Como
estudar
a
obra
de
René
Guénon
I Hierarquia
e
Autoridade
Na geografia e topografia dos Estudos Tradicionais no Ocidente moderno, temos, em primeiro lugar e acima dos demais, René Guénon, seja como reintrodutor do conceito de Tradição e metafísica, seja como autoridade espiritual, seja como escritor. Sem René Guénon, não existiriam Titus, Lings, Nasr e todos os demais. Há o que podemos chamar, ao lado da Cordilheira Guénon, um respeitável e respeitoso grupo de elevações, isto é, autoridades e escritores "alavancados" ou "germinados" através da luz
intelectual
refratada
através
da
suma
guenoniana.
Fazem parte deste grupo Titus Burckhardt, Michel Vâlsan, S.H. Nasr, A.K. Coomaraswamy, Pierre e Jean Grison, Charbonneau-Lassay, Epes Brown, Matgioi, Martin Lings, Gaston Georgel e poucos outros.
F. Schuon é um caso à parte;
personalista notório, aguardou a morte de Guénon para começar uma campan campanha ha insidi insidiosa osa no cenári cenárioo dos Estudo Estudoss Tradic Tradicion ionais ais;; morreu recentement recentementee nos EUA
Um pouco mais afastados afastados e
não tão tão cu culm lmin inant antes es,, encon encontr tram amos os um segu segund ndoo e he hete tero rogê gêne neoo
grup grupoo de estu estudi dios osos os:: Juli Julius us Evola Evola ("Re ("Revo volt ltaa co cont ntra ra o mund mundoo moderno" é em parte cópia e em parte desenvolvimentos de "A Crise
do
Mundo
Moderno").
. A segu seguiir, va vamo moss ex exam amiina narr co com mo ab abor orda darr a ob obra ra de Guénon.
II Livros de Guénon - ordem original de publicação 1) Intr Introd oduc ucti tion on Gé Géné néra rale le à l'Ét l'Étud udee de dess Do Doct ctri rine ness Hind Hindou oues es Paris 2)
1921. Le
París
Théosophisme:
Histoire
1921,
3)
d'une
aumentada
Pseudo-Religion en
1925.
Erreur
París
1923.
4)
Id.,
Spirite 1984.
Orient
406
et
Occident
París 5)
1924. L'Homme
et
son
Bossard, 6) París
p.
devenir
selon
París L'Esoterisme
le
Vêdânta 1925.
de
Dante 1925.
7)
Le
Roi
du
Monde
París 8)
1927. La
Crise
du
Monde
Moderne
París 9)
1927. Autorité
Spirituelle
et
Pouvoir
París
1929.
10)
Saint
Bernard
París 11)
1929. Le
Symbolisme
de
la
París 12)
Temporel
Croix 1931.
Les
Etats
Multiples
París
de
l'Etre 1932.
13)
La
Métaphysique
París
Orientale 1939.
14) Le Règne de la Quantité et les Signes des Temps París
1945.
15)
Aperçus
sur
París 16)
1946. Les
Principes
du
Calcul
París 17)
Infinitésimal 1946.
La
Grande
Nancy 18)
l'Initiation
Triade 1946.
Initiation
et
Réalisation
Spirituelle
Ed.: Jean Reyor. París 1952. (Compilação de estudos relacionados) 19)
Aperçus
sur
l'Esoterisme
Chrétien
Id.: París 1954. (COmpilação de estudos relacionados) 20)
Symboles
Fondamentaux
de
la
Science
Sacrée
Ed.: Michel Vâlsan. París 1962. (Compilação de estudos relacionados) 21) Etudes sur la Franc-Maçonnerie et le Compagnonnage I París
1964.
(inclui
resenhas
de
livros)
21-b) Etudes sur la Franc-Maçonnerie et le Compagnonnage II Id.:
París
1965.
22)
(inclui
Etudes
resenhas
de
sur
livros)
l'Hindouisme
Id.: París 1968. (Compilação de estudos complementares relacionados) 23) París
Formes 1970.
Traditionnelles (Compilação
et
Cycles
de
estudos
Cosmiques relacionados)
24) Aperçus sur l'Esoterisme Islamique et le Taoisme Id.:
París
1973.
25)
Comptes
(Compilação
Rendus
de
(Resenhas
estudos de
livros
París 26) París
relacionados) e
revistas) 1973.
Mélanges
(Compilação
de
estudos
diversos) 1976.
III Vertentes da obra - grupos de estudos Para o estudo da obra de Guénon, podemos
considerar as
seguintes
grandes
ou
Orientação
Geral.
divisões: 1)
Pedra
de
Fundação
"Introdução Geral ao Estudo das Doutrinas Hindus"
O título, bem ao estilo acadêmico , poderia ser simplificado, como desejava Guénon; ele achou um tanto pomposo, capaz de afastar leitores que estariam em condições de tirar
desta
obra
grande
proveito.
Colocamos esta obra à parte pois ali estão delimitados, ordenados e qualificados os campos de estudo e, principalmente, os modos apropriados para que possam ser empreendidos conforme
o
espírito
oriental.
Trata-se do mapa e a bússula infalível para empreendermos o caminho dos estudos tradicionais; em uma analogia geográfica e topográfica, é o ponto de partida, na planície, de um percurso que remonta
aos
cumes
da
Cordilheira
Tradicional.
2) Limpeza de Terreno ou Profilaxia Necessária
O segundo passo na abordagem da obra de Guénon é, no geral, incompreendido pela maioria dos buscadores tradicionais. Trata-se, depois de haver compreendido o "Baú dos Tesouros Fulgurantes" (I.G.A.E.D.H.) - o mapa e a bússula da Busca - da leitura estudiosa de "O Teosofismo, história de uma pseudoreligião" e "O
Erro
Espírita".
Nós mesmos "pulamos" estas duas obras quando dos primeiros passos em nossos estudos; no entanto, graças à leitura de um artigo de A.K. Coomaraswamy sobre Guénon, pudemos reparar esta omissão e constatar o quanto estava certo quando dizia que ambos os livros "ultrapassavam em muito os limites destes dois embustes modernos, abrangendo todo um território da pseudotradição
e
da
anti-tradição".
Trata-se efetivamente de uma "limpeza de terreno" extremamente necessária, que proporciona clareza de visão e maior definição do que é e do que não é verdadeiramente tradicional. Os buscadores se surpreenderão reconhecendo neste mapeamento trambiqueiros que até hoje aparecem com freqüência, tipo Gurdjieff, pseudo-yoguis, pseudo-gurus e pseudo-sufis. Estes dois livros foram escritos segundo o mais rigoroso "método histórico", com farta documentação que, na segunda edição,
foi
aumentada
e
tornou-se
superabundante.
Os buscadores verão ali a grande trambiqueira Blawatski & Irmãs metralhas sendo inidiciadas e detidas na Índia (foragida da justiça) e na Inglaterra ("acordo" judicial)... e... pois é... ainda tem gente No "Erro
que
vai
Espírita" vemos
atrás como
do foi
teosofismo! urdido
o
blefe
"reecarnacionista", deste sua gestação em sociedades secretas contra-iniciáticas, as primeiras e fracassadas tentativas de "lançamento" na Europa e, finalmente, o sucesso obtido nos EUA, a "pátria" destes e de tantos outros desvios e ninhos de cobras.
IV O Mundo Moderno O terceiro grupo de livros a estudar refere-se a um exame apurado das raízes e engrenagens do mundo moderno, sob luz intelectual de magnitude, profundidade e envergadura sem paralelo
no
mundo
contemporâneo.
Muitos
se
sentirão
profundamente desconcertados ao constatarem o quanto estão impregnados de falsas idéias e pseudo-princípios, coisas do tipo "democracia",
"progresso"
e
"ciência
moderna".
Com o Mapa e a Bússula em mãos (O "Baú dos Tesouros Fulgurantes") e havendo limpado o terreno do entulho
anti e pseudo-tradicional, faremos nesta terceira etapa um reconhecimento do terreno em torno e será iniciada uma caminhada até o sopé da Cordilheira. O primeiro livro a estudar é "Oriente e Ocidente" , onde Guénon dá um "banho" magistral nos principais mentores da "mudernidade" e, em especial, nos filósofos
e
"pensadores"
que
estiveram
por
detrás
do
desmoronamento do Sagrado Império, da aniquilação da Ordem do Templo e do advento da "República", por exemplo. É um poderoso chute no pau da barraca "histórica" e "filosófica"das academias. O segundo livro do grupo, "A Crise do Mundo Moderno", é um prolongamento e aprofundamento de alguns dos
aspectos abordados inicialmente em "Oriente e Ocidente"; seu foco contrabalança aspectos doutrinais da Tradição e temas filosóficos e políticos presentes no mundo moderno, retratado cruamente como "sem princípios, anormal e mesmo monstruoso", apresentando "um desenvolvimento
exclusivamente
material".
Segue a leitura de "Autoridade Espiritual e Poder Temporal", um magistral mis-à-point que demonstra e restabelece
claramente a hierarquia entre um poder e outro, tema tão pouco compreendido por Julius Evola; trata-se de obra arrebatadora, cuja leitura nos prende do começo ao fim, onde vastos cenários são desenhados tendo em vista aspectos doutrinais orientais, analogias
entre formas tradicionais, a Idade Média e, finalmente, o mundo moderno. A quarta obra deste grupo é uma jóia incomparável da intelectualidade tradicional: "O Reino da Quantidade e os Sinais dos Tempos" . Nesta densa, poderosa e devastadora obra Guénon
empreende um "exploit" magistral, fazendo uma desmontagem metódica e implacável das engrenagens que movem o mundo moderno, numa seqüência de capítulos que se encadeiam num crescendo impressionante, pela profundidade, coerência e envergadura. Não é um livro fácil e alguns de seus capítulos, em especial os que abordam questões doutrinais, devem ser estudados à parte, calma e profundamente, pois são ferramentas fundamentais na
compreensão
do
conjunto.
O Terceiro Passo em nossa caminhada é constituído , portanto,
por
estas "Oriente
quatro e
obras: Ocidente"
"Crise do Mundo Moderno" "Autoridade Espiritual e Poder Temporal" "O Reino da Quantidade e os Sinais
dos
Tempos".
V
Quarta
etapa:
leituras
conexas
e
complementares Vimos há pouco o terceiro grupo de estudos com quatro obras. O quarto grupo corresponde a livros conexos e complementares: “Esoterismo de Dante e São Bernardo” retrata dois
expoentes da Idade Média. Guénon demonstra que Dante era um iniciado e sua obra prima algo muito além de literatura, história ou política; trata-se da exposição de etapas no percurso da realização espiritual; "São Bernardo" pode ser lido na íntegra no site www.reneguenon.net “A
esoterismo
Grande
Tríade” é
extremo-oriental.
aleatoriamente
pela
Editora
uma brilhante exposição do Livro
lançado
Pensamento,
era
no
Brasil
facilmente
encontrável em sebos com apenas duas ou três páginas lidas; a tradução é de boa qualidade mas sua leitura só é possível com conhecimento prévio do "Baú dos Tesouros Fulgurantes" “Símbolos Fundamentais da Ciência Sagrada” é uma magnífica
compilação de estudos sobre o simbolismo, que Guénon solicitou pessoalmente a Michel Vâlsan. É uma obra arrebatadora onde constatamos a organicidade e interconexão lógica entre os vários aspectos ali tratados; a Luz Intelectual pulsa irradiante no resgate
magistral que Guénon foi capaz de realizar sobre o significado profundo (transcendente) inerente a símbolos quase totalmente esquecidos
pelo
Ocidente.
A prestigiosa editora francesa Gallimard quase ficou maluca com Vâlsan, pois este se recusava a entregar os originais nos prazos estipulados, passando e repassando página por página, revisando, modificando aqui e ali, reagrupando os estudos sob novos tópicos, enfim, levando com seriedade e reverência uma tarefa
de
envergadura.
Em seguida veremos duas obras que fazem limite com o lado propriamente
doutrinal
da
obra
de
Guénon.
VI Quinta
etapa:
"O
Rei
do
Mundo" & "Considerações Sobre a Iniciação" Há muitos anos, um colega de estudos tradicionais nos confidenciou que achava "O Rei do Mundo" um livro tão inusitado que ele se perguntava se não seria fruto de "uma viagem",
no
sentido
lisérgico
desta
palavra
...
De fato, trata-se da abordagem de um tema insólito e
mais ou menos inacreditável, isto é, a existência de um Reino Subterrâneo, a "Agartha" e de um Sacerdote-Rei, Melkitsedeq. Esta obra foi suscitada a partir de um livro de Ossendowsky, "Bestas , Homens e Deuses" - interessantíssimo, aliás - que empreende a fuga da Rússia tomada pela "revolução" de 1917, através da Mongólia até o Tibet, onde faz menção ao Rei do Mundo. “O Rei do Mundo” custou a Guénon o relacionamento
que mantinha com um pequeno grupo de iniciados hindus, que o havia advertido sobre o tema, que deveria ser mantido secreto. Guénon recebeu deste grupo uma iniciação e conhecimentos tradicionais ministrados através de métodos e ritos inteiramente desconhecidos
no
Ocidente.
Em nosso caso, tal leitura nos "custou" três noites em claro e alguns fenômenos extraordiários, sobre o que preferimos manter
a
mais
prudente
discrição.
Pudemos "ver" o quanto Guénon estava ligado e próximo a esta Autoridade Espiritual e, de certa maneira, consideramos este livro como um verdadeiro divisor de águas entre os que empreendem o caminho do conhecimento tradicional. Ou você "entra" no Rei do Mundo, ou não "entra" e quem não entrar (ver a este respeito "Simbolismo de Janus") não poderá tirar muito proveito da obra propriamente
doutrinal
de
Guénon.
"Considerações sobre a Iniciação" foi organizado pelo próprio Guénon e reúne uma coletânea de estudos sobre o tema; é uma verdadeira "bíblia", uma obra única que responde a todas as principais questões relacionadas sobre iniciação. Boa parte deste livro
já
está
publicada
neste
site.
O próximo passo é a "parte interna" da obra de Guénon,
isto
é
Doutrina. VII
"A Metafísica Oriental", umbral da Doutrina Este pequeno e notável livro é a transcrição de memorável palestra proferida por Guénon na Sorbonne. É um "divisor de águas", isto é, delimita domínios distintos, entre os "chamados" e os "escolhidos". Esta obra pode ser considerada o umbral das exposições propriamente doutrinais da Tradição realizadas
por
Guénon.
Dizíamos em outro tópico que "A erudição é o último refúgio dos medíocres" e estes não têm como superar limites que lhes são inerentes por sua própria natureza (casta); nenhum outro tipo de ciúme é mais venenoso e corrosivo que aquele dedicado pelos
medíocres
aos
verdadeiros
intelectuais.
Guénon, como Dante e Ibn Arabi, se dissolve como indivíduo no Mar da Sabedoria, identifica-se ao Universal. Os medíocres tendem ao personalismo exacerbado, cientes de sua inferioridade, mas inconformados; por isso, suas armas são a dissimulação, a falsidade e o ilusionismo; é fácil identificar esta marca tão nitidamente diabólica nos medíocres que posam de "líderes" de certas manadas de eruditozinhos. São os cegos "guiando"
outros
cegos.
Uma pedra pode ser uma ponte ou um obstáculo intransponível; quem não se der conta do que é "intuição intelectual" está no segundo caso e bem sabemos quão profundo é o
koan
"água
e
pedra".
Este "pequeno" livro merece, sozinho, um ano de estudos
dedicados.
VIII Pedra
de
Abóboda
O "fecho" ou - quem sabe, o melhor termo não seria "desfecho"?- da obra de Guénon é o grupo de livros
essencialmente
doutrinais: 1) O homem e Seu Devir Segundo o
Vedanta 2)
O
3)
Simbolismo
Estados
4)
da
Múltiplos
Princípios
do
Cruz
do
Ser
Cálculo
Infinitesimal
No "Baú dos Tesouros Fulgurantes", especialmente em sua terceira parte, já tivemos uma amostra do "mapeamento" e "métodos" do território intelectual da Doutrina Hindu. Em "A Grande Tríade", aspectos doutrinais da Tradição extremo-oriental. Agora, temos várias facetas do Diamante da Sabedoria, conhecido como ("O Homem e seu devir segundo o) Vedanta, com seus desenvolvimentos, isto é, "Simbolismo da Cruz", "Estados múltiplos"
e
"Princípios
do
cálculo
infinitesimal".
Faremos a seguir algumas considerações sobre este grupo
de Guénon
obras. apresenta
"O Homem e seu devir segundo o Vedanta":
"Em muitas ocasiões, em nossas obras precedentes, anunciamos nossa intenção de proceder a uma série de estudos nos quais poderíamos, segundo o caso, seja expor diretamente certos aspectos das doutrinas metafísicas do Oriente, seja adaptar essas mesmas doutrinas do modo que nos parecesse mais inteligível e mais aproveitável, embora permanecendo sempre estritamente fiéis ao seu espírito. O presente trabalho constitui o primeiro desses estudos; tomamos aqui como ponto de vista central aquele das doutrinas hindus, por razões que já tivemos ocasião de indicar, e mais particularmente o do Vêdânta, que é o ramo mais puramente metafísico destas doutrinas; mas deve ficar claro que isto não nos impedirá de fazer, todas as vezes que couber, aproximações e comparações com outras teorias, qualquer que seja sua proveniência, bem como, notadamente, apelaremos para os ensinamentos de outros ramos ortodoxos da doutrina hindu na medida em que venham, sob certos aspectos, precisar ou completar aqueles do Vêdânta. Não há o que reprovar neste modo de proceder, tanto mais que nossas intenções não são as de um historiador; devemos repetir ainda aqui, expressamente, que o que queremos fazer é uma obra de compreensão, não de
erudição, e que somente a verdade das idéias nos interessa. Se, portanto, consideramos proveitoso dar aqui referências precisas, é por motivos que nada tem em comum com as preocupações típicas dos orientalistas; apenas queremos mostrar que não inventamos nada e que as idéias que expressamos possuem uma fonte tradicional, além de fornecer ao mesmo tempo o meio, àqueles que foram capazes, de se reportarem aos textos nos quais eles possam encontrar indicações complementares, pois é claro que não temos a pretensão de fazer uma exposição absolutamente completa, mesmo sob um aspecto determinado da doutrina." Quanto a apresentar uma exposição de conjunto, isso é uma coisa impossível: ou seria um trabalho interminável, ou teria que ser colocado de uma forma tão sintética que seria perfeitamente incompreensível aos espíritos ocidentais. Além do mais, seria bem difícil evitar, num trabalho desse gênero, a aparência de uma sistematização que seria incompatível com os caracteres mais essenciais das doutrinas metafísicas; seria sem dúvida apenas uma aparência, mas nem por isso deixaria de ser uma causa de erros extremamente graves, tanto mais que os Ocidentais, em razão de seus hábitos mentais, estão propensos a ver “sistemas” mesmo onde não há nada parecido. É importante não dar o menor pretexto a essas assimilações injustificadas, costumeiras entre os orientalistas; e seria melhor abster-se de
expor uma doutrina do que contribuir a desnaturá-la, nem que fosse por simples engano. Mas felizmente existe um meio de escapar a este inconveniente: consiste em não tratar, numa mesma exposição, senão de um ponto ou um aspecto mais ou menos definido da doutrina, deixando outros pontos para tratar em outros estudos distintos. De resto, estes estudos não correrão o risco de se tornar aquilo que os eruditos e os “especialistas” chamam de “monografias”, pois os princípios fundamentais não serão aí perdidos de vista, e os pontos secundários não aparecerão senão como aplicações diretas ou indiretas destes princípios dos quais tudo deriva: na ordem metafísica, que se refere ao domínio do Universal, não há nenhum lugar para a “especialização”. Devemos compreender agora porque tomamos como objeto próprio do presente estudo apenas aquilo que concerne à natureza e à constituição do ser humano: para tornar inteligível o que temos a dizer, deveremos forçosamente abordar outros pontos que, à primeira vista, podem parecer estranhos a esta questão, mas será sempre em relação àquele que os tomaremos. Os princípios têm, em si, um alcance que ultrapassa imensamente toda aplicação que se possa fazer; mas não deixa de ser legítimo expor esses princípios, na medida do possível, a propósito de tal ou qual aplicação, e este procedimento é inclusive vantajoso sob
certos aspectos. Por outro lado, é somente quando é ligada aos princípios que uma questão pode ser tratada metafisicamente; é o que se deve ter sempre em mente, quando se pretende fazer a verdadeira metafísica, e não a “pseudo-metafísica”, à maneira dos
filósofos
modernos.
Se adotamos como partido expor em primeiro lugar as questões relativas ao ser humano, não é porque elas tenham, do ponto de vista metafísico, uma importância excepcional, pois, sendo este ponto de vista livre de todas as contingências, o caso do homem não aparecerá nele como um caso privilegiado; mas iniciaremos por aí porque estas questões já surgiram no decorrer de nossos trabalhos precedentes, os quais necessitam a este respeito complementos que encontraremos aqui. A ordem que iremos adotar para os estudos que virão em seguida dependerá igualmente das circunstâncias e será, em larga medida, determinada por considerações de oportunidade; acreditamos útil dize-lo desde já, a fim de que ninguém veja nisso uma espécie de ordem hierárquica, seja quanto à importância das questões, seja quanto à sua dependência; isto eqüivaleria a nos imputar intenções que não são as nossas, mas sabemos como tais erros se produzem facilmente, e é por isso que nos aplicamos sempre a preveni-los toda vez que isso está ao nosso alcance." Existe ainda um ponto que é para nós muito importante
para que o deixemos de lado nestas considerações preliminares, embora já o tenhamos explicado bastante em ocasiões anteriores; mas, como nem todos parecem tê-lo compreendido, convém insistir ainda um pouco sobre ele. Este ponto é o seguinte: o conhecimento verdadeiro, o único que temos em vista, tem pouca relação, se é que tem alguma, com o saber “profano”; os estudos que constituem esse último não são em nenhum grau e sob nenhum título uma preparação, mesmo longínqua, para abordar a “Ciência sagrada”, e às vezes eles constituem ao contrário um obstáculo, em razão da deformação mental muitas vezes irremediável que é a conseqüência mais comum de um certo tipo de educação. Para doutrinas como a que iremos expor, um estudo tomado “do exterior” não teria nenhum proveito; não se trata de história, como já dissemos, nem tampouco de filologia ou literatura; e acrescentaremos, embora arriscando-nos a nos repetir fastidiosamente, que tampouco se trata de filosofia. Todas essas coisas, com efeito, fazem igualmente parte deste saber que qualificamos de “profano” ou de “exterior”, não por preconceito, mas porque é assim que é na realidade; cremos não ter de nos preocupar em agradar a uns ou desagradar a outros, mas sim de dizer o que é e de atribuir a cada coisa o nome e o lugar que lhe convém normalmente. Não é porque a “Ciência sagrada” tenha sido tão odiosamente caricaturada, no Ocidente moderno, por
impostores mais ou menos conscientes, que se deva evitar de falar nela, ou negá-la, ou no mínimo ignorá-la; ao contrário, afirmamos alto e bom som não apenas que ela existe, mas ainda que
ela
é
a
única
de
que
iremos
nos
ocupar."
Aqueles que quiserem se reportar ao que já dissemos em outras ocasiões das extravagâncias dos ocultistas e dos teosofistas compreenderão imediatamente que aquilo de que se trata é bem outra coisa, e que estas pessoas não passam, a nossos olhos, de simples “profanos”, e mesmo de “profanos” agravam singularmente se caso procurando fazer-se passar pelo que não são, o que é aliás uma das principais razões por quê julgamos necessário mostrar a inanidade de suas pretensas doutrinas, cada vez
que
se
apresente
a
ocasião.
O que dissemos deve também fazer compreender que as doutrinas de que nos propomos falar recusam, pela sua própria natureza, qualquer tentativa de “vulgarização”; seria ridículo querer “colocar ao alcance de todos”, como se diz sempre em nossa época, concepções que só podem ser destinadas a uma elite, e tentar fazê-lo seria a melhor maneira de as deformar. Já explicamos em outra parte o que entendemos por elite intelectual, qual será seu papel se ela um dia chegar a se constituir no Ocidente, e como o estudo real e profundo das doutrinas orientais é indispensável para preparar sua formação. É em vista desse
trabalho, cujos resultados só se farão sentir com o tempo, que acreditamos dever expor certas idéias para aqueles que são capazes de assimilá-las, sem jamais modificá-las ou simplificá-las ao modo dos “vulgarizadores”, o que iria contra o objetivo que nos propomos. De fato, não é a doutrina que deve abaixar-se e restringir-se à medida do entendimento limitado do vulgo; mas àqueles que o podem, cabe elevarem-se à compreensão da doutrina em sua pureza integral, e é somente assim que se pode formar uma elite intelectual verdadeira. Dentre aqueles que recebem um mesmo ensinamento, cada um o compreende ou assimila de forma mais ou menos completa, segundo a extensão de suas próprias possibilidades intelectuais; e é assim que se opera naturalmente a seleção sem a qual não pode haver verdadeira hierarquia. Nós já havíamos mencionado estas coisas, mas era preciso repeti-las antes de empreender uma exposição propriamente doutrinal; e é tanto mais útil repeti-las com insistência quanto mais estranhas elas são à mentalidade ocidental
atual."
Em seguida, veremos como Guénon apresenta
"O
Simbolismo
da
Cruz":
"No início de L’Homme et son Devenir selon le Vêdânta, apresentamos aquela obra como constituindo o começo de uma série de estudos nos quais poderíamos, conforme o caso, seja expor diretamente certos aspectos das doutrinas metafísicas do Oriente, seja adaptar estas mesmas doutrinas do modo que nos parecesse mais inteligível e proveitoso, embora sempre permanecendo fiel ao seu espírito. É esta série de estudos que retomamos aqui, após have-la interrompido momentaneamente em razão de outros trabalhos necessários a certas considerações oportunas, nos quais descemos antes de tudo ao domínio das aplicações contingentes; mas, mesmo nestes casos, jamais perdemos de vista os princípios metafísicos, que são o único fundamento de todo verdadeiro ensinamento tradicional. Em L’Homme et son Devenir selon le Vêdânta, mostramos como um ser tal como o homem é encarado por uma doutrina tradicional e de ordem puramente metafísica, sempre nos mantendo, tão estritamente quanto possível, dentro da rigorosa exposição e da interpretação exata da própria doutrina, ou ao menos só saindo daí para assinalar, quando a ocasião permitia, as suas concordâncias com outras formas tradicionais. De fato, jamais pretendemos permanecer fechados exclusivamente em uma
forma determinada, o que, aliás, seria bem difícil quando se tem consciência da unidade essencial que se dissimula sob a diversidade das formas mais ou menos exteriores, que são como que vestimentas diferentes de uma só e mesma verdade. Se, de modo geral, tomamos como ponto de vista central aquele das doutrinas hindus, por razões já explicadas, isto não nos impediria de recorrer, quando cabível, aos modos de expressão de outras tradições, desde que se tratasse de tradições verdadeiras, regulares e ortodoxas, entendendo estes termos no sentido que já definimos
em
outras
ocasiões.
É isto, em particular, que faremos aqui, de forma mais livre do que na obra precedente, porque se trata, não mais da exposição de um certo ramo doutrinal, tal como ele existe numa dada civilização, mas da explicação de um símbolo que é precisamente daqueles que são comuns a quase todas as tradições, o que é para nós a indicação de que ele se liga diretamente à grande
Tradição
primordial.
É preciso, a este respeito, insistir um pouco sobre um ponto que é particularmente importante para dissipar muitas confusões, infelizmente freqüentes em nossa época: trata-se da diferença capital que existe entre “síntese” e “sincretismo”. O sincretismo consiste em juntar desde fora elementos mais ou menos disparatados e que, vistos deste modo, não poderiam nunca ser
unificados; não passa, no fundo, de uma espécie de ecletismo, com tudo o que este comporta sempre de fragmentário e de incoerente. Trata-se de algo puramente exterior e superficial; os elementos, tomados de todos os lados e reunidos assim artificialmente não possuem senão o caráter de empréstimos, incapazes de se integrar efetivamente numa doutrina digna deste nome. A síntese, ao contrário, efetua-se essencialmente desde dentro; queremos com isto dizer que ela consiste propriamente em encarar as coisas na unidade de seu princípio, em ver como elas derivam e dependem deste princípio, e em reuni-las assim, ou, antes, em tomar consciência de sua união real, em virtude de uma ligação interior, inerente àquilo que há de mais profundo em sua natureza. Para aplicar isso ao que nos ocupa no momento, podemos dizer que haverá sincretismo todas as vezes em que se limite a emprestar elementos de diferentes formas tradicionais, para soldá-los de certa forma exteriormente uns aos outros, sem saber que, no fundo, não há mais do que uma doutrina única da qual estas formas não passam de expressões diversas, adaptações a condições mentais particulares, em relação com circunstâncias determinadas
de
tempo
e
lugar.
Em semelhante caso, nada válido pode resultar deste conjunto;
para
usarmos
uma
comparação
facilmente
compreensível, termos, ao invés de um conjunto organizado, uma
maçaroca informe de partes inutilizáveis, porque falta aí aquilo que poderia dar uma unidade análoga à de um ser vivo ou de um edifício harmonioso; e é próprio do sincretismo, em razão mesmo de sua exterioridade, ser incapaz de realizar tal unidade. Ao contrário, haverá síntese quando se parta da própria unidade, sem perdê-la de vista através da multiplicidade de suas manifestações, o que implica que se tenha alcançado, para além das formas, a consciência da verdade principial que se reveste delas para se exprimir e se comunicar na medida do possível. Assim, poderemos nos servir de uma ou outra destas formas, conforme a ocasião, exatamente do modo como podemos, para traduzir um mesmo pensamento, empregar linguagens diferentes conforme as circunstâncias, a fim de se fazer compreender por diferentes interlocutores; é isso, por sinal, que certas tradições designam simbolicamente como o “dom das línguas”. As concordâncias entre todas as formas tradicionais representam, podemos dizer, “sinonímias” reais; é assim que nós as encaramos e, do mesmo modo como a explicação de certas coisas pode ser mais fácil em tal língua do que em outra,, uma destas formas poderá servir melhor que as outras à exposição de certas verdades e torná-las mais
facilmente
inteligíveis.
É portanto perfeitamente legítimo utilizar, em cada caso, a forma que parecer mais adaptada ao que se pretende; não há
nenhum inconveniente de passar de uma a outra, com a condição de se conhecer sua equivalência, o que só pode ocorrer partindo de seu princípio comum. Assim, não haverá sincretismo; este, de resto, não passa de um ponto de vista “profano”, incompatível com a noção mesma de “ciência sagrada” à qual estes estudos se referem
exclusivamente.
A cruz, dissemos, é um símbolo que, sob formas diversas, se encontra quase em toda parte, e isto desde épocas muito recuadas; ele está, portanto, longe de pertencer exclusivamente ao Cristianismo, como querem alguns. É preciso mesmo dizer que o Cristianismo, ao menos sob seu aspecto exterior e geralmente conhecido, parece ter perdido um pouco de vista o caráter simbólico da cruz, para ver nela não mais do que o signo de um fato histórico; na realidade, estes dois pontos de vista não se excluem, e mesmo o segundo não é mais do que uma conseqüência do primeiro; mas este modo de ver as coisas é a tal ponto estranho para a maioria dos nossos contemporâneos que devemos nos deter um pouco aqui para evitar qualquer mal-entendido. De fato, existe uma tendência a se pensar que a admissão de um sentido simbólico carrega em si a rejeição do sentido literal ou histórico; esta opinião resulta da ignorância da lei de correspondência que é o fundamento mesmo de todo o simbolismo, e em virtude de que cada coisa, procedendo essencialmente de um princípio metafísico
do qual ela tira toda a sua realidade, traduz ou exprime este princípio ao seu modo e segundo sua ordem de existência, de tal maneira que, de uma ordem à outra, todas as coisas se encadeiam e se correspondem para concorrer à harmonia universal e total que é, dentro da multiplicidade da manifestação, como que um reflexo da própria unidade principial. É por isso que as leis de um domínio inferior podem sempre ser tomadas para simbolizar as realidade de uma ordem superior, onde elas tem sua razão profunda, que é a um só tempo seu princípio e seu fim; e podemos lembrar aqui, o erro das modernas interpretações “naturalistas” das antigas doutrinas tradicionais, que invertem pura e simplesmente a hierarquia das relações entre as diferentes ordens de
realidades. Assim, os símbolos ou os mitos jamais tiveram por
função, como quer uma teoria muito popular hoje em dia, a de representar os movimentos dos astros; mas a verdade é que encontramos freqüentemente
figuras
inspiradas
nestes
e
destinadas a exprimir analogamente coisas bastante diferentes, porque as leis destes movimentos traduzem fisicamente princípios metafísicos dos quais eles dependem. O que dizemos a respeito dos fenômenos astronômicos, podemos dizer igualmente de todos os demais gêneros de fenômenos naturais: estes fenômenos, pelo fato
mesmo de
derivarem de
princípios
superiores e
transcendentes, são na verdade símbolos deles; e é evidente que isto em nada afeta a realidade própria que estes fenômenos enquanto tais possuem dentro da ordem de existência à qual pertencem; pelo contrário, é nisto mesmo que se fundamenta esta realidade, pois, se separadas de sua dependência em relação aos princípios, todas as coisas não são mais que um puro nada. Com os fatos históricos dá-se o mesmo: também eles conformam-se necessariamente à lei de correspondência de que falamos e, por isso mesmo, traduzem ao seu modo as realidades superiores, da qual eles são de certa forma a expressão humana; e acrescentaremos aqui que é isso que os torna interessantes do nosso ponto de vista, inteiramente diferente, como se vê, daquele em que se colocam os historiadores “profanos”. Este caráter simbólico, embora comum a todos os fatos históricos, deve ser particularmente mais claro quando se referem àquilo que chamamos a “história sagrada”; e é o que encontramos, de modo evidente, em todas as circunstâncias da vida do Cristo. Se ficou entendido o exposto, ver-se-á de imediato que não só não há aí razão para negar estes eventos, tratando-os como “mitos” puros e simples, mas ao contrário, estes eventos só poderiam ter sido como foram, e não poderiam ser diferentes; como seria possível atribuir um caráter sagrado àquilo que seria completamente desprovido
de
todo
significado
transcendente?
Em particular, se o Cristo morreu sobre a cruz, foi em função do valor simbólico que a cruz possui em si e que sempre foi reconhecido por todas as tradições; é assim que, sem diminuir em nada seu significado histórico, podemos vê-la como derivada deste
próprio
valor
simbólico.
Uma outra conseqüência da lei de correspondência é a pluralidade de sentidos incluídos em cada símbolo: uma coisa qualquer, de fato, pode ser considerada como representando não apenas os princípios metafísicos, mas também as realidades de todas as ordens que lhe são superiores, mesmo que ainda contingentes, porque estas realidades das quais ela depende também mais ou menos diretamente desempenham em relação a ela o papel de “causas segundas”; e o efeito sempre pode ser tomado como símbolo da causa, em qualquer grau que seja, porque tudo o que ele é não passa da expressão de alguma coisa que é inerente à natureza desta causa. Estes sentidos simbólicos múltiplos e hierarquicamente superpostos não se excluem mutuamente, assim como não excluem o sentido literal; ao contrário, eles são perfeitamente concordantes entre si, porque eles exprimem na verdade as aplicações de um mesmo princípio a ordens diversas; e assim eles se corroboram e se completam integrando-se na harmonia da síntese total. É isto aliás que faz do simbolismo uma linguagem bem menos limitada do que a