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NOTAS NOTAS
FONS FONSEC ECA A
FERR FERREI EIRA RA
I imprensaoficial
LUIZ GAMA, CONTEMPTOR FALSAS ELITES
DURANTE MUITO TEMPO,
DE NOSSAS
historiadores e sociólogos consideraram ter ha-
vido um claro contraste entre a escravidão de africanos nos Estados Unidos e no Brasil. Enquanto lá os escravos foram tratados cruelmente, aqui os cativos receberam tratamento benigno, senão francamente protetor. A meu ver, na origem dessa suposta contradição de atitudes, encontramos uma diferença radical de mentalidades. Os americanos não costumam dissimular suas convicções, e dizem francamente o que pensam. Nós, ao contrário, timbramos em proclamar nossos bons sentimentos em relação aos pobres e infelizes. Sob esse aspecto, encarnamos à perfeição o poeta fingidor de Fernando Pessoa. Fingimos tão completamente, que chegamos por fim a nos convencer de nossa "índole reconhecidamente compassiva e humanitária", como afirmou o autor do único tratado jurídico sobre a escravidão brasileira.' Aliás, na Exposição Internacional de Paris de 1867, o nosso governo informava, oficialmente, que "os escravos são tratados com humanidade e são em geral bem alojados e alimentados... O seu trabalho é hoje moderado ... ao entardecer e às noites eles repousam, praticam a religião ou vários divertimentos".' Nesse contexto nacional de permanente auto-elogio coletivo, a personalidade de Luiz Gama, retratada neste livro muito bem organi-
Dr. Agostinho
Marques Perdigão Malheiro, A Escravidão no Brasil - Ensaio Histórico-)urídicoTypographia Nacional, 1866, t. 1 1 , pp. 61 e 114. Citado por Celia Maria Marinho de Azevedo, Abolicionismo: Estados Unidos e Brasil, uma história comparada (século X IX ), ANNABLUME editora, São Paulo, 2003, p. 63. Social, Rio deJaneiro,
2
zado pela Professora Lígia Fonseca Ferreira, aparece como realmente excepcional. O menino negro, vendido como escravo pelo próprio pai quando tinha dez anos, tendo aprendido a ler e escrever somente aos dezessete anos, tornou-se um intelectual apurado e o maior advogado de escravos que este país conheceu. Praticamente sozinho, logrou livrar do cativeiro ilegal mais de quinhentos negros - fato sem precedentes na história mundial da advocacia. Mas, sobretudo, Luiz Gama, muito mais do que qualquer abolicionista brasileiro, não hesitou em desmascarar pela imprensa - o grande instrumento de contrapoder da época - a falsidade de nossas pretensas elites. Gama escolheu como principais alvos de seus ataques desmascaradores os dois grupos que mais se distinguiram no triste papel de legitimar a escravidão negra: os clérigos e os magistrados.J Já no século XVI, os jesuítas de Angola distinguiram-se
na co-
ordenação do tráfico negreiro de Angola para o Brasil. À ordem de cessação desse comércio de carne humana, baixada pelo Geral da Companhia em 1590, os padres de Angola responderam que "não é escandaloso de pagar as nossas dívidas em escravos, pois eles são a moeda corrente no país, assim como o ouro e a prata o são na Europa e o açúcar no Brasil".4 No curso dos séculos seguintes, várias ordens religiosas passaram a possuir grandes fazendas, onde acumulavam milhares de escravos. Em algumas delas, instituíram-se criatórios de escravos. O norteamericano Thomas Ewbank, que visitou o Brasil em meados do século XIX,informou que num "grande estabelecimento" que a ordem beneditina possuía na ilha do Governador, no Rio, "numerosas gerações de rapazes e moças de cor são lá criadas até terem idade suficiente para serem enviadas ao trabalho nas propriedades do interior".5 Na verdade, os escravos eram também numerosos dentro dos pró prios conventos de frades e freiras. Em meados do século XVIII, no
Em relação aos primeiros, publicado
leia-se aqui, nas pp. 95 e ss., o artigo "Apontamentos
no Radical Paulistano, onde é descrita sarcasticamente
sano de São Paulo. Quanto aos magistrados, nas pp.
Biográficos",
a pessoa de um bispo dioce-
leiam-se todos os artigos de jornal reproduzidos
101 a 129.
4
Cf. História da Igr~a no Brasil, tomo
5
Thomas Ewbank, Vida no Brasil, Editora da Universidade Ltda., 1976, p. 102.
2, Editora
Vozes, Petrópolis,
1979, pág. 200.
de São Paulo e Livraria Itatiaia Editora
Convento do Desterro da Ordem das Suplicantes, em Salvador, 75religiosas eram servidas por 400 escravas. Fato é que a Igreja Católica não manifestou, até as vésperas do 13 de maio, o menor empenho pela abolição da escravatura. 6
Ao ser promulgada a Lei do Ventre Livre em 1871, D. Pedro Maria de Lacerda, bispo do Rio de Janeiro" em linguagem retorcida, fez questão de se pronunciar contra a abolição total e imediata. "Os revolucionários que profanem o nome da liberdade", escreveu ele em carta pastoral. "Nós, porém, mostremos que por ela, quando justa, como em nosso caso, sabemos fazer algum sacrifício, principalmente sendo este compensado por bem de ordem mais elevada, sem exclusão dos bens materiais e pecuniários". No Pará, na mesma ocasião, o bispo d. Antonio de Macedo Costa dirigiu enérgico protesto contra aquela Lei ao presidente da província, argüindo que se tratava de violação dos direitos da Igreja por uma medida "irregular e anticanônica"/ Quanto aos magistrados, as providências de justiça que deles podiam esperar os cativos eram praticamente nulas; não só pelo velho costume da corrupção, mas também por serem eles, quase sem exceção, proprietários de escravos. A corrupção geral da Justiça no Brasil foi atestada pela maior parte dos viajantes estrangeiros. No relato de sua viagem ao Rio de Janeiro e a Minas Gerais, SaintHilaire observou: "Em um país no qual uma longa escravidão fez, por assim dizer, da corrupção uma espécie de hábito, os magistrados, li bertos de qualquer espécie de vigilância, podem impunemente ceder às tentações".8 No mesmo sentido, John Luccock: "Na realidade parece ser de regra que no Brasil toda a Justiça seja comprada. Esse sentimento se acha por tal forma arraigado nos costumes e na maneira geral de pensar, que talvez ninguém o considere danoso (a tort); por outro lado, protestar contra a prática de semelhante máxima pareceria não
6
Cf. Pedro Calmon, História Social do Brasil, 10 tomo, Companhia Editora Nacional, São Paulo, s/d, P·74·
7
8
no Brasil, tomo 11/2,E ditora Vozes, Petrópolis, 1980, pp. 277/278. Auguste de Saint-Hilaire, Viagem pelas Províncias do Rio de Janeiro e Minas Gerais, Editora da Universidade de São Paulo e Livraria Itatiaia Editora Ltda., 1975, p. 157. H is tó ri a d a I gr ej a
somente ridículo, como serviria apenas para provocar a completa ruína do queixoso".9 E Charles Darwin, por ocasião da estadia do BeaJjle em nosso país: "Não importa o tamanho das acusações que possam existir contra um homem de posses, é seguro que em pouco tempo ele estará livre. Todos aqui podem ser subornados."lO Compreende-se, assim, o grau de destemor e pertinácia, demonstrados por Luiz Gama, quando se opôs sem meias palavras, em mais de uma ocasião,ajuizes pusilânimes e servis diante de senhores de escravos.ll Ao assim proceder, seguiu ele as lições de Cícero no De Oratore, sobre a conduta e as qualidades intrínsecas daquele que pleiteia no foro ou na tribuna política. Em primeiro lugar, o que o grande TOmano chamou de acumen, vale dizer a argúcia em argumentar. Em segundo lugar, a diliJjentia, ou seja, o zelo e aplicação constantes na defesa das causas confiadas ao seu patrocínio. Além disso, o probare, ou destreza em provar a verdade, aliado ao conciliare, ou arte de atrair simpatia. Por fim, o movere, isto é, a capacidade de suscitar a emoção no espírito dos ouvintes. Vamos,portanto, ler os libelos contidos neste livro,como se estivéssemos a ouvir o maior defensor de escravos que este país jamais conheceu. FÁBIO KONDER COMPARATO
PrçJessor Emérito da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo Dou to r Hono ris Cau sa da Univer sida de de Coim br a.
9 10 11
N ota s so bre o Rio de Janeiro e partes meridionais do Brasil, Editora da Universidade
Livraria Itatiaia Editora Ltda., 1975, p. 32l. O Diário do Beagle, Editora UFPR, 2006, p. 100. Leia-se, neste volume, o artigo "O Novo Alexandre",
pp.
121-125.
de São Paulo e
.
LUIZ GAMA, O PRIMEIRO AFRO-BRASILEIRO
POETA Ligia Fonseca Ferreira
desde há muitotempo, aos versos antológicos de "Quem sou eu?", também conhecido como "Bodarrada", o que acabaria ofuscando outras dimensões de sua produção poética. Longe de ser exaustiva, a coletânea de poemas aqui apresentados procura ilustr~r a criação poética de Luiz Gama evocando, sucintamente, seus contexto de surgimento, variadas vertentes, características estilísticas, referências eruditas e temas inovadores. A fim de retirá-lo de uma visão simplista, estereotipada ou redutora, guiou-nos o desejo de chamar a atenção dos leitores para um autor e uma obra única, em mais de um sentido, rica fonte de estudos ou de simples fruição. Apostamos que é difícil ler Luiz Gama e sair incólume à sua visão sobre a sociedade e traços da mentalidade brasileira que ainda hoje nos governam. Já no final da vida, Luiz Gama revelou, em correspondência a um amigo" os episódios entre dramáticos e rocambolescos de sua infância. Nascido em Salvador em 1830, era filho natural de uma africana livre, Luiza Mahin. Quanto ao pai, pertencia a" uma das principais famílias (...) de origem portuguesa" da Bahia e o vendeu ainda menino como escravo. Nesta condição chega à cidade de São Paulo, palco de seu destino singular e da manifestação de seus múltiplos talentos. Em 1859, publica-se na capital paulista a primeira edição de seu livro único, as Primeiras Trovas Burlescas de Getulino. Dois anos depois, sai no Rio
O
NOME DO "POETA"
LUIZ GAMA associa-se,
Ver a "Carta de Luiz Gama a Lúcio de Mendonça" neste volume.
37
de Janeiro a segunda e última edição, "aumentada e corrigida" pelo próprio autor, de uma obra pouco lembrada na literatura brasileira e igualmente pouco conhecida do público em geral. Ao longo do século xx, tal desconhecimento justifica-se em parte por se tratar de uma obra raramente acessível em bibliotecas (especialmente as edições de 1859 e 1861') ou através das edições póstumas organizadas por amigos ou admiradores, porém recheadas de mutilações e deformações ocasionadas pelo trabalho de amadores e pela falta de cotejo com as edições originais. A fim de preencher esta lacuna e contribuir para a leitura da produção poética integral de Luiz Gama, coube-nos a privilegiada tarefa de organizar a reedição comentada de Primeiras Trovas Burlescas e outros poemasJ, com base nas edições de 1859 e 1861 4, tal qual foram dadas ao público, incluindo os poemas publicados na imprensa paulistana. Em nosso trabalho, comentamos, ademais, a visão de críticos e historiadores que, ao longo do século xx, minimizaram a im portância ou subtraíram o valor da poesia de Luiz Gama, obnubilados por sua condição de "negro", "ex-escravo" e "autodidata", perfil que o impediria de ser colocado ao lado de dignos representantes da nossa literatura. Críticos e historiadores parecem ter ficado cegos e surdos à ironia sutil e quase profética de um Luiz Gama que faz ecoar, em seus versos, os preconceitos originados pelas teorias raciais pseudo-científicas que moldarão a mentalidade de grande parte da elite intelectual de seu tempo: "Ciências . e Letras/ Não são para ti,/Pretinho da Costa/Não é gente aqui''s. A primeira pergunta a fazer seria sobre o que representou a publicação do livro de Luiz Gama em seu tempo. Em meio à produção literária paulista e brasileira do século XIX, seus versos iriam se destacar por seu caráter inédito em vários aspectos. Contrariamente ao que se anuncia em "Prótase"6 ("Se de um quadrado/Fizer um ovo/Nisso dou provas/De escritor novo''), a no-
vidade da publicação
2
4
6 38
Ver referências
não provinha da capacidade
do poeta em transmu-
bibliográficas.
Cf. Primeiras Trouas Burlescas &( outros poemas de Luiz Gama. Organização e introdução Ligia Fonseca Ferreira. São Paulo: Martins Fontes, 2000, 328 páginas. Esta obra contém uma análise da obra, de seu lugar no panorama literário brasileiro e fortuna crítica (p. XIII-LXXI). Traz também um quadro comparativo dos poemas presentes nas duas edições de referência (p. XCII-XCIII), além de 26 páginas de documentos e iconografia em grande parte inéditos. A primeira edição das Primeiras Trouas Burlescas de Getulino só foi localizada em uma biblioteca particular. Cf. Ligia Fonseca Ferreira, "Fortuna crítica", in Primeiras Trouas Burlescas de Luiz Gama po em as (2000), op. cit., p. LXII-LXXI.
&( outros
Como seu nome indica, poema nossa seleção.
abrindo
inicial das Primeiras Trouas Burlescas, aqui também
tar figuras geométricas. Luiz Gama mostrava-se plenamente consciente da estranheza que haveria de causar e enganaria a muitos com seu falso retraimento (No meu cantinho,jEncolhidinho,jMansinho e quedo,/Banindo o medo,jOo torpe mundo,j( ...)/O que estou vendo/Vou descrevendo). Numa província de poucos leitores, raros escritores, um número ínfimo de tipografias e livrarias, o aparecimento daquele autor sui generis, era no mínimo curioso. À maioria de seus leitores contemporâneos, possivelmente tenha escapado tratar-se de fato inédito. Pela primeira vez, um negro, ex-escravo até doze anos antes analfabeto, tinha a audácia de denunciar os paradoxos políticos, éticos e raciais da sociedade imperial, dando à luz uma obra voltada essencialmente para a sátira política e de costumes. Assim, num Brasil escravocrata, que havia menos de quatro décadas se tornara inde pendente e em pleno período romântico, durante o qual o negro-escravo desponta como tema na poesia ou personagem no romance, Luiz Gama finca uma voz inaugural, a do primeiro "autor" negro que se enuncia enquanto tal, figura até então ausente da literatura brasileira. Por essa razão pode-se dizer que prenuncia escritores com o Cruz e Sousa e Lim a Barreto. Conforme já apontamos aqui, a edição de 1859 tinha como título Primeiras Trovas Burlescas de Getulino, pseudônimo usado por Luiz Gama, mesmo se o texto de apresentação fosse assinado com seu verdadeiro nome'. Porém, a escolha desse pseudônimo não era fortuita e revelava, mais uma vez,"que a cultura "em horas de pachorra construída", sem educação formal, e num prazo relativamente curto não era por isso menos erudita. "Getulino" deriva de "Getúlia", território da África do Norte, correspondente a parte da atual Argélia no passado chamada Numídia, e da Mauritânia. Esta região fora ocupada por um povo nômade, os "getulos", durante a Antiguidade e a ocupação romana da África. Vê-se, pois, que Luiz Gama de cara posiciona-se como um "autor" de origem africana, sabendo que adentrava o círculo restrito dos letrados, privilégio exclusivo de brancos. A afirmação explícita ou implícita de "negro sou" perpassa boa parte dos poemas, constituindo-se em locus enunciativo. Em seu poema mais célebre, "Quem sou eu?", não se sabe porque nem desde quando batizado de "Bodarrada", o enunciador escarnece da brancura ostentada por mestiços de toda espécie quando ascendem socialmente. Em tom provoca-
7
Na década de 1860, alguns artigos no Diabo Coxo ou no Cabriãotrarão leitores decerto não ignorassem poucos desavisados.
a identidade
O pseudônimo
esta assinatura,
embora os
do autor dos textos, com exceção talvez de alguns
é retirado do título em 1861.
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dor, dá de ombros ao que para muitos seria um insulto ("Se negro sou, ou sou bode/Pouco importa. O que isto pode?'); em vez de infamante, a palavra "negro" ou "bode" (aplicada aos mestiços de pele mais escura) apenas retratava a realidade do país. Ele afirma, assim, sua atrevida determinação de retirar as máscaras de indivíduos pertencentes a todas as camadas sociais. Esta temática retorna em poemas aqui presentes. Em "Sortimento de gorras para a gente do grande tom", no qual se alude a um corpo social irrigado pelo sangue africano, semelhante ao próprio corpo de um enunciador implacável diante dos "mulatosfalsórios" que renegam, desprezam e recalcam sua ascendência africana. Uma atitude contrária caracterizava Luiz Gama que, além de assumir-se negro, não dá as costas à solidariedade racial. Antropofágico avant la lettre, no intuito de adaptar seu discurso à época e à realidade na qual sua arte se inscreve (lembremos que, até praticamente a Abolição, negros e mulatos, livres ou escravos, formam 85% da população brasileira), o poeta se apresenta como um "Orfeu de carapinha" que substitui sem cerimônia os símbolos da poesia ocidental pelos equivalentes de origem africana. Às pálidas musas gregas, ele prefere a "Musa de Guiné, cor de azeviche" cujos poderes mágicos o farão penetrar no mundo invisível, ou melhor, não-visível aos olhos dos brancos ou dos mulatos insensíveis aos elementos e à linguagem próprios da cultura africana. Vemos, pois, que os deuses do Olimpo pouca serventia têm para o dionisíaco trovador que se entrega ao transe das danças e ritos africanos ("candimba", "caiumbas'); à insossa lira, o vate negro prefere os ritmos animados dos tambores e berimbaus ("marimba': "zabumbas') para, ironicamente, cantar os "altos feitos", isto é os vícios, dos brancos ("gente luminosa'j. Mas se Luiz Gama pretende cumprir a promessa de carnavalizar a tudo e a todos, o mesmo se estenderia ao "Africano fidalgote" ou ao Orfeu por ele reinventado. Seu desejo é atrair a admiração e a adesão dos seus "patrícios" a fim de que também eles sejam protagonistas da festa, ingrediente indispensável da sua poética, como se pode ler na estrofe que encerra, compondo uma cena teatral, o poema "Lá vai verso". Cabe, porém, registrar que as marcas de oralidade, o emprego de africanismos e de elementos hauridos na cultura popular não retiram da criação de Luiz Gama seu caráter erudito e a oportunidade de mostrar que domina o conhecimento de seus confrades. O autor negro não renuncia ao humor para, através da linguagem poética, denunciar e combater in justiças, o que poderia passar por uma ousadia mais do que incômoda, imperdoável. Porém, a determinação de Luiz Gama tinha raízes profundas. Dentre suas motivações principais, escondia-se talvez o desejo (ou
o dever) de provar que um negro podia fazer obras de valor maior do que simplesmente "borrar um livro" (ele remete à sua própria pessoa e à experiência como escravo em algumas composições como "No álbum do meu amigo J . A. da Silva Sobral"). A aparente simplicidade, inclusive lexical, esconde um procedimento sutil e eficaz. Luiz Gama, com perspicácia, ironiza, fingindo endossar o pensamento e a crença de muitos brancos - ou pretensos brancos- de sua época, convencidos da incapacidade congênita dos negros para as atividades do espírito, cegos às conseqüências mutiladoras da escravidão, como se pode ler nas últimas estrofes do poema "No álbum do meu amigo J. A. da Silva Sobral". Embora reduzida a produção poética de Luiz Gama, da qual se tem aqui uma pequena amostra, apresenta-se variada do ponto de vista do gênero (sátira política e de costumes, paródias herói-cômicas, bestialógico, poemas líricos), do ponto de vista do estilo (influência da sátira portuguesa dos séculos 18 e 19, bem como da poesia romântica brasileira), e do conjunto temático (corrupção política, hipocrisia dos mulatos, preconceito racial, anticlericalismo, crítica aos "doutores" e à venalidade do judiciário, caricatura de tipos sociais, e em menor grau, o amor e a liberdade do escravo, este, tema de "Coleirinho"9). Luiz Gama talvez não se contentasse em divertir e fazer sorrir seus leitores. Fica evidente a busca por variadas técnicas para alcançar uma comicidade descomprometida, amparando-sé no tema e na métrica que lhe fornece, por exemplo, um Gregório de Matos para a caricatura em verso de "A um nariz". A voz original de Luiz Gama também se faria ouvir em duas odes à mulher negra - "A cativa" (1861) e a voluptuosa "Meus amores", publicada em 1865 no semanário Diabo Coxo sob o pseudônimo de "Getulino", ambas inspiradas em versos de Camões. Luiz Gama confere à mulher negra um status poético inédito, que talvez tenha passado despercebido na época. Variação do tema explorado quatro anos antes, "Meus amores" trata do amor por uma escrava de forma mais madura. Os olhos do leitor passeiam pelos atributos físicos da "Tétis negra", superiores ao da deusasímbolo da beleza ocidental ("O colo de veludo Vênus bela/Trocara pelo seu, de inveja morta''). Mas se n '''A Cativa" o poeta refreia sua paixão, diante 8 ,
8 9
No total, compõe-se de 52 poemas, 12 dos quais publicados em jornais paulistanos nos quais colaborou. A liberdade do escravo aparece em apenas mais um poema - "No cemitério de São Benedito". Não se nota, pois, diferença sub stan cial no tratam ento do tem a que nos poetas contem porâneos de Luiz Gama, todos brancos aliás, será marcada por uma retórica particular. Seria incorreto, além de um anacronismo, afirmar que Luiz Gama faz poesia "abolicionista" ou condoreira, corrente que surge no panorama literário a partir dos anos 1880.
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da recatada "mulatinha", em "Meus amores", confessa sem rodeios seu desejo de consumar o ato carnal com a fogosa mulher da "cor da noite". Graças a esses dois poemas, Luiz Gama comparece na história da literatura brasileira como o primeiro poeta a cantar a beleza palpitante da mulher negra e a paixão que ela inspira. Resta-nos imaginar a que ponto teria ele consciência ou não de inaugurar uma temática ainda mais inovadora do que a do negro que, em seu tempo, desponta na poesia, no teatro e no romance sob as várias faces do escravo, do africano exilado, objeto de compaixão, do negro intrigante, matreiro e amoral como Pedro, personagem central da peça O demônio familiar de José de Alencar. Muitos pintaram erroneamente a Luiz Gama como inimigo do mundo dos brancos; trata-se de uma formulação generalista e exagerada, mas que merece ser relativizada e observada mais de perto. Na verdade, o vate negro não investe contra os brancos indistintamente, mas sobretudo contra os representantes de um regime político, a monarquia. A sociedade imperial é atravessada, a seus olhos, por males congênitos. A avidez pelo dinheiro e a falta de escrúpulos alimentam a corrupção de políticos e juízes acomodados à impunidade ("Ladrão que muito furta é protegido''). Atualíssimo, o poema "Sortimento de gorras para a gente do grande tom" faz a radiografia de um corpo social enfermo do qual também não escapam médicos charlatães, nobres de pacotilha, "doutores" ignorantes e venais, militares e "vadios empregados" que embolsam polpudos salários "que ao povo, sem sentir, são arrancados".
Em 1876, Luiz Gama funda O Polichinelo, semanário que se pretende "alternativo" em relação aos grandes órgãos da imprensa paulistana, presa a interesses partidários. O diretor e redator prometia aos incorrigíveis adversários políticos, que nas páginas de seu periódico encontrariam "a sátira: seu único corretivo". Acentuando uma tendência delineadas nos órgãos liberais dos anos 1860, O Polichinelo fazia repetidas críticas a m Dom Pedro II enfastiado com o poder, cuja imagem pública se desgastava com seus atos vacilantes'". Em seu semanário, Luiz Gama publicou algumas sátiras políticas versiflcadas Sua verve anti-monarquista manifestase plenamente no exímio "O Rei-cidadão", uma crítica anunciada, desde n •
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Para uma análise d' O Polichinelo, ver ainda Ligia Fonseca Ferreira, Primeiras Trovas Burlescas de
Lu iz G am a e outros poemas, op.cit., p. XXXIX-XLIX. 11
2 4
Os poemas "Programa", Maria" encontram-se
"Cena Parlamentar",
"O Rei-cidadão", "A espiga", "O moralista" e "A
reunidos na edição da obra poética Primeiras Trovas Burlescas de Luiz Gama
e outros poemas (2000), op. cit, p. 256-289.
a epígrafe, da contradição conceitual" do regime que deixava os republicanos ortodoxos de "cabeça atordoada", já que, em tese, o Brasil vivia sob uma monarquia parlamentar espelhada no modelo inglês. No entanto, a constituição de 1824 rezava que a "pessoa do Imperador" era "inviolável e sagrada", não estava "sujeita a responsabilidade alguma", além de lhe atri buir um quarto poder, o poder moderador, que lhe garantia prerrogativas vistas como "absolutas", tais como dissolver a Câmara dos Deputados, nomear e demitir "livremente" os ministros de Estado; perdoar ou moderar as penas impostas a réus condenados por sentença (direito de graça), etc. Criava-se nos trópicos um caso atípico em que o Rei "não só reina, governa e administra", desvirtuando o princípio clássico da monarquia parlamentar: "o rei reina, mas não governa". Luiz Gama ironiza uma outra fonte de "turbação" nas ideias, ou seja a aproximação que D. Pedro 1 \ buscava ter com seus súditos a fim de, inspirado pelo modelo francês criado por Luis Felipe e pela Monarquia de Julho, ser visto como "rei-cidadão". A exemplo de outros correligionários, Luiz Gama se exaspera frente ao que considera uma usurpação dos símbolos e valores republicanos, pois, conforme escreve, um "Rei da mista forma é velhacão" e considera aberrante um "rei de gorro frígio"'3. As ambiguidades da política de D. Pedro II eram inúmeras: se, a título de exemplo, resguardou a liberdade de imprensa, de que textos como os de Luiz Gama eram exemplo, esquivava-se de debates . políticos, consentindo com um parlamentarismo "fraudulento" e, embora se declarasse favorável à abolição, pouco se empenhou para antecipá-la'4. O poema de Luiz Gama disseca a ilusão de "democracia", com suas incoerências semânticas inclusive (o sentido de "democracia" era então antinômico ao de "monarquia"), como denunciariam textos de natureza e de autores diversos à medida que se aquecem os ânimos republicanos no país. Os de Luiz Gama em momento algum arrefeceram. exceção de "Meus amores" e de "O Rei-cidadão", publicados na imprensa após 1865, os demais poemas compõem as Primeiras Trovas Bur lesc as , tendo servido de base a edição do ano 2000. A fim de facilitar as remissões, as estrofes aparecem numeradas. OBS.:
À
Com a palavra, Luiz Gama!
12
"Cidadãos" pertencem
à República.
13
O "gorro" ou "barrete"frígio
14
Cf. Lilia Moritz Schwarcz, "Um monarca-cidadão".
popularizou-se
como símbolo republicano após a Revolução Francesa.
monarca nos trópicos. São Paulo: Companhia
In: As Barbas do Imperador. Dom Pedro 11,um
das Letras, 1998, p. 319-344.
43