JORGE TRINDADE
ManuaI de de Psicologia Jurídica Jurídi ca PARA OPERADORES DO DIREITO TERCEIRA EDIÇÃO Revista e Ampliada
Livraria do advogado / editora Porto Alegre, 2009
Manual de Psicologia Jurídica PARA OPERADORES DO DIREITO
JORGE TRINDADE
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T833m Trindade, Jorge Manual de Psicologia Jurídica para operadores do Direito / Jorge Trindade. 3. ed. rev. e ampl. - Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2009. 480 p., 23 cm. ISBN 978-85-7348-585-1 1. Psicologia criminal. 2. Psicologia forense. r. Título. CDU – 343.95
Índices para o catálogo sistemático: Psicologia criminal Psicologia forense (Bibliotecária responsável: Marto Roberto. CRB-10/652)
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Parte I ASPECTOS EPISTEMOLÓGICOS "The eye sees only that which the mind is prepared to comprehend." Henri Bergson
1. Psicologia e Psicologia Jurídica Em primeiro lugar, é importante delinear o que é Psicologia, seus objetivos e principais especialidades. Sendo, Psico = mente e lagos = estudo, trabalho, sentido, palavra, a Psicologia moderna pode ser definida como o estudo científico do comportamento e dos processos mentais. Comportamento é aquilo que caracteriza ações do ser humano, como falar, caminhar, ler, escrever, nadar, etc. Processos mentais são experiências internas, como sentimentos, lembranças, afetos, desejos e sonhos. A psicologia, nos dias atuais, tem se preocupado bastante em manter seu estatuto de cientificidade, dando grande importância para as evidências empíricas, devendo-se considerar que o pensamento crítico e inovador constitui etapa obrigatória dessa compreensão. É comum referir diversas áreas na psicologia, mas a ciência psicológica é uma só, possuindo várias faces e se expressando através de diferentes linguagens. Ela não chega a constituir uma Torre de Babel, mas, não raro, existem dificuldades de entendimento dentro de seu próprio campo interno. Demonstrando a riqueza dos campos na Psicologia, especificamente nas áreas prática e de pesquisa, a American Psychological Association - APA - (2001) ofereceu como referência uma lista de 53 divisões dentre as quais selecionamos as mais conhecidas: Psicologia Clínica; Psicologia Educacional; Psicologia da Saúde; Psicologia Econômica; Psicologia do Consumidor; Psicologia Organizacional/Industrial; Psicologia Social; Psicologia Hospitalar Psicologia Comunitária; Psicologia Ambiental;
Psicologia Esportiva; • Psicologia Jurídica. Além disso, a psicologia possui diferentes linhas teóricas, escolas ou sistemas de base, como por exemplo: Psicologia Psicanalítica: classicamente associada a Sigmund Freud, o pai da psicanálise. Enfatiza o papel do inconsciente e as experiências infantis. Desse movimento também participaram Melanie Klein e Wilfred Bion, dentre outros. Psicologia Experimental: vinculada a Wilhelm Wundt - responsável pelo primeiro laboratório de psicologia experimental na Universidade de Leipzig, em 1879. Examina os processos comportamentais enquanto aprendizagem, condicionamento, motivação, emoção, sensação e percepção em seres humanos e em animais. Psicologia Comportamental (Behaviorismo): tradicionalmente associada aos nomes de Ivan Pavlov, John Watson e Burrhus Skinner. Seu principal objetivo é a observação do comportamento e dos
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efeitos que os estímulos e as respostas podem causar sobre ele. Psicologia Humanista e Existencial: ligada a psicólogos como Carl Rogers, Erich Fromm, Abraham Maslow e Viktor FrankI. Busca relacionar o sentido da vida e os valores da pessoa com os aspectos emocionais da existência humana. Psicologia Gestáltica: relacionada aos psicólogos alemães como Kurt Koffka, Max Wertheimer e Wolfgang Kbhler. Privilegia o estudo da percepção, a noção de campo, sua organização e contexto.
Quadro Resumo dos cinco Paradigmas Teóricos, suas aplicações e tipos de tratamento:
MODELO
ELEMENTO BÁSICO
Modelo Psicanalítico
Conflitos inconscientes (ego, superego, id)
Modelo Comportamental
O comportamento e sua mensuração sistemática
Modelo Humanístico
Modelo Cognitivo
Os valores humanos e as experiências subjetivas de cada indivíduo na sua trajetória existencial Atividade interna natural dos mais elevados processos mentais
Modelo Biológico
TIPO DE TRATAMENTO Psicanálise e Psicoterapia psicodinâmica (uso da livre associação de idéias, interpretação dos sonhos, parapraxias, transferências e contratransferências) Terapia de modificação do comportamento desadaptado. Têcnicas do condicionamento operante Terapia centrada no cliente Terapia cognitiva centrada na mudança das crenças e atitudes do paciente Terapia com medicação (drogaterapia ex: antipslcóticos o antidepressivos) e Eletroconvulsoterapia (ECT)
Historicamente, também merecem registro as contribuições do Funcionalismo, de Wilhem James e John Dewey. Essa escola desenvolveu importantes estudos comparativos entre animais e humanos. Mais recentemente, outras abordagens têm sido desenvolvidas. Dentre elas, está a neurobiopsicologia, que investiga as relações entre biologia, comportamentos e processos mentais, incluindo a observação dos processos físico-químicos que afetam a estrutura e o funcionamento do cérebro e do sistema nervoso. Uma vez recordado brevemente o que é psicologia, pode-se avançar para o terreno da Psicologia Jurídica. 1.1. Do Direito à Psicologia ou da Psicologia ao Direito Conforme conclusão de estudos anteriores (Trindade, 2000), já salientamos, na esteira de Muñoz Sabaté (1980), que a psicologia jurídica é uma disciplina ainda por construir. De um lado, porque a impermeabilidade característica do direito e, via de .:qüência dos juristas, muitas vezes dissociados do método científico, oca-.1 produções essencialmente de compilação, inscrevendo um nível discursivo iJTe os fenômenos humanos. De outro, está a recenticidade da psicologia experimental e científica. De e o direito radica historicamente em Roma e se consubstancia no Corpus Júris Civilis, a psicologia, enquanto ciência, é filha do século XX, embora seja possível desfraldar conteúdos psicológicos em Aristóteles e mesmo nos pré-socráticos. como nos fragmentos de Heráclito, podendo-se citar a própria Bíblia Manual de Psicologia Jurídica PARA OPERADORES DO DIREITO
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como sua fonte primeira. É que a psicologia, arqueologicamente, vem mesclada com a filosofia e com a religião e, nesse sentido, remonta à antiguidade. Ela não nasceu científica. Realmente, a psicologia tem um longo passado, mas uma curta história. Ela é uma disciplina ainda muito jovem. Possui muitos rostos e fala muitas línguas, não raro ensejando divergentes compreensões entre suas escolas e dissidências, linhas e marcos referenciais teóricos. Por exemplo, a ruptura epistemológica realizada da por Freud, com a descoberta do inconsciente, ocorreu em 1900, com a publicação de "A interpretação dos sonhos". Como profissão, no Brasil, ela somente foi regulamentada em 1962, pela Lei n. 4.119, que dispôs sobre os cursos de formação em psicologia, e ainda anda em busca de afirmação e maturidade. Seu contato com a psicopatologia, por exemplo, é temeroso e incerto; e com a psicanálise, permanentemente contraditório. Não obstante, é fácil constatar que o direito e a psicologia possuem um destino comum, pois ambos tratam do comportamento humano. Parafraseando Sobral, (1994) a psicologia e o direito parecem dois mundos condenados a entender-se. A psicologia vive obcecada pela compreensão das chaves do comportamento humano. O direito é o conjunto de regras que busca regular esse comportamento, prescrevendo condutas e formas de soluções de conflitos, de acordo com as quais deve se plasmar o contrato social que sustenta a vida em sociedade. Para Martins de Agra (1986), a relação entre psicologia e direito parece ser verdadeiramente uma questão de justiça. Psicologia e direito necessariamente hão de relacionar-se porque tratam da conduta humana. O comportamento humano é um objeto de estudo, que pode ser apropriado por vários saberes simultaneamente, em diferentes perspectivas, sem esgotar epistemologicamente. Diversas ciências podem compartir o mesmo objeto material imediato, pois, do ponto de vista finalístico, todos os saberes são obrigatoriamente convergentes na pessoa humana. Afinal, o objetivo último de toda ciência é diminuir o sofrimento humano. Como asseverou Japiassu (1991, p. 177), "os processos de especialização e de diferenciação das ciências humanas são fontes geradoras de distâncias e de ignorâncias recíprocas entre os especialistas: eles engendram o esmigalhamento das disciplinas pela compartimentalização das faculdades universitárias, pela criação de uma hierarquia rígida e pela manutenção de uma prudência metodológica que freia a pesquisa das interações entre as disciplinas". O mundo moderno necessita superar o âmbito das disciplinas e do fazer separado responsável pelas abordagens reducionistas do ser humano, da vida e do mundo. A crise da ciência é uma crise pós-disciplinar. Os saberes individualizado e disciplinário já não encontram vez num mundo marcado pela complexidade e pela globalização. O tempo da solidão epistemológica das disciplinas isoladas, cada qual no seu mundo e dcdicada ao seu objeto próprio, pertence, se não a um passado consciente, pelo menos a um tempo que deve urgentemente ser reformado em nome da própria sobrevivência da ciência. Nesse contexto, a teoria do direito deve atender à premência do processo de integração dos conhecimentos sociais, pois a crise do pensamento jurídico contemporâneo está perpassada pela crença de que o direito é uma ciência autônoma e independente, que pode desprezar as conexões com os demais ramos do saber, e de que o jurista é um técnico da subsunção do fato concreto esterilizado à assepsia da norma abstrata. A tendência tradicional dos juristas de fugir do encontro marcado com a metodologia científica e de tratar as ciências humanas através de uma abordagem secundarizada, geralmente remetida à história do próprio direito, instaurou uma fetichização do jurídico e levou a um desprezo pelos demais saberes não normatizantes. Esse afastamento do direito das demais ciências humanas, entretanto, fez o feitiço virar contra o feiticeiro, pois o jurista tem permanecido alijado dos embates científicos atuais e vem sendo pouco considerado quanto à sua própria ciência e arte, remetidas às técnicas de controle social, cuja real significância decorre apenas do poder concreto sobre a sociedade. Enquanto a vida flui a caminho do novo, o direito se opõe à transformação social em nome da segurança jurídica. Entretanto, parece haver chegado o momento de arrancar a psicologia do estatuto restritivo de ciência meramente auxiliar do direito e constituí-Ia num ramo próprio do pensamento e da aplicação do direito. Isso exige uma tomada de consciência epistêmica que obriga a criação de um verdadeiro Manual de Psicologia Jurídica PARA OPERADORES DO DIREITO
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espaço de interlocução, de transdisciplinaridade, que não é nem metapsicológico, nem metajurídico, mas a um só tempo psicojurídico. Como refere Martins da Agra (1986, p. 311), "antes de sabermos como é que a justiça se pode tornar sábia pelo recurso à psicologia, temos de pensar como é que o saber psicológico se epistemologiza numa racionalidade de saber fazer justiça". Nesse espectro, em se adotando as proposições de Clemente (1998), observa-se a possibilidade de falar em várias psicologias jurídicas, consoante a função da organização jurídica que abordam, podendo, assim, sem maior preocupação metodológica, ser referidas as inserções que na atualidade parecem as mais importantes: I) Psicologia judicial 2) Psicologia penitenciária 3) Psicologia criminal 4) Psicologia civil geral e de família 5) Psicologia laboral e administrativa 6) Psicologia do testemunho 7) Psicologia da criança e do adolescente infrator 8) Psicologia das decisões judiciais 9) Psicologia policial 10) Psicologia da vítima ou Psicologia Vitimológica Foi nesse âmbito que Mira y Lopez (2000) definiu a psicologia jurídica "como a psicologia aplicada ao melhor exercício do Direito", o que significa considerar outras possibilidades, dentre as quais se podem incluir, por sua atualidade, estudos acerca da dinâmica psicossocial das decisões judiciais, dos direitos especiais dos target groups, sobre os efeitos do labeling approach na esfera dos atos jurídicos, a justiça terapêutica e a restaurativa. Garrido e Herrero (2006), trazendo como exemplo a definição do Colégio Oficial de Psicólogos da Espanha, mostraram que os órgãos de classe tendem a definir a Psicologia Jurídica como o estudo do comportamento dos atores jurídicos no âmbito do Direito, da Lei e da Justiça. Trata-se, sem dúvida, de um conceito excessivamente restritivo que limita o amplo espectro da Psicologia Jurídica no mundo moderno. A Psicologia Jurídica, na sua totalidade, não é apenas um instrumento a serviço do jurídico. Ela analisa as relações sociais, muitas das quais não chegam a serem selecionadas pelo legislador. Em outras palavras, não se juridicizam, isto Nesse permanente conflito, a ciência do direito parece haver se embretado em um getho aporético-epistemológico responsável por uma certa paralisia do pensamento jurídico. A saída desse labirinto aponta para a integração do direito ao patrimônio da ciência moderna como via de acesso capaz de superar a trilha da autojustificação a que conduz a ideologia da separação. Apesar dos indicadores de convergência entre direito e psicologia no sentido da construção de uma área no espaço de tangência interdisciplinar, há aqueles que continuam a afirmar a impossibilidade da formulação psicojurídica, alegando que direito e psicologia pertencem a mundos muitos diferentes: a psicologia, ao mundo do ser, o direito, ao mundo do dever-ser; a psicologia assentada na relação de causalidade, o direito, no princípio da finalidade. Essa linha de pensamento, por vezes referenciada à distinção entre as ciências naturais e as ciências do espírito, esquece que o homem, na verdade, é cidadão de dois mundos e pertence, simultaneamente, ao reino do ser e do dever-ser. Na realidade, a pobreza das relações interdisciplinares constitui o grande problema das ciências humanas. A humildade e a modéstia epistemológicas têm sido noção faltante na ciência jurídica, mas também a psicologia, na sua adolescência científica, tem se ressentido da sabedoria da história. Nesse particular, a psicologia tem claudicado de forma persistente na medida em que não tem calado onde é incapaz de falar ou, pelo menos, não tem calado quando ainda incapaz de falar. De outro lado, tem fraquejado toda vez que não apresenta a necessária profundidade e consistência filosófica, sucumbindo ao universo da cultura, da reflexão, e, particularmente, do pensamento crítico. Manual de Psicologia Jurídica PARA OPERADORES DO DIREITO
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A psicologia também tem vivido apegada a seus dogmas fundamentais em nome da mesma segurança na qual se escuda o direito. Ela tem feito ouvidos moucos às contribuições de outras disciplinas humanas. Como natural conseqüência, não tem recebido bons tratos das ciências biológicas, nomeadamente das ciências médicas, pois as relações de vizinhança com a psiquiatria, com a psiquiatria forense, com a psicopatologia, e até mesmo com a psicanálise, imbricam uma questão de poder, cujas raízes profundas se entrelaçam num terreno pantanoso de propriedades, apropriações e expropriações nada contributivo para o progresso da ciência global. Tampouco a conectividade que se reclama para a ciência moderna pode ser encerrada numa mera justaposição de pontos de vista. Também nesse aspecto o todo transcende a soma das partes. Por isso, a noção de transdisciplinariedade tem sido evocada na perspectiva de uma melhor compreensão desse novo modo de agir da ciência num paradigma da complexidade. Se, na concepção clássica, o mundo da objetividade era o mundo da ciência, e o mundo da subjetividade era o mundo da reflexão e da filosofia, domínios que, legitimados separadamente se auto-excluíam, a contemporaneidade promoveu uma convergência na medida em que restituiu o sujeito à ciência e a ciência ao sujeito, rumo ao paradigma da complexidade. Essa nova tendência veio questionar o observador e seu locus fora do sistema, incluindo-o na descriptio, assim como propôs o abandono dos modelos de déficit e promoveu a emergência de perspectivas multidimensionais, dinâmicas, abertas, compartidas e complexas. Do ponto de vista epistemológico, pode-se dizer que a ciência contemporânea é forçosamente plural. Como mostram Pena-Veja e Stroh (1999, p. 181), "a antologia do pensamento complexo está alojada no interior da nossa contemporaneidade, por uma diversificação do campo de saber cujos matizes e particularidades estão enraizadas na cri atividade de Bateson, A. Simon, H. Maturana, I . Prigogine, H. Barel, E. Morin. Um denominador liga estas personalidades fora do comum: a vontade de recusar as soluções rápidas e simplistas, de buscar a união da Epistéme com o Lagos, de tentar, por meio de incursões em disciplinas circunstancialmente afastadas, a reconstrução de um paradigma que possa juntar diferentes ciências que tenham incidências interdisciplinares". Portanto, é preciso estar disposto 'a interligar conhecimentos e fazer conexões, e não esquecer que a ciência da pós-modemidade se produz mais por ligações do que por isolamentos.
1.2. Da Psicologia e do Direito à Psicologia Jurídica
Nesse contraditório contexto em que a ciência jurídica historicamente se apresenta com uma idéia de hegemonia epistemológica, Clemente (1998) mostra que a psicologia jurídica só existe a partir da dura realidade, limitando-se, ao lado de outras ciências, a uma condição de disciplina auxiliar do direito. Para o autor (1998, p. 25), a psicologia jurídica "é o estudo do comportamento das pessoas e dos grupos enquanto têm a necessidade de desenvolver-se dentro de ambientes regulados juridicamente, assim como da evolução dessas regulamentações jurídicas ou leis enquanto os grupos sociais se desenvolvem neles". Já Mufíoz Sabaté (1980), alertando para o perigo das classificações, estabelece três grandes caminhos para o método psicojurídico, a saber: 1) A psicologia do direito: cujo objetivo seria explicar a essência do fenômeno jurídico, isto é, a fundamentação psicológica do direito, uma vez que todo o direito está repleto de conteúdos psicológicos. Essa tarefa de investigação psicológica do direito recebeu a denominação de psicologismo jurídico, representada basicamente pela escola do realismo americano e escandinavo, e apresenta-se como uma formulação eminentemente teórica até o momento não suficientemente investigada. 2) A psicologia no direito: que estudaria a estrutura das normas jurídicas enquanto estímulos vetores das condutas humanas. As normas jurídicas destinam-se a produzir ou evitar determinadas condutas e, nesse sentido, carregam inúmeros conceitos de natureza psicológica. Nesse aspecto, a psicologia no direito é uma disciplina aplicada e prática. 3) A psicologia para o direito: a psicologia verdadeiramente como ciência auxiliar ao direito, colocada ao lado da medicina legal, da engenharia legal, da economia, da contabilidade, da Manual de Psicologia Jurídica PARA OPERADORES DO DIREITO
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antropologia, da sociologia e da filosofia, dentre outras. É a psicologia convocada a iluminar os fins do direito. Para o mesmo autor, numa outra perspectiva, os conhecimentos que a psicologia jurídica é capaz de aportar ao mundo jurídico podem ser exercidos de duas maneiras: sob a forma de assessoramento legislativo, contribuindo na elaboração de leis mais adequadas à sociedade, e na tarefa de assessoramento judicial, colaborando na organização do sistema de administração da justiça. Ainda que alguns autores identifiquem a psicologia jurídica com a psicologia judicial, forense ou legal (Mufíoz Sabaté, 1980; Garzón, 1990), na trajetória da psicologia e do direito, foi historicamente relevante diferenciar essas duas modalidades de atuação. A psicologia jurídica trata dos fundamentos psicológicos da justiça e do direito, enquanto a psicologia judicial aparece como a aplicação dos processos psicológicos à prática do jurista, sendo inaugurada com a psicologia criminal. É importante salientar que tanto a psicologia jurídica como a psicologia judicial, embora com origens históricas distintas, são realmente inseparáveis. Ademais, hoje em dia, parece não haver mais razão para essa distinção terminológica. Mesmo assim, é importante referir que no uni verso do direito tem sido mais freqüente a utilização do termo psicologia jurídica, enquanto a expressão psicologia judicial tem sido mais comum no âmbito dos psicólogos (Mufíoz Sabaté, 1980). A propósito, Garzón (1990) mostra os aspectos diferenciais que definiram a psicologia jurídica e a psicologia judicial ou forense. Visão clássica: PSICOLOGIA JURÍDICA PSICOLOGIA FORENSE OU JUDICIAL CONCEPÇÕES: (aspectos) Psicologia Psicologia Coletiva Psicologia Individual Psicologia Teórica Psicologia Aplicada Objetivos Fundamentação psicológica e social do Direito: Componentes Psicológicos da Origem do Direito, Sentimento Jurídico, Psicologia Criminal Evolução das Leis Psicologia do Testemunho Psicologia dos profissionais da lei Relações com o Direito Filosofia do Direito Prática Profissional do Direito Com outras ciências Sociologia, Antropologia Psicopatologia Forense e Ciências Naturais Entretanto, parece haver chegado o momento de arrancar a psicologia do estatuto restritivo de ciência meramente auxiliar do direito e constituí-Ia num ramo próprio do pensamento e da aplicação do direito. Isso exige uma tomada de consciência epistêmica que obriga a criação de um verdadeiro espaço de interlocução, de transdisciplinaridade, que não é nem metapsicológico, nem metajurídico, mas a um só tempo psicojurídico. Como refere Martins da Agra (1986, p. 311), "antes de sabermos como é que a justiça se pode tornar sábia pelo recurso à psicologia, temos de pensar como é que o saber psicológico se epistemologiza numa racionalidade de saber fazer justiça". Nesse espectro, em se adotando as proposições de Clemente (1998), observa-se a possibilidade de falar em várias psicologias jurídicas, consoante a função da organização jurídica que abordam, podendo, assim, sem maior preocupação metodológica, ser referidas as inserções que na atualidade parecem as mais importantes: 1) Psicologia judicial 2) Psicologia penitenciária 3) Psicologia criminal 4) Psicologia civil geral e de família 5) Psicologia laboral e administrativa 6) Psicologia do testemunho 7) Psicologia da criança e do adolescente infrator 8) Psicologia das decisões judiciais 9) Psicologia policial Manual de Psicologia Jurídica PARA OPERADORES DO DIREITO
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10) Psicologia da vítima ou Psicologia Vitimológica Foi nesse âmbito que Mira y Lopez (2000) definiu a psicologia jurídica "como a psicologia aplicada ao melhor exercício do Direito", o que significa considerar outras possibilidades, dentre as quais se podem incluir, por sua atualidade, estudos acerca da dinâmica psicossocial das decisões judiciais, dos direitos especiais dos target groups, sobre os efeitos do labeling approach na esfera dos atos jurídicos, a justiça terapêutica e a restaurativa. Garrido e Herrero (2006), trazendo como exemplo a definição do Colégio Oficial de Psicólogos da Espanha, mostraram que os órgãos de classe tendem a definir a Psicologia Jurídica como o estudo do comportamento dos atores jurídicos no âmbito do Direito, da Lei e da Justiça. Trata-se, sem dúvida, de um conceito excessivamente restritivo que limita o amplo espectro da Psicologia Jurídica no mundo moderno. A Psicologia Jurídica, na sua totalidade, não é apenas um instrumento a serviço do jurídico. Ela analisa as relações sociais, muitas das quais não chegam a serem selecionadas pelo legislador. Em outras palavras, não se juridicizam, isto é, permanecem destituídas de incidência normativa e constituem a grande maioria de nossos comportamentos sociais. Ademais, por várias razões, algumas explícitas, outras implícitas, a Psicologia Jurídica apresenta vulnerabilidades, que somente serão superadas com o seu desenvolvimento e sua consolidação como disciplina de interlocução. No seu atual estágio de disciplina ainda em construção, algumas deficiências ou "pontos fracos" decorrem de resistências no movimento de sincronizar as áreas de intersecção entre direito e psicologia na busca de uma transcendência que efetive a definição de um novo território, que denominamos psicojurídico. Alguns termos, conceitos e princípios têm a especificidade própria da lei, do direito e da justiça, enquanto outros parecem possuir um sentido exclusivo no campo da psicologia. Esses termos nem sempre são bem compreendidos quando se cruzam na Psicologia Jurídica. A seguir, apresentamos um quadro que mostra, comparativamente, algumas dessas características específicas. Características da Lei, do Direito e da Justiça Formalismo: ritos e procedimentos Racionalista Interpessoalidade Axiológico e valorativo (julgamento) Subjetivismo =:> Objetivismo Verdade Processual Hierarquia Igualdade: A pode ser Igual a B. Poder: jurisdição (juris dictio), veredito (veredictum) Lógica discursiva, persuasiva, retórica e O todo é hermético Principio da Finalidade (dever-ser) Enunciado tipo: Se A, pode/deve ser B Caráter Sancionatório (imputacional e atributivo) Culpa, culpa consciente e dolo Instâncias: diversos graus Mundo externo Desconsideração da fantasia, imaginação e Linguagem: diversos sentidos (plurívoca) Interrogatório e depoimento
Características da Psicologia ê da Psicanálise Informal Empirista Intrapessoalidade Compreensiva Objetivismo => Subjetivismo Verdade Científica Flexibilidade Igualdade real: somente A é igual a A. Submissão Lógica da implicação casuislica O todo é diferente da soma das partes Princípio da Causalidade (ser) Enunciado do tipo: Se A, então B Ausência de Sanção Culpa consciente e inconsciente Instância única Mundo externo e interno Fantasia, imaginação e desejo Linguagem: sentido único (unívoca) Entrevista e testagem
Além disso, existem questões de base que ainda entravam a aproximação entre Direito Manual de Psicologia Jurídica 9 JORGE TRINDADE PARA OPERADORES DO DIREITO
e Psicologia. A seguir, oferecemos alguns exemplos:
Pelo lado do Direito: Desconhecimento dos princípios básicos do funcionamento da mente Dificuldade de compartilhamento e de aceitação de critica Tendência à hegemonia Estruturação rígida e pouco permeável a outros Dogmatismo Tradição milenar (direito romano)
Pelo lado da Psicologia: Desconhecimento dos princípios jurídicos e dos fundamentos do direito Procedimentos não suficientemente sedimentados e criticas pouco consistentes Prática ainda em busca de identidade Comprovação científica em fase de afirmação Relativismo Produto do séc. XX
Não obstante as dificuldades existentes, nossa crença central é de que a Psicologia Jurídica é importante não somente ao Direito, mas principalmente essencial à Justiça. Na verdade, para se chegar à Justiça, precisa-se do direito e da psicologia, ambos compartilhando o mesmo objeto, que é o homem e seu bem-estar. Não é necessário recorrer a argumentos ad ferrarem, mas é razoável e conseqüente considerar que o desconhecimento da psicologia, nomeadamente da psicologia jurídica, insere-se entre as causas do erro judicial. A psicologia, de um modo geral, pode permitir ao homem conhecer melhor o mundo, os outros e a si próprio. A Psicologia Jurídica, em particular, pode auxiliar a compreender o hommo Juridicus e a melhorá-lo, mas também pode ajudar a compreender as leis e as suas conflitualidades, principalmente as instituições jurídicas, e melhorá-las também. A aproximação entre direito e psicologia, bem como a criação de um território transdisciplinar, é uma verdadeira questão de Justiça. Como síntese deste capítulo, o que se pretende sublinhar é que a psicologia jurídica, mesmo gozando de maior popularidade nos últimos anos, continua a ser uma disciplina ainda por fazer. De nascimento experimental, a psicologia, inclusive a jurídica, tem resistido ao discurso jurídico, enquanto o direito, preso a uma hegemonia epistemológica, tem dificuldades em aceitá-la, fazendo apenas concessão para uma disciplina auxiliar. Assim, a Psicologia Jurídica restringiu-se à psicologia para o direito, permanecendo longe de qualquer interferência no processo dos fundamentos do direito, ou seja, da psicologia do direito, bem como afastada das questões psicológicas que intrinsecamente compõem o mundo normativo, ou seja, da psicologia no direito.
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