Auto da Índia de Gil Vicente
Esta obra data de 1509 e é a primeira farsa escrita por Gil Vicente.
Contexto histórico
Através desta farsa, Gil Vicente dá a conhecer vários aspetos da realidade social, económica e moral do período da expansão para o Oriente, no século XVI. •
Enredo
A protagonista, uma mulher da Lisboa quinhentista, fica sozinha ao longo de vários anos após a partida do seu marido para a Índia. Com a cumplicidade da criada, leva uma vida divertida, mantendo ao mesmo tempo duas ligações amorosas. Entretanto, o marido regressa da Índia tão pobre como partira e narra à esposa as suas aventuras que nada tiveram de heroico. Ela, por seu lado, mente-lhe, dizendo-lhe que tinha tido muitas saudades. Por fim, marido e mulher retomam pacificamente a vida em comum como se nada se tivesse passado. •
Estrutura interna do Auto da Índia, de Gil Vicente
Exposição (vv. 1-96)
Conflito (vv. 97-392)
Desenlace (vv. 393-527)
A expectativa da partida.
O adultério.
O regresso do marido.
Através do diálogo entre a Ama e a Moça, percebemos que o Marido de Constança está de partida para a Índia. A Ama mostrase ansiosa, pois teme que o Marido acabe por não partir, e só descansa quando a Moça lhe traz a notícia de que as naus já tinham partido. Constança expressa, então, o seu contentamento e o desejo de que o Marido nunca mais regresse. Na ausência do Marido, Constança recebe em sua casa um castelhano fanfarrão, Juan de Zamora, e um antigo namorado, de nome Lemos, pondo em prática toda a sua astúcia e habilidade para evitar que os dois se encontrem. Ao ouvir a notícia do regresso das naus, a Ama começa por se descontrolar, mas depressa recupera o sangue-frio. No diálogo que se estabelece entre ambos, a hipocrisia de Constança é evidente e consegue convencer o Marido que sofreu muito com a sua ausência e que levou uma vida de privações e de oração.
Nota: Poderá parecer estranho que o comportamento da Ama fique impune, mas temos que reconhecer que o seu castigo destruiria o efeito cómico característico da farsa. Por outro lado, parece sensato pensar que o objetivo de Gil Vicente não era punir o adultério, mas sim preveni-lo, eliminando as condições que o propiciavam, como a ausência prolongada dos maridos nas viagens à Índia e a incerteza do seu regresso.
Personagens do Auto da Índia Relevo • Ama – é
a protagonista, é em torno dela que gira toda a ação (permanece em cena do início ao fim da representação). • Moça,
Lemos, Castelhano e Marido – personagens secundárias.
Processos de caracterização Todas
as personagens são caracterizadas direta e indiretamente:
Lemos, o Castelhano e o Marido são caracterizados diretamente através do que a Ama e a Moça dizem deles e as duas mulheres, através do que cada uma diz da outra. •
Além disso, podemos deduzir as suas características a partir dos comportamentos evidenciados por cada personagem (caracterização indireta), o que é fundamental para as caracterizar com verdade. •
Caracterização AMA
– Autocaracteriza-se fisicamente como “moça e fermosa” . Quanto à caracterização psicológica, revela-se uma mulher para quem o casamento não tem qualquer valor e as relações amorosas são apenas um jogo de diversão. A sua leviandade leva-a a aceitar as propostas imorais de dois pretendentes (Castelhano e Lemos), mostrando-se incapaz de controlar os seus desejos durante a ausência do Marido. Falsa, mentirosa e hipócrita, engana não apenas o Marido, mas os próprios amantes, escondendo a cada um deles a existência do outro. A sua falsidade torna-se mais evidente quando o Marido regressa e ela lhe garante que sofreu muito com a sua ausência, que rezou pela sua segurança e que permaneceu três anos recatadamente em casa, aguardando o seu regresso. É também uma mulher extremamente manhosa e habilidosa, chegando ao ponto de manifestar ciúme pelas presumíveis aventuras amorosas do marido na Índia.
Nota: A estes traços de caráter e comportamento da Ama não será alheia a escolha do nome Constança, um nome irónico, pois significa o contrário daquilo que ela é: inconstante nos amores.
MOÇA
– Fiel à Ama, é a criada confidente e, de certa forma, cúmplice que espera ver recompensado o seu silêncio sobre as infidelidades da patroa. Embora nunca denuncie a Ama, revela-se perspicaz e atenta aos seus comportamentos, criticando-os através da ironia, em muitos apartes. É também ela que estabelece a relação entre o interior e o exterior da casa, trazendo da rua, logo no início, a confirmação da partida do Marido da Ama e, mais tarde, a notícia da sua chegada.
CASTELHANO –
De origem social humilde, revelada pelo modo como se veste (uma pobre capa usada), é um fanfarrão, insinuando ser um homem de posses e exagerando a sua valentia. Oportunista, aproveita-se da ausência do Marido para procurar a Ama, tentando seduzi-la com um discurso exagerado e inadequado ao seu estatuto social, o que o torna ridículo. A imagem de homem culto, que procura transmitir durante a corte a Constança, é desfeita ao reagir com grande violência verbal, quando se sente rejeitado por ela. LEMOS –
Escudeiro pobre, procura esconder a sua condição social com modos delicados e um discurso galanteador. Exibe um desafogo material que não corresponde à realidade, o que é rapidamente denunciado quando manda a Moça fazer compras, pois vai rejeitando os alimentos caros e dá-lhe muito pouco dinheiro para as despesas. Também procura aproveitar-se da ausência do Marido para obter favores da Ama. Nota: Lemos e o Castelhano são introduzidos na peça para caracterizar a Ama como uma mulher leviana e adúltera. MARIDO –
Está ausente ao longo do desenrolar da ação e só aparece no final, quando regressa da viagem à Índia. A sua ausência é essencial para que a intriga se desenvolva, pois cria as condições necessárias para que a leviandade da Ama se transforme em adultério (o que, provavelmente, já acontecera antes). O Marido, homem ingénuo e crédulo, é vítima da infidelidade da mulher, que o enganou e lhe mente, e da exploração por parte do capitão do navio, que não lhe pagou o devido.
Conceção das personagens
As personagens do Auto da Índia são tipos , pois representam determinados comportamentos e grupos da época de Gil Vicente:
•
Ama - as mulheres que preenchiam a solidão provocada pela ausência dos maridos embarcados na aventura expansionista com outras aventuras, tornando-se infiéis aos maridos e, contribuindo assim, para a degradação moral da sociedade portuguesa do século XVI; •
Moça - as criadas cúmplices e interesseiras;
Castelhano e Lemos - os amantes ociosos e oportunistas que se aproveitavam do facto de as mulheres ficarem desamparadas e, portanto, mais vulneráveis; •
Marido - os maridos que, atraídos pela miragem da riqueza oriental, partiam em busca de fortuna fácil, acabando por ser traídos pelas esposas. •
São personagens planas, pois agem sempre de acordo com um padrão e, para funcionarem como tipos, não podem apresentar traços profundos que os individualizem.
Espaço • Espaço
da ação: - Lisboa: casa da Ama (a câmara da Ama, a cozinha, o quintal).
• Espaço
aludido: - Restelo (de onde parte a armada); - Ribeira (onde a Moça se desloca para fazer compras); - Índia (destino da viagem do Marido).
Tempo A ação desenvolve-se num período correspondente a três anos, desde que a armada partiu, na madrugada de um domingo de maio, e o dia em que regressou. •
Todavia, as peripécias da Ama parecem acontecer no espaço de 24 horas: partida do Marido domingo de madrugada, visita do Castelhano à Ama seguida da visita do Lemos, que passa a noite com Constança. É já no dia seguinte, de madrugada, que Lemos se vai embora e pouco depois dá-se o regresso do Marido. •
Esse dia, que condensa três anos, simboliza todo o período em que o Marido de Constança esteve fora e ela o enganou com os dois amantes. •
Nota: O tempo cronológico é de três anos, mas o tempo psicológico para a Ama é de ano e meio; este desajuste decorre do desejo de que não chegue o dia do regresso do marido.
Linguagem As personagens de Gil Vicente usam, predominantemente, um registo de língua próprio da classe a que pertence ou adequado ao contexto. Assim: •
- a Moça e a Ama usam, com frequência, um registo popular.
- o Castelhano usa um registo cuidado (literário) à maneira dos poetas de corte da época. •
Também a utilização do monólogo e dos aparte enriquece esta farsa: - os monólogos da Ama revelam, de forma mais aprofundada, a personagem e as suas intenções. - os apartes da Moça explicitam os comportamentos da Ama e produzem o cómico.
Tipos de cómico • Sendo
o Auto da Índia uma farsa, um dos objetivos do autor era divertir o seu público, recorrendo para isso ao cómico. Tal como em muitas outras peças de Gil Vicente, é possível encontrar aqui três tipos de cómico. Cómico •
de linguagem - está presente ao longo de todo o texto, por exemplo:
em algumas expressões insultuosas dirigidas pela Ama à Moça;
• pela
ironia, sobretudo nos apartes da Moça;
mas sobretudo na fala do Castelhano, pomposa, exagerada, cheias de expressões de cunho literário, que, por inadequadas às personagens e à situação, provocam o riso na Ama e no público. •
Cómico de situação hilariantes:
–
é criado por situações inesperadas e
• o
Castelhano é obrigado a aguardar no quintal, durante a noite e ao frio, autorização para entrar em casa da Ama; • o
Lemos é constrangido a esconder-se na cozinha para que a Ama possa tranquilamente falar com o Castelhano. “Quantas artes, quantas manhas,/ que sabe fazer minha ama!/ Um na rua, outro na cama!” (l. 270-272)
Cómico
de carácter – resulta da própria maneira de ser e de se comportar de determinadas personagens: •
o Castelhano, pelo seu exagero, pela sua fanfarronice, pelo contraste entre aquilo que diz e aquilo que é; • o
Marido, pelo modo ingénuo como aceita todas as declarações da Ama;
• o
Lemos, ao apresentar-se com um chapéu ("sombrero") excessivamente grande e ao ter que revelar a sua sovinice perante o hábil interrogatório da Moça; • a
Ama, pela hipocrisia com que fala ao Marido e finge ciúmes.
Intenção crítica de Gil Vicente Com
a farsa Auto da Índia, Gil Vicente mostra o lado negro da expansão ultramarina e critica situações e comportamentos sociais da época seiscentista: as ações pouco dignificantes dos portugueses durante as viagens à Índia, dadas através do relato do Marido. •
a degradação moral das famílias, traduzida no adultério, facilitado pela ausência prolongada dos maridos nas viagens de expansão ultramarina; •
•
o materialismo da sociedade, traduzido na busca de um enriquecimento rápido;
o culto das aparências, com as pessoas a procurarem ostentar uma posição e uma riqueza que, de facto, não possuem. •
Atualidade do Auto da Índia
Há no texto aspetos intemporais que lhe concedem uma inegável atualidade. É atual:
• a
infidelidade no casamento;
• a
falta de respeito pelos compromissos assumidos;
• o
materialismo desenfreado;
•
a ostentação e o culto das aparências.
Versificação O Auto •
da Índia é escrito em verso, apresentando:
estrofes de 9 versos, predominantemente;
• versos de • o
redondilha maior (7 sílabas);
esquema rimático: abbaccddc (rima emparelhada e interpolada).
“Mas que graça que seria,
se este negro meu marido, tornasse a Lisboa vivo pera minha companhia! Mas isto não pode ser; que ele havia de morrer Somente de ver o mar. Quero fiar e cantar, Se / gu / ra / de o / nun / ca / ver .”