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Contos vertiginosos Roberto Schm Schmiitt-P tt-Pry ry m
© 2012 by Roberto Schmitt-Pry m Todos os direitos desta edição reservados à Editora Bestiário www.bestiario.com.br Rua Marques do Pom bal, 788/204 90540-000 - Porto Alegre, RS. Telefone: (51) 3779.5784 | 9325.1366 | 9491.3223 Capa
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S348c Schmitt-Pry m, Roberto Contos Vertiginosos / Roberto Schmitt-Prym. - Porto Alegre : Editora Bestiário, 2012. Recurso Digital 1. Literatura brasileira - contos. I Título CDD-8869-3
Pequenos, minúsculos, os contos de Roberto Schmitt-Prym entretanto revelam um longo conhecimento da vida e da arte. Possuem, em comum, uma visão realista de nosso quotidiano, tão cheio, por vezes, de desencontros – e, por que não, de tragédias íntimas. As personagens, todas sem nome, deam bulam por um universo em que a esperança é coisa rara, mas ela sempre surge, aqui e ali, no final de um conto ou no meio de outro. Caberá à sensibilidade do leitor deixar-se conduzir pela mão do autor nessas abreviadas aventuras, sabendo que viajará por autêntica literatura. Luiz Antonio de Assis Brasil
But I don’t want to go among mad people,” Alice remarke d. “Oh, you can’t help that,” said the Cat: “we’re all mad here. I’m mad. You’re mad.” “How do you know I’m mad?” said Alice. “You must be,” said the Cat, “or you wouldn’t have come here.” (Lewis Carroll Alice’s Adventures in Wonderland , Chapter 6
Cavalgada Sente a brisa no rosto, fecha os olhos e se vê num campo, galopando em vertiginosa correria. O entusiasmo o leva para longe, por paisagens inimagináveis. Subitamente o cavalo é detido em sua marcha e ele tem de voltar de sua fantástica viagem que chegara ao fim. Ainda não está parado totalmente, mas o menino coloca os pés no chão e corre alvoroçado na direção da m ãe. O que ouve são os ruídos do último giro do carrossel.
Um dia especial Acorda com a impressão de que aquele seria um dia especial. Está tão habituada com a monotonia de todos os dias que sonha com algo mágico e misterioso. Começa o dia com o ritual de todas as manhãs: banhar-se, vestir-se, tomar café, subir no ônibus, passar pelas ruas de sem pre, descer na mesma parada. Sai do elevador no décimo sétimo andar do prédio da empresa e entra num salão do século XIX. Dançavam ao som de valsas. Cavalheiros beijam-lhe as mãos, inclinam a cabeça. Ela faz mesuras, dobrando os joelhos, erguendo uma ponta da saia. As dam as a olham com invej a. Dança alegre as valsas que se sucedem, e outra, e mais uma, vertiginosa, até que finalmente desabará na cadeira giratória, diante do olhar atônito dos colegas.
A calma ão sabe exatamente onde está. Tudo calmo em volta. Um mundo em branco, amarelo e suave. Tudo parece enfadonho depois de algumas horas. A vida aos poucos se avoluma e já não cabe na palma da mão. Tem coisas que m udam num piscar de olhos e não sabe por que não pensa em coisas boas. Mantém o carro em alta velocidade na pista da esquerda. A tarde é morna, sem brisa, pouco sol e um revólver carregado no assento ao lado. Quando acorda entre duas que o olham inocentes e observa o sorriso de uma e o olhar arregalado da outra, a arma não está m ais ao alcance da m ão.
A dor A cidade solitária, silêncio. Uma m ulher ainda nua tentando adormecer entre bocej os e soluços. Seis da manhã, e a dor continuava lace-rante. Ao seu lado, ele dorme afundado no travesseiro, o sono dos injustos. Um chá de camomila, um cigarro fumado às escondidas. Talvez fosse melhor descer à outra realidade entre o véu de fumaça. Lá embaixo os primeiros operários cam inham sonolentos pela rua, rumo ao trabalho. Indício de uma noite que se foi há pouco. Quando volta ao quarto, contempla a cama como se fosse a jaula que aprisiona um animal feroz. Desfeita, enxuga as lágrimas do rosto, derrama o resto da bebida e acende outro cigarro.
A mínima diferença Quando ouviu as risadas na sala ao lado, alisou o vestido preto e saiu do quarto com a cara am arrotada de sono sem mesmo se olhar no espelho. Ficou na porta ouvindo-o contar como tinha sido abandonado por sua mulher, relatando como ela jogara pela janela as suas poucas roupas e como teria de conseguir às pressas outro local para morar. Perm aneceu imóvel num canto até que a dona da pensão fosse providenciar o almoço. Quando ele notou sua presença, ela convidou-o para o seu quarto. Na minúscula peça que alugava, sentaram-se na cam a, e ele transform ouse em outro homem. Ficou em silêncio, esfregando os olhos e perdendo-se em pensamentos. Desligou a luz principal e abriu a janela. Ao olhá-lo, lembrava que á fazia bons dois anos que sonhava com aquele momento. Não sabia como tinha se apaixonado por aquele homem casado, magro, que, além de beber, fumava um cigarro atrás do outro. Tudo era silêncio, lá fora apenas a chuva miúda e ele derrubando cinzas sobre o cobertor. Depois de algum tempo, pediu-lhe que telefonasse para a sua mulher, que inventasse uma desculpa qualquer, que ele precisava encontrá-la, para entregar alguma coisa im portante, que fosse. Ela sorriu sem graça dizendo que iria ao telefone e se viu andando na chuva, caminhando sozinha com o estava fadada a caminhar desde sem pre, enquanto ele tentava erguer-se aos poucos, limpando o sangue e as cinzas que lhe cobriam o corpo.
A mulher na rua A mulher cruza a rua apavorada. Da escuridão muitos olhos a acompanham, olhos amarelos. “Gatos têm olhos amarelos quando espreitam no escuro, ou não?” Apressa o passo. Detesta gatos. Das sombras vários homens avançam vagarosamente. Ela corre e cai. Os homens avançam rápidos, olham e lambem a carne branca. Arranham, mordem. Com as primeiras luzes da m anhã, abandonam o banquete.
A velha senhora Depois daquela manhã passou a seguir a velha senhora. Andou por ruas cheias de crianças brincando, viu amantes de mãos dadas, passou por velhos andando lentamente pelas ruas da vida. Quando a velha senhora entrava por uma porta gasta pelas marcas do tempo, e entrava por outra e mais outra casa, sempre aquelas pintadas de anos, esperava o tempo todo do outro lado da rua. A cada m orte morria um pouco. E continuou a persegui-la, constantemente. Quando chegou a um palmo da velha senhora, deu-se conta de que estava no meio da rua movimentada. Olhou-a nos olhos, já muito cansados, e perguntou: — Pode ser agora? — Ainda não! — ouviu com o resposta.
Alguma coisa Os dois desaquietavam-se. Sentia-se que, de um momento para o outro, poderia acontecer algo totalmente inesperado. O frio parecia ter deixado de se fazer sentir, e era o calor que agora fazia prevalecer a sua rispidez. As respirações tornaram-se mais rápidas. O silêncio súbito da conversa pareceu-se com um botão de volume no máximo num intervalo entre músicas. Alguma coisa estava prestes a acontecer.
Amor apenas noturno Visitou-a ao anoitecer. Ela como sempre abriu uma garrafa de um vinho muito caro. Quando durante o jantar escorreu um filete de vinho pelos lábios carnudos da mulher, ele apertou com força a taça entre os dedos fazendo-a quebrar, misturando os rubis do vinho e do sangue. Ela abraçou-o com carinho, mordeulhe o pescoço com desejo e continuaram o jantar repartindo a taça intacta. Depois, bêbados, caíram na cam a. Enquanto ele dormia, depois do amor, ela saía em busca de outros homens, e ainda antes do amanhecer acordou-o com beijos de lábios ainda úmidos e ele saiu para que ela pudesse dormir.
Apatia Quando morreu manteve a mesma feição serena e apática de sempre, e seus familiares não se deram conta de que havia morrido. Continuavam chamando-o para o alm oço, continuavam cham ando-o para o jantar, e ele continuava impassível como sempre fora, e não se davam conta. E como sempre, continuavam achando que ele não mudaria, continuaria frio como sem pre fora. — Não estás com uma cara boa! — diziam para fazê-lo entender. Afinal, quando o silêncio foi muito, duvidaram que tivesse mesmo morrido. Mas estava, como todos.
As deusas — Ela é apática, arrogante, caprichosa, complicada, crítica, desafinada, desatenta, desordenada, egoísta, extravagante, falsa, fria, histérica, ignorante, imatura, impulsiva, insolente, intrometida, inútil, mal-humorada, mentirosa, orgulhosa, ousada, preguiçosa, prepotente, provocativa, safada, superficial, tosca, traiçoeira, vaidosa, vulgar. Feia. Mas, filho, se queres mesmo te casar com ela, não serei eu a te impedir. A mim, só me importa a tua felicidade.
Best-seller Saber que seria famoso e admirado era a única razão que o levava a escrever. Mas isso foi no início. Agora a página em branco lhe assustava e quando estava se conformando com o fracasso lhe veio a grande inspiração. Seria lembrado para sempre e sua obra permaneceria por séculos e séculos. Pegou uma folha em branco e escreveu: “no princípio criou Deus os céus e a terra. E a terra era sem forma e vazia; e havia trevas sobre a face do abismo; e o Espírito de Deus se m ovia sobre a face das águas”.
Cachorros no jadim O primeiro cachorro chegou às seis da tarde. Não estranhou muito quando um segundo cachorro veio fazer-lhe companhia. Mas estranhou quando voltou ao ardim mais tarde e notou que os cachorros já eram oito, ou nove. Todos deitados em frente ao portão da casa. Quietos. Nenhum latido. Nenhum. Quando acordou, cedo da manhã, não lembrava dos cachorros. Silêncio. Tomou café, arrumou-se e, quando abriu a porta da casa, já estavam por todo o pátio. E estranham ente num silêncio mortal. Muitos. Não pareciam ameaçadores, mas resolveu ficar em casa. Passou o dia observando pela janela. O número de cachorros aumentava a cada hora.
Cacos de vidro Serve sucos e cafés para os clientes, sorrindo como qualquer garçon. Pensa em sua distante amiga e suas mãos colocam cacos de vidro nos copos vazios. Por um instante a distância entre seu corpo e sua saudade lhe revela com o é o mundo: o céu, as nuvens, a bandeja, tudo como sempre foi e que sempre foram apenas am igos e ela nunca se apaixonou. Impassível, diante da tosse desesperada do cliente que acabou de servir, tem tempo de compreender que se o cliente morrer com o estômago dilacerado pelo vidro, não seria mais culpado do que o céu, as nuvens, a bandeja ou a sede das pessoas. Mas não, o sedento vomita o vidro e lhe lança um olhar cheio de ódio que ele acolhe cheio de lágrimas nos olhos.
Cena Ela se agarra ao seu casaco, seus pés se dobram. Os o-lhos imploram por clemência e ele continua com a faca enfiada no seu peito. Acende-se a luz, o público aplaude, cai o pano. O público continua aplaudindo. A cortina volta a abrir, o ator faz mesuras, agradece, se despede e cai o pano pela última vez. Ninguém adverte que a atriz não levantará. (ver cena final de peça famosa, incluindo diálogos)
Cena 28 Fechou os olhos e procurou se acalmar. Passa suavemente a mão nos cabelos da ovem. Abriu os olhos. Ela continua na mesma posição, de bruços. O que teria sido aquele susto repentino? Seduzido pela aparência da jovem, quase fez o que não devia: sussurar palavras não ensaiadas para ela. — Corta! Soltou a m ão e... — Por quê? — pergunta indignado.
Cidade grande A cidade está contaminada. As pessoas saem às ruas com lanternas nas mãos para não se chocarem entre a densa neblina. Não há mais outdoors de propaganda já que ninguém pode vê-los. Os carros andam com faróis acesos e buzinando a toda hora. Motores barulhentos continuam enchendo tudo de gás carbônico e alcatrão. Todos se m ovem apressados nas calçadas, entre o fumo e o barulho. Todos, menos as crianças, que brincam com naturalidade nos parques e entre uma gargalhada e outra se perguntam onde estão os outros.
Como todas as noites Em frente ao espelho conferiu o batom e arrumou os cabelos. Estava perfeita. O vestido preto, justo e decotado lhe emprestava um ar irresistível. No bar de sem pre a fumaça ardia os olhos. No balcão pediu uma bebida. Percorreu o salão com os olhos atentos, detendo-se num homem jovem, alto, forte. Parecia corresponder à pretensão. Observado, sorriu. Estava ganha a noite. Depois deste, pediria colocação perm anente. Todos foram perfeitos e estava habituada. E além do mais, gostava do seu trabalho.
Conto chinês Certa noite o Imperador teve um sonho estranho. So-nhou que era uma borboleta de asas grandes e muito coloridas. Voava alto, colhendo o néctar das flores. Quando acordou ao amanhecer e se viu homem diante do espelho, teve uma ligeira decepção. A camareira ao arrumar o quarto encontrou brilhos como purpurina entre os lençóis e nunca soube de onde vieram .
Cortejo Se tivesse de contar a alguém quando descobriu, diria que foi naquela noite. Ligou assim que chegou em casa, antes mesmo de tirar o casaco e de acender um cigarro. Ninguém atendeu. Passou então a ligar de quinze em quinze minutos até as dez horas, e sem resposta. Naquela tarde ela saíra mais cedo do trabalho, dizendo que ia dar uma volta e ele aproveitou para comprar um presente. Raramente dava presentes. Resolveu sair, apesar da hora. Três quadras adiante podia ver a janela do apartamento. Nenhuma luz acesa. Quando entrou de novo em casa, apanhou o ornal e foi direto para o quarto, onde podia deitar e ter o telefone à mão. Mais duas ligações sem resposta e j á era quase meia-noite. Começava a se inquietar. vontade era de sair novamente, mas o telefone não atendia e ela atenderia se estivesse em casa. Não conhecia a letra dela, nunca vira um bilhete, não a vira escrevendo a não ser no computador, não sabia se ti-nha letra redonda ou inclinada, legível ou feia. Só sabia que era da sua altura. Os seus olhos ficavam na altura dos dela quando se olhavam. Saiu de novo, apreensivo, naquela hora da noite fria e de poucas estrelas, neblina escura nas três quadras até ver a janela do apartamento. As luzes continuavam apagadas como seus sonhos. Nunca lembrava de um e era terrível viver sem sonhos num mundo apenas de dias. Quando acordou já era tarde. Não tinha descansado, sentia-se pesado, exausto, embora tivesse dormido mais um sono sem sonhos. Acendeu um cigarro. Precisava levantar, tomar banho, fazer a barba e se vestir. Não iria telefonar.
Demônios Cada um trata com seus demônios particulares à sua maneira. Aquele homem tentou. Deixando para trás todos os problemas que o preocuparam por toda a vida, pisou fundo no acelerador do carro. Em alta velocidade se deu conta de que esquecera de negociar com o demônio os seus outros temores.
Depósito Resolveu cham ar um táxi. Levaram-lhe o carro por estar mal estacionado. Tardou quatro dias ou mais para retirá-lo do depósito e já havia uma família vivendo dentro dele. Explicaram que os carros recolhidos eram utilizados como albergues provisórios para desalojados de enchentes e coisas assim. Enquanto pagava o guincho e a multa, viu que crianças dormiam sossegadas no assento traseiro. O pai dormia no lugar do motorista e uma mulher desperta olhava sofridamente através do vidro.
Desenhos Sem pre que descia a escadaria do prédio observava os desenhos formados pelas manchas no mármore dos degraus. Distinguia paisagens, animais e formas femininas. Hoje viu pela primeira vez a silhueta do seu rosto, bem delineada, perfeitamente visível. Voltou para cham ar a mulher até aquele degrau e não soube encontar-se. Nem ela acreditou no que via.
Distorções do tempo a sua casa o tempo sofre distorções muito estranhas: pode-se entrar em um quarto, consultar o relógio, e perceber que é mais cedo do que quando se entrou. É comum também as roupas saírem sujas da máquina de lavar, a comida queimar mesmo antes de se acender o fogão. A mulher garante que isso não é possível, diz que são desculpas para sua distração. Não quer, é claro, contradizê-la, mas a prova de que está certo é que ontem ela disse a mesma coisa.
Duplos Cada pessoa tem em algum lugar o seu duplo, um reflexo oposto, de emoções exatamente contrárias. Seu duplo jamais teria abandonado aquela mulher com quem nem se atreveu a sair e não estaria ainda no emprego chato e que rende tão pouco. É provável que agora ele esteja com aquela mulher, dizendo-lhe coisas que ele jamais confessaria. Deve estar num bom emprego, ganhando dinheiro. E é provável também que o seu duplo esteja feliz agora.
Ela, os espelhos A casa era cheia de espelhos. Espelhos de todos os tipos e tamanhos, dispostos pelas paredes sem nenhum requinte de arrumação. Também não se ocupava de limpá-los. Alguns, mais antigos, já tinham perdido a camada prateada e não refletiam mais a luz escassa da casa e continham o véu inequívoco que o tempo confere a tudo. Passava por eles sem se olhar e com a decisão de quem cumpre um mesmo inevitável ritual. A atmosfera sempre igual, com o mesmo cheiro pungente, aquela mistura de fumaça de cigarro, café reaquecido, mobília velha e falta de ventilação, estava até nas suas roupas e na pele. Aquecia o café, acendia um cigarro, sempre perigosamente pendurado no lábio inferior e voltava ao quarto, passando rapidamente pelo corredor, onde uma seqüência de espelhos multiplicava qualquer coisa ao infinito e confundia tudo. Permanecia imóvel durante vários minutos, o último cigarro aceso e desperdiçado com as cinzas que caíam na saia enrugada, já com vários buracos feitos pelas brasas, lembrando do tempo em que a casa era cheia de gente e os espelhos não observavam tudo. Acordava ansiosa no fim de cada dia, porque a noite e a escuridão nada permitem aos espelhos.
Em busca das mãos Esteve dois dias fora de casa. No terceiro, estava estendido na entrada da garagem. Tinha as marcas da fome e de uma batalha perdida. Respirava agônico, a pele pegada aos ossos. Observou que sangrava muito por uma ferida do tam anho de uma cabeça. Quase podia se lhe ver a alma através da carne. O veterinário encharcou a carne dilacerada com m ercúrio cromo e com as mãos retirava punhados de vermes. O cão se contorcia, rosnava. Dias depois, caminhava tranquilo pelo pátio da casa, mas já não pertencia ao seu dono. Dedicou o resto dos seus dias a cheirar-lhe as mão e a de todos, buscando aquelas dos vermes e da ferida.
Expectativa Bateu a porta com tanta violência que ficou com o trinco na mão. Depois disso viveu feliz para sempre. Depois disso sabia que não encontraria portas fechadas pela frente.
Fim de concerto Fulano senta numa mesa da calçada do bar, tira um cigarro da carteira e chama o garçon: duas cervejas para esquecer a falta de aplausos no concerto. Beltrano acende um isqueiro e o coloca perto do rosto de Fulano. Este sopra a chama, numa atitude pouco amável para com o amigo. Com as duas cervejas sobre a mesa, Beltrano olha em volta, ergue os olhos, vê o clarão de um relâmpago e comenta que vai começar um temporal. No mesmo momento, ouve a explosão do fósforo riscado pelo colega. Admira-se com as coincidências da natureza. Larga o cigarro no cinzeiro, tira da caixa o trompete, se levanta e começa a tocar o último número do repertório. A fumaça dos cigarros arde nos olhos de Fulano. Tira do casaco um cilindro de aço e através dele observa discretamente o músico. Coloca o cigarro no canto da boca e com a mão esquerda tira uma pistola da cintura. Por baixo da mesa, com a mão direita adiciona o silenciador na arma. Ergue a mão e mira o trompete. O estampido da pistola inevitavelmente se confunde com os trovões e com som metálico da última nota da frase de Beltrano.
In mem orian A morte aferra-se a seus pés, arrasta-o, encara-o às vezes. Ao ouvir o seu lamento pára porque lhe atrasam os passos. Quando quer vê-lo de frente, aproveita a luz do sol, observa-lhe os olhos cheios de vida e se volta. Na hora de dormir, grita; deve esperar debaixo da cama, vendo sonhos de brincadeiras infantis. Quando despertar, não há de permitir que se apague a amarelinha desenhada a carvão.
Injúria Encostou bruscamente o carro no meio-fio. — Queres que eu cham e um táxi? — perguntou contrariado, com os olhos fixos nela e batendo os punhos no volante. — Quero nada — ela respondeu, com um sorriso sarcástico nos lábios e algo em m ente. Continuou olhando-a e saiu em alta velocidade. Andou dois passos, lamentando ter aceitado um passeio depois de tudo que fizera, assim por nada, quando ouviu a batida e a multidão de curiosos que se formava meio quarteirão a frente. Ainda nem tinha esquecido a desgrama que lhe desejara, e ela já estava lá, a cabeça pendendo para fora do carro e a face ensangüentada. Percebeu de esguelha que seus olhos perm aneciam fixos nela.
Intimidade Ele nunca pôde ver sangue, aquele vermelho viscoso lhe atordoava. Mas quando ela se cortou na cozinha e o cha-mou para segurar a mão ensangüentada não viu nada, nem o sangue, nem o pão encharcado de sangue e nem a ferida aberta, sangrando, não viu nada. Apenas sentiu seu perfume e por desgraça soube que amais voltaria a se excitar.
Jogos de criança Quando criança brincava de esconde-esconde nos corredores escuros do enorme prédio, labirinto cheio de portas fechadas e poucas janelas. Na sua vez de se esconder, dem orou a perceber que não fora encontrado pela turma: certamente esquecido. Desceu pelas escadarias e em vez de encontrar a portaria iluminada e guardada pelo segurança, um cheiro maturo, cinza, e cada vez maior a escuridão e o medo. Continuou imerso na sua busca, deixando para trás uns mudos murmúrios. No porão pensou ouvir os gritos da molecada e ficou aliviado ao ser visto pelos adultos. Foi levado muitos lances de escada abaixo e mais solitário ainda o lugar onde lhe disseram que isso nunca fora um jogo.
Lázaro Quando Lázaro ressucitou, a mortalha lhe impediu de ver a lousa da tumba. Tropeçou. Caiu. Voltou a morrer. Jesus cabeceou, decepcionado.
Lembrança Está no ônibus pensando no avô, no pouco que lem bra dele. Conserva dele um velho isqueiro com o qual acendera o último cigarro que fumou. A cada chama acesa lembrava do velho cujo rosto esquecera há muito tempo. Como não fum a mais, não pode usá-lo. Talvez por isso a lem brança apagase mais a cada dia. Mas lembra da colônia de barba que ele usava quando muitos anos antes lhe acendera o primeiro cigarro. Igual a do idoso agora ao seu lado.
Loucuras de um tirano Um dia, dizem, o general ficou louco. Depois de libertar os presos políticos, convocou seus ministros e fez um comunicado importante: “Vamos rebaixar nossos salários e aumentar significativamente o dos trabalhadores”. Nesta noite, em sua casa, beijou a mulher e os vários filhos, enquanto a nação, ainda estupefata, não entendia seu comportamento. Horas depois foi internado em um centro psiquiátrico, onde dias depois se suicidou, ou foi assassinado, como querem alguns.
Mudança Jantou cedo, bebeu duas taças de vinho, pôs Mozart no player e mergulhou na leitura tão profundamente até que o m undo se apagou em volta. Há m eio ano não sai de casa, trancada com os seus livros. A casa está toda mudada. O quarto que era enorme agora está dividido em dois. Não tem mais que uma cama de solteiro, uma mesinha de cabeceira e um pequeno armário para guardar as poucas roupas. No quarto ao lado, um a um, ela abre os botões do vestido. Baixa a calcinha. Tira o sutiã sem alças. Levantou cedo, abriu a porta e hesitou um instante antes de baixar os olhos na direção do dinheiro levado pela brisa da manhã. Saiu com a certeza de que mais uma vez não daria certo. Tem mais de quarenta anos a vida inteira e parece que todos se foram, uns poucos a cada dia.
Múltipla Ela vestia sua personalidade como quem veste um traj e. Nas segundas, era misteriosa. Nas terças, tímida. Nas quartas, jovial. Ansiosa nas quintas. Atenta nas sextas. Nos sábados, calculista. Assassina nos domingos e nas segundas, portanto, era misteriosa.
ão queira... Introduziu as chaves na fechadura, vencendo a pequena resistência de sempre para abrir. Entrou em sua casa e não a reconheceu. Seus móveis modernos eram barrocos, os li-vros não lidos estavam com entados, a desordem estava arrum ada, sua música, irreconhecível. Antes que os velhos pensamentos o abandonassem, lembrou do seu último aniversário e do desejo de m udar, no qual nunca acreditou. A mudança, contudo, chegava quando já se sentia feliz.
oite Subiu no ônibus sabendo que deveria ter tomado um táxi. A essa hora da noite. Mas é raro aparecer um táxi, e era tarde e estava cansado. E o ônibus não estava vazio: além do motorista, um senhor vestido de preto, um casal de namorados que se beijavam nos últimos assentos e mais uma mulher de vestido muito curto. Sentou-se sozinho, recostou a cabeça e fechou os olhos sem saber que o motorista, o homem de preto, o casal de namorados e a mulher de vestido curto apenas esperavam que ele adormecesse.
ovela policial — Como morreu Margarida? — perguntou Mandrake. — Decapitada — respondeu Watson. Sherlock Holmes sai e vê o jardineiro colhendo flores, enfurecido. — Caso encerrado. — Não entendo. — Elem entar, meu caro Watson.
unca m ais Saiu da clínica com uma expressão diferente. Sentou em um bar próximo e pediu um café. Olhou os muitos tubos que lhe saíam dos braços e o enorme buraco no tórax e resolveu não mais pensar neles, nem na esposa, nem nos fi-lhos, nem na hipoteca. Quando chegou em casa, todos dormiam. Preparou outro café e fechou portas e janelas. Enquanto o gás permanecia aberto, pensava no jornalista que conhecera.
O anel Chega em casa às oito, como sempre, mas desta vez, um tanto angustiado. Abre as janelas, observa as pessoas na rua, apressadas para chegar cedo em casa. Observa a janela fechada do apartamento dela, no prédio em frente. Ela, sempre pontual, já deveria estar em casa. O semáforo acende o vermelho, e uma mulher num carro olha o relógio: nove e quarenta. Ao chegar perto de seu prédio, encontra a rua bloqueada e um policial lhe fala de um incidente ocorrido com um jovem : estilhaços de vidro de uma janela impediam o trânsito. Mas, no céu, o anel prateado era a lua cheia.
Sangue ão sabe como chegou ali. Da cama de hospital, nutrido por uma bolsa de sangue, vê a cidade pela janela, e m ais a-diante, o mar. Sua última lembrança: as ondas embalando seu corpo perto da praia, a espuma tingida de vermelho, um torpor e as hemácias diluídas no Atlântico, perdidas no mar. Agora, pela agulha, injetam -lhe a vida de volta.
Semana Santa Jesus vai a carpitaria pa carpitaria para ra ver a cruz cr uz que logo irá irá carr ca rree gar. Ver Verifica ifica o tam ta m a nho, o peso, o m adeira ade iram m e sólido. sólido. Escolhe os três trê s pregos pre gos que atra atr a vessarã vessa rãoo suas m ãos e pés e se dispõe dispõe a repassa re passarr o roteiro rote iro da Via Crusis. A sexta-feira está próxima e, como com o todos todos os anos, anos, será crucifi cruc ifica cado do na praça praç a lot lotada de fiéi f iéis. s.
Sendo autêntico ão suporta o cheiro de suor dos que o empurram no ônibus, fazendo-o cair, nem o hálito azedo do chefe, querendo ensinar-lhe coisas que já sabia antes mesmo dele nascer. nascer. Não suporta suporta o perfum perf umee das da s mul m ulhere heress que que pens pe nsam am saber faz f azêê-lo lo fel fe liz. iz. Mas já sabe o que cont c ontiinuar faz fa zendo, como agora a gora no banheiro, banheiro, onde onde j á term er m inou inou de se cheirar.
Serpentes Ela tem serpentes em casa. Ninguém sabe, sabe , não conta nada. nada . Na Nass poucas pouca s vezes que recebe alguém, não as vêem, ficam escondidas atrás dos móveis, nos cantos escuros. Quando está só, fica nua sobre a cama e deixa que se aproximem e as alimenta, as acaricia, dorme e desperta entre elas. Tem sonhado coisas terríveis que não lhe saem do pensamento. Volta à vigília, ao trabalho, e elas a esperam.
Sinceridade Estavam casados há mais de quarenta anos e eram felizes. Sobreviveu o amor e a compreensão. Mas hoje ele está inquieto. Decidiu contar um segredo para a m ulher, ulher, uma um a fer f erid idaa não nã o sarada nestes nestes anos todo todos. s. Hoje contará, ou amanhã, como todo ontem.
Tarde de cinema Entrou no cinema porque a tarde era longa, chovia e queria estar entre heróis por algum tempo. A sala estava lotada. Pessoas todas náufragas de resfriados e fugitivas da umidade fria do inverno. Alguém sentou atrás dele e o deixou nervoso, com a respiração ofegante e difícil. Não gosta de ser observado ou de ter alguém tão por perto. Mas achava absurdo sair da sala ou pedir licença. Afinal, ninguém vai ficar observando suas emoções e nem lhe cravar algo na nuca. Mas vencer o terror da sugestão não é tão fácil assim, sabendo que fecham as portas do cinema só por precaução.
Tempestade Seu gemido cadenciado perde-se na chuva intensa. Avança indeciso e quanto mais caminha, mais intensa parece a tempestade, caindo virulenta sobre o corpo molhado. — Me odeia, eu sei. Mas ele tam bém agoniza e não tem saída, logo verá. Distingue sua silhueta em meio à rua, enquanto rios correm pela sarj eta. — A tem pestade me consom e com o um filho faminto a seu pai inválido. Como eu, caído no chão, depois de afogar-m e.
Última oportunidade Meditou por um momento segurando o revólver entre as mãos trêmulas. Quem lhe colocou a arm a nas mãos tinha lhe prevenido: — Esta é a tua última oportunidade, estás velho e doente, tua mulher te abandonou há tempos, teu único filho não te dirige palavra, teus amigos já se foram e se não fores hoje, ficarás para a eternidade. Envolto na fum aça da última tragada do cigarro relem brou o que havia sido a sua vida. Nem precisou puxar o gatilho.
Um copo de uísque Toca o telefone. Sobresaltado, deixa o copo de uísque sobre a mesa da sala, mal equilibrado sobre os jornais do dia anterior, e atende. Engano. Volta ao copo, e tonto, – meu Deus! – procura; mas o copo não está mais sobre a mesa da sala e sim no escritório, mal equilibrado e umidecendo uma pilha de documentos. Sorve dois grande goles. Nova cha-m ada telefônica desvia-lhe a atenção. A mesma voz equivocada de antes, agora pergunta pelo copo. Busca inutilmente pela bebida.
Utopia uma manhã radiante, Maria e José tocaram o céu com as mãos. A noite será de descanso, de sono reparador. Ama-nhã, ao reiniciarem a jornada, o mundo os verá com outros olhos.
Vozes A velha casa é cheia de ruídos. Primeiro eram macios, íntimos e sempre no início da noite. Depois passaram a ser brisas, ventos, rajadas mordentes. Sente não ter alguém para abraçar, alguém que queira ser abraçado. Alguém para confessar o medo. Na manhã, esquece fácil o sonho e não ousa pensar no vento, sentir a brisa. À noite, janta lentamente, sem pressa para o sono. E cansado, às vezes, adormece no sofá com um livro nas mãos. Cansado não ouve as vozes que o chamam.
O barulho dos vizinhos Comprou nova aparelhagem de som. De má qualidade, barata como o dinheiro permitiu. Quando coloca uma música romântica, ouve a menina do andar de baixo. Quando o disco é outro, percebe as preocupações do vizinho do lado e também, conforme se move pela casa, mudam os sons. Ouve insultos, perdões, desejos, medos e ciúmes. Quando encontrou no elevador a menina do andar de baixo, beijou-a e lhe disse que também a quer.
Rotina Todos os dias, quando sai do trabalho, compra bombons para o filho, ou flores para a esposa ou para a m ãe que m ora com ele desde a m orte do pai. A família janta reunida e o filho conversa sobre a tarde na escola, a esposa e a mãe, sobre os afazeres domésticos. Ele fala da rotina do trabalho, dos colegas e dos amigos, só não conta quantos carros estacionados arranha com as chaves enquanto volta para casa.
O coletivo da penumbra O calor parece de verão, mas é maio. No fim do dia, os trabalhadores saem impacientes da fábrica. O barulho das máquinas cede lugar ao dos ônibus. Todos tem em que aconteça a qualquer momento. E acontece, todos os dias.
O homem que sonha O homem sempre sonhou os mesmos sonhos. Sonhou com o menino que tinha sido, brincando as mesmas brincadeiras em diferentes idades. Uma noite se sonhou homem. Quando despertou, não teve certeza de ter acordado.
O medo O medo viaj a pelas vísceras com o um fantasma viscoso.
O olhar distante Fazia um tempo que freqüentava o bar uma pessoa que, a princípio, não parecia muito especial. Chegava sempre por volta da meia noite, sentava-se em frente à janela e bebia uma cerveja atrás da outra. Algumas vezes tentou conversar com ele e não conseguiu mais do que palavras soltas. Sem pre a mesma mesa, a mesma cervej a e o mesmo olhar distante através da janela. — Alguém disse que o vira enxugando um a lágrima... mas não acredito. Uma noite não voltou mais, mas a deixou sozinha para sempre, com o olhar distante, esperando ver seu reflexo no vidro da mesma j anela.
O pianista Acordava cedo. Entrecruzava os dedos adormecidos para acordá-los com ele. Sentava ao piano afinado e ensaiava até doerem-lhe as pequenas mãos de menino. Sonhava música e encontrava as notas com a alma. A mãe acariciavalhe a cabeça infantil cheia de música adulta. Quando o sol se pu-nha, continuava tocando para a lua. Era a sua vida. Quando adulto talvez vista um casaco preto e acompanhe a orquestra. Mas agora quer apenas tocar, como se o piano e ele fossem uma só matéria, dizia. Enquanto entrelaça os dedos para acordá-los, naquela manhã, percebe que os dedos cresceram, longos, de madeira nobre. Corre ao piano e as teclas ensaiam a música que sonhara na noite anterior. Cacofonias ridículas e tristes. Lágrimas sobre a tecla si bemol. A mãe acaricia-lhe os cabelos: — Venha comigo. Saem de casa, mãe e filho, com diferentes mãos dadas. Ao voltar da carpintaria sentará ao piano, colocará a partitura preferida sobre o atril, disposto a interpretá-la. O piano verterá sangue.
O sabor de cada coisa Uma mulher senta ao seu lado no ônibus, olha nervosamente para todos os lados, e, como a viagem é longa, ele pergunta se está ansiosa. Ela continua observando os ou-tros passageiros e, como ninguém está olhando, aproxima-se e pergunta se ele pode guardar um segredo. Claro! Chega ainda mais perto e confidencia que “eu não sei o que aconteceria se isso fosse dito em público, mas preciso contar a alguém. Desde menina provo sons” e ele pergunta se ouviu direito. “Shhh... sim, é isso mesmo, sei o gosto de todos os sons que me rodeiam. Desde sempre soube o gosto da voz de um homem, o sabor do ronco dos carros, do barulho dos pneus no asfalto”. Pergunta “e que sabor tem a voz de um homem?” Pensa demoradamente e responde que “voz de homem tem gosto de voz de homem, diferente do gosto da voz de uma mulher, ou do gosto de uma música popular, que é bem diferente do gosto de uma música clássica. Não se pode comparar os sabores dos sons com os sabores das comidas, a não ser, é claro, quando se misturam. Se durante o almoço se toca certo tipo de música, o sabor da comida se mistura com o sabor da música... o gosto se altera... não sei...” Ele se levanta e solicita a parada do ônibus, mesmo longe do seu destino. Gostaria de saber por que não tem sorte com algumas pessoas.
Operários O quadro ficava pendurado num canto da sala, sem maior destaque, no primeiro plano, uma série de operários, no fundo, várias cham inés de fábrica e uma pequena nesga de céu azul. Esteve naquela casa pela primeira vez para pintar as paredes, quase sem pre os seus serviços eram para gente mais modesta, destas que não têm quadros tão bonitos nas paredes. Em meio ao trabalho a dona da casa o encontrou distraído, apreciando o quadro e fascinado, gostaria de ser pintor de quadros, m as curso de belas-artes não era para gente com o ele, pintor de paredes. Gostas desta pintura, não? perguntou a elegante senhora. Baixou os olhos, tímido, gostar era pouco. Devia estar num lugar melhor. Foi meu genro quem pintou, respondeu, enquanto namorava a minha filha. Levado pelo interesse de talvez conhecer o pintor arriscou-se a perguntar por ele. Está preso, respondeu com lágrimas nos olhos. Aturdido pediu desculpas e pouco depois deu por terminado o trabalho. Durante anos não passou perto daquela casa, tão distante do seu percurso habitual, o trabalho cada vez mais escasso adiou para sempre o propósito de pintar quadros, mas quis rever a pintura dos operários. Não a encontrou. A casa fora vendida e a sala estava agora pintada toda de azul, da cor do céu do quadro.
Os apaixonados e os viciados Um desce para comprar cigarros. Outro toca violino e morde a língua. A boca trêmula verte sangue. O primeiro volta da tabacaria. No chão, o arco e o corpo do músico e também, manchado de sangue, o violino. Tudo se inflara em convulsa melodia.
Outra noite Um fio de chuva pinga no meio do quarto. É muito tarde e ele não tira os olhos do relógio. Procura alguma coisa para destruir. Não encontra, nem isso tem. Bebe da água. E mais um pouco. Fumar não fuma, é caro. Vive perdido na amargura e nunca soube ao certo o que fazer. A mulher abaixa a cabeça, as mãos pendidas enquanto escolhe as palavras que não pronuncia. Sabem que ali está apenas parte do que foram. Ele ergue os olhos para ela, com esforço, e continua calado. Nessa idade, a surpresa é um brinde de copos vazios. Mesmo assim, não esperavam aquilo. A umidade fermenta morna e dá espessura ao ar saturado da casa. O olhar com que se dão as mãos contém apenas a piedade de um pelo outro. Felicidade não se carrega. São ninguém. Vivem perdidos, azedos. Diante do espelho enferrujado não se vêem, o tempo é noite, e negro, e úmido. Dão os primeiros passos em direção ao nada. E quanto mais avançam, m ais pressentem o vazio sob os pés. Horas depois, o sol caminha pelas tábuas soltas do assoalho.
Outro dia Levantou da cama lentamente, arrastou-se pelo piso frio da cozinha até a cafeteira e serviu-se de uma xícara sem leite e sem açúcar. Não deu a menor importância aos jornais e à correspondência perto da porta, nem ao pó que acumulavam. Estirou-se no sofá enquanto o relógio continuava a contar horas. Quando o sol se pôs sobre o horizonte, ela continuava quase na mesma posição. Moveu-se até uma jarra de água, sem gelo ou frutas. Quando acabou o suco, rastejou lentamente até o quarto, deixando o roupão cair suavemente no piso da cozinha. Deitou tonta e fechou os olhos. Dem oraria um pouco, m as o sono viria, profundo, com a respiração cada vez mais lenta.
Perguntas Morrerá dentro de dez minutos, mas não sabe disso. Olha a vitrine de uma livraria. Três minutos se passam. Segue caminhando, vagarosamente, pela rua. Dois minutos depois pára numa banca para comprar um jornal que não lerá, confere a programação dos cinemas, lê a resenha de um filme que não verá e gasta mais dois minutos. A duzentos metros de sua casa, a que velocidade deveria caminhar para morrer junto ao portão? Quantos minutos de vida lhe restam? E se soubesse de seus dez minutos, o que teria feito?
Perseguição Coisas passam. Passam os carros, os faróis, passam cachorros, o vento. Passam segundos em sua vida. Tic-tac tic-tac, passa outro carro e por minutos passam imagens como que emprestadas de uma novela policial. O carro vermelho continua atrás, observado pelo retrovisor, mas ele continua dirigindo velozmente para ver o que acontece.
Ratos Caiu outro na ratoeira da cozinha. Esperneia, tentando fugir. Ele assiste tudo sentado no sofá da sala manchado de cerveja, com as irmãs pequenas adormecidas em seus braços. Enquanto a mãe trabalha fora, toma cervejas e toma conta das irmãs que não dormem no quarto enquanto houver ratos pela casa. A guilhotina no pescoço do rato é tão pesada quanto os braços das irm ãs.
Recordações A tarde cai e a sala de jantar fica na penumbra. Observam os gestos do pai, difusos contra a janela de cortinas. Ele prepara seu café com leite, e, ao seu lado, a mãe o observa em silêncio. Diante deles, o caminhar vagaroso e cansado do pai o leva ao sofá em frente à TV. A mãe não resiste e sai da cozinha onde o pai morrera anos atrás. O irmão pequeno se deixa cair na poltrona, juntado as mãos sobre o estômago como uma imagem que não lhes sai da cabeça.
Regresso Soltou o pescoço da mulher às cinco em ponto. Arrancou a blusa branca ainda suja de barro enquanto ela abria os olhos. Pegou-a pelos braços e arrastou-a pelo lamaçal, insensível à sua agonia, até alcançar o carro. Às quinze para as cinco colocou-a no porta-malas e partiu veloz. Às quatro e meia, pararam num cruzamento da estrada. Antes de colocá-la no assento traseiro do carro, golpeoua violentamente na cabeça. Chegaram na cidade às quatro e quinze da tarde. Pouco a pouco, a mulher recuperava a calma. Às quatro, o carro parou em frente à casa e a mulher entrou no carro, com um sorriso nervoso, mas satisfeita. Às três e quarenta e cinco ela vestiu uma blusa branca e pouco depois telefonava ao marido. Queria vê-lo agora mesmo no escritório porque acabara de receber um telefonema que a perturbara. Pouco depois das quatro, uma voz anônima garantia que às cinco em ponto ela estaria m orta.
Roberto Schmitt-Pry m nasceu em 1956 em Panambi, RS. Foi selecionado no Prêmio Apesul Revelação Literária 79 e no Prêmio Habitasul Correio do Povo Revelação Literária 81. Estudou com Charles Kiefer e Assis Brasil. Participou das antologias Contos de Oficina 35 , brevíssimos! e 101 que contam . Traduziu a obra Giacomo Joyce de James Joyce. Como fotógrafo, realizou sua primeira exposição individual no Museu de Arte do Rio Grande do Sul, em Porto Alegre, em 1990. Desde então fez mais de vinte exposições individuais em museus e em instituições no Brasil e no exterior, exposições coletivas e recebeu uma dezena de prêmios em diversos países. Entre outras atuações, destacam-se os cargos de diretor da Associação Riograndense de Artes Plásticas Chico Lisboa, diretor da Bienal do Mercosul, conselheiro da Orquestra Sinfônica de Porto Alegre e diretor do Museu Julio de Castilhos.