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Cristologia sistemática
5 1. OBJETIVOS • Sistematizar Sistematizar um discurso discurso exaustiv exaustivo o sobre sobre Jesus Jesus Cristo. Cristo. • Argument Argumentar ar sobre a originalidade de Jesus, Jesus, justificando justificando sua posição cristológica. • Aprofundar criticamente o significado teológico da morte de Jesus. • Caracteriz Caracterizar ar a ressurreição como autorrev autorrevelação elação de Deus e consumação da criação. • Difer Diferenciar enciar os aspectos teológicos, cristológicos e antro antropológicos da ressurreiç ressurreição. ão. • Justificar a criação como nova criação. • Caracteriz Caracterizar ar a ressurreição como "consumação escatológica".
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2. CONTEÚDO CONTEÚDOSS • A cristologia hoje. • O homem Jesus. • O destino de Jesus: morte. • O ressuscitado: ressuscitado: autorreve autorrevelação lação de Deus e do homem.
3. ORIE ORIENT NTAÇÕES AÇÕES PARA O ESTUDO ESTU DO DA UNIDADE UNIDAD E Antes de iniciar o estudo desta unidade, é importante que você leia as orientações a seguir: 1) É necessário necessário que você aprofunde alguns conceitos de cristologia a fim de facilitar a compreensão de quem é Jesus, o Cristo. Ao refletir sobre Ele, você deve saber onde está você mesmo e de onde está partindo. Assim, poderá fazer um discurso, uma reflexão coerente. É im portante conhecer a experiência teórica que outros já fizeram. Deste Deste modo, conseguirá perceber melhor a sua posição, bem como a dos outros. 2) Para aprofundar seus conheciment conhecimentos, os, confira os concí lios. 3) Para você se aprofundar aprofundar mais sobre o significado da virgindade de Maria e o nascimento de Jesus, leia RATZINGER, Joseph. Introdução ao cristianismo . São Paulo: Loyola, 2005, p. 201ss, especialmente 204. Há também muitos textos, facilmente, encontrados sobre os evange lhos da infância. 4) Para você conhecer o significado tradicional da Igreja Católica, outras igrejas e exegeses atuais sobre o assunto, leia THEISSEN, Gerd; MERZ, Annette. O Jesus histórico : um manual, p. 218 ss. PUIG, Armand. Jesus: uma biografia, p. 170-184. 5) Você sabia que Buda ‘Sidartha Gautama’ ensinou, após sua iluminação, durante 45 anos. Maomé ‘Mouhamed’ pregou durante 20 anos, e Moisés dirigiu o povo por 40
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anos, enquanto Jesus viveu seu ministério entre um ano e meio a três apenas? 6) Para aprofundar mais seu conheciment conhecimento, o, sugerimos que leia os estudos de VERMES, entre eles. Natividade. Rio de Janeiro/São Paulo: Record, 2007; As várias faces de Jesus. Rio de Janeiro/São Paulo: Record, 2006. 7) Você deve retomar o significado bíblico de primogenitura. Complemente o sentido consultando dicionários ou vocabulários bíblicos ou então reveja seus estudos bíbli cos do Antigo Testamento. Testamento. Os primogênitos primogê nitos tinham, tinha m, des de a legislação mosaica, direito a duas partes na heran ça. Ao primogênito era assegurado o respeito de todos os outros irmãos; dele também era a responsabilidade, especialmente, quando um dos irmãos necessitava de um socorro especial. Aprofunde o estudo deste tema, para compreender o lugar de Jesus como primogênito entre nós e para nós.
8) Você pode aprofund aprofundar ar,, ainda, os estudos sobre a pieda em: de de Jesus , bem como sobre a oração do Senhor em: SOBRINO, Jon. Jesus, o libertador , p. 207-211, além de vários outros autores. 9) Reveja o conceito de “ novo adão” nos cadernos de Antropologia Teológica, nas Unidades 3 e 5, e Introdução Geral à Bíblia e História de Israel . Deus antevia em Cristo Jesus o ser humano perfeito, por antonomásia. Assim, volte ao seu caderno de Antropologia Teológica Teológica e releia, na Unidade 3, sobretudo, os Tópicos 2, 3, 4 e 5. 10) Para você se aprofundar no assunto, confira o conceito de Schürmann, que já é clássico em cristologia, no res pectivo verbete "pró-existência” do Dicionário Crítico de Teologia, p. 1452, p. 363-364. 11) Vale salientar que, neste estudo, se deve ter presente não apenas a história dos dogmas cristológicos, mas também deve-se estar estar aberto para compreender o signi ficado da Trindade Una ou da Unidade Trina, que alguns dizem: ‘Tri-unidade’ . Este tema será desenvolvido em outro caderno no decorrer do seu curso.
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12) Você poderá aprofundar as teorias desta unidade, len do, entre outros textos, BOFF, L. Paixão de cristo, paixão do mundo. Petrópolis: Vozes, 1977, p. 108-126 e SEREN THÀ, M. Jesus Cristo Cristo,, ontem, hoje e sempre : ensaio de cristologia. São Paulo: Salesiana, 1986, p. 425-444. 13) Para aprofundar seus estudos, leia os textos: Mc 9,31; 10,33-34; 14,41; 15 Mt 20,28; Lc 22,27; Jo 10,17. Pesqui se, também, em outros textos neotestamentários como: Gl 1,4; 2,20; Ef 5,2-25; Tt 2,14; 1Tm 2,6. 14) Para completar seus estudos sobre a ressurreição, leia todo o capítulo 15 de 1Cor, começando pelos versículos 35-58 e leia depois 1-34.
4. INTRODUÇÃO À UNIDADE Esta unidade propõe levar você a um grande processo de sín tese e sistematização do que foi estudado até aqui. Assim, aqui você se encontrará encontrará com Jesus Cristo, um ser hu mano original, não só por ser divino e humano ao mesmo tempo. Você se lembra do conceito de "união hipostática"? Com tais conhecimentos (bíblico e histórico-dogmátic histórico-dogmático, o, que são normativos e integrativos da fé), vamos encontrar com Jesus, Aquele que se compreendeu a partir de Deus; que foi solidário co nosco, a ponto de dar sua vida por nós. Tal Tal amor solidário e representativo fez que o Pai o ressuscitasse e deixasse claro que o havia constituído nosso salvador, salvador, como Ele era desde o início da criação. Tenho a certeza de que esta e sta unidade é empolgante. empo lgante. E conhe cendo melhor Jesus Cristo, você será será capaz de se humanizar mais, vivenciando-o para amá-lo e servi-lo ser vi-lo mais profundamente. Nesse sentido, você estudará as cristologias atuais, o Ho mem Jesus e seu destino, morte e o ressuscitado, bem como au torrevelação torreve lação de Deus e do homem.
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A princípio, retornaremos ao tema da cristologia como tal, para que você perceba melhor não só o caminho que faremos, mas também tenha critérios teológicos para perceber as cristolo gias existentes ao seu redor e as polêmicas (frequentes) que se levantam em torno deste tema. Propomos uma leitura global e englobante da encarnação. Você deve compreender e fundamentar Jesus como uma grande unidade. Assim, iremos aprofundar teologicamente os significados salví ficos da morte e ressurreição de Cristo, como resposta de fé para hoje. Você encontra a seguir um mapa conceitual da unidade se guinte, o qual se configura não apenas como uma síntese dos prin cipais conceitos aqui tratados, mas, sobretudo, como um roteiro de estudo. Questões teóricas da cristologia hoje
Cristologia
Cristologia
do alto
de baixo
Perspectivas cristológicas O lugar do Salvador
A originalidade de Jesus
Autocompreensão
^ Pro´-existencia
estaurologia
Cristo no Plano Salvífico de Deus
CRISTOLOGIA SISTEMÁTICA
O destino: a morte de Jesus e suas
Teorias sobre a
Valor
Morte de Jesus
salvífico
Valor salvífico
encarnação
O papel do Salvador
A ressurreição de Jesus : a autorrevelação de Deus
Fontes Testemunho Autorrevela ão Significado
Bom estudo!
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5. AS CRISTOLOGIAS HOJE A cristologia é feita no plural. Na verdade não existe a cristologia, mas as cristologias. E por que é assim? Nenhum estudo, por mais completo que seja, abarca toda a pessoa de Jesus, homem e Deus, entre nós e nosso senhor sal vador. O próprio Novo Testamento apresenta ao menos cinco modelos diversos. Este fato indica não só a necessária intercomple mentariedade (nenhum se basta por si só). Aponta a possibilida de de muitos enfoques. Quer dizer, podem ser diversos os pontos de partida, pois eles devem estar adequados aos ouvintes/leito res que creeem. A cristologia é para a compreensão dos que creem, no tem po e circunstância que eles vivem. O mesmo Jesus é apresenta do conforme a capacidade e exigência dos "crentes" desde que tal cristologia tenha sempre presente como norma o Novo Tes tamento e o dogma, como integrativo. Isto não quer dizer que ambos sejam uma “camisa de força”; mas uma orientação que não se pode ignorar. Numa grande síntese, pode-se dizer que a cristologia tem tido dois grandes modos de proceder (métodos): " a partir de bai xo” ou “a partir de cima ”. A cristologia a partir de baixo começa enfocando a história humana de Jesus para depois compreendê-lo também em sua divindade. A ênfase está em Jesus histórico, tendo como base os evangelhos sinóticos. E a cristologia a partir de cima, mesmo que tenha predominado na história, parte do Filho eterno de Deus e utiliza uma linguagem, predominantemente, ontológica (helenis ta, ocidental).
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O ponto de partida da cristologia Cristologia a partir de baixo
A cristologia “a partir de baixo” é que vai predominando hoje como critério para aproximar-se de Jesus. Por quê? Não só por causa das mudanças socioculturais do mundo, mas também pela crescente "des-europeização" da Igreja. Não só porque a segunda usa uma "gramática" que leva (quase heretica mente) a perceber Jesus em si, ontológico, como alguém (quase) estranho aos seres humanos reais, mas também pela compreen são da mudança do papel da Igreja, como “serva” e “instrumento de salvação" (cf. LG e GS). Porque ainda: para responder "quem é Jesus Cristo, para nós hoje?", é necessário não apenas uma nova linguagem, mas uma linguagem que leve também em conta as perspectivas antropológicas da cultura contemporânea. E aí, inclu sive, a recuperação de uma cristologia sotereológica. Desde o século 12, houve uma crescente separação entre cris tologia e sotereologia. Se antes, no período de ouro da cristologia (do século 3º ao 8º), havia uma preocupação em se afirmar sempre quem era Jesus Cristo para a nossa salvação, progressivamente foi -se construindo uma cristologia sobre o ser de Jesus Cristo, desliga do de seu papel de salvador de todos. A questão salvífica voltou a integrar a reflexão atual especialmente na cristologia de baixo. De forma muito simplista se poderia dizer que a cristologia a partir de baixo é encontrada nas cristologias da libertação, fe minista, contextual (asiática), negra (africana e norte-americana). No passado, ela existiu por meio das correntes de pensamento da chamada Escola Antioquena, do pensamento franciscano, na espi ritualidade e artes medievais etc. A cristologia a partir de cima A cristologia a partir de cima, com fundamento joanino e paulino, predominou entre o clero e intelectuais, sobretudo da Claretiano - Centro Universitário
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cultura branca “masculina” e europeia. Parte-se da ideia de que Jesus é o Verbo pré-existente (desde toda a eternidade) e, um dia, se fez humano no seio de Maria. É usada predominantemente pelos que trazem uma tradição doutrinária helenista-ocidental (com corte mais europeu e eclesiocentrico). A grande preocupação é ressaltar a kenose de Deus, que, ao se humilhar, não se sentiu in digno de assumir a natureza humana, a fim de elevá-la até Deus (cf. Fil. 2, 6ss). Tal cristologia identifica nos evangelhos, inclusive nos sinóticos, a presença de Deus no homem Jesus. Alguns afirmam que sua forte presença, em contraposição às cristologias a partir de baixo, se deve ao fato de que ela é a prefe rida pelos bispos e papas. Assim, o que dizer sobre estas duas cristologias hoje? Tanto quanto são normativos os evangelhos, que, em ter mos de cristologia, nos levam a conceber Jesus Cristo como Deus Eterno, exigem concebê-lo também em sua história humana. E a recíproca é verdadeira: conceber a humanidade Dele exige reco nhecê-lo como "Emanuel" (Deus conosco). Uma sem a outra nos levará não só a evitar as discussões já superadas pelos tempos dos concílios cristológicos (e que seria perda de tempo), mas a evitar também os erros (heresias) passados, cuja solução integra a fé cristológica. Note-se que cultura pós-moderna (inclusive católica) é centralizada no ser humano, não mais nas forças cósmicas (dis curso diferente do das questões ecológica e cósmica contemporâ neas) nem teocêntricas. Perspectivas cristológicas Como é impossível escrever uma "síntese cristológica defini tiva", então se percebe que todas e quaisquer cristologias sofrem a influência da cultura e das relações existenciais de seus teólogos. As cristologias atuais têm sido feitas mais apropriadamente "a partir de baixo". Esta posição, inclusive, supera a discussão re cente sobre a perspectiva cristológica, ora centrada na morte (e ressurreição), ora na encarnação ou na história.
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A primeira (que predominou no segundo milênio, especial mente depois de Santo Anselmo) enfatizou o papel sotereológico da morte de Cristo. Chegou-se na radicalização de alguns afirma rem que a razão da existência de Jesus era para morrer na cruz, a fim de nos salvar de nossos pecados. A segunda perspectiva, com enfoque encarnatório, em resumo afirmou que a razão do Filho Eterno se fazer homem (encarnação) era para revelar quem é Deus, quem somos nós e como Deus nos comunica sua vida divina. É a perspectiva joanina. A terceira corrente (a partir dos sinóticos) percebe, à luz da páscoa, a vida, a atuação e o destino de Jesus como proximidade de Deus entre nós para a nossa salvação. As três perspectivas, somente são legítimas se forem inter complementares e não autoexcludentes. Por julgar que o enfoque histórico, hoje, torna mais acessível, para nós, o encontro com Je sus Cristo, é que fazemos esta opção metodológica. A reflexão so bre a plenitude de Cristo (e isto é cristologia) nos levará, desde a história do homem de Nazaré, à luz da páscoa ao encontro do pro jeto de salvação de Deus, realizado Nele, seu Filho e nosso Irmão.
6. O HOMEM JESUS Jesus, um homem original Mesmo quando localizado no contexto da Galileia do 1º sé culo d. C., Jesus viveu a religiosidade de seu povo que era portador de uma grande tradição vinda de Abraão, passando por Moisés, pelos patriarcas, profetas, reis e sacerdotes de seu povo. Era uma religiosidade que ocupava o centro da vida do povo, mesmo nos períodos de escravidão (vivida muitas vezes como sentido de pe cado da idolatria). Exatamente nestes períodos, acentuavam-se a preocupação com as promessas salvíficas, feitas nas antigas alianças, e com as expectativas messiânicas. Jesus é um homem judeu, plenamente inserido na cultura de seu povo. Claretiano - Centro Universitário
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Viveu Jesus ao tempo dos imperadores romanos Otavio Augusto (27 a.C. a 14 d.C.) e Tibério (4-37 d. C.); do governo de Herodes o Grande (até o ano 36 d.C.), o perfeito romano, que ad ministrou Judeia romana e detinha o poder de nomear o sumo sacerdote e controlar o sinédrio no governo de Jerusalém (entre 4 e 41 d.C.). José Caifás, influenciado pelo seu sogro Anás, foi sumo sacerdote por dezessete anos. Sem influir muito, Roma contentou-se, em geral, em domi nar a região, apenas mantendo a paz (romana) entre seus subor dinados e cobrando os impostos por meio de funcionários locais, que incluíam nesta cobrança seus salários (motivo de constantes descontentamentos populares). Contudo, ao tempo de Jesus, a presença romana e a con vivência do Sinédrio e dos saduceus, sobretudo, eram motivo de tensão política (invasão estrangeira), econômica (exacerbação de impostos) e religiosa (o imperador Cesar era um deus, "o divino"). Após a destruição do templo, pelos romanos, só sobraram os fariseus e os primeiros cristãos - ainda uma espécie de seita, dentro do judaísmo: os do caminho (cf. At 9,25). Pouco se pode dizer da infância de Jesus (abreviação de Yeshua), que significa "Deus salva" ou "salvação de Deus". Sobre fatos e histórias de seu nascimento, deve-se fazer uma distinção entre verdade histórica e significado salvífico, como os evangelhos da infância pretendem transmitir. Maior atenção ainda se deve dar à idoneidade dos fatos descritos nos evangelhos apócrifos, surgi dos a partir do final do século 2º. A intenção dos evangelhos da infância (Mt e Lc 1 e 2) é teológica, e em geral sem repercussão no restante dos evangelhos – salvo o princípio teológico de evidenciar que ele provém de Deus e é filho da humanidade. Teria Jesus nascido provavelmente em Nazaré, e não em Be lém, no ano 7 ou 6 a.C., algum tempo antes da morte de Herodes, o Grande (4 a.C.), vivendo com seus pais, o “justo” José e Maria e seus "irmãos", em Nazaré, por isso era chamado “nazareno”.
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Atraído pelo movimento de João Batista, Jesus tornou-se independente e pelo ano 27/28 começou seu ministério público, com aproximadamente trinta e três anos de idade. Foi crucificado em 14 de nizan (7 de abril) do ano 30. Tinha trinta e seis anos, mais ou menos. Este período de vida pública (27/28 – 30) caracterizou não só a vida, mas também, de modo surpreendente, marcou a história da humanidade. São as pregações, as atitudes e o destino de Jesus, duran te estes dois ou três anos, que constituem a centralidade (não o fundamento) da cristologia. Não é por acaso que a parte mais consistente dos evangelhos seja dedicada ao seu ministério público, sobretudo à pregação sobre o Reino de Deus. São poucos os capí tulos dedicados ao seu nascimento e morte; bem menos à ressurreição (GAMBERINI, 2007, p. 52). Vejamos a seguir o quadro que divide a vida de Jesus narrada pelos quatro evangelhos: Infância Ministério Público Paixão e Morte Ressurreição
Mt
Mc
1- 2
0
3-25 26-27
1-13
14-15
28
16
Lc
Jo
1-2
-
3-21
22-23
24
1,19-17 18-19 20-21
Fonte: Acervo pessoal.
Jesus foi conhecido como pessoa normal, mesmo que com um algo a mais, que o tornava diferente. Entre os seus contem porâneos, conheciam-se seu pai, sua mãe e seus irmãos. Sabia-se de sua profissão. Os evangelistas o mostram como quem viveu as realidades humanas, como todos os outros homens e mulheres. Dizem eles: foi em tudo semelhante a um de nós. Alegrou-se em festa de casamento. Frequentou a casa de conhecidos (a de Lázaro, Maria e Marta, a da sogra de Pedro) e de desconhecidos (fariseus, cobradores de impostos ‘Mateus’, Nicodemos). Participava das li turgias nas sinagogas e no templo, acatava a Lei e as tradições, a modo de dar-lhes pleno cumprimento mesmo que as “desobede cesse” circunstancialmente. Claretiano - Centro Universitário
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Manteve um grupo de seguidores (discípulos), constituído de homens e mulheres. Ao que tudo indica, foi célibe, num con texto ambíguo que prezava a constituição da família e, ao mesmo tempo, aceitava figuras religiosas ascéticas (João Batista, os celiba tários de Qumran). Sentiu fome, sede, cansaço. Comoveu-se pelos amigos. Solidarizou-se com marginalizado (doentes, prostitutas, crianças e outros excluídos). Condoeu-se pelo povo desorientado. Exerceu medicina curativa. Aceitou em seu grupo pessoas de procedência bem diversificada, como Judas e João, Mateus e Tiago. Curou cegos, aleijados, endemoniados etc. Ensinou com autoridade. Gerou admiração e perseguição; foi amado e odiado. Por causa de suas ideias, foi duro, exigente, com sua família; rigoroso com seus adversários e benquisto entre os pobres. Valorizou coisas belas. Apreciou a natureza e o a sim plicidade. Foi didático em seus ensinamentos; e foi chamado de "mestre" rabi . Por muitos, inclusive adversários, foi compreendido como profeta. Gostava de refeições com amigos. Chegou a ser cha mado de "glutão". Foi severo com os que exploravam a religião em proveito próprio. Jesus encarou, com destemor, a morte. Sentiu seu peso e suas dores. Crucificado, morreu abandonado por seus amigos. Viveu o "sucesso" das multidões. Sofreu a perseguição, o julgamento e a morte do poder político-religioso. Sobretudo, em sua vida pública, foi pregador itinerante. Como nós, também cresceu em idade. Alfabetizou-se e leu as Escrituras – o que era raro em seu tempo. Sofreu as tentações, especificamente em relação à fama, às riquezas e ao poder. Viveu angústias psíquico-mortais. Seu saber, profundo na Tora, mas limitado como o saber de qual quer pessoa, inclusive passível de erro. Era determinado em sua vontade e atento às necessidades da pessoa. Jesus foi uma pessoa humana em tudo igual a nós. Todavia, também foi diferente de nós. E não o foi, apenas porque não pecou (como se costuma acrescentar), mas por seu modo de ser diante de Deus e dos outros.
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A radical diferença de Jesus e nós é uma questão de fundo e fundamento religioso (aqui não se fala ainda do ser divino de Jesus). Não é ainda uma questão teológica. Ou, se quiser, é uma questão radical de antropologia. Por que é diferente de nós, o próprio Jesus nosso irmão? Ele o é, pelo fato de ter assumido a plenitude do homem, em sua originalidade. Ele é o ser humano original, radical, projetado por Deus desde o início, desde antes da criação (histórica) do ser hu mano. No dizer de São Paulo e dos Santos Padres: Ele, "o segundo Adão", vindo do céu (cf. 1Cor 15,45-47; Rm 5,12-21), é o primogê nito dentre os irmãos (cf. 1Cor 15,48; Rm 8,29). Jesus é diferente porque sendo um dos nossos, como nós, é Aquele que vem como “homem novo” (original no pensamento de Deus). Quando Ele centraliza sua vontade, seu querer, de modo absoluto em Deus, é Ele capaz de fazer sempre a vontade de Deus. Ele é diferente, por ter-se colocado todo a serviço de Deus e dos irmãos. Sua solidariedade, tão extrema, revela profundamente, que Naquele homem encontramos Deus mesmo. Jesus, o homem que se compreendeu a partir de Deus O próprio Jesus (ressuscitado) ao conversar, pelo caminho, com os discípulos de Emaús ensina o método de interpretá-lo à luz das Escrituras (cf. Lc 24,13-35; Mc 16, 12-13). É obvio que se Jesus procede assim, Ele afirma desde a antropologia bíblica que, como todo ser humano, Ele é criatura, imagem e semelhança de Deus. Todos (e tudo) procedem de Deus na criação. O centro do ser hu mano é Deus. Deus é quem dá sentido à humanidade de todo e qualquer ser humano, seja na origem e no desenvolvimento seja no fim (parusia). O tema da parusia ‘ será estudado em Escatologia.
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Jesus compreende esta realidade de si mesmo. E se autoin terpreta por meio de Deus e por nós. Pôs sua vida a serviço de Deus e da humanidade (no gesto imediato, aos seus contemporâ neos, especialmente aos excluídos). Aqui é importante perceber, numa leitura teológica sobre a vida de Jesus, ao menos cinco situações: 1) a relação pessoal com o Pai (sua fiel confiança); 2) um homem orante; 3) o testemunho dado por Ele sobre o Pai; 4) o redimensionamento da imagem de Deus; 5) o valor salvífico do Reinado de Deus. Jesus centrou sua vida no Pai. Só se pode compreender Jesus a partir de sua relação com o Abbá. Sem dúvida, sem deixar de notar que da parte de Deus houve sempre uma atenção particular sobre o Homem Jesus (anunciação, batismo, morte e ressurreição etc.); por outro lado, é fundamental ressaltar que Jesus elegeu a Deus como fonte e razão de sua vida. Ele viveu para Deus, o Deus de Israel, seu Pai. Vale salientar que Jesus, porque creu em Deus, foi um ho mem místico. Não confunda ser místico com uma pessoa que só vive em oração, “fora do mundo”. Místico é o que mantém profunda ligação com Deus e age em favor dos filhos de Deus. Quer dizer: oração e ação.
Assim, como “a boca fala do que o coração está cheio" (cf.Lc 6,45), isto se evidencia. Jesus pôs em Deus as razões e fundamen tos do seu agir, do seu falar e de sua oração. Sua vida foi alimenta da na fé e na confiança em Deus, até o extremo na morte da cruz. Os evangelhos insistem que Ele constantemente se retira va para rezar. E fazia isto, sobretudo, à noite. O piedoso judeu foi um homem orante (cf. Mt 15,36; 26,26; Lc 4,16). Os sinóticos não
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deixam de ressaltar isto. Lucas, por exemplo, insinua esta vida de oração, ao relatar a vida pública de Jesus (cf. Lc 3, 21; 23-46). Em momentos de decisão ou ocasiões importantes, os sinóticos evi denciam o Jesus orante. Isto é ainda mais claro no evangelho de João. Jon Sobrino (entre outros) acentua não só esta piedade de Jesus, como comenta a profundidade da oração do Senhor, supe rando ingenuidades, mecanizações, hipocrisias, opressões, narci sismos. Acentua positivamente a oração de Jesus como um com promisso situado, concreto e amoroso e sempre com sentido de totalidade. E resume dizendo: O fato mesmo de Jesus orar mostra que existe para Ele um pólo referencial último de sentido pessoal, ante o qual se põe para recebê-lo e expressá-lo. Esta oração é algo distinto de sua prática e de sua possível reflexão analítica sobre como construir o reino; é uma realidade na qual expressa diante de Deus o sentido de sua própria vida em relação à construção do reino, sentido afirmado e questionado pela história real. Por isso, a oração de Jesus aparece como busca da vontade de Deus, como alegria de que seu reino chega, como aceitação de seu destino; em síntese, aparece como confiança em Deus bom, que é o Pai e como disponibilidade diante de um Pai que continua sendo Deus, mistério (SOBRINO, 1994, p. 211).
A vida de oração de Jesus revela não somente sua fé em Deus. Contudo, torna-se clara a própria confiança em Deus. Uma confiança cotidiana que se manifestava não só ao invocar a Deus; mas, sobretudo, atribuindo a Deus seus milagres, a origem e signi ficado de sua vida. A confiança absoluta e radical evidencia-se no modo como Ele assume a própria morte pela causa de Deus. A relação de Jesus com o Pai ultrapassa seu comportamento pessoal e transparece no modo como Ele fala, invoca e dá testemunho de Deus. Nas situações graves, pressionado pelos opositores, Ele indica Deus como seu testemunha-defensor, expulsa demônios por Deus (cf. Lc 10,17; Mt 12,28), prolonga as ações do Pai nas suas ações (Jo 14,10), porta-se como filho e atribui ao Pai o perdão, a misericórdia, a bondade. Defende o Pai diante dos exploradores e opressores. Claretiano - Centro Universitário
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Enfim, Jesus entende que suas ações e reações, ensinos e obras (milagres), tudo deve testemunhar sua relação com o Pai. Ele acolhe os pecadores, levando-os à libertação de si mes mos e da marginalização que os envolvia (cf. Mc 2,10ss; Lc 7,28ss.) como sinal do Reino do Pai chegando. Porque o Pai acolhe a estes pequenos, Jesus, que dá testemunho do Pai, os acolhe também. Ele se aproxima dos pecadores. Nele, é Deus quem está se aproximando, porque o Pai acolhe bons e maus, faz chover sobre justos e injustos, sem com isto ser o juiz da pessoa humana, apesar de não acolher nem o pecado e nem a injustiça. O testemunho que Jesus dá do Pai o leva a reprovar até mesmo a oração dos que querem ser justos sem o ser, sobretudo por desprezarem os outros, os pobres (cf. Lc 18,9-14). Do mesmo modo, dá testemunho de Deus ao expulsar demônios, símbolos do poder do mal e da destruição (cf. Mc 3,21ss; Jo 10,20ss). Hospeda -se na casa de pecadores (Zaqueu, por exemplo), porque a salva ção de Deus deve chegar também a eles (cf. Mc 2,15-17). Jesus, o testemunho de Deus, acolhe as crianças, as mulheres, os pecadores, “as mulheres públicas”, os doentes, enfim os despre zados. Ele sabe que está trazendo a cura, a boa nova, aos que pre cisam de Deus e se veem cerceados, porque os chamados “justos” os impedem (Lc 7,36-50; Jo 4,7-42; Mt 18,12-14; Lc 15,4-10). Sabe e afirma em alto e bom som que, na casa do Pai, prostitutas e pecado res precederam aos “piedosos do templo (cf. Mt 21,31). Com sua morte, dá um radical testemunho de que Ele é en viado do Pai e que mesmo no "abandono do Pai" (Mc 15,34), Ele confia até o extremo. Não em vão, todo o testemunho que Jesus dá do Pai se manifesta na ação do Pai, que o ressuscita (cf. At 2,24). Jesus redimensionou a imagem de Deus. A compreensão Dele sobre Deus é impressionante. Não só os contemporâneos de Jesus, mas também os judeus antigos atribuíram a Deus a quali dade de "pai". Jesus, porém, tratou a Deus com "seu Pai" e agiu como seu filho.
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Mesmo que tenha diferenciado, e com razão, o modo de Deus ser pai Dele e nosso, criou uma aproximação singular de Deus para com todos os seres humanos. Deus não é alguém distante e nem um julgador implacável. Ele não é nem um vingativo e nem um indiferente para com seus filhos. É um Deus amoroso, sempre atento pelo bem de seus filhos. Jesus faz compreender que Deus se aproxima de todos, es pecialmente dos pobres. Ele vem a ser um Deus próximo, que ama e perdoa, que sabe de nossas necessidades e é misericordioso para com todos os que o procuram. Jesus faz saber que Deus, o Pai, o enviou a nós como expressão de seu amor providente. E em nome do Pai, Jesus cura, perdoa, encontra "os perdidos", reconci lia os inimigos de Deus e dos homens. A nova imagem de Deus, mostrada por Jesus, não é irêni ca nem ingênua. Deus não se deixa convencer pela hipocrisia do orante (Lc 18, 9-14). Nem se deixa manipular pelos “poderosos de seu tempo” que julgam “determinar” em seu nome a Lei e o ensi no dos profetas (cf. Mc 3,4; Lc 14,2s; Mt 12,11; Lc 6,24). Jesus o apresenta como Senhor que não se convence com mecanismos idolátricos da religião, particularmente da religião opressora (cf. Mc 7,1-23; Mt 15,1-20; Lc 11,38; 7,14; 13,10s). Deus, porque é justo, reprova a religião que oprime e discrimina, inclusive a que lesa o direito do próximo (cf. Mt 7,13; Mc 7,14-23; 12,40; Lc 11,42. 46. 52). É preciso lembrar que, para Jesus, Deus não é uma questão de discussão e de teorias, é sim preciso fazer a sua vontade na prática (cf. Mt 7,21). As parábolas de Jesus sobre o Reino (e em especial a do "bom samaritano", do "juízo final") e as declarações sobre as bem-aventuranças são indicativos claros de quem é Deus e o que Ele pode. Para tanto, a expressão de Jon Sobrinho aqui pode ser apre sentada como uma síntese: Claretiano - Centro Universitário
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Jesus não tem muito a dizer hoje sobre a questão de Deus se esta é vista puramente a partir do ateísmo, da existência ou da não exis tência de Deus. Mas, tem muito a dizer, até o dia de hoje, se perguntamos quem é o Deus e o que fazer de Deus. Jesus não ilustra o fato que Deus exista, mas ilustra qual Deus exista (SOBRINHO, 1994, 284).
Jesus deu um valor salvífico ao Reino. Ele creu no Senhorio (Reino, Reinado) de Deus que se aproximava. Creu que o reinado de Deus passava pela sua pessoa. Anunciá-lo, por palavras, obras e até pela própria vida, foi sua missão. O que fez e disse foi em função deste Senhorio. É importante perceber que Jesus anunciou que este Senho rio de Deus é salvífico. E no exercício de sua missão, Jesus o com provaria ao curar doentes de toda espécie, ao perdoar pecadores, ao reconstituir a dignidade dos excluídos e discriminados, ao ex pulsar os males e seus poderes diabólicos. Por causa do Reinado de Deus que chegava, Jesus "restitui a vista aos cegos, anuncia a libertação dos prisioneiros e o ano da graça do Senhor (cf. Lc 4,18ss). Porque é salvador o Senhorio anunciado aos pobres multiplica-se e se reparte o pão. As "ovelhas perdidas" devem ser encontradas. Os pecadores precisam ser re dimidos. As crianças e mulheres passam a ser consideradas como iguais. Homens e mulheres são companheiros. O valor salvífico do Senhorio de Deus, segundo Jesus, cria a oportunidade para todos poderem participar, como convidados do grande banquete do Rei, e, um dia, morar nas muitas casas preparadas na casa do Pai. No Senhorio de Deus, que Jesus anuncia por palavras e obras, não mais haverá tristeza, luto ou dor. Porque o Senhorio de Deus é verdadeiramente salvador, Jesus não teme entregar sua vida "por todos", inclusive desejando ardentemente fazer a ceia de despedida com os seus amigos, porque Ele só tor nará a beber com eles o fruto da videira quando o Reino (salvífico) estiver implantado definitivamente (cf. Lc 22,14ss e par.).
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Jesus, o homem por nós Pouco sabemos de toda da vida de Jesus; pouco de sua infân cia e praticamente nada de sua adolescência, juventude e de sua vida adulta. Conhecemos, pelos Evangelhos, sua vida pública, de uns dois ou três anos. Ela é expressivamente significativa e dela se deve dizer: "Ele viveu fazendo o bem" (cf. At 10,38). Ele viveu para servir (Mc 10,45). Esvaziou-se de si mesmo, de seus interesses e egoísmos para pôr-se a serviço dos outros. Não lhe importaram a fama (cf. Mt 9,10-13), o dinheiro, a segurança pessoal (cf. Mt 8,20; Lc 16,13). Não buscou para si o poder. Abriu mão da segurança de uma residência, do autossustento, do conforto e até da própria família. Inclusive da constituição de uma família própria. Fez de si um Homem livre para amar. Para pôr-se à disposição dos outros. Fez sua vida em prol dos outros. Porque havia centrado sua vida em Deus, viveu para os outros. É do seu ensino que decorre a afirmação de 1Jo 4,20: “Quem diz que ama Deus, mas esquece o irmão é mentiroso". Jesus radi calizou seu amor por Deus e pelos outros. Sua preocupação mais radical ainda foi o ser humano necessitado. Fez do seu, um amor amplo que se tornou universal: amou a todos, a exemplo de seu e nosso Pai. Frente aos outros, foi sincero e serviçal (Lc 22,27). Aproxi mou-se desinteressadamente dos pobres, dos excluídos, dos do entes, dos perdidos. Buscou os pecadores, os desolados. Acolheu os fracos e os impuros (cf. Mc 1,23-38; 40-45; 5,25-34). Defendeu o povo humilde e explorado (Mc 6,34; Mt 9,36) e até oprimido pela religião (Mt 23,4). Da sua relação com Deus, brotou um empenhativo amor pe los outros. Fatigou-se para atender a todos. Foi solicito para com os que o procuravam. Procurou quem não podia procurá-lo (por causa das discriminações legais). Sofreu e chorou com os sofredores. Animou as amizades. Devolveu a autoestima. Soube confiar até o extremo (mesmo da traição). Criou novas formas de convi Claretiano - Centro Universitário
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vência. Descobriu princípios mais convincentes e profundos na Lei e nos Profetas, não veio para mudá-los, mas para aperfeiçoá-los (Mt 5,17). Oportunizou novos vínculos de solidariedade para com o próximo (que era gente real, não objeto de discurso). Lembrou os mandamentos fundamentais do amor a Deus e ao próximo. Como viveu para servir, deu o mandamento aos discípulos, que eles o imitassem no serviço (cf. Jo 13,15). Da sua relação com Deus, gerou forças libertadoras para os que o procuravam, inclusive para os ricos que o convidavam para seus jantares (esnobes): em suas casas também deveria entrar a salvação. Para isso, era preciso que eles nascessem de novo em espírito e verdade (Jo 3,3). Valorizou-lhes a fé (como a do oficial romano, pai da me nina morta, Lc 7, 9-10); atendeu o jovem rico por quem depois se entristeceu (Mt 19,22; Mc 10,22). Desmascarou as armadilhas, para que as "ovelhas perdidas da casa de Israel" também tivessem oportunidade de retornarem ao bom caminho. Na aparente rejeição à própria mãe e aos irmãos indicou o caminho mais nobre que "apenas" o de sangue e foi assim que sua mãe se tornou discípula Dele (cf. Mt 12,50). De modo igual, o texto sagrado fala de seu ir mão Tiago, que depois se tornou bispo de Jerusalém. Como ensinara ao amor aos inimigos (cf. Mt 5,4ss), assim também viveu e suplicou o perdão do Pai por aqueles que o cruci ficavam (cf. Lc 23,34). Jesus, o homem por Deus e por nós Foi Jesus verdadeiramente um ser da raça humana, como nós e se autocompreendeu como humano a partir de Deus. Por isso exatamente viveu pela causa de Deus. Ele existe por causa de Deus. Sua vida, por causa de Deus. Deus é seu centro. Então o querer, o pensar e o agir de Jesus são discernidos a partir de Deus: "Vim para fazer a tua vontade, o Pai" (cf. Jo 6,28); "não se faça a minha, mas a tua vontade" (Lc 22,42;
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Mc 14,36). O simbolismo da eleição do Pai no batismo e na transfiguração, além de indicar o motivo da "eleição" divina, pode apon tar outro sentido: Jesus foi eleito porque se deixou (parece ser uma questão passiva) eleger. Se assim é, é porque Ele se fez todo de Deus (questão ativa). Deus elege todo ser humano para ser seu filho (no Filho, inclusive desde antes da criação – cf. Ef 3,3ss). Jesus, o nascido de mulher (Gl 4,4), Filho de Davi segundo a carne (Mt 9,27), compreende profundamente que a razão de seu ser era fazer a vontade de Deus. Só a partir de Deus é que Ele se autoconcebe. Deus é seu único Senhor. Fazer sua vontade é realizar-se de modo pleno como humano.
Como São Paulo afirma, Jesus é o ser humano novo, o novo Adão (etiológico e/ou histórico). Na verdade, Nele nós encontramos não só o "ser humano novo", mas o iniciador da humanidade nova. Nele temos a origem e o destino final do ser humano pessoal e coletivo. Nisto, Jesus humano-divino é o modelo e o exemplo da filiação divina. É por isso que o Vaticano II, na GS, 22, ensina que só Ele nos revela quem verdadeiramente somos. Por estar totalmente aberto a Deus, e isto faz a diferença entre nós, Ele pôde pôr-se a serviço dos homens e mulheres de seu tempo (Ele é de todos os tempos) (cf. Mc 10,45). Se o povo de então se sentia atraído por Ele, procurando até tocá-lo para ser curado, o ouvia por saber que Ele falava com autoridade e reconhecia Nele alguém vindo de Deus. Porque percebia Nele alguém tão humano, se divisava, em sua pessoa, os traços divinos que Deus sonhou para todo ser humano. Primogênito den tre os irmãos revelava isto em sua vida toda dedicada a Deus, toda em favor dos irmãos. Enfim, era realmente humano, mas de um modo diferente. Diferente porque foi verdadeira e profundamente humano. Um teólogo alemão, H. Schürmann, caracterizando esta solidariedade de Jesus pelos outros, cunhou o termo "pró-existência". Da vida totalmente voltada para o Pai, Jesus viveu o amor de Deus inesgotável para o ser humano. Ele fez-se livre para servir. Claretiano - Centro Universitário
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Jesus não apenas testemunhou o tão grande amor de Deus por nós, mas deu o exemplo de viver por nós e para nós. Existiu para Deus e para nós. Mais que atos de benevolência e/ou bonda de, Ele viveu movido pela solidariedade radical, que não substitui o outro, nem o limita. Mas, viveu para promover, elevar e dignifi car o outro a ponto de dar a vida por nós e por Deus. Compreendendo-se como um ‘homem para os outros’ (pró-existente), Jesus adquiriu progressivamente maior consciência de sua missão e de seu papel de mensageiro do Senhorio de Deus. Foi descobrindo-se "Filho amado de Deus". Por isto "deu a vida em resgate de muitos" (cf. Mc 14,24; Mt 20,28). Informação Complementar ––––––––––––––––––––––––––––– Neste seu modo humano de viver, os primeiros cristãos da Palestina vão descobrir o inaudito em Jesus: este Jesus, escolhido por Deus, é nosso salvador. Por Ele atingiremos nossa realização humano-escatológica. Os cristãos da América Latina, na sequência dos tempos atuais, o descobriram como libertador dos oprimidos (e se vai descobrindo que Ele deve ser libertador também dos opressores de todos os tipos, inclusive religiosos e fundamentalistas). Já na África negra, os cristãos o encontram como o “bem” e o grande “Ancestral”, que cuida da vida, saúde e felicidade da comunidade; como o “mestre da iniciação” a ensinar e introduzir os “menores” (iniciantes no radical sentido da vida). Ainda os negros por toda parte o perceberam como o grande discriminado. Os cristãos provenientes do hinduísmo olham para este homem Jesus que olha para eles e o reconhecem como o grande líder espiritual (guru) ou um grande avatar, capaz de, como Deus universal, encarnar-se para eliminar os males do mundo e despertar a bondade por toda parte. Para os indianos, vindos de grandes e permanentes sofrimentos, Jesus é Aquele que é capaz de reconstituir a unidade do cosmo por causa de sua ressurreição e dar o sentido pleno do amor abnegado, mesmo de dentro do sofrimento. Para chineses, Jesus pode representar o amor dolorido de Deus, capaz de reconciliar e redimir, por uma vida de bondade que leva à sempre maior comunhão da humanidade inteira. As mulheres, especialmente na teologia feminina, querem ver ressaltar em Jesus a antropologia integrativa do masculino e do feminino de cada ser humano. Assim, outros homens e mulheres vão prolongando cristologicamente, pelos tempos a fora, o signicado que Jesus deu à sua vida: ‘vida pelos outros’.
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O que você acabou de estudar na Informação Complementar pode ser aprofundado com o auxilio de inúmeros livros e revistas. Indicamos alguns: KESSLER, Hans; BOURGEOIS, Henri. Libertar Jesus: cristologias atuais. São Paulo: Loyola, 1989.
A tão inaudita dedicação de Jesus por nós o levou a se tornar homem sem pecado. Condiciona-se a si mesmo e a sua causa por Deus e pelos outros: não há espaço para idolatrias, interesses pró prios. Tudo Nele se torna de Deus e para Deus, por nós e para nós. Jesus é capaz de continuar um processo de autoesvaziamen to, sem se tornar alienado ou alienante. Ele é senhor de sua von tade, de seu querer, de seu agir, de seu saber (aprender) e de sua liberdade. De modo tão senhor de si, torna-se capaz de ser todo de Deus e viver inteiramente por nós. Ele mesmo traduz deste modo o quanto Deus é bom para com seus filhos e filhas, a ponto de se aproximar de todos para garantir a incondicional salvação. É por isto que se pode dizer: em tudo, Ele foi igual a nós, me nos no pecado. Como Deus não poderia pecar. Mas, como homem, sim. Não pecou porque viveu inteiramente para Deus e por nós. Todavia, foi tentado como nós o somos. Ninguém está isento da tentação. Mas, todo ser humano pode também, como Jesus, não pecar porque se é livre. Iluminados pela ressurreição, os apóstolos descobriram que Naquele que "vós, homens de Israel, matastes, crucificando-o pe las mãos dos ímpios, Deus o ressuscitou. Ele era um homem pro vado por Deus diante de nós como milagres, prodígios e sinais" (cf. At 2,23). Neste homem, a Igreja descobriu não só o messias de Deus, mas Deus mesmo entre nós, o Emanuel. No homem Jesus, a Igreja descobriu Deus encarnado. O homem Jesus de Nazaré revelou em sua humanidade tal grandeza e profundidade que os Apóstolos e os que o conheceram, no fi nal de um longo processo de decifração, só puderam dizer: humano assim como Jesus só pode ser Deus mesmo. E começaram então a chamá-lo de Deus (BOFF, 1997, p. 193). Claretiano - Centro Universitário
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Não foram os apóstolos, nem a Igreja que divinizaram o ho mem Jesus. Não o fizeram um deus, como procediam os romanos, os gregos e outros mais. Ao contrário descobriram que no Homem Jesus, Deus se fizera um de nós, por nós e para nós. Foram os após tolos e a Igreja nascente que precisaram de novos critérios e con ceitos para compreender Jesus e o próprio Deus.
7. O DESTINO DE JESUS: A MORTE Para muitos cristãos, a morte de Jesus, na cruz, para nos sal var de nossos pecados é a razão última de Ele ter-se feito humano entre nós. Só pela cruz, Ele seria o nosso salvador. No entanto, esta reflexão (estaurologia), utilizada sobretudo no segundo milênio, e a piedade popular deram uma importância tal que parece isto ser a verdade plena e quase única. Inúmeros teólogos centralizaram todos os estudos cristológicos nesta ótica. Evidentemente, a questão da morte de Jesus pas sou a ter novas interpretações. Hoje, um número significativo de cristólogos tem preferido fazer seus estudos centrados no significado global da vida de Je sus, desde seu nascimento até a ressurreição. Mas isto é questão para outro momento de nosso estudo. E agora importa ver este grande tema do destino de Jesus, detalhando as teologias de sua morte e ressurreição, que será analisado no próprio contexto do Verbo feito um de nós, para nossa salvação. O tema está localizado no todo da vida de Jesus. É importante que, neste momento, você retorne ao tema estudado nas unidades bíblica e dogmática sobre a morte de Jesus. Feito isto, retome o estudo, porém, com uma ótica mais abrangente, como resposta para o nosso tempo.
No decorrer da história teológica, foram elaboradas diversas teorias sobre a morte de Jesus. Todas elas procuraram fundamen -
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tar a fé daqueles que o buscaram, nas circunstâncias de tempo e espaço em que viveram. A morte de Jesus, na grande tradição eclesial Muitos cristãos creem que o Verbo eterno se fez humano para morrer na cruz, a fim de reparar a tão grande ofensa feita a Deus por nossos pecados. Só um ser perfeito (na verdade, o pró prio Filho de Deus) poderia satisfazer, por nós, a ira divina (teoria da satisfação, cujo autor mais importante é Santo Anselmo). Outros cristãos pensam que a morte de Jesus tornou-se um mérito nosso junto a Deus também para conquistar o preço do perdão (teoria do mérito). Fundamentados na Bíblia, outros pre ferem enfatizar a morte de Jesus como um sacrifício pelos nossos pecados. Um sacrifício que poderia selar a aliança nova e definitiva dos homens e Deus (a ênfase na eucaristia traz esta ideia muito viva). Contudo, o sacrifício de Cristo poderia ser entendido em vista da expiação de nossos pecados (ideia forte decorrente da Epis tola aos Hebreus). Ainda poderia ser o sacrifício do Servo sofredor, que carrega os pecados do mundo e cujo sangue era derramado por muitos (teoria do sacrifício). Finalmente um quarto grupo de cristãos dá valor à ação de Deus, que por meio da morte de Jesus nos resgata, nos redime de nossos pecados (teoria do resgate). As duas primeiras (teoria da satisfação e do mérito) são gran des explicações que alimentaram a fé dos cristãos a partir de interpretações teológicas. As outras duas (da expiação e do sacrifício) também marcam a fé cristã e tem seu fundamento, especialmente na tradição bíblica. Estas teorias têm grande valor para interpretar a ação salví fica de Jesus. Elas podem ser estudadas em muitos textos e livros, como se indicará ao final desta unidade. É importante ressaltar: elas têm sua validade ainda hoje; porém, são encontrados muitos limites nelas – que não podem ser ignorados. Claretiano - Centro Universitário
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Todas elas enfatizam a morte na cruz, por causa do pecado, o que não deixa de ter sua verdade. Elas, porém, têm o limite de perceber o significado de vida de Jesus, apenas em sua morte. Ele existiu por causa dos pecados a serem redimidos pela sua mor te. Hoje, também, continua-se percebendo a riqueza de cada uma delas. Nota-se, porém, que elas devem ser assumidas de modo conjunto e não isolado para manterem a validade global, mesmo que ainda limitadamente. Elas foram importantes nos séculos passados e alimentaram a fé cristã. Hoje, influenciadas por novos estudos bíblicos (e até históricos), elas não têm todas as possibilidades interpretativas bíblicas e, sobretudo, não são tão convincentes para os tempos atuais. Tomadas isoladamente, estas teorias fazem aparecer, de modo indireto, Deus como alguém (um grande senhor feudal ofendido) que exige a reparação das ofensas contra Ele. É necessário que alguém satisfaça tal exigência ou conquiste méritos diante Dele, movendo seu coração para o perdão. Vencendo a piedade popular medieval, que enfatizava o medo, o sofrimento e pecado, consegue-se, hoje, fazer uma leitura bíblica mais global. E desta leitura se compreende o significado da cruz como resposta de amor de Jesus e, mais amplamente, o sig nificado da cruz no contexto de toda a vida de Jesus para a nossa salvação. Aqui, de modo algum, se quer negar o valor salvífico da morte de Jesus na cruz. Apenas está se chamando atenção crítica para a insuficiência das teorias históricas e/ou da não exclusividade das duas predominantes teorias bíblicas. Desde Tertuliano, em linha oposta a Irineu de Lion, começa gradativamente a passar para o centro da sotereologia a questão do pecado e do perdão. Daí se origina, somada à contribuição medieval, o atual significado da centralidade na cruz (e a quase eli minação de outros significados soteriológicos). A cruz e o pecado
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pareceram ser o sentido e a razão da encarnação. Todavia, a cris tologia atual, inclusive por influência do Vaticano II, tem reencontrado outros significados, que estavam latentes nos textos bíblicos, tanto para a encarnação quanto para a cruz. É fato que pela cruz se estabelece a redenção dos pecados (a salvação em sentido positivo vai mais além do que esta positiva realidade negativa). A cruz é sinal do amor e doação tanto de Jesus quanto da Trindade. Mas era ela necessária? Santo Tomás já respondeu à ques tão: não se trata de uma possibilidade. Ela é o fato, a realidade. Poder-se-ia perguntar, então: ela foi querida por Deus e buscada por Jesus? E a resposta absoluta é: "não". A cruz é uma consequência de atos humanos, de modo ime diato dos chefes romanos, instigados pelos líderes judeus de en tão. A decisão da morte na cruz, sócio-politicamente, é consequ ência dos conflitos decorrentes da pregação de Jesus, da rejeição humana (de todos os tempos) à sua mensagem e da condenação política e religiosa. Desde a perspectiva judaica, podem-se inferir duas situações imediatas: a desautorização da pretensão de Jesus (“maldito todo aquele que pende na cruz”), e a eliminação de mais um profeta. Os textos neotestamentários apresentam diversas teologias da crucifixão e morte, como as citadas anteriormente. A tradição de produzir novas explicações, sem contrariar o texto bíblico, tem sido a rica experiência da Igreja, para responder, na fidelidade à fé, às questões humano-religiosas nos diversos tempos. É por isto que a cristologia se torna um conhecimento dinâmico. Ela atualiza a fé circunstanciada, mas sem nunca perder a referência normativa da Bíblia Sagrada. Agora, vamos aprofundar as quatro teorias mais significati vas da tradição da Igreja sobre a morte de Jesus: Claretiano - Centro Universitário
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a) b) c) d)
teoria do sacrifício; teoria da redenção e resgate; teoria da satisfação; teoria do mérito.
Teorias bíblicas Teoria do sacrifício
A ideia de sacrifício e da vitimização sacrificial estava presente no povo hebreu, tanto do Antigo Testamento quanto do Novo Testamento. Ela expressa, sobretudo, a fé em Deus. Oferecia-se a Deus uma vítima para sacrifícios de aliança, de holocausto, de expiação pelos pecados ou de louvação. O sacrifício, nas diversas representações, teve como inten ção a vontade de entrar ou de permanecer em comunhão com Deus, render-lhe graças, pedir perdão ou louvá-lo. O sacrifício era também celebrado como memória atualizante dos gestos passa dos. Ele assegurava a certeza da presença perene de Deus e de sua assistência divina junto ao povo. Também por meio do sangue da vítima se julgava aplacar (ainda que provisoriamente) a ira de Deus, ferido pela maldade humana. Inocente era a vítima a ser sa crificada pelo pecador, apesar de que Deus, por meio dos profetas, insistia na pureza de coração, na hombridade dos atos pessoais: corações puros! Os cânticos isaianos do Servo sofredor expressam bem o significado do sacrifício. Sua teologia se torna clara, sobretudo, no texto de Is 53. No caso da morte de Jesus, o sangue derramado "por nós homens e pela nossa salvação" como iniciativa de amor de Jesus em oferta ao Pai, tornou-se, em realidade, o dom supremo do Pai à humanidade (cf. Rm 3,24-26). Seu valor implica no oferecimento de nossas vidas, como sacrifício vivo, santo e aceito por Deus (Rm 12,1), em favor dos irmãos.
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A morte de Cristo é, ao mesmo tempo, sacrifício e expiação, pois o ser humano é incapaz de reparar, por si só, seu pecado. Não pode satisfazer a justiça divina ultrajada. Só Cristo pode fazer isto de modo pleno e eficaz. Ele substitui os homens. O mundo bíblico estava baseado na cultura de sacrifícios cruentos e expiatórios, e na cultura romana, com base às questões legais de justiça. A morte de Jesus recebe a interpretação teológica adequada da teoria do sacrifício. Mais profundamente, porém, no existir humano, o sacrifício evidencia a ideia de doação de si mesmo, a ponto de morrer doan do sua vida por nós. A válida ideia de outrora evidencia hoje um limite no aspec to vindicativo e cruento, por não se coadunar com a bondade de Deus. O valor da ideia também contém um limite: seja por ignorar a misericórdia de Deus seja por não levar em conta a ressurreição de Jesus. Teoria da redenção ou do resgate
A teoria da redenção ou do resgate também é bíblica como a anterior. Estava ligada à ideia de escravatura e libertação. Para alforriar um escravo era preciso pagar seu preço. Seguindo a lei do Antigo Testamento, o parente mais próximo do "escravizado" tinha a obrigação de pagar seu resgate, redimindo-o. Cristo é o parente mais próximo do ser humano, que está es cravizado pelo seu pecado. Só Cristo é livre, porque vem de Deus, e por isto pode pagar o preço devido. Aliás, o próprio Jesus se apre sentou como resgatador e libertador (cf. Mc 10,45; Mt 20,28). Isto também fica claro nos textos de 1Tm 2,5-6; Tt 2,14. Os textos de Gl 3,12; 4,5; 1Cor 6,20; 7,22-23; Ap 5,9-10; 14,34, falam de pagar o resgate a quem Deus deveria nosso preço (é daí que surge a "teoria do direito do demônio"). O resgate se es tabelece entre Deus e o demônio numa situação salvífica supra -histórica. A morte de Jesus seria o preço da reaquisição da liber Claretiano - Centro Universitário
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dade humana. Todavia, na história, o homem permanece sempre em situação de risco e da perda da liberdade. Isto, hoje, dificulta a plena aceitação da teoria. Teorias teológicas Teoria da satisfação
Este tema já foi comentado anteriormente ao se falar da cris tologia de São Anselmo. Volte e releia o texto na Unidade 1, item 2, para perceber melhor o sentido desta teoria.
Se o homem ofendeu gravemente a Deus, é necessário que Deus se faça humano para poder reparar de modo infinito a ofensa feita. Cristo, em nosso lugar (daqui vai surgir a teoria da satisfação vicária), é o único capaz de satisfazer adequadamente Deus ofen dido. A pena do pecado é o sofrimento e a morte de Jesus na cruz. Deus castiga Jesus, que morre por nós – em vista do nosso pecado – e assim a justiça divina é recomposta. Fomos curados graças ao seu sacrifício e à sua morte na cruz. Esta teoria, hoje, deixa de ter tanto valor, mesmo num orde namento jurídico, por enfatizar um mecanismo atroz de pagamento do mal por outra situação maldosa. Isto não se harmoniza nem com a experiência humana de Jesus e nem com nossa experiência diante de Deus. Entretanto, a teoria mantém seu significado per manente à medida que se descobre a solidariedade de Cristo por nós, a ponto de dar sua vida em busca da mais completa fidelidade ao Pai. Teoria do mérito
A morte de Jesus obtém, alcança, para nós, não só o perdão dos nossos pecados, mas também restaura a ordem perturbada pelo mal. A morte cancela, destrói, a desordem do pecado e nos
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garante a renovação da ordem perdida, abrindo a possibilidade da ressurreição, da vida nova. Deus aceita, como radical adesão hu mana à sua vontade divina, a santidade de vida nossa vivida mes mo na dor e no extremo da morte de seu Filho, que nos "merece" assim a salvação. Se "adão" criara seu deus, seu ídolo, fazendo exatamente o contrário da vontade divina, agora, Cristo o recupe ra em amor tão grande, assumindo a morte na cruz, e “merece”, obtém o perdão dos pecados e a salvação para todos. Informação Complementar ––––––––––––––––––––––––––––– Estas quatro teorias, que predominaram e predominam na teologia e na vida da Igreja, nem sempre são “convincentes” na atualidade para muitos cristãos. Vários teólogos têm proposto novas interpretações. ––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––
Iremos enfatizar aqui apenas duas razões teológicas, a partir do pressuposto sotereológico da cruz e não toda a sotereologia da encarnação do Homem Deus. Teoria da entrega ou da solidariedade
A teologia da entrega, também compreendida como solida riedade, é uma das interpretações mais fortes na cristologia atual. Ela predomina em autores como: Karl Rahner, Christian Duquoc, Edward Schillebeeckx e Jon Sobrinho. A morte de Jesus só tem significado mediante sua relação com Deus e conosco. Nesta relação surge uma teologia da entrega ou da solidariedade (significado antropológico), que foi o modo de Jesus viver e entender sua morte: A “entrega Dele por Deus e por nos" é uma questão muito presente nos evangelhos. O próprio Jesus indica que o Filho do Homem vai ser entre gue às mãos do Sinédrio, dos pagãos. Ele será escarnecido, flagelado e morto (cf. Mc 14,41). Ele viveu a condenação e a morte como autoentrega a Deus e a todos os homens, como consequência de sua vida terrena (pró-existência). Jesus deixou-se levar de mão em mão: traído por Judas é entregue aos soldados, que o entregam aos sumos sacerdotes, que o entregam ao Sinédrio, que o entrega Claretiano - Centro Universitário
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a Pilatos e Herodes, que o entregam aos soldados para o crucifi carem. Abandonado por todos (incluídos aqueles a quem dedicara sua vida), e em sua extrema solidão, Jesus entrega, num grito lan cinante, seu "ruah" ao Pai (cf., Lc 23,46; Jo 19,30). Paulo, interpre tando, para sua comunidade, sintetiza: "Minha vida presente na carne, eu a vivo pela fé no Filho de Deus, que me amou e se entre gou a si mesmo por mim” (Gl 2,20; cf. Ef 5,2.25; Tt 2,14). A entrega de Jesus, pelos sofredores e pecadores, na con denação e na cruz, é um adentrar-se na extrema miséria humana, com todas as consequências perversas e diabólicas. Jesus sofre e morre pelos homens e mulheres oprimidos e sofredores de todos os tempos. Sua entrega também nas mãos dos opressores e inimi gos (de Deus e dos irmãos) é também um gesto de solidariedade radical (Ele não apelou à violência) em favor daqueles que são ví timas de seus próprios pecados, para permitir-lhes que se afastem do mal que fazem e se reconciliem com Deus (cf. Mt 23,33). Na paixão e morte, o significado da pró-existência de Jesus se torna translúcido porque Ele entrega sua vida pelos que sofrem, pelos que são excluídos. Também a entrega, pelos opressores e injustiçadores. O paradoxo não é ambiguidade, mas um profundo ato salvífico, cujo significado não se dá nas estruturas humanas. Só um homem-Deus poderia agir assim. Significado da entrega
Nesta teologia da entrega ou da solidariedade descobre-se um segundo aspecto: o significado teológico. Deus mesmo entre gou seu Filho único. Deus o entregou ao mundo para salvar o mun do. Não poupou o próprio Filho, para evidenciar o quanto nos ama (cf. Rm 4,25; 8,22; Jo 3,16s; Rm 8,31s). No Filho, é Deus mesmo que se entrega aos pecadores e às vítimas do pecado. Deus se en trega no seu Filho não por uma prepotência divina sobre o Filho, mas enquanto este radicaliza, como seu, o querer do Pai. Nem sua vida, nem sua morte lhe pertencem; elas pertencem ao Pai.
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Deus, ao mesmo tempo, se entrega pelo Filho às mãos dos pecadores, para que estes consumam sua obra perversa. Sem os pecadores perceberem é, desde dentro da morte e do pecado, que Deus vai lhes redimir. A fé cristã professa que um da Trindade morreu na cruz. Jesus crucificado é a Segunda Pessoa da Trindade. Na morte do Verbo encarnado, Deus entra em contato com o sofri mento sem se deixar sucumbir por ela (Jesus é ressuscitado pelo Pai, que destrói a morte). Por esta entrega, Deus nos redime da nossa morte. Sofrendo a morte de Jesus, em si mesmo, Deus se põe em contato inseparável e inalienável com o mais perdido pecador para redimi-lo. Nesta radicalidade da morte, Deus se revela quem é: Ele é amor (1Jo 4,8). É aquele que ama o ser humano, numa entrega total para que ninguém se perca (cf. Jo 3,16). Deus é Jesus e Jesus é Deus. Nesta identificação profunda e absoluta, compreende-se a relação exclusiva entre Deus e o homem Jesus, como Aquele que viveu por nós e para nós. Esta entrega à morte para vencê-la por nós e para nós significa a autocomunicação de Deus para o "não Deus” (o ser humano) de modo a atingir a plenitude na ressurrei ção do Filho. Esta entrega resume o significado do ensino de Jesus, que, antes de ser uma questão ética, é teológica: "Quem quiser salvar a sua vida, vai perdê-la. E quem perder a sua vida, a salvará" (Jo 12,25). Teoria da representação
A teologia da entrega, também compreendida como solida riedade, constitui, ao lado da categoria representação, uma das interpretações mais fortes na cristologia atual. É importante ressaltar, no tocante à morte de Jesus, a ex pressão: "por nós”, “ por muitos”, “ por vós” (cf. Mc 14,14; Mt 26,28; 1Cor 11,24; Lc 22,19; Jo 6,51). J. Jeremias afirma que tal conteúdo (pro, por) tem tanto o sentido de " em favor de", mas também "no lugar de" (representação vicária). Claretiano - Centro Universitário
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Sua entrega à morte é um serviço da libertação nossa fren te a todos os tentáculos do pecado, das opressões e da morte. É também uma entrega no lugar dos pecadores, necessitados e até dos inimigos e opressores. Neste sentido, pode-se, antes de leitura ética, compreender o texto de Lc 6, 27,35, como teológico e aplicá -lo ao sentido da morte de Jesus. Sua morte manifesta, de modo radical, o seu amor pró-existentemente. Informação Complementar ––––––––––––––––––––––––––––– Jesus morre não apenas em favor de nós, mas também em nosso lugar. Esta teologia tradicional, que mantém uma proveniência jurídica, tem sido renovada em grandes teólogos atuais: Wolfgang Pannemberg, Walter Kasper, Urs Von Balthazar, Joseph Ratzinger, entre outros. ––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––
A morte de Jesus, como representação de um por muitos, não livra nem substitui a morte dos outros e muito menos a res ponsabilidade pessoal de cada um. Ela significa: • a libertação fundamental que Jesus produz no sentido de abrir as possibilidades de, doravante, vencer as escravi dões humanas (o mal, o pecado e a morte); • criar a possibilidade de uma vida nova em Deus. Jesus é o iniciador e condutor de uma nova humanidade, como "primogênito dentre muitos irmãos e irmãs (cf. Rm 8,29). A nova e verdadeira humanidade (o novo Adão) é marcada com o sangue de Cristo e não mais com o sangue do "velho Adão". Se antes o homem "velho" olhou para si, agora o "homem novo" é capaz de se esquecer de si, para fazer sua a vontade do Pai, e dar a vida para salvar os que o Pai lhe dera, pois nenhum pode se perder (cf. Jo 6,37-39). Jesus assume a missão confiada pelo Pai, com a dedicação extrema até a morte. E esta fidelidade o faz apresentar -se diante do Pai em nome de todos. Se na teologia da entrega, há dois níveis ou signicados: 1) a entrega de Jesus Cristo por nós (significado antropológico); 2) a entrega de Deus em Jesus (significado teológico).
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Aqui, na teologia da representação também, há planos ou significados. No plano, antropológico, que é o mais fundamental, Jesus pode apresentar-se diante do Pai como todo o amor humano possível, até a morte, pela causa de Deus. Um dentre nós amou tanto a Deus quanto os seus irmãos, que se tornou capaz de representar, em si mesmo, toda a possibili dade humana de amor a Deus sobre todas as coisas, com todo en tendimento, com todas as forças, de todo o coração (cf. Lc 10,27). Um dentre nós foi capaz de transcender-se a ponto de dar a vida para fazer a vontade de Deus (a de não perder de nenhum dos irmãos). Se “Ele se entregou por mim” como diz São Paulo (Gl 2,20), oferecido por Deus a nós, também o caminho inverso ocorre. Nas atitudes deste filho da humanidade, nascido de mulher sob a Lei (cf. Gl 4,4), foi feita, não a vontade de Adão (cf. Gn 3, 6; Lc 22,42), mas a do Pai (significado antropológico). Visto que em sua vida e sua morte, Jesus é o ser humano verdadeiro que corresponde inteiramente a Deus, sendo, portanto, em seu relacionamento com Deus e os outros, o protótipo do ser humano, como tal, Ele representa em si todos os demais seres humanos, não como eles sempre são, mas como ainda deverão tornar-se; afinal, todos deverão conformar-se à sua imagem, e deverão fazê-lo atra vés da comunhão com Ele “por meio Dele”, “em” e “com Cristo” (KESSLER, p. 380).
A morte de Jesus é, então, a possibilidade de Deus crer real mente no homem e a possibilidade de o homem encontrar em Je sus, como diz Ratzinger, a "representação afiançadora", que afirma Jesus como garantia da possibilidade de o homem voltar a Deus, entregar-se a Ele e recompor a aliança agora tornada definitiva pelo sangue na cruz. A morte de Jesus vence o pecado e seus po deres escravizantes, inclusive o amedrontamento da ira de Deus, e por Ele possibilitar, não substituir a própria entrega de cada um a Deus. Claretiano - Centro Universitário
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O sacrifício de Jesus "pelos pecados do mundo inteiro” (1Jo 2,2) é a mais pura representação do amor humano a Deus. A ofe renda do corpo de Jesus Cristo, realizada “uma só vez por todas", na cruz (cf. Heb 10,5-10), não apenas nos santifica, mas também nos apresenta como hóstias vivas de suave odor ao Pai (cf. Ef 5,2). Amando-nos até o fim, dando a vida por nós, seus amigos, fazendo-se um conosco, Ele se torna nosso representante junto ao Pai. Pois é seu desejo que onde Ele estiver, nós estejamos com Ele. “Ele uniu a si, de certo modo, todo homem” (GS 22,2). Deu assim a todos a possibilidade de se associarem ao seu Mistério Pascal (cf. GS 22,5). Chama os seus a tomarem suas cruzes e O seguirem (cf. Mc 10,39), dando-lhes o exemplo para que sigam os seus passos (cf. 1Pe 2,21). No outro plano, encontra-se o significado teológico. Deus aceitou o sacrifício único de Jesus como prova do amor humano. Deus nos vê pelo seu Filho, que é o nosso irmão. E quem poderia melhor representar o ser humano diante de Deus, senão o Ho mem Jesus? A cruz de Jesus não é o significado da quantidade de dor, mas a expressão maior da dedicação humana a Deus. Nela, o ser humano não precisa mais oferecer a Deus cultos e sacrifícios, san gue de animais ou bodes. Na cruz, não é oferecido nada de tudo quanto pertence a Deus. Nela, só é oferecido o que é próprio do homem: sua liberdade. A cruz torna-se, pois, a radical e inaudita oferta de liberdade humana, em sua capacidade máxima de amar a Deus. Porque a oferta (entrega) de Jesus na cruz ao Pai é uma ação humana de amor, que resposta pode Deus lhe dar senão também em amor? Deus só pode mesmo recriar a humanidade e o cosmo, começan do tudo de novo, e ressuscitar seu Filho. E torná-lo primogênito dos mortos. Conforme o Novo Testamento, a cruz de Jesus é um movi mento primeiro de cima para baixo, como diz Ratzinger (cf. Intro -
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dução ao cristianismo, p. 209). É nela que o Pai reencontra o velho e o novo Adão e os chama de volta ao paraíso. Jesus sintetiza em si a realidade humana (fizera-se até pecado por nós (cf. 2Cor 5,21) e era o Filho amado do Pai (cf. Mt 3,17; Mc 9,7). Numa síntese feliz, H. Kessler afirma: Justamente em sua morte Ele representa, por isto, os muitos e os faz, através do efeito "multiplicador" da graça (2Cor 4,15), partícipes de sua própria justiça de Deus (5,21). Esse, um ser humano, representa o lugar de Deus junto a todos os seres humanos e o lugar destes junto a Deus; ao invés de nos substituir, Ele mantém esse lugar permanentemente aberto para nós e nos introduz em sua própria atitude interior. A representação de Jesus contém, assim, um movimento exclusivo (que cabe unicamente a Jesus) e um in clusivo (que inclui e convida os outros) (KESSLER, 2000, p. 380-381).
Inúmeras outras ideias e teorias foram apresentadas, mes mo recentemente, sobre a morte de Jesus. Assim, resumidamente temos quatro planos: 1) Histórico: • condenado politicamente, por desacato ao Estado Romano (subversão) e messianismo/pretensão de re aleza; • religiosamente, por causa da questão do "sábado"; • e da pretensão de filiação divina. 2) Bíblico: • Morte como sacrifício, redenção (resgate); • Figura do servo sofredor, profeta mártir escatológico. 3) Teológico: • Deus o fez pecado por causa de nós; • Como satisfação a Deus; • Como mérito por nós junto a Deus; • Por solidariedade e representação. 4) Sotereológico: • para o perdão dos pecados (dimensão negativa); • para nossa salvação (dimensão positiva). Claretiano - Centro Universitário
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Há uma imensa gama de interpretações. Todas elas têm (ou tiveram) sua validade. Não há uma que seja suficientemente glo balizante. Sempre são pontos de vistas que podem partir de uni versos sócio-culturais, religiosos ou teológicos diversos. As explicações teológicas, como as outras, estão condicio nadas ao tempo e às culturas. Elas não podem ignorar as de di mensão bíblica (morte por nós, como sacrifício e como resgate). Impuseram-se historicamente duas grandes teses teológicas (sa tisfação e mérito). Na atualidade, aparecem também dois enfo ques predominantes: o da entrega (ou da solidariedade) e o da representação. Contudo, o grande significado da morte de Jesus só pode ser compreendido a partir da dimensão sotereológica. Mesmo que ela tenha sido compreendida, no passado, prioritariamente como salvação e/ou redenção dos pecados; hoje se tende a perceber o caráter redentor da morte pelos pecados. Há uma forte ênfase em compreender toda a vida encarnada de Jesus Cristo (não apenas sua morte), como ação sotereológica (salvífica). Particularmente, aqui, são postas duas questões sobre a morte: o aspecto redentor dos pecados da humanidade e a solidariedade representativa de Jesus (um amor pró-existente: por Deus e por nós, homens).
8. O RESSUSCITADO: AUTORREVELAÇÃO DE DEUS E DO HOMEM No início do século 20, os manuais de cristologia mal ace navam à questão da ressurreição. O tema não merecia mais que umas linhas, em complementação à morte do Senhor. A ressurrei ção era tomada como um fato que dizia respeito praticamente só à pessoa de Jesus, sem nenhuma incidência para a humanidade toda.
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Desde a metade do século passado, a partir da obra do francês François Durwell, "A ressurreição de Jesus, mistério da salva ção" (1950), redescobriu-se a importância do tema para a fé. Você terá, agora, uma oportunidade de aprofundar a refle xão cristológica sobre a ressurreição de Jesus. Inicialmente, en contrará, no texto, algumas questões que ajudam a dirimir alguns pontos para assim facilitar o entendimento desta maravilha divina, que não apenas continua a obra da criação, mas a recria e a leva a sua plenitude. Lembre-se de que sem a ressurreição a nossa fé é vã, como já dizia São Paulo. Diante do tema fundamental da cristologia, a ressurreição, devemos, logo no início, eliminar algumas dúvidas e o faremos de modo incisivo: a) A Igreja crê que Deus ressuscitou o crucificado. E o fez: • para desautorizar a rejeição e a condenação infligida pelos homens; • para evidenciar que a plenitude da vida só se encontra em Deus mesmo; b) A ressurreição de Jesus é um acontecimento escatoló gico, com incidência histórica. Portanto, não pode ser comprovado cientificamente e não existe nenhum outro caso conhecido na história. A ressurreição de Jesus não é como a de Lázaro (este voltou a viver esta vida terrena e depois morreu novamente). Vale lembrar que, reencarnação, reanimação de cadáver ou “experiência de morte” em nada tem a ver com a ressurreição.
O Novo Testamento não responde como era o corpo do res suscitado. Limita-se a dizer que o ressuscitado era Aquele Jesus que convivera com eles. Ninguém viu o momento da ressurreição, mas todos os que viram o ressuscitado sabiam (não só criam) que Ele era Aquele que vivera com eles e morrera crucificado. Claretiano - Centro Universitário
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A ciência só pode constatar a reação dos apóstolos e suas consequências (por causa da ressurreição). Não é competência científica pesquisar a ressurreição. Ela é um fato escatológico, não verificável empiricamente. Os textos bíblicos sobre a ressurreição e as aparições, escri tos em tempos diferentes, por evangelistas com objetivos diferen tes, nem sempre se manifestam de acordo nos detalhes. Isto não é sinal de contradição ou desautorização dos fatos, mas experiências tão inauditas e surpreendentes que nem sempre os detalhes são importantes, como por exemplo: número de aparições e a quem, terceiro dia, o túmulo vazio, peixe assado etc. A realidade do ressuscitado é nova e inaudita. São Paulo escreve que o corpo biológico (animal) se transforma em corpo espiritual. Não é des-encarnação ou i-materialização, mas corpo possuído pelo Espírito de Deus (cf. 2Cor 3,17). Não é vida histórica (1Cor 15,45), mas é vida vivificada e vivificante. É vida não mais para si, mas vida aberta como comunhão com Deus, com os outros e com o cosmo (mundo). É vida espiritual. Quando, se escreve nos evangelhos que Jesus “pegou (to mou)" o pão, e o "comeu", mostrou "as chagas", "atravessou" paredes, "subiu" ao céu, "falou" etc. quer se afirmar a concretude da identidade do ressuscitado, levando em conta a experiência dos ouvintes do evangelho e sua capacidade de compreensão. Isto aparece principalmente nos textos de Lucas, que escreve para os gentios e judeus helenizados. Os relatos da ressurreição, com ên fase na questão corporal, pretendem, sobretudo, afirmar que o ressuscitado é o mesmo crucificado, em sua totalidade, superando a dicotomia grega de corpo e alma: quem ressuscitou foi o Nazare no em sua totalidade agora espiritual. Se quando nasce de um ovo, um passarinho ou, de uma se mente, uma planta, quem fica valorizando a casca do ovo ou da semente? O que passa a ter importância é a nova vida. Assim, tam bém procede o Novo Testamento sem se ater ao como era o novo
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corpo. Mas, e se encontrassem o corpo de Jesus, dois mil anos de pois? É preciso lembrar: nossa fé não se baseia num cadáver, num morto, mas na realidade escatológica aceita pela fé. Portanto, a aceitação da ressurreição é um ato de fé religiosa (não é comprovação nem pela ciência). Ela é uma realidade esca tológica. E isto é o fundamento da fé cristã e da cristologia. A "ressurreição de Jesus" não é uma ideia absurda. Nela, e para além dela, os cristãos encontram a explicação, racional e razoável, para os profundos anseios humanos. Eles afirmam: o ser humano existe a caminho da plenitude da vida humana, que só se realiza em Deus, ao poder vê-lo face a face, sem nunca mais morrer .
A ressurreição de Jesus tem a ver com o futuro, mas já é vivi do na fé, hoje. Por isto o modo de viver Dele é algo desconhecido para nós: sabemos, no entanto, que Ele mantém a integralidade de sujeito humano, vivendo junto de Deus e como Deus. Jesus ‘crucificado ressuscitado’ é quem tomou a iniciativa de se fazer ver. Suas aparições não são manipulações ou visões. Elas não dependem do ser humano. Foi fundamentados na ressurreição que os apóstolos atemo rizados diante do fracasso e escândalo da cruz compreenderam o sentido global da ação de Deus (a ressurreição de Jesus) e destemi damente reabilitaram a causa e a pretensão de Jesus. A comprova ção disto está na presença do cristianismo, com sua contribuição, até hoje, por toda a parte do planeta. Significado teológico da fé na ressurreição de Jesus Depois dessas questões preliminares, com caráter apologé tico, é preciso aprofundar o significado teológico da fé na ressur reição. É importante ressaltar, desde o início, que seu caráter é singular, único, inaudito e inusitado. Nenhuma outra religião apresenta esta ideia, ou melhor, este acontecimento real, de dimensão escatológica, porém. Claretiano - Centro Universitário
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A fé pascal é uma atitude pessoal do cristão baseada em suas próprias experiências (como o foi a dos apóstolos), mas fun damentada na tradição cristã, cuja origem está no relato bíblico do encontro dos apóstolos com o ressuscitado. A fé pascal não é só um ato de crer no que os outros (especialmente os apóstolos) disseram. Cada crente refaz, em seu coração, a experiência imediata do encontro com o Ressuscitado. Crê Nele como seu Senhor que está vivo e exaltado pelo Pai e é seu único salvador. A fé, que leva à experiência pascal, inclui a experiência de salvação (que pressu põe a graça do perdão) e a experiência de eternidade. Ela inclui crer que, no ‘crucificado ressuscitado’, Deus salvou definitivamente o ser humano, particularmente Jesus. Ele é a an tecipação de nossa salvação. O Pai levou Jesus à consumação (cf. Heb 5,9), cuja sequência lógica e de conteúdo encontramos nos resumos dos discursos de Pedro (kerigma da fé, cf. At 2,22-36; Heb 12-26; 4,9-12; 10,34-43), mas epístolas (Rm 8,34s; Ef 1,22-23; 1Pe 3,18-22) e nos “Credos” da Igreja. A fé pascal crê neste Jesus que passou pelo mundo fazendo o bem (At 10,38), que Deus estava Nele e com Ele, reconciliando consigo o mundo (2Cor 5,18), que Nele Deus esteve (e está) conos co (Emanuel, Mt 1,23). Ela crê que Ele nos revelou o Pai (cf. Jo 1,18) e foi constituído para a nossa salvação. Crê-se que, por Ele, Deus reinicia a humanidade e o cosmo de modo definitivo e último para a plenificação. E se crê, finalmente, por sua ressurreição, Deus nos deu o Espírito Santificador, o que nos conduzirá à nossa plenitude humana: viver em Deus. A fé pascal, contudo, tem uma implicação radical, que, aliás, decorre das próprias aparições do ressuscitado. É frequente es quecer que todas as aparições estão vinculadas ao mandato mis sionário. À medida que cristologia e a sotereologia foram se distan ciando entre si, também ficava mais patente o esquecimento do
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sentido das aparições do ressuscitado. Jesus não apareceu como que para dizer "ressuscitei", mas para apelar à continuidade de sua causa, que era (é) a causa do Pai: "ide e pregai o Evangelho. Ensinai e batizai, fazei discípulos" (cf. Mc 15,15s; Mt 28,19ss). A missão é continuar o processo de antecipação histórica do Senhorio salvífico de Deus, sobretudo pelo testemunho. É preciso refletir: a ressurreição, a nossa vida histórica, faz sentido no cum primento do mandato missionário, pois em Jesus Deus reconcilia o mundo (Mc 16,16-20). A intencionalidade missionária das aparições indica também a dimensão comunitária da ressurreição. Quem a recebe deve co municá-la aos outros, a fim de que se vá constituindo o povo de Deus (dos batizados), desde então até o fim dos tempos. Vale lembrar que o evento da ressurreição é distinto do das aparições. Enquanto as aparições têm um caráter histórico, a res surreição é um acontecimento escatológico. Se as primeiras são acessíveis só a testemunhas previamente escolhidas e não a todos (cf. At 10,40), e não são proporcionais a outros acontecimentos humanos, a ressurreição é um aconteci mento em Deus, cuja singularidade diz respeito ao futuro do ser humano (mesmo com as implicações atuais, sejam pessoais, sejam comunitárias). “Sei que meu redentor vive" é um brado de fé pascal. Mas como encontrá-lo hoje? Ao responder esta questão, Le onardo Boff diz com propriedade, lembrando que "o cristianismo não vive de uma saudade, mas celebra uma esperança”. O autor enumera várias maneiras da presença do ressuscitado hoje: a) no Cristo cósmico pertinente à terra e ao próprio cosmo; b) no ser humano (o maior sacramento de Cristo); c) nos cristãos anônimos e latentes; d) nos cristãos explícitos e patentes; e) na Igreja (sacramento primordial da presença do Senhor). Claretiano - Centro Universitário
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É importante você ler agora, em BOFF, Leonardo. Jesus Libertador . Petrópolis: Vozes (várias edições), os capítulos: “Onde encontramos o Cristo ressuscitado hoje?” e “Como vamos chamar Jesus Cristo hoje?” Lembre-se de que o contexto sociocultural do livro já não é mais o do tempo atual, mesmo nas reedições do autor.
As aparições de Jesus (1Cor 15,5-8), sua ascensão, exaltação, entronização à direita do Pai ou recuperação da glória que detinha antes da encarnação (cf. Jo 17, 5; 1Tm 3,15) etc., são variações bíblicas que interpretam o mesmo fato básico da ressurreição, em ângulos diferentes de tempo e objetivos, que a própria liturgia tem sabido em explorá-los dentro do único mistério pascal. Como diz C. Duquoc: "Nas experiências da Páscoa se ligam assim visão, audição, êxtase. Páscoa, Ascensão e Pentecostes se juntam sob a força do Espírito”. (In: LACOSTE, 2004, p. 1533). Significado teológico da ressurreição A ressurreição é fator determinante não só da fé. Ela o é também da cristologia. Só à luz da ressurreição é que se faz cristologia, pois só ela revela a identidade de Jesus e seu papel salvador. "Se Cristo não ressuscitou, vã é a nossa pregação, vã é a vossa fé" e “ainda estais em vossos pecados, e os falecidos estão perdidos" (cf. 1Cor 15,14.17s). Ressurreição, como ação de Deus: conteúdo teológico
Na ressurreição de Jesus, Deus se revela quem realmente Ele é: "amor". Amor que se comunica, sobretudo por meio de seu Fi lho, que é a situação pessoal, definitiva e eterna do encontro entre Deus e o homem. O Filho se torna a ocasião da revelação de Deus e da plenificação do ser humano. "Se a encarnação é um ato pelo qual o Senhor se faz servo, a ressurreição é o ato pelo qual o servo é constituído Senhor". (CAR DEDAL, 2001, p. 487)
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É por isto que se diz do Deus de Jesus: "Ele é senhor dos vivos e dos mortos" (Mc 12,27), "Deus para nós é um deus de salvação; só o senhor Deus pode libertar da morte" (Sl 68,21). Libertando da morte, Deus ressuscita, primeiramente, seu Filho e depois todos os outros (cf. 2Cor 1,9). Como ação de Deus, a ressurreição completa, consuma, a obra criada. Em Jesus Deus supera a morte e faz o ser humano vi ver para sempre, irreversivelmente diante Dele. Jesus ressuscitado é constituído o pai desta nova humanidade, cuja plenitude é par ticipar da vida de Deus. Por outro lado, pela ressurreição de Jesus, Deus se aproxima da humanidade, recusa toda injustiça e rejeição, sobretudo quando feitas contra os crucificados da história; rejeita as forças do mal e garante a salvação do ser humano. Salvar é algo inerente a Deus. Por isso chama à vida não mais histórica, porque esta é limitada e contingente, localizada e finita; chama à vida im perecedora, que é vivificante, universalmente personalizante. Seu poder derrota a morte (todas as espécies de morte). Na ressurreição de Jesus, o primeiro sinal que os discípulos compreendem é: Deus atuou Nele, ressuscitando-o (cf. os discur sos de Pedro nos Atos dos Apóstolos). Ao proceder assim, Deus culmina sua autorrevelação como Deus da vida e que se "intro mete" na vida humana a fim de que ela atinja sua plenitude. Ao ressuscitar o crucificado, restitui sua glória anterior colocando-o à sua direita. O prolongamento da ressurreição dos outros homens é a comprovação que nem a morte, nem o ser humano e nem a própria história tem a última palavra. O Deus vencedor da morte é o futuro do ser humano, pois Ele é fiel à sua palavra. Diante da ação do ressuscitamento de Je sus, todo homem e toda mulher podem crer que o mal, o pecado (injustiça, miséria, opressão) e a morte não têm consistência em si mesmos, apesar das aparências históricas. Esta ação de Deus reve la de modo definitivo que Ele é "Deus conosco" (Mt 1,23) e “estava no seu Cristo e reconciliou consigo o mundo (cf. 2Cor 5,18). Claretiano - Centro Universitário
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A ressurreição, com revelação de Jesus: conteúdo cristológico
Confirmadas por Deus, a pessoa, a vida e a obra de Jesus, Ele é revelado agora como o Adão definitivo, primogênito dentre os vivos e mortos, dentre todos os irmãos. Ele é o consumador da obra de Deus. Sua vida histórica terrena confirma também que Ele era Deus conosco (Emanuel). Adentrado na história, inclusive na realidade do sofrimento, do pecado e da opressão, Ele é o reden tor e salvador da humanidade. Sua vida, não só vivida a partir da vontade de Deus, mas de Deus encarnado, evidencia que a comu nhão vivida em favor de Deus e dos irmãos se torna indestrutível. Se a ressurreição revela que Jesus era Deus entre nós, ela revela também que Ele entra na glória do Pai, que como Filho já a possuía antes da criação do mundo (Jo 17,5). É daí que surge a validade da fórmula teológica tão frequente: “Ele ressuscitou” por sua própria força divina. O conteúdo cristológico da ressurreição mostra adequação dos títulos a Ele atribuídos: Messias, Senhor e Filho (cf. At 2,36; Rm 1,4), porque a encarnação se consuma na ressurreição, por obra do Espírito. Quem Ele era realmente se evidencia na ressurreição. Por isso, toda a expectativa de Israel por meio da aliança e das expectativas messiânicas, por meio dos patriarcas/profetas, na vida abençoada por Deus (terra, gado e filhos), libertações, históricas, tempo abençoado em Sião, perdão dos pecados e esperança da salvação definitiva e universal, vão se realizar no e pelo ressus citado. É Ele a síntese e fonte escatológica de todos os anseios e expectativas de Israel e de todos os homens e mulheres de todos os tempos. Reveja na Unidade 2, Jesus na História bíblica, o tema: O Antigo Testamento como base e fonte da cristologia neo-testamentária.
Jesus ressuscitado é a causa da salvação de todos os demais (cf. Heb 5,9), que arrasta atrás de si a imensa procissão humana (cf.
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Heb 12,2). É o homem que veio de Deus, o último Adão convertido em espírito que faz viver (1Cor 15,44-49). É quem antecipa e con cretiza a esperança humana da ressurreição dos mortos (At 4,2), a realização humana. Ele consuma a fé e antecipa o final da história. Ele evidencia o sentido e a razão da criação, como processo orien tado para Deus. A criação e a história são contínuas e processuais. Mas, seu sentido e sua razão estão no fim. Este processo é garantido pelo homem-Deus ressuscitado que vive em Deus como Deus mesmo. Por isso, para os cristãos, surge a certeza (não a esperança) da fi delidade de Deus (Ele foi fiel para com seu Filho) e de Cristo (que foi fiel ao Pai e aos homens): nosso futuro absoluto é Deus. Ele não só vence todo pecado, mas consuma seu plano, traçado desde a origem do mundo: sermos santos e perfeitos por meio de seu Filho (cf. Ef 1,3ss). A ressurreição como consumação humana: conteúdo antropológico
Jesus ressuscitado carregou consigo as "chagas da crucifi xão”. Ele permanece hoje tão verdadeiramente Deus (dogma de Niceia), quanto verdadeiro homem (dogma de Constantinopla). É, ao mesmo tempo, um e o mesmo (dogma de Calcedônia). Sua identidade permanece a mesma. Há, porém, que se afirmar o fato de que: Enquanto em Jesus histórico, a divindade se mantinha uma posição kenótica, agora na parusia lhe é restituída toda sua grandeza e glória. Constituído Senhor e Cristo, o ressuscitado é Deus, como Pai e com o Espírito. Deve-se, contudo, ressaltar que o ressuscitado con tinua sendo inseparável e indivisamente humano. A união surgida na encarnação do Verbo, no seio de Maria, permanece.
A chamada união hipostática (as duas naturezas, divina e huma na, inconfusas, imutáveis, indivisas e inseparáveis, conforme o ensino de Calcedônia) permanece na realidade nova Daquele que "subiu ao céu e está à direita do Pai". O mistério de Deus se une à realidade do homem desde a encarnação, por isto Ele é verdadeiro Deus e verda deiro homem, na vida (história), e além da morte (ressurreição). Claretiano - Centro Universitário
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Se a ressurreição revela que Aquele homem era Deus desde toda a eternidade, ela revela, por outro lado, que Naquele homem a humanidade se tornou inseparável de Deus também na eterni dade. Nele, permanecem as duas naturezas unidas junto a Deus, mas inconfusas, imutáveis, indivisas e inseparáveis, conforme o próprio ensino de Calcedônia. É evidente que a união acontecida no ‘Deus homem’ não se estende ao Pai e ao Espírito Santo. Deus é, em sua unidade, trino (três pessoas divinas). A segunda Pessoa da Trindade, o Filho, permanece unido em suas duas naturezas (humana e divina). Sem dúvida, a união não se desfaz (nunca mais), por isso a ressurreição atinge a realidade total de Jesus Cristo, Aquele que é um só e o mesmo, aquele que é o crucificado-ressuscitado. Ninguém pode afirmar que a morte e a ressurreição atingi ram apenas a natureza humana. Elas são realidades pertinentes ao mesmo e único Verbo encarnado. Na cruz morreu um da Trindade e, na ressurreição, ressurgiu o que morreu: um da Trindade. Agora, pode-se sintetizar assim: O ‘crucificado ressuscitado’ (unido hipostaticamente) saindo da história (pela morte) entra na eternidade e recupera toda a grandeza de Deus mantida kenoti camente, enquanto a natureza humana atingirá tam bém a sua plenitude. Mantêm-se a identidade das duas naturezas, mas doravante elas se manifestam em plenitude. A natureza divina do Verbo ressuscitado se apresenta com seu poder e glória. A natureza humana transforma o corpo corruptível (bazar) em corpo incorruptível. São Paulo precisa: Semeado corruptível, o corpo ressuscita incorruptível; semeado desprezível ressuscita reluzente de glória; semeado na fraqueza,
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ressuscita cheio de força; semeado corpo psíquico, ressuscita corpo espiritual. O que foi feito alma vivente [...] torna-se espírito que dá vida (cf. 1Cor 15,42b – 45).
Na linguagem paulina, a ressurreição transforma o homem ter restre em celeste. A corruptibilidade será revestida de incorruptibili dade. O mortal será revestido de imortalidade (cf. 1Cor 15,50-53). É preciso relembrar estes conceitos em Antropologia Teológica, na Unidade 3, Tópico 5. Antropologia do Antigo Testamento, p. 24ss.
A ressurreição atinge, de modo diverso, as duas naturezas do mesmo e único ‘crucificado ressuscitado’, Verbo encarnado. A natureza divina retoma seu poder e resplandece em sua glória. A natureza humana se consuma em plenitude, revelando, primogeniamente, quem realmente é Aquele que fora criado cor ruptível (na carne, na história) como imagem de Deus e agora se assemelha a Deus incorruptivelmente. A ressurreição (de Jesus, e depois a de todos os outros) faz o ser humano manifestar-se em plenitude. Este é o mistério da vontade de Deus, o que quer que nin guém se perca, pois em Cristo quer salvar a todos. O homem res suscitado é a realização máxima e irreversível das aspirações hu manas mais profundas. Jesus, como primícias dos que morreram, atingiu esta plenitude. Isto o faz garantia da fidelidade da promessa de Deus a todos os homens. Quando isto acontecer, então se verá que Deus tinha razão ao ver o homem criado como sua imagem e semelhança e excla mar que não apenas era “bom” com as outras criaturas, mas “mui to bom” (cf. Gn 1,31). E, então, seguirá o sétimo dia, o do "descan so" de Deus. E seguirá porque a criação estará consumada e Deus celebrará, com todas as suas criaturas, a festa que no céu nunca se acaba. O fim é a festa eterna de Deus, em que o homem continua rá sendo aquele que Deus tendo-o levado à perfeição, há de amar como sua criatura especial, por meio de seu Filho.
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Contudo, o caráter sotereológico tem sua revelação máxima na ressurreição de Jesus. Ela é o futuro do ser humano, em pro messa. Ao mesmo tempo, antecipado e garantido em Jesus Cristo. Vivemos nesta esperança cristã que é causa de profunda alegria, força de libertação, descrédito do mal (da injustiça e do pecado), compromisso com a vida e a libertação, pois o Senhor vive para sempre e nos chama a viver com Ele.
9. QUESTÕES AUTOAVALIATIVAS Confira, na sequência, as questões propostas para verificar seu desempenho no estudo desta unidade: 1) Assinale a única afirmação falsa: a) Nenhum estudo, por mais completo que seja, abarca toda a pessoa de Jesus, homem e Deus, entre nós e nosso senhor salvador. b) A cristologia é feita para a compreensão dos que creem, no tempo e circunstância que eles vivem e não como um estudo em si e para si mesmo. c) A cristologia deve ter sempre presente o Novo Testamento como normativo e o dogma, como integrativo. d) O Novo Testamento apresenta várias cristologias. A Igreja não reconhece que elas não se excluam, mas exigem a fidelidade a cada uma. e) Nem todas são verdadeiras. 2) Numa grande síntese, pode-se dizer que a cristologia tem tido dois grandes modos de proceder (métodos): “a partir de baixo” ou “a partir de cima”. Assinale a única afirmação correta: a) Na cristologia vai predominando hoje como critério para aproximar-se de Jesus “a partir de baixo”. b) Desde o século 12 houve uma crescente separação entre cristologia e sotereologia. c) No período de ouro da cristologia (do século 3º ao 8º), havia uma preocupação em se afirmar sempre quem era Jesus Cristo para a nossa salvação. d) Poder-se-ia dizer que a cristologia “a partir de baixo” é encontrada nas cristologias da libertação, feminista, contextual (asiática), negra (africana e norte-americana). e) Todas são verdadeiras. 3) Assinale a única alternativa falsa: a) A cristologia “a partir de cima” tem fundamento nos textos joanino e paulino.
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b) Predominou entre o clero e intelectuais, sobretudo da cultura branca “masculina” e europeia. c) A cristologia “a partir de cima” quase nunca parte da ideia que Jesus é o Verbo pré-existente (desde toda a eternidade). d) Ela é usada predominantemente pelos que trazem uma tradição doutrinária helenista-ocidental (com corte mais europeu e eclesiocêntrico). e) Alguns afirmam que sua forte presença se deve ao fato de ela ser a preferida pelos bispos e papas. 4) Assinale a única alternativa falsa: a) As perspectivas mais importantes da cristologia estão centradas: na morte de Jesus, em sua encarnação e na história. b) O enfoque encarnatório, em resumo, afirma que a razão do Filho Eterno se fazer homem (encarnação) era para revelar quem é Deus, quem somos nós e como Deus nos comunica sua vida divina. c) Como é impossível escrever uma “síntese cristológica definitiva”, então se percebe que todas e quaisquer cristologias sofrem a influência da cultura e das relações existenciais de seus teólogos. d) Ao estudar a cristologia, enfoque histórico, hoje, torna mais acessível, para nós, o encontro com Jesus Cristo, por isso muitos teólogos fazem esta opção metodológica. e) A cultura pós-moderna (inclusive católica) não assumiu a centralidade do ser humano; antes, enfatiza a reflexão cristológica que permanece centrada na questão estaurológica (da morte de Jesus na cruz). 5) Assinale a alternativa correta: a) Jesus foi um homem só que se compreendeu a partir de Deus. b) Não foi Jesus quem ensinou aos discípulos o método de interpretá-lo à luz das Escrituras. c) Jesus é diferente porque, sem ser um dos nossos, é Aquele que vem de Deus como “homem novo”. d) Jesus elegeu a Deus como fonte e razão de sua vida. Ele viveu para Deus de Israel, seu Pai. e) Jon Sobrino deixa de acentuar a piedade de Jesus, como também a profundidade da oração dele, que supera ingenuidades, mecanizações, hipocrisias, opressões, narcisismos. 6) Assinale a única falsa: a) A vida de oração de Jesus revela não somente sua fé em Deus. b) A relação de Jesus com o Pai não ultrapassava seu comportamento pessoal e, por isso, transparecia no modo como Ele falava, invocava e dava testemunho de Deus. c) A vida de oração de Jesus torna clara a sua própria confiança em Deus. d) Sua confiança em Deus o faz atribuir a Ele seus milagres, a sua origem e significado de sua vida. e) A confiança absoluta e radical se evidencia no modo como Ele assume a própria morte pela causa de Deus. Claretiano - Centro Universitário
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Gabarito Depois de responder às questões autoavaliativas, é impor tante que você confira o seu desempenho, a fim de que saiba se é preciso retomar o estudo desta unidade. Assim, confira, a seguir, as respostas corretas para as questões autoavaliativas propostas anteriormente: 1) e 2) e 3) c 4) e 5) d 6) b
10. CONSIDERAÇÕES Nesta unidade, nos dedicamos ao estudo do significado teológico sistemático de Jesus de Nazaré. Após a retomada conceitual de cristologia, procuramos entender como Jesus se autocompre endeu a partir de Deus e em favor de nós. Certamente, ter-se-á entusiasmado mais por Ele. Realmen te, a centralidade Dele, na fé cristã, faz jus a quem Ele foi, é e con tinuará sendo sempre. Também aprofundamos dois temas teológicos, na grande tradição do segundo milênio: a morte e ressurreição de Jesus, so bre o que o cristianismo produziu diversas interpretações. As teo rias da representação e da solidariedade ganham espaço nas com preensões contemporâneas, sem ignorar as anteriores. Certamente estas ideias devem ter ficado bem claras para você. Caso contrário, é convidado a revê-las e/ou ampliar sua lei tura, até mesmo recorrendo a outras fontes indicadas. Na próxima unidade, estudaremos o lugar do salvador no plano de Deus, teologia da salvação, cristo salvador atuando entre nós, além de compreendermos como seguir Jesus.
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11. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BEAUDE, P. De acordo com as Escrituras. São Paulo: Paulinas, 1982. BERGER, K. Para que Jesus morreu na cruz? São Paulo: Loyola, 2005. BINGEMER, M. Jesus Cristo: servo de Deus e messias glorioso. São Paulo: Paulinas Valência (Espanha): Siquém, 2007. BOFF, L. Paixão de Cristo, Paixão do mundo. Petrópolis: Vozes, 1977. BONY, P. A ressurreição de Jesus. São Paulo: Loyola, 2008. BOURGEOIS, H. Libertar Jesus. Cristologias atuais. São Paulo: Loyola, 1989. Concilium. Revista Internacional de Teologia 326 -2008/3. Petrópolis: Vozes. BROWN, R. E. Um Cristo ressuscitado na Páscoa. São Paulo: Ave-Maria, 1996. CARDEDAL, G. Olegário Cristologia. Madrid: BAC, 2001. DUNN, J. D. G. A teologia de Paulo. São Paulo: Paulus, 2003. DUQUOC, C. Cristologia: o homem Jesus. São Paulo: Loyola, 1977. DURWELL, F. Cristo nossa páscoa. Aparecida: Santuário, 2006. FEINER, J.; LOEHERER, M. (Orgs.). Mysterium salutis. Compêndio de dogmática histórico-salvífica III/6. O Evento Cristo. 6. Mysterium paschale. Petrópolis: Vozes, 1974. GAMBERINI, P. Questo Gesù (At. 2,32). Bologna: EDB, 2007, p. 52. GESCHÈ, A. O Cristo. São Paulo: Paulinas, 2004. GOURGUES, M. Jesus diante de sua paixão e morte. São Paulo: Paulinas, 1985. HAIGHT, R. Jesus símbolo de Deus. São Paulo: Paulinas, 2003. KESSLER, H. Cristologia. In: SCHNEIDER, T. (Org.). Manual de dogmática. Petrópolis: Vozes, 2000. v.1. MARTINI, C. Os relatos da paixão de Cristo. Lisboa: São Paulo, 1994. MOINGT, J. O homem que vinha de Deus . São Paulo: Paulus, 2008. MOLTMANN, J. Quem é Jesus Cristo para nós hoje? Petrópolis: Vozes, 1997. PUIG, A. Jesus, uma biografia. Apelação (Portugal): Paulus, 2006. RATZINGER, J. Introdução ao cristianismo. São Paulo: Loyola, 2005. RODRIGUEZ, F. Jesus. Relato histórico de Deus. Cristologia para viver e rezar. São Paulo: Paulinas, 1999. SCHILLEBEECKX, E. Jesus: história de um vivente. São Paulo: Paulus, 2008. SERENTHÀ, M. Jesus Cristo, ontem, hoje e sempre. Ensaio de cristologia. São Paulo: Salesiana, 1986, p. 425-444. SLOYAN, G. Por que Jesus morreu? São Paulo: Paulinas, 2006.
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