Anais do IX Simpósio Simpósio de Cognição e Artes Musicais Musicais – 2013
Relação entre pontos de referência e tipos de memória no processo de memorização do Estudo nº 7 para violão de Heitor Villa-Lobos Nery Borges
[email protected] Universidade Federal de Goiás - UFG
Werner Aguiar
[email protected] Universidade Federal de Goiás - UFG
[email protected] Resumo: Neste artigo, abordamos a relação entre os diferentes pontos de
referência e os tipos de memória empregados na memorização musical no de Heitor Villa-Lobos para violão solo. Após a análise da partitu Estudo nº 7 de ra e leitura da obra ao instrumento foram mapeados os pontos de referência pelos seguintes aspectos: estrutural, expressivo, interpretativo e básico. Estes foram relacionados com as memórias analítica, visual, auditiva e sinestésica na medida em que mantém maior ou menor grau de afinidade. Os pontos de referência foram determinados e classificados com base na bibliografia apresentada apres entada no decorrer do texto e na auto observação do intérprete durante a preparação da obra para a performance pública. A relação com os tipos de memória foi feita buscando eleger o canal de percepção que desempenha maior influência na memorização dos determinados pontos de referência. Palavras-Chave: pontos de referência, canais de percepção musical, memorização do Estudo nº 7 de Villa-Lobos, tipos de memória
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Relationship Between Reference Points and Types of Memory in the Process of memorization Study No. 7 for Guitar by Heitor VillaLobos Abstract: In this article, we discuss the relationship between different
landmarks and the memory types used in memorizing the Study No. 7 by Heitor Villa-Lobos for solo guitar. After the score analysis and reading the work on the instrument ins trument we mapped reference points based on the following aspects: structure, expressiveness, interpretation and basic technical or
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mechanical features. These were related with analytical, visual, auditory and kinesthetic memories as they maintain greater or lesser degree of affinity. The landmarks were determined and classified based on the literature presented throughout the text and the interpreter self observation during preparation for public performance. The relationship with types of memory was made by seeking to elect the channel that perception plays a greater influence on memorization of certain landmarks. Keywords: landmarks, channels of music perception, memorization of Study No. 7 by Heitor Villa-Lobos, memory types
1. Introdução
A motivação deste artigo vem do desejo de racionalizar o processo de memorização de uma obra a fim de tornar possível seu enraizamento na memória de maneira perspicaz e de garantir o fluxo da performance. A prática da performance musical de memória é recorrente entre os performers concertistas na atualidade, na qual o solista executa a obra sem o auxílio da partitura tendo apenas a memória como referência durante a performance. Mas esta prática, embora habitual entre os solistas, não é uma tarefa fácil, pois, de acordo com Chaffin (2009), exige organização e reflexão do intérprete durante a preparação da obra. Portanto, o desenvolvimento de estratégias de memorização através da elaboração de sistemas de recuperação de informações é ponto fundamental na preparação do repertório, sendo assimilados por diferentes canais de retenção de informações, sejam eles sensoriais ou intelectuais. Independentemente dos canais de percepção utilizados, quanto identificamos o caminho a ser trilhado para uma memorização efetiva, mais fácil será o processo de recordação. Logo nos primeiros contatos com a obra, nossa mente inicia um processo de reconhecimento e armazenamento de informações referentes aos dados que a constituem. Essas informações são percebidas por diferentes tipos de memória que se somarão para a maturação da obra, tornando possível a performance.
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Autores como Kaplan (1987), Provost (1992) e Williamon (2002) afirmam que a memorização musical é baseada em quatro tipos de memórias: memória visual, imagem da partitura e tudo que pode ser visualizado durante o estudo (movimentos e posturas de dedos, mãos e braços); memória auditiva, responsável por reter os sons; memória sinestésica, parte mecânica da performance e que memoriza os movimentos físicos; memória lógica, intelectual ou analítica, responsável pelo entendimento da estrutura da obra, além de realizar a interação entre as memórias sensoriais. Os pesquisadores Gordon (2006), Hughes (como citado em Williamon, 2002) e Fernández (2000) apresentam a seguinte divisão no treinamento da memória: visual, sinestésica e auditiva. Estas são chamadas de memórias sensoriais e podem ser trabalhadas separada ou concomitantemente a fim de se obter uma memorização satisfatória. De acordo com Provost (1992), nem sempre os estudantes utilizam todos os canais de percepção no processo de memorização da obra, gerando insegurança e possíveis lapsos de memória durante a performance. Ele reforça que muitos estudantes igualam memorização com a repetição de uma parte ou seção até conseguir tocar sem o uso da partitura, fator que nem sempre funciona, deixando o intérprete vulnerável a possíveis lapsos de memória.
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Além do uso dos sentidos na memorização, Chaffin e Logan (2006) e Ginsborg (2004) acreditam que é fundamental conhecer os limites estruturais e os elementos composicionais que constituem a obra. Para tal é necessário que o intérprete realize uma fragmentação da mesma, seja por sinais expressivos, por aspectos interpretativos, por elementos composicionais ou até mesmo por dificuldade técnica, formando assim suas próprias ideias e conceitos. As divisões estabelecidas durante a análise prévia da obra geram pontos de apoio para a memória, que neste texto os chamaremos de pontos de referência. Chaffin e Logan (2006) abordam alguns pontos de referência para a recuperação do fluxo da obra. Este recurso permite que o instrumentista mantenha o foco e a concentração durante a execução da obra. Os pontos de referência servem como “marcos” criados pelo intérprete e permitem
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que ele se localize pela sua disposição no decorrer da performance. Estes pontos podem ser: estruturais, relacionados à estrutura da obra; expressivos, caracterizados pelas mudanças de caráter da obra, como andamento, dinâmica ou textura; interpretativos, locais onde o intérprete precisa manter especial atenção, devido a suas escolhas interpretativas; básicos, aspectos técnicos e mecânicos da obra. A identificação destes pontos e sua classificação é importante ferramenta no enraizamento da obra a partir da sistematização de um mapa mental dos passos a serem trilhados. Os pontos de referência se constituem assim em suporte para que não ocorram eventos não planejados e involuntários, bem como lapsos de memória durante a performance. Estratégias eficientes de memorização empregam múltiplas memórias e sua coincidência a pontos de referência permitem o mapeamento da obra por meio de diferentes canais de retenção de informações, visto que cada ponto de referência pode ter uma maior afinidade com um tipo específico de memória. O mapeamento dos diferentes pontos facilitará a recordação efetiva da obra (Chaffin, 2009). Com base nos autores relacionados acima levantamos as seguintes questões: como identificar pontos de referência para o mapeamento de uma obra? Como relacionar esses pontos com os tipos de memória? Quais as contribuições destas relações? Nosso objetivo é estabelecer a relação entre diferentes pontos de referência responsáveis pelo mapeamento mental do Estudo nº 7 de Heitor Villa Lobos e os tipos de memórias envolvidos em seu processo de memorização. Para isso foi realizado o mapeamento da obra com o intuito de estabelecer os pontos de referência estruturais. O segundo passo foi identificar alguns pontos de referências expressivos, interpretativos e básicos. Todos os pontos foram relacionados aos tipos de memória ou canais de retenção de informações que possuem maior relação para o processo de memorização e fluxo da obra. Portanto, a cada ponto de referência, nos cabe avaliar quais
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são suas particularidades e como eles podem contribuir para o mapeamento e execução da obra. 2. Pontos de referência 2. 1. Pontos de referência estruturais
Os pontos de referência estruturais são definidos pela estrutura formal da peça. Para Ginsborg (2004) esta forma de mapear a obra envolve uma visão geral da mesma, desde pequenos elementos geradores como motivos e incisos até frases, seções, modulações, ritornelos e outros aspectos da estrutura formal. Na maioria das vezes estes pontos tem maior afinidade com a memória analítica, por mapearem a obra morfologicamente.
Gráfico 1: Estudo nº 7 de Heitor Villa-Lobos. Pontos de referência estruturais.
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O gráfico acima nos fornece informações estruturais do Estudo nº7 , com o intuito de mapear a obra para a memorização. Deste modo, estabelecemos os pontos de referência estruturais coerentemente às divisões da obra em Trechos (T) (que podem ou não coincidir com a morfologia fraseológica) e Seções (S). A delimitação de cada divisão deve ser compreendida como um ponto de referência. Os três últimos compassos não caracterizaram uma seção, mas a coda, a qual pode ser tratada em si mesma como um ponto de referência. O gráfico demonstra um total de 12 pontos de referências de caráter estrutural e se constitui como um panorama geral da obra para a memorização
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2. 2. Pontos de referência expressivos
Envolvem todos os pontos que definem uma mudança na expressividade da obra, ou seja, aqueles pontos em que a obra apresenta diferenças de dinâmica, andamento, nuances timbrísticas e agógica. Estes pontos são definidos através da interpretação de sinas e indicações presentes na partitura. A obra estudada apresenta algumas indicações de intensidade, por e xemplo, o crescendo do c. 3. Outros de andamento, como podemos ver nos compassos 30, 32 e 54, onde o compositor usa a expressão allarg. Porém, voltamos nossa atenção a pontos de relevância para o mapeamento mental do performer na sua concepção musical, aqueles que constituem um ponto estratégico, demonstrando um caráter musical completamente diferente do que vinha sendo executado. Há três pontos que denotam um nível mais intenso de atenção e coincidem com o início das grandes seções. Eles apresentam mudanças de andamento e caráter da seção, constituindo-se assim em pontos de referência expressivos. Na grande seção A, a expressão Très Animé, aparece sobre o primeiro compasso indicando que o compositor deseja um caráter bastante movimentado em toda a seção. Para a grande seção B que inicia no c. 13 o compositor sugere algo mais lírico e cantabile , com menos animação através da expressão Moins. A Seção C apresenta a indicação Piu mosso , sobre o c. 41, indicando que o andamento adquire um caráter bem mais rítmico, aliás como demonstra a própria figuração. Seção A:
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Seção C:
Ex. 1: Estudo nº 7 de Heitor Villa-Lobos. Compassos iniciais das três Seções
O material musical diferente em cada seção contribui para sua respectiva caracterização. Na Seção A, os movimentos escalares e as progressões ascendentes em bordaduras contribuem com caráter muito animado, sugerido pelo compositor. A Seção B, além de possuir a expressão acima ilustrada, também possui uma textura homofônica, com a melodia, primeiro na voz superior e posteriormente na voz inferior. O compositor tem o cuidado de demonstrar esta hierarquia através da direção das hastes e da acentuação. Este caráter propicia ao intérprete maior liberdade de expressão, não exigindo um ritmo tão vigoroso. Já o material da Seção C nos transmite visualmente um caráter rítmico e vigoroso do que as outras duas seções, reforçado com a expressão presente em seu inicio. Portanto, esses pontos de referência expressivos se conjuntam aos principais pontos de referência estruturais e com a memória visual (sinais de expressão e figuração). Desse modo, tornam mais evidente e marcante a apreensão dos trechos e consequentemente, facilitam a memorização, assim como a manutenção do controle consciente da execução.
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2. 3. Pontos de referência interpretativos
Os pontos de referência interpretativos são aqueles pontos da obra em que o intérprete escolhe para ressaltar alguns aspectos importantes da obra. Estes são por ele deliberados na construção de sua performance com o intuito de atingir o resultado sonoro desejado para um determinado trecho. Nem sempre a partitura apresenta todas as informações necessárias para
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interpretação. Nesse caso, o intérprete realiza suas próprias escolhas interpretativas. Estas podem envolver diferentes aspectos tais como: fraseado, mudanças de timbre, agógica, microdinâmica, entre outras variáveis. Para ilustrar pontos de referência interpretativos no Estudo nº 7 , usaremos o primeiro sistema da Seção B, primeiro expondo a versão original, sem anotações e posteriormente o mesmo trecho com anotações decorrentes das escolhas musicais feitas durante a preparação da obra.
Ex. 2: Estudo nº 7 de Heitor Villa-Lobos. Início da Seção B, primeiro com notação original e depois com anotações do intérprete.
As anotações realizadas no exemplo acima remetem a escolhas interpretativas do performer e demonstram o resultado discursivo que pretende imprimir ao trecho. Estas escolhas podem aparecer anotadas ou simplesmente estarem enraizadas na memória após a prática do trecho por algumas vezes, sempre atento à concatenação do sentido discursivo do trecho a ser ouvido, o que nos leva a crer que o mapeamento destes pontos de referência se constituem na conjunção dos aspectos estruturais decisivamente sustentados pela memória auditiva. 2. 4. Pontos de referência básicos
Estes pontos se situam em trechos da obra que apresentam dificuldades técnicas, os “pontos críticos” no processo de elaboração da performan-
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ce. São marcados como pontos de referência básicos, os trechos em que o intérprete precisa dedicar atenção para resolver um determinado problema técnica, seja ele caracterizado por um salto de mão esquerda, uma escala rápida, um trinado constante, um arpejo rápido ou qualquer demanda técnica que dificulte a execução do trecho. No Estudo nº 7 , encontramos alguns pontos que merecem devida atenção e que servem como exemplos de pontos de referência básicos. Logo na Seção A, podemos encontrar momentos de difícil resolução técnica, por exemplo, os movimentos escalares dos compassos 1, 5 e 11. Estes são caracterizados por escalas descendentes que vão da corda mais aguda à corda mais grave do instrumento, exigindo atenção do performer durante a execução, devido às dificuldades técnicas que apresenta, tais como a troca de corda com velocidade, clareza e sincronia entre as mãos etc.
Ex.3: c. 1 do Estudo nº 7 de Heitor Villa-Lobos. Ponto de referência básico.
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Outro momento que merece à atenção do performer, por apresentar complexa passagem técnica, é o trecho entre os cc. 46-54. Este apresenta trinados executados na primeira corda enquanto o dedo 1 mantém uma meia pestana que se desloca por diferentes posições do braço do instrumento através de saltos. Para ilustrar esta passagem utilizaremos como exemplo o trecho entre os cc. 51-55, por apresentar os trinados de maneira mais intensa.
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Ex. 4: cc. 51 -55 do Estudo nº 7 de Villa-Lobos. Ponto de referência básico.
Os pontos aqui mencionados caracterizam ponto de referência básico por advirem da complexidade de execução. Estes pontos exigem mais tempo de dedicação do intérprete ao instrumento para que possam ser executados devidamente. Portanto, usa a memória sinestésica como principal canal de retenção de informações, baseando-se na repetição e treinamento mecânico. 3. Considerações Finais
Através do estudo analítico e reflexivo observamos que cada diferente ponto de referência implica em maior afinidade com um tipo de memória específico, tornando fundamental ao papel do performer em dar o tratamento adequado a esta associação no processo de memorização de uma nova obra. Também ressaltamos que a interação entre os dois aspectos da memorização musical discutidos neste artigo são ferramentas que contribuem para o entendimento e desenvolvimento de padrões conscientes de abordagem da performance de memória fazendo com que o intérprete focalize sua atenção nos respectivos aspectos. Destaca-se assim a importância de praticar estes aspectos para que sejam contornadas no palco possíveis situações de “embaraço”. A utilização de diferentes canais de retenção de informação viabilizará a performance de memória bem sucedida. Para finalizar, devemos lembrar que a intenção desta reflexão não é enfocar um tipo de memória e anular as outras, mas sim levar em
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consideração a conjunção de diferentes pontos de referência para tornar mais claras as decisões e as razões de determinado ponto requererem atenção na caracterização de marcos de suporte para a execução. Referênciais
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