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O LÓCUS DA DA METÁFORA: LINGUAGEM, PENSAMENTO E DISCURSO Solange C. Vereza
RESUMO O objetivo deste artigo é traçar traçar,, brevemente, a trajetória dos estudos da metáfora a partir de uma questão que remete à própria conceituação desse tropo: o lócus da metáfora. Como objeto de reflexão, a metáfora, dentro da visão tradicional, é restrita ao nível da linguagem, mas com a introdução da eoria eoria da Metáfora Conceptual, C onceptual, o da metáfora transfere-se da linguagem para o penlócus da samento. Mostraremos como as pesquisas recentes da área direcionam o seu foco para a metáfora no discurso, buscando articulações entre as dimensões linguística e sociocognitiva da metaforicidade. PALAVRAS�CHAVE: metáfora; pensamento; discurso
Introdução
S
e usarmos a ferramenta eletrônica Google, colocando como fonte de busca a palavra “metáfora”, a ferramenta irá nos informar que há aproximadamente 559.000 páginas (em português) com o uso do termo. Grande parte dessas páginas se refere a artigos e textos acadêmicos que tratam da metáfora, tentando definir, conceituar e/ou problematizar o termo. Isso I sso nos dá uma ideia do grande interesse que o conceito vem despertando em teóricos de várias linhas. No entanto, conhecer o significado do termo “metáfora” não é privilégio de uma elite acadêmica. A mesma ferramenta Google irá irá também nos mostrar que o conceito de metáfora faz parte do discurso metalinguístico,
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não teoricamente informado, de grande parte dos usuários, com certo grau de letramento, da língua portuguesa. Dizer que se está “falando metaforicamente ” (um termo com 66.800 entradas no Google ) é algo bastante comum na linguagem cotidiana. Da mesma forma, dizer que se está “falando literalmente ” é algo tão corriqueiro, que a expressão “literalmente falando” já virou um marcador discursivo frequente1 na língua portuguesa (VEREZA, 2007) 2. Por trás desses usos cotidianos do conceito de metáfora (e sua aparente contraparte “literal”), parece haver uma visão do fenômeno metafórico como o uso de um termo, ou “expressão”, que está sendo usado em lugar de outro mais direto, mais objetivo e, portanto, mais real ou verdadeiro. Expressões como “isso é só modo de dizer”, “isso é só maneira de falar”, “é só uma expressão”, “não é para ser entendido ao pé da letra”, entre outras, marcam essa visão metadiscursiva sobre o uso da figuratividade, uma reflexão sobre a própria linguagem usada que resultou em algum desvio. A função desse desvio, ainda dentro da visão do senso comum, poderia ser a de embelezar, ilustrar, esclarecer ou até mesmo “fugir do assunto” ou “esconder a ignorância” sobre algo. De uma maneira geral, já dentro de uma perspectiva mais teórica, parece haver um consenso entre pesquisadores, estudiosos e professores de línguas de que a metáfora representaria, em sua essência, uma transferência de sentido de uma termo “A” para um outro termo “B”. Essa visão consensual, que implica necessariamente “transporte de sentidos”, é assim explicitada por Mendes (2010)3: Etimologicamente, o termo metáfora deriva da palavra grega metaphorá através da junção de dois elementos que a compõem - meta que significa “sobre” e pherein com a significação de “transporte”. Neste sentido, metáfora surge enquanto sinônimo de “transporte”, “mudança”, “transferência” e em sentido mais 1
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De fato, o termo “literalmente” já teve o seu sentido estendido para marcar uma intensificação ou hiperbolização de um dado adjetivo. Estar “literalmente” morto de fome, “literalmente exausto”, por exemplo, expressam, paradoxalmente, um sentido de “verdadeiramente” , “realmente muito”, sem exagero. Este uso parece trazer à tona o sentido de literal como “verdade” e o da metáfora como “engano”. VEREZA, S. C. Literalmente falando: sentido literal e metáfora na metalinguagem. Niterói: EDUFF, 2007. MENDES, P. “Metáfora”. In CEIA, C. E-dicionário de termos literári os. http:// www.fcsh.unl.pt/edtl/verbetes/M/metafora.htm. 20/04/2010.
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específico, “transporte de sentido próprio em sentido figurado”. De fato, e tendo como base o significado etimológico do termo, o processo levado a cabo para a formação da metáfora implica necessariamente um desvio do sentido literal da palavra para o seu sentido livre; uma transposição do sentido de uma determinada palavra para outra, cujo sentido originariamente não lhe pertencia.
No entanto, apesar desse consenso, a natureza da transferência e de suas possíveis funções (semânticas, retóricas, cognitivas, epistemológicas e discursivas) ainda são fontes de muitas controvérsias entre estudiosos, merecendo, portanto, uma constante perspectivação de conceitos que embasam o debate em torno da metáfora. Debate esse que, como muitos aspectos da linguagem e do discurso, vem atravessando séculos, para não dizer milênios, enriquecendose com as novas reflexões e reconceituações propostas pelos vários estudiosos que se ocuparam, e ainda se ocupam, de tema tão complexo. Este artigo não pretende traçar o histórico desse rico debate. O nosso objetivo é apenas situá-lo a partir de um único aspecto, ou recorte, que diz respeito ao lócus da metáfora. Ou seja, a metáfora é, fundamentalmente, um fenômeno da linguagem, do pensamento ou do discurso? Estamos partindo da hipótese de que as principais teorias da metáfora, apesar do consenso mencionado acima, diferem entre si, primordialmente, justamente em relação a esse aspecto. Procuraremos mostrar, nas seções abaixo, de que maneira o que estamos considerando, de uma forma inevitavelmente reducionista, devido ao escopo deste trabalho, como as principais visões da metáfora abordam a questão do lócus dessa figura e que implicações essas diferentes abordagens teriam para os estudos da metáfora. A metáfora na linguagem
O que é hoje conhecido como visão tradicional da linguagem (POLLIO, SMIH, POLLIO, 1990; KOVECSES, 2002) 4 não teve, necessariamente, 4
POLLIO, H.R., SMITH, M. K e POLLIO, M. R. “Figurative Language and Cognitive Psychology”. Language and Cognitive Processes , 5 (2), 1990. pp.141-167. e KOVECSES, Z. Metaphor: a practical introduction. Oxford: Oxford University Press, 2002.
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sua origem, como muitos poderiam supor, na chamada visão aristotélica de figuras. Em primeiro lugar, ecoando Leesenberg (2001), Aristóteles nunca propôs uma conceituação clara e sistemática de metáfora que pudesse ser realmente chamada de “teoria da metáfora” (LEESENBERG, 2001) 5. Além disso, em apenas uma de suas quatro sub-classificações de metáfora como transporte (1- de gênero a espécie; 2- de espécie a gênero; 3- de espécie a espécie e 4- relação de analogia, envolvendo quatro elementos), somente a terceira (de espécie a espécie) pode ser vista como uma transferência metafórica, enquanto as demais são relacionadas a casos de metonímia, hiperonímia, analogia e outras figuras semânticas e retóricas. O que fica nítido na visão tradicional é o estatuto da metáfora como figura de linguagem. Ou seja, dentro da perspectiva aqui traçada, podemos dizer que, segundo a visão tradicional, o lócus da metáfora é a linguagem. Isso implica que o uso figurado não tem um papel central na produção de sentidos, uma vez que não estabeleceria uma relação direta entre realidade, conceito e palavra, que seria o caso do sentido literal. Esse sentido seria, no nível da linguagem, “distorcido”, ao se usar um termo no lugar de um outro, trazendo, nesse transporte, conotações próprias do conceito “emprestado”, que interfeririam no sentido daquilo a que se quer referir. Uma das implicações do fato de se abordar a metáfora como “troca” de uma palavra por outra seria ver a figura como desvio do sentido correto, “próprio” de um termo. Como consequência, a metáfora passa a ser vista como um recurso supérfluo da linguagem, característico do discurso poético ou retórico, ambos não considerados usos “sérios” da linguagem, por não conterem sentidos “legítimos”. Ser concebida como um elemento supérfluo não é, necessariamente, o único aspecto que retirou da metáfora a possibilidade de compartilhar a legitimidade das formas supostamente literais de significação. Na verdade, a linguagem figurada foi, e ainda o é, vista como um desvio, uma anomalia, um equívoco, como afirma Hobbes (1839, [2005], p. 8) 6:
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LEESENBERG, M. Context of metaphor. Amsterdam: Elsevier, 2001. HOBBES, .H. Elementos de filosofia. Primeira seção: sobre o corpo. Parte 1, computação ou lógica. (radução e adaptação de José Oscar de A. Marques). Clássicos da Filosofia: Cadernos de Tradução. Campinas: IFCH/Unicamp, 2005.
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Nomes são usualmente unívocos ou equívocos. Unívocos são aqueles que na mesma sequência discursiva significam sempre a mesma coisa; equívocos são aqueles que ora significam uma coisa, ora outra. oda metáfora é, por sua própria natureza, equívoca 7 (Hobbes (1839, [2005], p. 8).
É importante notar que a visão da metáfora como uma figura de linguagem com função meramente ornamental, sem qualquer efeito cognitivo, é, segundo Genette (1975)8, resultante do processo reducionista a que a retórica foi submetida. Da retórica desenvolvida por Aristóteles, apenas uma das três dimensões9 propostas pelo filósofo para caracterizá-la foi mantida na “Retórica reduzida”. O percurso da retórica em direção ao reducionismo e ao consequente “anti-retoricismo”10 (FERNANDES, 2004, p. 7)11 representou um processo gradual de apagamento ou esvaziamento dos eixos mais diretamente relacionados aos aspectos lógico-discursivos da retórica, ou seja, a inventio e a dispositio. Esse processo solidificou-se na Idade Média, dando centralidade à elocutio, que é justamente aquela dimensão que abarca o uso do léxico e, principalmente, das figuras da linguagem. Ou seja, a retórica reduzida é a retórica tropológica (dos tropos), e é por meio dela que a metáfora também se reduz ao seu nível puramente linguístico e decorativo (como o próprio termo “figura” parece sugerir). É nesse sentido que podemos concluir que a visão tradicional de metáfo7
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Hobbes irá relativizar essa afirmação: “...esta distinção (unívoco –equívoco) diz respeito menos aos nomes, do que aqueles que os empregam” . (HOBBES, 1839, [2005], p. 8). GENEE, G. “A retórica restrita”. In: COHEN, J. , BREMOND, C. , KUEZ, P. e GENEE, G. Pesquisas de retórica (radução de Leda Pinto Mafra Iruzun). Petrópolis: Editora Vozes, 1975, pp. 129-146. Os três níveis da retórica propostos por Aristóteles são: inventio (formular idéias, buscar as provas para o argumento), dispositio (a estrutura discursiva e organizacional do argumento) e a elocutio (o “por em palavras”, no eixo sintagmático e paradigmático) (VOLLI, H. Manual de Semiótica . São Paulo: Loyolla, 2000.pp.233-236). FERNANDES (2004, p.7 ) ilustra esse anti-retoricismo com a seguinte afirmação de Ramalho Ortigão, colocada como epígrafe em seu texto, : Não somos dos beatos das palavras, dos gulosos de figuras e de tropos, que dão à eloqüência –no sentido vulgar desta palavra-, uma adoração que ela não merece. FERNANDES, R. M. R. “Prefácio à edição portuguesa”. In: LAUSBERG, H. Elementos de retórica literária. Lisboa: Gulbenkian, 2004, pp. 7-11.
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ra não é aristotélica: o estatuto da metáfora acompanhou o declínio da retórica, e como esta, consolidou-se, por um longo período, em sua versão reduzida. A metáfora no pensamento
O que significa conceber o lócus da metáfora como sendo o pensamento? Muitos poderiam ser levados a crer que a metáfora no pensamento significaria apenas pensar uma coisa em termos de outra, sem necessariamente verbalizar esse processo. Seria, talvez, um “metaforizar” introspectivo. No entanto, é importante observar que o pensamento a que os teóricos da metáfora e de outros fenômenos linguísticos se referem não é a “linguagem não falada”, aquilo que poderia ser visto como o correspondente mental da linguagem verbalizada. É importante ressaltar que a metáfora que é conceituada como figura que tem seu lócus no pensamento (a figure of thought ) é aquela que não só surge no contexto da cognição, mas é, em si mesma, responsável por parte importante dessa mesma cognição. Assim, a abordagem da metáfora como figura do pensamento e não de linguagem a retira de sua “insignificância” conceptual: ela não é mais apenas um adorno supérfluo, mas um importante recurso cognitivo usado, não só para se “referir” a algo por meio de outro termo mais indireto, mas, de fato, construir esse algo cognitivamente, a partir da interação com um outro domínio da experiência. Dessa forma, a metáfora não seria apenas “uma maneira de falar”, mas sim de pensar (ou até mesmo de “ver”) o real de uma determinada forma e não de outra. Essa virada paradigmática nos estudos da metáfora (ZANOO et al, 2002)12 se deu a partir da formalização de uma teoria de base cognitivista, cujo núcleo estaria no conceito de metáfora conceptual , introduzido por Lakoff e Johnson (1980 [2002]; 1999)13. Por essa razão a teoria é conhecida como eoria da Metáfora Conceptual (MC). A metáfora, como figura do pensamento, faria parte da linguagem ordinária, e não somente da poética ou da retórica, não sendo tratada apenas como 12
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ZANOTTO, M. S., MOURA; H. M. M; VEREZA, S. C. e NARDI, M. I. Apresentação à Edição Brasileira. In: LAKOFF, G. e JOHNSON, M. Metáforas da vida cotidiana . Trad. Maria Sophia Zanotto e Vera Maluf. Campinas: Mercado de Letras, 2002. LAKOFF, G. e JOHNSON, M. Philosophy in the flesh: the embodied mind and its challenge to western thougt. Nova Iorque: Basic Books, 1999.
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um recurso linguístico, mas, fundamentalmente, cognitivo. Como propõem Lakoff e Johnson (1980 [2002])14: A metáfora para a maior parte das pessoas é um mecanismo da imaginação poética e do requinte teórico: uma questão de linguagem “extraordinária” em vez da linguagem comum. Além disso, a metáfora é tipicamente vista como uma característica da linguagem: uma questão de palavras e não de pensamentos e ações. Por essa razão, a maioria das pessoas pensa que pode viver perfeitamente bem sem a metáfora. Nós acreditamos, no entanto, que a metáfora faz parte da vida cotidiana, não somente na linguagem, como também no pensamento e na ação. Nosso sistema conceitual, a partir do qual pensamos e agimos, é fundamentalmente metafórico pela sua própria natureza (LAKOFF e JOHNSON, 1980 [2002]: 3).
A metáfora, vista dentro dessa perspectiva, estaria situada em uma dimensão conceitual ou cognitiva, ou seja, um processo por meio do qual experiências são elaboradas cognitivamente, a partir de outras já existentes no nível conceptual. Haveria, dessa forma, uma “superposição” de uma experiência já incorporada e linguisticamente determinada a uma outra experiência a ser mapeada pelo pensamento e pela linguagem. Poderíamos pensar nesse processo, “metaforicamente”, como a utilização de uma “forma de pastel” para dar forma a uma massa disforme, sem limites, sem características próprias, sem uma linguagem e, consequentemente, sem acesso a redes conceptuais que viabilizariam a consciência. A metáfora conceptual, assim, não seria “propriedade” de um indivíduo. Ela faria parte de um “inconsciente cognitivo coletivo”, mantendo uma relação de determinação mútua com a cultura e com a língua. Usos de linguagem metafórica seriam, quase sempre, “licenciados” por metáforas conceptuais. O que antes era visto como uma metáfora no nível da linguagem em uso, passou a ser abordado como uma evidência ou marca linguística de uma metáfora conceptual subjacente. 14
LAKOFF, G. e JOHNSON, M. Metaphors we live by . Cambridge: Cambridge University Press, 1980. Metáforas da vida cotidiana . radução pelo grupo GEIM. São Paulo: Educ/ Campinas: Mercado de Letras, 2002.
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Se, por exemplo, falássemos que “precisamos dar uma guinada em nossas vidas”, “continuar caminhando”, “dar um novo rumo em nossos projetos”, estaríamos usando expressões metafóricas que, mesmo sendo altamente convencionalizadas, recrutariam a metáfora conceptual “A VIDA É UMA VIAGEM”. Da mesma forma, se disséssemos que “marcamos um gol de letra”, para nos referirmos ao sucesso de algum projeto; “demos um drible nas dificuldades”, “chutamos para escanteio aquela oportunidade” , “batemos um bolão na entrevista” e que “temos que tirar nosso time de campo”, estaríamos, de uma forma inconsciente, sendo respaldados pela metáfora conceptual “A VIDA É UM JOGO DE FUEBOL”. O que interessa aos estudiosos cognitivistas da metáfora é a identificação, por meio das marcas linguísticas, das metáforas conceptuais que as subjazem. Compreender a forma pela qual o homem vê parte de sua experiência (normalmente as mais abstratas) pela lente de outras mais concretas (principalmente aquelas relativas à corporeidade), e a relação dessas conceptualizações metafóricas com a cultura, é o objetivo central do empreendimento dos adeptos da MC. Nessa tarefa, a linguagem, lócus da metáfora na visão tradicional, adquire um estatuto epistemológico nitidamente secundário. Aqui, o lócus da metáfora é o pensamento, no seu sentido de construção sociocognitiva do real. A metáfora no discurso
A eoria da metáfora conceitual, a partir do novo arcabouço teórico e filosófico introduzido por Lakoff e Johnson (1980 [2002]; 1999) 15, serviu como motivação para o desenvolvimento de um número surpreendente de pesquisas sobre a metáfora, que, em seu conjunto, formou uma área de estudos já conhecida como “metaforologia” (SEEN, 1994) 16. Essa área, apesar de se caracterizar por objetos de investigação de diversas naturezas, tem em comum o pressuposto de base da MC: as expressões metafóricas encontradas na linguagem são evidências de metáforas conceptuais que as licenciam. Assim, seria de se esperar que muitas pesquisas partissem, indutivamente, em 15 16
LAKOFF, G. e JOHNSON, M. Philosophy in the flesh: the embodied mind and its challenge to western thougt. Nova Iorque: Basic Books, 1999. SEEN, G. Understanding metaphor in literature: an empirical approach. London: Longman, 1994.
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busca dessas marcas linguísticas para proporem metáforas cognitivamente amparadas que pudessem dar coerência ao conjunto de evidências encontrado. Na verdade, amparando-se em Lakoff e Johnson (Ibid.), os exemplos linguísticos eram “inventados”, no sentido de serem pensados fora de um contexto ou corpus, para ilustrar, dedutivamente, metáforas conceptuais previamente propostas. Dessa forma, quando os autores discorrem sobre a metáfora “DISCUSSÃO É GUERRA”, eles apresentam uma série de exemplos, que, em português, poderíamos traduzir, alguns deles, como “ganha-se” ou “perde-se” uma discussão, criam-se “estratégias” argumentativas, “conquista-se” o interlocutor com um argumento, “defende-se uma posição” etc. para dar consistência à metáfora proposta. Ou seja, os exemplos são usados como “provas linguísticas” da metáfora em questão, que, do ponto de vista epistemológico, não passaria de uma hipótese. Devido à circularidade desse procedimento, ou seja, uma pesquisa que usa evidências para reforçar uma hipótese, a priori , e não o contrário, muitas críticas surgiram, a partir do fim da década de noventa, no universo da metaforologia (ver, por exemplo, DEIGNAN, 2005 17; CAMERON,199918 e VEREZA, 200819). As propostas que surgiam visavam à utilização de exemplos retirados de usos autênticos da língua e não apenas da intuição do pesquisador. Dessa forma, passou-se a investigar a linguagem figurada em determinados gêneros textuais, em corpora gerais ou específicos e, a partir desses dados, identificar as metáforas conceptuais subjacentes (como, por exemplo, em KOVECSES, 2002)20. Em outras palavras, a linguagem, vista, em um primeiro momento, como secundária por teóricos cognitivistas, recuperou seu estatuto epistemológico. Apesar deste reenquadramento analítico, a linguagem, neste momento de nova “virada”, era ainda considerada como fonte de dados e não como lócus da metáfora. 17 18
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DEIGNAN A. Metaphor and Corpus Linguistics. Amsterdam: John Benjamins, 2005. CAMERON, L. “Identifying and describing metaphor in spoken discourse data”. In: Cameron, L. e G. LOW. Researching and applying metaphor . Cambridge: Cambridge University Press, 1999. VEREZA, S. C. “Exploring metaphors in corpora: a study of ‘war’ in corpus generated data In: Zanotto, M. S. et al. Confronting metaphor in use: an applied linguistic approach. Amsterdam: J. Benjamins, 2008 KOVECSES, Z. Metaphor: a practical introduction. Oxford: Oxford University Press, 2002.
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Foi com a constatação de que a linguagem em uso, ou o discurso, não era apenas o universo de manifestações linguísticas de metáforas conceptuais, mas de articulações cognitivas e pragmáticas e até mesmo de emergência de novas metáforas conceptuais (“metaforemas”, segundo Cameron e Deignan, 2006)21 que a linguagem recuperou, pelo menos parcialmente, o seu estatuto de lócus da metáfora. A pergunta que inevitavelmente surge, a partir desse movimento, é: após tantos avanços na compreensão da metáfora, motivados pelas pesquisas geradas pela MC, volta-se agora à abordagem tradicional, em que a metáfora era vista apenas como uma figura de linguagem, sem qualquer motivação ou efeito cognitivo? Ou seja, para lembrarmos da metáfora “A VIDA É UMA VIAGEM”, poderíamos dizer que “andamos, andamos para chegar de volta ao mesmo lugar de onde partimos?” Felizmente, o cenário atual dos estudos da metáfora, muito voltado para a linguagem figurada no discurso, de forma alguma descarta os aspectos cognitivos inerentes à metáfora. Ao invés disso, procura-se criar articulações sistemáticas entre a cognição e o discurso, ressaltando a inseparabilidade dessas duas instâncias. A metáfora é de natureza tanto linguística quanto (sócio) cognitiva, e o discurso promove e possibilita essa articulação e, ao mesmo tempo, dela depende. Dessa forma, o lócus da metáfora passa ser o discurso, se entendermos esse conceito como o espaço em que aspectos sociocognitivos e linguísticos (se é que se pode fazer essa separação) se encontram para tecer a figuratividade, entre outras formas de criação de sentidos. Estudar a metáfora no discurso, a partir de sua multidimensionalidade, implica, para o pesquisador, enfrentar vários desafios, principalmente do ponto de vista metodológico. A complexidade das articulações mencionadas acima exige rigor analítico e, consequentemente, especialistas da área têm desenvolvido metodologias próprias para lidar com essa tarefa. Cameron (1999, 2008)22 e o Grupo Pragglejaz (2007) 23 propuseram uma série de procedimenCAMERON, L. e DEIGNAN, A. “Te Emergence of Metaphor in Discourse”. Applied Linguistics 27(4), 2006. pp. 671-690. 22 CAMERON, L. “Metaphor shifting in the dynamics of talk”. In: Zanotto, M. S. et al. Confronting metaphor in use: an applied linguistic approach. Amsterdam: J. Benjamins, 2008. 23 PRAGGLEJAZ group: “MIP: A Method for identifying metaphorically used words in discourse”. Metaphor and symbol , 22(1), 2007. pp. 1-39. 21
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tos para se identificar metáforas em textos autênticos. Com o mesmo objetivo, Sardinha (2009)24 desenvolveu uma metodologia para a identificação eletrônica de metáforas em determinados corpora (específicos ou gerais). Qualquer que seja o procedimento escolhido para identificação de metáforas, determinando o que é e o que não é metáfora (probabilisticamente ou não), é só a partir dessa identificação criteriosa que o analista pode agrupar as metáforas linguísticas em torno de metáforas conceptuais. Outras unidades de base mais discursiva foram também introduzidas na literatura da área. As metáforas sistemáticas (CAMERON, 2008), por exemplo, seriam específicas de determinados textos, entretanto, não estariam linguisticamente explicitadas, daí a sua caracterização como cognitivas. Um exemplo disso seria um texto (oral ou escrito) em que o autor fizesse, hipoteticamente, vários paralelos entre uma aula dada e o carnaval, sem explicitar essa metáfora nos termos clássicos A=B. Ou seja, ele não precisaria verbalizar a metáfora “a aula é um carnaval” para criar, cognitivamente, essa imagem. Porém, ao fazer uso, ao longo de sua fala (ou texto escrito), de expressões metafóricas específicas, como “só faltaram jogar confete em mim”, “no quesito harmonia, a aula levou nota zero”, “eu era o próprio passista perdido na avenida” e “ o tema da aula parecia mais difícil de entender do que enredo da Beija-Flor”, a metáfora “a aula é um carnaval” estaria, do ponto de vista discursivo-cognitivo, estruturando a narrativa ou avaliação, dando coerência semântica e pragmática à figuratividade, sendo, por isso, tratada como “sistemática”. Uma outra unidade proposta é o nicho metafórico (VEREZA, 2007)25. Como a metáfora sistemática, o nicho metafórico enfoca o fenômeno da figuratividade como um recurso organizacional do discurso (retomando a sua função na dispositio e não apenas na elocutio), criando, cognitivamente, redes de sentido, com uma função primordialmente argumentativa. Ao contrário da metáfora sistemática, o nicho metafórico não remete a uma única metáfora cognitiva (mesmo que textualmente específica), mas a toda uma rede metafórica que vai sendo tecida em uma unidade semântico-discursiva (um parágrafo, por exemplo) no texto. Dessa forma, as expressões metafóricas se sucedem, SARDINHA, . B. “Questões metodológicas de análise de metáfora na perspectiva da linguística de corpus. Gragoatá , 26, 2009. pp. 81-102. 25 VEREZA, S. C. “Metáfora e argumentação: uma abordagem discursiva”. Lingua gem e Discurso. vol. 23, 2007. pp. 487-506. 24
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criando não apenas coerência, como também coesão entre os vários períodos entrelaçados. Nesse processo, podemos ter tanto uma metáfora textualmente específica de base, como articulações com metáforas conceituais de caráter mais universal. Vejamos o exemplo: Eu costumo comparar esse assunto (evoluções na gastronomia ) ao rock: você tem um David Bowie, um alking Heads, que seriam os equivalentes à cozinha clássica. Aí aparece a música eletrônica, que eu comparo às espumas (comidas com pouca consistência ) e as melodias com letras passam a ser consideradas antigas, tolas. Mas chega um Radiohead, e o que ele faz? Faz uma música que consegue ser um rock clássico, com letra, só que mais atual e moderno do que o que era feito nos anos oitenta. Ou seja, assim como a música eletrônica, as espumas vão desaparecer sem deixar vestígios- ou saudade.
Nesse exemplo claro de nicho metafórico, observamos um todo coerente sendo desenvolvido, com um propósito nitidamente argumentativo, a partir de uma metáfora : gastronomia é rock . No entanto, se autor não explicitar que aspectos do rock estão em evidência nessa comparação, a metáfora não vai surtir o efeito de sentido desejado. O nicho metafórico, assim, tem a função de organizar não só o texto, como a própria argumentação. Os paralelismos não são inerentes aos dois domínios (gastronomia e rock), mas são construídos discursiva e cognitivamente pelo autor. Nesse processo, ele faz uso de vários pressupostos culturais (quem é David Bowie, o que é música eletrônica etc.) que, obviamente, precisam ser compartilhados pelo leitor para que a metáfora seja compreendida. Pode-se especular, também, que ambos os elementos da metáfora articulam-se a uma metáfora conceptual bem mais abrangente: cultura é evolução. Nesse paradigma, entrariam os vários modismos que caracterizam a vida contemporânea ocidental, vistos, no texto em questão, sob uma perspectiva negativa, pelo autor (os modismos vão e vêm, mas o essencial fica). Esses dois exemplos de novas abordagens para se estudar a metáfora no discurso, por meio de novas unidades analíticas (a metáfora sistemática e o nicho metafórico) apontam para o crescente interesse dos estudiosos da área em promover articulações entre as várias dimensões da metáfora: a sociocognitiva, a linguística e a discursiva.
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Considerações finais
Falar uma coisa em termos de outra, ou seja a transferência de significados de um domínio da experiência para outro, pode parecer uma operação linguística trivial. E de certo modo, podemos dizer que realmente o é. Afinal, as metáforas não são apenas ferramentas sofisticadas exclusivas de poetas (que usam domínios cuja relação é, não raro, muito inusitada); ao contrário, ela faz parte do discurso cotidiano e dela fazemos uso, em sua forma mais convencional (“Meu filho é a luz da minha vida”), ou pelo uso de expressões figuradas criativas, como vimos acima no caso da transferência do domínio do rock para o da gastronomia. No entanto, esse processo figurativo traz à tona a imbricada rede envolvida na produção de sentidos, rede essa cuja natureza é multiforme e não pertence a instâncias isoladas. O lócus da metáfora não é apenas a linguagem ou o pensamento. Se pensarmos o discurso como o espaço onde os sentidos se produzem, reverberando o que já foi sócio e linguisticamente reiterado, e, ao mesmo tempo, revertendo, estendendo ou até mesmo desconstruindo essas reiterações, num jogo articulatório entre a cognição, a língua e o uso, podemos tratar a metáfora como um fenômeno que evidencia essa complexa teia que forma e é formada por novos (mas nunca totalmente inéditos) e velhos (mas sempre muito vivos) sentidos. E é nessa direção, nada fácil do ponto de vista analítico, devido à complexidade do acontecimento discursivo, que muitos dos estudos da metáfora caminham. O desafio dessa jornada é articular sem perder o objeto de vista, pois o perigo das articulações, sob uma perspectiva epistemológica, é justamente confundir o olhar do analista da metáfora com o olhar do sujeito usuário de metáforas (que estará, inevitavelmente, sempre presente). Os estudos da metáfora, durante toda sua trajetória, contribuíram com conceituações importantes, que podem ser relativizadas, questionadas, mas nunca ignoradas nas pesquisas atuais. Recuperar a voz de Aristóteles, por exemplo, não é retroceder no tempo e nos avanços analíticos; voltar-se para o discurso não é esquecer os ganhos da teoria cognitiva, como, da mesma forma, abraçar a metáfora conceptual não implica rejeitar, necessariamente, a linguagem como espaço fundamental para a plena realização da figuratividade. Enfim, pensar que o caminho pode estar apenas começando, mas que já temos na bagagem reflexões preciosas, torna o desafio ainda mais estimulante.
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Vereza, Solange C. O lócus da metáfora: linguagem, pensamento e discurso
ABSRAC Te aim of this paper is to describe the trajectory of metaphor studies through a basic question, which reflects the very conceptualization of this trope: the locus of metaphor. As an object of investigation, metaphor, within the “traditional view”, is restricted to the level of language, but with the introduction of Te Conceptual Metaphor Teory, the locus of metaphor is transferred from language to thought. We will show how recent studies in the area direct their focus to metaphor in discourse, promoting an articulation among the linguistic, the cognitive and the social dimensions of metaphor. KEYWORDS: metaphor, thought; discourse. Recebido em: 31/03/2010 Aprovado em: 17/06/2010