A Categoría de (Des)Ordem e a Pós-Modernidade na Antropologia ROBERTOCARDOSODEOLIVEIRA
Para Para se alcançarum alcançar uma abo boa acom compree preensão nsão da Antropolog Antropología íaSocia Socialle e CultuCultural, ral, enqu enquan anto to discip disciplin lina a inse inserid rida a no quad quadro ro das das ciênci ciências as sociai sociais s mode modern rnas as,, uma umaviaque viaque mepareceufecunda epareceufecundafo foiaderefle iaderefletirsobreoseumovim tirsobreoseumovimento ento histórico, rico, desde desde os primgl rimglrp rps^ s^mo mome mento ntos s de sua constituiç constituição ãoaté até asuacon asua consolid solidaação como como uma umadis discipli ciplina naaca academ demicam icamente ente instituc instituciona ionalizad lizada aeministra eministrada da por profiss profission ionais ais.. Iss Isso o abra abrang nge, e, aprox aproxim imad adam amen ente, te, as duas duas últim últimas as década décadas s do século passado passadoaté até oprese o presente, nte, naqu naquilo iloquesepod quesepoderiachamard eriachamardesuamode esuamoderrnidadeou,atémesmo,desuapósmodernidadeJ Nesse sent sentid ido, o, pude pude desenvolv desenvolver er num num outro outro luga lugar r(Card (Cardoso oso de Oli Olive veira ira,, 1985b) essa reflex reflexão ão mostra mostrand ndo o como como três “escolas” “escolas ” do pens pensam amen ento to antro antro 1. As idéias idéias aqui aqui contida contidas sfor foram am elaborad elaboradasemsua asemsuaform formaoriginal aoriginal em outubro outubro/no /novem vembro bro de 1986 1986 durant durante e minha minha estadia estadia na Universidade Universidade deHarvard, naqual naqualidad idadede edeVisiting Visiting ScholardoDepartamentodeAntropologia,graçasaumconvitedaqueleDepartamentoe ScholardoDepartamentodeAntropologia,graçasaumconvitedaqueleDepartamentoe a um “ Auxílio Auxílio para para Manut Manutenç enção ão ePassag ePassagem” em” concedi concedido dopela pelaFA FAPE PESP SP (86/21049) e um "Auxílio paraPesquisas” paraPesquisas”(n (n.27/86)da .27/86)daFU FUNC NCAM AMP. P.Ess Essasidéias asidéiasfora foramaprese mapresentada ntadas s pelaprimeir pela primeiraveznoS aveznoSeminário“ eminário“Ordem OrdemeDesordem eDesordem”” , organizadoporMichelDebrun organizadoporMichelDebrunno no âmbito âmbito doCent do Centro rodeLógica, deLógica, Episte Epistemolo mologí gía aeHist eHistóri óriada adaCiênci Ciência a (CLE (CLE) )da daUN UNIC ICAM AMP, P, numac numaconferência onferênciaque que intitulei“ intitulei “ Acategoriadeordem (eadedesordem)naformaçãode Antropologia” . Numa Numa segundavez, segundavez,ed edeform eformam amais aisresum resumida, ida,num numapale apalestram straministr inistrada ada no “ I Seminá Seminário rio de Ciências Ciências Huma Humanas nas doMuse doMuseu u Goeldi Goeldi TradiçãoeCrít Tradiçãoe Crítica” ica” em sua sua sess sessão ão inau inaugu gura rall “ Epis Episte temo molo logí gía a das das Ciên Ciênci cias as Huma Humana nas” s”,, em Belém lém, Pará. rá. Esse sses eventos eventosoco ocorrera rreram maindaem aindaem 1986. 1986.Ote Otexto xtoqueaq queaquise uisepublica publicarece recebeu beu importan importantescotescoment mentár ário ios s de Luiz Luiz Eduar Eduardo do Soar Soares es e de Luís Luís R. Card Cardos oso o de Oli Olive veira ira; ; a ambos ambosme meus us agradecimentos. Anuári Anu ário o Antro Ant ropo poló lógi gi co/86
Editora EditoraUniversid UniversidadedeBrasília/TempoBrasile adedeBrasília/TempoBrasileiro, iro, 1988 1988
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RobertoCardosodeOliveira pológico,origináriasdediferentestradições intelectuais,tornaramseexemplaresna atualizaçãocompetentedos paradigmas racionalista, estruturalfuncio nalista eculturalista, orientadores respectivamentedaÉcoleFrançaisedeSociologie, da British SchoolofSocial Anthropology e da American Historical School of Anthropology. Naturalmente que a denominação “escola” fica por contadesuaconsagraçãonahistóriadadisciplina,poisserviuparaidentificar segmentos da comunidade de profissionais de Antropologia localizados na França, na Inglaterrae nos Estados Unidos da América. Comoportadores de “culturas científicas” próprias,decertomodosingulares,aindaque unidas no interiorde um únicoe amplo horizonte2, esses segmentostinham em comum umobjetivo:odecriaremumanovadisciplina científica.Destepontodevista ode umaciência essehorizonteficoumarcado pelas idéias de razão ede objetividade (equenãoexcluemabsolutamente outrasque oleitorpossaidentificar),mas quesãoidéiasvalor3,ocupandoum espaço quemeparececentral na episteme ocidentalpelo menos a partirdo lluminismo4. Mas se a concepção de umarazãodevotadainteiramente alograrum conhecimentoobjetivo caracterizou o que se poderia chamarde espírito científico, incentivando modalidadesde procedimentos lógicos (como em StuartMill)e metodológicos (comoem Durkheim),acríticaa essaconcepçãotardariamaisdemeioséculo ase manifestarno seiodadisciplinaatravésdeummovimentointelectualque sepodechamardehermenêutico,geradordoquesevemchamandonosEUA de “Antropologia Interpretativa”. Essa antropologia, em verdade incipiente, e 2. Horizontedacivilizaçãoocidentalou,parasermaispreciso,“ dahumanidadeeuropéia", nos termosformulados porHusserlem suaconferência de 1935, proferidaemVienae intitulada“ Afilosofianacrisedahumanidadeeuropéia”(Husserl, 1976:347383). 3. LouisDumontassinalaqueaseparaçãoentreidéiaevaloré, emcertamedida,falaciosa, representandoumaherançado pensamentokantiano.Asseveraque nãoseparandoapriori idéiasevalores, permaneceremosmaispertosdarelaçãoreal nassociedadesnãomodernas,entreopensamentoeoato,aindaqueumaanáliseintelectualistaou positivista tenda a destruir essa relação” (1983:221). Essa aparente ingenuidade do pensamentonas sociedades tradiconais, mostrasecapazdetotalizaçõesqueopensamentoanalíticomodernodeixaescapar. 4. Acríticaaessarazão "naturalizada” enquanto “ naturalizaçãodoEspírito” edoob jetivismoque lheéinerente, revestesedeumaacusaçãodeingenuidadedaqualambos não conseguemse livrareque, para Husserl, parececontaminartodaaepisteme européiaou ocidental: “ Osantigoseosnovosfilósofosforam e permanecemingenuamente objetivistas. Mas parasermaisjustoé necessárioagregarqueo idealismo alemãoprovenientede Kantjáse esforçavaapaixonadamenteasuperarumaingenuidade jábastanteevidente, sem terpodidoalcançarefetivamenteograudereflexãomaiselevado, decisivoparadarumanovaaparênciaàfilosofiaeàhumanidadeeuropéia (Husserl, 1976:374).
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ACategoríade(Des)OrdemeaPósModemidadedaAntropologia cujas possibilidades de efetiva consolidação nãoestãoimunes a ceticismos, comporiaoquartodomíniodeumamatrizdisciplinar5com aqualimagineidar conta de uma sorte de“estadoteórico”da Antropologia, cujas“escolas” acima mencionadas, fundadoras da disciplina, passariam a conviver com uma modalidade de antropologia eventualmente alternativa, imagem espelhada quaseinvertidadessasmesmas “escolas” sefocalizarmosessamatrizdisciplinar do ponto de vista de categorias tais como ade ordem e a dedesordem. Oexamedosparadigmassustentadoresdas“escolas”consolidadasnas primeiras décadasdo séculopermitecaracterizálos comoparadigmasdaor dem, uma vez que é sobre essatemática que os oficiantes dadisciplinase debruçam. Poderseiadizer quea categoriada ordemestáexplícitanas diferentes escolas , enquanto noçãodevidamentetematizadaem seusrespectivosdiscursos.Senãovejamos:oparadigmaracionalista,jáemseusprimeiros passos na Écolefrançaise, aplicasetantona questãoda organizaçãosocial (solidariedade mecânica e solidariedade orgânica) como na descoberta de “formas elementares” ordenadoras do pensamento primitivo,e,em seus últimos passos, no exercício radical da categoria, jánointeriordo moderno es truturalismo francês, como bem ilustraa conhecidamáximalévistrausseana de que apiorordem émelhordo que adesordem”; naquestão,equacionada em termosde estruturasocialedefunção social,destacaseoparadigmaes truturalfuncionalista particularmente no que diz respeito à instituição do parentescoeaosgruposoganizacionaistãoextensamenteestudadosna British School', enquantoo paradigma culturalista, subjacente à American Historical SchoolofAnthropology, conduzàindagação paraosprocessosculturais eao 5. Tradição Tempo Sincrónico
MatrizDisciplinar
Intelectualista
Empirista
I ParadigmaRacionalista “Escolafrancesa”
ParadigmaEstrutural Funcionalista "Escolabritânica" IV III Diacrônico ParadigmaHermenêutico ParadigmaCulturalista “Antrop.Interpretativa” “EscolaNorte „ , americana" Osargumentosquesustentam aelaboraçãodaMatriz emsuaprimeiraformulação estaoexpostosemminhaconferênciade 1984(CardosodeOliveira 1985b)
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RobertoCardosodeOliveira estabelecimentodepadrões ou regularidadesculturais.A categoriadaordem implementa a investigação científica, teórica ou “de campo”, em todo amplo espaçoocupadoporessas“escolas”.Talaforçadessacategorianouniverso dadisciplinaqueelanão apenasorientaodiscursodasdiferentes“ escolas” , a gramaticalidade da linguagem antropológica, o que constituiria, a bem dizer, oimpensado da disciplina, comoaindase manifestano centro de sua problemática, largamenteexplícitaem todosos índicesou sumáriosde quantosensaiosemonografiasaantropologiaconheceuemsuahistória. Pretendo mostrar nesta oportunidade que o quarto paradigma,ohermenêutico, começaaseimpornadisciplinanamedida emquelogra contaminála de elementos conceituais solidários de umacategoriaopostaàdaordem,isto é,deumadeterminadaordemquesecaracterizapordomesticareficazmente esseselementos,asaber,asubjetividade,oindivíduoeahistória.Sãoprecisamente esses os elementos que, no meu modode ver, constituemfatorde desordem em cada uma das “escolas” mencionadas, implementadas pelos três primeirosparadigmasenunciadosnamatrizdisciplinar6. Issosignificaque aAntropologia Interpretativa, implementadapeloparadigmahermenêutico,enquanto crítica sistemática às“antropologiastradicionais”, estariaatualizando, do ponto de vista da matriz disciplinar, a categoria da desordem aqui sim comooverdadeiroimpensado da disciplina. Pretendomostrarainda ou pelo menos sugerir queorelativosucessodoparadigmahermenêuticonãoécasual, mas se explica por aquilo que setem chamadodemovimentopósmo derno,queparecealcançardeummodotodoparticularaAntropologiaCultural norteamericana. Ao constituíla, enquanto Antropologia Interpretativa, esse movimentocorreorisco, no limite, de engendrarum certo“interpretativismo”, ou, em outras palavras, um desenvolvimento perversodo paradigmahermenêutico7. II Suporque a subjetividade, oindivíduoe a históriasempreestiveramausentes dos paradigmas da ordem seria, nãoobstante,incorrernumacuriosa ilusão de ótica: como escoimar do campo da ordem precisamente aqueles elementos que, por suaameaça àintegridade do campo, tiveram deserpor 6. Vejanotaanterior. 7. Na conferência já aludida, argumentosobreosdesenvolvimentosperversosdosparadigmaseadvirtosobreapossibilidadedesurgirum“certointerpretativismo,jáseesboçandoemnossoquartoparadigma” (CardosodeOliveira, 1985b:202).
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ACategoriade(Des)OrdemeaPósModernidadedaAntropología ele domesticados? Umadomesticação não é o mesmoqueurna purae simplesexclusão. No máximosetrataria deumaexclusãometódica,quando, na hipótesede urna difícil domesticação,oselementos seriam submetidosauma certa “epoché”, isto é, seriam postos em colchetes, neutralizados. Mas sua existência latente ou manifestano âmbito da disciplina (maisdo que naconsciência de seusoficiantes) seriafacilmenteaferívelpeloexercício de sua negação: negara proeminênciadasubjetividade,doindivíduooudahistóriaéter esseselementosao menos sob controle. É assimquesetomarmososparadigmasda ordem um aum observaremosqueenquantooparadigmaracionalista, pelo menos em sua primeira fase (préestruturalista), passa relativamente incólume pela ameaça de serperturbado pelotempo, praticamente ignorado enquanto tempo histórico, o paradigma estruturalfuncionalista reage primeiramente por uma críticaàquestão da causalidadee, secundariamente, como conseqüência, pela exclusão da história do horizonte da disciplina. A críticamilieana8 àcausalidade(àrelação causaefeitodeslocadapelo ceticismo empirista de Hume) éabsorvidainteiramentepeloparadigmadesde seus primórdios, desde as primeiras formulações programáticas de Rivers até RadcliffeBrown, quando se consolida o paradigma e secria umaortodoxia onde a história, concebida como especulativa, não teria mais lugar. História quepassaa serum marcadordadesordeme cujaerupção no interiordaestrutura social só poderia ser um complicador na capacidade explicativa da Antropologia,especialmentequando investidada missãodeviraseruma verdadeira “ciência natural da sociedade” (RadcliffeBrown, 1957). Entretanto, é interessante notar que a história, como domínio da desordem, nãoo é da mesmamaneiraparaambosos paradigmas. Navertenteracionalistadatradição intelectualista, o domínio da história é relativamente domesticado pela concepçãoevolucionista teoria hegemônicanaciênciadoséculoXIX , onde menos do que história são etapas evolutivas, reguladas por leis naturais (deevolução da humanidade eda natureza)quecontam.Oevento, isto é,a particularidade,nãotemlugarnoespaçodaslinhasoudoscírculosevolutivos. Durkheim, como os pensadores de seu tempo, não escapou à sedução do evolucionismoprevalecente,porém sem submeteraelealógicadeseuraciocínio: ao falar,porexemplo,sobreaorigem da religião nãoconsideraessaorigem como primeira etapa cronológica da religião; antes, aconsidera em ter 8. EmmeuensaiosobreacategoriadacausalidadenaformaçãodaAntropologia(Cardoso de Oliveira, 1985a) procureidar umaidéiasobreoteordessacrítica,mostrandoaimportânciadalógicaindutivadeStuartMillnafundamentaçãodoparadigmaestrutralfun cionalista,particularmenteemsuaprimeirafase.
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RobertoCardosodeOliveira mos lógicos, como “forma elementar da vida religiosa”. Isso significa queo tempo enquanto história e fatorde desordem nem sequer chegou a ser pensado, uma vez que já estava neutralizado, paradoxalmente, nas leis da evolução. Jáno paradigma estruturalfuncionalistaoque se notaé umareaçãonão apenas à história (como tipicamente em RadcliffeBrown) como também às teorias de evolução, o que indica umapercepçãomaisagudada ameaçado tempo, quer em suaacepção histórica, particularista, querem sua acepção evolutiva, universalista, pois submetida aleis (naturais). Essapercepçãofica bem evidenciada naobra de W. H. R. Rivers. Inicialmente evolucionista, Riversfoiinfluenciadopelasidéiasdifusionistasecomelaspôdeconduzir,com algumaeficácia, suacríticaaevolucionistascomoTylore Frazer. Maso que levou aessa mudança radicalem suaposição anterior,foisuaexperiênciade pesquisa de campo, obtida na Expedição ao Estreito de Torres, em 1898, quando pôde realizar observações diretas sobre populações nativas.9 O campo, como “fieldwork” ainda que precário para os padrões da “escola" britânica que se consolidaria posteriormente passaria a se constituir não apenasnumapráticafundamentalparaadisciplina,mas sobretudo num valor que se transmitiria para todos os componentes da British School ofSocial Anthropology. É assim que quando RadcliffeBrown acusa a história de ser especulativa é contraaimpossibilidade de observaçãodireta queestáseposicionando: como observar o passado? Como aceitarobservadores (cronistas, missionários ou administradores) destituídos de treinamentocientífico? A história para ele sóseria admissível sese destinasseexclusivamenteà "formulaçãodeleisdeinterdependênciasfuncionais”10. Tudo isso se relaciona a meu ver com a dificuldadeou mesmoimpossibilidade (considerando o horizonte de evidente atemporalidade desses dois primeiros paradigmas) de domesticar “cientificamente” o fato histórico. Carregado de particularidades, suaobservaçãosomente é equacionadapela AmericanHistoricalSchoolofAnthropology,lideradaporFranzBoasnosEstados Unidos,etendoem suabaseoparadigmaculturalista,também caudatá rio da tradiçãoempirista.Com Boas,oindivíduo eahistóriapassamaserob9. Como W. H. R. Rivers é um autorpoucoconhecido hoje em dia, julgocabívelindicar minha“ LeituradeRivers”(CardosodeOliveira, 1984),elaboradaparaovolumeRivers, daColeção"Osgrandescientistassociais” , daEditoraÁtica(asair). 10. Veja EvansPritchard, 1981:174. De meu lado tenho procurado mostrara influência neopositivistadeCarnapemRadcliffeBrown,especialmenteduranteoperíodoqueeste últimotrabalhounaUniversidadedeChicago(CardosodeOliveira,1985a:3336).
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ACategoriade(Des)OrdemeaPósModemidadedaAntropología jeto de consideração sistemática, se bem que submetidos aum tratamento peculiar. Contraoevolucionismode Tylor,de um Comteou de umSpencer,a “escola”opõeoestudodemudançasculturaisateridasatravésdaanálisede processos de transformações, aseremacompanhadosmuitas vezespasso a passo pela via da reconstruçãohistórica e pela observaçãocomparada. Não são mais etapas evolutivas que se busca diagnosticar, mas eventos e processos sócioculturais que agora seprocura explicar. E quanto ao indivíduo, até aquipostode ladoporDurkheim ou porRadcliffeBrown, é nesseterceiro paradigma focalizado, porém por uma ótica culturalista, nãopsicológica. A obra dosdiscípulos de Boas, particularmenteSapir, RuthBenedictouMargaret Mead ilustram essa preocupação com o indivíduo, com a personalidade. Mas esse indivíduo está igualmente domesticado no horizonte da “escola”, pois ofocomaiorestá na organizaçãoculturaldapersonalidade, abem dizer com os padrõesdepersonalidadequesãopadrõesmodais comoo“apolíneo” e o “dionosíaco” de Benedict, ou as personalidades modais de Samoa de Mead.A noçãode padrão (patterns)estáclaramenteinformadapelacategoria da ordem. Essacategoriaviabiliza umaformade conhecimento objetivobastante peculiar: naturalizaahistória, dissociandoadas vicissitudes individualizantes próprias da crônica eda narrativa propriamente histórica; culturaliza o indivíduo, dissociandoo de suas particularidades individuaisecolocandoo alémdodiscursopsicológico. Ill
A aplicação com queos paradigmas da ordem sedevotaram a domesticarasubjetividade,oindivíduoeahistória praticamentemarcouindeléveislimites à noção de cientificidade do conhecimento antropológico. Dizer que o princípio orientador dessa domesticação seja positivista é dizer pouco, uma vez que ele apenas expressaria a forma de enfrentamento da questão da subjetividade em prol da constituição de parâmetroslegitimadoresdeum conhecimento objetivo. Na obra de Durkheim e na de RadcliffeBrown é onde esses parâmetros encontraram sua mais sistemática formulação. E é igualmente na obradeambosqueaconstruçãodo campo sociológico(leiaseantropológico) encontrou sua mais persistentedeterminaçãoàcusta de umaerradicaçãode todoe qualquerpsicologismo.É umaposturaquenão seexplica inteiramente pela aplicação dos parâmetros positivistas, sendo muito própria daantropologia (leiasesociologia) comoumadisciplinaautônoma.Antes,di63
RobertoCardosodeOliveira ria,queé um “debate" que se dá no interior do próprio positivismo^. Jáno quese refere àhistória, via sua naturalização comoseviu osparâmetros positivistas são exercitados mas com conseqüências nãouniformes: com RadcliffeBrown os ideais nomotéticos,com o sacrifícioda história, são levadosaolimitedesuaspotencialidadesdeconstruçãodeumsaberobjetivo(alvo deumaverdadeiraciêncianaturalda sociedade); com Boas, ao contrário, não se sacrifica ahistória,mas ela é submetida às determinaçõesdo ideário cientificista das “Geisteswissenschaften”, nas quais a especificidade das ciências do espírito não elimina a exigência de objetividadee,sepossível,o estabelecimento de leis culturais12. O certo é que os paradigmas da ordem sustentam um amplo e único, ainda que multifacetado, discurso fortemente marcadoporseucarátercientificista. O quarto paradigmade nossa matriz disciplinar, que chamei de hermenêutico,abreseuespaçonaantropologiaprimeiramenteporumanegaçãoradical daquele discurso cientificista exercitado pelos três outros paradigmas; em segundo lugar,porumareformulaçãodaquelestrêselementosquehaviam sido domesticados pelos paradigmas da ordem: asubjetividadeque, liberada da coerçãoda objetividade,tomasuaformasocializada,assumindosecomo intersubjetividade; o indivíduo, igualmente liberado das tentações do psicolo gismo,tomasuaformapersonalizada (portanto,oindivíduo socializado) e não temeassumirsuaindividualidade', eahistória,desvencilhada das peias naturalistas que atornavam totalmente exteriorao sujeitocognoscente, poisdela se esperava fosse objetiva, tomasua formainteriorizadae se assumecomo historicidade. Essestrês elementos,assim reformulados, passam a atuarcomofatoresdedesordemdaquelaantropologiaqueosinterpretativistastendem a chamar de “antropologia tradicional”, sustentada pelos paradigmas daordem. O paradigma subjacente a essa “antropologia interpretativa” pode ser chamadodehermenêutico. 11. Essaquestãoemsimesmaexigiriaumtratamentoaprofundado oquesobrecarregaria desnecessariamente otexto. Diria apenasque ocarátercientificistaque impregna os paradigmasdaordeméaexpressãodopositivismo,queremsuamanifestaçãoprimitiva, querem sua manifestaçãomoderna, neopositivista. Habermasofereceosmelhoresargumentosnessesentido(Habermas, 1982). 12. Escrevendosobre asconcepçõesbásicasdaantropologia deFranz Boas, umdeseus maiscompetentesestudiososescrevequeparaBoas“osmétodoshistóricoefísico(...) não erammais abordagens alternativas. Na pesquisa antropológica, a história, ainda quesubordinadaáfinalidadedeleicientífica,eranãoobstanteprioritáriaaela.Somente através da história leis culturais poderiam ser estabelecidas” (Stocking e George, 1982:12).
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ACategoriade (Des)OrdemeaPósModemidadedaAntropologia Nãomeparecenecessárioiralémdeumasimplesmençãoàsraízesfilosóficas do paradigma. Vale apenas descartar qualquer univocidade na concepçãohermenêutica.13 Aocontrário,oque se verificaéumaverdadeiradispersão de influências nessaantropologia quese pretende nova. Nema “hermenêutica ontológica” de Heideggere Gadamer, nema“hermenêuticametódica”deBetti ou de Hirsch,nem a“hermenêuticafenomenológica”de Ricoeur (e muitomenos a“hermenêutica clássica”de Schleiermachere Dilthey)dominam aquilo que prefirochamarde“consciênciahermenêutica”naAntropologia “pósmoderna”. Não obstante, não se está afirmando com isso que essa subjetivação da antropologianãoenvolvaem si mesmaumacerta controvérsia.Prefiro, por ora, retêlacomo umaexpressãonativa,origináriano interior da comunidade dos interpretativistas e explicitada porum deseus maiscredenciados representantes: o ProfessorStephenTyler,daUniversidadedeRice,Texas14. Provavelmente o indicador mais significativo do que se poderia chamar de pósmodernidade da disciplina estáem suavulnerabilidadetalvezexcessivaao movimentohermenêutico15. Oprimeiro resultado dessa vulnerabilidade estaria na críticaàs raízesiluministas, asaber,ao poderabsolutodarazãoe, com ela,da ciência, postasagora razãoeciência sob suspeita. Estasus peiçãoqueteriasuaancestralidademaisremotaemautorescomoNietzsche, encontrasuaformulaçãomais recenteem dois pequenos livros, LaCondition Post-Moderne (1979) e LePostmoderneExpliquéauxEnfants (1986), ambos de Jean François Lyotard, igualmente interessantese sérios,em quepesea ironiado últimotítulo. Neles,essasuspeição seexpressaporumarejeiçãode toda metateoria ou metadiscurso. Detenhamonos um pouco sobre o que Lyotard quer dizer com isso antes de retornarmos à questão específica da “antropologia interpretativa”. Quatropontoseu gostariade destacar: primeiro, 13. Aunivocidadeque se poderiaadmitir seriacomrelação àVerstehen, àcompreensão, entendidacomoumacertaintuiçãoouempatia; e, quandoaplicada á descrição doconhecimento etnográfico, envolveria uma crítica à experiência empática originária na pesquisade campoClifford, 1983:128, nota 23). Entretanto,fora docontextodaantropologia, essa Verstehen poucoteriaavercomempatia,daqualsedistinguenitidamente. 14. Doistextos de Stephen Tyler (1984 e 1986) devem.serlidossobresuaconcepçãode umaantropologiapósmoderna, juntamentecomumainteressanteavaliaçãodamodernidadeepósmodernidadedadiscplinaporPaulRabinow(1986). 15. Adiversidadedeposturas hermenêuticasétantaquemelhorseriatratálacomoummo vimento, aexemplodo quetemocorridocomafenomenología,alevarmosemcontaas consideraçõesde autorescomoMerleauPonty(195211), Gadamer(1977:130181) ou Spiegelberg(1975,1:120).
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RobertoCardosodeOliveira que a condição pósmoderna se daria no interior de sociedades posindustriáis, de sociedades informatizadas, nas quais as transformaçõestecnológicas sobre o saber parecem ter sido consideráveise que afetaram sobremaneira “suasduas principaisfunções: a pesquisa e atransmissãode conhecimentos” (Lyotard, 1979:12). Segundo, que a legitimidade desse saber não mais se sustentaria nos“metadiscursos”, nasgrandesnarrativas (lesgrande récits), bastante suspeitasaos olhospósmodernos, comoasque se encontram satelizadas em torno da idéia de emancipação, ordenadores de uma “multidão de acontecimentos: narrativa cristã de redenção do delitoadámico pelo amor, narrativa aufklarer da emancipação de ignorância e da servidão pelo conhecimento e igualitarismo, narrativa especulativa da realização da idéia universal pela dialéticadoconcreto, narrativa marxistada emancipação da exploração e daalienação pela socializaçãodo trabalho, narrativacapitalista da emancipação da pobreza pelo desenvolvimento técnicoindustrial” (Lyotard, 1986:47). Terceiro, estando excluído o recurso às grandes narrativas como validaçãodo discurso científicopósmoderno,“ apequenanarrativa permaneceaformaporexcelênciaquetomaainvençãoimaginativae,acima de tudo, na ciência” (Lyotard, 1979:98) e é nessesentidoqueentendosua frase “O saber científico é uma espécie de discurso” (Lyotard, 1979:11). Quarto, opróprio consensoédadocomoinatingível,e se ele seriaafinalidade do diálogo, em realidade ele é apenas "um estadodediscussões e nãoseu fim. Este ésobretudo aparalogia” (Lyotard, 1979:106).16 É certoqueLyotard está discutindo aqui com Habermas, contrasua tese da possibilidadede um consenso, viabilizado por uma “pragmática universal”, que se sustenta se assim posso simplificar numa concepção de humanidade vista como um sujeito coletivo, universal, em busca de sua comum emancipação. Sem entrarmos nesse debate^, ficanosa idéiade queessacondiçãopósmoderna, ainda que possa coexistir com condições modernas pois como reitera o 16. Decerto modo isso é o anarquismoepistemológico levadoaextremos,nãoadmitindo sequer, aoquetudo indica, afecundidaderelativadoparadigma Kuhniano. Mostrando quenapragmáticacientificaaênfaseépostanadivergência(dissentiment),Lyotardentendeque “ Oconsensoé um horizontejamaisatingido.Aspesquisasquesefazemsob a égide deum paradigmatendemaestabilizálo; elassão comoa exploraçãode uma idéiatecnológica, econômica, artística" (1979:99). E aoconceberqueoatingívelseriam apenasparalogias(que entendo seguindooVocabulairePhilosophiquedeLalande como sendo raciocíniosfalsos, ainda que deboafé), Lyotardparece inviabilizarqualquerciênciaquesepretendapósmoderna. 17. Richard Rorty, detradiçãofilosóficaanalítica,faz um cuidadosoexamedacontrovérsia Habermas/Lyotard, revelandoqueambosseencontramem posiçõesclaramenteopostasdetalmodoque“qualquercoisaqueHabermasconsiderariaumaabordagemteórica
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ACategoriade(Des)OrdemeaPósModernidadedaAntropologia próprio Lyotard (1986), ela não se situa após o moderno, nem contraele representaumafortecompulsão paraa desordem (paraum anarquismo epistemológico à Ia Feyerabend, se quisermos permanecer apenas no campo do conhecimento científico) e, portanto, estimula um semnúmero de “experimentos” descomprometidos (“pequenas narrativas”), comoosmais recentes desenvolvimentosda“antropologiainterpretativa”estãoaindicar. IV A despeito de uma eventual condição pósmoderna prevalecente, tenho procurado entender o surgimento dessa “antropologia interpretativa” examinando a receptividade da consciência hermenêutica pela discplina. Tradicionalmenteciosade suaautonomia,enquantodisciplina, aAntropologiapassou a incorporar um certo olharfilosófico, exprimindo não só um estranhamento com o outro objeto trivialde suaprática mas também consigo mesma. A expressãoconsagradade Geertzdeque “todos nós somosnativos" quejá tive aocasião de comentar(CardosodeOliveira, 1985b:199) pode serentendida no amplo contextodo progressodaconsciênciahermenêutica. E vale se ter em conta que esse progresso não é exclusivo da Antropologia, mas atingetambém,aindaque nãoigualmente,oconjuntodedisciplinasque,nodizerde Giddens,convergem hoje para aelaboração de “teoriasdosocial"(social theory)18. Porém, ao quetudo indica, énaAntropologia queessaconsciência se radicaliza, a se julgar pelos mais recentes debates e pronunciamentos quetêm tido lugarentreprofissionaisda área.No recentelivrodedois dosmaisativosparticipantesdessa"antropologiainterpretativa”, George Marcus e Michel Fischer (1986) defendem a disciplina como “crítica cultural” e ofazem num"momentoexperimentaldasciências humanas”, comopreferem classificaroperíodo atualda AntropologiaCultura!^. Um segundolivro,igual universalista, seria considerada por um Lyotard incrédulo como urna metanarrativa. Qualquercoisaque abandoneurnatalabordagemseriaconsideradaporHabermascomo neoconservadora (. . .)” (Rorty, 1985:162). Emboranãosepossasubscreverinteiramente essa interpretação, dadoo seusimplismo, elaserveparaindicar, no limite, a oposiçãoentreosdoisautores, apardosurgimentodeumaterceiraposiçãoque,nesta oportunidade,nãocabeexaminar. 18. “ ‘Teoria social’, emminhaopinião, estendesesobre aciência social. É um corpode teoriapartilhadoportodasas disciplinasconcernentescomocomportamentodosseres humanos. Porconseguinte ela não afetaapenasasociologia, masantropologia, economia, política, geografiahumana, psicologia asériecompleta dasciênciassociais” (Giddens, 1984:219220). 19. “Acreditamosquenossoexamedomomento experimentaldaantropologiasocialecultural, como o chamamos, revelatambém muito sobre sua tendência intelectualgeral”
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RobertoCardosodeOliveira mente recente,éum verdadeiro debate que reuniu umadezenade particpan tes na School o íAmerican Research, em Santa Fé, New México, em 1984, e foi editado pelo mesmoGeorgeMarcuse JamesClifford(1986). Dentreos pronunciamentos mais radicais e mais anárquicos está o de Stephen Tyler, mencionado páginas atrás, para quem o pensamento científico não é senão “um modo arcaico de consciência” (1986:126). Ainda que se possa admitir sem muitadificuldade ocaráterarcaicodaconsciênciacientífica nos termosdo discurso hermenêutico , valeperguntarsobrequalouquaismodalidades de saberseabririampara aAntropologiase, navisãodeTyler,nema “representação”, nem a “metáfora” , nem a “alegoria”, nem a “tradução” e muitomenosa“descrição”sãoformasválidasdeetnografia2o.Seriaa“antropologiapósmoderna”apenasumanovaformademeditação?21 Penso que a melhor maneira de encontrar umacerta coerência nessa nova antropologiaé pensálaapartirdo paradigmahermenêutico,cujo núcleo estánapróprianoçãodeVerstehen,independentementedasdiferentesmodalidades deapreensãoetnográfica elasmesmasdestinadasa seconstituírem em verdadeiros “experimentos”. Nesse sentido, cabe retomar agora o paradigma naquiloque ele contribui paraaconstituiçãode um novoestilode sefazer antropologia, onde aintersubjetividade,aindividualidade eahistoricidade passaraserexercitadas pelo pesquisador.Ameu ver, essenovoestilo seria o resultado do enfrentamento daquilo que Paul Rabinow chamade “crise da representação no escrever etnográfico” (1986: 251). Não é apenas o meta discursocientíficoqueéposto sobsuspeita,conseqüênciadoanticientificismo (MarcuseFischer, 1986:VII). Depoisdemencionaremquemuitodaquiloqueacreditam serdesenvolvimentosdaAntropologiaNorteAmericanaestendesetambémparaaAntropologiaBritânica(estavistacomodetentoradeumparadigmamaissólido),osautores reconhecem uma forte influência da moderna Antropologia Francesa. “ Nosso foco na situaçãoamericana, refleteassimumdesenvolvimentohistóricodaantropologiaemtrês tradiçõesnacionais” (:VIII).E acrescentam: “Taistradiçõespermanecemsutilmenteimportantes, porémelasoperamcrescentementemenoscomobarreirasparacomunicação einteração’’.(:VIII). 20. É importante sublinharaquique pelo menosMarcuse Fischer nãodefendem qualquer tipodemonopolizaçãodadisciplinapela“antropologiainterpretativa”,umavezqueela própria alimenta "uma suspeitacontratodosestilostotalizadoresdeconhecimento, incluindo o seu próprio estilo interpretativo” . Daía ênfase posta por esses autores nos “experimentos"enocarátercriticodadisciplina. 21. Tyler conclui sua contribuiçãoaovolume coletivo (Clifford& Marcus, 1986)comaseguinte afirmação: “Chamo etnografía um instrumento reflexivoporquenós nãochegamosaelenemcomoaummapacognitivo,nemcomoaumguiaparaaação,nemmesmo como passatempo. Chegamosaele comooiníciodeumaformadiferentedejornada"(:140).
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ACategoriade(Des)OrdemeaPósModernidadedaAntropologia inerente ao paradigma hermenêutico22. É o próprio autor que passa a ser questionado frente ao saberdonativo. É sua autoridade atéentãoinconteste que é posta em questão e fica sob suspeita23. Elegese com isso umasorte de saber negociado, produto de relações dialógicas24 onde pesquisador e pesquisado articulam ou confrontam seus respectivos horizontes. As interpretaçõesgeradasnesse“ encontroetnográfico” tão bem exemplificadasem Tuhami (Crapanzano, 1980) obedecem à dinâmica daquele queos herme neutas chamam de fusão de horizontes. E o texto que se procura elaborar como resultante final desse confronto (termo quem sabe melhor do que encontro) nãopodeestarmais submetido aum autortodosoberano,únicointérprete de seus dados; mas deve integrar de alguma maneira o saber do ou tro e,se possível, serpolifónico, onde asvozesdosoutrostenhamachance de seremouvidas. Essadefesada polifonia,queevidentementenãoé unânime na comunidade dos “interpretativistas" e talvez exprima suas posturas mais radicais, parece ser, nãoobstante, um dos produtos mais interessantes dessanovaantropologia, sebemque possaresultarem seu desenvolvimento mais perverso.25 Penso que umaAntropologia que pretenda continuarcomo umadisciplina autônoma e solidária (aindaque criticamente) com suas tradições (ou seus paradigmas da ordem), deveria trabalhar teoricamente (sem temer a teoria) tanto quanto na pesquisade campo, com o problemahermenêuticodafusãodehorizontes.Seriaaceitarquetalcomoaslinguagens26,os horizontes não se excluem de um modo absoluto, mas se interseccionam e muitas vezes se fundem. E propiciam, porconseguinte, o exercício plenoda intersubjetividade que não se confunde com subjetividade nos domínios 22. Esse anticientificismose encontra originariamente na crítica da nãoconsideraçãopela ciênciadasprécondiçõesnãocognitivasqueenvolvemtodo conhecimento oque, segundoHubertDreyfus,Heideggerteriasidooprimeiroadenunciar(Dreyfus, 1985:233). 23. UmbomexemplodessequestionamentonosofereceClifford, 1983. 24. "Nodiálogo nosestamosrealmenteinterpretando"(Gadamer, 1984:63).Istoquerdizer queainterpretação não éadicionalaofalar,aodialogar; éintrínsecaaodiálogo. 25. Bakhtin,falandosobreasnovelasdeDostoyevskiou Dickensvalorizaapolifonianelas presente, dizendoqueo novelistaideal éum ventríloquo(cit. in Clifford, 1983:137).Na antropologia um dos “ experimentos” mais interessantes é o de Crapanzando (1985), que mereceu esclarecedor artigoresenhadeMariza Peirano(1986)mostrandotodaa complexidade dapropostadoautoreasdificuldadesemefetiválassemdescaracterizar porcompletoadisciplina. 26. Aidéiade“ heteroglossia” , comoautilizaBakhtinsegundoaqual“ aslinguagensnãose excluem, antes se interseccionam em muitas diferentes maneiras” (cit. in Clifford, 1983:142, nota 2)podeserestendidanãoapenasàs“ culturas"e“ subculturas” como sugere Clifford (: 143) mas igualmente às “ linguagens” (paradigmas) “faladas” nos dominiosdamatrizdisciplinar.
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RobertoCardosodeOliveira privilegiados da investigação etnográfica. Investigação que revitaliza o pesquisadore o pesquisadoenquanto individualidadesexplicitamentereconhecidas,umavez que aprópria biografiadeste últimopode seraautobiografiado primeiro. E ao apreendera vida do outro (indivíduo, gruposou povos), ofaz em termosde historicidade,num tempohistóricodoqualeleprópriopesquisador,nãoseexclui.Aintersubjetividade,aindividualidadeeahistoricidadeparecemcircunscreveranovaantropologia. V Paraconcluir,gostariadevoltaràquestãodaordemedadesordemede suas implicações com a matriz disciplinar da Antropologia. Haveria alguma possibilidade do paradigma hermenêutico compor com os paradigmas da ordem o mesmo campo epistemológico de tensão indicado na matriz disciplinar27, concorrendoassimparaoenriquecimento da antropologia?A“antropologiainterpretativa”podeserefetivamenteconsideradacomoomelhorfrutodo operacionamentodoparadigma hermenêutico? ExisteumaAntropologiaInterpretativa? Vimosque ao menosalgunsantropólogos, comoMarcuse Fischer, admitem a coexistência dessa nova antropologia com as tradicionais, o que noslevaa acreditarqueelesigualmente apostam nessatensão tensãoque pode serestimuladora de novose novosexperimentos. Quanto às questões seguintes, pensoqueoestadodaarteda“antropologiainterpretativa”(ou"crítica”, ou “dialógica”, ou “alegórica”, ou “pósmoderna”, etc.)jáindicaumapluralidade de versões, algumasdelas capazesde atualizarcom melhorêxito as potencialidadesdoparadigmahermenêutico eassimcontribuirparaoenriquecimento da disciplina, aumentando e aprimorando a tensão entre seus paradigmas. Para quem está tentando compreender a Antropologia de um ponto de vista históricoe comoum conjunto se nãoarticulado,aomenosarticulávelde formações discursivas, exemplificadas em suas diferentes “escolas”, não é muitoadequadoassumirposiçõesdecaráterepistemológico.Essasposições tendemmuitasvezesadogmatizaronossoprópriodiscurso.Contudo,diante da ameaçade um desenvolvimentoperversodoparadigmahermenêutico,gerando uma espécie de"interpretativismo”, nãovejocomo nãomeposicionar, sobretudo quando essa nova antropologia pode semear entre nós através 27. Veja nota 5. Especialmente consultar a mesmaconferência (1985b:200201) sobre o estadodetensãodamatrizdisciplinar.
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ACategoriade(Des)OrdemeaPósModernidadedaAntropologia de suas versões mais radicais umatotaldescrençana razão,umarejeição a qualquer teoria (inclusive as mais triviais “de médio alcance”) e a negação de uma experiência secular não apenas da Antropologia mas das Ciências Sociais. Em sua chamada pósmodernidade quenoBrasilnãopoderia ser maisdo queuma forçadeexpressão adisciplina pode estarpassandonos países pósindustriais porumasignificativacrise.Masmesmonessespaíses, para falarmos com Habermas, a modernidade não se esgotou (Habermas, 1983) se entendermosporissoque se não hámaisespaço paraa Razão, em seu sentido metafísico, hápara racionalidadesregionais comoaquetem lugar nointeriordaprópriaAntropologia,comopretendimostrarpeloexameda matriz disciplinar. Entendo, assim, queestamos observando talcomoPaul Ricoeur reconheceu relativamente à Fenomenologia (1969:1015) umaespéciedeenxerto(Iagreffe) hermenêuticona Antropologia. E é nessestermos quedevemosavaliarafecundidade doproblema hermenêutico. E quemsabe aguardaraemergênciade uma“novaordem",comoumaprogressivadomesticaçãodadesordem (inauguradapela introduçãoda intersubjetividade,da individualidade e da historicidade na disciplina,que seriaoresultado previsível do ethos científicoenãonecessariamentecientificista)daAntropologia.Minha posiçãopessoal é adequeoenxertodoproblemahermenêuticonadisciplina veio efetivamente enriquecêla na medida em que,graças ao exercíciocontínuoda suspeita (dateoria, do autor,daexclusividadedoconhecimentocientífico, etc.), introduziu umaperspectivacrítica sistemática sobre as diferentes modalidades de saber. Diria queaconsciênciahermenêuticanela enraizada, tiroulhe o vezo dogmático, tornandoa umadisciplina sensível nãoapenasà relatividadede culturasoutrasque ado pesquisador e sobre asquaistradicionalmente se debruça , mas também às “culturas” interioresà disciplina, isto é, aos seus paradigmas28. Finalmente, tornou aquestãoepistemológica um problemade consideraçãoinevitávelparaqualquerinvestigaçãoetnográficaquesepretendacontemporâneaeconsistentecom a atualidade(modernidadeoupósmodernidade,nãoimporta)daAntropologia.
28. Nunca será demasiadosublinharque adisciplina, contaminadapelaconsciência hermenêutica, ficarásempreemcondiçõesdeseinterditaratodaequalquerbuscadeconciliação entre seus paradigmas(posto queoriginariamenteinconciliáveis),substituindo apelareflexãocritica permanentementevoltadaparaesseestadodetensãomencionadona nota anterior; oque significa eliminara possibilidadede qualquerformadeecletismo.
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