Revista Brasileira de Hist ória On-line version ISSN
1806-9347
Rev. bras. Hist. vol. 18 n. 35 S ão Paulo 1998 http://dx.doi.org/10.1590/S0102-01881998000100015
Nacionalismos e reforma agr ária nos anos 50
Vânia Maria Losada Moreira Universidade Federal do Esp í rito rito Santo
RESUMO O artigo visa recuperar os elementos fundamentais do ide ário nacionalista durante a década de 1950, destacando a centralidade do conceito de desenvolvimento auto-sustentado. A diversidade pol í tica tica e ideológica do movimento nacionalista é problematizada atrav és da an álise de duas correntes preponderantes do perí odo odo em foco: o nacional-desenvolvimentismo, de caráter liberal, e o nacionalismo econ ômico, isto é, a vertente defendida pelas esquerdas. Finalmente, é focalizado a importância da reforma agr ária dentro do projeto social defendido sobretudo pelos nacionalistas econômicos, enquanto fator indispens ável a uma industrialização com cidadania. Palavras-Chave: Palavras-Chave: Nacionalismo; Reforma Agrária; Nacional-desenvolvimentismo
ABSTRACT This paper intends to recover the fundamental elements of the nationalistic ideals in Brazil during the 1950s, highlighting the centrality of the self-sustained development concept. The political and ideological diversity of the nationalistic movement is analyzed through the study of two main streams during the period in focus: the national-developmentalism, of a liberal character, and the economic nationalism, i. e., the left wing stream. Finally, the importance of agrarian reform as a necessary factor of industrialization with citizenship within the social project argued mainly by economic nationalists is studied. Keywords: Keywords: Nationalism; Agrarian Reform;National-developmentalism
A história brasileira dos anos 1930-1964 dificilmente pode ser compreendida em sua especificidade sem a consideração do então crescente e cada vez mais influente movimento nacionalista. Sua for ça emocional, ideológica e polí tica tica era incontest ável e não por acaso Caio Prado Jr., sempre atento à realidade de seu tempo, disse contundente em 1955 que a "(...) campanha nacionalista j á hoje se situa no mesmo plano da luta pela independ ência e da campanha da aboli ção"1. A criação de inúmeras
entidades formais e informais de cunho nacionalista entre pol í ticos, militares, intelectuais, estudantes e trabalhadores apenas confirmava o diagn óstico de Caio Prado Jr2. Mas se o nacionalismo crescia e fortalecia-se, não era menos evidente sua diversidade e imprecis ão ideológica. Tal problema foi magistralmente expresso por outro intelectual dos anos 50. Em 1958 escreveu H élio Jaguaribe: São nacionalistas, no Brasil, correntes de extrema direita, ligadas, no passado, aos movimentos de propensão fascista, e correntes de extrema esquerda, como o Partido Comunista. S ão nacionalistas os defensores da socialização dos meios de produção e os partidários da iniciativa privada3.
Ser nacionalista não era uma op ção ideológica e polí tica de conteúdo uní voco e os conceitos na ção, nacionalismo e nacionalista tornaram-se r ótulos nomeadores de realidades t ão diversas entre si que pouco colaboram isoladamente para a compreens ão do movimento durante os anos populistas. A dificuldade de aplicar tais palavras em sentido preciso para descrever e explicar fen ômenos históricosociais não é um problema enfrentado apenas pela cr í tica e historiografia do perí odo populista. Bolí var Lamounier, ao analisar a forma ção do pensamento polí tico autoritário, diz ser correto considerar os intelectuais da Primeira República "nacionalistas", afirmando ser tal caracteriza ção, entretanto, "inócua" 4. A mesma dificuldade é compartilhada por estudiosos de outros pa í ses. Referindo-se à experiência européia, Francesco Rossolillo observou ser o conte údo semântico do termo na ção um dos "(...) mais confusos e incertos do dicion ário polí tico"5. A mesma constatação é feita por Eric Hobsbawm, para quem "a palavra `na ção' é atualmente utilizada de forma t ão ampla e imprecisa que o uso do vocabulário do nacionalismo pode significar, hoje, muito pouco" 6. Entender o nacionalismo no Brasil implica em reconhecer sua diversidade. A compreens ão dessa pluralidade requer, por sua vez, a reconstru ção das trajetórias e conteúdos especí ficos dos nacionalismos nos diferentes contextos hist órico-sociais e uma taxonomia que torne menos opaca as diferenças de cada exemplo. Assim, embora possamos encontrar o vocabul ário nacionalista como parte integrante de um variado xadrez pol í tico, cultural e ideológico, a partir da segunda metade dos anos 50 constata-se o desenvolvimento de um movimento nacionalista bastante atuante e em crescimento acentuado. No plano da hist ória polí tica recente do paí s é justamente esse movimento dos anos 50 e 60 que marcou profundamente o pensamento e a a ção de polí ticos, intelectuais, sindicalistas, trabalhadores, padres e estudantes e ainda hoje serve como refer ência, por exemplo, no debate sobre privatizações. Desenvolveremos neste artigo sobretudo tr ês questões: a relação entre nacionalismo e desenvolvimento auto-sustentado, já que tal reflex ão foi um dos problemas centrais enfrentado pelo movimento; as bases programáticas das duas tend ências mais expressivas do per í odo, isto é, o nacional-desenvolvimentismo, uma vertente liberal preocupada com a moderniza ção, e o nacionalismo econômico, uma corrente vinculada aos interesses populares que se tornou a perspectiva dominante das esquerdas; e, finalmente, a reflexão sobre a reforma agr ária no interior do debate nacionalista.
NACIONALISMO E DESENVOLVIMENTO AUTO-SUSTENTADO A emergência do nacionalismo enquanto fenômeno polí tico está relacionado com o fim do Estado oligárquico e com a subseq üente polí tica de massas implantada no pa í s. A depress ão econômica resultante da crise de 1929 afetou profundamente a Am érica Latina que, na época, reunia nações com economias marcadamente exportadoras de artigos prim ários. A incapacidade de manter os pre ços desses produtos e o fluxo das exporta ções deixou economicamente arrasada a maior parte do subcontinente e gerou reflexos polí ticos surpreendentes. Eric Hobsbawm observou, por exemplo, que doze paí ses latino-americanos mudaram de governo em 1930-1931, sendo dez deles atrav és de golpes militares7. Regimes polí ticos genericamente qualificados de nacionalistas, populistas ou nacionalpopulares - lembrados pela presen ça carismática de lí deres como Perón na Argentina, Vargas no Brasil, Cárdenas no México e José Maria V. Ibarra no Equador - emergem em meio a crise dos anos 30 e 40. A agenda nacionalista do populismo latino-americano apresentava-se de duas maneiras essenciais. Em primeiro lugar, por meio de decis ões polí ticas de impacto, definidas como indispens áveis à soberania e
ao desenvolvimento econ ômico nacional tais como a expropria ção de companhias de petr óleo estrangeiras no México, a criação da PETROBRÁS no Brasil e a nacionaliza ção das ferrovias na Argentina. Em segundo lugar, o populismo agiu deliberadamente no sentido de integrar as camadas populares ao sistema polí tico então vigente através da retórica popular, da propaganda polí tica, do reconhecimento geralmente tutelado de organiza ções sindicais e camponesas, da estrutura ção de partidos de massa e do atendimento de algumas demandas sociais e trabalhistas. Na retórica populista, a identificação do "povo" com a "na ção" ocultava as diferenças de classe e de interesses presentes no Estado e na sociedade, permitindo a cria ção de uma comunidade nacional imaginária e totalmente homogênea. Desde ent ão "povo" e "na ção" passaram a ser verdadeiros sinônimos e o nacional-populismo tornou-se uma ideologia de integra ção social fundamental à manutenção dos novos Estados emergentes da crise do sistema de poder olig árquico. No Brasil, o reflexo pol í tico da crise de 1929 foi a Revolu ção de 1930, e na avalia ção de certos especialistas, a revolu ção não foi produto de um conflito radical entre setores arcaicos, vinculados à atividade agrário-exportadora, e setores modernos, comprometidos com a industrialização8. O que de fato ocorreu foi o colapso do modelo econ ômico agrário-exportador devido à crise internacional, levando ao desmoronamento o Estado e à polí tica oligárquica. O novo Estado emergente da crise estruturou-se ampliando sua base social devido à dificuldade de qualquer classe ou fra ção de classe exercer uma possí vel hegemonia polí tica. Além disso, o Estado populista caracterizou-se por uma prática polí tica ambí gua: garantiu certos ganhos reais às camadas populares e at é mesmo apelou freqüentemente para sua mobilização, mas igualmente obstruiu uma poss í vel organização independente das mesmas, viabilizando a manuten ção da dominação. Essa f órmula polí tica ficou consagrada em 1930 na afirmação de Antônio Carlos" façamos a revolução antes que o povo a fa ça"9. A mesma lógica polí tica de antecipar-se às camadas populares e manter, com isso, o dom í nio polí tico esteve presente na solução de Perón de "sacrificar uma parte para salvar o resto" e na proposta mexicana de" dar um centavo para ganhar um peso" 10. O nacionalismo caracter í stico dos anos 1930-64 configura-se inicialmente como uma ideologia do Estado e esteve associado n ão só ao populismo de Get úlio Vargas, mas também ao desenvolvimentismo de Juscelino Kubitschek e ao reformismo social de Jo ão Goulart, isto é, às três mais importantes orientações polí ticas daquele per í odo. Mas seria inexato considerar o nacionalismo como uma ideologia exclusiva do Estado brasileiro. A luta pol í tica e ideológica dentro dos partidos, sindicatos e associa ções de intelectuais, estudantes e militares foi matizada pelo vocabul ário nacionalista e entre as in úmeras tendências nacionalistas n ão estatais ent ão existentes, duas, al ém disso, destacaram-se pela amplitude obtida no cen ário da época: o nacionalismo liberal ou nacionaldesenvolvimentismo e o nacionalismo econ ômico ou popular. A campanha "O petróleo é nosso" mobilizando a população a partir de 1943 atrav és das conferências patrocinadas pelo Clube Militar e consagrada, em 1953, com a cria ção da PETROBRÁS, serve como um marco do iní cio da organização do nacionalismo enquanto movimento polí tico preocupado em atingir e mobilizar o mais globalmente poss í vel a sociedade brasileira. Desde ent ão, o nacionalismo deixou de ser uma ideologia predominantemente estatal. Tornou-se tamb ém um movimento polí tico e ideológico da sociedade que, mesmo mantendo rela ções com o Estado e dando apoio a certos governos, não pode ser confundido como um fen ômeno puramente estatal. Como disse Ant ônio Cí cero Cassiano Souza, pode-se "(...) afirmar que a campanha `o petr óleo é nosso' não acabou na cria ção da empresa estatal. Prosseguiu em duas frentes: na consolida ção da empresa e na constru ção simbólica"11. De fato, a campanha do petr óleo foi central para a constru ção do ideário nacionalista, pois segundo o deputado pessedista Jos é Joffily, naquela época um dos pol í ticos nacionalistas mais atuantes, quando se verificou a existência de reservas petrol í feras na Bahia a intelig ência brasileira teve que enfrentar o seguinte impasse:" (...) se h á petróleo, nós temos capacidade de explor á-lo? Temos técnica ou não temos? Devemos entregar à Esso, à Shell ou à Texaco? Ou não"12? Desde então, parte da elite pol í tica e intelectual e progressivamente outros setores organizados da sociedade brasileira, aderiram ao nacionalismo definindo-o como uma ideologia i ndispensável à prática polí tica preocupada e comprometida com o desenvolvimento econ ômico do tipo nacional, independente e auto-sustentado.
Desde o colapso econ ômico de 1929 ficou patente para setores importantes da elite pol í tica e intelectual brasileira a precariedade de economias dependentes de exporta ções e a necessidade de ser forjado um desenvolvimento nacional auto-sustentado. Os nacionalistas dos anos 50/60 s ão herdeiros dessa convicção e construí ram seu ideário em função desse problema central. Na pr ática, defender o desenvolvimento auto-sustentado significava, em primeiro lugar, criticar o modelo econ ômico agrárioexportador e, por extensão, a classe social a ele ligado: a oligarquia latifundi ária. No movimento nacionalista - seja em sua vertente liberal representada, por exemplo, pelos intelectuais do Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB), ou na orienta ção popular, caracterí stica de comunistas, socialistas e trabalhistas -, um dos maiores "vil ões" da ent ão sociedade brasileira (sen ão o maior) era a elite rural historicamente comprometida com a produção de artigos agrí colas para o mercado externo. A opção nacionalista era outra e visava claramente a constitui ção de uma economia auto-centrada, isto é, voltada para o mercado interno. N ão existiria no Brasil uma economia auto-sustentada se ela n ão fosse, portanto, auto-centrada. Daí porque defender este novo padr ão de desenvolvimento significava, em segundo lugar, uma clara disposi ção polí tica no sentido de apoiar a industrializa ção nacional destinada à suprir a demanda interna. O discurso do deputado nacionalista Gabriel Passos (UDN/MG) proferido em novembro de 1957, na C âmara dos Deputados, é exemplar dessa nova disposi ção: (...) [para] um paí s novo como o Brasil, um pa í s cheio de possibilidades e que agora está despertando no campo industrial (...) é preciso, sobretudo, que fique de pé e vigilante a id éia nacionalista para auxiliar e pelo menos minorar a luta daqueles que realmente querem transformar no Brasil a própria riqueza, ao invés de vê-la transformada fora de nossas fronteiras. Porque é certo (...) que um pa í s só se liberta, um paí s só progride quando transforma as pr óprias riquezas. (muito bem) O paí s meramente exportador de mat éria-prima é paí s fadado ao aniquilamento e ao pereci mento"13.
Da mesma forma que os nacionalistas identificaram um "vil ão" social interno, representado pele elite agrária, uma parte deles elegeram tamb ém um "herói" social: a burguesia nacional. Falava-se, ent ão, na necessidade de realizar-se, no pa í s, a revolução democrático-burguesa. A teorização do que seria a "nossa revolução democrático burguesa" ocupou parte significativa da reflex ão dos intelectuais nacionalistas do Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB), e serviu como um forte apelo para que os diversos grupos nacionalistas dessem um apoio mais efetivo e sistem ático ao governo de Juscelino Kubitschek (1956-1961), definido como uma administração comprometida com o processo de industrialização. Na versão isebiana, a defesa da revolu ção democrático-burguesa apontava para a necessidade de uma união entre burguesia nacional, proletariado, camponeses e nova classe m édia - os chamados setores sociais "dinâmicos" ou, em outras palavras, os segmentos sociais interessados na industrializa ção nacional - para combaterem os setores sociais "arcaicos", isto é, os latifundiários, o comércio exportador e a classe m édia tradicional14. A burguesia seria o setor social dirigente pois foi considerada a classe fundamental ao efetivo desenvolvimento econômico auto-centrado (leia-se industrializa ção). Aliás, tal apelo encontrou acolhimento. Se houve um per í odo onde os nacionalistas mantiveram certa coesão, fossem eles liberais ou reformistas de esquerda, esse momento foi o governo JK. Tal conjuntura não se sustentou posteriormente na administra ção João Goulart, quando o nacionalismo popular radicalizou o discurso e pr ática polí tica com a ampla plataforma das reformas de base (agr ária, urbana, bancária, eleitoral etc). No âmago da análise sobre a bipolarização da sociedade brasileira entre setores sociais interessados na industrialização e setores preocupados em manter a economia agr ário-exportadora existia a oposição nação/ anti-nação e interesses nacionais/ interesses estrangeiros. Afinal, n ão era a oligarquia agr árioexportadora uma fração social historicamente associada aos interesses do mercado consumidor externo? Não estava evidente que o Brasil era pouco articulado do ponto de vista econ ômico, social e cultural e que tal quadro derivava do modelo de desenvolvimento agr ário-exportador? Visto de outro ângulo, não seria a industrialização amparada no mercado interno a forma mais indicada para forjar a integração econômica, territorial e social do pa í s? A interpretação da realidade nos termos expostos acima acabou condicionando o apoio de importantes parcelas do movimento nacionalista à revoluçã o democr ático-burguesa, concebida como o meio de simultaneamente superar o subdesenvolvimento, modernizar a sociedade e a economia e de criar, efetivamente, a na ção brasileira. Tal forma de pensar a constru ção da nação fundamentava-se em interesses nitidamente econ ômicos ou, mais precisamente, industrialistas. Era uma concep ção muito próxima do modelo nacionalista alem ão
do século XIX, que identificava o Estado-nacional como um espa ço f ís ico e humano capaz de dar sustentação ao desenvolvimento capitalista 15. Neste tipo de nacionalismo os poss í veis "inimigos internos e externos" não se definem por oposições culturais, étnicas, lingüí sticas ou religiosas. É, ao contrário, um nacionalismo estritamente econ ômico. Reclama, por exemplo, uma posi ção clara do Estado a respeito da industrializa ção, exigindo investimentos em setores estrat égicos e proteção contra a competição estrangeira. Suas oposições também são traçadas em termos econ ômicos, identificando os setores sociais internos e externos que amea çariam o pleno desenvolvimento do capitalismo brasileiro, sem recorrer necessariamente a ideologias racistas e belicosas. Mesmo não tendo um car áter xenófobo como o nacionalismo fascista europeu, é bem verdade que os nacionalismos dos anos 50 terminaram por desenvolver certas atitudes hostis e at é mesmo de enfrentamento armado contra os "inimigos da na ção". No campo da esquerda, cresceu um profundo antiamericanismo ao ser identificado o" imperialismo" com os interesses dos Estados Unidos. As tendências antiamericanas cresceram muito entre a esquerda latino-americana sobretudo ap ós a queda do presidente guatemalteco Jacob Arbenz, em 1954. Isso ficou vis í vel quando o então vice-presidente Nixon visitou alguns paí ses do subcontinente em 1958. Foi apedrejado em Lima, quando tentava entrar na Universidade de S. Marcos para realizar uma palestra 16, sendo igualmente mal recebido em Caracas, logo que chegou ao aeroporto 17. Porém, tal antiamericanismo era antes uma resposta à interferência norte-americana na polí tica interna latino-americana e à dominação das grandes corpora ções econômico-financeiras. No campo daqueles que defendiam o sistema capitalista de produ ção, a defesa do que se entendia por "interesses nacionais" adquiriu entre certos setores um tom policialesco j á nos anos do governo JK. Guerreiro Ramos, um dos membros eminentes do ISEB, sugeriu ser o desenvolvimento sob bases capitalistas mat éria de segurança nacional. Segundo Ramos, os órgãos de segurança deveriam "garantir o governo contra as press ões que ameacem ou neutralizem as suas atividades como propulsor do desenvolvimento"18. Tudo que obstasse o "desenvolvimento nacional", como partidos, grupos de pressão e manifestações da opinião pública deveria estar, segundo Ramos, "sob a mira de nosso aparelho de segurança"19. O fato de o autor ter considerado as fra ções de classes vinculadas à economia agrário-exportadora como as mais perigosas ao projeto nacional-desenvolvimentista não tornava suas considerações menos nocivas ao sistema democr ático. Segundo Ramos:" Em conclusão devemos considerar que devem ser consideradas como adversas aos objetivos nacionais todos os fatores que contribuam para a formação de pressões psicossociais, pol í ticas, ideológicas, institucionais e econômicas, tendentes a debilitar o capitalismo brasileiro"20. A partir da segunda metade dos anos 50 tornou-se cada vez mais freq üente a máxima do movimento nacionalista segundo a qual sem a efetiva emancipa ção econômica não haveria independência nacional. Em outras palavras, uma economia auto-sustentável significava, finalmente, independ ência em relação aos interesses do capitalismo internacional. Dentro deste contexto, o "imperialismo" representava a ameaça externa número um ao desenvolvimento brasileiro. Referindo-se ao nacionalismo, Caio Prado Jr. escreveu em 1955 as seguintes palavras: Como pensamento pol í tico, ele exprime tão-somente a consciência, que adquiriu ponder ável parcela da opinião pública brasileira, da situação dependente e subordinada em que se encontra o Paí s com relação aos grandes centros financeiros e capitalistas do mundo contemporâneo21.
Outras propostas do movimento articularam-se com maior ou menor grau de ades ão à idéia de se criar uma indústria livre do imperialismo tais como monop ólio e investimentos estatais em setores considerados estrat égicos, como energia e a ind ústria de base; controle sobre a entrada de capitais externos e as remessas de lucros; e o Estado como principal organizador do processo de desenvolvimento. Ser nacionalista significava, portanto, ser favor ável à industrialização autosustentada e isso pressupunha um confronto com a oligarquia rural, no plano interno, e com imperialismo, no plano externo. Mas era justamente em rela ção ao imperialismo que nacionalistas liberais e econômicos mais se desentendiam, sobretudo quando se discutia o papel do capital estrangeiro no processo de industrializa ção nacional. Enquanto a esquerda buscava um controle r í gido sobre o ingresso de recursos estrangeiros, dando clara prefer ência aos empréstimos de governo a governo, os liberais apoiavam a pol í tica desenvolvimentista de JK que implementava o Plano de Metas
prioritariamente com investimentos diretos de capital externo. Essas disputas n ão foram equacionadas dentro do amplo e heterogêneo movimento nacionalista, servindo antes para dividi-l o.
NACIONALISMO ECONÔMICO E NACIONAL-DESENVOLVIMENTO O governo de Juscelino Kubitscheck (1956-1961) é especialmente lembrado pela intensa atividade econômica e industrial. O lema do presidente era audacioso: "cinq üenta anos em cinco", isto é, desenvolver rapidamente o paí s, fazendo em cinco anos, ent ão o perí odo de um mandado presidencial, o que normalmente levaria cinq üenta. A operacionaliza ção coroada de sucesso do programa de governo de JK, o Plano de Metas, honrou o compromisso presidencial em acelerar o desenvolvimento econômico nacional, um processo que parece ter sido reconhecido pela popula ção da época. No fim do governo JK uma pesquisa do IBOPE apontava que 80% da popula ção pesquisada na cidade do Rio de Janeiro acreditavam ter o presidente acelerado, de fato, o desenvolvimento brasileiro 22. O Plano de Metas era claramente preocupado com a moderniza ção. Visava aprofundar o processo de industrialização, através de um programa de substitui ção das principais importações efetuadas pelo paí s. Buscava tanto atacar os chamados pontos de estrangulamento da economia, que dificultavam o incremento industrial, quanto incentivar os investimentos privados de capital nacional e estrangeiro 23. Era composto por 30 metas distribu í das entre os setores de energia (metas 1 a 5), transporte (metas 6 a 12), alimentação (metas 13 a 18), ind ústrias de base (metas 19 a 29) e educa ção (meta 30). Bras í lia não constava, inicialmente, no programa de governo de Juscelino. Entretanto, ainda no per í odo de campanha, a constru ção de uma nova capital no interior de Goi ás transformou-se em um compromisso polí tico assumido pelo ent ão candidato à presidência da Rep ública Juscelino Kubitschek. O nacional-desenvolvimentismo de JK tornou-se influente no interior do pensamento nacionalista. Bastante afinado com as id éias presidenciais, mas com um pensamento bem mais cr í tico sobre a realidade brasileira, estava o Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB), reunindo alguns intelectuais influentes como Hélio Jaguaribe, Cândido Mendes, Roland Corbisier, Guerreiro Ramos, Álvaro Vieira Pinto, entre outros. A institui ção intencionava colaborar para a supera ção do subdesenvolvimento, forjando a" ideologia do desenvolvimento nacional" que, segundo seus membros, ajudaria a promover a "revolu ção democrático-burguesa" no Brasil. Um diagnóstico de Hélio Jaguaribe bastante aceito pela institui ção afirmava estar o Brasil passando por um momento crucial de seu desenvolvimento, definido como" transi ção de fase". Tal etapa caracterizava-se pela capacidade da economia deixar de organizar-se exclusivamente para atender os interesses" metropolitanos", pois come çava a direcionar-se também para a produção de bens para o consumo interno. Trava-se, ademais, de um per í odo iniciado em meados de 1930 com o processo de industrialização24. Para Jaguaribe, na "transição de fase" existiam condi ções estruturais para a superação do estado de depend ência e subdesenvolvimento que marcavam a totalidade da realidade nacional. As categorias "subdesenvolvimento" e "semicolonialismo" serviam para qualificar a vida brasileira de forma global, resultando a idéia de que n ão éramos somente economicamente dependentes, mas também dependentes do ponto de vista cultural. A depend ência tornava a nossa cultura "inaut êntica", isto é, completamente desvinculada da realidade nacional e incapaz de expressar e criticar o subdesenvolvimento, passo indispens ável à superação do problema25. Para vencer o subdesenvolvimento os isebianos nacionalistas postulavam duas condi ções fundamentais: a exist ência de certas condições estruturais, já disponí veis devido ao processo de industrializa ção verificada a partir de 1930 e a "previa tomada de consci ência" da condição de subdesenvolvimento ou semicolonialismo que se queria superar26. O papel do ISEB era forjar essa consci ência crí tica, formulando a "ideologia do desenvolvimento nacional". Mas superar o subdesenvolvimento significava garantir o desenvolvimento nacional em bases capitalistas, pois na vis ão isebiana esse era o único padrão de desenvolvimento capaz de realizar na
conjuntura da "transição de fase" a industrializa ção, a integração econômica e a independ ência do paí s. Não por acaso Roland Corbisier afirmava categoricamente que o objetivo do ISEB era viabilizar a "revolução democrático-burguesa" no Brasil 27. Dentro desse contexto, o governo de Juscelino Kubitschek, caracterizado pelo ambicioso Plano de Metas que visava o aprofundamento da industrialização sob bases capitalistas, era n ão apenas afinado com a doutrina da institui ção, mas sobretudo considerado como o mais adequado às condições estruturais do paí s na etapa da "transi ção de fase". O apoio do ISEB ao governo e deste à instituição foi marcante durante toda a administra ção de JK. O significativo apoio dos nacionalistas ao governo JK n ão se resumiu ao con úbio entre governo e isebianos. Existia uma predisposi ção do movimento em apoiar as chamadas pol í ticas "progressistas". Eram consideradas "progressistas" todas as medidas governamentais que estivessem de acordo com as "teses nacionalistas" que recebiam, no entanto, defini ções bastante diferenciadas. Essa postura fez com que durante todo o governo JK inexistisse uma posi ção clara dos nacionalistas frente àquela administração, ora pendendo para a cr í tica ora para a colabora ção. Não raras vezes o nacionalismo foi tomado como sinônimo de desenvolvimentismo. Em um artigo publicado por J. R. Vasconcelos fica bastante claro porque a pol í tica desenvolvimentista estava sendo considerada nacionalista. Ao comentar a atuação econômica do governo, marcado por investimentos em estradas, em sider úrgicas, em usinas hidrelétricas, na marinha mercante e pela constru ção de Brasí lia, Vasconcelos concluiu que JK realizava iniciativas concretas no sentido da emancipa ção econômica do paí s. Mais que isso, segundo Vasconcelos: "(...) o Presidente Juscelino trava uma batalha contra o imperialismo atrav és da luta contra o subdesenvolvimento" 28. Para muitos, a promoção do desenvolvimento econômico viabilizava emancipa ção nacional frente aos interesses estrangeiros, sendo por isso considerada uma a ção essencialmente nacionalista. N ão era um mero acaso, portanto, o sucesso que JK fazia nos meios nacionalistas e progr essistas. Foi o primeiro candidato do perí odo populista a concorrer às eleições presidenciais munido de um programa de governo com propostas claras de a ção29. No decorrer de seu governo ele n ão só pôs em prática o Plano de Metas, como igualmente o fez com bastante sucesso. O reconhecimento e a aprova ção do novo estilo polí tico de JK foi r ápido, tal como demonstra o depoimento de Jos é Joffily, então deputados do Partido Social Democrático (PSD) pela Paraí ba, habitué do ISEB e integrante da Frente Parlamentar Nacionalista (FPN): Eu acompanhei, por exemplo, a ca mpanha polí tica de Dutra, Getúlio Vargas, Cristiano Machado, e nenhum desses governantes falou a linguagem do desenvolvimento. N ão era do estilo da época. Juscelino fazia discursos, por todo o Brasil, sempre com uma nota constante: a estatí stica da produção de energia elétrica e transporte30.
O crescimento da economia resultado da implementação do Plano de Metas n ão foi suficiente, contudo, para agradar todo o movimento, especialmente os nacionalistas econ ômicos. Um dos centros de excelência dessa fac ção do nacionalismo foi a Revista Brasiliense. A revista lançou seu primeiro número em outubro de 1955. At é o seu fechamento, em fevereiro de 1964, ela foi um importante veí culo de discuss ão e difusão de idéias, contando com diversos colaboradores como Caio Prado Jr, Elias Chaves Neto, Heitor Ferreira Lima, Everardo Dias, Paulo Dantas, Rui Guerra, Paulo Alves Pinto, Álvaro Farias, Florestan Fernandes, entre outros. Segundo Heitor Ferreira Lima, a revista visava (...) congregar os estudiosos dos assuntos brasileiros interessados em examinar e debater os problemas econômicos, sociais e polí ticos, sem fabricar ou difundir ilus ões funestas, escondendo nosso atraso econômico, dissimulado no extraordin ário desenvolvimento dos centros urbanos31.
A presença dos nacionalistas econ ômicos nos debates parlamentares tamb ém era expressiva. De forma crescente o Congresso Nacional tornou-se palco de discuss ões sobre a reforma agr ária, a reforma eleitoral e sobre o papel colonizador do capital estrangeiro. O nacionalismo econ ômico foi a perspectiva elaborada pela esquerda brasileira. Os colaboradores mais f req üentes da Revista Brasiliense como Elias Chaves Neto, Caio Prado Jr., Heitor Ferreira Lima e Caliu Chade tinham, por exemplo, inequí vocas relações com o PCB. Entretanto, a conviv ência desses intelectuais com o partido nem sempre foi pací fica, como atesta a expuls ão de Caliu Chade da legenda 32. Como observou Leôncio Martins Rodrigues,
(...) apesar da grande influência do PCB nos meios intelectuais, estes não chegaram a exercer correspondente influência na linha polí tica e ideológica do PCB, assim como em suas an álises da sociedade brasileira33.
A presença de partidários do PCB no movimento nacionalista viabilizava a identifica ção do ideário com o comunismo. Entretanto, nem todos os nacionalistas econ ômicos pertenciam ou haviam pertencido aos quadros do PCB. Outros, al ém disso, estavam longe de almejar o regime socialista ou o comunista para o paí s. O nacionalismo econ ômico tinha certas caracterí sticas particulares, mas n ão formava um bloco monolí tico do ponto de vista pol í tico-partidário. Possuí a também significativas diferenças ideológicas. A preocupação com o destino das camadas populares e com os efeitos do capitalismo internacional sobre a economia nacional criava entre eles um universo comum de di álogo. Adotaram uma posição reformista diante dos problemas que enfrentavam e isso rendia-lhes a alcunha de vermelhos. Para os integrantes da Frente Parlamentar Nacionalista, por exemplo, as solu ções mais radicais para certos problemas tornavam obsoleta a doutrina comunista no Brasil. Em abril de 1957, o deputado udenista Seixas Dória (SE) afirmou que a posi ção nacionalista era "inteira, total, absoluta e integralmente eqüidistante de quaisquer liga ções ou vinculações ideológicas da direita ou da esquerda"34. Ainda segundo o deputado: "(...) o Movimento Nacionalista est á, praticamente, destruindo o Partido Comunista"35. Opinião bastante semelhante era compartilhada pelo deputado Gabriel Passos (UDN/MG): Quando estamos de pé na defesa do programa nacionalista, defendemos o interesse nacional; não.estamos protegendo o comunismo, nem confundindo as nossas com as aspirações comunistas. Não nos arreceiamos (sic), por outro lado, de ser (sic) tachados de filo-comunistas (...) porque estamos imbu í dos de nossa pr ó pria id éi a, da idéia brasileira e nacionalista. (Muito bem; palmas) 36.
A Frente Parlamentar Nacionalista (FPN) reunia, no Congresso Nacional, os setores pol í ticos progressistas que estavam divididos em diferentes legendas partid árias. Sua criação foi iniciativa, ali ás, da chamada "Ala Moça" do Partido Social Democrático (PSD). A Ala Mo ça reunia polí ticos jovens do tradicional PSD que buscavam renovar tanto o conte údo programático do partido, quanto suas pr áticas polí ticas mais correntes. Segundo Joffily, era preciso adaptar o PSD às demandas emergentes com o processo de industrializa ção e urbanização. O novo e crescente eleitorado, classificado por Joffily de "flutuante", tendia a apoiar plataformas progressistas. A sobreviv ência polí tica do PSD dependia, portanto, da ampliação da plataforma partidária. Esta deveria incorporar temas como a industrializa ção, a revisão da estrutura fundiária, a ampliação dos serviços públicos, o voto dos analfabetos e a extens ão da legislação trabalhista ao meio rural. Segundo Joffily: Não se compreendia mais a exist ência de um partido voltado para o latif úndio, comprometido com o Estado cartorial. Ach ávamos que tudo aquilo ia perecer mais cedo ou mais tarde, e n ão querí amos que aquele barco soçobrasse às nossas custas também...37.
A plataforma modernizadora da Ala Mo ça ameaçava, contudo, os interesses tradicionais do PSD. As velhas lideranças consideravam o grupo uma verdadeira dissidência partidária. Os conflitos entre velhas e novas lideranças impeliram o grupo a procurar apoio fora da legenda e, n ão por acaso, os jovens pessedistas foram os polí ticos que mais se dedicaram à criação da Frente Parlamentar Nacionalistas38. Na FPN, a Ala Mo ça encontrou interlocutores progressistas do PTB, da UDN e de outros partidos menores. Também nesses partidos surgiam grupos mais progressistas, como o Grupo Compacto do PTB e a Bossa Nova da UDN. Em maior ou menor grau, todos defendiam certas reformas estruturais e procuravam na FPN o apoio que muitas vezes n ão tinham em suas respectivas agremiações partidárias. A associação entre nacionalismo e comunismo foi amplamente denunciada pelos deputados da FPN como uma forma de enfraquecer o movimento, uma vez que o PCB estava na ilegalidade. De acordo com o deputado Adail Barreto (UDN/CE): "(...) não há surpresa alguma em mais estas tentativas de se combater o nacionalismo brasileiro procurando apontá-lo como simp ático ou acessí vel às idéias comunistas (...) o que é uma inf âmia (...)"39.
Muitos nacionalistas pregavam a independ ência ideológica do ideário em relação ao PCB. Queriam defender as teses do movimento sem serem tachados de comunistas. Para o deputado Neiva Moreira (PTB/SP) "(...) os nacionalistas brasileiros n ão precisam de atestado de ideologia"40. E, segundo o
deputado Dagoberto Sales: "(...) n ão vejo motivo para condenar-se o movimento nacionalista porque a ele aditam esquerdistas(...)" 41. Para os nacionalistas econ ômicos da Revista Brasiliense, o essencial era promover o desenvolvimento econômico através de uma industrializa ção planejada, capaz de incorporar a popula ção ao sistema econômico com uma efetiva eleva ção do padrão de vida42. Duas quest ões fundamentais balizavam esse projeto: a necessidade de combater o "imperialismo" e de realizar um conjunto de reformas nas estruturas sociais, pol í ticas e econ ômicas, especialmente a reforma agr ária. Os nacionalistas econômicos criticavam a nova tend ência internacional que descartava os empr éstimos de governo a governo substituindo-os por investimentos diretos de capital privado do exterior. As seguintes palavras do deputado Adail Barreto (UDN/CE) s ão exemplares. (...) nós da Frente Nacionalista temos declarado em toda parte por onde andamos, aqui na tribuna da Câmara ou nas semanas nacionalistas feitas em diversos Estados: somos contra o capital colonizador, venha ele de onde vier (...)43.
Heitor Ferreira Lima considerava a nova tend ência financeira internacional como mais um mecanismo de anexação dos paí ses subdesenvolvidos ao sistema imperialista. Comparava a instru ção 113 da SUMOC de 1955, de autoria de Eug ênio Gudin, que permitia e incentivava as invers ões diretas de capital internacional no Brasil, ao tratado leonino de 1810 assinado entre D. Jo ão e a Inglaterra, condenando ainda dois de seus efeitos: a desnacionaliza ção da economia e a drenagem de capital para o exterior a tí tulo de royalties, dividendos e assist ência técnica44. Os nacionalistas econ ômicos apontavam para a necessidade de disciplinar a remessa de lucros, royalties e dividendos e defendiam o princ í pio de intervenção estatal em empresas estrangeiras quando estas estivessem ferindo os interesses nacionais. Insistiam que os setores b ásicos da economia como energia e indústria pesada deveriam ser desenvolvidos a partir de investimentos estatais e controlados pelo Estado. No conjunto, todas essas medidas visavam evitar que o desenvolvimento brasileiro se fizesse às custas da "mis éria do povo" e de uma perda de soberania que inevitavelmente levaria o Brasil a dobrar-se frente aos interesses imperialistas. O mero crescimento econ ômico não era considerado suficiente para superar os problemas socioeconômicos do paí s. Preconizavam, desse modo, a reforma agrária como meio de recupera ção social e econ ômica das massas rurais e uma luta aberta contra os interesses imperialistas e contra a participa ção indiscriminada de capital estrangeiro no processo de desenvolvimento. Por defenderem essas premissas, colocaram-se em rota de colis ão com o governo JK, especialmente no que se referia aos investimentos externos. Os nacionalistas econ ômicos ficaram, a bem da verdade, bastante divididos quanto ao governo JK: uns nutrindo um sincero entusiasmo pelo impulso econ ômico daquele perí odo, outros completamente céticos e mesmo preocupados com os rumos da administra ção JK. A Revista Brasiliense foi certamente um dos locais onde n ão apenas melhor se articulou o nacionalismo econ ômico, como igualmente traçou uma oposição bastante fundamentada ao governo JK. Elias Chaves Neto, um dos intelectuais mais ativos dentro da revista, em um artigo sobre a inaugura ção de Brasí lia escreveu ser a nova cidade o "(...) sí mbolo de uma nova polí tica que, como uma psicose vai arrastando todos os brasileiros - a polí tica desenvolvimentista" 45. Criticou severamente a "onda de irreflex ão causada pela constru ção de Brasí lia"46 que entre outras coisas impedia que se desfizesse a confus ão entre o nacionalismo e o desenvolvimentismo, tão comum naqueles anos. Tal confusão era fruto do car áter ambí guo do governo de Juscelino que, segundo Chaves Neto, era: (...) nacionalista quando procura fomentar o progresso por iniciativa estatal ou toma medidas que visam proteger o nosso trabalhador e o consumidor nacional; francamente antinacional quando, para atrair para o nosso Paí s o capital estrangeiro do qual faz depender o desenvolvimento do Pa í s, (cujo mérito atribui-se a si) se dobra a todas imposições daquele capital47.
Para Chaves Neto o elemento central para se distinguir o nacionalismo do desenvolvimentismo era a orientação econômica no sentido de permitir ou n ão a internacionalização da economia. Em resumo, ele não considerava o desenvolvimentismo uma pol í tica nacionalista, pois estava favorecendo a integração do Brasil no sistema imperialista. Chaves Neto defendia uma industrializa ção sob bases nacionais. Percebia, ao contrario dos i sebianos, a viabilidade do Brasil se desenvolver e industrializarse e surgirem, concomitantemente, novas formas de explora ção e dependência externa. Advertia, por
exemplo, que o baixo custo da m ão-de-obra nacional era o grande atrativo para a invers ão direta de capitais estrangeiros no Brasil. E esses capitais (...) viriam criar aqui, n ão uma indústria destinada a suprir as necessidades de consumo do nosso povo, mas com vistas à exportação dos seus produtos, entrosando-se o Brasil no sistema econômico das nações imperialistas, no qual o nosso povo desempenhará o papel de mão-de-obra mal remunerada, com exceção daquele parte da burguesia nacional que terá unido os seus interesses ao do capitalismo internacional"48.
Dentro desse contexto, considerava o desenvolvimentismo e o governo de JK" entreguistas". Alertou ainda que o movimento nacionalista, ainda despreparado para compreender as diverg ências entre o programa governamental e o nacionalismo, estava, na realidade, apoiando um governo contradit ório, mas sobretudo "entreguista". Mesmo com as advertências de Elias Chaves Neto, os nacionalistas s ó foram tomar uma posi ção mais clara sobre o desenvolvimentismo no final do governo JK e outros somente alguns anos depois. A derrota do Marechal Lott, candidato dos setores nacionalistas nas eleições presidenciais de 1960, abalou profundamente o movimento nacionalista, for çando-o a uma severa autocrí tica. Em artigo publicado na Revista Brasiliense, Caliu Chade comentou o manifesto do Movimento Nacionalista Brasileiro (MNB), realizado depois da derrota eleitoral: Passada as eleições, chega o MNB à conclusão de que: `Em nenhum per í odo governamental, os monop ólios econômicos estrangeiros penetraram no Brasil, tão fundamente como fizeram entre 1956 e 1960; em nenhum perí odo encontraram tantas facilidades e tantos privilégios a estimular essa penetração.' Isso agravado, como diz o manifesto, pelo fato de que tal penetração afetou extraordinariamente os setores básicos da economia nacional49.
O comentário de Caliu Chade foi ainda mais longe. Afirmou que durante o governo JK o desenvolvimentismo, agora desmascarado pelo MNB, foi amplamente confundido com o nacionalismo, questão já alertada por Elias Chaves Neto. Para Chade, al ém disso, o MNB errou em duas avalia ções: apresentou a candidatura do Marechal Lott como garantia de continuidade do Programa de Metas, transformando Juscelino no "nacionalista n úmero um" do paí s; e supôs estar o povo do lado do desenvolvimentismo, avaliação que a derrota eleitoral de Lott estava naquele momento desqualificando. Finalmente, diagnosticou que o MNB, embora estivesse se fortalecendo, (...) continuava sendo, por ém, um movimento de c úpulas partidárias, sindicais e estudantis. Falta-lhe um efetivo conteúdo de massas populares. (...) Milhões de brasileiros não identificam ainda o programa do movimento nacionalista com os seus interesses quotidianos. 50.
Alguns intelectuais do ISEB tamb ém fizeram uma autocrí tica depois de finda a administra ção Kubitschek. Cândido Mendes escreveu em 1963 que "(...) a expans ão industrial do paí s ressuscitou a relação de dependência metropolitana (...)"51, em uma clara refer ência ao desenvolvimento de um capitalismo dependente em fun ção da operacionalização do Plano de Metas. Um maior "conte údo de massas" e uma mobilização popular mais ampla s ó ocorrerá no movimento nacionalista posteriormente, no governo de João Goulart, em torno das chamadas reformas de base (agr ária, urbana, universitária, bancária etc). Neste perí odo, observa-se uma clara radicalização de certos setores do movimento nacionalista e uma distinção bem mais consistente entre nacionalismo e desenvolvimentismo. Como sabemos, entretanto, esse impulso radical foi interrompido pelo golpe pol í tico-militar de 1964 e pelo posterior endurecimento do regime.
REFORMA AGRÁRIA, MODERNIZAÇÃO E CIDADANIA Existia certo consenso entre comunistas, esquerda nacionalista e nacionalistas liberais a respeito da necessidade de uma reforma agrária no paí s. Para todos eles, a oligarquia rural representava o latif úndio improdutivo ou pouco rentável e um setor social e pol í tico arcaico, isto é, avesso aos novos interesses industriais e democr áticos. Desde a era Vargas a coloniza ção e a reforma agr ária eram interpretados como fatores indispens áveis à modernização da agricultura, à formação de um mercado interno consumidor e à efetiva industrialização do paí s52. Tal perspectiva ganhou nova força entre nacionalistas dos anos 50 e sobretudo os membros do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) destacaram-se na luta pol í tica pela reforma agr ária. Para o deputado Josu é de Castro (PTB/PE),
(...) é hoje de consenso de todas as na ções que a estrutura agrária brasileira, arcaica, está superada, e não satisfas às necessidades da nossa expansão econômica. Todos nós que nos batemos pela emancipação econômica brasileira, estamos certos de que só podemos alcançar nosso objetivo através da industrialização intensiva. Temos consciência de que não se atingirá esse estágio, sem uma agricultura suficientemente forte, estruturada em bases racionais, de modo que forneça as matérias-primas indispensáveis à industrialização e os bens de subsistência necessários à alimentação das massas que se deslocarão do campo para a ind ústria53.
Enquanto Josué de Castro reclamava por um setor agropecu ário moderno e racional, que sustentasse o processo industrial, e via na reforma agr ária um meio de atingir tal objetivo, outros deputados ainda salientavam que a industrializa ção também dependia de uma profunda distribuição de terras, capaz de ampliar o mercado consumidor nacional. Como explicava o deputado Manoel de Almeida (PSD/MG): Não podemos olvidar uma grande verdade: se elevarmos o padrão de vida dos quarenta milhões de seres humanos, que temos espalhados pela nossa hinterlândia, estaremos fazendo crescer o nosso mercado interno na mesma proporção. (...) Em outras palavras, o atual ponto de estrangulamento da economia nacional é o estado de miserabilidade em que vive 65% das nossas massas populacionais no interior (...) Mas não haverá a mí nima possibilidade de levantarmos os n í veis de vida dessa pobre e infeliz população rural brasileira sem a Reforma Agrária"54.
Opinião semelhante era externada pelo petebista Fernando Santana (BA), para quem a reforma agr ária não significava uma "exigência revolucionária", mas antes uma medida para atender a ind ústria nacional que se encontrava "(...) sem meios de se desenvolver, uma vez que seu mercado se tornou inelástico (...)"55. Também tornava-se cada dia mais evidente as disparidades de desenvolvimento entre os mundos rural e urbano. Segundo a fraseologia da época, o litoral (cidade) desenvolvia-se e modernizava-se, enquanto o interior (campo) sucumbia na mis éria e no subdesenvolvimento. Para o deputado Rui Ramos (PTB/RS) tais disparidades já não representavam "(...) apenas uma quest ão de desigualdade econômica ou diferença social. É muito mais. E chega a ser a coexist ência de duas culturas, de duas épocas, na mesma Hist ória."56. Reconhecia a importância da reforma agrária distributiva de terras para solucionar tais problemas e recomendava tamb ém a criação de "governos rurais", isto é, uma espécie de câmara distrital de vereadores para cuidar da administra ção rural, estabelecer e cobrar taxas, elaborar e executar programas e obras e contratar servidores 57. Entre os seguimentos mais radicais, o subdesenvolvimento e a mis éria do povo brasileiro resultavam principalmente da presen ça espoliadora dos interesses do capital estrangeiro no contexto da economia nacional (imperialismo) e, no plano interno, do latif úndio, especialmente o improdutivo. Propunham um amplo programa de reformas de base. Nas palavras do petebista Fernando Ferrari (PTB/RS): "Se dependesse de nós, se dependesse do nosso partido apenas, bosquejar esses traços da reforma, gostarí amos de colocar na cúpula a reforma administrativa; em seguida, as reformas rurais; depois o controle sobre os investimentos estrangeiros; por fim, ou junto, o Nordeste"58.
A esquerda nacionalista responsabilizava a concentra ção fundiária pelas péssimas condi ções de vida da população rural, pela incapacidade do Brasil produzir os alimentos necess ários à população e ainda considerava o latif úndio como um dos principais entraves à constituição de um mercado interno consumidor que sustentasse um desenvolvimento industrial voltado para o mercado interno. Ademais, fazia uma distinção bastante clara entre colonização e reforma agrária. Ambas deveriam privilegiar a pequena propriedade, mas enquanto a primeira deveria direcionar-se para as regi ões despovoadas do Centro-oeste e Norte, a reforma agr ária era, como explicava o nacionalista Fernando Santana (PTB/BA), "(...) exigência para áreas densamente povoadas, onde existem popula ção consumidora e cuja as terras sejam enfeudadas" 59. O envolvimento dos nacionalistas no debate sobre a reforma agr ária também se relacionava com a necessidade de organizar, ou no m í nimo acompanhar, as mudan ças sociais que come çavam a transformar o interior. A novidade era a a ção polí tica camponesa que se tornara relativamente autônoma, organizada e consciente de seus objetivos, amea çando interesses seculares e provocando disputas entre a Igreja Cat ólica, o PCB e o trabalhismo, pois todos buscavam a hegemonia sobre a organização dos trabalhadores rurais. Mas o fortalecimento das Ligas Camponesas e a crescente sindicaliza ção rural gerava entre as oligarquias regionais bastante mal-estar. O decreto-lei 7.038 de 10 de novembro de 1944 garantiu o direito de sindicalização dos trabalhadores rurais. Na pr ática, entretanto, a resist ência conservadora
impedia que os sindicatos rurais fossem legalizados. At é 1955 apenas cinco sindicatos tinham sido reconhecidos pelo Minist ério do Trabalho. Mesmo quando legalizados, a press ão contra o bom funcionamento dos mesmos era corriqueira. O deputado nacionalista Frota Moreira (PTB/SP) denunciava em junho de 1957, por exemplo, a a ção violenta e ilegal da pol í cia contra o Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Tabatinga, no estado de S ão Paulo60. Embora todas as dificuldades crescia o número de sindicalizados, mas os direitos previstos nas Leis do Trabalho de 1943 n ão haviam sido garantidos, ainda, à categoria. Para fazer face a um mundo rural em transforma ção, existiam diversas propostas de reforma agrária, então entendida muito amplamente como qualquer a ção social, assistencial ou econ ômica aos agricultores, fossem eles trabalhadores sem terra, pequenos, m édios ou grandes propriet ários. Mas para a esquerda nacionalista a reforma agr ária tinha um sentido muito especí fico e, dentre as inúmeras propostas sobre a quest ão, duas eram consideradas inadi áveis: a criação do regime jurí dico do trabalhador rural e a reforma agr ária distributiva de terras. Em 1956 foi realizado em Recife a IV Confer ência Rural Brasileira, reunindo federa ções e associa ções rurais de vários estados. Nesta ocasi ão foi recomendado à instituição de uma lei agr ária que teria um fundo para desapropriações por interesse social, constitu í do através da taxação de terras improdutivas. Foi sugerido também a criação do Estatuto do Trabalhador Rural, que deveria regulamentar a jornada de 8 horas, estabilidade e contrato de trabalho. O deputado petebista Fernando Ferrari elaborou o projeto do Estatuto do Trabalhador Rural, rejeitado pela C âmara dos Deputados em junho de 1957. Reapresentou o mesmo projeto com algumas modificações, mas este s ó foi efetivamente aprovado em 1963, em plena crise do governo Jo ão Goulart61. Segundo Ferrari, autor do projeto do Estatuto do Trabalhador Rural, Sustento cada vez mais que propriedade e desapropriação são, por assim dizer, elos de uma mesma corrente. S ão pratos de uma só balança, cujo fiel é o interesse público. (...) Desde já, entretanto, podemos realizar a marcha para os campos. Como? Votando a lei que institui o regime jur í dico do trabalhador rural. Que democracia é esta, onde n ão falam os direitos mais sagrados de 2/3 de brasileiros, que vivem nos campos como animais, sem direitos de espécie alguma62?
A bancada trabalhista no Congresso tinha claro os pontos principais de uma poss í vel reforma rural. Esta deveria prever a distribui ção de terra, com assist ência governamental credit í cia e tecnológica, e criar o Estatuto do Trabalhador Rural, estendendo a legisla ção social e trabalhista aos trabalhadores da agricultura e regulamentando as rela ções entre proprietários e parceiros. Para o deputado Uniro Machado: (...) desde o tempo do saudoso Presidente Vargas, desde as pregações do nosso eminente doutrinador Alberto Pasqualine que a bancada trabalhista se vem batendo pela reforma agrária... Ela não diz respeito apenas à extensão da legislação social ao trabalhador do campo, conforme foi dito. Al ém de uma melhor divis ão e distribuição da terra do Pa í s, além de medidas complementares de assistência ao trabalhador rural, é também necessária a extensão da legislação social ao trabalhador do campo, por que tanto vem lutando o l í der de nossa bancada, Sr. Deputado Fernando Ferrari63.
Se o estatuto e a desapropria ção já assustavam a oligarquia rural, a situa ção se deteriorava ainda mais quando surgiam as propostas mais radicais: a reforma agr ária baseada no interesse social e sem indenização aos latifundiários desapropriados. Osvaldo Lima filho (PTB/PE) criticava abertamente, por exemplo, o dispositivo constitucional da Carta de 1946 que estabelecia a "pr évia" e "justa" indenização em dinheiro às desapropriações de terras. Para o deputado, (...) se tornou verdadeiramente impossí vel a realização da reforma agrária ao se estabelecer que a desapropriação se faria apenas mediante a prévia e justa indenização em dinheiro. (...) Na verdade, devemos ter coragem de afirmá-lo: aquilo de que padece este pa í s é possuir vinte milhões de semiescravos. A abolição da escravatura ainda não se realizou no Brasil integralmente (...). (...) o trabalhador rural neste Paí s não tem direitos. A ele n ão se estende a legislação trabalhista; ele trabalha de sol a sol, acorda de madrugada e entra pela noite: não tem direito a f érias, a salário-mí nimo, a nenhum dos benef í cios que a legislação já assegura a todos os trabalhadores das nações civilizadas64.
O deputado tinha uma vis ão ácida sobre a formação da estrutura agr ária nacional, baseada nos privilégios das concess ões reinóis de sesmarias e na hist órica e sistem ática prática do roubo de terras através de cercamentos, expuls ões violentas de camponeses e da grilagem. Para ele, se a na ção indenizasse as terras de latifundi ários
(...) iria fazer não a reforma agrária, mas conferir prêmios aos latifundi ários: emitiria 100 ou 200 bilh ões de cruzeiros,. para pagar aos latifundiários... cujas propriedades, do ponto de vista histórico, na maioria, são resultado da espolia ção, do saque, da violência. (...)... os tí tulos dessas propriedades nem sempre são limpos e honestos, sobretudo nas grandes propriedades65.
A revisão da estrutura fundiária ganhava corpo no interior do debate nacionalista. A reforma agr ária relacionava-se com o projeto de industrializa ção e com a quest ão da necessidade de melhorar o padr ão de vida rural. Preconizava-se a coloniza ção das áreas qualificadas de "vazios demogr áficos" e, também, a recolonização de áreas já ocupadas. O tema tornou-se tamb ém um dos maiores centros de interesse da agr ária no Revista Brasiliense. O ensaio de Caio Prado Jr., Contribuiçã o para a análise da quest ão 66 Brasil , estabeleceu contundentemente a orienta ção da revista sobre o problema agr ário brasileiro. Entre as contribuições do artigo figurava, em primeiro lugar, a distin ção das categorias sociais que compunham a população rural, desmontando os subterf úgios ideológicos que igualavam os grandes proprietários e a massa miser ável do campo. Como explicava o autor: A grande exploração, com sua produção comercial, representa o empreendimento agromercantil de uma classe socialmente bem diferenciada e caracterizada no conjunto da população rural: os grandes proprietários e fazendeiros, que aliás não se enquadram e integram propriamente naquela popula ção, a não ser pelo fato de seu negócio ter por objeto a produção agrária, e de eles disporem para isso, como classe, da maior e melhor parcela da propriedade fundiária67.
De acordo com Caio Prado Jr., a literatura social e econ ômica e as diretrizes da administra ção pública escamoteavam as verdadeiras raz ões das péssimas condições de vida da popula ção rural. A visão oficial equivocava-se ao interpretar a pobreza rural como resultado do baixo n í vel técnico do setor agropecuário e de seus problemas de comercializa ção e financiamento. A este respeito, afirmou: É aliás um fato notório e da mais f ácil comprovação, que o desenvolvimento agrí cola e as condições de vida do trabalhador rural não se acham direta e necessariamente relacionadas. Observe-se por exemplo o que ocorreu no caso da nossa lavoura canavieira, particularmente no Nordeste. O desenvolvimento e o progresso tecnológico foram aí , nos últimos decênios, consideráveis. Entretanto, se houve modificação no que respeita à popula ção trabalhadora rural das zonas canavieiras, ela foi, no seu conjunto, para pior68.
A avaliação de Prado estava correta. A produ ção agroindustrial açucareira de Pernambuco, por exemplo, evoluiu do engenho escravocrata, passando pelo bangüê e dando origem, finalmente, às usinas agroindustriais. A evolu ção técnica foi lenta mas not ável, com aumento de produção e produtividade. Entretanto, do ponto de vista social tal desenvolvimento tendeu à concentração de terras e de renda, sendo especialmente nefasto para os camponeses mais pobres. Pequenos plantadores de cana-de-açúcar tornaram-se cada dia mais dependentes dos usineiros, que terminavam por controlar o preço do produto. O crescimento das usinas n ão raras vezes significou a expuls ão de antigos moradores ou a conversão de terras antes destinadas ao plantio de subsist ência, em plantações de cana-de-a çúcar, gerando crise alimentar na regi ão açucareira69. Os trabalhadores agroindustriais estavam expostos, ademais, a p éssimas condi ções de trabalho70. Caio Prado Jr. opunha-se frontalmente à opinião oficial de que desenvolvimento tecnológico e aumento da produção e da produtividade poderiam gerar automaticamente um correlato bemestar social. A partir da an álise da realidade fundiária, concluiu que a fortí ssima concentração de terras e o modelo agropecuário baseado na grande explora ção mercantil - voltado para o mercado externo e, em menor grau, para o mercado interno - eram os verdadeiros respons áveis pela baixa qualidade de vida rurí cola. As grandes lavouras de car áter mercantil inviabilizavam o acesso do homem rural à terra, transformando a massa camponesa em reserva miser ável de trabalhadores para os latif úndios agromercantis. Além disso, o desenvolvimento agromercantil com tend ências ora de retração ora de expansão, condicionava em sentido inverso as pequenas lavouras independentes ou associadas à grande propriedade71. Segundo Prado, era urgente uma reforma agr ária no paí s. Esta deveria ser realizada simultaneamente a outras ações: medidas fiscais, especialmente a tributa ção progressiva sobre as grandes propriedades e medidas legais, sobretudo a extens ão da legislação social e trabalhista ao campo. Para o autor, "(...) enquanto a grande exploração agrária e a concentra ção da propriedade da terra constitu í rem, como de
fato constituem, os fundamentos em que se assenta a economia agr ária brasileira, não haverá amparo possí vel e praticável à propriedade pequena e ao modesto produtor"72. A reforma agrária já era em pleno governo JK um assunto explosivo. No projeto de lei do deputado Coutinho Cavalcanti (PTB/SP) podia-se ler: "A reforma agr ária atingiu o limite extremo de uma alternativa crucial: ou vem pelas m ãos da evolução ou é imposta pela revolução"73. Esta também era a opinião de Seixas Dória (UDN/SE): "(...) se n ão vier pela evolu ção natural, virá no bojo da revolu ção em que o espí rito conservador cederá à violência do espí rito revolucionário"74. A convicção segundo a qual as alternativas brasileiras eram reforma ou revolu ção aumentaram ainda mais com a Revolu ção Cubana, cuja reforma agrária buscou algumas inspira ções no projeto Coutinho Cavalcanti. Mas a indisposição oficial era clara e como disse o deputado Uniro Machado: Em matéria de reforma econômica e social, sempre encontramos, como dizia o eminente Senador Pasqualine, uma espécie de lei de tr ês situações diversas: os que querem a reforma e lutam bravamente por ela; os que já dizem que a querem embora façam todas as manobras para impedí -la; e um terceiro grupo remanescente, dos que ainda têm coragem de dizer que não querem a reforma. No que concerne à reforma agrária, aplicam-se exatamente as três situações"75.
Os acontecimentos posteriores demonstraram, entretanto, a fragilidade das previs ões de Seixas Dória e Coutinho Cavalcanti: nem reforma ou revolu ção. Quando a reforma agr ária entrou na pauta do dia do governo Jango, a rea ção foi imediata. O presidente Goulart assinou o decreto desapropriando, para efeito de reforma agr ária, as terras circundantes às rodovias e ferrovias nacionais e, em contrapartida, foi deposto pelo golpe pol í tico-militar de 1964. De qualquer modo, o nacionalismo defendeu exaustivamente as reformas, sobretudo a agr ária. Entrou na cena pol í tica nacional como uma ideologia caracterí stica do populismo, a servi ço de uma elite ainda majoritariamente olig árquica e interessada em cooptar as camadas populares. Tornou-se, depois, a orientação ideológica dos setores industrialistas durante o governo de JK e terminou violentamente reprimido pelo golpe de 1964 enquanto uma ideologia das esquerdas e dos movimentos populares organizados. A trajetória da retórica nacionalista deslocou-se, portanto, do campo do poder para tornar-se paulatinamente o referencial ideol ógico que legitimava as lutas populares. Seu conte údo concreto também sofreu um profundo deslocamento: deixou de ser uma reflex ão estritamente voltada para o desenvolvimento econômico de tipo burgu ês para ser a ideologia das esquerdas, incluindo trabalhistas, socialistas e comunistas, devido à sua preocupação claramente reformista e social. O vocabul ário em comum e sobretudo impreciso do nacionalismo, baseado em termos como naçã o, povo e interesses nacionais, contribuiu, entretanto, para a dissimula ção das diferenças subjacentes às suas diversas orientações. Tanto o nacionalismo estatal - representado pelo nacional-populismo, pelo nacionaldesenvolvimentismo e pelo nacional-reformismo - quanto o n ão estatal em suas duas principais vertentes, isto é, a liberal e a popular possu í am interesses, prioridades e perspectiva de classe bem diversas. Sobretudo, durante o governo JK, tais diferen ças nem sempre eram notadas, tornando menos radical os enfrentamentos polí ticos do perí odo.
NOTAS 1
PRADO JR., Caio." Nacionalismo e capital estrangeiro". In Revista Brasiliense. São Paulo, nº 2, nov./dez. 1955, pp. 80-93. [ Links ]
Como exemplos, podemos citar a Frente de Emancipação Nacional (1954-1956), a Frente Nacionalista (1955), o Instituto Superior de Estudos Brasileiros (1955-1964), a Frente Parlamentar Nacionalista (1955-?), a Frente 11 de Novembro (1956), o Grupo A ção Polí tica Pró-Desenvolvimento Econômico e Social (1957), o Movimento Nacionalista Brasileiro (1957-?) e a Liga Nacionalista Brasileira (1959-?). 2
3
JAGUARIBE, Hélio. O nacionalismo na atualidade brasileira. Rio de Janeiro, ISEB/MEC, 1958, p. 12.
[ Links ]
LAMOUNIER, Bolivar." Formação de um pensamento pol í tico autoritário na Primeira República. Uma interpretação" In Fausto, Boris (org). Hist ória Geral da Civilizaçã o Brasileira. O Brasil Republicano. Sociedade e Instituições (1889-1930). 2 ed., São Paulo, DIFEL, 1978, t. III, vol. 2, pp.343-374. [ Links ] 4
ROSSOLILLO, Francesco." Nação". In Bobbio, Norberto et al. In Dicionário de polí tica. 7 ed., Brasí lia, Editora UnB, 1995, pp. 795799. [ Links ] 5
6
HOBSBAWM, Eric. Nações e nacionalismos desde 1780. Programa, mito e realidade. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1990, p. 18. [ Links ]
7
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62
FERRARI, Fernando. o p. cit ., p. 1645.
63
Apud: DÓRIA, Seixas." Discurso Parlamentar". In Diário do Congresso Nacional. mai. 1959, p. 1811.
64
LIMA FILHO, Oswaldo." Discurso Parlamentar". In Diário do Congresso Nacional. set. 1959, p. 5905.
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65
Idem, p. 5906.
PRADO JR., Caio." Contribuição para a análise da questão agrária no Brasil". In A quest ã o agr ária. 3ª ed., S ão Paulo, Brasiliense, 1981. [ Links ]O ensaio citado foi publicado na Revista Brasiliense em março de 1960. Foi reeditado nesta coletânea que reúne, ademais, outros artigos do autor sobre o mesmo tema e que foram publicados na revista nos anos seguintes, até o seu fechamento em 1964. Em função da facilidade de consulta, citaremos a reedição de 1981. 66
67
Idem, p. 18.
68
Idem, p. 29.
A crise alimentar das regiões ocupadas pela agroindústria do açúcar, demonstra, ademais, o rebaixamento da qualidade de vida da população da zona a çucareira. Segundo o nutricionista Nélson Chaves, com o "(...) desenvolvimento da agroindústria da cana-de-açúcar e a instalação de usinas, a situa ção alimentar da zona açucareira foi se agravando. Toda a terra disponí vel foi sendo reservada para a canade-açúcar. As árvores frutí feras e as matas foram derrubadas e a pecuária foi sendo reduzida a um mí nimo(...) O consumo de leite, verduras e ovos começou a ser muito baixo. O mesmo aconteceu com o consumo de peixes, uma vez que a calda derramada pelas usinas prejudicou grandemente a riqueza dos rios(...)" Apud: CAMPOS, Zoia Vilar. Doce amargo. Produtores de açúcar no processo de mudança: Pernambuco (1874-1941). São Paulo, Tese de Doutorado, FFLCH/Universidade de São Paulo, 1996, pp. 140-141. [ Links ] 69
70
CAMPOS, Zoia Vilar. op. cit., p. 85.
71
Idem, p. 52.
72
Idem, p. 80.
73
CAVALCANTI, Coutinho." Discurso Parlamentar". In Diário do Congresso Nacional. mar. 1959, p. 1157.
74
DÓRIA, Seixas." Discurso Parlamentar". In Diário do Congresso Nacional. mai. 1959, p. 1810.
75
Apud: DÓRIA, Seixas." Discurso Parlamentar". In Diário do Congresso Nacional. mai. 1959, p. 1812.
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