Direito das Obrigações I Parte I: Introdução – noção e origem das obrigações O Direito das Obrigações é direito civil. No 397º encontra-se uma noção de obrigação. Não vale a pena ocupar-se com noções – isso cabe à doutrina. A expressão obrigação tem outras acepções. Cabe atentar no sentido preciso das palavras. Uma obrigação pode ser uma relação jurídica obrigacional complexa (não só o dever de prestar, mas todas as outras situações que surgem entre credor e devedor). O credor tem o direito de exigir ao devedor uma prestação, conduta humana. Mas há também prestações secundárias, como a obrigação de entrega do bem, ou deveres acessórios, decorrentes da boa-fé (a sapataria não se pode incendiar sozinha, ter as coisas mal arrumadas, p. ex.). Há, pois, um sentido amplo de obrigação, mas também se fala apenas em deveres simples como obrigações. Outrossim, pode significar o próprio conteúdo da mesma. Pode ser um título de crédito no Direito comercial. No CC há cerca de 600 referências a “obrigação”. Existe polissemia do termo. Obrigação é uma situação jurídica passiva. Mas muitas vezes utiliza-se, indevidamente, para significar qualquer situação passiva. As situações jurídicas compreensivas contrapõem-se às situações analíticas (lógicas, inteligíveis por si próprias). Aquelas só se captam pela descrição das suas características, são-nos dadas pela História. O Direito é uma ciência linguisticamente condicionada. A língua alemã é muito analítica, donde, são os alemães os melhores juristas. A língua inglesa, plástica, mutável, é boa para a gestão. A língua portuguesa é latina mas tem características próprias, como a musicalidade. A consequência é a constante busca de sinónimos para evitar cacofonias e repetições. Há, pois, muitos sinónimos. Para saber qual o significado das palavras temos de conhecer o contexto. Sabemos, em Portugal, retirar vantagens das várias línguas. Os romanos, intelectualmente menos desenvolvidos do que os gregos, foram muito melhores juristas. Isso deve-se ao latim. As obrigações surgem no Direito Romano. No Direito Romano o que existia eram situações concretas. Quando havia violações das regras jurídicas, delitos, no seio da família, o pater resolvia; se fosse entre famílias, recorria-se à retaliação. Houve uma preocupação com a moderação destas situações. Preconizou-se – lei de Talião – proporcionalidade na retaliação. Mais tarde, pensa-se que incutir sofrimento era menos inteligente do que exigir uma compensação que saldaria a questão. Pagava-se com gado, mais tarde com metais preciosos e dinheiro. A pessoa obrigada sujeitava-se a uma determinada sanção se não cumprisse. A expressão “obrigação” também vem do latim obligare. A pessoa obrigada estava adstrita a uma certa conduta. A sujeição pessoal do devedor às consequências do incumprimento cria a ideia de adstrição, sujeição. Atinge-se uma abstracção, sai-se do caso concreto. Para que se atingisse o estado de obligatio havia toda uma liturgia prevista, enormes formalidades; com a expansão de Roma pelo Mediterrâneo, criaramse figuras menos formalizadas, os tipos contratuais.
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Criaram-se novas figuras jurídicas, um regime menos adaptado à realidade. Obrigação vai-se apartando da pura concepção delitual dos primeiros tempos. Os gregos eram mais ideológicos, filosóficos (equidade, justiça, obediência à lei, etc.). Os romanos eram mais técnicos, pragmáticos. Contudo, no final do Império Romano do Ocidente, já tinham recebido a tradição grega de pensar o Direito. É no Corpus Iuris Civilis de 533 que se condensa o Direito romano justinianeu. O Direito civil previsto para uma sociedade como a romana veio a aplicar-se a sociedades eclesiásticas, mais tarde feudais, depois mercantilistas, industriais, aplicando-se ainda hoje. Como será possível que essas regras se perpetuem? Algumas são de equilíbrio, de tal forma intemporais que não se estranha a sua perpétua aplicação. Por outro lado, prolongaram-se no tempo muitos dos valores que já enformavam a sociedade romana. A classificação germânica do Direito civil surge no séc. XIX. Tem sido criticada por não ter homogeneidade de critérios de construção e organização. Os Direitos das obrigações e reais seriam estruturais, enquanto família e sucessões seriam institucionais. A parte geral é postulado do jusracionalismo setecentista. As partes especiais são Direito romano actual, com excepção do direito sucessório, que vêm mais da tradição medieval. A classificação germânica é um somatório de massas históricas, sempre remontando ao ius romanum. No Direito das obrigações o limite é o universo. É o tecido básico sobre que se inscreve toda a realidade jurídica. Obrigações stricto sensu Na parte especial encontramo-la no Direito da circulação dos bens; no sector dos serviços; nas sanções (área da responsabilidade civil, nomeadamente); na transferência do risco; nos contratos, como o de sociedade; em matérias como o desfruto de bens (Direitos reais); na tutela do consumidor, etc. O Direito das obrigações é marcado por diversidade substancial. Nas obrigações não há limites leais: o limite é a imaginação dos seres humanos. Não há, como no Direito das coisas, um princípio de tipicidade. O termo obrigação é utilizado em Direito das obrigações no sentido de vínculo jurídico que une duas pessoas, por virtude do qual o credor tem o direito de exigir ao devedor uma prestação. O Direito das obrigações é como o coração o Direito civil. Há, no Direito civil, um fenómeno de absorção. Há cinco tipos possíveis de absorção: Matéria objecto de absorção estrutural (sendo englobada no Direito das obrigações ou excluídas, consoante a sua estrutura). A responsabilidade civil, p. ex., funciona através de vínculos obrigacionais, sendo absorvida pelo Direito das obrigações. É uma matéria geral mas posteriormente absorvida; Absorção teleológica. Há matérias que estão ao serviço de outras. O penhor e a hipoteca, direitos reais de garantia, são, não obstante, figuras do Direito das obrigações, pois são garantias das obrigações; Absorção institucional. Há institutos que absorvem matérias que poderiam ser de Direito das obrigações. Os deveres conjugais são obrigacionais. Mas não são tratados no Direito das Obrigações, tendo sido absorvidos pela instituição casamento, família – absorção negativa;
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Absorção linguística. Quando surjam matérias novas, o jurista e o legislador tendem a tratá-las junto daquelas que linguisticamente lhes são mais próximas. A responsabilidade pelo risco não tem as características de raiz da responsabilidade delitual, mas estão juntas; Absorção histórico-cultural. Certas matérias são absorvidas pelo Direito das Obrigações por causas histórico-culturais. As relações entre arrendatário e locador são tratadas neste, quando poderiam ser tratadas no Direito das coisas. Podemos identificar duas grandes áreas: O negócio jurídico; A matéria da responsabilidade civil. Coordenadas actuais das obrigações – a construção de princípios No Direito das obrigações há duas características típicas: abstracção e rigor linguístico. Como as prestações não têm materialização é necessário exprimi-las com rigor para que sejam entendidas. Uma regra é uma proposição que associa a certos factos consequências. Um princípio é uma proposição que sintetiza uma orientação geral, normalmente com carácter valorativo ou axiológico. Os princípios obtêm-se não por interpretação mas por construção jurídica, indução de muitas regras. Os princípios comportam excepções. Uma regra, quando é excepcionada, não se aplica. Os princípios podem entrar em contradição, as regras não. Os princípios não têm pretensão de exclusividade, conjugam-se. As regras não. Os princípios não são puramente racionais – há alguns que são histórico-culturais, explicáveis pela história. Princípios de Direito das Obrigações 1. Relatividade Diz-nos que as obrigações produzem efeitos apenas entre o credor e o devedor. É um Direito eminentemente relacional – relaciona pessoas delimitadas. Porque isto é um princípio, tem excepções. Mas é um princípio. Resulta de vários preceitos. Axiologicamente é muito interessante. As obrigações podem ser perigosas porque o seu incumprimento tem consequências muito sérias. 2. Tutela do devedor É um princípio clássico. Historicamente, o devedor merece a protecção da lei. Ao longo do CC constatamos essa preferência, protecção (favor debitoris). Há muitos preceitos em que se detecta favorecimento, tutela do devedor. Hoje em dia, começam a ser necessários mecanismos de tutela do credor, sobretudo na fase do não cumprimento. 3. Irrenunciabilidade antecipada aos direitos Diz-nos que o Direito não gosta da ideia de permitir que as pessoas prescindam antecipadamente dos seus direitos. É um princípio problemático. 3
Existem, no Código Civil, vários artigos em que podemos detectar esta orientação. Protegem-se as pessoas contra si próprias. Não se quer que as pessoas, antes de terem as coisas, renunciem aos seus direitos, para não darem o que não têm. (448º, 457º, 809º, 812º, 863º, 942º, 947º, 994º). 4. Causalidade Significa que, por regra, as obrigações, que nascem de uma determinada fonte, ao longo da sua duração dependem dessa fonte. A causalidade contrapõe-se à abstracção. A validade de um cheque, p. ex., não depende da sua fonte – o negócio jurídico, nesse caso, é abstracto. Mas a regra geral no nosso Direito é a da causalidade. Se a fonte for inválida, a obrigação não subsiste. A reforma alemã das obrigações (2001/2002) Em 2001/02 fez-se a reforma do Direito das obrigações na Alemanha. O Direito das Obrigações alemão é líder, daí tal importância. O BGB é de 1900. Foi muito pouco mexido. No entanto, doutrina e jurisprudência foram muito produtivas nesses cento de anos. A sociedade alemã também se alterou substancialmente. O legislador optou por emitir leis avulsas. O BGB, todavia, veio a ser objecto de reforma muito bem preparada. A codificação da boa-fé, das descobertas científicas da doutrina e jurisprudência com que já se trabalhava mas que não estavam ainda consagradas; a remodelação das “perturbações das prestações” ou incumprimento (incluindo a impossibilidade, prescrição, defesa do consumidor); transposição de directivas comunitárias. O Direito civil é muito estável. O Direito das Obrigações é super estável. É muito difícil mexer nele. Há uma área muito estável – a das obrigações em geral. É uma área que se sedimentou por milénios de decisões, regras, doutrina. Mas há zonas periféricas, como o Direito do consumidor – que poderia ser integrado no Código Civil, como aconteceu no BGB com a reforma de 01/02 – ou o Direito do arrendamento, que merecem reforma em Portugal. Sistemas e Direito europeu das obrigações – os grandes sistemas de obrigações 1. Napoleónico A sua primeira característica prende-se com a sua origem no CC de 1804 – racionalista e iluminista. É um código típico do início do séc. XIX, individualista e muito contaminado com as ideias da revolução francesa. É uma família composta pelos países da área de influência da França e da cultura francesa. É muito elegante linguística e estilisticamente, o que o torna impreciso quando comparado com o Direito alemão. É centrado no contrato – os franceses desconhecem o conceito de negócio jurídico. A responsabilidade civil é ampla, baseada num conceito vago. 2. Romano-germânico Sistema centrado no BGB; Resulta do movimento da pandectística, sendo nele importantíssimo o Direito romano actual. São direitos que adoptaram a classificação germânica do Direito civil, tendo em regra uma parte geral e trabalhando com o negócio jurídico. A responsabilidade civil é fechada, analítica. 4
3. Anglo-saxónico É um mundo à parte. Os ingleses e países que resultaram da expansão britânica tiveram influência dos povos do norte – saxónicos e normandos. Há pouca influência romana. Não há correspondência, sequer, entre os conceitos desta família e os das anteriores. Este sistema não é codificado. Os ingleses organizaram-no em torno de duas áreas: as torts e os contracts. 4. Islâmico A principal diferença é que não existe separação entre o que para nós é o Direito da sociedade civil e o Direito dos crentes. Há união entre religião e Estado. Os comandos jurídicos estão revestidos de importância transcendental. 5. Chinês É muito antigo, tal como a cultura chinesa. Enquanto no Ocidente o Direito se desenvolveu muitíssimo a partir da civilização romana, na China não aconteceu isso. Tenta-se resolver os conflitos através do consenso. Naturalmente, tentam harmonizar as situações sem lugares pré-definidos. O Direito não se desenvolveu nos mesmos moldes. Mas, a partir de 1911, assiste-se a uma aproximação aos cânones da família romanogermânica, por influência da recepção nipónica da tradição jurídica do BGB. As obrigações em língua portuguesa Na Europa: um verdadeiro Direito de base lusófona O Direito português é uma síntese de muitas influências: romana, canónica, islâmica, nova recepção do Direito romano e elaboração de base europeia. O Direito português é aberto ao exterior. As nossas Ordenações vigoraram até 1867. A Lei da Boa Razão de 1769 fixou o sistema de fontes; veio considerar como aplicáveis nas nossas terras os direitos das nações evoluídas da Europa. Antes da aprovação do Código de Seabra, há um período de pré-codificação. Procurouse adaptar o direito das Ordenações ao séc. XIX. O Código de Napoleão conseguia sintetizar muitas matérias, sendo uma enorme influência. No Brasil, mantiveram-se em vigor as Ordenações. O código de 1867 tem uma inspiração napoleónica. Mas tem uma organização e conceptualização originais. São tratados separadamente os contratos e as obrigações em geral e depois em particular. A responsabilidade civil ainda estava muito incipiente. O Código de Seabra é, no entanto, muito avançado. O Código não é de inspiração alemã, não havendo negócio jurídico separado dos contratos. A recepção da pandectística começou-se a dar com Coelho da Rocha, agraves da tradução de manuais de Direito Romano alemães. Guilherme Moreira começou a ensinar o direito civil na base pandectística. A doutrina de referência deixou de ser a francesa para ser a alemã e a italiana. Cada instituto foi passado a pente fino e actualizado. Além da redistribuição germânica das matérias, surgem institutos até então desconhecidos, sendo revigorados os já conhecidos. Houve uma contra-reacção de lentes mais antigos e de alguns estudantes. Mas foi uma novidade científica que vingou.
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No Brasil Na doutrina brasileira, a recepção do pandectismo deu-se mais cedo, com Teixeira de Freitas, ainda em meados do séc. XIX. Vários juristas adoptaram no ensino o pandectismo. O Código brasileiro aparece só em 1916, mas já havia recepção do pandectismo. Não terá havido influência do Direito brasileiro em Guilherme Moreira? Se se confirmar esta ideia, permitiria apresentar um sistema lusófono da pandectística. O Código de 1966 vigora actualmente, com o punho influente de Vaz Serra na sua origem. A crítica ao Código Civil não está ainda consolidada. Mas a sua grande dificuldade é uma certa heterogeneidade, algumas áreas estão mais avançadas (obrigações) do que outras (reais). As revisões ministeriais do Prof. Antunes Varela tornaram o código mais moderado do que a proposta de Vaz Serra. Há algum atraso na sua aprovação. Ele é de 1966, mas começa a ser preparado no pósguerra. A literatura consultada pelos juristas que o coligiram é anterior à guerra. Houve, depois da aprovação, um período de exegese, numa primeira fase; numa segunda fase, procurou-se fazer uma construção mais evolutiva. O Prof. Inocência Galvão Telles e Pessoa Jorge, marcaram as primeiras reconstruções do CC. Os juristas brasileiros sentiam a necessidade de reformular o Direito privado brasileiro, logo em meados de oitocentos. O CC de 1916 tem já influência germânica. Far-se-ia um novo código já no último quartel do século. Fazer um CC em democracia demora muito tempo. Demorou quase 30 anos a surgir o novo código brasileiro. Tem influência germânica e do Código de 1966. Em África Em Angola, continua a vigorar o Código de Vaz Serra, com algumas alterações após a independência. Em Cabo Verde, vigora também o código de 1966. Na Guiné, como membro da OEA, tem havido uma intensa reformulação do Código Vaz Serra. Em Moçambique, foi aprovado um Código Comercial novo. Na Ásia O antigo Estado da Índia foi tomado pela União Indiana em 1961. O Estado da Índia foi reconhecido como parte da União mas permitiu-se que houvesse uma zona lusófona. Mas não subsistiu a vigência do CC de 1966. O português era a segunda língua. Todavia, quando ocorreu a ocupação, tornou-se obrigatório o inglês nos tribunais. A Língua Portuguesa deixou de ser ensinada nas escolas, sendo substituída pelo inglês. Em Macau, houve maior inteligência política. Antes da entrega de Macau, a administração portuguesa fez um Código Civil e um Código Comercial, tendo-os traduzido para chinês. Em Timor, verificou-se a invasão indonésia em 1975. Com a independência, voltou a vigorar o Direito português, mas havia a barreira linguística. Foi necessário recomeçar. Foi aprovada uma lei das sociedades comerciais parecida com a nossa e o CC que se está a preparar é muito influenciado pelo nosso.
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O Direito francês conheceu uma expansão com as guerras napoleónicas e com o colonialismo. Mais tarde, a grande influência, ganha pelo mérito, foi do Direito alemão. Assiste-se à implantação (Portugal, Brasil, Turquia, Japão, Coreia do Sul, etc.) de sistemas próximos do germânico. O sistema anglo-saxónico só se divulga pela força ou pelo colonialismo. Na República da China poder-se-ia ter ido buscar a influência do sistema de Hong Kong, de Common Law. Todavia, os líderes chineses chegaram à conclusão de que era melhor fazer uma reforma com vista à aproximação ao BGB. O sistema da pandectística vai ganhando a dianteira. Nas obrigações, estão em causa relação inter-pessoais. Cumpre saber que língua é utilizada. Em termos planetários, predomina o inglês, na área dos negócios e nas relações entre povos. Mas na área do Direito não é assim. Embora o inglês tenha sido tomado como língua franca, a verdade é que os ordenamentos que vêm surgindo, mesmo quando escritos em inglês, não são de common law, mas de inspiração germânica (o que gera simplificação, já que o inglês não é uma língua tão analítica como o alemão). O caso português é singular. Em 1640 havia enorme tendência para se unificarem as nações da Europa. Mas havia uma grande projecção ultramarina, que suportou a nossa independência. Somos, hoje, um pequeno país na Europa. Mas o que nos vai salvando é a existência de muitas pessoas que falam português. A autonomia do sistema lusófono O sistema lusófono tem uma autonomia linguística. Quanto a autonomia doutrinária, é diferente. É um Direito que tem uma evolução histórica, não havendo confusão com os sistemas da pandectística. O Direito lusófono não tem só essa influência. Há, até, uma enorme barreira linguística. De um modo geral, os nossos institutos são mais simplificados do que os alemães. Também temos esquemas napoleónicos (veja-se o Código Comercial, que é do final de Oitocentos). O Prof. MENEZES CORDEIRO defende a autonomia de um sistema lusófono. É uma solução que se baseia em dados: massa crítica, língua, evolução histórica, quantidade de falantes da língua. O Direito europeu das obrigações O Tratado de Roma não prevê um Direito privado europeu. A UE tem dois grandes sectores jurídicos – institucional e material (áreas normativas com origem em órgãos europeus). Há as directrizes e os regulamentos. As directrizes não têm aplicação imediata – os Estados-membros têm de as transpor para as suas ordens. Se não o fizerem, a directriz não vigora. Os regulamentos são diplomas com aplicação imediata em todo o território da EU. As regras sobre a moeda única, p. ex., provêm de regulamento. Há poucas fontes de Direito das obrigações deste tipo. Na área das Obrigações há poucas regras comunitárias. Há 23 línguas oficiais na Europa, o que gera dificuldades no lançamento de bases dogmáticas sólidas de um Direito privado europeu. Ciência do Direito. No Direito francês há distinção, ao contrário do que acontece no Direito português, entre interpretação e integração. No Direito europeu trabalha-se com a língua do caso; também com as operacionais: inglês, francês e alemão.
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No tempo do ius commune, havia um Direito europeu das obrigações. Mas a partir dos séculos XVI e XVII, como os Estados ganham cunho territorial e as fontes passam a usar a língua local, ele começa a desaparecer. Particularmente na área do Direito das obrigações há uma ciência universal do Direito, que poderia dar lugar a um Direito universal das obrigações. Houve um projecto de Código franco-italiano em 1929. Não teve consequências. O Parlamento Europeu já fez recomendações: que seja possível fazer contratação com um direito das obrigações unificado. No espaço europeu, há 500 milhões de pessoas, não há um Governo europeu, nem uma política externa comum. No plano oficial, há muitos constrangimentos, como a falta de competência dos órgãos europeus. Há autores a tentar fazer um código europeu das obrigações. Para o Prof. MENEZES CORDEIRO, é direito alemão escrito em inglês – o que é insatisfatório, dada a insuficiência da língua inglesa. O Direito europeu representa um maior problema para quem não tenha formação jurídica na área pandectística. A existência de vários Direitos das obrigações não prejudica o comércio: quem diz o contrário estabelece mitos. O melhor Direito é o interno, intra muros. Quando surjam relações que ponham em contacto mais de um Estado, é normal que se convencione qual dos direitos se aplicará. Pode haver um Direito europeu para um certo tipo de situações e a manutenção dos Direitos internos para outras. Nós, juristas portugueses, não podemos ficar fora do comboio do Direito europeu das obrigações. Parte II: Dogmática geral do Direito das obrigações Conceito e estrutura das obrigações As doutrinas pessoalistas SAVIGNY dizia que, quando existia obrigação, havia um domínio de alguém sobre outrem. O direito subjectivo, para SAVIGNY, era o poder da vontade. Obrigação implicaria um domínio parcial sobre a pessoa do devedor. Esta noção presta-se a críticas. A desumanidade da noção (que abria portas à escravatura) é muito apontada, mas com exagero. SAVIGNY dizia apenas que uma parcela da esfera do devedor era suprimida, e não a totalidade. O Prof. MENEZES CORDEIRO diz que não pode haver associação entre direito subjectivo e vontade: pode haver direitos sem vontade. Não podemos também exportála para o direito das obrigações. Antigamente, dizia-se que ninguém podia ser obrigado a fazer o que quer que fosse: o devedor ou cumpria ou não cumpria, cabendo ao credor recorrer aos tribunais. A sanção pecuniária compulsória foi uma forma de forçar o cumprimento, forçar a vontade humana. As doutrinas realistas Outra ideia tenta trazer realismo. Fala de um bem a prestar. Se A tem direito, a vantagem é o bem que será prestado. Não se perde o contacto com a realidade (é o seu ponto positivo). Mas nós encontramos obrigações sem conteúdo económico.
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Não se pode dizer que bem é tudo o que é objecto da obrigação, porque isso explicaria o que é o bem e não o que é a obrigação. Também se restringe a liberdade das pessoas: as pessoas podem contratar por ninharias. A obrigação não é apenas um bem a prestar. Ela, independentemente de ser cumprida ou não, já é um valer em si. A teoria pessoalista clássica é detectada no 397º do Código Civil. Obrigação como vínculo jurídico pelo qual uma pessoa tem direito a uma prestação. Como pode haver direito a uma conduta sem invadir a esfera do devedor? Temos de captar as duas posições ao mesmo tempo. Esta teoria afirma-se por oposição à realista (o que há é direitos a património). Pode haver obrigações sem prestação, assentes apenas em deveres acessórios, todavia. A própria prestação é uma formulação vocabular que não tem unidade. Pode ser um facere ou um non facere. O conteúdo da obrigação pode ser também um suportar (pati). A noção do 397º não é dogmaticamente aceitável. As teorias realistas consideram que na obrigação não há um direito do credor a uma conduta. Há, sim, um direito ao património do devedor. No séc. XIX, chegou-se a esta ideia por causa do problema da transmissão das obrigações. As pessoas morriam, mas as suas obrigações permaneciam. Os sucessores têm de pagar aquilo a que estão adstritas. Os estudiosos do Direito das sucessões oitocentistas diziam que isso era assim porque quem deve não é a pessoa, mas o seu património. Assim, o dever é sempre um constrangimento ético, necessidade moral de adopção de uma conduta (como dizia o Visconde de Seabra). Os romanistas diziam que não havia, no início, obrigações, mas sim situações em que alguém respondia pela sua pessoa. Quando se evoluiu para o estado em que o dever é o património, surge a nova noção de obrigação. Se o devedor não cumprir, pode-se atingir o seu património. Crítica: a grande generalidade do regime das obrigações é dirigida à conduta do devedor. Transformar cada obrigação em um direito ao património não serve dogmaticamente. Em regra, as obrigações são cumpridas, pelo que é excepção o recurso ao património. Construções do débito e respondência (schuld und haftung) Trata-se de uma conjugação das teorias pessoalistas com as realistas. A ideia remonta ao antigo Direito romano. Na origem das obrigações está o recurso a esquemas de retorção. Primeiro, surgiu a respondência. Depois, evoluiu o Direito e surgiu a ideia de um débito que poderia ser utilizado para resolver. Nas obrigações naturais existe um débito mas não respondência (não se pode exigir ao credor a repetição da obrigação quando ela se extinguir). Também pode acontecer que em certos casos haja responsabilidade sem adstrição a nada: responsabilidade por risco (são responsáveis, independentemente de terem culpa). Pode haver fiança por obrigações futuras: situação de respondência sem obrigação já existente. Na prescrição, extingue-se a haftung.
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Dissociação teleológica No débito há um dever de prestar; na respondência há uma sujeição à prestação – é do fim que decorre todo este regime. Se é assim, qual a natureza da respondência? Uma teoria publicista diz que a respondência já é Direito público; outra concepção diz que há um direito real de garantia; outros afirmar que não há dois vínculos paralelos, antes no prolongamento um do outro (obrigação alongada, com dois regimes). O plano decisivo é verificar em que medida as construções correspondem ao regime jurídico-positivo. Será que há mesmo dissociação? As obrigações naturais ou são obrigações ou não são. Se não são, não interessam. Se são, está demonstrado que pode haver obrigação sem respondência. A obrigação do fiador é secundária. Se o devedor principal não cumprir, é o fiador que deve cumprir. Estas construções são úteis. Mas, em termos pragmáticos, a responsabilidade é patológica, não podendo servir para construir, por si só, um conceito de obrigação. A obrigação, sabe-se hoje, compreende um dever de prestar principal, deveres secundários e deveres acessórios. O credor fica adstrito a deveres de segurança, colaboração, etc., com o credor e vice-versa. A obrigação continua a ter unidade – desde logo, linguística. O regime é solicitado para um tratamento unitário. Uma das consequências da actual ciência do Direito é a possibilidade de haver obrigação sem um dever de prestar principal. Em certos casos, pode ainda não existir; noutros, pode haver nulidade, mantendo-se as prestações secundárias e os deveres acessórios; noutros ainda, cumpriu-se a prestação principal mas mantiveram-se as outras; nos direitos pessoais de gozo há um direito de aproveitar uma coisa corpórea. A prestação pode não existir, pelo que obrigação não é uma prestação. A obrigação pressupõe um dever específico, que se consubstancia em conceder uma vantagem ao credor. E a garantia (haftung)? MENEZES CORDEIRO reconduz a garantia ao conceito de juridicidade, tratado mais à frente. Características das obrigações Natureza patrimonial e juridicidade Natureza patrimonial Natureza patrimonial, terá? Inicialmente era uma ligação entre pessoas, só. Depois de surgir a ideia de ressarcimento através do património, não teriam todas natureza patrimonial? SAVIGNY chamou a atenção para o facto de ela poder se executada sem qualquer prejuízo se não tivesse natureza patrimonial, não tendo interesse para o Direito nesse caso. JHERING veio dizer que não tinham necessariamente de ter natureza patrimonial. O BGB já não exige natureza patrimonial. O Código italiano de 1942 veio admitir também a possibilidade de o interesse do credor não ser económico. O Código de Seabra construía obrigação como tendo natureza patrimonial. GOMES DA SILVA dava o exemplo do contrato de trabalho para negar a ideia da natureza patrimonial. MANUEL DE ANDRADE também negava a necessidade da natureza patrimonial. 10
Se um artista se obriga a entoar uma ária, será isso uma obrigação de natureza patrimonial? O artista deve ser pago: isso transforma a sua prestação em patrimonial? Não, mas pode receber dinheiro, ela é avaliável em dinheiro, tem conteúdo económico. O Código Civil de 1966 foi sensível à evolução germânica. Mas tem em conta a tradição de sinal contrário. No 398º diz que a obrigação deve corresponder a um interesse do credor digno de protecção legal. O Direito das Obrigações é um direito patrimonial privado. É importante para lhe darmos a cobertura do 66º/1 da CRP. É assim ao nível global, de sistema, não necessariamente em todas as situações. Se houvesse incumprimento passava-se à responsabilidade patrimonial, chegando-se à natureza patrimonial das obrigações. Mas isso pode ter apenas um sentido de reconstrução, compensação – e não de equivalência. Os danos morais não podiam ser ressarcidos antigamente. Hoje isso não é assim. Como são ressarcíveis, não há óbice há natureza patrimonial das obrigações. A responsabilidade patrimonial não é a única sanção que se admite: também as sanções pecuniárias compulsórias (829º-A). Alguém não cumpre uma obrigação não fungível. O devedor é condenado a pagar um x até cumprir. Não tem de haver natureza patrimonial (398º). Pode haver execução específica, acção directa; há sanções pecuniárias compulsórias, há ressarcibilidade dos danos morais, há margem para executar obrigações sem natureza patrimonial. Tudo pode ser avaliado em dinheiro. Tem tudo natureza patrimonial? MENEZES CORDEIRO entende que se deve normativizar esse conceito. Se o Direito não permite que seja trocada por dinheiro, não tem natureza patrimonial (mesmo que possa ser avaliado em dinheiro). Quando falamos na natureza não patrimonial das obrigações dizemos que o Direito admite obrigações que não podem ser trocadas por dinheiro (sob pena de nulidade). O interesse do credor e a juridicidade A lei vem dizer que a obrigação deve corresponder a um interesse do credor digno de protecção legal. O 397º define obrigação; o 398/1 estabelece que as partes podem fixar livremente o seu conteúdo; o 398/2 diz que podem não conter valor pecuniário; o 398/2, 2ª parte remete para o interesse. ANTUNES VARELA dizia que ficavam afastados dois tipos de obrigações: as que tivessem caprichos do credor como conteúdo (se for séria ou se não se tratar de prestações escabrosas MENEZES CORDEIRO entende que podem ser) ou matérias próprias de outros sectores normativos. MENEZES CORDEIRO entende que no Direito civil se deve admitir tudo o que não viole proibições. Entroncam aqui as situações de obsequiosidade (trato social, boa educação) que não relevam para o direito; de cavalheirismo em sentido técnico (situações em que as pessoas combinam deixar de fora tutela jurídica). As relações de obsequiosidade não são, à partida, Direito; mas havendo danos, pode haver responsabilidade pela deferência.
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Há também deveres de protecção. A convida B para dançar, mas era pé de chumbo – a senhora fica muito magoada. Há responsabilidade! Convidar para dançar é do campo do trato social, mas não se pode esfarrapar o par de dança. Quanto aos acordos de cavalheiros, já se trata de matéria jurídica que as partes combinam deixar de fora. Podem fazê-lo? Em princípio, não. Não pode haver obrigações naturais fora dos casos previstos na lei. Tudo o que seja retirar tutela jurídica não é válido. Os acordos de cavalheiros são relevantes, são para cumprir – se não forem, justificar-se-á responsabilidade? O que se exige juridicamente é que a obrigação tenha juridicidade: quando se tenha constituído por uma das formas previstas pelo Direito para a sua constituição. Deve-se sempre perguntar qual a origem. A mediação e a colaboração do devedor A exigência de mediação estaria contraposta à imediação dos direitos reais (o titular aproveita imediatamente o bem). Em obrigações, seria sempre necessária a mediação. Esta noção vale o que vale. Será que nas obrigações o aproveitamento concedido ao credor se consegue com a única mediação do devedor? Não. Se a prestação for um serviço, o que tem de surgir é o serviço; nos direitos pessoais de gozo, o credor aproveita imediatamente a coisa; há créditos potestativos que não carecem de intermediação; há figuras como a execução específica. Nas obrigações, encontramos sempre uma dança a dois, duas partes. Em direitos reais há só uma. Será sempre devida a colaboração em obrigações? Nos direitos reais há fundamentalmente papel de defesa; no Direito das obrigações há uma ideia de duas pessoas a colaborar uma com a outra, mas não se pode retirar daí uma regra. A relatividade e a eficácia perante terceiros Relatividade estrutural As obrigações serão relativas, contrapondo-se aos direitos reais, que são absolutos? Em termos estruturais, a relatividade existe quando há relação jurídica. A obrigação é uma relação jurídica; o direito real é uma situação absoluta. Noutra acepção, diz-se que a relatividade é a eficácia (relativa no caso das obrigações; absoluta, erga omnes, no caso dos direitos reais). Uma última, prende-se com a responsabilidade (relativa/absoluta). Há três sentidos diferentes: MENEZES CORDEIRO prefere o primeiro. A acepção estrutural exigiria que fosse sempre assim. Em direitos reais há tendência para surgirem cada vez mais relações jurídicas (propriedade horizontal, relações de vizinhança, por exemplo). Os créditos não são sempre relativos. No crédito potestativo há duas partes (titular do direito potestativo e a pessoa que está em situação de sujeição), mas não se trata de um direito a contraposto a um dever de. A posição de sujeição não é um dever: só se o titular do direito potestativo exercer o direito. Os direitos potestativos são absolutos. Assim, há créditos absolutos. Há direitos pessoais de gozo que não são direitos reais. A relatividade não surge necessariamente em todas as obrigações. Tendencialmente surge: é característica tendencial das obrigações. O sentido mais oportuno de relatividade é o estrutural. 12
A relatividade na produção de efeitos Quanto à produção de efeitos, pode existir oponibilidade em sentido forte, médio ou fraco. No sentido forte, o titular do direito pode exigir o próprio bem que está em causa (em relação ao devedor); em direitos reais o proprietário pode exigir a coisa a qualquer terceiro que a tenha (oponibilidade erga omnes). Nos direitos reais há figuras próximas da oponibilidade em sentido forte. Em sentido médio significa que uma determinada situação jurídica opera como fonte de deveres instrumentais relativos ao bem em causa. Deveres acessórios, p. ex., que se manifestam predominantemente perante o devedor. Mas poderá também operar em face de terceiros – não há relatividade completa. Há contratos com protecção de terceiros. Se é assim, então há oponibilidade média. O terceiro cúmplice é uma figura interessante. Existe uma ópera e um senhor contrata uma soprano alemã. Um outro teatro oferece x para que não cumpra o contrato. Há uma acção; o dono do teatro prejudicado demanda o outro e não a soprano. Havia uma quebra maliciosa do contrato. Há um credor e um devedor que não cumpre porque foi convencido por terceiro. Se é assim, a obrigação produziu efeitos perante terceiros. Em sentido fraco: quando os efeitos produzidos pela situação jurídica permitam demandar em responsabilidade qualquer terceiro. A relatividade na responsabilidade civil Há uma certa tendência para dar uma protecção alargada aos titulares de direito de crédito. Faz sentido que haja defesa contra terceiros. Os direitos reais serão mesmo direitos com defesa puramente passiva? Também neles podem surgir relações de defesa, o que lhes daria uma tutela relativa. É o que acontece com os chamados deveres de tráfego. Pode haver atentados a um direito absoluto por simples omissão. Mas há também deveres no tráfego que, se incumpridos, dão lugar a responsabilidade civil. Nas obrigações poderão surgir defesas absolutas? A tendência nos ordenamentos jurídicos parece apontar para tutela absoluta dos créditos. Na Alemanha diz-se que não. Isso leva a que não se defenda uma tutela absoluta dos direitos de crédito. A relatividade na experiência portuguesa (eficácia externa) No direito português soe ensinar-se a expressão “eficácia externa das obrigações”. A eficácia interna é entre credor e devedor; a externa é perante terceiros. A regra é de que a eficácia é meramente interna. As obrigações são vínculos, relações jurídicas. Mas há outras regras. A doutrina tem evoluído nesse domínio. No início, dizia-se que a eficácia também poderia ser externa. Mas inverteu-se a tendência, com MANUEL DE ANDRADE. Outros autores vinham sustentando a eficácia também externa (GALVÃO TELLES, PESSOA JORGE). A nossa jurisprudência acordou em 1964, com os pactos de preferência. Alguém não celebra o negócio jurídico com o preferente. O STJ concluiu que o terceiro também deveria ser responsabilizado (também aqui, a figura do terceiro cúmplice).
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Discussão dogmática e solução proposta Argumento contrário à eficácia externa: vai-se prejudicar a economia. Contratar-se-ia menos. Todavia, as economias britânica e francesa, países que admitem a figura, não estão assim tão mal. Argumento legal: o devedor que falte ao cumprimento é responsável. Quando existe um devedor, diz-se, aplicam-se os artigos 798º e ss. Mas esses não se aplicam a terceiros. Outros dizem que só o devedor pode incumprir. O terceiro não pode. Isso em princípio. Um terceiro pode violar uma obrigação: um sequestrador rapta o devedor para o impedir; um terceiro faz-se passar por credor. Tem de pagar ao verdadeiro credor – eficácia externa. Argumentos a favor. O Direito objectivo, ao atribui direitos subjectivos, proíbe autotutela. Dá, pois, protecção jurídica. Se ele for atingido, há responsabilidade. Em direitos obrigacionais há vínculos abstractos, em princípio inatingíveis. MENEZES CORDEIRO não vê razão para que o 483º não seja aplicável aos direitos de crédito. Pensa que se pode ter uma construção mais matizada: a defesa dos direitos de crédito é necessária, mas há várias vias para o conseguir. Uma tese alemã separa o direito da titularidade – é a titularidade que é atingida. Contratos incompatíveis: há um problema de concorrência. Se A contrata com B, poderá contratar com outros? Não se pode colocar o devedor num gueto. A especialidade e a atipicidade A especialidade diz-nos que na obrigação estamos perante situações específicas que se identificam pelas partes e pelo tipo de prestação. Atipicidade As normas têm uma previsão e uma estatuição. Quando existe uma previsão normativa, a lei ou recorre a um conceito definitório ou procede a uma descrição concreta dos factos, descrevendo as condutas. Quando recorre a descrição abstracta atinge um universo muito extenso. Se existe uma descrição típica das condutas, é muito mais restrita. Isso justifica-se em ramos agressivos, como o penal ou o fiscal. Quando a lei recorre a descrição da realidade, recorre a tipos – tipicidade. Quando faz descrição abstracta há atipicidade. O legislador pode dar uma série de exemplos. Há tipicidade exemplificativa. Noutros casos é mesmo normativa. Só pode estatuir com recurso a tipos, por exigência da Constituição (no Direito penal e fiscal). Para se concluir que existe tipicidade: Sempre que o legislador faça descrição precisa relativa ao que vai aplicar; Diz que existe numerus clausus; Diz que está proibida a analogia. Está tudo ligado. Num ramo típico, os factos são descritos concretamente; há um numerus clausus – o número de factos é finito; ou o facto cai na previsão e consubstancia a figura prevista ou está hora, não havendo lacuna. 14
Nos contratos há descrição abstracta, não há numerus clausus e pode haver lacunas. Os direitos reais têm, ao contrário, um princípio de tipicidade. Nas obrigações isso não existe, em princípio. Há, de facto, casos de tipicidade sectorial: só é dada relevância aos negócios jurídicos unilaterais previstos na lei (descrição concreta); obrigações naturais. Há tipicidades de tipo científico. Para trabalhar o abuso do direito encontraram-se as figuras do tu quoque, venire contra factum proprio, etc. Há, também, tipicidade exemplificativa. Confronto com outras situações privadas Obrigações e reais A distinção entre obrigações e direitos reais em termos racionais: ali há um direito a uma prestação; aqui, direito a uma coisa corpórea. Isto é o núcleo duro – há desvios. Há situações de direitos reais que, por conjunções históricas, foram incluídos nos direitos de crédito (direito do locatário, p. ex.). Embora esteja lá o aproveitamento de coisa corpórea, o regime tem um desvio. Também a hipoteca é um direito real sujeito a um direito de crédito. Isso obriga a estudar caso a caso e entender o que acontece. Obrigações, personalidade e família Também existem obrigações de personalidade. É uma área de cruzamento entre as obrigações e os bens de personalidade. No âmbito do Direito da Família (organizado em torno do instituto família) é mais difícil distinguir as obrigações. Mas existem muitas obrigações nessa área. Tratamo-las como obrigações atentando nas regras especiais do Direito da família. Obrigações e relações especiais O Direito do Trabalho é direito das obrigações especial. É muito especial, por via de condicionalismos históricos. Autonomizou-se do Direito das obrigações. O contrato de trabalho é um contrato como os outros. Mas tem regras especiais. O Direito comercial é outro ramo especial. Aí, tudo é parecido com o Direito das obrigações. O Direito comercial é muito mais antigo do que o Direito do trabalho. O conteúdo geral das obrigações Quer o princípio da autonomia privada, quer a característica da atipicidade levam a que o limite seja a imaginação (e a lei). Não é tarefa simples caracterizar o conteúdo das obrigações. Temos objecto imediato e mediato nas obrigações. O imediato também é chamado por alguns como conteúdo. O mediato é também designado por objecto. O conteúdo das obrigações é sempre, invariavelmente, um direito e um dever. O caso mais normal é um direito de crédito e um débito. O conteúdo distingue-se do objecto. Delimitação positiva O dever de prestar O dever de prestar é uma expressão que pode ser equívoca. Podemos referir-nos ao comportamento ou a um determinado resultado. 15
A importância prende-se com a diligência que deve ser posta pelo devedor na realização da prestação. A obrigação de se comportar de uma certa maneira não explica o que é exigível à pessoa para que realize essa conduta. Podemos, por um esforço de análise, distinguir a realização de comportamentos de esforço para atingir o resultado. Uma prestação inclui necessariamente o esforço. Temos de saber o que é exigível. A diligência tem que ver com o que é exigível para que alguém realize um comportamento. A primeira faceta tem que ver com a interpretação da vontade das partes ou da lei. Por vezes, as partes pretendem uma determinada conduta, noutras pretendem o resultado. É necessário interpretar para saber se a obrigação inclui o resultado ou apenas a conduta. Ex.: o médico não tem obrigação de curar, apenas de fazer o que puder para que o paciente fique bem; o advogado não tem obrigação de ganhar a acção, apenas de fazer tudo ao seu alcance. Não se obrigam a resultados, mas à prestação de um serviço com determinada diligência. Há médicos e advogados que não se esforçam: não fazem tudo o que poderiam pelos clientes. O que é necessário que o devedor faça para cumprir aquilo a que está obrigado? Distingue-se dentro da diligência segundo um critério abstracto e um critério concreto. O abstracto regula a responsabilidade obrigacional (798º e ss.) e a aquiliana (483º e ss.). Foi o critério escolhido pelo legislador. É o critério do bonus paterfamiliae. É o homem médio. O devedor está obrigado à diligência média, aquilo que for normal num homem médio, tendo em conta as circunstâncias do caso. Só é exigível que se esforce até esse ponto. Se se comportar abaixo da bitola, tem culpa. Culpa é agir com um critério diferente do bom pai de família. O dever de prestar implica a diligência correspondente à do homem médio (487/2 e 799). É uma bitola supletiva: as partes podem estabelecer outra. Todavia, é um homem médio colocado no caso concreto. Prestações principais e secundárias Na obrigação há a prestação principal e as prestações secundárias. Qualquer delas pode ser de três tipos: De facere (positivo ou negativo); De dare; De pati. A de facere consiste na realização ou não de um certo comportamento. A de dare consiste na entrega de uma coisa. A de pati consiste em alguém ter de suportar algo. Por exemplo: o empreiteiro tem de se sujeitar às inspecções do dono da obra. Não se trata de um non facere. Está obrigado a suportar a actuação de outrem numa área da sua esfera de actuação. A prestação principal é o núcleo da obrigação. As prestações secundárias podem resultar do contrato ou de normas supletivas, correspondendo a afinamentos do interesse do credor. São prestações que complementam a prestação principal. São instrumentais em relação a ela. Seguem o regime da prestação principal. Os deveres acessórios A existência de um direito de crédito e de um débito entre duas pessoas não é linear como parece. Envolve a relação jurídica principal e uma teia de outras situações jurídicas secundárias. 16
O facto de A ser devedor de B faz com que essas duas pessoas se aproximem. É algo que aproxima as pessoas sociologicamente. O Direito é uma realidade tendencialmente omnipresente, tem uma pretensão de incluir todos os aspectos da vida. O Direito sabe que a obrigação não é só o binómio crédito/débito. Sabe que as pessoas se aproximam e que isso é uma fonte de problemas. Quer em termos gerais quer em cada obrigação existe o instituto da boa fé, que corresponde a um conceito indeterminado que veicula os princípios gerais e institutos que servem para regular as situações novas. A culpa in contrahendo, rerum sic stantibus, integração de lacunas, etc., são soluções para problemas novos. O problema resolve-se com o recurso à unidade do sistema jurídico. O Direito pretende que as partes não adoptem comportamentos contrários ao sistema jurídico. Os deveres acessórios são vínculos que credor e devedor têm para com o outro e que decorrem da boa fé. MENEZES CORDEIRO divide os deveres num: Círculo interno. Substancializam a obrigação. Está em causa a primazia da materialidade subjacente e o interesse do credor; Círculo externo. Diz respeito à integridade das partes e do seu património. Está em causa o princípio da tutela da confiança. A boa fé exige que as partes observem deveres de protecção uma para com a outra, de tal forma que preservem a pessoa e o seu património. Podem ser deveres de lealdade, informação, segurança. A base legal é o 762/2. Não basta cumprir a obrigação, é preciso cumprir de boa fé, observando os deveres acessórios. Os deveres acessórios são imprevisíveis. Como decorrem da boa fé, só no caso concreto é que podemos saber o que é exigível. Enquanto a prestação principal e as secundárias decorrem da autonomia privada (contrato ou regra supletiva), os deveres acessórios decorrem de regras imperativas – há heteronomia. Na prestação principal e secundária o sujeito é o devedor; nos deveres acessórios são ambos. O cumprimento da prestação principal e das secundárias em princípio extingue-as; mas há deveres acessórios pré-contratuais, contratuais e pós-contratuais. Se o devedor não cumpre a prestação principal ou secundária é responsável, tal como se não cumprir o dever acessório. A indemnização é uma consequência de segunda linha. O legislador quer primeiro cumprimento; depois a reconstituição natural; só depois a indemnização. Além das prestações secundárias e dos deveres acessórios, a obrigação é uma realidade muito complexa, incluindo outras situações jurídicas no seu conteúdo. Delimitação negativa O 280º – o negócio jurídico deve ser lícito, determinável, conforme aos bons costumes e ordem pública – também se aplica às obrigações. A obrigação delimita-se por estas exigências (tem de lícita, possível, determinável e não contrariar a ordem pública e os bons costumes). 17
Modalidades de obrigações Prestações fungíveis e não-fungíveis; prestações divisíveis e indivisíveis As prestações podem ser fungíveis (podem ser realizadas pelo devedor ou por outra pessoa) ou infungíveis. A regra é da fungibilidade. Não é o mesmo que coisa fungível. A divisibilidade da prestação tem que ver com a possibilidade de realizar a prestação aos poucos. Em princípio, não são divisíveis – só se as partes combinarem é que isso poderá acontecer. Parte III: Classificações e tipos de obrigações Classificações 1. Quanto ao conteúdo Entrega de coisa (transferência da posse – controlo material de uma coisa; transferência de propriedade; ambos); Obrigação de serviço (autodeterminado – é a própria pessoa que determina o conteúdo do serviço; heterodeterminado – a entidade empregadora diz como); Obrigação de abstenção (simples; suportação de actuação que noutras circunstâncias poderia impedir); Obrigação de organização (ordenação de meios para obter determinado resultado). 2. Simples e complexas (pode dar azo a várias obrigações simples). Se sou obrigado a recorrer a perífrases, trata-se de obrigação complexa; se consigo exprimir com uma única expressão é simples. 3. Absolutas, relativas e mistas Absolutas não compreendem relação jurídica; na relativa há; nas mistas há vários deveres, uns relacionados, outros não. Os direitos pessoais de gozo e direitos de crédito potestativos são absolutos. 4. Puras e combinadas São puras as obrigações que obrigam simplesmente; combinadas quando estejam associadas a direitos reais, p. ex.). 5. Típicas e atípicas É típica aquela que corresponde a modalidade prefigurada na lei; atípica resulta da autonomia privada. Há tipos legais e tipos sociais (não estão na lei, mas são regularmente utilizadas no sector, como concessão, porteiro, etc.).
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6. Determinadas e indeterminadas São determinadas aquelas que têm um conteúdo conhecido no momento da constituição. O conteúdo tem de ser sempre, pelo menos, determinável, sob pena de nulidade (280º). Tipos de obrigações 1. Obrigações duradouras Partimos da prestação. Há aquelas que se concretizam momentaneamente; e outras que se cumprem no tempo, com dilação temporal juridicamente relevante. O Direito antevê relevância jurídica na dilação do cumprimento. Se não houver relevância jurídica a obrigação é instantânea. Quando seja prolongada pode ter prestação contínua ou periódica. PESSOA JORGE dizia que o que interessava era o interesse do credor. Se fosse logo satisfeito, era instantânea. As obrigações duradouras começaram a ser descobertas por SAVIGNY. Não se extinguem com o cumprimento, quanto mais se cumprem mais ficam reforçadas. Implica especialidade quanto à sua cessação, ao contrário das obrigações comuns. O Prof. VAZ SERRA propôs que houvesse regulação das obrigações duradouras. Há lacuna, não obstante. Pode-se tentar analogia com o contrato de agência (o agente angaria negócios para um outro, o principal; se tiver poder de representação celebra também os negócios). Havendo agência, entre o agente e o principal há relação duradoura. O DL 178/86 trata da cessação da agência. A denúncia seria um dos esquemas. A denúncia, forma de cessação de um contrato duradouro, pode ser comunicada para todas as obrigações duradouras. É necessário, também, um pré-aviso. A boa fé impõe que seja um pré-aviso razoável (antecedência razoável). Havendo uma relação duradoura ficam reforçados os deveres de informação e lealdade, para tutela da confiança. E relações perpétuas, existirão? O Código de Napoleão dizia que só poderiam durar 5 anos as relações, como reacção ao regime feudal, em que havia obrigações perpétuas. Mas essa regra viria a ser utilizada com prejuízo dos trabalhadores. As questões sociais vieram pugnar por protecção. Hoje, não se pode dizer que não pode haver relações perpétuas: desde que não violem a lei e bons costumes poderão constituir-se. Podendo haver modificação por alteração das circunstâncias, claro está. O contrato de trabalho e a locação podem tendencialmente ser perpétuos. 2. Direitos pessoais de gozo Serão direitos de gozo (fenómeno pelo qual uma pessoa aproveita as qualidade naturalísticas de uma coisa? Não se trata de direitos reais, mas pessoais. O Direito civil é um direito prático, surge na periferia. O direito pessoal de gozo por excelência é a locação. É um contrato em especial, um contrato pelo qual A concede a B o gozo de uma coisa mediante o pagamento de uma retribuição. Arrendamento (coisas imóveis) e aluguer (coisas móveis) são duas modalidades de locação. A retribuição é a renda ou aluguer. 19
No arrendamento domina a autonomia privada. Podia haver regras na lei que facilitassem a vida às pessoas. Nos finais do séc. XIX, inícios do séc. XX, com a industrialização e grande pressão urbanística, surgiram fenómenos e problemas de natureza social. Eleitoralmente tornou-se interessante para os governos intervir no regime do arrendamento, impedindo actualização das rendas, por exemplo. No período republicano foram tomadas medidas para proteger os arrendatários urbanos. Chegou-se a um regime vinculístico, detectado pelos seguintes sintomas: Renovação automática dos contratos; Congelamento das rendas. Se houver inflação, as rendas vão degradando; Possibilidade de transmissão do direito de arrendatário à margem do senhorio. Quanto mais baixa a renda, maior o lucro do trespasse; Dificuldades quanto à resolução do contrato (cessação unilateral justificada); Inferno burocrático (as iniciativas do senhoria são rodeadas de burocracia tão grande que este é condenado à abstenção). Chegou-se a este panorama aos poucos. Consequência prática: ninguém vai dar seja o que for de arrendamento. A solução de quem chega ao mercado é comprar, contraindo empréstimos. Há subúrbios, trânsito caótico, centros das cidades abandonados, menor taxa de natalidade, etc. Há bloqueios ideológicos, políticos, económicos. Em 1985 tentou-se reformar, actualizando as rendas. Em 1990 tentou-se de novo, mas sem sucesso (o máximo foi admitir arrendamentos de duração limitada, para o futuro). Em 2006 houve um projecto, mas também não chegou a bom porto. Será o arrendamento uma figura real ou obrigacional? O Código de Napoleão falava numa obrigação de facere e num direito de gozo. Mas no arrendamento não há obrigação de fazer gozar: só se o senhorio andasse com o inquilino às costas. Obrigação de deixar usar? Seria negativo. Mas não explica como é que o fenómeno do gozo surge. Surgem teorias mistas (entre nós, INOCÊNCIO GALVÃO TELLES): trata-se de proporcionar o gozo ao locatário. Mas também não explica o que é o gozo. O aproveitamento é sempre uma actividade do titular da coisa corpórea. Seguiram-se as teorias reais: o locatário goza da coisa porque tem direito de o fazer. É um direito real. O 1743º do CC francês determina que, havendo transmissão da coisa arrendada, transmite-se para o adquirente a posição de senhorio. Se é assim, a pessoa que onera a coisa com arrendamento só a pode transmitir assim. Logo, é figura real o direito de locatário. Argumento a favor da tese obrigacional: arrendamento está no Livro II; o CC dá-nos um regime de arrendamento em termos obrigacionais e não numa linguagem real. Contra: não explicam o gozo (não conseguimos explicar o gozo em termos obrigacionais, porque ele é sempre real).
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Argumento a favor da teoria real: há o fenómeno do gozo (aproveitamento de uma coisa corpórea); defesa (o arrendatário pode defender-se de terceiros; o locador não é obrigado a defender o direito do locatário contra terceiros, pelo que ele se pode defender sozinho, com recurso aos tribunais); a locação sobrevive à transmissão da coisa locada (1057º); o vinculismo dá um total controlo da coisa ao arrendatário; na locação, o locatário pode fazer obras, tendo um direito de preferência sobre a coisa; há relação de vizinhança de acordo com as regras típicas dos direitos reais. MENEZES CORDEIRO escreveu um livro a favor desta tese. Mas mudou de ideias. A contraposição entre direitos reais e direitos de crédito não é lógica, é histórica. Admitese a existência de direitos de gozo. Uns são pessoais e outros são reais. GIORGINI dizia que o direito pessoal de gozo não tem defesa contra terceiros. Essa tese é inaceitável. Os direitos pessoais de gozo são uma figura híbrida, entre os direitos reais e os de crédito. É normal que o gozo seja tratado pelos direitos reais. Mas pode ser integrado no Livro II, por ser figura próxima do direito de crédito. Há várias normas que ou trazem aspectos do regime dos direitos pessoais de gozo ou clarificam alguns aspectos. Em geral, no 407º estabelece-se uma regra que trata os direitos pessoais de gozo, no conflito com outros direitos, de forma similar aos direitos reais. Estabelece que prevalece o direito real. A existência de direitos de crédito incompatíveis não é resolvida pela cronologia. Nos direitos pessoais de gozo vale a regra da prioridade cronológica. Seguem, pois, nesta matéria o regime dos direitos reais. Esta regra também vale para os casos de conflito entre direitos pessoais de gozo e direitos reais: prevalece aquele que surgiu primeiro. Quando existe conflito entre os direitos de crédito e os direitos pessoais de gozo prevalecem estes. Comportam-se, em regra, como direitos reais. Têm eficácia ou oponibilidade erga omnes: o titular do direito pessoal de gozo pode intentar acções possessórias, defender o seu direito face a terceiros. Os direitos pessoais de gozo não são típicos, ao contrário dos direitos reais (o 306º não se lhes aplica). Estão envolvidos numa teia de deveres acessórios e secundários muito superior à dos direitos reais, o que os aproxima dos direitos de crédito. 3. Obrigações naturais É figura muito estudada. Não tem uma grande relevância prática. Mas a doutrina dedica-lhe muito tempo. Nas obrigações naturais não se deve esquecer a história, já que é ela que as explica. As obrigações naturais resultam de uma confluência de dois momentos históricos. No Direito romano havia obrigações que tinham débito mas não tinham respondência. A pessoa estava obrigada a fazer algo, mas se não fizesse não lhe aconteceria nada. Por exemplo: obrigação contraída por um escravo. Juridicamente não tinha personalidade. Mas conseguia celebrar negócios jurídicos com pessoas. O Direito dizia que ele estava obrigado, mas se não cumprisse não havia maneira de o levar a tribunal, porque não era uma pessoa. Era um débito sem respondência. Os filhos família (ainda estavam sob a alçada do pater) também podiam contrair obrigações, mas sem shuld. 21
A isso chamaram obrigações naturais. Existiam na natureza mas não eram dotadas de coercibilidade. No período medieval, o cristianismo e Igreja católica tinham grande influência no Direito. Havia ligação entre o Direito e a moral. Alguns deveres acessórios tinha colorações de deveres morais. As obrigações naturais surgem para dar guarida a obrigações morais, não jurídicas. Tudo isto se enraizou durante centenas de anos. Tiveram uma evolução muito atormentada. Mas são aqueles os dois momentos cruciais. E hoje? Não há dúvida de que o Direito e a Moral são ordens normativas distintas. O Direito que se aplica em Portugal é o Direito do Estado português, diferente de um Direito moralmente enformado. Esta matéria está regulada no 402º. Resulta de um compromisso que se tentou em 1966 entre a concepção moral e a herança do Direito romano. Hoje, a moral é uma coisa e o Direito outra. A justiça é aquilo que o Direito consagra. O que retirar do 402º? No regime jurídico há algumas notas importantes: Solutio retentio (403º). Se alguém cumpre uma obrigação natural não poderá exigir a repetição. Se eu pagar, mesmo que em erro sobre a obrigatoriedade, não posso pedir devolução do que paguei; As obrigações naturais são típicas (809º). A constituição ex voluntate de obrigações naturais é nula. Não podem ser constituídas por contrato; O 404º. Em tudo o resto, aplica-se o regime das obrigações civis. A doutrina mais antiga (ANTUNES VARELA, etc.) fazia grandes listas de obrigações naturais porque andava à procura de obrigações morais, sociais, etc., transformando-as em naturais. Mas isto não pode ser, porque elas são típicas. Noção legal (402º). Aparentemente, a obrigação natural tem 3 requisitos: Fundar-se num dever de ordem moral ou social; Não exigibilidade judicial do cumprimento; Mas o cumprimento corresponde a um dever de justiça. Todavia, a justiça é aquilo que o direito disser que é justo e não o que qualquer entende que seja justo. A obrigação natural deve ser, pois, jurídica. Ser jurídica é estar prevista como obrigação. Não pode ser exigível judicialmente. A lei, apesar de consagrar deveres inexigíveis judicialmente, entende que esses deveres são por vezes de importância substancial. Devemos entender “dever moral ou social” é como situações jurídicas idóneas – importantes o suficiente para merecer a atenção da lei. As obrigações naturais são deveres jurídicos judicialmente inexigíveis. A doutrina afadiga-se a determinar a natureza das obrigações naturais. Uma tese diz que se trata de deveres extra-jurídicos; outra (MENEZES CORDEIRO) diz que são deveres jurídicos, com base no 404º. É jurídico, mas se não for cumprido espontaneamente não é possível exigir judicialmente. As obrigações naturais, diz-se por vezes, não têm valor patrimonial. Isso não é verdade. Uma obrigação natural provavelmente não será cumprida; mas também as obrigações 22
civis podem não ser cumpridas. Não é a circunstância de ser possível o incumprimento que lhes retira o valor patrimonial. Uma dívida de 500€ prescrita – que passa a obrigação natural – tem ainda valor patrimonial. 4. Obrigações genéricas As obrigações podem ter como objecto prestações, que podem ser de facere, dare ou pati. A obrigação genérica prende-se apenas com as de entrega de uma coisa. As coisas podem ser fungíveis ou infungíveis. As fungíveis são aquelas que se determinam pelo seu género, quantidade ou qualidade. Um litro de azeite pode retirar-se de vários lugares. O objecto da obrigação não está determinado no momento da celebração. Só se determina o género, podendo ser qualquer litro de azeite. O problema que surge é o da determinação do objecto. Ele é determinável mas não está determinado. A determinação do objecto levanta dois problemas: Escolha. Quem escolhe? Com que critério? Risco. Por conta de quem corre o risco? Com as coisas determinadas isto não acontece. As obrigações genéricas são muito importantes, com a massificação das transacções. A esmagadora maioria dos negócios jurídicos que implica obrigação de entrega é feita com coisas fungíveis, dando lugar a obrigações genéricas. No Direito romano eram desconhecidas. Na Idade Média os negócios eram feitos à vista. Não havia os problemas actuais com a escolha e o risco. As partes podem contratar sobre coisas fungíveis, cujo universo pode ser mais ou menos amplo. Desde que a coisa a entregar não seja única, é fungível, há obrigação genérica. A escolha e o risco O 539º estabelece que, se nada for estipulado, escolhe o devedor. Os contraentes podem estipular diferentemente. Não havendo convenção, rege o favor debitoris. Como escolher? As partes também podem estabelecer no contrato qual é o critério. Na falta de acordo, o 400º diz-nos que deve ser feita a escolha segundo juízos de equidade. A equidade em sentido forte aponta para a justiça do caso concreto. Não é o sentido do 400º. A determinação do critério não deve ser feita tendo em conta as circunstâncias casuísticas. Equidade em sentido fraco pode ser entendida como critério de justiça mas não formalista, antes critério de materialidade (o que as partes verdadeiramente pretenderam). A determinação do critério de escolha é a determinação do objecto do contrato. Se as partes não escolheram deviam ter escolhido. Logo, há uma lacuna negocial. No 239º temos o critério geral de preenchimento: reconstrução da vontade hipotética à luz da boa fé. A boa fé aponta para a tutela das expectativas das partes e para o equilíbrio dos seus interesses. Se pensarmos de um ponto de vista de não frustração dos interesses e expectativas, o critério é o da mediania. Deve-se escolher a coisa média. A equidade deve achar-se conjugando o 400º com o 239º. Não tendo sido estabelecido o critério de escolha, o critério deve ser o da mediania. 23
Quando é que se escolhe? O 541º revela que o momento da escolha é muito importante, porque é o momento da concentração da obrigação. Nesse momento determina-se a espécie dentro do género. A regra geral é de que a concentração ocorre com o cumprimento. Só se pode escolher vinculativamente no momento do cumprimento. O vendedor da maçã roubada tem de arranjar outra. Se o ladrão tiver roubado após a concentração, já não pode o credor exigir outras – o risco transferiu-se. De facto, com a concentração opera o 408º - a propriedade transfere-se. Passa a propriedade e passa o risco. Muitos contratos são sinalagmáticos. Ambas as partes têm obrigações. Se a obrigação genérica se extingue, a outra parte também fica desobrigada (795º). 5. Obrigações alternativas Sucede quando uma pessoa entra num restaurante, tem várias hipóteses para escolher; o restaurador obriga-se a fazer qualquer prato, de acordo com a escolha do cliente. Uma obrigação, em função do objecto, pode ser simples ou composta (543º e SS.). É Simples se tiver apenas uma prestação principal. Se houver várias, elas podem ser cumulativas (devedor fica adstrito a ambas e só cumpre quando as prestar) ou disjuntivas (o devedor cumpre executando uma ou outra das obrigações em presença), também ditas alternativas. Não se confunde com obrigação subjectivamente alternativa. Quer o credor quer o devedor estão, aqui, bem determinados. Também não se confunde com as pretensões alternativas (a lei confere duas possibilidades ao credor). Não se confunde, tão pouco, com as obrigações com faculdade alternativa (o devedor pode, no momento do cumprimento, optar por outra prestação). O 541º dá uma noção: obrigação que compreende duas ou mais prestações. O devedor é que escolhe, na falta de acordo em contrário: ou cumpre uma ou cumpre outra. Não são divisíveis, isto é, parcialmente prestáveis (metade de uma e metade da outra, por exemplo). As partes podem determinar que é o credor que faz a escolha. Se o indicada para escolher não o fizer, ou escolhe num determinado prazo ou cabe ao outro fazer a escolha. Se uma das prestações se tornar impossível por causa não imputável às partes, a obrigação limita-se (converte-se) à outra prestação. 6. Obrigações com faculdade alternativa. Temos uma prestação, que pode ser substituída no momento do cumprimento. A faculdade alternativa cabe a uma das partes. O artigo 558º do Código Civil fala de obrigação de moeda com curso legal no País, segundo o câmbio do dia. É um exemplo, já que, no caso de obrigações cujo pagamento seria feito com outra moeda, o devedor pode optar por pagar com a moeda em curso no País. Também do lado do credor, embora a lei não o preveja, pode estar a faculdade alternativa. É uma obrigação simples por natureza; contudo, existe no seu conteúdo o direito potestativo de alterar a prestação no momento do cumprimento.
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7. Obrigações de informação São fundamentais. Há áreas complexas (Direito bancário, das sociedades comerciais, etc.). Trata-se de áreas em que lidamos com vínculos abstractos, que apenas existem dentro dos cérebros humanos. Constatamos a sua existência falando, por uma teia de comunicação e informação. Ela pode ter base contratual ou legal; pode ser determinada ou indeterminada; substantiva ou codificada – obriga uma pessoa a procurar a substancia e a clarificar tudo, ou então basta dizer sim ou não; autónomas ou heterónomas (se é a pessoa que está adstrita que tem de saber o que dizer é autónoma). Discute-se, no âmbito da culpa in contrahendo, se é necessário dar todas as informações ou só as necessárias. MENEZES CORDEIRO entende que só cabe dar as informações necessárias. Pode ser prestação principal (contrato de consultadoria), secundária ou ainda deveres acessórios (não há assunção de deveres de informação, mas resultam da boa fé). A informação é uma prestação de serviço. O Código Civil (573º e SS.) trata desta área. Requisitos: titular do direito que tenha dúvidas fundadas acerca da sua existência e conteúdo e alguém que esteja em condições de informar. Se estiverem reunidos, surge o direito potestativo que, utilizado, gera obrigação de informação. No Código Civil trata-se de situações características (obrigação de prestar contas é um exemplo de obrigação de informação). NOTA: a importância da distinção entre obrigação alternativa e obrigação com faculdade alternativa prende-se com a possibilidade do perecimento da obrigação. Não há regime específico para as obrigações com faculdade alternativa. Um exemplo é o da obrigação pecuniária: posso cumprir em moeda nacional ou em moeda estrangeira com valor equivalente. 8. Obrigações de apresentação de coisas ou documentos (564º/1). Se A tem direito sobre x pode requerer ao detentor da coisa a sua apresentação. Há direito potestativo que gera obrigação de reprodução da coisa. Parte IV: Obrigações pecuniárias e obrigações plurais Obrigações pecuniárias São aquelas cuja prestação resulta numa entrega em dinheiro. Deve ser tratado pelo Direito. O Direito bancário é o sector normativo do dinheiro. Funciona utilizando categorias civilísticas. Pressupõem a moeda: é instrumento de troca geral (mercadorias que podem ser trocadas por quaisquer outras) e é bitola de valor de outras coisas. Queria-se algo que tivesse valor intrínseco elevado, que pudesse ser entesourado. Foi fixado, pois, em metas preciosos. Mas posteriormente surge a moeda fiduciária: a moeda vale porque as pessoas lhe atribuem um valor. O Estado interveio. Começa a emitir papel-moeda. Hoje em dia, as transacções fazemse em larga medida electronicamente. A moeda funciona porque acreditamos que existe um Estado, bancos, que o sistema funciona. 25
A moeda está dependente de confiança; a confiança depende de um conjunto de regras, que regula o sistema monetário e financeiro. As obrigações pecuniárias já estavam aprofundadas no Direito romano. Vigorava a ideia do valor nominal. Há vários valores: valor real (quanto vale o metal), valor nominal (valor inscrito na espécie, na moeda), valor aquisitivo (valor de troca). No Direito romano já se dizia que a regra era a do valor nominal. Manteve-se a regra. Com o enfraquecimento do Estado começa a surgir muito moeda com menor valor, cunhada por outras entidades. Com as codificações impôs-se a ideia do valor nominal. O artigo 550º do Código Civil estabelece o princípio nominalista. O valor de troca (poder aquisitivo da moeda) depende da inflação. O valor cambiário (em relação às outras moedas) já é outro tipo de valor. O princípio do nominalista tem algumas excepções no Código Civil. A obrigação de alimentos é calculada, sendo actualizável. Em certos casos, também o valor do arrendamento é novamente ponderado. Os juros traduzem uma remuneração da detenção de capital alheio. Discute-se se é legítimo fazer juros sempre que haja empréstimo de capital. Na tradição judaica só poderia haver em relação a gentios; no Novo Testamento e no Corão foram proibidos os juros. Nas Ordenações permitia-se muito restritivamente. Nos países protestante foram admitidos, vindo o mundo católico a admiti-los mais tarde. Em 1757, o Marquês de Pombal possibilitou a remuneração. No séc. XIX houve grande liberdade neste domínio, praticando-se juros elevados. O contrato de usura ganhou até conotação negativa. Em 1932, Salazar limitou a matéria, fixando taxas máximas. Hoje, deveria haver nova intervenção do Estado no sentido de limitar.Os juros podem ser voluntários ou legal; remuneratórios ou moratórios; civis, comerciais, bancários. Obrigações plurais Uma obrigação pode ser singular (um credor, um devedor) ou plural. A pluralidade pode ser activa, passiva ou mista (vários credores, um devedor; vários devedores, um credor; vários credores e vários devedores). Pode ser disjunta (A ou B devem a C; C deve a A ou B) ou conjunta (A e B devem a C; C deve a B e A). Estas figuras cruzam-se. Na pluralidade conjunta distingue-se as obrigações solidárias e as parciárias. Nas solidárias pode ser exigida a totalidade da obrigação a qualquer dos devedores, extinguindo-se aí a obrigação. O devedor que pagou acertará, depois, contas com os demais. Nas parciárias só se exoneram todos os devedores ao mesmo tempo. O Código Civil não trata expressamente da parciariedade. Trata das obrigações divisíveis e indivisíveis, tendo-se entendido que se deve encontrar aí o seu regime. Haverá nas obrigações plurais a figura da correalidade? A obrigação plural correal tem uma única obrigação e deveres que funcionam em conjunto. Nas obrigações plurais temos algo que tem que ver com a contitularidade. O exemplo paradigmático é o da compropriedade.
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Ou há direitos a representações intelectuais da coisa (quota ideal) ou há um único direito com vários titulares (MENEZES CORDEIRO entende que isso não seria um direito subjectivo, que é sempre singular), ou temos pessoas colectivas (os vários devedores ou credores juntar-se-ia numa pessoa colectiva) – esta hipótese não corresponde à do regime legal. MENEZES CORDEIRO defende que, quando há vários sujeitos numa obrigação, isso não multiplica a obrigação. É só uma, mas complexa. Entre os vários sujeitos constituise uma teia complexa de direitos e deveres, de modo a assegurar o cumprimento. Na prática, é muito frequente haver vários devedores e/ou vários credores. A existência de pluralidade introduz complexidade adicional, porque também temos de tratar das relações internas. Os vários sujeitos têm relações entre si. Quando há pluralidade subjectiva há relações externas – credor/devedor – e internas. A solidariedade e a parciariedade A solidariedade e a parciariedade são as duas modalidades de pluralidade subjectiva. O 513º diz-nos que a solidariedade de devedores ou credores só existe quando resulta da lei ou da vontade das partes. A parciariedade é a regra supletiva no Direito civil. No Direito comercial, a regra supletiva é a da solidariedade. Na parciariedade fracciona-se o esforço antes do cumprimento. Quando vão cumprir, cada um entrega a sua parte do esforço financeiro. O credor só pode exigir de cada um essa parte. A parciariedade tem um regime fácil de aplicar quando há obrigação divisível (dinheiro, por exemplo). A divisibilidade pode ser objectiva ou subjectiva. Há obrigações que são à partida divisíveis; há outras que só o são se as partes acordarem. Quando as prestações não são divisíveis é que surge o problema. As indivisíveis são aquelas que não podem ser fraccionadas sem prejuízo da prestação. Nestes casos, todos têm de prestar ao mesmo tempo. Há casos em que também existe indivisibilidade mas é ainda mais evidente que todos têm de prestar ao mesmo tempo: por exemplo, um concerto de orquestra. Existe uma presunção de igualdade das quotas. Presume-se que as partes de cada um são iguais, na falta de estipulação em contrário. Em resumo, seja porque o regime é unitário, seja porque existe expressão linguística unitária, uma obrigação sujeita ao regime das obrigações plurais é uma única obrigação. Solidariedade É um regime a que estão sujeitas as obrigações quando as partes escolhem ou quando a lei determina (porque quer proteger certas pessoas, os credores). É um regime mais duro para o devedor. Aumenta a garantia do credor. Quando há responsabilidade civil na esfera de várias pessoas, a lei estabelece solidariedade, para proteger o lesado. Ao contrário da parciariedade, implica o que o fraccionamento da prestação se faça num momento posterior ao do cumprimento. Rege o 512º - noção. O credor pode exigir a qualquer dos devedores o cumprimento integral da prestação. O que pagou terá de ir reclamar perante os outros até que lhe paguem a sua quota. 27
O credor tem garantia acrescida – pode exigir a qualquer dos devedores: solidariedade passiva. A solidariedade activa dá-se quando o devedor pode pagar a qualquer dos credores toda a prestação. Também existe, aqui, presunção de igualdade (516º), se não houver outro acordo. Esta obrigação solidária distingue-se da obrigação de fiança: aí há dois vínculos, o do devedor e o do fiador. Na solidariedade há co-devedores. A solidariedade tem funcionamento mais complicado do que a parciariedade, já que o fraccionamento é feito posteriormente. Normalmente, quando alguém contrata a solidariedade, significa que há alguma coisa a mais, há “gato”. Quando o credor vai pedir aos co-devedores que façam a sua parte, é natural que existam meios de defesa dos devedores. O que se pode dizer é que o credor pode pedir o cumprimento a qualquer dos devedores. O devedor solicitado pode opor-lhe meios de defesa comuns a todos ou pessoais, só dele (não os meios pessoais de outro). Comuns seriam as nulidades (vício de forma, p. ex.); pessoal seria a prescrição, p. ex. Não se pode invocar a prescrição do dever de prestar de outro dos devedores. Se o devedor que pagou não pode pedir a um dos co-devedores que cumpra porque a dele prescreveu, concluímos que é um regime muito problemático para os co-devedores. O instrumento jurídico que permite acertar as prestações é o direito de regresso. Pluralidade heterogénea Pode existir pluralidade heterogénea. A mesma prestação é objecto de um duplo aproveitamento. Poderia existir um credor e um usufrutuário do crédito; um credor e um credor pignoratício, p. ex. Uma prestação pode, tal como os direitos reais, ter duplo aproveitamento. Mas é uma pluralidade heterogénea, tem regime diferente. Parte V: Fontes das obrigações A obrigação corresponde a um efeito jurídico, à estatuição de uma norma. Precisa de um facto jurídico para nascer. Um dos princípios fundamentais é o da causalidade. A configuração e efeitos das obrigações estão relacionados com a sua causa. A fonte das obrigações é fundamental porque dá origem à obrigação e porque determina o seu regime. A expressão fonte é tradicional – 405º e SS. O que se pretende e colocar ordem no universo do Direito das Obrigações. A partir de muito cedo sentiu-se uma necessidade. Surgiu o esforço de sistematização, uma classificação das fontes. No Direito romano distinguia-se o contrato do delito. É uma bipartição importante. São duas fontes fundamentais de obrigações. O mesmo jurista que repartia assim as fontes, alguns anos depois acrescentou uma figura residual. Constatou que havia obrigações que nem resultavam de contrato nem de delito. Com Justiniano foram acrescentadas as categorias do quase-contrato e do quasedelito. Eram fontes que, não sendo nem uma nem outra, tinham mais afinidades com esta ou com aquela. No período da pré-codificação francesa, um A. acrescentou a lei. A lei poderia ser fonte de obrigações.
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Os autores que escreveram entre o período antes de Cristo e o da pré-codificação viveram períodos distintos. As divisões não significam, nuns e noutros a mesma coisa. Os juristas pensavam em coisas bastante diferentes. A “fonte” em Direito romano tinha mais a ver com a justificação axiológica. Já nos sécs. XVII e XVIII é expressão mais relacionada com o conceito técnico. O esforço de sistematizar levou a sedimentar a tetrapartição. Em Portugal o movimento foi acompanhado nas Ordenações, apesar de não haver classificação qua tale. Faz-se, todavia, referência à tetrapartição. O Código de Seabra faia um elenco original. Enumera algumas fontes, em vez de adoptar a repartição tradicional. Com o CC de 1966 também não existe classificação, mas enumeração; a partir do 405º, enumera-se o contrato, o negócio unilateral, a gestão de negócios, o enriquecimento sem causa, a responsabilidade por actos ilícitos e pelo risco. Vai-se do máximo da autonomia privada para o mínimo. Há um encadeamento. O Direito português está mergulhado no universo comunitário. No Direito europeu há tentativa de ordenar as fontes de obrigações. Na União há ordenamentos jurídicos muito diferentes. É difícil unificar. Vários autores dedicam-se a tentar achar um mínimo denominador comum. Mas ele é mesmo muito reduzido. O direito privado tem 2000 anos. Onde se avançou mais foi na matéria contratual, que é comum a todos os direitos europeus. O grupo de trabalho pan-europeu mais conceituado trabalha na Alemanha e publicou em 2005 um projecto de referência para todos os países europeus em matéria de obrigações. O que se deve, então, fazer? É importante organizarmos o estudo das várias figuras. Pode haver técnica definitória (definindo as fontes das obrigações) e uma tipologia (elenca-se os vários tipos de fontes). Ao longo da História usaram-se ambas e mistas. Atendendo ao carácter histórico-cultural do Direito e ao facto de haver fontes que nasceram em períodos históricos muito diferentes, a melhor técnica é a tipológica, como se usou em 1867 e 1966. Trabalhamos com fontes que nos advêm de períodos históricos muito distintos. Há mais fontes do que as elencadas no Capítulo II do Livro II. Há – dentro do Código Civil e fora dele ou até dentro do Código Civil mas fora do Direito das Obrigações (Família, p. ex.). O contrato O contrato é uma das mais importantes fontes. Em termos estatísticos, desde logo. Mas também em termos significativo-ideológicos: o contrato é filosoficamente um instituto com uma carga ideológica muito forte. É a forma de as pessoas exercerem autonomia privada, de se autodeterminarem. É um reduto de uma certa forma de entender a vida em sociedade. O contrato contrapõe-se à lei por ser norma autónoma, enquanto a lei é norma heterónoma. O contrato existe desde o Direito romano e é documentável em todas as latitudes. Mas sob esta aparente homogeneidade esconde grandes diferenças, no tempo e no espaço. Houve sempre algum acordo entre pessoas que produziam efeitos jurídicos. Mas o modo como eram formados e entendidos pelas pessoas variou muito.
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No Direito romano não havia propriamente ideia de contrato. Os romanos conheciam figuras equivalentes, que assentavam em formas rituais muito sofisticadas. Dá-se uma grande explosão, surgindo os contratos que hoje são básicos. A expansão mediterrânica de Roma foi crucial, bem como o desenvolvimento da actividade jurisprudencial. Com a figura da bona fides davam juridicidade a essas figuras a que hoje chamamos contrato. Passava a ser vinculativo por isso. Mais tarde, a bona fides perderá o seu significado. Na Idade Média desponta a ideia de lealdade (influência germânica). É importante considerar o canonismo. Não respeitar a palavra dada seria mal visto. Daria frutos no período jusnaturalista, em que se procurou pensar toda a sociedade numa ideia de contratos. Aquando das codificações é dada grande importância ao contrato. O Código de Napoleão diz que o contrato vale como lei entre as partes. O pensamento contratual atingiu o máximo com o Código de Napoleão, de acordo com a escola histórica e a pandectística. O contrato valia por si. Mas os juristas da escola histórica (SAVIGNY, desde logo) surgem com a noção de negócio jurídico. O contrato obteve-se através de uma evolução histórica; já o negócio obtém-se pela razão. Assim, a Parte Geral do BGB está construída sobre a figura do negócio jurídico. O nosso Código Civil torna-se interessante porque faz uma síntese entre os grandes sistemas europeus. Na Parte Geral sobressai o negócio jurídico; nas Obrigações é o contrato. D. Dinis, em lei de Maio de 1352, veio dizer que não admitia pessoas que britassem (quebrassem) a boa fé. É uma manifestação do pensamento contratual muito cedo no nosso País. O contrato tem um papel muito alargado. Os direitos reais transmitem-se ou extinguemse através de contrato. É o sistema de tipo francês, consensual – basta haver contrato. A Parte Geral fala fundamentalmente em negócios jurídicos; mas se lemos artigos sobre negócios, o contrato está sempre subjacente. No Direito da Família também: contrato de casamento. No Direito sucessório é mais raro, mas existe pacto sucessório. No Direito Comercial e no Direito das Sociedades Comerciais a figura do contrato também é fundamental. A contratação colectiva e a contratação pública Na contratação colectiva (Direito laboral) temos, igualmente, manifestação da importância do contrato. É uma forma muito adequada de resolver problemas laborais, pela solução que encontra e pela forma de a ela chegar (negociação). Também a contratação pública é hoje uma manifestação. O CCP trata da matéria. É um diploma bem feito, para o Prof. Menezes Cordeiro. O contrato nos nossos dias Existe uma ideia liberal: quando a evolução da sociedade vai no bom sentido, vai na direcção do contrato. A figura do contrato torna-se importante nas sociedades desenvolvidas, se a sociedade é subdesenvolvida, tem menos aplicação. É necessário que haja propriedade. O socialismo ataca o contrato. O contrato, diz-se muitas vezes, está em crise. A primeira foi a do aparecimento do negócio jurídico, com SAVIGNY. Quando fala em espírito do povo (o Direito romano actual), o próprio contrato perde espaço. 30
No séc. XX surgiu uma concepção objectivista: o que existe são relações de força. O contrato é um véu que tapa os olhos. É uma visão pessimista. Tecnicamente, existem “derivas dogmáticas”: A obrigação de contratar não faz muito sentido; O aparecimento de regras contratuais sem contrato; Intervenção judicial nos contratos; As cláusulas contratuais gerais: há liberdade de celebração mas não de estipulação na contratação; Áreas reguladas, nas quais existe um conjunto de regras cientificamente preparadas para controlar esses sectores, diminuindo a liberdade contratual (banca, seguros, valores mobiliários, etc.). MENEZES CORDEIRO considera que o maior ataque ao contrato foi a surgimento da doutrina do negócio jurídico. O contrato tem peso em si. Se a lei não dissesse nada, não relevaria: eles devem ser cumpridos. O contrato tem relevo internacional: os tratados são contratos. Graças às convenções internacionais, os grandes blocos não se envolveram numa guerra nuclear. Com a queda do Muro, os observadores previram explosão dos contratos. Mas isso não aconteceu, pelo menos para coisas úteis. Houve recuo com a crise financeira e económica internacional iniciada em 2007. Todavia, não se trata de um recuo do contrato, mas de certos contratos. O contrato é, à partida, racionalidade. O que houve foi irracionalidade dos celebrantes. Tutela constitucional do contrato A CRP, no artigo 8º/2, diz que as convenções internacionais vigoram na ordem interna. O 56º/3 garante a contratação colectiva. O 86º/1 diz que o Estado incentiva a actividade empresarial. O 99º/a) vem dizer que o Estado deve promover uma concorrência salutar. O 266º/2 determina que os órgãos administrativos devem respeitar princípios, como o da boa fé. No 62º/1 garante-se a propriedade privada (todo o conjunto de direitos privados, incluindo direitos de créditos). Tudo isto levaria a deduzir que a CRP fala no princípio pacta sunt servanda. Mas MENEZES CORDEIRO entende que não: não, porque não foi necessário. A Constituição só fala de ideias que foram postas em causa, visando deixar claro que elas valem no ordenamento português. Mas a ideia de que os contratos são para cumprir nunca foi questionada. É óbvia. Não houve, pois, necessidade de consagrar na CRP. Modalidades de contratos Classificações Podem ser articuladas com a classificação dos negócios jurídicos e das obrigações. Os contratos que estejam por detrás das obrigações podem ser classificados da mesma forma (genéricos, pecuniários, plurais, etc.).
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1. Consensuais, formais e reais quoad constitutionem A primeira distinção separa os contratos consensuais dos formais; reais quoad constitutionem e quoad effectum; nominados e inominados. É matéria com interesse prático: se uma figura é inominada, fica fragilizada, já que não há possibilidade de comunicar essa realidade a não ser através de linguagem articulada. 2. Típicos e atípicos O contrato típico é normativamente nominado. Quando a lei não lhe dá um nome, em princípio também não o regula. O contrato de hospedagem, no entanto, é nominado mas atípico. Os típicos são-no porque ao longo da história vieram a ser tratados juridicamente. Pode haver tipo social e tipo legal. Tipo social é aquele que normalmente tem um conteúdo unitário, mas a lei não o disciplinou. Vantagens dos tipos contratuais: primeiro, poupa trabalho às pessoas haver tipos na lei, bem como diminui as dúvidas. As pessoas só têm de compor os elementos necessários. Segundo, maior equilíbrio. Os contratos típicos são tratados ao longo da história, vindo a aperfeiçoar-se. Terceiro, permite intervenção do Estado dentro de determinadas áreas, consideradas mais sensíveis, mexendo com o tipo legal para criar um regime mais adequado. 3. Contratos obrigacionais e reais quoad effectum Os contratos reais quoad effectum produzem efeitos de direitos reais; os contratos obrigacionais produzem efeitos obrigacionais. Pode haver contratos reais quoad effectum que sejam também quoad constitutionem 4. Comuns e especiais Os contratos comuns visam uma generalidade de situações. Os contratos especiais visam só uma situação ou algumas dentro da generalidade, regulando com especialidade. É distinção relativa, não dá para classificar em abstracto. Pode ser especial em relação a um e comum em relação a outro. 5. Sinalagmáticos e não sinalagmáticos; monovinculantes e bivinculantes Um contrato sinalagmático é aquele que pressupõe prestações recíprocas. O sinalagma significa acordo do qual resultam obrigações mútuas. No Código Civil parece existir assimilação dos conceitos de sinalagmaticidade e bilateralidade. Perante o conceito de negócio jurídico, o contrato é bilateral. Todos os negócios são contratos bilaterais. Aceitar a formulação do Código Civil seria falar em negócios bilaterais “bilaterais”. A confusão aconteceu porque em francês não é bonito dizer “não sinalagmático”. MENEZES CORDEIRO entende que é necessário acabar com a confusão. Os contratos sinalagmáticos podem compreender um sinalagma genético ou um sinalagma funcional. Fala-se, por vezes, em sinalagma imperfeito (apenas uma das partes está obrigada, sendo que a outra tem qualquer coisa ainda). O contrato oneroso constitui um sinalagma perfeito. Doações com encargos seriam sinalagmas imperfeitos.
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Os negócios jurídicos podem ser mono ou bivinculantes, consoante gerem o direito potestativo numa das partes de desencadear os efeitos jurídicos correspondentes ou em ambas. Nos monovinculantes há duas partes; no entanto, uma delas não fica obrigada. Fica com o direito potestativo de, querendo, solicitar ao outro a efectuação da prestação. A sinalagmaticidade tem em conta a reciprocidade das prestações. É diferente da vinculatividade. No contrato-promessa monovinculante há uma parte que tem o direito potestativo de desencadear o contrato definitivo; mas ambas as partes terão de proferir as declarações negociais. Há, pois, reciprocidade. É sinalagmático. 6. Onerosos e gratuitos Os negócios jurídicos podem ser onerosos ou gratuitos. Os onerosos implicam esforço económico e vantagens correspectivas para ambas as partes. Os gratuitos são aqueles em que só há vantagens para um e só esforço para o outro. O negócio gratuito é oneroso ou gratuito não pelos resultados, mas porque as partes estabelecem vantagens e contrapartidas para ambas ou separam. Os gratuitos são, em regra, descritos pela doutrina com recurso ao animus donandi. As partes querem dar. 7. Principais e instrumentais Os negócios jurídicos podem ainda ser principais ou instrumentais, tendo em conta o relevo de que se revestem. Tipologias de contratos Contratos típicos, atípicos e mistos Os negócios jurídicos, hoje, não são caracterizados por um princípio de tipicidade. À luz do 405º, as partes têm liberdade de celebrar livremente. O nosso direito estabelece que as partes podem celebrar como lhes aprouver. Tendo em conta este facto, podemos distinguir entre negócios típicos, atípicos e mistos (vêm previstos na lei e são misturados; vêm previstos na lei só parcialmente e estão aliados a cláusulas atípicas). Em regra, reconduzem-se a um dos cinco tipos básicos previstos na lei. A tipificação tem o intuito de facilitar a vida aos privados. A generalidade dos negócios jurídicos utiliza cláusulas de tipos previstos na lei. Embora o 405º seja muito abrangente, há alguns contratos em que a lei estabelece normas imperativas. O problema é que, como há regulamentação feita a propósito dos contratos básicos, a parte geral é muito restrita. Há 16 contratos regulados no Código Civil. A generalidade das normas é supletiva. O problema é que, se as partes celebram contratos mistos, o que se faz às normas imperativas? Aplicam-se? Elas estão previstas para os contratos típicos. O carácter misto dos contratos tem colocado problema quanto ao seu âmbito de aplicação. Os contratos atípicos são também um quebra-cabeças para a administração fiscal. Se o contribuinte celebra contratos atípicos, passa entre as gotas da chuva. O estudo desta matéria não é fácil, uma vez que domina a autonomia privada.
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A doutrina classifica os contratos atípicos como: 1. Complementados – aqueles em que existe um tipo base, mas tem prestação subordinada que é de um tipo diferente. Ex.: A arrenda um quarto a B, o locador, que lava também a roupa de cama. Há o tipo base (locação) e uma prestação menos importante. Há mistura. Não pode ser um mero pormenor. Um pormenor não chega para transformar o típico em atípico; 2. Combinados ou múltiplos – existe de um dos lados uma prestação única e do outro prestações múltiplas, próprias de vários contratos. Ex.: A comprou 15 dias num cruzeiro. Em troca do preço recebe um quarto (locação), os serviços de limpeza, comida, entretenimento, etc. Os combinados distinguem-se dos complementados, já que temos prestações próprias de multiplicidade de contratos, não havendo uma principal. 3. Duplos ou híbridos – cada uma das partes está adstrita a uma prestação de um tipo diferente. Ex.: A recebe habitação, cama, comida, em troca de explicações. Não tem salário, mas recebe em géneros. 4. Indirectos – são designados simplesmente por mistos stricto sensu. São aqueles em que as partes utilizam um tipo legal para prosseguir um fim ou função própria de outro negócio. Ex.: A compra por preço muito baixo; na prática, embora tenha havido preço, o negócio aproxima-se da gratuitidade. Os negócios indirectos podem ser de execução instantânea (no exemplo dado as partes prosseguem fim próprio de outro tipo, obtendo a realização do interesse pelo simples cumprimento) ou duradouros (a função prosseguida só é conseguida ao longo do tempo). Para que o objectivo se realize tem de haver relação de confiança entre as partes. O caso paradigmático é o da alienação em garantia. A tem dívida para com B. Permite-lhe que habite a sua casa em garantia do cumprimento, não para que se porte como proprietário, mas como tendo a casa como refém. B tem de guardar a casa enquanto A não paga, quando acabar, devolve-lha. Isto só resulta se houver confiança. A doutrina discute muito o modo de regular os negócios mistos. A autonomia privada é o pano de fundo. Surgem quatro teorias: a teoria da absorção diz-nos que devemos encontrar um tipo principal dentro do misto, que absorverá os outros. Aplica-se o seu regime a todo o contrato. A teoria da combinação diz que devemos combinar os regimes jurídicos. A tese da cumulação entende que devemos cumular os regimes jurídicos, aplicando todos. A teoria da analogia diz-nos que devemos tentar encontrar por analogia a norma necessária para o negócio em causa. Estas teorias estão marcadas pela sua origem. O que se passa efectivamente na jurisprudência? No Direito português, esta matéria tem sido tratada a propósito de quatro contratos: 1. Porteiro – a generalidade da jurisprudência entende que o que é fundamental é o contrato de trabalho. O resto é extra. Proporcionar a habitação destina-se a aumentar a qualidade do trabalho prestado. Tendencialmente aplica-se o regime do contrato de trabalho (absorção); 34
2. Lojista em centro comercial – os centros comerciais há um promotor que proporciona o gozo de uma loja a um lojista e serviços de limpeza, segurança, publicidade, gestão do centro, de tal forma que haja lojas que atraiam os clientes. O promotor é remunerado através da renda, que tem parte fixa e parte variável (incide sobre a facturação da loja). Em Portugal, o arrendamento tem muitas normas imperativas, é uma área vinculística. Se os contratos de lojista fossem de arrendamento, acabavam os centros comerciais. O que aconteceu foi que a doutrina e jurisprudência tentaram empolar os outros aspectos do contrato: proporcionar serviços e o benefício comum. A solução foi dizer que o fundamental não era a locação, mas os serviços que o centro proporciona, bem como sinergia do ponto de vista económico. O método foi o da analogia; 3. Concessão comercial – é o contrato através do qual se distribuem bens de elevado valor. Aqui há um produtor de bens distante dos consumidores, que pretende montar uma rede de distribuição sem correr certos riscos. Celebra negócios com empresas nos locais onde quer distribuir, nomeia concessionários, a quem entrega os bens, para que os distribua. O que é específico é a distribuição de bens produzidos por outro. Aqui, a solução também foi a da analogia. É contrato de agência que foi encontrado. Há semelhança entre a agência e a concessão. Recorre-se ao regime da agência; 4. Franquia (franchising) – caso de alguém que tinha uma marca permitir que outro usasse a marca. Hoje, é também acompanhado de distribuição. O que é específico é a marca. A solução foi a da analogia, e também com a agência. Regra geral, se na lei houver solução, aplica-se essa solução. Mas isso é raro. Quando nada se diz, a primeira solução é a da vontade das partes. Se as partes conseguem estabelecer todo o regime, é esse que se aplica. Mas não é normal. Quando há lacuna contratual, deve-se identificar o centro de gravidade do contrato. Se ele corresponder ao tipo x, aplica-se o regime do tipo x. No caso do porteiro isso é evidente. Mas se houver problemas próximos de negócio de outro tipo, aplicam-se as regras desse tipo, por analogia. O limite é o das normas imperativas, tal como o da vontade das partes. Que fazer nos casos de contratos totalmente atípicos? É raro isso acontece. Mas se acontecer aplicam-se todas as normas gerais do CC. A seguir temos de resolver com analogia. Se não for suficiente, temos de ir ao espírito do sistema (10º do Código Civil). Contratos indirectos Exemplos de contratos mistos são o complementado, o combinado e o híbrido. Nos contratos indirectos ou mistos em sentido estrito: há uma parte obrigada a secção típica de um contrato; a outra também, mas o contrato é usado para uma função diferente. P. ex.: um contrato de compra e venda com preço insignificante cumpre função de doação. Pode haver várias funções: simulação; divergência não simulatória (A e B querem contratar e fazem qualquer coisa que não querem verdadeiramente, sem intenção de enganar). Pode, no entanto, ser celebrado por conveniência (julga-se melhor) ou por necessidade (a lei imporia a celebração do contrato x, então celebra-se o y). 35
Uma primeira forma de lidar com esta realidade é cindir o contrato em dois (teoria da separação). Mas por vezes não surgem duas metades funcionais. Se separamos algo que é unitário ficamos com dois bocados que de nada servem. À teoria da separação contrapõe-se a teoria da unidade. Procura-se o centro de gravidade. Descobrindo-o, aplica-se o regime correspondente. Por exemplo não se pode celebrar contrato de compra e venda por preço insignificante em relação a bem futuro, porque doações de bens futuros não são permitidas. Contratos fiduciários Na origem encontramos a fidutia, negócio jurídico romano pelo qual uma pessoa ficava adstrita a tomar conta de qualquer coisa, em benefício de quem a entregava. Quem recebia a coisa com fidutia, o fiduciário, era o proprietário da coisa. Poderá ser admitida no Direito português? A entrega a B uma casa enquanto tiver uma dívida, o que consubstanciaria uma entrega fiduciária como garantia. Os nossos clássicos dizem que não é permitido. Não se sabe se o negócio foi feito porque era querido ou se era simulado. M. ANDRADE e PESSOA JORGE diziam que havia tipicidade e a os fiduciários não estavam previstos na lei. Se ela tem natureza real, teremos uma figura real não prevista na lei. Um pacto comissório é uma cláusula pela qual se combina que a coisa entregue como garantia de uma dívida reverte para o credor se a dívida não for paga. Estes pactos comissórios são proibidos desde os romanos: desde logo, porque as coisas dadas em garantia valem mais do que a dívida; a fidúcia é muito violenta para o devedor. São óbices consideráveis, já que o Direito existe para proteger os fracos. O fiduciário é proprietário. Se for à falência, todos os credores podem recorrer à coisa dada em fidúcia. O fiduciante é só entre outros. No Direito português, ao contrário do alemão, não permite divisão da coisa entregue. Contrato fiduciário é aquele que tem cláusula que determina que o beneficiário não pode exercer o direito de proprietário para o seu interesse, mas para o de terceiro. Ele é permitido se não violar regras imperativas. Como se constrói a situação fiduciária? Se negócio for fiduciário há uma cláusula que limita o beneficiário. Mas o Prof. MENEZES CORDEIRO propõe que todo o negócio fique em “modo fidúcia”: fica todo orientado pela fidúcia (modus fidutiae). Ele não pode ter eficácia real sem norma expressa que o permita. Mas, se for combinada uma situação fiduciária ele tem eficácia real.Qual a diferença entre o contrato indirecto e o fiduciário? O indirecto é de execução instantânea: uma vez cumprido acaba. O fiduciário é de execução prolongada. Uniões de contratos Os contratos nunca estão isolados. O facto de estarem acompanhados altera o seu regime. Tradicionalmente distinguia-se entre união externa, interna e alternada. Na união externa os contratos distintos estavam materialmente unidos; na interna havia contratos distintos com cláusula que remetia de um para o outro; na contratação alternada valia ou um ou o outro. 36
Há uniões funcionais (é necessário juntar vários para atingir uma função); causais; de tipo processual; de tipo não processual; homogéneos e heterogéneos; dependentes e independentes. Há muita jurisprudência sobre isto. Regime Pode acontecer que a união de contratos seja operada em termos de validade: a validade de um dos contratos depende de um ou de alguns que também estejam na união. Se a primeira compra e venda de uma cadeia de compras e vendas falhar, a segunda também vai falhar (falta de legitimidade). A nulidade de um contrato em união pode conduzir à nulidade do conjunto. Um contrato remete para certas cláusulas de outro; pode ser necessário justificar todos para obter efeito útil – é a potenciação. Em uniões de contratos a interpretação deve ser feita em conjunto. Não serão contratos mistos? Muitas vezes a distinção é formal. Mas nunca é irrelevante. Quando estão formalmente separados há regras que são aplicáveis. A figura da absorção, por exemplo, rege nos contratos mistos. Se as partes formalmente recorrem a contratos diferentes, há centros de gravidade múltiplos, sendo diferente o regime. O contrato-promessa Coordenadas histórico-dogmáticas O 410º dá a sua definição. É uma convenção pela qual alguém se obriga a celebrar outro contrato. O contrato prometido e o contrato definitivo. É uma ideia relativamente recente. A situação da promessa pode parecer inútil (obrigar-se a obrigar-se). Vários ordenamentos degradaram o contrato-promessa. O Código de Napoleão dizia que a promessa de venda valia como venda. Os Autores do pandectismo entenderam que era possível construir uma figura geral. Seria uma figura da parte geral e não um tipo especial. A processualística veio admitir que se um contrato-promessa fosse válido poderia haver execução específica. A figura acabaria por aparecer no Código italiano. No Direito português tem grande importância. No domínio das Ordenações havia pouco espaço, já que a compra e venda tinha mera eficácia obrigacional: a propriedade só se transmitia quando fosse cumprido o contrato. Hodiernamente, tem eficácia real. Nas Ordenações a compra e venda tinha um papel de promessa. O Código Comercial tinha uma regra igual à napoleónica. O Código de Seabra veio consagra um regime diferente. Segundo o Código de 1867, a promessa valia apenas como prestação de facto. Admitia a figura e afirmava que os promitentes ficavam obrigados a celebrar contrato. Quando se tratasse de promessa relativa a bens imobiliários, devia ser celebrado por escrito. Era importante porque tinha implícita a ideia de que só tinha que ser celebrado por escrito, sem recorrer à escritura pública. A celebração de uma escritura pública demora tempo. A promessa por escrito era válida na hora. O contrato-promessa no sistema jurídico O Código de 1966 manteve a simplificação de forma. Importou do BGB a execução específica. Admite que produzisse efeitos em relação a terceiros. É matéria tratada em três sectores (410º e ss.; 442º, para o sinal; 830º, execução específica). 37
As funções do contrato-promessa podem ser de vários níveis: preliminar, mitigada, transacção meramente obrigacional, desformalização, regulativa autónoma. 1. Função preliminar. É a função preparatória. É usado, por vezes, para preparar o contrato definitivo. Surgem cláusulas de fraccionamento do preço, financiamento, acabamento da coisa, sobre a entrega, etc; 2. Mitigada ou mitigadora. Por vezes, as partes usam a possibilidade de não celebrar o prometido (direito de arrependimento). Pode ser usado para regulação parcial de interesses que vão ser incluídos no contrato definitivo; 3. Meramente obrigacional. Como no Direito alemão, no Direito português os contratos relativos a direitos reais transferem-se imediatamente. Mas as partes podem não querer logo: usam o contrato-promessa; 4. Desformalização. O resultado que se obtém como o contrato definitivo pode ser obtido logo com o contrato-promessa; 5. Regulativa autónoma. Pode ser um contrato que só por si já tem cláusula que permitia soluções de fundo, um modus vivendi. P. ex., o promitente adquirente pode ir viver para a casa que lhe é prometida. O contrato-promessa distingue-se da proposta; do contrato preparatório material, dos contratos instrumentais (não comportam ainda o texto definitivo); do pacto de preferência (não se sabe à partida qual o contrato definitivo; na promessa sabe-se); do pacto de opção (pessoa tem direito a fazer surgir o contrato definitivo; na promessa tem de haver negociação); do convite a contratar (A solicita a B que contrate); do exercício de preferência; do dever legal de contratar. Regime Menezes Cordeiro chama prometibilidade à susceptibilidade de um negócio jurídico ser prometido. O contrato-promessa é um contrato que prepara outro. É um formato, um modo geral de celebrar outros contratos. Não se deve dizer “celebrar um contrato-promessa”, mas “celebrar um contratopromessa de qualquer outro”. Prometibilidade é a associabilidade de um contrato a esta forma geral de contratar. É como se o contrato-promessa fosse um prefixo. Tenho de saber se uma certa palavra é ou não conjugável com aquele prefixo. A prometibilidade forte significa que certo contrato pode ser prometido e, uma vez prometido, é possível a execução específica no caso de incumprimento. A prometibilidade fraca significa que certo contrato é susceptível de ser prometido, mas o contrato-promessa não confere a possibilidade de execução específica (contrato de trabalho, p. ex.). Regra geral, os contratos são dotados de prometibilidade forte. Há excepções: ou decorrem da lei ou da natureza dos valores envolvidos. Há contratos que, tendo isso em conta, não podem ser objecto de promessa. Quanto à prometibilidade fraca, são os do 830º/1: contratos com convenção contrária ou com natureza que não permita execução específica. 38
Há três casos duvidosos no 830º/1: Contrato de doação Não existe prometibilidade na doação. Não há contrato-promessa de doação; também não há uma regra expressa que o diga. Os contratos-promessas estão pensados para negócios jurídicos onerosos e sinalagmáticos. Isso não vem na lei; até é possível haver excepções ao que se disse. Mas o espaço natural do contrato-promessa é o contrato oneroso e sinalagmático: o seu regime está mais adaptado para este tipo de contratos. O contrato de doação é um contrato com dogmática própria. É muito influenciado pelo animus donandi e à relação pessoal extra-jurídica entre o doador e o donatário (amizade, proximidade, etc.) que conduz à possibilidade de revogação, às consequências pela ingratidão, etc. É um contrato à parte, pelo seu carácter gratuito porquanto resulta de uma liberalidade do doador. Contrato-promessa e doação são dois contratos que, à partida, estão nos antípodas. O regime do contrato de doação proíbe a doação de bens futuros (942º). Se se permitisse o contrato-promessa de doação estar-se-ia a contrariar essa proibição. Acabaria por ser um artifício para contornar o 942º. O 969º permite ao doador revogar a doação enquanto a proposta não for aceite. No contrato-promessa, a proposta ainda não foi feita. Já que o promitente se pode arrepender durante a vigência do contrato-promessa, perante a regra do 969º estar-se-ia a obrigar a nada, a obrigar a algo que poderia revogar. A lei pretende que a doação seja um contrato livre até ao fim. O doador despoja-se do bem no momento em que doar. A lei exige que o doador se consciencialize de que vai despojar-se da coisa. O mesmo vale para o pretenso contrato-promessa de doação. Pode fazê-lo, mas não fica vinculado por isso a realizar a doação. Como tratar disto juridicamente? MC diz que um contrato-promessa de doação não é propriamente nulo ou inválido, mas ineficaz quanto às prestações principais. Não vincula o promitente a doar. Vincula quanto a deveres acessórios: não pode frustrar expectativas de modo contrário à boa-fé. Contrato de casamento A promessa de casamento está regulada nos 1591º e SS. Havia autores que diziam que havia um contrato-promessa, mas que tinha um regime especial. Isso não é correcto. É verdade que existe um regime jurídico, diferente do regime do contrato-promessa. Mas, tendo em conta o regime, imperativo, do 1591º e SS., não é possível qualificá-lo como contrato-promessa. Com o não cumprimento, o que está em causa não é a regulação de um contrato, mas a regulamentação de uma relação especial sociologicamente, que gerou uma situação de confiança cujo rompimento causa danos. Não se trata de um contrato-promessa. O nome é parecido, mas a situação subjacente é diferente. Negócios jurídicos reais quoad constitutionem Aqueles para cuja válida celebração é necessária a tradição da coisa. O problema é que, se eu celebrar um contrato-promessa deste contrato, e o outro não cumprir, como executo? Os clássicos diziam que não era possível; se não houve entrega da coisa, o tribunal não pode conseguir um contrato celebrado, já que a lei diz que não há contrato sem entrega. 39
Hoje em dia, existe um princípio geral desfavorável aos contratos reais quoad constitutionem. Assim, a maioria da doutrina admite contratos parecidos mas em que não seja necessária tradição, pelo que admite contratos-promessa de contratos reais quoad constitutionem. Resolve o problema da entrega da coisa a nível processual. O proprietário da coisa é solicitado pelo tribunal a entregar a coisa para que a sentença de execução possa ser eficaz. Celebração do contrato-promessa A matéria dos requisitos formais está no 410º. A matéria da forma não está sujeita ao princípio da equiparação. As regras sobre a forma estão no 410º/2 e 3. Se não se aplicam as regras relativas à forma do contrato prometido, o regime é o do 219º liberdade de forma. O “porém” do 410/2 é relativo ao 219º. Para se saber qual a forma precisamos de ver a forma do contrato prometido. Se for livre também o contrato-promessa é livre. Se para o prometido for necessário documento, autêntico ou particular, o contrato-promessa só vale se constar de documento assinado pelas partes que se vinculam (monovinculante ou bivinculante – mas qualquer deles é contrato, é preciso o acordo de ambas). O 410º/2 regula a forma. Nos monovinculantes o outro tem de ter concordado; não se precisa é de assinar. Às vezes pensa-se que basta ver o número de assinaturas para saber se o contrato é mono ou bivinculante. Mas isso é errado. Só sabemos analisando e interpretando o contrato, para ser quantos se obrigam. A questão das assinaturas é meramente formal. Na prática, o que se deveria verificar-se sempre era assinatura de ambos. Não haveria problema de prova nem dúvidas. Se o documento é a materialização do acordo, não se entende porque só um assina. Nos monovinculantes pode existir só uma assinatura. E se houver obrigação secundária a que o promitente que não se obrigou quer também vincular-se? Aplica-se a regra geral do 219º. Se há obrigação que está fora do documento ou que está no documento que não tem as duas assinaturas, aplica-se a regra geral. Estipulações acessórias são válidas, ainda que não tenham as duas assinaturas. Problema clássico é o saber o que acontece a um contrato-promessa bivinculante com apenas uma assinatura. Alguns autores pronunciaram-se pela nulidade (220º). Outros pretenderam salvar o negócio jurídico. Os contratos-promessa são negócios muito celebrados, tendo enorme relevância. Por isso, a jurisprudência e a doutrina tentam salvar o contrato-promessa bivinculante assinado apenas um, em regra o promitente alienante. Uns defendem a redução, outros a conversão. Um assento do STJ não ajudou a resolver o problema. Para o prof. MENEZES CORDEIRO em princípio, os contratos-promessas bivinculante em que há 1 assinatura podem salvar-se do ponto de vista formal por conversão. A falta de assinatura não se identifica com uma invalidade parcial. Um contrato-promessa bivinculante é muito diferente de um monovinculante. Na normalidade dos casos, a transformação do negócio em monovinculante traduz um corte em dois; o bivinculante não é a soma de dois monovinculante; quem celebra bivinculante em princípio não celebra mono. A conversão, nos termos do 293º, é a solução.
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Mas não é fundamentalista. Admite que, em certos casos, possa reduzir-se o negócio, ficando com um contrato-promessa monovinculante. Há um regime especial: contratos-promessas urbanos. O contrato-promessa urbano é aquele que cabe na previsão do 410º/3. A partir dele o legislador constitui um subsistema dentro do contrato-promessa. Nestes casos, o contrato-promessa deve conter uma formalidade: reconhecimento das assinaturas perante notário, apresentando a licença de construção ou habitação do imóvel. A omissão da formalidade apenas pode ser invocada pelo promitente adquirente ou pelo alienante quando tenha havido culpa do outro. Surgiu na década de 1980, dado o retorno dos portugueses viviam nas ex-colónias e a inflação galopante que se verificava. Havia pessoas que celebravam contratospromessas de casas ainda não construídas, que depois vinha a ser vendidas com preços mais elevados, havendo grandes atropelos ao direito. Neste momento, o regime é o da reforma de 1986. Trata-se, no 3, de invalidade mista. Qual o regime mais próximo desta invalidade? O ST emitiu dois assentos, que vieram trazer uma aproximação à anulabilidade (o tribunal não podia declarar oficiosamente e terceiros não podiam invocar). Pode ser paralisada através do abuso de direito. A regra básica no contrato-promessa é o princípio da equiparação (410º/1). Ao contrato-promessa aplicam-se as regras relativas ao contrato prometido, com excepção das relativas à forma e as disposições que, por sua razão de ser, não se devem considerar extensíveis ao contrato-promessa. Este princípio, para Menezes Cordeiro é mais uma norma metodológica do que uma norma de fundo. Redunda essencialmente numa directriz metodológica. A parte geral também tem regras. A nossa jurisprudência admite que contratospromessa cujos prometidos venham a ser celebrados pelos cônjuges possam ser celebrados por um só. MC sugere a ideia de modus contrahendo. Quando um contrato é contrato-promessa entra em “modo de promessa”. As prestações principais são as declarações negociais que darão origem ao prometido. As prestações secundárias podem ser de tipo formal ou material. Se o contrato-promessa é relativo à venda de coisa que ainda não é do promitente alienante, este deve adquiri-la, p. ex. Há, também, prestações secundárias de tipo jurídico: obter o consentimento de um terceiro que tenha direito sobre a coisa. Deveres acessórios são os resultantes da boa fé. O contrato-promessa é uma realidade jurídica própria, a se. Quando se celebra o definitivo? Na data em que as partes tiverem combinado ou, se nada disserem, o 777º diz que o credor pode em qualquer altura pedir o cumprimento e o devedor apresentarse a cumprir. Se a promessa for monovinculante, a vantagem só faz sentido se a pessoa que decidirá quando é que o contrato se cumpre tiver tempo. O 411º determina que em casos de promessa unilateral, pode-se pedir ao juiz que fixe o prazo – 412º. Havendo contrato-promessa, admite a lei que os direitos e obrigações se transmitam aos sucessores das partes. A posição do promitente é penhorável: pode ser apreendida pelo tribunal e vendida. Cumprimento e incumprimento da promessa O cumprimento é a execução da prestação. Obedece a normas: os princípios da correspondência, integralidade, concretização e boa fé. 41
O princípio da correspondência diz que o cumprimento deve corresponder ao que estiver pré-visualizado na obrigação. O princípio da integralidade diz que o cumprimento deve ser integral: o devedor adimplente deve executar a prestação por inteiro. O princípio da concretização tem vários vectores que nos dizem como a realidade prevista vai passar ao activo: regras sobre preço, local, imputação, etc. Quando haja cumprimento extingue-se a prestação principal. Se não houver, há inadimplemento. O incumprimento em sentido estrito (simplesmente não é cumprida a prestação); impossibilidade superveniente; violação positiva do contrato, que serve para cobrir o remanescente (na execução da prestação principal); violação de deveres acessórios; declaração do devedor de que não vai cumprir (possivelmente). Incumprimento stricto sensu – pode haver situação de mora (não foi executada mas ainda pode vir a ser) ou incumprimento definitivo. Se houver situação de mora, a lei prevê a interpelação admonitória. O credor dá um prazo razoável ao devedor para que cumpra, e se não cumprir passa a incumprimento definitivo. Isto é uma trapalhada, uma via crucis. MC entende que isso não pode ficar assim. O cumprimento do contrato-promessa ocorre com as declarações de vontade que incorporarão o contrato definitivo, se forem válidas e eficazes. O definitivo está previsto no contrato-promessa. Pode acontecer que o contrato-promessa não diga porque caiba a um terceiro dizê-lo (400º). Pode acontecer que seja lacunar, transmitindo-se essa lacuna para o definitivo. O 239º rege para integrar lacunas – procura-se a vontade hipotética das partes com recurso à boa fé. Se isto não for possível, aplica-se o 280º, que diz que é nulo por indeterminabilidade do objecto. Legitimidade, lugar, prazo, etc., são aferidos pelo contrato-promessa ou pelo princípio da equiparação. Incumprimento há quando, no momento em que deveria ser celebrado o definitivo, não foi. O promitente fiel é o que é prejudicado, o faltoso é o que não cumpre. Ou há mora, mantendo-se o contrato-promessa. Aparece uma prestação de indemnização (798º e ss.). Pode haver uma impossibilidade superveniente. Pode haver recusa antecipada a cumprir. No contrato-promessa há ainda hipótese de arrependimento. O incumprimento extingue a prestação principal. Haverá outra forma de extinção do contrato-promessa? Pode haver revogação, se o contrato-promessa permitir; pode haver resolução; pode haver um destrate (acordo de ambas as partes). Muitas vezes há AA. que resolvem inovar, alterando as palavras. Dizem o que os outros dizem com palavras diferentes. O sinal e o direito de retenção no contrato-promessa Sinal Esta matéria sofreu alterações. Em 1980 surgiu uma alteração ao 442º, em 1986 tentouse resolver as confusões criadas. À partida, o sinal é cláusula típica que pode ser inserida no contrato (440º e ss.). Quando é celebrado um contrato é entregue uma coisa por A a B; se for cumprido, inclui-se a coisa no cumprimento; se não for cumprido, devolve-se em dobro.
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No Direito grego antigo, o sinal tinha alcance coercivo, penal; a propriedade só se transmitia com o cumprimento do contrato de compra e venda. No Direito romano tinha um sentido confirmatório, ajudava a provar a existência do contrato. No Direito justinianeu adquire um sentido penitencial: permitia às partes que tivessem prestado sinal arrepender-se, penitenciando-se (ficando sem o sinal) – direito de recesso. Quando metido no contrato-promessa, o sinal ganha coloração particular. A versão inicial do 441º previa que se presumia que fosse sinal qualquer coisa entregue. Afastouse a possibilidade de execução específica. Era matéria supletiva: se as partes quisessem combinar diferentemente poderiam fazê-lo. Em 1980 havia grande inflação, que chegava aos 20, 30%. O imobiliário estava sempre a subir. Assim, faziam-se casas, celebrando-se contratos-promessas; recebiam-se sinais; com a inflação, os sinais deixavam de valer tanto. Os promitentes alienantes devolviam em dobro e depois vendiam a outro por muito mais. Tornava-se compensador não cumprir. O Governo resolveu intervir. As três alterações feitas foram desastrosas: Afastar o sentido penitencial do sinal. Se está em causa o contrato-promessa haverá sinal definitivo; Quando há tradição da coisa prometida, se houve incumprimento, a indemnização já não é o sinal em dobro, mas o valor actual da coisa. A ideia era: como a inflação é muito alta, se não se dá o valor da coisa o adquirente não pode ser compensado; Atribuir direito de retenção ao adquirente que recebesse a coisa. Retenção física e aquisição de posição semelhante à do credor pignoratício. Tem um direito de liquidação judicial. O retentor pode, na fase executiva, vender a coisa e recolher o preço. Se for entregue a coisa ao promitente adquirente e o alienante não cumprir, o adquirente tem um direito ao aumento do valor da coisa e tem direito de retenção (o seu direito de crédito sobre a casa passa à frente de eventuais direitos de hipotecários). O legislador obteve esse desiderato através do direito de retenção. A posição do promitente adquirente traditário fica muito reforçada (é o vinculismo de 1980). Estas medidas têm vantagens (acautelam as posições das pessoas que na altura careciam de tutela) e desvantagens (criam problemas no futuro). Pode funcionar como um incentivo a que não sejam entregues as coisas com os contratos-promessas. Os banqueiros também ficam muito fragilizados – só não fizeram barulho porque estavam nacionalizados. O que estava em causa eram casas de habitação. Tanto era que o diploma de 1980 o dizia em preâmbulo. Quando mexeu no 442º, mexeu no regime do sinal, mas não reparou que o sinal se aplica a todos os contratos-promessas, mesmo aqueles em que não se justificava intervenção deste género. Houve várias propostas para resolver a situação. A mais simples era perceber o que o legislador quis fazer: mudar o regime das casas de habitação. Enganou-se e mexeu em tudo. Assim, dever-se-ia dizer que o regime só se aplicava àquelas. A jurisprudência, no entanto, começou a resolver o problema diferentemente. O problema viria a ser resolvido em 1986. 43
O regresso a Portugal de portugueses que viviam nas ex-colónias aumentou exponencialmente o número de contratos-promessas sobre compra e venda de bens imóveis. No regime do sinal foram tomadas 3 medidas: Afastou-se a natureza penitencial do sinal; Se houvesse tradição da coisa ao promitente adquirente, a indemnização seria o valor actualizado da coisa; Se houvesse tradição da coisa surgiria um direito de retenção, a favor do promitente adquirente traditário. Baralhou-se uma série de conceitos (o que seria ultrapassável, ainda assim, pela interpretação). Houve excessos legislativos, como a indemnização pelo valor da coisa cumulando com o direito de retenção; o facto de o direito de retenção passar à frente da hipoteca, mesmo que anteriormente registada. O hipotecário ver-se-ia preterido. Medidas desse género são negativas para quem vem depois. Tudo isto dependia de um acto de graça do promitente alienante: a entrega da coisa. A maneira mais simples de evitar estas medidas seria não entregar a coisa. Quem é prejudicado é o promitente adquirente. O sistema bancário reage quando é atacado: eleva os juros; exige mais garantias; é mais selectivo. A reforma veio também afectar os espíritos: os autores ficaram muito excitados, perderam a objectividade. Tentou-se, doutrinariamente, introduzir correcções. O Prof. MC disse na altura: o que se queria era resolver os casos das casas para habitação. Assim, o regime só se aplicaria a contratos-promessas que tenham em vista prédios urbanos. Vários AA. vieram dizer que só se houvesse tradição haveria direito ao aumento do valor da coisa. Vasco da Gama Lobo Xavier veio dizer que seria preciso deduzir o preço ao valor da coisa. Fica com o valor da coisa mas paga o preço. Se houver sinal, ele é deduzido do preço. MC veio também dizer: se é pedido o valor da coisa é porque a pessoa que o pede está interessada na coisa. Assim, o promitente faltoso pode apresentar-se a cumprir o contrato-promessa, congelando o direito ao valor da coisa. É uma “excepção de cumprimento”. Em 1986 o legislador interveio novamente. Com o DL 357/86 de 11 de Novembro tentou resolver a questão. MC entende que o diploma nem deveria ter integrado o CC. Tentou-se limar algumas arestas. Ficou claro que o regime especial do sinal só se aplica a contratos-promessas. Além disso, ficou claro que o regime vinculístico só rege se houver tradição da coisa. Todavia, ficou consagrada a indemnização pelo valo, com a solução do Prof. Lobo Xavier. Ficou ainda entendido que funciona em alternativa com a execução específica. Se escolher o valor da coisa poderá o faltoso oferecer-se para cumprir o contrato-promessa. É um esquema complicado. Há outra trapalhada: como funciona o sinal no contrato-promessa? Se alguém não cumpre na altura em que deve, a primeira consequência é entrar em mora (805º). Se houver morar, não há logo incumprimento definitivo. Se houver mora, fixa-se um novo prazo. Tendo havido mora, pode o credor ter perdido o interesse na prestação, não sendo necessária a interpelação admonitória.
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Passa-se logo ao incumprimento definitivo. Havendo mora poder-se-á fazer logo funcionar o sinal? Os autores e a jurisprudência não estão de acordo. MENEZES CORDEIRO entende que havendo simples mora deve funcionar o sinal. Quando há sinal é porque as pessoas querem as coisas rápidas e simples; se há sinal, a lei diz que não há lugar a mais nenhuma indemnização. O Prof. Menezes Leitão diz que pode haver mora por esquecimento ou demora de dias. Será justo pedir o sinal nestes casos? Menezes Cordeiro diz que se se esqueceu não devia. No Direito funciona-se com prazos. O sinal visa uma função compensatória, deve ser tomado seriamente. Alguns autores dizem que, quando haja incumprimento, o que deve fazer é resolver o contrato, operando o sinal. A resolução, no entanto, destrói o contrato retroactivamente. Se resolve o contrato por incumprimento, desaparece também o sinal. A menos que, quando se fala em “resolução” estejamos a dar-lhe um sentido diferente daquele que lhe dá o Código Civil. Menezes Cordeiro fica pouco entusiasmado: não se deve multiplicar os conceitos. Neste momento, a boa doutrina diria que o sinal funciona com a simples mora; a doutrina menos boa diria que funciona mas só com resolução; a doutrina má diria que a resolução só é possível com o incumprimento. Menezes Cordeiro assinala que a sua posição doutrinária poderia ser um risco no tribunal. Assim, entende que um advogado consciencioso seguirá sempre o calvário da interpelação admonitória (808º). Tradição da coisa Tecnicamente, consiste em entregar a posse (controlo material) de uma coisa a outra pessoa. Será o traditário possuidor? Nem sempre se é possuidor quando se tem controlo material. Se for um representante, tem a posso em nome alheio: é detentor e não possuidor. A distinção é importante. Se for possuidor tem defesas possessórias. O possuidor pode tornar-se proprietário se passar um lapso de tempo e se a posse tiver determinadas características (usucapião). A jurisprudência começou por dizer que o traditário não é possuidor – o contratopromessa não é instrumento idóneo para transmitir a posse. É verdade. Mas nestes casos houve uma convenção de tradição. O contrato-promessa já é um contrato misto, porque tem uma cláusula daquelas. O que é que as partes pretenderam? 1. O alienante pretendia que o adquirente fosse lá dormir? Isso é uma gentileza. Se é esse o sentido da cláusula, não há posse; 2. Pode ser uma gentileza mais demorada. Um contrato de comodato, bem entendido. É um contrato que dá direitos muito precários. É uma posse muito elementar; 3. É celebrado contrato-promessa, pago sinal pequeno e dá-se reforço do sinal, a troco da entrega da casa. É posse semelhante à do arrendatário. Sempre que há meios processuais possessórios é porque há posse;
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4. Já está tudo pago, pelo que há entrega da coisa. Aqui temos posse em termos de propriedade. Consoante o tipo de posse, muda o regime. O sinal vinculístico e a excepção do cumprimento da promessa O regime do sinal vinculístico é excepcional. Para existir tem de haver um sinal comum mais tradição. Se houve, por maioria de razão também há sinal comum; o promitente adquirente pode preferir o regime comum – numa situação de deflação, pode ser mais interessante o sinal em dobro do que o valor da coisa. O interessado pode ainda optar pela execução específica. O 442º/3 prevê a “excepção do cumprimento”. Alguns autores ficaram furiosos com esta solução. Se há excepção do cumprimento, o contrato-promessa não foi resolvido (incumprido). Se tivesse havido incumprimento definitivo, seria impossível apresentar-se a cumprir. Se de facto houve perda do interesse, houve incumprimento. Mas isso já estava subentendido. O direito de retenção Foi introduzida a figura em 1980: tendo havido tradição da coisa, o promitente adquirente traditário tem direito de retenção: retém a coisa até que lhe paguem aquilo a que tem direito. Passa até à frente do credor pignoratício. A interpretação deve ser restritiva: o direito de retenção só funciona se, para além da tradição, houver sinal; apenas funciona para assegurar o pagamento do valor da coisa actualizado e não de qualquer outra indemnização. Execução específica Execução específica da promessa: consagração e reformas A execução específica é execução pelo tribunal, através dos seus meios. No contratopromessa ela é feita através de sentença que faz as vezes da declaração que está em falta. Estamos perante um facto. Quando se trata de acções humanas, dir-se-á que não podemos obrigar. Mas há maneira: sanções pecuniárias compulsórias (829º-A). No contrato-promessa o que está em causa é o definitivo. Assim, a maneira de restabelecer a justiça é fazê-lo aparecer. Quando estamos perante incumprimento do contrato-promessa, é muito difícil determinar a indemnização. A solução mais normal é a execução específica. Os nossos tribunais são muito restritivos na determinação de indemnização. Assim, nas universidades deve tentar-se aumentá-la, colocando no terreno, também, soluções alternativas à indemnização. A ideia de execução específica é ousada: os liberais recusá-la-ão. Foi uma ideia prussiana, que passou para o BGB e daí para a civilística italiana e portuguesa. O Código Brasileiro diz que o juiz confere carácter definitivo à promessa. Leva ao mesmo. Antunes Varela dizia que o 830º era medida revolucionária do CC de 1966. Contudo, já vinha de trás. Em 1980 o regime foi alterado. Tornou-se obrigatória a execução específica (desapareceu a “falta de disposição em contrário” do preceituado). Estamos em Direito das obrigações: aqui é demais afastar autonomia das partes. O que o legislador queria era negar a possibilidade de afastar a execução específica apenas nos contratos-promessas de prédios urbanos, mas não especificou. 46
Houve soluções doutrinárias. Mas só em 1986 se veio clarificar a lei. O 830º/1 voltou a ter a redacção original. Perante a inexecução de uma obrigação pode-se optar pela execução específica. O tribunal não emite, verdadeiramente, a declaração faltosa. No contrato-promessa o bem que está em causa é o contrato definitivo. Perante o incumprimento, é muito difícil calcular a indemnização. A matéria da execução específica foi atingida em 1980 e 1986; a inflação dos anos 1980 condicionou o esquema do contrato-promessa. O legislador tornou vinculativo o esquema da execução específica. Passou a ser obrigatório haver contrato definitivo. A intenção era acudir aos contratos-promessas relativos a prédios urbanos. Nos outros a questão não se colocava. Simplesmente, em 1980 o legislador foi desastrado. Em 1986 veio considerar – e bem – que a execução específica só não podia ser afastada nos casos dos contratos-promessas do 830º/3. Pressupostos da execução específica Forma O contrato-promessa tem de ser válido: não é possível, através da conjugação de um contrato-promessa com a execução específica, fazer aquilo que não se conseguiria com um contrato definitivo inválido. A validade tem de ser aferida também consoante o regime do definitivo. E se a promessa for indeterminada? Caberá ainda execução específica? Pode haver. Conquanto que o conteúdo seja determinável. Ou se o contrato definitivo fosse também indeterminado mas determinável no futuro. Não se deverá exigir forma equivalente à do definitivo? Uma vez que a soma do contrato-promessa com a execução específica equivale ao contrato definitivo, é lógico que se exija a mesma forma para o contrato-promessa. Contudo, o regime legal aponta em sentido contrário (410º/1). O Direito português permite que o contrato-promessa não tenha a mesma forma que o definitivo. Os riscos são compensados pela presença do tribunal. Para haver execução específica o contrato definitivo tem de ser viável, no momento em que é decretada a execução específica. Se forem necessárias autorizações não será permitida a execução, p. ex. A viabilidade jurídica do definitivo O que acontece se, depois do contrato-promessa e antes da execução específica, se tornar impossível o contrato definitivo? Não pode haver execução específica, já que a prestação se tornou impossível. Haverá consequências indemnizatórias. Mas nem sempre. Pode acontecer que A se obrigue a vender a B, mas vende a C; contudo, pode ainda readquirir antes do momento da celebração do definitivo. Aí, a mera alienação a terceiro não impossibilitou. Mora ou não-incumprimento definitivo A execução específica é para a situação de mora. Pode acontecer que o promitente fiel tenha perdido o interesse no contrato definitivo. Não valerá a pena recorrer à execução. O Prof. Menezes Cordeiro entende que nada impede a execução específica mesmo antes da mora. Se o credor tem dúvidas sobre o comportamento por parte do devedor poderá recorrer a ela. Simplesmente, as custas ficaram por sua conta. 47
Poderá haver execução de contrato-promessa resolvido? Quando há resolução o contrato-promessa destrói-se com efeitos retroactivos. Não pode haver execução de contrato que não existe. Contudo, na doutrina há quem use a expressão “resolução” num sentido diferente: pode querer dizer que se optou pelo sinal. Mas aí não cabe execução específica. Se se trata de uma resolução por impossibilidade superveniente, já não é de todo possível a execução. Se houver situação de inexistência, tão pouco. A exclusão convencional; limites Até que ponto pode ser excluída a execução por convenção das partes? A execução não é obrigatória. Todavia, o 830/1 admite a possibilidade. A cláusula de sinal ou penal afasta a execução. Mas se se disser apenas que com o incumprimento não acontece nada, está-se a renunciar antecipadamente a direitos. Não pode haver obrigações naturais fora dos casos previstos na lei. Igualmente, não se pode afastar a execução em contratos-promessas relativos a compra e venda de prédios urbanos (830/3). E se houver eficácia real? Há quem diga que não se pode afastar; MC entende que sim, sem prejuízo dos efeitos próprios do contrato-promessa com eficácia real. A lei afasta ainda a execução nos contratos-promessas que, por sua natureza, se devem considerar excluídos desse regime (830/1, in fine). O contrato real quoad constitutionem é dado como exemplo. Como não há entrega da coisa não se poderia proceder à execução. Alguns destes contratos-promessas relativos a contratos reais quoad constitutionem têm por objecto contratos precários (depósito, comodato). O comodato pode cessar a qualquer altura. Não faria sentido a execução de contrato-promessa de comodato. Já no penhor ou no mútuo faz sentido. Contudo, a sentença tem de decretar a entrega da coisa. Contratos com natureza pessoal Disse-se que num contrato desta natureza não faria sentido: as pessoas não podem ser obrigadas. No caso do mandato temos um contrato que tem um regime de muito fácil cessação. Não faria sentido a execução de um contrato que, depois, poderia ser revogado. Mas a lei admite mandato irrevogável. Aí já faz sentido. No caso do contrato de trabalho, o Código do Trabalho diz que não pode haver execução. Mas, mesmo que houvesse, não se iria muito longe (despedimento, demissão). Quando nem sequer há prometibilidade (doação, p. ex.) também não pode haver execução. Concretização da execução específica A alteração das circunstâncias A execução específica não é automática. Tem de haver ponderação de interesses. Em 1980 inclui-se a alteração das circunstâncias. É um instrumento que permite alterar obrigação quando se alterem as circunstâncias em que ela nasceu. Quando seja celebrado um contrato-promessa, pode acontecer que, entre o momento da sua celebração e a do definitivo, se verifique uma alteração das circunstâncias. Nessa altura, o que fazer? Poderá funcionar o instituto? Sim, mas como enxertar numa execução específica uma alteração de circunstâncias? A execução só pode ser requerida quando haja mora. A reforma de 1980 veio admitir que o juiz procedesse à adaptação em face da alteração das circunstâncias. 48
Depósito do preço A sentença é translativa. Promove logo a transmissão da propriedade. Se o preço não for pago há injustiça. A outra parte pode não ter sido paga, ficando privada do preço. A excepção de não cumprimento permite que uma das partes se recuse a cumprir enquanto a outra não cumpre. É possível (830/5) que se recorra a esta figura, pedindo ao juiz que ordene o depósito do preço. E se for o promitente alienante a promover a execução (situação não propriamente visada com a reforma, já que a conjuntura era de inflação)? Há uma lacuna. O Prof. MC propõe a integração através da bilateralidade da regra. O juiz ordena o depósito do preço ao proponente da acção. Se o mandatário sem representação não contratar quando devia, alguns entendem que cabe execução específica; outros recusam essa solução. MC diz que o 830 se aplica a todos os casos em que haja dever de contratar; não é norma de excepção. O que está em causa é que o dever seja cumprido. Eficácia real do contrato-promessa (413º) Origem e consagração A figura veio por iniciativa do Prof. Vaz Serra, que a foi buscar ao Direito alemão. Aí o contrato de compra e venda não tem efeito de translação da propriedade. O vendedor fica obrigado a transmitir a propriedade. A propriedade transfere-se através da inscrição no registo. Pode ser celebrado um contrato de compra e venda e o vendedor não regista a venda, vendendo a terceiro. Quem notificar primeiro é quem fica com a coisa. Assim, a lei alemã permite um pré-registo. Ora, a ideia era consagrar no Direito português algo semelhante. Através da eficácia real conseguir-se-ia. Requisitos Tem de estar em causa um bem imóvel ou móvel sujeito a registo. É necessário um contrato de promessa de alienação ou oneração; escritura pública; convenção expressa de atribuição de eficácia real; registo da promessa. Deixou de se exigir a escritura, reforçando-se o registo. Menezes Cordeiro entende hoje que o registo é constitutivo. Não há promessa com eficácia real se não houver registo. O que significa a eficácia real? Há 5 teorias. Temos um contrato-promessa que tem eficácia real. Se não for cumprido, qual a solução? Normalmente, execução específica. Se não for cumprido porque foi alienado o bem a terceiro, há várias construções: É preciso mover execução específica contra o promitente faltoso e contra o terceiro. Esta orientação não procede: o negócio jurídico com o terceiro pode ser válido. O promitente faltoso poderá readquirir o bem; Há execução específica, mas contra o terceiro (Dias Marques). Mas como pode ser? Não há contrato-promessa entre o terceiro e o promitente fiel. Dias Marques diz que a coisa é que está em causa; Menezes Leitão diz que só se resolve com acção ad hoc contra todos. Menezes Cordeiro diz que é preciso é uma reivindicação contra o terceiro. 49
A natureza do contrato-promessa A primazia da promessa Perguntar pela natureza do contrato-promessa é colocar o tema das suas relações com o contrato definitivo. Nos extremos, encontram-se duas soluções antagónicas: A auto-regulamentação das partes surge, apenas, com o contrato definitivo; a promessa não representaria mais do que uma operação preparatória; Esse mesmo papel assiste à promessa a qual, uma vez concluída, esgota a liberdade das partes: o definitivo seria, tão-só, um acto de execução do que já estaria combinado. A primeira opção explicativa leva, no fundo, à negação da própria promessa, como contrato autónoma; a segunda orientação extremista desvaloriza o contrato definitivo. Será possível tentar um equilíbrio entre ambos os contratos? O prof. MENEZES CORDEIRO defende o efectivo apagamento do contrato definitivo. Ao celebrar o contrato-promessa, as partes obrigam-se, de facto, a contratar. Mas não se trata de uma obrigação genérica: elas adstringem-se a celebrar um determinado contrato. O definitivo nada traz de novo: os dados foram lançados na promessa. O Direito positivo parece adoptar esse ponto de vista, quando firma o princípio da equiparação (410º/1). Justamente por, na promessa, as partes regularem, em definitivo, o que esteja em causa, haverá que lhe aplicar o regime previsto para o contrato prometido. Desta primazia dogmática do contrato-promessa, em relação ao definitivo, resulta a necessidade de intensificar o princípio da equiparação, delimitando, em função dele, a celebração das promessas. A autonomia dogmática e significativo-ideológica do definitivo A primazia do contrato-promessa não deve, no entanto, levar ao apagamento do definitivo. O contrato definitivo é sentido como um contrato a se. Mau grado a primazia reguladora da promessa, o contrato definitivo não perde em categoria; continua a ser um verdadeiro contrato, ainda que devido e pré-regulamentado, pelo menos em parte. A natureza da execução específica A primeira nota é a da sua facultatividade. A lei proíbe, por vezes, a renúncia prévia à execução específica mas nunca a impõe. De seguida, a execução específica não é puramente executiva, pois não há nenhum título rigoroso que ela se limite a levar ao terreno; tão-pouco é declarativa, uma vez que dela nada sai de preexistente. Constitutiva faz todo o sentido: está na base do estádio subsequente da regulação entre as partes.
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O pacto de preferência Noção O pacto de preferência consiste na convenção pela qual alguém assume a obrigação de dar preferência a outrem na venda de determinada coisa – 414º. Diz-se, em Direito, que há preferência ou que alguém está obrigado a dar preferência quando um sujeito (o obrigado), caso queira celebrar um determinado negócio (o contrato preferível), o deva fazer com certa pessoa (o beneficiário ou preferente), desde que esta queira acompanhar as condições do negócio em causa (caso prefira) e isso em detrimento do terceiro (o preferido), com o qual o negócio fora ajustado. Por exemplo: o obrigado, caso queira vender um prédio a alguém, por χ, deve vendê-lo, antes, ao preferente, pelo preço em causa, caso este queira. As preferências no sistema jurídico No Código Civil, o pacto de preferência surge nos artigos 414º a 423º. O mesmo prevê os seguintes direitos legais de preferência:
A favor do arrendatário, pelo artigo 1535º (1901º); A favor do senhorio (1112º/4); A favor de proprietários contíguos (1379º/2, 1380º e 1381º); A favor do comproprietário (1409º e 1410º); A favor do senhorio directo e do enfiteuta (1507º, 1519º e 1523º); A favor do fundeiro (1535º); A favor do proprietário onerado com uma servidão legal de passagem (1555º); A favor do co-herdeiro (2130º); A favor da pessoa designada em testamento (2235º).
O direito de preferência, quando convencionalmente estabelecido, tem, essencialmente, uma de duas opções: A de contrato preparatório: querendo celebrar um contrato e não tendo ainda acordado sobre o seu conteúdo, as partes podem pactuar uma preferência – a haver contrato, ele será concluído preferencialmente com um dos intervenientes; A de pacto de recuperação: alguém aliena uma coisa ou um direito mas quer reservar-se a possibilidade de vir, um dia, a recuperá-lo – a preferência convencional será um instrumento útil, nesse sentido. Em regra, o pacto de preferência articula-se como uma cláusula no seio de um contrato mais vasto. De resto, isso explicará porque se usa “pacto” de preferência e não “contrato” de preferência. Há aqui uma circunstância relevante: a função do pacto de preferência irá depender da geografia global do contrato em que ele se inclua. Da mesma forma, a sua interpretação e a sua aplicação devem ocorrer a essa luz. O pacto de preferência tem uma estrutura típica não-sinalagmática. Temos uma parte – o preferente – que recebe uma vantagem apreciável, enquanto a outra fica obrigada à comunicação para efeitos de preferência, perdendo a plena disposição do seu bem. 51
Cabe distingui-lo de figuras onde se verifiquem estruturações desse tipo. Temos: A promessa monovinculante (unilateral) – tal como na preferência, apenas uma das partes fica obrigada; todavia, na promessa sabe-se que o contrato definitivo irá ocorrer entre as partes. Na preferência o contrato definitivo é uma incógnita; A opção – figura inominada e atípica, ela traduz o direito potestativo de uma das partes fazer surgir certo contrato definitivo, uma vez que a outra emite logo a declaração final; A venda a retro – uma das partes dispõe do direito potestativo de resolver o contrato (927º). Modalidades; a interpenetração de regimes O universo das preferências é dominado pela contraposição entre as preferências obrigacionais e as reais ou com eficácia real. Nesses termos: A preferência obrigacional dá lugar a um simples direito de crédito, a cargo do preferente: o de exigir que o obrigado lhe dê preferência na conclusão de um negócio que venha a acordar com um terceiro; a preferência real confere, ao preferente, um aproveitamento da coisa que se traduz em poder exigir que um negócio acordado com terceiro seja preferencialmente concluído com ele; A preferência obrigacional, quando violada, permite ao preferente exigir, ao obrigado faltoso, uma indemnização; a preferência real faculta-lhe fazer seu o negócio faltoso, através de uma acção de preferência (1410º/1); A preferência obrigacional dá azo a um direito de crédito; a real, na opinião dominante, a um direito real de aquisição. Uma segunda contraposição separa as preferências convencionais e legais. Assim: A preferência convencional provém de um pacto de preferência livremente concluído entre as partes, nos termos do 414º; a preferência legal advém da lei; A preferência convencional segue o escopo eleito pelas partes; a preferência legal alinha-se pela teleologia própria das normas que a estabeleçam. As preferências legais são sempre reais: os preceitos que as estabelecem remetem para o artigo 1410º/1, relativo à acção da preferência. As preferências convencionais são ora obrigacionais, ora reais, consoante a opção das partes e isso desde que, nesta última hipótese, sejam, ainda e por elas, observadas determinadas formalidades. O regime do pacto de preferência Pode-se distinguir entre preferibilidade fraca ou do primeiro grau e preferibilidade forte ou de segundo grau. Na primeira, é admissível o pacto de preferência mas não a acção de preferência – queda uma indemnização, não podendo o preferente fazer seu o negócio. Na segunda, violado o pacto, tem cabimento recorrer à acção de preferência. 52
Forma O artigo 415º manda aplicar, ao pacto de preferência, o artigo 410º/2. E isso redundaria do seguinte: O pacto de preferência beneficiaria, de acordo com as regras gerais (219º), de liberdade de forma; Porém, quando o contrato preferível exija documento, quer autêntico quer particular, a respectiva preferência teria de ser feita por escrito; Tal escrito deverá ser assinado pela parte que se vincula ou por ambas, se o pacto for bivinculante (bilateral). Num pacto de preferência comum, apenas uma das partes fica vinculada: o obrigado à preferência. Bastaria a assinatura deste. Todavia, é pouco compaginável uma preferência ad nutum: ou há uma contraprestação (o prémio da preferência), a pagar pelo preferente ao obrigado ou a preferência se inclui, como cláusula num pacto mais vasto, de onde promanam deveres para ambas as partes. Bastará a assinatura do obrigado à preferência, a menos que ambas as partes se vinculem. E sendo este o caso, mas faltando uma assinatura? O negócio é nulo, podendo, porém ser encarada a hipótese da sua redução ou conversão. O Código Civil não regulou o regime intrínseco do pacto de preferência: o artigo 415º reporta-se à forma. Propõe-se a aplicação, à preferência, do princípio da equiparação, próprio do contrato-promessa; daí resulta a aplicação, ao pacto de preferência, das regras aplicáveis à capacidade, à conformidade legal e aos demais requisitos atinentes ao objecto (280º), próprias do contrato preferível. O modus praelationis; o terceiro O pacto de preferência origina uma relação complexa e duradoura entre as partes. Ao lado da prestação principal – a de dar preferência – e das prestações secundarias, como a de fazer a competente comunicação, deve-se lidar com os deveres acessórios. Ao especial relacionamento que se estabelece entre o preferente e o obrigado à preferência e à particular coloração que, a essa luz, recebem os deveres, os ónus e os encargos envolvidos, chama-se o modo de preferência ou modus praelationis. Pergunta-se se o terceiro que, eventualmente, pretenda contratar com o obrigado à preferência, desencadeando o funcionamento do pacto, é afectado de algum modo, por ele. Tendo conhecimento do pacto de preferência, o terceiro deve-se abster de contratar, de forma a prevenir o incumprimento do mesmo? A resposta, perante o Direito vigente, deve ser dada à luz da doutrina geral da eficácia externa. Com uma prevenção: numa situação de preferência, por definição, o facto de se contratar com o terceiro e não com o preferente não tem, em regra, a ver com a concorrência: as condições são as mesmas. Os procedimentos da preferência O direito de preferência mostra as suas potencialidades quando o obrigado à preferência obtenha uma proposta firme, por parte de um terceiro. 53
Na posse dessa proposta, o obrigado à preferência deve comunicá-la ao preferente. É o que dispõe o artigo 416º/1. Ficam claros dois requisitos: a proposta de negócio e a intenção do obrigado à preferência de celebrar, com base nela, o contrato. A comunicação deve ser feita pelo obrigado à preferência ou por alguém que, com poderes bastantes, o represente; esta deve ser feita ao preferente. Havendo vários preferentes, a comunicação para preferência deve ser feita a todos. O projecto de negócio existente deve ser comunicado nos seguintes termos: A proposta com o clausulado completo ou, pelo menos, com todos os elementos essenciais que relevem para a formação da vontade de preferir ou não preferir; Identificando a pessoa do terceiro interessado nessa qualidade Pedindo uma resposta; Chegando a comunicação ao conhecimento efectivo do preferente. A comunicação não está sujeito, por lei expressa, a nenhuma forma: e assim já se entendeu que podia ser mesmo verbal. Tratando-se de uma comunicação relativa a um contrato definitivo para que a lei exija documento, quer autêntico, quer particular, exige-se forma escrita, por aplicação do 410º/2. Finalmente, a comunicação deve ser feita quando exista uma proposta contratual eficaz e enquanto tal eficácia se mantiver ou, pelo menos, na presença de um projecto de contrato firme e sério. A não se verificarem tais requisitos, uma de duas: Ou o preferente prefere, convicto de que, se não o fizer, o terceiro ficará com o negócio; e estará enganado, já que o terceiro não celebraria tal contrato; Ou o preferente rejeita, deixando o negócio para o terceiro que, afinal, não o quer, ficando o contrato por celebrar. A resposta do preferente; o contrato definitivo Recebida a comunicação para preferência, o preferente deve agir perante o artigo 416º/2. Pode-se apresentar o seguinte quadro das possíveis atitudes do preferente: Ou exerce a preferência, o que significa a aceitação pura e simples do contrato; Ou renuncia à preferência, declarando que não está interessado; Ou nada faz e o seu direito extingue-se por caducidade. A renúncia antecipada não é válida (809º/1); na mesma linha, o prazo para a caducidade prevista no 416º/2 começa a correr perante uma comunicação completa e legitimamente feita e endereçada. A “aceitação” da comunicação para preferência, com alterações, modificações ou reticencias, envolve, de pleno direito, a renúncia, por parte do preferente, ao seu direito. Havendo aceitação da comunicação de preferência, perfila-se o contrato definitivo, isto é, o contrato visualizado pelo pacto de preferência e que, por opção do beneficiário, se vem mesmo a concluir na esfera deste. 54
Venda da coisa conjuntamente com outras O artigo 417º/1 prevê a hipótese de venda da coisa juntamente com outras. O nº2 tem uma precisão muito importante: a regra aplica-se mesmo quando o direito do preferente considerado tenha eficácia real. A sequência será a seguinte: o obrigado à preferência faz a comunicação da venda da coisa conjuntamente com outras; recebida a comunicação, o preferente pode exercer o seu direito em relação à coisa, pelo preço que proporcionalmente lhe caiba; caso entenda que a separação lhe traz um prejuízo considerável, o que terá que provar, pode o obrigado à preferência exigir que a preferência abranja todo o conjunto. Prestação acessória; união de contratos e contratos mistos O obrigado à preferência pode, no âmbito do negócio que pretenda celebrar com o terceiro, acordar uma prestação acessória que o preferente não possa satisfazer (418º/1, 1ª parte). Observar-se-á, então, o seguinte: A prestação deve ser compensada em dinheiro; Não sendo avaliável em dinheiro, é excluída da preferência; A menos que seja “lícito presumir” que a venda seria efectuada mesmo sem a prestação estipulada ou que foi convencionada para afastar a preferência. Uma venda de coisas em conjunto tanto pode traduzir uma união de contratos como um único contrato relativo a várias coisas: não há, no nosso Direito da compra e venda, nenhum princípio de especialidade. De todo o modo, o contrato será seguramente único, quando se reporte a uma universalidade. As valorações subjacentes ao artigo 417º, apontam, antes para outras coordenadas: O contrato (ou a união) que inclua a matéria preferível é, ou não, divisível? E não sendo divisível, pode, ou não, o preferente satisfazê-lo? A primeira tanto abrange as uniões de contratos como os contratos mistos; dependendo das circunstâncias, podem umas e outros ser desagregados, sem prejuízo para o interessado. o regime legal é simples: sendo o negócio divisível, procede-se à desarticulação e ao exercício da preferência na parcela respectiva; não o sendo, o preferente desiste ou prefere em conjunto. A segunda valoração tem a ver com a fungibilidade do negócio projectado. Não o sendo, a lei permite: Ou a conversão da parte não-fungível em dinheiro; Ou o afastamento da preferência quando isso não seja possível; Ou o afastamento da parte não-fungível quando não seja essencial. Pluralidade de preferentes O artigo 419º soluciona as hipóteses de pluralidade de titulares do direito de preferência. Existem três possibilidades básicas, que abrem sempre na indivisibilidade dos direitos – ou cada um exerceria a sua parte. 55
Preferências conjuntas – só podem ser exercidas por todos os preferentes, em bloco e o obrigado só perante todos eles se exonera (419º/1, 1ª parte). Preferências disjuntas – só um deles pode exercer o direito, afastando, com isso, os restantes: não havendo processo de escolha, abre-se licitação, revertendo o excesso para o obrigado (419º/2). Preferências sucessivas – existe uma ordem de prevalência entre os preferentes. Em termos de comunicação: ela deve ser feita, sempre, a todos os preferentes, só depois se abrindo o processo de escolha entre eles. E na mesma linha: não pode um preferente exercer validamente o seu direito se não mostrar que todos os outros foram avisados e que não quiseram ou ao puderam preferir. A preferência com eficácia real O artigo 421º/1 permite os pactos de preferência com eficácia real. Havendo eficácia real, a preferência produz efeitos perante os terceiros adquirentes da coisa em jogo, através de uma acção a tanto destinada: a acção de preferência. É esse o sentido da remissão para o artigo 1410º, feito no artigo 410º/2. A acção de preferência permite ao preferente, em caso de violação de uma preferência real, fazer seu o negócio faltoso, isto é: afastar o terceiro adquirente e ingressar na posição dele. Segundo o artigo 1410º/1, a acção de preferência deve ser intentada no prazo de seis meses a contar da data em que o preferente teve conhecimento dos “elementos essenciais da alienação”. Não basta o conhecimento genérico de que houve uma transmissão: o preferente tem de ter acesso ao objecto do contrato, ao preço e à identidade do requerente. A natureza da preferência Na preferência obrigacional existe uma relação complexa que se estabelece entre o preferente e o obrigado a dar preferência e nos termos da qual este deve: Abster-se de contratar com terceiros, sem seguir o procedimento da preferência; Comunicar ao preferente o projecto de contrato a que chegue com um terceiro; Concluir o contrato em causa, nas condições fixadas, com o preferente, desde que este as acompanhe. A prestação principal é, seguramente, esta última: trata-se de um facere jurídico. Verificados os pressupostos, o preferente recebe o direito potestativo de preferir: tal direito potestativo é o passo final de um procedimento complexo que compõe o conteúdo da preferência. A preferência real implica uma afectação de uma coisa corpórea real, em termos de aquisição. Entre o seu titular e o proprietário da coisa onerada estabelecem-se as relações jurídicas (reais), moldadas sobre a relação obrigacional de preferência. 56
O pacto de opção Aspectos gerais e regime da opção O pacto de opção é o contrato pelo qual uma das partes (o beneficiário, o titular ou o optante) recebe o direito de, mediante uma simples declaração de vontade dirigida à outra parte (o vinculado ou o adstrito à opção), fazer surgir um contrato combinado entre ambas: o contrato definitivo. A opção não se confunde: Com o contrato-promessa – este exige, no cumprimento, declarações de ambas as partes, tendentes à conformação do contrato definitivo; na opção basta a declaração do beneficiário; Com o contrato-promessa monovinculante (unilateral) – há, aqui, um verdadeiro contrato-promessa, que exigirá, na execução, a celebração, por ambas as partes, do definitivo, o qual, todavia, só deverá ter lugar se uma das partes quiser; ora, na opção, embora uma das partes tenha o poder unilateral de fazer surgir o definitivo, esta não depende da intervenção da parte vinculada. A optabilidade e o preço da opção À imagem da promessa, pode-se introduzir o conceito de “optabilidade”, isto é: a susceptibilidade que os contratos tenham de poder ser objecto de pactos de opção. Aplicam-se aqui, directamente ou por analogia, as regras sobre a prometibilidade em sentido forte: o que não é prometível não é opcionável. Não é possível a opção relativamente aos contratos que excluam a execução específica ou que exijam, na conclusão, operações que transcendam a mera declaração unilateral do optante. Regime O regime do pacto de opção é enformado pelo princípio da equiparação: ele segue o regime do contrato definitivo, excepto no que tanja ao cumprimento deste. A opção, por mera declaração unilateral, dá azo ao contrato definitivo. Logo, só será válida e eficaz se, perante o concreto contrato definitivo em causa, ela reunir os diversos requisitos prefigurados no mesmo. Quanto à forma aplica-se a forma do definitivo; Quanto aos pressupostos funcionam o do definitivo; Quanto à execução, a opção cessa, passando a integrar o definitivo. A opção tem uma especialidade: visa justamente promover a circulação no mercado, da posição de contratante e do valor que ela representa. Direito e deveres, execução e incumprimento No que toca ao optante, ele recebe o direito potestativo de, por uma simples manifestação da sua vontade, provocar o aparecimento do contrato definitivo. Haverá que aplicar, por analogia, o artigo 411º: o vinculado pede, ao tribunal, que fixe um prazo razoável para o seu exercício.
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O optante deve satisfazer clausulas acessórias a que esteja sujeito, com relevo para o pagamento do preço da opção; ele fica inserido numa teia de deveres acessórios (762º/2) que, entre outros aspectos, o obrigam a não complicar a posição do adstrito à opção. O adstrito à opção fica imerso numa situação de sujeição. Como princípio geral, há que lhe aplicar, directamente, o artigo 762º/2 e, por analogia, o artigo 272º: na pendência da opção, ele deve agir segundo os ditames da boa fé, de modo a não comprometer a integridade da posição da contraparte. A execução do pacto centra-se na comunicação de opção: uma declaração recipienda (224º), dirigida pelo optante ao adstrito com um conteúdo simples de exercício do direito: opto. Qual a forma dessa declaração? a regra será a seguinte: a declaração de opção deve seguir a forma legalmente prescrita para o contrato definitivo a que se reporte, por via dos artigo 295º e 221º/2. Actuada a opção, surge o contrato definitivo, o qual deve ser cumprido. Assim, a parte compradora deverá pagar o preço e a vendedora entregar a coisa, quando se trate de opção relativa à compra e venda (879º). Funções, natureza e aplicações Celebrando uma opção, as partes congelam as condições da venda. O risco desaparece, designadamente para a parte optante, que exercerá o seu direito se o entender. O optante irá exercer (ou não) o seu direito conforme a mais-valia que lhe confira o aparecimento, no memento escolhido, do definitivo. O pacto de opção permite ao optante adiar o negócio definitivo enquanto se coloca em posição financeira de o cumprir. Ainda o mesmo optante pode colocar, no mercado, a sua opção, dando-a em garantia ou alienando-a. O obrigado, por seu turno, pode facturar o premio da opção, antecipando o preço que irá obter com a venda da coisa. No plano do seu conteúdo, o pacto de opção dá corpo a uma relação obrigacional complexa sem prestações principais: esta são substituídas pela dupla direito potestativo/sujeição, a cargo, respectivamente, do optante e do adstrito. Ambas as partes ficam ,todavia, envolvidas na teia das prestações secundárias e dos deveres acessórios. O contrato a favor de terceiro Noção Pelo contrato a favor de terceiro, uma das partes (o promitente) assume, perante a outra (promissário), uma obrigação de prestar a uma pessoa estranha ao negócio (o terceiro), a qual adquire um direito à prestação. A figura do contrato a favor de terceiro entra em conflito com o princípio da relatividade das obrigações: manda a lógica que os contratos apenas produzam efeitos entre as próprias partes. Dogmática geral: relações básicas e de atribuição; a prometibilidade a terceiro Celebrado um contrato a favor de terceiros, surgem duas relações jurídicas: uma relação básica ou de cobertura entre o promitente e o promissário, partes no contrato; e uma relação de atribuição entre o promitente e o terceiro.
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A relação básica estabelece:
As posições relativas do promitente e do promissário; As prestações que, porventura, devam ser trocadas entre os mesmos; O regime concreto de tais prestações; A prestação que o promitente deva fazer ao terceiro.
A relação de atribuição fixa: O direito do terceiro à prestação; Quaisquer condicionalismos que a rodeiem. O terceiro adquire o direito à prestação, independentemente de ter dado o seu acordo (444º/1). O que se pode “prometer” a uma parte pode prometer-se a favor de terceiro: apenas isso. Tal permite excluir, deste cerne, contratos como o casamento ou a doação. Regime A posição do promissário O promissário é a pessoa perante a qual o promitente assume a obrigação de prestar ao terceiro. O promissário tem as pretensões seguintes: A de exigir, de forma geral, do promitente, a efectivação da promessa ao terceiro, excepto se outra tiver sido a vontade dos contraentes (444º/2); A de exigir, especificamente, do promitente, a exoneração do promissário de uma dívida perante o terceiro, quando esse seja o conteúdo da promessa; nessa altura, apenas o promissário poderá exigir o cumprimento da promessa; A de exigir, ao promitente, as prestações ou outras vantagens que, porventura, lhe possam advir da relação básica (405º); A de dispõe do direito à prestação ao terceiro ou de autorizar a sua modificação (446º/1, a contrario e 448º/1, 1ª parte). A posição do promitente; a prestação principal O promitente tem, fundamentalmente, o dever de prestar ao terceiro beneficiário: ele assume, pelo contrário, a obrigação de efectuar a correspondente prestação (443º/1). Essa adstrição pode-lhe ser exigida pelo próprio terceiro (444º/1) e pelo promissário, se outra não tiver sido a vontade dos contraentes (444º/2). O promitente fica adstrito à realização da prestação principal, perante o terceiro, por exigência deste e do promissário. Esta figura levante dúvidas pois o terceiro não é parte. A posição do terceiro O terceiro adquire, pelo contrato a seu favor, imediatamente, o direito à prestação: independentemente da aceitação. 59
Perante um contrato a favor de terceiro, o beneficiário pode rejeitar ou aderir à promessa (447º/1) ou, ainda, nada fazer. Pode-se, ao abrigo das regras gerais (217º), admitir que as competentes “declarações” ocorram tacitamente e, em especial: pela rejeição ou pela aceitação da própria prestação. A rejeição extingue o direito do terceiro à prestação. A adesão tem as consequências seguintes: Torna a promessa irrevogável (448º/1, a contrario); Torna a promessa firme (446º/1, a contrario e fortiori). O terceiro adquire o direito à prestação independentemente de “aceitação” (444º/1) e, logo, de adesão. Esta apenas consolida um contrato que, por não ter sido celebrado com o terceiro é, antes dela, instável. O papel dos deveres acessórios Num contrato a favor de terceiro, há um equilíbrio especial: exigido pelo facto de o beneficiário não ser parte no contrato. Desde modo, pode-se apontar várias fragilidades: O promitente, quando se desempenhe perante o terceiro, não tem, sobre si, a fiscalização da contraparte; pode ser menos diligente ou até, no limite, falsificar a conduta a que se encontra adstrito; O promissário, por não ser o destinatário da prestação acordada, pode desinteressar-se dela ou, pelo menos: pode não dispor dos elementos necessários para se assegurar da sua integridade; O terceiro, não sendo parte do contrato, desconhece os precisos termos envolvidos, ficando em inferioridade no momento do cumprimento. A fraqueza estrutural do contrato a favor de terceiro deve ser ultrapassada através de uma adequada teia de deveres acessórios, através da regra da boa fé (762º/2). As duas partes e o próprio terceiro ficam envolvidos em deveres de segurança, de lealdade e de informação, de maneira que seja retirado um máximo de eficácia do negócio acordado. O contrato para pessoa a nomear Configuração geral Contrato para pessoa a nomear é aquele cujos termos permitem que uma das partes tenha o direito de designar um terceiro que encabece os direitos e as obrigações dele derivados. Num primeiro tempo, o contrato é concluído entre duas partes: uma dela pode, porém, indicar um terceiro que irá ocupar o seu lugar. Na linguagem desde subsector, usa-se a seguinte terminologia:
Promitens ou promitente: a parte firme; Stipulans ou estipulante: a parte que pode nomear um terceiro; Amicus: o terceiro; Eligendus: o terceiro, antes de ter ocorrido a sua nomeação; Electio ou electio amici: a escolha; Electus ou amicus electus: o terceiro nomeado que passa a parte definitiva. 60
Regime, efeitos e natureza A cláusula para a pessoa a nomear consta, em princípio, do próprio contrato que a contenha. Nem todos os contratos têm semelhante cláusula – o artigo 425º/2 exclui: Os casos em que não é admitida a representação; Aqueles em que a determinação dos contraentes é indispensável. A determinação dos contraentes obedece a vários critérios. Podem-se apontar: Negócios intuitu personae em que as qualidades pessoais da contraparte são essenciais para os mesmos; Negócios em que os valores subjacentes impliquem a imediata indicação do contraente em jogo. Concluído o contrato para pessoa a nomear, inicia-se um procedimento que poderá culminar na colocação do amicus na posição de stipulans. Engendra-se a seguinte sequência: conclusão do contrato, concordância do amicus e electio. Embora a lei não o diga, a concordância do amicus é necessária pelas regras gerais do Direito privado e pelo artigo 453º/2 (ninguém poderá encabeçar um contrato que não queira), que manda a nomeação seja acompanhada do instrumento de ratificação do contrato ou de procuração anterior à celebração do próprio contrato: ambas exigem a concordância em causa. Quanto à designação ou electio: ela deverá ser feita por escrito, ao outro contraente, no prazo convencionado ou dentro dos cinco dias posteriores à conclusão do contrato. A ratificação deve constar de documento escrito (454º/1) ou de documento de força probatório equivalente à do contrato, quando superior (454º/2). Feita regularmente e comunicada a designação, a pessoa nomeada adquire os direitos e assume as obrigações provenientes do contrato concluído a partir da celebração (455º/1). A electio tem, pois, eficácia retroactiva, tal como sucede com a ratificação (262º/2). Se a declaração de nomeação não for feita nos termos legais, o negócio consolida-se na esfera do stipulans; produz efeitos em relação ao contraente originário. Só assim não sucederá se houver estipulação em contrário (455º/2), altura em que o contrato ficará sem efeito. O contrato para pessoa a nomear configura-se como categoria contratual típica e autónoma. Ele implica, num todo coerente, a cláusula “pessoa a nomear”, a electio com os seus requisitos e as alternativas: ou o amicus electus, ou o stipulans ou a ineficácia do conjunto. As fontes paracontratuais Ao longo da História, foram surgindo figuras que, não reunindo as características perfeitas do contrato, dele se aproximavam, seja em termos técnicos, seja em moldes sócio culturais. Como tratá-las? Com o tempo, essas figuras foram precisadas e autonomizadas noutras tantas fontes. 61
É proposto o termo “fontes paracontratuais” e “paracontratualidade” para designar a constituição de obrigações através de formas que não podem, em termos rigorosos, ser reconduzidas ao contrato mas que, com ele, mantenham uma proximidade suficiente para que se lhe aplique, pelo menos, uma parte razoável do seu regime. Os três grandes grupos de casos problemáticos que merecem o epíteto “paracontratuais” são: Situações de contacto social; Situações de proximidade contratual; Situações de relações jurídicas complexas. Procurando acompanhar estes três grandes grupos apontados, isolam-se: As relações contratuais de facto; Os contratos com protecção de terceiros; As relações contratuais sem contrato. As relações contratuais de facto Em termos dogmáticos, a manifestação mais imediata de uma possível paracontratualidade residiria na obtenção de relações de tipo contratual sem que, na sua origem, tivesse ocorrido qualquer contrato. A ideia básica desta doutrina repousa no seguinte: seria possível a constituição de relações jurídicas de tipo contratual, através de meros comportamentos materiais, independentemente de declarações negociais e sem correspondência nos deveres legais tradicionais. As relações contratuais de facto poderse-iam formar em três situações: Contactos sociais que se estabelecem entre pessoas que colaboram, no espaço jurídico, para certos fins, sem integrar previsões contratuais; Inserção em organizações comunitárias; execução de relações duradouras, quando os instrumentos negociais constitutivos sejam nulos ou ineficazes e na de serviços de necessidade vital, postos à disposição dos utentes ainda antes de concluído o competente contrato. Sublinha-se que, no tráfego moderno de massas, chega-se, muitas vezes, a situações obrigacionais sem que tenha havido a troca prévia da proposta e aceitação contratuais. Teria de se admitir uma relação de tipo contratual, derivada do facto simples de um contacto social. Surgindo, depois, o contrato, esta relação fundir-se-ia nele. Relações paracontratuais em especial 1. A culpa in contrahendo Aquando da preparação de um eventual contrato, seja nos preliminares, seja na formação, as partes devem proceder segundo as regras da boa fé (227º/1). Este instituto obriga as partes a acatar deveres de segurança, de lealdade e de informação. Existem dois círculos de protecção: O círculo exterior ao concreto contrato em jogo e que respeita à integridade física e psíquica e à integridade patrimonial das pessoas envolvidas; 62
O círculo interior, que se reporta aos bens postos em jogo, pelas partes, no contrato considerado. Também está claro e assente que, nas protecções dispensadas, se jogam os princípios da tutela da confiança e da primazia da materialidade subjacente: ambas concretizações da boa fé, que veicula os valores fundamentais do sistema. A relação pré-contratual resulta do mero início das negociações, independentemente de qualquer especial vontade. A “fonte”, no sentido de facto jurídico que desencadeia o surgimento da relação pré-contratual, é o proprio facto (stricto sensu) “negociações” ou “contactos negociais”. 2. Insubsistência do contrato Um segundo campo da paracontratualidade manifesta-se quando, por qualquer razão, falte ou venha a faltar o dever de prestar principal. Várias situações são configuráveis:
O contrato é nulo; O contrato é anulado; Há impossibilidade inicial da prestação; Surge uma impossibilidade superveniente; O contrato é resolvido, revogado ou denunciado.
Havendo proximidade, surge uma situação valorativamente semelhante à que ocorre, mercê dos contratos preliminares. De novo há um círculo exterior, que respeita à integridade pessoal e patrimonial das pessoas envolvidas e que, por estar vulnerabilizada, o Direito manda proteger; e existe, igualmente, o círculo interior, relativo aos bens que a exposição contratual torna mais frágeis: também eles tutelados. Em termos analíticos, as situações apontadas correspondem a relações obrigacionais sem dever de prestar principal. Elas subsistem na base de deveres acessórios apoiados na boa fé. Com as devidas adaptações, a situação é similar à da culpa in contrahendo: mercê de uma aparência contratual ou do simples facto de se ter configurado um contrato, ainda que insubsistente, as partes colocam-se numa situação de proximidade que faz surgir a tutela. 3. Protecção de terceiros A protecção de terceiros surge quando um contrato, para além de dispensar prestações principais a quem neles seja parte, promane deveres acessórios (de segurança, de lealdade e de informação) não apenas para as próprias partes mas, ainda, para terceiros. Com uma consequência aparentemente impensável: a de estes poderem, no caso de violação, lançar mão de pretensões contratuais contra as partes no contrato. Em termos gerais, pode-se considerar que a protecção de terceiros surge quando, em face de um contrato: Alguém que, nele, não seja parte, tenha uma proximidade visível, perante a prestação principal e em face do credor; O terceiro tenha uma confiança legítima no bom desenrolar dessa prestação. 63
Tecnicamente, o terceiro vem a ser envolvido pelos deveres acessórios dimanados do contrato: de segurança, de lealdade e de informação. No que se lhe reporta, tais deveres não têm origem contratual, uma vez que ele não é partes. Antes de fundam na lei, operando o contrato, perante eles, como um simples facto stricto sensu. Mas têm moldagem contratual, dando origem, quando violados, a responsabilidade obrigacional. 4. Culpa post pactum finitum Verifica-se uma projecção simétrica da culpa in contrahendo: depois de extinta a relação obrigacional e tendo, nesse sentido nuclear, cessado o contrato, ainda se poderiam manter determinados deveres, para as partes. São os deveres pós-eficazes, podendo, o inerente instituto, ser globalmente denominado culpa post factum finitum. 5. Respondência pela confiança Os deveres originados pela confiança apoiam-se, em termos jurídico-positivos, no sistema e na boa fé mas colocam situações problemáticas que em nenhuma delas se pode apontar um contrato firme e claro, que explique os deveres resultantes. Os negócios unilaterais A tipicidade histórica Na linguagem consagrada, diz-se negócio unilateral a fonte das obrigações que se traduz numa única manifestação de vontade. Em rigor, “negócio” engloba, aqui, o proprio acto unilateral (457º-463º). O negócio unilateral implica que alguém, por sua livre e exclusiva vontade, fique adstrito a realizar uma prestação. O artigo 457º proclama, aparentemente, uma regra de tipicidade; mas noutros locais, o Código Civil veio aceitar uma tal variedade de conteúdos para os negócios unilaterais (maxime, a proposta contratual) que tal tipicidade resultaria aparente. Há duas grandes razões para propugnar a tipicidade dos negócios unilaterais: O princípio do contrato; Os perigos da adstrição ad nutum. As obrigações só surgiriam com a aceitação de uma proposta, de tal modo que a própria doação teria natureza contratual. Há uma petição de princípios: o negócio unilateral não singra porque não é um contrato; e só o contrato pode singrar porque são necessárias duas declarações de vontade. O segundo argumento surge mais consistente: há que ter um especial cuidado com o tema da renúncia antecipada aos direitos: mostram a realidade de que as pessoas dão, com facilidade, o que (ainda) não têm e subscreverem, com ligeireza, obrigações que (só) irão pensar depois. De facto, admitir uma livre adstringibilidade unilateral equivale a uma assunção, ad nutum, de obrigações futuras. Uma verdadeira tipicidade implica: Uma descrição pormenorizada dos tipos relevantes; Um numerus clausus de realidades relevantes; A proibição de, por analogia, aplicar, fora de série, as normas típicas. 64
Mantém-se, pois, a afirmação, já antiga, de que, no Direito português, a tipicidade dos negócios unilaterais, proclamada no artigo 457º, é aparente. Quanto muito, pode-se admitir tipos abertos, isto é, configurações lassas às quais seja possível reconduzir numerosos subtipos. A tipicidade dos actos unilaterais dirige-se àqueles que impliquem prestações principais. Dogmática geral O negócio unilateral, com a promessa pública como modelo, distingue-se de algumas figuras próximas ou afins. Assim:
Da proposta de contrato; Da oferta ao público (230º/3); Do anúncio público (225º); Do testamento; De contratos com apenas uma assinatura.
Os negócios unilaterais distinguem-se, ainda, dos numerosos actos unilaterais que ocorrem no âmbito dos Direitos Reais: desde o apossamento ao abandono, passando pela tradição de uma coisa, pela incorporação própria da acessão ou pela edificação. No âmbito da dogmatização geral dos negócios unilaterais, importa aludir que eles estão na base de relações obrigacionais complexas. No que tange ao autor do acto, cabe salientar a confiança que, para além da concreta eficácia suscitada, a sua declaração poderá originar no espaço sócio-jurídico; numa segunda vertente, deve sublinhar-se, igualmente por via da boa fé, a primazia da materialidade subjacente que, também aqui, deve imperar. Deve-se ter também em conta os terceiros que, sobretudo quando interessados, podem ser envolvidos pelos deveres acessórios em jogo. Negócios unilaterais em especial 1. Promessa de cumprimento e reconhecimento de dívida Sabe-se, pelo princípio da causalidade, que qualquer obrigação só vale se for acompanhada pela sua fonte; de resto, a assim não ser e dado que a obrigação é um vínculo sem existência física, nem se perceberia o regime e o alcance da realidade em jogo. Diz o artigo 458º/1: havendo uma declaração unilateral de existência de uma dívida, sem indicação da sua fonte, fica o credor dispensado de a exibir. A regra não origina nenhuma obrigação nova. Ele limita-se a permitir que se prometa uma “prestação”, comum ou pecuniária (“reconhecer uma dívida), devidas, anteriormente, por força de qualquer outra fonte. O único papel do preceito é: Dispensar o beneficiário de indicar a verdadeira fonte da obrigação em jogo; Fonte essa cuja existência se presume, até prova em contrário (pelo devedor). Em bom rigor, existe aqui, ainda, um negócio unilateral: só que com uma mera eficácia declarativa, limitada à inversão do ónus da prova. A nossa jurisprudência tem entendido que a promessa de pagamento e o reconhecimento de dívida são “negócios causais”: apenas invertem o ónus da prova, quanto à existência de adequada fonte das mesmas. 65
2. Promessa pública O artigo 459º ocupa-se da promessa pública. Segundo o nº 1 dessa norma: “aquele que, por anúncio público, prometer uma prestação a quem se encontre em determinada situação ou pratique certo facto positivo ou negativo, fica vinculado desde logo à promessa”. A situação distingue-se, muito claramente, da oferta ao público (230º/3): nesta, o destinatário apenas adquire o direito potestativo de, pela aceitação, constituir o contrato, só nessa altura se constituindo, propriamente obrigado; naquela, o beneficiário adquire imediatamente o direito à prestação, ficando, desde logo, o promitente adstrito à sua efectivação. O público, aqui, deriva, apenas, da indeterminação do destinatário. Feita a promessa, o promitente fica obrigado: Até que, surgindo alguém nas condições nela previstas, ele extinga, pelo cumprimento, a sua obrigação;
Até que expire o prazo nela fixado (460º); Até que a sua natureza ou o sem fim ditem a sua extinção (460º); Até que, não tendo prazo, seja revogada (461º/1); Até que, tendo prazo, seja revogada, antes dele, por justa causa (461º/1, in fine).
A justa causa será, aqui, um motivo atendível, objectiva ou subjectivamente, que torne a promessa inexigível, perante os valores fundamentais do sistema (a boa fé). pode, ainda, acontecer que várias pessoas hajam colaborado na promessa do resultado previsto no concurso: a prestação deverá ser equitativamente repartida, atendendo-se à parte que cada uma delas tenha tido na produção do resultado (462º). 3. Concurso público O artigo 463º, relativo a concursos púbicos, constitui uma especial modalidade de promessa pública. Como particularidade: a atribuição da prestação opera a favor de quem vença um concurso, a título de prémio. A lei fixa regras muito simples: A oferta da prestação pelo concurso só é válida se fixar um prazo para a apresentação dos concorrentes (463º/1): de outra forma, o concurso ficaria indefinidamente aberto, podendo surgir mais concorrentes sem nada se decidir; A decisão de admissão ao concurso ou de concessão de prémio compete, exclusivamente, às pessoas designadas no anúncio (o “júri) ou, na sua falta, ao promitente (463º/2): trata-se de uma decisão livre.
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