ANO 12 / NÚMERO 134
DEZ ANOS DE CRISE
LIBERAIS OU POPULISTAS: UMA FALSA OPÇÃO POR SERGE HALIMI E PIERRE RIMBERT
R$ 14,90
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EDUCAÇÃO
A MILITARIZAÇÃO DAS ESCOLAS PÚBLICAS POR RUDÁ RICCI
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DOCUMENTÁRIO CENSURADO
COMO ISRAEL ESPIONA NORTE-AMERICANOS POR ALAIN GRESH
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LE MONDE
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BRASIL
diplomatique diplo matique O PLANO CONSERVADOR
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Le Monde Diplomatique Brasil SETEMBRO 2018
LIBERAIS VS. POPULISTAS, UMA DIVISÃO ENGANOSA
Dez anos de crise As respostas dadas à crise de 2008 desestabilizaram a ordem política e geopolítica. Há tempos vistas como a forma última de governo, as democracias liberais estão na defensiva. Perante as “elites” urbanas, as direitas nacionalistas encampam uma contrarrevolução cultural no campo da imigração e dos valores. Contudo, elas perseguem o mesmo projeto econômico de seus rivais. O peso excessivo jogado pela mídia nessa clivagem visa constranger a população a escolher entre esses dois males POR SERGE HALIMI E PIERRE RIMBERT*
udapeste, 23 de maio de 2018. De jaqueta escura e camisa roxa solta, aberta, sobre uma camiseta, Stephen Bannon se coloca diante de uma plateia de intelectuais e notáveis húngaros. “O pavio que incendiou a Revolução Trump foi aceso em 15 de setembro, às 9 da manhã, quando o Lehman Brothers foi forçado à falência.” O ex-estrategista da Casa Branca não ignora: ali, a crise foi particularmente violenta. “As elites salvaram a si próprias. Elas socializaram totalmente o risco”, continua o ex-vice-presidente do banco Goldman Sachs, cujas atividades políticas são financiadas por fundos especulativos. O cidadão comum foi socorrido? Esse “socialismo para os ricos” teria provocado em vár ios pontos do globo uma “verdadeira revolta populista. Em 2010, Viktor Orbán voltou ao poder na Hungria”; ele foi o “Trump antes de Trump”. Uma década depois da tempestade financeira, o colapso econômico global e a crise da dív ida pública na Europa desapareceram dos terminais da Bloomberg, onde cintilam as curvas vitais do capitalismo. Mas sua onda de choque amplificou dois grandes distúrbios. Em primeiro lugar, o da ordem internacional liberal da era pós-Guerra Fria, centrada na Organi zação do Tratado do Atlântico Norte (Otan), nas instituições financeiras ocidentais e na liberalização do comércio. Se, ao contrário do que prometia Mao Tsé-tung, o vento do leste ainda não prevalece sobre o vento do oeste, a recomposição geopolítica começou: cerca de trinta anos depois da queda do Muro de Berlim, o capitalismo de Estado chinês amplia sua in fluência; com base na prosperidade de uma classe média em ascensão, a “economia socialista de mercado” liga seu futuro à contínua globalização do comércio, que está minando a indústria manufatureira da maioria dos países ocidentais – incluindo a dos Estados Unidos, que o presidente Donald Trump prometeu, em seu primeiro discurso oficial, salva r da “carnificina”. O abalo de 2008 e seus tremores secundários também sacudiram a ordem política, que via na democracia
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de mercado a forma acabada da história. O necrotério de uma tecnocracia untuosa, transferida para Nova York ou Bruxelas, impondo medidas impopulares em nome da expertise e da modernidade, abriu o caminho para governos falastrões e conservadores. De Washington a Varsóvia, passando por Budapeste, Trump, Jarosław Kaczynski e Orbán reivindicam tanto capitalismo quanto Barack Obama, Angela Merkel, Justin Trudeau e Emma nuel Macron; mas um capitalismo transmitido por outra cultura, “antiliberal”, nacional e autoritária, exaltando o país profundo, e não os valores das gra ndes metrópoles. metrópoles. Uma fratura divide as classes dominantes. Ela é encenada e amplificada pela mídia, que reduz o horizonte das possíveis escolhas políticas possíveis a esses dois irmãos inimigos. Ora, os recém-chegados recém-chegados visam t anto quanto os outros enriquecer os ricos, mas explorando o sentimento que o liberalismo e a social-democracia inspiram a uma porção muitas vezes majoritária das classes populares: um desgosto misturado com raiva. “RECONSTRUÍMOS A CHINA”
A resposta à crise de 2008 expôs, sem permitir a possibilidade de desviar o olhar, três negações à ladainha sobre o bom governo que os líderes de centro-direita e de centro-esquerda alardeavam desde o colapso da União Soviética. Nem a globalização, nem a democracia, nem o liberalismo saíram ilesos. Primeiro, a internacionalização da economia não é boa para todos os países, nem mesmo para a maioria dos assalariados do Ocidente. A eleição de Trump levou à Casa Branca um ho-
mem há muito convencido convenc ido de que, longe de ser lucrativa para seu país, a g lobalização tinha precipitado seu declínio e assegurado a decolagem de seus concorrentes estratégicos. Com ele, a “América primeiro” tem precedência sobre o “ganha-ganha” dos defensores do liv re-comércio. re-comércio. Por exemplo, em 4 de agosto, em Ohio, um estado industrial geralmente disputado, mas onde ele atingiu mais de oito pontos à frente de Hillary Clinton, o presidente dos Estados Unidos recordou o déficit comercial fabuloso (e crescente) de seu país – “US$ 817 bilhões por ano!” –, antes de fornecer a explicação para ele: “Não quero mal aos chineses. Mas mesmo eles não conseguem acreditar que nós os deixamos agir tanto à nossa custa! Realmente reconstruímos a China; é hora de reconstruir nosso país! Ohio perdeu 200 mil empregos industriais depois que a China [em 2001] 2001] entrou para a Organização Mundial do Comércio. A OMC, um desastre total! Por décadas, nossos políticos permitiram que outros países roubassem nossos empregos, tirassem nossa riqueza e saqueassem nossa economia”. No início do século passado, o protecionismo impulsionou a decolagem industrial dos Estados Unidos, assim como a de muitas outras nações; os impostos alfandegários financiaram por muito tempo o poder público, já que o imposto de renda não existia a ntes da Primeira Guerra Mundial. Citando William McKinley, presidente republicano de 1897 a 1901 (que foi assassinado por um anarquista), Trump insiste: “Ele entendeu a importância decisiva das tarifas alfandegárias para manter o poder de um país”. A Casa Branca agora recorre a elas sem hesitar
– e sem se preocupar com a OMC. Turquia, Rússia, Irã, União Europeia, Canadá, China: a cada semana, um lote de sanções comerciais contra Estados, amigos ou não, que Washington tem como alvo. A invocação da “segurança nacional” permite que o presidente Trump dispense a aprovação do Congresso, onde os parlamentares e os lobbies que financiam suas campanhas continuam comprometidos com o livre-comércio. Nos Estados Unidos, a China está obtendo mais consenso, mas contra ela. Não apenas por razões comerciais: Pequim também é percebida como a rival estratégica por excelência. Além de gerar desconfiança por sua força econômica, oito vezes maior que a da Rússia, e por suas tentações expansionistas na Ásia, seu modelo político autoritário concorre com o de Washington. Além disso, ainda que sustente que sua teoria de 1989 sobre o triunfo irreversível e universal do capitalismo liberal permanece válida, o cientista político norte-americano Francis Fukuyama a ela acrescenta um ponto essencial: “A China é de longe o maior desafio à narrat iva do ‘fim da h istória’, istória’, uma vez que se modernizou economicamente, permanecendo uma ditadura. [...] Se, ao longo dos próximos anos, seu crescimento continuar e ela se mantiver como a maior potência econômica do mundo, admitirei que minha tese foi definitivamente refutada”.1 No final, Trump e seus adversários internos convergem pelo menos em um ponto: o primeiro considera que a ordem internacional liberal é muito cara para os Estados Unidos; os outros, que o sucesso da China ameaça deitá-la por terra. Da geopolítica à política há apenas um passo. A globalização causou a destruição de empregos e a queda dos salários no Ocidente – sua participação nos Estados Unidos passou de 64% para 58% do PIB apenas nos últimos dez anos, uma perda anual igual a US$ 7.500 7.500 por t rabalhador! 2 Ora, foi precisamente nas regiões industriais devastadas pela concorrência chinesa que os trabalhadores norte-americanos se voltaram mais para a direita nos últimos anos. É claro
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que essa mudança eleitoral pode ser atribuída a uma série de fatores “culturais” (sexismo, racismo, apego a armas de fogo, hostilidade ao aborto e casamento entre pessoas do mesmo sexo etc.). Mas devemos observar observar u ma explicação econômica pelo menos igualmente convincente: enquanto o número de condados que concentram mais de 25% dos empregos norte-americanos do setor manufatureiro entrou em colapso de 1992 a 2016, passando de 862 para 323, o equilíbrio entre os votos dos democratas e dos republicanos nesses locais se metamorfoseou. Há um quarto de século, eles estavam divididos quase igualmente entre os dois principais part idos (cerca de quatrocentos cada); em 2016, 306 escolheram Trump, e 17, 17, Hillar y Clinton. 3 Promovida por u m presidente democrata – Bill Clinton, precisamente precisamente –, a adesão da China à OMC deveria acelerar a transformação desse país em uma sociedade capitalista liberal. Isso jogou os trabalhadores norte-americanos contra a globalização, o liberalismo e o voto democrata... Pouco antes da queda do Lehman Brothers, o ex-presidente do Federal Reserve, Alan Greenspan, explicava tranquilamente: “Graças à globalização, as políticas públicas dos Estados Unidos foram amplamente substituídas pelas forças globais do mercado. Fora as questões de segurança nacional, a identidade do próximo presidenpresidente quase não tem mais importância”.4 Dez anos depois, ninguém retomaria tal diagnóstico. Nos países da Europa central, cuja expansão ainda é baseada nas exportações, o questionamento da globalização não diz respeito às trocas comerciais. Mas os “homens fortes” no poder denunciam a imposição pela União Europeia de “valores ocidentais” considerados fracos e decadentes, porque favoráveis à imigração, à homossexualidade, ao ateísmo, ao feminismo, à ecologia, à dissolução da família etc. Eles também contestam a natureza democrática do capitalismo liberal. Não sem fundamento, no último caso. Porque, em matéria de igualdade de direitos políticos e civis, a questão de saber se as mesmas regras se aplicam a todos se viu mais uma vez desafiada após 2008: “Nenhuma acusação foi feita contra um agente financeiro de alto nível”, destaca o jornalista John La nchester. Durante o escândalo das poupanças dos anos 1980, 1.100 pessoas tinham sido acusadas. 5 Os detentos de uma penitenciária francesa já diziam de forma zombeteira no século passado: “Quem rouba um ovo vai preso; quem rouba um boi vai para o Palais Bourbon [Assembleia Nacional fra ncesa]”. O povo escolhe, mas o capital decide. Ao governarem no sentido contrá-
rio de suas promessas, os líderes liberais, tanto de direita como de esquerda, reforçam essa suspeita em quase toda eleição. Para romper com as políticas conservadoras de seus antecessores, Obama reduziu os déficits públicos, comprimiu os gastos sociais e, em vez de instaurar um sistema público de saúde, impôs aos norte-americanos a compra de um seguro médico de um cartel privado. Na França, Nicolas Sarkozy aumentou em dois anos a idade da aposentadoria que ele havia se comprometido formalmente a não alterar; François Hollande fez votar um pacto de estabilidade europeu, que ele tinha prometido renegociar. No Reino Unido, o líder liberal Nick Clegg juntou-se, para surpresa geral, ao Partido Conservador, e, em seguida, transformado em vice-primeiro-ministro,concordouem triplicar o valor das taxas universitárias que ele tinha jurado eliminar. Na década de 1970, alguns partidos comunistas da Europa ocidental sugeriram que seu eventual acesso ao poder por meio das urnas seria um “bilhete de ida”, pois a construção do socialismo, uma vez lançada, não poderia depender dos caprichos eleitorais. A vitória do “mundo livre” sobre a hidra soviética acomodou acomodou esse princípio com mais astúcia: o direito de voto não está suspenso, mas ele vem com o dever de confirmar as preferências das classes dominantes. Caso contrário, pode ser preciso começa começarr de novo. “Em 1992”, lembra o jornalista Jack Dion, “os dinamarqueses votaram contra o Tratado de Maastricht: eles foram forçados a retornar às urnas. Em 2001, os irlandeses votaram contra o Tratado de Nice: eles foram forçados a retornar às urnas. Em 2005, os franceses e os holandeses votaram contra o Tratado Constitucional Europeu (TCE): este lhes foi imposto sob o nome de Tratado de Lisboa. Em 2008, os irlandeses votaram contra o Tratado de Lisboa: foram obrigados a votar de novo. Em 2015, 61,3% dos gregos votaram contra o plano de ajuste de Bruxelas – que ainda ai nda assim lhes foi impingido.”6 Exatamente naquele ano, falando a um governo de esquerda eleito poucos meses antes e forçado a administrar um trata mento de choque liberal liberal à sua população, o ministro das Finanças alemão, Wolfgang Schäuble, resumiu o escopo que confere ao circo circo democrático: “As eleições não devem permitir que se altere a política econômica”.7 Por sua vez, Pierre Moscovici, comissário europeu para assuntos econômicos e monetários, explicaria depois: “Vinte e três pessoas, com seus auxiliares, tomam – ou não – decisões fundamentais para mi lhões de outras – os gregos, no caso –, seguindo parâmetros extraordinariamente técnicos, decisões isentas de qualquer controle democrático. O Eurogrupo não presta contas
para nenhum governo, nenhum parlamento, especialmente para o Parlamento Europeu”.8 É a assembleia, no entanto, na qual Moscovici aspira a ocupar um lugar no próximo a no. Autoritário e “antiliberal” à sua maneira, esse desprezo pela soberania popular alimenta um dos mais poderosos argumentos de campanha dos líderes conservadores de ambos os lados do Atlântico. Ao contrário de partidos de centro-esquerda ou de centro-direita, que se comprometem sem fornecer os meios para reanimar uma democracia moribunda, Trump e Orbán, assim como Kaczynski na Polônia e Matteo Salvini na Itália, apoiam sua agonia. Conservam apenas o voto ma joritário e revertem as cartas: ao autoritarismo independente do Estado e especialista de Washington, Bruxelas ou Wall Street, eles opõem um autoritarismo nacional e direto que apresentam como uma reconquista popular. INTERVENCIONISMO MACIÇO
Depois daquelas relacionadas à globalização e à democracia, a terceira negação feita pela crise no discurso dominante dos anos anteriores se refere à eliminação do papel econômico do poder público. Tudo é possível, mas não para todo mundo: raramente a demonstração desse princípio foi administrada com tanta clareza quanto na década passada. Criação maciça de dinheiro, nacionalizações, desdém pelos tratados internacionais, ação discricionária dos eleitos etc.: para salvar sem contrapartida as instituições bancárias das quais dependia a sobrevivência do sistema, a maioria das operações decretadas impossíveis e impensáveis foi realizada sem um tiro em ambos os lados do Atlântico. Esse intervencionismo maciço revelou um Estado forte, capaz de aproveitar seu poder em uma área onde ele parecia ter deposto a si mesmo.9 Mas, se o Estado é forte, é em primeiro lugar para garantir um quadro estável para o capital. Inflexível quando se tratava de reduzir os gastos sociais para levar o déficit público para menos de 3% do PIB, Jean-Claude Trichet, presidente do Banco Central Europeu de 2003 a 2011, admitiu que os compromissos financeiros assumidos no final de 2008 pelos chefes de Estado Estado para salva r o sistema bancário representavam em meados de 2009 “27% do PIB da Europa e dos Estados Unidos”. Unidos”.10 Dezenas de milhões de desempregados, de expropriados e de doentes despejados em hospitais com falta de medicamentos, como na Grécia, nunca tiveram o privilégio de constituir um “risco sistêmico”. “Por meio de suas escolhas políticas, os governos da zona do euro mergulharam dezenas de milhões de seus cidadãos nas profundezas de uma depressão semelhante à da década de 1930. É um
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dos piores desastres econômicos autoinfligidos já observados”, observa o historiador Adam Tooze.11 O descrédito da classe dirigente e a reabilitação do poder do Estado só podiam abrir o caminho para um novo estilo de governo. Quando perguntado em 2010 se o fato de ascender ao poder em plena tempestade global o preocupava, o primeiro-ministro húngaro sorriu: “Não, eu amo o caos. Porque, com base nele, posso construir uma nova ordem. A ordem que eu quero”. 12 Mas, em vez de garantir direitos sociais incompatíveis com as exigências dos proprietários, o poder público afirma-se fechando as fronteiras para os migrantes e proclamando-se um fiador da “identidade cultural” da nação. O arame farpado marca então o retorno do Estado. No momento, essa estratégia que recupera, desvia e distorce uma demanda popular de proteção parece funcionar. Basta dizer que as causas da crise financeira que fez descarrilar o mundo permanecem intactas, mesmo quando a vida política de países como a Itália, a Hungria ou regiões como a Baviera parece assombrada pela questão dos refugiados. Alimentada pelas prioridades dos campi norte-americanos, uma parte da esquerda ocidental, moderada demais ou radical demais, adora afrontar a direita nesse terreno.13 Em resposta à grande recessão, os líderes de governo desvelaram, portanto, a farsa democrática, a força do Estado, a natureza bastante política da economia e a inclinação antissocial de sua estratégia geral. O ramo que os abrigava se viu fragilizado, como evidenciado pela instabilidade eleitoral que refaz os mapas políticos. Desde 2014, a maior parte das eleições ocidentais assinala uma decomposição ou um enfraquecimento das forças tradicionais e, simetricamente, a ascensão de personalidades ou de correntes antes marginais que contestam as instituições dominantes, muitas vezes por razões opostas, como Trump e Bernie Sanders, ambos críticos de Wall Street e da mídia. O mesmo cenário do outro lado do Atlântico, onde os novos conservadores consideram a construção europeia muito liberal nos planos social e migratório, enquanto as novas vozes de esquerda, como o Podemos na Espanha, A França Insubmissa e Jeremy Corbyn à frente do Partido Trabalhista no Reino Unido, criticam suas políticas de austeridade. Como não pretendem pretendem vira r a mesa, apenas mudar os jogadores, os “homens fortes” podem obter o apoio de uma fração das classes dominantes. Em 26 de julho de 2014, na Romênia, Orbán anunciou a posição em um retumbante discurso: “O novo Estado que estamos construindo na Hungria
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é um Estado antiliberal: um Estado não liberal”. Mas, ao contrário do que a mídia tradicional repisa desde então, seus objetivos não se limitavam à re jeição do multicultural ismo e da “sociedade aberta” e à promoção dos valores familiares e cristãos. Ele também anunciava um projeto econômico, o de “construir uma nação competitiva na grande concorrência global das próximas décadas”. “Nós consideramos”, ele disse, “que uma democracia não deve necessariamente ser liberal e que não é porque um Estado deixa de ser liberal que deixa de ser uma democracia.” Tomando como exemplo a China, a Turquia e Cingapura, o primeiro-ministro húngaro devolveu ao remetente a frase “Não há alternativa”, de Margaret Thatcher: “As sociedades que têm uma democracia liberal como base provavelmente não conseguirão manter sua competitividade nas próximas décadas”.14 Tal conformação atrai os líderes poloneses e tchecos, mas também os partidos de extrema direita francês e a lemão. O LENGA-LENGA DO “CAPITALISMO INCLUSIVO”
Diante do brilhante sucesso de seus concorrentes, os pensadores liberais perderam sua beleza e atratividade. “A contrarrevolução é alimentada pela polarização da política interna, com o antagonismo substituindo o compromisso. E tem como alvo a revolução liberal e os ganhos obtidos pelas minorias”, arrepia-se Michael Ignatieff, reitor da Universidade da Europa Central em Budapeste, instituição fundada por iniciativa do bilionário liberal George Soros. “Está claro”, acrescenta ele, “que o breve momento de dominação da sociedade aberta acabou.” 15 Em sua opinião, os governantes autoritários que tomam por alvo o estado de direito, o equilíbrio dos poderes, a liberdade dos meios de comunicação privados e os direitos das minorias atacam na verdade os pilares essenciais das democracias. O semanário britânico The Economist , que faz as vezes de boletim de ligação das elites liberais globais, concorda com essa visão. Quando, em 16 de junho, ele entrou em pânico por causa de uma “deterioração alarmante da democracia desde a crise financeira de 20072008”, 2008”, não incriminou incrimi nou as desigualdades abissais de fortuna, nem a destruição dos empregos industriais pelo livre-comércio, nem o desrespeito à vontade dos eleitores pelos líderes “democráticos”. Mas atacou “os homens fortes [que] minam a democracia”. Em relação a eles, espera, “os juízes independentes e os jornalistas inquietos são a primeira linha de defesa” – um dique tão estreito quanto frágil. Durante muito tempo, as classes superiores tiraram proveito do jogo eleitoral graças a três fatores convergentes:
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a crescente abstenção das classes populares, o “voto útil” provocado pela repulsa que os “extremos” inspiravam e a pretensão dos partidos centrais de representar os interesses combinados da burguesia e da classe média. Mas os demagogos reacionários agora mobilizam os abstencionistas; a grande recessão enfraqueceu a classe média; e as arbitragens políticas dos “moderados” e seus brilhantes conselheiros desencadearam a crise do século... O desencanto em relação à utopia das novas tecnologias vem se juntar à amargura dos entusiastas da sociedade aberta. Ontem celebrados como os profetas de uma civilização liberal libertária, os empresários democratas do Vale do Silício construíram uma máquina de vigilância e de controle social tão poderosa que o governo chinês a imita para ma nter a ordem. A esperança de uma ágora global impulsionada por uma conectividade universal entra em colapso, para desgosto de alguns que outrora comungavam com ela: “A tecnologia, pelas manipulações que permite, pelas fake news , mas ainda mais porque veicula emoção em vez de razão, reforça ainda mais os cínicos e os ditadores”, soluçou um editorialista.16 À medida que se aproxima o trigésimo aniversá rio da queda do Muro de Berlim, os arautos do “mundo livre” temem que a festa seja morosa. “A transição para as democracias liberais foi em grande parte i mpulsionada por uma elite educada, muito pró-ocidental”, Fukuyama admite. Infelizmente, as populações menos educadas “nunca foram seduzidas por esse liberalismo, pela ideia de que poderíamos ter uma sociedade multirracial, multiétnica, em que todos os valores tradicionais se desvaneceriam diante do casamento gay, da imigração etc.”17 Mas a quem imputar a culpa por essa fa lta de efeito cascata da minoria esclarecida? À indolência de todos os jovens burgueses que, irrita-se Fukuyama, “se contentam em ficar em casa, para se congratularem por sua mente aberta, por sua falta de fanatismo. [...] E só se mobilizam contra o inimigo indo sentar-se no terraço de um café com um mojito na mão”.18 De fato, isso não é suficiente... E muito menos o fato de enquadrar a mídia ou inundar as redes sociais com comentários indignados direcionados a “amigos” igualmente indignados, sempre pelas mesmas coisas. Obama entendeu isso. Em 17 de julho, ele divulgou uma análise detalhada, muitas vezes lúcida, das últimas décadas. Mas não pôde deixar de retomar a ideia fixa da esquerda neoliberal desde que ela adotou o modelo capitalista. Em essência, como o ex-primeiro-ministro italiano de centro-esquerda Paolo Gentiloni lembrou a Trump em 24 de
janeiro de 2018 em Davos, “podemos corrigir o quadro, mas não alterá-lo”. alterá-lo”. A globaliz ação, Obama admite, foi acompanhada por erros e pilhagens. Ela enfraqueceu o poder dos sindicatos. Ela “permitiu ao capital escapar dos impostos e das leis dos Estados mudando de lugar centenas de bilhões de dólares com um simples toque numa tecla de computador”. Certo, mas e o remédio? Um “capitalismo inclusivo”, iluminado pela moralidade humanista dos capitalistas. Só esse cauterizador em uma perna de madeira pode, segundo ele, corrigir alguns dos defeitos do sistema. Desde que ele não veja nenhum outro na loja e que, no fundo, aquele lhe sirva bem... O ex-presidente norte-americano não nega que a crise de 2008 e as más respostas que foram dadas a ela (inclusive por ele, diga-se) favoreceram o surgimento de uma “política do medo, do ressentimento e da contenção”, da “popularidade dos homens fortes”, de um “modelo chinês de controle autoritário considerado preferível a uma democracia percebida como desordenadesordenada”. da”. Mas ele at ribui a responsabil idade essencial por esses distú rbios aos “populistas” que recuperam as inseguranças e ameaçam o mundo com um retorno a uma “ordem antiga, mais perigosa e mais brutal”, salvando de passagem as elites sociais e intelectuais (seus pares...) que criaram as condições da crise – e que muitas vezes se beneficiaram dela. Tal panorama tem muitas vantagens para elas. Em primeiro lugar, repetir que a ditadura nos ameaça torna possível acreditar que a democracia impera, mesmo que ainda exija pequenos ajustes. Mais fundamentalmente, a ideia de Obama (ou aquela, idêntica, de Macron) de que “duas visões muito diferentes do futuro da humanidade competem pelos corações e mentes dos cidadãos de todo o mundo” permite esconder o que essas “duas visões” têm em comum: nada menos do que o modo de produção e de propriedade, ou, para retomar as mesmas palavras do ex-presidente norte-americano, “a desproporcional influência econômica, política e midiática dos que estão no topo”. A esse respeito, de fato, nada distingue Macron de Trump, como aliás foi demonstrado por sua ânsia comum de reduzir, assim que chegaram ao poder, a taxação da renda do capital. Resumir obstinadamente a vida política das próximas décadas ao enfrentamento entre democracia e populismo, abertura e soberania, não trará nenhum alívio para essa porção crescente das categorias populares desiludida com uma “democracia” “democracia” que a abandonou e com uma esquerda que se metamorfoseou em part ido da burguesia graduada. Dez anos após a
eclosão da crise financeira, a luta vitoriosa contra a “ordem brutal e perigosa” que está surgindo exige algo bem diferente – de início, o desenvolvimento de uma força política c apaz de combater simultaneamente os “tecnocratas esclarecidos” e os “bilionários enraivecidos”,19 recusando, assim, o papel da força de apoio de um dos dois blocos que, cada um a seu modo, colocam a humanidade huma nidade em perigo. *Serge Halimi Halimi é diretor e Pierre Rimbert é membro da direção do Le Monde Diplomatique .
1 Francis Fukuyama, “Retour sur ‘La fin de l’histoire?’” [Retorno sobre “O fim da história”?], Comn.161, Paris, primavera 2018. mentaire, n.161, 2 William Galston, “Wage stagnation is everyone’s problem” [A estagnação salarial é problema de todos], The Wall Street Journal , Nova York, 14 ago. 2018. Sobre a destruição de empregos em razão da globalização, cf. Daron Acemo’ler et al., “Import competition and the great US employment sag of the 2000s” [Importar a concorrência e a grande queda do emprego dos Estados Unidos nos anos 2000], Journal of Labor Economics, v.34, n.S1, Chicago, jan. 2016. 3 Bob Davis e Dante Chinni, “America’s “America’s factory towns, once solidly blue, are now a GOP haven” [As cidades industriais norte-americanas, outrora solidamente azuis, são agora um refúgio do Partido Republicano], e Bob Davis e Jon Hilsenrath, “How the China shock, deep and swift, spurred the rise of Trump” [Como o choque da China, profundo e rápido, estimulou a ascensão de Trump], The Wall Street Journal , 19 jul. 2018 e 11 ago. 2016, respectivamente. 4 Citado por Adam Tooze, Tooze, Crashed: How a Decade of Financial Crises Changed the World [Quebrado: como uma década de crise financeira mudou o mundo], Penguin Books, Nova York, 2018. 5 John Lanchester, “After “After the fall” [Depois da queda], London Review of Books, v.40, n.13, 5 jul. 2018. 6 Jack Dion, “Les marchés contre les peuples” [Os mercados contra o povo], Marianne, Paris, 1ºjun. 2018. 7 Yanis Varoufakis, Adults in the Room. My Battle Against Europe’s Deep Establishment [Adultos na sala. Minha batalha contra o establishment profun profundo da Europa], The Bodley Head, Londres, 2017. 8 Pierre Moscovici, Dans ce clair-obscur surgissent les monstres. Choses vues au cœur du pouvoir
[Nesse claro-escuro surgem monstros. Coisas vistas no coração do poder], Plon, Paris, 2018. 9 Ler Frédéric Lordon, “Le jour où Wall Street est devenu socialiste” [O dia em que Wall Street se tornou socialista], Le Monde Diplomatique, out. 2008. 10 Jean-Claude Trichet, “Nous sommes encore dans une situation dangereuse” [Ainda estamos em uma situação perigosa], Le Monde, 14 set. 2013. 11 Adam Tooze, op. cit. 12 Drew Hinshaw e Marcus Walker, “In Orban’s Hungary, a glimpse of Europe’s demise” [Na Hungria de Orbán, um vislumbre da morte da Europa], The Wall Street Journal , 9 ago. 2018 13 Ler Pierre Bourdieu e Loïc Wacquant, “La nouvelle vulgate planétaire” [A nova vulgata mundial], Le Monde Diplomatique, maio 2000. 14 “Discurso do primeiro-ministro Viktor Orbán no 25º Acampamento de Estudantes e Universidade Livre de Verão de Bálványos”, 30 jul. 2014. Disponível em:
. 15 Michael Ignatieff e Stefan Roch (orgs.), Rethinking Open Society: New Adversaries and New Opportunities [Repensando a sociedade aberta: novos
adversários e novas oportunidades], CEU Press Budapeste, 2018. 16 Éric Le Boucher, “Le salut par l’éthique, la démocratie, l’Europe” [A salvação pela ética, pela democracia, pela Europa], L’Opinion, Paris, Paris, 9 jul . 2018. 17 Citado por Michael Steinberger, “George Soros bet big on liberal democracy. Now he fears he is losing” [George Soros apostou alto na democracia liberal. Agora teme que esteja perdendo], The New York Times Magazine, 17 jul. 2018. 18 Alexandre Devecchio, “Francis Fukuyama: ‘Il y a un risque de défaite de la démocratie’” [Francis Fukuyama: “Há um risco de derrota da democracia”] , Le Figaro Magazine, Paris, 6 abr. 2018. 19 Thomas Frank, “Four more years” [Mais quatro anos], Harper’s, abr. 2018.
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EDITORIAL
s u i d u a l C ©
Na linguagem do povo POR SILVIO CACCIA BAVA BAVA
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s eleições deste ano buscam sensibilizar um eleitorado no qual 49% dos que têm mais de 25 anos ainda não completaram o ciclo do Ensino Fundamental (IBGE); no qual 95 milhões de brasileiros têm renda de até R$ 14 por dia (46%) e 41 milhões, renda entre R$ 14 e R$ 21 por dia (20%); no qual 13,7 milhões de desempregados se somam aos milhões que perderam as esperanças de encontrar uma vaga. Buscar mantê-los na ignorância, doutriná-los por meio da televisão, controlá-los pela violência parece ser a alternativa adotada pelos donos do poder para tentar submetê-los à sua vontade. Segundo eles, as questões sociais não cabem no orçamento público e os pobres têm de ficar no seu lugar. O ciclo de eleições da primeira década do século XXI na América Latina mostrou que os pobres não são ignorantes, não estão sujeitos a todo tipo de manipulações e não querem ficar no lugar subalterno destinado a eles pelas elites. Eles querem superar o fosso da desigualdade. As manifestações populares dizem hoje que eles também não querem as políticas de austeridade que lhes são impostas para garantir os ganhos do 1% mais rico. Mas, na atualidade, uma parte desses mesmos pobres pende para defender seus algozes, iludida por uma santa campanha contra a corrupção que é extremamente seletiva e se concentra em atacar o PT, sobretudo Lula, que lidera com folga todas as pesquisas eleitorais.
O golpe de 2016, que derrubou a presidenta Dilma, os péssimos resultados do governo Temer, a espoliação das maiorias promovida por iniciativas de entidades empresariais como a Fiesp e a CNI (especialmente a reforma trabalhista e a Emenda Constitucional n. 95, que congela por vinte anos os gastos sociais), o desrespeito aos direitos consagrados em nossa Constituição, tudo isso gera o descrédito com a política e com os políticos, colocando perigosamente todos no mesmo saco. Para estudiosos dos processos eleitorais, a abstenção, somada aos votos brancos e nulos, pode superar os 40% do eleitorado nestas eleições 1, sinal de que esse sistema político já não dá conta de processar os confl itos de interesse em nossa sociedade. Some-se a isso o impedimento legal, que contradiz a Constituição da República, de um candidato com mais de 39% da preferência eleitoral, e temos uma situação inédita. 2 Nesse cenário, o conjunto dos partidos da direita abraça um programa único: o da implantação do ultraliberalismo rali smo econômico. Todos defendem o corte nas políticas sociais, o rebaixamento dos salários, a precarização do trabalho, a violência como solução para a criminalidade, as privatizações, entre outras coisas. E encobrem seus propósitos com discursos em prol de uma falsa retomada do desenvolvimento e de um Estado mais eficiente, como se não tivéssemos um registro histórico de que a desigualdade avança com o baixo crescimento da economia e a extinção do Estado social.
Já aqueles que se organizam para a defesa da democracia e dos direitos que estão sendo suprimidos não encontram uma linguagem capaz de sensibilizar a maioria do povo e são ignorados pelos grandes meios de comunicação. O que significa, para aqueles que suam a camisa no dia a dia para garantir seu sustento e o de sua família, a discussão sobre desenvolvimento sustentável, taxa de câmbio, juros, reforma tributária etc.? Buscar o engajamento da população em um processo eleitoral significa mobilizar suas expectativas e demandas e estabelecer compromissos que venham abordar os problemas do cotidiano e propor como enfrentá-los. O sucesso da campanha de Bernie Sanders para a presidência dos Estados Unidos se deveu à sua linguagem clara e direta e ao seu compromisso com os interesses das maiorias. Sua plataforma tinha como carro-chefe dobrar o salário mínimo e garantir educação pública, gratuita e de qualidade, em todos os níveis. Tais propostas atendem a todos. Embora não tenha ganho a disputa pela candidatura do Partido Democrata, Sanders conseguiu encantar uma parcela importante do eleitorado, especialmente a juventude. Forma e conteúdo se combinam numa estratégia eleitoral. As propostas claras e objetivas precisam ser apresentadas na linguagem do povo. E aqui está um desafio para as organizações de esquerda, melhor dizendo, para as organizações que defendem a democracia e os direitos humanos, o que abarca um arco mais amplo de organi-
zações, seja do sistema político, seja da sociedade sociedade civi l. Mas se falar a linguagem do povo já é um passo gigantesco de aproximação com as maiorias, é importante lembrar que a ação e as identidades políticas se constroem graças aos coletivos que se mobilizam e, assim, criam seus afetos políticos 3. Casos recentes exemplares foram as caravanas promovidas por Lula pelo país e os comícios realizados ao longo da caravana; as marchas e ocupações do MST; a Marcha das Mulheres Negras; as inúmeras manifestações e passeatas em defesa de direitos; os acampamentos do Levante Popular da Juventude. Para as grandes g randes maiorias empobrecidas, o que interessa são suas condições de vida e a possibilidade de sonhar com uma vida melhor. Garantir seu emprego e seus direitos trabalhistas; aumentar o salário mínimo; garantir saúde e educação pública, gratuita e de qualidade para todos; garantir a qualidade de vida dos aposentados pela via da Previdência; baixar o preço do boti jão de gás. gás. Esses são alguns elemen elementos tos centrais para atender e mobilizar as maiorias. Tudo ao contrário do que reza a cartilha da austeridade e do liberalismo arcaico preconizada no programa único da direita.
1 Lejeune Mirhan, sociólogo, escritor, pesquisador, professor e analista internacional. Presidiu o Sindicato dos Sociólogos do Estado de São Paulo e a Federação Nacional dos Sociólogos. 2 Pesquisa Datafolha, divulgada em 22 ago. 2018. 2018. 3 Antonio Negri e Michael Hardt, Declaração: isto não é um manifesto, N-1 Edições, São Paulo, 2014, p.31.
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DIMINUIR TRIBUTOS OU REFORMAR A DISTRIBUIÇÃO DOS IMPOSTOS
O que interessa ao povo brasileiro? Para resolver os problemas do país devem-se cortar tributos e diminuir ainda mais os investimentos estatais ou fazer uma reforma tributária estrutural que leve o Estado a aumentar a arrecadação, principalmente sobre o 1% mais rico da população? POR ODILON GUEDES*
eleição para presidente coloca um tema fundamental para o debate: a reforma tributária. O Brasil possui uma das estruturas tributárias mais injustas, em que a população de baixa renda e a classe média pagam, proporcionalmente, mais tributos que o 1% mais rico. Isso ocorre porque a maior parte dos tributos é indireta e recai sobre o consumo, atingindo da mesma forma quem ganha dois, trinta ou trezentos salários mínimos. Apesar disso, disso, as forças forças conse conservadorvadoras que disputam a eleição afirmam que um dos principais problemas do Brasil é o alto percentual da carga tributária em relação ao PIB; e que a solução é abaixá-lo. Pelos dados que apresentamos a seguir ficará evidente que o Estado brasileiro arrecada por cidadão muito menos que os demais países analisados. Demonstraremos também que o Brasil vive uma situação social muito pior que esses países, o que significa que são necessários muito mais recursos para investir em educação, saúde, segurança pública e outras áreas. Em resumo, a questão a ser analisada não é o percentual da carga tributária em relação ao PIB, e sim quanto o governo dispõe para investir por cidadão. Pelos dados da Tabela 1 observamos que, apesar de a carga tributária dos países, com exceção da Alemanha, ser menor que a nossa, todos têm muito mais recursos para investir. investi r. Apesar de a carga tributária norte-americana ser 25,4% do PIB, e a nossa, 33,7%, os Estados Unidos têm US$ 14.422 por habitante, enquanto o Brasil tem US$ 2.928. A situação social do Brasil, comprovada pelos indicadores a seguir, é muitas vezes pior do que a desses países. Isso significa que precisamos de muito mais investimentos para melhorar a qualidade de vida de nossa população.
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ÍNDICE DE DESENVOLVIMENTO HUMANO
A classificação dos países citados em relação ao Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) é a seguinte: Estados Unidos, 8º colocado; Alemanha, 6º; Japão, 20º; Chile, 42º; Coreia do Sul, 12º; e Brasil, 72º. Esse índice é uma medida importante concebida pela ONU para avaliar a qualidade de vida e o desenvolvi-
TABELA 1 – CARGAS TRIBUTÁRIAS EM PERSPECTIVA País
População em milhões/ hab. 2016
PIB em US$ bilhões 2016
% da carga tributária em relação ao PIB
Total da carga tributária em US$ bilhões
Capacidade de investimento do governo ( per capita ) em US$
EUA
327
18.570
25,4
4.716
14.422
Brasil
207
1.799
33,7
606
2.928
Alemanha
81
3.467
36,7
1.272
15.703
Japão
128
4.139
29,5
1.221
9.539
Coreia do Sul
51
1.411
24,3
343
6.725
Chile
18
277
20,2
56
3.111
Fonte: FMI/IBGE.
TABELA 2 – RESULTADOS DO PISA (EM UM TOTAL DE SETENTA PAÍSES) País
Leitura
Matemática
Ciências
Estados Unidos Alemanha Japão Coreia do Sul Chile Brasil
24º 11º 8º 7º 43º 59º
41º 16º 5º 7º 51º 69º
25º 16º 2º 11º 46º 67º
Fonte: OCDE.
mento econômico de uma população com base em três critérios: saúde (expectativa de vida ao nascer), educação (média de anos de estu do dos adultos e anos esperados de escolaridade das crianças) e renda, medida pela Renda Nacional Bruta (RNB). Estamos bem atrás de todos, o que evidencia a necessidade de muito investimento público, sobretudo na área de saúde, uma vez que 160 milhões de brasileiros não têm plano privado, portanto dependem diretamente do SUS. PISA 2015
O Programa Internacional de Avaliação de Alunos (Pisa) mede o nível educacional de jovens de 15 anos por meio de provas de Leitura, Matemática e Ciências. O exame é realizado a cada três anos pela Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE). Esses dados, expostos na Tabela 2, falam por si e demonstram uma situação calamitosa. Com base nesse contexto, destacamos que 83% dos estudantes, antes de ingressarem na universidade, estudam em escolas públicas. Portanto, se não houver investimentos em educação por parte do Estado, essa situação não mudará,
comprometendo comprometendo o presente e o f uturo das crianças e jovens de nosso país. SEGURANÇA PÚBLICA
Comparar o número de homicídios permite que tenhamos uma noção de que atualmente enfrentamos uma verdadeira guerra civil, à qual, infelizmente, muitos já se acostumaram. Ve jamos o número número de homicídios homicídios por 100 mil habitantes: Estados Unidos, 5,3 (2016); Alemanha, 0,7 (2015); Japão, 0,73 (2015); Coreia do Sul, 0,8 (2014); Chile, 3,3 (2017); e Brasil, 30,5 (2016) (fontes: FBI; UN Office on Drugs and Crime; InSight Crime; Ipea). * Esses números comprovam que vivemos aqui no Brasil uma situação caótica. Essa realidade nos traz uma pergunta a ser respondida: para resolver os problemas do país devem-se cortar tributos e diminuir ainda mais os investimentos estatais ou fazer uma reforma tributária estrutural que leve o Estado a aumentar a arrecadação, principalmente sobre o 1% mais rico da população? De um lado, a proposta que defendemos é de uma reforma tributária que seja pautada pela redução dos tributos
indiretos, favorecendo principalmente os cidadãos de baixa renda. Isso ocorrerá porque as empresas, diante da redução dos tributos que pagam ao Estado, terão como consequência a diminuição de custos, o que as levará a abaixar os preços de seus produtos. Do outro lado propomos o aumento dos tributos diretos da seguinte forma: • Imposto de Renda: isenção para quem ganha o equivalente ao salário mínimo definido pelo Dieese (art. 7º, item IV, da CF), que, em junho de 2018, estava em R$ 3.804,06. A partir desse patamar, aumentar as alíquotas em 8% até chegar ao limite de 40%. Outra medida importante é passar a cobrar Imposto de Renda sobre a distribuição de lucros e dividendos. • Imposto sobre herança: imposto progressivo até o limite de 30% e que seja federalizado. Hoje, esse imposto é estadual e, segundo a Resolução 09/92 do Senado, a alíquota máxima que pode ser cobrada é de 8%. • Imposto sobre a propriedade: aumentar a progressividade do Imposto Territorial Rural (ITR) e que o Estado passe a fazer uma fiscalização tão rigorosa como a do Imposto de Renda. Salientamos que a atual arrecadação do ITR, du rante todo o a no de 2017, 2017, em todo o Brasil, foi menor que dois meses de arrecadação do IPTU na cidade de São Paulo. • Imposto sobre as grandes fortunas: regulamentação do artigo 153, item VII, VI I, da CF, por meio de lei complementar, que a Receita Federal passe a informar o valor do patrimônio das pessoas por faixa de renda e que as alíquotas aplicadas sejam progressivas. Uma reforma tributária com essas características, além de fazer justiça tributária, dará muito mai s condições ao Estado para investir em políticas públicas. *Odilon Guedes é economista, mestre em
Economia pela PUC-SP, professor do curso de pós-graduação Gerente de Cidades e do curso de Economia da Fundação Armando Álvares Penteado (Faap) e do curso de Economia das Faculdades Oswaldo Cruz. Foi presidente do Sindicato dos Economistas no Estado de São Paulo, vereador e subprefeito da cidade de São Paulo. Autor do livro Orçamento públi- co e cidadania (Ed. Livraria da Física, 2012).
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CAI A MÁSCARA DA REFORMA TRABALHISTA
Desemprego e precarização precarização vêm à tona Os argumentos de “modernização” do trabalho para retirar direitos são os mesmos utilizados no século XIX, que geraram sociedades pauperizadas e violentas POR EUZÉBIO JORGE SILVEIRA DE SOUZA, ANA LUÍZA MATOS DE OLIVEIRA E BARBARA VALLEJOS VAZQUEZ*
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reforma trabalhista completou em agosto nove meses de vigência e já é evidente seu fracasso na missão de criar mais empregos formais de qualidade e contribuir na retomada do crescimento econômico. Com o aprofundamento da crise econômica a partir de 2015, o Brasil acompanhou os malabarismos teóricos de economistas ortodoxos para estabelecer uma relação causal entre a superação da crise econômica e a destruição do aparato político e institucional que promovia seguridade ao trabalhador e mitigava a assimetria no mercado de trabalho. A reforma trabalhista, mal debatida e aprovada em tempo recorde pelo Congresso em julho de 2017, foi apresentada como medida imprescindível para a “modernização” das relações de trabalho no país e para a superação da crise econômica. Os mesmos defensores da austeridade1 que transformou uma desaceleração em recessão econômica em 2015 defendiam a reforma trabalhista como saída para a crise. A reforma, ao flexibiliza r as relações de trabalho, reduzir direitos trabalhistas, permitir a livre negociação entre trabalhadores e empresários e deixar que o próprio mercado defina níveis de remunerações e condições de trabalho, contribuiria para a retomada do crescimento econômico, segundo seus defensores. Tal pensamento é baseado na ideia de que o mercado de trabalho brasileiro não era flexível e que o desemprego e a queda da atividade econômica são responsabilidades ponsabilidades dos trabalhadores. Em primeiro lugar, o Brasil possui um mercado de trabalho historicamente marcado por informalidade, alta rotatividade, baixos salários e desrespeito à regulação do trabalho. Ademais, a pressuposição de que os trabalhado-
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res são responsáveis pelo desemprego está fundada na ideia de que estes preferem o desemprego a trabalhar por baixos salários – o que justificaria retirar direitos trabalhistas como seguro-desemprego, com o propósito de combater o “corpo mole”. Por outro lado, o nível de emprego depende do volume de gastos e investimentos na economia como um todo: buscar entender o nível de desemprego observando apenas o mercado de trabalho é como tentar apreender o funcionamento do motor de um carro olhando para suas rodas. Até poucos anos atrás, as estatísticas oficiais acerca do trabalho não haviam sido capazes de i ncorporar especificidades brasileiras e ao mesmo tempo adequar-se a padrões internacionais de medição das situações de emprego e desemprego. No entanto, com a Pnad Contínua (PnadC), houve uma tentativa de medição mais complexa de fenômenos que impactam os mercados de trabalho periféricos como o Brasil (ao contrário da Europa): subemprego, desalento, entre outros, consolidados no indicador “Subutilização da força de trabalho”. Sobre esse indicador, do segundo trimestre de 2017 para o segundo trimestre de 2018, cresceu de 26,3 milhões para 27,6 milhões a quantidade de pessoas subutilizadas, isto é, os subocupados por insuficiência de horas trabalhadas, os desocupados e a força de trabalho potencial. Para comparação, antes da adoção das políticas de austeridade no Brasil (o que ocorreu a partir de 2015), havia no país 15,3 milhões de subutilizados no segundo trimestre de 2014, quase a metade do número hoje. A análise desse indicador composcomposto revela que, à dessemelhança do que se observa em mercados estruturados,
no Brasil existe uma ampla gama de situações que não podem ser adequadamente mensuradas pelo binômio emprego/desemprego. Aliás, o grande aumento do total de desocupados (+101%) no Brasil desde 2015, início da crise econômica – 6,4 milhões de pessoas em dezembro de 2014 para 12,9 milhões em junho de 2018 –, foi acompanhado pelo aumento do subemprego e do desalento, sintomas dos tempos presentes. O desalento chegou a 4,8 milhões no segundo trimestre de 2018, ponto mais alto da série histórica. histórica . De dezembro de 2014 a junho de 2018, o número de trabalhadores em situação de subemprego aumentou 38%, e a força de trabalho potencial, 91%. Entretanto, a reforma prometia, além de reduzir a desocupação e o desalento, gerar novos postos de trabalho. Segundo o Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (Caged), o saldo de emprego formal entre novembro de 2017 e junho de 2018, período de vigência da reforma, é de 3.226 postos. Já o saldo de geração de empregos intermitentes é de 22.901, e de postos em tempo parcial, de 12.507. A PnadC revela também uma degradação do mercado de trabalho, ex pressa na redução em 10,1% do total do emprego com carteira assinada no Brasil, passando de 36,5 milhões para 32,8 mi lhões entre outubro, novembro e dezembro de 2014 e abril, ma io e junho de 2018, ponto mais baixo da série histórica. histórica . Entre o quarto trimestre de 2014 e o segundo trimestre de 2018, houve recuo da ocupação, que passou de 92,9 milhões para 91,2, representando uma queda de 1,8% no período e aumento no total de empregadores (10,1%), dos trabalhadores por conta própria (6,0%), do emprego sem carteira (4,8%) e do trabalho doméstico (4,8%). E é bom lembrar que os argumen-
tos de “modernização” do trabalho para retirar direitos são os mesmos utiliz ados no século XIX, que geraram sociedades pauperizadas e violentas. Na mesma linha, a reforma agrava problemas históricos brasileiros, como alto desemprego e informalidade, degradação da qualidade dos postos de trabalho formais, grande peso do desemprego oculto por situações de trabalhos precários ou desalento, que acabam empurrando os desempregados para a inativ idade. A partir da reforma tem ocorrido uma substituição de ocupações mais estáveis, como emprego por tempo indeterminado, por ocupações em tempo parcial e contratos intermitentes, PJs, terceirizados etc. Em suma, o impacto real da reforma trabalhista não se deu sobre o desemprego, que persiste, e sim nos postos de trabalho formais, que estão sendo paulatinamente substituídos por contratos precários. *Euzébio Jorge Silveira de Souza é mes-
tre em Economia Política pela PUC-SP, doutorando em Desenvolvimento Econômico na Unicamp, presidente do Centro de Estudos e Memória da Juventude (CEMJ) e conselheiro do Conselho Nacional de Juventude (Conjuve); Ana Luíza Matos de Oliveira é professora visitante da Flacso-Brasil e economista pela UFMG, mestra e doutoranda em Desenvolvimento Econômico na Unicamp; e Barbara Vallejos Vazquez é mestre em Desenvolvimento Econômico pela Unicamp, graduada em Ciências Sociais pela USP, técnica do Dieese e professora da Escola Dieese de Ciências do Trabalho. 1 Essa política de austeridade teve e tem profundos impactos no mercado de trabalho e nos gastos sociais, e é analisada no estudo “Austeridade e retrocesso: impactos sociais da política fiscal no Brasil”, Brasil Debate e Fundação Friedrich Ebert, São Paulo, ago. 2018. Disponível em: .
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EM FACE DOS OBJETIVOS DAS ESTATAIS
O discurso da privatização As tragédias de Mariana e da Ponte Morandi, que desmoronou recentemente na Itália, para citar apenas dois casos, expõem as diferenças de prioridades entre os distintos modelos de gestão. São calamidades que poderiam ter sido evitadas se a segurança tivesse sido considerada mais importante do que o lucro a curto prazo POR ADHEMAR MINEIRO, CLOVIOMAR CARARINE, FERNANDO AMORIM TEIXEIRA, GUSTAVO TEIXEIRA, IDERLEY COLOMBINI NETO E PAULO JÄGER*
discussão sobre a privatização das empresas estatais brasileiras, de forma geral, tem sido realizada de forma maniqueísta: um lado argumenta que o setor público é eficiente, e o outro, que é ineficiente; uma parte afirma que as empresas dão lucro, a outra, que causam prejuízo ao Estado; uma parcela parc ela diz que a venda de ativos públicos resolve o problema de déficit nas contas públicas, enquanto a outra proclama o contrário. O discurso da superioridade do desempenho do setor privado em relação ao público e dos prejuízos causados pelas estatais tem carg a ideológica pesada e desconsidera o que essas empresas representam para o país. As estatais desempenham papel fundamental no desenvolvimento da sociedade e são, ao mesmo tempo, mecanismo de política econômica e externa, já que podem desenvolver funções importantes na geopolítica internacional. E isso porque são essas empresas que viabilizam grandes investimentos de longo prazo; oferecem serviços essenciais à vida; asseguram um nível de concorrência adequado (oferta e preço) em mercados concentrados; investem em ciência, tecnologia e inovação; atuam como instrumento de políticas anticíclicas; asseguram o controle de bens escassos que são elementos essenciais para o conjunto da estrutura produtiva; atuam em nome do interesse e da soberania nacionais; e tomam decisões empresariais orientadas pelo interesse coletivo, e não só pelo lucro. Muitos setores de atividade econômica, em função de características intrínsecas, precisam de altos investimentos com longo prazo de maturação, como ocorre com a construção de estradas e ferrovias. Em muitas situações, o investimento não interessa à iniciativa privada, mas é fundamental para o desenvolvimento econômico e social de uma região e, por isso, a sociedade decide arcar com os custos. Existem ainda serviços essenciais à vida – como captação, tratamento e distribuição da água e geração, transmissão e distribuição de energia elétrica – que, sob pena de colocarem em risco a economia do país e a sobrevivência
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da população, não podem ser tratados como uma mercadoria qualquer. A Constituição Constituição brasileira brasileira define o fornecimento de uma série de bens e serviços como propriedade/competênpropriedade/competência do Estado – União, estados e municípios. Entre eles, estão as jazidas e demais recursos minerais; potenciais de energia elétrica; tratamento e distribuição de água e coleta de esgoto; gestão dos recursos hídricos; infraestrutura aeroportuária; serviços e instalações nucleares; serviços de tra transporte; nsporte; e serviços postais. Para assegurar a oferta e preços adequados, é preciso considerar considerar que alguns algu ns setores têm estrutura de mercado muito concentrada: quando não são mono-
pólios naturais, são segmentos em que há poucos participantes com expressivo poder de mercado (oligopólios), principalmente em função de barreiras à entrada de novos atores. Essa é uma razão adicional para que o Estado tenha participação nesses mercados. mercados. Empresas e centros de pesquisa estatais são fundamentais para economias modernas, pois realizam investimentos em projetos de ciência, tecnologia e inovação, pouco atrativos à iniciativa privada, uma vez que requerem longos períodos para pesquisa e desenvolvimento e se caracterizam por elevada incerteza. Assim, os recursos destinados por empresas estatais são decisivos em qualquer pro jeto de desenvolvimento que almeje a redução da dependência tecnológica de outros países. A atuação e os investimentos estatais também podem ser fatores de estabilização econômica, do nível de emprego e da renda, à medida que, por não obedecerem apenas à lógica de mercado e lucro, lucro, asseguram u m mínimo de expansão da demanda agregada, atuando como instrumento de políticas anticíclicas. Além disso, disso, bens escassos e que que são são insumos essenciais para o conjunto da estrutura produtiva, em especial petróleo, gás e derivados, são estratégicos para o desenvolvimento econômico e social. Os poucos países que detêm grandes reservas e competência para explorá-las procuram protegê-las e utilizá-las da melhor maneira possível. Importante lembrar que as estatais diferem das empresas privadas na medida em que, pela própria natureza, devem tomar decisões orientadas pelo interesse coletivo, e não apenas por critérios econômico-financeiros. No debate sobre privatização, a questão do lucro diante do interesse coletivo merece muita atenção. As tragédias de Mariana, com o rompimento da Barragem de Fundão, erguida pela Samarco, subsidiária da Vale (Vale do Rio Doce, enquanto era estatal), empresa privatizada nos anos 1990, e da Ponte Morandi, também sob controle privado, que desmoronou recentemente na Itália, para cita r apenas dois casos, ex-
põem as diferenças de prioridades entre os distintos modelos de gestão. São calamidades que poderiam ter sido evitadas se a segurança tivesse sido considerada considerada mais i mportante do que o lucro a curto prazo. Não à toa, hoje duas tendências são observadas no mundo: 1) em nome do interesse e da soberania nacionais, vários países têm adotado medidas de restrição ao investimento estrangeiro em setores estratégicos. A China é um exemplo. Por meio das grandes empresas estatais, o país tem aplicado uma política de investi mento em nível mundial; 2) é enorme o número de casos de reestatização dos serviços públicos (835 casos) para resolver os problemas de ineficiência da gestão privada no fornecimento dos serviços à população.1 A análise de experiências ex periências em países desenvolvidos mostra a v iabilidade de diferentes tipos de gestão no setor público, com controle social, que reduziram acentuadamente problemas relacionados à corrupção e à apropriação indevida por i nteresses privados. É possível gerir empresas estatais de forma eficiente, sob a perspectiva do i nteresse público. Por fim, dado o caráter público, as empresas estatais estão sujeitas à influência dos grupos políticos que ocupam diferentes di ferentes esferas de poder, o que torna imprescindível o desenvolvimento de mecanismos que aprimorem gestão, controle e participação social, e, consequentemente, garantam maior engajamento da sociedade civil organizada. *Adhemar Mineiro, Cloviomar Cararine, Fernando Amorim Teixeira, Gustavo Teixeira, Iderley Colombini Neto e Paulo Jäger
são técnicos do Dieese e componentes do grupo de estudos da entidade que analisa a questão das estatais. Texto produzido com base na Nota Técnica 189 do Dieese, “Empresas estatais e desenvolvimento: considerações sobre a atual política de desestatização”, disponível em: . 1 Ver Transnational Institute (TNI), Reclaiming Public Services: How cities and citizens are turning back privatization, 2016. Disponível em:
en/publication/reclaiming-public-services>.
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SAÚDE
SUS pós-2018: a caravana passa? Demandas empresariais como prontuário único, organização de regiões de saúde e coordenação do cuidado pularam, sem mediação, das páginas de documentos de grandes grupos econômicos setoriais para as de partidos políticos. O que não entrou na agenda empresarial foram as associações causais entre saúde e desigualdade POR LIGIA BAHIA*
istemas universais de países europeus, que inspiraram a formulação do Sistema Único de Saúde (SUS), estão sendo questionados, mas não desmontados. A crise econômica de 2008, políticas de austeridade e a vitória eleitoral de coalizões de centro-direita e direita em países europeus e nos Estados Unidos abalaram, mas não erodiram, os alicerces da concepção de garantia de direito independente da contribuição pecuniária de i ndivíduos e famílias. Por lá, houve mudanças, mas também resistência. Talvez, a consequência mais dramática da reedição das críticas aos sistemas universais tenha sido a absorção de concepções conservadoras por instituições políticas e políticos influenciados por agências como o Banco Mundial, em nações como o Brasil. A comemora ção dos setent a a nos do sistema nacional de saúde inglês (NHS), criado em 1948, tem sido marcada por polêmicas que chegam aqui atrasadas e deturpadas. O centro de gravitação do debate internacional é a sustentabilidade de sistemas públicos de países de renda alta em tempos de inovações terapêuticas e cri se econômica. A interrogação concentra-se em torno dos limites da distribuição, da natureza e da carga dos impostos necessários para financiar o acesso universal, inclusive para tratamentos muito caros. Há consenso sobre a necessidade de aumentar o financiamento. Parlamentares ingleses usam o símbolo do NHS na lapela e Theresa May anunciou um aporte de mais 20 bil hões de libras esterlinas por ano até 2023. No Brasil, os trinta anos de SUS não motivaram declarações ou eventos oficiais. Pairam no ar acepções ideológicas sobre as virtudes do mercado para alocar eficientemente recursos para atenção à saúde. A atenção à saúde pode ser mercadoria, é óbvio, contanto que não seja social, política e moralmente mediada. Tal como em outros mercados, para um dado preço, a oferta pode aumentar ou diminuir e inovações tecnológicas tendem a deslocar a curva para a di-
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reita, ainda que seja importante ressalvar casos de doenças para as quais o aumento da assistência e dos cu stos será inócuo. Ocorre que não foi assim que as sociedades ocidentais organizaram suas instituições. Na maioria das nações, a saúde, ao lado de outras políticas sociais, compõe um espaço “desmercantilizado”. Ações de saúde têm custos, mas não são necessariamente mercadorias. Uma mercadoria para ser adquirida requer renda e depende do preço. A oferta pública pública de serviços de saúsaúde permite que pessoas os utilizem de acordo com necessidades, e não com a capacidade de pagamento. Existem duas dimensões envolvidas com políticas de saúde. A primeira é normativa e ideológica; diz respeito à distribuição (quanto e de que poder, renda, riqueza). Igualdade, eficiência e l iberdade são fundamentos gerais, mas seus pesos variam de acordo com distintos posicionamentos. Liberais valorizam a liberdade, e socialistas, a igualdade. O segundo enfoque é técnico. A alocação realiz ada pelo mercado não é certa ou errada, boa ou má. Similar mente, a intervenção governamental pode ser muito eficiente ou não. Uma ambulância da prefeitura não é mercadoria e, se atende muitos casos, tenderá a ser mais eficiente do que um veículo semelhante restrito ao chamado de pessoas que podem pagar. Obviamente, o argumento estimula comentários: depende do salário do motorista, da equipe de saúde. A resposta é: depende dos custos, mas também dos objetivos do sistema de saúde. Os resultados em termos de melhoria de condições de saúde serão diferentes se o transporte de pacientes for organizado mediante critérios de gravidade clínica ou maior capacidade de pagamento. No primeiro caso, a maioria da população terá di reito a aumentar as chances de sobrevida. Inversamente, o impacto das ambulâncias privadas nos indicadores populacionais tenderá a ser inexpressivo. Em sistemas de saúde universais, os impostos distribuem rendimentos ao longo da vida dos indivíduos, e não apenas entre ricos e pobres. Servem
também como um “cofrinho” para sustentar necessidades de saúde ao longo do ciclo de vida, que são mal ou não supridas por mercados, caracterizados por informações assimétricas e elevados custos de transação. Infelizmente, não são esses os termos que predominam no debate atual sobre o SUS. Sob um suposto e disseminado pragmatismo teríamos dois sistemas: o SUS e outro para “os que podem pagar”. O SUS propiciaria cobertura para 65% da população pelas unidades de saúde da família, e os planos de saúde e assistência ambulatorial e hospitalar, para cerca de 27%. O passo seguinte seria a integração do público com o privado: o público fica com a atenção básica; o privado, com a “média complexidade”; e a “alta” seria dividida entre os dois. Essa proposta de integração, apresentada em 2015 por entidades empresariais como agenda inovadora, influencia políticas governamentais e diversas plataformas eleitorais em 2018. Demandas empresariais como prontuário único, organização de regiões de saúde e coordenação do cuidado pularam, sem mediação, das páginas de documentos de grandes grupos econômicos setoriais para as de part idos políticos. O que não entrou na agenda empresarial foram as associações causais entre saúde e desigualdade. A cobertura para 95% dos brasileiros seria aprimorada. Contudo, não teríamos um sistema de saúde capaz de responder efetivamente às epidemias de obesidade, prematuridade, aumento de cânceres, altas de taxas de homicídios e arboviroses. Simplificadamente, teríamos cobertura e não necessariamente políticas para reduzir, controlar, eliminar riscos ou sequer realizar diagnósticos precoces. precoces. Saúde é muito mais que médico, remédio, hospital hospital e ambulância. É t rabalho digno, salário mínimo generoso, emancipação e também redes assistenciais. Os povos indígenas são quem adoecem e morrem mais precocemente. Sem a demarcação das terras indígenas, essa brutal e secular injustiça será preservada e reproduzida.
Agrotóxicos e transgênicos não dizem respeito apenas ao “que está na nossa, na minha mesa”, mesa”, e sim à alavancagem do agrobusiness e e ao extermínio de indígenas em pleno século XXI. Quando o conceito ampliado de saúde e o SUS foram incluídos na Constituição de 1988, sabíamos que éramos um país não rico em PIB, em renda; ex atamente por isso precisávamos lutar por direitos sociais universais. Consideramos que ser pobre não era destino, que a desigualdade deve ser combatida, reduzida. As gra ndes conquistas do SUS estão relacionadas com políticas universais que ousaram questionar padrões conservadores, injustos e discriminatórios de sociabilidade. Não conseguiremos controlar ou reduzir as violências, a obesidade, sob o ideário errôneo segundo o qual os gordos são preguiçosos, “mal-educados” nutricionais e que “bandido bom é bandido morto”, ou ainda a versão “soft”, a de que é necessário “pacificar” os supostos espaços-população que guerreiam entre si, porque neles habitam seres irracionais que precisam que as forças policiais os civili zem. O sentido (significado e direção) do SUS constitucional é o de projeto democrático. Foi a reinterpretação das forças econômicas e políticas conservadoras que reduziu o sistema universal para o convênio entre governo e setor privado. Portanto, o equacionamento das políticas públicas para o setor público e para o privado não é trivial; requer reconhecimento sobre a existência de grandes gr upos econômicos setoriais e seus movimentos, não apenas de concentração de capitais, mas também de influência na agenda política. Narrativas para serem realmente disputadas não podem ser lendas, discursos laudatórios; devem condensar valores, posicionamentos políticos e, sobretudo, sobretudo, práticas. *Ligia Bahia é professora da Faculdade de
Medicina da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e integrante da Comissão de Política, Planejamento e Gestão em Saúde da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco).
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EDUCAÇÃO
Entre histéricos, histéricos, demagogos e financistas Escola sem Partido, militarização dos colégios estaduais e entrada entrada do grande capital na rede privada. O que importa é que, ao contrário dos filhos das famílias mais ricas, os jovens pobres estejam sujeitados à disciplina mais restrita, aquela necessária a quem vai se inserir na sociedade em posição subalterna POR JOSÉ RUY LOZANO* s e g r o B o i a C ©
“O
conhecimento não só amplia como multiplica nossos dese jos. Portanto, o bem-estar bem-estar e a felicidade de todo Estado ou Reino requerem que o conhecimento dos trabalhadores pobres fique confinado dentro dos limites de suas ocupações e jamais se se estenda estenda [...] [...] além além daquilo daquilo que que se relaciona com sua missão. Quanto mais um pastor, um arador ou qualquer outro camponês souber sobre o mundo e sobre o que lhe é alheio ao seu trabalho e emprego, menos capaz será de suportar as fadigas e as dificuldades de sua vida com alegr ia e contentamento.” contentamento.” Esse trecho foi extraído de um famoso compêndio de filosofia moral do século XVIII: A fábu fábula la das abelhas: abelhas: vícios vícios priva priva-dos, benefícios públicos , de Bernard de Mandeville (1670-1733). A lição de Mandeville Mandevil le volta a fazer sentido no momento atual da educação brasileira, cuja herança de inovação se depara com diversas ameaças. Inventariamos algumas no texto que se segue. ESCOLA SEM PARTIDO
Boletim de ocorrência. Esse é um dos links presentes no site do movimento Escola sem Partido, e o nome já anuncia, ou denuncia, como seus integrantes veem a educação. Caso de polícia. Acessando Acessando a página, o leitor é convidado a apontar episódios de pretensa doutrinação ideológica perpetrada por docentes de escolas e universidades, ou até mesmo fora de sala de aula, em opiniões nas redes sociais, por exemplo. O discurso persecutório é evidente, e as “acusações” abundam, num linguajar grotesco que denuncia desde a defesa dos direitos humanos básicos, inscritos na Constituição, até a análise das condições de trabalho na Revolu-
ção Industrial, presente em livros de História, como opiniões de esquerda. Nada mais partidarizado que o Escola sem Partido. A pretexto de expurgar um suposto viés polít político ico à esquerda dos professores, seus militantes querem extirpar da escola sua institucionalidade pública, de espaço de debate e formação acima e além das crenças familiares e valores religiosos de caráter privado. O verdadeiro pavor do Escola sem Partido é a inserção das crianças no mundo fora da família, que começa na escola. O que o movimento combate é a ideia de escola como espaço público, onde crianças e jovens vão necessariamente ao encontro da diferença, transcendendo a vida privada.
sileiros) adotam metodologias ativas e investem fortemente na formação de professores, para que as aulas se jam dia logadas, baseadas em problemas e desenvolvedoras do raciocínio e do pensamento crítico, nos colégios militarizados nada disso tem vez. O professor fala, o aluno limita-se a ouvir e anotar. Evidente que o milagre dos colégios militares tradicionais não vai se repetir. Neles, há seleção prévia e os alunos têm vocação para a carreira castrense. O que importa é que, ao contrário dos filhos das famílias mais ricas, os jovens pobres estejam sujeitados à disciplina mais restrita, aquela necessária a quem vai se inseri r na sociedade em posição subalterna.
MILITARIZAÇÃO NAS REDES ESTADUAIS
A publicação publicação do último Atlas da violência no Brasil expõe a situação dramática na segurança pública. As séries estatísticas, incluindo a impressionante cifra de homicídios, não escondem a principal vítima dos crimes contra a vida: o jovem pobre, morador das periferias dos grandes centros urbanos. Famílias assustadas são alvo fácil da mais recente solução simples – e errada err ada – para o complexo problema da violência juvenil, correlato da evasão escolar: a militarização dos colégios estaduais. A ideia ideia consis consiste te em coloc colocar, ar, na na direção e nas coordenações dos colégios estaduais, oficiais da Polícia Militar. Com sua autoridade, restaurariam a disciplina, eliminariam os desvios e melhorariam o rendimento dos alunos. Os indicadores dos colégios militares brasileiros seriam a prova da eficiência. Enquanto os países com os melhores indicadores de educação (e os mais caros colégios particulares bra-
A ARTICULAÇ ÃO DO GRANDE CAPITAL
O Ministério da Educação é hoje campo de atuação de fundações de direito privado, alimentadas pelo financiamento de grandes grupos econômicos. Fundação Lehman, Instituto Península (Abílio Diniz), Itaú Cultural e Todos pela Educação são alguns dos braços que articulam políticas públicas educacionais dentro do governo. A reforma do ensino médio e a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) nasceram das demandas dessas entidades. Não se nega a situação precaríssima do segmento médio da educação básica, cuja evasão chega à metade dos alunos matriculados, tampouco a necessidade de um mínimo curricular nacional, importante fator de equidade. A condução de tais temas, no entanto, tem por objetivo mais a adequação da escolaridade a parâmetros supostamente objetivos de quantificação e preparação de mão de obra do
que às condições de produção autônoma do conhecimento. Simultaneamente, grupos educacionais gigantescos, como a Kroton, controladora de dezenas de faculdades e grande vitoriosa na expansão das matrículas no ensino superior privado via Fies, avança no nicho de mercado da educação básica. Recentemente, a Kroton adquiriu a Somos Educação, que agrega colégios, cursos pré-vestibulares como o Anglo e as editoras Saraiva, Ática e Scipione, que têm como principal fonte de receita a venda de livros didáticos para o governo. Empresas privadas sustentadas pelos fundos públicos: na educação, essa constante brasileira se repete. Para uma empresa como a Kroton, tanto a BNCC como a reforma do ensino médio podem representar verdadeiras minas de ouro. Seus técnicos já estão elaborando as “soluções” necessárias, com liv ros adequados às novas novas normas e programas de ensino a distância para a parte flexível do nível médio, vendidos a preço módico às escolas de todo o país. A histeria h isteria aparece na míd ia, a demagogia ganha o noticiário, mas o capital trabalha mais discretamente. Enquanto os palhaços ocupam o palco e distraem o público, os diretores do espetáculo fazem seu trabalho discreta e minuciosamente. Como diria Mandeville, nada de desejos: apenas o necessário ao trabalho... e ao lucro. *José Ruy Lozano é sociólogo, autor de li-
vros didáticos, conselheiro da Comunidade Reinventando a Educação (Core – www.coreduc.org) e coordenador pedagógico geral do Colégio Nossa Senhora do Morumbi – Rede Alix.
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SEGURANÇA
Vi Violência, subjetividades e projetos de vida e cidadania no Brasil Mesmo diante das evidências dos limites dessa política, alguns candidatos seguem prometendo mais do mesmo remédio-veneno. Defendem só construir prisões e endurecer as penas; defendem e louvam a violência como resposta à violência, em uma vendeta que parece longe de acabar POR BRUNO PAES MANSO, RENATO SÉRGIO DE LIMA E SAMIRA BUENO*
as salas de aula do ensino médio da rede pública, professores costumam reclamar dos desafios para prender a atenção dos jovens. Numa mistura de ceticismo e fatalismo, muitos alunos preferem abandonar a escola para ganhar dinheiro e se sustentar, como se soubessem dos obstáculos que teriam para escapar do futuro insosso que os espera. É como se as escolas não fossem capazes de despertar em muitos jovens a capacidade de sonhar; não fossem capazes de interagir com múltiplas moralidades e estimular um novo padrão ético pautado na cidadania e na vida como valor público supremo. Escolas que poderiam servir como portas de entrada da rede de acolhimento, atendimento social e cidadania isolam-se em seus edifícios cada vez mais vilipendiados e ameaçados pelo crime, que parece seduzir principalmente as subjetividades masculinas em formação, oferecendo a possibilidade de uma vida de aventura, insubmissão, consumo, satisfação desenfreada das pulsões e desejos, e luta contra um sistema que oprime e humilha, mesmo que ao preço de morrer jovem ou de perder a liberdade numa prisão lotada. Como convencer os adolescentes a duvidar das ilusões e promessas da vida no crime? Como despertar nesses jovens sonhos de contribuir para o bem-estar coletivo do mundo em que vivem? Como gerar empatia diante de tantas injustiças e desigualdades? Como fazer frente ao imaginário social que divide a sociedade entre “cidadãos “cidadãos de bem” e “bandidos” e aceita que estes últimos sejam matáveis? Em vez de despertarem sonhos e vocações, as instituições passaram a agir como se estivessem em conflito aberto contra os jovens pobres. Em 1990, o país tinha 90 mil presos, total que passou para 726 mil em 2016. Mesmo com a escalada vertiginosa de encarceramento, que dependeu também de investimentos crescentes no policiamento ostensivo militarizado nos bairros pobres, a situação degringolou.
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A prisão passou a ser uma das poucas políticas públicas universais para os jovens brasileiros pobres e negros, independentemente de ela ser hoje o principal celeiro do crime e da violência no país. Vivemos em um t ranse, em que se acredita que o veneno que nos sufoca como nação democrática é o remédio para nossos males. Em 2005, no primeiro levanta mento feito pelo Anuário Brasileiro de Segurança Pública, o país tinha registrado 40.975 homicídios. Em 2017, foram 63.880 casos. Isso para não falar dos mais de 60 mil registros de estupros e das mais de 220 mil ocorrências de violência doméstica contra mulheres. As prisões superlotadas, em vez de controlarem o crime, se tornaram locais de articulação e formação de redes para as lideranças criminais. O rápido fortalecimento e espraiamento das facções dentro e fora dos presídios mudou a cena do crime no Brasil, ampliando o mercado de drogas e de armas em escala inédita. Mesmo diante das evidências dos limites dessa política, alguns candidatos seguem prometendo mais do mesmo remédio-veneno. Defendem só construir prisões e endurecer as penas; defendem e louvam a violência como resposta à violência, em uma vendeta que parece longe de acabar. Poucos olham para os c ustos econômicos e sociais dessas opções político-ideológicas. As incursões cotidianas das polícias militares nos bairros pobres, prendendo muitas vezes usuários de droga ou pequenos vendedores, vendedores, geram violência desnecessária e excessiva. Um policial é morto todos os dias no país. Em sentido inverso, as polícias brasileiras matara m ao menos 14 pessoas por dia em 2017 e, mesmo que entre estas haja casos legítimos, pouco se divulga acerca das investigações e das razões que motivaram essas mortes. Em vez de controlar o cri me e a violência, isso aumenta a sensação de raiva e de impotência daqueles que passam a se enxergar como inimigos.
Se a educação é a maior “arma” da cidadania, a frustração ajuda a sabotar a tarefa dos educadores de abrir portas para o futuro dos adolescentes. A segurança passa a ser vista como tema exclusivo das polícias e vira presa fácil de discursos pautados no medo e na exploração da desesperança e na falta de perspectivas. O mata-mata é estimulado pela covardia política e pela valentia retórica de quem se arvora porta-voz da virtude. Nas prisões lotadas, as lideranças criminais se aproveitam para engrossar suas fileiras, criando um discurso sedutor. “O crime fortalece o crime” é um dos motes dos grupos crimi nosos. Como o sistema os enxerga como inimigos, sujeitos a serem exterminados ou trancafiados sem direitos, cabe se organizar para ganhar din heiro no crime e “bater de frente” com o sistema. Uma política de segurança precisa desmontar essa máquina de guerra e de encarceramento que ajudou a promover a expansão do crime e fortaleceu as facções. Para isso, as polícias devem agir com estratégia e foco, de forma inteligente, para fragilizar economicamente as tiranias armadas financiadas pelo dinheiro ilegal, que gera violência no tráfico de drogas, nas milícias e nos grupos de extermínio que matam e cobram para oferecer proteção, entre outras ativ idades. A vitalidade vital idade de democracias modernas depende da capacidade do Estado de preservar o monopólio do uso legítimo da força. A engrenagem de guerra, além de produzir revolta nos jovens perseguidos, vem cria ndo grupos paramilitares que, ao terem carta branca para matar, acabam se voltando contra o Estado em defesa de seus interesses financeiros e corporativos. Mais do que o esforço brutal de prender prender em flagrante nos bair ros pobres, os alicerces estratégicos e financeiros dessa ativ idade devem ser fragilizados. Isso depende do compartilhamento de informações entre as instituições policiais e de justiça desde Polícia Militar e Civil, passando
pelo Ministério Público, secretarias de administração penitenciária, instituições de investigação econômica e penal, em âmbito estadual e federal. Quem são os chefes e grandes finanfina nciadores, onde o dinheiro é depositado e lavado, de onde vêm as mercadorias ilegais, quais quai s são as conexões com autoridades, onde compram armas. A capacidade de sedução das facções e quadriquadr ilhas vai diminuir com a queda do lucro gerado nessas atividades. Para tanto, a batalha urgente a ser travada é aquela para emperrar a engrenagem financeira do crime. Não precisamos de mais guerras para alimentar os senhores da morte, encarcerar e/ou exterminar jovens pobres e negros. Mais importante, contudo, é a disputa das subjetividades masculinas na transição da adolescência para a vida adulta. O desafio é liderar e apontar caminhos para esses corações e essas mentes. Para construir sonhos e seduzir, as instituições do Estado devem abrir portas, estimular a vontade de compartilhar uma vida comum e solidária. Isso é feito com escola, arte, cultura, esporte, lazer, saúde de qualidade, debates, conversas, incluindo aqueles que um dia se iludiram com as promessas do crime até perceber que estavam sendo enganados. Enganam-se aqueles que acreditam que a autoridade e o poder são exercidos com o uso desmedido da violência. Conseguem liderar e forta lecer numa democracia aqueles que percebem que, na verdade, estão construindo sonhos e disputando o futuro.
*Bruno Paes Manso é doutor em Ciência Política pela USP, jornalista e pesquisador do Núcleo de Estudos da Violência (NEV-USP); Renato Sérgio de Lima é doutor em Sociologia pela USP, professor da FGV-Eaesp e diretor presidente do Fórum Brasileiro de Segurança Pública; Samira Bueno é doutora em Administração Pública e Governo pela FGV-Eaesp e diretora executiva do Fórum
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AGRICULTURA E MEIO AMBIENTE
Diga-me o que propõe e eu lhe direi quem você é Nenhum dos programas dos presidenciáveis questiona a importância da agropecuária. PT e Rede seguem essa toada. O programa de Ciro, apesar de dedicado ao fortalecimento da indústria, não deixa de citar a importância do agro e traz Kátia Abreu como vice. O programa de Alckmin diz em poucas frases tudo o que o setor quer ouvir, como o aumento dos recursos para o Plano Safra POR SERGIO LEI TÃO E JAQUELINE JAQUELINE FERREIR A*
Q
uem leva proposta de candidato a sério no Brasil? Quem lê programa de governo para decidir voto? Ninguém, seria a resposta imediata e apressada. Afinal, parte-se do pressuposto de que em palavra de político não se deve confiar e que suas promessas são como amor de Carnaval. Um acaba na Quarta-Feira de Cinzas; a outra dura somente até o dia da eleição. Esse senso comum merece uma relativização. Ao contrário do que muitos acreditam ser o pouco apreço dos brasileiros por fazer escolhas políticas alicerçadas em conteúdo, a verdade é que uma proposta ou programa, se não elege, pode fazer a diferença para derrotar um ca ndidato. O exemplo recente disso foi o caso do candidato Celso Russomano na eleição para prefeito da cidade de São Paulo em 2012, quando propôs propôs que a tarifa tar ifa dos ônibus fosse estabelecida de acordo com a distância percorrida. A proposta poderia fazer todo o sentido, pois, como em um táxi, quanto mais se roda, mais cara é a corrida. O candidato só não avaliou que a população de menor renda é quem ficaria no prejuízo, justamente por ser a que mora longe e percorre as maiores distâncias. Quando ele se deu conta do erro, já tinha perdido uma eleição que estava quase ganha. As propostas em um programa de governo e as promessas que vão sendo anunciadas ao longo da campanha na desesperada tentativa de melhorar os percentuais nas pesquisas, bem como o desmentido daquilo que não pegou bem – que é o descarte da verdade que não interessa mais ao candidato –, fazem parte do arsenal para disputar o voto. Esse jogo compreende, principalmente, questões relevantes para a sociedade, como aquelas que envolvem valores ou as voltadas para setores importantes da economia e com grande poder e influência, como é o caso do agronegócio.
O debate apressado da eleição, somado a propostas simplificadas sobre temas relevantes, estimula o aparecimento de clivagens que, se não forem bem resolvidas, podem implicar paralisia pela falta de um consenso mínimo de como solucionar os problemas pós-eleição. Além disso, por mais paradoxal que isso seja, emulando Nelson Rodrigues, que dizia que toda unanimidade é burra, pode estimular a predominância de um projeto majoritário e su focar a possibilidade de are jarmos a visão do país sobre seu futuro. A forma como o setor agropecuário e sua interface com o meio ambiente são tratados pelos candidatos é um bom exemplo nesse sentido. Em que pese a maior ou menor presença de propostas ao setor nos programas, é preciso registrar que nenhum deles questiona a importância da agropecuária para nossa economia. economia. Tanto o programa do PT como o da Rede seguem essa toada. O programa de Ciro Gomes, apesar de se dedicar, em sua maior parte, às propostas de fortalecimento da indústria, não deixa de citar a importância do agro e traz como vice-presidente ninguém mais, ninguém menos do que Kátia Abreu. O programa de Alckmin, por sua vez, diz em poucas frases tudo o que o setor quer ouvir, como o aumento dos recursos para o Plano Safra, e traz em sua chapa presidencial a senadora Ana Amélia, uma legítima representante do agro. Os programas de Lula, Marina e Ciro afirmam que não é mais preciso desmatar para a agricultura do país expandir sua produção. Lula e Marina falam explicitamente em zerar o desmatamento, enquanto Ciro, apesar de não usar esse conceito, afirma que o problema não é falta de espaço, mas de ordenamento no uso e ocupação das terras. Enquanto os três candidatos tentam superar a oposição entre a ampliação da produção agropecuária e o enfrentamento de questões ambien-
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tais associados ao setor, como o uso de agrotóxicos e o desmatamento, os programas dos candidatos Bolsonaro e Alckmin preferem ig norar tais questões e levantar propostas que mais agradam ao setor, sem o estabelecimento de quaisquer condicionantes para sua livre atuação. O programa do Bolsonaro é uma ode à sagrada propriedade privada e nos remete a um texto escrito com ti ntas do século XIX . Essa é uma ideia que já fora afastada pelas Constituições e leis dos países desenvolvidos, que admitem intervenções no domínio dos meios de produção, como é o caso da terra, justamente para propiciar o melhor funcionamento da economia, o que é do interesse do país, porque gera resultados para todos. O candidato propõe ainda uma mudança radical no que ele chama de gestão do espaço rural. A ideia é unir em um só ministério todas as políticas que interfiram no espaço rural, do crédito à gestão dos recursos naturais, que estariam espalhadas e “loteadas” em diferentes ministérios. Isso significa dizer que a gestão das unidades de conservação e demarcação de terras indígenas e quilombolas, por exemplo, estaria nas mesmas mãos de quem decide sobre o crédito rural – obviamente, algum representante do agro, que tem força suficiente para indicar o nome para compor ministérios e contrariar contrariar os legítimos interesses de indígenas e quilombolas pelo reconhecimento de seus direitos. A pergunta que fica é: será que o setor gostaria de ter suas políticas arbitradas pelo Ministério do Meio Ambiente? Ambiente? Por sua vez, e sem muitos detalhes, Alckmin relaciona em um mesmo parágrafo a ampliação do Plano Safra e a garantia da paz e da segurança jurídica jurídica no no campo campo,, deixand deixando o a interpreinterpretação para o leit or. Por fim, todos os candidatos ressaltam a importância de investir em infraestrutura, como transporte de car-
ga e energia. Nesse quesito, o famoso licenciamento ambiental ambiental é visto como condição necessária e importante ou limitador das propostas. O programa do PT faz duras críticas à flexibilização das regras de licenciamento ambiental ambiental pelo governo Temer, indicando uma possível mudança em relação a esse ponto. Marina reforça a importância da consulta livre, prévia e informada aos povos indígenas e comunidades tradicionais impactadas. Ciro fala em aprimoramento das regras gerais de licenciamento ambiental, de modo a combinar a necessidade de investimento e preservação ambiental e a necessidade de utilizar outros instrumentos de política ambiental, como o zoneamento ambiental, para dirimir conflitos sobre o uso da terra. Já Bolsonaro deixa claro que o licenciamento ambiental tem sido um entrave para os projetos de infraestrutura, chamando-o de “barreiras intransponíveis”. Como solução, o candidato propõe que o licenciamento ocorra no máximo em três meses, uma solução mágica para um problema de extrema complexidade, que exige estudos técnicos e consulta aos interessados, o que leva tempo, goste o candidato ou não. Para Lula, Ciro, Marina e Alckmin, já está claro que não dá mais para para ignoignorar o Acordo de Paris, o desmatamento e os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável, por exemplo – compreensão compartilhada também por parte do setor agropecuário. Em direção oposta, Bolsonaro reforça a ideia de que a legislação ambiental é um entrave para o desenvolvimento, seguindo os passos de um certo presidente do Norte. Será que o Brasil e o agro que já deram um passo à frente voltarão para trás? *Sergio Leitão, advogado, é diretor executivo do Instituto Escolhas; Jaqueline Ferreira,
cientista social, é coordenadora do Instituto Escolhas.
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PERFIS DOS C ANDIDATOS ANDIDATOS
Discursos Discursos políticos políticos e disputa hegemônica Mais que uma análise objetiva das propostas, queremos dar destaque aos componentes estratégicos e emocionais que as candidaturas promovem em sua prática discursiva. A imprecisão e o apelo emocional ou moral das práticas discursivas, que poderiam ser criticados do ponto de vista racional dos programas, passam a ter sentido como mecanismos estratégicos de interpretaçãoda sociedade e seus sujeitos
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POR JORGE O. ROMANO, ALEX L. B. VARGAS, ANNAGESSE C. FEITOSA, PAULO A. A. BALTHAZAR, THAIS P. BITTENCOURT E YAMIRA R. S. BARBOSA*
A
dimensão do “político” procura reconstruir tanto a sociedade na qual vivemos quanto seus próprios sujeitos. No olhar de Ernesto Laclau e Chantal Mouffe,1 a luta política é sempre uma confrontação entre diferentes práticas e projetos hegemônicos antagônicos. O antagonismo é inerente ao político, e as questões políticas sempre envolvem escolhas entre alternativas muitas vezes opostas sobre a sociedade. Ao mesmo mesmo tempo, tempo, no mundo mundo de de hoho je há uma pluralidad pluralidade e de posições posições ocuocupadas pelos sujeitos. Suas identidades sociais são múltiplas, descentradas e deslocadas: estão em processo de reconstrução e abertas a diferentes articulações, sempre parciais e não definitivas. O discurso político tem a virtude, e o poder, de articular essas e ssas identidades múltiplas e conti ngentes dos sujeitos. O discurso político entendido como um conjunto articulado de marcos de interpretação da realidade funciona estruturando pensamento, fala e ações individuais e coletivas. Assim, a prática discursiva política – que inclui falas,
textos, performances e ações significativas dos sujeitos – é um dos principais meios de articulação de suas identidades múltiplas. Com esse referencial, procuramos olhar as eleições em curso por meio da análise dos discursos políticos de um conjunto das principais candidaturas – Marina, Bolsonaro, Lula, Alckmin, Ciro e Boulos – como um momento da disputa hegemônica que vem se travando no país. Mais que uma análise objetiva das propostas de seus programas de governo, queremos dar destaque aos componentes estratégicos e emocionais que as candidaturas promovem em sua prática discursiva. A imprecisão e o apelo emocional ou moral das práticas discursivas, que poderiam ser criticados do ponto de vista racional das propostas, passam a ter sentido como mecanismos estratégicos de interpretação da sociedade e seus sujeitos. Para caracterizar o discurso de cada candidatura analisamos um con junto significativo significativo de falas, textos e/ou e/ou performances expressos em eventos
públicos, declarações à imprensa, postagens nas mídias sociais, a ssim como os programas de governo propostos. Passemos a uma síntese dos casos. MARINA: A NOVA POLÍTICA
O discurso político de Marina, mulher, negra, 60 anos, candidata pela Rede Sustentabilidade, constrói uma autoidentidade autoidentidade que articu la a a mbientalista, a evangélica convertida, a política íntegra e ética, e a superação: de menina analfabeta num seringal do Acre a atual candidata. Seus antagonistas conservadores a veem como melancia: verde por fora, vermelha por dentro, pelo fato de ter sido petista. Para a esquerda, Marina é criticada pelo oportunismo político em razão de sua glorificação da Operação Lava Jato. Também há críticas tingidas de machismo ao desqualificá-la por sua fragilidade para o cargo que disputa. O discurso de Marina se constrói em torno da identificação de uma demanda e insatisfação latentes na sociedade brasileira: “A sociedade está indignada, insatisfeita com a política,
não se sente representada”. A “crise política” é o principal problema a ser superado no país, pois dela derivaria o conjunto de crises e problemas. Com base nesse diagnóstico, seu discurso discu rso nomina um “nós” “nós”,, sob o significante vazio2 da “nova políti ca”. ca”. A nova política torna-se o ponto nodal 3 de seu discurso, articulando em seu entorno uma cadeia de equivalências 4 que tenta preencher as principais demandas e insatisfações: “verdade, ética e confiança; legitimidade e credibilidade; protagonismo da sociedade; projeto de país, fim da reeleição; refundar a República; renovação e dignidade dign idade para a política”. O mecanismo de deslocamento de sentido dessas cadeias faz que, para aquele que escuta, um elo atualize os outros, conformando um campo semântico amplo que não necessita ser expresso em sua totalidade para ser apreendido em seu conjunto. Sendo a construção das identidades políticas sempre em oposição, o disc urso político de Mari na nomeia como par antagonista – o “eles” – por meio do significante vazio da “velha política”, ou
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“política de conchavos”, articulando elos negativos como: “berçário da corrupção, projeto de poder pelo poder, lógica patrimonialista, agenda de retrocessos, estelionato eleitoral, interesse de grupos privilegiados”. Como forma de mobilizar, é comum que os discursos façam uma reconstrução mítico-histórica do passado, que estaria sob ameaça ou perigo. Assim, Marina destaca o período de “33 anos da Constituição Federal de 1988, de consolidação das instituições públicas, direitos sociais e estabilidade política e econômica”. A emoção é acionada como forma de conquistar corações e mentes. No lançamento de sua pré-candidatura, bandeiras do Brasil nas cores do partido flamejam num teatro de arena, onde Marina se encontra ao centro, rodeada de seguidores com cartazes: “Não dá pra querer mudar e não mudar, muda r, #2018 chegou”. chegou”. Seus apoiadores acreditam que Marina é capaz de promover a chamada nova política, governando com “o que há de melhor na sociedade”, em que se incluem “empresários, acadêmicos, técnicos, políticos”, políticos”, independentemenindependentemente de partido ou orientação política.
tam de segurança no campo”. Num apelo que está sendo eficaz, segundo as pesquisas eleitorais, o discur so conclama os jovens que querem “subir na vida”, valorizando o “mérito”. Em síntese, o “nós” está conformado pelos “verdadeiros patriotas”. É no âmbito da dimensão moral que se deve perseguir o objetivo político de mobilizar – e armar – os “cidadãos de bem” e construir trui r uma nova ordem. No sentido inverso, “eles”, “esquerdistas”, distas”, o inim igo que articula o negativo e desprezível na sociedade é associado a “bandidagem, imoralidade e corrupção” e a grupos sociais específicos: “gays e homossexuais; mulheres; ativistas de direitos humanos protetores de traficantes e estupradores; defensores do desarmamento; indígenas, quilombolas, sem-terra sem-terra e terroristas do campo; invasores da propriedade privada, movimentos sociais e comunistas; cotistas, bolsistas e refugiados; i ntelectuais e jornalistas; socialistas e sociais-democratas, sociais-democratas, doutrinadores de Paulo Freire e Gramsci”. Em síntese, os “antipatriotas”. O passado idealizado que mobiliza Bolsonaro é o do “golpe militar, momento de ordem e progresso”. Em sua prática discursiva, a difusão repetida de imagens de sua recepção nos aeroportos do país carregado nos ombros por seus seguidores, portando uma ba ndeira brasileira, procura reafirmar sua condição de “mito” admirado pelo povo. O tom do discurso é principalmente emocional, direto, fundado no senso comum e particularmente agressivo. Justifica sua falta de resposta a nte questões específicas, alegando “não ser da área”, e sim “um capitão de Exército”, apesar de ter trinta anos de exercício parlamentar. Com seu desprezo ao intelectual, procura converter seu limite e preconceito em virtude, tendo êxito nessa empreitada: “Ele é honesto, é sincero, reconhece que não sabe tudo”. A aspiração do discurso político de de Bolsonaro é que o processo eleitoral seja dominado pelo moralismo, em que o “mito” representa o sentimento da “famí lia ordeira brasileira”, brasileira”, ancorado na “tradição” e na “propriedade”. Para ele, os recentes “governos democráticos esquerdistas aniquilaram a ordem, a moral e os avanços do período militar”, tornando necessária a “restrição dos d ireitos”, ireitos”, com repressão dos movimentos sociais por meio de seu governo: “liberal” economicamente e “forte” politicamente, com “autoridade” e “disciplinador”.
BOLSONARO: CIDADÃOS DE BEM, SEGURANÇA E MORAL
No discurso político de Bolsonaro, homem, branco, 63 anos, parlamentar por diversos mandatos, capitão do Exército reformado, candidato pelo PSL, ele se autodefine por possuir posições “em defesa defesa da famí lia, do direito à propriedade e da livre-iniciativa, contra a erotização infantil nas escolas e por um maior rigor disciplinar”. Muitos de seus seguidores admiram suas posições contra a homossexualidade e concordam que bandido bom é bandido morto. Para seus críticos, o destaque obtido por Bolsonaro é fruto do contexto no qual medo, ressentimento e raiva são estimulados, e os preconceitos e as posturas antirrepublicanas emergem, fertilizando o terreno para a propagação do fascismo. Em seu diagnóstico, o que explica e caracteriza a injustiça no Brasil são a crise de insegurança e, sobretudo, as crises ética e moral: “Nos últimos tri nta anos, o marxismo cultural e suas derivações, como o gramscismo, se uniram às oligarquias corruptas para minar os va lores da Nação Nação e da famíli a brasileira”. brasileira”. Com base nesse diagnóstico, o discurso delimita o “nós”, “cidadãos de bem”, bem”, articulados ar ticulados a “segura nça e moral; defesa da família, valores cristãos conservadores, Escola sem Partido; redução da maioridade penal e controle da natalidade; homens que valoriza m as armas, a polícia e os militares, e preferem as milícias às drogas ; proprietários que defendem a livre-iniciativa, em particular proprietários rurais e do agronegócio que necessi-
LULA: LULA LIVRE, O RESGATE DE UM BRASIL FELIZ
No discurso político de Lula, homem, branco, 72 anos, metalúrgico e dirigente sindical, duas vezes presidente do Brasil, candidato pelo PT em coligação com o PCdoB, a autoidentidade aponta para uma amálgama com
o povo brasileiro: “Não sou mais uma pessoa, sou uma ideia..., andarei pelos pés de vocês, pensarei pela cabeça de vocês... Eles não conseguirão prender as ideias e sonhos”. Tendo terminado seu segundo mandato com 87% de aprovação, seus críticos ressaltam que “ele enganou muita gente” e que “está embaralhando” o jogo democrático “mantendo sua ca ndidatura”. ndidatura”. Sua interdição política marca seu diagnóstico sobre o principal problema do país: “o golpe contra o povo”. “Lula preso fora das eleições” é a volta da exclusão social e econômica da maioria, com “o governo que só fala em corte e só corta dos mais pobres”. Com base nesse diagnóstico, “Lula livre” passa a ser construído como o ponto nodal de seu discurso, sendo o “resgate de Lula preso o resgate de um Brasil feliz”. O discurso constrói um “nós” em simbiose de “Lula livre” com o “povo, trabalhadores, movimentos sociais, sindicatos, artistas; verdade; inocência; fé na justiça imparcial baseada em provas, na política, na negociação, na paz; Brasil que avança e é feliz; sonho de Lula: pobre comer carne, ir para a universidade, ter carro, comprar casa”. Sintetizando, “Lula candidato é resgate da democracia e resgate da cidadania”. Por sua vez, o “eles” apresenta uma cadeia de equivalências que articula: “elites; Lava Jato do mal, Polícia Federal e Ministério Público da Lava Jato; Globo e grande mídia; justiça parcial baseada em convicções; negação da política, violência; Brasil para poucos, que anda para trás, vira-lata e deprimido; sonho deles: Lula fora de 2018, pobre não poder andar de avião, não poder fazer un iversidade”. versidade”. Isto é: é : “Lula fora das eleições é golpe contra o povo e perda da cidadania”. nia”. Porém, apesar de cr ítico, o discurdisc urso de Lula mantém abertos seus canais de diálogo com a classe média, com o campo político e com o mercado. Partindo da memória recente sobre sobre o legado dos mandatos presidenciais Lula e Dilma, as “Caravanas Lula pelo Brasil” produzem em torno de Lula uma narrativa bíblica e dramática. É um discurso de esclarecimento, que se dirige ao racional, e de mobilização, que se dirige à emoção por meio de imagens que criam uma atmosfera de devoção e simbiose entre “Lula e o povo”. O formato caravana tem também um significado de jornada coletiva, de odisseia heroica e de romaria, que pode ser de redenção e de um “novo começo”, uma “purificação”, que traduziria uma resposta para as demandas de revisão de diretrizes equivocadas e de “erros cometidos no passado”. O discurso construído em torno de Lula livre e do resgate do Brasil feliz coloca o desafio de, caso Lula seja impedido de participar das eleições, seu sucessor ter de falar e agir como uma extensão dele: “Eu sou Fernando Had-
dad, candidato a vice-presidente na chapa do Lula, e te convido para essa caminhada camin hada por todo o Brasil”. ALCKMIN: FAZ ER O BRASIL CRESCER
O discurso político de Geraldo Alckmin, homem, branco, 65 anos, médico, por quarenta anos ocupante de cargos políticos, recentemente governador de São Paulo, candidato pelo PSDB em coligação com o PTB e os partidos do “centrão” PP, PR, DEM, PRB e SD, procura construir uma autoidentidade de candidato “da mudança, do novo” e a de um “político experiente e ético”. Argumenta que não se devem considerar as pesquisas de intenção de voto: “As eleições mudam... Tiro vinte, trinta selfies em cada viagem... Ninguém vai chegar à Presidência da República com sombra e água fresca”. Seus críticos apontam que ele é o representante do establishment neoliberal, que mente sem se pe perturba rturba r quando diz que “São Paulo venceu a crise hídrica” ou que detrás da pregação de “homem do diálogo” está quem autorizou reprimir manifestações como em 2013 ou 2015. No marco de seu diagnóstico, o principal problema é a “estagnação econômica do país”, associada a “uma crise de legitimidade dos três poderes”. Diante disso, Alckmin propõe “fazer o Brasil crescer” como ponto nodal de seu discurso, articulando uma cadeia de equivalências com as principais insatisfações da sociedade: “desemprego, “desemprego, falta de renda, carga t ributária”. Para superar os problemas propõe “reformas estruturantes: política, tributária , previdenciária e do Estado”, tado”, de cunho cu nho neoliberal. A identidade identidade política do “nós” “nós” se dá dá sob os significantes do “verdadeiro, não fazer espetáculo, experiência, destemido que enfrenta o corporativismo, o novo, abertura comercial, diálogo e convencimento, do povo e interiorano”. Na fronteira estabelecida, o “eles” representa “estagnação, desencanto, desesperança, antigo, demagogos que só falam, PT, corporativismo que cooptou o Brasil, populismo da Venezuela, bala como caminho rui m para resolver os problemas, e dinastias políticas”. Como reconstrução mítica histórica do passado, o discurso de Alckmin remete – alinhado à visão tradicional da classe média – aos anos dourados do Brasil, a um “passado próspero”, apontando as “décadas de 1930 até 1980” como período de “ascensão e progresso” prog resso”.. Sua imagem pessoal asséptica, de camisas impecáveis, se conjuga com um discurso técnico do gestor pronunciado como provérbios e parábolas, mas sem carisma, reafirmando a visão de seus críticos: é um “picolé de chuchu”. Ele responde: “Não sou um showman”. É um dos candidatos com menor entrada nas mídias sociais. Po-
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rém, sua coligação detém quase metade do tempo eleitoral na TV, assim como o maior fundo partidário. CIRO: PROJETO NACIONAL DE DESENVOLVIMENTO E SUSTENTAÇÃO DO PACTO SOCIAL
No discurso político de Ciro Gomes, homem, branco, 60 anos, formado em Direito, deputado, governador e ministro, atualmente candidato pelo PDT, a autoidentidade passa por uma valorização de sua trajetória: “Tem 38 anos de vida pública e seu nome nunca foi associado a escândalos ou roubalheira. Ficha limpa, tem o preparo, a firmeza, a experiência e a honestidade honestidade de que o Brasil precisa”. Porém, seu caráter explosivo é motivo permanente de críticas, até agressivas (“necessita uma cirurgia de língua”). Em seu diagnóstico, o principal problema é a “desindustrialização do país”, intimamente ligada ao “crescimento da desigualdade social”. Para enfrentar tais problemas, o ponto nodal de seu discurso é a “construção “construção de um projeto nacional de desenvolvimento que retome a industrialização, sustentado por um pacto social, uma aliança entre quem produz e quem trabalha no Brasil”. Seu discurso propicia a delimitação de um “nós” no qual “povo” e “Estado” se conjugam numa cadeia de equivalência que compreende: “centro-esquerda, povo soberano, defesa do interesse nacional, classe trabalhadora, pobres, burguesia nacional, setor produtivo” e também o “São Lula (velho amigo)”. O “eles” articula “rentismo, plutocracia financeira; a direita entreguista; o MDB (quadrilha), Temer e suas providências antipovo e a ntinacional; os bolsominions e a bandidagem; e a burocracia do PT”. Sua reconstrução histórica valoriza o “desenvolvimentismo” e resgata o “legado do primeiro governo Lula: governo mais útil ao Brasil” e “o governo Itamar Franco”, que junto com o pri-
SELEÇÃO OFICIAL FESTIVAL DE CANNES
meiro governo Lula – nos quais ele foi ministro –, teriam resistido às “chantagens emedebistas”. Procurando atrair o eleitor de Lula, diz: “Depois de Lula, eu sou o mais progressista”. Com um tom enérgico e de autoridade e comportamento destemido, seu discurso articula um estilo tecnocrático didático com outro emocional, usando referências populares nordestinas. “Cirão da massa” é visto por seus apoiadores como o único candidato capaz de promover esse projeto para o país: um candidato “preparado”, com “autoridade” e “larga experiência na gestão pública”, com a “sinceridade” e realismo de quem conhece. BOULOS: REFUNDAR A DEMOCRACIA BRASILEIRA
O discurso político de Guil herme Boulos, homem, branco, 36 anos, formado em Filosofia, coordenador do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto, candidato pelo Psol em coligação com o PCB, procura reafirmar a militância em sua autoidentidade: “Política pra mim não é carreira, é desafio e ousar”. A escolha de Sônia Guajajara como primeira indígena a disputar a Vice-Presidência reforça essa diferença militante. Além de sua juventude juventude e falta de experiência em cargos públicos, seu engajamento é objeto das críticas mais ásperas: “De notório promotor da violência e do confronto, agora brinca de ser o todo-puro do jogo polít ico”. ico”. Seu diagnóstico identifica a desigualdade social como principal problema do país, o que “exige um Estado que combata os privilégios e crie igualdade de oportunidades para seu povo”. Para isso, o ponto nodal de sua proposta é “refundar a democracia brasileira”, brasileira”, art iculado à necessidade de “ouvir o povo, acabar com o abismo entre Brasília e Brasil”. Afinal, “é de baixo para cima que nós vamos mudar a política”.
A refundação refundação da democra democracia cia brasilei brasilei-ra e o enfrentamento da desigualdade implicam “colocar o dedo na ferida”, ferida”, delimitando o “nós”, “nós”, a “aliança “alia nça que representa a diversidade do povo brasileiro: Psol, PCB, articu lação de povos indígenas brasileiros, MTST, coletivos feministas, LBGT, movimento movimento negro, Mídia Ninja, art istas e intelectuais críticos, a sociedade organizada”; isto é, os “99%” Do outro lado da fronteira fica o “eles”, “eles”, que se a rticula em torno do “sistema político corrupto” e da “república dos bancos: grandes corporações; elites e oligarquias; o PMDB e as máfias do Congresso Nacional; os fundamentalismos; o monopólio privado da mídia; o agronegócio” Isto é, os que defendem os interesses do “1%”. No marco motivacional, destaca que “o golpe jurídico-parlamentar-midiático de 2016 nos remeteu ao processo de desnacionalização iniciado na década de 1990, que aprofundou as desigualdades sociais”. Por sua vez, a defesa do “Lula livre” não impede a crítica à agenda recessiva do PT de 2015, resultado da “infrutífera tentativa de conciliar os interesses dos trabalhadores e da casa-grande”. Boulos expressa seu discurso com clareza, procurando fazer que sua análise intelectual e sua emoção de militante dialoguem com a linguagem e as necessidades do povo. Para isso, parece inspirar-se no discurso do Lula jovem. Na aplicação de seu programa antiestablishment, propõe “a construção de outro projeto de poder cujo princípio seja a radicalização da democracia e da participação popular”. .
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sência dada à campanha de descrédito na política e a interdição do candidato com maior intenção de voto. Quarto, o desafio para as candidaturas de construir, expressar e replicar seus discursos por meio das novas mídias, dada a previsão de menor peso da TV nestas eleições. Quinto, o discurso das candidaturas não pode ser predominantemente intelectual, técnico e programático. Junto com a razão, a paixão é parte constituinte do político. Há de haver um forte componente emocional, que chegue às pessoas. Sexto, transmitir autoridade autoridade – e não necessariamente autoritarismo – para dar conta do sentimento urgente de mudar ou pôr ordem na “bagunça” em que tem se transformado o país. Teremos de aprender a conviver com o conflito, e não só com o consenso como fator central de nossa democracia. Assim, o candidato ou candidata terá de assumir u m lado da fronteira política. E qual fronteira prevalecerá dependerá da eficácia e da ressonância dos discursos políticos nos receptores nessa disputa hegemônica. *Jorge O. Romano, Alex L. B. Vargas, Annagesse C. Feitosa, Paulo A. A. Balthazar, Thais P. Bittencourt e Yamira R. S. Barbosa ,
professor, doutorandos e mestrandos, conformaram no Programa de Pós-Graduação de Ciências Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (CPDA/UFRRJ) um grupo de reflexão sobre análise de discurso populista.
QUAL É A IMPORTÂNCIA POLÍTICA DESSES DISCURSOS?
Para responder, temos de nos perguntar: o que realmente vai pesar nestas eleições? Primeiro, o bolso ante o desemprego, a perda aquisitiva das classes médias, o endividamento. Segundo, o sentimento “antissistema, anti o que está ali”. Terceiro, o crescimento dos votos em branco, nulos e justificativas de au-
1 Ernesto Laclau e Chantal Mouffe, Hegemonía y estrategia socialista . Hacia una radicalización de la democracia, FCE, Buenos Aire s, 2015. 2 Quando palavras ou elementos de um discurso perdem sua singularidade originária para significar todo o conjunto de demandas. 3 Elemento ou palavra articuladora das diferentes demandas. 4 Constitui-se pela articulação de diferentes demandas em torno de uma delas com potencial para funcionar como um significante vazio.
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ONDA DE GREVES NOS ESTADOS REPUBLICANOS
Ve Vermelhos em disputa nos EUA Donald Trump adora se vangloriar da defesa dos “americanos esquecidos”, que vivem longe das metrópoles, em particular em estados pobres e rurais. Ora, é exatamente nesses locais que um movimento social coloca em xeque a política republicana de abandono dos serviços públicos. Nesse enfrentamento, os professores desempenham um papel-chave POR CLÉMENT PETITJEAN*
hicago, abril de 2018. No cenário improvável de um hotel de luxo situado nos arredores do aeroporto O’Hare, cerca de duzentas pessoas, de punho erguido, bradam slogans de apoio aos professores do Arizona, Kentucky e Oklahoma: “Aguentem firme!”, “Não recuem!”. Esse momento de solidariedade fecha uma oficina da Conferência Sindical Bianual organizada pela revista militante Labor Notes . Na tribuna, seis professores – um homem e cinco mulheres – vestem roupas vermelhas, cor emblemática do movimento Red for Ed (“Vermelhos pela educação”), que joga com a ambiguidade característica do vermelho: de um lado associado à tradição socialista e, de outro, ao Partido Republicano, que governa os estados tomados por uma onda de greves desde o fim de fevereiro. Os primeiros protestos irromperam em pleno inverno na Virgínia Ocidental. Controlado pelos democratas a partir dos anos 1930 e cenário de longas e violentas greves do setor de mineração nos anos 1970, esse estado virou bruscamente à direita no início dos anos 2000, quando seus eleitores mantiveram sistematicamente na liderança o candidato republicano às eleições presidenciais. Junto com o Wyoming, é um dos dois estados onde Trump obteve a maioria dos votos expressos (68%) nas eleições de 2016. Em novembro de 2017, um grupo de professores, entre os quais alguns pertencentes aos Socialistas Democratas da América (Democratic Socialists of America, DSA), começou a se organizar e debater uma resposta coletiva à degradação de sua situação econômica e social junto ao principal sindicato local de educação. Em um estado onde os salários reais dos docentes caíram 8,9% desde 20001 e as mensalidades do seguro-saúde não param de aumentar, o governador propôs um reajuste salarial de apenas 2% e um novo congelamento das prestações relacionadas à saúde da Agência dos Funcionários Públicos (Public Employees Insurance Agency).
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z e RATOEIRAS NAS SALAS DE AULA m o G u a C ©
Depois de criarem redes militantes descentralizadas, notadamente graças à internet, os docentes colocaram em
votação em todas as escolas uma proposta de paralisação. Os resultados não foram animadores, mas os 55 comitês da Virgínia Ocidental decidiram por unanimidade paralisar a partir de 22 de fevereiro. Foi a primeira greve de professores e funcionários públicos desde 1990, e eles figuraram em posição de força com centenas de postos vazios. No dia 7 de março, após nove dias de greve – dos quais cinco foram reivindicados pela base diante da disposição imediata do sindicato de negociar com o governo –, eles obtiveram 5% de aumento para trabalhadores da educação e outros funcionários públicos, assim como uma moratória no aumento das mensalidades do seguro-saúde. Ao mesmo tempo, detiveram o projeto de expansão de escolas privadas ssob ob contrato público (charter schools ). ).2 Depois desse êxito, a greve pouco a pouco se expandiu para outros estados, do Arizona a Oklahoma, do Kentucky ao Colorado, passando pela Carolina do Norte. Precarização dos salários, degradação das condições de trabalho, ausência de recursos, insuficiência dos mecanismos de proteção social (previdência e seguro-saúde) e privatização do sistema público de en en-sino são as principais queixas. Estado
livre associado aos Estados Unidos, Porto Rico também se deparou com uma greve de professores que protestam contra o programa de privatização orquestrado com a secretária de Educação da il ha, Julia Keleher. Desde sua posse em janeiro de 2017, ela fechou cerca de 170 escolas, 15% dos estabelecimentos. Uma lei votada em março de 2018 prevê o fechamento de mais trezentas escolas.3 Algumas greves foram pontuais (um dia na Carolina do Norte); outras duraram mais tempo: seis dias no Arizona, dez em Oklahoma, mais de quinze no Colorado. Vários movimentos obtiveram aumento salarial (de 2%, no Colorado, a 20% em três anos, no Arizona) e aumento de recursos nas salas de aula. No Colorado, os eleitos de duas cadeiras votaram aumento de orçamento na educação, que leva o estado de volta aos índices de investimento na área de 2008, antes da crise. Para além das especificidades locais, pontos em comum se destacam. Essas greves chegaram primeiro a territórios onde a profissão docente enfrentava condições mais duras. Em nível nacional, um professor ganha em média um salário bruto (antes dos descontos) de US$ 59 mil por ano (em 2017), 4 um
pouco menos que o salário médio. Esse número, contudo, contudo, marca dispa ridades importantes. Em razão da organização federal do país, a política educativa (orçamentos, programas escolares, faixas salariais, convenções coletivas, direitos sindicais) varia fortemente de um estado a outro, e as disparidades se agravam. Dessa forma, enquanto os professores do estado de Nova York recebem até US$ 79,5 mil brutos por ano (com 8,9% de aumento real desde 2000), os do Mississippi recebem US$ 42 mil (com uma queda salarial de 6% desde 2000). Neste último, alguns professores precisam acumular dois, às vezes três empregos para fechar as contas no fim do mês. As condições de trabalho em geral são inaceitáveis. Na tribuna da oficina realizada no evento da Labor Notes , Dylan Wegela, docente do do Arizona, descreve, diante de um auditório horrorizado, os barulhos de ratos no forro das sala s de aula, ou ainda as luzes acesas durante toda a noite para espantar as baratas. O movimento se desenvolveu à margem das organizações sindicais burocráticas que foram pegas de surpresa. Como ressalta Chris Brooks, um dos assalariados da Labor Notes , “vários sindicatos afiliados à Associação Nacional de Educação funcionam de maneira legalista. Concentram-se na prestação de serviços para seus afiliados e se apoia m fortemente em profissionais da comunicação na área de política para pressionar seus eleitos”. 5 À frente da greve no Arizona, Os Educadores Unidos do Arizona se constituíram paralelamente ao principal sindicato docente do estado, utilizando as redes sociais como paliativo da ausência de estruturas militantes. A maior parte das greves, além além disso, se desenrolou em estados onde os direitos sindicais não possuem nenhuma ou quase nenhuma existência jurídica. As convençõe convençõess coletivas coletivas não resultam de negociações entre sindicatos e poderes públicos no nível dos Conselhos de Educação (Boards of Education), mas são objeto de leis votadas por parlamentares locais. Soma-se o fato de que Oklahoma, Kentucky ou mesmo o Arizona figuram entre os 28 estados norte-americanos onde se aplicam, em virtude da Lei Taft-Hartley de 1947, leis ditas de “direito ao trabalho”, que permitem a
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todos os assalariados, sindicalizados ou não, beneficiar-se das convenções coletivas negociadas pelo sindicato – o que acaba por privar as organizações de trabalhadores de fontes importantes de recursos, como a contribuição sindical mensal. O recente parecer entregue pela Corte Suprema sobre o dossiê “Janus vs. American Federation of State, County and Municipal Employees Council Council 31” [Janus contra a Federação Americana dos Funcionários Públicos de Municípios, Condados e Estados, AFSCME] poderia, ademais, estender esse tipo de disposição ao resto do país. Encorajado pelo governador republicano de Illinois, o bilionário Bruce Rauner, o trabalhador social Mark Janus, desse mesmo estado, entrou em 2015 com um processo contra a AFSCME, reivindicando que a s mensalidades obrigatórias estabelecidas pelo sindicato violavam seu direito constitucional à liberdade de expressão, garantida pela primeira emenda. O caso chegou à Corte Suprema, que, em 27 de junho último, deliberou a favor do reclamante.6 Com atualmente 70% dos 3,8 milhões de docentes da rede pública, os sindicatos são particularmente visados pela decisão da Corte Suprema. Eles correm o risco de perder até um terço de seus integrantes e suas mensalidades.7 Enaltecer excessivamente o contexto político atual, contudo, pode obliterar o fato de que a importância da mobilização dos docentes se inscreve em uma a scensão de movimentos sociais que vem acontecendo há certo tempo: longa greve de assalar iados do setor público no estado de Wisconsin8 e movimento Occupy Wall Street em 2011, luta dos assalariados da restauração para obter aumento do salário mínimo a partir de 2013. Em setembro de 2012, os cerca de 30 mil docentes de Chicago já tinham parado o trabalho depois do fracasso das negociações de sua nova convenção cole-
tiva. Eles se opunham, principalmente, à vontade das autoridades de incentivar desempenhos individuais e estimular contratos de concessão com escolas privadas. Presente na conferência da Labor Notes , Rebecca Garelli ensinava em Chicago antes de se mudar para o Arizona em 2017. Participou ativamente do movimento em 2012. “Minha experiência em Chicago me ensinou que é necessário e impreterível obter o apoio dos pais e da comunidade”, afirma ela sob o olhar vibrante de Jesse Sharkey, copresidente do sindicato dos docentes de Chicago (Chicago Teachers Union, CTU) e mediador do debate. Fato raro, a greve terminou em vitória: revalorização salarial, extensão das jornadas de aulas, fim dos prêmios por mérito. Desde 2010, com sua eleição para a liderança do comitê de docentes de base (Caucus of Rank-and-file Educators, Core), a CTU desenvolveu um sindicalismo de luta que buscava romper com o modelo norte-americano de organização burocrática e corporativista. Uma das primeiras decisões da nova direção sindical foi criar um serviço chamado “implantação militante”. “Queremos ser um sindicato combativo, tecer laços com os pais dos estudantes, com a c oletividade”, lembra Sarah Chambers, docente em educação especial desde 2009 e copresidente do Core de 2013 a 2017. “Na minha escola, por exemplo, começamos por fundar um comitê encarregado de discutir a convenção coletiva. Foram atribuídos papéis a cada um: ocupar-se da comunicação, estabelecer laços e diálogos com os pais, com o bairro, com os estudantes. Durante o movimento, os integrantes do comitê desempenharam um papel de motorização. Os pais sustentavam os piquetes da greve, nós levávamos comida de manhã e na hora do almoço; os estudantes tocavam música.” música.” Essa estratégia inspirou outras ações. No Kentucky, por exemplo, para se prepara r para a greve grev e de 2018, os do-
centes conquistaram o apoio e a confiança dos pais dos estudantes com quadros informativos nas saídas das escolas, organizando ocupações de estabelecimentos estabelecimentos ou ainda dist ribuindo refeições para os estudantes desse estado em que 24,5% das crianças vivem na linha da pobreza. Assim, quando o governador do estado denunciou a “mentalidade de bandido” dos professores, além de chamá-los de “egoístas e míopes”, suas declarações não encontraram nenhum eco.9 EM CIDADES DEMOCRATAS TAMBÉM
A greve de Chicago também evidenciou as continuidades ideológicas entre republicanos e democratas no que se refere à educação. A mobilização se desenrolou em um bastião democrata, cujo prefeito, Rahm Emanuel, defende uma política agressiva de privatização dos serviços públicos (transportes, hospitais, educação). Desde sua eleição, em 2011, ele fechou metade dos hospitais psiquiátricos da cidade, assim como dezenas de estabelecimentos escolares nos bairros pobres, cuja população é majoritariamente negra ou hispânica – favorecenfavorecendo o desenvolvimento de charter schools . Enquanto as greves desses últimos meses são enaltecidas em sua grande maioria por comentaristas “progressistas”, os professores de Chicago, cujas reivindicações não diferem muito das de seus colegas do Kentucky ou de Oklahoma, foram unanimemente crucificados pelo New York York Ti e pelo Washington Post . “As greves mes e de docentes jamais são uma boa ideia porque prejudicam os alunos e suas famílias”, determinou o primeiro (11 set. 2012), enquanto o segundo considerou também que as greves “afetam o desempenho dos alunos” (10 set. 2012). 2012). “O movimento atual das g reves coloca os democratas em maus lençóis: de um lado, apoiam o movimento porque ele acontece em terras republicanas e esperam colher os frutos elei-
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torais em novembro. Por outro, é evidente que eles se oporiam fortemente se acontecesse em cidades controladas por eles”, analisa Kevin Prosen, militante sindical que ensina inglês em um colégio no Queens, Nova York. A questão poderia muito bem se colocar, pois o movimento já começou a extrapolar as salas de aula. Em julho de 2018, mais de 2 mil enfermeiras e cuidadoras de Burlington, em Vermont, entraram em greve por dois dias, reivindicando aumento de salário e cobertura de saúde universal para seus pacientes. Esse movimento de solidariedade se constituiu em torno das palavras de ordem “Red for Med” (“Vermelhos (“Vermelhos pela medicina”). Entre os signatários do apelo por apoio, estão várias lideranças e participantes do movimento dos professores. *Clément Petitjean é doutorando em Civilização Americana na Sorbonne, França.
1 “Digest of Education Statistics Statistics 2017” 2017” [Sumário de estatísticas da educação 2017], National Center for Education Statistics, Departamento de Educação dos Estados Unidos, Washington, DC. 2 Sobre as charter schools, ler Diane Ravitch, “Volte-face d’une ministre américaine” [A reviravolta de um ministro norte-americano], Le Monde Diplomatique, out. 2010. 3 “Gobernador de Puerto Rico firmó la ley de reforreforma educativa enfocada en las escuelas charter y vales educativos” [O governador de Porto Rico sancionou a lei da reforma educativa focada nas charter schools e vales educativos], Univision, Guaynabo, 29 mar. 2018. 4 “Digest of Education Statistics 2017”, 2017”, op. cit. 5 Chris Brooks, “After “After the wave” wave” [Depois da onda], Jacobin, Nova York, 7 maio 2018. 6 Doug Henwood, “The disappearing strike” [A greve minguante], Jacobin, 12 fev. 2018. 7 Dana Goldstein e Erica L. Green, “What the Supreme Court’s Janus decision means for teacher unions” [O que a decisão da Suprema Corte sobre o caso de Janus significa para os sindicatos docentes], The New York Times, 27 jun. 2018. 8 Ler Rick Fantasia, “Sursaut du mouvement social américain” [Sobressalto do movimento social norte-americano], Le Monde Diplomatique, abr. 2011. 9 Philip M. Bailey, “Bevin renews spat spat with Kentucky teachers, saying pension opponents have a ‘thug mentality’” [Bevin renova seus argumentos sobre os professores do Kentucky, dizendo que opositores da pensão têm uma “mentalidade criminosa”], The Courier-Journal , Louisville, 22 mar. 2018.
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LUCROS EM ALTA, RESULTADOS EM BAIXA
O fiasco da privatização das escolas na Suécia Durante a campanha para as eleições gerais na Suécia, em 9 de setembro, o inesperado crescimento da direita xenofóbica ocultou o debate sobre o futuro dos serviços públicos. Encabeçando um governo minoritário há quatro anos, os sociais-democratas não conseguiram nem sequer limitar os lucros das empresas privadas que investiram na saúde ou na educação POR VIOLETTE GOARANT*
“É
uma escola duas em uma”, resume Elsa Heuyer. Essa professora de Francês do liceu Drottning-Blanka teve de aprender a “otimizar” miza r” o tempo e o espaço em benefício da AcadeMedia, a “empresa educativa” cotada em Bolsa que a emprega em tempo parcial: 28,7%. Situado na região sul de Estocolmo, seu liceu, um estabelecimento privado sob contrato (chamado friskola ), divide friskola; plural: friskolor friskolor ), espaço com outro do mesmo grupo. Como o lucro é obrigatório, Heuyer precisa cuidar de duas turmas na mesma classe: “Na prática, sou obrigada a dividir o tempo do curso por dois”. Seus colegas professores de Espanhol, Sandra Nylen e Adrian Reyes, lecionam em tempo integral e ensinam também outra matéria – fato comum na Suécia. Cada um assiste quinze alunos, desempenhando o papel de mentor , como se diz em sueco. Por e-mail ou telefone, devem manter contato permanente com os pais a fim de controlar a frequência e o progresso dos alunos em todas as matérias. “Quando um aluno encontra dificuldades, a culpa é do mentor ”, ”, suspira Reyes. Assim, não é raro ver o professor ajudando o aluno a melhorar as notas em uma matéria que ele não ensina. “Sempre procuro garantir, junto aos alunos, que tudo caminhe bem, pois sei que o diretor vai me cobrar”, explica Nylen, nervosa. “Mas que fazer quando eles fracassam em várias matérias?” O diretor do Drottni ng-Blanka ng-Blanka “cobra” porque precisa de bons resultados para conservar seus alunos e atrair outros. Após a volta ao poder dos “partidos burgueses”, em 1991, o primeiro-ministro do partido dos moderados (do nome oficial Partido Moderado de União), Carl Bildt, implantou o sistema dos “cheques-educação”. Desde então, não há mais carteirinha escolar e as famílias podem matricular gratuitamente os filhos na escola privada de sua escolha. A prefeitura entrega ao estabelecimento um cheque, ou voucher , correspondente ao valor gasto por aluno do setor público que resida no município (um colegial de Estocolmo, por
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exemplo, custa 10 mil euros por ano). Resultado: quase inexistentes na década de 1990, os colégios particulares sob contrato representavam em 2017 quase 20% dos colégios suecos. 1 A busca pelo “cliente satisfeito” satisfeito” leva a uma inflação de boas notas, facilitada pelo fato de os exames nacionais serem corrigidos pelos professores do mesmo estabelecimento dos alunos. A escola melhora a tal ponto os boletins, para cuidar da própria imagem, que pais e alunos podem obrigar o professor a rever as provas. “É à la carte ”, ”, zomba Heuyer, que no final de junho deixa de mini strar cursos suplementares para “corrigir” as notas de alunos descontentes com a avaliação. Muitos professores preferem passá-los de ano a lhes dar notas baixas e gerar um sentimento de fracasso, além de um excedente de trabalho e estresse. Desse modo, numerosos alunos, pais e autoridades políticas alimentam uma ilusão de sucesso, enquanto o país vai caindo nas avaliações internacionais. Na última classificação do Programa Internacional de Avaliação Estudantil (Pisa, na sigla em inglês), em 2015,2 a Suécia ficou na média dos países da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE); já não ocupa os melhores lugares, como na primeira classificação, em 2000, e registra um claro recuo em Ciências e Matemática. Além dis-
so, consagrando mais de 7% do PIB à educação, tornou-se o país europeu que mais gasta na área. 3 A diferença diminui entre os bons alunos e os demais, sobretudo os de de famíl ias de imigrantes. Paradoxalmente, os alunos continuam a afluir para as escolas privadas, ainda que, com perfil socioeconômico equivalente, os resultados se jam melhores nas escolas públicas (como na maior parte dos países ocidentais). De fato, como as escolas privadas atraem menos jovens das classes pobres, seus resultados parecem globalmente melhores. RELAÇÃO CLIENTE-PRESTADOR
A concorrência concorrência da área privada influencia fortemente o sistema público, tanto mais que ela se beneficia de uma reforma pedagógica comum de individualização do aprendizado, que dá mais liberdade aos alunos – e prejudica os das famílias mais modestas. “O relacionamento entre aluno e professor se transforma no de cliente e prestador”, constata Henrik Wall, professor de História e Sociedade no colégio público de Skarpnäck, na área sul de Estocolmo. Seus três colegas e ele, reunidos em “equipe de trabalho”, cuidam de uns setenta alunos do 6º ano. Semanalmente ocorre um “conselho de alunos”, que ouve as sugestões dos interessados. Sentado à mesa de reuniões na sala dos professores, Wall ouve Ida
Sjödin, que ensina Matemática, enumerar as reivindicações dos alunos: “Eles querem poder ir ao banheiro a qualquer hora, usar boné, mascar chiclete na classe e usar celular”. Sofia Berglin, professora de Biologia, intervém: “Os bonés não me incomodam”. Segue-se uma discussão. “Aceitamos os bonés e continuamos proibindo os celulares?”, pergunta Sjödin. Wall afi rma i nvejar a França, esse “país civilizado onde, ao que parece, os professores apenas preparam e dão as aulas, e prescrevem os deveres”. Aqui, além de vigiar a recreação e a cantina, a equipe docente organiza uma série de atividades: exames, eventos de integração, programas esportivos, agenda e informações gerais por intermédio do blog da equipe de trabalho. Esta se reúne toda semana para um encontro chamado aprendizagem colegial, que discute assuntos pedagógicos. O conjunto dos professores do colégio tem de produzir “documentos de reflexão” e fazer pesquisas sobre o ambiente de trabalho para a di retoria. Baseando-se nos métodos das friskolor , os professores da rede pública precisam oferecer um acompanhamento individualizado, velando pela dinâmica de grupo. Precisam também realizar esse exercício de equilibrismo sem levantar a voz para não parecerem autoritários e serem rotulados como tais. Na aula de Matemática de Sjödin, a porta permanece totalmente aberta e os alunos têm o direito de ouvir música enquanto fazem os exercícios. “Isso melhora minha concentração”, explica Kevin em meio ao vaivém dos colegas que se levantam para buscar um lápis ou uma borracha, à disposição nas salas de aula. Alguns preferem trabalhar em dupla; ajudam-se e tagarelam em voz alta. Para aqueles que necessitam de silêncio, como Märta, são entregues protetores de ouvido. Uma adolescente que prefere matar aula é convidada por sua mentor a tomar um chocolate quente. Berglin comunica aos colegas uma agenda personalizada para ela, ainda que ela não se comprometa a segui-la... Um
garoto traquinas va i para a sala da psicóloga da escola, onde é recebido com doces. Faz-se de tudo para evitar o conflito e manter uma relação “simétrica” com o aluno, observa Wall. O ob jetivo é favorecer o diálogo e a negociação, com risco de permitir abusos de poder por parte dos adolescentes. Em 2017, o Departamento Sueco de Ambiente de Trabalho Trabalho recebeu 767 denúncias de ameaças e v iolência nas escolas primárias, colégios e liceus, ou seja, duas vezes mais que em 2012. Essa violência se volta principalmente contra os professores. professores.4 No colégio público de Skarpnäck, o mal-estar se traduz por um forte absenteísmo: a cada dia, faltam em média cerca de 10% dos professores. Quando não são substituídos por interinos de uma empresa privada, seus colegas presentes supervisionam as classes ou dão cursos suplementares em matérias que não são as suas, a título de “colaboração” e “flexibilidade”. Erika Frimodig, professora de Esportes e delegada sindical, diz que ensinou francês a iniciantes do 6º ano... durante dois anos: “Tenho noções de francês, minha filha mora em Paris”, explica ela em tom convicto. Em 2018, uma nova emenda ao programa geral impõe o aprendizado por computador. O equipamento de informática se tornou obrigatório e sua qualidade constitui um argumento para atrair os alunos. O Drottning-Blanka fornece MacBook Air a seus alunos e professores, professores, enquanto o colégio público de Skarpnäck adquiriu centenas de iPad e organiza conferências com convidados de fora, que estimulam o uso de computadores em classe. Todavia, apesar dos muitos utensílios de que dispõem em sua plataforma, os professores do liceu Drottning-Blanka ainda distribuem fotocópias e lápis: “Os alunos não gosta m de ler na tela”, explica Heuyer, consternada com a dependência extrema da informática. Nylen reforça: “Na última quinta-feira, tivemos uma pane na internet. Vários alunos me perguntaram se a aula seria cancelada...”. Um dos principais atores desse “mercado”, o grupo Kunskapsskolan (“escola do saber” em sueco), reivindica 13 mil alunos. O computador figura entre suas “seis competências do futuro”, conforme se lê em seu site na internet; ele propõe um método padronizado on-line, o Kunskapsskolan Education (KED), que faz do aluno “o ator de seu aprendizado”. O colégio de Enskede, a dois passos do de Skarpnäck, é seu estabelecimento-vitrine. Nas instalações de uma a ntiga empresa, perto de quinhentos alunos se apinham em apenas dois andares, comparti mentados por paredes de vidro. Para o pátio, o estabelecimento aluga da prefeitura um campo de futebol.
Construídos na idade de ouro da escola sueca, os dois prédios do colégio de Skarpnäck, que acolhem mil alunos, se destacam pelo conforto. Voltados Voltados para o sul a fim de captar melhor a luz, abrigam dois giná sios de esportes no interior e duas quadras de basquete. Perto de um campo de futebol, ergue-se a cantina e, em cima, a biblioteca escolar. ALUNOS SEM BIBLIO TECA E SEM LIVROS
Os alunos de Kunskapsskolan não têm biblioteca. Aliás, nem livros eles têm! Após algumas reclamações de pais, eles dispõem, todavia, de uma licença de livros on-line para Biologia: e é tudo. Pedra angular de sua organização, as ativ idades dos alunos em papel serão logo abandonadas, para imensa tristeza dos professores. Mas, para a Kunskapsskolan, “as gerações futuras devem estar preparadas para um mundo em evolução constante e ser capazes de se adaptar a um mercado de trabalho i mprevisível”, mprevisível”, alardeia um vídeo promocional. Toda semana, o aluno da Kunskapsskolan elabora sua própria agenda, segundo seu ritmo e suas necessidades. Entra e sai da s “oficinas”, “oficinas”, onde, inclinado sobre seu notebook, vai percorrendo as “etapas” do conteúdo on-line, que um professor presente acompanha. Um encontro semanal de quinze minutos com o mentor lhe lhe permite pôr em dia seus “planos de ação”. Instalada na cafeteria, que faz as vezes de sala de aula, Stéphanie Arsenau-Buissière, professora de Inglês e Francês, alega “familiaridade” com seus alunos. Como afirma um vídeo promocional, todo funcionário da Kunskapsskolan deve ser ao mesmo tempo “mentor , facilitador, acompanhante pessoal, proficiente numa matéria, amigo e guia”. Diretora-geral do grupo fundado por seu pai em 1999, Cecilia Carnefeldt coloca nas nuvens o sistema Kunskapsskolan, que, diz ela, favorece a autonomia dos alunos e ex ige menos professoprofessores. Sem dúvida, seu país despencou no Pisa, mas, a seu ver, essa classificação “não é uma referência”, referência”, principalmente principa lmente por não levar em conta “a criatividade e o trabalho em equipe”. Contudo, ela própria matriculou seus filhos na escola do Castelo de Fredrikshovs, que afirma aplicar um método de ensino de Matemática criado em Cingapura, país que ocupava o primeiro lugar na classificação Pisa 2015. Ela defende o princípio dos lucros obtidos por estruturas privadas com base em fundos públicos: “Existem muitos fornecedores da iniciativa privada negociando com o Estado”, alega. “Alguns produzem móveis; outros, livros... Se você for sério em qualquer empreendimento, terá de obter lucros. Perder dinheiro não seria bom para os clientes... se é que posso empregar esse termo para os alunos.”
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Os lucros obtidos pela Kunskapsskolan são por enquanto reinvestidos a fim de permitir sua expansão para além das fronteiras suecas. Uma missão complexa como a educação não pode ser considerada uma indústria, replica Samuel E. Abrams, diretor do Centro de Estudos da Privatização da Educação, da Universidade de Colúmbia, Estados Unidos. “Quem aufere lucros nesse setor tem a motivação implícita de contrariar os interesses dos cidadãos. Pais, contribuintes e legisladores não podem saber se os alunos aprendem o que devem aprender. Onde há lucros, aumenta a possibilidade de malversações.”
cionando”, explica sua colega Shirin Ahlbäck Öberg, professora pesquisadora na área de administração pública. “Tiramos da profissão todo o seu atrativo.” Em média, os professores reservavam apenas um terço de seu tempo para preparar e ministrar as aulas, 6 contra metade na França.7 O grosso das tarefas administrativas visa mostrar resultados para o conselho municipal a que pertence a escola. “O Parlamento tentou limitar essas tarefas ladras de tempo, mas os conselhos continuaram exigi ndo relatórios de atividades e resultados”, conta Ahlbäck Öberg. “Seria necessário que os 290 conselhos se entendessem para deixar os professores trabalhar em paz, o que é muito difíci l.” Privada assim de sua essência, a profissão já não seduz, tanto que um professor ganha, em geral, 200 euros a menos que o salário médio. “Filhos de professores não querem mais ser professores: é um sinal”, observa Bertilsson. “Além do mais, os bons alunos, para quem a escolha dessa profissão era outrora um caminho natural, foram aos poucos ignorando-a.” Nota-se uma queda no número de candidatos dos cursos de formação de professores, que se tornam cada vez menos seletivos. Contratados diretamente pelas escolas com base em currículos e cartas de apresentação, os professores ficam submetidos às regras do mercado de empregos, o que agrava as desigua ldades entre os estabelecimentos. “Os melhores querem trabalhar onde os alunos tiram notas mais altas”, observa Bertilsson. Embora isso seja ilegal desde 2006, quase um quarto dos professores de colégio trabalharam sem diploma em 2017-2018, segundo a Skolverket, a agência de educação nacional. Como o diploma é exigido para a adesão a um sindicato, a mobilização se torna difícil. Alguns ignoram até que dispõem do direito de greve, conforme se vê por uma pergunta feita com frequência no site de um sindicato. Eis uma verdadeira ofensa à rica história das lutas outrora conduzidas por uma profissão que, cansada da guerra, acabou depondo as armas.
PROFISSÃO DE PROFESSOR NÃO SEDUZ MAIS
Estudos recentes mostram que as atraem mais as famílias prós friskolor friskolor atraem peras. “Imigrantes e membros de famílias pobres não nos procuram”, confirma Arsenau-Buissière. “Temos quinhentos alunos na lista de espera e seus pais querem matriculá-los porque conhecem o sistema.” Pesquisador independente que estuda a segregação gerada por esse modo de organizar a educação, Per Kornhall acrescenta: “Quando acaba de se instalar num país cuja língua desconhece, você não tem muito acesso a boas informações. E as matrículas são feitas imitando os amigos, os vizinhos...”. Para compensar a falta de informação, no site da cidade de Estocolmo há u m quadro comparativo que mostra uma lista das escolas segundo critérios como resultados de pesquisas de satisfação junto aos alunos, número de alunos por professor ou porcentagem de professores diplomados. Ex-defensores da reforma reconhecem seu erro: “Subestimamos a força do poder econômico”, admite Åsa Fahlén, presidente do sindicato de professores Lärarnas Riksförbund. “A sociedade sueca é muito ingênua.” Ela nos recebe na sede do sindicato, situado em frente ao túmulo de Olof Palme, primeiro-ministro assassinado em 1986 e encarnação do socialismo à maneira sueca de outrora: trabal hista, terceiro-mundista, ceiro-mundista, feminista e favorável a um Estado forte. Fahlén reconhece o papel desempenhado pelos dois principais sindicatos – Lärarnas Riksförbund e Lärarforbundet – na adoção das reformas: “Éramos favoráveis a escolas particulares com diferentes tipos de pedagogia”, admite ela, sorrindo. “Isso deveria aumentar o pluralismo, a diversidade, e favorecer uma concorrência benéfica para os salários. Mas o que aconteceu foi o contrário.” Para Emil Bertilsson, 5 professor de Ciências da Educação da Universidade Universidade de Uppsala, “os sindicatos contribuíram para a degradação da condição dos professores”. “Eles passam mais tempo redigindo relatórios do que le-
*Violette Goarant é
jornalista em Estocolmo.
1 Serviço de Imprensa de Skolverket, a agência de educação nacional. 2 “PISA à la lupe” [Pisa sob a lupa], OCDE, Paris, 2016. Disponível em: . 3 “Statistiques sur les dépenses d’éducation” [Estatísticas das despesas da educação], Eurostat. Disponível em: . 4 “Fler utsätts vör våld i skolan”, skolan”, Dagens Samhälle, Estocolmo, 12 abr. 2018. 5 Emil Bertilsson, “Skolla¨rare. Rekrytering till utbildning och yrke 1977-2009”, 1977-2009”, 23 maio 2014. Disponível em: . 6 “Lärarnas yrkesvardag”, Skolverket, 2013. 2013. Disponível em: . 7 Nota informativa do Ministério da Educação Nacional, Paris, jul. 2013.
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A militarização das escolas públicas públicas O cotidiano do aluno é profundamente alterado e o aprendizado é substituído pela repressão e por normas rígidas de comportamento. Ele é obrigado a vestir o uniforme militar completo de estudante. O corte de cabelo dos meninos segue o padrão militar e as meninas devem manter o seu preso. Esmalte escuro é proibido. Mascar chiclete, falar palavrão ou se comunicar com gírias também são práticas banidas POR RUDÁ RICCI*
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educação pública brasileira se tornou objeto de desejos estranhos ao mundo da educação. Nos anos 1990, foi percebida como um grande mercado. Empresas se lançaram na captura das redes educacionais públicas. Começaram prestando assessorias técnicas e cursos de formação. Logo, avançaram sobre a venda de apostilas com conteúdo educacional e cursos de formação. Mais tarde, incluíram equipamentos de informática e programas educacionais. Até que começaram começaram a adquirir adquirir escolas particulares e praticamente definir a concepção curricular de muitas redes municipais de ensino. Levantamento da ONG Ação Educativa e do Grupo de Estudos e Pesquisas em Políticas Educacionais (Greppe) identificou que, em 2013, 339 municípios brasileiros adotaram esses sistemas priv ados de ensino, sendo 159 deles em São Paulo. Em 2015, esse último número subiu para 182 das 645 cidades paulistas. Em seguida, a educação pública passou a ser palco de disputa do conteúdo a ser ministrado. Escola sem Partido, ONGs que passaram a terceirizar oficinas de reforço ou complementação curricular, fundações e institutos que sugeriram conteúdos ou reformas educacionais às redes públicas. A própria formulação da Base Na-
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cional Comum Curricular (BNCC) foi palco de uma ofensiva política de grande impacto por empresas e bancadas parlamentares vinculadas a interesses religiosos e empresariais. Entre as iniciativas de captura das redes públicas de ensino, a mais esdrúxula foi a entrega de sua gestão às corporações militares. Goiás, Distrito Federal, Roraima, Pará, Amazonas, Bahia, Santa Catarina, Ceará, Tocantins, Sergipe, Piauí. Governos estaduais governados por partidos distintos e até adversários convergem na adoção da militarização da gestão das escolas públicas. Os motivos alegados são invariavelmente impressionistas, fincados em relatos de violência no interior das escolas. Outras localidades já adotaram ou pretendem pretendem adotar a medida. É o caso de Santa Catarina, cujo governo estadual, representantes da Polícia Militar e os secretários executivos das Agências de Desenvolvimento Regional decidiram implantar unidades educacionais militarizadas em Blumenau, Joinville e Laguna a partir de 2018. Em Florianópolis e Lages já existem unidades escolares públicas militarizadas. Em Manaus, o modelo de gestão militar foi colocado em prática pelo prefeito Artur Virgílio Neto, do PSDB, na escola que agora se chama 3º Colégio Militar da PM Pro-
fessor Waldocke Fricke de Lyra. Goiás conta, hoje, com o maior índice de escolas militarizadas no país: um total de 26, seguido por Minas Gerais, com 22, e pela Bahia, com 13, de acordo com dados das secretarias estaduais de Educação. A medida segue um roteiro midiático focado na espetacularização dos casos de violência, como no caso da escola estadual Fernando Pessoa, em Valparaíso (GO). Para criar comoção comoção e envolver a comunidade escolar no apoio à militarização, foi divulgado à exaustão o sequestro relâmpago de uma professora da escola, além do assassinato de um ex-aluno e o tráfico de drogas no banheiro da unidade escolar. Um caso extremo e grave que é estampado como padrão estadual. Em seguida, foram anunciados os convênios que entregaram a administração das escolas a um militar. mil itar. No caso de Goiás, a direção pedagógica ficou alinhada à Secretaria Secretar ia de Educação, mas essa não é a regra em outros estados. A partir parti r de então, são adotados os princípios básicos militares de hierarquia e disciplina em cada un idade escolar. escolar. Os mesmos argu mentos espetaculares e dramáticos foram realçados nas justificativas para a adoção desse modelo de gestão em Sergipe. Destacaram fartamente o caso de um pro-
fessor de uma escola estadual da cidade de São Cristóvão, baleado por um aluno de 17 anos insatisfeito com a nota que recebera. Em A racaju, a diretora de uma escola municipal foi espancada e golpeada com uma caneta por um adolescente de 16 anos que acabara de ter sido suspenso por ter causado uma explosão dentro do banheiro da escola. Foi a senha para a instalação do processo de militarização em várias escolas estaduais. O efeito-demonstração é outra técnica adotada para o convencimento público. Destaca-se não apenas o impacto sobre a redução dos índices de violência, mas os resultados pedagógicos. Em Goiás, as cinco melhores escolas públicas são administradas pela PM, assim como as seis melhores escolas públicas baianas. No Ceará, a melhor escola pública é gerida pela PM, e a quarta melhor, pelo Corpo de Bombeiros Militar. No Distrito Federal, a melhor escola pública é o Colégio Dom Pedro II, sob o comando e responsabilidade do Corpo de Bombeiros Militar. Em Tocantins, o Colégio da Polícia Militar já é uma das melhores escolas públicas. O desempenho diferenciado dos alunos de escolas militares em exames de proficiência como Prova Brasil e Enem tem dado força à visão de
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que essas instituições deveriam servir de referencial para as escolas públicas do Brasil. O QUE É ALTERADO COM A MILITARIZAÇÃO?
Entre as funções dos militares estão as de cunho administrativo – o comandante e o subcomandante fazem parte do corpo diretivo – e as de coordenadores denadores de disciplina, responsáveis por fazer que os alunos cumpram as regras da cartilha militar. O cotidiano do aluno é profundamente alterado e o aprendizado é substituído pela repressão e por normas rígidas de comportamento, na quase totalidade dos casos. Ele é obrigado a vestir o uniforme militar completo de estudante. Camisa para fora da calça pode gerar advertência. O corte de cabelo dos meninos segue o padrão militar e as meninas devem manter o seu preso. Esmalte escuro é proibido, assim como acessórios muito chamativos. Mascar chiclete, falar palavrão ou se comunicar com gírias também são práticas banidas da escola desde que ela se tornou militar. Ao chegarem à escola, o cumprimento passou a ser uma continência. Em seguida são perfilados em formação militar, seguida da revista de um coordenador de disciplina. Uma vez por semana há também a formação geral para cantar o Hino Nacional e o Hino à Bandeira, hasteada conforme manda o protocolo militar. Ao currículo oficial nacional os militares adicionaram aulas de música, cidadania, educação física mil itar, ordem unida, prevenção prevenção às drogas e Constituição Federal. Quem estuda no colégio militar Fernando Pessoa é convidado a “contribuir voluntariamente” com o pagamento de uma matrícula (R$ 100) e de uma mensalidade (R$ 50). O custo para o aluno inclui também a compra do uniforme milita r, no valor de R$ 150. 150. Com a implantação da militarização em diversas escolas, o quadro de docentes passou a ser formado por professores da rede estadual e por policiais militares com licenciaturas específicas. São distribuídas honrarias aos alunos que atingem médias acima de 8,5 pontos em todas as disciplinas e registros de bom comportamento. MILITARIZAÇÃO DO ENSINO EM UMA SOCIEDADE PUNITIVA
Michel Foucault, numa série de conferências que realizou em 1973 no Collège de France, tratou da lógica da sociedade punitiva. Para o autor, as sociedades contemporâneas não apenas excluem, mas também assimilam o que consideram anormais. O doente apareceria como objeto de um saber científico que o enquadra socialmente. Foucault destaca quatro formas de táticas punitivas:
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1. A exclusão, que exila; 2. A compensação, que impõe reparo à vítima do dano e provoca obrigações àquele que é considerado infrator; 3. A marcação, que impinge uma cicatriz, u ma mácula simbólica no nome do não ajustado, que humilha e reduz seu status; 4. O encarceramento, que gera a reclusão e se impõe como expediente entre os séculos XVIII e XIX. A disciplinariz ação da juventude estaria emoldurada por essa lógica punitivista, em especial, definida pelas táticas da compensação e marcação, tal como sugere Foucault. O portal Desacato, fundado em 25 de agosto de 2007, publicou “5 razões contra a militarização de escolas”, que sintetizam os principais elementos dessa lógica punitivista. Seriam elas: 1. O despreparo educacional dos policiais, que substituem o debate de ideias pela coerção; 2. A adoção do regime disciplinar arbitrário; 3. A relativização dos conceitos de direito, garantias e liberdades, subordinados a um rol de deveres; 4. A associação da noção de bom cidadão à obediência, mesmo que isso o tolha de suas individualidades e direitos, perpetuando ainda mais as desigualdades e a discriminação; 5. A apologia ao regime de dominação rigorosa, reafirmando o ciclo de dominação e violência na qual se formaram. Outros especialistas corroboram a crítica à política do terror e à instalação do medo para o cumprimento e a aceitação de regras em detrimento do processo educativo. “Resolve a violência por causa do medo da repressão, mas não resolve o problema real”, defende Miriam Abramovay, doutora em Ciência da Educação e coordenadora do Observatório de Violência nas Escolas do Brasil. A escola atestaria, ao adotar práticas exógenas aos processos educativos, que se tornou incapaz de superar os quadros de indisciplina, de educar, segundo a especialista. O método da disciplina que proíbe o uso de palavrões e de um linguajar mais despojado também é questionado por Abramovay: “Falar “Falar palavrões e usar g írias é normal entre os jovens, faz parte da linguagem juvenil; em alg um momento sai palavrão. Proibi-los disso é mais uma forma de repre ssão”. ssão”. Por último, últi mo, a pesquisadora pontua que não há números concretos que comprovem a eficiência dos militares no combate à violência na escola: “Nos Estados Unidos, quando a polícia entrou nas escolas, a violência só aumentou. Sabemos isso porque lá tem números, aqui não temos. Os adolescentes e jovens estão sempre tentando burlar as formas de repressão que sofrem, por isso não se resolve a violência v iolência desse jeito”.
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Coral do Colégio Militar de Brasília durante desfile do 7 de Setembro
Já a Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (Anped) publicou em seu site o artigo “Militarização de escolas públicas – solução?”, no qual sustenta que o cenário de violência nas escolas tem relação com as condições de trabalho nas unidades escolares que aderiram a esse projeto. Segundo o artigo, o Fórum Estadual de Educação (FEE) de Goiás repudiou a militarização, por ir contra os “princípios constitucionais de uma escola pública, gratuita, democrática, com igualdade de condições de acesso e permanência, pautada no pluralismo de ideias e concepções pedagógicas”. O FEE-Goiás elencou quatro pontos principais que demonstram a problemática desse novo ambiente escolar aos quais o fórum se opõe: “Determinar a cobrança de taxas em escolas públicas; implantar uma gestão militar que não conhece a realidade escolar, destituindo os diretores eleitos pela comunidade escolar; impor a professores e estudantes as concepções, normas e valores da instituição militar, comprometendo o processo formativo plural e se apropriando do espaço público em favor de uma lógica de gestão militarizada; reservar 50% das vagas da escola para dependentes de militares”. A coordenadora do FEE-Goiás, a professora professora Virgi nia Maria Pereira de Melo, acredita que os resultados obtidos nas escolas militariz adas, os quais têm seduzido parte da sociedade, advêm de “uma situação privilegiada e são decorrentes não da gestão militar, mas das condições diferenciadas efetivamente oferecidas. Caso essas mesmas condições estivessem presentes nas demais escolas públicas, elas e seus profissionais seriam com certeza capazes de assumir o trabalho com a competência necessária”. A professora também aponta como esse caminho tem se afastado do “ideal republicano definido após longos debates no Plano Nacional de Educação, que
garante educação pública de qualidade a todos os cidadãos, sem nenhum tipo de distinção”. Estudo elaborado por Alesandra de Araújo Benevides Benevides (UFC, (UFC, campus de de Sobral) e Ricardo Brito Soares (Caen/ UFC), intitulado “Diferencial de desempenho das escolas militares: bons alunos ou boa escola?”, relativiza a relação entre gestão militarizada e desempenho escolar de seus alunos. Segundo os autores: “Esta atribuição direta do diferencial como efeito escola é questionável dado que seus alunos são diferenciados tanto por características familiares como pelo acúmulo de conhecimentos (condição inicial), e o próprio processo de seleção que as escolas militares estabelecem. Desta forma, estimou-se uma função de produção à la Hanushek, na qual o efeito escola está dissociado do efeito de heterogeneidade dos alunos, relacionado tanto a características familiares atuais como a seu acúmulo de conhecimento passado. Utilizou-se o método de pareamento CEM (Coarsened Exact Matching) como estratégia de seleção de amostra para permitir isolar os efeitos dos alunos que já eram bons antes de chegarem ao ano letivo em análise (9º ano do ensino fundamental). O diferencial de desempenho dos alunos militares t anto se deve ao fato de estes serem bons alunos quanto à boa estrutura e qualidade das escolas. Quando há o controle da performance anterior dos estudantes, observa-se uma queda de mais de 50% deste diferencial de notas”. notas”. O estudo corrobora, em síntese, os argumentos apresentados pela Anped. Nos últimos anos houve reação de estudantes secundaristas à terceirização da gestão de escolas estaduais de Goiás. A resposta do governo foi o uso da força. Vale recordar que, desde 2011, a Secretaria Estadual de Educação desenvolveu a reforma educacional intitulada Pacto pela Educação, que adotou
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como referência o documento “Pacto pela educação: um futuro melhor exige mudanças”. O projeto foi estruturado pela empresa de consultoria Bain & Company, sediada em Boston, responsável pela reforma educacional de Nova York York e Boston Boston e, no Brasil, do Amazonas. A Fundação Fundação Itaú também se envolveu envolveu com a reforma goiana. goia na. Em 2012, a reforma motivou uma greve dos profissionais da educação que du durou rou 51 dias. O movimento dos estudantes secundaristas destacou três grandes bandeiras: fim da militarização dos colégios estaduais, saída das organizações sociais (OSs) da educação e reabertura do Colégio Estadual José Carlos de Almeida (fechado em 2014, sem consulta prévia à comunidade escolar). O movimento chegou a ocupar a Secretaria de Educação, Cultura e Esporte (Seduce) de Goiás, em 2016. Segundo Criz Abreu, do grupo de articulação da ocupação, “diante das tentativas frustradas de dialogar com o governador e com a secretária de Educação [Raquel Teixeira], nós ocupamos a Seduce”. Goiás foi um dos estados com maior destaque de escolas estaduais ocupadas por secundaristas em 2016. No início de dezembro daquele daquele ano, alunas e alunos da rede estadual ocuparam 27 escolas, envolvendo as cidades de Anápolis, Cidade de Goiás, Goiânia e São Luís de Montes Belos. Algumas escolas sofreram processo de reintegração e foram desocupadas, por conta da constante pressão da Secretaria Estadual de Educação, com apoio da Associa ção de Pais. Segundo relatos publicados nas redes sociais, policiais atropelaram dois alunos de uma escola estadual goiana, pularam o muro sem ma mandato ndato de reintegração de posse e ordenaram que todos saíssem do colégio, dando tapas, cadeiradas e chutes até em crianças. Segundo matéria publicada na revista Época (23 Época (23 jun. 2018), 2018), atualmente
Goiás conta com 46 escolas, com 53 mil alunos, sob administração da PM. Há cinco anos, o estado tinha apenas oito colégios militares. De 2013 para cá, trinta escolas foram retiradas da administração civil da Secretaria de Educação e transferidas para a PM. Outras 39 escolas estão em processo de militarização. A mesma matéria matéria indica que, entre 2013 e 2018, o número de escolas estaduais geridas pela Polícia Militar saltou de 39 para 122 em catorze estados da Federação, aumento de 212%. Em 2019, outras setenta escolas deverão ser colocadas sob a gestão de militares nesses estados. A militarização das escolas públicas é mais intensa no Norte e no Centro-Oeste. O MODELO PEDAGÓGICO TRADICIONAL: A SUBMISSÃO CONSEN TIDA
Do ponto de vista pedagógico, a militarização das escolas públicas se apoia numa velha concepção educacional do início do século XX, sugerida por Émile Durkheim. Para o sociólogo e professor de pedagogia francês, a “submissão consentida” do educando seria um objetivo prioritário da educação para que ocorra sua socialização. Segundo ele, o papel da educação é a socialização, ou seja, um processo em que se eleva o educando (a criança) de um estágio egocêntrico e selvagem para o de moralização, aceitação de regras de convívio e conduta social. As regras, lembremos, lembremos, são prescritas, segundo Durkheim, pela religião e pela educação laica. Tais instituições imporiam regras e normas que garantiriam a coesão social. Em A Em A educação moral , Durkheim destaca os elementos da moralidade: o espírito da disciplina, a adesão aos grupos sociais e a autonomia da vontade. A escola teria, para o autor francês, a responsabilidade de gerar uma moral racional, com refinamento de sua sensibilidade moral. Ao estudante caberia certa passivi-
dade, na medida em que regras morais A mi litari zação das escola s públi já estabelecidas socialmente nortea- cas é mais uma faceta dessa expeririam e adestrariam sua pulsão à liber- mentação que assola o meio educaciodade sem regras. nal brasileiro, cujos resultados são O fundamento de toda concepção pouco estudados e o impressionismo educacional tradicional não é cons- é seu maior avalista. truir a autonomia do educando, mas Nas décadas passadas, esse experisua submissão. Esse é o centro do de- mentalismo jogou a educação norte-abate educacional que o Brasil parece se mericana num fracasso desmoralizanegar a fazer. Ao adotarmos políticas dor. A adoção de modelos empresariais, imediatistas, definidas ao calor da cri- focados em avaliações externas e prese por que passamos, sem reflexão ou miação de resultados, motivou fraudes avaliativa s e baixa aprendizagem. Os esprofundidade, profundidade, e muitas vezes al imen- avaliativas tadas por intenções populistas e de ga- tudantes passaram a ser treinados para rantia de resultados espetaculares, fazer testes, mas não para pensar ou demesmo que pouco duradouros, nos jo- senvolver a inteligência. Quem sustenta gamos na aventura e no desperdício de essa crítica foi a formuladora da reforrecursos que afetarão a vida de mi- ma, Diane Ravitch, que detalha os erros cometidos em seu livro Vida e morte do lhões de crianças e adolescentes. grande siste sistema ma escola escolarr americ americano: ano: como como A militariz ação das escolas públi- grande cas está inserida nessa discussão ina- os testes padronizados e o modelo de mercabada ou até mesmo inexistente. cado ameaçam a educação (publicado educação (publicado Convivemos com concepções díspares no Brasil pela editora Sulina, em 2011). em nosso país em termos de concep A milita rização das escolas é mais ção educacional. Concepções tradicio- uma aventura nessa direção, nascida nais (aquelas baseadas na formatação da falta de definição de nosso paí s em dos educandos para corresponderem relação aos princípios e objetivos eduàs expectativas do mercado de traba- cacionais que perseguimos. Uma inlho ou de uma conduta social padroni- coerência que conflita até mesmo com zada), concepções críticas (que priori- dados oficiais. Esse é o caso de recenzam situações de reflexão crítica sobre tes estudos realizados pelo IBGE que o mundo em que vivemos e nossas op- indicam que o principal fator de deções, tendo a construção da autonomia sempenho escolar nas redes públicas como objetivo pedagógico) e concep- brasileiras é o grau de instrução das ções pós-estruturalistas (focadas em mães dos alunos. Mães com quatro experiências pessoais e grupais, nas anos de estudo formal têm filhos com identidades identidades culturai s e comportamen- três vezes melhor desempenho que tais e nas pequenas narrativas cotidia- alunos cuja mãe nunca est udou. nas) se sobrepõem ou se digladiam Mas, para nossos gestores da área diariamente nas escolas e redes de en- educacional, dados e avaliações rigorosino brasileiras, criando um relativis- sas pouco interessam quando o objetimo pedagógico cujas vítima s são obje- vo é criar um programa espetaculoso, que polemiza e atrai a atenção, um atato de tal irresponsabilidade. irresponsabilidade. Tamanha relativização sobre o pro- lho que pode dizer muito em termos jeto educacional educacional do país abre possibili- eleitorais, mas pode interditar o futuro dades de todos os tipos: do pot-pourri de nossas crianças e adolescentes. de oficinas sem unidade pedagógica entre si às reformas educacionais educacionais fu n- *Rudá Ricci é doutor em Ciências Sociais dadas na venda de assessoria (e equi- pela Unicamp e diretor-geral do Instituto Culpamentos)externos. tiva em Minas Gerais.
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GRANDES E PEQUENOS SEGREDOS DO LOBBY ISRAELENSE NOS ESTADOS UNIDOS
Como Israel espiona norte-americanos Investigação realizada pelo canal catari Al Jazeera revela os métodos dos grupos de pressão norte-americanos favoráveis a Israel. Entretanto, preocupado em não se isolar dessas organizações em sua disputa com a Arábia Saudita, o Catar congelou a exibição da reportagem POR ALAIN GRESH*
a tela, ele surge como um perfeito cavalheiro. A despeito de seu ar de estudante, Anthony Kleinfeld, um jovem judeu britânico adequado em todos os aspectos – formado na prestigiada Universidade de Oxford, fala seis línguas, entre as quais o holandês e o iídiche, e navega sem dificuldade nos mistérios dos conflitos no Oriente Médio –, encontraria facilmente lugar nos gabinetes de um ministério das relações exteriores ocidental ou de um think tank res respeitável. Por ora, ele tem outros planos: envolver-se com as organizações pró-Israel. Kleinfeld foi recrutado pelo The Israel Project (TIP), que se dedica a manter a boa imagem de Israel na mídia. Recebido de braços abertos por causa de suas competências, faz cinco meses que está ao lado da nata dos membros de associações engajadas na defesa incondicional de Israel, incluindo o poderoso lobby pró-Israel nos Estados Unidos, o American Israel Public Affai rs Comittee (Aipac).1 Com eles, Kleinfeld circula por coquetéis, congressos, convenções, estágios de formação para militantes, tecendo conexões aqui e ali. Agradável, caloroso, eficiente, o rapaz ganha a confiança dos interlocutores, que falam com ele de coração aberto, deixando de lado os eufemismos e os “elementos de linguagem” convencionais. E suas confidências são explosivas. Como eles influenciam o Congresso? “Os membros do Congresso não fazem nada sem pressão, e a única forma de pressioná-los é o dinheiro.” Como combatem os militantes pelos direitos dos palestinos nos campi universitários? “Com os anti-israelenses, o mais eficaz é fazer pesquisas sobre eles, colocar informações em um site anônimo e divulgá-las por meio de anúncios direc ionados no Facebook.” Com uma franqueza ampliada pelo fato de acreditarem estar se abrindo para um amigo, os interlocutores de Kleinfeld admitem realizar operações de espionagem de cidadãos norte-americanos, com a ajuda do Ministério dos Assuntos Estratégicos de Israel. Criado em 2006, o órgão é direta mente ligado
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ao primeiro-ministro Benjamin Netanyahu. Um de seus líderes confia a Kleinfeld: “Somos um governo que trabalha em território estrangeiro e devemos ser muito, muito cuidadosos”. Realmente, já que algumas de suas ações poderiam ser levadas aos tribunais dos Estados Unidos. Quando terminou o estágio de “Tony”,2 Eric Gallagher, seu chefe na TIP, estava tão satisfeito com seus serviços que quis contratá-lo. “Eu adoraria que você viesse trabalhar para mim. Preciso de alg uém que tenha espírito de equipe, trabalhe duro, seja apaixonado, curioso, bem treinado, fale bem, tenha leitura. Você é tudo isso.” Mas seu pupilo recusou. Isso porque, como já se adivinhou, ele não era exatamente quem dizia ser, embora seus diplomas e competências sejam indiscutíveis: ele era um infi ltrado, enviado pela Al Jazeera, propriedade do emirado do Catar, para fazer um documentário sobre o lobby pró-Israel. Com uma câmera escondida, ele filmou algumas das confidências que ouviu e, com outros membros de uma
equipe liderada por Phil Rees, da unidade de investigação do canal, reuniu todos os ingredientes de um documentário espetacular. Sua divulgação era aguardada com grande expectativa, especialmente depois de uma reportagem da Al Jazeera sobre o lobby pró-Israel no Reino Unido 3 ter mostrado, em 2017, as ingerências israelenses nos assuntos internos de um país estrangeiro e suas tentativas de derrubar um ministro visto como pró-palestino – o que levou a um pedido público de desculpas do embaixador em Londres e ao precipitado retorno para Tel Aviv de um diplomata de alto escalão. Assim, era esperado esperado um aconteciacontecimento midiático, com suas negativas indignadas e violentas polêmicas. Mas não: a exibição, programada para o início de 2018, foi adiada indefinidamente, indefinida mente, sem explicações oficiais. Acabamos sabendo, sobretudo por artigos na imprensa judaica norte-americana,4 que o documentário não seria exibido, o que foi confirmado por Clayton Swisher, diretor da unidade de investigação do canal, em um artigo no qual lamenta a de-
cisão e anuncia um período sabático.5 O documentário foi sacrificado na impiedosa batalha travada entre o Catar, de um lado, e a Arábia Saudita e os Emirados Árabes Unidos, de outro, para merecer os favores de Washington no conflito que os opõe desde junho de 2017. 6 E que melhor maneira de vencê-la do que ganhando a simpatia do poderoso lobby pró-Israel, com sua conhecida influência na política norte-americana no Oriente Médio? Para mudar a balança, o Catar “adiou” a exibição planejada, obtendo em troca a ajuda inesperada de parte da ala direita de um lobby que, como um todo, já se localiza bem à direita. Morton Klein, presidente da Organização Sionista da América (Zionist Organization of America, ZOA), amigo de Stephen Bannon, ex-assessor do presidente Donald Trump, chegou a visitar Doha e alegrou-se por ter enterrado o documentário (ver boxe). O fato de tais grupos, que há pouco acusavam o Catar de financiar o Hamas Hama s e o terrorismo, terem terem concordado em mudar de lado, em troca da contenção do documentário, diz muito sobre o caráter embaraçoso das revelações que ele contém. Engavetar um trabalho que durou mais de um ano causou rebuliço no canal. Havi a quem desejasse que as revelações não afundassem na areia movediça dos compromissos geopolíticos. Foi por isso que conseguimos assistir, por intermédio de um amigo que vive no Golfo, aos quatro episódios do documentário, de 50 minutos cada, em sua versão quase final. O que chama a atenção é a febre que tomou conta do lobby há alguns anos, provocado por um medo surdo de perder influência. Como explicar isso, quando o apoio a Israel é maciço nos Estados Unidos e os eleitos dos dois partidos – Republicano e Democrata – dão total aval a qualquer aventura do país? A eleição de Trump não levou os Estados Unidos a desistir de qualquer vontade de assumir o papel de mediador no conflito árabe-israelense e a sentar-se sem disfarces ao lado do governo mais à direita da história de Israel? Sem dúvida. Mas, nessa
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paisagem aparentemente favorável, um espectro assombra o lobby: o do BDS, sigla do movi mento Boicote, Desinvestimento e Sanções. Lançado em 2005, o BDS propõe aplicar a Israel os métodos não violentos que se mostraram bem-sucedidos contra o apartheid da África do Sul. Ele floresceu nas universidades norte-americanas. Mas deveríamos mesmo nos alarmar? – pergunta-se David Brog, diretor executivo do Christians United for Israel (Cristãos Unidos por Israel, Cufi) e do Maccabee Task Force, um dos grupos que lutam contra o BDS. “Israel é a ‘start-up nation’. O país recebe mais investimentos estrangeiros hoje do que em qualquer outro momento de sua história. Então, que tal nos acalmarmos, percebermos que o BDS não significa nada e apenas o ignorarmos?” E insiste: “Eu acho que o BDS nunca teve como objetivo que as universidades retirassem seus investimentos de Israel. Quanto ao din heiro, podemos ficar tranquilos. Mas, se tomarmos consciência dos esforços realizados para cavar um fosso entre nós, que amamos Israel, e a próxima geração, acho que devemos nos preocupar. Entre os jovens nascidos após o ano 2000 e os estudantes, nossa situação é ruim. Esta mos chegando ao ponto em que a maioria é mai s favorável aos palestinos do que aos israelenses”. Jacob Baime, diretor executivo do Israel on Campus Coalition, um grupo de organizações que emprega mais de uma centena de pessoas para combater o BDS nas universidades, preocupa-se: “A única coisa que todos os membros do Congresso, todos os presidentes, todos os embaixadores têm em comum é o fato de terem passado algum tempo na universidade, e foi durante esse período que foram formados”. formados”. No fut uro, eles ainda serão “amigos de Israel”?
rio, e, sempre que a presidência mudar, a política em relação a Israel correrá o risco de mudar. Isso é perigoso para Israel. É isso que está em jogo na batalha nas universidades”. John Mearsheimer, autor de um famoso livro7 sobre o lobby, cujos comentários pontuam o documentário, confirma. Ele constata que, agora, o apoio a Israel cresce no Partido Republicano, mas diminui no Democrata: “Há uma diferença substancial entre os dois partidos”.
DESACREDITAR O MENSAGEIRO
Há mais uma coisa que preocupa o lobby. O apoio a Israel sempre transcendeu as divisões entre democratas e republicanos. Barack Obama, poucos meses antes do fim de seu mandato, colocou em votação uma ajuda incondicional de US$ 38 bil hões a Israel em dez anos, apesar de suas relações detestáveis com Netanyahu. Mas a paisagem política está mudando, e o alinhamento incondicional do lobby a Trump reduz sua base, que se resume cada vez mais ao Partido Republicano e à direita evangélica. David Hazony, ex-diretor da The Tower Magazine e membro influente do TIP, admite isso no documentário: “O boicote imediato a Israel não é um problema. O maior problema é o Partido Democrata, os partidários de Bernie Sa nders, nders, todos os anti-israelenses anti-israelenses que eles trazem para o Partido Democrata. Ser pró-Israel logo não será mais um consenso bipartidábipartidá-
“Ligaram para meu empregador pedindo que eu fosse demitida, demitida, ameaçando denunciá-lo como antissemita se ele não fizesse isso” Como conter essa mudança? mudança? Part icipando de um debate político? Difícil, pois desde o fracasso dos acordos de Oslo, em 1993, Israel tem sido liderado por partidos de extrema direita que recusam qualquer solução diplomática. Não se pode discutir o destino dos palestinos, o futuro dos assentamentos ou a tragédia de Gaza. E a ligação do lobby a Netanyahu e a Trump é pouco propícia a despertar o entusiasmo dos estudantes norte-americanos. O jornalista Max Blumenthal observa que é essa tática de recusar a discussão que o lobby mobiliza em relação ao documentário da Al Jazeera: tratar o jornalismo de investigação como “espionagem”; desacreditar o canal, reduzindo-o a seu proprietário, o Catar; afirmar que o assunto é “o lobby judaico”, e não o apoio a Israel (Twitter, 15 fev. 2018); e, assim, evitar qualquer discussão sobre o conteúdo das revelações e sobre a política israelense. Diretor executivo do Comitê de Emergência para Israel (Emergency Committee for Israel, ECI), Noah Pollak resume a linha adotada perante os críticos: “Para desacreditar a mensagem, desacredite o mensageiro. Quando você fala sobre o BDS, precisa di zer que é um grupo que defende o ódio, a violência contra os civis. Isto é, que apoia o terrorismo”. E, claro, que é antissemita. E a organização Voz Judaica pela Paz (Jewish Voices for Peace, JVP)? Ele prefere chamá-la de “Voz Judaica pelo Hamas”... Hamas”... Mas continua oti mista, pois, como explica para “Tony”, a maioria dos norte-americanos continua favorável a Israel, enquanto o Reino Unido “é ódio puro. Vocês deixaram metade desses paquistaneses de m... se instalarem em seu país”. Para “desacreditar o mensageiro” é preciso acumular informações varia-
das, que vão da vida privada às atividades profissionais, passando pelas convicções políticas. Nos últimos anos, o lobby pró-Israel armou uma rede de espionagem. “Nossas operações de pesquisa”, orgulha-se Baime, “contam com tecnologia de ponta. Quando cheguei, há algu ns anos, nosso orçamento era de alguns milhares de dólares; hoje é de 1,5 milhão, ta lvez 2. Nem sei di reito, é enorme.” Mas ele e seus amigos tentam ficar “invisíveis”: “Fazemos “Fazemos isso de manei ra segura e anônima – essa é a chave”. Entre os grupos mais temidos pelos pelos militantes favoráveis aos direitos dos palestinos está a Canary Mission,8 cujo financiamento, membros e funcionamento permanecem secretos. Um jornalista próximo ao lobby explica seu papel: “Aqueles que a odeiam, que são alvo dela, falam em ‘lista negra’. Há nomes, de estudantes e professores universitários, além de organizações que têm ligações com o terrorismo, ligações diretas ou com terroristas que pediram a destruição do Estado judeu”. O próprio site da organização resume seu objetivo: “Garantir que os radicais de hoje não sejam seus funcionários amanhã”. Sobre a biografia de cada vítima do pelourinho, o slogan: “Se você é racista, o mundo deve saber”. Kleinfeld conseguiu rastrear seu fundador e financiador, Adam Milstein, presidente do Conselho Israelo-Americano (Israeli-American Council, IAC), condenado à prisão por evasão fiscal em 2009, o que não o impediu de continuar suas atividades do fundo de sua cela. Ele expõe ao jovem sua filosofia: “Primeiro, investigá-los [os militantes favoráveis à Palestina]. Qual é seu projeto? Atacar os judeus, porque é fácil, porque é popular. Devemos desmascará-los pelo que são: racistas, pessoas hostis à democracia. Devemos Devemos colocá-los na defensiva”. E acrescenta: “Eles não são apenas antissemitas, são também inimigos da liberdade, do cristianismo, da democracia”. Diversos estudantes falam dos riscos que correm. Summer Awad, que participou da campanha pelos direitos dos palestinos em Knoxville, no Tennessee, conta como foi assediada no Twitter, como “eles” “eles” postaram informai nformações sobre ela há mais de dez anos: “Eles cavaram e continuam cavando. Ligaram para meu empregador pedindo que eu fosse demitida, ameaçando denunciá-lo como antissemita se ele não fizesse isso”. Esses métodos de denúncia podem significar assassinato profissional ou, para um estudante, complicar a busca por emprego no final do curso. Alguns dos acusados enviaram “mensagens de arrependimento”, que são publicadas em uma seção especial do site da Canary Mission, 9 em troca da remoção de seu nome da lista negra: “confissões” anônimas nas quais
explicam que foram “enganados”, muito parecidas com aquelas arrancadas dos suspeitos de simpatias comunistas do tempo do macarthismo, nos Estados Unidos dos anos 1950, ou em regimes autoritários da atualidade. “É guerra psicológica. Eles estão aterrorizados”, comemora Baime. “Ou param, ou gastam seu tempo fazendo pesquisa [sobre as acusações feitas contra eles] em vez de atacar Israel. É muito eficaz.” Outro interlocutor de “Tony” lamenta, no entanto, que “difamar alguém chamando-o de antissemita não tenha mais o mesmo impacto”. Essas cruzadas, que dependem da coleta de dados pessoais de cidadãos norte-americanos, não seriam possíveis sem os meios concedidos pelo Ministério de Assuntos Estratégicos de Israel. A diretora-geral do órgão, Sima Vaknin-Gil, reconheceu isso em uma conferência no IAC: “Coletar dados, analisar informações, trabalhar em organizações militantes, seguir o dinheiro, tudo isso é algo que só um país com os recursos que ele possui pode fazer direito”. E acrescenta: “O fato de o governo israelense ter decidido ser um ator fundamental significa muito, pois podemos oferecer competências que as ONGs envolvidas na questão não possuem. Somos o único ator da rede pró-Israel que pode preencher as lacunas. [...] Temos Temos orçamento e podemos colocar na mesa coisas bem diferentes”. Em seguida, suas palavras são ameaçadoras: “Todos que têm algo a ver com o BDS deveriam se perguntar duas vezes: devo escolher este lado ou o outro? ”. VIOLAÇÃO DAS LEIS NORTE-AMERICANAS
Nesse trabalho de coleta de informações, Vaknin-Gil admite: “Temos a FDD e outros trabal hando [para nós]”. A Fundação para a Defesa das Democracias (FDD) é um think tank neoconservador que, nos últimos anos, tem desempenhado um papel importante na reaproximação entre os Emirados Árabes Unidos e Israel. No verão passado, ele participou da campanha contra o Catar e a Al Jazeera, acusando o canal de ser um instrumento de desestabilização regional. Mas, segundo a lei norte-americana, organizações ou indivíduos que trabalhem para um governo estrangeiro devem se registrar como tal no Departamento de Justiça. Este terá a ousadia de levar a FDD ao tribunal, por não cumprir os procedimentos?10 Como observa Ali Abunimah, que mantém o site The Electronic Intifada [Intifada Eletrônica]: “Se você tivesse a gravação de um alto funcionário russo ou iraniano, ou até canadense, reconhecendo que seu país conduz operações clandestinas de espionagem de cidadãos norte-americanos norte-americanos e usa para isso a fachada de uma organização
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norte-americana, seria uma bomba!”. Até porque essa cooperação cooperação não se limita à FDD, e muitos dos interlocutores de Kleinfeld, como Baime, só falam disso sob confidência, dizendo que o assunto é “delicado” e que é melhor não se alongar. O documentário contém outras revelações. A maneira como jornalistas dos Estados Unidos são “bancados” em Jerusalém pelo TIP,11 dirigidos, além de receberem matérias “prontas para usar”, que só precisam divulgar em seu país; o pagamento de férias de luxo para membros do Congresso dos Estados Unidos em Israel, contornando a própria lei norte-americana; as pressões exercidas sobre as mídias e agências de notícias para modificar notícias ou art igos... igos... Embora tudo pareça sorrir para Israel, seus partidários norte-americanos, apesar de todo seu poder, estão nervosos. O futuro parece estar ficando mais sombrio, inclusive nos círculos mais propensos a apoiá-los. Vaknin-Gil admite: “Perdemos a geração dos judeus nascidos depois do ano 2000. Seus pais me falam sobre as dificuldades que enfrentam com os filhos durante os jantares do Shabat. [Os mais jovens] não reconhecem o Estado de Israel e não nos veem como uma entidade a ser admirada”. *Alain Gresh
é diretor do jornal on-line
OrientXXI.info. 1 Ler Serge Halimi, “Le poids du lobby pro-israélien aux États-Unis” [O peso do lobby pró-Israel nos Estados Unidos], Le Monde Diplomatique, ago. 1989. 2 É assim que ele é chamado no documentário; seu sobrenome não é mencionado. 3 Ver: . 4 Cf., por exemplo, Richard Silverstein, “Israel lobby pressures Qatar to kill Al Jazeera documentary” [Lobby de Israel pressiona Catar a matar o documentário da Al Jazeera], Tikun Olam, 8 fev. 2018. Disponível em: . 5 Clayton Swisher, “We made a documentary exposing the ‘Israel lobby’. Why hasn’t it run?” [Fizemos um documentário expondo o “lobby de Israel”. Por que não passou?], The Forward , Nova York, 8 mar. 2018. 6 Ler Akram Belkaïd, “Le Qatar ne cède rien” [Catar não cede], Le Monde Diplomatique, mar. 2018. 7 John Mearsheimer e Stephen Stephen M. Walt, Walt, Le Lobby pro-israélien pro-is raélien et la politiq politique ue étrangère américaine
[O lobby pró-Israel e a política externa dos Estados Unidos], La Découverte, Paris, 2009. 8 The Forward , cujo leitorado é composto por uma maioria de judeus norte-americanos, publicou uma reportagem sobre a Canary Mission e o uso de suas informações pelas autoridades israelenses para interrogar cidadãos dos Estados Unidos “suspeitos” – inclusive judeus – que chegam a Israel. Josh Nathan-Kazis, “Canary Mission’s threat grows, from the US campus to Israel’s borders” [Cresce ameaça da Canary Mission, das universidades dos Estados Unidos às fronteiras de Israel], The Forward , 3 ago. 2018. Cf. também Peter Beinart, “I was detained at Ben Gurion Airport because of my beliefs” [Fui detido no Aeroporto Ben Gurion por causa das minhas crenças], The Forward , 13 ago. 2018. 9 Ver: . 10 Cf. Asa Winstanley, “What’s in Al Jazeera’s undercover film on the US Israel lobby?” [O que há no filme secreto da Al Jazeera sobre o lobby de Israel nos Estados Unidos?], The Electronic Intifada, 5 mar. 2018. 11 Ler “Propagande et désinformation à l’israélienne” [Propaganda e desinformação ao estilo israelense] I e II, Nouvelles d’Orient, Les blogs du Diplo, 13 e 26 jan. 2010.
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CATAR EM CAMPANHA
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m 10 de abril de 2018, o site da Organização Sionista da América (Zionist Organization of America, ZOA) emitiu um comunicado anunciando que ela e seu presidente, Morton Klein, estavam “orgulhosos e felizes de anunciar que, graças a seus esforços, incluindo as reuniões longas, numerosas e aprofundadas de Klein em Doha, no Catar, com o emir e outras autoridades do país, [...] o Catar concordou em não exibir o documentário viciosamente antissemita da Al Jazeera elaborado por um infiltrado no dito ‘lobby judaico norte-americano’”.1 Uma semana depois, o canal respondeu: “Mor ton Klein descreve equivocadamente o assunto da série como sendo o ‘lobby judaico norte-americano’, quando a investigação trata das organizações pró-Israel norte-americanas (incluindo a ZOA) que se esforçam para promover os interesses de uma potência estrangeira em solo norte-americano. [...] É espantoso que Klein fale, em termos negativos, imprecisos e incendiários, de uma série de documentários que ele não viu”.2 A Al Jazeera estava certa pelo menos em um ponto: não há no documentário nenhuma referência a um “lobby judaico” – muito embora esse termo, que foi usado por um ex-presidente do Congresso Judaico Mundial,3 seja corrente nos Estados Unidos. O canal, no entanto, permaneceu em silêncio sobre sua decisão de não divulgar a investigação. Para entender o que está em jogo em relação ao documentário, precisamos voltar à crise que desde o verão de 2017 se estabeleceu entre o Catar e alguns de seus vizinhos, a começar pela Arábia Saudita e os Emirados Árabes Unidos, apoiados pelo Egito.4 Esse grupo sujeitou o emirado a um embargo. Eles exigem que o Catar rompa suas relações com o Irã, liquidem a Al Jazeera, fechem a base militar turca em construção e coloquem fim em suas ligações com “organizações terroristas”, especialmente a Irmandade Muçulmana e o Hezbollah. É verdade que, desde que o xeque Hamad bin Khalifa al-Thani, pai do atual emir Tamim bin Hamad al-Thani, chegou ao poder, em 1995, a política externa do Catar é no mínimo original e se quer independente, sobretudo em relação à Arábia Saudita. O país abriga uma das bases estratégicas dos Estados Unidos na região; manteve, até a eclosão da Primavera Árabe, excelentes relações com o Hezbollah e o regime sírio, antes de passar a ajudar os rebeldes; mantém estrito contato com o Hamas e presta assistência financeira a Gaza; foi um dos únicos países árabes a receber uma missão comercial israelense (fe(fechada após a guerra de 2008-2009 contra Gaza). Por fim, a Al Jazeera, apesar de todas as críticas que recebeu pela forma como tratou as revoltas árabes – especialmente a guerra na Líbia – ou, mais recentemente, a situação na Turquia e sua complacência em relação ao regime de Erdogan, abriu um campo de debate sem precedentes no mundo árabe, que aborrece a maioria dos regimes em vigor. Durante os meses após o ultimato de seus vizinhos, o Catar pareceu vacilar. Falou-se até na hipótese de invasão do pequeno emirado pela Arábia Saudita.5 Ainda mais porque o presidente Donald Trump, cujo filho, Jared Kushner, tem estreitas ligações com os Emirados Árabes e a Arábia Saudita, tomou posição contra o Catar. É nesse contexto tenso que o emir decidiu por uma ofensiva de relações públicas em Washington, onde seus oponentes sauditas e dos Emirados já tinham densas relações, sobretudo com a Fundação para a Defesa das Democracias (FDD).6 Doha comprou os serviços de várias agências de relações públicas nos Estados Unidos por uma soma que chegou a US$ 5 milhões, em outubro de 2017, e a US$ 20 milhões, alguns meses depois.7 Seus alvos: os círculos conservadores próximos a Trump, especialmente o lobby pró-Israel, cujas simpatias ele precisava ganhar. Várias visitas ao emirado – incluindo a de Alan Dershowitz, um acadêmico pró-Israel ao mesmo tempo democrata e amigo do presidente Trump; a de Michael Huckabee, ex-governador republicano do Arkansas e cristão sionista cuja filha é porta-voz da Casa Branca; e a de John Batchelor, apresentador de rádio conservador – deram indícios de que a campanha teve algum sucesso.8 Os efeitos foram sentidos em Washington, que ado-
tou uma posição de mediador na crise. Em abril de 2018, Trump chegou a receber Al-Thani, que, em agradecimento, anunciou a compra de armamentos norte-americanos. Ele fez inclusive doações para diversas entidades sionistas, entre as quais a Our Soldiers Speak (Nossos Soldados Falam), que organiza visitas de oficiais do Exército israelense aos Estados Unidos.9 A reaproximação com o Catar, no entanto, divide o lobby pró-Israel. Em um artigo intitulado “Catar: o emirado que engana a todos”, Yigal Carmon, diretor do Instituto de Pesquisa de Mídias do Oriente Médio (Middle East Media Research Institute, Memri), um site que “monitora” as mídias árabes – e que não hesita em distorcer o que elas publicam10 –, mostra-se indignado: “É triste ver líderes judeus norte-americanos reforçando estereótipos antissemitas ao intervirem por ignorância em conflitos internos que não lhes dizem respeito, conflitos interárabes complexos e difíceis de entender, mesmo para quem os acompanha”.11 No jornal israelense Haaretz , Jonathan Schanzer, da FDD, se queixa: “Não há nada de errado no fato de analistas e intelectuais irem ao Catar em busca de informações. O problema é que, durante essas visitas, eles não ouvem a outra versão da história. Ouvem a posição do governo e depois vão para casa. Eles deveriam ouvir também os críticos do Catar. Há muito material que deveriam conhecer sobre os laços do Catar com o Hamas, a Al-Qaeda, o Talibã, a Irmandade Muçulmana e outros atores problemáticos”. problemáticos”12 . Longamente entrevistado por Anthony Kleinfeld no documentário da Al Jazeera, Schanzer lamenta o fracasso de todos os seus e sforços para associar o movimento Boicote, Desinvestimento e Sanções (BDS) a organizações “terroristas” (sendo a primeira delas o Hamas, seguido pela Frente Popular para a Libertação da Palestina) na opinião pública norte-americana. Durante o último ano, o Catar tem conseguido repelir os perigos que o ameaçaram e colocar seus adversários na defensiva. Mas qual será o preço pago pelos pale stinos por essa nova política? Alguns comentaristas falam na possibilidade de uma cooperação entre Israel e o emirado para “estabilizar” a situação em Gaza. Mas são apenas conjecturas...13 (A.G.)
1 ZOA, “ZOA/Mor “ZOA/Mor t Klein convinced Qatar to cancel anti-semitic anti-semiti c Al Jazeera ‘Jewish lobby’ series” [ZOA/Mort Klein convencem Catar a cancelar a série antissemita da Al Jazeera Lobby judaico]. Disponível em: . 2 “Al Jazeera denies claims of pro-Israel group on The Lobby films” [Al Jazeera nega reivindicações de grupo pró-Israel nos episódios de O lobby ],], Al Jazeera, 17 abr. 2018. Disponível em: . 3 Em novembro de 1978, Nahum Goldmann, presidente do Congresso Judaico Mundial, pediu ao presidente James Carter que quebrasse o “lobby judaico”,, que ele considera judaico” considerava va “uma força de destruiçã destruição”, o”, “um obstáculo obstáculo à paz no Oriente Médio”. 4 Ler Fatiha Dazi-Héni, “Drôle de guerre dans le Golfe” [Uma guerra estranha no Golfo], Le Monde Diplomatique, jul. 2017. 5 Alex Emmons, “Saudi planed to invade Qatar last summer. Rex Tillerson’s efforts to stop it may have cost him his job” [Arábia Saudita planejou invadir Catar no verão passado. Os esforços de Rex Tillerson para impedir podem ter custado seu emprego], The Intercept, 1º ago. 2018. Disponível em: . 6 Ler Dan Lazare, “La redoutable influence de Riyad à Washington” [A temível influência de Riad em Washington], Le Monde Diplomatique, jul. 2017. 7 Jordan Schachtel, “Inside Qatar’s $20+ million a year lobbying effort in Washington” [Por dentro do esforço de lobby de mais de US$ 20 milhões do Catar em Washington], Conservative Review, 13 set. 2017. Disponível em: . 8 Ver Amir Tibon, “Qatar doubles down on PR campaign appealing to US Jews and DC Insiders” [Catar duplica campanha de relações pública s apelando para judeus norte-americanos e pessoas influentes de Washington], Haaretz , Tel Aviv, 20 ja n. 2018. 9 Tamara Nassar e Ali Abunimah, “Qatar funded Zionist Organization of America” [Catar financia Organização Sionista da América], The Electronic Intifada, 10 jul. 2018. Disponível em: . 10 Ler Mohammed El-Oifi, “Désinformation à l’israélienne” [Desinformação ao estilo de Israel], Le Monde Diplomatique, set. 2005. 11 Citado por Amir Tibon, “Israeli Embassy in US: We oppose Qatar’s ‘Outreach to pro-Israel U.S. Jews’” [Embaixada de Israel nos Estados Unidos: Somos contra a “promoção junto aos judeus norte-americanos pró-Israel” do Catar], Haaretz , 31 jan. 2018. 12 Ibidem. 13 Tamara Nassar e Ali Abunimah, op. cit .
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VOTAÇÃO HISTÓRICA NO KNESSET
Israel torna-se uma “etnocracia” O Knesset aprovou, em 19 de julho último, uma lei de valor constitucional definindo Israel como “Estado-nação do povo jude judeu” u”.. Para Para o pri prime meir iro-m o-min inis istr tro o Ben Benjam jamin in Netan Netanya yahu, hu, esse esse texto que fundamenta os direitos dos cidadãos israelenses em função de sua origem e crenças é a consolidação ideológica do Estado judeu POR CHARLES ENDERLIN*
o n i p l A ©
É
um momento histórico para o sionismo. Cento e vinte e dois anos depois de Herzl ter publicado [sua visão do] Estado dos judeus ,1 estabelecemos na lei o princípio fundamental de nossa existência.” Ao fazer essa declaração em 19 de julho, às 3h35 da manhã, após a aprovação de uma nova lei fundamental pelo Parlamento israelense, Benjamin Netanyahu se considerava ele próprio o fundador do Estado judeu? De acordo com o primeiro-ministro, “Israel é o Estado-nação do povo judeu, que respeita os direitos individuais de todos os seus cidadãos. No Oriente Médio, apenas Israel respeita esses direitos”. Ora, ao priorizar a condição de judeu na definição de Estado, várias d isposições do texto, ao contrário, atentam contra os direitos de 2 milhões de cidadãos não judeus, em grande parte árabes: “Apenas os judeus podem exercer integralmente seu direito natural, cultural, religioso e histórico à autodenominação”, diz a nova lei fundamental. E precisa que “o hebraico é a língua oficial do Estado de Israel”. Israel”. Igualmente destitui o árabe da qualidade de língua oficial e o coloca à espera de um “estatuto especial que será determinado posteriormente”.
Com a ausência de uma Constituição, essa lei fundamental é acoplada ao aparato jurídico atual. Nenhuma palavra, nem a menor referência à independência do Estado de Israel, proclamada no dia 14 de maio de 1948. E não surpreende: Netanyahu jamais a mencionou em sua obra sobre a história do sionismo. 2 Há um silêncio sobre esse texto fundador da jurisprudência do país, lido na ocasião por David Ben-Gurion, o primeiro chefe de Estado de Israel: “O Estado de Israel será aberto à imigração de judeus de todos os países por onde estiverem dispersos; desenvolverá o país em prol de todos os seus habitantes; será fundado sob os princípios da liberdade, justiça e paz ensinados pelos profetas de Israel; assegurará u ma completa igualdade dos direitos sociais e políticos a todos os seus cidadãos, sem distinção de credo, raça ou sexo; garantirá a plena liberdade de consciência, culto, educação e cu ltura”. ltura”. Netanyahu também se distancia de Vladimir Zeev Jabotinsky (1880-1940), (1880-1940), o pai fundador do sionismo revisionista, nacionalista e antissocialista. Se por um lado o atual chefe do Likud (direita) o cita com frequência, 3 por outro sempre omite o fato de que, no fim da vida, em 1940, o dirigente histórico em direi-
tos sionistas se posicionou a favor de um Estado composto por uma maioria de judeus, sob domínio do Império Britânico, em que o presidente judeu teria um vice árabe e todos os cidadãos seriam iguais, independentemente de origem e religião. As comunidades judaicas e árabes, assim como suas respectivas línguas, deveriam dispor das mesmas condições reconhecidas pela lei.4 Secretário do governo Menachem Begin (Likud) ( Likud) de 1977 a 1982 e hoje professor de Ciência Política da Universidade Hebraica de Jerusalém, Arieh Naor revela que “a visão nacionalista liberal de Jabotinsky é totalmente diferente do neoliberalismo extremista da nova lei sobre o ‘Estado-nação judeu’, que nega qualquer direito coletivo às minorias. Essa medida conduz a um governo etnocrático”. A MELHOR CONJUNTUR A POSSÍVEL
Netanyahu bebe na fonte ideológica moldada por seu pai, Benzion Netanyahu, morto em 2012. Esse universitário – que por um período breve foi secretário de Jabotinsky – desenvolveu, ao longo de sua carreira intelectual, uma teoria catastrófica da história judaica. Ele pretendia demonstrar que o antissemitismo existia desde a
Antiguidade, no Egito, muitos séculos antes do cristiani smo, e persiste: “Ain“Ainda somos ameaçados de exterminação. As pessoas acreditam que o Holocausto passou, mas não”, declarou em uma entrevista concedida em companhia de seu filho para o canal Arutz 2, no dia 7 de fevereiro de 2009. Para ele, o inimigo eram os árabes: “Esta terra é dos judeus, não é para os árabes. Aqui não há lugar para eles, nunca haverá. Eles jamais aceitarão nossas condições”, afirmava ele três anos depois. 5 Benzion deixou ao filho a missão de fazer que os israelenses avaliassem bem a realidade do perigo: “Uma das coisas mais graves em Israel é a crença esquerdista de que os árabes renunciaram à determinação de nos destrui r”.6 Esses temas foram bastante desenvolvidos nos livros de Benjamin, publicados pouco antes de sua primeira passagem pelo poder (1996-1999). Sob pressão do presidente norte-americano Bill Clinton, o jovem primeiro-ministro precisou apertar a mão do dirigente palestino Yasser Arafat e estabelecer com ele dois acordos de recuada das forças israelenses de uma parte da cidade de Hebron. Essa concessão – que ele não podia recusar sob pena de acirrar uma crise maior – o fez
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perder votos junto à direita e junto aos colonos nas eleições legislativas de 1999. Os dirigentes ocidentais acreditaram que esse episódio era um sinal de certo pragmatismo. Depois, quando Netanyahu se tornou outra vez chefe de governo, em março de 2009, precisou enfrentar Barack Obama. O presidente norte-americano recém-eleito solicitou que Israel reconhecesse a legitimidade palestina e cessasse a construção das colônias. No dia 4 de junho, em um discurso solene, Netanyahu, discretamente, pronunciou pela primeira vez as palavras “Estado palestino”. Em seguida colocou condições reveladoras de sua ideologia: os palestinos devem “reconhecer Israel como Estado do povo judeu”. Em Ramallah, a reação de Mahmoud Abbas, presidente da Autoridade Palestina, foi imediata: “Não! Jamais. Essa ideia jamais avançou nas negociações com o Egito e a Jordânia, nem durante o processo de Oslo”. Abbas lembrou que não há nenhuma definição de Israel nesses termos em sua declaração de independência. A primeira proposta proposta de lei fundamental sobre esse tema foi depositada no Knesset em 2011 por Avi Dichter, deputado do partido de centro-direita Kadima, que depois se juntou ao Likud. O texto tinha por ambição “reforçar a natureza de Israel como Estado-nação do povo judeu com o objetivo de codificar os valores va lores de Israel como Estado judeu e democrático no espírito de sua declaração de independência”. A direita pretendia definir Israel primeiro como Estado judeu e somente depois como Estado democrático. A esquerda exigia o contrário: “democrático e judeu”, deu”, nessa ordem. As di scussões duraram até o momento em que Netanya Netanyahu hu considerou que dispunha da melhor conjuntura possível. No âmbito interno, a coalizão governamental que ele construiu após as eleições de 2015 – a mais à direita na história do país – prossegue com a colonização evitando qualquer crise com a “comunidade internacional”, que, de todas formas, tem protestado de forma branda. No Parlamento, ele mostra sua coerência ideológica perseguindo objetivos comuns que se traduzem em vários textos-chave que visam principalmente reduzir a influência de ONGs na sociedade civil, proibir o boicote das colônias e proibir a criação de estabelecimentos escolares em associações que não respeitem os princípios estabelecidos pelo ministro da Educação, Naftali Bennett, diretor do Lar Judaico, partido sionista religioso e neomessiânico. Essa última lei foi feita sob medida para associações como a Breaking de Silence, de ex-soldados que são contra a ocupação de territórios palestinos, ou de defesa de direitos humanos nos territórios ocu-
pados, como a B’Tselem. Esses elementos de “reformatação” da sociedade judaica seguem integralmente a visão de Benzion Netanyahu.7 Igualmente integrante do Lar Judaico, a ministra da Justiça, Ayelet Shaked, vai para a linha de frente contra a Corte Suprema, considerada muito liberal. Nos próximos meses, os juízes devem examinar vários recursos contra a nova lei, e a mini stra já avisou: “Se a anularem, haverá guerra!”.
Os deputados árabes da Lista Unificada rasgaram o texto da lei e acusaram a maioria de ter estabelecido um regime de apartheid No âmbito internacional, o primeiro-ministro israelense não poderia imaginar uma situação mais favorável. Donald Trump, grande amigo da direita israelense, está sentado na Casa Branca. Na Europa, Netanyahu pode contar com os dirigentes gregos e cipriotas, com os quais já fechou acordos. E ainda há o apoio infalível dos quatro países do grupo Visegrad (Hungria, Polônia, República Tcheca e Eslováquia), conduzidos pelo húngaro Viktor Orbán, o que permite bloquear eventuais condenações de Bruxelas. A socióloga socióloga Eva Il louz salienta a afi nidade ideológica profunda de Netanyahu com certos reg imes “iliberais”: “Todos se opõem à diluição étnica, religiosa ou racial de seu país”, explica. “Israel serve de modelo às nações que se opõem à imigração e afirmam a supremacia de um grupo étn ico, mas ainda reivindicam a democracia – apelação necessária para continuar a usufruir de vários privilégios que o títu lo de democrata confere”, ainda que à custa de renunciar à luta contra o antissemitismo. Nitzan Horowitz, jornalista e ex-deputado do Meretz (esquerda laica e socialista), resume assim o princípio que funda os laços entre dirigentes húngaros e poloneses com Netanyahu: “Perdoem meu antissemitismo, e eu perdoarei suas ocupações [de territórios palestinos]”. 8 Antes de sua adoção definitiva em 19 de julho último, por 62 votos contra 55 e duas abstenções, o texto de Dichter sofreu várias modificações. A palavra “democracia” não figura mais, e o artigo que prevê “a criação de localidades sobre bases religiosas ou étnicas” foi reescrito. Agora, a lei diz o seguinte: “O Estado considera o desenvolvimento de implantação judaica um valor nacional e trabalhará para encorajá-lo,
apoiá-lo e reforçá-lo”, o que não muda nada seu caráter “racista”, avalia Mordechai Kremnitzer, jurista e ex-diretor adjunto do Instituto Israelense pela Democracia. ÁRABES, JUDE US E DRUSOS SE MANIFESTAM
Imediatamente após a votação, em sessão plenária, os deputados árabes da Lista Unificada, que dispõe de treze cadeiras, rasgaram o texto da lei e acusaram a maioria de ter estabelecido um regime de apartheid afirmando e reforçando discriminações das quais eles mesmos se fazem objeto. No dia 11 de agosto, chamados por seu comitê representativo, milhares de árabes israelenses tomaram as ruas de Tel Aviv para reivindicar a a nulação de um texto que transforma os integra ntes dessa comunidade de 1,8 milhão de pessoas (cerca de 20% da população total) em cidadãos inferiores. Eles foram apoiados por numerosos simpatizantes judeus e personalidades de esquerda, entre os quais dois ex-generais. A presença de várias bandeiras palestinas ao lado do emblema israelense fez que Netanyahu declarasse o ato como “a prova que a lei do Estado-nação de Israel é indispensável”. Já os 150 mil drusos e ci rcassianos 9 se consideram traídos. Depois de prestar um sermão de fidelidade ao Estado, realizaram serviço militar obrigatório por três a nos. Representando Representando respectivamente 145 mil e 5 mil pessoas (1,62% da população), eles são proporcionalmente mais numerosos a se engajar que os jovens judeus, e 10% entre eles tornam-se oficiais, alguns de patente elevada. Um druso é general de divisão e integrante do Estado-Maior; vários generais de brigadas comandaram importantes unidades de infantaria. Também estão em vários níveis de comando da polícia e serviços de segurança. No dia 4 de agosto, 50 mil drusos, apoiados por um número equivalente de judeus, manifestaram-se em Tel Aviv bradando bradando “Igualdade! “Igualdade! Igualdade!” e “Não somos cidadãos de segundo escalão”. O xeque Mowafak Tarif, chefe espiritual da comunidade, declarou: “Ninguém vai nos ensinar o que é sacrifício, lealdade, devoção. Infelizmente, apesar de nossa lealdade sem ressalvas ao Estado [de Israel], ele não nos reconhece como iguais. O que podem ainda exigir de nós se somos totalmente solidários ao Estado e à sua declaração de independência?”. Os drusos re jeitaram a propos proposta ta de de Netanyahu Netanyahu para apaziguá-los: a adoção de uma lei ad hoc que define um estatuto especial dentro do Estado judaico, com vantagens econômicas, para os não judeus que fazem serviço militar. Nos planos religioso, religioso, cultura l e político, contudo, a nova lei fundamental transforma profundamente a relação
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entre Israel e as comunidades judaicas da Diáspora. Em agosto, o presidente do Congresso Mundial Judeu, Ron Lauder, lançou um aviso severo ao governo de Netanyahu, acusando-o de “solapar a aliança entre o judaísmo e as Luzes”. “A partir do momento em que ele recusa o valor sagrado da igua ldade, muitos de seus apoiadores sentem que ele está dando as costas à sua herança judaica, ao ethos sionista sionista e ao espírito de Israel”, escreveu. “Essas novas políticas não reforçam Israel: elas o enfraquecem e, a longo prazo, colocam em perigo a coesão social, o êxito econômico e seu estatuto internacional. [...] Se as tendências atuais persistirem, jovens judeus poderão se recusar a se afiliar a uma nação que discrimina judeus não ortodoxos, minorias de não judeus e integrantes da comunidade LGBT.” LGBT.”10 O primeiro-ministro, contudo, diz sentir-se confortável com as pesquisas. Em um estudo do Instituto pela Democracia,11 52% dos judeus israelenses interrogados interrogados se dizem favoráveis à lei, enquanto 40% não a aprovam. Se 60% do conjunto gostaria gostaria que o princípio da igua ldade fosse incluído no texto, 69% dos eleitores de direita apoiam a versão atual, assim como 72% dos israelenses que se definem religiosos. O eleitorado de Netanyahu está com ele. Ele pode sonhar com eleições antecipadas, com o objetivo, espera ele, de reforçar seu poder. *Charles Enderlin é jornalista em Jerusalém.
1 Teórico do sionismo político, o jornalista vienense Theodor Herzl publicou em 1896 O Estado dos judeus, no qual preconiza o estabelecimento de um Estado que reúne os judeus da diáspora com o apoio de grandes potências. Para avançar com a ideia de um lar nacional na Palestina – o que poucos judeus apoiavam naquele momento –, fundou em 1897 a Organização Sionista Mundial. 2 Benjamin Netanyahu, Place Among the Nations: Israel and the World [Lugar [Lugar entre nações: Israel e o mundo], Bantam, Nova York, 1993, e sua versão em hebraico, Um lugar ao sol , Edições Yediot Aharonot, Tel Aviv, 1995. 3 Ler Dominique Vidal, “Aux origines de la pensée de M. Netanyahou” [Nas origens do pensamento de Netanyahu], Le Monde Diplomatique, nov. 1996. 4 Zeev Jabotinsky, Jabotinsky, Os judeus e a guerra (19391940), em hebraico, Instituto Jabotinsky, Tel Aviv, 2016. 5 Aroutz 2, entrevista veiculada no dia de sua morte, morte, 30 abr. 2012. 6 Ari Shavit, Haaretz (em (em hebraico), Tel Aviv, entrevista realizada em 1998 e publicada em 30 de abr il de 2012. 7 Ler “Israël à l’heure l’heure de l’Inquisition” [Israel em tempo de inquisição], Le Monde Diplomatique, mar. 2016. 8 Nitzan Horowitz, “Netanyahu’s “Netanyahu’s dark deal with Europe’s radical right” [O acordo obscuro de Netanyahu com a esquerda radical europeia], Haaretz , 9 jul. 201 2018. 8. 9 Sob dominação otomana, diversas populações vindas do Cáucaso do Norte se instalaram na Palestina, e seus descendentes permaneceram aí. 10 Ron Lauder, “Israel: This is not what we are” [Israel : isso não é o que somos], The New York Times, 13 ago. 2018. 11 “The Peace Index”, 31 jul. 2018. Disponível em: .
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DA COMIDA DE LUXO AO FLAGELO ECOLÓGICO
A globalização explicada pelos salmões Metade dos peixes consumidos no mundo vem, agora, de uma criação. Produto de consumo habitual, o salmão gera a riqueza da Noruega e do Chile, onde é o segundo produto mais exportado. A aquicultura industrial, resposta imperfeita para o esgotamento dos recursos técnicos da pesca, provoca significativas ameaças ambientais e sanitárias POR CÉDRIC GOUVERNEUR*, ENVIADO ESPECIAL
m 29 de janeiro de 2018, pouco antes de deixar a presidência do Chile, a socialista Michelle Bachelet oficializou, em Punta Arenas, a criação do Parque Nacional Ka wéskar, o maior do país, com uma extensão de 2,8 milhões de hectares dispersos nas ilhas e penínsulas do sudoeste da Patagônia. No entanto, somente as terras emersas são protegidas; as águas adjacentes e seu frágil ecossistema não fora m contemplados. A explicação dessa incongruência foi a vontade de não frear a expansão das aquiculturas de salmão... Antigamente ingrediente de luxo nas festas de fim de a no, o salmão tornou-se um produto de consumo corriqueiro. No comércio mundial de produtos do mar e de água doce, esti mado em 136 bilhões de euros, o salmão e a truta representam as principais espécies em matéria de valor e as segundas em toneladas – após os tunídeos (atuns e afins). A aquicultura mundial produziu 2,25 milhões de toneladas de salmão atlântico em 2016, enquanto em 1993 essa produção se limitava a 300 mil.1 No Chile, em 2017, depois do cobre, esse peixe era o segundo produto mais exportado (com uma receita de 3,4 bilhões de euros). 2 Nos anos 1980, a ditadura militar introduziu a criação do salmão do Atlântico – a espécie Salmo salar –, apostando com êxito nas semelhanças climáticas e geográficas entre o Chile e a Noruega, pioneira da aquicultura (ler virando a página) . Tanques cilíndricos multiplicaram-se nos fiordes do Pacífico Sul. Atua lmente, a criação no Chile corresponde a 23,6% do salmão consumido no mundo: dois terços da produção são exportados, principalmente para os Estados Unidos, o Japão e o Brasil. Em janeiro de 2018, o Serviço Nacional da Pesca e da Aquicultura (Sernapesca) computou 539 concessões na Região X de Los Lagos, 635 na Região X I de Aysén e 126 na Região XII de Magallanes. As mai s interessadas no novo parque nacional são as populações ka wéskar, descendentes dos pescadores o indígenas nômades que, até se fixa d n rem, em meados do século XX, percor o K l riam a Patagônia em canoas. Consul e i n a tadas previamente pelas autoridades, D © quatro das doze comunidades ka-
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wéskar reconhecidas pelo Estado desde 1993 recusaram-se a aprovar a criação desse parque, considerando insatisfatória a proposta que consta no estatuto: “zona marinha costeira para usos diversos”. “O mar é parte integrante de nossa cosmogonia”, explica-nos Leticia Caro, porta-voz das comunidades kawéskar pela defesa do mar. “É nosso dever cuidar do meio marinho. Esse parque usurpa o nome ‘ka wéskar’ e libera o mar para os donos de indústrias do salmão”. Seu pai, Reinaldo Caro, pescador marinho septuagenário, constata que as presas são cada vez mais raras: “Agora, precisamos de um dia inteiro para pescar o que antigamente pegávamos em uma hora e meia”. Culpa da aquicultura, segundo ele: “Onde existem salmoneras , as águas estão mortas. Seus resíduos se depositam no fundo do mar. Neste fim do mundo, que era tão puro! O pior é que, se pegarmos salmões que escapam das aquicultura s e os vendermos, temos de pagar uma multa: continuam propriedade das empresas”. Em julho, 690 salmões cheios de antibióticos fugiram de uma criação.
INDÍGENAS DEFENDEM O OCEANO
Várias ONGs de Santiago confirmam essa avaliação. “O crescimento econômico é a única motivação da aquicultura. Jamais se perguntou se o ecossistema é capaz de suportar”, declara Liesbeth v an der Meer, vice-presidente da Ocean Chile, associação de defesa do meio ambiente marinho. “A Magallanes [região do sul do Chile] abriga cetáceos, pingu ins”, ins”, lembra Estefania Gonzalez, coordenadora do Greenpeace Chile. “Nos fiordes, calculamos que as águas levam trinta anos para se renovar completamente. Por que instalar uma indústria poluidora em um ecossistema tão frágil?” Em abril de 2018, os kawéskar rebeldes conseguiram uma primeira vitória: baseando-se na lei votada em 2008 que criou espaços costeiros dos povos autóctones, chamada Lei Lafkenche, obtiveram, em detrimento dos industriais, a classificação das águas do parque. Enquanto as diversas administrações não tomarem uma decisão sobre essa classificação, um processo que levará vários anos, 80% das demandas de concessões de aquicul-
tura da Região X II ficarão congeladas. Óscar Garay nos recebe em seu escritório de Puerto Natales, a três horas da estrada de Punta Arenas através dos pampas. O gerente da empresa Salmones Magallanes é também vice-presidente da Salmonicultores Magallanes, que agrupa os aquicultores da Região XII. “Não sou cego. A aquicultura tem um impacto ambiental”, admite, antes de relativiza r: “Toda “Toda atividade humana tem um impacto, até mesmo tomar um avião. A questão é: qual é o impacto real e como reduzi-lo?” A diminuição das presas constatada pelos pescadores? “Acontece em todo o mundo, mesmo onde não existe nenhuma criação de salmão. Ao contrário, a aquicultura permite evitar a pesca intensiva que esvazia os oceanos.” O novo parque nacional privado do litoral e os recu rsos dos ka wéskar de acordo com a Lei LafkenLaf kenche? “Um punhado de kawéskar gostaria de reivindicar o litoral. Outros não têm problema com o parque. Os indígenas evidentemente têm direitos. Mas a Lei Laf kenche é demasiadamente imprecisa; qualquer um pode reivindicar o uso exclusivo do oceano porque seus ancestrais indígenas teriam v ivido ali. Espero que o presidente Piñera a melhore.” Sebastián Piñera, biliardário conservador reeleito este ano para o La Moneda após um primeiro mandato entre 2010 e 2014, assumiu o compromisso, em 7 de setembro de 2017, em Puerto Montt, de “aperfeiçoar essa lei para garantir a proteção de lugares ancestrais sem frear a at ividade econômica”. “No Chile, a aquicultura é concebida como um modelo de produção que o Estado controla muito pouco, contando com a autorregulação das empresas”, resume Juan Carlos Cárdenas, veterinário e diretor da ONG de defesa do mar Centro Ecocéanos. Apenas um a cada dez pedidos de conconcessão é objeto de um estudo de impacto ambiental (EIA). Nos outros nove casos, as autoridades se contentam com uma “declaração de impacto ambiental” (DIA)... redigida pelo aquicultor! “As altas esferas do Estado estão ligadas aos industriais”, diz Cárdenas. Ele lembra que Jorge Rodríguez Grossi, ministro da Fazenda de outubro de
2017 a março de 2018, foi diretor da lei que favoreceu sete famílias ligadas Austral is Seafoods entre 2012 e 2015, 2015, aos industriais do salmão e que conuma das maiores empresas de criação trolam 80% da pesca. de salmão do país. Felipe Sandoval “Como indenização, o governo proPrecht, presidente do SalmonChile de pôs 100 mil pesos [R$ 620] para cada 2014 a 2017, órgão que agrupa quase pescador. Então, levantamos barricatodos os produtores de salmão, foi se- das”, conta Marcela Ramos. Essa procretário do Estado para a pesca. Essa fessora sexagenária tornou-se uma das proximidade entre o mundo da políti- ativistas do movimento de defesa de ca e o da aquicultura não é exclusiva Chiloé: “Bloqueamos as rodovias e as do Chile: na Noruega, Marit Solberg, ferrovias durante dezoito dias. Queríavice-presidente do gigante do setor, mos que fosse admitida a responsabiliMarine Harvest, é simplesmente irmã dade da indústria do salmão e que ela da primeira-ministra conservadora pagasse os estragos”. A ilha foi cortada Erna Solberg. Isso dá argumentos pa- do mundo entre 2 e 19 de maio. “Sanra os que criticam os governos por não tiago queria acabar com isso antes do terem tirado uma lição das crises sa- 21 de Maio, dia em que o Chile celebra nitárias ou ambientais que atingem sua Marinha”, explica Adriana Ampueconstantemente as aquiculturas. ro, membro do Movimento Separatista Em 2007, a anemia infecciosa do do Chiloé e coordenadora do partido salmão (AIS) devastou as costas chile- de esquerda Frente Amplio. Ela continas, levando a produção a cair quase nua: “Eles tiveram de fazer acordos de pela metade. O vírus se propagou rapi- indenizações, mas nada foi feito para damente porque havia grande concen- evitar que a situação se reproduzisse”. Os manifestantes chilotes estão tração das fazendas de criação e as normas de proteção eram insuficien- convencidos de que a maré vermelha tes. Posteriormente, no início de 2016, foi provocada pelo lançamento do peiuma proliferação de algas tóxicas do xe apodrecido no mar. Os partidários gênero Chattonella envenenou os sal- da aquicultura se referem a episódios mões em seus tanques em torno da passados para negar qualquer ligação Ilha de Chiloé. Transtornados, os aqui- causal: o escritor chilote Francisco Cocultores pediram socorro: “Os volumes loane já tinha tratado do fenômeno em de mortalidade são superiores às capa- Golfo de penas , publicado em 1945; Gacidades logísticas”, escreveu Sandoval ray lembra a morte de toda uma colôPrechtle em 3 de março ma rço de 2016.3 Sem o nia do Estreito de Magalhães no século menor estudo de impacto, a Sernapes- XVI: “Essa tragédia de Puerto del ca autorizou a partir do dia segu inte “a Hambre já teria ocorrido devido a uma adoção de medidas de exceção por mo- maré vermelha. Havia criações de sa ltivo de força maior”. Entre 15 e 25 de mão naquela época?”. Subdiretora da março, a Marinha nacional despejou divisão de aquicultura da Sernapesca nos arredores da ilha 9 mil toneladas em Valparaíso, Alicia Gallardo vai mbiental julju lde salmão em putrefação. Ocorreu, en- mais longe: “O Tribunal A mbiental tão, uma segunda proliferação de algas gou que não existia prova alguma de tóxicas do gênero Alexandrium Alexandrium catenelcatenel- uma ligação entre a aquicultura e a maré vermelha.4 A explicação deve ser la, uma “maré vermelha” de amplitude inédita, que dizimou a fauna. Todos os buscada no aqueci mento climático”. produtos do mar tornaram-se impró“A mudança climát ica não tem naprios para consumo. A crise reavivou da a ver com essa maré vermelha”, os antagonismos entre industriais e contesta o doutor Tarsicio Antezana, pescadores chilotes [de Chiloé], já re- biólogo marinho aposentado, que leforçados em fevereiro de 2013 por uma cionava no Instituto Oceanográfico de
Ensaio sobre a origem dos conhecimentos humanos
Três utopias contemporâneas
Esta é uma obra capital para a filosofia das Luzes. Realiza-se aí uma sistemática e minuciosa reconstituição das operações da alma humana. Em meio a essa investigação, a linguagem surge como o ponto de apoio do qual depende a própria constituição das faculdades superiores do espírito.
Neste livro, Francis Wolff propõe que se crie uma nova utopia para nossa exata medida: que deixemos de negar as fronteiras naturais — aquelas que nos separam de deuses ou dos animais — e passemos a um estágio superior do humanismo, defendendo a abolição das fronteiras geopolíticas e a adoção da ideia de concidadãos.
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San Diego, na Califórnia, e vive em Chiloé. Segundo ele, “o amônio favorece esse tipo de fenômeno. E a decomposição da matéria orgânica – os cadáveres de salmão – produz o amônio. A Sernapesca depende do Ministério da Fazenda: qual é a prioridade desse ministério? O meio ambiente ou o crescimento econômico?”
de bactérias resistentes, repreendida pela Organização Mundial da Saúde (OMS), a Sernapesca exige, desde então, que se reduza sua utilização. O governo chileno admite nas entrelinhas que a aquicultura atingiu seus limites na Região X (Los Lagos) e na XI (Aysén): “Não haverá novas concessões na Região X e na X I”, I”, especifica Gallardo. “Considerando as condições ambientais e o desenvolvimento sustentável da produção, estamos em um processo de relocalização das criações.” Desde então, os industriais estão de olho na Região XII, Magallanes: “Nela, temos 52 mil quilômetros de costas”, detalha Garay. “É mais que a Região X e a X I juntas.” Ativista na revolta estudantil de 2011, Gabriel Boric, deputado do partido Frente Amplio, apresentou ao Parlamento, em maio de 2017, 2017, um projeto de suspensão das novas concessões “até que um estudo científico estabeleça o que o ecossistema é capaz de suportar”, explica ele, antes de acrescentar: “Mas meu projeto foi rejeitado como inconstitucional: eles não querem que a gente interfira na economia!”. Quando se fala para Garay de seu jovem e implacável opositor, ele suspira: “O problema do deputado Boric é que ele não gosta do capitalismo...”.
80% DAS IMPORTAÇÕES DE ANTIBIÓTICOS
Com 5 mil a 6 mil pessoas trabalhando diretamente para a indústria do salmão e o dobro indiretamente, as autoridades alegam permanentemenpermanentemente a importâ ncia do emprego. Mas são postos precários e mal remunerados, argumenta Gustavo Cortez, empregado em uma fábrica chilote da empresa norueguesa Marine Farms e presidente da federação dos trabalhadores do salmão da ilha: “Dez horas por dia para receber 400 mil pesos [R$ 2,5 mil] por mês. Muita gente acumula horas extras para poder terminar o mês. A maré vermelha, assim como o vírus da AIS em 2007, 2007, provocou uma enorme crise: 80% a 90% dos assalariados encontram-se desempregados. desempregados. É preciso se mobilizar para conseguir indenizações do Estado. O Chile é um país muito neoliberal... O pior é que, apesar dessa crise, os industriais tiveram um ano muito bom!”, diz o sindicalista com veemência. O preço do salmão passou de US$ 5,90 o quilo, em março de 2016, para US$ 7,33, em abril, e depois para US$ 9, em setembro.5 Garay confirma: “É a lei da oferta e da procura. A oferta diminui e a demanda continua a mesma, então os preços sobem. O mesmo fenômeno ocorreu em 2007 com o vírus da AIS”. Para combater as doenças, um grande número de industriais chilenos recorre aos antibióticos: cinco a sete vezes mais que seus homólogos noruegueses. “Oitenta por cento dos antibióticos que o Chile importa vão para a aqu icultura”, especifica Van Van der Meer. Diante do risco de emergência
*Cédric Gouverneur é
jornalista.
1 “La situation mondiale des pêches et de l’aquaculaquaculture” [A situação mundial das pescas e da aquicultura], Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura, Roma, 2016. 2 Segundo o Banco Central do Chile, Santiago, Santiago, na Newsletter do site Aqua.cl. 3 Carta de Sandoval Sandoval Precht, então presidente da SalmonChile, às autoridades, reproduzida no documento “Reporte crisis social ambiental en Chiloé. Resumen ejecutivo” [Relatório crise social ambiental em Chiloé. Resumo executivo], Greenpeace Chile, Santiago, set. 2016. 4 Tribunal Ambiental de Valdivia, 29 dez. 201 2017. 7. “Rechazan demanda ambiental por vertimiento de salmones muertos en Chiloé” [Rechaçam demanda ambiental por lançamento de salmões mortos em Chiloé], Tercer Tribunal Ambiental de Chile, 29 dez. 2017. Disponível em:. 5 Estudos de mercado. Disponível em:.
Lutas e auroras: Os avessos do Grande sertão: veredas Ao prosseguir suas análises sobre o escritor mineiro Guimarães Rosa, o crítico Luiz Roncari se debruça neste livro sobre a “parte negra” do romance Grande sertão: veredas. A investigação sensível das agruras de Riobaldo em sua constituição de sujeito, do despreparo para ser chefe à ação integradora, mediada pela relação ambígua com o poder, é palmilhada e recebe assim novas luzes interpretativas pelo autor. Produzir conteúdo Compartilhar conhecimento. Desde 1987. www.editoraunesp.com.br
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NAS ÁGUAS TURVAS DA AQUICULTURA
Intocáveis criações da Noruega POR CÉDRIC GOUVERNEUR*, ENVIADO ESPECIAL
N
ão longe de Bergen, na Noruega, a companhia Lerø Ler ø y, segundo produtor mundial do salmão de aquicultura, nos convida a visitar sua criação-piloto de Sagen 2. Um hangar abriga reservatórios onde são criados exércitos de Cyclopterus lumpus . A aquicultura fez desse pequeno peixe dotado de ventosa um aliado: o lumpus é é um predador do parasita lakselus (ou (ou piolho-do-salmão, Lepeophtheirus salmonis ). ). “Nós produzimos cerca de 6 milhões de lumpus por ano”, explica Harald Sveier, diretor técnico da Lerø Ler ø y. Segundo ele, “isso permite reduzir 90% do uso de tratamentos contra os piolhos”. A companhia nos mostra também um protótipo singular, denominado “o tubo”. Trezentos mil salmões jovens são criados criados durante vários meses nessa estrutura de plástico de 50 metros de comprimento que flutua no fiorde, dotada de uma corrente artificial e alimentada por água bombeada no fundo. “A 35 metros [de profundidade], a água é extremamente fria para os piolhos”, esclarece Sveier. E prossegue: “Os salmões nadam na corrente e ficam em sua melhor forma. Dejetos e resíduos são recolhidos e tratados” – em vez de se acumularem e poluírem o fiorde, o que suscita uma das críticas recorrentes contra contra a aquicultu ra. A Lerø Lerø y prevê a colocação colocação de um segundo tubo, no final de 2018, “quatro vezes maior, com capacidade para 1,2 milhão de salmões”. Com toda certeza elevado, o custo desse di spositivo continua “confidencial”. Nos escritórios de Oslo, a Cermaq, outra gigante norueguesa do salmão e filial da Mitsubishi, também nos apresenta projetos inovadores, tal como o iFarm: “Nele poderemos criar apenas os salmões necessários”, afirma Wenche Grønbrekk, responsável por “riscos e sustentabilidade”. E continua: “Cada peixe será identificado por um sistema de reconhecimento facial”. Reconhecimento facial dos peixes... Essas proezas da biotecnologia quase nos levariam a esquecer que, no início, a criação de salmão era uma atividade artesa nal, um complemento dos rendimentos para os agricultores. Agora, a aquicultura ultramoderna e o d n automatizada gera poucos empregos o K l (apenas 7.650 em toda a Noruega), e i n a mas muitos lucros. Em 2017, o país ex D © portou 1,2 milhão de toneladas de sal-
mão (54,8% da produção mundial), por aproximadamente 6 bilhões de euros.1 O salmão permite construir fortunas colossais: nascido em 1993, Gustav Magnar Witzøe, herdeiro do grupo Salmar, é um dos biliardários mais jovens do mundo. Entretanto, por causa do piolho-do-salmão, as criações de novas aquiculturas estão congeladas desde 2013. E, como no Chile (ler artigo anterior), anterior), o meio ambiente sofre. Assim, em trinta anos, a população de salmões selvagens teria caído para menos da metade (470 mil, em 2016, comparados a 1 milhão nos anos 1980). A hibridização com salmões provenientes da aquicultura os torna mais vulneráveis. 2 Em 2015, em razão do impacto da aquicultura, dezessete associações (ecologistas, montanhistas, de pescadores, de caçadores) apresentaram uma denúncia contra o governo norueguês, para a autoridade autoridade de vig ilância da Associação Europeia de Livre-Comércio (Aelc), por não ter respeitado a diretiva do Parlamento e do Conselho europeus visando à proteção dos recursos hídricos, que passou a vigorar em 23 de outubro de 2000.
LISTA NEGRA DE CIENTISTAS CRÍTICOS
Diante das críticas e, sobretudo, sobretudo, da perda de confiança dos consumidores, os industriais reagi ram. Tentam reduzir a poluição, frear as evasões, limitar os tratamentos tóxicos, lutar contra os víru s e parasitas. O uso de predadores predadores naturais do piolho visa diminuir o uso de pesticidas (diflubenzuron e teflubenzuron). Mas a Associação dos Pescadores Marinhos (Fiskarlaget) os acusa de matar outros cr ustáceos, entre os quais pequenos camarões e krills .3 A indústria contesta, alegando que esse problema existe também em zonas onde não há aquicultura. E, como no Chile, ela é apoiada por um órgão do Estado, o Instituto Norueguês de Pesquisa Marinha (Havforskningsintituttet), em Bergen. “Não há ligação evidente”, afirma-nos uma cientista do Instituto, Rita Hannisdal. E prossegue: “Mortes de i números krills ocorreram bem antes da existência da aquicultura. Certas pessoas querem ver uma correlação, mas não há elementos suficientes para pôr em evidência uma causalidade. Precisamos de provas, e, no momento, não há pesquisa sobre essa questão”. Entretanto,
foi-nos fornecido um estudo de 1982 que mostra que o diflubenzuron mata as larvas de cara nguejos... nguejos... 4 O Instituto de Pesquisa Marinha, que se juntou ao Instituto Norueguês de Nutrição e de Pesquisa sobre os Frutos do Mar (Nifes), em janeiro de 2018, depende do Ministério da Pesca. Titular da pasta entre 2009 e 2013, Lisbeth Berg-Hansen (Partido Trabalhista) possuía ações de empresas de aquicultura. Seu sucessor, de direita, Per Sandberg (Partido do Progresso), tem a ambição de quintuplicar a produção produção de salmão até 2050. 5 Em 2016, ele qualificou de “forças obscuras” aqueles que ousam criticar a aquicultura. E isso não ficou só em palavras: o jornal semanal Morg semanal Morgenblade enbladet t e e o site Harvest Magazine identificaram uma dúzia de cientistas arrolados em uma lista negra por terem colocado em questão o discurso dominante.6 Entre eles, o francês Jérôme Ruzzin, professor e pesquisador na área de toxicologia da Universidade de Bergen, onde estuda os poluentes orgânicos persistentes (POPs). Os peixes ricos em lipídios, como o salmão, são procurados por suas proteínas e como fontes de ômega 3, “de cadeia longa”, necessários para o sistema nervoso. Mas sua gordura concentra também poluentes como a dioxina e o PCB [bifenilo policlorado]. O Instituto de Pesquisa Marinha quer tranquilizar: ele “controla anualmente os índices de poluentes e os publica em seu site”, salienta ele, e “os valores estão abaixo das doses máximas estabelecidas pela União Europeia”. A indústr ia do sa lmão acrescenta: “Fazemos testes e respeitamos as exigências estritas do governo. Estamos bem abaixo dos limites”, garante Grønbrekk. Ela faz disso um argumento em prol da aquicultura: “Pesquisas recentes mostram que o salmão da aquicultura contém menos poluentes ambientais que os peixes selvagens e são ricos em lipídios. A vantagem da aquicultura é que controlamos a alimentação dos peixes”. Um estudo publicado em novembro de 2016 2016 na revist a francesa 60 Millions de Consommateurs , de fato, tende a mostrar que o salmão pescado e mesmo o peixe da criação orgânica (alimentado com peixe selvagem) contêm mais poluentes que o salmão da criação clássica, pois sua alimentação
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comporta mais farinha animal e menos vegetais. No entanto, para Ruzzin, os limites fixados são duvidosos: “Em novembro de 2000, a União Europeia havia fixado um limite de 7 picogramas por semana [1 picograma = 10 –15 quilograma]. Mas muitos consumidores excediam essa dosagem. Então, seis meses depois, o valor dobrou para 14 picogramas”. Esse remendo foi criticado na época pela Agência Federal Alemã do Meio Ambiente.7 Ruzzin trabalhava no Nifes, onde estudou o impacto na saúde do consumo do salmão contendo esses POPs: “Constatei efeitos deletérios no metabolismo de ratos alimentados com óleo de salmão, comparados com um grupo alimentado com óleo não contaminado. Os animais desenvolviam diabetes de tipo 2 e uma obesidade muito grave.8 O Nifes me proibiu de falar diretamente com a mídia e de participa r de congressos ciencientíficos, e restr ingiu consideravelmente minhas atividades de pesquisa. Tudo era controlado de A a Z”. DÚVIDAS SOBRE OS BENEFÍCIOS DO ÔMEGA 3
Também se sabe pouco sobre as consequências da acumulação dos tóxicos e os efeitos “coquetel” desses acúmulos. Quanto ao ômega 3 tão vangloriado, Ruzzin contesta suas supostas virtudes: “Os esquimós consomem muito ômega 3 e têm poucas doenças cardiovasculares. Então, comer ômega 3 seria ‘bom para a saúde’... De fato, sabemos que os esquimós têm um patrimônio genético específico.9 Pacientes vítimas de infa rto se viam com prescrições de ômega 3 sem constatarem nenhuma melhora”. Ele nos mostra uma publicação do Ministério das Ciências norueguês, de maio de 2012, admitindo que “os efeitos positivos dos ômega 3 não estão suficientemente documentados”. Ruzzin saiu do Nifes em 2010 e nos confessa que “não come mais salmão de aquicultura”. Na França, a Agência Nacional de Segurança Sanitária da Alimentação (Anses) recomenda, todavia, o consumo de peixe duas vezes por semana, alternando um peixe que tenha grande teor de ômega 3 com um peixe magro, “a fim de garantir todos os benefícios do consumo do peixe e suprir as necessidades que a população tem de ômega 3 de cadeia longa, minimizando os riscos de superexposição a determinadas substâncias que possam contamina r”. r”.10 Bioquímica e pediatra no hospital Haukeland de Bergen, Anne-Lise Bjørke-Monsen também está na lista negra. Em 10 de junho de 2013, nas colunas do jornal diário Verdens Gang , ela aconselhou que crianças e grávidas não consumissem salmão. Sua entrevista teve enorme repercussão na Noruega e em outros países. Seus superiores a desabonaram publicamente.
“A indústria do salmão compra a pesquisa”, acusou. Como prova disso, ela nos mostra um estudo de 2006 coordenado pelo Nifes... e financiado pela Marine Har vest. “Conheci jovens pesquisadores que passavam de um contrato precário pa ra outro. Desde então, então, trabalham para a indústria do salmão, que lhes proporciona uma vida com segurança material.”
“As Nações Unidas estimam que 30% das reservas de peixes selvagens sejam superexploradas, o que não é viável” Outro fato inquietante: uma pesquisadora do Nifes, Victoria Bohne, descobriu em 2008 que a etoxiquina encontrada na ração dos salmões pode ultrapassar a ba rreira hematoencefálihematoencefálica que protege o cérebro. Ela acusa o Nifes de tê-la “forçado a sair”.11 Os fabricantes de farinhas animais escolheram esse antioxidante (E324) para evitar que a ração fique rançosa e impedir sua combustão espontânea, um risco que a Organização Marítima Internacional impõe que se leve em conta.12 O E324 foi originalmente desenvolvido por uma indústria da borracha para evitar fissuras nos pneus.13 Seu efeito estabilizador sobre as vitaminas solúveis nas gorduras e sua capacidade de impedir sua oxidação levaram à sua utilização como conservante. Assim, ele foi produzido pela Monsanto nos anos 1960 para tratar frutas e legumes, antes de ser proibido pela União Europeia. Em junho de 2017, Bruxelas também suspendeu a utilização do E324 na alimentação animal a parti r de 2019. 2019. O grupo Cermaq afirma ter “reduzido o uso da etoxiquina, graças a um diálogo com [seus] fornecedores de alimentos para salmão”, substituindo-a principalmente por “um antioxidante natural, o tocoferol (vitamina E), nas [suas] empresas na Noruega”. O uso dos produtos da pesca para alimentar os peixes da aquicultura invalida o argumento principal alegado em favor dessa atividade: a proteção dos recursos haliêuticos. Como a aquicultura fez ta mbém de sua emissão de dióxido de carbono relativamente fraca um argumento de venda, ela tenta diversificar a alimentação de seus salmões: “A proporção de ingredientes marinhos não passa de 30% e não para de diminuir”, especifica Grønbrekk em nome da Cermaq. “Os ing redientes agrícolas devem v ir de fontes sustentáveis. Existem pesquisas em curso para
a utilização de algas e insetos. As Nações Unidas estimam que 30% das reservas de peixes selvagens sejam superexploradas, o que não é viável. É importante para nosso futuro utilizarmos o mar como agricultores, e não como caçadores”, conclui ela, ao se referir ao oceanógrafo Jacques-Yves Cousteau (1910-1997), que via na aquicultura uma solução sobressalente para a pesca. Outras pistas são exploradas no Canadá, “o único país que aceitou um animal geneticamente modificado destinado ao consumo humano”, de acordo com a associação Vigilance OGM. Criado no Panamá pela empresa norte-americana AquaBounty, esse salmão se tornaria adulto “duas vezes mais depressa”, segundo seus criadores. Na falta de catalogação, e como essa filial da Intrexon guarda a lista de seus distribuidores em caráter confidencial, 4,4 toneladas foram vendidas para o Quebec com toda discrição em 2017... Vem aí, extasia-se o site AquaBounty, “o salmão mais sustentásustentável do mundo!”. *Cédric Gouverneur é
jornalista.
1 Escritório norueguês de estatísticas, estatísticas, Oslo. 2 Relatório 2017 2017 do Comitê Consultivo Científico do Salmão Atlântico. Agência Norueguesa do Meio Ambiente. Disponível em: . 3 “Lusemidler ødelegger”, Norges Fiskarlag, 19 19 jan. 2018. Disponível em: . 4 Marit Ellen Christiansen e John D. D. Costlow, “Ultrastructural study of the exoskeleton of the estuarine crab (Rhithropanopeus harrisii ): ): Effect of the insect growth regulator Dimilin (Diflubenzuron) on the formation of the larval cuticle” [Estudo ultraestrutural do exoesqueleto do caranguejo de estuário (Rhithropanopeus harrisii ): ): efeito do regulador de crescimento de insetos Dimilin (Diflubenzuron) na formação da cutícula larval], Marine Biology , n.66, Berlim, 1982. 5 Per Sandberg, “The future is bright blue” [O futuro é azul brilhante], The European Files, n.47, Bruxelas, jun. 201 2017. 7. Ele demit demitiu-se iu-se em 13 de agost agosto o de 201 2018. 8. 6 “De forbannede lakseforskerne” [Os cientistas malditos do salmão], Morgenbladet e Harvest , Oslo, 16 jan. 2018. 7 Andreas Gies, Günther Neumeier, Marianne Rappolder e Rainer Konietzka, “Risk assessment of dioxins and dioxin-like PCBs in food. Comments by the German Federal Environment Agency” [Avaliação de risco de dioxinas e dioxinas como PCB na comida. Comentários da Agência Federal de Meio Ambiente Alemã], Chemosphere, v.67, n.9, Londres, abr. 2007. 8 Jérome Ruzzin et al., “Persistent organic pollutant exposure leads to insulin resistance syndrome” [Exposição a poluente orgânico persistente leva a síndrome de resistência à insulina], Environmental Health Perspectives, v.118, n.4, Durham, abr. 2010. 9 Matteo Fumagalli Fumagalli et al., “Greenlandic Inuit show genetic signatures of diet and climate adaptation” [Esquimós da Groenlândia mostram combinações genéticas de dieta e adaptação ao clima], Science, v.349, n.6254, Washington, DC – Cambridge, 18 set. 2015. 10 Recomendação de 14 de abril de 2016, Agência Nacional de Segurança Sanitária da Alimentação (Anses), Maisons-Alfort. 11 Nicolas Daniel e Louis de Barbeyrac, “Poissons: élevage en eaux troubles” [Peixes: criação em águas turvas], Envoyé Spécial , France 2, 7 nov. 2013. 12 “Ethoxyquin in fish feed” [Etoxiquina na alimentação dos peixes], IMR, Bergen, 26 mar. 2011. Disponível em: . 13 “Reregistration Eligibility Decision – Ethoxyquin” [Etoxiquina – Decisão de elegibilidade de novo registro], Agência de Proteção Ambiental dos Estados Unidos, Washington, DC, nov. 2004.
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O olhar da cidadania
Na luta pela construção de uma sociedade mais justa, solidária e sustentável.
Quartas, às 17h, Rádio USP (São Paulo: 93,7 FM Ribeirão Preto: 107,9 FM)
Quartas, à meia-noite TV Aberta SP, canais 9 da NET, 8 da Vivo Fibr Fibra a e 186 da da Vivo Vivo..
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VITÓRIA ELEITORAL DA DIREITA, CRESCIMENTO DA ESQUERDA
Na Colômbia, as urnas ameaçam a paz Em 17 de junho, os colombianos elegeram um novo presidente, Iván Duque, que se opõe ao acordo de paz assinado com as Farc. A eleição também foi marcada pelo avanço da esquerda, presente no segundo turno, tradicionalmente disputado por dois candidatos de direita. Mas a esperança de normalização choca-se com o recrudescimento das organizações criminosas POR LOÏC RAMIREZ*, ENVIADO ESPECIAL
ncostados em uma árvore, dois homens observam observam as idas e vindas dos eleitores no local de votação. “Olha os frangos”, frangos”, suspira Martín Rogelio Ramírez, secretário do Partido Comunista da c idade de Cúcuta: “O lara nja é um código”. Neste 17 de junho de 2018, os colombianos vão às urnas eleger seu futuro presidente da República. A população chega para votar na escola do bairro de San Mart ín, no departamento de Norte de Santander, no nordeste do país. O conservadoríssimo Iván Duque enfrenta o ex-prefeito de Bogotá, Gustavo Petro, cuja presença no segundo turno é uma proeza para a esquerda. Aqui, os candidatos progressistas são há muito tempo descartados logo no primeiro turno das eleições presidenciais, quando não sofrem simplesmente a eliminação física. Duque, jovem senador senador há alguns meses ainda desconhecido do grande público, conta com o apoio ap oio de seu mentor, o ex-presidente Álvaro Uribe Vélez. Este, durante seus dois mandatos (2002-2010), aplicou uma política de belicosa escalada contra as guerrilhas e contra qualquer forma de oposição. Aliado fiel dos Estados Unidos, ele aparece em um relatório de 1991, feito pelo serviço de inteligência desse país, como “envolvido em atividades de narcotráfico”.1 “Laranja é a cor dos apoiadores de Duque”, prossegue Ramírez. “Assim é possível identificá-los.” identificá-los.” Ele aponta com o queixo para uma casa adornada com cartazes carta zes em favor do candidato do CenCentro Democrático (direita). Visitantes aglomeram-se na entrada, sob o olhar atento de homens usando bonés também laranja. “Lá dentro, o pessoal de Duque dá dinheiro a todos que provarem, com uma foto de celular, ter votado no candidato de direita”, garante. Não pudemos verificar essa informação, mas a demonstração de força é impressionante: seria difícil contar as imagens do candidato da direita que – em adesivos e cartazes, nos para-brisas dos carros, nas paredes das lojas e até em cami-
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setas – desafiam despreocupadamente a proibição de fazer propaganda eleitoral nos arredores dos locais de votação. Nenhum panfleto, nenhuma imagem em favor de Petro: “A direita manda na cidade”, cidade”, conclui Ramírez. Ram írez. Nas localidades vizinhas, as mesmas cenas se repetem diante de nossos olhos... e dos policiais. Na entrada das cidades, o Exército posicionou tropas e veículos blindados. Ônibus da cidade venezuelana de Ureña, a poucos quilômetros de distância, despe jam dezenas de cidadãos cidadãos colombianos colombianos que vivem do outro lado do R io Táchira. Muitas pessoas, em a mbos os lados do rio, têm dupla nacionalidade. O panfleto do candidato de direita colado na janela de um dos veículos deixa pouca dúvida sobre as intenções de voto dos passageiros.
“Lá dentro, o pessoal de Duque dá dinheiro a todos que provarem, com uma foto de celular, ter votado no candidato de direita” Mais discretos, os partidários de Petro também estão mobilizados. Perto da cidadezinha de Villa del Rosario, um grupo aguarda, em uma casa, a van que o levará ao local de votação. Nenhum traço visível de sua cor política. Esses eleitores também cruzaram a fronteira, guiados por uma militante do Partido Socialista Unido da Venezuela (Psuv), o partido do presidente Nicolás Maduro. “Organizamos o transporte para garantir que os camara das pudessem votar”, votar”, explica a jovem. A travessia é perigosa: perigosa: o departamento é um corredor de contrabando, e diversos grupos criminosos passam por ali regularmente.
DEPARTAMENTO SOB CONTROLE PARAMILITAR
Os eleitores não são a única coisa importada da Venezuela. Na estrada que acompanha o rio, a cada 100 metros vendedores ambulantes chamam os motoristas sacudindo garrafas plásticas. “São os pimpineros : eles vendem combustível transportado ilegalmente através da fronteira”, nos explicam, apontando para os galões de gasolina mal escondidos embaixo das árvores. Na Colômbia, 1 litro de gasolina custa mais de 2.300 pesos, o equivalente a R$ 3,30, contra R$ 2,67 no mercado negro... e o equivalente a R$ 0,05 na Venezuela. Diante dessa sangria, o governo venezuelano, em janeiro de 2017, elevou o preço da gasolina para cerca de R$ 1,67 em áreas na fronteira com a Colômbia. Embora reduzida, a margem dos contrabandistas permanece. “A região de Norte de Santander é historicamente ligada às atividades ilegais”, diz Rafael James, advogado e membro do Comitê Permanente pela Defesa dos Direitos Humanos (PCHR). “Sua proximidade com a fronteira e a ausência dos poderes públicos favoreceram toda uma série de dinâmicas mafiosas. A direita usa o espantalho do chavismo para vencer a eleição. É uma hipocrisia, já que neste departamento todo mundo vive na Venezuela! Todos os produtos que consumimos aqui vêm de lá.” Como consequência da crise econômica no país vizinho, milhares de venezuelanos (e antigos emigrados da Colômbia) Colômbia) cruza ram a f ronteira. “Eles acabam nas redes de prostituição ou contrabando, vivem de pequenos tráficos etc. Tudo isso alimenta o discurso da direita contra Maduro.” E contra aquilo que ela apresenta como seu clone colombiano: Petro. Este, no entanto, embora seja desfavorável a qualquer interferência externa, tem sido extremamente crítico à gestão da crise pelas autoridades venezuelanas. Além dos ataques da mídia que a associam ao regime bolivariano, a esquerda local tem de enfrentar a hostilidade dos grupos paramilitares, forte-
mente instalados no departamento. Oficialmente desmobilizados em 2005, durante o primeiro mandato do presidente Uribe, a maioria deles converteu-se à alta criminalidade ou se tornou o braço armado dos proprietários de terra locais. Ameaças, ataques, assassinatos etc.: inúmeros militantes de esquerda sofrem agressões desses grupos de extrema direita, que os equiparam aos partidários de organizações marxistas armadas. A grande justificativa dos ataques: nos anos 1970 e 1980, Petro participou da guerrilha u rbana no Movimento 19 de Abril Abril (M-19) – uma passagem pela luta armada, no entanto, ainda bastante comum no cenário político colombiano, especialmente na direita. O candidato da esquerda também foi vítima de um ataque, em uma viagem a Cúcuta, durante a campanha eleitoral. Ele só se salvou graças à blindagem de seu veículo. Para a esquerda, o ataque foi assinado pelo ex-prefeito da cidade, Ramiro Suárez Corzo (20042007). Atualmente preso por mandar matar um adversário político, Suárez Corzo continua sendo uma figura influente. Segundo a senadora Claudia López (Aliança Verde), Verde), que fez essa denúncia publicamente, o homem faria, de sua cela na prisão de La Picota, em Bogotá, videoconferências por Skype para dar instr uções à nova equipe dirigente da cidade. “A particularidade do fenômeno paramilitar no departamento”, acrescenta James, “é que ele é suficientemente poderoso para absorver o poder político, subordiná-lo.” subordiná-lo.” Peça essencial do sistema econômico, os grupos paramilitares atacam as comunidades camponesas que desafiam projetos de mineração ou grandes monoculturas, numerosos na região. “A luta, aqui, é entre dois modelos de desenvolvimento”, lança Junior Maldonado, membro da associação de ca mponeses de Catatumbo, ainda na região de Norte de Santander. “O nosso: comunitário e local. O do governo: agroindustrial. A
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a i b m o l o C a i c n e d i s e r P / a r e r r e H n í a r f E ©
Ivan Duque durante cerimônia de aniversário do Batalhão de Guarda Presidencial
estratégia dos paramilitares tem o ob jetivo de limpar o território para que as multinacionais possam se estabelecer.” Exemplo emblemático dos projetos que elas apoiam aqui: a produção de palma, transformada em combustível para motores a diesel. ESPECTROS DA CRISE VENEZUELANA
Em 17 de junho, após a apuração, o resultado é claro: 54% dos votos (10 milhões) para Duque, contra 41,8% para Petro (8 milhões), e 4,2% de cédulas em branco. Os jovens militantes comunistas recebem a notícia sem nenhuma surpresa. A vitória de Duque representa a do campo hostil ao acordo de paz assinado em 2016, em Havana, com as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc), cujos laços ideológicos e humanos com o Partido Comunista Colombiano continuam fortes. Referindo-se ao texto do acordo, o pupilo da direita havia prometido “rasgá-lo em pedaços”, antes de suavizar seu discurso: hoje fala em “corrigi-lo”. Sua eleição também coloca em risco as negociações com a segunda maior guerrilha do país, o Exército de Libertação Nacional (ELN), particularmente ativo no departamento e com o qual o presidente Juan Manuel Santos, no posto até 7 de agosto, definitivamente não conseguiu chegar a um acordo de cessar-fogo. “Os militares vão fazer hora extra”, extra”, caçoa um rapaz. Devemos então concluir que a maioria dos colombianos deseja acabar com a paz? Segundo William Cañizares, diretor da organização de defesa dos direitos humanos Progresar, na região, o conflito não foi o elemento crucial da votação: “70% do eleitorado do departamento está na
área metropolitana de Cúcuta, longe da guerra. Dos 30% restantes, apenas 10% são afetados pelo conflito: é a região de Catatumbo” – área cujos quatro municípios colocaram Petro na liderança,enquantoelefoimaciçamente derrotado em todo o resto do departamento. Em nível nacional, os resultados confirmam o fenômeno: Petro ganhou nos territórios mais marcados pelo conflito, principalmente em áreas rurais remotas (sobretudo no Norte e no Sudoeste). O candidato de esquerda também conquistou a capital e as grandes cidades (Cali, Barranquilla, Cartagena etc.), com exceção de Medellín, onde a influência e a aura de Uribe ainda foram mais fortes. Então, por que ele perdeu? “Nós denunciamos as fraudes no primeiro turno, mas elas não explicam a vitória de Iván Duque”, admite Ariel Ávila, subdiretor da Fundación Paz y Reconciliación, observatório do conflito. “Dois espectros assombram hoje toda a América Latina – e não apenas a Colômbia: a crise venezuelana e o voto evangélico. O que dizem aqui a mídia e a direita? Que Petro é um novo Chávez e que iria fechar igrejas e templos. Essas ideias tomaram forma em amplas camadas dos setores populares. Por si só, o voto evangélico coloca 1 milhão de cédulas na conta de Duque.” Para essa parte da população, o programa de Petro – defesa do direito ao aborto, extensão das liberdades sexuais etc. – parecia um espantalho. Sociólogo, Harold Olave enfatiza que, embora a fraude não tenha pesado tanto quanto alguns proclamam, o apoio a Duque decorre da “mecânica paramilitar” e suas duas alavancas tradicionais nas eleições: “clientelis-
mo e violência”. Um exemplo: a senadora Aída Merlano, do Par tido Conservador da Colômbia (direita), foi acusada de “comprar votos” durante as eleições legislativas de março. De acordo com os resultados da investigação, a candidata da cidade de Barranquilla, no norte do país, pagou até 40 mil pesos (R $ 58) por voto. “Os baronatos locais garantem a lealdade dos funcionários, com a a meaça de demissão, e a da população, maltratada pelas políticas neoliberais, por meio de doações ou comissões”, detalha Olave. “De resto, a direita pede aos grupos a rmados que intimidem e ataquem todas as pessoas relacionadas à oposição, de esquerda ou não.” O governo contabiliza 326 assassinatos de l íderes de movimentos sociais e defensores dos direitos humanos entre janeiro de 2016 e julho de 2018. Entre os departamentos mais afetados, Cauca (81 mortos), Antioquia (47) e Norte de Santander (19). AS FARC NÃO SERVEM MAIS DE ESPANTALHO
Duque também conseguiu convencer. Entre os principais projetos atribuídos a ele, está a reforma da Jurisdição Especial para a Paz (JEP). Organismo de tra nsição nascido do acordo de Havana, a JEP encarrega-se de julgar os cri mes cometidos durante o conflito por todas as partes, tanto os insurgentes quanto os militares – sendo alguns cri mes, principalmente o de rebelião pelos guerrilheiros, automaticamente ani stiados. “Um monument monumento o à impunidade”, declarou Duque durante a campanha. Por iniciativa dos senadores de seu partido, seu campo obteve, no dia 18 de julho, a emenda dos regulamentos da JEP, que Santos
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ratificou antes de deixar o cargo, ao passo que anteriormente se opusera a ele – uma violação dos acordos logo denunciada pelos ex-membros da guerrilha. De agora em diante, como desejava a direita, os militares serão julgados por um tribunal diferente. “Não é aceitável que nossas Forças Armadas sejam julgadas por um tribunal criado pelas Farc e para as Farc. A polícia e o Exército merecem um julgamento justo”, avalia a senadora de direita Paloma Valencia. 2 O segundo objetivo de Duque: modificar o tratamento dos pedidos de extradição recebidos pela Colômbia. A JEP terá de se contentar em verificar se as acusações feitas por outros países estão relacionadas a crimes posteriores à assinatura do acordo – uma referência clara ao caso de Jesús Santrich, ex-comandante ex-comandante da guerrilha e membro da equipe de negociação das Farc em Havana. Preso em abril por uma acusação norte-americana de tráfico de drogas, ele está ameaçado de ser transferido. “Veja que nosso objetivo inicial era eliminar a JEP. Hoje a reconhecemos e a ajudamos a avançar”, insiste, magnânima, a senadora Valencia. Valencia. No entanto, apesar de sua derrota, a esquerda sai fortalecida dessa batalha política. “É histórico!”, diz animada Yolima Gómez, militante da coalizão Colômbia Humana, de Petro, em Cúcuta. “Agora, teremos 8 milhões de pessoas resistindo à política de Duque. Nosso objetivo é organizá-las. Mas que avanço! Antes, a oposição a Juán Manuel Santos era Álva ro Uribe. Hoje, somos uma alternativa.” “O país mudou”, afirma por sua vez Olave: “É a primeira vez que a direita foi colocada na parede. Obrigada a reunir todas as suas forças, ela ficou com medo”. Símbolo dessa união sagrada: os dois partidos tradicionais do país, o Partido Liberal e o Partido Conservador, uniram-se a Duque após o primeiro turno. Candidato à presidência pelo Partido Liberal e principal artífice do acordo de paz com as Farc, Humberto de la Calle (que ficou em quinto lugar no primeiro turno, com 2% dos votos) surpreendeu ao anunciar que votaria em branco no segundo turno, recusando-se, assim, a apoiar Petro, o único candidato que prometeu dar continuidade ao processo de paz. Ele seguiu os passos de Sergio Fajardo, candidato de uma coalizão que reunia a Aliança Verde Verde e o Polo Democrático (centro-esquerda), o qual ficou em terceiro lugar, com quase 24% dos votos. Segundo Olave, um fenômeno explica essa mudança: o processo de paz. “Privada de seu conforto tradicional, a direita teve de se posicionar sobre os problemas reais. Um espaço democrático se abriu com o desarmamento, e os jovens, especialmente, fo-
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ram exigir respostas para suas perguntas. O discurso sobre o perigo venezuelano não poderia substituir completamente aquele que erigia a guerrilha em mal absoluto, como esperava a classe dirigente.” Em um artigo de 2008, De la Calle, que também foi vice-presidente da República entre 1994 e 1996, havia declarado que “a estabilidade política da Colômbia” era “devida às Farc”, acrescentando que o desaparecimento do grupo armado “aumentaria a pressão social” e o “nível de confrontação”. c onfrontação”.3 Visionário? Quatro horas de carro ao sul de Bogotá, no departa mento de Tolima, Tolima, está uma das 26 áreas de reinserção (oficialmente, “espaços territoriai s de formação e reincorporação”, ETCR) dos ex-combatentes das Farc. Chegamos ali após uma subida dif ícil, de jipe, por uma estrada de montanha escarpada, perto de Icononzo. No caminho, nenhum controle, nenhuma presença visível, nem do Exército colombiano nem da ONU, que deveriam estabelecer perímetros de segurança em torno da área para proteger os ex-guerrilheiros. “Esta é a terceira visita de jornalistas em u ma semana”, suspira Laura F., apresentada como uma das responsáveis do ca mpo. “Todos “Todos querem saber o que achamos do novo presidente. O último escreveu um artigo que não agradou aos companheiros. Ele nos descreveu como pessoas desengajadas no processo de paz, o que é falso. Então, eles não vão querer falar com você hoje.” Quinze anos de luta armada dentro da guerrilha e das milícias urbanas da rede Alejandro-Nariño aguçaram a desconfiança da jovem. Ela avalia seu interlocutor com os olhos antes de responder: “A vitória de Duque era previsível. É claro que isso vai complicar as coisas, mas não recuaremos na questão da paz”. Fincado no topo de uma montanha que domina o vale, o campo compõe-se de várias casas onde vi-
vem os ex-combatentes e suas famílias. Eles contam com um campo de futebol, uma biblioteca, um restaurante e até u m bar. “Tudo “Tudo foi constru ído pelos companheiros, com o material doado pelo governo”, esclarece nossa guia. Nas fachadas, afrescos sobre a glória da guerrilha e seus mártires: Manuel Marula nda Vélez, Vélez, Alfonso Cano, Mono Jojoy etc. Aqui vivem 295 pessoas. Cada ex-combatente recebe 700 mil pesos por mês (R$ 955, quase 90% do salário mínimo colombiano), depositados em uma conta bancária – que a maioria precisou abrir e aprender a administra r. Terminada Terminada a guerra para eles, os ex-guerrilheiros agora se dedicam à atividade política de sua nova organização legal: a Força Alternativa e Revolucionária do Comum (também Farc). Atraindo todas as atenções pós-eleitorais, o partido imediatamente se declarou aberto ao diálogo com o novo presidente. Muitos, à esquerda, temem que o retorno ao poder de uma direita revanchista resulte no aumento do número de assassinatos políticos. Segundo as organiz ações de defesa dos direitos humanos, cerca de sessenta ex-combatentes já foram mortos entre a assinatura do acordo de paz, em 24 de novembro de 2016, e maio de 2018. Difícil não pensar no exemplo da União Patriótica (UP), organização política criada pela guerrilha na década de 1980 com o objetivo (já naquela época!) de entregar as armas e inserir-se na via democrática. Os assassinatos de mais de 3 mil militantes, entre eles dois candidatos à presidência, acabaram enterrando as esperanças da esquerda e mandando as Farc de volta à selva. Que preço os ex-guerrilheiros estão dispostos a pagar hoje? “Neste país, tanto na guerra como na política há mortes; isso é parte da luta de classes”, responde nossa interlocutora, dando de ombros. Para ela, apenas a
relação de forças política pode deter a mecânica da violência contra os guerrilheiros desmobilizados. “Eu não esqueço que o governo é um adversário. Ele não está traindo o acordo, está fazendo sua parte. Se os 8 milhões de eleitores de Petro se mobilizarem, os assassinatos diminuirão.”
A des desmo mobil bilizaç ização ão das diferentes diferentes estruturas estr uturas das Farc “criou uma espécie de anarquia criminal” e um “aumento da insegurança” Nem todo mundo tem a mesma confiança no futuro. Segundo Segu ndo várias organizações, os dissidentes da guerrilha, hostis à paz, seriam hoje quase 1.200, enquanto as autoridades estimam seu número em cerca de seiscentos. Em Norte de Santander, muitos retomaram as armas. arma s. “Nossa preocupação”, preocupação”, explica Cañiza res, o diretor da Progresar, “é que o pequeno grupo oriundo das Farc que se apresenta como ‘Frente 33’, ativo em Catatumbo, cresça por causa da política de Duque e do não respeito ao acordo.”
nuncia conspiração e “sabotagem” dos acordos. “Tenho a impressão de que a paz na Colômbia está presa nas redes da traição”, escreveu em uma carta aberta no dia 16 de julho. Sinal de um possível retorno da guerrilha marxista? “Acho que o ciclo de violência política acabou”, responde Ávila, na Fundación Paz y Reconciliación. “Claro que sempre haverá dissidentes. Mas o risco, caso não se faça a reforma agrária ou não se substituam outras produções agrícolas por aquelas erradicadas – coisas previstas pelo acordo de Havana –, é tornar i nevitável um novo ciclo de violência criminosa.” Segundo um relatório da Fundación de julho de 2017, 4 a desmobilização das diferentes estruturas das Farc “criou uma espécie de anarquia criminal” e um “aumento da insegurança”, fenômeno provocado pela “expansão de grupos ilegais” ao redor das 242 comunas onde operava a guerrilha. Em Catatumbo, os dois últimos grupos de insurgentes armados, cerca de 1.500 guerrilheiros do ELN e quinhentos do Exército Popular de Libertação (EPL), empreendem empreendem uma guerra g uerra para tomar posse do território antes controlado pelas Farc – uma zona estratégica, fronteiriça, que eles também disputam com os grupos paramilitares e as máfias. Em suma, um caos que algumas pessoas temem que se espalhe para outras regiões do país.
RETORNO DA GUERRILHA MARXISTA?
Outro sinal de desafio: o ex-guerrilheiro Luciano Marín Ara ngo, conheciconhecido como Iván Márquez, anunciou em meados de julho que não ocuparia sua cadeira no Senado (o acordo de paz concedeu à ex-guerrilha cinco assentos no Senado e cinco na Câmara dos Deputados): a prisão de seu amigo Jesús Santrich e a confirmação do i nquérito em que ele é acusado nos Estados Unidos por tráfico de drogas levaram-no a fugir de Bogotá para refugiar-se em Caquetá, no sul do pa ís, de onde de-
*Loïc Ramirez é
jornalista.
1 Sibylla Brodzinsky, “Ex-Colombian president’s family face US extradition over drugs charges” [ Família do ex-presidente colombiano ameaçada de extradição pelos Estados Unidos por tráfico de drogas], The Guardian, Londres, 11 jun. 2012. 2 “‘Justicia para policías y soldados’, pide Paloma Valencia” [“Justiça para policiais e solda dos”, pede Paloma Valencia], El Tiempo, Bogotá, 3 ju l. 2018. 3 “Buena parte de la estabilidad política se debe a las FARC” [Boa parte da estabilidade política se deve às Farc], El Espectador , Bogotá, 26 nov. 2008. 4 Relatório n.2 da Fundación Paz y Reconciliación, Bogotá, jul. 2017. Disponível em: .
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MINERAÇÃO
Estranhas Estranhas cooperativas bolivianas bolivianas Por que atacar esta importante força, as cooperativas de mineiros, uma das partes interessadas nos movimentos sociais que apoiam Morales? Provavelmente, antes de mais nada, por causa da queda do preço das matérias-primas, que estrangulou as finanças públicas, obrigando o Estado a procurar novas receitas POR AMANDA CHAPARRO*, ENVIADA ESPECIAL
as primeiras horas do dia, na saída da mina de San José, em Oruro, Alfredo Huari arruma suas ferramentas. Ele passou a noite nas galerias escuras da montanha para extrair alguns gramas de minério: prata, estanho, zinco, chumbo... Aqui, 250 associados reunidos em cooperativas dividem os veios de uma das maiores jazidas de metais preciosos da Bolívia. A 3.700 metros acima do nível do mar, sob o sol já ardente, Huari, ombros largos e rosto vigoroso, lembra os trágicos aconteci mentos de 2016, quando um conflito com o governo se degenerou. “É verdade que nós, os mineiros, somos sanguíneos. Mas ambas as partes agiram de forma violenta”, ele conta, sentado ao lado dos colegas que descansam depois de uma noite de trabalho. Agosto de 2016, 2016, “agosto “agosto negro”. negro”. Mineiros conhecidos como “cooperativistas” bloqueiam os eixos estratégicos do país. Os confrontos com a polícia levam à morte cinco pessoas e fazem dezenas de feridos nos dois lados. Até a tragédia que marca o fim das mobilizações: o sequestro e depois o assassinato, em 25 de agosto, do vice-ministro do Interior, Rodolfo Illanes, que viera para tentar uma mediação. O presidente Evo Morales denunciou o crime como “imperdoável” “imperdoável” e decretou luto nacional. A crise marcou um ponto de virada nas relações com um de seus principais aliados. Na origem dessa explosão de violência, o anúncio da revisão da Lei das Cooperativas para permitir aos trabalhadores do setor se sindicalizarem livremente: uma “declaração de guerra”, considera Carlos Mamani, então presidente presidente da Federação Nacional das Cooperativas Mineiras (Fencomin) – algumas das quais parecem ter mantido esse modo de organização apenas no nome. Potosí, o outro grande centro de mineração do país, dominado pela Cerro Rico, a “montanha de prata”, com 4.800 metros de altura. Na família de Miguel Delgadello, a atividade de mineiro passa de pai para filho. Ele subiu os degraus e se tor nou chefe de setor. Capacete na cabeça, botas nos pés e folha de coca no vão da bochecha, ele explica: “Eu trabalho com um terceirizado que tem seus próprios trabalha-
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dores. Nós assinamos contratos por preço fixo, por tarefa ou por dia. Aqui é cada um por si”. No coração da montanha, o trabalho, duro, ceifa vidas. As temperaturas varia m de 0 °C a mais de 40 °C, em meio à poeira tóxica. Marco Gandaril las, pesquisador do Centro Centro de Documentação e Informação da Bolívia (Cedib) e especialista em questões de mineração, explica a organização dessas “cooperativas”: “Os lucros não são distribuídos. Grupos privilegiados exploram o trabalho dos outros, com jornadas de t rabalho que às vezes ultrapassam dezesseis horas. É por isso que eles se opõem à sindicali zação”. zação”. Há alguns anos, o presidente Morales, no entanto, apresentou os mineiros cooperativistas como “aliados naturais e incondicionais” de seu governo (Página Siete , nov. 2013). Mesma conversa com Simón Condori, líder da Federação dos Mineiros para a capital: “Estivemos na vanguarda do processo de mudança e da luta contra o neoliberalismo dos anos 2000”, declara. Com mais de 130 mil trabalhadores, essa organização forma um batalhão eleitoral ainda mais importante pelo fato de cada mineiro geralmente mobilizar os votos de sua família. “Somos um monstro”, concluía Mamani, um tanto ameaçador, durante os protestos de 2016. A partir par tir de 2005, os mineiros cooperativistas apoiaram o Movimento para o Socialismo (MAS), o partido de Morales. Em troca, eles mantêm postos-chave nas administrações e nos ministérios. Em 2006, o ministro das Minas, Walter Villarroel, era originário da Fencomin, e vários deputados emanam de suas fileiras. Segundo o Cedib, eles se beneficiara m de pelo menos nove medidas legislativas desde a vitória do presidente indígena, incluindo a Lei de Mineração, que “coloca seus direitos acima dos de outros atores econômicos do país”, estima o pesquisador Pablo Villegas, especialista em questões energéticas. No entanto, em 2016, a federação exibiu uma nova lista de queixas. Além do cancelamento da modificação da Lei das Cooperativas, ela exige a possibilidade possibilidade de se associar com empresas privadas (para que estas últimas gara ntam a exploração de suas concessões), bem como o relaxamento
de normas ambienta is que, em sua opinião, se mostram muito restritivas. “Privilégios intoleráveis”, retruca diante de nós Álvaro García Linera, o vice-presidente, sentado sob o retrato de Simón Bolívar em um salão do palácio presidencial. Arquiteto da política do MAS, ele nos apresenta a contraproposta feita pelo governo antes da eclosão do conflito: “Ou vocês operam como empresas e pagam i mpostos, ou adotam o status de cooperativas, mas renunciam a ceder suas concessões ou a alugá-las a part iculares”.
“Eu trabalho com um terceirizado que tem seus próprios trabalhadores. Nós assinamos contratos por preço fixo, por tarefa ou por dia” Esse ultimato levanta uma questão: por que atacar essa importante força, uma das partes i nteressadas nos movimentos sociais que apoiam Morales? Provavelmente, antes de mais nada, por causa da queda do preço das matérias-primas, que estrangulou as finanças públicas, obrigando o Estado a procurar novas receitas, sobretudo alarga ndo a base do imposto imposto da mineração.1 “O governo estava recebendo muitas críticas”, analisa igualmente Ricardo Bajo, redator-chefe redator-chefe do edição boliviana do Le Monde Diplomatique . “As pessoas pessoas dizia m: ‘Os mineiros cooperativistas fazem o que querem porque são aliados do governo. Todo mundo segue as regras, paga impostos, exceto eles’. Mas o governo tinha registrado uma série de vitórias contra os setores com os quais estava em conflito, e a oposição estava enf raquecida. Ele se sentiu forte o suficiente para fazer que os mineiros se dobrassem e obrigá-los a entrar na li nha.” A tensão, no entanto, remonta à própria origem dessa aliança antinatural entre um poder em busca do “socialismo do século XXI” e um setor menos sensível à urgência da luta pela
emancipação. De fato, os cooperativistas parecem ter se beneficiado de sua proximidade com o poder para “promover um capitalismo selvagem por meio da adoção do modelo neoliberal de recusa de qualquer regulamentação estatal”, resume o pesquisador Claude Le Gouill. 2 Assim, desde 2006 e da chegada do MAS ao poder, mineiros cooperativistas e mineiros empregados pela Corporación Minera de Bolivia (Comibol), empresa estatal, se enfrentam pelo controle dos veios em Huanuni, uma mina pública do Cerro Posokoni, no departamento de Oruro. Resultado: dezesseis mortos e 81 feridos. Seis anos depois, eles ainda exigiam concessões na mina de Colquiri. Novos confrontos. Em 2014, 2014, a Lei de Mineração, que integra grande parte de suas demandas, foi adotada após três anos de elaboração e de negociações pontuadas por graves conflitos entre governo, mineiros cooperativistas e mineiros assalariados. Após o violento episódio de 2016, 2016, cinco decretos, seguidos de leis, fortalecem o controle sobre as cooperativas. Eles preveem o retorno ao Estado de concessões não exploradas ou cedidas a empresas privadas – uma vitória para o governo, ai nda que compromecomprometa o relacionamento com o antigo aliado. Novos atos violentos podem ocorrer: os cooperativistas ameaçam retomar as manifestações se os suspeitos em prisão provisória no âmbito da investigação do assassinato de Illanes não forem libertados. Em Oruro, em frente à mina de San José, um mineiro que quer permanecer anônimo deixa escapar, em tom definitivo, a respeito da eleição presidencial de 2019: “Ya no apoyamos” apoya mos” – “desta vez, não vamos mais apoiar [o MAS]”. Por enquanto, essa opinião não é majoritária entre seus companheiros... companheiros... *Amanda Chaparro é jornalista.
1 Entre 2015 e 2016, as receitas provenientes do petróleo caíram 33% (Cepal), e as do imposto de mineração, 2%. 2 Claude Le Gouill, “La politique minière du gouvernement d’Evo Morales: entre mythes et pragmatisme politique” [A política de mineração do governo de Evo Morales: entre mitos e pragmatismo político], Ide As Paris, outono 2016.
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UM MASSACRE DESACREDITA AS MISSÕES DA ONU
Na República Centro-Africana, a falência da comunidade internacional Mal equipada e mal planejada, a Missão Multidimensional Integrada das Nações Unidas para a Estabilização da República Centro-Africana acumula fracassos e escândalos. Os capacetes azuis são acusados de atirar contra uma multidão desarmada em Bangui, em abril. Entre a miséria e uma guerra civil insidiosa, o país é palco de uma disputa de influências internacional POR JUAN BRANCO*, ENVIADO ESPECIAL
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Soldado das Forças Armadas Centro-Africanas (Faca)
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ez de abril de 2018. No coração de Bangui, o rumor cresce: um grupo armado teria sequestrado uma mãe e sua filha. Estamos nos limites do bair ro PK5, enclave muçulmano de alguns milhares de habitantes no coração da capital da República Centro-Africana. Desde a destituição, em março de 2013, do presidente François Bozizé, os enfrentamentos entre anti-balakas, cristãos e animistas, partidários em sua maioria do chefe de Estado destituído, e a Seleka, coalizão heteróclita de maioria muçulmana, deixaram milhares de mortos e centenas de milhares de deslocados. Lançada pela França com o aval das Nações Unidas em dezembro de 2013, à operação Sangaris1 somou-se em abril de 2014 a Missão Multidimensional Integrada das Nações Unidas para a Estabilização da República Centro-Africana (Minusca). Em janeiro de 2015, enquanto os enfrentamentos já tinham feito 6
mil mortos, a ONU acusou os dois adversários de “limpeza étnica” étn ica”.. Apesar da assinatura de um acordo de paz em junho de 2017, o conflito continuou. O governo do presidente Faustin-Archange Touadéra, eleito em 2016, controla apenas 20% do território. Desde 8 de abril de 2018, uma operação militar da Minusca, nomeada Sukula, semeia turbulências na capital. As expedições dos capacetes azuis, que visam retomar o controle de um bairro que caiu na mão das milícias, são cotidianas. A memória dos caminhões de refugiados fugindo em direção ao Chade em 2013, perseguidos pelos anti-balakas sob o olhar indiferente das forças internacionais, vem à tona. A Minusca tenta emboscar Nimery Matar Djamous, conhecido como Force, um miliciano de autodefesa que reina sobre uma parte desse bairro muçulmano. Desertor do Exército centro-africano, liderando uma cente-
na de jovens desocupados, ele está em relação direta com os chefes rebeldes do norte e do leste do país, ex-Seleka, que tomaram temporariamente a capital em 2013 e ameaçam regu larmente retornar a Bangui. Aqui, ninguém entra sem sua autorização, e as organizações humanitárias fizeram as malas. Ironizando a autoridade do presidente Touadéra, Force diminui agora a credibilidade de tropas internacionais já muito desacreditadas. Apesar de suas intervenções, a Minusca não consegue retomar o controle do bairro. DIAMANTES E PETRÓLEO
Neste 10 de abril, a população irritada cerca o comissariado onde vêm se instalar as Forças Armadas Nacionais Centro-Africanas (Faca). Muito tensa, a situação degenera rapidamente. As tropas formadas pela União Europeia, acompanhadas de mercenários russos da divisão Wagner, entram em pânico.
A população população se refugia perto da mesquita; homens de Force se misturam aos manifestantes; o contingente da ONU, composto de certa de vinte soldados ruandeses apoiados por dois veículos, abre fogo. Enquanto os milicianos replicam, um blindado quebra, obrigando os soldados a fugir a pé. Um dos capacetes azuis é abatido. No dia seguinte, dezessete corpos são colocados diante do quartel-general da Minusca por manifestantes silenciosos, carregados em lençóis brancos. Entre os cadáveres, ícones do bairro, reconhecidos por seus feitos esportivos, mulheres e crianças. Em missão em Bangui, Jean-Pierre Lacroix, secretário-geral adjunto da ONU encarregado da manutenção da paz, evoca os “incidentes” cuja responsabilidade recai sobre os milicianos que “manipulam os jovens”. Apenas no dia 10 de abril, a Cruz Vermelha Vermelha centro-africana contou contou 34 mortos e 145 feridos, entre os quais
uma maioria de civis. Ainda que a Minusca tenha lançado oficialmente quatro investigações sobre os fatos que aconteceram no PK5, nenhuma resultou na menor sanção ou reconhecimento de culpa e nenhum comandante foi retirado de suas funções. Todos os relatórios concluem um uso “proporcional” da força e o respeito das regras de engajamento diante dos “movimentos militarmente estruturados por ações sofisticadas”. Após novas denúncias, a pressão aumentou; o secretário-geral adjunto encabeçou outro relatório na divisão dos diretos humanos da Minusca. Em 11 de julho de 2018, Parfait Onanga-Anyanga, o chefe da Minusca, em três páginas “estritamente confidenciais” excluiu qualquer culpa. São deixados de lado os testemunhos coletados no local por jornalistas e especialistas, mas também o relatório, que, no entanto, não tem nenhuma ambiguidade, do comando das forças de operações especiais assinado pelo responsável adjunto das operações especiais Ikram Ul Haque e pelo tenente-coronel ruandês Jean-Paul Ruhoraohza, encarregados da operação: os capacetes azuis abriram fogo primeiro em cima de uma multidão desarmada, da qual apenas a segunda e a terceira linhas eram aparentemente aparentemente infiltradas por milicianos que permaneceram inativos. Esses documentos confidenciais se acrescentam aos relatórios da polícia militar nacional. Estes confirmam a violência de uma operação que terminou pela fuga a pé de soldados ruandeses, atirando sem olhar a cada esquina da zona mais densa do país para prevenir eventuais represálias. Pequeno país-eixo, fazendo fronteira com o Chade e a República Democrática do Congo (RDC), a República Centro-Africana foi por muito tempo a pedra angular da estratégia colonial francesa na África subsaariana, e o controle desse território nunca foi nada além de um meio a serviço de lutas de influência entre grandes potências, que ainda consomem a região. Deixado de lado, entravado por uma centralização econômica e comercial em torno da sua capital, o país v iveu ao ritmo dos caprichos de um antigo oficial do Exército francês, Jean-Bédel Bokassa (no poder de 1966 a 1979), coroado “imperador” em 1977 ao final de uma cerimônia que custou um terço do PIB do país. A sequência sequência foi uma sucessão de decepções. A República Centro-Africana, apesar de seus recursos naturais – dos quais o diamante e o coltan ainda são os mais promissores –, sofreu com o desinteresse crescente de sua antiga potência colonial. A reconfiguração militar lançada pelo presidente Nicolas Sarkozy fez que barbuzes e neocolonos perdessem o pouco de soberba que lhes restava. Na continuidade do fe-
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soldados do Nepal, Uruguai e Marrocos tinham sido expulsos por tráfico de armas, estupros, assassinatos maquiados como erros... Empregada enquanto a operação Sangaris chegava ao fim sem glória, em dezembro de 2016, no meio de acusações de pedofilia organiz ada, a Minusca já perdeu 73 soldados – nesse contexto contexto apoca líptico emergindo semana após semana das acusações hostis. Assim se multiplicam as missões de todo tipo, que deveriam reforçar instituições nacionais inex istentes. Os especialistas enviados pela sede da ONU se sucedem. Ganhando US$ 500 por dia, eles produzem relatórios estereotipados que ninguém lê a respeito Apen Apenas as no dia de um país que nunca percorreram. O 10 de abril, fim da ajuda bilateral, em proveito de a Cruz Vermelha fundos multilaterais, deveria ter percentro-africana contou mitido, diante dessa má administração, evitar as urgências humanitárias. 34 mortos e 145 feridos, A expectativa de v ida no nascimento entre os quais uma passou de 44 anos em 2002 para 52 maioria de civis anos em 2016, mas continua sendo a mais baix a do mundo, segundo o Banco Mundial. A guerra civil de 2013 2013 marcou uma Em 10 de abril, as Faca, infiltradas virada. Depois do afu ndamento ndamento do po- pelos mesmos que elas deveriam comder de transição encarnado por Michel bater, tinham revelado os detalhes da Djotodia, fraco sucessor de Bozizé, o operação iminente da Minusca aos mipaís caiu no caos: os governadores não licianos de Force, precipitando um draeram mais nomeados. Pouco a pouco, ma que ninguém ousou assumir. A alos grupos rebeldes tomaram definiti- guns quilômetros dali, o proto-Estado vamente o controle do essencial do constituído pela Frente Popular pelo país. Antes bem recebido, o estrangei- Renascimento da República Centroro, o mungiu, bem pago, que exercia -Africana (FPRC), antiga coluna verteuma economia economi a de predação, hoje é per- bral da Seleka, chamou as forças rebelcebido como o espoliador de uma po- des a se reunirem para preparar uma pulação privada de qualquer forma de tomada de Bangui em reação ao massasoberania – e que vive com 89 centavos cre. Noureddine Adam solicitou o apoio de euro por dia em média, enquanto o da França. Os Mi rages estacionados estacionados no menor funcionário internacional mul- Chade efetuaram voos a baixa altit ude tiplica por cem essa renda no cotidia- para assustar os rebeldes e, assim, evino. O PIB por habitante é de US$ 382, a tar o pior. Mas o que seria o pior? A riqueza produzida pelos 5 milhões de substituição de um poder fantoche por centro-africanos é inferior aos lucros outro, a reprodução do drama de 2013, anuais da Total. A Minusca, símbolo de quando, por irritação, a França deixou uma presença estrangeira parasita, cair seu aliado Bozizé em proveito de uma força heteróclita (a Seleka) que concentra todos os ódios. A força interna cional (14.787 (14.787 sol- não esperava tanto, surpreendida por dados e agentes de mais de dez nacio - ter tão facilmente tomado a capital, nalidades) acumula escândalos. Os afundando-se desde que chegou a relatórios oficiais denunciam suas Bangui e multiplicando roubos e vio“insuficiências”, sua incapacidade de lências anárquicas? A França, que que então deixou deixou aconteacontegarantir a proteção das populações e a falta de formação de seus contin- cer, promete que desta vez não vai ingentes. 3 Em junho de 2017, 629 capa- tervir. O embaixador nos disse e repete, cetes azuis congoleses congoleses foram demiti- enquanto as forças rebeldes se reúnem dos por abusos sexuais, após a retirada no Chade sob a égide do aliado Idriss forçada dos chadianos, acusados de Déby. Seu principal conselheiro nos parcialidade e de apoio às forças mu- mostra o novo mapa de um país onde çulmanas do país. Em ma io de 2018, 2018, o abundam as instalações de ONGs flocontingente gabonês, cuja retirada ti- restais controladas por baixo do pano nha sido anunciada, foi mantido in ex- pela CIA para contra-atacar a influência crescente dos mercenários russos e tremis depois de longas negociações implicando o Ministério das Relações dos operadores econômicos chineses. controle de qualExteriores francês, preocupado em A França, que tem o controle manter um olho sobre a África central, quer assunto relacionado à República enquanto as acusações de abuso se- Centro-Africana no Conselho de Seguxual acabavam de vir à tona. Antes, rança da ONU, estranhamente aceitou
uma isenção à Rússia no embargo que foi imposto desde a guerra civil. O aliado mantido por tanto tempo não existe mais. A presença russa se tornou tor nou patente nas concessões de minas ou nas ruas da capital: 175 instrutores e cerca de 8 mil armas desembarcaram. desembarcaram. Escândalos já atingem os mercenários russos, afiliados em grande parte à empresa Wagner e suspeitos de terem encomendado o assassinato selvagem de três jornalistas investigativos de seu país, que vieram pesquisar no local. Em breve, a guarda próxima do presidente Touadéra, dirigida por um certo Valeri Zakharov, poderia ser substituída por forças especiais francesas vindas para apoiar a rebelião do norte. Isso dependeria da reação de Paris e das pressões que o aparelho de segurança norte-americano exercerá sobre seu aliado. Enquanto isso, alguns mercadores de sonhos aproveitam a expectativa para vender a preço baixo sua mediação, e representantes de Erik Prince, fundador da Blackwater, a empresa norte-americana de mercenários, aparecem no único hotel de luxo da cidade. Nesse contexto nocivo, nasceu a Corte Penal Especial. Instituição híbrida misturando direito centro-africano e internacional, ela tem por objetivo dar um fim à impunidade. Depois de três anos de inatividade e enquanto seu orçamento representa um treze avos das receitas do Estado centro-africano, sua gestão operacional e sua proteção foram confiadas à Minusca, tornando ilusórias as promessas de independência da instituição. Dotado de uma dúzia de oficiais de polícia judiciária e apoiado por juízes de instrução internacionais, seu principal procurador, Toussaint Muntazini, não iniciou nem a menor investigação desde sua nomeação em 2017, em um país onde os primeiros processos contra criminosos de guerra, ocorridos em janeiro de 2018 por meio da justiça nacional, conheceram grande repercussão. Nesses limbos, os olhares da população, de uma outra dominação, se endurecem imperceptivelmente. As forças coloniais, que se tornaram multinacionais, continuam, por sua vez, povoando, indiferentes, as noites de um país onde a esperança de vida se negocia ao preço dos silêncios mais culpados.
chamento da base militar de Bouar, oficialmente por razões financeiras, e a de Béal, as tropas francesas se reinstalaram no vi zinho Chade, em N’DjameN’Djamena, Abéché e Faya-Largeau. Pouco a pouco, os raros franceses que exploravam açúcar, madeira e a lgodão se retiraram, substituídos pelos vendedores de diamante libaneses, os petroleiros russos e chineses, os mercadores de ouro do Sahel e os guardas florestais norte-americanos. Areva e Total, por um tempo instaladas em Bakouma e Birao,2 partiram parti ram com a debandada. debandada.
*Juan Branco é jornalista e doutor em Direito, autor de D’après une image de Daech [Uma imagem do Estado Islâmico], Nouvelles Éditions Lignes, Paris, 2017. 2017.
1 Ler Anne-Cécile Robert, “François Hollande, président à Bangui” [François Hollande, presidente em Bangui], Le Monde Diplomatique, jan. 2014. 2 Ler “Aux sources du scandale UraMin” [Nas fontes do escândalo UraMin], Le Monde Diplomatique , nov. 2016. 3 Relatório S2018/125 S2018/125 do secretário-geral secretário-geral sobre a República Centro-Africana e as atividades da Minusca, Nova York, 15 fev. 2018.
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MISCELÂNEA
livros
internet COMO SE REVOLTAR?
IMPERIALISMO, ESTADO E RELAÇÕES INTERNACIONAIS
Patrick Boucheron, Editora 34
NOVAS NARRATIVAS DA WEB
Sites e projetos que merecem o seu tempo
Luiz Felipe Osório, Editora Ideias & Letras ENTREVILAS
A
Idade Média tem sido imaginada como tempo de reis, castelos e igrejas, mas também foi período de grande opressão sem aparente resistência, com turbulências, agitações e insurreições. Quem fala sobre isso é Patrick Boucheron, especialista nesse período, em livro com uma estrutura de palestra e perguntas, derivado das “pequenas conferências” dirigidas a jovens na França. Aí o autor constata que as juventudes já se revoltavam contra as estruturas sociais. Nessa história das revoltas medievais é apresentada uma série de manifestações, populares ou não, em linguagem simples, com base em documentos e “lendas”. É possível revoltar-se num período conhecido pelo senso comum como “idade das trevas”, mas no qual estudos já mostrara mostraram m o quanto a vida econômica e cultural era dinâmica. Um dos argumentos do autor se refere ao tipo de revolta – por exemplo, aquelas da pequena nobreza contra a grande nobreza, o que ele chama de “revolta fiscal”, que tem a ver com cobrança de taxas t axas e impostos cobrados pelos reis e senhores da nobreza, donos de terra e castelos, em geral abusivos. O cavaleiro solitário Robin Hood não poderia ficar de fora dessa história. Alguns historiadores colaram a imagem do “herói” popular nas revoltas de camponeses. Boucheron mostra, ao contrário, que esse personagem não era um “bandido comum” que pretendia distribuir renda, como se acreditou durante algum tempo (Hobsbawm, por exemplo). Na perspectiva do autor, o salteador pertencia à pequena nobreza (gentry ) da Inglaterra. Mas também houve várias contestações populares da ordem social vigente, e Boucheron arrisca interpretar com outros que “a cruzada das crianças” poderia ser um desses protestos. Ao abordar a Idade Média, o livro remete às insurgências e manifestações globais e locais com sentidos econômicos, mas também culturais e sociais. Recentemente houve revoltas globais contra impostos (movimentos antiglobalização e anticapitalista em Seattle), manifestações contra o preço do ônibus (jornadas do MPL em junho de 2013), protesto exitoso contra a privatização das águas (a “guerra pelas águas” em Cochabamba). Enfim, esse livrinho nos lembra que não faltam motivos para revoltas.
A
s contribuições marxistas são fundamentalmente internacionalistas, mas relegadas nos estudos das relações internacionais. A relação entre saber e poder não é irrelevante. O livro de Luiz Felipe Osório traz à tona as contribuições teóricas marxistas para o campo das Relações Internacionais, principalmente em torno da teoria do Estado e do imperialismo, desde suas origens até as discussões mais recentes. Osório propõe uma divisão dos autores em torno de três grandes debates. O primeiro, que se estende de 1870 a 1945, reúne os intérpretes pioneiros de Marx: Rudolf Hilferding, Rosa Luxemburgo, Karl Kautsky, Nikolai Bukharin e Vladimir Lenin. O segundo debate ocorre durante a Guerra Fria e apresenta um grupo amplo de escolas chamadas neomarxistas: a corrente do capital monopolista (Paul Baran e Paul Sweezy), os teóricos da dependência (Andre Gunder Frank, Ruy Mauro Marini, Theotônio dos Santos e Vânia Bambirra), e os pensadores do sistema-mundo e das trocas desiguais (Immanuel Wallerstein, Giovanni Arrighi e Samir Amin). Por fim, o debate contemporâneo, que foi dividido em três campos. Na vertente politicista, apresentam-se os autores Michael Hardt, Antonio Negri, Leo Panitch, Sam Gindin e Ellen Wood; na parcial politicista, David Harvey e Alex Callinicos; e na plena crítica, Evgeni Pachukanis, Christel Neusüss, Klaus Busch, Claudia von Braunmühl, Joachim Hirsch, Alysson Mascaro e China Miéville. Para muito além de uma luxuosa e instigante revisão bibliográfica, deve ser destacada a impressionante apresentação do atual estado da arte das reflexões marxistas. A leitura de Imperialismo, Estado e relações internacionais é essencial a todo internacionalista, seja qual for sua matriz de pensamento teórico.
O documentário interativo faz um traçado imaginário pelas vilas operárias de São Paulo. Conflitos urbanos, memórias, seus moradores e modos de vida foram registrados e podem ser acessados sem começo, meio ou fim da narrativa. Foi produzido durante três meses, coordenado pelo Estúdio Crua, durante uma oficina com catorze pessoas no Centro de Pesquisa e Formação do Sesc em São Paulo. HÍBRIDOS
Durante três anos, os produtores e cineastas Priscilla Telmon, Vincent Moon e Fernanda Abreu saíram para explorar as várias formas ritualísticas do Brasil, sua musicalidade, seu movimento, com vontade de criar um “corpo digital” que permitisse uma melhor compreensão dessas pessoas e suas práticas. Não havia ideia inicial do formato, que terminou numa coleção de mais de cem filmes em viagens por toda a América Latina. A maior procissão católica do mundo, ou um ritual desconhecido indígena de Mato Grosso. Um longa-metragem, instalações imersivas e outras formas de apresentação do projeto estão em andamento. Não há entrevistas ou narrações, apenas uma experiência plástica e sensorial protagonizada por corpos de fiéis em transe religioso. Sem dúvida, dos mais completos projetos de narrativas multimídia ou, digamos, híbridas. GOOD CITY LIFE
A retórica das cidades inteligentes corporativas fala sobre eficiência, segurança, previsibilidade: chegar rápido ao trabalho, câmeras, sem filas no shopping. Basicamente, uma cidade para trabalhar e consumir, não necessariamente para viver bem. Os pesquisadores do Good City Life buscam entender o que faz de uma cidade um lugar especialmente bom para morar, um lugar feliz. “Recentemente, usamos, por exemplo, dados de mídias sociais para mama pear camadas de emoções e sensações pela cidade”, explicam. Daniele Quercia, cientista britânico da computação, já falou sobre seus happy maps no TED, conferência mundialmente famosa em que falam personalidades de destaque nas áreas de tecnologia, entretenimento e design. [Andre Deak] Diretor
[Valmir de Souza] Professor, pesquisador e en-
saísta, associado ao Instituto Pólis e ao Sinpro/ Guarulhos.
[Henrique Paiva] Professor do Instituto de Re-
lações Internacionais e Defesa (Irid), da UFRJ.
do Liquid Media Lab, professor de Jornalismo na ESPM, mestre em Teoria da Comunicação pela ECA-USP e doutorando em Design na FAU-USP.
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CANAL DIRETO
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SUMÁRIO LE MONDE
BRASIL
Marx e a exploração da natureza O livro A ecologia de Marx: materialismo e natureza, de Foster, é excelente e contesta de forma muito convincente as críticas formuladas contra Marx no tocante ao tema da natu reza. Foi publicado pela Civilização Brasileira. Mauricio Miranda
Vale a pena sacar que nessa não valoração dos serserviços naturais de manutenção do equilíbrio ambiental o nosso país acaba exporta ndo água a preço e formato de banana...
diplomatique diplomatique Ano 12 – Número 134 134 – Setembro Setembro 2018 2018 www.diplomatique.org.br
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LIBERAIS VS. POPULISTAS, UMA DIVISÃO ENGANOSA Dez anos de crise Por Serge Halimi e Pierre Rimbert
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EDITORIAL Na linguagem do povo Por Silvio Caccia Bava
João Naves
Os endividados “Assim, a tendência global de financeirização da vida como forma de controle social gan ha contorcontornos radicais no Brasi l, estabelecendo estabelecendo uma nova c ategoria social, a dos endividados, com muito mais dificuldades de superar essa condição e saldar seus débitos que em qualquer outra parte do mundo. Aqui se cobram os maiores juros do planeta.” Esse é o conceito, financeirização da v ida, que necessita ser assimilado pela sociedade e estimulá-la a criar meca nismos coletivos de sobrevivência.
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Por Odilon Guedes
Reforma trabalhista: desemprego e precarização vêm à tona
A Torre vem trazendo um rompimento; do auge é que você despenca. O Enforcado traz uma situação seguinte de armadilhas, porém possíveis de serem resolvidas com muito sofrimento, dor e astúcia. Diabo e Arcano sem Nome trazem, respectivamente, ressurgimento e renovação de uma situação que aprisiona negativamente.
Por José Ruy Lozano
Violência, subjetivi dades e projetos de v ida e cidadania no Brasil Por Bruno P. Manso, Renato S. de Lima e Samira Bueno
Agric ultura e mei o ambiente Por Sergio Leitão e Jaqueline Ferreira
Thiago D’Carlo
ONDA DE GREVES NOS ESTADOS REPUBLICANOS Vermelhos em di sputa nos EUA
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Mário Tiengo
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EDUCAÇÃO A milita riza ção das es colas públic as SEGREDOS DO LOBBY ISRAELENSE NOS EUA Como Israel espiona norte-americanos VOTAÇÃO HISTÓRICA NO KNESSET Israel torna-se uma “etnocracia”
DE COMIDA DE LUXO AO FLAGELO ECOLÓGICO A global ização e xplicad a pelos sal mões Por Cédric Gouverneur, enviado especial
Romilda Raeder
VITÓRI A ELEITOR AL DA DIREITA, CRESCIMENTO DA ESQUERDA Na Colômbia, Colômbia, as urnas ameaçam a pa z Por Loïc Ramirez, enviado especial
35 Participe de Le Monde Diplomatique Diplomatique Brasil: envie suas críticas e sugestões para [email protected] As cartas são public publicadas adas por por ordem ordemde recebimen recebimento to e, e, se necessário, resumidas para a publicação. Os artigos assinados refletem o ponto de vista de seus autores. E não, necessariamente, a opinião da coordenação do periódico. Capa: © Caio Borges
MINERAÇÃO Estranhas cooperativas bolivianas Por Amanda Chaparro, enviada especial
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UM MASSACRE DESACREDITA AS MISSÕES DA ONU Na República Centro-Africana, a falência da comunidade internacional Por Juan Branco, enviado especial
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Apoiadores da campanha de financiamento financiamento coletivo Henrique Botelho Frota, Pedro Luiz Gonçalves Fuschino, Rita Claudia Jacintho e Vinícius D. Cantarelli Fogliarini Assessoria Jurídica Rubens Naves, Santos Jr. Advogados
Le Monde Diplomatique Brasil é Brasil é uma publicação da associação Palavra Livre, em parceria com o Instituto Pólis.
Por Charles Enderlin
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ConselhoEditorial Adauto Novaes, Amâncio Fr iaça, Anna Lu iza Salles Souto, Ariovaldo Ramos, Betty Mindlin, Claudius Ceccon, Eduardo Fagnani, Heródoto Barbeiro, Igor Fuser, Ivan Giannini, Jacques Pena, Jorge Eduardo S. Durão, Jorge Romano, José Luis Goldfarb, Ladislau Dowbor, Maria Elizabeth Grimberg, Nabil Bonduki, Raquel Rolnik, Ricardo Musse, Rubens Naves, Sebastião Salgado, Tania Bacelar de Araújo e Vera da Silva Telles.
LUCROS EM ALTA, RESULTADOS RESULTADOS EM BAIX A O fiasco da privatização das escolas na Suécia
Por Alain Gresh
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Tradutores desta edição Carolina M. de Paula, Frank de Oliveira, Lívia Chede Almendary, Rita Grillo e Wanda Brant
Escritório Comercial Brasília Marketing 10:José Hevaldo Rabello Mendes Junior Tel.: 61. 3326-0110 / 3964-2110 – jh@ marketing10.com.br
Por Rudá Ricci
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Assinaturas Viviane Alves
Por Clément Petitjean
Por Violette Goarant
Entrevista: José Trajano Sinto falta das reportagens que existiam, que traziam informações e conheci mento diversos. Havia mais cultura geral nesses programas também, e os programas do Trajano sempre se preocuparam com isso. Agora, muitos engomadinhos robotizados e contadores de piada chatas. O WhatsApp e a oportunidade do forta lecimento da democracia Uma coisa é certa: o cretino que me enviar propaganda política pelo Whats vai direto para minha lista de rejeição de chamadas ou será registrado como número spam! Vão para o inferno com a invasão geral e irrestr ita de privacidade.
PERFIS DOS CANDIDATOS Discursos políticos e disputa hegemônica Por Jorge O. Romano, Alex L. B. Vargas, Annagesse C. Feitosa, Paulo A. A. Ba lthaz ar, Thais P. Bittencourt e Yamira R. S. Barbosa
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Estagiária Taís Ilhéu
Gestão Administrativa e Financeira Arlete Martins
Educação: entre histéricos, demagogos e financistas
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Editores de Arte Adriana Fernandes e Daniel Kondo
O discurso da privatização
Por Ligia Bahia
Denise Cabral
Editor-web Cristiano Navarro
Revisão Lara Milani e Maitê Ribeiro
SUS pós-2018: pós-2018: a caravana passa?
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Editor Luís Brasilino
Por Euzébio de Souza, Ana L. M. de Oliveira e Barbara V. Vazquez Por Adhemar Mineiro, Cloviomar Cararine, Fernando A. Teixeira, Gustavo Teixeira, Iderley C. Neto E Paulo Jäger
Romulo Oliveira
Capa Amei a capa! Cheia de detalhes e muita informação. Marcou presença de maneira sutil e inteligente! As cartas do tarô que estão sobre a mesa já fazem a leitura do cenário “catastrófico” “catastrófico”..
CAPA Diminuir tributos ou reformar a distribuição dos impostos
DIRETORIA Diretor da edição brasileira e editor-chefe Silvio Caccia Bava Diretores Anna Luiza Salles Souto, Maria Elizabeth Grimberg e Rubens Naves
MISCELÂNEA
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Fundador Hubert BEUVE-MÉRY Presidente, Diretor da Publicação Serge HALIMI Redator-Chefe Philippe DESCAMPS Diretora de Relações e das EdiçõesInternacionais Anne-Cécile ROBERT Le Monde d iplomatique
1 avenue Stephen-Pichon, 75013 Paris, France [email protected] www.monde-diplomatique.fr Em julho de 2015, o Le Monde diplomatique contava com 37 edições internacionais em 20 línguas: 32 edições impressas e 5 eletrônicas. ISSN: 1981-7525
NÃO VAI SER NA PORRADA. NÃO VAI SER NA GRITARIA. NÃO VAI SER NA IGNORÂNCIA IGNORÂNCIA. VAI SER PELO VOTO QUE VAI VAI NASCER UM NOVO CONGRESSO. Como você já deve ter notado, o texto deste anúncio é longo. Por isso, se você é daquelas raríssimas pessoas que têm orgulho da atuação do deputado ou deputada federal que elegeram ou que só têm aplausos para a postura do senador ou senadora que escolheram, nem precisa se dar ao trabalho de ir até o fim. Pode parar por aqui. Por outro lado, se você faz parte da gigantesca maioria da população brasileira que se envergonha do atual Congresso Nacional, não deixe de ler este texto até o fim. Ele é longo porque tem o tamanho da indignação de milhões de brasileiros. Indignação com a produção quase que diária de escândalos e negociatas de congressistas que, por definição, deveriam estar produzindo outra coisa: leis que tornem o Brasil socialmente mais justo, progressivamente mais inclusivo, economicamente mais próspero e ambientalmente sustentável. O Congresso Nacional é um dos pilares básicos da democracia. Qualquer país só pode ser chamado de democrático se tem um Congresso Nacional livre, isto é, formado por representantes não impostos por governantes autoritários ou ditadores, e sim eleitos diretamente pelo voto popular. Nenhum dos atuais 513 deputados e 81 senadores foi enfiado goela abaixo de nenhum de nós. Ninguém foi obrigado a escolher esse ou aquele candidato, essa ou aquela candidata. Gostemos ou não, o atual Congresso Nacional é resultado exclusivo das nossas próprias escolhas. Essa é uma das consequências da democracia: às vezes, elegemos representantes que, infelizmente, não nos representam.
Que dizem uma coisa antes da eleição e fazem outra completamente diferente depois de assumirem seus mandatos. Mas até em seus defeitos a democracia revela sua inigualável qualidade. Somente sob o regime democrático podemos acompanhar e verificar o comportamento daqueles que elegemos. Saber se o discurso vendido na campanha eleitoral virou verdade e descobrir quem honrou nosso voto ou quem nunca mais o merece de novo. A democracia, e só ela, nos permite corrigir civilizadamente e pacificamente os equívocos que porventura nossas escolhas tenham nos trazido. Este ano teremos eleição. No dia 7 de outubro, será possível mostrar, de fato, sua indignação e renovar mais de 95% do Congresso Nacional. Seu voto pode mudar praticamente tudo. Se é importante eleger para a Presidência da República alguém comprometido com a justiça social e a democracia, é fundamental eleger para o Congresso pessoas que representem também esses valores. Somente com um Congresso digno e capaz o futuro Presidente, seja quem for, poderá realizar suas promessas eleitorais, sem ficar à mercê das mesmas barganhas e chantagens a que assistimos nos dias de hoje. Isso não pode mais acontecer. Um novo Congresso é necessário. E, mais importante, um novo Congresso é possível. A internet permite que, em segundos, se tenha acesso à história e ao passado de todos os candidatos à Câmara dos Deputados Deput ados e ao Senado. É fácil pesquisar as entrevistas, os discursos, as posições de cada um deles. Em breve, novas ferramentas estarão disponíveis ajudando você a alinhar suas expectativas e desejos com os programas dos candidatos, garantindo uma maior assertividade na escolha de seus deputados e deputadas, senadores e senadoras. Esta é uma campanha apartidária e foi criada para que o Congresso Nacional que nascerá a partir das eleições de 2018 possa ser formado por homens e mulheres que exerçam verdadeiramente sua real e insubstituível função: a partir do povo, fiscalizar e legislar para o povo e pelo povo. A campanha “Um Novo Congresso” tem como horizonte a Constituição de 1988: um Brasil justo, igualitário, democrático e respeitoso dos Direitos Humanos; uma sociedade pacífica e solidária; uma economia voltada para a redução das desigualdades e para o atendimento das necessidades humanas, em harmonia com a natureza e a sustentabilidade.
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