III Simpósio Nacional Discurso, Identidade e Sociedade (III SIDIS) DILEMAS E DESAFIOS NA CONTEMPORANEIDADE
A AUSÊNCIA DE OBRA: UMA LEITURA ATRAVÉS DO CONCEITO DE PENSAMENTO DO FORA EM MICHAEL FOUCAULT Guilherme Augusto Souza Prado 1 Como entrar em um labirinto sem se perder? Quiçá o próprio escopo dessa entrada seja a perdição. No labirinto da literatura se aventuram aqueles que seguem rumo à perdição do eu e, destituídos da insígnia de sujeito, tomam por destino, pelo menos em sua escrita, o dentro sem-fim da literatura, a loucura da ausência de obra.
Para Foucault (2001), ausência de obra define a loucura em sua concretude, no ponto irrevogável em que se repele a produção da razão incompatível com ela. No entanto, define também a literatura, como desmaterialização dos conteúdos das palavras, na medida em que ela subverte os significados cotidianos usuais das palavras, rechaça a representatividade, fazendo que sua designação seja dada por nada mais que ela mesma, palavra. A palavra literária funciona por auto-implicação. Escrever seria atingir o ponto no qual só a linguagem age, a afirmação do neutro que nos fala Blanchot, o ponto em que não se diz mais eu, que é substituído pela impessoalidade do ele. Não que se morra efetivamente ao escrever, mas se padece dos “tormentos eternos do morrer”. Não há como ser eu quando a palavra toma as rédeas da escrita, quando é a mão que escreve e não o eu. Com o esmaecimento da figura do autor, um índice de controle discursivo criado na modernidade para tolher os desdobramentos infinitos que se produziriam entre o escrever e a escrita (PINTO, 2008), se esvai a literatura como expressão do eu, ligado ao sujeito da verdade e à consciência. Pois de fato, “entrar em contato
com o neutro é abrir-se para a experiência com o fora. É deixar-se levar pelo Outro” (LEVY, 2011, p. 45). Tendo isto em vista, consideramos que a condição de existência da palavra literária é a busca daquele que lê e daquele que escreve pela diferença. Pois se escreve para não ser o mesmo, algo que podemos verificar na fala de Virginia Woolf “alguém tem que morrer”. Foucault ressalta o caráter intransitivo da literatura (apesar de considerar seu começo com Cervantes) moderna – de não-representativo. Cervantes fala de um personagem encantado com as histórias de cavalaria, e que mais adiante na 1
Mestrando em Psicologia Clínica e Subjetividade da Universidade Federal Fluminense; graduado em Psicologia pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, UNESP – Assis – SP.
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história, começa a ser reconhecido pelos personagens da primeira parte como um personagem. Pois a escrita está sempre tentando subverter, forçando os limites de suas regularidades, a linguagem literária transgride a literatura a cada fazer. O não-lugar da escrita consiste em nada mais nada menos que a espessura da linha da transgressão. Seu ser está contido aí. Uma verdadeira experiência-limite. Ao se isentar do eu, a experiência da escrita leva a um fora-de-si que se articula com o fora-de-si de concepção psicológica. A subsunção do sujeito é uma abertura ao campo do possível, mais especificamente das possibilidades de ser outro, de ser diferente. Assim, o fora-de-si da escrita enlouquecida subverte a ordem subjetiva levando a escrita à inflexão sob ela mesma, contrapondo uma concepção interiorizada de sujeito, uma concepção ensimesmada por demais ligada a consciência. O fora em Blanchot passa pela noção de imaginário advindo da literatura e conduz ao impessoal, ao neutro ao ele despersonalizado; em seu projeto arqueológico, Foucault diz sobre a fragmentação do sujeito, o desaparecimento do eu do estatuto clássico, onde a existência do sujeito é condicionada ao
pensamento, mas a partir do (res)surgimento do ser da linguagem no bojo da experiência, não seria o “eu penso” que conferiria existência, mas o “falo”, ou melhor ainda, o “fala-se”, o estatuto neutro indefinido que confere atributo ontológico. Na experiência do fora, o escrever não pertence mais a alçada do eu. Ela consiste na emergência na superfície do ser da linguagem que é a pura exterioridade, a literatura apenas pode ser reflexiva sobre ela mesma. Antes da nossa era, a Modernidade, não existia a significação dos signos, pois a linguagem estava sob a soberania da semelhança; Foucault (1999, p. 59) sinaliza uma imensa reorganização da cultura de que a idade clássica foi a primeira etapa, a mais importante talvez, posto ser ela a responsável pela nova disposição na qual estamos ainda presos — posto ser ela que nos separa de uma cultura onde a significação dos signos não existia, por ser absorvida na soberania do Semelhante; mas onde seu ser enigmático, monótono, obstinado, primitivo, cintilava numa dispersão infinita.
Foucault prossegue dizendo que talvez só tenhamos contato com o ser infinito da palavra novamente na literatura. Esta, como se constituiu na modernidade, propiciou o reaparecimento inesperado do ser da linguagem, mesmo que de forma não direta, diagonal e alusiva. Na Era Clássica, toda linguagem tinha valor de discurso, na medida em que ela nada mais fazia que signos, redupliplicava as coisas nomeando-as, subjugandoas sob mais nomes, mais signos secundários – imagem de imagem. A literatura
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reata com o ser integral da linguagem, ela compensa a linguagem representativa e não a confirma. Ela é a forma da devolução da experiência integral da linguagem à língua que cedeu à função representativa, na episteme clássica, e à função significativa, na modernidade; pois desde o século XV a linguagem não enuncia a seu ser de outra maneira que pelas linhas literárias, as quais não podem ser lidas pelo significado, o que se diz e se entende usualmente por ela, nem pelo significante, o que ela diria por baixo de si segundo métodos interpretativos auxiliares provindos da lingüística ou da psicanálise. Não obstante, a literatura moderna se constituiu fora do sistema de significações que se fez com a Episteme Moderna, mas também fora das formas de decifração advinda do sistema binário do séc. XVII, que seja, a lógica da representação, do significante e do significado. E, uma vez que não há mais uma palavra primeira pela qual incorria um esquema de significação infinita no Renascimento – a última vez que se fez ver o ser da linguagem – na Modernidade “a linguagem vai crescer sem começo, sem termo e sem promessa. É o percurso desse espaço vão e fundamental que traça, dia a dia, o texto da literatura” (FOUCAULT, 1999, p. 61). Desta maneira as palavras se desenrolam ao infinito, nisso consiste a ausência de obra, a criação um outro idioma dentro do idioma. A ausência de obra não é o vazio, pois o vazio ainda presume estrutura, ela é a própria condição da obra e sua consumação. Nas palavras de Blanchot (2010, p. 208), “a Obra, absoluto da voz e da escrita, se desfaz, antes mesmo de realizar-se, antes de arruinar, ao realizar-se, a possibilidade da realização”; a literatura é, pois, irrealizável e uma vez que ela não pode ser determinada, que não se restringe a uma sublocação delimitada, ela não pode ser entendida sob a égide da representação ou dos signos. Entretanto, a obra não tende para o nada, seu rumo é a origem, o ponto onde não se começa, mas somente se recomeça. Escrever um livro é ler as linhas invisíveis na profunda superfície da indefinição. A obra, pois, contém e não contém a ausência de obra, contém, na medida em que a mantém longe, mas não contém em termos de englobamento, de estar dentro. A ausência de obra não está, pois contida na obra, mais correto seria dizer, que ela é contida pela obra, esta faz contenção daquela. A ausência de obra consiste naquilo que fala ao pé de ouvido da obra, sendo ela atingida então pela imprecisão, pelo murmúrio, que emergem do silêncio, do silenciamento da linguagem enquanto experiência integral. O advento da filologia no intercurso da modernidade anuncia a fragmentação da linguagem, esta não
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podendo ser tomada integralmente, isola os preceitos do dúbio, do ambíguo, do múltiplo, encarcerada que é, ou que se torna, da noção de unidade. Os mecanismos de controle atingiram seu ápice na modernidade. As mesmas luzes do Iluminismo que iluminam pelo conhecimento causam a cegueira ao múltiplo, às miríades de significados, em prol do paradigma da unidade, do sujeito, na fragmentação das experiências da linguagem e da loucura. E o que outrora era a desrazão, encarada como aventura da razão, vai ser enclausurada no bojo de uma concepção objetivada, passa a ser tida como indesejável, ou mesmo perigosa, e sob esta égide de subversiva, atenta contra a unidade constitutiva do sujeito moderno. A fragmentação das experiências (práticas que abarcam o visto e o dito, as práticas e as teorias sobre algo) da linguagem e da loucura enquanto experiências integrais é parte do projeto da modernidade que dilui o poder soberano pelos ramos capilares das disciplinas. O poder disciplinar, por sua vez, sobre-implica a relação com tudo o que compromete a noção de unidade subjetiva, o ser da linguagem e a experiência trágica da loucura (FOUCAULT, 1972) são calados, postos em suspensão por essa ordem. A experiencia trágica da loucura era a possibilidade de contra-crítica da razão. Não por acaso, é pelos meandros da língua enquanto linguagem e passível da semiologia que se realizam a maior parte dos diagnósticos psicológicos. O louco, na leitura hegeliana (MACHADO, 2000), é aquele no qual a particularidade se coloca acima do geral, e nesta confusão, reside ainda um rastro de razão, sob o qual deve-se concentrar no intuito de retomá-la nele. O louco passa a ser então não aquele no qual não reside a razão e a verdade para ser aquele que não está em contato com a própria verdade, desvinculado de si mesmo, um alienado. A partir do estabelecimento da loucura como doença mental, se perdeu o diálogo, ora balbuciante, ora sem sintaxe fixa, que mediavam as trocas entre a razão e a loucura, calando-a à força. Foucault (2001, p. 141) pondera que “a linguagem da psiquiatria, que é o monólogo da razão sobre a loucura, só pode estabelecer-se sobre um tal silêncio” e prossegue, em seguida, o autor, “não quis fazer a história dessa linguagem; antes, a arqueologia desse silêncio”. O silenciamento imposto à loucura é o silenciamento de uma experiência que encarna o interdito de ação e de linguagem – via gesto e palavra – das sociedades. Com as internações pretendia tirar de circulação uma ampla gama de enunciações que incomodavam nas falas das pessoas, das bruxarias a Sade. A reforma de Pinel é o cale-se da palavra interdita, da linguagem excluída: das palavras sem
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significação, os imbecis; das sacralizadas, os furiosos e violentos; ou das significações interditadas, proibidas, os libertinos ou obstinados. Pois quando a linguagem se livra da representação e do sujeito ela emerge como exteriorização e diferenciação, fazendo aparecer uma linguagem neutra, anônima, a qual, por ser errática, pode sempre questionar o que tenhamos por verdade inconteste. Pensar o impensável, função do pensamento do fora, seria também fazer ver o horizonte do possível que há além do que foi elegido, mais ou menos aleatoriamente, como fator de importância para a constituição do ser na ordem (no discurso e dispositivos) vigente. Neste contexto, a concepção de autoria, que é ligada a um movimento histórico de forte individualização, serve para conferir autoridade a um dado ou ainda como procedimento de controle do discurso – do tipo quem disse o quê. Propiciando assim, que tanto a literatura quanto a loucura se sejam submetidas à decifração e ao esmiuçamento semiológico de significados velados. Ou seja, a noção de autoria, assim como a de sujeito (ligado a uma essência) corroboram para o controle inerente que a sociedade, sob a insígnia de seu discurso e seus dispositivos, exerce sob as possibilidades de transgressão da loucura e da literatura. Acontece que o plural da palavra é sobrepujado pela figura unificadora do sujeito. Foucault (1972) fala que mesmo a psicanálise não está apta a escutar as vozes da desrazão, ela pode até desfazer algumas loucuras, mas não compreende seu trabalho. Mas qual seria este trabalho? Ou o enlouquecimento da linguagem, a própria escrita literária seria então uma outra maneira de enlouquecer? Fomos buscar em Blanchot auxilio não para responder tal questão, não almejaríamos tanto, mas para problematizar junto a um autor que pensou a escrita literária em sua radicalidade. Ele parte da desimportância da biografia daquele que escreve, o qual não fala de seus complexos, de seu ser íntimo, como diz e quer fazer acreditar uma certa psicanálise. O poder da escrita abarca a capacidade de afastar os tormentos mas também de trazê-los nas noites em que se escreve, rodeado pela angústia e pela insónia, ela não é reconcilia ou apazigua o ser. “A arte é, em primeiro lugar, a consciência da infelicidade, não sua compensação” (BLANCHOT, 2011, p. 74). Tampouco a escrita revela uma verdade íntima da interioridade profunda do ser, um desvelamento por revelação como não só alguma psicanálise, mas alguma semiótica pretende. Seu jogo consiste justamente em manter o desconhecido longe da alçada do conhecível e mais ainda da do representável. A escrita passa pela obra
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e a usa para se desvenciliar dela. O inacessível da literatura é o simulacro; sendo que a escrita, em última instância, experiencia a dispersão e vertigem. A própria literatura presume a distância, a distância necessária à criação. A distância do olhar de Orfeu, como diz Blanchot (2011) em O Espaço Literário. A distância entre Orfeu e Eurídice, que sempre se interpõe entre os dois na medida em que haja canto. Para que Orfeu cante, ele carece de tal distância de sua musa, lembremos que quando está com Eurídice em mãos, ainda que não a possa fitar nos olhos, ele tampouco canta. Quando ele não resiste à tentação e olha para traz a fim de ver sua musa, não é tão simples assim; Eurídice a cair pelo precipício é antes de tudo, o que possibilita que Orfeu continue a cantar, a fazer sua obra. Tal obrar é caracterizado por ser impessoal. Aquele que produz a obra é desautorizado a dizer eu e mesmo de todo seu ser, não que se prescinda daquele que escreve como materialmente necessário à obra. Por exemplo, não se pode negar que foi Artaud que escreveu as obras que escreveu mesmo, mas ele não fala por um eu ali, Artaud não fala por Artaud, fala por um outro, uma voz despersonalizada e, a partir da violência plástica e da carne, faz da sua empreitada o combate da materialidade do pensamento contra o cogito do racionalismo, aquele ao qual é imprescindível a representação, a mesma que ele mina com sua escrita. Foucault vai falar que o século XX testemunhou a morte do “grande autor”, enquanto figura que dizia pela própria obra, antes mesmo de ser lida já se encadeava a uma trama de significantes advindos desse nome, da figura disruptiva do sujeito. E a assinatura dos livros, especialmente os de ficção, não é mais que um nome que se faz presente, mas não representa ninguém nem nada e a partir do qual tampouco se pode decifrar algo. A literatura não se faz por essa exploração de significantes segundo a qual quanto mais soubéssemos sobre um autor, sua vida, suas inquietações, seus complexos, mais estaríamos aptos a entender sua obra; quanto mais mergulhássemos na interioridade de seu eu, mais apreenderia da obra em sua profundidade. Foucault vai empreender o desmanche das noções de sujeito e de obra, ligadas que seriam a um esquema sujeito/objeto o qual limita a literatura e a criação em seu cerne, o múltiplo, aquilo que Blanchot chama de reduplicação dos sentidos. No entanto, é justamente pelo movimento contrário que se faz literatura, é o desobramento que constitui o ser e elimina concomitantemente a categoria sujeito. Só se faz obra se desobrando, no sentido de que a obra é o seu próprio canto do cisne, seu esmaecimento e sua efetivação, algo análogo a uma consumação, mas sem a intempérie temporal de se deixar de existir. Pois é como o devir, que não é
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vir a ser, mas vir a vir sendo, se efetiva concomitantemente à sua dissipação, mas o faz incessantemente e nunca se evanesce totalmente enquanto se realiza. Peter Pál Pelbart (1989) assinala que o termo original em francês para desobramento, desoeuvrement , remete a inação, ociosidade, passividade e talvez até algo tedioso. Desobramento seria, assim, a atividade de uma passividade, mas uma passividade que excede o ser, ou que o esgota que leva ao neutro, ao impessoal. A literatura é mesmo transgressão, o valor positivo que afirma o limitado e o ilimitado do ser, o seu porte de finitude, mas também o horizonte do inclassificável, do inesgotável que se lança em sua experiência ao impensável e se realiza em seu inacabamento. Entretanto, se a língua condiciona a vida social como um elemento de partilha – o que quer dizer que ela é maior que a fala de um ou outro em particular abarcando também suas diferenças –, a linguagem da literatura é aberta aos signos, ela não comporta fundamento nem sequer fixação originária. Ou seja, cada palavra diz o que diz porque parte de uma totalidade gramatical, a qual é primeira, fundamental e determinante a ela. Retomando o começo do livro As Palavras e as Coisas , a enciclopédia chinesa da qual escreve Borges e que inspirou Foucault; ela é uma categorização completamente incoerente para nós, nela estão categorias que se dão por lógicas distintas e mesmo contraditórias, ou ainda categorias coincidentes e outras que se sobrepõe, isso sem falar em uma meta-categoria discursiva, a dos animais que estão incluídos naquele mesmo texto. O que Foucault nos mostra aí é a maneira a qual procede nosso pensamento, pois é formalizando pela organização que se dá a estruturação do pensamento moderno (PORTOCARREIRO, 2011), seja na linguagem ou no que designamos pretensamente como real. Prosseguindo na mesma obra, no capítulo seguinte, o autor empreende uma análise do quadro Las Niñas de Diogo Velásquez; tudo é representado em Las Niñas, até aquele que pinta, porque o mundo clássico acreditava piamente no poder do vínculo representação/real – na isonomia entre representação figurativa e a representação verbal. Neste jogo, o espectador é como um observador especular, ele está fora do jogo porque é o espelho da imagem – afirmando a representatividade e sua capacidade de enunciação do real. Contudo, é o olhar do espectador que objetifica o quadro, que o transforma em objeto de representação de uma ausência. Quiçá o quadro expressasse a ele mesmo, não a uma cena, não fosse representado fora dele, nem representasse algo exterior a ele. Mas no classicismo, a representação é o real, ambos se fundem e se confundem.
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Sobre os esquemas de objetificação da linguagem, Foucault assinala ainda em As Palavras e as Coisas (1999, p. 409 e 410): A passagem ontológica que o verbo ser assegurava entre falar e pensar achase rompida; a linguagem, desde logo, adquire um ser próprio. E é esse ser que detém as leis que o regem […] A ordem clássica da linguagem encerrouse agora sobre si mesma. Perdeu sua transparência e sua função principal no domínio do saber. Nos séculos XVII e XVIII, ela era o desenrolar imediato e espontâneo das representações; era nela primeiramente que estas recebiam seus primeiros signos, recortavam e reagrupavam seus traços comuns, instauravam relações de identidade ou de atribuição; a linguagem era um conhecimento, e o conhecimento era, de pleno direito, um discurso.
Conseqüentemente, na Episteme Clássica, a possibilidade de se conhecer passavanecessariamente pela linguagem, Entretanto, a partir do século XIX, a linguagem se dobra sobre si mesma, adquire sua espessura própria, desenvolve uma história, leis e uma objetividade que só a ela pertencem. Tornou-se um objeto do conhecimento entre tantos outros: ao lado dos seres vivos, ao lado das riquezas e do valor, ao lado da história dos acontecimentos e dos homens. Comporta, talvez, conceitos próprios, mas as análises que incidem sobre ela são enraizadas no mesmo nível que todas as que concernem aos conhecimentos empíricos. Aquela relevância que permitia à gramática geral ser ao mesmo tempo Lógica e com ela entrecruzar-se, está, doravante, reduzida. Conhecer a linguagem não é mais aproximar-se o mais perto possível do próprio conhecimento, é tão-somente aplicar os métodos do saber em geral a um domínio singular da objetividade.
O que o autor nos quer dizer aqui é que, partindo da linguagem postulada como espelho do mundo e da ciência considerada a cópia da natureza, o conhecimento clássico é ligado à mecânica e a uma organização do espaçamento das coisas e, de Galileu a Descartes, buscava a origem das coisas se apoiando, sobretudo, na representabilidade das palavras e gerando um quadro de conhecimento espontâneo sobre do mundo. No entanto, entre a ânsia de formalizar a linguagem ou a de interpretar, ou seja, entre remetê-la aos universais do discurso, deixando de lado seu sentido concreto ou então fendê-la para dela retirar sentidos ocultos, cabe à linguagem ao final surgir em si mesma na escrita que designa o próprio ato de escrever. A linguagem se entreabre múltipla no lastro deixado pela reflexão filosóficofilológica de Nietzsche, e precisa então ser dominada em prol da figura unificadora do sujeito. E as tentativas no âmbito do apaziguamento do ser múltiplo da palavra são inúmeras, de uma formalização universal do discurso a uma exegese integral, existem muitos projetos de submissão da linguagem. Posto isto, consideramos que o reaparecimento no século XIX das técnicas de exegese não acontece por acaso, elas reaparecem porque a linguagem recuperou afinal a densidade que continha no Renascimento. Porém, a busca não
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será mais pela palavra primeira, mas sim pela inquietação das palavras que falamos, trata-se de fazer ruído com a parte silenciada de cada discurso ou até mesmo uma promover uma abertura ao som que se faça concomitante ao desdém pela função sintática cotidiana. Na modernidade, “a literatura é a contestação da filologia (de que é, no entanto, a figura gêmea): ela reconduz a linguagem da gramática ao desnudado poder de falar, e lá encontra o ser selvagem e imperioso das palavras” (FOUCAULT, 1999, p. 415). Pois, mesmo com a substituição da gramática geral , preocupada com a representatividade de sua linguagem perante as cosias do mundo, por uma ciência intrincada com os significados, a literatura escapa a objetivações, pois tudo nela conduz em relação ao ser da linguagem e ao simples ato de escrever. Foucault ressalta ainda que se o ser da linguagem foi fragmentado, com Nietzsche e Mallarmé, a linguagem se encontra arrastada de volta a seu ser. E que ao matar o homem e Deus simultaneamente, Nietzsche devolve a vida aos deuses adormecidos, os quais foram a muito silenciados. Assim também a linguagem, livre do homem e de Deus, despojado das categorias de autor e de obra e longe da significação e da representação, se manifestaria em seu ser indomado e múltiplo. Retomando, a literatura não seria o produto de uma ordem da interioridade, mas, antes, a subversão dessa mesma ordem ao mesmo tempo em que é a contestação do pensamento representativo; e, ademais o fracionamento da linguagem, quando esta é reduzida à objetividade da filologia, marca a passagem da episteme clássica para modernidade, muito embora a linguagem tomada em sua integralidade, sem a fragmentação imposta pela modernidade, desliza entre os signos e os sentidos, se abrindo ao impensado que nos circunda e que, não deixa de nos formar. Pois o que fala na palavra é a própria palavra, em seu enigma e em sua precariedade, sua indeterminação não-classificatória e seu inacabamento. Desta maneira, aquele que escreve presencia seu desvanecimento perante o ato de escrever, pela sua própria escrita, a qual não pertence a ele e do qual não passa de mero executor. A literatura consiste no afastamento da linguagem dela mesma, distanciando-se dos signos e dos significados. Ela parte da morte do autor e da subseqüente subvenção da narrativa lógica para se fazer no murmúrio sob o qual a linguagem se liberta. Foucault em História da Loucura nos fala que a loucura também rompe o silêncio por aí, a obra de Goya e de Nietzsche, por exemplo, materializam o grito que rompe o silenciamento. Um outro nível de expressividade.
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O fundamento da literatura é a relação com o ser puro da linguagem, na qual ela desvela um sujeito fragmentado, verborrágico e que ao invés de esgotar a linguagem, a lança ao infinito. Ao escrever, lança-se mão de fenômenos de autorepresentação da linguagem que parecem ser da ordem do artifício, mas que se desdobram em um empreendimento que não se sabe onde vai chegar e acaba por arrancar o sujeito de si mesmo. A literatura é excessiva, ela vai para o inabitual, almeja às experiênciaslimites que se põem em relação com o fora. Porém, há que se atentar para não tornar o fora um fora imaginado, voltando, a um só golpe, à representação e à interioridade. Pois a linguagem reflexiva não remete ao dentro da interioridade, ela leva à extremidade, ao limite, ao silêncio da pura exterioridade onde as palavras se desdobram ao infinito. Há que destituir o discurso não só daquilo que ele enuncia, mas da própria possibilidade de enunciar, relegá-lo à origem que, mais que começo, é recomeço incessante. A linguagem dizendo a si própria rompe com o cogito, pois enquanto o “eu penso” cartesiano afirmava a existência de um sujeito (do sujeito tal qual concebido pela episteme moderna), o “eu falo” remete à dissolução de qualquer de qualquer forma de assujeitamento e sujeição. Se por um lado o pensamento do pensamento leva a uma profunda interioridade, por outro, a fala da fala leva à literatura, este fora (absoluto?) onde, pelo aparecimento do ser da linguagem, desaparece o sujeito da concepção nuclear interiorizada. Assim, se a literatura é uma possibilidade de transgressão, ela é, conseqüentemente, possibilidade de criação de uma vida diferente. É próprio da arte ser comprometida com a renovação do campo perceptivo, e se só podemos ver, falar, sentir o que nos é permitido, a arte, em seu cerne contestador, possa nos abrir outras veredas como estratégia micropolítica de combate a dominação, a exploração e a sujeição. Desta maneira, “a literatura anuncia-se como poder que emancipa, a força que afasta a opressão do mundo, esse mundo ‘onde todas as coisas sentem a garganta apertada’, é a passagem libertadora do ‘Eu’ ao ‘Ele’”, donde aquele que escreve implode a unidade subjetiva, “elevando-se acima de uma realidade mortal, na direção do outro mundo, o da liberdade” como diz Blanchot (2011, p. 72). Finalizando, não há o que decifrar sob a linguagem e sob a loucura, não há conteúdos a se desvelar. Trata-se apenas do fluir interminável das palavras, donde elas alcançam e se realizam como experiência do fora. Mario Pedrosa dizia que a mesma mão que levava os loucos em seu caminho de loucura os trazia de volta.
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Que a procedência da diferença guie nossas intervenções e nossas leituras, e que possamos ser outros perante qualquer entidade-idem que possa vir a nos subjugar. Referências Bibliográficas: BLANCHOT, M. A Conversa Infinita Volume 3: A Ausência de Livro. São Paulo: Escuta, 2010 ______________ O Espaço Literário. Rio de Janeiro: Editora Rocco, 2011 FOUCAULT, M. As Palavras e as Coisas: Uma Arqueologia das Ciências Humanas. São Paulo: Martins Fontes, 1999. ___________ Prefácio (Folie et déraison) in In: ______. Ditos & Escritos 1: Problematização do Sujeito: Psicologia, Psiquiatria e Psicanálise. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2001. ___________ História da Loucura. São Paulo: Editora Perspectiva, 1972. MACHADO, R. Foucault, a Filosofia e a Literatura. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005. PÉLBART, P. P. Da Clausura do Fora ao Fora da Clausura. São Paulo: Brasiliense, 1989. PINTO, L. A. Subjetividade e o Escrever, um ensaio sobre a experiência literária. Revista Brasileira de Literatura Comparada, n. 12, 2008 PORTOCARREIRO, V. As Ciências da Vida: Foucault e Canguilhem. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2011.