LEANDRO CARAZZAI SABOIA
DA IMPOSSIBILIDADE DE RESPONSABILIZAÇÃO PENAL DA PESSOA JURÍDICA NO DIREITO BRASILEIRO Monografia apresentada como requisito parcial à obtenção do grau de Bacharel em Direito, Curso de Graduação em Direito, Núcleo de Ciências Humanas e Sociais Aplicadas, do Centro Universitário Positivo. Prof. Ms. Pedro Luciano Evangelista Ferreira
Curitiba 2006
À minha mãe, pelo apoio e esforço incessáveis para a minha formação. formação. À Marielle, mulher dedicada, de valor inestimável, que a bondade divina pôs na minha vida. Ao Enzo, filho querido que representa a minha maior realização.
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AGRADECIMENTOS
Não poderia deixar de lembrar de quem, no início da graduação, despertou em mim o interesse pelo direito penal, seja pela clareza de suas aulas, seja pela magnitude de seu conhecimento, que me inspiraram a estudar essa matéria com mais apego que às demais. Por isso, e por toda a dedicação e amizade demonstradas, meus sinceros agradecimentos ao professor Fábio André Guaragni, sentindo-me sentindo-me lisonjeado por por ter sido seu aluno. aluno. Da mesma forma, sou imensamente grato a todos aqueles que, de alguma forma, contribuíram para a minha formação acadêmica, acendendo ainda mais a chama que me tornou um apaixonado pelo direito penal. Assim, agradeço aos professores Alessandro Silvério, Bianca de Freitas Mazur, Haroldo César Nater, Rogério Etzel e Érica Hartmann, pela forma inspirada com que ministraram suas aulas, pelas acaloradas discussões acadêmicas, pelas inúmeras indicações bibliográficas e conselhos e, principalmente, pelas conversas amigas. E quero agradecer, em especial, a quem acreditou e confiou em mim em todos os momentos; a quem, seja no Grupo de Estudos de Direito Penal ou durante o período de orientação da monografia, esteve sempre presente, incentivando e me fazendo acreditar que todo o esforço valeria a pena, como valeu. Ao professor Pedro Luciano Evangelista Ferreira, com quem desenvolvi sincera amizade, muito obrigado por tudo.
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A história não estuda apenas os fatos materiais e as instituições: seu verdadeiro objeto de estudo é a alma humana. Fustel de Coulanges
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SUMÁRIO
RESUMO.....................................................................................................................vii 1 INTRODUÇÃO..........................................................................................................1 2 PRINCIPAIS SISTEMAS DE RESPONSABILIZAÇÃO PENAL DA PESSOA JURÍDICA..................................................................................................................4 2.1 O SISTEMA INGLÊS...............................................................................................4 2.2 O SISTEMA FRANCÊS...........................................................................................5 3 TEORIAS ACERCA DA NATUREZA JURÍDICA DO ENTE COLETIVO ......8 3.1 TEORIA DA FICÇÃO (SAVIGNY)........................................................................8 3.2 TEORIA DA REALIDADE (GIERKE)...................................................................9 3.3 POSIÇÃO ATUAL DA DOUTRINA.....................................................................10 4 CONCEITOS DE DELITO E CONDUTA E SUAS IMPLICAÇÕES NA RESPONSABILIZAÇÃO PENAL DA PESSOA JURÍDICA...........................12 4.1 CONCEITO DE DELITO PARA O DIREITO PENAL BRASILEIRO................14 4.2 CONCEITO DE CONDUTA PARA O DIREITO PENAL BRASILEIRO...........15 4.3 IMPOSSIBILIDADE DE OCORRER DELITO SEM CONDUTA.......................16 4.4 DIFERENCIAÇÃO ENTRE CONDUTA, AÇÃO, ATO E FATO........................16 4.5 RELAÇÃO ENTRE CONDUTA E VONTADE....................................................17 4.6 LOCALIZAÇÃO DO RESULTADO E DO NEXO CAUSAL..............................17 4.7 CONCLUSÃO LÓGICA: IMPOSSIBILIDADE DA PESSOA JURÍDICA DELINQÜIR.........................................................................................................18 5 A CONSTITUIÇÃO FEDERAL E A RESPONSABILIDADE PENAL DA PESSOA JURÍDICA..............................................................................................20 5.1 INTERPRETAÇÃO DO ART. 173, § 5º, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL ......20 5.2 INTERPRETAÇÃO DO ART. 225, § 3º, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL.......21 6 A LEGISLAÇÃO INFRA-CONSTITUCIONAL..................................................23 6.1 A LEI DOS CRIMES AMBIENTARIS (LEI N.º 9.605/98)...................................24 7 ASPECTOS PROCESSUAIS DA RESPONSABILIZAÇÃO PENAL DA PESSOA JURÍDICA..............................................................................................29 8 RESPONSABILIDADE DA PESSOA JURÍDICA: OFENSA A PRINCÍPIOS BÁSICOS DO DIREITO PENAL..........................................................................32 8.1 PRINCÍPIO DA IGUALDADE..............................................................................32 8.2 PRINCÍPIO DA LEGALIDADE............................................................................33 8.3 PRINCÍPIO DA HUMANIZAÇÃO DAS SANÇÕES (OU DA HUMANIDADE DAS PENAS).........................................................................................................35 8.4 PRINCÍPIO DA PERSONALIDADE DA PENA..................................................36 8.5 PRINCÍPIO DA CULPABILIDADE......................................................................37 8.6 PRINCÍPIO DA PUNIBILIDADE.........................................................................38 8.7 PRINCÍPIO DA INTERVENÇÃO MÍNIMA.........................................................42 9 TEORIAS DA AÇÃO E SUA RELAÇÃO COM A RESPONSABILIZAÇÃO DA PESSOA JURÍDICA........................................................................................45 9.1 TEORIA CAUSAL.................................................................................................46 9.2 TEORIA FINAL......................................................................................................48 v
9.3 TEORIA SOCIAL...................................................................................................51 9.4 A OPÇÃO DO LEGISLADOR PÁTRIO PELA TEORIA FINALISTA: CONSAGRAÇÃO DA IMPOSSIBILIDADE DE RESPONSABILIZAÇÃO PENAL DO ENTE COLETIVO...........................................................................52 10 ARGUMENTOS FAVORÁVEIS À RESPONSABILIZAÇÃO PENAL DA PESSOA JURÍDICA E SUA CRÍTICA ...........................................................................................54
11 CONSIDERAÇÕES FINAIS.................................................................................56 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS......................................................................61
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RESUMO
A responsabilidade penal da pessoa jurídica, tema que incitou grande polêmica, sobretudo após o advento da Lei n.º 9.605/98, é o tema do presente estudo. Nas páginas seguintes serão demonstrados os argumentos contrários e favoráveis à responsabilização penal do ente coletivo, levando em consideração a sua natureza jurídica e atentando às teorias do crime e da conduta, aos empecilhos processuais de acordo com a legislação pátria e, principalmente, aos princípios norteadores do sistema jurídico-penal brasileiro. Tais considerações, ao final, levarão à conclusão lógica da impossibilidade de responsabilização do ente coletivo dentro da sistemática brasileira atual. Palavras-chave: responsabilidade penal; pessoa jurídica; impossibilidade.
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1 INTRODUÇÃO A questão da possibilidade ou não de responsabilização penal da pessoa jurídica, sobretudo com o advento da Lei n.º 9.605/98, a chamada Lei dos crimes ambientais, se tornou um dos mais polêmicos temas do direito penal brasileiro na atualidade. De um lado, remontando à obra de FEUERBACH e SAVIGNY, estão aqueles que, fundados no princípio societas delinquere non potest (as sociedades não podem delinqüir), pregam o descabimento da responsabilidade penal da chamada pessoa moral , fundados principalmente na ausência de capacidade natural de ação e na carência de capacidade de culpabilidade. 1 De outro, os defensores da responsabilização penal do ente coletivo afirmam que este é “uma personalidade real, dotada de vontade própria, com capacidade de agir e de praticar ilícitos penais”.2 Em nosso ordenamento jurídico, a problemática da responsabilização penal do ente coletivo ganhou destaque com a Constituição de 1988, quando o constituinte previu a necessidade de instituir a responsabilidade da pessoa jurídica (e dos seus dirigentes) por atos contra a ordem econômica e financeira e contra a economia popular (art. 173, § 5.º)3 e por condutas e atividades lesivas ao meio ambiente (art. 225, § 3.º),4 dando fôlego às discussões entre ambientalistas e constitucionalistas, de um lado, e penalistas de outro.5 Posteriormente, a Lei n.º 9.605/98 instituiu a responsabilidade administrativa, civil e penal da pessoa jurídica em infrações contra o meio ambiente – o que causou grande desconforto entre os penalistas e, até hoje, gera discussões acaloradas quanto à sua constitucionalidade.
1
BITENCOURT, C.R. Manual de direito penal. v. 1. 7. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2002. p. 164. 2 PRADO, LR. Curso de direito penal brasileiro: parte geral. v. 1. 5. ed. rev. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005. p. 280. 3
“A lei, sem prejuízo da responsabilidade individual dos dirigentes da pessoa jurídica, estabelecerá a
responsabilidade desta, sujeitando-a às punições compatíveis com sua natureza, nos atos praticados contra a ordem econômica e financeira e contra a economia popular.” 4 “As condutas e atividades consideradas lesivas ao meio ambiente sujeitarão os infratores, pessoas
físicas ou jurídicas, a sanções penais e administrativas, independentemente da obrigação de reparar os danos causados.” 5
SANTOS, J.C. dos. A responsabilidade penal da pessoa jurídica. Disponível em Acesso em: 27/08/2006. p. 1.
2
Neste trabalho, pretende-se demonstrar que os argumentos trazidos pelos defensores da responsabilização penal do ente coletivo não se aplicam ao Brasil, ao menos enquanto não houver uma reformulação do sistema jurídico-penal que traga normas específicas e restritas nesse sentido. Afinal, tendo o legislador pátrio optado pela teoria finalista da ação e construído todo o sistema penal sobre a égide da responsabilidade subjetiva, resta evidente que, para viabilizar a pretendida aplicação da responsabilidade objetiva é necessária, quando não uma reforma total do sistema, ao menos a provisão de normas específicas para este fim. Nesse sentido, deve-se ressaltar a lição de Luiz REGIS PRADO: “A responsabilidade penal subjetiva se encontra presente na legislação
pátria desde o advento do Código Criminal do Império de 1830 (arts. 2.º, § 1.º, e 3.º), até o diploma em vigor que estabelece expressamente não haver 6 delito sem dolo ou culpa (arts. 18 e 19, CP).”
Assim, neste estudo será demonstrada a necessidade de, de uma vez por todas, afastar a possibilidade de responsabilização penal da pessoa jurídica no Brasil, de modo a fazer com que respondam, na esfera penal, tão somente os sócios ou dirigentes responsáveis pela prática delituosa, enquanto ao ente moral caberão sanções administrativas e civis. Para tanto, serão apresentados os principais sistemas de responsabilização penal da pessoa jurídica, demonstrando as razões pelas quais estes não podem ser aplicados na realidade brasileira, fazendo, ainda, a análise das teorias que pretendem definir a natureza jurídica da pessoa moral, observando que a realidade brasileira impede a responsabilização penal do ente coletivo. Adiante, será analisada a teoria do crime e os conceitos de delito e conduta, os quais demonstrarão que, não havendo delito sem conduta, é impossível à pessoa jurídica figurar como sujeito ativo de um crime. Será demonstrado, ainda, de que forma a interpretação equivocada de dois dispositivos constitucionais acabou por confundir o legislador, o que acarretou na edição da Lei n.º 9.605/98, a Lei dos Crimes Ambientais, que, a partir de um 6
PRADO, L.R. Curso de direito... p. 284.
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dispositivo de constitucionalidade duvidosa, atribuiu expressamente a responsabilidade penal à pessoa jurídica. Por outro lado, ainda que não seja este o foco principal do presente trabalho, serão demonstrados aspectos relativos ao processo penal que, quando não inviabilizam, obstaculizam de forma marcante o procedimento quando se atribui à pessoa jurídica a prática de um crime. Na seqüência, a partir de análise principiológica, ficará demonstrado que a imputação penal do ente coletivo afronta, diretamente, ao menos sete princípios basilares, orientadores não apenas do direito penal, mas de todo o sistema jurídico pátrio. Será ainda demonstrado que, com fundamento nas teorias da ação e, especialmente, levando em consideração o fato de que o sistema brasileiro é fundado na teoria finalista, torna-se impossível à pessoa moral realizar conduta, o que se prestará a justificar a sua incapacidade de delinqüir. Finalmente, serão refutados, com base em todos os aspectos abordados no presente estudo, os argumentos trazidos pela corrente que prega a responsabilização penal da pessoa jurídica no Brasil, corrente esta que, frise-se, é formulada principalmente por constitucionalistas e ambientalistas, sendo veementemente refutada pelos estudiosos do direito penal.
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2 PRINCIPAIS SISTEMAS DE RESPONSABILIZAÇÃO PENAL DA PESSOA JURÍDICA A responsabilização penal da pessoa jurídica, sobretudo nos crimes contra a ordem econômica e o meio ambiente, vem sendo adotada sem maiores traumas nos países que seguem o sistema da common law, como é o caso dos Estados Unidos da América, Inglaterra, Canadá, Nova Zelândia e Austrália. Por outro lado, alguns países da chamada família romano-germânica vêm adequando seus sistemas, de modo a contemplar a responsabilidade penal do ente coletivo. É o que ocorre, por exemplo, na França, Venezuela e Colômbia.7 Não cabe, neste estudo, analisar de forma detalhada todos os sistemas que pretendem abarcar, de alguma forma, a possibilidade de responsabilização penal da pessoa moral. Entretanto, não se pode deixar de analisar os dois principais sistemas nesse sentido, quais sejam, o sistema inglês (commom law) e o sistema francês (da família romano-germânica). 2.1 O SISTEMA INGLÊS Para o sistema inglês e em geral dos países do common law – de direito jurisprudencial – vigora o princípio do societas delinquere potest , de estrutura totalmente diferente dos países pertencentes ao sistema romano-germânico. Dentro dessa concepção, a pessoa jurídica pode delinqüir, sendo responsabilizada por toda e qualquer infração penal que possa realizar. Nesse sistema, a idéia de responsabilidade penal da pessoa jurídica nasceu no século XIX, através da jurisprudência. De acordo com REGIS PRADO,8 inicialmente as decisões dos tribunais só aceitavam exceções ao princípio da irresponsabilidade para delitos omissivos culposos e comissivos dolosos; após, por meio do Interpretation Act (1889),
7
FREITAS, V.P. de. e FREITAS, G.P. de. Crimes contra a natureza: (de acordo com a Lei 9.605/98). 7. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001. p. 66. 8 PRADO, L.R. Curso de direito... p. 292.
5
ocorreu o reconhecimento da responsabilidade penal da pessoa jurídica e, a partir de 1940, ampliou-se para os crimes de qualquer natureza. O sistema inglês afirma que é indispensável, para que a pessoa jurídica seja imputada pela prática de um fato punível, a ação ou omissão do ser humano. Sendo assim, apóia-se na teoria da identificação, a qual é originária da jurisprudência cível, alcançando a jurisprudência penal em 1944. Segundo REGIS PRADO: “O juiz ou tribunal deve procurar ide ntificar a pessoa que ‘não seja um
empregado ou agente, cuja sociedade seja responsável pelo fato em decorrência de uma relação hierárquica, mas qualquer um que a torne responsável porque o ato incriminado é o próprio ato da sociedade’. Tem se, portanto, q ue a pessoa natural ‘não fala, não atua para a sociedade; ela atua enquanto sociedade e a vontade que dirige suas ações é a vontade da própria sociedade’. Ela é personificação do ente coletivo; sua vontade é a vontade dele.”9
Dentro dessa concepção, a culpa de pessoas físicas pode ser imputada à pessoa jurídica, havendo uma identificação entre as pessoas. Nas palavras de REGIS PRADO, essa “modalidade
de responsabilidade, fruto de uma mentalidade prática, é
aplicada por razões de política social, nas hipóteses em que o interesse coletivo aparece em segundo plano.”10 2.2 O SISTEMA FRANCÊS No sistema francês entrou em vigor o princípio da responsabilidade penal da pessoa jurídica, o chamado societas delinquere potest , no Código Penal de 1994. Tal princípio já era consagrado em momentos anteriores – Código Penal de 1978 e de 1983. No Código Penal de 1810, por ter sido concebido em um cenário revolucionário, a regra era a adoção do princípio do societas delinquere non potest . Mas a atual posição é da responsabilidade penal da pessoa jurídica, obedecendo ao passar do tempo e à evolução. Tal posição é considerada “ decorrente
de uma mentalidade
jurídica peculiar – racionalista – que medeia entre correntes pragmáticas (anglo9
PRADO, L.R. Curso de direito... p. 293. Idem, p. 294.
10
6
americana) e conceptualista (germano-ítalo-hispânica).”11 Assim, no sistema jurídico penal francês não houve o mesmo grau de desenvolvimento obtido em outros países continentais. Na França, diferentemente do que ocorre na Alemanha, na Espanha e no Brasil, o princípio da culpabilidade não possui valor constitucional. “O legislador francês preocupou-se com o binômio utilidade-justiça, no
ensejo de aumentar a eficácia da repressão penal. Aludia-se a razões de ordem prática e ao fato de que seu reconhecimento apresentava ‘certa urgência para restabelecer a eficácia e coerência do Direito Penal’.”12
Fala-se ainda, no ordenamento francês, em uma responsabilidade pessoal e não individual. Na análise de REGIS PRADO,13 com o Código Penal de 1992, em vigor desde 1994, a matéria da responsabilidade penal da pessoa jurídica é disciplinada de forma expressa, atenta, ampla, cumulativa, especial e condicional. É imprescindível a previsão legal da responsabilidade penal da pessoa jurídica – princípio da especialidade – , sendo este um reforço ao princípio da legalidade. Como leciona supramencionado autor: “Trata-se da teoria da responsabilidade penal por ricochete, de empréstimo,
subseqüente ou por procuração, que é explicada através do mecanismo denominado emprunt de criminalité, feito à pessoa física pela pessoa jurídica, e que tem como suporte obrigatório a intervenção humana.”14
Para explicar o ricochete, REGIS PRADO diz que: “no Direito Penal holandês vigora a teoria da responsabilidade funcional,
de origem jurisprudencial: atribui-se a ação delituosa de uma pessoa física a uma pessoa jurídica quando a conduta real da primeira corresponda à execução de uma função determinada pela segunda na empresa. Não se trata de uma qualidade direta da pessoa jurídica. É preciso constatar responsabilidades individuais junto às pessoas físicas, para em seguida as atribuir à pessoa jurídica. No que toca ao elemento subjetivo, o dolo
11
PRADO, L.R. Curso de direito... p. 295. Idem, ibidem. 13 Idem, p. 296. 14 Idem, p. 299. 12
7
presente na pessoa física, ainda que subalterna, pode ser imputado à pessoa jurídica para a qual ela trabalha.”15
Com a explicação verificamos que a responsabilidade penal da pessoa jurídica é considerada subsidiária à responsabilidade penal da pessoa física. Seja como for, cabe ainda o seguinte esclarecimento, apontado de forma perspicaz por REGIS PRADO: “ Por fim, cumpre precisar que, embora a responsabilidade penal da pessoa
jurídica seja uma realidade de Direito positivo, a doutrina permanece em grande parte reticente quanto ao seu fundamento jurídico, aplicabilidade e eficácia – sobretudo num sistema que se encontra ancorado no princípio da personalidade das penas, em termos constitucionais, e em sintonia com o nullum crimen sine culpa. Para estes últimos aspectos, só o futuro poderá dar a verdadeira resposta.”16
15
PRADO, L.R. Curso de direito... p. 299. Idem, p. 301.
16
8
3 TEORIAS ACERCA DA NATUREZA JURÍDICA DO ENTE COLETIVO 3.1 TEORIA DA FICÇÃO (SAVIGNY) Segundo a teoria elaborada por SAVIGNY, as pessoas jurídicas têm existência fictícia, irreal ou de pura abstração. Nesse passo, incapazes de delinqüir porque não têm capacidade de ação – ao menos para os fins do direito penal. Por ser o ente coletivo um ser abstrato, que não possui as características do homem natural (liberdade, inteligência, sensibilidade), não pode ser penalmente imputável. Sérgio Salomão SHECAIRA afirma que, na concepção da teoria da ficção, o ente coletivo poderia ser equiparado a um menor impúbere, que exerce seu direito sempre através de um tutor. Sendo assim, a pessoa jurídica não passaria de uma criação artificial, uma ficção jurídica. Nesse escopo, ao legislador cabe apenas limitar a capacidade dessas pessoas ao que for indispensável para o alcance dos fins pretendidos quando foram criadas.17 Esse é o argumento da teoria elaborada por SAVIGNY, para quem “a
realidade de sua existência se funda sobre as decisões de certo número de representantes que, em virtude de uma ficção, são consideradas como suas ”.18 Esse tipo de decisão, que exclui a vontade propriamente dita, somente pode surtir efeitos no âmbito civil, mas nunca no âmbito penal, pois, como entendem os defensores da teoria da ficção, “os
delitos que podem ser imputados à pessoa jurídica são praticados
sempre por seus membros ou diretores”.19 Isso se dá por uma razão bastante simples: o direito penal se ocupa do homem natural, dotado de sensibilidade, a qual não está presente na pessoa jurídica, que se reveste de capacidade tão somente de acordo com a vontade do legislador, mas não possui caráter, característica esta exclusiva do ser humano.
17
SHECAIRA, Sérgio Salomão. Responsabilidade penal da pessoa jurídica. 2. ed. atual. e ampl. São Paulo: Método, 2003. p. 101. 18 PRADO, L.R. Curso de direito... p. 280. 19 Idem, ibidem.
9
Pouco importa, portanto, que a ação delituosa tenha se revertido em benefício da pessoa jurídica, pois, se esta é desprovida de caráter e sensibilidade, não pode sentir os efeitos benéficos ou maléficos da ação de seus dirigentes, senão eles próprios. A vantagem teoricamente obtida pela pessoa jurídica reverter-se-á, em última análise, sempre aos sócios e dirigentes. 3.2 TEORIA DA REALIDADE (GIERKE) Com posicionamento diretamente oposto ao da teoria da ficção, os defensores da teoria da realidade objetiva, também conhecida como teoria orgânica ou da vontade real, entendem que a qualidade de pessoa deve ser atribuída não apenas ao homem, mas a qualquer ente dotado de existência real. 20 Nessa teoria se apóiam os defensores da imputação penal da pessoa jurídica, afirmando que a existência da pessoa moral é independente da dos membros que a compõem, razão pela qual tem personalidade real, dotada de vontade própria e, conseqüentemente, capaz de praticar ilícitos civis e penais. A teoria realista, defendida principalmente por Otto GIERKE, considera o ente corporativo como uma realidade social, sujeito de direitos e deveres e capaz, portanto, de delinqüir, estando a sua vontade equiparada à das pessoas naturais. Afirmam os defensores dessa teoria que, à exceção de determinadas relações que, por sua natureza, são incompatíveis com as pessoas jurídicas, no restante sua capacidade é plenamente equivalente à do homem. Alguns chegam mesmo a grotescas comparações, como a apontada por SHECAIRA ao apresentar essa teoria: “ela tem capacidade de querer e de agir, o que faz por meio de seus órgãos, da
mesma forma que o ser humano comanda com sua cabeça seus membros para executar suas ações”.
21
Não chega a ser uma surpresa o fato de que a teoria da realidade tenha sofrido tantas críticas, pois, em que pese a possibilidade de se afirmar que a pessoa 20
SHECAIRA, S.S. Responsabilidade penal... p. 102. Idem, ibidem.
21
10
jurídica não é ficção, comparar a sua existência e as suas ações às do homem é, no mínimo, um equívoco. Nem por outra razão é que a quase totalidade dos autores que defendem a adoção da teoria realista são civilistas, tais como Vicente RÁO, Clóvis BEVILÁQUA, Washington de BARROS MONTEIRO, Silvio RODRIGUES, entre outros. Os poucos criminalistas que se ocupam de defender a responsabilização penal da pessoa jurídica adotam os mesmos argumentos dos civilistas, aplicando conceitos do direito privado à esfera penal. 3.3 POSIÇÃO ATUAL DA DOUTRINA Vige atualmente na doutrina o entendimento de que as pessoas jurídicas não são mera ficção, mas também não podem ser equiparadas às pessoas físicas, pois têm uma realidade própria e distinta. REGIS PRADO ensina que: “há, ainda, quem considere a pessoa jurídica como uma realid ade análoga, isto é, ‘(…) uma realidade permanente, individual, completa, incomunicável
fonte de atividade consciente e livre, realidade distinta. Realiza todas as características da personalidade, menos uma: a substancialidade. Ao contrário da pessoa humana, realidade substancial, a pessoa moral é 22 realidade acidental’ .”
Como se vê, mesmo considerando que as pessoas jurídicas não sejam mera ficção, ainda assim não se pode equipará-las ao ser humano enquanto realidade jurídica, por lhe faltar “substância” essencial do homem. “A vontade da pessoa jurídica não pode tampouco, por mais que seja considerada ‘real’, ser equiparada à vontade da ação, do homem particular.
A ausência de capacidade jurídico-penal de conduta da pessoa coletiva deriva tanto de sua natureza quanto de sua essência.” 23
22
_____ Responsabilidade penal da pessoa jurídica: fundamentos e implicações. In: PRADO, L.R. Responsabilidade penal da pessoa jurídica: em defesa do princípio da imputação penal subjetiva. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001. p. 103. 23 Idem, p. 104.
11
Como se demonstrará adiante, não há delito sem conduta e, se não pode a pessoa jurídica realizar conduta, por não possuir consciência e vontade vont ade (características essas exclusivas do ser humano), não pode delinqüir. A máxima nullum crimen sine actione exige a presença do coeficiente de humanidade, como ensina REGIS PRADO.24
24
PRADO, L.R. Responsabilidade L.R. Responsabilidade penal... p. penal... p. 104.
12
4 CONCEITOS DE DELITO E CONDUTA E SUAS IMPLICAÇÕES NA RESPONSABILIZAÇÃO PENAL DA PESSOA JURÍDICA O conceito clássico de delito, elaborado por LISZT e BELING, era “representado por um movimento corporal (ação), produzindo uma modificação no mundo exterior (resultado)”.
25
Como se vê, tal estrutura, fortemente influenciada pelo
positivismo científico e desapegada de valores filosóficos, fil osóficos, psicológicos e sociológicos, sociol ógicos, como ensina BITENCOURT, separava completamente o aspecto objetivo, representado pela tipicidade e antijuridicidade, do aspecto subjetivo, representado pela culpabilidade.26 Assim, os elementos do crime, segundo o conceito clássico, eram representados pela ação ação,, sob um aspecto objetivo naturalista, entendida como uma “inervação muscular produzida por energias de um impulso cerebral, que, comandadas pelas leis da natureza, provocam uma transformação no mundo exterior” 27
, sem se preocupar com o aspecto volitivo; tipicidade, tipicidade, que, num primeiro momento,
apresentava um caráter meramente descritivo (como concebido por BELING) e, logo em seguida, passou a ser vista como indício da antijuridicidade (proposta de MAYER), mas que, de qualquer forma, se mantinha afastada de qualquer circunstância subjetiva, verificando tão somente a adequação da ação ao fato descrito na lei; antijuridicidade, antijuridicidade, que se constituía como um juízo de valor meramente formal, bastando que se comprovasse a tipicidade da conduta e a ausência de qualquer causa de justificação culpabilidade, que embora para que a mesma fosse considerada antijurídica e; culpabilidade, contemplasse o aspecto subjetivo do crime, da mesma forma apresentava um caráter descritivo, limitando-se a averiguar a existência de vínculo subjetivo entre o autor e o fato, sendo o dolo e a culpa aferidos em razão da intensidade desse vínculo, ou seja, da culpabilidade.28
25
BITENCOURT, C.R. op. cit., p. 137. Idem, ibidem. 27 Idem, p. 138. 28 Idem, ibidem. 26
13
Num momento posterior, com a influência do neokantismo, neokantismo, desenvolveu-se no campo jurídico o conceito neoclássico de crime, substituindo “a coerência formal de um pensamento jurídico circunscrito em si mesmo por um conceito de delito voltado para os fins pretendidos pelo Direito Penal e pelas perspectivas valorativas que o embasam”,
de modo a além de observar e descrever, compreender e valorar as
condutas – metodologia adotada pelas ciências do espírito, como leciona BITENCOURT.29 Dessa forma, o conceito de delito passou por uma transformação, que ação,, que deixou de ser vista somente sob o acarretou em mudanças não apenas na ação aspecto natural, mas em todos os seus elementos. O tipo tipo passou a conter elementos normativos ou subjetivos, convertendo-se em tipo de injusto; injusto; a antijuridicidade passou antijuridicidade passou a ser interpretada segundo a danosidade social e; a culpabilidade passou a ser vista como juízo de reprovabilidade, “pela formação da vontade contrária ao dever”. 30 Foi WELZEL que, a partir da década de trinta, procurou corrigir as falhas e contradições existentes nas concepções anteriores, conduzindo a ação humana ao conceito fundamental da teoria do delito, abandonando o pensamento logicista e abstrato.31 A teoria finalista finalista por ele elaborada (que será analisada de forma pormenorizada adiante) teve “o mérito de eliminar a injustificável separação dos aspectos objetivos e subjetivos da ação e do próprio injusto, transformando, assim, o injusto naturalístico em injusto pessoal”.
32
O finalismo, portanto, indo além da evolução proposta pelo conceito culpabilidade, neoclássico de delito, retirou todos os elementos subjetivos da culpabilidade, injusto, deslocando o dolo e a culpa para o tipo e levando a finalidade a finalidade para para o centro do injusto, nas palavras de BITENCOURT, concentrando “na culpabilidade somente aquelas circunstâncias que condicionam a reprovabilidade da conduta contrária ao Direito” e
situando o objeto da reprovação no injusto. injusto.33
29
BITENCOURT, C.R. op. cit., p. 139. Idem, ibidem. 31 Idem, p. 140. 32 Idem, p. 140 – 141. 141. 33 Idem, p. 141. 30
14
A partir de tais evoluções se formou o conceito analítico de delito que, após a contribuição de BELING, define crime como ação típica, antijurídica e culpável , conceito esse que não foi abandonado por WELZEL em sua teoria finalista e permanece sendo sustentado até os dias atuais. 4.1 CONCEITO DE DELITO PARA O DIREITO PENAL BRASILEIRO O delito possui uma característica genérica, a conduta humana, entendida como um comportamento humano voluntário dirigido a um fim (com base na teoria finalista da ação) e três características específicas, quais sejam, a tipicidade, a antijuridicidade e a culpabilidade. De acordo com ZAFFARONI, a conduta passa a ser típica, ou seja, a apresentar a característica de tipicidade, quando se adequa a algum tipo legal. 34 Necessário, aqui, esclarecer a distinção de tipo, que nada mais é do que a norma que descreve uma conduta, prevendo sua respectiva sanção e tipicidade, que é justamente a adequação da conduta ao tipo.35 No que tange à antijuridicidade, é uma “característica
de contrariedade à
ordem jurídica funcionando como conjunto harmônico – que se comprova pela ausência de permissões”.
36
Já com relação à última característica específica do delito, qual seja, a culpabilidade, esta é “característica
de reprovabilidade do injusto ao autor ”.37 Ou
seja, para que ocorra o crime, é necessário reconhecer a ocorrência do injusto penal e submetê-lo ao juízo de reprovabilidade. Assim, concluímos que no Brasil ainda permanece o conceito analítico de crime, com forte contribuição de WELZEL, principal precursor da teoria finalista da
34
ZAFFARONI, E.R. e PIERANGELI, J.H. Manual de direito penal brasileiro: parte geral. 4. ed. rev. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. p. 388. 35 Conforme aula do Prof. Ms. Pedro Luciano Evangelista Ferreira, ministrada no dia 26 de agosto de 2006, no Centro Universitário Positivo – UnicenP. 36 ZAFFARONI, E.R. e PIERANGELI, J.H. op. cit., p. 389. 37 Idem, p. 390.
15
ação, norteadora de todo o sistema penal brasileiro: “delito
é conduta típica,
antijurídica e culpável ”.38 Importante destacar, por oportuno, que o Código Penal em vigência não define crime, de tal sorte que a elaboração de seu conceito ficou a cargo da doutrina, como bem aponta Cezar Roberto BITENCOURT. 39 4.2 CONCEITO DE CONDUTA PARA O DIREITO PENAL BRASILEIRO Para um melhor entendimento do tema é mister relembrar o conceito de conduta e outros conceitos relevantes. Inicialmente é necessário estabelecer a distinção entre o ato de vontade e o ato de conhecimento. Este apenas fornece os dados e não altera o objeto, por exemplo: o Código Penal que é utilizado, mas não alterado. Já aquele ato é o que altera o objeto, sendo um exemplo escrever uma carta. A diferença entre os atos é válida para a teoria realista. Segundo ZAFFARONI, não faz sentido a distinção para a teoria idealista, pois “ para o
idealismo, o primário – o real – são as idéias, e como enquanto não temos o
conhecimento não temos a idéia, o conhecimento não só toca o objeto, mas até mesmo o cria.”40 Por isso, assim como ZAFFARONI, adota-se a posição realista. O direito pretende regular a conduta e para isso é preciso respeitar o “ser”
da conduta. Este “ser” da conduta é a estrutura “ôntica”. Segundo ZAFFARONI, “o conceito ôntico-ontológico de conduta é o conceito cotidiano e corrente que temos da conduta humana”.
41
Particularmente no direito penal há um limite para se agregar um desvalor jurídico (aquilo que não altera o objeto) às condutas, porém não se muda o “ôntico” da conduta. Ou seja: “o direito penal não pode criar um conceito de conduta, e sim deve respeitar
o conceito ôntico-ontolóligo. Não há um conceito jurídico-penal de conduta 38
ZAFFARONI, E.R. e PIERANGELI, J.H. op. cit., p. 390. BITENCOURT, C.R. op. cit., p. 143. 40 ZAFFARONI, E.R. e PIERANGELI, J.H. op. cit., p. 407. 41 Idem, p. 408. 39
16
humana: o suposto conceito jurídico-penal de conduta deve coincidir com o ôntico-ontológico, a não ser que o direito penal queira que os lobos sejam 42 comidos.”
Disso se extrai que, ao analisar a conduta, não pode o legislador ou mesmo o intérprete pretender dar a ela conotação diversa, sob pena de criar uma situação na qual seria possível incriminar qualquer coisa. Cabe ao direito, portanto, tão somente regular a conduta e não alterar o seu conceito. 4.3 IMPOSSIBILIDADE DE OCORRER DELITO SEM CONDUTA Como já foi dito, o direito pretende regular a conduta. Sendo assim, o delito é nada mais nada menos que uma conduta humana. Caso entendêssemos de modo diferente, a ciência do direito perderia seu sentido e regularia algo totalmente diverso da conduta.43 Para que se tenha uma garantia jurídica, evitando que o crime seja qualquer coisa, aplica-se, ou se deveria aplicar, o princípio nullum crimen sine conducta, respeitando-se um mínimo a dignidade da pessoa humana, já que a base do delito é a conduta humana. 4.4 DIFERENCIAÇÃO ENTRE CONDUTA, AÇÃO, ATO E FATO Os conceitos equivocados de conduta, ação, ato e fato podem levar a falsa interpretação. A questão terminológica destas palavras gira em torno da conduta. Sendo assim, ato e ação são empregados como sinônimos, afinal para alguns autores, ato compreende a ação (um fazer) e no nível da conduta não há omissão, pois todas são ações. Outros autores negam esse caráter genérico, dizendo “que conduta denota um comportamento mais permanente ou continuado do que ato ou ação ”.44 42
ZAFFARONI, E.R. e PIERANGELI, J.H. op. cit., p. 408. Idem, p. 409. 44 Idem, p. 412. 43
17
O fato pode ser humano, no qual há participação do homem, sendo assim uma conduta – um fato humano voluntário, o que é de extrema relevância para o tema; ou pode ser da natureza, no qual não há participação humana, não nos interessando no momento. 4.5 RELAÇÃO ENTRE CONDUTA E VONTADE A conduta deve ser voluntária, admitindo-se que sem vontade não há que se falar em conduta. Afinal, de acordo com o conceito finalista, conduta é um comportamento humano voluntário. “Voluntário” é aquele “’querer’ ativo, o ‘querer’ que muda algo, enquanto ‘desejar’ é algo passivo, que não se põe em movimento para mudar coisa alguma. ‘Querer’ é ‘viver’ e’ desejar’ é’ desejar - se viver’ (HEIDEGGER). ”
45
Ou seja, aquele
que quer, tendo vontade, está em direção ao resultado; já aquele que apenas deseja, espera o resultado. Assim, é possível ter vontade sem desejo e desejo sem vontade. Essa vontade tem um conteúdo, ou melhor, uma finalidade, o fim que se busca. Afirma-se que “no direito penal há um conceito de conduta – elaborado pelo próprio direito penal – segundo o qual a conduta humana é considerada voluntária sem que seja necessário investigar o conteúdo da vontade.”46 Por isso, adota-se a teoria finalista da ação que será melhor exposta adiante, de modo que não se pode falar de conduta sem vontade e de vontade sem finalidade, vez que a conduta necessita sempre de um resultado – uma finalidade. 4.6 LOCALIZAÇÃO DO RESULTADO E DO NEXO CAUSAL Alguns autores, como por exemplo WELZEL, sustentam que o resultado e o nexo de causalidade devem ser considerados no nível pré-típico, juntamente com a
45
ZAFFARONI, E.R. e PIERANGELI, J.H. op. cit., p. 414. Idem, ibidem.
46
18
conduta; outros sustentam que o resultado e o nexo de causalidade devem ser considerados na teoria do tipo, caso de MAURACH. Na visão de ZAFFARONI, “ sem
embargo, a toda ação corresponde um
resultado e ambos estão unidos por nexo de causalidade. Nexo de causalidade e resultado, embora não façam parte da conduta, acompanham-na como uma sombra.”47 Verifica-se então um conjunto de vocábulos – conduta, nexo e resultado, chamado pelos italianos de “evento” e para nós adotado como “ pragma” – “termo de origem grega, com que vários filósofos designam precisamente a ação que inclui o que por ela foi alcançado, o ‘procurado no procurar’ (HEIDEGGER, SZILAZI,
RICOEUR, BINSWANGER).”48 Adotando-se a posição de que o resultado e o nexo causal não fazem parte da ação e, sim, acompanham a conduta, sendo os três vocábulos agrupados no chamado “ pragma”, é certo que se estando em um nível pré -típico
não são problemas
do direito penal. “O direito penal não ignora que toda conduta tem um resultado, isto é, que
altera algo no mundo exterior. O problema jurídico penal não está aí, e sim na forma como o direito penal releva o resultado e a causalidade para o efeito da proibição legal da conduta. Este – e não outro – é o problema penal, e isto de modo algum pode ser tarefa que se cumpra pré-tipicamente, mas é uma questão que recentemente passou a interessar à teoria do tipo. ”49
Tratando-se a causalidade e o resultado, no contexto do “ pragma”, são um problema físico e não jurídico. 4.7 CONCLUSÃO LÓGICA: IMPOSSIBILIDADE DA PESSOA JURÍDICA DELINQÜIR Numa visão realista, adotando novamente os ensinamentos de ZAFFARONI, um homem e uma sociedade comercial são entes totalmente distintos
47
ZAFFARONI, E.R. e PIERANGELI, J.H. op. cit., p. 418. Idem, ibidem. 49 Idem, p. 419. 48
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em suas estruturas, visto que a conduta humana não tem equivalência com o ato jurídico da pessoa jurídica. “ Não se pode falar de uma vontade em sentido psicológico no ato da pessoa
jurídica, o que exclui qualquer possibilidade de admitir a existência de uma conduta humana. A pessoa jurídica não pode ser autora de delito, porque não tem capacidade de conduta humana no seu sentido ôntico50 ontológico.”
Com efeito, a incapacidade de conduta é o primeiro grande obstáculo, para nós insuperável, aos que pretendem atribuir responsabilidade penal à pessoa jurídica. Por isso é que ZAFFARONI considera que, embora sejam válidos todos os argumentos utilizados para afastar a responsabilização penal do ente coletivo, tais como a ausência de capacidade de culpabilidade e a inconstitucionalidade da pena (por ser transcendente, afetando pessoas que não teriam participado da decisão que culminou na prática delituosa), estes se demonstram desnecessários, já que “a responsabilidade é descartada desde que falta o caráter genérico do delito: não há capacidade de conduta na pessoa jurídica”.51 Ademais, negar a responsabilidade penal da pessoa jurídica não exclui a possibilidade de responsabilização de seus diretores e administradores e tampouco afasta a viabilidade de aplicação de sanções administrativas à pessoa moral que, como bem observa ZAFFARONI, “não podem ser diferentes das que se pretendem legislar em sede penal (multa, suspensão da personalidade, intervenção, dissolução)”.
50
ZAFFARONI, E.R. e PIERANGELI, J.H. op. cit., p. 410. Idem, ibidem. 52 Idem, ibidem. 51
52
20
5 A CONSTITUIÇÃO FEDERAL E A RESPONSABILIDADE PENAL DA PESSOA JURÍDICA 5.1 INTERPRETAÇÃO DO ART. 173, § 5.º, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL A Constituição Federal, em seu art. 173, § 5.º, determina que a Lei institua a responsabilidade da pessoa jurídica, sem prejuízo da responsabilidade individual de seus dirigentes, por atos contra a ordem econômica e financeira e contra a economia popular. Grande divergência se encontra, contudo, na interpretação desse dispositivo, como leciona o professor Juarez Cirino dos SANTOS.53 Segundo o autor, os constitucionalistas afirmam que quando a Constituição fala em responsabilidade, refere-se à responsabilidade penal da pessoa jurídica, em razão da expressão “punições compatíveis com a sua natureza”. De outra banda, os penalistas dizem que ao falar em
responsabilidade, a Constituição o faz com relação à responsabilidade geral, genérica, e não à responsabilidade penal (especial, adjetivada). De fato, não haveria sentido algum o constituinte deixar a responsabilidade penal, que é de caráter pessoal , nas “entrelinhas”. Se o legislador constitucional pretendesse responsabilizar penalmente a pessoa jurídica, o teria feito de maneira expressa, não implicitamente. É o posicionamento do professor Juarez Cirino, que afirma: “nenhum legislador aboliria o princípio da responsabilidade penal pessoal
de modo tão camuflado ou hermético, como se a Carta Constitucional fosse uma carta enigmática decifrável por iluminados. Ao contrário, se o constituinte tivesse pretendido instituir exceções à regra da responsabilidade penal pessoal teria utilizado linguagem clara e inequívoca”.54
Ademais, o termo punição não é exclusivo do direito penal. Uma empresa, ou mesmo um particular, pode ser punido no âmbito administrativo – seja com a 53
SANTOS, J.C. dos. A responsabilidade... p. 1. Idem, ibidem.
54
21
aplicação de multas, seja com sanções administrativas de caráter preventivo ou retributivo. 5.2 INTERPRETAÇÃO DO ART. 225, § 3.º, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL Novamente, por equívoco não se sabe se do legislador ou de parte da doutrina, a Constituição Federal, em seu art. 225, § 3.º, gera grande controvérsia quando diz que, in verbis, “as condutas e at ividades consideradas lesivas ao meio ambiente sujeitarão os infratores, pessoas físicas ou jurídicas, a sanções penais e administrativas, independentemente da obrigação de reparar os danos causados”.
Se de um lado temos ambientalistas e constitucionalistas admitindo a ruptura do princípio da responsabilização criminal pessoal, interpretando a norma constitucional de modo a ignorar a diferença semântica das palavras condutas e atividades; de outro, os penalistas se sustentam justamente na diferença semântica dessas palavras para afastar essa ruptura, como bem aponta Juarez Cirino dos SANTOS.55 É que, como ensina o autor, partindo da premissa de que conduta e atividade são sinônimos, ambas as expressões poderiam ser aplicadas de forma indistinta tanto às pessoas físicas como jurídicas, razão pela qual estariam, igualmente, ambas sujeitas às sanções penais e administrativas. Por outro lado, se considerarmos a diferença semântica entre essas palavras, claramente se percebe a intenção do legislador de atribuir condutas a pessoas físicas e atividades às pessoas jurídicas, sujeitando estas às sanções administrativas e aquelas às sanções penais.56 À mesma conclusão chegou Miguel REALE JÚNIOR ao afirmar que “o art. 225, § 3.º (...) deve ser interpretado no sentido de que as pessoas físicas ou jurídicas sujeitam-se respectivamente a sanções penais e administrativas”.57 O autor destaca a relevância da interpretação sistemática da nossa Carta Magna, que conduz à 55
SANTOS, J.C. dos. A responsabilidade... p. 2. Idem, ibidem. 57 REALE JÚNIOR, M. A responsabilidade penal da pessoa jurídica. In: PRADO, L.R. Responsabilidade penal da pessoa jurídica: em defesa do princípio da imputação penal subjetiva. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001. p. 138. 56
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inadmissibilidade da responsabilidade penal da pessoa jurídica, por lhe faltar capacidade criminal. Mesma posição é a de Luiz Regis PRADO: “o dispositivo em tela refere-se, claramente, a conduta/atividade e, em
seqüência, a pessoas físicas ou jurídicas. Dessa forma, vislumbra-se que o próprio legislador procurou fazer a devida distinção, através da correlação 58
significativa mencionada.”
Seguimos, pois, com Juarez Cirino dos SANTOS, que afirma que “a lei não contém palavras inúteis e o uso de sinônimos na lei, além de violar a técnica legislativa, seria uma inutilidade e um insulto à inteligência do constituinte”.59 Ademais, como bem observou Regis PRADO, as normas constitucionais devem ser interpretadas de acordo com o método lógico-sistemático, razão pela qual ainda que se admitisse que o texto constitucional versasse no sentido de atribuir responsabilidade penal à pessoa jurídica, tal não poderia ser aceito. Isso porque, nas palavras do autor, “não se pode descuidar, em absoluto, da principiologia constitucional penal e da estrutura do ordenamento jurídico-penal brasileiro, fundado em um Direito Penal da conduta, da culpabilidade e da personalidade da pena”.
60
Portanto, mais acertada parece ser a opção dos penalistas, já que o legislador constitucional não autorizou a exceção da responsabilidade impessoal da pessoa jurídica, valendo ainda a regra da responsabilidade pessoal, subjetiva, no que diz respeito às sanções penais.
58
PRADO, L.R. Curso de direito... p. 302. SANTOS, J.C. dos. A responsabilidade... p. 2. 60 PRADO, L.R. Curso de direito... p. 302. 59
23
6 A LEGISLAÇÃO INFRA-CONSTITUCIONAL Há muito tempo o legislador pátrio vem, de certa forma, insinuando a possibilidade de responsabilização penal da pessoa jurídica. Citando Regis PRADO e Juarez TAVARES, Walter Claudius ROTHENBURG demonstra que: “O
legislador
brasileiro
esteve
sempre
desarticulado
quanto
à
responsabilidade de dirigentes de pessoas jurídicas, nos casos em que as entidades servissem de instrumento ou meio necessário à consecução de ações criminosas. Num primeiro momento, parece que o legislador pretendeu instituir uma espécie de responsabilidade solidária dos dirigentes das entidades, o que contraria o princípio da culpabilidade e expressa a indevida intromissão do Direito Penal de preceitos da responsabilidade 61
civil.”
Nesse contexto, citam-se a Lei n.º 4.728/65, que disciplina o mercado de capitais; a Lei n.º 4.729/65, que define os crimes de sonegação fiscal; o Decreto-Lei n.º 16/66, que dispõe sobre o comércio clandestino de açúcar e álcool. Todas essas normas, porém, sempre foram interpretadas seguindo o critério da responsabilização subjetiva, ou seja, com base na culpabilidade de cada dirigente e sua efetiva participação no crime, como leciona ROTHENBURG.62 Mais recentemente, a Lei 7.492/86, a chamada Lei dos crimes de colarinho branco, que define os crimes contra o sistema financeiro nacional, incorporando essa idéia, “tinha inicialmente como alvo os diretores e administradores de instituições financeiras. Hoje essa denominação estende-se a vários outros indivíduos que, de alguma forma, lesam a ordem econômica.”63 Depois do advento da Constituição Federal de 1998, a Lei n.º 8.884/94, leva a crer na possibilidade de responsabilização penal das pessoas jurídicas, pois ao passo que seu artigo 15 determina a aplicabilidade daquele diploma legal “às pessoas físicas
61
ROTHENBURG, W.C. A pessoa jurídica criminosa. Curitiba: Juruá, 1997. p. 92. Idem, p. 93. 63 CARMO LEÃO, M. do. Os crimes do colarinho branco. Disponível Acesso em: 27/08/2006. p. 1. 62
em
24
ou jurídicas de direito público ou privado”,
64
em seu artigo 23, I sujeita também a
empresa às penas ali previstas. 65 Porém, foi com a Lei 9.605/98 que a questão ganhou evidência, pois esta trouxe expressamente a previsão de responsabilidade penal do ente coletivo e é, hoje, a principal razão das discussões doutrinárias acerca do tema. Por tal razão, entendemos que esse diploma legal merece ser analisado separadamente no tópico seguinte. 6.1 A LEI DOS CRIMES AMBIENTAIS (LEI N.º 9.605/98) O grande marco na legislação brasileira com relação à responsabilidade penal da pessoa jurídica foi a Lei n.º 9.605/98, a qual instituiu a responsabilidade administrativa, civil e penal da empresa em infrações contra o meio ambiente, conforme dispõe seu artigo 3.º: “Art. 3º As pessoas jurídicas serão responsabilizadas administrativa, civil e
penalmente conforme o disposto nesta Lei, nos casos em que a infração seja cometida por decisão de seu representante legal ou contratual, ou de seu órgão colegiado, no interesse ou benefício da sua entidade. Parágrafo único. A responsabilidade das pessoas jurídicas não exclui a das pessoas físicas, autoras, co-autoras ou partícipes do mesmo fato.”
Percebe-se claramente, de início, que o parágrafo único desse dispositivo pretende punir tanto a pessoa jurídica como a pessoa física pelo mesmo fato, configurando verdadeiro bis in idem, situação expressamente vedada pelo nosso direito. Mas as aberrações desse dispositivo não param por aí, como nos mostra o eminente Juarez Cirino dos SANTOS: “A criminalização da pessoa jurídica, como forma de responsabilidade
penal impessoal, é inconstitucional: as normas dos art.s 173, § 5.º e 225, § 3.º, da Constituição, não instituem, nem autorizam o legislador ordinário a instituir, a responsabilidade penal da pessoa jurídica. Além disso, a 64
“Esta lei aplica-se às pessoas físicas ou jurídicas de direito público ou privado, bem como a
quaisquer associações de entidades ou pessoas, constituídas de fato ou de direito, ainda que temporariamente, com ou sem personalidade jurídica, mesmo que exerçam atividade sob regime de monopólio legal.” 65
ROTHENBURG, W.C. op. cit., p. 93.
25
responsabilidade penal impessoal da pessoa jurídica infringe os princípios da legalidade e da culpabilidade, que definem o conceito de crime, assim como infringe também os princípios constitucionais da personalidade da pena e da punibilidade, que delimitam o conceito de pena.”66
As ofensas a princípios suscitadas pelo professor Juarez Cirino dos SANTOS, entre outras, serão objeto de análise mais aprofundada no capítulo seguinte. Por ora, é suficiente dizer que, em apenas um dispositivo, o legislador pátrio ignorou completamente toda a sistemática do ordenamento jurídico brasileiro, o que não se pode admitir. Hugo de Brito MACHADO ensina, de forma clara e precisa: “O direito é um sistema de prescrições jurídicas, interligadas e harmônicas. É um sistema porque integrado de partes que se completam e que dependem umas das outras, como se pode const atar na experiência jurídica”.67 Para ele, disso decorrem várias conseqüências práticas, sendo as três mais importantes as seguintes: “Como todo sistema há de ser coerente, isento de incongruências, a
primeira e talvez mais importante conseqüência prática da idéia de sistema consiste em que as incongruências ou antinomias devem ser eliminadas. A segunda conseqüência importante da idéia de sistema consiste na sua utilização como elemento indispensável na busca do significado das prescrições jurídicas. Finalmente, a terceira conseqüência importante da idéia de sistema consiste em que as lacunas cuja presença consubstancie 68
uma incongruência devem ser de pronto eliminadas pelo intérprete.”
Não se pode, portanto, ignorar o fato de que todo o sistema constitucional e penal brasileiro se volta à idéia de responsabilidade penal subjetiva, baseada na personalidade humana como condição à imputação. Não há, portanto, a possibilidade de imputação penal da pessoa jurídica. Os equívocos cometidos pelo legislador ao instituir tal responsabilização afetam não apenas alguns dos mais importantes princípios constitucionais, mas todo o sistema jurídico brasileiro. 66
SANTOS, J.C. dos. A responsabilidade... p. 2. BRITO MACHADO, H. de. Responsabilidade penal no âmbito das empresas. In: SALOMÃO, H.E. Direito penal empresarial . São Paulo: Dialética, 2001. p. 110. 68 Idem, ibidem. 67
26
Como asseverou Norberto BOBBIO: “o direito não é norma, mas um conjunto coordenado de normas, sendo evidente que uma norma jurídica não se encontra jamais só, mas está ligada a outras normas com as quais forma um sistema normativo”.
69
Dentro dessa concepção, resta claro que a Lei dos crimes ambientais está em total descompasso com o sistema normativo brasileiro. Em verdade, o legislador se aproveitou de uma interpretação equivocada de determinados dispositivos constitucionais, como se demonstrou acima, ignorando completamente todos os demais princípios e regras que norteiam o sistema, para atingir fins político-criminais de legitimidade duvidosa, que não se justificam, pois priorizam o fim em detrimento do meio. Compartilhando da mesma opinião, Luiz Regis PRADO afirma ser extremamente difícil não admitir a inconstitucionalidade do dispositivo em análise, devido à configuração do ordenamento jurídico brasileiro, especialmente do subsistema penal e seus princípios.70 Para Regis PRADO, embora influenciado pelo sistema anglo-americano, o legislador brasileiro teve inspiração no modelo francês – o que, a seu ver, foi a escolha adequada, dado o fato de que também o modelo francês é pertencente ao grupo romano-germânico, assim como o nosso. Porém, nosso legislador cometeu equívocos insuperáveis.71 Em primeiro lugar, enquanto a França adaptou todo o seu sistema para que fosse possível recepcionar em seu ordenamento jurídico a responsabilização penal do ente coletivo, alterando diversos dispositivos legais e incluindo inclusive regras processuais, mudanças essas extremamente necessárias para dar coerência ao sistema, o legislador brasileiro fez exatamente o contrário: “nada mais fez do que enunciar a
69
BOBBIO, N. Teoria do ordenamento jurídico. 10. ed. Brasília: Universidade de Brasília, 1999. p. 21. 70 PRADO, L.R. Curso de direito... p. 302 – 303. 71 Idem, p. 303.
27
responsabilidade penal da pessoa jurídica, cominando-lhe penas, sem lograr, contudo, instituí-la completamente”.72 Dessa opção simplista, conclui Regis PRADO, decorre justamente o fato de “não ser ela (a pessoa jurídica) passível de aplicação concreta e imediata (da pena),
pois faltam-lhe instrumentos hábeis e indispensáveis para a consecução de tal desiderato”.
73
E, assim sendo, não há que se falar em impor sanções penais à pessoa
jurídica, pois resta clara a impossibilidade de adequação da norma que institui a responsabilidade penal ao ente coletivo com as demais normas e princípios penais vigentes. Para arrematar a questão, oportuno se faz demonstrar que também a jurisprudência acompanha esse mesmo raciocínio, o que se pode perceber do seguinte julgado, colacionado por Regis PRADO e que enfrenta de forma cabal a questão da inconstitucionalidade do artigo 3.º da Lei dos crimes ambientais, senão vejamos: “Recurso em sentido estrito – Crime ambiental – Pessoa Jurídica – Responsabilidade penal – Inadmissibilidade – Rejeição da denúncia –
Decisão em consonância com a orientação doutrinária e jurisprudencial dominantes – Recurso improvido – Mostra-se inconstitucional o art. 3.º da Lei 9.605/1998, no que diz respeito à responsabilidade penal da pessoa jurídica. A pessoa jurídica não pode ser sujeito ativo de crime. Inteligência do art. 5.º, inciso LXV da CF/1988. (TJMT – RSE 1.457/01 – Sinop – 2.ª C. 74 Crim. – Rel. Des. Donato Fortunato Ojeda – J . 02.05.2001).”
Diante de tais relevantes argumentos, torna-se evidente a inaplicabilidade do dispositivo legal aqui combatido, por se tratar de norma inconstitucional que pretende instituir – sem a elaboração de um sistema que o permita – a responsabilidade penal objetiva, o que não se pode admitir em nosso país. O obstáculo criado pela ausência total de uma regulamentação – especial e restrita – que permita a responsabilização penal objetiva da pessoa jurídica é lembrado até mesmo por defensores da imputação penal ao ente coletivo, como Sérgio Salomão SHECAIRA, que reconhece que apenas “com breves adaptações o regramento 72
PRADO, L.R. Curso de direito... p. 303. Idem, ibidem. 74 Idem, p. 309. 73
28
constante do capítulo do concurso de pessoas pode ser aplicado à empresa, caso o legislador ordinário queira contra ela estabelecer uma persecução penal”.75 Tais adaptações, porém, até o momento não existem e a pessoa jurídica continua, ou deveria continuar, inatingível na esfera criminal.
75
SHECAIRA, S.S. Responsabilidade dos sócios, gerentes, diretores e da pessoa jurídica nos crimes ambientais. In: SALOMÃO, H.E. Direito penal empresarial . São Paulo: Dialética, 2001. p. 288.
29
7 ASPECTOS PROCESSUAIS DA RESPONSABILIZAÇÃO PENAL DA PESSOA JURÍDICA Valemo-nos aqui de análise feita por Ada Pellegrini GRINOVER,76 pretendendo demonstrar alguns aspectos processuais que, assim como os materiais, impedem a responsabilização penal da pessoa jurídica no direito brasileiro. Inicialmente, a autora ressalta a importância da integração de normas de que o intérprete deve se servir para buscar, no ordenamento, a solução para os casos em que, aparentemente, estejamos diante de lacunas na lei. Para ela, a ausência de qualquer norma processual sobre a matéria da responsabilização penal da pessoa jurídica não serve de obstáculo à aplicabilidade do previsto na Lei 9.605/98, devendose utilizar as regras (e garantias) existentes para o processo relativo à responsabilidade penal do ente coletivo.77 Por outro lado, afirma a necessidade de garantir à pessoa jurídica a aplicação de todas as garantias processuais constitucionais, as quais “não representam apenas direitos públicos subjetivos das partes, numa ótica individualista, mas constituem, antes disso, garantias de um justo processo, segundo uma visão publicista que dá relevância ao interesse geral na justiça da decisão”.
78
Ou seja: todos os
princípios e regras constitucionais que disciplinam o processo penal comum também devem ser aplicados com relação à pessoa jurídica, quando se pretende puni-la na esfera criminal. A partir dessas premissas, a autora levanta alguns aspectos de importância fundamental, que acabam por inviabilizar a responsabilização penal do ente coletivo também por vícios insuperáveis no aspecto processual penal. Um primeiro problema está no âmbito da imputação, a qual deve ser certa e delimitada, permitindo que a defesa possa ser exercida de forma efetiva. Tal exigência está prevista expressamente no artigo 41 do Código de Processo Penal, que determina que a denúncia ou queixa tem como requisitos a exposição do fato criminoso com 76
GRINOVER, A.P. O processo: estudos e pareceres. São Paulo: Perfil, 2005. p. 296 – 318. Idem, p. 296. 78 Idem, p. 297. 77
30
todas as suas circunstâncias. Essa norma visa dar efetividade ao mandamento constitucional do artigo 5.º, inciso LV, que assegura aos acusados em geral o direito à ampla defesa.79 Porém, como destaca Ada GRINOVER, as denúncias apresentadas contra empresas, em matéria ambiental, têm como característica freqüente a indeterminação do fato ao qual se atribui a responsabilidade destas, não indicando quaisquer das circunstâncias a que alude o artigo 41 do Código de Processo Penal. “Não se diz quem, como, quando etc. realizou a ação incriminada, o que não possibilita à acusada, minimamente, o estabelecimento de uma linha defensiva”.
80
E, adiante, pondera a autora que “tais indicações são especialmente exigíveis quando se trata da responsabilização penal de pessoa jurídica por dano ambiental”,
diante da norma expressa do artigo 3.º. da Lei 9.605/98, devendo a
denúncia, nesses casos, “explicitar não apenas aquelas circunstâncias fáticas indispensáveis à delimitação de qualquer acusação, mas deve também indicar precisamente os fatos que permitiriam vincula-la à pessoa jurídica acusada” 81, o que não ocorre na prática. Indo à frente, embora a autora consiga superar problemas como os da representação processual, utilizando analogamente o Código de Processo Civil para dizer que, de acordo com o artigo 12, inciso VI, daquele codex a pessoa jurídica deve ser representada por quem os respectivos estatutos designarem ou por seus diretores; da competência, afirmando que à exceção da competência da Justiça Federal, o fato de o réu ser pessoa física ou jurídica não influi sobre a competência; do procedimento, afirmando serem aplicáveis as mesmas regras do Código de Processo Penal e da Lei 9.099/95, dependendo da infração cometida e, de certa forma; da citação, dizendo que a citação pode ser feita na pessoa do representante legal da empresa, ressaltando que, no processo penal, há requisitos mais rigorosos do que o do processo civil, não convence, por outro lado, ao versar sobre o interrogatório.
79
GRINOVER, A.P. op. cit., p. 299. Idem, p. 301. 81 Idem, ibidem. 80
31
Ada Pellegrini GRINOVER reconhece a aplicabilidade de todas as garantias constitucionais à ação penal movida contra a pessoa jurídica, de tal sorte que, também a esta, é assegurado o direito de silêncio. 82 Porém, tal direito não é suficiente para assegurar ao ente moral o efetivo exercício do seu direito, ainda maior, à ampla defesa. Visto como mecanismo de defesa, o interrogatório é o momento no qual o acusado tem a oportunidade de contar a sua versão dos fatos, produzindo sua autodefesa ou mesmo esclarecendo pontos que possam ter ficado obscuros, tanto na denúncia como na defesa prévia. Quando se põe uma pessoa jurídica no banco dos réus, quem deve ser ouvido? O gestor que, muitas vezes, sequer está presente no dia a dia da empresa e desconhece por completo os fatos (criminosos ou não) dentro dela praticados? Ou o gerente ou funcionário de menor escalão que, não sendo o titular do direito de defesa, não tem sequer interesse em se defender? Tais indagações resumem a problemática que envolve o interrogatório da pessoa jurídica e bem demonstram a impossibilidade de garantir, de forma efetiva, a ampla defesa, seja ouvindo o gestor da empresa, seja ouvindo um preposto. E o processo penal não pode, de forma alguma, se pautar por probabilidades e incertezas, razão pela qual se tornam insuperáveis os vícios existentes no processo penal no caso de ação movida contra pessoas jurídicas.
82
GRINOVER, A.P. op. cit., p. 303.
32
8 RESPONSABILIDADE PENAL DA PESSOA JURÍDICA: OFENSA A PRINCÍPIOS BÁSICOS DO DIREITO PENAL 8.1 PRINCÍPIO DA IGUALDADE O princípio da igualdade se constitui em um dos pilares da democracia e encontra fundamento no art. 5.º, caput , da Constituição Federal, sendo intimamente ligado ao princípio da legalidade. No âmbito do direito penal, o princípio da igualdade, ou da isonomia, se reflete em três momentos distintos, a saber: na fase cognitiva; na fase aplicatória e; na fase executória da sanção penal. 83 Como leciona Maurício Antônio Ribeiro LOPES, o primeiro momento trata da isonomia formal, ou seja, igualdade perante a lei, que implica “no juízo de tipicidade de condutas idênticas que preenchessem a descrição legal do fato, estando sujeitos à mesma sanção abstrata todos os autores de ação idêntica”.
84
A fase
seguinte, de aplicação da lei penal, constitui-se na atividade de individualização da pena, devendo o magistrado, dentro dos limites da isonomia formal, adequar os limites mínimo e máximo à conduta individualmente considerada. Finalmente, no terceiro momento, tem-se que “penas impostas podem ser desigualmente cumpridas como nova forma de garantia da isonomia material entre os sentenciados”.85 Segundo o professor René Ariel DOTTI86, a pena funciona como corolário do princípio da isonomia. Todavia, a adoção da capacidade penal da pessoa jurídica estaria a comprometer essa exigência, na medida em que, ao identificar a pessoa jurídica como autor (“responsável”) pela infração penal, “os instigadores ou cúmplices, poderiam ser beneficiados com o relaxamento dos trabalhos de investigação”.
Para o autor, a imputação penal ao ente coletivo acabaria por estimular
83
LOPES, M.A.R. Princípios políticos do direito penal. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999. p. 280. Idem, ibidem. 85 Idem. p. 281. 84
86
DOTTI, R.A. A incapacidade criminal da pessoa jurídica. (Uma perspectiva do direito brasileiro). In: PRADO, L.R. Responsabilidade penal da pessoa jurídica: em defesa do princípio da imputação penal subjetiva. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001. p. 151.
33
“um novo tipo de criminalidade organizada”,
onde não haveria o comando pessoal,
senão a utilização da empresa como “líder” das condutas criminosas. Teríamos, então, de um lado a aplicação direta da pena estatal somente aos indivíduos que não dispusessem da “máscara” da pessoa jurídica, ou seja: em última análise, somente sofreriam a punição estatal os pertencentes às camadas sociais mais baixas, que seriam os únicos a praticar os crimes em nome próprio, enquanto os grandes empresários acabariam por eximir-se da responsabilidade penal, pois a conduta criminosa recairia sobre o ente coletivo. Não haveria, portanto, igualdade de tratamento entre os criminosos pobres e ricos na aplicação da pena. A responsabilização penal da pessoa jurídica afronta o princípio da legalidade em qualquer das fases acima descritas. Na fase cognitiva, uma vez que o ente moral é incapaz de realizar conduta, não se pode falar em igualdade – até porque não seria possível aplicar sanções iguais a pessoas físicas e jurídicas, pois a estas não são aplicáveis as penas privativas de liberdade que, em regra, são aplicadas àquelas. Por outro lado, no que tange à individualização da pena, esta resta ainda mais prejudicada, pois no bojo da corporação não se sabe ao certo de que forma foi praticado o delito nem a quem a sentença penal deve atingir. Finalmente, com relação à execução da pena, como anteriormente mencionado, não é possível a aplicação da isonomia material, fundada no mérito do condenado, uma vez que, carente de consciência e vontade pró prias, à pessoa jurídica é impossível “merecer” um regime diferenciado na aplicação da pena. Por tais razões, a criminalização de atividades da pessoa jurídica se mostra incompatível com o princípio da igualdade, basilar do estado democrático de direito, devendo ser afastada. 8.2 PRINCÍPIO DA LEGALIDADE O princípio da legalidade, ou princípio da reserva legal, funda-se sobre a máxima “nullum crimen nulla poena sine lege”, ou seja, não há crime nem pena sem lei. Tal princípio surgiu como reação ao Estado absolutista, servindo como garantia ao
34
indivíduo contra o poder punitivo estatal e, por outro lado, delimitando o espaço da coerção penal, como ensina Nilo BATISTA, para quem “o princípio da legalidade constitui a chave mestra de qualquer sistema penal que se pretenda racional e justo”.
87
Tal princípio, que se constitui como basilar do próprio estado de direito, visa garantir a segurança jurídica, assegurando ao cidadão o prévio conhecimento dos crimes e das suas respectivas penas e, mais, que não será submetido a coerção penal diversa daquela prévia e expressamente disposta na lei. Nilo BATISTA,88 de forma bastante coerente, desdobra o princípio da legalidade em quatro “funções”, quais sejam:
a) proibir a retroatividade da lei penal
(nullum crimen nulla poena sine lege praevia); b) proibir a criação de crimes e penas pelo costume (nullum crimen nulla poena sine lege scripta); c) proibir o emprego de analogia para criar crimes, fundamentar ou agravar penas (nullum crimen nulla poena sine lege stricta) e; d) proibir incriminações vagas e indeterminadas (nullum crimen nulla poena sine lege certa), análise essa idêntica à proposta por Heleno Cláudio FRAGOSO nas suas “Lições de Direito Penal”.
89
Ainda quanto ao seu alcance, o saudoso autor ressalta a aplicação desse princípio a toda e qualquer espécie de pena, excetuadas apenas as medidas de segurança, que atualmente se encontram restritas aos casos de internação ou tratamento de inimputáveis ou semi-imputáveis.90 No Brasil, o princípio da reserva legal foi acolhido por todas as Constituições, a partir de 1824, bem como em todos os Códigos Penais, sendo atualmente “universalmente reconhecido em seu sentido básico de garantia essencial do cidadão em face do poder punitivo do Estado, determinando com segurança a esfera da ilicitude penal”, como nos ensinou Heleno Cláudio FRAGOSO.91
87
BATISTA, N. Introdução crítica ao direito penal brasileiro. 8. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2002. p. 65. 88 Idem, p. 68 – 83. 89 FRAGOSO, H.C. Lições de direito penal: parte geral. 16. ed. São Paulo: Forense, 2004. p. 113 – 116. 90 Idem, p. 113. 91 Idem, p. 109 – 110.
35
A obediência ao princípio da legalidade funciona como limitação jurídica ao poder punitivo do Estado que, nos dias atuais, já não detém o direito de punir o cidadão de modo absoluto, senão apenas e tão somente nos limites que a lei impõe. Para Juarez Cirino dos SANTOS,92 a imputação penal à pessoa jurídica ofende o princípio da legalidade, pois esse princípio “se realiza no tipo de injusto, como descrição legal da ação proibida”.
Assim, sendo a ação um fenômeno
exclusivamente humano e, portanto, não sendo a pessoa jurídica capaz de ação, “os atos das pessoas jurídicas são referidos como situações de ausência de ação, em qualquer manual de direito penal”.
Daí se extrai que a impossibilidade da pessoa jurídica realizar uma ação típica torna a responsabilização criminal da mesma incompatível com o princípio da legalidade, razão pela qual deve ser afastada tal hipótese, eis que tal princípio encontra-se consagrado expressamente no art. 5.º, inciso XXXIX, da Carta Magna. 8.3 PRINCÍPIO DA HUMANIZAÇÃO DAS SANÇÕES (OU DA HUMANIDADE DAS PENAS) Atualmente, é inegável o caráter humanitário que deve ter a sanção criminal, ao ponto de ter sido elevado o princípio da humanidade à categoria de direito fundamental na nossa Carta Magna de 1988, como se verifica do Art. 5.º, inciso III, que reza: “ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante”.
Nem sempre foi assim. As penas de morte, impostas desde o direito romano até os dias atuais, em muitos países, são suficientes para demonstrar que, ao longo dos séculos, o “estilo penal” citado
por Nilo BATISTA93 de fato pouco mudou. Incontáveis foram e são os
casos de mortes antecedidas por verdadeiros rituais simbólicos e religiosos, tais como
92
SANTOS, J. C. dos. A responsabilidade... p. 2. BATISTA, N. op. cit., p. 98.
93
36
aqueles descritos por Michel FOUCAULT94 no início de sua obra clássica sobre a história da violência nas prisões. Porém, após a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, o princípio da humanidade, que prega a racionalidade e a proporcionalidade na aplicação das sanções, passou a ser largamente aceito, constante inclusive da Declaração Universal dos Direitos do Homem e da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, como bem aponta Nilo BATISTA. 95 A característica fundamental da sanção penal é ter como referencial a condição humana, conforme leciona René Ariel DOTTI. 96 Segundo ele, quando a Constituição declara a dignidade da pessoa humana como um dos fundamentos da República, quando assegura aos presos o respeito à integridade física e moral, quando afasta a possibilidade da imposição de penas cruéis, trata de aspectos inerentes às pessoas físicas, tendo como pressuposto a condição humana, que não pode ser reconhecida na pessoa jurídica. 8.4 PRINCÍPIO DA PERSONALIDADE DA PENA Em que pese o fato de que, eventualmente, o nosso sistema acabe por fazer com que terceiros (inocentes) sofram os efeitos da aplicação da pena, é indiscutível – até mesmo por força da norma constitucional que determina que a pena não ultrapassará a pessoa do condenado – que a pena e a medida de segurança não se aplicam nem se executam contra terceiro que não tenha concorrido para a causação do delito. Porém, ao admitirmos a pessoa jurídica enquanto autora do crime, as conseqüências da sanção imposta fatalmente atingirão a todos os seus sócios e diretores e, em certas hipóteses, até mesmo os funcionários de menor grau hierárquico, ainda que o fato típico tenha sido causado por apenas um deles.97
94
FOUCAULT, M. Vigiar e punir : história da violência nas prisões. 29. ed. Petrópolis: Vozes, 2004. p. 9 – 10. 95 BATISTA, N. op. cit., p. 99. 96 DOTTI, R.A. op cit., p. 151. 97 Idem, p. 152.
37
Essa disparidade, uma vez mais, remonta à idéia de que é impossível personificar a pena quando se pretende responsabilizar criminalmente a pessoa jurídica. Mais do que isso, a extensão dos efeitos decorrentes da sanção penal a todos aqueles que compõem o ente coletivo afronta diretamente o texto constitucional. 8.5 PRINCÍPIO DA CULPABILIDADE Ensina Juarez Cirino dos SANTOS98 que o princípio da culpabilidade (nullum crimen sine culpa) se funda na “capacidade penal , na consciência da antijuridicidade (real ou possível) e na normalidade das circunstâncias da ação”. Nesse diapasão, a adoção da culpabilidade “como juízo de reprovação de um sujeito imputável pela realização não justificada de um tipo de injusto, em situação de consciência da antijuridicidade e de normalidade das circunstâncias da ação, não pode ter por objeto a pessoa jurídica”.
Para essa afirmação, o autor parte da premissa de que a pessoa jurídica não tem capacidade penal porque, em primeiro lugar, não goza dos requisitos da maturidade e da sanidade mental, inaplicáveis à vontade pragmática das deliberações societárias. Tais requisitos são exclusivos da psique humana e, como afirma Juarez Cirino dos SANTOS, “não podem ser supridos pelo registro na Junta Comercial, ou pela validade do contrato social”. A pessoa jurídica, igualmente, não pode ter consciência do injusto, pois essa só existe “no aparelho psíquico individual de pessoas físicas”. Por fim, não se aplicam às pess oas jurídicas as situações de exculpação, porque a “ psique coletiva portadora da vontade pragmática da pessoa jurídica é imune
ou insensível a pressões ou perturbações emocionais excludentes ou redutoras da capacidade de agir conforme a norma”. Necessário se faz, ainda, diferenciar a culpabilidade da culpa strictu sensu. Como esse princípio diz que “não
há delito sem culpabilidade”, é relevante tratarmos
inicialmente da culpabilidade como elemento do crime.
98
SANTOS, J.C. dos. A responsabilidade... p. 3.
38
Tal como ensina ZAFFARONI, o “conceito de culpabilidade é um conceito
de caráter normativo, que se funda em que o sujeito podia fazer algo distinto do que fez, e que, nas circunstâncias, lhe era exigível que o fizesse ”.99 O conceito de culpabilidade é resultado da evolução doutrinária. ZAFFARONI100 apresenta três teorias para explicá-la: a teoria psicológica, na qual a culpabilidade é uma relação psicológica entre a conduta e o resultado (segundo o autor, essa teoria não resolve o problema da culpa, o da imputabilidade e o da necessidade exculpante); a teoria complexa, que trata a culpabilidade com reprovabilidade, mas conserva os componentes psicológicos, como o dolo, entendido como conteúdo não desvalorado (FRANK), como pressuposto da culpabilidade (GOLDSHMIDT), como conteúdo desvalorado (MEZGER) ou ainda como para ZAFFARONI, que coloca no mesmo plano o dolo e a culpa a partir do seu conteúdo heterogêneo e; a teoria normativa, a qual reprova a culpabilidade, pressupondo a possibilidade de compreensão da antijuridicidade da conduta e que o âmbito de autodeterminação do sujeito tenha tido certa amplitude. A culpa não faz parte da culpabilidade. O direito penal individualiza as condutas humanas em tipos – doloso e culposo, contendo proibições de condutas. Assim, ZAFFARONI critica autores que defendem a ausência de finalidade na conduta: “O tipo culposo não individualiza a conduta pela finalidade e sim porque,
na forma em que se obtém essa finalidade, viola-se um dever de cuidado, ou seja, como diz a própria lei penal, a pessoa, por sua conduta, dá causa ao resultado por imprudência, negligência ou imperícia. A circunstância de que o tipo não individualize a conduta culposa pela finalidade em si mesma não significa que a conduta não tenha finalidade.” 101
Aqui importa salientar que existe um dever de cuidado violado, o qual deveria ter sido respeitado. E à pessoa jurídica seria impossível violar (ou não) um dever de cuidado, justamente por sua incapacidade de realizar conduta. 99
ZAFFARONI, E.R. e PIERANGELI, J.H. op. cit., p. 602. Idem, p. 606. 101 Idem, p. 506. 100
39
8.6 PRINCÍPIO DA PUNIBILIDADE As finalidades de aplicação da pena criminal, quais sejam, a reprovação da culpabilidade e a prevenção geral e especial da criminalidade, “são inaplicáveis à pessoa jurídica, incapaz das emoções ou sentimentos humanos que fundamentam os fins atribuídos à pena criminal”.
102
Faz-se oportuna, aqui, uma breve referência às principais teorias que buscam legitimar o poder punitivo estatal. E tal se faz necessário, como lecionam ZAFFARONI e Nilo BATISTA, porque essas teorias, embora não sejam atualmente enunciadas em sua forma originária, permanecem vigentes, não havendo novos discursos, mas somente novas combinações dos tradicionais. Por outro lado, seguem os autores, da visão conjunta dessas teorias resulta uma disparidade que resulta em construções diversas e completamente incompatíveis, evidenciando a ausência de uma base sólida fundamentadora e a crise permanente no discurso. Com isso, afirmam, cria-se “um direito penal elaborado dogmaticamente, mas que termina em uma prática tópica (porque permite que o operador escolha primeiro a decisão e, depois, procure o fundamento)”, previsibilidade”.
o que “exibe o descumprimento da promessa dogmática de
103
Supramencionados autores ensinam que há dois grandes grupos de modelos que legitimam o poder punitivo: de um lado, “o que pretende que o valor positivo da criminalização atue sobre os que não delinqüiram, das chamadas teorias da prevenção geral, as quais se subdividem em negativas (dissuasórias) e positivas (reforçadoras)” e;
de outro, “o que afirma que o referido valor atua sobre os que
delinqüiram, das chamadas teorias da prevenção especial, as quais se subdividem em negativas (neutralizantes) e positivas (ideologias re: reproduzem um valor positivo na pessoa)”.
102
104
SANTOS, J.C. dos. A responsabilidade... p. 4. ZAFFARONI, E.R.; BATISTA, N.; ALAGIA, A. e SLOKAR, A. Direito penal brasileiro. v. 1. 2. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2003. p. 114. 104 Idem, p. 115. 103
40
Passemos, pois, à análise sucinta de cada uma dessas teorias e suas conseqüências, partindo da classificação proposta por ZAFFARONI e Nilo BATISTA, que as dividem da seguinte maneira: a) primeiramente, as teorias absolutas, que têm caráter retributivo, com a finalidade de garantir a eticidade quando uma ação a contradiga, aplicando ao criminoso um sofrimento equivalente ao por ele produzido; b) as teorias da prevenção geral negativa, que adotam uma posição semelhante à das absolutas, pretendendo intimidar o criminoso, a partir da aplicação da pena, para desestimular a criminalidade; c) as teorias da prevenção geral positiva, que, reforçando simbolicamente os valores dos sujeitos não-delinqüentes, pretendem conservar e fortalecer os valores ético-sociais; d) as teorias da prevenção especial negativa, que pretendem conservar a sociedade a partir da neutralização do delinqüente através da privação de sua liberdade e; e) as teorias da prevenção especial positiva, para as quais a pena tem o condão de ressocialização, repersonalização, reeducação e reinserção do indivíduo condenado através de sua execução.
105
Análise semelhante é feita por Claus ROXIN ao afirmar que, desde a antiguidade, há disputa entre três interpretações fundamentais para a finalidade da pena, as quais permanecem, ainda hoje, determinando a discussão em diversas combinações das mesmas. São elas: a teoria da retribuição (teoría de la retribución, de la justicia, de la expiación); a teoria da prevenção especial (teoría de la prevención especial ) e; a teoria da prevenção geral (teoría de la prevención general ). Para o autor, de combinações dessas três teorias surgem as teorias unificadoras retributivas (teorías unificadoras retributivvas) e a teoria unificadora preventiva (teoría unificadora preventiva).106 Segundo ROXIN, a teoria da retribuição (teoría de la retribución) não encontra o sentido da pena na persecução de nenhuma finalidade socialmente útil; apenas com a imposição de um mal merecido (sanção) se retribui, equilibra e repara a
105
ZAFFARONI, E.R.; BATISTA, N.; ALAGIA, A. e SLOKAR, A. op. cit., p. 115 – 116. ROXIN, C. Derecho penal: parte general, tomo I – fundamentos, la estructura de la teoría del delito. 2. ed. Madrid: Thomson Civitas, 2003. p. 81 e ss. 106
41
culpabilidade do autor pelo ato cometido. Diz-se desta uma teoria absoluta porque, para ela, a finalidade da pena é independente, desvinculada de um efeito social.107 Em sentido totalmente contrário se encontra, na análise de ROXIN, a teoria da prevenção especial, segundo a qual a missão da pena não é outra que não a de fazer com que o autor desista de praticar futuros delitos mediante a aplicação de uma sanção. Para a teoria da prevenção especial, ensina o autor, a finalidade da pena aponta à prevenção dirigida ao autor individualmente (especial), sendo uma teoria relativa, pois se refere ao fim de prevenir delitos. Tal teoria encontrou seu expoente máximo em FRANZ v. LISZT, para quem a prevenção especial pode atuar de três formas: assegurando a comunidade frente aos delinqüentes, mediante o aprisionamento destes; intimidando o autor, mediante a aplicação da pena e; prevenindo a reincidência, mediante a correção do delinqüente. 108 A teoria da prevenção geral, última das teorias penais tradicionais, ao contrário da teoria das anteriores, não vê a finalidade da pena nem na sua retribuição, nem tampouco na sua influência sobre o autor, mas sim em sua influência sobre toda a comunidade que, mediante as ameaças penais e a execução da pena, deve ser instruída sobre as proibições legais e afastada de sua violação. Afirma ROXIN que, uma vez mais, trata-se de uma teoria que tende à prevenção de delitos, preventiva e relativa, mas que prega a atuação da pena não especialmente, sobre o condenado, mas de forma geral, sobre a comunidade.109 O autor cita, ainda, as teorias unificadoras retributivas, as quais consideram a retribuição, a prevenção especial e a prevenção geral como fins da pena que se perseguem simultaneamente. Porém, defende a teoria unificadora preventiva, afirmando que “el punto de partida de toda teoría hoy defendible debe basarse em el entendimiento de que el fin de la pena solo puede ser de tipo preventivo”.
110
ROXIN afirma que, partindo do princípio de que as normas penais somente se justificam quando tendem à proteção da liberdade individual e à ordem social que 107
Idem, p. 81 – 82. ROXIN, C. op. cit., p. 85. 109 Idem, p. 89. 110 Idem, p. 95. 108
42
está a seu serviço, também a pena concreta só pode perseguir a um fim preventivo do delito. Disso resulta que a prevenção especial e a geral devem figurar conjuntamente como fins da pena, pois os atos delitivos podem ser evitados tanto através da influência sobre o particular como da coletividade. O autor defende a renúncia a toda retribuição, adotando o princípio da culpabilidade como limitação da intervenção da pena estatal.111 Como se vê, a moderna doutrina penal defende que a pena serve aos fins da prevenção especial e da geral, limitadas pela medida de culpabilidade, de acordo com exigências de prevenção especial e desde que não haja oposição das exigências mínimas de prevenção geral. 112 Assim, diante de tais conceitos, uma vez mais estamos enfrentamos o paradigma criado pela inexistência de vontade real da pessoa jurídica, a qual somente é dotada da vontade pragmática. Disso decorre o fato de que a pessoa jurídica não pode se arrepender, tornando injustificável – e até inútil – a aplicação da pena como reprovação da culpabilidade. Por outro lado, no que tange à prevenção geral, consistente no desestímulo à criminalidade pela intimidação do criminoso (negativa) e no reforço dos valores comunitários (positiva) não afeta a pessoa jurídica, porque esta não tem consciência, sendo guiada somente pela vontade coletiva e não pode, portanto, ser intimidada. Ainda, com relação à prevenção especial consistente na neutralização do condenado por meio da privação de sua liberdade (negativa), esta é absolutamente impensável na pessoa jurídica, que não pode ser encarcerada e a prevenção especial, fundada na ressociabilização do condenado (positiva), é igualmente impossível, pois como já dito, faltam à pessoa jurídica as características próprias dos seres humanos de arrependimento, de compreensão, enfim, de consciência. 8.7 PRINCÍPIO DA INTERVENÇÃO MÍNIMA
111
ROXIN, C. op. cit., p. 95 – 103. Idem, p. 103.
112
43
O princípio da intervenção mínima determina que o direito penal só deva se ocupar de lesões graves aos bens jurídicos mais importantes, deixando as lesões menores para os outros ramos do direito, sempre que possível. A pena estatal, considerada a mais grave sanção, deve ser entendida como a ultima ratio, ou seja, o último recurso, quando não houver nenhum outro instrumento capaz de dar suficiente proteção a determinado bem jurídico. Nas palavras de Luiz Regis PRADO: “O princípio da intervenção mínima ou da subsidiariedade estabelece que o
Direito Penal só deve atuar na defesa dos bens jurídicos imprescindíveis à coexistência pacífica dos homens e que não podem ser eficazmente 113 protegidos de forma menos gravosa”.
Assim como o princípio da legalidade, o princípio da intervenção mínima surgiu como reação ao sistema penal do absolutismo, a partir da ascensão da burguesia. A idéia de intervenção mínima já estava presente em MONTESQUIEU, 114
que afirmava que “bastam poucas penas quando um povo é virtuoso”
e
BECCARIA, que asseverou: “se são proibidos aos cidadãos muitos atos indiferentes, atos os quais nada
têm de prejudicial, não se previnem os delitos: em vez disso, faz-se com que apareçam novos, pois se mudam de modo arbitrário as idéias comuns de 115 vício e de virtude, que ainda se proclamam eternas e imutáveis”.
Intimamente relacionadas ao princípio da intervenção mínima estão as características da fragmentariedade e da subsidiariedade do direito penal. Nas palavras de Claus ROXIN: “La protección de bienes jurídicos no se realiza sólo mediante el derecho
penal, sino que a ello ha de cooperar el instrumental de todo el ordenamiento jurídico. El derecho penal sólo es incluso la última de entre todas las medidas protectoras que hay que considerar, es decir que sólo se le puede hacer intervenir cuando fallen otros medios de solución social del 116 problema”. 113
PRADO, L.R. Curso de direito... p. 149. MONTESQUIEU. Do espírito das leis. São Paulo: Martin Claret, 2002. p. 96. 115 BECCARIA, C.. Dos delitos e das penas. São Paulo: Martin Claret, 2002. p. 102. 116 ROXIN, C. op. cit., p. 65. 114
44
Na América Latina, leciona Eugenio Raúl ZAFFARONI que estamos sofrendo as conseqüências de inúmeras agressões passadas aos direitos humanos (que o autor chama de injusto jushumanista), afetando o direito ao desenvolvimento consagrado pelo art. 22 da Declaração Universal dos Direitos Humanos, o que reforça ainda mais, no contexto latino-americano, a necessidade de intervenção mínima do sistema penal.117 Com efeito, como afirma ZAFFARONI: “Se a intervenção do sistema penal é, efetivamente, violenta, e sua
intervenção pouco apresenta de racional e resulta ainda mais violenta, o sistema penal nada mais faria que acrescentar violência àquela que, perigosamente, já produz o injusto jushumanista a que continuamente somos 118 submetidos”.
Disso conclui o autor que o sistema penal estaria apenas a acentuar os graves efeitos produzidos pelo injusto jushumanista, razão pela qual assevera: “O sistema penal deve corresponder ao princípio da intervenção mínima na
América Latina, não somente pelas razões que se apresentam como válidas nos países centrais, mas também em face de nossa característica de países periféricos, que sofrem os efeitos do injusto jushumanista de violação do 119 direito ao desenvolvimento”.
No Brasil, apesar de não se encontrar expresso na Constituição, nem do Código Penal, ensina Nilo BATISTA que o princípio da intervenção mínima deve ser observado tanto pelo legislador quanto pelo intérprete da lei, “por sua compatibilidade e conexões lógicas com outros princípios jurídico-penais, dotados de positividade, e com pressupostos políticos do estado de direito democrático”.
120
E tal se faz necessário justamente para impedir que o sistema penal deixe de garantir a proteção aos bens jurídicos, ficando condenado a uma função meramente simbólica e negativa. A lei penal só deve intervir quando for de fato necessário para garantir a convivência pacífica e harmoniosa da comunidade. 117
ZAFFARONI, E.R. e PIERANGELI, J.H. op. cit., p. 80. Idem, p. 80 – 81. 119 Idem, ibidem. 120 BATISTA, N. op. cit., p. 85. 118
45
9 TEORIAS DA AÇÃO E SUA RELAÇÃO COM A RESPONSABILIZAÇÃO DA PESSOA JURÍDICA Ao analisarmos as teorias acerca da responsabilidade penal da pessoa jurídica, vimos que a teoria da ficção, elaborada por SAVIGNY, inadmite a responsabilização penal do ente coletivo em razão de considerá-lo uma ficção, incapaz de agir se não pela vontade de seus dirigentes. Por outro lado, a teoria realista, defendida por GIERKE, aceita a pessoa jurídica como uma realidade social, pessoa equiparável ao ser humano para o direito, dotada de vontade própria e capaz, portanto, de agir em contrariedade ao ordenamento jurídico-penal, não havendo óbice algum para sua responsabilização nessa esfera. Como se vê, ambas as teorias têm o mesmo ponto de partida: enquanto uma se propõe a negar veementemente a possibilidade de agir por conta própria da pessoa moral, a outra vem, em contrapartida, afirmar essa capacidade. Toda a discussão gira, portanto, em torno da possibilidade da pessoa jurídica realizar conduta. Essa discussão remete à controvérsia entre os modelos causal e final sobre o conceito de ação e, mais recentemente, os modelos social, negativo, pessoal, entre outros, os quais serviram para tornar o consenso sobre o tema ainda mais distante e improvável.121 Afinal, sendo a ação elemento essencial do tipo penal, como ensina MIRABETE, não há crime sem ação, pairando sobre o conceito de ação as maiores divergências da doutrina, pois, “conforme o sentido que se dê à palavra ação, modifica- se o conceito estrutural do crime”. 122 Sendo assim, para que possamos entender a razão da impossibilidade de responsabilização criminal da pessoa jurídica dentro do sistema adotado pelo direito penal brasileiro, é de suma importância conhecer as principais teorias da ação. Em que pese a existência, hoje, de inúmeras teorias que pretendem definir o que é conduta, todas elas decorrem, de alguma forma, das teorias causal e final. Por 121
SANTOS, J.C. dos. A moderna teoria do fato punível. 4. ed. rev. e atual. Curitiba: ICPC; Lúmen Juris, 2005. p. 11. 122 MIRABETE, J.F. Manual de direito penal. v. 1. 18. ed. São Paulo: Atlas, 2002. p. 102.
46
essa razão, acreditamos seja suficiente, neste estudo, nos ater à análise destas duas, além da chamada teoria social, que pretende conciliar os modelos causal e final, sem desconhecer da existência dessas novas teorias. 9.1 TEORIA CAUSAL A teoria causal passou a ser desenvolvida sob a matriz filosófica do positivismo naturalista, cujo método se voltava às ciências do ser , descrevendo os fenômenos da natureza como relações de causa e efeito e não considerando científico o que não pudesse ser reduzido a essa relação. 123 Dentro dessa concepção mecanicista-newtoniana, o direito penal, embora não pertencente à categoria das ciências do ser , mas do dever ser , “para não perder o status de científico naquele caudal de idéias positivistas naturalistas que o envolviam ao cabo do século XIX, findou por adaptar- se às regras do jogo”.124 Sendo assim, a teoria causal resumiu-se à relação causa e efeito, analisando todos os elementos subjetivos (inclusive dolo e culpa) na culpabilidade.125 Observa Juarez Cirino dos SANTOS que a teoria causal, elaborada basicamente por LISZT, BELING e RADBRUCH, “define a ação como produção causal de um resultado de modificação no mundo exterior”.
126
Tal definição deriva diretamente do conceito clássico de crime, o qual já foi anteriormente abordado (capítulo 4), que mantinha o aspecto objetivo, “composto de conduta humana, tipicidade e ilicitude, apoiado na causalidade física de um resultado ofensivo a bem jurídico”
127
e um aspecto subjetivo, consistente na culpabilidade tão
somente como elemento de ligação psíquico entre o agente e o resultado da conduta praticada.
123
GUARAGNI, F.A. As teorias da conduta em direito penal : um estudo da conduta humana do précausalismo ao funcionalismo pós-finalista. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005. p. 64. 124 GUARAGNI, F.A. op. cit., p. 65. 125 Conforme aula do Prof. Ms. Pedro Luciano Evangelista Ferreira, ministrada no dia 26 de agosto de 2006, no Centro Universitário Positivo – UnicenP. 126 SANTOS, J.C. dos. A moderna... p. 12. 127 GUARAGNI, F.A. op. cit., p. 67 – 68.
47
Na teoria causalista, os elementos do conceito de ação eram apenas dois: ato de vontade e resultado. A esses elementos, ensina GUARAGNI, acrescia-se o nexo causal, para que se pudesse atribuir o resultado ao ato. Segundo o autor, havia duas hipóteses de atribuição da alteração no mundo exterior à vontade humana: quando essa alteração fosse voluntariamente causada ou; quando, voluntariamente, não fosse impedida.128 Nas suas palavras, para a teoria causal: “Se o nexo entre o movimento corpóreo e o resultado é assim necessário,
dizemos que o movimento corpóreo é a causa do resultado, que este é o efeito daquele, isto é, aplicamos à relação do movimento corpóreo e do resultado a categoria da causalidade (como uma forma do nosso 129
entendimento).”
O conceito de conduta para a teoria causal se resumia, portanto, a “um movimento corporal voluntário que figurava como causa de um efeito, consistente na modificação do mundo exterior, ou resultado natu ralístico”.130 Sendo o movimento corpóreo o primeiro elemento conceitual de conduta, percebe-se que, já para o causalismo, era impossível à pessoa jurídica cometer delitos (conforme o conceito analítico de crime), sendo viável apenas e tão somente a prática de crimes por seus representantes, como bem observou GUARAGNI. 131 Não era relevante a finalidade do ato, sendo necessária apenas a existência de um agir voluntário para se caracterizar a ação típica. 132 A vontade, por outro lado, servia apenas para indicar a ausência de coação física absoluta, fixando-se no resultado de modificação no mundo exterior o elemento constitutivo do conceito, como leciona Juarez Cirino dos SANTOS,133 separando completamente a relação psíquica do autor com o resultado da conduta. Ou seja: o único elemento subjetivo presente na conduta para a teoria causal era a voluntariedade do ato, estando a conduta totalmente esvaziada de aspectos anímico-subjetivos, os quais se encontravam na culpabilidade. 128
GUARAGNI, F.A. op. cit., p. 68 – 69. Idem, p. 69. 130 Idem, ibidem. 131 Idem, p. 70. 132 MIRABETE, J.F. op. cit., p. 102. 133 SANTOS, J.C. dos. A moderna... p. 12. 129
48
O que definia a conduta, no modelo causal, era a existência de uma ação voluntária (isso é, livre de vícios como a coação moral irresistível) que causasse um resultado naturalístico (mudança no mundo exterior) mediante a existência de um nexo de causalidade entre este e aquela. 134 9.2 TEORIA FINAL A estrutura fundamental da ação para a teoria finalista pressupõe, na lição de Hans WELZEL, que: “a finalidade, o caráter final da ação, baseia-se no fato de que o homem,
graças ao seu saber causal, pode prever, dentro de certos limites, as possíveis conseqüências de sua conduta, designar-lhe fins diversos e dirigir 135 sua atividade, conforme um plano, à consecução desses fins.”
Dentro dessa concepção, o elemento crucial, que determina objetivamente o resultado, é a vontade, que se constitui como espinha dorsal da ação finalista.136 No direito brasileiro, a partir da reforma do Código Penal de 1984, deixouse para trás a teoria causalista, sistematizada no tipo objetivo, com dolo e culpa na culpabilidade, que era sustentada na maioria absoluta das obras elaboradas na vigência do Código de 1940, passando a adotar a teoria finalista, cuja sistemática se dá pelo tipo complexo e culpabilidade depurada.137 Deve-se esclarecer, por oportuno, que quando o se fala em culpabilidade “depurada” está-se fazendo referência apenas à culpabilidade pura, desentranhando-se
do conceito as figuras do dolo e da culpa, ou seja, culpabilidade entendida tão somente como juízo de reprovabilidade. Na teoria finalista, o dolo e a culpa passam a ser analisados no tipo.
134
GUARAGNI, F.A. op. cit., p. 71 – 76. WELZEL, H. O novo sistema jurídico-penal: uma introdução à doutrina da ação finalista. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001. p. 27. 136 Idem, ibidem. 137 ZAFFARONI, E.R. e PIERANGELI, J.H. op. cit., p. 399. 135
49
Regis PRADO, no prefácio à tradução que fez da obra de Hans WELZEL, destaca: “no Brasil, tem-se como despiciendo dissertar sobre a decisiva influência do
pensamento finalista. Além da Reforma Penal de 1984, que agasalhou alguns de seus postulados, predominam largamente na doutrina e na jurisprudência nacionais as diretrizes finalistas.” 138
Necessário, pois, analisarmos de forma mais aprofundada a teoria finalista da ação e suas implicações, as quais se demonstram incompatíveis com as recentes tentativas de imputação penal das pessoas jurídicas. A evolução para a teoria finalista teve início, conforme ensina ZAFFARONI,139 ao final da década de 1920, quando Hellmuth von WEBER e Alexander GRAF zu DOHNA incorporaram o conteúdo da vontade (dolo e culpa) ao tipo, separando-o da culpabilidade enquanto juízo de reprovabilidade. Porém, muito embora tenham sido esses autores os precursores da teoria da ação final, não extraíram das suas afirmações todas as conseqüências dogmáticas para a transformação do sistema de direito penal, como leciona JESCHEK: “La teoría de la acción final ha tenido sus precursores em v. Weber, E. Wolf
y Graf zu Dohna, aunque em ellos todavía se trata de afirmaciones de las que no han sido extraídas la totalidad de las consecuencias dogmáticas para la transformación del sistema de Derecho penal.”140
A teoria finalista ganhou fôlego, segundo ZAFFARONI, com a obra de Hans WELZEL, ao afirmar que “a vontade não pode ser separada de seu conteúdo, isto é, de sua finalidade, posto que toda conduta humana deve ser voluntária e toda 141
vontade tem um fim.”
Para a teoria finalista – adotada pelo direito brasileiro, frise-
se, a partir da reforma do Código Penal – a ação humana se constitui em um agir guiado por um fim. 138
WELZEL, H. op. cit., p. 9. ZAFFARONI, E.R. e PIERANGELI, J.H. op. cit., p. 398. 140 JESCHECK, H. y WEIGEND, T. Tratado de derecho penal. 5. ed. cor. y amp. Granada: Comares Editorial, 2002. p. 227. 141 ZAFFARONI, E.R. e PIERANGELI, J.H. op. cit., p. 399. 139
50
Nessa concepção, como ensina Regis PRADO,142 a estrutura da ação humana passa pela etapa subjetiva, quando o homem antecipa o fim que quer realizar, seleciona os meios apropriados para obter o resultado pretendido e considera os efeitos da utilização dos meios para obtenção do objetivo e, após, a etapa objetiva, consistente na execução da ação previamente planejada. Daí se extrai, segundo o autor, se a ação é punível ou não. Ademais, continua Regis PRADO, a partir da teoria finalista, transformações importantes ocorrem quanto à caracterização do fato delituoso, a saber: a inclusão do dolo e da culpa na tipicidade, a adoção do conceito pessoal de injusto e a presença da culpabilidade como fator puramente normativo. Com efeito, os impactos da transformação com relação à teoria causal são grandes. Em primeiro lugar, para definir o crime, ou delito, a teoria causal entende por conduta a “vontade exteriorizada de maneira a pôr em marcha a causalidade”, enquanto a teoria finalista entende conduta como “ação voluntária (final)”. Tipicidade, na teoria causal, é vista como “proibição da causação de um resultado que eventualmente também leva em conta elementos subjetivos”,
enquanto que na
teoria finalista é entendida como “proibição de conduta em forma dolosa ou culposa”. Na teoria causal, a antijuridicidade é “entendida como contradição entre a causação do resultado e a ordem jurídica” e, proibida com a ordem jurídica”.
na teoria finalista, “como contradição da conduta
Finalmente, com relação à culpabilidade, enquanto
para a teoria causal é “reprovabilidade, mas contendo também o dolo e a culpa”, para a teoria finalista é entendida tão somente como “reprovabilidade”.143 Assim, verifica-se que do próprio conceito de crime, para a teoria finalista, extrai-se a impossibilidade de imputação penal da pessoa jurídica. A uma, porque o ente coletivo não goza de vontade própria, não sendo possível atribuir-se a ele uma conduta (ação voluntária); a duas, porque uma vez que não se verifica o elemento vontade, não há que se falar em dolo ou culpa, excluindo-se assim a tipicidade e; a
142
PRADO, L.R. Curso de direito... p 319. ZAFFARONI, E.R. e PIERANGELI, J.H. op. cit., p. 398 – 399.
143
51
três, porque se a pessoa jurídica não é capaz de ação voluntária, não pode ter sua conduta reprovada, razão pela qual se exclui também o elemento culpabilidade. Há que se ressaltar, desde logo, que a vontade pragmática, da qual resulta a ação institucional e na qual os defensores da criminalização da pessoa jurídica se apóiam, como ensina Juarez Cirino dos SANTOS, “não se confunde com a vontade consciente do conceito de ação”,
porque “não contém os requisitos da ação humana,
que fundamenta a responsabilidade pessoal do dir eito penal”. 144 Vale lembrar, uma vez mais, a impossibilidade da pessoa jurídica realizar conduta. E sendo assim, não é possível ser a própria pessoa jurídica autora de um delito, como afirma ZAFFARONI: “aquele que, para cometer um delito, se vale de um sujeito que não realiza conduta é, em geral, autor direto do delito; o que não realiza conduta jamais é autor”.
145
O fato é que, ao ver um delito praticado em tese pelo ente coletivo, é necessário apurar o(s) responsável(is) pela prática delituosa (diretores, sócios, enfim), sendo absolutamente descabido atribuir a prática de uma conduta típica à pessoa jurídica. 9.3 TEORIA SOCIAL A chamada teoria social da ação é uma ponte entre as teorias causal e final. Tal teoria se baseia, segundo ZAFFARONI: “na afirmação de que não é qualquer ação que pode ser matéria proibida
pelo direito penal, mas somente aquelas que têm sentido social, isto é, que transcendem a terceiros, fazendo parte do interacionar humano; apenas as ações que fazem parte desta interação podem interessar ao direito penal, e não aquelas que não transcendem o âmbito individual .”146
Nessa teoria, sustenta-se que as ações com relevância penal são aquelas que “perturbam a ordem social” e que não será ação se não transcender do indivíduo. 144
SANTOS, J.C. dos. A responsabilidade... p. 3. ZAFFARONI, E.R. e PIERANGELI, J.H. op. cit., p. 439. 146 Idem, p. 425. 145
52
No nosso ordenamento jurídico ocorre um problema de tipicidade e não de conduta, pois é proibida a tipificação das ações que não transcendam do indivíduo. Explica ZAFFARONI que “acha-se
proibida a tipificação de ações que não
transcendam do sujeito, mas não porque não sejam ações, e sim porque não se admite a tipicidade de qualquer conduta que não afete bens jurídicos. ”147 Há vários conceitos “sociais” da conduta, parecendo que a única característica de todos eles é a “relevância social”. Segundo ZAFFARONI, a teoria
é
nebulosa e o autor que adotá-la estará acolhendo a estrutura do delito da teoria finalista ou da teoria causalista, em função das exigências dos tipos. Assim sendo, a conduta que tenha tão-somente “relevância social” não tem unidade. Afinal, a “relevância social” é um requisito da tipicidade e não da conduta em
si. Resta, portanto, evidente que tais “teorias sociais” resultam praticamente inúteis, pois não encontram fundamento em si mesmas, tendo de recorrer a argumentos das teorias final ou causal. 9.4 A OPÇÃO DO LEGISLADOR PÁTRIO PELA TEORIA FINALISTA: CONSAGRAÇÃO DA IMPOSSIBILIDADE PENAL DO ENTE COLETIVO Por todo o exposto a respeito das teorias da ação, salta aos olhos em evidência a impossibilidade de responsabilização penal da pessoa jurídica, pois esta não é capaz de realizar conduta; não é capaz de ação, senão por intermédio da atuação de um órgão humano. Isso se deve à adoção do conceito pessoal de ação, ou seja, a ação vista como manifestação da personalidade humana, que serve de elemento limitador entre ação e falta de ação, como ensina o eminente Claus ROXIN: “Por último, el conceopto de ‘manifestación de la personalidad’ describe
también el critério decisivo para la delimitación entre acción y falta de acción (...) Tampoco son acciones conforme al Derecho Penal alemán los actos de personas jurídicas, pues, dado que lês falta uma sustância psíquicoespiritual, no pueden manifestarse a si mismas. Solo ‘órganos’ humanos
147
ZAFFARONI, E.R. e PIERANGELI, J.H. op. cit., p. 426.
53
pueden actuar com eficácia para ellas, pero entonces hay que penar a aquéllos y no a la persona jurídica.”148
Ainda, levando em conta a incompatibilidade da responsabilização penal do ente coletivo com a estrutura teórica do direito penal alemão, do qual deriva o direito penal brasileiro, assinala JESCHECK: “La punibilidade de colectivos de personas es incompatible com la
estructura teórica del Derecho penal alemán, especialmente com los conceptos de acción y de culpabilidad. Para la imputación penal de comportamientos corporativos deberían ser introducidas ‘otras reglas y 149 cate gorías’. Pero este paso no resulta necesario.”
Como se vê, o próprio JESCHECK, embora reconheça a possibilidade de se adotar a responsabilidade penal da pessoa jurídica, desde que sob um novo sistema, com regras e categorias que assim permitissem, afirma que tal não se faz necessário. E chega a essa conclusão levando em conta não apenas o fato de que a pessoa jurídica é incapaz de conduta, mas também em razão da possibilidade de alcançar os resultados pretendidos, quais sejam, os de coibir as ações delituosas praticadas por intermédio da personalidade jurídica, de outra forma que não pela aplicação de pena criminal. Para o autor, isso não somente pode como deve ser feito, até porque “cuando tambén el Derecho alemán rechaza la pena criminal frente a pers onas
jurídicas lo hace porque desde tiempo atrás existen .150
entes col ecti vos ”
148
ROXIN, C. op. cit., p. 258 – 259. JESCHECK, H. op. cit., p. 243. 150 Idem, p. 244 (grifos do autor). 149
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54
10 ARGUMENTOS FAVORÁVEIS À RESPONSABILIZAÇÃO PENAL DA PESSOA JURÍDICA E SUA CRÍTICA Parte da doutrina insiste em defender a responsabilização penal da pessoa jurídica, afirmando que a realidade atual já não permite que o direito penal ignore a relevância criminal ativa da pessoa jurídica. Segundo Walter Claudius ROTHENBURG, é “esse o principal ‘argumento’ favorável à tese da imputação de conduta s criminosas à pessoa jurídica: a realidade de hoje”.151 Para o autor, o direito deve acompanhar as mudanças havidas na sociedade, sendo que “o direito criminal mostra- se particularmente refratário, em seu apego teimoso às idéias tradicionais”.152 Tal posicionamento, contudo, representa uma clara tentativa de burlar o princípio do nullum crimen sine conducta (não há crime sem conduta), como ressalta ZAFFARONI. Para ele, a corrente que prega a responsabilização do ente coletivo adota o argumento político-criminal do auge da delinqüência econômica, adotando um ponto de vista extremamente formal (apoiado pela teoria kelseniana, segundo a qual as pessoas – sejam físicas ou jurídicas – não passam de ‘feixes de direitos e obrigações’).
153
Na concepção de ZAFFARONI, basta que se adote um ponto de vista realista para que se percebam as diferenças na estrutura de uma sociedade comercial e um homem, restando ausente na pessoa jurídica o equivalente à conduta humana. Leciona o autor que o Código Penal Brasileiro, em suas disposições, refere-se às condutas humanas, pelo que se torna desnecessário sustentar argumentos como a ausência de capacidade de culpabilidade da pessoa jurídica ou mesmo a inconstitucionalidade de uma eventual aplicação de pena ao ente coletivo (por ser transcendente), eis que nestes entes não há capacidade de conduta humana - argumento esse que, por si, é suficiente para descartar a sua responsabilização criminal, como já foi exposto acima (item 4.7). 154 151
ROTHENBURG, W.C. op. cit., p. 36. Idem, ibidem. 153 ZAFFARONI, E.R. e PIERANGELI, J.H. op. cit., p. 409. 154 Idem, p. 409 – 410. 152
55
Cabe
ressaltar,
ainda,
outra
questão
importante
levantada
por
ZAFFARONI: “o direito pretende regular conduta humana, não podendo ser o delito outra coisa além de uma conduta”.
155
A eliminação do princípio nullum crimen sine
conducta, considerado uma garantia jurídica elementar, acarretaria na possibilidade de penalizar o pensamento, a forma de ser, as características pessoais etc. A conduta, em sua estrutura onto-ontológica156, como base do delito, é, para ZAFFARONI, a única forma de garantir um direito penal que respeite minimamente a dignidade humana. Desconhecendo essa estrutura, “corre-se o risco de salvar a forma, mas evitar o conteúdo, porque no lugar de uma conduta humana se colocará outra coisa”.
155
157
ZAFFARONI, E.R. e PIERANGELI, J.H. op. cit., p. 409. Segundo o dicionário Houaiss da língua portuguesa: ont(o)- el. comp. antepositivo, do gr. ón,óntos ‘ser, criatura’; ontológico adj. 1 relativo à ou próprio da ontologia, a investigação teórica do ser 1.1 no heideggerianismo, relativo ao ser em si mesmo, em sua dimensão ampla e fundamental, em oposição ao ôntico, que se refere aos entes múltiplos e concretos da realidade. 157 ZAFFARONI, E.R. e PIERANGELI, J.H. op. cit., p. 409. 156
56
11 CONSIDERAÇÕES FINAIS O legislador pátrio, na ânsia de dar uma resposta à sociedade quanto à crescente criminalidade empresarial, acabou por prever a responsabilidade penal da pessoa jurídica, dando preferência aos fins político-criminais em detrimento dos princípios básicos do direito penal que, vigentes em nosso ordenamento jurídico, levam à conclusão exatamente contrária, ou seja, à impossibilidade de tal responsabilização. Ao longo deste trabalho, partiu-se da análise dos principais sistemas de responsabilização penal da pessoa jurídica, deixando claro que os mesmos não se adequam à realidade brasileira. O sistema inglês, fundado no princípio do societat delinquere potest , permite a identificação entre a pessoa física causadora do ato ilícito e a pessoa jurídica, o que é fruto de uma mentalidade prática construída pela jurisprudência e inaplicável no Brasil. Por outro lado, o sistema francês, que admite a responsabilidade penal da pessoa jurídica subsidiariamente à da pessoa física, embora tenha em suas raízes a família romano-germânica, não atribui ao princípio da culpabilidade o valor constitucional que se lhe atribuem outros países como a Alemanha, a Espanha e o Brasil. Ademais, como se demonstrou, o nosso sistema não contempla a teoria da realidade, a qual confere à pessoa jurídica os mesmos atributos que ao homem no que diz respeito à capacidade de ação. No Brasil, deve vigorar o entendimento de que, embora seja uma realidade própria e distinta, a pessoa jurídica não pode ser equiparada à pessoa física, pois somente esta possui vontade consciente, somente esta goza do livre arbítrio. Assim, mostra-se a realidade brasileira muito mais próxima da teoria da ficção do que da teoria da realidade. Diante disso, e levando em consideração o conceito analítico de crime, que o define como conduta humana, típica, antijurídica e culpável , presente desde o século XIX e, como demonstrado acima, sustentado ainda hoje tanto pelos finalistas como pelos não finalistas, mostra-se evidente a impossibilidade de imputação penal da pessoa jurídica, por lhe faltar a capacidade de realizar conduta. Portanto, tem-se como
57
primeiro elemento para refutar a possibilidade de responsabilização penal da pessoa jurídica a própria ausência de vontade livre e consciente desta, pois, sendo a conduta fenômeno exclusivamente humano, o princípio nullum crimen sine conducta se mostra suficiente para afastar desde logo a responsabilidade penal da pessoa moral. Todavia, parte da doutrina, especialmente composta por ambientalistas e constitucionalistas,
percorreu
um
caminho
equivocado
para
defender
tal
responsabilidade, partindo de interpretação errônea de dois dispositivos constitucionais que, ainda que tivessem sido concebidos no sentido em que se tem pretendido, estariam em dissonância com todo o sistema constitucional e penal pátrio, que aponta de forma absoluta no sentido da responsabilização penal subjetiva. Mas não é o que ocorre. De fato, ao falar, no art. 173, § 5.º, em “punições compatíveis com a sua natureza” o legislador constitucional deixou clara a intenção de
punir o ente coletivo dentro dos limites permitidos pelo sistema. Por outro lado, o art. 225, § 3.º, da Constituição Federal, deve ser interpretado no sentido de punir penalmente as pessoas físicas e administrativamente as pessoas jurídicas. Trata-se, em verdade, de mais uma maneira de consagração do princípio da responsabilidade penal subjetiva, e não da criação da responsabilidade objetiva. Esse é o entendimento corroborado pela maioria absoluta da doutrina penal. Não é possível, pois, que um ser de realidade fictícia seja penalmente responsável, a menos que retornemos à responsabilidade objetiva, a qual demandaria uma sensível reforma no sistema que não foi sequer iniciada até o momento e, no estágio atual, demonstra-se incompatível a realidade brasileira. Desse modo, por mais que o legislador constitucional tenha pecado pela ausência de clareza dos arts. 173, § 5.º e 225, § 3.º, não pode o legislador infraconstitucional interpretar a norma isoladamente, pois, como destacou BOBBIO, as normas não devem ser interpretadas de forma isolada, porque fazem parte de um sistema que se complementa. Além disso, a interpretação que se tem dado a esses dispositivos não pode vingar, pois afronta princípios fundamentais, consagrados como cláusulas pétreas, de hierarquia superior dentro do sistema constitucional. Por tais razões é que se sustenta, aqui, a inconstitucionalidade do art. 3.º, da Lei n.º 9.605/98.
58
Não bastasse isso, há ainda os problemas no tocante ao processo penal, quando se coloca uma pessoa jurídica, de existência fictícia, no banco dos réus. Demonstrou-se ao longo deste trabalho a impossibilidade da realização do interrogatório e, de igual sorte, as dificuldades na prática de inúmeros outros atos processuais que, da forma como se aplicam à pessoa jurídica, não permitem o regular exercício do direito à ampla defesa, constitucionalmente assegurado aos acusados. Sob o aspecto principiológico, a responsabilização penal da pessoa jurídica representa ofensa a pelo menos sete princípios fundamentais, sem os quais não se pode falar em segurança jurídica e, em última análise, em estado democrático de direito. Imputar a prática de um crime à pessoa jurídica ofende ao princípio da igualdade, na medida em que não se assegura tratamento igualitário a esta e a uma pessoa física quando se está diante de um mesmo fato delituoso, até porque isso seria impossível, dada a natureza jurídica (de realidade fictícia) do ente moral. A responsabilização penal do ente coletivo fere, ainda, o princípio da legalidade, pois este se realiza na tipicidade, a partir da descrição da conduta proibida e, não sendo a pessoa jurídica capaz de ação, não é capaz de compreender seus atos que, conforme informou Juarez Cirino dos SANTOS, são referidos como situações de ausência de ação. Há ainda a ofensa aos princípios da humanidade das penas, que reza que a característica fundamental da sanção penal é ter como pressuposto a condição humana, que não pode ser reconhecida na pessoa jurídica e o da personalidade das penas, segundo o qual a pena não ultrapassará da pessoa do condenado, o que se demonstra inviável no caso de responsabilização penal da pessoa jurídica, pois, como ressaltado acima, a sanção imposta ao ente coletivo afetará, direta ou indiretamente, inúmeras pessoas físicas que atuam em seu bojo, sejam seus sócios e diretores, sejam seus funcionários, dependendo da intensidade da pena aplicada. Ainda mais marcante é a ofensa aos princípios da culpabilidade e da punibilidade, ambos de caráter extremamente relevante para a aplicação da pena estatal. Afinal, se a pena deve ser aplicada na medida da culpabilidade do agente, sua aplicação à pessoa jurídica é absolutamente descabida, pois ausentes os elementos de
59
consciência psíquica e vontade, não é possível aferir a culpabilidade do ente coletivo, senão das pessoas físicas que agem através dele. E quanto ao princípio da punibilidade, basta dizer que a aplicação da pena à pessoa moral se revela absolutamente inútil, pois, como explicitado em momento anterior, não atinge aos anseios de qualquer das teorias que justificam a aplicação da pena estatal, analisadas em momento anterior. Com efeito, o desestímulo à criminalidade através da intimidação do criminoso, pregado pela prevenção geral negativa, e a ressociabilização do condenado, através da execução da pena, defendida pela prevenção especial positiva, não têm aplicabilidade ao ente moral que não é influenciável pela pena (pois não têm capacidade psíquica para tanto). Por outro lado, não há que se falar em privação da liberdade pessoal do ente coletivo, razão pela qual resta igualmente afastada a prevenção especial negativa e, como a pessoa jurídica não sofre censura ético-social, resulta prejudicada a teoria da prevenção geral positiva, que pretende, com a aplicação da pena, o reforço dos valores comunitários. Neste estudo se demonstrou ainda que, de acordo com as perspectivas finalistas – adotadas fortemente em todo o sistema penal brasileiro – não se pode falar em conduta sem vontade e que essa vontade é guiada por um fim, o qual não pode ser desprezado. A conduta, na teoria por adotada no ordenamento jurídico brasileiro não se resume a relações de causa e efeito, como fora outrora nas perspectivas causalistas, sendo em verdade tida como manifestação da personalidade humana. Porquanto a pessoa moral não age senão por intermédio de um órgão humano, não se lhe pode atribuir a responsabilidade penal. Por tudo o que foi exposto, é de se concluir que a aplicação de sanção criminal à pessoa jurídica, além de contrária aos princípios norteadores do direito penal brasileiro, é de fato desnecessária. Razão assiste, portanto, a JESCHECK, ao dizer que esse tipo de pena não deve ser aplicada em razão de, há muito tempo, haver a possibilidade de sancionar as pessoas jurídicas na esfera administrativa. E aqui se deve ressaltar que as penas que se pretendem atribuir à pessoa jurídica na esfera criminal são exatamente as mesmas que se atribuem na esfera administrativa, tais como multas, liquidação, suspensão das atividades etc. Por que não, então, recrudescer ainda mais a
60
esfera administrativa? É preciso combater a idéia de que somente ao direito penal incumbe solucionar os problemas sociais. A punição das pessoas físicas, responsáveis pela causação da ofensa aos bens jurídicos protegidos, esta sim deve ser feita na esfera penal. Porém o ente coletivo pode e deve ser punido no âmbito administrativo. Tal opção, além de preservar o princípio da intervenção mínima, segundo o qual o direito penal somente deve intervir nos casos em que não haja outro meio de dar efetividade à proteção dos bens jurídicos mais relevantes, se demonstra mais de acordo com as características próprias do direito penal e processual penal pátrio. Conclui-se, pois, ressaltando que embora necessária a efetiva proteção dos bens jurídicos fundamentais, em especial do meio ambiente que, hoje, mostra-se como essencial à vida das presentes e futuras gerações, por outro lado não se pode desconhecer da sistemática adotada pelo nosso ordenamento jurídico, que sustenta o estado democrático de direito. Assim, a proteção a tais bens jurídicos deve ser feita de maneira coerente e racional, sem a utilização discricionária, meramente simbólica do direito penal, desapegada dos valores e princípios constitucionais, da forma como pretende fazer o legislador com a edição de leis como a Lei dos crimes ambientais, concebida em sentido diretamente contrário aos postulados minimalistas que tanto se defendem no que diz respeito à tutela penal.
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