TEORIA SOCIAL E ANÁLISE DE POLÍTICAS PÚBLICAS1
Mesmo contrariando bem estabelecido e elementar princípio de didática, devo iniciar transmitindo ao leitor meu radical pessimismo quanto à possibilidade de completa avaliação da política social do governo. Em realidade, desconfio seriamente de que uma completa avaliação de qualquer política de qualquer governo venha, algum dia, a obter êxito, A razão principal para tal suspeita não consiste, entretanto, no costumeiro lamento sobre a ausência de informações precisas e confiáveis, tampouco na igualmente repetida controvérsia sobre a maior ou menor propriedade deste ou daquele sistema conceitual para bem ajuizar o exercício da política. Por certo que as duas ordens de problemas - o da produção dos dados pertinentes e o da adequação conceitual - são reais e importantes. Mas estes são problemas que aparecem em toda investigação sistemática sobre questões relevantes e ainda mal compreendidas, embora se deva concordar que a magnitude das dificuldades varie, consideravelmente, de escala quando se muda de um conjunto de questões para outro, dentro de uma mesma disciplina científica, ou de uma disciplina para outra. A suspeição levantada, porém, referese à validade do suposto otimista implícito na discussão corrente destas mesmas dificuldades; a saber, o suposto de que, superadas as deficiências de informação e ajustados os conceitos de análise, estaria desembaraçado o caminho para completa e objetiva avaliação política. Em oposição a este otimismo epistemológico, que não é senão uma faceta de arraigada tradição que sustenta a crença em um naturalismo científico , prefiro optar por moderado ceticismo e admitir claramente que, em princípio , é impossível produzir completa e objetiva avaliação política. Como introdução a um exercício de diagnóstico e avaliação de uma política específica, a política social do governo, cabe explicitar, sem exaustivas justificativas o contexto de moderado ceticismo que orienta o presente estudo. 1
SANTOS, Wanderley Guilherme dos – Cidadania e Justiça . 2. ed.- Rio de Janeiro: Campus, 1987.
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Traduzido em termos simples, como, em verdade, pode ser traduzida a maior parte das indagações fundamentais, o suposto do naturalismo científico indica o compromisso com duas hipóteses centrais: a hipótese de que a ordem social é objetiva no sentido de ser regulada por um sistema fechado e relativamente estável de causalidades e a segunda hipótese de que é possível apreender e representar, sob a forma de proposições logicamente conectadas, isto é, despojadas de mediações subjetivas, a ordem presumida pela primeira hipótese. A expressão “relativamente estável” da primeira hipótese significa a admissão de que o sistema objetivo de causalidades varia ao longo da história e, ao mesmo tempo, de qual tal variação é, ela própria, causalmente produzida, quer dizer, dadas as mesmas condições históricas, as mesmas variações no sistema de causalidades se produzirão por sistema fechado entende-se a recusa em aceitar a existência de fontes de variações causais autônomas, isto é, não redutíveis a explicação sistemática , premissa que garante a aceitação de mudanças no sistema de causalidades sem descartar a possibilidade de explicar, causal e sistematicamente, essas mesmas mudanças. Usando uma linguagem arcaica, porém precisa, o naturalismo científico sustenta que aquilo é, é e pode ser conhecido. A retórica probabilística da moderna ciência social não a torna menos comprometida com o naturalismo, na medida em que só são reconhecidas, como proposições científicas, aquelas que enunciam associações empíricas cuja magnitude de variança não explicada seja suficientemente pequena para transformá-la em aleatoriedade factual teoricamente irrelevante. Com igual simplicidade é possível definir o ceticismo moderado pelo compromisso com a hipótese de que a ordem social é regulada por um sistema relativamente estável de causalidades, aberto, entretanto, a variações produzidas por fontes autônomas e pelo compromisso com a hipótese de que a lógica de apreensão desse sistema está, necessariamente, contaminada pelo arbítrio da subjetividade contida na definição dos conceitos básicos que organizam a representação do mundo. A suposição de que a ordem social é um sistema aberto assenta-se em duas considerações centrais. Como se sabe, toda proposição
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explicativa do mundo recorta-o analiticamente, simplifica-o pelo isolamento de processos que, em sua existência empírica, desenrolam-se simultânea e implicadamente num número finito, embora extraordinariamente grande, de outros processos. Esta operação é resumida na cláusula coeteris paribus que, no presente contexto, significa a não variação das relações que o processo sendo explicado mantém com os demais processos. Alteradas essas relações, é possível, e freqüentemente ocorre, que o processo em estudo também se altere: Considerar a ordem social como um sistema aberto obriga ao reconhecimento ; de que nem todos os processos capazes de produzir variações em dado sistema de causalidades sejam, eles próprios, suscetíveis de explicações, ou reduções causais, sistemáticas. Por exemplo, uma das variáveis condicionantes de qualquer sistema de estratificação social é o processo de divisão social do trabalho; e o processo de divisão social do trabalho é irredutível a explicações causais sistemáticas ex ante, isto é, antes que se produza. Nesse sentido, o processo de divisão social do trabalho constitui uma fonte autônoma de variações no sistema de causalidades sociais capaz de subverter, ou ajudar a subverter, a relativa estabilidade deste. Posteriormente, outros processos não controláveis sistematicamente serão introduzidos e comentados. Supondo-se, agora, que todo o sistema de associações empíricas permaneça invariante ou estável durante largo período de tempo - cláusula coeteris paribus correspondendo aproximadamente ao existente -, ainda assim a ordem social permaneceria e permanece um sistema aberto pela simples razão de que, sendo constituída por repetidas interações sociais onde o comportamento de um agente é mediatizado pela subjetividade do outro, nada impede que a um mesmo estimulo (o comportamento de dado agente social) corresponda, entretanto, em certo momento, uma resposta (o comportamento do outro) diversa da rotineira. Os agentes sociais - indivíduos, grupos, organizações - absorvem e processam experiências e, freqüentemente, surpreendem os demais agentes com respostas novas perante situações relativamente idênticas a situações anteriores. A resposta da força de trabalho industrial a conjunturas de crise ou de exploração
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intensa foi, durante algum tempo, a tentativa de destruição física dos equipamentos das fábricas, reação que foi substituída pela confrontação direta e pretendidamente definitiva com o aparelho estatal, fiador da integridade das instalações industriais, para, finalmente, (até quando?) organizar-se em partidos políticos. Os exemplos poderiam ser multiplicados com facilidade, pois os comportamentos sociais não brotam como cogumelos, por natureza, nem são condicionáveis indefinidamente. Antes, aquilo que aparece rotinizado, institucionalizado, como algo natural , tem sempre em sua origem um gesto de rebeldia contra os padrões naturais de comportamento, um ato inovador, uma invenção social, enfim. Quase que por definição, as invenções, e particularmente as invenções sociais, são imprevisíveis, não se deixam capturar por nenhum sistema apriorístico de causalidade. Também por isso, a ordem social deve ser entendida como um sistema aberto de relações causais relativamente estáveis. Na origem da mudança de comportamentos encontra-se, embora não exclusivamente, uma alteração no modo de refletir o complexo das relações sociais, seus determinantes e significados. As relações "objetivas" do mundo aparecem sob nova luz, induzindo modificações na forma pela qual os agentes se inserem na ordem social e por aí modificando "objetivamente" aquelas relações. O desempenho dos atores sociais se orienta pelo que consideram deva ser a estrutura da objetividade do mundo e pelo que deve ser feito para que tal objetividade se constitua. Sabendo-se que nem todos os agentes sociais "vivem" da mesma maneira a "objetividade", a estrutura relativamente estável de relações resultará, portanto, do conflito social pela implantação de ordens "objetivas" distintas. É no desenrolar desse incessante conflito, de intensidade todavia variável, que surgirão as invenções, as inovações sociais, desestabilizadoras do sistema "objetivo" de causalidades. Usando, outra vez, uma linguagem antiga, para um cético moderado a ordem social não é, produz-se, e produz-se como resultado permanentemente em suspenso do conflito sobre aquilo que os diversos atores sociais supõem que ela deva ser.
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Sendo o analista político também um agente social, decorre, imediatamente, a percepção de que o ceticismo moderado que adoto não se contrapõe apenas, como foi sugerido inicialmente, à posição corrente entre os analistas de políticas públicas, mas a todo sistema fechado de crenças que ofereça, em nome da "objetividade", uma explicação "científica" da ordem social ou, alternativamente, que proponha com garantias “científicas" uma explicação dos determinantes "objetivos" dessa ordem. Em realidade, a análise de políticas publicas não consiste em nada mais do que num rótulo novo para o vetusto exercício de investigação e formulação de teorias sociais. Melhor dizendo, a análise contemporânea de políticas públicas trata, precisamente, da temática clássica das teorias sociais – a distribuição e redistribuição do poder, o papel do conflito, os processos de decisão, a repartição de custos e benefícios sociais, por exemplo, somente com a diferença de atentar, com maior cuidado para a necessidade de demonstrar, ao contrário de apenas presumir ou imputar, a plausibilidade de suas hipóteses. As relações de poder e conflito, os ganhos e perdas sociais, a estabilidade ou instabilidade da ordem social não se dão apenas, nem se resolvem nunca, no círculo rarefeito dos elegantes sistemas conceituais, mas na efetiva disputa em torno de políticas específicas. Do mesmo modo, um moderado entendimento de como se constitui a “objetividade" de uma política requer a captação dos processos, rotineiros alguns, inovadores outros, que a produzem e garantem temporariamente. A análise a que se procederá a seguir busca, em conseqüência, representar o impacto diferencial do exercício do poder e da expressão do conflito na distribuição de custos e benefícios sociais no contexto de uma ordem política autoritária e, recentemente, em transição democrática.
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