A ABORDAGEM “CONSTRUTIVISTA” NA EDUCAÇÃO FÍSICA: O INTERACIONISMO CONSTRUTIVISTA COMO PRESSUPOSTO PARA APRENDIZAGEM DA MOTRICIDADE
Ao compreendermos que as propostas metodológicas (que denominamos aqui de abordagens) de ensino de educação física correspondem à complexas elaborações teóricas – que vão desde análises sobre o papel dessa área de conhecimento na educação escolar até o seu objeto de conhecimento, dos princípios curriculares e avaliativos até as estratégias de ensino e de reflexões sobre implicações sociais no seu ensino até as teorias da aprendizagem e de desenvolvimento que explicam como os sujeitos escolares internalizam saberes, práticas, valores e hábitos e como esta incorporação empreende um processo de formação humana – podemos identificar que aquelas possuem fundamentos teóricos distintos e também projeções práticas que não coincidem. Quando da análise da Abordagem pedagógica conhecida em nossa área como Desenvolvimentista, procuramos identificar seus elementos teóricos fundamentais para compreender suas implicações práticas na relação de ensino-aprendizagem orientada por aquela proposta. Verificamos naquela proposta que: o objeto de conhecimento da área, denominado de movimento humano, é compreendido como comportamento motor que externaliza disposições biológicas a partir de estímulos exteriores (instrução); o desenvolvimento e aprendizagem são compreendidos por meio da interpretação comportamentalista da psicologia, cujos conceitos centrais são orientados pela associação entre estímulo exterior e organismo respondente (relação estímulo-resposta) e pelos condicionamentos exteriores que buscam reforçar comportamentos (reforços positivos e negativos); e que o sujeito é “assujeitado”, pois compreendido como objeto da intervenção científica a ser adaptado em determinado meio. Neste tópico estamos estudando uma concepção que também se fundamenta em teorias psicológicas para construir uma proposta pedagógica, ou seja, uma pedagogia psicológica (MIRANDA, 2005). Porém, esta proposta que é objeto desse tópico possui diferentes formas de compreender o objeto de conhecimento da educação física, o desenvolvimento e a aprendizagem bem como a formação do indivíduo. Trata-se da abordagem conhecida em nossa área como “construtivista”. Neste texto procuramos fazer uma síntese que sumarie a discussão desta abordagem, baseando-nos fundamentalmente numa leitura da produção teórica do professor João Batista Freire, reconhecida em nossa área como precursora precursora da inserção de uma proposta pedagógica com base nos fundamentos teóricos da teoria interacionista-construtivista interacionista-construtivista de Jean Piaget (CASTELLANI (CASTELLANI FILHO, 1998; DARIDO, 2003).
Antes, porém, é importante esclarecer três importantes aspectos, para se compreender a breve exposição que se segue: 1) o professor João Batista Freire não reconhece a identidade de construtivista, pois entende que o termo pode conter confusões teóricas uma vez que o construtivismo não é uma teoria pedagógica, mas sim uma teoria do conhecimento. O autor preconiza ainda que seu trabalho é uma síntese de diferentes contribuições teóricas. Porém, sua obra é aquela que melhor sintetiza a apropriação que a educação física faz das teorias psicológicas e pedagógicas construtivistas; 2) em razão disto, sempre quando me referir às elaborações deste autor usarei aspas no termo “construtivista”, mas quando me referir aos pressupostos desta teoria o termo se apresentará sem o uso das aspas; 3) os aspectos centrais que deverão ser expostos estão localizados na compreensão de aprendizagem e desenvolvimento presentes nesta teoria e no modo como é possível fundamentar uma metodologia de ensino com base nestas interpretações. A abordagem “construtivista” na educação física é resultante do movimento de incorporação do ideário pedagógico interacionista-construtivista no cenário educacional brasileiro no início dos anos 1980. Tal ideário apresentou-se como crítica e tentativa de superação das pedagogias tradicionais e tecnicistas predominantes nas políticas curriculares e nas práticas educacionais no cotidiano escolar, tornando-se mesmo um modismo entre os educadores (ROSSLER, 2005). Ainda hoje professores e projetos-político-pedagógicos de diversas unidades escolares reivindicam o construtivismo como forma de modernização pedagógica e avanço educacional. Durante a década de 1980 várias iniciativas de reformulação de propostas de ensino nas redes públicas de ensino foram influenciadas pelas elaborações teóricas de matriz construtivista. É, sobretudo, com a divulgação da obra da psicolinguista argentina Emília Ferreiro sobre a compreensão da aquisição da linguagem escrita que o pensamento construtivista se tornou uma referência importante na educação brasileira. E, durante esse período, essas ideias forneceram os pressupostos metodológicos e teóricos para reformas curriculares, formação de professores, pesquisa educacional e práticas educacionais. A educação física, que então passava por um processo de renovação no seu pensamento pedagógico, incorporou o ideário construtivista no sentido de resignificar o seu papel no âmbito escolar. É principalmente nas primeiras fases do ensino fundamental que essa teoria vai possuir algum influxo sobre a prática pedagógica de professores (sejam formados em educação física ou não). À crítica em relação à esportivização do ensino da educação física e à instrumentalização do movimento como suporte da formação para o esporte (tese central da abordagem desenvolvimentista) sucedeu-se a proposta de uma educação de corpo inteiro. O livro que representou a incorporação das ideias construtivista na educação física se tornou uma das mais conhecidas obras do chamado pensamento renovador
da área e foi publicado em 1989 sob o título “Educação de corpo inteiro: teoria e prática da educação física ” de João Batista Freire. É deste livro que passo a fazer a maior parte das considerações nesse texto. Nesta obra são significativas as influências da psicologia educacional, principalmente as teorias do desenvolvimento de Piaget.
... o fundamental é considerar como ponto de partida o “eu”, “sujeito” ou “consciência” e, não, “o mundo em torno” ou as chamadas “coisas exteriores, o “mundo exterior”... Neste sentido, a relação entre o sujeito e objeto por João Batista fundamentada essencialmente no “eu” para com o “objeto”, partindo da exploração cognitiva que poderá real izar-se, faz com
que consideremos as idéias propostas no âmbito filosófico, idealista; no campo pedagógico, escolanovista. Na Educação Física, propriamente, mencionamos... Educação de Corpo Inteiro (Freire, 1989) como reflexo das influências da Psicologia Humanista e da Pedagogia da Existência , configurando uma tendência denominada por CASTELLANI (1988:218) de psico-pedagogização. (Figuereido,1997, p. 583, grifo nosso)
João Batista Freire trabalha com uma estrutura organizacional que compreende a Pedagogia do Movimento na Primeira Infância e Pedagogia do Movimento na Segunda Infância. Na Pedagogia do Movimento na Primeira Infância o autor discute as características do desenvolvimento infantil a luz da teoria do desenvolvimento de Piaget, caracterizando-a pela teoria dos estágios do processo de construção do pensamento presentes na teoria piagetiana. A primeira infância seria então caracterizada pelos estágios sensório-motor e pré-operatório, destacando as seguintes características: o egocentrismo na personalidade da criança; a construção do real como uma interação entre sujeito e objeto; a construção do símbolo e o papel dos jogos simbólicos e jogos de construção como estratégia neste processo. A Pedagogia do Movimento na Segunda Infância é caracterizada por Freire por uma série de reflexões sobre a Educação Física na primeira fase do Ensino Fundamental, cujos traços mais significativos são: a discussão sobre a quem cabe o papel de professor de educação física neste período escolar; o desenvolvimento das crianças a partir dos estágios avançados da teoria de Piaget, quando então têm condições de subjetivar o mundo concreto (estágios operatório-concreto e operatórioformal); a discussão da importância do aprendizado a partir da vivência do aluno, cujos significados são extraídos do que o autor denomina de cultura infantil (mundo do
brinquedo e do jogo); o ressaltar do problema do papel da Educação Física na escola, explicitando a polêmica sobre a educação do ou pelo movimento, e propondo a Educação de Corpo Inteiro. As ideias acima expostas expressam elementos da proposta pedagógica “construtivista” na educação física. Estes elementos se caracterizam, sobretudo, pelo
pressuposto da interação entre sujeito e objeto (daí o termo interacionista), criançaobjeto-meio, como forma necessária da construção do conhecimento. É por isto que, para Freire, uma vez que o significado das coisas na primeira fase da vida da criança depende, acima de tudo, da ação corporal, o jogo e a atividade lúdica tornam-se um importante recurso pedagógico. A partir dessas noções o autor elege a Educação Física como a disciplina do currículo escolar que tem a responsabilidade de trabalhar com a “cultura infantil”
aproximando a realidade da escola com a realidade do aluno. Para o autor, o fazer pedagógico que leva em consideração o conhecimento que a criança já possui, garante o interesse e a motivação para aprender. De acordo com essa ideia, o adulto deve permitir à criança a descoberta de sua própria forma de se movimentar e de estar no mundo, sem interferir muito neste processo. Em sua proposta, Freire deixa explícito que discorda da existência de padrões de movimento, pois esta concepção trabalha com a ideia isolada do ato motor e enfatiza o desenvolvimento de habilidades motoras a partir daquilo que se supõe existir internamente em cada indivíduo. Para apoiar sua crítica aos pressupostos desenvolvimentistas, o autor adota de Piaget a categoria de esquema motor, que entende que o sujeito constrói movimentos em cada situação específica a ser experimentada, mediado pela relação entre processos de assimilação e adaptação. O autor procura superar a ideia de padrões de movimento, optando pela concepção de esquemas motores. Algumas decorrências pedagógicas desta compreensão são caracterizadas pelo espontaneísmo da criança na produção do seu saber e de suas relações. Estes e outros traços da abordagem “construtivista” na educação física só podem se tornarem compreensíveis ao serem relacionados aos princípios da
Epistemologia Genética de Piaget, baseando-se nas classificações por estágios e nas categorias de seriação, classificação e conservação próprios da proposta do biólogo suiço. É importante esclarecer que Piaget não foi um educador e escreveu em poucas oportunidades sobre o assunto 1. Com uma ampla formação no campo da biologia e da lógica, o pensador suíço dedicou sua obra à compreensão sobre como o pensamento complexo (que para ele coincide com a lógica formal, isto é, o pensamento matemático) é construído no homem, sobre a gênese e desenvolvimento das estruturas cognitivas no ser humano. E ao buscar a gênese do pensamento humano, procurou descobrir esses processos estudando empiricamente o modo como a criança produz conceitos, valores morais e noções lógicas. Por isto, a sua teoria é compreendida como Epistemologia Genética. Os pressupostos teóricos e os resultados de suas investigações identificaram a inteligência humana como uma forma particular de adaptação de um organismo ao seu meio ambiente, cujos mecanismos devem ser compreendidos pelos conceitos de interação e construção. É das consequências de sua teoria do conhecimento que se elabora uma interpretação particular da aprendizagem e desenvolvimento humanos que vão dar suporte a ideias e práticas pedagógicas denominadas interacionistaconstrutivistas. A concepção interacionista de desenvolvimento de Piaget é marcada por uma leitura biológica do processo de construção do conhecimento, ou seja, o pensador suíço preconizou uma teoria biológica do conhecimento ao entender que “a ideia de que a inteligência constitui uma forma especial de adaptação biológica se efetiva graça a um mecanismo de auto-regulação. ” (KLEIN, 2005, p. 66). Nesse sentido, considera-se o sujeito-objeto do conhecimento como uma interação entre organismo e meio. O conhecimento é construído a partir das experiências anteriores que servem de base para outras construções por meio da assimilação e acomodação que são as categorias utilizadas por Piaget para conceituar e estruturar o processo de construção do real. Segundo Piaget, “...assimilação é o 1
- Para saber mais de Jean Piaget veja os links de leituras complementares no ambiente pedagógico virtual.
processo cognitivo pelo qual uma pessoa integra um novo perceptual, motor ou conceitual nos esquemas ou padrões de comportamento já existentes” ( Piaget, 1993,
p. 20) Quando confrontada com uma situação nova, que provoca desequilíbrio, a criança procura assimilá-la a esquemas já existentes. A partir dessa nova assimilação ocorre o que Piaget chama de acomodação que consiste em criação de novos esquemas ou a modificação de velhos esquemas.
O organismo vivo admite um comportamento que consiste nas formas de troca entre organismo e meio. O conteúdo da estrutura interna de organização biológica se define em termos de adaptação e, na sua forma ativa, comporta dois processos distintos mas inseparáveis: a assimilação, que se verifica quando o organismo passa a incorporar na sua própria organização elementos que lhe são externos; e a acomodação, que é o processo pelo qual o organismo adapta sua organização interna às demandas do meio. (KLEIN, 2005, p. 67)
De fato a teoria de Piaget assume uma concepção naturalizante de homem (indivíduo) e sociedade, ao postular que as formas de constituição do humano (inteligência, hábitos, valores e mesmo a sociabilidade) são formas específicas de adaptação do organismo humano ao seu meio. Destes princípios, desenrola-se a consideração de que o desenvolvimento humano obedece a leis universais de caráter evolucionista, considerando que este desenvolvimento ocorre por estágios e períodos determinados. Piaget (1993) definiu o desenvolvimento como sendo um processo de equilibrações sucessivas e, segundo este, o desenvolvimento passa por quatro etapas distintas a sensório motora (0-2 anos), a pré-operatória (2-7 anos), a operatório concreta (7-12 anos) e a operatório formal (12 anos acima). Na obra de Freire, evidencia-se nas atividades propostas os processos de assimilação, acomodação e desequilíbrio
e também a teoria etapista do
desenvolvimento quando o autor divide sua obra em dois momentos distintos: Pedagogia do Movimento de Primeira e Segunda Infância. Em texto mais recente o
autor2 retoma a teoria das etapas de desenvolvimento para descrever o que se pode ensinar em cada momento (ou estágio de desenvolvimento). Essa divisão traz em seu bojo considerações acerca de que os estágios de desenvolvimento da criança estão atrelados a leis universais. As consequências disto é a naturalização do indivíduo humano e do próprio objeto de conhecimento da educação física. É importante destacar ainda que a abordagem “construtivista” da educação física, por incorporar as teses de construção do pensamento de Jean Piaget, acaba assumindo um caráter instrumental para o fazer pedagógico da área na escola. A educação física, nesta perspectiva, não se orientaria pela aprendizagem de um saber específico que a justifique na escola, mas pela contribuição que ela pode dar ao desenvolvimento cognitivo e, também, afetivo e social. A busca da superação da cisão entre corpo e mente nessa abordagem acaba sendo compreendida como a soma das características de seres humanos divididos pela fórmula bio-psico-social, cujo vértice é determinado pelo aspecto biológico. Portanto, ao fazer o exercício de síntese dessa proposta procurando entender o modo como ela entende o objeto de conhecimento da educação física, a aprendizagem e o desenvolvimento e a formação do indivíduo humano podemos identificar estas questões do seguinte modo: 1) o objeto de conhecimento da educação física, embora indefinido, pode ser identificado ora como cultura infantil, ora como o conjunto de conhecimentos sobre o corpo próprio, o meio ambiente e a cultura da área. Mas, de fato, o que se pretende nesta abordagem é que a criança construa sua aprendizagem, isto é, aprenda a aprender. Isto significa que o objeto do aprender é o próprio processo de aprender; 2) a aprendizagem e o desenvolvimento são compreendidos como processos de adaptação biológica do organismo ao meio, cujo mecanismo é explicado pela regulação entre assimilação, acomodação e equilibração. Nesse sentido, o desenvolvimento pode ser previsto em etapas necessárias a todos os indivíduos e aquelas se convertem em pressuposto da aprendizagem, ou seja, só se pode aprender aquilo que um determinado estágio de desenvolvimento permite. Outro fator importante sobre a aprendizagem nessa perspectiva é o papel secundário do professor ou do Outro (adulto ou criança) na 2
- FREIRE, J.B. Esboço para organização de um currículo em uma escola. (digitado)
construção do conhecimento. Para essa teoria, o conhecimento é uma construção individual, específica da relação entre o sujeito que conhece e o objeto a ser conhecido, cujo movimento parte de mecanismos endógenos (necessidades internas) para a relação exterior. Por isso, Piaget supõe que a criança se caracteriza por uma ação egocêntrica e só em etapas posteriores do desenvolvimento a socialidade tornase parte do seu ser; 3) embora faça a crítica às concepções tradicionais e tecnológicas de educação, uma abordagem construtivista de ensino de educação física também entende que a formação do indivíduo é a sua adaptação do ao meio. Pode-se afirmar que a diferença substancial desta teoria em relação às demais seja a de que tal adaptação é ativa, expressa pelas interações entre sujeito e objeto, sujeito e mundo, sujeito e demais sujeitos.
Prof. Ms. Hugo Leonardo Fonseca da Silva
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