Hussein decidiu resolver a situação invadindo e anexando o Kuwait, em agosto de 1990. Assim, proporcionou aos Estados Unidos uma ex-
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celente oportunidade de matar dois coelhos com uma cajadada só: retornar com força ao Golfo pela primeira vez desde 1962 – data da evacuação da base norte-americana em Dhahran, na região petrolífera do reino saudita, sob a pressão do Egito de Nasser – e confirmar para seus aliados, rivais e inimigos planetários a supremacia (“indispensável” ou inevitável) dos Estados Unidos na era pós-Guerra Fria, quando o bloco soviético desabava. Ao destruir o Iraque baathista, seu grande inimigo, a intervenção de 1991 suscitou sentimentos mais dóceis entre os líderes iranianos. Mas esse golpe de força fortaleceu a família real saudita, que passou a sentir-se ao abrigo de uma ação iraniana em seu território. Riad fez da atitude em relação à guerra entre Estados Unidos e Iraque a pedra de toque de suas relações regionais. Ele puniu todos aqueles que saudaram a invasão do Kuwait e se declararam hostis à intervenção norte-americana: o Iêmen, expulsando quase 1 milhão de trabalhadores migrantes dali oriundos; a Organização pela Libertação da Palestina (OLP) de Yasser Arafat, cortando o abastecimento de suprimentos; e a Irmandade Muçulmana, rompendo os laços com o grupo. Até aquele aquele momento, momento, o reino reino saudisaudita era o pri ncipal apoio da Irmandade, desde sua fundação, no Egito, em 1928. Com os Estados Unidos, ela havia combatido o regime nacionalista de Gamal Abdel Nasser (1954-1970), apoiado pela Rússia, que a reprimiu duramente. Mas a organização não poderia alinhar-se com a Arábia Saudita durante a Guerra do Golfo sem perder muitos de seus membros. Privando-a de apoio logístico e financeiro, a Arábia Saudita queria que a Irmandade, assim como a OLP, fosse obrigada a se dobrar. A situação não demorou demorou a mudar, mudar, com a tomada de poder, no Catar, de Hamad bin Khalifa al-Thani, que depôs seu próprio pai em 1995. O novo emir provavelmente não havia lido a fábula de La Fontaine “A rã que queria ser maior que o boi”. Querendo brincar junto com os grandes grandes da política regional, ele decidiu financiar a Irmandade Muçulmana mais ou menos da mesma forma que outros magnatas compram equipes de futebol. E também adquiriu, pagando caro, um canal de televisão por satélite, a Al Jazeera, que tinha a Irmandade como base de sustentação e logo conseguiu uma audiência excepcional, dando voz às oposições do mundo árabe – com exceção daquelas do vizinho saudita e do próprio Catar, onde o crime de lesa-majestade pode ser punido com a prisão perpétua.
ira do grande irmão saudita, o emir introduziu uma política rentista de “cobertura de risco”, “diversificando seus ativos”, ou seja, tecendo vínculos com toda a gama de forças importantes na região. Assim, realizou a façanha de construir, à sua própria custa, em segredo, uma base aérea para os Estados Unidos (Al Udeid, perto de Doha) e estabelecer relações comerciais com Israel, ao mesmo tempo exibindo boas relações com o Irã e apoiando o Hezbollah libanês e o Hamas palestino! No entanto, a invasão do Iraque em 2003 mudou o jogo em toda a região. Do ponto de vista estratégico, ela foi certamente o fracasso mais grave na história da política imperialista dos Estados Unidos: eles tiveram de sair do Iraque em 2011, sem conseguir nenhum de seus objetivos centrais. Pior: deixaram o país já dominado por seu grande inimigo regional iraniano.
DUAS OPÇÕES CONTRARREVOLUCIONÁRIAS CONTRARREVOLUCIONÁRIAS
Armado com esses dois instrumentos políticos e confrontado com a
Embora afirme o contrário, o governo Trump poderia conviver com a manutenção de Al-Assa Al-Assad d no no pode poderr sob sob a tutela da Rússia No mesmo ano, os Estados Unidos testemunharam a explosão de muitos dos Estados nos quais se baseava sua hegemonia regional. Diante da Primavera Árabe, surgiram duas opções contrarrevolucionárias concorrentes, ambas ancoradas no bastião reacionário do CCG: 3 uma apoiada pelo reino saudita e a outra, pelo emirado do Catar. Tradicionalmente ultraconservadores, os sauditas eram partidários da defesa dos regimes em vigor, fosse esmagando as revoltas – como ajudaram a fazer, em março de 2011, em Manama, capital do Bahrein –, fosse negociando acordos nos países onde mantinham boas relações com a oposição oficial, como no Iêmen. O Catar, por sua vez, erigiu-se em principal apoiador do levante regional, fazendo valer sua capacidade de influenciá-lo graças à sua ascendência decisiva sobre a Irmandade Muçulmana. Esta aproveitou as circunstâncias para assumir um papel de liderança, com o apoio financeiro e televisivo de seu patrocinador. A melhor ilustração do contraste entre as duas opções pode ser buscada no país onde tudo começou: a Tunísia. O emirado acompanhou o levante popular apoiando o parceiro tunisiano da Irmandade Muçulmana, o Ennahda, enquanto o reino wahabita ofereceu asilo ao ditador deposto, Zine al-Abidine ben Ali.
O governo de Barack Obama oscilou entre as duas opções. Ele concordou com a repressão do levante no Bahrein, mas apoiou o acordo no Iêmen. Nos países onde a revolta foi muito impetuosa, ele jogou a carta da recuperação, confiando na cooperação da Irmandade Muçulmana – como foi o caso no Egito, antes mesmo de esta vencer as eleições presidenciais de maio-junho de 2012. 4 Na Líbia, os Estados Unidos Unidos se deixaram levar por seus aliados europeus – principalmente franceses e britânicos – para bombardear as forças de Muamar Kadafi. O Catar participou ativamente da intervenção, enquanto os sauditas se recusaram a se un ir a ela. Sabemos o resultado: o caos líbio dissuadiu Obama de voltar a colaborar com a derrubada de um Estado na região. Na Síria, portanto, o presidente dos Estados Unidos negou à oposição os meios para neutralizar a grande vantagem militar do regime, que é a posse exclusiva de meios aéreos: ele não apenas se recusou a reiterar a “zona de exclusão aérea” imposta acima da Líbia, mas, sobretudo, impediu qualquer entrega de armas antiaéreas à oposição. Desse modo, o regime de Bashar al-Assad garantiu o controle do espaço aéreo, inclusive para o lançamento, com helicópteros, das mortais bombas de barril. Ao mesmo tempo, Obama delegou a seus aliados do Golfo e à Turquia a tarefa de patrocinar a oposição síria. Os sauditas não podiam defender Al-Assad por causa causa de sua aliança com com o Irã. Mas, como o Catar, não saberiam conviver com uma revolução democrática e laica em sua vizinhança. Então decidiram remodelar a oposição síria para torná-la compatível com a natureza reacionária de seu próprio regime. Assim, iniciaram uma feroz concorconcorrência com o eixo Catar-Turquia para financiar grupos armados sírios com perfil fundamentalista islâmico (salafista-jihadista) e sunita. A revolução síria de 2011 virou pó, pega entre o martelo e a bigorna: de um lado, o regime, as milícias fundamentalistas xiitas controladas pelo Irã e, depois, a partir de 2015, a aviação e os mísseis da Rússia; do outro, grupos armados fundamentalistas apoiados pela Turquia, pelo Catar e pela Arábia Saudita. Nem o surgimento da Organização do Estado Islâmico, a tomada de Mossul, no Iraque, e a proclamação do califado bastaram para levar Obama a apoiar-se em forças armadas árabes sunitas confiáveis nos dois países, como muitos o incitavam a fazer. O argumento era de que isso permitiria sufocar de maneira durável a Organização do Estado Islâmico, da mesma forma que a ocupação dos Estados Unidos só conseguiu vencer sua versão anterior, o Estado Islâmico no Iraque, armando e financiando milícias
tribais árabes sunitas. Em vez disso, os Estados Unidos apoiaram-se, em sua intervenção no Iraque, nas forças armadas regulares e irregulares dominadas pelos xiitas e infiltradas no Irã, em graus diversos, para grande desgosto da Arábia Saudita. E na Síria, nas forças nacionalistas curdas, para grande desgosto da Turquia. A atitude de Obama era coerente com sua política de apaziguamento em relação ao Irã, apostando na fração moderada, chamada de reformista, do regime iraniano – política da qual o acordo sobre a questão nuclear constituía uma pedra angular. O presidente dos Estados Unidos fez desse acordo sua prioridade, conseguindo fechá-lo em julho de 2015, após longas negociações envolvendo a Rússia, a China, a Alemanha e a França. Ele tomou essa via apesar da expansão regional do Irã, que, depois de se estabelecer firmemente no comando do Estado iraquiano, passou a intervir de maneira crescente na Síria, com seus contingentes regionais, a partir de 2013. A indiferença dos Estados Unidos irritou os dois principais inimigos do Irã na região: Israel e o reino saudita. A apreensão dos sauditas atingiu seu clímax quando, em setembro de 2014, a capital iemenita, Sanaa, foi tomada pelos houthis, amigos do Irã, de cujas orientações ideológicas eles compartilham, e aliados do ex-presidente Ali Abdullah Saleh. 5 Foi nesse contexto muito alarmante para os líderes sauditas que Salman bin Abdulaziz al-Saud sucedeu a seu meio-irmão, morto em 23 de janeiro de 2015. Com 80 anos de idade no momento em que subiu ao trono, o rei Salman estabeleceu como objetivo prioritário preparar a sucessão de seu filho favorito, Mohammed, que ainda não tinha 30 anos. Começou confiando-lhe o Ministério da Defesa; dois anos depois, em junho de 2017, Mohammed bin Salman (MBS, como costumam designá-lo) tornou-se o príncipe herdeiro. 6 O novo rei e seu jovem filho optaram por uma reação enérgica à ameaça iraniana: decidiram realizar uma intervenção direta no Iêmen, bem como adotar uma política de frente sunita regional única, que passava por melhorar as relações com o Catar e flexibilizar a atitude em relação à Irmandade Muçulmana. A intervenção m ilitar no Iêmen liderada pela Arábia Saudita em março de 2015, sob a supervisão de MBS, mobilizou uma coaliz ão que incluía o Catar. Ela apoiou um governo iemenita “legítimo”, que representava uma coalizão da qual par ticipava a Irmandade Muçulmana local. Esta é um componente fundamental do partido Al-Islah, com o qual o novo reinado saudita restabeleceu relações, após o reinado anterior tê-lo excomungado. No en-
tanto, a nova linha da Arábia Saudita criou tensões com o Egito do marechal Abdel Fatah al-Sissi, part idário da linha dura contra a Irmandade, que ele destruiu em seu país. Nessa posição inflexível, o Egito voltou-se para os Emirados Árabes Unidos, onde o príncipe herdeiro de Abu Dhabi e homem forte da federação, Mohammed bin Zayed (conhecido como MBZ), professa uma veemente hostilidade contra a Irmandade Muçulmana.7 A eleição de Donald Trump para a presidência dos Estados Unidos veio bagunçar tudo outra vez. O novo presidente logo se cercou de conselheiros islamofóbicos que defendiam uma atitude dura contra a Irmandade Muçulmana, recomendando até classificá-la como organização “terrorista”. Eles foram encorajados nisso pelos Emirados e seu ativo embaixador em Washington, pedindo que se obrigasse o Catar a tirar o apoio à Irmandade. Recebido com grande pompa pelo reino saudita em maio de 2017, em sua primeira visita presidencial no exterior, Trump pressionou pressionou seus anfitriões a forçar o Catar a romper com a Irmandade e não mais deixar a Al Jazeera à sua disposição. Menos de quinze dias após a visita, o reino saudita, os Em irados e o Bahrein, seguidos pelo Egito e alguns governos vassalos, romperam as relações diplomáticas com o Catar. Os três membros do CCG chegaram a interromper o transporte e o comércio com o colega. O caso, que fez muito barulho, foi um fiasco. Expulso da coalizão que intervinha no Iêmen, o Catar recusou-se a seguir as ordens. Ele usou seus enormes recursos financeiros para se adaptar à situação, com a ajuda comercial e militar da Turquia, aliada e copatrocinadora da Irmandade Muçulmana desde o início da Primavera Árabe. Embora afirme o contrário, o governo Trump poderia conviver com a manutenção de Al-Assad no poder sob
a tutela da Rússia, desde que esta ajude a expulsar as forças iranianas e suas aliadas do país. As duas orientações foram seguidas pela Arábia Saudita desde a visita do presidente norte-americano. No início de outubro de 2017, o rei Salman realizou a primeira visita de um soberano saudita saudita à capital russa. A operação de sedução – a julgar pela delegação de alto escalão que acompanhou o monarca e pelos contratos negociados – tinha o objetivo de convencer o presidente presidente Vladimir Put in a mudar sua atitude em relação ao Irã. Um mês depois, Trump e Putin, presentes na cúpula da Cooperação Econômica Ásia-Pacífico (Apec) em Da Nang, no Vietnã, assinaram uma declaração conjunta sobre a Síria: apoio ao processo internacional da Conferência de Genebra e aval implícito para a manutenção de Al-Assad no poder até a adoção de uma nova Constituição e a organização de eleições. Nesse meio-tempo, a Arábia Saudita convocou o primeiro-ministro libanês, Saad Hariri, de família estreitamente dependente dos sauditas, 8 para obrigá-lo a fazer uma declaração de renúncia que, de maneira bastante absurda, ele foi forçado a ler no próprio reino saudita, em 4 de novembro de 2017. Atacando ferozmente o Irã e seu auxil iar libanês, o Hezbollah, com o qual Hariri havia, no entanto, formado um governo de unidade nacional em dezembro de 2016, a declaração pôs fim a qualquer cooperação com o partido xiita. A operação fez tanto sentido quanto as observações de Trump no gramado da Casa Branca, com Hariri a seu lado durante v isita a Washington, em julho: o presidente dos Estados Unidos atacou longamente o Hezbollah, chamando-o de “ameaça para o Estado libanês, o povo libanês e toda a região” e colocando-o no mesmo saco que a Organização do Estado Islâmico e a Al-Qaeda, sem se importar com o fato de
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que o “partido de Deus” fazia par te do governo presidido por Hariri... Toda essa operação foi novamente um fiasco: retirado da Arábia Saudita pelo presidente francês Emmanuel Macron, Hariri voltou atrás em sua renúncia. A coalizão do governo libanês, no entanto, continua muito frágil e exposta a crises recorrentes. Aliás, há sinais de tensão entre a Rússia e a Arábia Saudita sobre sobre a Síria: depois de parecer apoiar os movimentos russos para promover um diálogo entre o regime e a oposição, a Arábia Saudita parece ter endurecido sua posição, a ponto de encorajar a oposição síria a recusar-se a jogar o jogo da Rússia. No fim das contas, o destino da Síria dependerá da evolução das relações entre norte-americanos e r ussos. Por enquanto, a atitude dos Estados Unidos em relação à Rússia endureceu consideravelmente: campanha contra o “Russiagate”, novas sanções, entrega de armas à Ucrân ia etc. Tudo contra contra a vontade de um Donald Trump visivelmente irritado. Diante do inédito caos da política norte-americana, os sauditas se veem em uma bela confusão, especialmente porque sua ofensiva no Iêmen atolou, provocando um dos piores desastres humanitários contemporâneos, até mais grave que a tragédia síria. Sua esperança de reverter a situação trazendo de volta Saleh – que já não estava mais ao alcance da mão – evaporou-se em dezembro, com seu assassinato pelos aliados que ele havia traído. A isso se soma, desde então, um conflito aberto entre as forças iemenitas da coalizão liderada pela A rábia Saudita, ainda mais incômodo pelo fato de que algumas facções passaram a ser apoiadas pelos Emirados Árabes Unidos e outras pela Arábia Saudita. Catar, Líbano, Síria, Rússia: todas as ma nobras empreendidas pelos líderes sauditas instigados por Trump falharam. Para piorar as coisas, o reconhecimento,
por parte deste último, de Jerusalém como capital do Estado de Israel os envergonhou, especialmente porque, de acordo com seu desejo, eles haviam começado a pressionar a Autoridade Palestina de Mahmoud Abbas para aceitar os termos israelenses – eles tiveram de voltar atrás. E o isolamento do presidente dos Estados Unidos na cena internacional sobre a questão iraniana só pode agravar sua amargura. A dança do sabre de Trump com seus convidados sauditas em maio passado já parece bem longe... *Gilbert Achcar é
professor da Escola de Estudos Orientais e Africanos (Soas) da Universidade de Londres. Autor do livro Les Ara-
bes et la Shoah. La guerre israélo-arabe des [Os árabes e o Holocausto. A guerra de récits [Os
narrativas entre árabes e israelenses], Sindbad-Actes Sud, 2009.
1 Ver Philippe Descamps e Cécile Marin, “Une mollahrchie constitutionnelle” [Uma mularquia constitucional], Le Monde Diplomatique, maio 2016. 2 Ler Bernard Hourcade, “O Irã se reinventa como potência regional”, Le Monde Diplomatique Brasil , fev. 2018. 3 Fundado em 1980, 1980, o CCG reúne o reino da Arábia Saudita, o reino do Bahrein, a federação dos Emirados Árabes Unidos, o emirado do Kuwait, o sultanato de Omã e o emirado do Catar. Desde a ruptura das relações diplomáticas entre o Catar e os vizinhos Arábia Saudita e Bahrein, o funcionamento do CCG está paralisado de fato. 4 Ler “Tudo “Tudo dentro da ordem”, Le Monde Diplomatique Brasil , mar. 2011. 5 Ler Laurent Bonnefoy, “Enlisement saoudien au Yémen” [Sauditas atolam no Iêmen], Le Monde Diplomatique , dez. 2017. 6 Ler Nabil Mouline, “Petits arrangements avec le wahhabisme” [Pequenos arranjos com o wahabismo], Le Monde Diplomatique , jan. 2018. 7 Nascido em 1961, 1961, MBZ, que se tornou chefe dos serviços de segurança dos Emirados Árabes Unidos na década de 1990, teria sido treinado por oficiais egípcios expatriados, cujo principal alvo em seu país de origem tinha sido a Irmandade Muçulmana. Acusando a organização de conspirar pela tomada do poder, MBZ liderou a repressão de seus membros e simpatizantes nos Emirados. 8 O pai de Saad Hariri, o ex-primeiro-ministro ex-primeiro-ministro libanês Rafik Hariri, assassinado em fevereiro de 2005, fez fortuna na Arábia Saudita, sob a proteção do rei Fahd bin Abdulaziz al-Saud.
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EXÉRCITO, UMA INSTITUIÇÃO SINGULAR
Cuba, o país do verde-oliva O presidente cubano Raúl Castro deixará o cargo em abril. Pela primeira vez em sua história, a ilha será provavelmente governada por uma pessoa nascida após a queda do ditador Fulgencio Batista, em 1959. Essa reviravolta suscita numerosas perguntas. Mas uma coisa é certa: o Exército desempenhará um papel decisivo na fase que se avizinha POR RENAUD LAMBERT*
z e m o G u a C ©
lguns meses depois de assumir a presidência, Donald Trump decidiu anular o “acordo totalmente desigual assinado com Cuba” por seu predecessor Barack Obama, em 16 de jun ho de 2016. O presidente democrata havia considerado ineficaz a estratégia norte-americana de estrangulamento – agressão militar, embargo, rompimento das relações diplomáticas. Melhor seria, segundo ele, normalizar as relações entre Washington e Havana, de modo a acelerar a “abertura” do país caribenho.1 Nada disso, replicou o republicano: o fluxo de turistas norte-americanos, que a mansuetude de Obama contribuiu para estimular, “agravaria a repressão” ao consolidar a posição das Forças Armadas. Depois da “ditadura comunista”, Cuba iria cair sob o jugo de uma junta militar! m ilitar! Não havi a oito generais na cúpula do poder, poder, entre os dezessete membros do gabinete político do Partido Comunista cubano? As tramas latino-americanas despertam reações desencontradas em
A
Washington. Satisfação quando derderrubaram o presidente Manuel Zelaya, em Honduras (2009); entusiasmo quando bombardearam o Palácio de la Moneda, no Chile (1973); indignação quando ostentam uma boina vermelha na Venezuela ou um charuto em Cuba. Nesses últimos cenários, a Casa Branca lembra com gosto que a espada nem sempre se entende com a cédula eleitoral e que canhões destinados a manter o adversário em respeito se voltam, às vezes, contra as populações. E em Cuba? Aqui, o Exército tem a imagem de um homem discreto, mas rígido, pragmático e determinado: Raúl Castro, presidente desde 2008 e... general de Exército. Indestrutível ministro da Defesa entre 1959 e sua ascensão ao poder supremo, ele moldou a institu ição à própria imagem e semelhança, tomando por base a experiência que viveu na Sierra Maestra. Após o desembarque dos “ba rbudos” na ilha, em 1956, Fidel Castro pediu a seu irmão que comandasse uma coluna de rebeldes armados em
uma zona afastada, a leste do país. A região, posta sob as ordens do irmão mais novo, seria batizada de “segunda frente oriental Frank País”, do nome de um l íder estudantil revolucionário. “Enquanto, em sua zona, Fidel falava muito – de suas ambições, de suas grandes ideias –, Raúl organizava a dele”, explica o jornalista Fernando Ravsberg. “Criou, por exemplo, um serviço de sapataria para que seus homens dispusessem de calçados dignos desse nome.” Percorrendo o território oriental para orquestrar o recrutamento e o aprovisionamento de suas tropas, Raúl Castro decretou uma reforma agrária, abriu escolas e hospitais – financiados com a criação de um i mposto. O FEIJÃO É MAIS IMPORTANTE QUE O CANHÃO
Em setembro de 1958, o jovem (então com 27 anos) convocou um congresso camponês durante o qual os habitantes de sua região foram convidados a apresentar queixas. “No fim do ano”, resume o pesquisador Hal Klepak,
“Raúl havia lançado as bases de uma forma de governo não apenas para suas tropas, mas também para a população: com uma espécie de ministérios da Guerra, da Justiça, da Propaganda, da Saúde, da Economia, das Obras Públicas, das Comunicações, da Educação, além de departamentos encarregados dos problemas problemas agrários agrá rios e trabalhistas”. trabal histas”.2 A institu ição milita r que hoje os cubanos conhecem, oficialmente inaugurada em 2 de dezembro de 1961, emergiu, portanto, do caldeirão da guerrilha, daí seu nome: Forças Armadas Revolucionárias (FAR). Não foi concebida para defender o país, mas para liberta r o povo da ditadura – uma vocação política que não a deixou mais, mesmo quando o projeto inicial mudou, passando do nacionalismo à construção de um sociali smo “à cubacubana”. As FAR gozam, pois, de uma aura considerável junto àqueles que viveram a queda do ditador Fulgencio Batista. Para eles, os militares são os antigos guerrilheiros, aos quais devem com muita frequência seus primeiros sapatos, seus primeiros livros, sua primeira vitória. O internacionalismo das FAR contribui para seu prestígio no seio de uma população mais politizada que em qualquer outra parte e que vivenciou as tribulações da resistência aos ataques de Washington: elas participaram de guerrilhas latino-americanas, de ações na Argélia, na Etiópia e sobretudo em A ngola, onde dezenas de milhares de soldados cubanos lutaram contra as tropas do regime de apartheid sul-africano. Além disso, a lei exige que pelo menos metade dos jovens recrutas da academia militar sejam filhos de operários ou camponeses, mais pobres (e, portanto, quase sempre negros) que o resto da população.3 No entanto, a imagem das FAR junto ao povo se construiu também por ocasião de um outro episódio mais recente da história cubana: o chamado período “especial”, que começou logo depois do esfacelamento do bloco soviético. De 1991 a 1994, o PIB caiu cerca de 35%. A violência do choque inebriou os anticastristas. Andrés Oppenheimer, um dos editorialistas preferidos da imprensa sediada em Miami, publicou um livro intitulado A hora hora final de Castro.4
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“De repente, Fidel disse a Raúl: ‘Não tenho mais dinheiro para você. É preciso que o Exército se vire sozinho’”, conta Ravsberg. Em menos de um ano, o irmão mais novo “amputou as Forças Armadas pela metade, metade, enquanto enquanto seu orçamento se derretia como neve ao sol (de 1.149 milhões a 736 milhões de pesos cubanos, moeda cujo próprio valor já desabara)” desabara)”,, lembra lembra Klepak. Num contexto em que o Estado cubano parecia petrificado pela crise econômica – com Fidel Castro teimando em prometer dignidade, orgulho e honra às barrigas vazias que o escutavam –, as FAR se destacaram por sua capacidade de adaptação. Em uma reportagem a elas consagrada em 1995, o New York York Times apresentou-as como “a única coisa que ainda funciona” na ilha.5 Os militares não tinham mais dinheiro, combustível e peças de reposição – que antes vi nham de Moscou. “Nossa missão é a defesa do país, mas a defesa em sentido lato”, declarou, ainda assim, Raúl Castro. “Por ora, isso implica fornecer alimento ao nosso povo. [...] O feijão é mais importante que o canhão.”6 Os militares trocaram então seus fuzis por enxadas... e coqueteleiras. A partir de 1980, 1980, as FAR começaram a trabalha r no setor de turismo, por intermédio da empresa Gaviota, que gerenciava os centros de lazer destinados aos soviéticos. Abriram então uma cadeia de lojas para vi sitantes estrangeiros, a fim de recolher os dólares em circulação no país. Muitos militares deixaram a farda no guarda-roupa e vestiram a guayabera guayabera, um tipo de camisa transformado em traje formal em Cuba. Alguns foram ao estra ngeiro para fazer cursos de administração; outros assumiram a gerência de hotéis. Pilotos de caça tornaram-se pilotos de linhas aéreas, e almirantes da Marinha de Guerra passaram a comandar iates. Estima-se que, em meados dos anos 1990, as FAR produziram entre um terço e metade dos alimentos consumidos pela população. Os orçamentos destinados à saúde e à educação aumentaram, enquanto os da defesa continuaram a diminuir, obrigando os militares à autonomia financeira. “Durante todo esse tempo, as escolas de balé mantiveram suas porta s abertas”, recorda Ravsberg, que então já morava na ilha.7 Num contexto em que os Estados Unidos decidiram agravar as sanções contra o país, as FAR mostraram mesmo – à sua maneira – que continuavam garantindo a proteção do território. Quatro anos depois da publicação do livro de Oppenheimer, Raúl Castro presidiu um desfile militar em que seus soldados exibiam mísseis terra-ar sofisticados, puxados por bicicletas... As FAR constituem, pois, o laboratório das reformas que Fidel tentou colocar em prática desde sua chegada ao poder, como a in-
trodução de remuneração com base na produtividade.8 A ruptura parece às vezes considerável: Fidel Castro preferia que nenhum cubano gozasse das infraestruturas hoteleiras caso só os ricos pudessem ter acesso a elas? Pois seu irmão, que denuncia os desvios do “igualitarismo”, decidiu, ao contrário, abri-las a todos e deixar o mercado operar. Descobriu-se então que alguns cubanos guardavam somas consideráveis debaixo do colchão. Gastando-as nos hotéis (das FAR...), liberam os quartos nas pensões familiares com que até então tinham de se contentar e cujos preços caem a olhos vistos.
O capitalismo e suas receitas causam menos preocupação nas casernas que na sede do Partido Comunista Cubano Abandono do projeto socialista? Ainda que cada discurso do irmão mais moço prometa a continuidade da “visão” do mais velho, ele se afasta da concepção utópica segundo a qual apenas as ideias podem mover as massas. Numerosos observadores julgaram paradoxal uma situação em que Raúl, membro das juventudes comunistas, enquanto seu irmão não o era, tornou-se o “coveiro” sóbrio do projeto havia muito acariciado por Fidel. O atual presidente se mostra talvez mais sensível ao fato de que uma análise do ambiente concreto é proveitosa aos combates políticos. Ora, os contextos econômico e geopolítico não são de modo algum propícios à emergência do socialismo “em uma única ilha”. 9 Ao que tudo indica, o capitalismo e suas receitas causam menos preocupação nas casernas que na sede do Partido Comunista Cubano (PCC). Embora nenhum número oficial esteja disponível, calcula-se que os efetivos das FAR se estabilizaram em torno de 80 mil homens e mulheres, contra 200 mil nos anos 1980. As empresas que elas controlam – como Gaviota, Cimex e TRD – se uniram na holding Grupo de Administración Empresarial (GAE SA), dirigida pelo ex-genro de Raúl Castro, Luis Alberto Rodríguez López-Callejas. A primeira controla 40% dos quartos do setor hoteleiro. Em um artigo art igo pormenorizado, pormenorizado, escrito para rebater os números fantasiosos fornecidos pela imprensa de Miami, o universitário norte-americano William LeoGrande – pouco suspeito de simpatias castristas – estima as receitas da Gaviota em US$ 1,7 bilhão em 2016.10 A
Cimex – cadeia de lojas, aluguel de carros... – teria, por sua vez, obtido um lucro de US$ 1,3 bilhão no mesmo ano. Especializada no comércio popular (de sabão a eletrodomésticos, passando por produtos destinados aos turistas), a TRD parece ter alcançado, em 2016, um volume de negócios em torno de US$ 440 milhões. Isso dá um total de cerca de US$ 3,4 bilhões para a GAE SA, o equivalente a 20% das entradas de divisas no país e a 4% do PIB de 2015. Com um detalhe que não escapou a Trump: as receitas das empresas dirigidas pelas FAR flutuam de acordo com as rendas do setor turístico. Nessas condições, não é nada absurdo sugerir que normalizar as relações com Havana equivale a facilitar a vida dos militares. Mas daí a sugerir que a operação “agrava a repressão”... Cada passagem de um furacão pelo Caribe leva os observadores internacionais a perguntar: por que Cuba se sai melhor nisso que os outros países? Para os habitantes da ilha, a resposta é dupla: devido à solidariedade, que induz os mais preservados a abrir as portas para os mais expostos, mas também graças à organização logística das FAR, que comandam a defesa civil. Estas, contudo, ignoram o fenômeno da corrupção, que gangrena parte das instituições da ilha? De modo algum – embora o prestígio das FAR no seio da população seja até maior que o da polícia. O maná recolhido pela GAE SA poderia espicaçar a tentação de recorrer às mil e uma acrobacia s que facilitam o enriquecimento pessoal: outros países (como o Vietnã) conheceram esse tipo de evolução. Mas, por enquanto, não é raro ver um coronel pedindo carona à beira da estrada. Em outras partes do mundo, ele passaria voando em um sedã com ar-condicionado. a r-condicionado. *Renaud Lambert é
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O olhar da cidadania
Na luta pela construção de uma sociedade mais justa, solidária e sustentável.
jornalista do Le Monde
Diplomatique .
1 Ver Patrick Howlett-Martin, “EUA-Cuba, degelo sob os trópicos?”, Le Monde Diplomatique Brasil , nov. 2014. 2 Ha l Klepak, Raúl Castro and Cuba. A Military Story [Raúl Castro e Cuba. Uma história militar], Palgrave Macmillan, Nova York, 2012. 3 O serviço militar militar de dois anos é obrigatório para os homens. As mulheres também podem fazê-lo como voluntárias. 4 Andrés Oppenheimer, Castro’s Final Hour [A [A hora final de Castro] , Touchstone, Nova York, 1992. 5 Larry Rother, “In Cuba, army takes on party jobs, and may be only thing that works” [Em Cuba, o Exército faz bicos e pode ser a única coisa que funciona], The New York Times, 8 jun. 1995. 6 Citado por Larry Rother, op. cit. 7 “Quién paga la salud y la educación en Cuba?” [Quem paga a saúde e a educação em Cuba?], Cartasdecuba.c om, 30 mar. 2017. 2017. 8 Ver “Cuba quer o mercado, mas sem capitalismo”, Le Monde Diplomatique Brasil , out. 2017. 9 Ver “Les enfants ont vieilli” [As crianças envelheceram], “Cuba, ouragan sur le siècle” [Cuba, furacão do século], Manière de Voir , n.155, out.-nov. 2017. 10 “Cuánto de la economía cubana controlan las empresas militares?” [Quanto da economia cubana as empresas militares controlam?], Resumen Latinoamericano, Buenos Aires, 30 jun. 2017.
Quartas, às 17h, Rádio USP (São Paulo: 93,7 FM Ribeirão Preto: 107,9 FM)
Quartas, à meia-noite TV Aberta SP, canais 9 da NET, 8 da Vivo Fibra e 186 da Vivo.
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AMÉRICA LATINA
Em busca da Pachamama Muitas organizações procuram consolar os ocidentais inquietos com a crise ecológica. Longe de suas frenéticas metrópoles, na América Latina, os indígenas teriam conservado sua proximidade com a natureza, erigida à categoria de divindade: a Mãe Terra, ou Pachamama. No trabalho de campo, procurar por essas comunidades protegidas pode trazer algumas decepções POR MAËLLE MARIETTE*
– O que é Pachamama, Luis? – a questão traz uma lembrança dolorosa para Luis Tuytuy, um dos líderes da nação Sápara, no coração da Amazônia equatoriana. – Pachamama? Bem, é uma fu ndação equatoriana que apoiava as comunidades indígenas na luta em defesa da natureza. Ela não existe mais. – Ah, claro. Mas eu estava falando sobre a divindade, sabe, a Mãe Terra? Aliás, como se diz Mãe Terra Terra na língua sápara? – Ah... Espera um pouco... Sinto muito, na verdade eu não sei.
c c s e d n A a i c n e g A / z e u g í r d o R s o l r a C ©
“TAMBÉM TEMOS MENUS VEGETARIANOS”
Festa do Inti Raymi, que marca o equinócio de verão, em Otavalo os últimos meses de 2017, atravessamos o Atlântico para chegar ao Equador, em busca da Pachamama.1 Em nome dessa divindade ameríndia, indígenas, ativistas ambientais, dirigentes políticos e intelectuais empenham-se em “frear as agressões do capitalismo”, 2 principalmente as que envolvem a extração de matérias-primas. “A Pachamama é uma realidade no mundo indígena”, explica Alberto Acosta, com quem falamos logo que chegamos a Quito. Ele foi ministro de Energia e Minas em 2007 e presidente da Assembleia Constituinte que, em 2008, sob a liderança do presidente Rafael Correa, reconheceu a Pachamama como um sujeito de direito – algo inédito no mundo. Agora hostil ao ex-chefe de Estado, a quem acusa de traição e perpetuamento da exploração dos recursos naturais do país, Acosta encarna uma corrente ambientalista que conta com gra nde atenção no exterior. “Para os povos autóctones, a Pachamama não é uma simples metáfora, ao contrário do que ocorre no mundo ocidental. Os i ndígenas identificam a TerTerra como uma mãe. Eles têm um relacionamento muito estreito com ela. Claro que nem todos os indígenas
N
veem as coisas dessa maneira, afinal de contas, eles foram submetidos a quinhentos anos de colonização, e ela ainda não acabou. O mundo indígena não é poupado pelas lógicas do capitalismo, do individualismo, do consumismo e do produtivismo. Mas ainda há comunidades que organizam sua vida social, política, econômica e cultural em torno de noções como Pachamama e Suma k Kawsay [bem viver].” No Equador, mais que em qualquer outro lugar, a influência do conceito de Mãe Terra ultrapassou o círculo das comunidades indígenas “protegidas”. “protegidas”. “Eu não coloco botas em meus filhos quando vão ao quintal, para que sintam a terra, para que sintam o contato com a Pachamama”, explica Rocío G., diretora e produtora de programas relacionados ao mundo indígena, que mora em um bairro residencial da capital. Antes de lamentar: “Mas minha irmã, para quem nada disso tem importância, calça os filhos sempre que eles saem” sa em”.. Estranha aos olhos da cineasta, a decisão de sua irmã é a mesma dos indígenas quíchuas dos altos platôs com quem falamos alguns dias depois: para que seus filhos não peguem fr iagem ou se machuquem, eles também calçam
as crianças quando saem de casa... Devemos concluir que os Quíchua esqueceram sua cultura? Não em Otavalo, onde funciona, o ano inteiro, um dos maiores mercados mercados artesanais da América Latina. Aqui, tudo é feito para promover a identidade quíchua. Essa atitude acabou levando à “indigenização” de algumas festas que antes não faziam nenhuma referência à cultura quíchua. É o caso da festa do equinócio de verão, que se tornou o Inti Raymi, e do Carnaval, celebrado em todo o país, mas aqui rebatizado como Pawkar Raymi. As festividades ocorrem na comunidade de Peguche, a poucos quilômetros do centro de Otavalo, em uma curiosa mistura: uma procissão em torno de um xamã é acompanhada por um show de reggae, um torneio esportivo, uma missa católica, a eleição de uma rainha da beleza quíchua e uma gigantesca batalha de água, farinha, ovos e tinta. Edwin T., T., filho de artesãos e músicos da comunidade vizinha, que atualmente estuda em Paris, explica sorrindo que a maioria dos líderes locais não fala quíchua. A seu ver, essa reindigenização “baseia-se essencialmente em uma reinterpretação incerta de tradições relatadas em livros de antropólogos ou intelectuais brancos”. 3
Quando fizemos essa pergunta, a maioria das reações foi semelhante à de Tuytuy. Nos (raros) casos em que o termo evocava algo, era uma terra que precisa ser defendida como território ancestral: um espaço vital constitutivo de uma identidade. Conversamos com os Achuar das comunidades de Wisui, Chumpi e Cotapaza, localizadas às margens do Rio Pastaza – às quais se chega somente depois de horas de ônibus, canoa e trilhas na floresta partindo da cidade de Puyo, ao pé da Amazônia –, e com os Quíchua das comunidades da região de Curaray – separadas de Puyo por t rês horas de ônibus em estrada de terra e mais de oito horas de canoa no Rio Curaray, quando seu nível permite. As aspirações dos moradores locais estão menos relacionadas ao meio ambiente do que à melhoria das condições de vida: acesso aos centros de saúde – as picadas de cobras, por exemplo, representam quase 10% das causas de morte na Amazônia equatoriana –, à educação, às redes rodoviárias, especialmente para vender sua produção na cidade, e aos meios de comunicação comunicação a distâ ncia (rádios de onda curta e internet) “para entrar em contato com o exterior em caso de emergência”, explica o ancião da comunidade Cotapaza. E depois acrescenta: “Diesel para o barco é bom. Antes, só com o remo, era muito mais di fícil vencer a corrente”. No entanto, eles também se inquietam com o impacto da modernidade sobre as práticas culturais. Alguns se preocupam com a educação; outros, com o acesso à rede rodoviária, mas todos temem que os jovens esqueçam
suas raízes. Assim, uma tensão estrutura a forma como a população local vê os projetos de mineração ou extração de petróleo colocados em prática pelo governo: por um lado, a ameaça do desaparecimento da cultura dos antepassados e do modo de vida a eles associada, com o sentimento de abandono por parte de um governo que só se interessa pela terra por causa da “riqueza do [seu] solo”; por outro lado, o fato de que esses projetos, embora poluidores, poderiam melhorar condições de vida hoje mi seráveis. Essa ambivalência nem sempre é expressa por aqueles que falam em nome dos povos indígenas no Equador, a exemplo de um dos líderes da formação indígena Pachakutik, Salvador Quishpe, atual governador da província de Zamora-Chinchipe, que apoiou o riquíssimo banqueiro Guillermo Lasso, candidato da direita às eleições presidenciais de 2017. Equipado com dois smartphones, o tempo todo atravessando o país de avião, Quishpe expõe seu credo: quando os povos indígenas usam sua pobreza como argumento em defesa da mineração, ele os convida a rejeitar o “estilo de vida ocidental”. Lembra-lhes que a “floresta magnífica” que os cerca, com suas cascatas, é a única “riqueza verdadeira” e explica que o desenvolvimento econômico provocado pelas grandes operações de mineração ameaça “corrompê-los” e “destruir sua cultura”. A consciência ambiental dos indígenas não tem muito impacto. Quando viajamos pela região andina e amazônica, onde essas populações estão particularmente representadas, vemos estradas cheias de painéis instalados pelo Estado com recomendações: “Cuide do meio ambiente”, “Cuide da natureza, você depende dela”, “Natureza é vida”, “A Terra merece respeito, cuide dela”. Para Carlos Freire, no entanto, a Pachamama é bem real: “Ela é sagrada, é nossa mãe. Devemos respeitá-la”. Mestiço e habitante de Puyo, ele dirige a agência Hayawaska Tour, que oferece passeios turísticos na Amazônia. “Organizamos o programa de nossos passeios de acordo com o que os tur istas querem ver e em seguida os apresentamos às comunidades. Em nosso Full Day Tour [passeio de um dia], oferecemos oficinas com essas populações. Mas o mais pedido é o Ayahuaska Tour. Trabalhamos com xamãs que sabem fazer o bom uso da ayahuasca [bebida alucinógena].4 É um momento especial em que as pessoas podem viver coisas profundas em perfeita conexão com a natureza. No dia seguinte, elas se levantam e comem um caldo de frango puro, sem produtos químicos. Também temos menus vegetaria nos.” A promoção de circuitos ci rcuitos neo- New de Freire passa por uma oposição Age de
milita nte aos projetos petrolíferos, em nome da defesa da Pachamama – uma luta à qual se dedica totalmente o Toxi Tour da associação dirigida por Diocles Zambrano, nas proximidades de Coca, cidade amazônica localizada perto de poços petrolíferos. A visita tem o objetivo de ilustrar “o horror da exploração petrolífera”, em parceria com a ONG Acción Ecológica. Com sede em Quito, a organização tem Acosta entre seus mais eminentes apoiadores. Resultado? Ela se tornou obrigatória para os jornalistas que queiram investigar a questão ambiental no Equador. Bastante profissional, a Acción Ecológica dá tudo ma stigado, forfornecendo todos os contatos úteis. Para Acosta, bem como para movimentos ambientais próximos à Acción Ecológica, como os Yasunido,5 e muitos dos atuais líderes da Confederação de Nacionalidades Indígenas do Equador (Conaie), ecologia, antiextrativismo e indigenismo se tornaram inseparáveis. Assim, as reivindicações sociais, territoriais e culturais tradicionais são feitas em nome da Pachamama. É a mesma lógica para alguns líderes políticos, indígenas ou não, para os quais a divindade seria um vetor da luta contra o aquecimento global e o capitalismo. A situação situação não é exclusiva do Equador. A antropóloga Sarah Qui lleré pesquisa as lutas do povo Wayuu na Colômbia. Segundo ela, “a retórica indigenista e a ecologização do discurso dos líderes wayuus são certamente o elemento mais marcante” em seu movimento “contra a destruição e a espoliação do território”. O fenômeno responderia “à crescente preocupação ecológica nos países mais industrializados”. A tendência dos pensadores “nos quais se inspiram amplamente as organizações indígenas e as ONGs é dizer que devemos procurar nas tradições pré-coloniais as lógicas alternativas ao modelo racional europeu. Essas novas correntes de pensamento propõem reabilitar os valores tradicionais como único meio de emancipação e sobrevivência autônoma das populações”. populações”.6 MARX E FREUD, PONCHO E IOGA
No Equador, ninguém encarna melhor o fenômeno da “pachamamização” da política – uma forma de ecologização indigenizante, ou de indigenização ecologizante – do que Carlos Pérez, presidente da Ecuarunari, que representa os indígenas da região montanhosa. Muito respeitado pela esquerda ambientalista internacional e radica lmente oposto ao ex-presidente Correa, Pérez explica que, não tendo sido contaminados pelo Ocidente, os indígenas detêm uma “verdade ancestral” sobre o mu ndo “que “que pode salvar a huma nidade”. nidade”. A internet daria os meios de “globalizar a resistência” aos
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projetos de mineração e extração de petróleo e, de maneira mais geral, à política “capitalista, ‘ecocida’ e ‘etnocida’”. Como globalizar a resistência? “Globalizando a Pachamama, as cosmovisões, as cosmoexperiências”, explica Pérez. Ou melhor, “Yaku” Pérez, já que ele recentemente decidiu i ndigenizar seu nome. Aqueles Aqueles que, que, como os Sápara, escoescolhem outra via para satisfazer suas necessidades básicas observam que não apenas as ONGs frequentemente desistem de ajudar as comunidades que optaram por “colaborar” com o Estado, mas que a própria Conaie os marginaliza. Essa situação não surpreende Antonio Vargas, ex-presidente da confederação: à medida que a organização se envolveu no jogo das alianças políticas, ela “se separou de sua base”, avalia. 7 Se alguns dos atuais líderes da Conaie aprovaram a decisão de apoiar o banqueiro Guillermo Lasso em 2017, talvez seja porque os militantes históricos de orientação marxista – como Humberto Cholango, Ricardo Ulcuango, Pedro de la Cruz e Miguel Lluco –, para os quais a luta indígena é entendida em termos de luta de classes, decidiram apoiar Correa durante toda a sua presidência. O fenômeno deixou o campo aberto para outros líderes, como Quishpe e Pérez, partidários de uma forma de essencialismo indígena. “As questões dos direitos da natureza ou do Sumak Kawsay não faziam parte das reivindicações indígenas na década de 1990”, 1990”, explica o cientista político Franklin Ramírez. “Foi no início da Revolução Cidadã [após a eleição de Correa] e principalmente com a Assembleia Constituinte de 2008 – sob a liderança de Acosta – que esses temas realmente entraram no cenário político e ganharam grande visibilidade. Muita gente pensa que o movimento indígena sempre usou a retórica ecologista, mas não é o caso.” Depois de mergulhar nos documentos programáticos da Conaie dos anos 1990, Ramírez observa que as reivindicações indígenas da época giravam em torno da plurinacionalidade, da terra, da representação no Estado e da promoção de uma forma de autogestão, de democracia comunitária. “Nesse quadro entrava, de maneira colateral e periférica, a questão da natureza e dos recursos naturais. Para os movimentos indígenas dessa época, a resposta para o problema da proteção do meio ambiente, da natureza, era a autonomia indígena e a aquisição do poder territorial sobre os recursos.” Ramírez concorda com Floresmilo Simbaña, líder e intelectual da Conaie, em dizer que a decisão de levantar a bandeira do Sumak Kawsay e da Pachamama foi uma forma de Correa neutralizar a delicada questão da plurinacionalidade, colocando-a em segundo plano.
A despolitização despolitização da Pachamama – que possibilitou sua repolitização conservadora – teve início, segundo Ramírez, quando as lutas políticas indígenas ganharam grande visibilidade, na década de 1990: “Na época, eu tinha colegas na universidade que eram marxistas ou freudianos e se indigenizaram. Começaram a usar trança, chapéu, poncho. Iam falar sobre a Pachamama na TV. Houve um processo impressionante de reindigenização, acompanhado do surgimento de serviços espirituais étnicos: xamãs, rituais de ayahuasca, igrejas etc. Muita gente do meu círculo, gente urbana de Quito, mergulhou nessa onda, sobretudo a pequena e a grande burguesia. Agora é a ioga. Aliás, essa visão pachamamista do mundo lembra um pouco algumas formas de ioga: os problemas estão no interior. É u ma forma de personalizar a questão da transformação das coisas e de abandonar as lutas políticas fundamentais”. A redução redução da Pachamama Pachamama à sua dimensão espiritualizante e ecologizante assegura a Acosta cer to sucesso no exterior. “Estou sempre viajando para a Europa, especialmente para a Alemanha, a Áustria, a Espanha e a Itália”, explica por Skype, por causa de suas viagens constantes. “Mas também para muitos países da América Latina. Sou convidado pelas universidades e pelos movimentos sociais. Por exemplo, hoje vou para a Alemanha – onde vou receber um prêmio – para fala r sobre direitos da natureza e sobre todas as transformações civilizacionais que permitem sair de um mundo antropocêntrico para um mundo biocêntrico.” *Maëlle Mariette é
jornalista.
1 Nossa reportagem incluiu 39 horas de entrevistas com 74 pessoas em trinta comunidades, sendo 21 delas indígenas, percorrendo mais de 4 mil quilômetros em todo o Equador. 2 Roberto Ojeda, “Pachamama contra el capitalismo” [Pachamama contra o capitalismo], Erosión. Revista de Pensamiento Anarquista, Santiago do Chile, n.2, 2013. 3 Ler Renaud Lambert, “Le spectre du pachamamisme” [O fantasma do pachamamismo], Le Monde Diplomatique, fev. 2011. 4 Ler Jean-Loup Amselle, “Febre xamânica na Amazônia peruana”, Le Monde Diplomatique Brasil , jan. 2014. 2014. 5 Grupo militante que se opõe à decisão do governo de explorar parte do parque natural Yasuní, constituído após o fracasso da iniciativa Yasuní-ITT. Ler Aurélien Bernier, “A biodiversidade do Equador nas mãos da solidariedade internacional”, Le Monde Diplomatique Brasil , jun. 2012. 6 Sarah Quilleré, “Écologisation et standardisation des mythes traditionnels, reconfiguration des connaissances locales et nouveaux concepts. Les Wayuu en lutte pour la sauvegarde du territoire” [Ecologização e padronização dos mitos tradicionais, reconfiguração dos conhecimentos locais e novos conceitos. Os Wayuu lutam em defesa do território], Revue d’Anthropologie des Connaisv.10, 0, n.4, 2016. sances, Paris, v.1 7 “Bases indígenas desde Santo Domingo exigen ‘diálogo directo con el gobierno’ sin Conaie” [Bases indígenas em Santo Domingo exigem “diálogo direto com o governo” sem a Conaie], El Telégrafo, Guayaquil, 23 fev. 2015.
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QUANDO NEM TODAS AS VÍTIMAS DE ATENTADO TÊM O MESMO VALOR
Longe dos olhos, longe do coração Como custa caro e gera menos audiência que as fofocas sobre a vida dos famosos, a informação internacional não é prioridade para as direções editoriais. Alguns países geográfica e culturalmente próximos beneficiam-se, contudo, de uma cobertura melhor. O tratamento dado aos atentados ilustra essa dinâmica de forma bastante clara POR TÉO CAZENAVES*
o dia 2 de novembro de 2017, os ouvintes da programação matutina da France Inter puderam viver um momento momento radiofônico singular. Em sua crônica semana l, Nicole Ferroni queixou-se que tinha sido convidada a modificar sua intervenção – destinada originalmente ao assédio sexual – em vista dos eventos ocorridos no dia 31 de outubro em Nova York: o motorista de um veículo atropelou intencionalmente vários pedestres, causando a morte de oito e deixando doze feridos. Visivelmente incomodado, Nicolas Demorand reagiu: “Você descobriu, minha cara Nicole, que o real às vezes nos atinge”. Deu-se um silêncio atordoante. “É melhor não falar sobre isso...; é essa, se entendi bem, a moral da crônica?”, ele continuou. A cronista explicou que questionava “a importância do fato de se falar d isso com tanta frequência”. frequência”. O apresentador do segundo programa matutino mais escutado da França concluiu com estas palavra s: “Obrigado. Infelizmente há atentados com tanta frequência, e falamos deles tentando refletir também”. também”. Naquela semana, os jornais das 8 horas da France Inter dedicaram 6 minutos e 26 segundos ao atentado em Manhattan. Duas semanas antes, o de Mogadíscio, o ataque terrorista mais
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mortífero da história africana, com 512 mortos,1 não teve direito a mais que breves 21 segundos no jornal das 8 da principal emissora de rádio pública, ou seja, dezoito vezes menos. Entre 18 e 24 de agosto ago sto de 2017, 2017, os ataques at aques de Barcelona e de Cambrils – reivindicados pela organização Estado Islâmico, com dezesseis mortos, tinham sido noticiados nos mesmos jornais durante 24 minutos e 50 segundos, ou seja, 71 vezes mais que o de Mogadíscio. Esses três atentados, que ocorreram em um curto lapso de tempo em pontos diversos do mundo, fornecem um bom exemplo da importância muito variável atribuída pelos jornalistas a esse tipo de acontecimento. acontecimento. Com notável exceção da Radio France Internationale (RFI), todos os meios de comunicação analisados reservaram aos atentados catalães um tratamento quantitativo visivelmente superior ao que deram ao massacre de Mogadíscio. Assim, a Télévision Française 1 (T F1) abriu abriu seis vezes seu jornal das 20 horas com chamadas sobre esses acontecimentos, aos quais o canal de TV consagrou 1 hora, 1 minuto e 17 segundos entre os dias 17 e 23 de agosto. Mas, entre 14 e 20 de outubro, ela dedicou apenas 1 minuto e 40 segundos ao ataque de Mogadíscio, ou seja, uma relação de 1 para 44.
Será que é preciso aceitar como explicação a curta distância que separa Barcelona da sede das redações parisienses, o que se chama em algumas escolas de jornalismo de “jornalismo de proximidade” ou de “morte quilométrica”? O simples critério da proximidade geográfica cai qua ndo se compara o tratamento dado pela TF1 aos atentados de Nova York e de Mogadíscio, cidades situadas, respectivamente, a 5.845 km e a 6.625 km de Paris. Entre 1º e 7 de novembro, os acontecimentos de Nova York foram lembrados três vezes, ao todo durante 21 minutos e 15 segundos, ou seja, quinze vezes mais que o tempo de difusão reservado aos mortos na Somália. Entre os fatores que determinam a intensidade da cobertura dada à África, poderiam figurar o envolvimento do Exército francês ou a presença de franceses entre as vítimas. A presença de jornalistas na área também parece crucial: nenhuma das três rádios – France Inter, RTL, Europe 1 –, que contam com as maiores audiências matinais, dispõem de correspondentes permanentes na África. A France 2 mantém um em Dacar, apesar do fechamento de sua agência especializada em 2014, 2 enquanto a TF1 só tra balha desde então com jornalistas freelancers no continente. Na impren-
sa diária, o Le Monde conta conta com dois correspondentes permanentes, que enviam notícias respectivamente de Johannesburgo e Túnis; o Le Figaro não dispõe mais de nenhum jornalista mensalista na África. Somente a RFI se distingue, uma vez que a rede pública – que tem como slogan “As vozes do mundo” – conta com quatro correspondentes a postos em Dacar, Abidjan, Kinshasa e Nairóbi. O tratamento que deu aos três atentados é muito menos desequilibrado do que todos os outros meios de comunicação juntos. “Evitemos a overdose midiática após os atentados” foi o título de um artigo publicado pelo Le Monde em em 25 de agosto de 2017. No que diz respeito aos mortos em Mogadíscio, aos quais o diário vespertino consagrou oito vezes menos caracteres que aos de Barcelona e de Cambrils, a overdose sem dúvida foi evitada. *Téo Cazenaves é
jornalista.
1 “Le bilan de l’attentat en Somalie en octobre bondit à 512 morts” [O balanço do atentado na Somália em outubro subiu para 512 mortos], LeMonde.fr, 2 dez. 2017. 2 Léa Ticlette, “AITV “AITV victime de l’évolution des objectifs de France TV” [AITV, vítima da evolução dos objetivos da France TV], RFI.fr, 9 dez. 2014.
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REINÍCIO DA GUERRA FRIA
Quando a TV quer sangrar a Rússia A anexação da Crimeia, a guerra na Ucrânia e a difusão de notícias falsas transformaram Moscou em alvo regular, por vezes obsessivo, da mídia ocidental. Uma emissora pública voltada ao conhecimento e à cultura poderia ter resistido a isso. Porém, por meio de séries e documentários, o canal francês Arte parece obstinado a fazer a escolha inversa POR SERGE HALIMI*
inte episódios da série norueguesa Occupied já já foram exibidos pelo canal público franco-alemão Arte. Ficção Ficção ou advertência? advertência? Moscou ocupa a Noruega (com a anuência da União Europeia) para garantir a entrega de gás e petróleo desse país. A União Europeia não tem um bom papel na série, mas é a Rússia que invade, manipula, ameaça, mata. Não se trata, no entanto, nos dizem, de “designar um vilão”. A embaixada russa em Oslo inclusive foi informada do projeto. É duvidoso que o resultado lhe agrade. A série é angustiante, o paralelo entre russos e nazistas (que, eles sim, ocuparam a Noruega) é fortemente sugerido, já que o primeiro-ministro norueguês, que colabora com Moscou, é comparado a Vidkun Quisling e a Philippe Pétain (que governaram noruegueses e fra nceses sob ocupação nazista). Quando a segunda temporada, que acabou de ser difundida, foi concebida, a anexação da Crimeia tinha acabado de acontecer. “Es“Estávamos em pa ralelo com a rea lidade”, lidade”, triunfavam as produtoras. A Arte Ar te também ta mbém poderia ter desenvolvido um “paralelo com a realidade” colocando em cena a China e uma ilha do Pacífico, os Estados Unidos e Cuba, a França e a República Centro-Africana, Israel e a Palestina. Mas os tempos que correm, de uma nova guerra fria entre Washington e Moscou, sugerem que isso seria menos cômodo e que a Rússia constitui o culpado ideal para esse tipo de diverti mento. Uma suspeita confirmada pela edição do programa Thema de 16 de janeiro de 2018. E não na ficção, mas na história recente e flamejante. Um ano depois da eleição de Donald Trump, a Arte exibiu um documentário documentário norte-americano intitulado, em fra ncês, Poutine contre les USA [Putin contra os EUA] (nos Estados Unidos, ele se chamava A vingança vingança de Putin). Ele daria “pela primeira vez a palavra a antigos membros da equipe de Barack Obama, a membros da CIA”, conforme anunciado triunfa lmente pela apresentadoapresentadora da Arte, encantada com tal esforço de equilíbrio e exaustividade. A trama se resumia a uma ideia. Em 2016, no momento da eleição norte-americana, “Putin teve finalmente sua vingança,
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a i s s u R t n e d i s e r P ©
Vladimir Putin durante celebração do Dia de Reis
que deve apagar os enfrentamentos de toda uma v ida”. ida”. Uma “luta épica” aconteceu então “entre o dirigente russo e a democracia norte-americana”. O canal público russo RT foi reprovado por seu maniqueísmo e sua tendência à manipulação. Mas nessa noite, sobre esses dois planos, a Arte ganhou da RT... “Nossa história começa em 31 de dezembro de 1999”, dia em que Boris Iéltsin transmitiu seus poderes a Putin, “seu obscuro primeiro-ministro, um antigo oficia l da KGB”. KGB”. As coisas se degeneraram bem rápido entre o “antigo espião” e o “homem político progressista que tenta instaurar a democracia na Rússia”: a i mprensa ficou de fora; os oponentes, na prisão; o Ocidente voltou a ser o inimigo. “Pouco antes de sua morte, Iéltsin disse a seus próximos que cometera um grave erro ao escolher Putin como sucessor.”
nopolizado a mídia, fraudado as urnas e apelado para conselheiros norte-americanos. Todas essas façanhas democráticas o tornaram muito popular em Washington, Berlim e Paris, mas um pouco menos em seu próprio país. Foi então que Putin se impôs, sobre quem o documentário estampa um retrato sem nuances: “Um oficial de contraespionagem [da KGB] é alguém que se banha nas teorias do complô, para quem o inimigo está em toda parte e deve ser eliminado”. Desde junho de 2000, quando recebeu o presidente Bill Clinton em Moscou, “Putin quis mostrar que era o macho dominante na sala, sentado com as pernas abertas, bem afundado na sua poltrona”. A imagem de arquivo confirma que Putin está de fato com as pernas abertas, mas somente um pouco mais que Clinton, que por sua vez tem a reputação de não controlar sua libido... libido...
OMISSÕES CHOCANTES
Ousemos aqui alguns pequenos retoques. O essencial do desmantelamento da economia soviética foi imposto por decreto presidencial, não pelos deputados eleitos pelo povo russo. Quando eles se opuseram à “terapia de choque” de Iéltsin, este disparou um canhão sobre o Parlamento. Ele modificou em seguida a Constituição por meio de um plebiscito (manipulado) e foi reeleito depois de ter mo-
PUTIN, UM VALENTÃO DE ESCOLA
“Revoluções de cor” na Geórgia e na Ucrânia, revoltas árabes: “Putin entende que, de um momento para o outro, vai chegar sua vez. Virão para tirá-lo do poder também. Esta angústia se torna a força motriz de seu regime”. O presidente russo, inclusive, não deixaria de rever as imagens do linchamento de seu “aliado” Muamar Kadafi. As mesmas que provocaram
gargalhadas de Hillary Clinton, então secretária de Estado, pontuadas por um famoso “Viemos, v imos, está morto”. Putin, cujas meditações não comportam nenhum mistério para a Arte, se pergunta sem cessar desde então: “Será que isso poderia acontecer comigo? Não somente perder um cargo que eu aprecio, mas também minha liberdade, minha vida?”. Daí vem seu desejo de vingança... A ocasião apareceu na eleição em 2016 2016 nos Estados Unidos, quando “a Rússia de Putin vai atingir a democracia norte-americana em pleno coração”. Pena, Moscou só enfrentou então machos dominados que, assim como Obama, temiam a Rússia a ponto de recusarem entregar armas para a Ucrânia. Ficou a cargo de John Brennan, antigo diretor da CIA, tirar lições de toda essa história: “Eu repensei meus anos de juventude nos cursos da escola em New Jersey. Sempre havia os pequenos valentões que queriam nos intimidar, e eles não paravam enquanto a gente não fizesse o nariz deles sangrar. Eu me disse que uma pequena hemorragia das fossas nasais faria bem a Putin. Ele recuaria, pois, como a maioria dos brutamontes, ele teria entendido que não poderia mais bancar o fort ão”. ão”. Em 18 de abril de 1985, cinco semanas depois da chegada ao poder de Mikhail Gorbachev, a rede pública francesa FR3 ex ibiu um documento de ficção política, La guerre en face [A guerra em frente], que anunciava a invasão da Europa ocidental pelo Exército Vermelho.1 Na época, a Noruega não teria sido o suficiente. Trinta e três anos se passaram; a maioria dos antigos Estados do Pacto de Varsóvia pendeu para o campo norte-americano; a União Soviética se deslocou; a renda nacional anual da Rússia caiu para menos que a da Itália. O orçamento militar russo representa um décimo daquele dos Estados Unidos. Mas, como a Arte nos lembra, quando temos um inimigo, é para a vida inteira. *Serge Halimi é diretor do Le Monde
Diplomatique . 1 Ler Paul-Marie de la Gorce, “‘La guerre en face’: fantasmes et manipulations” [“A guerra em frente”: fantasias e manipulações], Le Monde Diplomatique, maio 1985.
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BASTAM IDEIAS PARA MUDAR O MUNDO?
O que as “batalhas culturais” não são Nos anos 1980 e 1990, a ideia de que não existia alternativa às democracias de mercado resultou em uma forma de fatalismo. No entanto, a reascensão dos protestos nos últimos vinte anos recolocou os enfrentamentos ideológicos em primeiro plano, a ponto, muitas vezes, de se atribuir à batalha das ideias um papel e um poder que ela não possui POR RAZMIG KEUCHEYAN*
z i u R a p i l u T ©
m um artigo publicado em janeiro de 2018, Najat Vallaud-Belkacem, ex-ministra da Educação da França, repetiu, depois de muitos outros, que o Partido Socialista perdeu a “batalha cultural” – expressão que aparece quatro vezes no texto.1 Quando François Hollande venceu a eleição presidencial de 2012, o Partido Socialista detin ha, no entanto, entanto, todas as rédeas do poder: o Palácio do Eliseu, Matignon (residência do primeiro-ministro), a Assembleia Nacional, o Senado e 21 regiões em 22. Nada parecia impedir a aplicação da política de esquerda que Vallaud-Belkacem, no governo durante toda a duração do quinquênio (2012-2017), defendeu retrospectivamente. O motivo? Ventos contrários sopravam, ao que parece com muita força. A batalha cultural, esse gênio misterioso que refreia o ardor de sucessivos governos de esquerda, estava perdida. No seio da esquerda – de todos os matizes –, circulam agora ideias que parecem politicamente adequadas, mas se revelam perigosas. Uma delas é o argumento dos “99%”. 2 Apoiando-se em estatísticas estabelecidas pelos economistas Emmanuel Saez e Thomas Piketty, o movimento Occupy Wall Street d isseminou em 2011 2011 a noção de que a humanidade se divide em
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dois grupos: um, o 1%, são os mais ricos, que açambarcam quase todos os benefícios do crescimento; o outro, os 99%, sofre de desigualdades cada vez mais gritantes. O argumento se mostrou eficaz por algum tempo, suscitando mobilizações em diversos países. Mas um problema logo surgiu: os 99% formam um conjunto extremamente díspar. Essa categoria inclui tanto os habitantes das favelas de Nova Déli e do Rio de Janeiro quanto os prósperos residentes de Neuilly-sur-Seine e de Manhattan que não são ricos o suficiente para integrar o 1%. É difíci l imaginar que os i nteresses dessas dessas populações sejam os mesmos ou que elas venham a constituir, no futuro, um grupo político coerente. O argumento da batalha cultural sofre de um defeito análogo. Não é a bem dizer falso, mas aponta para uma estratégia política problemática. Encontramo-lo frequentemente na esquerda, do Partido Socialista à França Insubmissa [France Insoumise], mas também na di reita, sobretudo nas correntes que se dizem herdeiras da “nova direita”. O argumento vem de uma leitura apressada de Antonio Gramsci e seu conceito de hegemonia. A ideia é simples: a política repousa, em última instância, na cultura. Aplicar uma política supõe, primeiro, que o vocabulá-
rio e a “v isão de mundo” sobre sobre as quais ela se apoia sejam impostos ao maior número de pessoas. Não é que os governos não apliquem seu programa porque lhes falta coragem e ambição ou porque se recusam a defender os interesses daqueles que os elegeram: eles não o faz em porque o “clima” político se opõe à sua aplicação. Seria, assim, necessário modificar a atmosfera para tornar concebível essa política. Na era do Facebook e do Twitter, é fácil entender o apelo desse argumento. Subscrevendo-o, podemos fazer política confortavelmente em casa, diante da tela do computador. Deixar um comentário num site ou escrever um tuíte odiento são agora atos políticos por excelência. É o mesmo que publicar petições ou libelos vingativos nas colunas dos jornais já quase sem leitores, alimentando a esperança de que “caiam na net”. IDENTIFICAR OS VETORES DA MUDANÇA
A bata lha cultural tem, sem dúvida, sua importância. A China, por exemplo, leva hoje muito a sério o desafio de seu soft power . Trata-se de um conceito elaborado pelo cientista político norte-americano Joseph Nye, que foi consultor de várias administrações democratas desde Jimmy Carter. Segundo Nye, no século XXI o poder de
um país se mede menos por seu hard power , isto é, seu poderio militar, do que por sua capacidade de influenciar a esfera pública global, dando uma imagem positiva de si mesmo. O governo chinês organiza assim a atuação dos netizens (contração (contração de net e citizens , “internet” e “cidadãos”), pessoas que entram na rede para defender os interesses de seu país. 3 Como sugeriu o presidente Xi Jinping em discurso ao 19º Congresso do Partido Comunista Chinês Ch inês em out ubro de 2017, 2017, o impori mportante é “contar a história da China e construir seu soft power ” difundindo na rede uma “energia positiva”. Sim, mas... por trás dos batalhões de netizens chineses está uma das grandes potências mundiais. A China não ocupa seu posto nas relações internacionais por causa do soft power ou ou de uma batalha cultura l, e sim em razão da força econômica, que o dirigente pretende transformar em força militar. A expressão expressão “batalha cultural” deve parte de seu sucesso à hipótese segundo a qual, no curso das últimas décadas, a direita teria imposto suas ideias, dando nascença à mistura de neoliberalismo econômico e conservadorismo moral em que estamos desde então. No entanto, para começar, a direita não precisou realmente vencer a batalha cultural, pois suas categorias fun-
dadoras, como a propriedade privada dos meios de produção e a economia de mercado, não são seriamente contestadas desde meados dos anos 1970. Mesmo a impressão de que 1968 representou uma “idade de ouro” para a esquerda, isto é, de que suas ideias era m então hegemônicas, não passa, em grande parte, de uma ilusão retrospectiva: na França, a direita ocupou o poder sem descontinuidade durante todo o período. As políticas redist ributivas e de reconhecimento dos direitos das mulheres que ela concedeu foram introduzidas menos em consequência de uma “batalha de ideias” do que da pressão do Bloco do Leste e de v igorosos movimentos sociais. Nem mesmo se pode dizer que o rar acismo, cuja recrudescência é às vezes apresentada como sintoma de uma u ma “direitização” da sociedade atual, se agravou, embora tenha mudado de forma. A sociedade francesa dos anos 1960 e 1970 não era decerto menos racista que a atual.4 A partir da década de 1970, o capitalismo sofreu profundas transformações: financeirização, desmoronamento do Bloco do Leste e sua integração à economia mundial, virada capitalista da China, desindustrialização dos antigos centros, crise do movimento operário, construção neoliberal da Europa... No contexto de crise e reestruturação trut uração do sistema, a direita se mantinha alerta para aproveitar todas as oportunidades. E ela o fez, enviando ao debate público ideias coerentes na esfera política e econômica. Entretanto, a nova hegemonia neoliberal só emergiu após abalos estruturais que enfraqueceram objetivamente as forças progressistas. Esperar que vencer a “batalha das ideias” basta para modificar o sistema é se expor a desilusões. O argumento dos 99% e o da batalha cultural provêm de uma mesma concepção do mundo social: a que considera a sociedade um corpo homogêneo, um espaço “fluido” capaz de
ser influenciado num sentido ou em outro por meio de discursos. As teorias de Ernesto Laclau e Chantal Mouffe, fontes de inspiração do Podemos5 e da França Insubmissa, são exemplos dessa concepção. Os adeptos do movimento dirigido por Jean-Luc Mélenchon criaram no início do ano um canal de TV batizado de Le Média e fundaram uma escola de formação. No dizer de seus apresentadores, esses esses dispositivos visam travar a batalha cultura l, preparando o terreno para outras políticas.6 Desse modo, a França Insubmissa se inspira, atualizando-as, em instituições social-democratas e comunistas: o jornal operário e a escola de formação de quadros, que permitiriam a difusão, entre os militantes e no seio de sua base social, de uma visão coerente do mundo. Falta, porém, um elemento essencial: quais classes sociais ou coalizões de classes serão os vetores da mudança? A quem se dirigem prioritariamente o Le Média e a escola de formação? Os comunistas tinham por ponto de apoio a classe operária e as classes aliadas (o campesinato e frações dominadas das classes médias, principalmente). O “bloco social” visado pelo jornal operário e a escola de quadros era esse. Mas e no caso da França Insubmissa? Uma “visão de mundo” só se torna politicamente eficaz quando é a de uma coalizão de classes que se opõem a outras classes. Resta, pois, imag imaginar inar os contornos de um “bloco social” futuro. Contrariamente ao que alguns intérpretes lhe atribuem, Gramsci jamais pretendeu fazer da batalha cultural o cerne da luta de classes. Citando a evolução do marxismo em sua época, ele afirma que “a fase mais recente de seu desenvolvimento consiste justamente na reivindicação do momento da hegemonia como dado essencial de sua concepção de Estado e na ‘valorização’ do fato cultural, da atividade cultural, cultura l, da necessidade de de uma frente
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cultural cultura l ao lado das frentes puramente econômicas e políticas”.7 Articular uma “frente cultural” com as frentes econômica e política já existentes: eis sua grande ideia. Isso não supõe, em nenhum caso, uma preeminência da “frente cultural” sobre as outras. Nem que essa frente se torne apanágio de militantes que operam na esfera das ideias. Para Gramsci, o sindicalismo quase sempre se antepõe à “frente cultural”. Nas lutas que ele organiza, permite que evoluam as relações de forças e deixa entrever, assim, a possibilidade de um outro mundo. “Cultura”, para Gramsci, é coisa bem diferente daquilo que em geral designamos com esse termo. A noção de “hegemonia cultural” não designa a peroração sem fim de intelectuais ou dirigentes contestadores nas mídias dominantes, mas a capacidade de um partido de forjar e conduzir um bloco social amplificado, para despertar a consciência de classe. Exemplos não faltam, falt am, nem em sua época nem hoje. Em dezembro de 2017, os empregados da firma de limpeza Onet, na á rea de Paris, obtiveram uma vitória importante.8 Esses terceirizados da Société Nationale des Chemins de Fer (SNCF) [Empresa Nacional das Ferrovias] encarregados da faxina das estações reivindicavam sua entrada para a convenção coletiva da manutenção ferroviária da SNCF, a retirada de uma cláusula de mobilidade que os obrigava a fa zer longos deslocamentos, deslocamentos, o aumento do auxílio-alimentação e a regularização dos colegas sem carteira assinada. Ao fim de uma greve de 45 dias, tiveram suas principais reivindicações atendidas. Essa luta parecia improvável pelo fato de ser dirigida por imigrantes recentes, no seio de uma empresa subcontratada e num setor em que a interrupção do trabalho não tem grande impacto sobre o andamento da vida social. Paralisar uma refinaria é paralisar o país; mas
deixar de limpar uma estação periférica em Seine-Saint-Denis...? Seine-Saint-Denis...? Contudo, à força de perseverança, os grevistas e seus delegados sindicais levaram a melhor. As transformações estruturais do capitalismo, desde os anos 1970, mudaram mudaram a classe operária. Ela não desapareceu, é claro, mas se tornou mais diversificada social, étnica e espacialmente. Travar a “batalha das ideias” consiste em politizar essas novas classes populares por meio de lutas semelhantes à empreendida pelos empregados da Onet. Sua vitória mostra que o improvável continua possível. A “frente cultural”, articulada às frentes econômica e política, é exatamente isso. Talvez sem saber, os grevistas da Onet sejam os legítimos herdeiros de Gramsci. *Razmig Keucheyan é professor de Socio-
logia da Universidade de Bordeaux, França.
1 Najat Vallaud-Belkac Vallaud-Belkac em, “Éloge de l’imperfection en politique” [Elogio da imperfeição em política], Le Nouveau Magazine Littéraire, Paris, jan. 2018. 2 Ver Serge Halimi, “A falácia dos 99%”, Le Monde Diplomatique Brasil , ago. 2017. 3 Cf. Yuan Yang, “China’s Communist party raises army of nationalist trolls” [Partido Comunista da China mobiliza um exército de trolls nacionalistas], istas], Financial Times, Londres, 29 dez. 2017. 4 Cf., por exemplo, exemplo, Yvan Gastaut, “La flambée raciste de 1973 en France” [A escalada racis ta de 1973 na França], Revue Européenne des Migrations Internationales, Poitiers, v.9, n.2, 1993. Ver igualmente Benoît Bréville, “Integração, a grande obsessão”, Le Monde Diplomatique Brasil , fev. 2018. 5 Ver Razmig Keucheyan e Renaud Lambert, “Ernesto Laclau, inspirador do Podemos”, Le Monde Di plomatique plomatiq ue Brasil Brasil , set. 2015. 6 Cf. Laure Beaudonnet, “Aude Lancelin, auteure de ‘La Pensée en otage’: ‘Tout le circuit de l’information est pollué’” [Aude Lancelin, autora de O pensamento refém: “O circuito inteiro da informação está poluído”], 20 Minutes, Paris, 10 jan. 2018. 7 Cf. Antonio Gramsci, Guerre de mouvement et guerre de position [Guerra de movimento e guerra de posição], textos escolhidos e apresentados por Razmig Keucheyan, La Fabrique, Paris, 2012. 8 Cf. Cécile Manchette, “Onet. Victoire éclatante des grévistes du nettoyage des gares franciliennes” [Onet. Vitória estrondosa dos grevistas da limpeza das estações de trem da região de Paris], Révolution Permanente, 15 dez. 2017. 2017.
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THE POST , UM FILME DE STEVEN SPIELBERG
A escolha dos heróis POR PIERRE RIMBERT*
o s s i B o i c i r t a P ©
m 22 de janeiro de 2018, os Re- grande número para admirar a interinterpórteres sem Fronteiras e a Uni- pretação de Meryl Streep no papel de versal Pictures International le- Katharine Graham, a dona do Post , e varam convidados ao cinema a de Tom Hanks, que faz o redatorPublicis Drugstore, na Avenida Champ- -chefe. Sensível às batalhas feminiss-Élysées, em Paris. Iam assistir ao lan- tas atuais, o diretor concentrou seu çamento de um filme que “ausculta as relato em uma mulher, e não nos pronoções de verdade e investigação, colo- tagonistas que, de fato, assumiram os cando o jornalismo no centro da intri- maiores riscos e desempenharam os ga”: The Post , de Steven Spielberg, pro- principais papéis: El lsberg, o denun jetado nas salas salas francesas com o título ciante, processado por “espionagem” de Pentagon Papers (no (no Brasil, o título é em virtude de uma lei de 1917 e passível de prisão perpétua; e a equipe do The Post: a guerra secreta ). A intriga, inspirada em fatos reais, New York Times , que começou tudo. se desenrola nos Estados Unidos, em Essa escolha cinematograficamente 1971. 1971. Daniel El lsberg, analista de think correta irritou o redator-chefe internacional do Times , encarregado de tank do Pentágono, assume todos os riscos para fotocopiar um docu mento, supervisionar a publicação dos docurotulado como “confidencial”, que mentos em junho de 1971. “É inteiraprova que John Kennedy e Lyndon mente falso!”, fulminou ao ler o roteiJohnson tinham mentido ao Congres- ro. “Esse filme é uma fraude.” 1 Sim, so e ao público sobre a Guerra do Viet- mas também um sucesso: perto de 1 nã, que eles sabiam ser impossível de milhão de i ngressos vendidos vendidos em três vencer. O New York publica um semanas de exibição na França. York Times Times publica resumo, mas uma decisão judicial o Na sala cheia do Publicis Drugstoproíbe de continuar. Modesto cotidia- re, anunciou-se a presença de Françoino regional, o Washington Post substi substi- se Nyssen, ministra da Cultura, e de tuirá seu prestigioso colega? Harlem Désir, representante da liberNaquela segunda-feira à noite em dade dos meios de comunicação no Paris, os jornalistas apareceram em seio da Organização para a Segurança
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e Cooperação na Europa (OSCE). Por uma questão de delicadeza, ninguém mencionou que em 2013, quando Désir era primeiro-secretário do Partido Socialista, então no poder na França, Paris, como várias outras capitais europeias, havia recusado o asilo político pedido por Edwa rd Snowden, responsável pelos vazamentos sobre a vigilância em massa exercida na internet pelos Estados Unidos. Como naquela noite se tratava de celebrar Katharine Graham, e não Daniel Ellsberg, a chefona da imprensa, e não o rebelde, seria inútil estragar o prazer dos espectadores com ruminações morosas sobre o destino dos denunciantes atuais. Um deles, Julian Assange, fundador do WikiLeaks, está enclausurado há mais de cinco anos na embaixada do Equador em Londres; o outro, Snowden, continua refugiado na Rússia... sem que Nyssen, a Europa ou o Partido Socialista se preocupem muito com isso. Do outro lado do Atlântico, os democratas também não brilham pela defesa de uma liberdade de expressão que, no entanto, julgam sagrada quando Donald Trump a desafia. “A atitude
do atual governo incitou você a fazer esse filme”, disse a Steven Spielberg um jornalista da BBC. “Mas, se analisar os números, você verá que o governo de Barack Obama intentou mais processos em virtude da lei de espionagem do que qualquer outro. Ainda assim, em Hollywood ninguém se apressou a dizer ou fazer qualquer coisa” (17 dez. 2017). “A meu ver, são coisas diferentes”, balbuciou Spielberg, ardoroso defensor dos democratas. Já Ellsberg reconhece seus herdeiros: “Chelsea Manning 2 e Edward Snowden são meus heróis. Identifico-me mais com eles do que com quaisquer outras pessoas” (Democracy Now!, 6 dez. 2017). 2017). Mais do que com Kat harine Graham, sem dúvida, cuja decisão de publicar os Pentagon Papers, malgrado a proibição, em 18 de junho de 1971, encantou os profissionais da informação reunidos para o lançamento parisiense. Certa de seu heroísmo cotidiano, a sala aplaudiu calorosamente e depois se dispersou para jantar. Pouco depois, a mídia saudou uma “obra-prima” com a qual “Spielberg ancora a democracia nas impressoras” (Le Monde , 24 jan. 2018); “um apelo
bem contemporâneo em favor de um contrapoder independente e forte, mais necessário que nunca em nossos dias” (Télérama, 23 jan. 2018); “uma magnífica lição de coragem e democracia” (Le Journal du Dimanche , 21 jan. 2018).. 2018).... Compreendemos a felicidade proporcionada por uma profissão pintada pelo menos uma vez com uma luz favorável, mas essa recepção barulhenta repousa sobre um i menso mal-entendido. A heroína de Spielberg não é repórter, mas proprietária do Washington Post , o qual herdou do marido. Na primavera de 1971, a vimos exprimir todo o seu amor pela independência editorial... colocando seu jornal na Bolsa de Valores. Íntima de Robert McNamara, ministro da Defesa dos governos Kennedy e Johnson, tinha amizade também com Henry Kissinger, consultor de Richard Nixon. O suspense todo do filme – e a sorte da liberdade de imprensa – repousa, pois, na decisão econômica de uma dona de empresa: irá ela censurar ou não a publicação de um artigo que põe em perigo o valor em Bolsa de sua sociedade e de seus amigos mundanos? Aqui, a magia do cinema e a miséria de uma profissão convergem para erigir em ato de resistência épica aquilo que deveria constituir uma norma: a ausência de pressão econômica ou política nas decisões editoriais. A regra teve de virar exceção para que se fi zesse, do respeito a ela, u m acontecimento histórico... No entanto, não foi dos industriais, dos publicitários ou da Bolsa que veio uma das reações mais entusiastas ao filme de Spielberg. No dia de seu lançamento (23 de janeiro de 2018), o site Mediapart consagrou-lhe toda a sua página inicial. “Em The Post ”, escreveu seu diretor, Edwy Plenel, “a questão da independência independência é que está no â mago da história: saber resistir à s pressões, ousar publicar o que os poderes gostariam de esconder, emancipar-se da tu-
tela dos donos, defender o poder soberano da redação.” A superprodução hollywoodiana comoveu Plenel por dois motivos. Primeiro, porque “quase não se encontra um grande filme francês que entronize o jornalismo como cavaleiro da democracia”, um escândalo tanto mais revoltante quanto – acompanhem o raciocínio – “a curta hi stória do Mediapart, que feste jará seus dez anos em março próximo” e aguarda apenas um di retor intrépido para pôr em cena sua epopeia.
“Esse filme é uma fraude.” Sim, mas também um sucesso: perto de 1 milhão de ingressos vendidos em três semanas de exibição na França Mais fundamentalmente, Plenel atribui a ausência, na França, de um “imaginário democrático” tal qual cultivado por Spielberg ao “iliberalismo francês, esse privilégio concedido ao poder, notadamente sob sua forma estatal, e não ao indiv íduo e suas audácias solitárias”. Vigiado pelos serviços de François Mitterrand nos a nos 1980, ele conhece bem os limites à liberdade de informar impostos pelo Estado. Todavia, sua queixa omite que ele mesmo, em outras circunstâncias, manteve relações de maior cumplicidade com o poder. Desestabilizados pela pesquisa de Pierre Péan e Philippe Cohen, La Face cachée du monde [A face oculta do mundo] (Fayard), surgida em 2003, Plenel, então diretor de redação do Le Monde , e Jean-Marie Colombani, diretor de publicação, foram num dia de março à Praça Beauvau para discutir o
ATÉ ONDE VOCÊ CHEGARIA PARA CONSEGUIR O QUE MAIS DESEJA?
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caso com o ministro do Interior na época, Nicolas Sarkozy. O encontro entre os pretensos pilares do contrapoder e o ministro da Polícia, cujo objetivo era contrabalançar a s “audácias solitárias” de uma dupla de repórteres independentes, forneceria uma boa trama a um filme realista sobre a imprensa francesa. Um elemento do roteiro foi, de resto, confirmado pelo próprio Plenel em uma carta ao semanário Marianne (18 mar. 2006): “Num dia de 2003, Jean-Marie Colombani me levou a um encontro que ele havia marcado com Nicolas Sarkozy. [...] Convencido de que os ataques ao Le Monde eram em parte inspirados pelo grupo de Jacques Chirac, Jean-Marie Colombani buscava junto a Sarkozy informações capazes de amparar essa hipótese”. Organizar o esquecimento e reformatar a memória coletiva valorizando a conduta corajosa que esconde cem pequenas fraquezas e compromissos, tal é a operação de absolvição coletiva realizada por The Post . Quem dizia Washington Post pensava pensava na investigação sobre o escânda lo Watergate (19721974), 1974), levado à tela por Ala n Pakula em 1976 no filme Todos os homens do presidente ; agora, nos lembraremos também de outro momento de coragem de Katharine Graham. E resmungaremos de impaciência quando um desmancha-prazeres lembrar que, em 1987, uma investigação de Robert Parry sobre o financiamento, pela CIA, da guerrilha de extrema direita na Nicarágua foi amenizada para agradar à proprietária, que no fim de semana seguinte recebeu em sua casa Henry Kissinger;3 ou que o jornal apoiou com toda a sua força o desencadeamento da Guerra do Iraque, em 2003; ou que ele preferia a Fidel Castro ditadores de direita como Augusto Pinochet, “afinal de contas menos nocivos que os dirigentes comunistas, sobretudo porque seus regimes eram mais suscetíveis de abrir camin ho a democracias liberais”
(The Washington Post , 12 dez. 2006); ou que presenteou patrocinadores privados, por US$ 25 mil o couvert , com o acesso a jantares que reuniam jornalistas da casa e personalidades influentes, antes de reconhecer um “vaciloético deproporçõesmonumentais” monumentais” (The Washington Post , 12 jul. 2009); ou que se vendeu em 2013 por US$ 250 milhões ao fundador da Amazon, Jeffrey Bezos; ou que proibiu seus jornalistas, a partir de maio de 2017, de “pre judicar clientes, anunciantes, assinantes, vendedores, fornecedores ou sócios” nas redes sociais ( Washingtonian, 27 jun. 2017); ou que conclama a uma intervenção norte-americana maior na Síria e a uma guerra no Irã (The Washington Post , 22 jan. 2018); ou que sua obsessão anti-Rússia o levou a publicar histórias falsas em série (The Intercept, 4 jan. 2017). Certo, mas isso não daria um bom filme. Recordando suas aventuras em uma longa entrevista à revista Rolling Stone , Daniel Ellsberg concluiu, há 35 anos: “Isso confirma o que sei dos profissionais de mídia; muitos deles aspiram a fazer parte do poder, em vez de encarnar um quarto poder independente” (8 nov. 1973). Depois, como todos sabem, tudo mudou... *Pierre Rimbert é
jornalista do Le Monde
Diplomatique .
1 Citado por Thomas Vinciguerra, “Hell hath no fury like The New York Times scorned by Hollywood” [Nem no inferno há tanta fúria quanto no The New York Times humilhado por Hollywood], Columbia Journalism Review, 1º maio 2017. Disponível em: . 2 Chelsea Manning (nascida Bradley Bradley Manning) é uma analista do Exército norte-americano condenada em 2013 por passar ao WikiLeaks documentos militares sigilosos. Foi libe rtada em maio de 201 2017. 7. 3 Norman Solomon, “The real story behind Katharine Graham and ‘The Post’” [A verdadeira história por trás de Katharine Graham e The Post ], HuffPost, 20 dez. 2017.
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CHICAGO 2017
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MISCELÂNEA
livro VOZES À MARGEM: PERIFERIAS, ESTÉTICA E POLÍTICA Giordano Barbin Bertelli e Gabriel Feltran (orgs.), EdUFSCar
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livro mostra a existência de vida coletiva pulsante em diferentes sentidos, em espaços e circunstâncias comumente associados ao vazio e/ou “ansiosos” por revitalização. De um lado, essa impressão se confirma pela qualidade da equipe de pesquisadores universitários integrada e organizada, realizando um trabalho colaborativo muito articulado internamente. De outro, pelos textos, que evidenciam distintos mundos e modos de abordar a ideia de periferia, investigando diferentes temporalidades, distintas produções culturais (música, cinema, artes de maneira geral), espaços de sociabilidade (casas de prostituição, bairros periféricos, disputas pelos centros urbanos, cidades interioranas e suas periferias, o mundo digital) e a reconstrução memorialística, tanto pela fala de quem vivenciou esses mundos periféricos na própria experiência quanto pela reconstrução metodológica da memória coletiva. As periferias, no livro, ultrapassam a dimensão da política (relações com “centro” e os poderes questão política instituídos nele) e econômica (debate importante sobre precariedade, pobreza, vulnerabilidade). Vão além do discurso da “ausência”, da “falta”, do sofrimento e do precário ou da condenação sobre os “pobres periféricos” em razão de sua pobreza e condição periférica, que pode redundar na igualmente pouco proveitosa condenação, em função disso, de suas visões de mundo e opções políticas. Chama atenção o esforço dos pesquisadores em tornar concreto esse movimento de rotação de perspectivas, de tentar complexificar a percepção periférica no centro da observação e da narrativa. Há dois aspectos ainda para mencionar: primeiro, a disputa pela ideia de cidade é um grande personagem do livro. Mirada por ângulos que se encontram nas fran jas, ela ela é enfocada enfocada pelo princípio princípio de que que de suas perifeperiferias se entendem melhor suas centralidades. O segundo aspecto que se ressalta no livro é o apreço pela memória, individual e coletiva, como recurso analítico e de investigação da realidade, sempre como reconstrução da realidade social, condicionada por sujeitos inscritos em grupos e classes sociais, clivados por gênero, etnias, relações com o mundo do trabalho, posição no ambiente familiar etc. Nos dias correntes, de tanto descrédito em termos de potência das ideias e prática de povo, coletividade, universidade, a publicação de um volume como esse é absolutamente encorajador e fresco, tanto no terreno das ideias como no do interesse pelas práticas do vasto mundo social, investigado no âmbito da universidade pública. [Mário Augusto Medeiros da Silva] Professor Silva] Professor do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp.
filme
internet
NO INTENSO AGORA João Moreira Salles
GRANDES REPORTAGENS, FORMATOS INOVADORES A forma de apresentar grandes histórias tem se modificado nos últimos anos, especialmente no ambiente digital, incluindo aí a web.
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mbora de produção rarefeita, o cinema documentário de João Moreira Salles é de relevância inquestionável no cenário nacional. Destaca-se inicialmente pelos temas abordados: o crime organizado no Rio de Janeiro em Notícias de (1999); a ascenuma guerra particular (1999); são de Lula à Presidência da República, apreendida na passagem entre os dois turnos eleitorais em Entreatos (2004). Em seguida, pela reflexão formal, como em Santiago (2006), retomada autocrítica de um projeto documental abortado, no qual a autoridade do realizador sobre o objeto se entrecruza com o poder de classe do patrão sobre o mordomo. Seu novo filme, No intenso agora (2017), segue nessa linha que almeja lançar mão de uma reflexão política não apenas pela eleição do conteúdo, mas também pela problematização constante da forma. Procura filiar-se a uma tradição de cineastas que se serviram do documentário como instrumento de análise das imagens, buscando perscrutar seus sentidos segundos, perceptíveis à revelia das intenções que as produziram. Nessa linhagem, ganha proeminência a retomada de material de arquivo. O filme de João Moreira Salles tenta entrelaçar duas ordens de arquivos – históricos e pessoais. Sai em busca de imagens das convulsões sociais do ano de 1968, notadamente em Paris e Praga, ao mesmo tempo que revisita antigos registros de família, com grande destaque para aqueles feitos pela mãe em viagem à China, em 1966. A empreitada é digna de nota, mas seu sucesso é incerto. A dificuldade de entrelaçar essas duas ordens de materiais, que não guardam de saída uma relação objetiva, fica patente na imposição de um discurso subjetivo oscilante, cujo modo de construção de relações resulta problemático. A força mestra do filme não é outra que não o trabalho de luto do autor sobre a perda da mãe. A busca pessoal acaba, porém, sobredeterminando a leitura do material histórico, em claro prejuízo para as insurreições de 1968. Resta, ao fim, um esvaziamento da potência política, a força da revolta se dobrando sob o peso do luto. [Gabriel Ferreira Zacarias] Professor do Departamento de História da Universidade Estadual de Campinas. Confira em nosso site versão ampliada dessa resenha.
MULHERES NO JORNALISMO “Você vai falar com fulano? Coloca uma saia curta, um decote. Aproveita que você tem isso e usa a seu favor”, disse uma chefe mulher para uma jornalista. Um estudo produzido pela Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji) e pela agência de conteúdo Gênero e Número, com o apoio do Google News Lab, mostra que 86% das jornalistas entrevistadas já passaram por discriminação no trabalho por serem mulheres. Assédio, piadas machistas, salários baixos e demissões são casos contados no estudo, em formato multimídia, recheado de dados e recomendações. Uma delas, bem simples e que praticamente metade das empresas ainda não tem: um canal de comunicação interno para que vítimas possam fazer fa zer a denúncia formal. DESMATAMENTO NA VENEZUELA Nos limites da Amazônia venezuelana, um megaprojeto de mineração de Nicolás Maduro se apresenta como a saída para a crise econômica do país, depois que a queda dos preços do petróleo agravou a inflação e o desemprego. O “Arco Mineiro do Orinoco” pode destruir até 110 mil quilômetros quadrados de florestas, que são ocupados por diversos povos indígenas e estão sendo desmatados para dar espaço à mineração ilegal que abastece de ouro os cofres do Banco Central do país. No meio disso tudo, a maior epidemia de malária das últimas décadas e a invasão de ex-guerrilheiros das Farc e do ELN deixam centenas de vítimas. HIPER-REALIDADE O designer e diretor de filmes Keiichi Matsuda produziu uma série de vídeos sobre uma distopia em que a realidade aumentada é tomada pela publicidade e torna a vida praticamente inviável nas cidades. O vídeo é um exercício de futurologia, em que as realidades física e virtual convergem por meio da mídia – e do livre-mercado. li vre-mercado. Em 2017 ele foi convidado a apresentar seu filme em Davos, no Fórum Econômico Mundial. Ficou tão perturbado com o discurso sobre ética que ouviu das corporações que abandonou o evento destruindo um televisor em que seu próprio trabalho era exibido. [Andre Deak] Deak] Diretor do Liquid Media Lab, professor de Jornalismo da ESPM, mestre em Teoria da Comunicação pela ECA-USP e doutorando em Design na FAU-USP.
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CANAL DIRETO
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SUMÁRIO LE MONDE
BRASIL
diplomatique diplomatique
Universidades públicas abandonadas
Sou professor da Estadual da Bahi a (Uneb) e reitero que as estaduais ta mbém têm sofrido muito!
Ano 11 –Número 128 – Março 2018 2018 www.diplomatique.org.br www.diplomatique.org.br
Thadeu Borges Souza Santos
Adoramos a edição e nos parece que os atuais retrocessos no financiamento educacional da nossa região se apresentam como um tema fundamental para abordar e discutir! Muito obrigado ao Le Monde Diplomatique Brasil por informar a esse respeito e impulsionar esse diálogo e reflexão! Campaña Latinoamericana por el Derecho a la Educación (Clade)
DIRETORIA Diretor da edição brasileira e editor-chefe
SE VAI DEPRESSA O BASTANTE 2 ANUNCA ofensiva geral geral Por Serge Halimi
EDITORIAL 3 De mal a pior Por Silvio Caccia Bava
4 CAPA Poder Judiciário: a ponta de lança da luta de classes Por Luis Felipe Miguel A Justiça Justiça no centro da crise política Por Grazielle Albuquerque Quando os ilegalismos ultrapassam as fronteiras dos espaços populares Por Márcia Pereira Leite e Juliana Farias
O dramático panorama do financiamento do ensino
Muito esclarecedor. Obrigado, José Marcelino. Fico preocupado com tantas exigências no sistema público, como adentrar as atividades de extensão universitária se a política pública no Brasil engessa o desenvolvimento educacional e a gestão de pesquisa. 2018 pode ser a morte desse tripé? Jose Ricardo Miras Mermudes
O cosmopolitismo da nossa burguesia limita-se a Miami e Orlando.
10 ACONJUNTURA contrarrevolução contrarrevolução no Brasil Brasil Por Wolfgang Leo Maar
12 ELEIÇÕES Jair Bolsonaro: o candidato da (in)segurança pública ENTRE PATOLÓGICO PATOLÓGICO E EXISTENCIA L 14 ACONFUSÃO medicalização medicalização da experiência humana Por Gérard Pommier
Ana Claudia Cruz
Burguesia cosmopolita, não. É uma burg uesia que se acredita cosmopolita, mas que na verdade é jeca até a medula. São vira-latas associados à burguesia, esta sim cosmopolita, dos países de capitalismo central. Mário Salerno
Fevereiro
Neste momento estou lendo a última edição de vocês e senti a necessidade de vir aqui e dizer que está simplesmente espetacular! Vocês são impecáveis.
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O gigante não acordou, ainda dorme, mesmo não sendo em berço esplêndido! Antonio Teixeira Teixeira de Araujo Araujo
UM BENEFÍCIO AO MESMO TEMPO COLETIVO E INDIVIDUAL Por que consumir orgânicos? Por Claire Lecoeuvre
NA ÁFRICA DO SUL, HERDEIRO DE MANDELA 18 TEM SUA REVANCHE Congresso Nacional Africano, nas origens de um partido-Estado Por Sabine Cessou
PODER EGÍPCIO ESTÁ MAIS REPRESSOR 20 DO QUE NUNCA Praça Tahrir, sete anos depois Por Pierre Daum
Juliana Roza
E agora?
INTERVENÇÃO NA SÍRIA, PRESSÃO NO LÍBANO, 23 GUERRA NO IÊMEN O impasse saudita no Oriente Médio Por Gilbert Achcar
UMA INSTITUIÇÃO SINGULAR 26 EXÉRCITO, Cuba, o país do verde-oliva Por Renaud Lambert
Precisamos falar da fé de Leonardo
O acolhimento social dos evangélicos é muito importante para aqueles que são excluídos socialmente.
Diretores
Anna Luiza Salles Souto, Maria Elizabeth Grimberg e Rubens Naves Editor
Luís Brasilino Editor-web
Cristiano Navarro Editores de Arte
Adriana Fernandes e Daniel Kondo Revisão
Lara Milani e Maitê Ribeiro Gestão Administrativa e Financeira
Arlete Martins Assinaturas
Viviane Alves
Por Leandro Gavião e Alexandre Valadares
Sobre o caráter da burguesia brasileira
Silvio Caccia Bava
RICA L ATINA 28 AMÉ Em busca da Pachamama Por Maëlle Mariette
Regina Maria Libonati de Albuquerque
QUANDO NEM TODAS AS VÍTIMAS DE ATENTADO 30 TÊM O MESMO VALOR Longe dos olhos, longe do coração Por Téo Cazenaves
Tradutores desta edição
Carolina M. de Paula, Frank de Oliveira, Lívia Chede Almendary, Rita Grillo e Wanda Brant ConselhoEditorial
Adauto Novaes, Amâncio Fr iaça, Anna Lu iza Salles Souto, Ariovaldo Ramos, Betty Mindlin, Claudius Ceccon, Eduardo Fagnani, Heródoto Barbeiro, Igor Fuser, Ivan Giannini, Jacques Pena, Jorge Eduardo S. Durão, Jorge Romano, José Luis Goldfarb, Ladislau Dowbor, Maria Elizabeth Grimberg, Nabil Bonduki, Raquel Rolnik, Ricardo Musse, Rubens Naves, Sebastião Salgado, Tania Bacelar de Araújo e Vera da Silva Telles. Apoiadores da campanha de financiamento financiamento coletivo
Henrique Botelho Frota, Pedro Luiz Gonçalves Fuschino, Rita Claudia Jacintho e Vinícius D. Cantarelli Fogliarini Assessoria Jurídica
Rubens Naves, Santos Jr. Advogados Escritório Comercial Brasília
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Serge HALIMI Redator-Chefe
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REINÍCIO DA GUERRA FRIA
Philippe DESCAMPS
Quando a TV quer sangrar a Rússia Por Serge Halimi
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BASTAM IDEIAS PARA MUDAR O MUNDO? O que as “batalhas culturais” não são Por Razmig Keucheyan
POST, UM FILME DE STEVEN SPIELBERG 34 ATHE escolha dos dos heróis Por Pierre Rimbert
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Le Monde d iplomatique
1 avenue Stephen-Pichon, 75013 Paris, France [email protected] www.monde-diplomatique.fr Em julho de 2015, o Le Monde diplomatique contava com 37 edições internacionais em 20 línguas: 32 edições impressas e 5 eletrônicas. ISSN: 1981-7525
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