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O Teste de Memória Autobiográfica de Williams – Estudo de Adaptação Elżbieta Bobrowicz-Campos Bobrowicz-Campos1, Maria Salomé Pinho 1 & Ana Paula Matos 1 1
Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade de Coimbra
O Teste de Memória Autobiográfica (AMT; Williams & Broadbent, 1986) foi desenvolvido na base do paradigma de palavras-chave de Galton-Crovitz. O processo de adaptação do AMT foi iniciado com uma lista composta por 101 palavras, seleccionadas de uma amostra exemplar de palavras-chave (Brittlebank e cols, 1993) e de um conjunto de palavras pista constituintes dos dois protocolos do AMT de Willimas. Todas as palavras foram submetidas a tradução directa e retroversão. Com o propósito de controlar a influência do tipo de pistas utilizadas para activação das recordações pessoais associadas, usaram-se como palavraschave exclusivamente adjectivos. Posteriormente, procedeu-se ao estudo de imaginabilidade, frequência e valor emocional das palavras, em 49 participantes adultos saudáveis. Da análise dessas características e da exclusão de resultados influenciados pela idade, escolaridade ou género, seleccionaram-se 15 adjectivos (5 positivos, 5 negativos e 5 neutros), com imaginabilidade moderada e com elevada frequência de ocorrência no quotidiano.
Palavras-chave: Memória autobiográfica; Teste de Memória Autobiográfica; Palavras pista; Adaptação de testes.
1. INTRODUÇÃO Existem vários modos de avaliar o processo de recuperação de memórias autobiográficas (MA) quer voluntárias quer involuntárias, entre os quais se destacam os seguintes: diários (Brewer, 1988), Entrevista da Linha da Vida (Schroots, 2004), Linha do Tempo (Rappaport, Enrich & Wilson, 1985), Entrevista de Memória Autobiográfica (AMI; Kopelman, Wilson & Baddeley, 1990), Teste de Memória do Passado remoto autobiográfico (TEMPau; Piolino, Desgranges & Eustache, 2000), o Questionário de Memória Autobiográfica (AMQ; Rubin, 2003) e o Teste da Memória Autobiográfica (AMT; Williams & Broadbent, 1986). Um dos instrumentos utilizados com maior frequência e em várias populações clínicas é o AMT, baseado no paradigma palavraschave de Galton-Crovitz, desenvolvido por Williams e Broadbent (1986). Os autores deste teste partilham a ideia de que a recuperação guiada de MA envolve um processo complexo de procura de informação num sistema de conhecimento autobiográfico organizado de maneira hierárquica (Conway, 2001; Conway & Pleydell-Pearce, 2000). Depois de ouvir uma palavra pista, o participante inicia o processo de elaboração ou Actas do VII Simpósio Nacional de Investigação em Psicologia Universidade do Minho, Portugal, 4 a 6 de Fevereiro de 2010
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definição da mesma, recuperando em seguida o contexto e gerando os episódios, ao que se sucede a avaliação da adequação e, finalmente, a resposta. O AMT foi construído com o objectivo de examinar aspectos hedónicos e não hedónicos da MA em sujeitos internados, após tentativa de suicídio por ingestão de substâncias tóxicas (Williams & Broadbent, 1986). A análise de resultados obtidos demonstrou a existência de alterações no processo de recuperação de MAs nos sujeitos supra mencionados quando comparados com adultos saudáveis ou com outros pacientes internados, sobretudo no que diz respeito ao tempo de latência de resposta às palavras pista positivas e à sobregeneralização das respostas. A utilização do AMT em pessoas com diagnósticos de depressão major (Warren, 2007; Watkins & Teadale, 2004), perturbações de comportamento alimentar (Dalgleish, 2003), perturbação bipolar (Mansell & Lam, 2004; Scott, 2000), perturbação obsessivo-compulsiva (Wilhelm, 1997), perturbação estado-limite de personalidade (Spinhoven, 2007), perturbações de ansiedade (Stopa, 2007) ou esquizofrenia (Warren, 2007), entre outras, demonstrou que a recuperação sobregeneralizada da MA está fortemente associada à depressão e à perturbação de stress pós-traumático (Moore & Zoellner, 2007), sendo uma das suas características a congruência com o humor recorrente (Lemogne, 2006). Segundo Williams (2006) o défice referido resulta da ineficiência do processo de pesquisa de informações detalhadas, causada por pensamento ruminativo (Watkins & Teasdale, 2004) e problemas de controlo executivo (Dalgleish, 2007), enquanto Mansell e Lam (2004) indicam como origem a falta de integração de acontecimentos particulares com o conhecimento autobiográfico de base e, consequente, discordância entre objectivos pessoais. A função da recuperação sobregeneralizada prende-se com o evitamento de memórias ameaçadoras (Moore & Zoellner, 2007). Recentemente foi demonstrado (Mansell & Lam, 2004) que a recuperação sobregeneralizada das MAs revela-se na fase eutímica da perturbação bipolar. No entanto, até agora não foi definido um protocolo padronizado de aplicação do AMT, o que evidentemente limita a possibilidade de comparação dos resultados obtidos com este instrumento. As inconsistências referentes à introdução do paradigma GaltonCrovitz relacionam-se com os seguintes aspectos: (i) o número de palavras pista; (ii) o tipo de palavras pista utilizadas, sendo estas na maioria dos casos substantivos e adjectivos; (iii) a existência de condição neutra; (iv) o tempo de resposta; (v) as diferentes formas de resposta, oral
vs escrita; (vi) a inclusão na análise dos dados de
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omissões; (vii) a utilização de instruções de ajuda (para uma descrição detalhada ver Williams, 2007). Existem também resultados de estudos que sugerem que o efeito de recuperação sobregeneralizada de MAs pode estar associado à dificuldade em manter na memória de trabalho as instruções ouvidas e que demonstram a relevância de repetição resumida das instruções, ao longo do teste (Yanes e cols, 2008). Em Portugal já existem duas adaptações da tarefa de MA baseada no paradigma palavras-chave de Galton-Crovitz (Cláudio, 2004; Gonçalves, 2006), ambas constituídas por um conjunto de substantivos de valência positiva, negativa e neutra e ambas utilizadas em pessoas com sintomatologia depressiva.
2. OBJECTIVOS DO ESTUDO O presente estudo foi realizado com o objectivo de adaptar o AMT (Williams, 1986) para a população portuguesa. Desde início pretendeu-se (i) obter normas de selecção de um conjunto de adjectivos (tal como o formato original das pistas do AMT) equiparados na dimensão de valência emocional, e comparáveis nas dimensões de imaginabilidade e frequência de ocorrência na vida diária, assim como (ii) definir o protocolo padronizado de avaliação, sobretudo no que diz respeito à apresentação de estímulos, utilização de instruções de ajuda e cotação de respostas, reduzindo desta maneira o impacto de algumas das limitações acima mencionadas. Adicionalmente, tendo em consideração o facto de que o AMT é considerado particularmente útil na avaliação da MA em populações clínicas, e que o funcionamento cognitivo destas pode estar largamente perturbado (Gruber, 2007), tornou-se indispensável minorar a influência de eventual défice ao nível de controlo executivo para a execução do teste em causa, o que poderá ser feito, segundo Yanes, Roberts e Carlos (2008), através da introdução de instruções resumidas antes de apresentação de cada uma das palavras pista.
3. MÉTODO O processo da tradução e adaptação de AMT para a população portuguesa foi dividido em duas fases: (i) a primeira, destinada à elaboração de uma lista de potenciais palavras pista (adjectivos) e sua avaliação quanto à imaginabilidade, frequência e valor emocional; e (ii) a segunda, dirigida à tradução e adaptação das instruções e à definição do protocolo padronizado de avaliação. Actas do VII Simpósio Nacional de Investigação em Psicologia Universidade do Minho, Portugal, 4 a 6 de Fevereiro de 2010
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3.1. Instrumentos Teste de Memória Autobiográfica. Para realizar este estudo utilizou-se a versão do AMT disponibilizada pessoalmente por J. M. G. Williams e cuja versão original foi publicada em 1986 por Williams e Broadbent. A versão recente deste teste inclui dois protocolos independentes, cada um deles contendo 18 palavras pista, das quais 12 (palavras pista positivas e negativas) são adjectivos e 6 (palavras pista neutras) são substantivos. Depois de apresentação de cada um dos estímulos, o participante tem 30 segundos para recordar uma memória específica relacionada com o estímulo e verbalizá-la. O procedimento de cotação das memórias evocadas, baseado no modelo hierárquico de conhecimento autobiográfico de Conway e Pleydell-Pearce (2000), propõe a atribuição de zero pontos a todas as omissões e todas as respostas do tipo associação semântica (e.g.,
a minha mãe é divertida ). Relativamente às memórias
generalizadas, estas devem receber 1 ponto quando o seu conteúdo se refere a um período prolongado ( extended memory), isto é, mais do que um dia, e 2 pontos quando o seu conteúdo está relacionado com um acontecimento que se repete com alguma regularidade (categoric
memory). Quanto as memórias são específicas, estas devem ser
cotadas com 3 pontos.
Escalas de avaliação de imaginabilidade, frequência e valor emocional. Com o objectivo de seleccionar um conjunto de palavras pista, positivas, negativas e neutras, todas elas comparáveis entre si na dimensão de imaginabilidade e frequência de utilização na vida diária, foram utilizadas três escalas de tipo Likert, ordenadas da seguinte maneira: para o valor emocional, a escala consistiu nas categorias de “muito negativo” (-3), “moderadamente negativo” (-2), “pouco negativo” (-1), “neutro” (0), “pouco positivo” (1), “moderadamente positivo” (2), “muito positivo” (3); para a imaginabilidade, a escala variou entre “muito dificilmente imaginável” (1) até “muito facilmente imaginável” (5), com os valores intermédios de “dificilmente imaginável” (2), “imaginável” (3) e “facilmente imaginável” (4); para a frequência, a escala variou entre “nunca” (1) até “sempre” (5), com os valores intermédios de “quase nunca” (2) “poucas vezes” (3) e “muitas vezes” (4). Estas escalas foram apresentadas de maneira independente, sob a forma de três questionários, cada um deles com as respectivas instruções, incluindo uma Actas do VII Simpósio Nacional de Investigação em Psicologia Universidade do Minho, Portugal, 4 a 6 de Fevereiro de 2010
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caracterização breve do conceito a avaliar, a apresentação da escala, e um conjunto de 102 adjectivos (um em cada página) numa ordem aleatória. Todos os participantes foram instruídos a preencher os três questionários. A avaliação do valor emocional e imaginabilidade das palavras justifica-se pela sua importância na activação de informações associadas e, consequentemente, na sua evocação (Williams, 1986, 1999). Quanto à avaliação da frequência, esta serviu apenas como factor de exclusão, i.e., para não serem consideradas palavras de utilização pouco comum. O mesmo procedimento foi efectuado por Pergher (2005). Existem já em Portugal normas de aferição para a valência e familiaridade de substantivos comuns (Marques, 2005), mas não de adjectivos.
3.2. Procedimentos Inicialmente, foi elaborada uma lista composta por 101 palavras, seleccionadas de uma amostra exemplar das palavras-chave apresentada no estudo de Brittlebank e cols (1993; citado por Williams, comunicação pessoal, 20 de Dezembro, 2005), e adicionalmente de um conjunto de palavras pista constituintes dos dois protocolos do AMT (Williams, comunicação pessoal, 20 de Dezembro, 2005). Todas as palavras foram submetidas a tradução directa e tradução inversa, esta última efectuada por duas pessoas, uma das quais bilingue. As discordâncias na tradução foram posteriormente analisadas. No caso de palavras cuja tradução foi bastante incoerente, decidiu-se recorrer à ajuda de três tradutores independentes, todos deles conhecedores e utilizadores de língua inglesa, seleccionando a tradução mais frequente e que foi escolhida, também, por um dos dois tradutores da primeira etapa deste procedimento. Com o propósito de controlar a influência do tipo de pistas utilizadas para activação das informações pessoais a elas associadas, decidiu-se usar como palavraschave, como já se referiu, exclusivamente adjectivos, uma vez que este foi o formato original das pistas do AMT, aplicado por Williams & Broadbent (1986). Em consequência, alterou-se a forma das seguintes palavras incluídas na amostra anteriormente citada:
wildlife, search, pottery, occasion, theatre, rhytm, transfer, agility .
Estas foram ʽtraduzidas’ pelos seguintes adjectivos:
selvagem, investigado, cerâmico,
ocasional, teatral, rítmico, transferido, ágil . Foram também eliminados os seguintes substantivos:
grass, bathe, bread, ladder, nursery, pianist, uncle, onion, library, signal,
lens, zone. Contudo, verificou-se na lista de palavras traduzidas a existência de palavras Actas do VII Simpósio Nacional de Investigação em Psicologia Universidade do Minho, Portugal, 4 a 6 de Fevereiro de 2010
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repetidas, entre elas: (helpless e
agradável (na versão original: nice e pleasant ), desesperançado
hopeless) e culpado (blame e guilty). Das seis palavras de origem inglesa,
cujo equivalente na língua portuguesa era repetido, optámos por manter apenas três. Além disso, a palavra
surpreendido (surprised ) foi substituída pela palavra espantado –
seu equivalente mais comum na língua portuguesa e mais facilmente compreensível. Por fim, todas as palavras traduzidas cuja construção envolvia duas ou três sub-palavras (entre elas:
cheio de vida (lively), bem sucedido (successful) e na moda ( fashion)) foram
substituídas pelos seus sinónimos uni parciais ( vigoroso,
eficaz e moderno,
respectivamente). Os procedimentos referidos resultaram na constituição de uma lista composta por 86 adjectivos, dos quais 34 no estudo original eram considerados como palavras positivas, 30 como negativas e 22 como neutras. Para equilibrar o número de palavras supostamente positivas, negativas e neutras, decidimos adicionar as 4 palavras com valor supostamente negativo ( preocupado,
desamparado, mesquinho, assustado ) e 12
palavras com valor supostamente neutro ( velho, comprido, curto, magro, gordo, grande,
pequeno, quente, frio, frequente, raro, tímido ). Desta maneira a lista final ficou com 102 palavras no total. Posteriormente, procedeu-se a um estudo cujo objectivo foi o de identificar 5 adjectivos positivos, 5 negativos e 5 neutros, comparáveis nas dimensões de imaginabilidade e frequência de ocorrência na vida diária. A escolha de apenas 15 e não 18 palavras pista (conforme Williams, comunicação pessoal, 20 de Dezembro, 2005) justifica-se por existirem mais estudos que referem a utilização de apenas 5 palavras positivas e 5 negativas (e.g., Dalgleish, 2003; Gonçalves, 2006; Scott, 2000; Warren, 2007), ou seja, nem todos os estudos incluiram a condição neutra. Entendemos, no entanto, que a utilização das palavras pista neutras seria particularmente importante, uma vez que permite criar condições de controlo do tempo de latência de resposta, assim como observar a existência de um eventual enviesamento cognitivo congruente com o humor recorrente (Lemogne, 2006). Relativamente às instruções para o AMT, estas foram baseadas na tradução das instruções definidas por Williams (comunicação pessoal, 20 de Dezembro, 2005), com apenas uma modificação relacionada com a inclusão de uma frase referente à necessidade de registo de respostas com o objectivo de facilitar o preenchimento
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posterior de folha de protocolo. Adicionalmente, procurou-se redigir as instruções de modo a serem compreensíveis por sujeitos com nível baixo de escolaridade.
3.3. Participantes As escalas de avaliação da imaginabilidade, frequência e valor emocional foram preenchidas por 50 pessoas da população geral, que se dispuseram voluntariamente a participar no estudo. Tendo em consideração o carácter invulgar das respostas obtidas com um participante mais idoso, estas foram excluídas da análise posterior. A amostra final foi composta por 49 pessoas, das quais 32 do sexo feminino e 17 do sexo masculino. Relativamente às variáveis idade e escolaridade, estas variam entre os 17 e 60 anos e os 4 e 17 anos, respectivamente, com as médias (desvios padrão) de 36.92 (12.60) e 11.61 (3.51), respectivamente. A comparação destas variáveis para os dois sexos mostrou a não existência de diferenças significativas entre os grupos [ t (32.552) =.652,
p = 5.19 e t (47) = -.645, p = 5.22, respectivamente]. As características
demográficas de amostra encontram-se na tabela 1.
Tabela 1 – Características demográficas da amostra
n = 50 Min Desvio Média Max padrão
Feminino (n = 32) Masculino (n = 17) Min – Desvio - Min Desvio Média Média Max padrão Max padrão
Idade
17-60
36.92
12.60
21-59
37.81
12.70
17-60
35.29
12.73
Escolaridade
4-17
11.61
3.51
4-17
11.38
3.48
6-17
12.06
3.63
4. RESULTADOS Estudo de características de palavras.
Tendo-se verificado que alguns dos
participantes deixaram os questionários incompletos, estes foram posteriormente contactados com o objectivo de verificar qual a razão da não avaliação da palavra em causa e obter a(s) resposta(s) em falta. Foram também contactadas as pessoas que atribuíram duas respostas ao mesmo item. Apenas não foi possível obter três respostas, uma para cada uma das palavras a seguir enumeradas: emocional,
miserável, na escala de valor
ávido e envergonhado, na escala de imaginabilidade. A selecção das
palavras foi feita a partir das medianas escolhendo 15 adjectivos (5 positivos, 5 neutros e 5 negativos), todos eles comparáveis na sua dimensão de imaginabilidade e frequência subjectiva. A apresentação resumida dos critérios de selecção encontra-se na tabela 2. Actas do VII Simpósio Nacional de Investigação em Psicologia Universidade do Minho, Portugal, 4 a 6 de Fevereiro de 2010
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Tabela 2 - Critérios de selecção de palavras
Valor emocional Mediana
Positivo
Neutro
Negativo
≥2
=0
≤ -2
Imaginabilidade Frequência ≥3e<5
>2
Seguindo os critérios de selecção das palavras referentes ao valor emocional, um adjectivo foi considerado como positivo quando o respectivo valor da mediana era igual ou superior a 2 (“moderadamente positivo” e “muito positivo”) e como negativo quando o valor da mediana era igual ou inferior a -2 (“moderadamente negativo” e “muito negativo”). Quanto ao carácter neutro dos adjectivos, este foi definido por um valor da mediana igual a zero. Relativamente à imaginabilidade , inicialmente, pretendeu-se incluir apenas os adjectivos considerados “facilmente imagináveis”, ou seja, aqueles cujo valor da mediana era igual a 4. No entanto, no decorrer do processo de selecção das palavras verificou-se a existência de um fenómeno interessante: o grau de imaginabilidade das palavras neutras foi avaliado como inferior ao grau de imaginabilidade das palavras com valência emocional, quer positiva quer negativa. Tendo em consideração esta particularidade, decidiu-se modificar os critérios de selecção das palavras neutras, incluindo-se adicionalmente todos os adjectivos cujo valor da mediana foi igual a 3, ou seja, os adjectivos correspondentes à classificação “imagináveis”. Quanto à frequência, optou-se por excluir todos os adjectivos cujo valor da mediana foi igual ou inferior a 2 (“quase nunca”), assim como todos os adjectivos declarados desconhecidos, pelo menos por um dos participantes (entre aqueles encontram-se: lúgubre, amistoso e ávido). Este procedimento serviu para assegurar que todas as palavras seleccionadas para o AMT são de utilização usual. Posteriormente, procedeu-se a uma análise estatística dos resultados obtidos nas três escalas para cada uma das palavras seleccionadas com o objectivo de excluir todas as palavras cuja avaliação diferisse com as variáveis género, idade ou escolaridade dos participantes. Para testar as diferenças entre os dois géneros foi utilizado o teste de
Mann-Whitney. Relativamente às variáveis idade e escolaridade, a sua possível influência nos resultados obtidos foi testada através do teste
Kruskal-Wallis, tendo-se
agrupado todos os participantes em quatro grupos etários (17-29, 30-39, 40-49, 50-60) e em três grupos de escolaridade (1-9, 10-12, 13-17). Com este procedimento
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seleccionaram-se 7 palavras positivas ( animado,
confortável, dedicado, humorístico,
interessado, maravilhado, seguro ), 5 palavras negativas ( assustado, horrível, irritado, mau, zangado ) e 6 palavras neutras ( investigado, ocasional, curto, espantado, gigante, tímido). Dado que das 5 palavras negativas 2 são bastante parecidas semanticamente (horrível e
mau), o que poderia eventualmente afectar os resultados do AMT,
provocando, por exemplo, a recuperação das mesmas MAs, decidiu-se seleccionar todos os adjectivos que satisfizessem os critérios anteriormente descritos, mas cuja mediana de imaginabilidade fosse igual a 3, obtendo-se, assim, um conjunto de 5 palavras pista adicionais (culpado, fracassado, insultado, mesquinho, pior ). Relativamente às palavras neutras, optou-se por excluir a palavra
gigante, uma vez que esta, em alguns contextos,
pode ser considerada como um antónimo de palavra
curto, assim como a palavra tímido,
uma vez que a sua valência emocional foi frequentemente considerada como negativa. Tendo um conjunto de apenas 4 palavras neutras, foi necessário incluir palavras com frequência mais baixa, o que resultou na escolha de palavra seleccionadas as seguintes palavras pista:
teatral. Concluindo, foram
animado, confortável, dedicado, interessado,
maravilhado (pistas positivas); assustado, irritado, mau, zangado, culpado (pistas negativas); investigado, ocasional, curto, espantado, teatral (pistas neutras).
Tradução e adaptação das instruções.
Após a tradução directa das instruções
originais do AMT por duas pessoas independentes e da análise das discordâncias, procedeu-se à adaptação do texto para populações menos escolarizadas. Transcreve-se, a seguir, a versão final: “ Gostaria
de conhecer as memórias que guarda de
acontecimentos que ocorreram na sua vida. Para isso, vão ser-lhe lidas várias palavras e para cada uma delas terá que pensar num acontecimento vivido que se relacione com a palavra ouvida. O acontecimento pode ter ocorrido recentemente (ontem, na última semana) ou há mais tempo. Pode ser um acontecimento importante ou um acontecimento vulgar. Além disso, a recordação que tiver deve ser de um acontecimento específico, ou seja, de um acontecimento que durou menos de um dia, e ocorreu num tempo e num espaço particulares. Portanto, se eu disser a palavra “ bom”, não será correcto responder “ Eu divirto-me sempre numa festa boa ” porque isto não se refere a um acontecimento específico. Mas será correcto dizer ”Diverti-me na festa da Joana”
porque se trata de um acontecimento específico, uma vez que é referido um
tempo particular (esta festa ocorreu numa certa data) e um local concreto (esta festa Actas do VII Simpósio Nacional de Investigação em Psicologia Universidade do Minho, Portugal, 4 a 6 de Fevereiro de 2010
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teve lugar num determinado sítio). É importante esforçar-se para ter uma recordação diferente para cada uma das palavras-chave. Agora as suas memórias vão ser registadas num gravador com o objectivo de facilitar depois o preenchimento de um questionário respeitante às memórias que referir. ” Tendo em consideração os resultados obtidos por Yanes e cols (2008) que revelam a existência de uma relação significativa entre as dificuldades na recuperação das instruções do AMT e a maior probabilidade de recuperação sobregeneralizada de MAs e, ainda, com o objectivo de controlar a possível influência de um nível baixo de controlo executivo (Dalgleish, 2007) na administração deste teste, optou-se por mencionar as instruções específicas (“ lembra-se
de algum acontecimento específico,
que ocorreu num só dia e no espaço e tempo particular, relacionado com a palavra _____?”) antes de apresentação de cada uma das palavras pista. Adicionalmente, definiram-se as instruções de ajuda (“ Consegue
lembrar-se de uma situação
específica?”), cuja aplicação foi prevista para os casos em que respostas dadas são do tipo associação semântica ou então pertencem ao grupo de memórias generalizadas.
Definição do protocolo padronizado de avaliação.
A seguir à leitura das
instruções do AMT ao participante e da obtenção da sua autorização para utilização do gravador no decorrer do teste, apresentam-se 3 itens de treino ( divertido,
amigável,
corajoso), utilizando as respostas dadas para explicar melhor aspectos das instruções que aparentemente não foram entendidos e para reforçar as respostas cuja natureza corresponda às exigências do teste. Depois de confirmar a compreensão das instruções, prossegue-se com a apresentação verbal e visual das palavras pista, uma de cada vez, na ordem preestabelecida, sendo esta baseada na seguinte organização: uma palavra pista positiva, uma palavra pista negativa, uma palavra pista neutra, etc. Note-se, uma vez mais, que a apresentação de cada palavra pista é antecedida pelas instruções específicas. Tendo em consideração o facto dos resultados obtidos em vários estudos, referentes aos tempos de latência de resposta para grupos de controlo saudáveis e para grupos clínicos, não serem consistentes entre si (Pergher, 2005; Scott, 2000; Williams & Scott, 1988), decidiu-se controlar o tempo de resposta, mas sem utilizar o tempo limite. Caso o participante dê uma resposta generalizada ou uma resposta do tipo associação semântica, incentiva-se o mesmo para tentar recordar uma situação específica.
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5. DISCUSSÃO DOS RESULTADOS Um dos objectivos mais importantes deste trabalho foi o de definir um conjunto de palavras pista cuja valência emocional, imaginabilidade e frequência de uso na vida diária fossem comparáveis entre si, independentemente de género, idade ou escolaridade dos avaliadores. Decidiu-se também considerar como estímulos possíveis apenas adjectivos, uma vez que foi este o formato original das pistas do AMT, aplicado por Williams e Broadbent (1986). A não utilização de estímulos de vários tipos, isto é, de substantivos de valência emocional neutra e adjectivos de valência emocional positiva e negativa, conforme Williams (comunicação pessoal, 20 de Dezembro, 2005) justifica-se pela falta de evidência empírica de que, de maneira explícita, se pudesse rejeitar a hipótese da influência de vários tipos de pistas no processo de recuperação (Williams, 2007). A exclusão dos adjectivos cuja avaliação diferia conforme a idade, escolaridade e/ou género dos participantes, e a aplicação de critérios de selecção para cada uma das três características anteriormente enumeradas, conduziu à escolha de um conjunto de 18 palavras pista possíveis (7 positivas, 5 negativas e 6 neutras). Após análise semântica dos adjectivos seleccionados, que resultou na identificação de sinónimos e antónimos e na sua exclusão, tornou-se necessário aplicar critérios de selecção adicionais. Em consequência deste procedimento conseguiu-se definir um conjunto de 15 palavras pista, 5 positivas, 5 negativas e 5 neutras, que possuem características que permitem ser aplicadas a vários grupos etários e em vários níveis de escolaridade, independentemente de género dos participantes. Tendo em consideração o nível baixo de escolaridade frequentemente encontrado em diversas amostras da população portuguesa, assim como particularidades do funcionamento cognitivo de amostras clínicas, também destinatárias do AMT, tornou-se imprescindível a adaptação das instruções originais. Supomos que as alterações introduzidas poderão contribuir para uma melhor compreensão das exigências da tarefa. As regras de cotação definidas por Williams (comunicação pessoal, 20 de Dezembro, 2005) foram mantidas. Contudo, uma apreciação mais aprofundada da sua aplicabilidade e da sua capacidade de discriminação tornar-se-á possível após a utilização do AMT em várias populações, quer clínicas quer de controlos saudáveis. Um dos problemas já antecipado prende-se com a cotação de respostas atípicas, por exemplo, (i) que contenham uma introdução alargada e/ou generalizada, (ii) cujo Actas do VII Simpósio Nacional de Investigação em Psicologia Universidade do Minho, Portugal, 4 a 6 de Fevereiro de 2010
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conteúdo diga respeito a mais que um acontecimento. A relevância de identificação destas particularidades reflecte-se, sobretudo, na necessidade de uma estimativa do tempo de latência de resposta.
6. CONCLUSÕES A presente investigação teve por objectivo adaptar o AMT para a população portuguesa. Neste momento está a ser realizado um estudo de MA com o AMT na perturbação bipolar, que nos permitirá identificar as eventuais limitações deste instrumento, assim como testar a aplicabilidade do protocolo proposto. As vantagens relacionadas com a utilização do AMT prendem-se com a variedade de informações obtidas, sobretudo no que diz respeito às estratégias de recuperação de MAs em função do conteúdo das informações recuperadas, do nível da sua especificidade conceptual e temporal e da sua integração no conhecimento autobiográfico de base. Além disso, o tempo de aplicação deste instrumento é reduzido, tendo em média a duração de 15 minutos, o que facilita a sua aplicação em populações clínicas. No entanto, os dados obtidos com o AMT não permitem avaliar duma maneira controlada os componentes interactivos das MAs, nem juízos fenomenológicos, assim como não fornecem informação sobre a idade da memória recuperada (Greenberg & Rubin, 2003). A relevância de ut ilização do AMT prende-se, ainda, com a possibilidade de explorar as relações existentes entre o estado de humor actual e o processamento cognitivo. No entanto, nesse âmbito, torna-se indispensável controlar a influência de nível de controlo executivo no desempenho neste teste.
AGRADECIMENTOS O presente trabalho foi financiado pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia no âmbito de Bolsa Individual de Doutoramento SFRH/BD/35934/2007/J041983H50T.
CONTACTO PARA CORRESPONDÊNCIA Elżbieta Bobrowicz Campos Universidade de Coimbra, Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação
[email protected]
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