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--Y'::',1c Michel Senes Bernadette Bensaude-víncent, Catherine Goldstein, Francoise Micheau, Isabelle Stengers, Michel Authier, Paul Benoit, Geof Bowker, jean-Marc Drouin, Bruno Latour, Pierre Lévy e James Ritter '
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ELEMENTOS PARA DMA
HISTÓRIA DAS CIENCIAS II Volume J, ,:\
Revisáo científica da edícáo portuguesa:
Prof.' Dr.' RAQUEL GONC;:ALVES, Professora Catedrática da Faculdade de Ciencias da Universidade de Lisboa
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UNIVERSIOADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO sur
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Fim da Idade Média a Lavoisier
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Avisos ao leitor. ~
Sinais de ponruacáo utilizados na transcrícño dos textos orígtnaís. ( ): palavra acrescentada para urna melhor cornpreensáo do texto; [ J: lacuna do texto; < >: palavra esquecida pelo escriba; ... : palavra descoúhecída¡ ...... : conjunto de palavras desconhecidas.
Cálculo, álgebra . e comerCiO /
PAUL BENOIT
Como, no fim da Idade Média, os matemáticos - encarregados pelos mercadores de Florenca e de outras paragens de ensinar o cálculo aos respectivos filhos - praticaram a álgebra e o que se seguiu.
ciencia grega era geometría, a sua física raciocinava, deduzia mas quase nao calculava. O cálculo é nos nossos dias um fundamento essencial para todas as ciencias, mas tambérn para as técnicas e para a actividade económica. Verdade evidente na época da informática, no entanto, a vontade de por o mundo em cquacóes remonta atempas muito mais antigos. Ainda seria preciso saber resolver e, em prímeiro lugar, escrever urna equacao, Podemos discutir por muito tempo acerca do valor do cálculo grego, acerca dos antecedentes possíveis em Diofanto, podemos mostrar que Arquimedes e os mecanícistas de Alexandria utilizavam o cálculo; mas nao é menos verdade que o cálculo algébrico só se desenvolveu na Europa crístá a partir do fim da Idade Média e do início dos tempos modernos. De acordo com um ponto de vista comummente admitido, a álgebra nasce na Europa Ocídental com Viete, o primeiro, diz-se, a ter empregue letras para significar o desconhecido. Viere só teria podido chegar a estes resultados gracas a redescoberta, no século XVI, da obra de Diofanto de Alexandria. Será assunto assim tao simples? Poderemos fazer de urn hornem o pai da álgebra, só porque o seu simbolismo serviu de modelo? Antes de Francois Viete, outros houve que procuraram exprimir realidades algébricas por meio de símbolos: jéróme Cardan, Raffaele Bombelli ou Nicolas Chuquet. O caso de Nicolas Chuquet, matemático francés que viveu na segunda metade do século xv, faz com que penetremos num mundo muito diferente do de viere. Chuquet escreveu a sua obra em francés, e nao em latim, língua dos sábios durante a época medieval e a época clássica, e ele centava-se, sobretudo, entre os professores de Matemáticas que tentavam fazer passar urna parte da sua ciencia para a cabeca dos filhos dos mercadores no fim da idade Média. Chuquet nao é um caso iso lado. Em Itália, mais particularmente em Florenca e em Veneza, matemáticos da sua espécie
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1 CÁLCULO, ÁLGEBRA E COMÉRCfO
viveram, trabalharam produziram obras que marcado sem dúvida a história do cálculo aritmético e algébrico. Que marcaráo, porque esta história está em vías de elaboracáo, ela faz-se gracas a investigadores italianos ou alemáes, americanos, ingleses ou franceses. História ingrata, os textos sao numerosos, muitas vezes sernelhantes uns aos outros, a maioria das vezes manuscritos, em celtas casos mal escritos. O pensamento de alguns autores aparece por vezes confuso, os erros sao frequentes. Para um Chuquet ou um Benedetto, de Florenca, quantos anónimos existido com obras sem originalidade mas que podem cantee os indícios de urna evolucáo. A história que aquí se renta nao apresenta grandes sábios de imagem canónica, ela consiste, antes, na história de um meio científico. Trata-se, com efeíto, de investigar, nao as origens da álgebra na Europa Ocidental, mas as condícóes nas quais as ciencias do cálculo puderam desenvolver-se num tempo dado - os últimos séculos da Idade Média - e num dado rneio, o dos mercadores que se dedicavam ao grande comercio. Para além disso, recolocar os resultados obtidos num quadro mais geral, o da história do cálculo no interior do mundo medíterránico. Mesmo que as conclus6es propostas sejam apenas parcíais, elas podem permitir por em termos um pouco mais claros o problema das relacóes do desenvolvimento científico e da evolucáo socioeconómica.
o comércio mediterránico o
crescimento da Europa medieval, o impulso da producáo agrícola e o desenvolvimento das cidades, a difusáo da moeda sao acompanhados de urna expansáo comercial a todos os níveis. A multiplícacáo dos mercados locais vai de par com o estabelecimento de urna recle internacional. A Europa Ocidental comercia em particular com o Oriente bizantino e muculmano, Ela exporta tecidos, metais, dinheiro e importa produtos de luxo, como a seda ou as especiarias provenientes do Extremo Oriente, ou algumas matérias de primeira necessidade para a sua indústria textil como o alúmen t, um mordente indispensável para a preparacáo da tinturaría dos tecidos, ou produtos de tintura, O Ocidente crístáo também faz trocas com o Ocidente muculmano, o trigo da África do Norte ou da Sicília, a la, o couro, a malagueta do Magreb, os tecidos de Itália ou da Catalunha, o ouro e as especiarias de Africa, o dinheiro europeu animam o tráfico. A Itália, devído a sua posicáo geográfica e as suas tradícóes, tem um lugar privilegiado neste comércio internacional que fez a fortuna de grandes cidades, Veneza, Génova, Pisa ou Florenca, Desde o século XII, que venezianos e genoveses se organizam, e se associam para levar a cabo operacóes no ultramar. Um capitalista fornece os fundos a um comerciante itinerante que contríbui corn o seu 1 Aiúmen. sulfato duplo usado como mordente na tndústria textil. A tinta podla prender-se aos tecidos ou aos fios depois de estes terem sido tratados com alúmen. Produto indispensável a índüsrría textil, o alúmen era objecro de um comérdo rnuito importante na Idade Média.
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CÁLCULO, ÁLGEBRA E COMÉRCIO
trabalho e por vezes tambérn com urna parte dos fundos. Desde já é preciso saber contar, partilhar os benefícios ou as perdas em funcáo do contrato. A partir do século XIlI, grandes companhias criadas para durar organízam-se nas cidades do interior da Península. Os membros de um grupo familiar e dos seus aliados fomecem o capital, o colpa, partilham os benefícios na quota parte dos seus investimentos, assumem o encargo das perdas eventuaís. A companhia aceita também o emprego de particulares que recebem um ordenado fíxo. Associacóes deste tipo ganharam urna amplitude considerável, a dos Bonsignori de Siena no século XIII, as dos Bardi e dos Peruzzí de Florenca no século XIV. As grandes empresas florentinas tinham sucursais em toda a bacia do Mediterráneo e nos países da Europa Ocídental, Para elas, o comércio é acompanhado de urna intensa actívidade bancária que as introduz junto dos grandes, o papa e os soberanos, que utilizam os seus servícos, Em meados do século XIV, urna crise de urna amplitude excepcional atinge a Europa. Crise demográfica: depois de séculas de crescimento a populacáo estagna ou comeca a diminuir quando é atingida pela peste negra (348). A Europa perde num século, de acordo com as estimativas mais verosímeis, cerca de metade da sua populacáo, Este afundamento ínscrevc-se num contexto de depressáo económica e de conflitos políticos. A producáo e os preces afundam-se na altura em que guerras, em primeiro lugar a Guerra dos Cem Anos, assolam o continente. O fenómeno é complexo. Antes mesmo de a peste se ter manifestado em Florenca, os Bardi e os Peruzzi tinham falído, vítimas
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CÁLCULO, ÁLGEBRA E COMÉRCIO
dos empréstimos que tinham concedido a príncipes, entre os quais o reí de Inglaterra, incapazes de os reembolsar. Na segunda metade do
século XIV, o comércío reorganiza-se segundo novas estruturas. As companhias com sucursais dáo lugar a companhias com filiais, quer dízer, um mesmo grupo capitalista, grupo familiar como antes, controla companhias juridicamente independentes: em termos actuais poder-se-ia falar de holding. O sistema é mais flexível, um insucesso local nao implica o a falha do conjunto. Cosme de Médicis 0389-1464) ergueu o seu império comercial e industrial segundo este modelo. A amplitude dos negócios exigia correspondencia e contabilidade; capítaís postas em causa exigiam seguros. Os últimos séculos da Idade Média véem aparecer a contabilidade 1 por -partidas dobradas- e multiplicarern-se os contratos de seguros. Também eram precisos meios de pagamento; as grandes companhias comerciais italianas sao também companhias bancarias: estabelecem a letra de cambio, texto breve pelo qual um homem se empenhava em reembolsar numa data ulterior, noutro lugar e noutra moeda, urna soma que lhe fora avancada. Ela é, poís, um meio de crédito, de transferencia e de troca. Uma letra de cambio KEm nome de Deus, a 18 de Dezembro 1399, pagareis por esta última letra a prazo, a Brunacio di Guido e ca, CCCCLXXII libras X soldas de Barcelona, as quais 472 libras 10 saldos valem 900 escudos a 10 soldas 6 denarios por escudo me foram emprestados aqui por Ricardo deg'Albertí e C". Pagai-os em boa e devida forma e pende-os na mínha canta. Que Deus vos guarde. Ghuiglielmo Barbieri. Saudacóes de Bruges- (in]. Le Goff, 1986).
o
prazo era o tempo habitual de cobertura de urna letra de cambio de um local para outro. De Bruges a Barcelona o prazo era no século xv de rrínta dias. Uma letra de cambio assím cabria operacóes de troca, de transferencia e de crédito. Ela romou-se um dos instrumentos essencíais do comércio italiano no fim da Idade Média.
Aprender a comerciar -Náo devemos ser preguícosos a escrever-, a fórmula deste mercadar anónimo de Florenca no século XIV compreende-se. Letras e algarismos, o trabalho do comerciante passa pela escrita. Um oficio que era preciso aprender. Podemos tracar as grandes linhas da formacáo dos futuros mercadores italianos de Pisa, Veneza, Génova e, sobretudo, Florenca, Por volta dos sete anos de idade, as críancas entravam por dais ou tres anos numa escala elementar ande aprendiam a ler, a escrever e os rudimentos de gramática. Donato Velluti, um florentino do século XIV, dízia do seu fllho: -Tendo aprendido a ler em pouco tempo, tornou-se I Contabi/idade por partidas dobradas- contabilidade complexa, -unlízando numerosas cantas, mas abrigando sobretudo a fazer sobre cada operacáo duas escritas, urna de crédito, a curra de débito, a flm de o saldo ser sempre nulo.
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CÁLCULO, ÁLGEHRA E COMÉRCIO
bom gramático ... depois passou ao ábaco»; o ábaco, quer dizer, o cálculo. O termo evoluíra; do sentido primitivo de tabela sobre a qual se deslocavam tentos para efectuar operacoes, ganhara a signíficacáo, mais ampla, de cálculo. Os mestres ensinavam entáo, outra aritmética, «3 que é útil ao comércio-, Este ensino pode ter sido dado por preceptores ou mestres ínstruindo apenas algumas enancas. Era o caso de Nicolas Chuquet que, antes de ser qualificado de -algorista- nos livros fiscais de Liáo, aparece como -escriváo », norne dado nesta cidade aos que ensinavam as enancas dos patrícios e dos grandes comerciantes. Luca Pacioli Ce. 1445-c. 1517), autor de urna célebre Summa arithmetica impressa em Veneza em 1494, comecou a sua carreira como preceptor das enancas de um rico mercador veneziano, Antonio Rompiani. Mas, nas cidades italianas, os futuros mercadores passavam quase todos pela escala. Em Florenca, em 1338, ·L..J as enancas que aprendiam o ábaco e o algorismo nas seis escolas eram de mil a mil e duzentas-, segundo o cronista Giovani Vilani. Algarismos impressionantes para urna cidade de menos de cem mil habitantes, excepcionais talvez em razáo da importancia de Florenca como cidade comercial e como centro intelectual. Mas, em 1345, existiam em Lucques escalas públicas de ábaco; em Miláo, em 1452, trinta e sete homens de negócios enviam urna peticáo ao doge para que financiasse o ensino da contabilidade para as suas críancas, em 1486, em Génova, é a Arte da La, a assocíacáo dos produtores e mercadores de textil de la, que abre urna escola. As escolas florentinas sao as melhor conhecidas, sem dúvida em razáo da importancia da cidade, mas também porque o ensino das matemáticas tinha assumido aí um lugar particular. Mesmo os Venezianos, concorrentes de Florenca, e muitas vezes seus inimigos, reconheciam a cidade toscana urna superioridade na matéria. As escolas florentinas, as botteghe dell 'abbaco, a letra, as lajas de cálculo, parecem ter sido todas privadas. a mestre Paolo dell'Abbaco, em meados do século XIV, é proprietário da sua, lega-a a um confrade e amigo, compreendendo a heranca o local e o conjunto do material útil ao ensino. a seu testamento, melhor que qualquer outra fonte, esclarece a vida de um matemático florentino do século XIV. Redigido em 1367, provavelmente pouco tempo antes da morte do seu autor, mostra-nos um homem abastado, proprietário de duas casas na cidade e de outra no campo, a cabeca de um capital estimado em cerca de 1000 florins numa época em que um servidor ganhava anualmente 10 florins, um mestre pedreiro 40 e um notário cerca de 300. Urna fortuna nao negligenciável. Entre os seus executores testamentários figura m um mestre de ábaco mas também um rico mercador de seda. a que os documentos deixam transparecer dos recursos dos seus colegas mostra que Paolo nao era urna excepcao, Menos afortunados que os grandes mercadores que frequentam, os mestres de ábaco reputados possuem receitas superiores as dos artesáos, o que os situa entre os mais ricos da classe média. Outros, em contrapartida, térn um nivel de vida inferior, aparecem nas contas de construcáo por terem medido o trabalho realizado, calculado 11
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CÁLCULO, ÁLGEBRA E COMÉRCID
o volume dos materiais utilizados. O seu salário, poueo elevado, completa as receitas do seu ensino. Uro contrato de 1517 indica as condicóes de emprego de um jovern professor por um mestre de maior nomeada, Francesco Galigai, que tinha necessidade de um adjunto; a condicáo do neófito revela-se como das mais medíocres, o salário mínimo que lhe é garantído compara-se ao de um trolha, Em Florenca existe um grupo de professores, profissionais que vívern das matemáticas e, maís particularmente, do cálculo. O seu lugar na cidade é reconhecído e estimado. No fim do século xv uro florentino, Luca Landucci, definindo os homens -mais nobres e mais valorosos- da sua cídade, coloca entre eles, ao lado de Cosme de Médids, sete artesáos e dais bispos mas também dois mestres de cálculo.
Os tratados
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Os manuais permitem fazer urna ideia do ensino ministrado nestas escalas. Em Florenca desde os anos 1340, Paolo dell'Abbaco escreve urna aritmética para uso dos comerciantes. As obras deste tipo multiplicam-se na Itália, em Florenca e Veneza, em particular. A tipografia toma conta delas: a primeira aritmética comercial foi impressa em 1478 em Treviso; outra, tres anos mais tarde em Plorenca. AIgumas conhecem um grande sucesso, a Nobel opera de aritbmetica de Picro Borghi, um venezíano, é objecto de dezasseis edícóes entre 1484 e 1577. A Summa de arithmetica, geometria, proporttoni et proportionalita de Luca Pacioli, obra enorme que contérn, entre outras, urna aritmética comercial, é impressa em 1449 em Veneza. A primeira aritmética comercial alemá sai da imprensa em Bamberg, em 1482, alguns anos antes da obra do mais célebre dos mestres de cálculo alemáes, johannes Widman. Em Nice, Francés Pellos publica o Compendien de l'Abaco, escrita em língua nicense; a obra data de 1497. Francesch Sanct Climent imprime a sua aritmética prática em cataláo, em 1482. Conhece-se um manuscrito provencal de meados do século xv. A Itátia deixou as obras mais numerosas e mais conhecidas, mas o movímento ultrapassa o quadro da península e mesmo da Europa Medíterránica. No estado actual da investigacáo, cinco manuscritos em francés ínscreve m-se nesta tradicáo. Datam da segunda metade do século xv. Le Kadran aux marchans foi escrito por jehan Certaln em 1485, um ano depols de Nicolas Chuquet ter terminado o seu Triparty en la science des nombres cuja última parte se intitula: Comment la science des nombres peut seruir au fait de marchandise. Toclas estas obras estáo escritas em língua vulgar e já nao em latim como o essencial da literatura científica anterior e dessa altura. Facto determinante que mostra que estes tratados se dirígem a um público diferente, que nao é o da 'universidade, nem o do humanismo nascente, mas um público para quem o saber nao se confunde com a cultura herdade da Antiguidade. A língua que utílízam, formada a partir das linguagens popular e sábia, ainda nao está fíxada: os termos variam
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CÁLCULO, ÁLGEBRA E COMÉRCIü
de manual para manual, sinal da juventude de urna disciplina que ainda nao definiu o seu vocabulário. Eles sao escritos com um fim prático. Chuquet queria aplicar a ciencia dos números ao comércio e jehan Certain desejava que o seu livro fosse «guia, ensino e declaracáo a todos os comerciantes para saberem contar bem ... », Quanto a Borghi, escrevía a sua obra para os -jovens destinados ao comércío-. A preocupacáo de urna pedagogia prática é afirmada na maior parte dos tratados. A utilidade das matemáticas paca os mercadores segundo o Kadran aux marcbans de jehan Certaín (1485)
«E comparareí o meu tratado a um quadrante, pols, quera chamá-Io quadrante dos comerciantes porque tal como o quadranre é guia, conduror e caminho de todas as manelras de pessoas para conhecer a línutacáo do rempo e do dla. Assim este pequeno tratado será guia, ensino e declaracáo a todos os comerciantes para saberem contar bem para justamente tomar e dar ao vender e comprar a cada um consoanre o seu leal dírelto-. ·[... l falará esta segunda parte de pesos, de medidas, de companhias, das mudancas e outras contratos e, contudo, é necessário para todos que queiram usar mercadoria [.. .J•.
Um novo cálculo Outro trace comum, outra novidade: todos utilizam o cálculo em papel. O método mal se cornecava a impar em certos meios, o dos astrónomos ao lado dos mercadores. A quase-impossibilidade de operar com algarismos romanos tornou necessário, durante séculos, o recurso ao ábaco e ao cálculo por tentos. Estas práticas ainda sao as mesmas da contabilidade pública no Renascimento. ]á a chegada dos algarísmos árabes tinha trazido modífícacóes sensíveis, a operacáo era colocada, mas inscrita em cera, areia ou poeira, senda os resultados intermédios sucessivamente apagados, nao havendo sobras. A difusáo do papel no Ocidente, dando a escrita um suporte bem mais barato que o pergaminho, revolucionava as condícóes materiais do cálculo mas também toda urna prática das operacóes, Os algarismos sao postos, os resultados intermédios mantidos, novas colocacóes das operacóes tornam-se possíveis, portanto novas práticas operatorias.
o ábaco A Idade Média conheceu vários tipos de ábaco, quer dizer, tabelas ou tabuínhas que servlam para efectuar cálculos, como actualmente o ábaco aínda serve na Uníáo Soviétic-a ou no Extremo Oriente. O mais frequente é o ábaco linear que se apresenta sob fornil de urna prancha na qual sao materializadas por linhas a unldade e as potencias de 10. Entre as línhas pode pór-se um rento intermedio valendo 5, paca o espaco entre a ltnha das unidades e a das dezenas, 50 para o espaco entre dezenas e centenas, etc. Cada tento colocado sobre urna linha vale urna vez o que é indicado no seu lugar: tres ternos sobre a llnha das unidades valem 3; 5 sobre a Iínha dos milhares, 5000 (a cruz indica a linha dos mílhares). Deste modo, 5807 ñca assím: 13
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CÁLCULO, ÁLGEBRA E COMÉRCIO
centenas de milhar 50000
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dezenas de milhar 5000
milhares
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centenas
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dezenas 5
unidades
Adicoes e subtraccoes sao fáceis de resolver; as outras operacóes sao multo mais difíceis. Por exemplo, a adlcáo de 17617 e 4861, cujo resultado 22478, póe-sc da seguínre mancíra. é
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dezenas de milhar 5000
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dezenas 5
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o tronco comum
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Os tratados comecarn por urna aritmética que, a excepcáo da obra de Nicolas Chuquet, tratam em conjunto problemas comercíaís. Exceptuando alguns pormenores, os seus planos sao baseados na mesilla estrutura. Seja, por exemplo, o Kadran aux marchans. Divide-se em quatro partes. A primeira comeca pela numeracáo em algarismos árabes, continua pela adicáo e a subtraccáo, as respectivas pravas, a multiplicacáo, a divisáo e as provas por 7 e por 9. Passa depois as fraccóes, que chama ..n úmeros quebrados»: reducáo, adicáo, subtraccáo, multípiícacáo e divisáo; só aborda a sirnplíficacáo no fim de capítulo. Comeca entáo a segunda parte consagrada, segundo o autor, ..aos pesos, medidas, companhias e mudancas-, mostrando assim as suas ambicóes práticas, e que trata da regra de tres e das suas apiícacóes. A dívisáo dos capítulos faz-se em funcáo de critérios práticos e nao matemáticos. O autor aborda aí problemas ligados a regra de tres composta, Interessa-se a seguir, mas de maneira multo breve, pelos problemas de falsa posícáo 1 simples e 1 A falsa posicáo permite resolver um ceno número de problemas sem passar pela urillzacáo do simbolismo algébrico. O método consiste em encontrar urna incógnita a partir de urna ou duas solucoes, urna ou duas postcóes, ñxadas arbitrariamente. Cálculos diffcels de fazer, e que podem ser causa de erros, permrrem chegar a solucño. Tendo dado lugar as equacoes algébricas, o método das falsas posícóes está actualmente abandonado.
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CÁLCULO, ÁLGEBRA E COMÉRCIO
dupla e pela regra dita da -oposicao e remocáo-! antes de terminar, ainda mais rapidamente, com as progressóes. "O [acto das monnoyes e bilhóes, de ouro e de prata-, título da terceira parte, afirma a preocupa<;:lO económica. Ela contém os métodos necessários para que um mercador saiba regular, gracas ao cálculo, todos os problemas que lhe coloca a manipulacáo das monnoyes e dos metais preciosos. A última parte, completamente específica deste livro, intitulada «Ligas de Metais e Ensaios-, possui um carácter nítidamente técnico, ensinando os métodos que pennitem apurar os metais preciosos. Ela escapa, portanto, a nossa história. o plano de Borghi apresenta muitas sernelhancas com o de jehan Certain: a numeracao, as quatro operacóes elementares da aritmética, as fraccóes, a regra de tres, a liga de metaís, De ligar meta/lío O livro termina com urna série de problemas, alguns respeitantes ao comércio, enquanto outros se sítuam numa tradicáo diferente. É o caso da serpente que trepa ao longo de urna torre durante odia, percorre urna certa distancia, mas volta a descer de noíte, durante o sono, urna distancia menor; a questáo consiste em saber em quantos dias terá atingido o cume. Algumas raras diferencas na aprcsentacáo: a multiplicacáo e a divisáo sao apresentadas antes da adicáo e da subtraccáo, os parágrafos que abordam as falsas posicóes, a -oposícáo e a rernocáo-, estáo ausentes em Borghi tal como o capítulo técnico final. As semelhancas predominam e encontram-se em todos os tratados. Os autores, em funcao da sua formacáo, do meio ou dos seus próprios interesses, constroem os seus livros quase sem modiflcarem um conjunto de conhecimentos matemáticos que se referem a operacóes comerciais parecidas que constitui um tronco comum de conhecimcntos considerados indispensáveis para a formacáo do futuro rnercador.
As operacoes A numeracáo de posicáo-, por vezes acompanhada de urna breve dissertacao sobre as diferentes maneiras de escrever os números, nao é objecto de grandes desenvolvimentos; parece considerada como adquirida. Acontece o mesmo com a adicáo e a subtraccáo. Elas sao colocadas e resolvidas como hoje, exceptuando pormenores ínfunos. Os exemplos dizem respeito essencialmente a operacóes respeitantes as moedas, maís delicadas. Os números decimais sao desconhecidos e os submúltiplos das diferentes espécies em curso variam. No sistema de canta dominante, urna libra vale vínte soldas; um soldo, doze denários. A simples I Opostcao e remofilo ou apostcóo e remo~iio: este procedimento de cálculo, mal compreendido por muitos autores, é um meio de encontrar solucoes inteiras para problemas indeterruinados de duas equacocs a tres incógnitas.
2 A numera~¿¡o de postcao é a nossa: está ligada ao uso dos algansmos ditos árabes. Pala-se de numeracao de posícao, já que o algarísmo tem no número um valor que se deve a sua posit;;3.0: o 1, colocado a dtrena num número, significa a unidade: na segunda posícáo, sempre a partir da direita, significa a dezena. etc.
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CÁLCULO, ÁLGEBRA E COMÉRCIO
adícáo de duas somas exige, portanto, o emprego, pelo menos teórico, de divisóes ou de subtraccoes. A prava da adicáo faz-se por subtraccáo e vice-versa. Os autores térn por vezes difículdade em definir a rnultiplicacáo, mas praticam-na com facilidade. Vários tipos de multiplicacóes coexistem, tendo nomes diversos consoante os manuscritos. Pode multiplicar-se em cruz, método que exige a retencáo de um número considerável de resultados parciais e que se arrisca a conduzir a numerosos erros, por gelosia ou carral, díspondo numa grelha os resultados intcrmédíos de tal maneíra que nao seja útil fazer intervir os restos; enfim, de acordo com urna técnica multo próxima do que se faz actualmente. Ainda existem outros métodos, já que a ímagínacáo dos abacistas italianos era muito fecunda. A mulnplícacáo em cruz aparece como urna heranca caduca do cálculo sobre a areia que apagava os resultados intermédios. A marca do passado ainda é mais visível na mais difícil de todas as operacóes, a divisáo, Até cerca do ano 1460 em Itália, 1485 em Franca, pratica-se por divisóes sucessivas riscando o que foi dividido e conservando os restos, o que jehan Certain chama, no Kadran aux marchans, "partir por galé», Em vez de apagar os resultados intcrmédios como sobre a areía, o calculador raspa-os. A nova forma da divisáo que, como hoje, conserva os resultados das subtraccóes sucessivas, transforma completamente a prática da operacáo, Mais clara, portanto, mais segura, ela limita consideravelmente os erras. A verifica~ao das multíplicacóes e das dívisóes efectua-se gracas as pravas por 9 e por 7. A multípllcacáo
A multiplícacáo de 578 por 76 589 inscreve-se numa grelha Ca esquerda) e díspóe-se desta maneira Ca direita). Basta multiplicar um algarismo de multiplicador por um algarismo do multiplicando e colocar o resultado na casa formada no cruzamento das colunas a cabeca das quais esráo situadas esses algarismos. Como nao há resto, a opera~ao pode ser comecada por qualquer ordem. O resuIrado é obtido pela adicáo dos algarismos em diagonal. O resultado lé-se 44268 442. 5
7
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2 9 2
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r CÁLCULO, ÁLGEBRA E COMÉRCrO
A dívísáo de tipo antigo Divisao de tipo antigo raspando os resulrados Inrermédíos (manuscrito francés 2 050, c. 1460). -Resta 17
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rrn 4119
número partido número que vem da partlcáo o partidor
133
1444 13 11
A operacáo decompóe-se assím.
4139
seja 45-34
-1-
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11.
M: 1
Z
rn Divide-se entáo 113 por 34.
se]a 3 X 3 = 9, tirados de 11, sobram 2 que dáo 23; 344, já que 3 X 4 = 12, tirados de 23, sobram 11.
4139 13 344, 1
n 2Z
rrn A operacáo termina segundo a mesma diligencia:
4119
133
1444 13
A operacáo nao é multo difícil, mas a sua dísposícáo pode levar a muítos erres, ocupa um espaco consíderável desde que o dividendo e o divisor sejam formados por números muitos grandes. Foi muitas vezes apelidada de -galé-, de tal modo a sua forma faz lembrar a de um navio. A dívísáo de tipo moderno Divisao de tipo moderno, o Kadran aux marcbans (1485). -Pretendern dividir-se 6753 libras por 12 pessoas ..
67 ~ 75
IL 33 ~
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Seja um resultado de 562 9/12 ou 562 3/ 4. Só a dísposícáo e a ausencia de decimais díferem do método empregue nas escolas francesas. Esta apresenracáo é utilizada nos países anglo-saxónicos.
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CÁLCULO, ÁLGEBRA E COMÉRCIO
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As fraccoes
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Das operacoes com os inteiros, os tratados passam ás fraccoes, rotti nos textos italianos, -números repartidos» ou "números quebrados» nos textos franceses. Os autores conhecem as fraccóes, ainda que a sua definicao se revele delicada. A reducáo ao mesmo denominador é coisa corrente, tal como a símpliñcacáo. A adicáo, a subtraccáo e a multiplicacáo das fraccóes quase nao parecem por dificuldades, em contrapartida, a divisáo permanecerá durante muito tempo fonte de erras. No fim do século xv, um bom calculador, como Jehan Certain, nao sabe ainda que pode dividir multiplicando pela fraccáo inversa enguanto vários dos seus contemporáneos praticam este método. A divisáo de fraccoes ]ehan Certaín no Kadran aux marchans (1485): -Para partir número quebrado (fraccáo) primeiro preciso reduzír e saber o que vale o que quereis partir (dividir) e o que vale pelo que quereís partir e depois partir como se fossem Inreíros.. O exemplo dado é a dívísáo de 1/2 por 1/3. Reduz ao mesmo denominador e ehega ao resultado. ·E 1/3 e meto é o valor a que se chega-, o que é falso. é
Manuscrito francés 2050, Sul de Franca (c. 1460):
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Partido. Por . Dá
. . . . . . . . . . . •••••.. . . ~ L.~ . 12
Trata-se de dividir 2/3 por 3/4. O autor reduz as duas fraccócs ao mesmo denominador, seja 8/12 e 9/12. Ele indica o valor do numerador sob a barra vertical; os numeradores provenientes da reducáo sao colocados sobre os numeradores iniciáis. Basta dividir os numeradores um pelo outro, o que consiste, simplificando, na multiplícacáo da fraccáo a dividir pelo inverso da fraccáo que divide. Manuscrito francés 1339 Ce. 1460):
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A regra de tres A excepcáo das divisóes, sobretudo das divisóes das fraccóes, os mestres de cálculo dominam bcrn as operacóes elementares. Através de hesitacóes, de experiencias, criam. Data do seu tempo, numa linguagem matemática muito simples, urna primeira formulacáo das operacoes de base da aritmética tal como será praticada até hojeo Mas a maior parte dos tratados é consagrada a regra dos tres, para Chuquet «dama e mestra ... das proporcóes dos números». A maioría dos proble18
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CÁLCULO, ÁLGEBRA E COMÉRCIO
mas utiliza-a devido as suas múltiplas possibilidades de aplicacáo ao comércio, urna vez que serve para calcular preces, avaliar moedas, dividir lucros e perdas de urna assocíacáo, e para muitas outras coisas úteis ao mercador. Todos a aplicam aos mesrnos problemas, mas nao a póem, lago nao a praticam, da mesma maneira. ~A regea de tres charna-se regra de tres porque há scmprc tres números, a saber: dais semelhantes e um contrário. E, se rnais houver, devem ser reduzidos a estes tres e deve multiplicar-se a coisa que se guer saber pelo seu contrário e depois partir pelo seu semelhante-. E assim que aparece a definícáo da regra de tres no Kadran aux marchans. jehan Certain continua com um exemplo: «Como dizer-te se 3 florins valem 2 francos de rei quanto valeráo 20 florins d'Avignon-, Segundo a regra, os 20 florins, quer dizer, "a coisa que quereis saber", devem ser multiplicados por 2 francos, ..o seu contrário-, e divididos por 3, ..o seu semelhante-. Ele escreve a operacao e a sua solucáo:
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,Se3ff2fr20ff valem 13 fr 6 s 8 d, Esforco para apresentar e clarificar a regra, já que passa do discurso para urna firma de representacáo abreviada, embora a regra nao se mostre como urna relacáo, o que nao ajuda a simplificá-la. A estas receitas opóem-se formas mais evoluídas; o Compendian de l'Abaco de Francés Pellos emprega termos familiares a um estudante do século xx. -Se 4 valem 9, quanto valeráo 5 [... 1 multiplica 5 por 9, da 45, que divides por 4 e encontrarás 11 e um quarto-, Depois de ter apresentado o princípio e a prática da regra de tres sob forma retórica, expóe um método ..pelo qual podes prestamente encontrar o que procuras-; a cxpressáo é, enráo, diferente: ..Se tres e meío valem 6, quanto valem 4? Póc a tua operacáo sob a forma que se segue:
7 2
X
12 48 6 --- 4
O
número a dividir
1--1 7 7 o divisor é:
é:
48 7 '.
Enquanto actualmente se escreveria 6;: =, Pellos escreve a relacáo 6 12 12 x 4 3,5 na forma 7; ele efectua em seguida a multiplicacáo de -7--' ;-
e 1-
l-
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Ao reduzir a sua fraccáo a um ínteiro, evita lancar-se em cálculos que poderiam ser fonte de erros. Da regra de tres simples, passa-se a regra de tres composta com os seus problemas habituais de mudanca de moedas, as mais diversas. ·Se 100 llbras de Modona valem 150 de Veneza, e 180 de Veneza, 150 de Corfu e 240 de Corfu 360 de Negroponte, quantas llbras de Modona 19
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CÁLCULO, ÁLGEBRA E COMÉRCIO
valem 850 de Negroponte». Este exemplo dado por Borghi utiliza cidades ande está implantado o cornércío de Veneza; Chuquet trata o mesmo exemplo mas escolhe Paris, Líáo e Génova. A regra de tres nao pode, contudo, resolver todos os problemas postos aos matemáticos. Os tratados consagram na maior parte dos casos um capítulo ou doís a regra da falsa posícáo simples ou dupla, por vezes um outro a extraccáo das raízes quadradas ou cúbicas; mas estes assuntos, embora demonstrem os conhecímentos matemáticos do mestre que redigíu o manual, nao dizem respeito directamente as práticas dos mercadores. A parte que lhes está reservada reduz-se a pouco.
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Sao conhecimentos matemáticos multo sumanos, aos nossos olhos, que constituem o tronco comum de todos estes tratados: operacoes elementares sobre os números ínteiros e as fraccóes, regra de tres. O seu ensino póe, contu do, problemas em que alguns, dificeis de apreciar, se fícam pela novidade do propósito. A ignorancia dos sinais de maís, menos e igual nao parece ter sido urna desvantagem fundamental para o ensíno, em contrapartida, a ausencia de números decímais multiplica o emprego de fraccóes dífíceis de manipular. O esforco pedagógico é real. Os capítulos comecarn pela exposícáo de urna -regra-, quer dizer, fornecem um método susceptível de resolver um tipo de problemas. Depois da regra, vém os exemplos numéricos, do mais simples ao maís complexo. A nocáo de dernonstracáo totalmente ignorada por homens que pretendem antes de rnaís nada editar um algorismo eficaz. Apesar dos esforcos dos autores, o nível matemático exigido para aplicar ao comércio as licóes dos manuais parece náo ter sido atingido por todos os mercadores. Por várias vezes, Nicolas Chuquet insiste nas dificuldades do cálculo e propóe regras «simples e breves", receitas que consistem quer em substituir as dívisóes por urna série de medíacóes 1, quer em encontrar relacóes simples entre as unidades de conta e de medida. Francés Pellos recomenda o emprego de simplifícacóes que exigem «menos fadiga-, é
Aritmética e prática comercial o
lado prático sobressai mais nítidamente ainda dos exercícios e dos problemas. Os exemplos de operacóes sao dados em unidades rnonetárias de conta, libras, saldos e denários, ou em moedas reals, florins, ducados ou escudos. Urna grande parte dos problemas diz respeito aos preces: é preciso encontrar uro preco global quando se
1 A mediacáo, quer dlzer, a dtvísao por 2, e a duplicacáo, a mulupltcacao por 2, sao aínda muno utilizadas na época. Sao urna heranca do tempo cm que o cálculo em papel era desconhecído. A dtñculdade consíderável que hav¡a ao operar com multíplícacoes e divi. soes implicava o uso de operacccs simples, multiplicar ou dividir por dots, repetidas várias vezes.
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CÁLCUI.O, ÁLGEBRA E COMÉRCIO
conhece o pre~o da unidade ou o inverso, calcular o preco de custo ou o lucro. Outros exercícios dízern respeito ao valor de um produto ern funcáo das suas dimensóes, como é o caso de um tecido a tantos denários a vara; problemas concretos que nao sao apenas exercícios de escola.
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A traca
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Há alguns problemas, que tratam de operacóes comerciais praticadas no fim da Idade Média, que surgem repetidamente cm todos os rnanuais. Ern primeiro lugar as trocas 1: Troques el changements de marcbandises, de acordo com Chuquet, barattí de Borghi ou De barati el usso in Ira mercanti di baratare de Gori ainda em 1571. A questáo é simples, trata-se de trocar produtos utilizando a moeda como unidade de canta permitindo avaliar o seu prec;o, Uro exemplo dado pelo Compendion de l'Abaco consiste em trocar tecidos que valem 3 florins a canada por la a 16 florins o quintal. Mas a questáo complica-se pelo facto de o mercador propor o seu produto a um preco avaliado em -dínheiro contado», quer dizer, em numerárío, ele entendia, pois, «revende-lo», pedindo um preco mais elevado no decurso de urna troca. Numa época em que as moedas sao raras e em que os meios de substituicáo, como as letras de cambio, só se usa m no grande comércio internacional, o uso do numerário paga-se. Nicolas Chuquet, como um verdadeiro matemático, passa em revista todos os casos possíveis, esperando que -ninguém fique decepcionado», Ele leva a preocupacáo prática ao ponto de desaconselhar a operacao em alguns casos.
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As asscciacoes
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Outros problemas postos por todos os autores sao as assocíacóes de mercadores. Evocam numerosos casos de companhias, todas de estrutura simples: assocíacóes de mercadores em que um contribui com o capital, outro coro o trabalho, mercaderes contribuindo com diferentes partícipacóes, retirada de um sócio no decurso de urna operacáo comercial, o que permite multiplicar os exercícios matemáticos e rcsolvé-los pela regra de tres. Mas para além do exercício aparece o aspecto prático; Chuquet, ao encontrar várias possibilidades de partilhar os ganhos de urna empresa, fornece diversas solucóes matematicamente exactas, mas declara: «pegue cada um naquela que lhe pareca mais jurídica».
1
A traca segundo o Kadran aux marchans (485);
-Dois mercaderes querem trocar ou negociar a sua mercadoria um com o outro. Um tem rectdo. o outro tcm pimenta. O do tectdo qucr vender a vara por 12 saldos cm troca, o que só vale 10 soldos em dinheiro contado, por quanto Ihe deve vender o outro a libra de pimenta que nao vale mais de nove saldos em dinheiro contado?
1___
21
CÁLCULO, ÁLGEBRA E COMÉRCIO
Um problema de assoclacáo segundo Nícolas Chuquet (484) "Um mercador entregou a um factor seu 5000 libras para governar e negociar mercadoría por tal conveniencia que o factor eleva ter 2/5 do ganho. Advém que o factor além dísso e por cima destcs pactos (acordes) e do consentímenro do seu mestre, pos 100 libras em companhía do seu mestre. A saber: que parte do ganho que o factor deve ter pelos pactos primeíros nao corrompidos. Resposta: para o primeiro pelos pactos feítos o factor por causa do seu servíco deve ter os 2/5 do ganho das 500 libras que o seu mestre pos. Ora acontece que as 500 libras sao os 5/6 de todo o corpo da companhia, assím o factor por causa do seu servíco deve ter do ganho os 2/5 de 5/6 que sao 1/3 de todo o ganho. E depois para as 100 libras que pos e que sao 1/6 da companhla eleve ter a sexta parte de todo o ganho e por isso o factor deve ter 1/3 e 1/6 do ganho que sao 1/2. E devemos comprcender que nesta maneíra de fazcr (o mercador) nao perde (nem) ganha as 100 libras que o seu factor pos na companhia. Assim acontece que o factor rcve o encargo e a pena de tudo e que se o mercador nao se mete nísso rambém nao eleve participar cm nada dísso•. é
A moeda Por flm, as questóes monetarias esráo permanentemente presentes, em quase todos os problemas. Os negódos de cámbío sao mais específicos da época. A moeda era metálica 1, composta de pecas a base de aura e prata; as contas efectuavam-se em moeda de conta, libras, soldas e denarios. Cada peca tinha o seu próprio valor, ou os seus próprios valores, já que o seu valor comercial nem sempre era o valor legal fixado pelo poder público. Circulavam numerosas moedas, pecas estrangeíras, pecas cm teoría desmonetarizadas mas scmpre aceites de facto. O cambio faz parte do trabalho quotidiano do mercador de urna certa envergadura. Mas os "negócíos- necessitam de competencias suplernentares. Sob títulos diversos, ligar... quer dízer, ligar o OUfO e a prata, fazer o soldo do fim, ou outras denominacóes, os manuais de cálculo descrevem actividades essencialmente práticas que dizern respeito aos rnetais preciosos. A fabricacáo de moedas novas exigia que fosse levado metal precioso para os locais de fabrico para ser refundido. A autoridade pública - em Franca o rei, em Itália a cidade - oferece um cerro preco de compra do metal. É muito importante para o mercador saber se tem interesse em levar para aí o seu ouro ou a sua prata, que pecas deve fundir e que pecas deve guardar. Deve ser capaz de calcular o titulo da liga contida na moeda, determinar o soldo do firn, quer dízer, a quantidade de metal precioso contido numa peca de que sabe o título, saber compor urna liga de um título específico. Alguns chegam a ir mais longe: as condicóes técnicas, a usura das pecas fazíam com que elas nao pesassem todas o mesmo. Chuquet indica o meio de calcular o peso das pecas que é preciso incorporar na moeda, guardando as mais leves para si. Operacáo totalmente ilegal mas scm dúvida espalhada. 1 A Idade Média utilizava moedas metálicas, ligas de ouro ou de prara, definidas pelo scu peso, título e tipo. A partir do século XIII, as moedas de ouro de Plorenca eram os florins, as de Veneza, os ducados; o escudo era um tipo muito vezes cunhado pelos reís de Franca. Estas mocdas, como as pe<;as de prata muito mats difundidas, eram moedas reats. As pecas nao tinham indicacáo do valor, o seu valor corrente era dado em funcáo de um sistema de moeda de canta fundado sobre urna divisáo herdada de Carlos Magno, em libras, soldas e denários. Um libra valía 20 soldas, um soldo 12 denários, urna libra valía portante 240 denários. A relacáo das moedas rears e das mocdas de canta era fixada pelo poder.
22
CÁLCULO, ÁLGEBRA E COMÉRCIO
As lacunas Matemáticas simples correspondem a operacóes comerciais de um nível elementar. Desde o século XlV, a contabilidade por -partidas dobradasera conhecida dos Italianos, Ela pode interessar osmestres de cálculo, no entanto, de acordo com os conhecimentos actuais, é preciso esperar por Pacioli para que um matemático junte a sua aritmética um tratado de contabilidade; ora o caso de Pacioli é particular na medida em que a sua Soma contém muito mais ínformacóes que os tratados matemáticos contemporáneos, Do mesmo modo, os juros compostos nao sao estudados como tais nas aritméticas, enquanto que a prática de empréstimos a juros era comum.
Do comércio a álgebra Apesar de um carácter muito prátíco, os manuais nao contérn todos os conhecimentos necessários a formacáo do futuro mercador. Ele completa-a pela prática no decurso de urna aprendizagem nas lajas ou aos balcóes das sociedades. Aí, ele inicia-se, particularmente, nas subtilezas da contabilidade por partidas dobradas. Se este ensino deve servir para urna formacáo ao mesmo tempo geral e técnica, nao é de surpreender que, ao lado de urna aritmética prática dominante, alguns autores tenham acrescentado capítulos susceptíveis de agucar as faculdades de raciocínio. Muitos manuais contérn problemas que pertencem a urna tradicáo muito antíga, como o da serpente que sobe ao langa de urna torre durante o dia e desce de noíte urna distancia inferior: trata-se de saber o tempo que ela levará a chegar ao cume. Por vezes, encontram-se mesmo quest6es que se resolvem sem recurso ao cálculo, como a do homem que deve fazer atravessar ario, num barco, urna couve, urna cabra e um lobo; sabendo que só pode carregar dois ao mesmo tempo e que nao pode deixar juntos a cabra e o lobo, porque este a comeria; nem a cabra e a couve, porque aquela a comeria.
Urna geornetria calculadora Mas ao lado destes jogos aparecem capítulos de urna matemática inovadora. As geometrías, em primeiro lugar; e1as sao frequentes, mesmo se se limitam muitas vezes a algumas folhas. Apresentam muitos traeos comuns com as aritméticas. Nao demonstram; procuram antes de mais dar solucóes pelo cálculo a alguns problemas muito concretos: encontrar a superfície de um campo ou de urna peca de tecido, de um poco ou ainda de um tonel. As possibilidades de aplicacáo a mercadoria sao evidentes. A pedagogia emprega procedimentos conhecidos; aos exemplos muito simples sucedem-se casos mais complexos, tais como lajear urna construcáo ou fazer um poco quadrado no centro de uIT\.. quintal. O cálculo domina, sempre expresso por exemplos numéricos.
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23
CÁLCULO, ÁLGEBRA E COMÉRCIO
As listas de equacoes Nos textos italianos acrescenta-se, por vezes, a álgebra sob nomes diversos: algibra, argibra. Regra geral, as álgebras italianas do flm da Idade Média nao passam de capítulos acrescentados a tratados de ábaco, de aritmética ou de algorismo segundo os termos do autor, quer dizer, aritméticas comerciais. Assim no Trattato di praticba d'artsmetricba de M,e Benedetto de Florenca, grosso volume de 506 fólios escrito em 1463, a álgebra ocupa trés livros em dezasseis. Ela limita-se muitas vezes a algumas páginas. No entanto, no século XIV na Toscánia aparecem obras que só se interessam pela álgebra, tais como a Aliabra argibra atribuída a Dardi de Pisa, manuscrito de 112 fólios, composta mesmo no fim do século XIV. Estas álgebras sao, em primeiro lugar, listas de equacóes e de algorismos que trazem a solucáo de cada urna delas. Nao existe regra geral para a solucáo das equacóes mas urna série de casos, aos quaís, como em al-Khwarizmi, se deve poder relacionar cada problema. Os matemáticos do fim da Idade Média ígnorararn durante muito tempo a possibilidade de reduzir o número de equacoes, Nas listas encontram-se muitas vezes equacóes do tipo: ax3 + bx 2 + exe axs + bx+ e, cada urna com a sua solucáo algorítmica, sem que a sua identidade pareca ter sido reconhecida. Al-Khwarizrni dava seis equacóes lineares e quadráticas tipos. No século XIV, a ínvestigacáo das solucóes para problemas de graus superiores conduzia a um alongamento considerável das listas. Em 1328, na primeira álgebra italiana conhecida, Paolo Gherardi dá urna lista de 15 equacoes, 6 quadráticas e 9 cúbicas, Dardi de Pisa atinge 198, Piero Delia Francesca, por volta de 1480, limita-se a 61 equacóes das quais urna do sexto grau. De acordo com os algorismos herdados de a1-Khwarizmi, as solucóes dadas para as equacóes do segundo grau sao positivas e diferentes de zero, Para lá dísso, os algebristas italianos levaram as su as investlgacóes em direccáo de problemas de graus superiores. O Aliabra argibra termina a sua lista de 198 equacóes com um caso do tipo ax4 + bxi = {C cuja solucáo proposta é:
x
= ~~ (j¿)' + ,¡c _ JL. 2a a 2a
Os autores nunca demonstram a validade dos algorismos que propóem. Mesmo se forem conhecidas e retomadas por alguns autores, como M.e Benedetto nos anos 1460, as provas geométricas das equacóes, na linha de al-Khwarízmi e de Leonardo de Pisa, sao cada vez mais abandonadas. SÓ convinham para o segundo grau. Pelo contrário, o cálculo algébrico desenvolve-se. Poucos textos lhe dedicam urna parte importante, mas desde o século XIV que urn manuscrito expóe a multíplícacáo de monómios; o capítulo comeca pela enuncíacáo da regra dos sinais: 24
CÁLCULO, ÁLGEBRA E COMÉRCIO
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"Ero primeiro lugar digo que mais vezes rnais faz mais e menos vezes menos faz mais e mais vezes menos faz menos e menos vezes mais faz menos- (manuscrito Riccardiana de Florenca).
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o desenvolvimento do cálculo algébrico
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No decurso deste mesrno século XIV dais autores expóem sistematicamente o cálculo sobre monórnios e polinómios. A multíplícacao é feita de acordo coro as técnicas entáo ero uso na aritmética. Apesar da utilizacao de abreviacóes, a ausencia de uro verdadeiro simbolismo nao tornava as operacóes fáceis, e os tratados continuam a ser parcos sobre a divisáo dos polinómios. A álgebra do século XIV e a essencial do século xv escrevem-se ero Iinguagem retórica, quer dizer, o mais das vezes em toscano. A incógnita chama-se cosa (coisa), o seu quadrado zenso, o cubo qubo. As potencias superiores sao expressas por assocíacáo destes termos de base, o que nao deixa de por problemas. O termo -quadrado de cubo- significa num autor x 5 , noutro Xi, ou seja, no primeiro caso, X 2+3, e no segundo caso, x 3 X x3. No decurso do século xv, a álgebra italiana evolui nos mesmos termos. Na sua Somme, M.« Benedetto de Florenca retoma capítulos inteiros a predecessores do século XIV, a sua linguagem pouca ligacáo tem com a nossa. Como nas aritméticas, os seus exemplos sao sempre numéricos, os enunciados e as solucóes sempre expressos em linguagem retórica. Ele nao escrevia x 2 + c = bx nem sequer x 2 + + 21 = lOx, mas o quadrado (zenso) mais 21 unidades (dramme) valem 10 coisas ou raízes, Apesar desta desvantagem que torna difícil o desenvolvimento dos cálculos, M.e Benedetto de Florenca consegue tratar inúmeros problemas que abordam o segundo grau e graus superiores.
I"
As trinra e seis
equacóes tipo de M.e Bencdeno (1463)
(As equacoes foram transpostas para a Iinguagem algébrica actual)
1. x2 = bx
x
=e
=b
19, xi
= bxs + a.-2
x' = b.x.J
x~~m'tc+t X= b
x = {C
20.
x=c
21. x5 = 0;3
4. x2+bx=c
x~~m'tc-t
22,
x' =
tfx2
5. x1=bx+c
F~m'tC+t
2].
x' =
ex
FU Ffe
6, x 2+c=bx
,~t ±~m'-c
24. x5 =
f
xe
2, x2
].
x=c
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UNIVERSIOAOE FErfªRAL DO PIO GRANDE DO SUL
BIBlIOTFCASf'TC!~I!\L DE CIE:NCiA;3 SOCIAIS E fiUMANIDADEf<
CÁLCULO, ÁLGEBRA E COMÉRCIO
= (Xl
X"~m'+C-~
26. x5 + (Xl
= bxi
X"~ '~m'-C
X" ,¡¡;
27. x'
+ (Xl
X"~(~)'+c+4
7. Xl
=C
X"
8.
= b.t2
X
Xl
9.xl = bx
%
25. x5 +
=b
/)xi
bx'
=
10. Xl
+ bx2 = 0.:
X"~(~)'+C-~
28..,," lJx5
x=b
11. Xl
+ (X = hx2
X"~ '~m'-C
29. x'" bx'
X" ,¡¡;
12. xl
= bx2 + (X
X"~m'+c+~
30. x' " 1>.<'
X"%
13. xi
= bxl
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= bx2
Ff¡,
31.
b
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14. x4 = cx2
X = {;
32. x'" bx
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15. x' " dx
Ff,i
33- ." " b
F1ft;
=e
x= ~
34. x<í + b.'l:s = cx4
X"~m'+c-~
+ bx3 = (X2
X"~m'+c-~
35. x' + ""' " lJx5
X"~ '~(~)'-C
= bx3
X"4 ,~(~)'-c
36. x6 =
+ cr'
X"~(~)'+c+4
16.
.\-1
17. xl
18. x4 +
Un
(X2
hx5
L. galomone, 1982).
A prava geométrica de urna cquacáo segundo M.e Benedetto de plorenca Ce. 1460) No seu Trattato di praticba aritmetrícba. M." Benedctto de Plorenca consagra urna parte da sua obra a -la reghola de Algebra Almuchabale-, retomando directamente os termos árabes. •1 quadrado (zenso) e 21 unidades (dramme) sao íguaís a 10 das suas raízes, quer dízer, 10 coísas-. O que nós poríamos sob a forma: x 2 + 21 = lOx.
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u
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26
CÁLCULO, ÁLGEBRA E COMÉRCIO
A partir deste conjunto numérico, M.« Bcnedetro vai procurar o algoritmo que lhe permitirá resolver as equacóes do tipo x 2 + e + bx. O autor traca urn quadrado, figura geométrica, de lado igual a coísa, a incógnita, que ele chama, ab, segundo o nome dado a dais angulas opostos. Acrescenta-lhe um rectángulo bg cm que um lado é comum ao quadrado e cuja superficie vale 21. A área do rectangula obtido, juntando os ab e bg vale o quadrado e as 21 unidades, ou seja, de acorde com os termos da equacáo posta, 10 coisas, quer dízer, 10 incógnitas. Os lados do grande rectángulo valem, poís, um 10, o outro a incógnita. A equacáo é assim posta em forma geométrica. Colocamos entáo o ponto i no melo da linha ag, e balxa-se a perpendicular ib. A llnha bd é igual a línha he, e a linha ih é igual a linha ae. lado do quadrado, porranro a be. A seguir aumenta-se a línha ih de um comprimento igual a bb, scja rh. O quadrado t'g (sempre nomeado por dois ángulos opostos) possui uma superficie de 25, já que o seu lado vale metade de ag, isro é 10. A superficie do quadrado t'g vale, poís, 25 e a do rectángulo bg vale 21. A dlferenca das duas superficies é, pois, 4. Coloca-se sobre bd um ponto t tal que o comprimento td iguala ib, de t baíxa-se a perpendicular sobre rs em u. O rectángulo du vale, eruáo, o rectangulo bi. A díferenca de 4 entre t'g e bg corresponde portanto a superficie de 11 que é um quadrado, já que ri iguala bd e já que retírémos he que é igual a hi; resta ht que é igual a hr. Oeste quadrado, a superficie é 4, o seu lado e a sua raíz valem 2. O comprimento de ri é 5, a metade de 10, portanto o de bí. 5 menos 2, ou seja, 3, qucr dizer, a raiz do quadrado inicial, o que nos propusemos encontrar. •Por esta regra, tomar merade das rafzcs e multípllcá-la por ela (o que é, para nós, ~), e retirar o número (para nós c); retira esta raiz da metade das raizcs, dá a coisa (a íncógnira). (in L. Salomone, 1982). Em linguagem actual: x =
-t - ~ (~)2 -
c.
Urna obra, sem dúvida excepcional, mas significativa dos esforcos dos algebristas italianos, o De radice de' numeri e metodo di trovar/a, foi escrita por um desconhecido, provavelmente um toscano da segunda metade do século xv. Ele desenvolve um sistema de escrita que, a partir de abreviacóes, se toma quase um simbolismo: cossa, a incógnita: e, zenso, o seu quadrado: Z, qubo, o seu cubo: Q. Para exprimir as potencias, ele multiplica os seus símbolos: x8 escreve-se ZZZ, isto é, 2 X 2 X 2 e x6, ZQ, ou seja, 2 X 3; para as primeiras potencias ímpares, combina a adicáo e a muitiplicacao. x' escreve-se ezz, ou 1 + (2 X 2) e xr, eZQ, ou seja, 1 + (2 X 3). Mas a contríbuicáo mais inovadora do De radice de' numeri está sem dúvída noutro ponto. Em vez de dar urna lista intenninável dos casos possíveis de equacóes, reparte-as em 18 tipos de base e dá urna solu\,8.0 para cada urna. Assim sao reagrupadas em conjunto as equacóes que, expressas na nossa linguagem, tomam a forma: ax2
+ bx
= e,
ax3 + bx? ax4 + bxs ax5 + bx«
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ex, ex', ex" etc., 27
_
,
I CÁLCULO, ÁLGEBRA E COMÉRCIO
ou seja, todas as equacoes do tipo: axn+2 + bxnr) = cx n.
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progresso é considerável, nao só na prática e na comodidade da exposícáo, mas também no sentido de urna concepcáo nova da equa<;<10. Abandono da tradicáo geométrica, desenvolvimento do cálculo algébrico e de uro certo simbolismo, esforco, sem dúvida isolado, para definir e tratar coro mais simplicidade as equacóes, investígacáo de solucóes para as equacóes de grau superior a 2, sao as características principais da álgebra italiana ero língua vulgar que se desenvolve, sobretudo na Toscánía, nos séculas XIV e xv.
o caso Chuquet A álgebra francesa do fim da Idade Média foi muito menos prolífica, e o nome de Nicolas Chuquet surge isolado. Ele conduziu as suas ínvestigacoes por vías comparáveis as dos Italianos mas manifestando urna originalidade real. Cria urna simbólica algébrica que exprime a incógnita, as potencias, as raizes: como muitos dos seus contemporáneos utiliza as abreviaturas paleográficas de mais e menos (p e fii) para exprimir a adicáo e a subtraccáo, justapóe os termos a multiplicar para dar o produto, exprime a divisáo colocando o divisor sob urna barra de fraccáo, Cria os seus próprios símbolos para designar as incógnitas, as potencias e as raízes, nao hesita em empregar expoentes negativos. A partir de simbolismos, de que nao reivindica a paternidade, Chuquet pode desenvolver os cálculos sobre monómios e polinómios e resolver muitas equacóes. É o que ele chama regra dos primeiros. A regra dos primeíros ou as belezas da álgebra segundo Nicolas Chuquet (1484) «Como diz Boécío no seu pnmeíro livro, primeiro capítulo, a ciencia dos números muíto grande e entre as ciencias quadrívíaís aquela pela qual qualquer homem deve estar a inquirir diligentemente. E noutra parte ele diz que a ciencia dos números deve ser preferida em vía de aquísícáo diante de qualquer outra pela necessidade dela e para todos os grandes segredos e outros misterios que sao as propriedades dos números. Todas as ciencias rém parte nela e ela de nenhuma tem necessidade. E, no entanto, é ciencia de grande utilidade e também de grande necessidade enquanto conveniente e útil a clérigos e a pessoas laicas. varios sáblos esrudaram-na para atingir as grandes e maravílhosas subtilezas das quaís foram feitas regras das quaís urna a regra dos tres que dama e mestra das proporcóes dos números e de tao grande recomendacáo que por alguns filósofos foí chamada rcgra dourada. Da mesma maneira, a regra de urna posícao pela qual sao feítas tantas contas tao belas e deleíráveis que nao poderíamos estimar. Também a regra das duas posícóes que serve para inquirir coisas profundas e de tao grande subtileza que nenhuma das regras referidas poderá aí chegar. E da mesma maneira existe a regra de aposícáo e remocáo. Também existe a regra dos números médios da qual fui outrora o inventor por meío da qual flz um cálculo que pela das duas posícóes nao podia fazer. De todas estas regras feita mencáo na primeira parte deste Iívro, mas sobre todas estas regras referidas por excelencia maravilhosas está esta regra dos prímeíros que faz o que as outras fazem e faz além do mais e sobre elas inumeráveis contas de inestimável profundidade. Esta regra é a chave e a entrada e a porta dos abismos que estáo na ciencia dos números- (in A. Marre, 1880). é
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Como o autor do De radice de' numeri, ele reagrupa as equacoes num certo número de tipos maíores. Nunca utiliza no seu desenvolvimento o suporte geométrico como prava das solucoes que preconiza. A falta de dados muito precisos, é impossíve1 saber exactamente o que Chuquet deve aos seus predecessores e aos seus conternporáneos; parece que, além da forrnacáo que recebeu nos meios universitários parisienses, conheceu a tradicao meridional francesa mas que também teve conhecimento dos trabalhos dos algebristas italianos, em Liao ou mesmo em Itália, por altura duma muito provável viagem. Figura isolada em Pranca, matemático original tanto pelo seu vocabulário como pelos métodos e as solucóes que traz, nao deixa de representar um caso significativo de urna ciencia algébrica nascente no Ocidente. A línguagem algébrica de Nícolas Chuquet e dos seus sucessores
A utilizacáo de letras para designar grandezas matemáticas nao era ignorada na Idade Médía. Por volra de 1225, jordanus de Nemore cscrevía: .L..l dá-se urn número a que é dividido em b, e, d [. .. l- mas nao existía um simbolismo algébrico propriamente dito, estes valores nao eram utilizados em cálculos. Luca Paclolí (1494), como a maíor parte dos -algcbrtsras- do scu tempo, podía escrever: .1 número acrescentado ao seu quadrado vale 12., o que se traduz em linguagem algébrica actual por: x + x 2 = 12. Nicolás Chuquet, cm contrapartida, já possuia um simbolismo que Ihc permítía escapar cm parte a linguagem retórica. Para designar a incógnita, que ele chama um primeiro, Chuquet emprega a notacáo 11, ou seja, para nós x, para designar o quadrado da incógnita .ca, anota 12, etc. Ele escreveré do mesmo modo 3 4 onde nós escreverfamos 3x4. Ignora os sinais +, - e =, mas substituí os dais primeiros por abrcvíacóes p e iñ que adquirem valor de símbolo. Pode, asslm, escreven .12 p 3 1 lguaís a 4 2• ou 12 + 3x = 4x 2 . Para designar a raíz, Chuquet utiliza a letra munida de um expoente como R 2 e R3 onde nós escreveríamos ~ ~. O simbolismo algébrico que esrabeleceu permite-lhe empregar expoentes negativos: 12 2 m , ou seja, 12x- 2 . Pode escrever por cxemplo. -Também quem parte 84 2 por 7 3m , o número partido pelo numerador encontra 12. Depois a seguir falta subtrair 3m de 2 maís sobra 5 para denomínacáo assím dá a parte 12 5.• , ísto é,
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jéróme Cardan, pelo conrráno, punha, em 1545, as suas equacóes sob urna forma muíto maís literária: -Um cubo p: 6 coísas igualam 20.-, isto x 3 + 6x = 20.
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Com Raffaele Bombelli reencontramos, em 1572, urna anotacáo muíto próxima da de Chuquet:
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x6 - 15x4 + 85x3 + 225x2 + 274x = 120.
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A álgebra na Europa Os homens que desenvolveram esta álgebra nascente sao aqueles que ensinavam o cálculo as enancas de mercadores. Se muitos aritméticos se revelam poueo algebristas, todos os algebristas citados, e euja obra e vida sao conhecidas, escreveram aritméticas comerciais, quer sejam os mestres florentinos ou Nicolas Chuquet. Mesmo o De, radíce de' numen, tratado de álgebra e de geometria e nao de aritmética comercial, eontém um capítulo sobre o empréstimo a juros. Para além desta evidencia, essencial mas insuficiente, as correlacóes revelam-se mais difíceis de estabelecer.
A prática comercial Podemos interrogar-nos se a prática comercial nao exigia o recurso a operacóes algébricas. As necessidades dos mercadores para fixar os preces, distribuir os lucros e as perdas, traficar nas moedas e nos metais preciosos eram satisfeitas com a regra de tres. No entanto, alguns problemas mais complexos difícilmente se resolviam de outro modo senáo através da álgebra. Chuquet só a ela faz apelo urna única vez, na sua aplicacáo da ciencia dos números aos factos comerciais para calcular o juro composto, só dá o resultado afirmando que o encontrou ao aplicar a ..r egra dos primciros-. Os autores italianos apresentam casos nitidamente mais numerosos no século XIV: ..Um homem empresta 100 libras a outro e tres anos depois recebe 150 libras para o capital e o juro composto anual. Pergunto-vos qual é a taxa mensal do empréstimo por libran. O problema, tal como aparece na Aliabra argibra, pode ser pasto na prática. Exprime-se em termos de terceíro grau. Aos problemas de juros acrescentarn-se questóes relacionadas com outras operacóes comerciais. Quando no século xv M.« Benedetto exp6e 26 problemas de álgebra de tipo comercial, 8 dizem respeito ao cambio, outros tantos as viagens, 6 aos cálculos de preco ou de quantidades de mercadorias, e as ligas, o cálculo de salários e o cambio sao objecto de um exemplo cada. A prática comercial está sempre presente em diversos graus. Num manuscrito, em 39 problemas, 20 sao comercíais: noutro, 20 ern 44. A par desta relacao directa, as novas técnicas comerciais criavam para o rnercador, como para o matemático, condicóes novas. A evolucáo da contabilidade, em particular da contabilidade por partidas dobradas, que exige que cada entrada seja compensada por urna saída e inversamente, pode favorecer imensamente o desenvolvimento do conceito de número negativo. Regra geral, as aritméticas comercíais ignoram os números negativos, sao inúteis para explicar os fundamentos matemáticos das operacóes comercíais simples. Mas o desenvolvimento do cálculo algébrico, em particular das equacóes do segundo grau, confronta o matemático com a sua existencia. Leonardo de Pisa recusava as raízes negativas, mas elas apareciam no algoritmo redigido em provencal em Pamiers, por volta de 1430. Pellos só os usa urna vez no Compendian
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dell'Abacco, e em contrapartida, sao usados sistematicamente por Nicolas Chuquet. Este último propóe considerar como urna divida a raiz negativa de urna equacáo. Procedimento pedagógico sem dúvída, sentido do concreto decerto, e de um ensino muíto ligado a prática, mas o autor do Triparty tem urna concepcáo dos números negativos que vai muito alérn. Ele manipula-os como positivos. multiplica-os e divide-os, faz deles expoentes. Prática comercial e desenvolvimento de um espírito matemático esta o ligados; muitos exemplos confirmam o que parece evidente, mas as relacóes continuam a ser complexas, ainda difíceis de definir em muitos casos. Tradicoes e trocas Os modelos que os autores das aritméticas e das álgebras puderam utilizar trazem dados complementares sobre os laces que podem ter existido entre negócio e matemáticas. Muitos mestres de cálculo reconhecem, nos seus escritos, urna dívida para com os seus predecessores ou para com grandes mestres. Nas introducóes, Aristóteles é citado algumas vezes, prava da importancia do mito do sábio universal no fim da Idade Média, mas também Boécio e al-Khwarízmí. A aritmética de Boécio tinha iniciado geracóes de alunos formados no modelo das artes liberáis. Parte do quadriuium, a par da geometria, da astronomia e da música, nao era calculadora. Aritmética especulativa, segundo os termos da época, raciocinava sobre o par e o ímpar, os números triangulares ou quadrados, os números perfeitos. A tradícáo mergulhava longe na Antiguidade; tinha sido particularmente ilustrada por Nícómaco de Geraz (11m do 1 ou início do século 11 d. C.). Borghi mostra o seu saber ao afirmar que -há números de várias maneiras como o declara Boécio na sua aritmética», mas só quer tratar daqueles que sao úteis aos comerciantes. No século XIII urna nova aritmética difunde-se no Ocídente, vinda do mundo árabe. O seu grande divulgador é Sacrobosco, autor de um Algorisme que conheceu um sucesso muito grande ao longo de toda a Idade Média. Eje utilizava os algarismos árabes e a numeracáo de posicáo, praticava o cálculo apagando os resultados intermédios. Muito influenciado pelos modelos árabes, a obra aritmética de Sacrobosco aparece maís pobre que a de al-Khwarizmi: nada díz sobre as fraccóes, a regra de tres, a falsa posícáo, também nada diz sobre o uso que os comerciantes podiam fazer do cálculo. Menos orientada para a prática, o Algorisme de Sacrobosco é obra de um universitário destinada a uníversitários. Pormenores de plano e um vocabulário particular mostram que o modelo marcou as aritméticas comerciais da Franca do Norte no século xv, sinal da influencia do modelo escolástico nas regíóes próximas de Paris. Mas se a tradicáo de Sacrobosco pode familiarizar os Ocidentais com os novos procedimentos de cálculo, ela nao contém nada que possa servir de introducáo directamente a urna -álgebra. Outra vía da inovacáo nas ciencias do cálculo: a astronomía. Também aí, os manuscritos franceses atestam o desenvolvimcnto do cálculo fraccionário nos astrónomos e Paolo dell'Abbaco é citado pelos seus con31
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temporáneos como um astrónomo reputado. A habilidade em manipular as fraccóes pode desenvolver a prática do cálculo, sem, no entanto, implicar o recurso a álgebra. A influencia dos matemáticos árabes tinha tomado, desde o século XIII, caminhos mais directos. Alguns anos antes de Sacrobosco, Leonardo de Pisa tinha, no seu Líber abbaci escrito em latim, retomado as bases do cálculo mas desenvolvendo a sua obra de maneira muito diferente. A parte prática era consideravelmente desenvolvida e é muito justamente que a obra de Leonardo de Pisa deve ser considerada como a principal fonte de inspíracáo dos tratados de aritmética comercial europeía dos séculas XlV e xv. Ao lado de questóes comerciais, o Líber abbaci consagra o seu décimo quinto livro a geometria e a álgebra. Apresenra diferentes tipos de equacóes e a sua solucáo geométrica na mesma linha de al-Khwarizmi. Ora, entre os trabalhos algébricos de Leonardo de Pisa, -só os que esráo contidos no Liber abbaci conheceram urna grande dífusáo no Ocidente. As suas obras mais especializadas permaneceráo desconhecídas durante muíto tempo. A tabela das matérías do Liher abbaci de Leonardo de Pisa (1202) Leonardo Pibonacci, ou Leonardo de Pisa, escreve o seu Liber abbact em 1202. A obra, muito próxima pelo conteúdo dos tratados dos séculos XIV e xv, está escrita em latim . • l. 2. 3. 4. 5. 6. 7. 8. 9. 10. 11. 12. 13. 14. 15.
As nove Figuras das Índias, os algarismos e a numeracáo. A multiplícacáo dos inteiros. A adícáo. A subtraccáo. A dívísáo. A multíplícacáo dos íntelros e das fraccóes, a multípllcacáo das fraccóes. A adícáo, a subtraccáo, a divísáo dos ínteíros e das fraccóes e a reducáo ao mesmo denominador. As compras e as vendas. O regareio (tracas). As sociedades. O cambio das moedas. As solucóes de múltiplos problemas. A regra de chatayn que permite resolver varios problemas. A exrraccáo das raizcs quadradas e cúbicas e as operacóes com raízes. A geometría e as questoes de álgebra- (in G. Libri, 1838-1841).
A certeza da vía italiana juntam-se as possibílidades de outras passagens através do Mediterráneo, em particular pela Espanha, As aritméticas do Sul da Franca, quer sejam francesas ou occitánicas, apresentam características ausentes nos textos italianos, como o cálculo por aposir;ao e remocáo, método aritmético para resolver problemas indeterminados compreendendo duas equacóes a tres incógnitas. O próprio Chuquet foi beber nesta fonte antes de entrar em contacto com as fontes italianas. Esta tradicáo meridional é objecto de ínvcstigacóes actuais. Urna hipótese sólida póe-na em relacao com o desenvolvimento das matemáticas judias no Sul da Franca e em Espanha. A sua história tem origens longínquas, já que a prirneira obra a tratar de álgebra escrita no 32
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Ocidente data da primeira metade do século XII, redigida em hebreu por Abraharn bar Hiyya Ha-Nasí. e rapidamente traduzida para o Iatim, Aínda mal conhecida, esta tradicáo pode influenciar as matemáticas espanholas e as da Franca Meridional. É no tratado provencal de Pamiers Ce. 1430) que, pela primeira vez no Oeidente, a solucáo negativa de urna equacao é aceite. O texto contém também urna nova abordagem dos números irracionais. Ora, este tratado também é, e sobretuda, urna aritmética comercial. A ínvestigacáo das origens mostea que os caminhos seguidos pela dífusao da álgebra de al-Khwarizmí e dos seus sucessores, por um lado, e das aritméticas comerciais, por outro, foram muitas vezes os mesmos. Continua a ser mais difícil estabelecer as influencias que puderam manifestar-se no fim da Idade Média. A ciencia árabe, embora já nao possuísse o esplendor que tivera nos séculas precedentes, continua a existir, a produzir. O esforco feito pelos grandes algebristas orientais dos séculas Xl e XII para separar a álgebra da geometria foi continuado no Ocidente muculmano, no Magreb e em Espanha, nos séculas XlII e XIV. Ao lado das listas de algoritmos que circulavam como no mundo crístáo, matemáticos como lbn Badr na Andaluzia e Ibn al-Banna ern Bugia desenvolveram urna escrita simbólica, repensaram a classifícacáo das equacóes e propuseram. solucóes novas. Actualmente é impossível estabelecer relacóes exactas, mas a álgebra progrediu imenso em direcs;:oes comparáveis nos dais lados do Mediterráneo Ocidental: primelro, parece que nos países do isláo, nos séculas XIII e XIV, depois nos países crístáos nos séculas XIV e xv. Ora as margens do Mediterráneo eram objecto de tracas comerciais constantes.
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mundo dos mercadores foi um intermediáno incontestável na transmissáo das matemáticas do mundo do isláo, da álgebra no sentido que os Árabes lhe davam, para a cristandade ocidental, também foi o lugar de elaboracao de novas matemáticas. O facto, agora solidamente estabelecido, póe muitas questóes. Quesróes de cronología. em prímeíro lugar. Porque foi preciso esperar pelo século XIV para que a obra algébrica de al-Khwarizmí conhecesse urna difusáo tao ampla? Por que razáo a ínovacáo algébrica, que comecamos a aperceber-nos, ligada em particular ao desenvolvimento do cálculo e ao abandono dos raciocínios fundados na geometría, nao se desenvolveu ern Itália senáo a partir do século XIV, e ainda mais tarde nos outros países? É preciso voltar ao facto inicial, sao os mesmos homens, vivendo no mesmo meio, que produziram as aritméticas comerciáis e os primeiros tratados de cálculo albébrico em lfngua vulgar. Os mesmos homens, quer dizer, um grupo de matemáticos profíssionais, os primeiros que a Europa Ocidental conheceu, para quem as matemáticas nao eram nem geometria nem reflexáo sobre a natureza dos números, mas cálculo e algoritmo. A sua profissáo exigia-o, eles tinham de formar na prática do cálculo homens cuja primeira preocupacáo era a cfícácia comercial, homens para quem 33
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contar depressa e bem era urna necessidade quotidiana. Compreende-se entao o lugar do cálculo numa cidade como Florenca, lugar eminente do comércio internacional no século XIV, sede de companhias que irradiavam pela bacia do Mediterráneo e pela Europa Ocidental. Presentes na vida quotidiana, presentes na arte, financiadas exacta ~ mente por aqueles que fundam a sua fortuna na prática do comércio, portanto do cálculo, as matemáticas estáo por todo o lado. Para o historiador de arte Michael Baxandall, a formacáo dos Florentinos explica em grande parte a arte do Quatrocentos toscano. Para ele, o facto de medir tonéis a partir de cálculos, de se servir quotidianamente da regra de tres, portanto de estabelecer proporcóes, críava -um mundo intelectual absolutamente particular-o Símbolo deste mundo, Piero della Francesea, um dos criadores do novo espaco pictórico, escreveu um tratado de aritmética. O lugar do matemático calculador é reconhecido na cidade, as condicóes económicas e sociais favorecem o desenvolvímento de urna ciencia nova a partir de urna aquísícáo exterior agora assimilada. Emboca se tivesse apoderado completamente da cultura greco-árabe, em particular nos domínios da astronomia e da física, a Universidade só tinha podido assimilar urna pequena parte das matemáticas desenvolvidas nos países do ísláo, poueo úteis para a críacáo de um sistema do mundo. Pelo contrário, os mercadores favoreceram a eclosáo de urna ciencia do cálculo fundando a ínstituicáo, a escola profissional, que clava aos matemáticos os meios para viver, criando um ambiente inovador, tanto no domínio das técnicas comerciais como no da arte, onde as matemáticas tinham um lugar determinante. Um meio científico tinha nascido. A funcao do matemático 1 é reconhecida na cidade, suporte social da sua actividade. Os lacos entre a história da arte, a das ciencias e a da cidade aparecem na cronologia. No século XVI, quando Florenca deixa de ser o grande centro artístico, em que Roma e as cortes principescas atraem os artistas de maior renome, nesse mesmo momento os grandes matemáticos italianos que contínuaráo a desenvolver a álgebra deixaráo também de ser florentinos e de pertencer ao mundo dos comerciantes. Cria-se outra dinámica. Nao que os matemáticos abandonem o cálculo; Bombelli, Fontana, Tartaglia, Cardan ou Viere provam-no, mas o meio muda. O comércio cede o seu lugar ao humanismo, o comerciante ao príncipe. Em Paris, em 1495, Pedro Sanchez Ceruello publica a Arithmetica speculatiua de Bradtoardine, acrescenta-lhe urna aritmética prática muito próxima dos tratados destinados aos comerciantes, mas o texto é em latim. Os humanistas assimilaram a contribuícáo das matemáticas comerciais mas cortando-lhes as su as raízes. No século XVI, os grandes nomes que marcam a história da álgebra perteneem a meios muito diferentes dos que conheceram Paolo dell'Abbaco e Chuquet. Tartaglia (1499·1557) inicia a sua carreira como -mestre de 1 A unlízacáo de resultados matemáticos por outros sectores de actividade, como o comérc¡o, pode, portante, encorajar o desenvolvímento de urna proñssao científica. Mas outros cenartos também sao possíveís. é um tipo de matemático profissional rnuíto diferente, ligado desta vez Universidade, que surgirá no século XIX. á
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ábaco" e escreve ero italiano. Os seus centros de interesse que englobarn as matemáticas, mas também a geografia, a astronomia, a arquitectura e a óptica, diferenciam-no dos seus predecessores. Cardan (1501-1576) também ensina, mas comeca nurna escala humanista em que as alunos aprendem o Grego, a Dialéctica e a Astronomia a par das Matemáticas, torna-se a seguir professor de Medicina ero Pádua. As su as obras essenciais, a Pratica aritbrnetice e a Ars magna sao ero latim. BombeIli 0526-1572) eserevla em italiano, mas era engenheiro e arquitecto, ao servíco de uro importante nobre romano. Fora da Itália, Viéte (1540-1603), eonselheiro no Parlamento, serviu Henrique IV no decurso de numerosas missóes, também ele escrevia ero latim, No entanto, o ensino do cálculo para uso dos jovens mercadores persistiu, e durante séculas. Mas tornou-se repetitivo e deixou de ser criador. Existiam modelos em número suficiente. As conclus6es que ressaltam deste capítulo nao devem criar-nos ilusóes, sao apenas provisórias. As incertezas sao grandes e as Iacunas consideráveis. Ainda há demasiados textos que continuam por conhecer ou pouco estudados. As relacóes entre o mundo dos mercadores e o desenvolvimento das matemáticas só pode ser apreendido no quadro privilegiado de Florenca, enquanto os exemplos franceses conduzem apenas a pequenos matizes; ora, seria preciso estender o estudo a Alemanha, ande o comércio floresceu neste fim da Idade Média e ero que os matemáticos, mestres de cálculo, escreveram aritméticas comerciais. Também seria preciso conhecer melhor os lacos que se teceram entre as matemáticas dos países do ísláo, do Magreb em primeiro lugar, e da Europa cristá num espaco comercial em que as relacóes eram constantes. Seria preciso ainda poder seguir os destinos dessas matemáticas ao langa de todo o século XVI, saber em que medida contribuíram para a formacáo dos algebristas do Renascimento, os que receberam o essencial da obra de Diofanto e prepararam o advento da álgebra clássica. Seria preciso, por fim, voltar os olhos para o mundo exterior aos mercadores; no século XIV, os físicos parisienses, na sua preocupacáo com urna primeira maternatizacáo do mundo, foram levados, tal como Nicolau de Oresme, a desenvolver uma linguagem matemática nova. No entanto, a grande aventura da álgebra europeia é essencialmente, nos últimos séculas da Idade Média, comercial e mediterránica. No fim da Idade Média, as ciencias do cálculo deram um passo decisivo na Europa cristá, Por vários séculas, aquilo que se charnará maís tarde aritmética elementar foi fíxado, Os mesmos capítulos encontrarn-se em todos os tratados destinados a formacáo de jovens comerciantes do século xv como nos dos alunos das escolas primarias da III República (francesa): numeracáo, adícáo, subtraccáo, multiplicacáo e dívisáo com as suas pravas, fraccoes, regra de tres, falsa posicáo simples e dupla. Também os métodos de cálculo quase nao mudaráo, a difusáo do papel permitiu escrever resultados intermédios e conservá-Ios. As formas actuais sao firmadas muito depressa, para a adicáo e a subtraccáo, um pouco menos para a multiplicacáo e sobretudo para a divisáo, Mesmo a divisáo de fraccoes comeca a ser tratada multiplicando pela 35
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fraccáo inversa. SÓ a regra de tres, essencial no entanto para a solucao dos problemas, mio se póe ainda como actualmente. A esta aritmética calculadora quase estabelecida opóe-se um cálculo algébrico em plena mutacáo, As diferencas relativamente a álgebra ensinada nos liceus sao consideráveis. A linguagem continua muitas vezes a ser retórica e, quando existe urna simbólica, ela varia com cada matemático. A demonstracáo é desconhecida, o algebrista escreve algorismos euja validade se mede pela eficácia. Todavia, produziram-se inovacóes decisivas. A álgebra abandona a tradicáo geométrica recebida de al-Khwarizmi e transmitida, em particular, por Leonardo de Pisa; desenvolve, por diferentes métodos, os cálculos com potencias e raízes, monómios e polinómios e pode assim abordar a solucáo de equacóes que ultrapassam, de longe, o segundo grau. A mudanca é repartida por vários séculas, mas a partir daqui as ciencias do cálculo descnvolvem-se na Europa Ocidental, sobretudo na Itália. Os Italianos desempenham no século XVI um papel determinante até ao fim do século, altura em que Viete acaba por fixar, mais que qualquer outro, as regras da álgebra clássica. É nesta óptica que é preciso reconsiderar o impacte das traducóes da obra de Diofanto na construcáo da álgebra clássica. Ora nos séculas XIV e xv as inovacoes essenciais aparecem fora da Uníversidade onde o lugar dos matemáticos continua limitado e se orienta mais para o estudo dos movimentos, a cinemática, do que para a álgebra. A matemática é aí mais um meio de estabelecer as regras de urna física que urna ciencia enquanto tal. Por outro lado, a álgebra nao pertence ao modelo sempre presente no espirito dos universitários: o de urna ciencia grega simbolizada antes de mais por Aristóteles. O único grande algebrista que escreveu em grego, Diofanto de Alexandria, continua a ser desconhecido na Europa medieval. Os principais artesáos do impulso da álgebra sao, contudo, professores, profissionaís das matemáticas, mas que prodigalizam mais um saber que uma cultura. Destinado a formacáo das críancas dos mercadores, o seu ensino tinha um carácter prático indiscutível. Ora, dado que o comerciante devia antes de mais nada saber contar, os professores deviam ser calculadores. Mais que a urna exigencia precisa dos mercadores, a inovacáo responde a condicóes novas. A álgebra desenvolve-se primeiro em Florenca, nUID mundo em que o cálculo está presente em todo o lado, na vida quotidiana e na arte, em que o cálculo é reconhecido como um valor indispensável a vida da cidade: um meio também em que os matemáticos sao numerosos e podem viver da sua ciencia. A massa critica foi atingida. Cría-se um meio apto a ínvestígacáo, um meio científico no seio do qual se colocam problemas matemáticos que ultrapassam, ern muito, as necessidades práticas do comércio.
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Onde se descobrirá urna multiplicidade de casos, povoados de diferentes actores, apresentando-se cada um como urna resposta a pergunta: "o que fundou afinal Galileu?» Onde se avancará a hipótese de que esta multiplicidade nos fala simultaneamente da história e dos historiadores.
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m Os Átomos, jean Perrin sublinha o contraste entre os mapas que se podem desenhar da costa da Bretanha e os flocos que se podem obter deitando sal em água com sabáo, No primeiro caso, estamos perante um problema de rcpresentacáo: um mapa, feito a urna determinada escala, representa as linhas da costa através de curvas regulares, ern cada ponto das quais se pode tracar urna tangente. Numa escala mais subtil, este segmento contínuo será evidentemente substituído por um contorno multo mais complicado, mas também ele cornposto por curvas regulares. A dúvida que conceme a posícáo das tangentes prende-se, pois, com a escolha da escala, a escolha do tipo de mapa utilizado. «É que o mapa é urna representacao convencional no qual, por ineréncia a sua construcao, toda a linha tem urna tangente. Pelo contrário, é característica do nosso floco (como de resto seria da própria costa se, em vez de a estudarmos através de um mapa, a observássemos directamente, de mais ou menos perto), que, em qualquer escala, supomos, sem os ver realmente com clareza, os pormenores que nos impedem absolutamente de determinar a tangente». Será que o contraste estabelecido por Perrin também é válido para a relacáo estabelecida entre urna sítuacáo histórica concreta e as descricóes que dela fazem os historiadores? Impóe-sc, desde logo, urna prímeira distincáo: o recorte convencional ao qual corresponde a descricáo do historiador nao pode ser caracterizado em termos tao simples como é o grau de aumento. Exploraremos aqui múltiplos "casos Galileu-, e esta multiplicidade traduzirá menos o seu grau de precísáo ou de resolucáo do que os pontos de vista heterogéneos apresentados por historiadores e filósofos. Devemos entáo concluir que as narrativas sao inferiores aos mapas de Perrin, que aqui o real é inacessível nao só porque os seus porrneno-
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res podem ser observados até ao infinito mas também em funcáo dos preconceitos daqueles que o descrevem? Gostaria de mostrar que o interesse que apresenta o caso Galileu para cada um dos que o ínterrogam nao pode ser comparado a um écran que mascararia a verdade e nada nos desse a contemplar, a nao ser projeccoes subjectivas. Decerto, existem relacóes polémicas entre diferentes versees, e os que as apresentam poderáo acreditar que a sua verdade ofusca todas as outras. Contudo, nenhuma de entre elas pode ser assimilada como sendo «a» versao verdadeiramente neutra, desinteressada, do «casan. É por ísso que procederei a exploracóes de bífurcacóes sucessivas. Em cada bifurcacáo, urna nova paisagem se desenhará, e nao será mais nem menos precisa, tal como os mapas de Perrin, mas diferente, suscitada pelas questóes e pelas razóes que levaram o historiador ou o filósofo até ao «caso Galileu-. Cada um dos casos Galileu aqui apresentados poderá, nesse sentido, ser comparado a urna reaccao química. É o ínteresse do historiador, ou do filósofo, pela cartada que arrisca neste caso e que, nesta comparacáo, desempenha o papel de reagente. Interesse que relaciona o passado e o presente e nao é um obstáculo, mas sim um operador que suscita activamente novas perspectivas, que levanta problemas interessantes, construindo narrativas cujas divergencias dáo relevo ao passado, tal como a multiplicidade das possibilidades de reaccáo confere a sua identidade a um carpo químico. Quanto ao resto, os historiadores nao tomam aqui a iniciativa. Galileu era reconhecido como o maior sábio italiano da sua época; os seus lívrost, redigidos, contrariamente ao que era habitual, nao em latim mas na língua «vulgar", o italiano, dirigiarn-se abertamente, para além de se dirigirem aos seus pares, a todo o homem de bom senso, anunciando-lhe urna transformacáo radical do "sistema do mundo-, o fim de urna tradicáo que se apoiara na autoridade de Aristóteles, a prática de urna ciencia reverente dos -factos- e nao dos textos. A condenacáo feita a Galileu pela Igreja iria, todos eles o sabiarn, -deíxar mernória-, ressoar por toda a Europa. Resumindo, o que caracteriza os «casos Galileu- é que os seus actores sabiarn que participavam num «caso», que estavam a fazer a história. Desde entáo, o interesse dos narradores dos dias de hoje é essencialmente de natureza semelhante ao dos actores de entáo, Estes, ao contrário das rachas, dos graos de areía ou dos filamentos de flacos que tomam indiferente o facto de serem ou nao negligenciados por um cartógrafo, debrucaram-se sobre o futuro, tal como o historiador se debruca sobre o passado. Eles nao viverarn urna história cuja narracáo o historiador inventara. Procurararn eles próprios decidir quais os contornos da história, litigaram por urna cartografía determinada, 11
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1 As principais obras de Galileu : De Motu (Do Movimento) fo¡ escrita mas nao publicada durante o professorado de Oalíleu em Pisa 0589-1591); Sidereus Nuncius (O Mensageiro Sideral), 1610; Ji Saggiatore (O Experimentador), 1623; Dialogo sopra j due massimí sístemt del mondo, Ptolemaico e Coperntco (Diálogo sobre os deis Príncípais Sistemas do Mundo, o Ptolomatco e a copemiciancñ, 1632; Discorsi e dimonstrazioni matematíche intamo a due tluave scienze attenentt alfa mecantca & i monmentt lacali (Discursos e demonstracces matemáticas respeíranres a duas ciencias novas), 1638.
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construíram a curva regular, a narracáo da norma a qual a sua posícáo se submeteria, e em nome da qual os seus adversários deveriam ser condenados. E este capítulo nao foge a regra, Como se verá, também eu tenho a «minha" versáo sobre o caso Galileu, versáo que nao anula as outras mas articula mais urna perspectiva. E nao é por acaso. Nao se -chegaa Galileu por acaso, como se se tratasse de um episódio entre outros, Dirigimo-nos a Galileu, tal como Galileu se dirigiu ao seu público, para fundar urna tese sobre a nova ciencia, para discutir a -racionalídade- a qual ela responde, ou o seu carácter inovador.
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Primeiros casos: "E no entanto ela mooe-set-
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EPPUr, si muove! terá, segundo reza a lenda, murmurado Galileu, no momento da sua condenacáo em 1633. O poder da Igreja nao poderá opor-se ao poder dos factos. E é mesmo isso o que afirrnam os textos de Galileu, os anteriores a sua condenacáo: há dais poderes que se afrontam, o da tradícáo sustentada por urna aceítacáo a letra das Escrituras e o dos factos dos quais ele próprio é apenas um humilde representante. É preciso que a Igreja reconheca e ocupe o seu único lugar legítimo de guardia da fé e deixe o resto a razáo humana. Assim, na Carta a Castelli, escrita em 1613, Galileu cscreve: -Eu acreditaría de bom grado que a autoridade das sagradas escrituras outra intencáo nao tínha que a de ensinar aos homens os artigos e as proposicóes que, necessárias a sua saúde e ultrapassando toda a razáo humana, nao poderiam ser ensinadas e tomar-se crediveís a nao ser pela própria voz do Espírito Santo. Mas que Deus, que nos dotou de juizo. razáo e intelecto, tenha desejado que negligenciemos deles fazer uso, que ele tenha querido dar-nos um outro meio de conhecer aquilo que podemos através deles atingir, nao penso que seja necessário cré-lo-. E Galileu convoca, para o terreno dos factos, os seus adversáríos: «Mas se, de facto, eles julgam ser detentares do verdadeiro sentido de tal passagem particular das Escrituras e, por consequéncia, estáo certos de possuir, sobre o ponto em controvérsia, a verdade absoluta, que me digam muito simplesmente se julgam que, numa discussáo sobre urna questáo natural, aquele a quem acontece ser detentor da verdade tem um grande triunfo sobre aquele outro a quem coube a tarefa de sustentar o falso. Sei que, a urna tal pergunta, responderáo sim; aquele que é detentar da verdade, argumentaráo eles, terá do seu lado mil experiencias diversas, mil demonstracóes necessárias, enquanto que o outro nada terá do seu lado, a nao ser sofismas, paralogismos e falácias, Mas entáo, se - segundo eles, no limite das razoes naturais e sem usar outras armas que as da própria filosofia - térn consciencia de ser a tal ponto superiores ao seu adversário, porque é que, no momento de com ele medirem forcas, nao tomam nas suas máos a arma invencível e temível cuja vísáo afugentará o mais hábil e treinado dos IuradorcsrGalileu simula aqui dirigir-se apenas ao padre Castelli, mas ele sabia que a sua carta seria transmitida ao seu protector, o duque Cosme 11 de
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Médicis, e a sua máe, a grá-duquesa Christine, que interrogou Castelli acerca das teses de Galileu. Sabe que a sua carta circulará e constituirá uro verdadeiro desafio: aqueles que se lbe opoem que reúnam os factos que provam que ele nao tem razáo. Galileu tem a sua disposicáo centenas de experiencias, os seus adversários nada térn para além da autoridade, deslocada, das Escrituras. Em 1616, depois de urna denúncia feita a Carta a Gaste/li, o cardeal Bellarmina comunicará a Galileu a proíbicáo de afirmar em público a verdade da doutrina heliocéntrica. Proibicáo a qual Galileu se submeterá, siro, mas de urna tal forma que ridiculariza, mesmo na afírmacáo da sua obediencia, aqueles que Iha impuseram. O Diálogo sobre os Dais Principats Sistemas do Mundo (632) póe, de facto, ern cena tres interlocutores, Salviati, porta-voz de Galileu, Sagredo, hornem culto, esclarecido, capaz nao só de se deixar convencer plenamente pelos argumentos de Salvíati como rambém de os prolongar e corroborar a partir das suas próprias reflexóes de -senso cornum- e, finalmente, Simplicio, aristotélico limitado, incessantemente convencido de erro e de subrnissáo cega a tradícáo, Ora, nao é nem Salviati nem Sagredo mas sim Simplicio quem conclui o diálogo, invocando a autoridade de urna pessoa ilustre, «eminente e sábia-, diante da qual convém manter o silencio: segundo a doutrina de tal ilustre, tudo o que tinha até entáo sido apresentado como demonstracáo certa, nada de verdadeiro nem de necessário possui, já que Deus tero o poder de produzir tais -factos- que parecem demonstrativos através de meios que somos incapazes de imaginar. Os doís interlocutores de Simplício, Sagredo e Salvíati, em váo se inclinam perante esta -doutrina angélica e admirável-, o papa Urbano VIII, autor do argumento citado por Simplicio, nao se sentiu, díz-se, menos ridicularizado. A porta estava, desde entao, aberta aos inímigos de Galileu, e a sua condenacáo que ocorreu um ano após a data da publícacáo do Diálogo. A Doutrina Heliocéntrica
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primeíro -heltoccntrísta- conhectdo, o prímeíro que OUSOll pensar que a Tena poderia movimentar-se ern torno do Sol, foi Aristarco de Samas de qucm se dlz ter nascido em 310 a. C. Nada conservamos dele, a nao ser um tratado indicador das dímensóes e das dístánclas do Sol e da Lua. A primeira edicáo do Lioro das Revo/ufOes das Órbitas Celestes de Copémíco foí publicado em 1543, ano da sua morte. Se se admite que as flagrantes díferencas entre as observacóes astronómicas e as prevlsoes do sistema do astrónomo alexandríno Prolomeu (século 11 a. C.) tiveram um papel na .revofucáo copemicíana-, sabe-se menos se o sistema de Copérnico, tambérn ele fazendo entrar em cena as órbitas circulares, era complicado e imperfeito. O sistema que -preservou os fenómenosde forma mais satísfatóría foi, até que Kepler -quebrasse o circulo- e ousasse transformar as órbitas planetárias em eclipses (1605), o do seu mestre Tycho Brahé: aTerra estaria no centra, mas os outros planetas gíraríam em torno do Sol, girando ele, por sua vez, em torno da Terra. Entretanto, a -revolucáo copemlcíana- suscitou paíxoes que nao limitaram estas questoes técnicas. Ela constítuí, neste sentido, bem mais do que uma -revolucáo cíennfíca-, urna -revolucáo cultural•. É desta última rcvolucáo que Galileu, ignorando até ao fim as elipses de Kepler, se tornou o herdeiro.
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Eis pois urna versáo c1ássica do «caso» que opas Galileu a Igreja, versáo que corresponde a encenacáo feíta pelo próprio Galileu e que faz dele 40
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um herói do livre pensamento, exposto a perseguicao obscurantista. Cantudo, outros historiadores daráo ouvidos a outros actores. Assim, Arthur Koestler dá-nos do cardeal Belannino um modelo de tolerancia. O que ele proibira a Galileu era que pretendesse possuir a verdade absoluta da doutrina heliocéntrica, mas reconhecia-lhe o direito de a utilizar, apenas como urna hipótese científica. Entáo nao deveria ser suficiente, a um matemático, demonstrar que as aparéncías sao melhor salvaguardadas pela hipótese do movimento da Terra a volta do Sol, sern que ele tivesse necessidade de afirmar que o Sol está em verdade no centro do Universo? Lida por Koestler, a Carta a Castelli muda de sentido. Galileu tenta na verdade enunciar de forma unilateral e em seu benefício as regras as quais deveriam submeter-se os que participam na história das discussóes a propósito do heliocentrismo. Galileu nao só afirma a verdade absoluta da sua tese como ainda atira a bola para o campo adversárlo: os outros que tratem de refutar aquela verdade. E Koestler faz notar que, se Galileu precipita deste modo o conflito, recusando o acordo que lhe propóe Belarmino, é sem dúvida porque nito tem meios de demonstrar que -salua melhor as aparéncias- do que a antiga astronomia de Ptolomeu. O sistema de Copérnico que admitía, tal como o seu predecessor, a circularldade dos movimentos celestes a título de postulado é, sublinha Koestler, ainda mais complicado do que o sistema ptolomaico. Koestler toma a por, assim, em causa o papel de Galileu astrónomo: as suas descobertas dos satélites de Júpiter e das manchas solares fizeram de Galileu um propagandista da hipótese coperniciana, mas passados mais de vinte anos sobre a publicacao da Astronomia Nova de Kepler (1609), o Diálogo mantém-se quanto as órbitas circulares e cala o facto de que estas órbitas nao permitem de forma alguma «salvar os factos-, E Koestler conclui: -Durante cerca de cinquenta anos, (Galileu) tinha-se impedido de falar a propósito de Copérnico, nao por temor da fogueira mas para se poupar de cair em desgraca nos meios universitários. Quando, bruscamente coberto pela glóría, ele finalmente se ernpenhou, fé-lo por urna questño de prestígio. Tendo afirmado que Copémico tinha razao, qualquer outro que fosse de opiniáo contrária causarla um injúrio el autoridade mais sábia da época. Eis o que, essencialmente, terá levado Galileu a lutar... Os seus adversários nao se justificaram do facto; mas ele tem a sua importancia quando nos interrogamos se o conflito era historicarnente inevitável-. Koestler pensa que nao o era, que sem o orgulho de Galileu, o confliro, levado el cena pelo próprlo Galileu, entre urna Igreja obscurantista e urna ciencia desde entáo identificada com a liberdade de pensamento, poderla ter sido evitado e que talvez urna outra hístória tivesse sido possível, urna história que nao condeosasse a ciencia a um papel heróico que tao mal lhe assenta. Esta a jogada do -caso Galileu., tal como é vista por Koestler: o drama da clivagern entre -racionalidade- e -valores- que hoje permite aos homens manejar a bomba atómica sem terem sequer cornpreendido o que implica um tal poder desmedido. A ciencia fez de Galileu o símbolo da sua liberdade, mas este símbolo traduz. antes de mais, a incoeréncia violentamente reivindicada entre as suas próprias condicoes de
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desenvolvimento e os valores de urna sociedade identificados como obstáculo, resistencia, obscurantismo. Poderá a ciencia galilaica ser identificada com a liberdade de pensamento, com a luz que luta contra a obscuridade? Outros intérpretes váo entrar em cena. Até aqui, os nossos historiadores aceitaram os actores principais, Galileu e Belarmino, tal como os próprios se identificaram. Mas nao será a verdade mais secreta? O poder escondido da condenacáo de Galileu nao seria, propóe o historiador Pietro Redondi, urna acusacáo de outra gravidade sobre a qual terá descoberto um indício, urna acusacáo respeitante a Fé, e nao urna -questao naturalz- Se o «caso Galileu- foi de facto desencadeado pela denúncia da doutrina atomista anunciada por 11 Saggiatore (623), se Galileu foi acusado de desmentir o dogma da Eucaristia, a questao deixa de ser a que fora posta em cena por Galileu, a da dístincao entre as questóes naturais e as do domínio da Fé. Do mesmo modo, a acreditar em Lerner e Gosselin, os seus contemporáneos nao teriam de modo nenhum aceite a imagem que Galileu dava de si mesmo e té-lo-iam visto como um Giordano Bruno ressuscitado. E a sua condenacáo deveria entáo ser lida a luz do contexto complexo da política internacional, da hesitacáo do Vaticano entre urna alianca com a Franca ou com a Espanha: em 1632, teria sido necessário um «gesto.. em direccáo a Espanha: no caso presente, a condenacáo de um ..defensor» da alianca com a Franca relativamente tolerante que os hermetistas, após Bruno, elogiavam. Será que Galileu foi condenado -no lugar de- Campanella, homem demasiado perigoso, que ..sabia» de mais a propósito das complacencias hermetistas do papa? A doutrina atomista e a Eucaristia
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dogma da transubstanclacáo na Eucaristia foi proclamado no século XVI, aquando do Concílio de Trento (quer dízer, no contexto da Contra-Reforma, nao admítlndo os protestantes que, nas máos do sacerdote, o pác e o vinho se tomassem realmente no corpo de Cristo). Este dogma integrava urna referencia a nocáo escolástica de -substáncía-, permitindo esta, nao explicar mas, pelo menos, dízer que, por milagre, no momento em que a substancia se transforma, os -acídentes- do páo e do vinho (a textura, o gasto, a cor) se manrém. Ora, no Saggiatore (623), Galileu despojava os corpos da sua realidade substancial, operando a distíncáo entre o que necessánamenre atribuivel a um corpo, urna figura geométrica, urna posicáo e urna velocidade, e os sabores, odores, cores que reenviava ao sujeito ou ao animal cujos sentidos seriam activados por partículas ínfimas emitidas pelos corpos. Ora, se distinguimos o gosto do páo, é porque, apesar da transubstancíacáo, a hóstia possui as mesmas partículas infimas que o páo .. é
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hermetismo
O hermetismo fo¡ urna filosofía mística característica da Renascenca. Para os seus adeptos. o autor desta doutrina era Hermes Trimegísto, personagem semidivino do Egipto antigo, e eles acreditavam encontrar, sob urna forma degradada, na tradicáo judaíco-crtstá os -saberes secretos- do Egipto, transmitidos por -inícíados-: Zoroastro, Orfeu, Platáo, Pitágoras. O hermetismo rínha também urna dírnensáo política: tratava-se nao apenas de libertar a esséncta divina existente em cada homem, de reencontrar a analogía transparente entre o microcosmo humano e o macroscosmo, mas também, por um retomo a -verdadelra fllosofla-, de reunificar as Igrejas divididas pela guerra da Religláo. Os hermetistas procuravam converter um -monarca esclarectdo-, para que ele pudesse conduzír o mundo para urna Idade de Ouro. Gíordano Bruno 0548-1600), que descreveu um universo infinito onde existiria um número infinito de mundos habitados e morreu na fogueira da 42
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Inquisi¡;ao, fo¡ um defensor desta Fílosofía, bem como Tommaso Carnpanella 0568-1693) que defendeu Galileu (616), e que conscguiu a proteccáo de Urbano VIII pela sua reputa(ao de mago e astrólogo, e influiu junto dele a favor de um catolicismo -reformado- e .natural., e de urna alíanca com a Franca de Luís XIII (e do Edicto de Nantes).
Denúncia mantida secreta, porque a sua revelacáo teria levado Galileu el fogueira, ou grande política internacional: o historiador retoma ou tenta retomar aqui a sua autonomía relativamente as narracóes dos actores, e faz, numa só análise, do caso Galileu, o fruto de urna coincidencia de circunstancias que escapa a quem delas foi vítima. A cena povoa-se de relacóes, de problemas, de personagens novas que rnexem os cordelínhos e transformam as narracóes oficiais em número idéntico de ratoeiras para simplórios. E os simplórios sao, é claro, antes de maís, aqueles que véem nos dias de hoje no -caso Galileu- o -caso- da nossa cultura moderna, que se atrevem a lancar sobre ela as qucstóes que os atormentarn. Este caso é, nao pode deixar de ser, o caso dos historiadores profissionais. A parada do caso Galileu significa também a autonomia do historiador, que nao se deixa limitar pelas narrativas interesseiras daqueles que se julgam actores, que busca os indícios de verdades cuidadosamente dissimuladas por outros actores, verdades mais ocultas cujo papel se revelará decisivo. É preciso que todos mintam, que reine a conspiracáo do silencio, para que o historiador se sinta no seu meio. Apenas com o inconveniente de que o aparecimento de um novo documento possa dar origem ao desmoronar de todo o entusiasmo. Por conseguinte, outros italianos especialistas ern Galileu, V. Ferrone e M. Firpo, depois de urna severa análise ao preconceito que conduz o inquérito "policial" de Redondi, apresentam-nos uma carta de Galileu, posterior ti sua condenacáo. Galileu responde a um correspondente que, inocentemente, lhe havia sugerido que seria interessante estudar as relacoes existentes entre a doutrina atomista e a... da Eucaristia. Em vez de recuar, horrorizado, Galileu julga a ideia muito interessante ... Quer se aceitem ou nao as teses citadas a título de exemplo, elas dirigem-nos no sentido de urna primeira bifurcacáo, de urna primeira escolha entre os interesses susceptíveis de estabelecerem urna relacáo entre passado e presente. Ou tomamos o caminho da história -profissional-, . desinteressada-, tida como a única capaz de desinfectar o caso Galileu de questóes parasitárias ou, e é essa a nossa escolha, seguimos aqueles que, antes de mais, se interessam pela questáo, oportunamente colocada, do caso Galileu que concerne a verdade científica e, em nome da qual, Galileu seria o último a acreditar entrar em conflito com a Igreja. Primeira bifurcacáo e mudanca de cena.
A questdo da ciéncia moderna Eis-nos, pois, perante o segundo -caso Galileu.., revelado por urna aproximacáo mais subtil, que nao é urna -sobra- do primeiro mas siro o produto de outras questoes que nao se puseram aos contemporáneos de
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Galileu. O "caso» já nao se situa no século XVII mas no xx, os actores que ele faz contracenar sao os historiadores filósofos que descobrem nos textos científicos de Galileu a primeira exprcssáo do que lhes interessa, a especificidade da ciencia moderna. E nao será o "caso Galileu- o caso dos filósofos, que se servem de Galileu para discutir a ciencia moderna em geral? Talvez, mas um tal caso nao é alheio el história das ciencias, no sentido em que da forma como os historiadores lerem a obra de Galileu depende aquilo que os mesmos se sintam autorizados a pensar desta ciencia moderna da qual se considera como fundador Galileu. Desta forma, Pierre Duhem, que, como veremos, tentou minimizar a importancia do acontecimento que constituí a -fundacáo da ciencia moderna, por Galileu-, viu recusarern-lhe, no fim do século XIX, a cadeira de História das Ciencias do College de France, para a darem a outros historiadores mais reverentes. Poder-se-á descrever de igual forma a posícáo de Galileu e a dos seus adversários científicos? Poder-se-á ler Galileu sem se pensar que os factos lhe dáo razáo? Já nao se trata de astronomia mas da teoria do movimento dos carpos graves ql}e valeu a Galileu o famoso título de «fundador da ciencia moderna». E o que pretendem demonstrar, entre outros e com vozes distintas entre si, o filósofo Alfred North Whitehead, há sessenta anos, e o epistemólogo contemporáneo Paul Feyerabend. Em Science and tbe Modem World, Whitehead aceita integralmente as prctensóes de Galileu: a -revolta histórica» que constitui a fundacáo da ciencia moderna fundamenta-se nos factos. -Galileu volta sempre ao mesmo refráo, como se geram os acontecimentos, ao passo que os seus adversários dispóern de uma teoria completa sobre a razáo pela qual os acontecimentos se geram. Infelizmente, as duas teorias nao deram o mesmo resultado. Galileu insiste sobre os factos -irredutívcis e obstinados» e Simplicio, o seu oponente, invoca razóes completamente satisfatórías, para ele, pelo menos. É um grande erro interpretar esta revolta como um apelo a razáo, Foi, pelo contrario, de parte a parte, um movimento antí-intelectual. Constituiu um retomo a contemplacáo do facto brutal, fundado na recusa do racionalismo inexorável do pensamento medieval». Pobres teólogos italianos, conclui Whitehead, pobres medievais atrasados, que sofreram o ataque de protestantes, que foram ridicularizados por Galileu e menosprezados pelos próprios bispos que, na altura do Concilio de Trento, lhes recomendaram que evitassem dlscussócs supérfluas e inúteis, pobres teólogos defendendo a causa perdida de um racionalismo desenfreado no seio de um mundo em guerra! Whitehead, tal como Koestler, seu seguidor neste ponto, advoga aqui uma reconcilíacáo entre ciencia e razáo, por uma ciencia que se desernbaraca da fé ingénua nos factos, do uso intolerante da abstraccáo, uma ciencia que nern sequer nega, em nome dos constrangimentos da sua metodologia, aquílo a que nao pode dar sentido. Galileu é o fundador de um método cego quanto aos seus próprios limites, e os seus infelízes adversários podem aspirar a uma maiar [ustica, num futuro para o qual trabalha Whitehead. Em Contra o Método, o próprio Feyerabend póe em causa a tese segundo a qual Galileu tería respeitado os factos. Trata-se de dernonstrar que a ciencia moderna nao pode ter acesso de forma legítima a 44
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urna verdade essencialmente diferente da que se encontra noutras formas de pensamento, mítico ou religioso. Galileu nao se limita a interpretar os factos mas também, e aquí reside, para Feyerabend, o vício de que é preciso libertar a ciencia moderna, utiliza as artimanhas psicológicas, as manobras de propaganda, para díssimular o facto que interpreta, para fazer crer que os factos lhe dáo razáo de forma inequívoca. Como poderiam os -factos- pravar que a Terra está em movimento, quando a observacáo intuitiva indica que ela está imóvel? Para que os factos -deponham- a favor de Galileu, seria primeiro necessário que ele ensínasse aos seus Ieítores, aos seus interlocutores, a redefíni-los, a descrevé-los numa nova linguagem. Feyerabend comenta a utilizacao feita por Galileu do célebre exemplo do barco. Trata-se de tornar admissivel que um marinheiro embarcado, se o mar ou os ríos 0:10 lhe dessem qualquer sinal, nao poderla saber se está ou nao em movímento, e mais, trata-se de fazer com que Sagredo - que, nos diálogos, encama o homem de bom senso - aceite que todos sempre tal souberam, que ele o esqueceu, e que Galileu se limita a relembrar a evídéncia. Ora, o que ele quer fazer aceitar, nada tem de evidente, implica urna transformacáo profunda da nocao de movimento. A tese de Galileu implica que urna pedra a caír do alto do mastro de um barco, deveria cair na base do mastro, quer o barco estivesse ou nao em movímento. A pedra, desligada do movímento do barco, conservaría poís, sem causa, este movimento, acompanhando o movimento do barco ao mesmo tempo que cai na direccáo da coberta. O movímento que se mantém a si próprio, é isto o que a hipótese do movímento da Terra obrigava a aceitar contra toda e qualquer evidencia empírica (todos os movimentos que observamos tendem a atenuar-se) e contra toda e qualquer tradicáo, Eís o que Galileu apresenta, e consegue fazé-lo aceitar por Sagredo, como urna evidencia do born senso. Feyerabend nao critica Galileu por ter íntroduzido urna nova linguagem da observacáo, carregada de teoria. O seu objectivo é sublinhar que nenhuma das linguagens observacionais, científicas, teológicas, míticas, etc., podem aprovcítar-se de urna relacáo unívoca com os factos, de forma a permitír-lhes julgar as outras...Urna ciencia que se vangloría de possuir o único método correcto e os únicos resultados aceitáveis é, diz ele, urna ideologia, e deve ser separada do Estado e, em particular, da educacáo, Pode ser ensinada mas apenas áqueles que decidiram adoptar tal superstícáo singular l. .. J Naturalmente, qualquer profíssáo tem o direito de exigir que os seus praticantes sejam formados de urna forma particular, e poderá mesrno exigir que eles aceitem urna certa ideologia [.. .l É-o verdade para a física, tal como o é para a relígiáo ou a prostítuícáo. Mas ideologias tao especiais, talentos tao especiais nao tém lugar no processo da educacáo geral que prepara un cidadáo para desempenhar o seu papel na sociedade. Um cidadáo responsável nao um hornern que tenha sido instruído nurna ideología especial, [.. .] um cídadáo adulto é aquele que aprendeu a tomar as su as decísóes, aque1e que decidiu a favor do que, ern sua opíniáo, mais lhe convém-, A ciencia que preocupa Wbitehead e Feyerabend é definida globalmente, como mantendo relacóes (diffceís) com ..a» filosofía, o pensaé
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mento mítico, etc. Outras pistas que pusessern ero cena outras relacoes poderiam seguir-se, como, por exemplo, entre homens da ciencia, razáo de Estado e -intelectuais- (cf. A Vida de Galileu de Bertolt Brecht), Mas uro outro cenário possível, o que iremos explorar, depara-se-nos de igual forma. A questao que se coloca já nao é: o que é a ciencia moderna ern geral, mas o que é esta disciplina rnais singular a que chamamos ..física matemática..?
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Novo caso, nova abordagem dos textos. Já nao se trata da confrontacáo de Galileu com a Igreja nem da confrontacáo da ciencia com outras formas de pensamento. Os adversários desaparecem de campo, DU, dando-se o caso, só lá aparecem para testemunhar a singularidade do que Galileu propóe, da incompreensáo que ele devia suscitar. Assim, Alexandre Koyré compara Descartes e Mersenne que -representarn-, ao contrário dos adversários teológicos de Galileu, o -pensarnento moderno- e nao aceitam por isso a física galilaica. Aa assunto será pois, doravante, retirado qualquer -contexto-. Só os textos interessam, mas tambérn os textos, por sua vez, estáo no centro de um "caso" no qual está em jogo a questáo da teoría física, as relacoes novas entre as descrícóes matemática e empírica que se considera terem sido instauradas por Galileu. No seu Estudos Galtlaicos, Koyré dernonstra, antes de Feyerabend, que Galileu nao -respeita- os factos. Mas, para ele, nao se trata de propaganda, o que [ustíficaría urna crítica política as pretensócs científicas. A física de Galileu nao se encontra -carregada de ínrerpretacao- como qualquer descricáo, ela inventa urna relacáo nova, experimental, com os factos. Foi porque Galileu estava convencido que era necessário ultrapassar os fenómenos para atingir a sua esséncia, e porque acreditava que só os matemáticos poderiam exprimir tal esséncia que ele pode enunciar as leis da queda dos carpos graves. E é este enunciado que permite distinguir, com tanta nitidez, Galileu de Giordano Bruno, que, também ele, tinha afirmado que, já que a Terra roda, as pedras caem na base do mastro de um barco em movimento, ou de Descartes que enunciara o princípio da inercia - o que Ga-lileu nunca fez - , mas recusara a ideia de que um carpo que caí possa responder a urna lei. "Como se entende Descartes, que "nega" todas as experiencias galilaicas! Como ele tinha razáol Porque todas as experiencias de Galileu, pelo menos todas as experiencias reaís e que conduziam a urna medida e a um número, foram consideradas falsas pelos seus contemporáneos. E, todavía, é Galileu quem tem razáo, Porque, acabamos de o verificar, ele nao procura, de modo algum, encontrar nos dados expcrimcntais o fundamento da sua teoría; sabe bem que tal é impossível. E sabe igualmente que a experiencia, mesmo a experimentacáo, feíta em condicóes concretas - no ar e nao no vazío, sobre urna superfície lisa e nao sobre um plano geométrico, etc. - nao pode dar os resultados 46
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previstos pela análise do caso abstracto. Ele também nao o pretende. D caso abstracto é urna hipótese. E a experiencia deve confirmar que
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esta suposicáo é plausível no limite dos seus recursos. Melhor, no limite dos nossos recursos". A física galilaica ocupa-se de casos abstractos: o conceito de um plano absolutamente liso, de urna esfera absolutamente esférica, do vazio absoluto nao se infere da experiencia, mas permite julgar a experiencia em nome de uro ideal matemático. -Também nao devemos admirar-nos por ver que a realídade da "experiencia" pode nao concordar na totalidade com a deducáo, E, no entanto, esta última que tem razáo, E ela, os seus conceitos "fíctícios", que nos permite compreender e explicar a natureza, colocar-lhe questóes, interpretar as suas respostas-, Koyré considera que tais argumentos sao suficientes para dominar dais tipos de adversários: os historiadores "marxistas.., que encontram na física galilaica a traducáo dos novas imperativos técnico-económicos do capitalismo nascente, e os empíricos que o explicam pela obediencia da conclusáo face a observacáo, Resta um terceiro adversário, de tal forma temível, vé-lo-emos adiante, que Koyré até se apoiou sobre as suas análises: trata-se de Pierre Duhem. Os Estudos Galilaicos de Koyré rernetem periodicamente para a terceira parte de Estudos sobre Leonardo da Vinci de Pierre Duhem, que tem por subtítulo ..Os precursores parisienses de Galileu-, Mas tais referencias nao nos pennitem conjecturar a que ponto Koyré tem de jogar com prudencia, em que medida o seu argumento sobre o carácter ficticio, abstracto, dos conceitos galilaicos o conduz a Duhem e a sua teoria dos precursores. O interesse que move Duhem é claro e explícito: a ciencia galilaica nao estabelece urna ruptura com a ciencia cristá medieval. O esforco que tornou possível a substituicáo da física de Aristóteles pela física moderna ..apoiou-se na mais antiga e resplandecente das universidades medievais, a Universidade de Paris, Poderia algum parisiense nao se sentir orgulhoso disso? Os seus promotores mais eminentes foram, no século XIV, o picardo Jean Buridan e o normando Nicolas Oresme. Como poderia um francés nao experimentar, perante isto, um legítimo orgulho? Este esforco resultou da luta de opinióes que a Universidade de Paris, naquele tempo verdadeira guardia da ortodoxia católica, travou contra o paganismo peripatético e neoplatónico. Como poderia um cristáo nao dar, por isto, gracas a Deus? O panorama modifica-se abruptamente. As controvérsias teológicas medievais, ressuscitadas pelo interesse de Duhem, arneacam tragar-nos. É neste ponto que devemos resistir e demarcar-nos do objecto da controvérsía entre Duhem e Koyré: no fim da Idade Média, estaria o «fruto», como defende Duhem, de tal forma maduro, ao ponto de o mais lígeiro toque - representado por Galileu - ser suficiente para o fazer cair? Ou será que, como sustenta Koyré, Galileu nao teve um verdadeiro precursor, tendo sido ele e só ele o inventor da física matemática? Eis que finalmente é necessário abordar o conteúdo da física galilaica e, mais precisamente, as leis do movimento naturalmente acelerado cuja formulacáo Duhem decifra na obra dos pensadores do século XlV. É este o ponto de íntcrpretacáo mais arriscado de toda a história das 47
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ciencias; este ponto - ande a cena, vazia de personagens, ocupada por uro problema semelhante áquele com que se confrontam os principiantes ero física - arrisca-se a já nao ser urna questáo histórica, mas siro pedagógica. Nao obstante, na conjuntura, o conceito de -qualidade uniformemente irregular», inventado pelos medievais, nao nos reenvía para os bancos da escola mas para aquele momento especulativo no qual o frio e o calor, o seco e o húmido deixaram de sustentar as analogias de oposícáo que regulavam a sua prática aristotélica. O que é, para Oresme, urna qualidade? A caridade pode ser urna qualídade, tal como a vetocldade ou o calor. Urna qualidade caracteriza-se pelo seu grau, pela sua íntensídade. Uro crístáo nao é caridoso, é-o mais ou menos. Um carpo nao é quente ou fria, é mais ou menos fria ou, de forma equivalente, mais ou menos quente. Mas urna qualidade tem igualmente urna extensáo, qualifíca um espaco e um tempo. A caridade qualifica a vida do cristáo, Um determinado grau de calor qualífica determinada regiáo de um carpo, por outras palavras, um determinado carpo durante um determinado intervalo de tempo. Como representar a -mudanca- de urna qualidade, a forma como ela aumenta ou diminui de instante para instante ou de ponto para ponto? É esta mudanca que Oresme vai representar através de um gráfico a duas dímensóes, A linha horizontal, ou longitude, representa urna extensáo da qualidade, tempo ou espaco, Em cada ponto da horizontal, urna vertical, a latitude, foi desenhada: o seu comprimento representa a intensidade da qualídade num determinado momento ou num determinado lugar. A sucessáo de intensidades traduz-se, poís, por urna figura plana. Urna figura triangular (ou trapezoidal, caso a intensidade inicial nao seja de valor nulo) representa urna qualidade «uniformemente irregular», tal como um calor que diminuiria de maneira linear ao langa do ternpo. Um rectángulo representará urna qualidade uniforme.
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A sua representacáo gráfica, explica Oresme, permite que visualizemos, mais rapida e perfeitamente, as propriedades da qualidade estudada. Vai tarnbérn, principalmente, permitir-lhe demonstrar geometricamente urna regra que os mestres do Merton College em Oxford (ern particular, Thomas Bradwardine, Richard Swinshead e William Heytesbury, em simultaneo filósofos, teólogos e matemáticos) tinham enunciado durante a primeira metade do século XlV. •Qualquer qualidade unifor48
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rnemente irregular tero a mesma quantidade total que teria, se ela afectaSSe uniformemente o sujeito conforme o grau do seu ponto centra¡"; a quantidade da qualidade tem por medida a área formada pelas latitudes que se sucedem durante um lapso de tempo OU nUID dado espaco, é evidente que as áreas respectivas do triángulo representando a quanrldade da qualidade uniformemente irregular e do rectángulo representando a quantidade de urna qualidade uniforme de idéntica extensáo e de intensidade igual a da qualidade uniformemente irregular no seu ponto médio sao iguats.
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Oresme desenvolve explicitamente o caso no qual a qualidade é a velocídade, crescente ou decrescente de maneira uníforme durante o tempo. E, oeste caso, a regra de Merton leva a estabelecer uma relacáo de equivalencia entre a quantidade de um movimento acelerado e a de um movimento uniforme. Ela corresponde, neste caso, a urna das leis que se ensinam nos dias de hoje nas escolas, a propósito do movimento uniformemente acelerado: a velocidade média deste movimento é igual a semi-soma da sua velocidade inicial com a sua velocidade final. Galileu, por seu turno, exprimí-lo-á assim: «O tempo durante o qual um qualquer espaco é percorrido por um móvel partindo do repouso, com um movímento uniformemente acelerado, é igual ao tempo durante o qual o mesmo espaco será percorrido pelo mesmo móvel com um movimento uniforme, cujo grau de velocidade seria a média entre o maior e o menor graus de velocidade alcancados durante o movimento acelerado". A equivalencia entre o enunciado medieval e o moderno supoe que, no momento em que a qualidade é a velocidade, a sua quantidade, a área resultante do produto da longitude pela latitude, é exactamente o espaco percorrido no tempo medido pela longitude. Duhem é abrigado a reconhecer que Oresme, nunca, em parte nenhuma, identifica explicitamente quantidade e espaco, Mas, supóe ele, a questáo é que, para Oresme, tal decorreria naturalmente. Seja como for, sublinha ele, os discípulos de Oresme compreenderam sem esforco que a -quantidade comum- ao movimento uniformemente acelerado e ao movimento uniforme de velocidade média, desenvolvida durante o mesmo lapso de tempo, era precisamente o espaco, Olhando para o diagrama de Oresme, nós, os Modernos, nada aí podemos ler a nao ser as leis galilaicas do movimento acelerado, a descri49
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cáo de urna velocidade variando de maneira linear com o tempo. E a questáo coloca-se de imediato: porque nao foi Oresme mais lange? Porque nao compreendeu que -possuía.. os mcíos para estabelecer as relacóes físicas mensuráveis entre o espaco transposto por um determinado movimento (a superfície do triángulo) e o tempo? Nao evidente que o espaco aumenta como o quadrado do tempo? E a aplícacáo da regra de Merton as diferentes scccóes da figura, correspondenda a intervalos de tempo iguais, permite enunciar urna forma equivalente desta relacáo entre o espaco percorrido e o quadrado do tempo levado a percorré-lo: num movimento uniformemente acelerado, os espacos percorridos durante intervalos de tempo sucessivamente iguais sao como a sucessao dos números ímpares. Na realidade, Clagett sublinha que, nas suas Quest6es sobre os Elementos de Euclides, Oresme enunciou, a propósito du caso geral de urna quantitade uniformemente irregular, a regra segundo a qual, se se divide a longitude em partes iguais, as qualidades sucessivas produzidas por essa divisao seráo como a série de números ímpares. Porque foi entáo necessário «esperar" por Galileu para aprender que o espaco percorrido pelos corpos em queda livre aumenta efectivamente como o quadrado do tempo de queda? é
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Ao colocar estas questóes, pressupomos precisamente o que Koyré contesta, no momento em que nega que a teoria física do movimento uniformemente acelerado tenha nascido na Idade Média. Seguramente. reconhece ele, Duhem pode localizar um ou outro caso em que um medieval ilustra a nocáo abstracta de qualidade uniformemente irregular através do caso da queda dos corpos. Mas nenhum pensou que a análise puramente matemática de um conceito pudesse fazer as vezes de explicacáo física, pudesse permitir compreender a causa da queda dos corpos. Galileu nao tem um precursor, explica Koyré; a Idade Média nao continha os germes da teoría da queda dos graves, porque nenhum dos teóricos medievais deu o passo decisivo que, por seu turno, Galileu daria em 1604: abandonar toda e qualquer explicacáo física deste movimento, nao procurar explicar porque abranda qualquer corpo que sobe, porque acelera o corpo que caí. Identificar a explicacáo e a esséncia matemática. Galileu nao teve um precursor porque ele foi o primeiro a conceber a procura das leis em termos platónicos, lei matemática e nao explicacáo física. É urna influencia filosófica, a de 50
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Platao, que, segundo Koyré, explica a singularidade da física galilaica e, através dela, a ínvencáo da física matemática que explica o observável empírico pelo inobservável matemático. Contudo, a resposta de Koyré admite, no que respeita ao essencial, a tese que ele combate. O facto de o despontar da física matemática se reportar a urna decisáo filosófica implica que nao haja dúvidas sobre como Galileu inventou a essencía matemática abstracta do movimento acelerado 1, do qual dcduzirá as Ieis fenomenológicas que descrevem a queda dos corpos graves (as duas regras acima citadas), Parece-nos enrao que, de forma implícita, Koyré admite que Galileu as herdou inteirarnente da tradicáo medieval. Duhern e Koyré interpretam a mesma história: um sublinha a continuidade- da análise matemática, enguanto o outro sublinha a inovacáo radical que constítui a decisáo de identificar a compreensao de um movimento físico efectivo com urna csséncia matemática abstracta. A tese da ruptura pressupóe, por um lado, a da continuidade - que Koyré nega - e, por outro lado, já o vimos, confere um lugar as experiencias que Galileu afirma ter feito a propósito da queda dos carpos. Mas será que Galileu herdou dos medievais o seu -conceito- do movímento acelerado? Chegamos neste ponto a última bífurcacáo desta exposicáo, A paisagem muda de novo, tal como os textos. Nao se trata agora de dar atencáo ao Galileu do Diálogo ou dos Discursos e
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Demonstraciies Matemáticas Respeitantes a Duas Ciencias Novas, o Galileu que expoe a solucáo que construíra decénios antes. Trata-se do Galileu da eventual -decisáo-. Trata-se de remontar a essa data fatídica de 1604, quando Galileu expóe numa carta a Paolo Sarpi o principio ao qual responde o movimento dos corpos graves. É a partir dessa data que, segundo Koyré, Galiieu, enráo com quarenta anos, se transforma no -nosso- Galileu, aquele que abandona qualquer hípótese física para enunciar a esséncia matemática do movimento acelerado. Ora, em 1604, Galileu engana-se. Em termos modernos, ele referc a aceleracáo, náo ao tempo, mas ao espaco. A questao que se coloca vai ser a de saber se, tal como o sustenta Koyré, tal erro confirma a tese da «influencia fílosófíca-: Galileu ter-se-la deixado levar pela paixáo de geornetrizar, mas, apenas neste -pormenor-, seria «o mesmo Galileu- que se engana em 1604 e que escreve numa página de notas, que os historiadores pensam ter sido escrita em 1609, a dernonstracáo «correcta» que figurará quase palavra a palavra no Discurso publicado em 1638.
o caso de 1604 A hísróría das ciencias nao responde a lógica dos mapas geográficos enunciados por lean Perrin. A questáo mantém-se durante cinco anos, de 1604 a 1609; a escala de tempo estreíta-se, como determínam os A moderna formulacao do movimento rectilíneo uniformemente acelerado por um rnóvel a panir da sua velocidade inicial escreve-se: v == r t, x == lh r tz, onde v, r; t e x sao, respectivamente, a velocidade, a aceleracáo, o rempo e a distancia percorrídos pelo movel. 1
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escassos textos sobre os quais se vai conduzir o inquérito: algumas notas rabíscadas, nas quais Galileu procura precisar as suas ideías e respectivas implicacóes. Ora, o problema, ern si mesmo, nao se precisa mas transforma-se de novo, como de cada vez que se coloca a questáo de saber o que -segue- Galileu. Passámos sucessivamente da liberdade de pensamento a ciencia moderna, depois el física matemática. Como veremos, a questáo que está em jogo no contraste entre o Galileu de 1604 e o do Diálogo e dos Discursos é, quanto a mím, a questáo da especificidade da mecánica racional relativamente a física matemática. É aqui que se situa o -rneucaso Galileu, mas para o apresentar será necessário primeiro aprender a ler o Galileu de 1604 . •Suponho (e talvez possa demonstrá-lo) que o grave caindo naturalmente vai aumentando incessantemente a sua velocidade na medida em que vai aumentando (secundo) a distancia em relacáo ao ponto de onde ele partiu; assim, por exemplo, se o grave parte do ponto A e caí ao longo da linha AB, suponho que o grau de velocidade no ponto O será tanto maior que o grau de velocidade em e, quanto a distancia DA for superior a CA; desta forma, o grau de velocidade em e estará para o grau de velocidade em D como CA está para DA, e assim em cada ponto da linha AB descobrir-se-á ter o grave um grau de velocidade proporcional a distancia deste mesmo ponto do marco A. Este princípio parece-me muito natural, e responde bem a todas as experiencias constatadas através das máquinas e instrumentos que agem por choque, nas quais -o choque tem um efeito tanto maior quanto maíor é a altura da queda. E urna vez este princípio admitido, demonstrarei tuda o resto». Antes de continuarmos, comentemos esta introducáo. Galileu -enganou-se» certamente, urna vez que descreve urna velocidade que aumenta corn a distancia e nao com o tempo. Mas nao poderíamos deixar de compreender Koyré, para quem «tuda» se cncontra ali: o enunciado de um princípio matemático abstracto do qual decorreráo as propriedades observáveis, fenomenológicas, do movimento do carpo grave. Será preciso levar a sério a referencia feita por Galileu a urna experiencia puramente empírica, a das máquinas que agem pelo choque, nao se tratará apenas de urna simples procura de plausibilidade essencialmente heterogénea no encadeamento do seu raciocínio? Notemos, contudo, como impulsionador deste raciocínio, que só depois de Galileu falar de -graus de velocídade- é que ele afirma nao só que eles aumentam conforme a distancia mas também que esse aumento é urna funcáo linear da distancia. -Que a Iinha AK faca um ángulo qualquer com a (linha) AF, que as paralelas CG, OH, El, FK sejam tiradas dos pontos C, O, E, F. E, visto que as linhas FK, El, OH, CG estáo entre si como as (Iinhas) FA, EA, DA, CA (entre si), conclui-se dai que as velocidades nos pontos F, E, O, C sáo como as linhas FK, El, OH, CG. Os graus de velocidade aumentam, pois, em todos os pontos da linha AF, na mesma proporcáo do aumento das paralelas obtidas a partir destes mesmos pontos». 52
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Aa que parece, Galileu acaba de nos ensinar a construir um esquema que se parece bastante com o de Oresme: os graus de velocidade l as «intensidades» sucessivamente obtídas pelo movimento acelerado sao as paralelas resultantes de cada ponto da -Iongítude-. Mas o que representará, entáo, a superfície do triángulo. a -quantídade- do movimento medieval? Nao pode ser o espaco, contrariamente ao que indica o esquema de Oresme, urna vez que o espaco já está representado pela linha vertical. E é aqui que tudo se cornera a complicar. -Além dísso, uma vez que a velocídade com a qual o móvel foi de A para D é composta por todos os graus de velocídade que foi adquírindo em todos os pontos da linha AD, e que a velocidade com a qual ele transpós a linha AC é composta por todos os graus de velocidade que adquiriu em todos os pontos da linha AC, resulta que a velocidade com a qual ele transpós a Iínha AD está para a velocidade com a qual ele transpós a linha AC na mesma proporcao em que todas as línhas paralelas tiradas de todos os pontos que váo da linha AD até a AH estáo para todas as paralelas obtidas da linha AC até a linha AG; e esta proporcáo é a do triángulo ADH em reiacáo ao triángulo ACG, quer dizer, a do quadrado de AD relativamente ao quadrado de AC; assim, a velocidade com a qual a linha AD foi ultrapassada está para a velocidade com a qual foi transposta a linha AC na proporcáo dupla da proporcao de DA para CA-o Aqui, bruscamente, a dupla sernelhanca entre o Galileu de 1604 com o -nosso- Galileu, por um lado, e com Oresme, por outro, desaparece. A -quantidade- do movimento acelerado, a superfície do triángulo, é a própria velocidade! Mas entao, o que sao estes graus de velocidade cuja soma perfaz urna velocidade? Se desejarmos a viva forca que Galileu tenha pensado num aumento uniforme da velocidade em funcáo do espaco percorrido, como explicar que os graus de velocidade que aurnentarn ern funcáo do espaco possam ser adicionados de modo a 53
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dar urna velocidade? O que se nos coloca, deste modo, a nós e ao -nosso- (futuro) Galileu, sao as aceleracoes. Mas os graus de velocidade de 1604 nao podem ser as -nossas- aceleracóes, já que estes graus aumentam com o espaco, enquanto que as aceleracóes sao para nós uniformes. O comentário de Koyré é, nesta passagem, de urna indulgencia que quase toca a cegueira, traindo a importancia que para ele tem o facto de todas as bizarrias do texto de Galileu resultarem do scu "erro inicial». Reenvía-nos para a análise de Duhem, o que significa que admite cornpreender, tal como Duhem, o triángulo e o erro de Galileu a partir dos esquemas medievais. Aceita, estranhamente, que a velocidade total do móvel seja a soma das velocidades instantáneas (das intensidades medievais?) que o móvel adquire em cada ponto, e limita-se a assinalar que as somas das velocidades que aumentam em funcáo linear do espa<;o nao podem ser representadas por triángulos. Note-se, como novo impulso de racíocínío, que Galileu nao se refere, no que respeita as velocidades proporcionais ao quadrado das distancias percorridas, a velocidade num ponto mas sim a velocidade com a qua! o corpo transpós esta distancia; e passemos a questáo seguinte que, se tal é possível, é ainda pior. . «E visto que a relacáo da velocidade com a velocidade é inversa (contraria proporzione) da relacáo do tempo com o tempo (porque aumentar a velocidade é o mesmo que diminuir o ternpo), resulta que a duracáo do movimento que se segue a AD está para a duracáo do movimento que se segue a AC numa proporcáo subdupla (subduplicata proporzione) da. proporcáo da distancia AD a distancia AC. As distancias do ponto de partida sao, pois, como os quadrados dos tempos, e, por conseguinte, os espacos percorridos em tempos iguais estáo entre si como os números ímpares ah unitate (partindo de 1): o que corresponde ao que sempre afirmei e as experiencias observadas. E assim, todas as verdades se combinam entre si". Koyré, ainda nesta passagern, mostra-se extraordinariamente compreensivo: censura Galileu pelo facto de nao ter visto que a relacáo das velocidades é o inverso da relacáo dos tempos, no único caso em que os espacos percorridos sao Idénticos, mas nao sublinha que esta relacáo se limita aos movimentos uniformes. Mais, nao repara sequer que, mesmo que essa relacáo fosse admitida, e/a nao permitirla passar as relacóes seguintes, entre distancias e tempos, que correspondem, afirma Galileu, as experiencias observadas. É impossivel, neste contexto, falar de erro «conceptual». Sao as matemáticas elementares que permitem concluí-lo: as verdades nao se combinam entre si. Encontrarno-nos perante urna escolha. ou Galileu nao sabia na época, quer se trate ou nao de um erro, o que era raciocinar ou mesmo passar de urna proporcáo matemática a outra, ou a leitura é deficiente, e o Galileu de 1604 nao é o Galileu do Diálogo e dos Discursos. É aqui que entra de novo em cena o historiador profíssíonal, nao mais para por em dúvida a narracáo feita pelos actores mas porque, ern 1604, Galileu pouco ou nada falava de si. O estudo dos textos publicados por Galileu nao nos permite saber -quern- era Galileu em 1604. O historiador Stillman Drake já tinha, num ponto essencial. contradito 54
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Koyré: tinha mostrado que Galileu, com os meios que descreve, podia fazer experiencias bem mais precisas do que julga Koyré, experiencias capazes de dar resultados, se nao exactos, pelo menos significativos. Em particular, a relacáo, segundo a qual os espacos transpostos em tempos iguais aumentam como a série de números impares. seria mesmo, como afirma Galileu, de origem empírica. A demonstracáo de Drake apoiava-se na reconstítuicáo do dispositivo descrito por Galiieu, mas também sobre o estudo das notas de Galileu. Estas duas centenas de folhas revelam um Galileu que passa de um problema a outro, garatujando urna série de algarismos, diagramas, esboces de raciocínio: Galileu escreve: ..e u declaro que... » nao se dirigindo no entanto a um público. Perplexo, faz reflcxóes dirigidas a si mesmo. E as folhas nao estáo datadas, por isso o seu estudo requer um historiador profissional, capaz de verdadeiro trabalho de detective necessário ao estabelecimento de urna ordem cronológica. Como resultado deste trabalho «policial», Drake propóe urna imagem bem diferente do Galileu de 1604, Por essa altura, Galileu nao tería de modo nenhum tentado deduzir as consequéncías observáveis de urna defínícáo matemática a priori, Tal implicaria um espaco de signíficacáo homogéneo, no qual a artículacáo entre os diferentes termos da definiC;ao seria fixada. Ora, é precisamente essa articulacáo que Galileu procura construir: A «íernonstracáo- de Galileu é a procura de urna «consonancia» entre as diferentes relacóes de que dispóe a propósito do movimento. Por outras palavras, Koyré e Duhem deixaram-se levar pela sernelhanca entre as definicóes medieval e moderna, ignorando a que ponto o Galileu de 1604 escapava a tal continuidade, a que ponto os -graus de velocidades. figurados pelas paraielas do seu triángulo diferiam das intensidades medievais. Retrocedamos até a definicáo medieval do movimento uniformemente irregular. Eia implica que, como quaiquer qualidade, a velocidade deva ser definida por duas dimensóes, a longitude e a latitude, a extensáo e a intensidade. A velocidade é, pois, definida como urna grandeza relativa ao espaco e ao tempo (as suas extensóes), é mensurável ern termos do espaco transposto e do tempo empregue a transpó-lo, Espaco e tempo sao, para os medievais, assim como para nós, grandezas contlnuas: pode dizer-se, de um carpo, que se encontra num determinado ponto, em determinado instante. Mas tal nao significa que a velocidade seja urna grandeza continua, que se possa dizer de um corpo que ele tem ·a· velocidade tai (instantánea), O grau de velocidade medievai explicita urna consequéncia lógica da defínicáo conceptual de um movimento acelerado, «irregular», de tal forma que ele possa ser colocado a priori. Nao se trata de urna grandeza física mensurável: nao tem extensáo e, portanto, medida espácio-temporal. Oresme e os seus sucessores, quando descrevem o aumento da velocidade de um movimento, decompóern-no sempre numa sucessáo de movimentos uniformes, variando sempre a intensidade da velocidade, de urna forma descontínua, após um intervalo de ternpo determinado: durante cada intervalo, pode definir-se a velocidade pela relacáo entre o intervalo percorrido e o tempo gasto a percorré-lo. Para os medievais, a medida
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de urna velocidade passa, mesmo ao nível da abstraccáo conceptual, por fazer corresponder o movímento que esta velocidade caracteriza a um movimento uniforme de idéntica extensáo. A velocidade de um movimento uniformemente irregular só pode ser quantificada, através de um movimento uniforme, pela equivalencia entre a quantidade do movimento uniformemente acelerado e a quantidade do movimento uniforme de grau médio. Segundo Drake, Galileu nao pode ser considerado como o fiel herdeiro da tradícáo medieval (que, para todos os efeitos, fora, sublinha ele, ridicularizada em Itália, no tempo de Galileu), A definícáo medieval permite-se um movimento .nniformemcnte irregular, como conceito, forrnulado a priori. Galileu, esse, procura caracterizar os movimentos acelcrados de queda como eles se produzem. Procura dar um sentido físico, mensurável, a ideia de que tais movimentos ganham uelocidade. Procura descrcvcr tais movimentos nao como decomponíveis, a posteriori, em termos de urna sucessáo de movimentos uniformes de velocidades crescentes, mas como produzidos pela acumulacao daquilo que o corpo -adquire- em cada ponto da sua queda. Esta questáo implica que, contrariamente aos medievais que definiram a quantidade de velocidade de um movimento acelerado pela sua equivalencia com a de um movimento uniforme, Galileu possa conccbé-la como produto de urna acumulacáo de quantidades mensuráveis. O texto de 1604 esclarece-se entáo, pelo menos a sua prirneira parte: Galileu propóe urna medida local, por choque, do grau de velocidade -num- determinado ponto. Koyré nao se deu ao trabalho de comentar este argumento empírico, ainda que aqui ele nao possa ter como objectivo convencer um público qualquer para ele e só para ele mesmo, Galileu nota que, no caso das máquinas de percussáo, o efeito depende da altura de queda da peca que bate. Eis portanto urna medida que nao reenvia a um movímento que se produz sobre um espaco, durante um determinado tempo: o choque produz-se num determinado ponto como o grau de velocidade, que se pretende medir, adquirido num determinado ponto. Seja entáo este -princípio-: o choque dá a sua medida ao grau de velocidade. Os graus de velocidade aumentarn, entáo, proporcionalmente com o espaco, A ideia de que a soma dos graus de velocidade possa ser identificada com a velocidade espácio-temporal, a do carpo transpondo um espaco efectivo, perde assim o absurdo evidente que teria se Galileu tivesse sabido que os seus graus de velocidade nada mais significam do que as intensidades medievais e as suas futuras velocidades instantáneas. Contrariamente ao que pensa Koyré, os graus de velocidade do Galileu de 1604 nao sao, pois, velocidades instantáneas. A velocidade concerne um espaco transposto; o grau de velocidade, um carpo num determinado ponto. É urna definícáo que propóe Galileu acerca de duas nocóes cuja articulacáo nada determina a priori: a velocidade com a qual um carpo em queda livre transpóe urna distancia dada resulta da acumulacáo dos graus de velocidade que tal carpo adquiriu nos diferentes pontos da sua queda. Será que a velocidade com a qual um grave percorre urna distancia dada, aumentaria com o quadrado da distancia? Quanto a nós, urna tal 56
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rela,ao deveria ser verificada (ou, de preferencia, refutada) pela observa~ao. Mas sem a 00\=:10 de velocídade instantánea, como estabelecer a maneira segundo a qual varia a velocidade de um movimcnto nao uniforme que diz respclto a espacos e tempos variáveis? As velocidades variarn com as distancias, talvez, mas a única grandeza directamente mensurável é o ternpo gasto a percorrer tais distancias. Galileu mediu as distancias percorridas sucessivamente durante intervalos de tempo iguais. Daí deduziu que as distancias estáo entre si como o quadrado dos tempos gastos a percorré-las, Como articular esta relacáo entre o espaco e o tempo c~m a relacáo entre o espaco e a velocidade que é preciso estabelecer? E aqui que Galileu -ilude-: parece supor urna relaCaD entre velocidade e ternpo, quando, na realidade, é a concíliacáo que ele quer verificar entre as duas relacóes que possui - as proporv6es entre as velocidades sao como o quadrado das distancias transpostas; as proporcóes entre os ternpos sao como a raiz quadrada das distancias transpostas - que dará um conteúdo a . proporcáo contrariaentre velocidade e tempo, Como Drake faz notar, a nocáo de -proporcáo contráría- nao tem, para Galileu, qualquer sentido técnico determinado a priori. Ela permite dar a urna nocao de bom senso - para um mesmo espaco percorrido, se aumenrarmos a velocidade, diminuímos o tempo - o aspecto de urna premtssa que permite afirmar aquilo de que Galileu necessíta. relativamente ao espaco, velocidade e tempo desempenham de urna certa forma papéis .. contrários-, quadrado e raíz quadrada. Em 1604, afirma portanto Drake, Galileu nao é aínda matemático mas físico perplexo. Tenta articular entre si as diferentes medidas de que um movimento acelerado é susceptível, e particularmente a medida através do choque e a regra dos números ímpares ah unitate que determina a relacáo entre os espacos percorridos e os tempos gastos a percorré-los. Tenta conciliar entre si estas diferentes medidas, quer dizer, tenta compreender o que, em cada caso, é medido. A deducáo só virá nurn período posterior, em 1607 segundo Drake, quando Galileu souber o que está a medir. E Isto, nao por urna deliberacáo filosófica, mas sim porque ele dará aquele passo que é tao difícil fazer aceitar aos alunos de hoje: dissociar a velocidade da sua medida espácio-temporal. Como dirá Salviati no terceiro dia do Discurso: num movimento acelerado, o móvel nao se detém tempo nenhum num grau de velocidade. E contudo, em cada instante, em cada ponto da sua queda, este móvel -tem.. urna velocidade instantánea. O grau de velocidade é doravante a velocidade instantánea, urna uelocidade que nao caracteriza nenhum mouimento efectivo, urna velocidade com a qual o corpo nao percorrerá nenhum espaco em nenhum tempo, A velocidade já nao é atributo de uro movimento mas de um corpo num determinado instante (ou num determinado ponto). Em 1608, Galileu ensaia algumas experiencias nas quais a velocidade final (instantánea) de um carpo é convertida em movimento uniforme: um canal oblíquo é ligado a um canal horizontal, e a velocidade, uniforme, coro a qual o móvel rolará ao longo do canal horizontal é a mesma que ele tinha no ponto de Iígacáo entre os dois canaís, A medida 57
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da variacáo da velocidade durante um movimento de queda já nao constituí um problema. Basta fazer variar o ponto de partida do móvel no canal oblíquo para obter a proporcáo entre distancia transposta e velocidade resultante da descida nessa distáncia (as velocidades estilo para si como as raízes quadradas das distancias transpostas). Galileu procede mesmo a reconversáo do movimento uniforme (urna experienda cuja possibilidade foi verificada por Drake e seus colegas): o canal horizontal conduz até el beira de urna mesa, o berlinde caí, e é estabelecida urna relacáo numérica entre a distáncia que separa o ponto de queda na beira da mesa e a altura de partida no canal oblíqua. Nasceu o Galileu experimentador: ele sabe, doravante, o que está
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a medir. Drake conelui, visando Koyré: .É um erro pensarmos que (Galileu) tenha partido da hipótese, desde o inícío, de que as matemáticas governavam a natureza e que a física devia resignar-se com isso; as matemáticas, gradualmente, té-lo-áo talvez conduzido a questáo espinhosa da varíacáo literalmente contínua». Nao foi por decisáo filosófica que Galileu se tomou «o nosso Galileu-, nao foi por ter decidido considerar os carpos abstractos, esferas perfeitamente esféricas e sólidas, planos perfeitamente lisos. Também nao era suficiente abandonar a explicacáo física da queda dos carpos para a definir a partir de urna lei matemática. Era ainda necessário que tal leí matemática tivesse um sentido físico. Era ainda necessário saber como submeter ao conceito puramente matemático de -grau de velocidade- a velocidade mensurável e observável. Koyré e Duhem teráo, pois, subestimado o problema que se pos ao físico: conceber urna velocidade independentemente do movimento que permite medi-la, quer dizer, inventar também um sentido físico, urna maneira de caracterizar, de medir, urna velocidade a qual nao corresponde nenhum movimento.
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que nos ensinou este novo «caso Galileu-, o caso do seu ..erro» de 1604? Em que medida que ele orienta, como cada caso, a leitura do que vem a seguir a Galileu? A urna primeira leitura, poderíamos ver em Stillman Drake um desses historiadores «empíricos» que criticou Koyré. É ou nao verdade que ele nos restitui a imagem de um Galileu avaliador de dimensoes, estabelecendo relacóes empíricas? Mas talvez passamos igualmente retirar da sua análise o que, ao mesmo tempo, calam e pressupóem estas categorias filosóficas opostas, empirismo ou racionalismo: a possibilidade de ..n omear.. os factos, de saber «o que» caracteriza urna relacáo, seja ela empírica ou teórica. Porque é precisamente o que, em 1604, Galileu nao sabe. Por outras palavras, antes que os filósofos - ineluindo Galileu, também ele se dirigindo ao público e comentando a sua passagem - discutissem entre si, foi preciso que um problema aparentemente mais humilde tivesse a sua solucáo: como medir o movimenta acelerado sem o submeter as categorias do movimento uniforme, o espaco percorrido e o tempo gasto a percorré-lor é
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Koyré fez de Galileu o inventor da física matemática e da física experimental, aquele que ousou submeter a observacáo e o raciocinio físicos as condícóes ideaís da matemática. Ele nao viu o problema que suscirava tal submíssáo. Como dar um sentido físico ao conccíto lógico.matemático do movimento acelerado? Nao basta ousar imaginar urna velocidade instantánea -físíca-, é também preciso ligá-Ia a grandezas obsetváveis, espácio-temporais. É preciso, pois, redefinir o espaco e o iempo, de talforma que eles déem um sentido a algo mais do que a ve/ocidade de um movimento efectivo, que eles permitam a medida de um movimento em termos diferentes dos que convém ao movimento uniforme: espac;o percorrido e ternpo gasto a percorré-lo, Mas, em 1604, Galileu fez entrar em jogo um novo tipo de medida, urna medida do movimento acelerado pelo espaco, independentemente do tempo. Referiu-se ao efeito das máquinas de percussáo, que apenas depende da altura da qual cai o peso. Preciso demonstrar agora que este tipo de medida - a que chamarei causal, porque caracteriza o que ganhou um carpo pelo efeito de que tal carpo é, na realidade, capaz, porque ela transforma aquilo que se pretende avaliar quantitativamente em causa num efeito que permite avaliá-lo - se encontra na obra depois de 1604, nos textos que permitiram conferir a Galileu o título de "fundador. da física, no sentido moderno. Transportemo-nos a uns trinta anos após o episódio que estudámos, el época em que Galileu, depois da condenacáo do Vaticano, compóe a sua última grande obra, verdadeiro testamento científico, os Discursos e Demonstracoes Matemáticas relativas as Duas Novas Ciencias. Durante o terceiro día tratou-se da questáo do -rnovímento naturalmente acelerado-o Pode aqui falar-se de tratamento: Salviati, Sagredo e Simplicio estáo presentes, como no Diálogo, mas as suas discussóes nao servem para dar urna estrutura ao texto; servem apenas para comentar os pontos a que Galileu quer dar um particular relevo; quando -tudo se clarífícou-, os teoremas, proposícóes, corolários e as observacóes sobre teoremas já demonstrados se encadeiam, impessoais e nccessártos, como num manual. Deste modo, Galileu utiliza Sagredo para cavar a distancia entre o que vai propor urna "pura abstraccáo- de tipo medieval. Salviati acaba de enunciar urna definícáo abstracta: -Afírrno que um movimento é igualmente ou uniformemente acelerado quando, partindo do repouso, recebe em ternpos iguais momentos (momentos iguais de velocídade-, e Sagredo adverte. «Ainda que eu nada tenha, racionalmente falando, contra esta definícáo ou contra qualquer outra, seja quem for o seu autor, já que todas elas sao arbitrárias, posso apesar disso duvidar, sem pretender ofender-vos, que urna tal definicáo, elaborada e aceite no abstracto, se adapte e convenha ao tipo de movimento acelerado ao qual obedecem os graves quando caem naturalmente». Segue-se a exposicáo da dificuldade que suscita, por outro lado, a defínicáo: se o tempo é divisível até ao infinito, os graus de velocidade relativos aos -ínstantes mais próximos do ponto de partida» corresponderiam, se o corpo adoptasse entáo uro movímento uniforme, a urna 59
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velocidade infinitamente lenta. E Salviati responde, executando a passagem da medida pelo movimento uniforme para a medida pelo efeito de um choque: estuda o efeito produzido por um maco de madeira colocado numa estaca, largado de alturas cada vez menores: -(,,,] finalmente, se o largarmos da altura de um dedo, que fará ele além do que faria se o tivéssemos pensado sern percussáo? Infalivelmente muito pouco, e o efeito seria imperceptível se o erguéssemos sornente a altura da espessura de urna folha. Mas, visto que o efeito da pancada depende da velocidade do móvel, quem duvidará que o movimento seja muito lento e a velocidade mals do que mínima, já que o efeito do choque é imperceptível?.. É a relacáo de causa e efeito que permite dar plausibilidade as velocidades ínstantáncas na qualidade de quantidades que aumentam de maneira estritamente contínua da mesma maneira que o tempo ou a altura. Nao se trata ainda aqui de medida quantitativa. Na defínicáo abstracta de Galileu, é o tempo de queda que dá urna medida a velocidade adquirida, e a outra articulacáo possível, entre velocidade e altura da queda do maco, serviu apenas para apaziguar a ímagínacáo confusa de Sagredo. Entretanto, depois de outras trocas ern que Salviati refere as hesítacóes, e mesmo os erros cometidos pelo -Autor-, quando a definícáo pode considerar-se esclarecida e «terminada.., é chegado o momento de demonstrar o ..acordo rígoroso- entre as propriedades que podem demonstrar-se a partir dela e os resultados da experiencia, acordo esse que permitirá ..estabelecer a diferenca- coro as definicóes arbitrárias abstractas. É entáo que Salviati pede que seja aceite como verdadeiro um só princípio: .. Os graus de uelocidade, que um mesmo
móvel adquire em planos diferentemente inclinados, sao iguais, contanto que as alturas desses mesmos planos sejam iguais-. Salviati tenra demonstrar a ..probabilidade- deste princípio, através de argumentos analógicos. Algumas páginas a frente, no momento de o utilizar, propóe urna dernonstracáo: dá-se entáo urna ..accáo em diálogo-, protagonizada pelo seu aluno Viviani para a edicáo de 1656, de um texto ditado por Galileu em 1639, Este elemento adicional confirma a importancia essencial do -princípio-. De facto, a definicáo que de início Galileu deu - o corpo recebendo em tempos iguais graus iguais de velocidade - nao tem um valor operacional a nao ser para comparar movimentos caracterizados pela mesma aceleracáo, quando o plano inclinado, o instrumento experimental por excelencia, permite fazer variar o grau de ínclinacáo e, por conseguinte, a aceleracáo, Como ..m edir.. urna velocidade, de tal forma que esta medida integre como variável a aceleracáo que o plano inclinado permite manipular? Como comparar o movimento acelerado de dais carpos rolando ao langa de planos inclinados diferentes' É aqui que a medida da velocidade adquirida pela altura da descida ao langa da qual ela foi adquirida vai desempenhar um papel essencial, Quando se trata de planos inclinados, o tempo de descida nao se manífesta, ele nao permite que se estabeleca urna relacáo, urna vez que varia com a ínclinacáo. Ern compensacáo, a altura de descida, se permitisse determinar a velocidade adquirida no seu termo, permitiria, 60
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conhecendo-se O comprimento do plano, deduzir o tempo que levou essa descida. A medida da velocidade adquirida pela única .altura de descida dará efectivamente a Galileu o meio de estabelecer, com teoremas, proposícóes e escólios, a relacáo dos tempos de queda para os planos inclinados diferindo no eomprimento, na altura e, finalmente, no eomprimento e na altura. Como justifica Galileu a relacáo unívoca entre os graus de velocidade adquiridos no termo de urna descida e a única altura de tal descida? De duas formas diferentes, já o afirmei, mas nos dais casos, a justificacáo fará parecer que já nao nos mteressa a caracterizacáo de um movimento em termos de espaco e de tempo, mas a caracterizacáo de urna velocidade instantánea que torna, nesse instante, o carpo capaz, quer dizer, aquilo a que chamei a medida causal, pressupondo a igualdade entre a causa, a medir, e o ejeito que permite medí-la. A primeira jusüficacáo de Galileu apela para o movimento pendular. Galileu desereve urna experiencia mostrando que a altura b até a qual sobe um péndulo nao depende do seu camínho, mas apenas da altura de que eie partiu. Um prego cravado sobre o trajecto do fio transforma a curva de subida, mas a altura conserva-se invaríável, A experiencia prova que o momento adquirido pela descída, que é -cvidentementeigual ao que permite ao péndulo subir simetricamente, torna igualmente possível todo o movímento de subida e descida da mesma altura. E, por conseguinte, o «momento" adquirido durante a descida, também ele, nao depende da linha curva, mas apenas da altura.
A dernonstracáo de 1639 faz intervir a estática, a ciencia do equilíbrio entre os corpos. Declara o equilíbrio idéntico a uma medida da «propensáo ao movimento.. (ou do impeto. ou da energía. ou do momento de descida) respectivo dos dois carpos que se equilíbram mutuamente: o seu repouso significa que cada um dos carpos é parado pelo outro, que a propensáo ao movrmento de cada um o torna capaz de resistir a propensáo ao movimento do outro, Como Galileu estudou a mecánica em Pádua (ignora-se se ele conhecia os trabalhos, quase contemporáneos, do matemático e engenheiro holandés Simon Stevin), pode afirmar que estas propcnsóes ao movimento sao proporcionais ao grau de inclinacáo dos planos sobre os quais repousam os corpos que se pretendem pór em equiIíbrio. Nao nos deteremos nos pormenores da demonstracáo, O que aqui importa é que o equilíbrio, o balance de um 61
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carpo pelo outro, foi concebido por Galileu como anulacáo mútua de movímentos, tomando-se assim o instrumento de urna medida causal. Cada corpo, enguanto caracterizado por urna -propensáo para o movímento", pode ser descrito cumo causa de um efeito que nada mais é do que a anulacáo da propensáo para o movimento do outro carpo.
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que mede a subida do péndulo até a mesma altura em que se encontrava no seu ponto de partida? O que mede o equilíbrio? Em nenhum destes casos, Galileu explicitou "o que» é igual. No primeiro caso, é Christian Huygens quern precisará a relacáo exacta: sao os quadrados das velocidades que estáo entre si como as alturas de queda (nós dizemos, mv 2/ 2 = mgh, no qual v é a velocidade, h a altura, m a massa e g a aceleracáo gravítacional). No segundo, é Gottfried Wilhelm Leibniz quem assimilará sistemática e explicitamente a -propensáo- ou «momento da descida.., no -primeíro movímento-, el velocidade tomada por um corpo no prímeíro momento da sua queda, recomecando em cada instante, anulada em cada instante pelo equilibrio, quer dizer, aquilo a que os físicos de futuro íráo chamar a aceleracao. Quanto a Galileu, ele nao tem necessidade de explicitar o que é nesse tempo igual a medida da causa pelo efeíto. O que conta é o sinal de «<>», a situacáo mediante a qual urna causa pode ser medida pelo seu efeito, de tal forma que tenhamos a certeza de que a medida é exaustíva, nada deixa escapar. A identídade da causa e do efeito, quer isto também dizer daquilo que é conservado, nao precede a medida, mas poderá seguir-se a ela, com em Huygens e Leibniz. O que interessa a Galileu é que, nas sítuacóes encenadas, a causa é integralmente anulada pelo efeito que produz: o péndulo, retomando a sua altitude de partida, esgotou a velocidade que tinha adquirido aguando da sua descída, as propcnsóes de velocidade sao anuladas pelo equilíbrio. E, em consequéncia, cada sítuacao permite a medida, no sentido do estabelecimento de urna relacáo entre duas grandezas que nao podem ser caracterizadas por um movimento efectivo, produzindo-se no espaco e no tempo. A primeira permite medir a velocidade instantánea; a segunda, a -propensáo para o movímento-, primeira defínícáo fisica daquilo a que chamamos aceleracáo.
A questáo da mecánica racional Muitos, após Koyré, situam Galileu relativamente a Aristóteles e a Newton. Ele marcaria a destruicáo do cosmo aristotélico e das questóes 62
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que pennttlam tal ordem cósmica: no lugar das -razóes- aristotélicas, Galileu coloca a questáo, matemática, de saber como cai um carpo. Mas Galileu pararia no limiar da terra prometida. Nao teria concebido o espaco homogéneo e isótropo no qual um corpo iso lado prosseguiria o seu movimento rectilíneo uniforme até ao infinito. A física galilaica seria urna física de carpos pesados num espaco sujeito a gravidade. Newton, com a nocáo de -forca-, teria explicado matemaiicamente, e generalizado aquilo de que Galileu se limitou a descrever os efeitos, a gravidade. Galileu teria , pois, purificado a física da sua antiga causalidade, mas Newton teria inventado o novo tipo de causalidade que permite passar da descrícáo matemática (cinemática) a explica~aa matemática. Porque se aceleram os corpos? Esta questao, Galileu de facto nao a colocou. Também nao postulou o espaco homogéneo e isótropo ao qual corresponde o movímento da inércia, rectilíneo e uniforme. Mas poder-se-á, desde entáo, descrever, a maneira de Koyré, o espaco galilaico como senda -ainda- solidário com urna física dos carpos pesados, a espera de Newton? Claro que nao se trata aquí de negar a importancia da forca newtoniana, da ideia de ínteraccáo recíproca que ela íntroduziu na física. Que o Sol nao atrai aTerra sem que esta o atraía, corn urna forca igual, é urna ideia radicalmente nova. Contudo, nao basta dizer que o espaco galilaico nao é homogéneo e isótropo; é preciso sublinhar que também ele é radicalmente novo. É um espaco coberto pelo sinal «=", pela igualdade entre a causa e o efeito, que permite caracterizar a velocidade. Diz-me de que ponto vens e, qualquer que tenha sido o teu caminho, dir-te-ei que velocidade adquiriste, e por conseguinte dir-te-ei também ande, com essa velocidade, tu podes ir. O sinal «=» entre causa e efeíto, que permite a deflnícáo de velocidade instantánea, articula um passado determinado com o conjunto de futuros cujo passado toma o corpo capaz; ele faz o balance entre o seu passado e os seus futuros possíveis. Galileu talvez tenha destruído o cosmo aristotélico, mas substituiu-o por um outro, igualmente racional, sujeito ao que Leibniz, leitor de Galileu, chamará o -princípio da razáo suficiente». Leibniz reconheceu o papel chave da igualdade entre causa e efeito, e o nome que deu ao seu princípio traduz bem o carácter racional que pode reivindicar a medida causal: quern, salvo um louco, se atreveria a negar que o efeito pode nao ser igual a sua causa? Mas ele tarnbém, dessa igualdade, aproveitou o valor operacional: o emprego do princípio da razáo suficiente faz do carpo em movimento um objecto mensurável, determina a maneira como ele deve ser examinado - seja a experiencia efectiva ou conceptual. No enunciado ..a causa iguala o efeito-, é o sínal «=», já o vimos, que precede a defínícáo da causa e do efeito. A medida da causa pelo efeito defende, poís, que causas e efeítos sao definidos de forma completa, independentemente do ponto de vista ou das escolhas particulares daquele que os descreve. A sua definicáo -objectíva- nada deixa escapar. O princípio da razáo suficiente definiu o movímento, relativamente as suas próprias razóes, como autodeterminado. 63
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A sujeicao da definícáo das grandezas físicas a um «=» colocada a priori, definiu, nao a física matemática, mas urna descendencia singular da física denominada -rnecáníca racional». Com ela concluo o -rneu- caso Galileu. Galileu é, para mim, nao aquele que «prepara» Newton, berco que transporta o pensamento até ao limíar da terra prometida, mas sím o inventor da mecánica racional, do espaco malhado pela igualdade da causa e do efeito, igualdade a qual, durante o século XVIII, mecanicistas como Euler, d'Alembert e Lagrange submeterilo as forcas newtonianas. Sem querer agora enveredar pela análise de um «caso Newton.., há alguns pontos sobre os quais me vou debrucar, É preciso, primeiro, relembrar que, só em 1737, Euler escreverá aquílo a que nós chamamos a segunda lei de Newton, 1 = ma (ande 1 representa a forca aplicada sobre um carpo de rnassa m, determinando urna aceleracáo a). A definicáo da forca por Euler submete esta última, qualquer que seja o seu valor fenomenológico (por exemplo, 1 = mm'rr>; ande 1 é a forca de atraccáo entre dois carpos de massa m e m' distantes um do outro de r), a urna identidade a priori. Na qualidade de causa, a forca é igual ao seu efeíto, a aceleracáo, O "=,, que figura em ,,1 = me>' é a igualdade racional, que se pode colocar, a priori, entre a causa e o seu efeito, o «=" inventado por Galileu. Maupertuis, contemporáneo de Euler, nao se enganará nisso: atribuirá o princípio de Euler a Galileu, nao a Newton. Mas o que é feito entáo da forca, no sentido que Newton lhe atribuiu? Newton foi, é sabido, o herói do pensamento positivo, porque escreveu: «Eu nao forjo nenhuma hipótese. Atenho-me aos fenómenos" . Alguns estudos feítos depois, revelaram um Newton especulativo. Mas, muito curiosamente, tais estudos permitem compreender que, com efeito, Newton deuia ater-se aos fenómenos, já que o mundo, como ele o concebía, nao podia ser inteligível a partir de um princípio racional colocado a priori. Newton ínscrever-se-ía, por conseguínte, no exterior do campo da mecánica racional, da qual Galileu foi o inventor: para ele, as forcas exprimem e traduzem a actívídade efectiva de Deus no mundo, elas podem, fenomenologicamente, ser reconhecidas pela observacáo, urna vez que determinam urna aceleracáo que permite reproduzir os movimentos observáveis. Mas a sua identidade, a sua razáo, nao nos reenvia para o seu efeito, mas sim para aquilo a que a física nao tem acesso, Deus. O «=» que figura em f = mm'jr 2 nao é o ..=" que figura em 1 = ma. O segundo é colocado a priori e faz do físico um juiz que atribui as suas questóes um objecto racional a priori; o primeiro é urna definicáo fenomenológica que faz do físico o leitor de um mundo do qual Deus é um autor Iivre de qualquer constrangimento racional, Claro que a mecánica racional é igualmente filha de Newton, no sentido em que o espaco malhado que rege doravante os seus cálculos nao é dado de urna vez por todas, tal como o espaco dos carpos pesados galilaicos. A malha do espaco galilaico era funcáo da gravidade, uniforme; a da mecánica racional deverá ser redefinida em cada instante, pois em cada instante varíam as distancias relativas entre os carpos e, por conseguinte, as forcas de interaccáo entre esses carpos. 64
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Todavia, este espaco de malhas vanaveis, descrito por Lagrange por urna funcáo -potencial-t, nao é o espaco homogéneo e isótropo de Newton. O espaco homogéneo e isótropo é próprio do movimento uniforme; o espac;o da mecánica racional é próprio da concepcáo de urna velocidade instantánea liberta das categorias do movimento uniforme, determinado por aquilo de que ela torna o carpo potencialmente capaz. porque me estimula entáo a distincao entre a categoria geral «física matemática» e a descendencia singular da mecánica racional, ao ponto de elaborar, a seu respeíto, um novo «caso Galileu..? Eu poderia, prudentemente, sustentar a tese de que ela me parece explicar melhor a história da mecánica no século XVIII, quer dizer, do problema com que se depararam todos, Euler, d'Alembert, Lagrange, etc.: articular entre si os dais tipos de causalidade, a que foi inventada por Galileu e a que foi introduzida peJas forcas newtonianas. Mas, el semelhanca dos interesses de Koestler, Whitehead, Feyerabend, Koyré e Duhem, tambérn o meu nao é puramente histórico. O que Koyré tentou compreender foi a origem de urna física tipicamente -pós-einsteiniana-, urna física que abandonou a sua irnagem de ciencia procedente por generaiizacáo a partir de -factos- para se afirmar como ciencia conceptual, inventando a sígnificacáo dos factos observados a partir de urna hipótese teórica. No meu caso, o problema é que, no seio da física matemática, nem todas as leis se equivalem, nao tém o mesmo estatuto. A lei da difusáo do calor de Fourier é urna Iei matemática e, portanto, ela é, para a maior parte dos fisicos, -sornente fenomenológica»: nao atribuí qualquer significado medida causal inventada por Galileu. Eis, pois, que surgem novas actores na cena do meu discurso. O meu «caso Galileu- parecía depender daquilo a que se chama a única -históría ínterna-: chega de jesuítas, guerras de relígíáo, díplomatas, papas, pensadores rnedievais e mesmo de tradícáo platónica. Um homem face a um carpo em movimento que lhe permite descobrir como deve definí-lo objectivamente, como articular de maneira coerente as suas variáveis mensuráveis. E, contudo, a distincáo -interna-c-exrerna- nao rern importancia. A «mecánica racional" pode bem proceder de urna -ídeia-, o recurso operacional da igualdade das causas e dos efeítos nao se inscreve no firmamento das ideias mas num campo histórico concreto que ela vaí colocar sob tensáo, suscitando noves interesses, novas á
1 Puncáo -potencial-: introduzida na Mecánica Analítica de Joseph Lagrange (1788), ela descreve globalmente um sistema mecánico em funcáo das massas pontuais que o compóem e das distancias entre essas massas. As forcas de tnreraccáo as quals está submerida cada massa em cada instante sao definidas como derivadas da funcáo potencial. Esta funcáo rem as dlmensóes de urna energía (também se lhe chama energía potencial). Ela permite enunciar em traeos gcrals a conservacáo mecánica da causa no efeíro- todo o aumento de energía potencial -paga-se- por urna dírmnutcáo da energla ctnenca (ligada as velocidades das massas que compoern o sistema), e inversamente.
A lei de Pouner (1822) descreve a velocrdadc com a qual o calor se difunde entre dais pontos de um carpo em funcáo da dfferenca de temperatura entre estes dais pontos. A dífusáo do calor incluí-se no tipo de processos que anulam a sua própría causa: no momento em que causa urna uniformizacáo de temperaturas, pára.
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actores, novas relacóes entre estes actores que, todos eles, engenheiros, físicos, filósofos - eu incluída - estáo OU estiveram interessados na pertinencia da igualdade entre causa e efeito que confere a sua identidade a mecánica racional.
A pertinencia da mecánica racional
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Como avaliar um movimento? Pela quantidade de movimento, mu, como propunha Descartes, 00 pela sua -forca viva-, mv 2 , como propunha Leibniz a sernelhanca de Galileu e de Huygens? Como justificar esta velocidade ao quadrado, alheia as ideias claras da geometría? Estamos perante a matéria da chamada querela «das forcas vivas" que durará vários decénios. Nao se trata aquí de entrar no discurso de tal contenda, que mistura, até Kant e Lagrange, histórias da física e da filosofia. Sublinhemos apenas como ela esclarece a singularidade da mecánica racional. Descartes admite decerto que o efeito iguala a causa. Mas decide dar urna definicáo racional el causa, um sentido claro e distinto. -mos- nao tem qualquer sentido racional: é preciso, pois, para os cartesianos com os quais se defrontou Leibniz, que o efeito seja identificado a partir de urna causa racional, e que nao seja ele a designar nua enquanto causa. ·0 Senhor Leibniz está enganado-, sustenta, em 1686, o abade Catelan, cartesiano: ele mede a -forca.. de um carpo em movimento apenas pela distancia que tal forca permite ao carpo transpor, negligenciando o tempo necessário para o conseguir. E cabe a Leibniz responder que o tempo nada tem a ver com o caso, senáo tal seria como dizer que um homem é tanto mais rico quanto maís tempo levou a ganhar o seu dinbeiro. Como avaliar o efeito? Se nós duplicannos a velocidade com a qual urn carpo é lancado ao ar, o resultado é ele subir quatro vezes mais alto, como sustenta Leibniz, ou melhor, como o sustenta Samuel Clarke, discípulo de Newton, mas nunca se manifestando nesta altura como partidário do cartesianismo; será o efeito apenas duplo, uma vez que leva o dobro do lempo? Como avaliar o efeito? Tal questáo nao cabe apenas aos filósofos mas também aos engenheiros. Questáo típica: a que velocidade, quer dizer, em quanto tempo, se pode fazer com que um carpo suba, minimizando os -custos.. da operacáo? Mas esta questao mistura o que, depois de Galileu, a mecánica racional separa. Certamente, do ponto de vista galilaico, o tempo de queda (ou de subida) "canta.., mas nao para avaliar a -forca- de um carpo em movimento do ponto de vista do seu efeito potencial, quer dizer, daquilo que a veloddade do seu movimento lhe permite em cada instante. Deste ponto de vista, a diferenca de nível é suficiente: o caminho de que se serviu o móbil para transpor a díferenca de nível e o tempo que ele levou a transpó-la sao indiferentes. SÓ se entra em linha de canta com atempa quando se trata de caracterizar um caminho particular: conforme o carpo suba verticalmente, segundo tal plano inclinado, tal curva, ele subirá em tal ou tal tempo. 66
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Encontraremos agui de novo a malha do espaco galilaico: é preciso escolher, ou seja, descrever um movímento acelerado no espaco e no rernpo, em termos das suas aceleracóes sucessivas, isto é, do único ponto de vista da altitude, das malhas que permitem as causas e aos efeítos medirem-se entre si. Espaco-tempo ou altitude, é preciso escolher: os dais nao podern misturar-se. Quando se abandona o mundo ideal da mecánica racional para entrar na mundo dos engenheiros no qual os carpos sofrem friccáo, o tempo, evidentemente, adquire urna importancia sob todos os prismas. A diligencia feita por Galileu retira, pois, o sentido a questáo que interessa os engenheiros. A razáo definida pela medida causal nao equaciona somente o espaco, ela esquadria tarnbém a priori o campo definido pelo problema comum aos engenheiros e aos especialistas da mecánica racional: o que pode um movímento? Tal questáo traz consigo um julgamento que situa as preocupacóes dos engenheiros, que as define como senda apenas relativas a parte que separa o seu mundo do ideal racional dos mecanicístas matemáticos. Na medida em que os corpos sofrern friccáo, o efeito mecánico é sempre inferior a sua causa. Como mínimizar entáo a perca? Face aos filósofos, a razáo suficiente arrastava consigo urna história, na medida ero que punha em questáo a evidencia geométrica da quantidade de movimento. No que respeita aos engenheiros, ela coloca a questáo, histórica, de saber como se situado eles relativamente a esta -racionalizacáo- que devolve os seus problemas, se nao para o plano irracional, pelo menos de fora, relativamente ao ideal racional que caracteriza o mundo onde tais problemas devem colocar-se. A mecánica racional suscita pois, em si mesma, um problema profissional e político, o da subordínacáo eventual dos engenheiros face ao julgamento que situa a sua prática. Límíterno-nos a fazer alguns reparos históricos: em 1775, a Academia das Ciencias de Paris dá origem a algum ódio da parte dos -inventores-, já que anuncia recusar doravante a priori, sem que haja urna verifícacáo, qualquer proposta de motor perpétuo, cuja ambícáo contraria a conservacao da causa no efeíto: no princípio do século XIX, a formacáo profissional dos engenheiros franceses tem por base os principios da mecánica racional: o funcionamento efectivo das máquinas é julgado a partir do desvío ao ideal. Os inventores quase que desapareceram, a arte da engenharia releva da mecánica aplicada. Mas a história nao é um círculo fechado. A lei de Fourier, enunciada em 1822, descreve a forma mediante a qual, ao longo do tempo, se nivela urna díferenca de temperatura. A dífusáo do calor, tornar-se-á, no século XIX, o exemplo tipo de processos irreuersiueis; no sentido do segundo princípio da termodinámica, de processos que aniquilam sem possibilidade de retrocesso a sua própría causa: a diferenca de temperatura desaparece sem produzir um efeito que permita recriá-Ia. O segundo princípio define processos irracionais no sentido da razáo suficiente, da igualdade das causas e dos efeitos.
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OS CASOS GALILEU
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segundo princípio recebeu as formulacóes maís diversas, fruto da complexidade da historia de que resulta. lreínterpretacao em 1850 por Rudolph Clausius e William Thomson (futuro Lord Kelvin) do rendimento máximo da transformacño do calor em movímenro mecánico enunciado por Sadí-Carnot em 1824]. A sue formulacáo maís universal deve-se a Clausius (865): ·A entropia do universo aumenta sempre no sentido de uro máximo•. O segundo princípio da termodinámica definia a classe dos processos ditos irreversíveis pelo desenvolvimento de urna funcáo, a entropia. Nenhum processo natural se pode traduzir por urna diminuicáo espontánea da entropia, o que significa que, se um sistema físico-químico sofreu, a partir de um determinado estado, urna evolucáo em entropia crescente, nenhum processo natural o poderá reconduzir ao estado inicial.
É por isso que físicos e filósofos discutem após o "estatuto» do segundo
princípio no interior da física: será ele o produto das nossas descricóes aproximativas de um mundo -objectivarnente- submetido a razáo suficiente e, neste caso, "apenas fenomenológico» ou será que ele póe em questáo a razáo suficiente? Os defensores cartesianos da quantidade de movimento, como os engenheiros anteriores a Escola Politécnica, pertencem ao passado, Mas sao as discussóes de hoje, ao mesmo tempo científicas, especulativas e políticas (quem fala em estatutos, fala ern hierarquias: dornínacáo e subordinacáo), sobre a díferenca entre leis físicas fundamentais e fenomenológicas, que me conduziram, como tantas outras, até um "caso Galileu..,
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A refraccáo e o
«esquecimento» cartesiano MICHEL AUTHIER
Poderemos, sobrevoando séculos e continentes, fazer a narrativa da emergencia de urna lei física e desvendar, textura após textura, o que urna fórmula oculta, sem esquecer o que ela permite de novo?
ao é de hoje que o ar está espalhado circularmente ero torno das terras, É urna Iei da natureza, e como tal é lógico pensar que tenha perdurado desde a fundacáo do mundo até aos nossos días. Por consequéncía, deve ser razoável pensar que nao houve qualquer época sem refraccáo-, Foí assim que, na alvorada do século XVII, Kepler apresentou, nos Paralipómenos a Vitélio, a universalidade do fenómeno responsável por tantas maravílhas, «Aurora com dedos de rosa", crepúsculos de púrpura, auréolas, glórias, sóis múltiplos, arco-frís, que encantaram os poetas. Astros visíveis antes da hora prevista para a sua aparícáo, desvíos anormais entre as estrelas, luas coloridas, observadas desde há muíto tempo pelos astrónomos. Oásis, palmares, cidades maravilhosas planando sobre as dunas; costas, faróis e barcos visíveis de muito longe quando o tempo está quente, conhecidos desde sempre por nómadas e marinheiros. Responsável por desvios importantes nos cálculos astronómicos Ca observacáo da posícáo reciproca de objectos celestes dependendo da incidencia da sua luz na atmosfera), a refraccáo preocupou os sábios desde muíto cedo. Filho de astrónomo e ele próprio observador brílhante, quantas vezes Arquimedes, na margem dos rios de Alexandria e de Siracusa, nao terá visto a luz dístorcer-se na orla do céu, refractar-se no mar. É dele que provavelmente ternos a primeira descricáo experimental do fenómeno: "Se colocares um objeeto no fundo de um vaso, e se afastares o vaso até que nao se possa mais ver o objecto, verás que ele reaparece a essa distancia desde que enchas o vaso de água-. Gracas a extrema simplicidade do dispositivo, ve-se claramente que tenta fazer urna experiencia. Substituindo a água pela atrnosfera, o vaso pelo céu e o objecto pelo Sol, obtemos o modelo reduzído de um fenómeno astronómico.
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Mais tarde, o estabelecimento de modelos geométricos, depois as suas numerizacóes tornar-se-áo suficientemente refinadas para que os sábios possam falar entre si da refraccáo sem se referir a um determinado fenómeno. Nas páginas que se seguern, iremos tentar reconstituir alguns trechos da textura que cobriria com a mesma camada as auroras homéricas e a lei dos senos. É um facto muito corrente na história das ciencias que um problema apareca durante muito tempo antes de ser encontrado aquilo a que se costuma chamar -a sua solucáo.. (que corresponde muítas vezes a dissolucáo do seu envolvimento emocional). Este afastamento pode incon-
testavelmente ser devido a dificuldades intrínsecas. Isso, aliás, nao quer dizer grande coisa, já que a dificuldade de um problema é o mais das vezes medida pelo seu tempo de resolucáo, Noutros casos a problemática nao se mantém continuamente, ela reaparece depois de longos períodos, apaga-se outra vez sern que se imponha, com evidencia, urna continuidade ou mesmo urna lógica. Um dos interesses particulares da refraccáo é, pelo contrarío, a permanencia das questóes que ela suscita. Dos Gregos aos sábios do Século das Luzes, do golfo Pérsico a Inglaterra medieval, descobrimos em sociedades muito diferentes hornens preocupados em compreendé-la, díreccáo zénite
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observada do astro
As varíacóes nas observacóes astronómicas
O angula de desvio d é provocado pela refraccáo da atmosfera. Ele varia de 1', quando a próximo dos 45°, até cerca de 40', perto do horizonte (quando a ~ 80°), o que explica o aparente -esmagamento- do Sol ao pór-se: a díreccáo real do astro faz, portanto, um ángulo a + d com o zéníte. é
A luz dos filósofos Antes de ser -objecto de ciéncía-, a luz foi urna preocupacáo filosófica e artística. Apesar da sua -efícácia-, as solucóes electromagnéticas ou quánticas da física contemporánea OH moderna nao escondem as inter70
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roga~6es originais. Com efeito, sem por em causa a existencia das radia(oes (turnen), podemos continuar a perguntar se, sem a psycbé, a luz (lux), identificada com a condícao necessária e suficiente da visíbilidade das coisas, existiría, Nao nos esquecarnos da Teogonía de Hesíodo ande os pares Érebo/Níx e Éter/Hemera se conjugam um com o outro para doar os princípios absolutos das ..t revas- e da luz. Nao nos esque~amos de Dante que escreve no seu Conoioio. "O costume dos filósofos é chamar "claridade" a luz, na medida em que ela é no seu principio aquilo que brota; chamar "raio", na medida em que corre através do meio; chamar "esplendor", na medida em que é reflectida noutro lugar que ela ilumina". Enfim, nao nos esquecamos de Kepler quando escreveu: "o raio de luz nao é de modo algum a própria luz que emana". No entanto, nao parece ser possível escapar a esta lenta díssimulacáo da lux pelo lumen. A descricáo física dos fenómenos faz evoluir as suas percep~6es, as sensacóes sao transformadas pelo conhecimento das teorias, e tornou-se difícil compreender o co-nasctmerno da psycbé e da lux, condi~óes fundadoras de um hornem pronto ao entendimento e de um mundo concebido como visível. Condicáo prévía da vista, a luz é no pensamento grego o meio por excelencia entre o espírito e o mundo: ..O ra, a vista, de acordo com o meu propósito, é para nós a causa do maior benefício porque, das actuais consideracóes que fazemos sobre o universo, nenhuma teria sido feita se nao tívéssemos visto os astros, nem o Sol, nem o céu L..l-, diz Platao no Timeu. Mais adíante, acrescenta: ..Daí retirámos um género de filosofia que é o maior bem que foi dado ou que alguma vez será dado a raca dos mortais pela liberalidade dos deuses-. Vejamos agora como é que o pensamento, filho da luz, se adaptou para compreender aquela que o engendrou. Talvez seja uro. dos benefícios da história das ciencias fazer-nos apreender ern que medida a evidéncia do "natural, é, afinal, ditada pelo nosso ambiente científico e cultural. Se nos parece actualmente certo que a luz se desloca para o nosso olho, estava longe de ser o caso há ainda quatro séculas. Desejosos de excluir homem de qualquer explicacáo da natureza, os atomistas Leucipo, Dernócrito, Epicuro, Lucrécio, foram os únicos a pensar, na Antiguidade, que sao os objectos que manifestam a sua presenca. Segundo eles, fazem-no enviando através do espaco eidola, espécies de sombras, camadas muito finas, simulacros que, num tempo extremamente breve (a palavra sublinha bem a simultaneidade), víráo penetrar nos olhos e imprimir-se na retina com a sua forma e as suas cores. Na época, e até um passado recente, esta teoria foi sistematícamente ridicularizada. No entanto, seria importante ler com atencáo o livro IV do De natura rerum de Lucrécio, ande ela é longamente exposta: ..Assim, repito-o, sereis abrigados a reconhecer estas emanacóes dos simulacros que atingem os olhos e produzem em nós a sensacáo da vista L. .J. Tanto é verdade, que todos os carpos enviam continuamente emanacóes de todas as espécies, que provérn de todos os lados, sem nunca parar, nem se esgotar. L..l. A superfície de todos os carpos é
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guarnecida por urna multiplicidade de corpúsculos imperceptíveis que se podem separar, sem perder a sua ordem e a sua forma primitiva, e lancar com tanto maior rapidez quanto menos obstáculos tiverem de vencer». Como vemos, esta teoria resolve o problema da permanencia da forrna na vísáo, E maís, eis aí urna cxplícacáo que assegura ao acto de ver urna independencia total entre o sujeito e o objecto. Está longe de ser o caso nas outras teorias gregas. Platáo é, para o historiador das ciencias, urna arrnadilha gracas a qual foí retido o pouco que sabemos dos seus predecessores. Nao levantaremos aqui os problemas que isso nos coloca. Basta-nos que o leitor, contudo, guarde no espírito este facto simples: nao há quase nenhuma fonte prímária sobre a ciencia grega: tudo o que sabemos deriva de urna documentacáo secundária. Independentemente da sua excelencia, os textos de Platáo sao deste tipo. Descobrimos aí que, no século VI a. c., os pitagóricos postularam a existencia de um quid saindo do olho para se dirigir para o objecto e tacteá-lo. A vista, como o tacto, era, pois, um sentido activo em oposícao ao ouvído e ao odor, a que Aristóteles justificará mais tarde pela forma convexa do olho aposta as formas cóncavas das orelhas e das narinas. Foi esta, com adaptacóes diversas, a concepcáo que dominou durante perto de dais mil anos. Empédocles, por seu lado, preocupado em adaptar a sua teoria dos semelhantes ao problema da visáo, concebeu um sistema de duplas ernanacóes que, partindo do órgáo e do objecto, se encontrariam no ar. -Quando, pois, há luz do dia a volta do raio visual, entáo este verte-se semelhante em direccáo ao seu semelhante e combina-se com ele; um corpo único, apropriado ao nosso, constituí-se ao longo da recta saída dos nossos olhos, ern qualquer direccáo, para que o fogo que brota do interior se tenha dirigido contra o que chega dos objectos exteriores. L.. J. Ele transmite os movimentos em todo o corpo até a alma, e fornece-lhe essa sensacáo gracas a qual declaramos que vemos-, (Platáo, Timeu).
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Mas o trabalho do filósofo ateniense nao se limita a estas admiráveis exposícoes poéticas das concepcoes dos outros. Pode Ier-se no livro VI de A República urna óptica preliminar ao mito da caverna. A vista aí é obtida a partir da luz, e o Sol toma-se fonte universal desta. No plano filosófico isso permite a Platáo definir as relacóes do saber, da realidade e do bem. Conduz também a urna concepcáo da luz independente da vista e do Sol. Existe nesta separacáo a germe de urna renovacáo da física da luz, o que influenciará consideravelmente o pensamento ocidental. Sabe-se que Perseu ao aproximar-se da Medusa se tinha munido de um espelho que lhe perrnitiu evitar ser atingido directamente pelo olhar de fogo. Gracas ao seu estratagema escapou ao fluido maléfico e pode eliminar a horrenda criatura. Este simbolismo do olhar pennaneceu num grande número de expressóes populares e poéticas. Maís que ísso, permite urna relacáo fácil entre o raio visual e a raio solar. Será Arquítas de Tarento (430-348 a. C.) quem a sistematizará: um fogo saí do olho em linha recta e vai tocar os objectos olhados. O fogo, a 72
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[Inha recta e o sentido olho-objecto sao as características das teorias futuras; exceptuando, como vimos, as dos atomistas e, como veremos, a de Aristóteles. É dificil expor em poucas palavras a teoría do Estagirita tal como nos aparece, por exemplo, nos capítulos 11 e 1II do pequeno tratado, Da Sensafao e do Sensiuel. Ele ataca aí, sístematícarnente, todas as concep~bes anteriores. Para ele nada emana do olho ou do objecto, porque, no primeiro caso, qualquer emissáo tornaria possível a visáo nocturna; no outro, a rnais pequena agulha seria visível no meio da palha, Para Aristóteles existe apenas urna alteracáo do meio interrnédio que imprime urna pressáo sobre o olho e desaparece com as trevas. -Assírn, como exp!icámos nesta obra (Da Alma, 11, 6-11), a luz é a cor do diáfano por acidente ... Mas aquilo a que chamamos diáfano nao pertence propriamente ao ar ou a água nem a qualquer outro dos carpos assím denominados, mas é de tal natureza, de tal forca comum, que nao existe separadamente, mas está nos carpos L..]. A natureza da luz está, pois, no diáfano indetcrminado-. No inicio do seu pequeno tratado, Aristóteles sublinha a dificuldade de conciliar os cinco sentidos com os quatro elementos. Nao existiría com o diáfano um quinto elemento em gestacáo? Até ao inicio do século xx, os físicos da luz seráo muitas vezes tentados a associar a luz um substrato que nao se assemelha a qualquer outro, Em conclusáo, entre os filósofos gregos nao existem concepcóes estáveis e unanimemente partilhadas sobre a natureza da luz. A primazia dada a vista sobre todos os outros sentidos lao ponto de em Aristóteles a ímagínacáo retirar o seu nome (pbantasia) do da luz (pbaos)], coiocará os problemas suscitados pela visáo no centro das peocupacóes dos grandes -cienristas.. gregos.
Primeira física da luz Ver nos eídola Iucrecianos, no diáfano de Aristóteles e respectiva altcracáo os longínquos antepassados dos fotóes, do éter e das ondas, nao dcixa de ter algum sentido, se se basearem as fisicas da materia em teorias da sensacáo. Os primeiros passos para esta física váo ser dados na época helenística. Apesar de ser aristotélico, Euclides apoiar-se-á no modelo de Arquitas para elaborar a sua primeira óptica geométrica. Fá-lo-á libertando o modelo de qualquer referencia a teoria dos elementos, portanto do registe da sensacáo. SÓ restará a línha recta e o sentido de propagacáo. A sernelhanca dos seus elementos de matemáticas, o seu tratado desenvolve-se com base em postulados: .1. Suponhamos que as !inhas rectas que emanam do olho se propagam divergindo para as grandezas. 11. Que a figura compreendída pelos raios visuais é um cone tendo o seu cume no olho e a sua base nos limites das grandezas olhadas. 111. Que as grandezas sobre as quais caem os raíos visuais sao vistas; enquanto que aquelas sobre as quais nao caem, nao o sao. 73
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IV. Que as grandezas vistas sob angulas maiores (maís pequenos, iguais) aparecem maiores (mais pequenas, iguaís). V. e VI. Que as grandezas vistas sob angulas com mais relevo (rnais baixas, mais a direita, mais a esquerda) aparecem mais elevadas (maís baixas, mais a direita, mais a esquerda), VII. Enfim, que as grandezas vistas sob ángulos mais numerosos aparecero mais distintamente». Esta lista mostra quanto o físico da luz está próximo do matemático, a tal ponto que é provável que o conceito de recta seja gémeo do de raio. Também encontramos urna relacáo entre o angula do cone e a dimensáo dos objectos que deixa pressupor laces estreitos entre a óptica nascente e a teoria das proporcóes geométricas já presente na astronomia. Compreendamos também que estes eones que saem do olho sao de urna grande simpiicidade geométrica comparativamente com a sítuacáo que os feixes de raios brotando de cada ponto dos objectos criariam. Notemos igualmente a ausencia de tomada ero consideracáo dos dais olhos. Esta óptica, que nao é mais que urna perspectiva, é evidente que nao nasceu ex nibilo nesta cidade de Alexandria ande se concentrararn os homens e os meios indispensáveis a "política científica» de uro Alexandre formado por Aristóteles. Coro efeito, parece que já existia há muito tempo urna prática da perspectiva. Vitrúvio lembra no seu Arquitectura como, desde a época de Ésquilo, se podía criar nas decoracóes do teatro urna ilusáo de realidade jogando com as divergencias das linhas de fuga, e quem tenha visto um templo grego sabe como os arquitectos alargavam as extremidades dos frontóes para equilibrar os monumentos. Os resultados coligidos por Euclides apareciam como urna plataforma mínima. A luz perde toda a substancia, os raios sao regidos por urna geometria elementar, um único 01ha-ponto participa na vísáo, o mundo é reduzido a urna representacáo que se pode observar a esquerda, a direita, para baixo ou para cima. Paradoxalmente, este texto, que nao passa de urna síntese obtida pelo empobrecimento de outros saberes, retira a sua riqueza deste empobrecimento ao definir, para os fenómenos ópticos, um espaco desencarnado e regras abstractas. Provavelmente, ternos aqui os primeiros elementos de urna física matemática. Esta posícáo da mais abstracta ciencia física nunca será perdida, por assim dizer, pela óptica, mesmo que tenha sido acompanhada de perto pela rnacánica, que arrastará consigo. Atribuído durante muito tempo a Euclides, o primeiro tratado de catióptrica (ciencia dos espelhos) que conhecemos é multo provavelmente urna recensáo de urna obra perdida de Arquimedes, que também estudou metodicamente a refraccáo. Lembremos que o grande matemático foí astrónomo e que a refraccáo tem urna importancia considerável nas observacóes celestes. Infelizmente, nao nos resta maís nada dos trabalhos respeitantes ao fenómeno que nos ocupa, exceptuando o dispositivo experimenal do vaso e do objecto que enunciámas acima e que figura na catióptrica pseudo-euclidiana. No dizer de 74
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Apuleio, outras obras teriam contido urna explicacáo do arco-iris e da refrac.;ao. Como somos incapazes de verificar a exactidáo destas informacees, devemos sobretudo sublinhar a aproxírnacáo entre os dois fenómenos. Nos séculos seguintes, abandonando qualquer consideracáo sobre a natureza da luz, o mecanicista-matemático Hedo de Alexandria e o maior astrónomo da Antiguidade, Cláudio Ptolomeu, estabeleceram tabelas de medida dos ángulos de refraccáo, Elas chegaram até nós por inteffi1édio dos Árabes que as melhoraram. No século IV da nossa era, Damiano será o último dos gregos conhecidos, quando já há muito a ciencia helénica periclita, a aperfeícoar o edifício da óptica alexandrina. Segundo o historiador Vasco Ronchi, foi ele quern, comparando a luz do Sol e os raios visuais, demonstrou a identidade das suas propriedades. E mais, postula que a vista deve atingir muito rapidamente o objecto a ver, e apoiando-se nesse -princípio unitário-, demonstra a lei da reflexáo. Foi assim que, durante oito a nove séculas, a luz foi urna preocupa~ao central do pensamento mitológico, filosófico e científico da Grécia, ou talvez fosse mais exacto dizer, do Mediterráneo. Fonte das géneses do mundo, quer fossem elas egipcia, babilónica, bíblica ou hesíodona, a luz perdeu gradualmente substancia e unidade. Este trabalho de separacáo acabou por, ao fim de vários séculos, dividir a óptica em diversas seccóes: psicológica, fisiológica e física. Ao confundi-la com o seu modelo do raio rectilíneo, os mecanicistas e os astrónomos, o mais das vezes de Alexandria, afastaram a luz dos consideráveis problemas colocados pela sua natureza, Eles dedicaram-se sobretudo a estabelecer urna geometria da deslocacáo do raio visual a qual reduzíram a luz. Em consequéncía disso, ganhou-se o hábito de dividir esta óptica física em tres capítulos: a perspectiva, a catióptrica e a dióptrica. Assim ela encontrou urna estabilidade e, a semelhanca da astronomia, só as tabelas de medida podiam ser ainda aperfeicoadas. Assim repartida, esvaziada de substancia e geometrizada, a teoria alexandrina da luz podia, bem ou mal, resolver os problemas que a astronomia colocava.
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. ,1 Os arcos primário e secundário de um arco-Iris Muito cedo se observou a constancia dos angulas sob os quais apareciam os arcos primário (á volta de 42 0 ) e secundário (ii volta de 50°). Isso explica a razáo pela qual: - o Sol está sempre nas costas do observador; - os arcos só sao vísíveís (consoante a latitude) de manhñ ou no fim da tarde; desde que o Sol esre]a acíma de 42 0 os raios do arco primário passam por cima da superficie da Terra; o mesrno acontece acíma de 50 0 para os do arco secundárío: _ contrariamente as aparéncías (perceptíveís apenas pelo observador), o arco nao é um arco de círculo num plano, mas a resultante de todas as gotas que passam no espaco compreendido entre dois eones (representados por linhas) com o vértice no olho do observador e de eixos paralelos aos raios solares, de abertura vizinha de 42 0 para o primário, de 50 ° para o secundárío.
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A óptica árabe
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Muito longe de ser urna simples intennediária, a ciencia árabe vai literalmente refundir a óptica. Sao difíceis de explicar as razóes de uma mutacáo tao importante numa sociedade que renuncíou a imagem representativa. Urna hipótese, dificilmente verificável, faria desta renúncia a condicáo que recia permitido o abandono do cone perspectivo em benefício de um raio de luz saído do objecto e penetrando no olho. A partir desta concepcáo radicalmente nova, os ópticos árabes váo nao só melhorar a qualidade das tabelas numéricas, mas sobretudo voltar a dar unidade ao conjunto da óptica. O grande artífice deste empreendímento será al-Haytham, conhecido no Ocidente sob o nome de Alhazen, nascido em Bassorá em 965 e faiecido no Cairo em 1039. Ao inverter o sentido da propagacáo do raío, a óptica árabe traz respostas novas, mas, mais que ísso, suprime antigos problemas e cria novas. Com efeito, para um olho tornado receptor, o problema da emíssáo já nao se póe, nem o da vlsáo conjunta de objectos situados a distancias muito diferentes. Em contrapartida, o problema da percepcáo é renovado, ainda que grandemente complicado pelo princípio da decomposicáo punctiforme do objecto numa muitiplicidade de raios que o oiho deve recompor. Esta díficuldade vai coiocar o órgáo no centro dos problemas e promové-lo, durante mais de seis séculos, ao primeiro plano das máquinas ópticas. Esta concepcáo de uma iuz irradiando de cada ponto do visívei terá sido rapidamente aceite pelos sábios árabes? É difícil responder, dada a escassez de documentos anteriores. Cidade próspera dos séculos VII ao IX, Bas76
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sorá estava ero declinio, desde o enfraquecimento do poder abássida, quando al-Haytham nasceu. Chegado ao Cairo em pleno renascimento em torno da sua mesquita-universidade,-decerto que teve conhecimento dos trabalhos da escala de Alexandria, antepassado modelo dos grandes centros científicos árabes. A óptica alexandrina geométrica, metrológica e de preferencia vazia de consideracóes substanciais nao se opunha a esta nova concepcáo. Mas, por outro lado, o torn muito argumentado e por vezes polémico da obra de al-Haytham permite-nos pensar que as suas ideias nao eram as dominantes na época. Aa fazer do olho urna aparelho óptico, al-Haytharn afirma convictamente a ideia, perceptível em Aristóteles, que -na visáo tudo é refracc;aon. E apesar de nao considerar a ínversáo da imagem retiniana nern a focalizacáo operada pelo cristalino, é com ele que aparece a estrutura geral do mecanismo da vísáo ainda hoje ensinada. Desde esta altura, a refraccáo tomou-se o problema chave da óptica, nao apenas fisiológica mas também geométrica. Neste domínio a concepcáo de al-Haytham é criadora. Como o olho nao ressente qualquer esforco particular no momento da emissáo, os Gregos dificilmente podiam ter concebido o rato visual segundo um modelo mecánico, apesar das tentativas de Heráo e de Damiano. Bem pelo contrário, a ínversáo operada pela ciencia árabe vai permitir explorar a fundo a metáfora mecánica, justificada pela fadiga que o excesso de luz provoca ao olho. Na obra de al-Haytham cada raio, tornado urna -seta-esfera- submetida a velocidades extremas, encontra neste modelo a justificacáo da Iinearidade da propagacáo e da igualdade dos angulas de reflexáo. Mais surpreendente ainda, no estudo do fenómeno da refraccáo entre dois meios de natureza diferente, como a água e o ar, o movímento do raio é decomposto segundo duas componentes, urna paralela e a outra perpendicular ao plano de separacao dos meios. Para a refraccáo que nos íntercssa, o sábio árabe explica como se segue, no Discurso da Luz, a quebra do raio luminoso: -As luzes que se propagam nos carpos transparentes propagam-se com um movimento muito rápido, inapredável por causa da sua rapidez. No entanto, o seu movimento nos corpos delgados, quer dizer, os que sao diáfanos, mais rápido que o seu movimento nos corpos espessos [... l. Com efeito, qualquer corpo diáfano, quando atravessado pela luz, opóe-lhe urna pequena resistencia que depende da sua estrutura-, É aqui que aparece o argumento em termos de velocidade que ocupará a ciencia ocidental durante decénios. Com ele a óptica liberta-se de urna geometría estática e toma-se a -ponta de lanca- de urna mecánica que ela, ero boa medida, inaugura. Outra ariginalidade de al-Haytharn consiste ero descrever o fenómeno coro a ajuda de regras que nao sao, contrariamente ao que faziam os Alexandrinos, esscncialmente numéricas. Elas sao, a julgar pelo que se segue, descritivas das relacóes que existem entre os diversos angulas na altura da refraccáo. é
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- quando o angula de incidencia i cresce, os angulas de refraccáo re de desvio d crescem (se il < iz, entáo d, < d: e rl < rz); 77
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- mas esta varíacáo é maior para os angulas de incidencia í que para os angulas de desvio d (d2-d1 < i2-;1); - a relacáo entre o desvío e o angula de incidencia d/¡ é tanto maior quanto maior for a incidencia (d 2 / ;2> d, / i1); - para urna refraccáo de um meio ralo (meio 1) para um meío denso (meio 2), d < 0,5 i, inversamente, para a refraccáo de um meío denso para um meio ralo, d < 0,5 (i+d); - um meio menos denso deflecte a luz para mais longe da normal (n). - um meio mais denso deflecte a luz para mais perta da normal (n).
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Como vemos, trata-se de urna lei da refraccáo, as referencias ou chamadas ao fenómeno -natural- foram totalmente apagadas, nao restando mais do que urna série de principios, de regras. O trabalho do matemático-físico, apesar de ter sido impresso no Ocidente apenas em 1572, terá urna influencia considerável sobre os raros indivíduos que faráo evoluira óptica na Idade Média. Por outro lado, a óptica árabe permanecerá, até ao século XIV, extremamente viva enguanto as outras ciencias já tecla entrado em declínio há muito tempo.
A óptica divina Enquanto a Antiguidade e a cívílizacáo árabe véem a óptica difundir-se junto dos grandes centros intelectuais e políticos, o século XIII abre um período em que o estudo da luz se desenvolverá nos confins da Europa, longe do centro que a domina. Em Paris, capital intelectual e temporal do mundo ocidental, os escolásticos da Sorbonne, fiéis el concepcáo antiga da vísáo, absorvidos pelo estudo dos auctores e sobretudo de Aristóteles, lógico e metafísico, negligenciam o estudo da óptica. Muito pelo contrário, os sábios da escala de Oxford e mais particularmente o seu fundador, o bispo de Lincoln, Robert Grosseteste (1168-1253), colocam a óptica no centro da sua pesquisa da verdade. Retomando a concepcáo augustiniana de urna luz análoga a graca divina, fazem urna leítura de Aristóteles diferente da dos escolásticos parisienses. 78
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Aa distinguir na ciencia o eonhecimento dos factos do das causas, Grosseteste sublinha tres aspectos fundamentais da pesquisa científica: o indutivo, o experimental e o matemático. Preconiza o controlo das hipóteses e dos consequentes pela experiencia, e afirma para legitimar os seus métodos um princípio de economía da natureza: -Qualquer
operacáo da natureza realiza-se da maneira mais determinada, maís breve, mais perfeita possível-. Aplicado el luz: ~A natureza age segundo o caminho mais curto possível... Nestas condícóes, o estudo da luz fica no centro da concepcáo do mundo físico, mas, além dísso, urna vez que estabelece um estreito paralelo com a sua metafísica, euja chave é a ernanacáo dos seres a partir da unidade, Grosseteste faz da luz o problema central de qualquer conhecimento: ..T udo é uno, proveniente da perfeicáo de urna luz única, e as coissa só sao múltiplas gracas a multiplicacáo da própria luz ». A parada é grande, porque senda a óptica inseparável da geomeria, qualquer filosofía é ímpossível sem esta matemática, ..porque todas as causas dos efeitos naturais devem ser expressas por meio de linhas, ángulos e figuras, pois de outro modo seria impossível ter conhecimento da razáo desses efeitos-, No quadro desta óptica, concebida como a primeira das ciencias, em que a luz é ..a forma elementar.., ..o primeiro princípio do movimento da causalidade eficiente.., dais fenómenos preocupam os oxfordianos: o arco-iris e as lentes esféricas. Decerto que a escolha destes dois objectos nao é indiferente. o. primeiro, maravilha da natureza feliz, símbolo da alíanca com Deus, encontra nas segundas, produtos sofisiticados das técnicas do vidro estimuladas pela arte do vitral, os seus modelos de laboratório. A refraccáo, chave destes dois fenómenos, está associada através deles ao problema da cor. ..A funcáo da óptica consiste em determinar o que é o arco-iris, porque, ao fazer isso, revela-lhe a razáo, na medida em que se acrescenta a descricáo do arco-iris a maneira como esta espécie de concentracáo pode ser produzida na luz que vai de um corpo celeste luminoso para um lugar determinado por urna nuvern, e urna vez dirigido; por refraccóes e reflexóes particulares dos raios, deste lugar determinado para o olho-, Eis o que escreve Thierry de Freiberg (1250-1310) no seu De iride ande, pela primeira vez, é exposta a explicacáo do fenómeno, leí matemática da refraccáo posta de lado.
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No século XIII, Roger Bacon, e depois Thierry de Freiberg tiveram a ídeía de que os arco-íris eram produztdos por repartícóes e reflexóes nas gotas de chuva - balóes de vidro cheíos de água permitiram-Ihes medidas precisas. Observa-se em cada pequeno baláo (gota de chuva desmesuradamente aumentada) como se fonnam os ralos das cores extremas dos arcos primário e secundárío. Pode observar-se que os raíos do arco primário sofrem urna reflexáo e os do arco secundario duas reñexóes: o que explica a ínversáo das cores. A coloracáo deve-se a refraccáo sofrida pelos raios de luz branca que penetram cada gota. O tamanho das gotas tem importancia; acima de um décimo de milímetro, a coloracáo nao é visíve1 e pode aparecer um arco branco.
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raios solares (luz brancaj ••••••••••• vennelho -------- violeta
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Que um fenómeno, por mais majestoso que seja, possa ter um papel tao relevante quando nos aparece como uma simples ilusáo de óptica, nao pode deixar de surpreender um homem do século xx. É preciso recordar a parte fundamental da teologia nas relacóes sociais no século XIII e dizer mais uma vez que, como símbolo da alianca, o arco-íris foi o objecto de querelas entre os teólogos. Sabe-se que Aristóteles vía no arco-íris o resultado de uma rcflexáo da luz numa nuvem. Grosseteste evoluiu fazendo-o depender da refraccáo cujo princípio é preciso, pois, compreender. É por isso que Grosseteste formula no seu próprio De iride urna lei da refraccáo em que o raio refractado r segue a bissectriz do angula formado pela nonnal (n) e o raio incidente i. I
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Podemos, a propósito, avaliar a maneira cavalheiresca como os primeiros praticantes tratavam a experímentacáo. Há já vários séculas que al80
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Haytham tinha defendido que a relacáo dos angulas que fazem r e i coro (n) é constante. Aa fixar esta relacáo ero 1/2, o ingles demonstra incontestavelmente que a preocupacáo de harmonia da geometria divina domina os imperativos de urna racionalidade experimental. Roger Bacon (1219-1293) o -Doutor Adrnirável-, ao prasseguir o trabalho do seu mestre, estima a enorme velocidade da luz comparando-a coro o sorn do canháo que se ouve muito tempo depois de se ter visto o fumo, e afina a explícacáo do arco-iris. Retomando os trabalhos dos árabes al-Haytham e al-Kindy sobre as lentes, descreve geometricamente a posicáo do arco-iris no céu e entende-o como sendo eomposto por urna multiplicidade de gotinhas. E na mesma época que o físico e filósofo polaco Witelo (e. 1230-1275), aliás Vitellion (Vitélio). dominicano nascido na Silésia, marca duplarnente a históría da óptica. Aa estabelecer, gracas a um trabalho experimental cuidadoso, tabelas precisas das refraccóes entre diferentes meios em funcáo das diferentes cores, fornece urna ..ferramenta- preciosa para a fabricacao de instrumentos de óptica. O cuidado que presta as suas experiencias condu-lo a supor, como o tinha feito al-Haytham, que o desvio do raio luminoso é tanto maior quanto mais denso for o meio. Apesar disso, esta obra será pouco conhecída; é verdade que na época a difusao de obras científicas era reduzida e cheia de peripécias. SÓ em 1572 será publicada conjuntamente com a do sábio árabe. Veremos, a propósito de Kepler, o efeito consíderável que teve esta dupla publícacáo. Deve-se a outro dominicano, Thierry de Freiberg, a paternidade da explicacáo do arco-íris. O facto de ele nao ter formulado a ..boa leí- da refraccáo (que só surgirá tres séculas mais tarde) nao nos deve reter. Por ter descoberto no arco-Iris a sequéncía completa dos efeitos ópticos (composicáo global pela multiplicidade das gotas de água, deslocacóes rectilíneas dos raios do Sol, reflexoes, refraccóes, angulas de aparecimento... ) que o produzem, pode dizer-sc que o dominicano explica o fenómeno. Ele acrescenta ainda a explicacáo do arco secundário que se ve formar, por vezes, acima do arco primário. Retomando o trabalho de Bacon, foí ao erguer frascos de vidro cheios de água acima da cabeca que reparou nas variaeóes de cores. Gracas a este dispositivo, pode fixar com precisáo o valor dos angulas sob os quais aparecem as cores. Na mesma altura, al-Shirazí e al-Farizi dáo urna explicacáo parecida. É a prava da fertilidade das ideias de al-Haytham e de efectivamente de a producáo científica do Medio Oriente nao se ter detido depois de o Ocidente dela se ter parcialmente apoderado. No fim do século XIV, a óptica árabe está longe de se encontrar moribunda: al-Fanzi prossegue os trabalhos do seu ilustre predecessor sobre a cámara escura que Leonardo da Vinci retomará, e propóe urna explícacáo da refraccáo defendendo que a velocídade da luz deve estar na proporcao inversa da densidade dos meios. Dado que fizeram da vista o sentido que permite aceder em primeiro lugar a verdade do mundo, os aristotélicos da Sorbonne desconfiaram de tuda o que consíderavam aparéncias. Isso conduziu-os a urna atitude que pode parecer-nos paradoxal. Apesar de fascinados pelas ilu81
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sóes de óptica, já analisadas pelos Árabes, os sábios medievais, excep-
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tuando aqueles de que falámos, recusaram-se durante mais de tres séculas a considerar as lentes oculares como objecto de estudo. ~As coisas que fazem ver nao sao objectos da críacáo-, dízíam. Resíduos desta resistencia manter-se-áo até ao início do século XVII quando Galileu tentará impor a luneta astronómica ou, mais exacatamente, a realidade do que ela fará ver. Provavelmente descobertas por artesáos vidreiros, as lentes convergentes que melhoraráo a vista do presbita foram utilizadas desde o início do século XIII. Apesar de oferecerem na época um bom modelo para o estudo do cristalino, será preciso esperar pelo século XVI para que seja feito um estudo sério. Curiosa sítuacáo a destes homens que, munidos de óculos, escrevem página após página espessos volumes sobre a visáo sem ver que térn na ponta do nariz a chave da solucao, É preciso acreditar que o problema nao se póe para eles nos mesmos termos que para nós. Nao nos esque~amos que para a maior parte das pessoas a óptica árabe era deseonhecida, e que a concepcáo grega de um quid saindo do olho evita que se interroguem sobre a rnediacáo que a lente ocular opera. Mas isso nao é suficiente para nos convencer que a ausencia de eonsideracáo pelos óculos fosse causada apenas por urna teoria particular do sentido da propagacáo do raio visual. Com efeito, Dante, que abandona em parte a teoria de Arquitas para retomar as teses de Aristóteles poueo apreciadas na época, declara no seu Convivio: .As coisas visíveis chegam ao interior do olho nao realmente mas intencionalmente-, depois, tecendo langas consideracóes sobre a presbitia e os meios de a remediar, diz que é preciso afastar o objecto dos olhos -para que a imagem penetre neles mais ligeira e maís subtíl-, E, no entanto, nao faz qualquer alusáo aos vidros correctivos. Assím, com excepcáo de alguns homens postos em contacto de modo ainda mal esclarecido com a óptica árabe, a óptica medieval mantém, até ao século xv, urna concepcáo escolástica do mundo, na qual a luz, meio comum aos mundos celeste e sublunar, forma superior de qualquer comunícacáo, nao reconhece qualquer perturbacáo, qualquer íntermediário. Trata-se de urna relacáo directa com Deus e, nesta perspectiva, a vista é o sentido por excelencia.
Óptica comercial !
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Saindo das igrejas e dos mosteiros para ir ao encontro dos comerciantes, banqueiros e condottieres, a pintura vai ser o grande vector da transformacáo da óptica e talvez ainda mais do da sua relacáo com a sociedade. Aa vulgarizar os problemas da perspectiva e das su as perversees - as anarnorfoses em particular - , a pintura arranca a óptica aos filósofos e aos teólogos para fazer dela um objecto profano. Por volta de 1500, Leonardo da Vinci refaz as experiencias de al-Haytham sobre a cámara escura, sern podermos no entanto, dizer se ele as conhecia, A partir desse trabalho, identifica o seu funcionamento com o do olho e observa a inversáo da imagem sobre a retina. Precursor 82
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inspirado em numerosos dominíos, o grande pintor-engenheiro assinala no início do século XVI a retomada dos estudos de óptica que, partindo de Itália, váo difundir-se por toda a Europa. Confinados até agora aos studii de alguns clérigos, váo conhecer durante a segunda metade do século XVI urna ampla dívulgacáo, Em 1558, é impressa pela primeira vez a Magia naturalis de Giovanni Battista Delia Porta 0534-1615). Exito considerável! Sempre aumentada, a obra conhece numerosas edicóes: vínte e tres latinas e mais de urna vintena em línguas vulgares (francés, italiano, espanhol, holandés, árabe... ). Como o seu título o deixa supor, a Magia naturalis é urna obra em que o espectacular se sobrepóe muitas vezes ao discruso estritamente científico; a vulgarizacáo excessiva talvez fosse necessária, pois o efeito foi decisivo. O importante é que esta exibicáo do maravilhoso e da ..m agia- permitiu a apresentacáo de numerosas consideracóes sobre as lentes. Isso mudou a atitude da ciencia da época perante estes objectos; eles tomam-se rapidamente o problema central da óptica. E é através de vidros de todas as espécies que se renova o estudo da refraccáo, Em 1593, Delia Porta publica a sua segunda grande obra de óptica, o De refractione, na qual reúne todos os estudos relativos a diversos fenómenos: formacáo da imagem retiniana, lentes cóncavas, convexas esféricas, arco-íris. Mas as suas explicacóes sao multas vezes atrasadas relativamente as dos Oxfordianos ou dos Alemáes do século XIII. Isso sublinha, se ainda fosse necessário, o carácter extremamente confidencial dos seus trabalhos. Em Delia Porta, a concepcáo do raio luminoso é muito confusa e a da composícáo punctifonne da imagem, exposta por al-Haytham, nao se tinha ainda definitivamente imposto, enquanto as obras do sábio árabe, acopladas as de Witelo, tinham sido publicadas ero Basileia, há mais de vinte anos. No conjunto, este meio século viu a paisagem óptica transformar-se consideravelmente. Os problemas, as solucóes, as ..rnaravilhas-, os aparelhos saíram do seu confinarnento para se tornarem públicos. Em 1590, a primeira luneta de lentes divergentes é fabricada em Itália. E em 1571, nasce numa pequena aldeia do Wurtemberg aquele que vai fundar a óptica moderna: Johannes Kepler.
Kepler e a óptica barroca
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Em 1604, o grande astrónomo alemáo dedica a Rodolfo 11, arquiduque da Austría, rei da Boémia e da Hungria, a obra que acaba de terminar e cuja composícáo o ocupou durante vários anos, os Paralipómenos a Vitélio. Aborda aí a parte óptica da astronomia ande se colocam dais problemas: a refraccáo pela atmosfera da luz dos astros e a dirninuicáo do diámetro da Lua nos eclipses do Sol. Reconhece-se nestas preocupacóes o ressurgimento das dos Alexandrinos. Leitor atento de al-Haytham e de Witelo, Kepler compreendeu, ií semelhanca do dinamarqués Tycho Brahé 0546-1601), a influéncia considerável dos fenómenos ópticos por altura das observacóes astronómicas. 83
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Lembrerno-nos de memória que sao as observacóes deste último, notáveis pela sua precísáo, que permitiráo a Kepler estabelecer as suas leis astronómicas sobre bases perfeitamente seguras. Nao podemos deixar de nos surpreender com esta lígacáo recorrente entre a óptica e a astronomia. Mais urna vez, a refraccáo, para a qual Brahé acaba de estabeleeer novas tabelas, é o problema chave da observacáo. No seu volumoso Iivro, modestamente qualificado de suplemento ao de Witelo, Kepler vaí expor, numa langa sequéncía de definicóes, proposícóes, dernonstracóes, digressóes e descrícóes de dispositivos experimentais, a sua concepcáo global da óptica. Na ocasiáo, relata, criticando-as, as teorias antigas, lembra as de Alhazen e de Witelo, retoma as tabelas de refraccáo destes últimos e as de Brahé. Iniciados, em 1600, com um estudo da cámara negra como símulacáo do dificil problema do eclipse, os Paralipómenos váo engrandecer-se consideravelmente com todos os domínios da óptica física e matemática, sem contar com as consideracóes metafísicas. Aa fazer da esfera a imagem da trindade divina, que se toma o arquétipo da luz difundindo desde o seu centro para a superfície segundo todos os seus raios que se propagam ínstantaneamente até ao infinito, Kepler expoe as su as concepcóes da natureza da luz, assinala acessoriamente as relacóes desta com o calor e faz do Sol, «carpo no qual reside a faculdade de comunicar com todas as coísas-, o centro do mundo. No seu Astronomia Nova, ande Kepler desenvolve, em 1609, urna teoria da atraccáo entre os carpos, diz que o Sol «emite na amplitude do mundo urna espécie imaterial do seu corpo, análoga a espécie imaterial da luz». Numerosos historiadores das ciencias surpreenderam-se que, baseado nesta sernelhanca e por ter reconhecido na propagacáo da luz a lei do inverso dos quadrados das distancias, Kepler nao tenha proposta urna lei da atraccáo análoga. Correndo o risco de sermos sentenciosos, lembremos apesar de tuda que a evidencia a posteriori é o guia mais enganador do historiador. Se o camínho seguido por Newton nos parece hoje «natural", preenchido como é por milhares de passos, ele simplesmente nao existia na época de Kepler; e quando Auguste Comte escreve sobre Kepler que «as consíderacóes metafísicas atrasaram consideravelmente a sua caminhada-, ternos o direito de perguntar o que é um atraso quando nao sabemos para onde vamos. Por outro lado, o próprio Kepler se interroga acerca desta possível analogia que ele acaba por rejeitar. Para ele, a lei fotométrica nao se pode aplicar a virtude motriz do Sol sobre os outros planetas. Porque ele sustenta que esta vis motrix, aplicando-se tangencialrnente, só pode diminuir linearmente (quer dizer, proporcionalmente a 1/r, em que r é a distancia entre o Sol e o planeta considerado), enquanto a luz difundindo-se a superficie diminui superficialmente (quer dizer proporcionalmente a 1/r2) . Isto é urna «evidencia» incontomável para o astrónomo do inicio do século XVII. Curiosamente, os lacos profundos entre a astronomia e a óptica, que se impunham quando se tratava de experiencias e de observacóes, dissolviam-se na abordagem de problemas que a natureza da luz e da atraccao colocavam! 84
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AB descobertas apresentadas nos Paralipómenos sao imensas. Sobre o calor, aprendemos que a luz aquece os corpos mais ou menos consoante eles sao negros ou brancos; que este calor nao é material. A visáo binocular é compreendida sob todos os seus aspectos de óptica geométrica. Gracas ao triángulo medidor, a posícáo das imagens no espelho é definitivamente explicada. Só, ou quase, a refraccáo resiste a esta maré na qual todas as antigas questóes encontram urna resposta. Dando provas de urna rara generosidade intelectual, Kepler expóe profusamente, e declara na sua dedicatória ao rei Rodolfo 11: -Como era' preciso dar urna explicacáo completa da vísáo tal como acontece na refraccáo, nos simulacros de objectos vistos e nas cores, nao nos devemos surpreender que eu tenha feíto dígressóes [...l, a propósito das seccóes cónicas [...J, a propósito das rnaravilhas ópticas [' . .J, a propósito da natureza da luz e das cores e ainda sobre outros assuntos, Mesmo que estas questoes nao contribuam ero nada para a astronomía, merecem ser estudadas por si mesrnas-. É um enorme caldeíráo ande se misturam todas as herancas: -Realizei este trabalho imenso e austero, aprofundando até ao cerne questóes negligenciadas desde há séculos ern que cada urna poderia dar urn livro particular». Depoís acrescenta, dírigindo-se sempre ao monarca: cada um destes trabalhos tería dado origem -a outros tantos subsídios a outros que nao eu-. Porque ele tero perfeita consciencia da colossal tarefa que acaba de assumir e, comparando-se ao rei em guerra contra os Turcos, apela a generosidade do príncípe: -Assim, 0;10 mais recearei que o inimigo mais pernicioso da ciencia, a indigencia, me abrigue a abandonar, constrangido pela fome, esta tarefa que é a mínha, esta fortaleza confiada a minha honra; e nao terei qualquer dúvida que V.¡ Majestade me fomecerá em tempo oportuno os socorros e os víveres cujo envio me permítíráo sustentar o cerco [... J». Notemos de passagem que toda esta langa metáfora estratégica nos faz compreender a mutacáo do estatuto do sábio desde a época dos Franciscanos e dos Dominicanos do século XIII. Para lisonjear o príncipe neste século de rnecenato, o sábio deve apolar-se -neste único pensamento, digno de um alernáo, que é o de morrer por um tao grande príncipe». Mais tarde, no seu Astronomia Nova, suplicará ainda a -Sua Majestade que constate que o dinheiro é o nervo da guerra e que queira por bem ordenar ao seu tesoureiro de entregar ao seu general as somas necessárias para o recrutamento de novas tropas». Apoiado nos seus sucessos na explícacáo da reffexáo, conduzido por urna análise etimológica dos termos gregos e latinos que torna m próximos os vocabulários da reflexáo e da refraccáo, tenta identificar esta última com reflexóes em espelhos de superfícies muito particulares, o que nao consegue, aliás, definir exactamente. Procura entáo, sístematícamente, a partir da dimensáo das refraccóes, a relacáo de um meio coro outro, Finalmente, retomando Alhazen, concluí pela proporcionalidade entre os dais angulas, aproxímacáo quase exacta para os pequenos angulas, portanto, para a astronomia. Mas ísso continua a ser insuficiente para os outros fenómenos, e a refraccáo resiste sempre a este impressionante esforco em que, -suando 85
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e esfalfando-se, ele seguiu os traeos do Criador», Apesar da enormidade do trabalho, esta revísáo dos fenómenos ópticos nao é exaustiva e, em todo este conjunto, Kepler só se refere as lentes convergentes para as comparar ao cristalino. irn) ,
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Kepler nao conseguiu chegar a le¡ da refraccao porque em vez de considerar o ángulo n' o r comparando-o com considera FO} que é o ángulo de desvio que interessa aos astrónomos. Esta astronomía, que jnctrou o sábio, oculta o resultado multo perto da sua solucáo.
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Na mesma época, os fabricantes holandeses de óculos comecam a fabricar lunetas astronómicas segundo o modelo italiano de 1590. Cinco anos mais tarde, em 1610, Galileu faz deste instrumento, simples curiosidade da «magia narural-, a última alavanca que arruína o edificio peripatético. Nao é preciso sublinhar mais a influencia considerável do Mensageiro dos Astros; ao expor as descobertas feitas gra~as a luneta, Galileu desvenda neste livro uro céu desconhecido no qual se erguem novas estrelas. Sabe-se que, apesar das suas sucessivas alíancas com os mercadores, os burgueses, a nobreza e alguns dignitários da Igreja, Galileu teve de lutar sobretudo contra o peripatetismo presente na Igreja e omnipotente na Universidade. Daí resultou a íntímacáo de 1616, depois a condenacáo de 1633; mas isso é outro assunto. Para a história restrita da refraccáo, a contribuícáo de Galileu é um tanto fraca; no entanto, a utilizacáo da iuneta permitindo a descoberta dos satélites de Júpiter terá um efeito inesperado sobre as teorias da luz. De facto, foi gracas aos satélites descobertos por Galileu que Ocaiüs Rómer poderá, em 1675, dar a primeira medida da velocidade da luz 308000 km/s, culminando assim a disputa bimilenar sobre a propagacáo instantánea ou nao. Apesar de algumas reticencias, Kepler compreende rapidamente o interesse da luneta de Galileu. Escreve em 1611 um tratado sobre as lentes, a Dióptrica, no qual é exposto pela primeira vez o princípio do tclescópio. É urna obra clara e simples que beneficia da dificil gestacáo dos Paralipómenos e ande sao plenamente exploradas as consequéncias da óptica geométrica e dos princípios de reflexáo e de refraccáo formulados sete anos antes, Apesar de a lei da refraccáo ainda nao estar estabelecída, os funcionamentos de todos os aparelhos ópticos estáo aí perfeitamente descritos. 86
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Poderíamos, a propósito, interrogar-nos com um poueo de impertinencia, acerca da -utilidade- de urna leí da refraccáo, na medida em que todos os mistérios que ela será capaz de revelar alguns lustros mais tarde nos escritos de Descartes tinham sido resolvidos. Poderíarnos também estender esta impertinencia a -revolucáo- que representarla o afundamento das concepcóes ópticas antigas. Será devido ao facto de Galileu obrigar os -decísores- a dar urna olhadela pela luneta? Será a vitória do -génio barroco» de Kepler que, misturando todas as herancas, pode propor um novo -paradigma-? Ou ainda a de um Delia Porta, vulgarizador de sucesso, que permitirá o amadurecimento de ideías novas? A menos que nunca tenha havido ruptura quer fosse ela ideológica, epistemológica ou sociológica? Na sua Historia da Luz, Ronchi escreve que, um poueo menos de um século antes de aparecer a Dióptrica de Kepler, num mosteiro perdido de Pouilles, um abade de Messina, Francesco Maurolico, termínava em 1523 urna pequena obra de óptica que só será publicada em 1611. Nao é estranho encontrar com oitenta anos de avance a exposicáo de numerosas descobertas feitas por Kepler, assim como urna concepcáo da luz e um estilo de dernonstracáo bastante próximos? Nao se trata de por em causa a honestidade de Kepler, que cita abundamente os seus predecessores, atribuindo-Ihes mesmo, por vezes, méritos que nem sempre tiveram. Para maís, a obra de Maurolico nao estava publicada e, segundo Ronchi, que lhe consagra varías páginas, só alguns dignitários da Igreja teriam tido eonhecimento dela. Seria entáo necessário por a hipótese, a falta de um conhecimento directo, de urna fílíacáo eomum. Sabemos que em pleno século XIV a óptica do Médio Oriente, que teve o destino de todos os grandes centros urbanos da época, ainda era muito activa. Um único facto liga o abade da Itália do Sul e o astrónomo alemáo: no fím do século xv, o pai do primeíro fugía de Constantinopla, invadida pelos Turcos; um século mais tarde toda a Europa de Leste, onde vivia o segundo, lutava contra eles. Será possível imaginar que esta florescente óptica islámica, seguindo a sorte diversa das grandes cidades do Oriente, tenha chegado ao Ocidente com as tropas da Turquia? Seria preciso reconhecer entáo, sob o argumento da ruptura, o efeito da nossa ignorancia. Sob esta hipótese arriscada, a queda de Constantinopla adquiriria um sentido novo, e nisso nao encontraríamos a menor ironia da históría.
A -inuersdo- cartesiana É preciso ser um francés do século xx para desconhecer que, por volta de 1620, o holandés Willebrord Snell, dito Snellius 0591-1626), coroava o edifício kepleríano ao estabelecer a lei da refraccáo que tem o seu nome em todos os outros países do mundo. Nas últimas notícias, a guerra continua acesa. No artigo -Descartes (leí de -). do Grand Larousse encyclopédique o nome de Snell está ausente, tal como o de René Descartes no artigo -Snell's lau» da Encyclopaedia Britannica.
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A primeíra parte da história da refraccáo acaba, pois, no Inicio do século XVII. Como vimos, quase todos os problemas de óptica elementar e instrumental em que a refraccáo serve de explicacáo de base encontraram urna solucáo, E, curiosamente, foi no momento em que a ferramenta ..refraccáo- deixou de ser útil que apareceu a formulacáo da lei da refraccáo que nao mais mudará: A relacáo de sen,,: é constante qualquer que seja o angula i. sen t !en)
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Tendo as consequéncias desta lei sido tiradas mesmo antes da sua enuncíacáo, gracas el utílízacao de tabelas extremamente precisas, a principal questao que se coloca consiste em compreender a sua razáo. Neste primeiro terco de século dá-se urna reviravolta que vai durar muito tempo: já nao se trata de saber o que faz a refraccáo, mas o que a faz. Em consequéncia disso, reaparecem em primeíro plano os problemas da natureza da luz. Nesta mudanca de perspectiva, a lei de Snell, que era a culmínacáo da história da óptica, torna-se, na exposíde Descartes, a pedra angular de urna óptica desernbaracada de qualquer génese, em contacto directo com a natureza por intermedio apenas da razáo, Se a barbárie se caracteriza por urna recusa sistemática da história, é preciso nao ter medo de afirmar que o aparecimento, há trezentos e cinquenta anos, do Discurso do Método Seguido de Tres Ensaios: a Dióptrica, os Meteoros e a Geometria é o acto bárbaro - o que nao nega a sua necessídade - que instituí o racionalismo científico. Todo o trabalho dos predecessores é apagado, negado quanto a sua utilidade. Pode Ier-se, por exemplo, na sexta parte do Discursa. .. Nao me gabo de ser o primeiro inventor de algumas (descobertas), mas que nunca as recebi nem pelo facto de elas terem sido dítas por outros, nem pelo de o nao terem sido, mas a penas pelo que a razáo me persuadiu delas-. Glória a razáo pura, basta a Descartes raciocinar um pouco!, e dais mil anos de trabalhos e de descobertas forarn apagados para serem reescritos segundo urna nova ordem.
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Descartes, no Oitavo Discurso acerca dos Meteoros, segundo ensaío do Discurso do Método, atribui ao seu método -conheclmentos que aqueles cujos escritos possuímas nunca nveram-. Subllnhamos, allás, esta atitude de Descartes que consiste em ocultar as descobertas que o precedem. -Porque as minhas opiníóes, nao as justifico como novas, poís, se conslderarmos adcquadamente as razóes, tenho a certeza de que as achatemos tao simples e tao conformes com o senso comum que pareceráo menos extaordínárlas-.
E algumas linhas mais adiante: -Se escrevo em francés que a língua do meu país, em vez de latim que é a dos meus preceptores, é porque espero que aqueles que só se servem da sua razáo natural absolutamente pura ajuizaráo melhor das minhas opiníóes que aqueles que só créem nos livros antígos-. Nao nos equivoquemos, Descartes é tudo menos um ignorante; ele conhece perfeitamente Kepler, Witelo e al-Haytham, assim como as teorias do arco-íris de De Dominícis retomadas de Thierry de Freíberg, e mais, as complicacóes sobre os meteoros, como as de Froidmont, sao na época estudadas em todas as escolas ... E no entanto, todos estes sábios e muítos outros nunca seráo citados no Discurso e os Ensaios, enquanto as suas descobertas pulularn aí por todos os lados. A estratégia de Descartes é clara: nao quer reconhecer qualquer heranca, só seráo honrados, com urna rnencáo particular, um ..chamado jacques Métius que nunca estudara- e o padre Maurolico pouco conhecido no mundo dos sábios, e que só é citado para ser criticado. É, pois, impossível considerar o Discurso de outra forma senáo como um manifesto euja palavra de ordem seria: -do passado facamos tábua rasal- (O leitor reencontrará esta estratégia noutros ..génios fundadores.., Lavoisier, por exemplo), Procurámos demonstrá-lo: na medida em que é feíta por homens, em contextos particulares, ern funcáo de herancas mais ou menos bem conhecidas, nao existe revolucáo na históría da óptica. O que aparece com Descartes nao é urna revolucáo científica, mas antes urna revolucáo no modo de exposicáo dos resultados. Todas as descobertas estáo presentes, mas todos os actores desapareceram. Nesta nova narrativa, a história é dissolvida, a natureza torna-se a única referencia, a razáo governa a experiencia, o bom senso a erudicáo, A língua da burguesia substitui a dos clérigos e dos sorbonianos, universalizando o julgamento científico. Que a natureza possa ser descrita de acordo corn as regras da razáo é um mistério que é preciso admitir, tal como a história de todos os que tornaram possível o trabalho da razáo é totalmente ocultada pelo novo filósofo e jaz nos alicerces da nova ciencia. De urna penada, fundamento epistemológico, alíanca social e sentido de ínterpretacáo dos factos invertem-se. A natureza, o bom senso e a íntuícao váo editar urna natureza da luz, da qual decorrerá urna lei da refraccáo que governará por deducáo a ínterpretacáo de todos os fenómenos. Na mesma época, a universidade peripatética acaba por se dissolver ao participar nas intensas cacas as bruxas, nunca as fogueiras foram ero tao grande número, os jovens dentistas formam-se nos é
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Jesuítas e, em torno do padre Marin Mersenne 0588-1648), instituí-se urna das primeiras redes de comunícacáo científica da Europa. A transformacáo da prática científica é considerável. É, evidentemente, devida ao facto de existirem novas instítuícóes que contribuem com dinheiro, seguranca e ínformacáo, mas também ao discurso cartesiano. Aa desconsiderar a génese dos resultados, Descartes inventa uro novo tipo de sábio que, podendo ser ignorante da história da sua ciencia, pode praticá-la como um jogo lógico cujas pecas sao produzídas pela natureza, agenciadas apenas pela razáo. Este hornem novo, muitas vezes maís ignorante e arrogante que sábio, escravo da sua prática ao ponto de ter esse nome, é o dentista. Encontramos no fim do Discurso as -tábuas da leí» desta nova prática: «Que tenham a paciencia de ler tuda com atencáo e espero que fiquem satisfeitos: porque me parece que as razóes se sucedem urnas as outras de tal maneira que as últimas sao demonstradas pelas primeiras que sao as suas causas; estas primeiras sao-no reciprocamente pelas últimas que sao os seus efeitos. E nao se deve imaginar que cometo aqui o erro que os lógicos chamam de círculo; porque a experiencia torna a maior parte destes efeitos muito exactos, entáo as causas de que os deduzo nao servem tanto para os provar como para os explicar; mas, muito pelo contrário, sao elas que sao provadas por eles-. Está aqui exposto com toda a clareza o antecessor da cadeia' - hipótese/princípios lógicos/resultados/controlos experimentais/validacáo das hipóteses - a qual se pretende reduzir actualmente todo o conhecimcnto científico. Sem qualquer alusáo aos que o precederam na via deste método, Descartes traca ex nibilo o círculo mágico da ciencia do qual estáo definitivamente excluídos a história e o mundo. Repitamo-lo, com o risco de nos tornarmos cansativos, o grande genio de Descartes é a sua ausencia total de escrúpulos face as teorías anteriores. Ele pilha, une, cola, inverte, desvia pedacos, restos, ideias para fazer deles o seu manto, corta o que o incomoda, empola o sentido das palavras, estica-as ou encurta-as consoante as suas conveniencias, resume em tres línhas tres séculos de trabalho, estende-se sobre urna bagatela durante vinte páginas. A sua Dióptrica e um bom exemplo disso. o que neste ensaio, anexo ao Discurso, foi mais criticado, tanto pelos historiadores das ciencias como pelos próprios cartesianos, foi o discurso primeiro sobre a natureza da luz. Também é a única contribuicáo do filósofo que poderia parecer orginal. Tres concepcoes sao apresentadas sucessivamente. A luz seria ao mesmo tempo: um bordáo, um fluido muito subtil, pequenas esferas as reviravoltas. Todas estas suposícóes que é inconveniente considerar contraditórias, já que a preocupacáo de coeréncia global nao parece ser no filósofo da razáo urna preocupacáo maior, servíráo, cada urna por sua vez, para resolver diversos problemas. O da sensacáo? Nada de mais simples: -Decerto que já vos aconteceu andar por vezes de noite sem archote, por lugares um pouco difíceis, sendo necessária a ajuda de um bordáo para vos conduzir [... Jo.. Maravilhosa explícacáo em que a noite mais escura lanca o dia sobre a luz! 90
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quid dos pitagóricos nao está, aliás, muito longe, Mas o ar entre o olho e o abjecto está muito longe de ter a consistencia da madeira. Entáo o que acontece a substancia do intennediário? -Vejam urna cuba na altura da vindima, cheia de uvas meio pisadas L..], Pensem que nao havendo qualquer vazio na natureza [...] é necessário que os poros estejam cheios de qualquer matéria muito subtil e muito fluida l. ..} comparados coro o vinho dessa cuba L.. ] deveis pensar que os raíos desta luz nao sao outra coisa scnáo as linhas, segundo as quais tende esta accáo-. É, metaforicamente, vinho que perturba os espíritos, a teoria do diáfano de Aristóteles. Descartes nada diz sobre isso e passa a outro nível, porque, nao o esque~amos, o devir de um raio é sempre quebrar-se contra um obstáculo, curvar-se num campo de gravítacao como sugere Descartes. É por isso que, -quando encontram algum corpo, estáo sujeitos a ser desviados por ele, ou amortecidos, da mesma maneira que o é o movímento de urna bala". É a concepcáo de al-Haytham, Gracas a ela, a luz tornada numa pequena bala obedecerá as leis do movímento, sobre as quais trabalha todo o século XVII. Curiosamente controlada pelos esquemas do bordáo e do espírito do vinho, a bala nao se moverá em acto, mas terá simplesmente urna tendencia para o fazer. Paradoxo surpreendente, yermos as leis do movimento explicar os efeitos de urna luz imóvel. Será possível continuarmos a surpreender-nos? Nao foi aquele que pretendia nada dever ao passado que acabou de pilhar por tres vezes a heranca? Nao é o mesmo que exigia fundamentar tuda na razáo, que propóe urna luz ao mesmo tempo sólida como um bordáo, líquida como vinho, descontínua como balas imóveis e, no entanto, móveis? Finalmente, pouco importa que as da luz se apresentem contraditórias; pelo menos neste campo, Descartes mostea-se precursor, pois a física mais moderna tern-nos ensinado a nao nos surpreenderrnos com as presumíveis contradícóes das aparéncias, O essencial consiste em ter modelos suficientes para deduzir de alguns deles os efeltos que a experiencia poderá valldar, Se, por exemplo, pretenderrnos explicar as cores, a luz que é urna bala muito pequena torna-se pelas -necessidades da causa» um pacote de pequenas esferas rolando urnas sobre as outras. Se é preciso demonstrar a lei da refraccáo, é o modelo mecánico que será utilizado. É preciso seguir a demonstracáo em pormenor, para nos persuadirmos da omnipotencia e da -antí-hístorícídade.. da razáo. Quando se trata da refraccáo, a luz, que nao se move, é como urna bala lancada para a água a urna velocidade muito grande por um jogador de péla. Urna bala a que -nem o peso ou a ligeircza, nem a sua espessura, nem a figura, nem qualquer outra causa estranha poderao mudar o curso.. .». Partindo daí, ele explica a refraccáo pressupondo que a tendencia da luz para se mover é menos contrariada na água que no ar: «O que vós deixareis contudo de achar estranho, se vos lembrarcles da natureza que atribuí a luz [... ] um movimento ou urna accáo recolhida numa matéria muito subtil L.. I e que considerarei que, como urna bala, Cela) 91
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perde mais agítacáo ao embater contra um corpo mole (o ar) que contra um corpo duro (a água).» ... o que fará dizer aos sucessores de Descartes que a velocidade da luz é maior na água que no ar, afirmacao que nao tem verdadeiramente sentido segundo a ortodoxia cartesiana para a qual a luz nao teria senáo urna inclinacáo para se mover. Esquema da demonstracáo de Descartes
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círculo que encontramos em cada um dos momentos da explícacáo, que reduzimos aqui ao seu mínimo restrito, permite raciocinar ao igualar o comprimento dos percursos nos dais meíos, a velocidade (ou a tendencia para se mover) torna-se entáo a variável constitutiva do fenómeno.
aumentada de um terco quando Uma bala parte de A no ar a uma velocidade que penetra na água. A componente horizontal permanece ímutável. Como as distancias AB e Bl sao inversamente proporcionais as velocidades, logo GI será um terco mais pequeno que AH e a relacáo CB/BE será constante qualquer que seja o ponto A (se o círculo tem raio 1, CS e BE sao os senos dos ángulos i e r). é
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Dada a influencia de Descartes na evolucáo das ciencias, sabendo finalmente que a lei da refraccáo é provavelmente o único resultado científico que lhe poderíamos reconhecer, interessa saber exactamente se a sua contribuicáo é realmente original, Trata-se de facto de urna dernonstracáo ou será o produto de urna manipulacáo tendente a dissimular a usurpacáo do resultado de Snell, como suspeita Huygens? Nesta perspectiva, é preciso citar integralmente o próprio cerne do -raciocinio-: -Enflm, na medida em que a accáo da luz segue nisto as mesmas leis que o movimento desta bala, é preciso dizer que, quando os seus raios passam obliquamente de um corpo transparente para outro, que os recebe mais ou menos facilmente que o primeiro, eles se desviam de tal maneira que se encontram sempre menos inclinados, sobre a superfície destes carpos, do lado ande está aquele que os recebe mais facilmente, do que do lado onde está o outro: e isto justamente na proporcáo em que nao os recebe mais facilmente como o outro. Sé é preciso prestar atencáo, para que esta inclinacáo seja medida pela quantidade das linbas rectas, como CB ou AH, e EB ou IG l. .. l. Porque a razáo ou proporcáo l. ..] que existe entre as linhas AH e IG ou semelhantes, continua a ser a mesma em todas as refraccóes que sao causadas pelos mesmos carpos". 92
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Que cada uro julgue se podemos chamar a ísto urna dernonstracáo estabelecida sobre -apenas a caza O»; 00 se urna olhadela lancada uro día sobre o rascunho de Snell, por altura de urna viagem a Holanda, nao fixou a proporcáo correcta como uro fim a atingir por todos os meios: sofismas, metáforas ou contradícóes, O todo servindo para dissimular a tautologia: .A lei da refraccáo é demonstrada pelo facto de a proporcáo entre AH e IG continuar a ser a mesma ero todas as refraccóes.., (O que nao é senáo a própria lei.) Podemos actualmente escarnecer sem vergonha desta luz ao mesmo tempo bordáo, vinho novo, e pequenas esferas? Se podemos ser severos quanto aos argumentos físicos de Descartes, nao seria conveniente ser prudente perante o metafísico? Vimos, nas tres comparacóes, tres naturezas totalmente contraditórias: sólida e etérea, continua e descontinua, móvel e imóvel; mas será que vimos bem? Nao seria possível salva-las as tres em conjunto, considerando que correspondem cada urna delas a urna escala cada vez mais fina? E finalmente, ao considerá-las desta maneira, nao veríamos desenvolver-se a história da luz? Ao fazer da Dtoptrica de Descartes urna metafísica da luz, somos tentados a arriscar algumas identiflcacóes. Em primeiro lugar o bordáo pela sua rectidáo regula bem o conjunto da óptica geométrica que precedeu o século XVII, a seguir o fluido subtil suporta as concepcócs ligadas ao éter e as ondas que regeráo as explicacóes dos fenómenos ópticos durante os dois séculos seguintes, enfim os corpúsculos que se agitam e giram anunciam esses fotóes que apareceram no inicio do século xx e que, associados a frequéncías, spins e probabilidades, suportam hoje o conjunto das explícacóes dos fenómenos ligados a luz, Mas se as suposicóes de base de Descartes sao de ordem metafísica, só tém valor se encontrarem o seu sentido profundo no conjunto dos seus pensamentos. Um filósofo do nosso século tentou resolver este problema, Sabemos que Descartes distingue duas operacóes do pensamento: a intuicáo e a deducáo, Ao fazer notar que intueor em latim significa olhar atentamente,' observar, considerar, Michel Serres lembra que na nona regra das Regras para a Conducáo do Espírito (1628), Descartes simboliza a íntuícao, "que nasce apenas da razáo-, por um bordáo de cego. E mais, a intuicáo é nao apenas a base que torna possível o trabalho da deducáo, mas também é a sua resultante. Com efeito, para Descartes, o exercicio frequente de urna cadeia dedutiva percorrida bastante depressa e multas vezes -exercitando o espírito como se exercíta a vista», transforma o movimento da razáo ao longo da cadeia numa compreensáo imedíata: a intuicáo. É o que permite a Michel Serres concluir que, em certas condícóes, o bordáo-íntuicáo é urna cadeía-deducáo na qual os elos desapareceram enquanto unidades índependentes. Esta nona regra, que foi descrita dez anos antes do Discurso unificando deducáo e intuicáo, permite compreender como as tres naturezas da luz, sern dúvida fisicamente contraditórias, sao metafisicamente coerentes entre si no pensamento cartesiano. Talvez seja gracas ao -trabalho.. 93
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deste pensamento que poueas pessoas aeham hoje escandaloso que a luz possa ser considerada sob o duplo aspecto, aparentemente eontraditório, de ondas e de partículas.
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É evidente que as -descobertas- cartesianas nao fecharam as questóes que a refraccáo coloca. Tal como se pode dizer que a fórmula que liga o volume de um sólido a sua rnassa nao ensina nada sobre o espaco e a matéria, a leí de Snell nao esclarece de modo algum a natureza da luz ou as díferencas de estrutura dos -transparentes- atravessados pelo raío. No entanto, a sua existencia mudará multas coisas. Os físicos, tomando o lugar dos artesáos, puderam aprofundar o trabalho de Kepler, Galileu e alguns mais, sobre as lunetas, os telescópios e os microscópios; depoís conceberam com urna precísáo totalmente teórica e urna eficácia acrescida máquinas ópticas que, do infinitamente grande ao infinitamente pequeno, alargaram o mundo visível. Assim dominada, nao quanto a sua natureza mas quanto a medida, a refraccáo, que durante séculos travara a astronomía, vai tornar-se o fenómeno que governará o princípio de construcáo de aparelhos que permítíráo urna observacáo cada vez maís precisa. Nesta perspectiva de eficiencia, nao é por acaso se o -Ensaio de Dióptrica" do Discurso do Método termina coro o estudo -Figuras que devem ter os carpos transparentes para desviar os raíos por refraccáo de todas as maneiras que servem a vista- (Discurso 8), .A descricáo das lunetas- (Discurso 9), -Da maneira de talhar vidros- (Discurso 10). Inaugurando urna dialéctica, que se amplificará, entre a compreensáo dos fenómenos, a afínacáo das leis físicas e o aperfeícoamento dos instrumentos, a lei da refraccáo, as lunetas, microscópíos e telescópios váo fazer aparecer fenómenos novos como a coloracáo das laminas finas, as franjas de Grimaldi, os anéis de Newton, os cristais birrefringentes... e eonceitos novas como a difraccáo, a dupla refraccáo, as interferencias, a polarizacáo ... Subsiste porém que, independentemente dos seus sucessos técnicos devidos a sua validade metrológica, a lei nao revelou nada sobre as -razóes- do fenómeno. Apesar das censuras' que se possam fazer a Descartes, é preciso dizer que, ao procurar justificar -razoavelmente-: a refraccáo, ele quis compreender-lhe o porque. Que tenha falhado talvez nao seja o mais importante porque, na sua tentativa, definiu o campo de reflexáo sobre o qual se fixaráo os seus sucessores, partidários ou inimigos. Porque devemos reconheeer que as explicacóes de Descartes nao satisfaráo mesmo os que, como Maupertuis, se apoiaráo sobre as suas hipóteses. Cerca de vinte e cinco anos depois do aparecimento do Discurso estalou urna importante polémica entre os cartesianos (preocupados em defender um dos mals belos flor6es do seu rnestre) e um dos grandes matemáticos do momento, Píerre de Fermat, co-inventor com Pascal do cálculo diferencial, do cálculo das probabilidades e célebre sobretudo como teórico dos números. Retomando o princípio que afirma que a luz, para ir de um ponto a outro, leva o tempo mais curto - postulando que a velocidade da luz é maíor nos corpos menos densos - o
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matemático provava coro estas hipóteses a exactidáo da leí da refraccáo, Ele fazia-o no firn de urna difícil dernonstracáo de geornetria, cujos princípios estavam todos presentes em Euclides, mas cujo espírito anunciava os cálculos de mínimos e de máximos. Constatando que o resultado -do rnestre- era obtido corn a ajuda de hipóteses tambérn contraditórias, os cartesianos -gritaram pelo milagre de urna mesma verdade ter sido encontrada no firn de dais caminhos ínteíramente opostos-, escreverá Fermat numa carta publicada. depois da sua marte. Mas isso é outra história e seria preciso escrever outra ero que a parada já nao seria a cxactidáo mas a pertinencia. Veremos, entáo, consoante a luz é govemada pela sua natureza suposta (corpuscular Gil ondulatoria) ou por um princípio de mínimo quase divino (tempo, resistencia ou accáo), sábíos como Huygens, Newton, Grímaldi, por um lado, e como Fennat, Leibniz ou Maupertuis, por outro, encontrarem nas causas eficientes ou finais a explicacáo do fenómeno. Estas disputas duraráo mais de um século para verem o triunfo do modelo ondulatório proposto por Huygens ... Será preciso esperar pelo século xx e pela física quántica para que se dissolva o dilema entre a eficiencia e a finalidade.
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contacto entre os meíos 1 e 2. No lempo em que as ondinhas DI chegaram a D 2, as ondínhas A, propagaram-se segundo um ralo R, a frente da onda plana A2D2 tangente as ondínhas, portanro A,A2 perpendicular a A2D2; observamos que: - o ternpo de percorrer D,02 é igual ao de A,A2, donde 010dv, = A,Adv2, com 1'1 e V2 senda respectivamente as velocidades de propagacáo da onda nos meíos 1 e 2;
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A relacáo dos senos é, pois, igual a relacáo das velocidades. A experímenracao, realizada em 1849 por Jean Foucault e Hippolyte Fizeau, mostrará que a velocídade da luz é proporcional ao índice de refraccáo do meío como o sugcrc o argumento de Huygens, metcndo um ponro final na problemática inaugurada cerca de um milénio antes pelo grande sábio árabe al-Haytham. Esta explicacáo ondulatória explica também ourros fenómenos como as refraccóes de vagas na proximidade das margens, ou as das ondas sonoras quando varlam as temperaturas de camadas de ar vizinhas.
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mister dos números nos séculas XVII e XIX CATHERINE GOLDSTEIN
Alguns domínios matemáticos, a teoria dos números em particular, parecem nao ter passado de jogos gratuitos. Aqui veremos o que, tanto nas mudancas internas da disciplina como na sua íntegracáo económica e social, indica e acompanha a transforrnacáo dos amadores em profissionais.
a primeira metade do século
XVII, um conse1heiro no parlamento de Toulouse,. amador de poesias latinas e italianas, anota na margem de urna traducáo latina de um tratado de Matemáticas Gregas que nao é possível «dividir um cubo em dais outros cubos, um biquadrado ern dois biquadrados ou, ern geral, urna potencia qualquer superior ao quadrado em duas potencias do mesmo grau- e que descobriu aí «urna prava verdadeiramente maravilhosa que a margem é demasiado estreita para conter-, Em 1850, um professor de Matemáticas da Universidade de Bratislava publica no volurne XL do fournal für die Reine und Angewandte Matbematih urna demonstracáo geral de que -a equacáo x n + yn = zn nao é solúvel em números inteiros- para expoentes n submetidos a certas hipóteses técnicas; estes trabalhos valeráo ao seu autor ser proposto para urna medalha de ouro na Academia das Ciencias francesa. Amador ou profíssíonal, hornern que joga ou que trabalha, nern sernpre é fácil de catalogar precisamente os que se ocupam de ciencias exceptuando mesmo o caso sedutor, mas mítico, do desconhecido completamente isolado e inculto, a fazer por fora dos caminhos oficiais a descoberta do século; puderam ser classificados de «amadores», segundo a época e o estado da sua disciplina, géneros absolutamente diferentes; leitores oeasionais das revistas de vulgarízacáo científica ou de reeolhas de jogos, consumidores esclarecidos e (ou) apaixonados pela ciencia feita por outros; astrónomos de sábado a noite e botánicos de domingo a tarde a explorarem o céu ou a vegetacáo rasteira el procura de observacóes ou de espécies novas, coleccionadores de dados
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para trabalhos maís oficiais, pesquisadores a tempo ínteíro cujos recursos pessoais pennitem a prática benevolente, mas idéntica em termos de interesse, de formacáo e de publícacáo, do mesmo trabalho quoticliano,
tendo em canta os mesmos critérios, que o desempenhado pelos cientistas pagos pelas universidades ... As relacóes destes -amadores- com os -profissionaís- mais próximos variam, contudo, desde a pura e simples
absorcáo de uma categoria pela outra até a urna relacáo de entreajuda hierarquizada, passando mesmo por uma total índíferenca recíproca ... O duplo exemplo que abre este capítulo póe em cena um tipo particular de ínteraccáo, em que as questóes levantadas pelos amadores fornecem depois de alguns séculas a matéria-prima para o trabalho profissional. Mas como caracterizar e distinguir estas duas etapas? Como se sucedem elas ou se sobrep5em? A escolha das matemáticas, e mais especialmente da teoria dos números como terreno de estudo, é, nesse aspecto, tanto mais interessante quanto é extrema: entre as ciencias, as matemáticas, e entre elas este domínio particular, mantérn com ou sem razáo urna reputacáo de imutável e esplendido isolamento, propício a desencorajar as explícacóes demasiado apressadas sobre o seu desenvolvimento profissional: afinal para que serve a prava que um cubo nao é soma de dois cubos? Ela serve a priori para tao pouco que somos tentados a esquecé-la para apenas contarmos urna história de homens, de ínstítuícoes, de dinheiro. A pertinencia da nota marginal ou do teorema de matemáticas puras estaria entáo reservada a outro género de história ande apenas se trataria deles e onde já nao seriam pertinentes, em contrapartida, o lugar que os albergou ou os homens que os produziram: a margem só seria famosa devido as nostalgias que engendra (sbastaria que ela tivesse sido maior e que a prava figurasse aíl-), o jornal já nao seria mais que urna ocasiáo para contar divertidas anedotas sobre o seu fundador. Mas estas duas histórias possíveis, ern que cada urna seria para a outra a sua -pequena história-, o seu reservatório de pormenores pitorescos, a sua vertente soalheira, sao apenas urna: existem Iacos, e sao detectáveis, entre urna disciplina, as formas sociais que a moldam, os problemas que ela inspira, as fontes de que se alimenta, os modos de expressao, de comunicacáo, de proteccáo que adopta. Para além das idiossincrasias é, pois, tanto no seu tempo como nas suas matemáticas que é preciso apreender, para melhor os distinguir, o
Horno ludens e o Horno faber.
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que se passa, entáo, com essa nota manuscrita rabiscada a margem de um tratado? Mais que as respostas forcosarnente incompletas que dá, reteremos dela as questóes que levanta: quem escreve ou fala de números no século XVII? Em que fontes váo beber? Sob que formas e em que quadro se exprimem? Como e em que medida, enfim, as matemáticas em jogo reflectem ou produzem essas respostas particulares? 98
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MISTER DOS NÚMEROS NOS SECULOS XVII E XIX
Homens e matemáticas Um conselheiro no Parlamento de Toulouse, Pierre de Fermat, anota um exemplar, traduzido ero latim e abundantemente comentado por Claude Gaspard Bachet de Méziriac, da Aritmética de Diofanto ... Fermat é conhecido actualmente como matemático, inventor tal como Descartes, da geometría analítica; mas era tambérn membro da Comissao do Edicto em Castres e do Conselho-Geral de Beaumont. O nobre Bachet de Mézíríac, neto de uro conselheiro de Henrique 11, deve aos seus talentos de mitólogo uro lugar na Academia Francesa poueo depois da sua criacáo por Richelieu em 1635. É entre os diplomatas, como Kenelm Digby, os conse1heiros nos parlamentos, como Pierre de Carcavi e Francois Viéte, e na Casa da Moeda, como Bernard Frénicle de Bessy, os engenheiros ao servíco do reí ou de uro príncipe, como Raffaele Bombelli e Philippe de Girard, os tutores ou secretários de nobres, como Jean Beaugrand ou Simon Stevin, ou até soldados, como René Descartes, e religiosos, como Antaine de Lalouvere, Marin de Mersenne e jacques de Billy, que é preciso procurar, nos séculas XVI e XVII, os autores ou os relatores das pesquisas sobre os números. A írregularidade dos seus trabalhos matemáticos testemunha por vezes os imperativos da sua vida social e dos acontecimentos políticos. As formas da actividade matemática, paralelamente, nao estáo unificadas no século XVII: aliás, talvez seja na sua multiplicidade, ou mesmo nas suas contradicóes, que melhor se exprime a sua específicídade. Acabámas de encontrar urna sua rnanífestacáo importante, a traducáo das obras da Antiguidade. Prosseguindo o trabalho encetado no mundo mediterránico, os eruditos decifram, traduzem para Iatim, chegam mesmo a restaurar a partir de fragmentárias e confusas indícacóes contidas nas compilacóes tardías, os principais matemáticos gregos, Euclides, Apolónio, Arquimedes, Diofanto ... É claro que se trata da reapropriacáo da heranca antiga, de a assimilar e de a compreender, mas também, cada vez rnaís, de a criticar e de a recriar ao gosto da época. Esta fonte prestigiosa de problemas nao é, de modo nenhum, a única: os engenheiros, os artilheiros, os especialistas da navegacáo e das fortifícacóes utilizam resultados matemáticos e, por vezes, desenvolvem-nos. Outra corrente ainda ínscreve-se na tradicáo -cossista- (de cosa, a coísa, o desconhecido) que charnaríamos hoje -algébríca-, herdada dos Árabes e fortemente implantada prímeiro na Alemanha e na Itália; os cossistas, que também dáo consultas a comunidade comercial, privilegiam os métodos cficazes apresentados sob a forma de problemas concretos considerados como exemplares. Urna forma completamente diferente de paíxáo pelos números exprime-se nas compílacóes esotéricas: procuram-se nas suas propriedades ocultas os reflexos dos segredos mágicos do mundo... Com os comentários eruditos e os manuais de todas as espécies coexistem também as recolhas de jogos que regurgitam de pequenas adivinhas numéricas dissimuladas sob disfarces variados consoante as modas e os públicos. No prefácio da sua Recreation matbématique, composée de plusieurs problémes plaisants et facetieux, en faict d'Aritbmeticque, Geometrie, Mecbanicque, Opticque et autres porties de
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ces belles sciences, O jesuíta Lerrechon afirma que ..a nobreza nao estuda a Matemática para engordar a bolsa ou para o ganho que dela espera, mas para contentar o seu espírito, para empregar honestamente o tempo e ter com que entreter urna companhia com conversas convenientes e no entanto recreativas». As Femmes savantes nao estáo longe .. , Alguns nomes esscnciais para o nosso propósito Diofanto (século IV d.C), Alexandria Ramus, Pierre La Ramée, díro 0515-1572), Paris Bombelli, Raffaele 0522-1572), Itália Dee, John (1572-1607), Inglaterra Xylander, Wilhelm Holzmann, dito 0532-1576), Heídclberga viere, Prancoís 0540-1603), Bordéus Bachet de Méztríac, Claude-Gaspard 0581-1638), Liáo Mersenne, Marin de 058&-1648), París Descartes, René 0596-1650), París, Holanda Carcaví, Pierre de 0600-1684), Toulouse, París Fermat, Pierre de 0601-1665), Toulouse Roberval, GilIes Personne de 0602-1675), Paris Billy, jacques de (1602-1679), Champanhe Frénic1e de Bessy, Bernard (1605-1675), Parts Wallis, John 0616-1703), Oxford Pascal, Blaise 0623-1662), Paris Huygens, Christiaan 0629-1695), París, Holanda Leibniz, Gotrfrted Wilhelm 0646-1716), Hanóver A familia Bernoulli, Basileía Goldbach, Christian (1690-1764), Sampetersburgo Euler, Leonhard 0707-1783), Berlim, Sampetersburgo Lagrange, Louis de 0736-1813), Turim, Berlim, Paris Legendre, Adrien-Marie 0752-1833), París Gauss, Karl Friedrich 0779-1855), Gotínga Humboldt, Alexander von (1769-1859), Prússia Crelle, August Leopold 0780-1855), Prússía jacobí. Carl (1804-1851), Berlim, Conisberga Dírtchler, Gustav 0805-1859), Berlim, Gotinga Kummer, Brnst Eduard 0810-1893), Bratislava, Berlím Borchardt, Carl Wilhelm 0817-1880), Berlím Bísensteín, Perdinand Gotthold Max 0832-1852), Heldelberga Kronecker, Leopold 0823-1891), Berlim
Prazer do cálculo astucioso e rápido, decífracáo subtil de manuscritos antigos, divertimento ande os mistérios herméticos atraern, esta mistura quase nao nos surpreenderia se nao acontecesse nas mesmas bibliotecas, ou mesmo no interior de urna única cabeca: john Dee, versado em alquimia e -numerología-, também era conselheiro para as viagens de exploracáo e de navegacao, Bachet de Méziriac nao se contenta em traduzir com sageza Diofanto: os seus Problemes plaisans el delectables qui seJont par les nombres, urna mina de jogos de sociedade e de enigmas numéricos publicada em 1612, seráo reeditados até 1959! Vindos de horizontes intelectuais e sociais tao diferentes, solicitados por preocupacóes tao apostas, conseguem estes homens, no entanto, entender-se? E será que procuram mesmo esse entendimento? 100
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Margens e redes
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]á ternos duas índicacóes sobre as trocas matemáticas, a primeira vista contraditórias: ~A margem é demasiado estreita para conter (a demonstracáo)», escreve Fermat. Mais do que procurar qual a prava que assim foi ocultada, o historiador gastaría de compreender se e porque ela o foí verdadeiramente: que solidáo total OU, mesmo, que ardente solipsismo autorizaram uro matemático a nao escrever ero parte alguma urna tao -maravílhosa dernonstracáo-? A segunda pista, pelo contrário, é a evidencia deste exemplar de Díofanto, aparecido ero 1621, nas máos de Fermar: pelo menos houve escritos que foram transmitidos. Como? As publícacoes no século XVII ainda nao sao nern muito fáceis nem muito difundidas: multas vezes é necessário ser o próprio a controlar (ou mandar controlar por um amigo) a edícáo, para obter um resultado conveniente, as suas próprias custas: as obras de Viete só seráo editadas muito depois da sua morte, e as notas marginais de Fermat chegaram-nos gracas ao filho Samuel que reeditau em 1670 a Aritbmétique, aumentada com os famosos comentários marginais. Vistas estas difículdades, só se publicam ern geral tratados completos ou, é claro, comentários a urna traducáo ... As condicóes precárias da transmissáo e da ínformacáo sao, aliás, correntemente postas em relevo nas cartas, como esta de Fermat a Mersenne: -Ficaría muito agradecido, escreve ele, por saber por vosso meio dos Tratados ou Livros Novas de Matemática que apareceram nos últimos cinco ou seis anos, l. ..] E dir-vos-ei, no entanto, que restabeleci completamente o Tratado de Apolónio: De loeis planis. Há seis anos que dei a Monsieur Prades, que talvez conheca, a única cópia que fiz com a minha própria máo-, Mas também aí podemos detectar a importancia das relacóes pessoais, tanto directas como epistolares. A ausencia de urna tradicáo unificada das matemáticas e, em particular, das ínvcstigacóes sobre os números, indicava já que o lugar ande se instruir, reflectir, informar, é essencialmente um lugar privado: se os colégíos jesuitas, entre os quais o de La Fleche ande Descartes foí aluno, dedicam importancia as matemáticas, as universidades francesas permanecem durante muito tempo a margem, relativamente as novas correntes. É, portanto, através de contactos pessoais que é possível ser-se informado dos problemas, mesmo ... dos livros recentes. Foi provavelmente por alunos de Viete, por exemplo, que Fermat travou conhecimento com os trabalhos deste último e foi pelo seu antigo colega no Parlamento de Toulouse, Carcavi, que pode estabelecer relacóes com Mersenne. Trocando cartas sobre todas as espécies de assuntos filosóficos e científicos com correspondentes distribuídos pela Europa inteíra e até Turquia, Mersenne era um conhecimento de preco inestimável. Também reunia no seu convento dos Minimes, praca dos Vosges, urna prestigiosa companhia incluindo Gilles Personne de Roberval, os Pascal, Hobbes, Descartes e Gassendi. Academias deste género floresciam na Europa nesta época: inspiradas pelas suas homólogas italianas, nascidas no século XVI de iniciativas privadas, na senda de urna renovacáo platónica, dirigidas entáo contra o Aristóteles da Igreja e da Universidade, estas sociedades
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UNIVEr,SID/lDE FEDERAL DO RIO GRANDE DOSUL BIBLlCiTfCA SF.TORIAL DE CIÉNCIAS SOCIAiS [HUMANIDAO¡;;t-
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cultivadas especializaram-se pouco a pouco, algumas na poesía, outras na arte, outras ainda na exploracáo dos fenómenos naturais. Consoante a personalidade do hospedeíro, as reunioes podiam ser acornpanhadas de jantares e de concertos, de disseccóes ou de observacóes astronómicas. Em Franca, as mais célebres e as mais produtivas das trocas que se estabe1eceram sem dúvida que foram as realizadas em torno de Nicolas Peiresc, dos írmáos Dupuy, de Mersenne e mais tarde de Pierre Rémond de 'Montmor. Estas amplas redes de correspondencia e os nós de transmíssáo que sao as sessóes das academias tecern, através de todo o país e muito além dele, a comunícacáo matemática: as cartas sao recopiadas cuidadosamente, reexpedidas para fora, por vezes com grande dificuldade: encarregado por Frénicle de um escrito para Fermat, Digby acrescenta ao envio: -Mandei-a copiar pelo meu secretário, porque nao a poderias ler; (Frénícle) escreve habitualmente em pedacos de papel e tao depressa que só ele próprío pode ler o que escreveu-. Em caso de necessídade, os interlocutores publicaráo versees retocadas (a seu gesto) das cartas recebídas, que, algumas vezes, sao o único vestigio nos nossos días: foi assím composto o Inuentum Novum, as Nouvelles découvertes en la science de I 'analyse recueillies par le réuérend pére
jacques de Billy prétre de la société de fésus dans les diverses /ettres qui tui ont été envoyées a différentes époques par Monsieur Pierre de Fennat conseiller au parlement de Tou/ouse, obra de título muito explícito que
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contém alguns desenvolvimentos de Fermat sobre os problemas de Diofanto, Somos, portanto, tentados a falar aqui de urna comunidade ern formacáo, mas se é verdade que ela constituí o sonho de Mersenne e de alguns outros, a realidade é um pouco menos idílica, sobretudo no que respeita as questóes numéricas. Em 1640, Roberval escrevia a Fermat que, para melhor descobrir os ..g randes mistérios.. dos números, -seria preciso estarem vários juntos, de acordo e sem ínveja, e cujo génio fosse naturalmente levado a tal especulacáo, o que é muito difícil de encontrar», O modo habitual das trocas, com efeíto, sob as declaracóes de amizade e de adrniracáo recíprocas, é o desafio: vestígios de uro combate meío sério, meío lúdico onde se exigem as pravas da destreza do outro, as cartas propóem muitas vezes problemas de que evitam desvendar a solucáo: cabia -aos mais hábeís.. resolver as questóes propostas. Um dos episódios mais característicos deste estado de espirito é o dos -Desafíos aos Matemátícos-, Iancados por Fermat em 1657 (talvez na esperanca de encontrar uro interlocutor competente) e dirigidos particularmente aos ingleses John Wallis e William Brouncker e a Frénicle. Depois do enunciado dos problemas, Fermat conclui: «Espero a solucáo destas quesróes: se ela nao é fomecida nem pela Inglaterra nem pela Gália belga ou céltica, sé-la-á pela narbonesa (quer dizer, pelo próprio toulousiano Fermat): dito de outra maneira, nao se trata em geral de problemas abertos, sobre os quais se interrogariam outros especialistas, mas pequenas adivinhas sofisticadas ande aquele que póe a questáo já conhece a resposta. E rnaís, mesmo que na corrente do século XVII comecem a coagular movimentos e técnicas que caracterizado em 102
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breve a comunidade científica, as questóes ligadas aos números nao sao estimadas aí: a Digby, que lhe transmitiu o desafio de Fermat (e apesar de o ter resolvido, por fiml), Wallis escreve: .(Fermat) parece gostar singularmente (das questóes sobre os números); mas confesso que, pelo menos no que me diz respeito, elas nao tém um atractivo tao poderoso que eu seja levado a consagrar-Ihes muito tempo e trabalho e que nao as considero tao importantes para que, negligenciando as outras ínvesrigacócs em geometria que me agradam mais, me desvie para essas especulacoes sobre os números». Por que razáo existe esta especificidade dos problemas numéricos?
Dos números e dais) sua(s) poténciats) A nota de Fermat comenta um problema de Díofanto sobre a decornposícáo de um número quadrado na soma de dais quadrados, como 25 = 16 + 9. É uma questáo típica da aritmética, ande se trata em geral de encontrar números (inteiros ou fraccíonários) verificando algumas condicóes e relacóes, como: - encontrar dois números cuja soma e produto sejam dados; - encontrar tres números tais que o produto de dois deles acresceotado a um número dado seja um quadrado, etc. Para valores numéricos particulares, propóe-se aí urna solucáo explícita, por vezes acompanhada de um procedimento para a obter. Mas outros tipos de questóes sobre os números sao debatidos no século XVII: os leitores dos livros VII, VIII e IX dos Elementos de Euclides térn a sua dísposícáo a definicáo de números pares e ímpares, um estudo sobre a divisibilidade, aí compreendidos os números primos, quer dizer, sem divisores próprios além de 1, como 5 ou 7, e perfeitos, quer dizer, soma dos seus divisores próprios, como 6 = 1 + 2 + 3. E cada urna das tradicóes matemáticas cuja coexistencia descrevemos fomece o seu lote de questócs privilegiadas, comuns por vezes, aliás, sob disfarces variados: Fcrmat e Frénicle descobrem assim no ioício da sua correspondéncia uma paixáo partilhada pelos quadrados mágicos, essas tabelas de números cuja soma das linhas e das colunas é fixada: esses quadrados mágicos foram, aliás, também utilizados como talismás, As partes alíquotas
No século
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as -partes alfquotas- sao os divisores própríos de um número inteiro.
Vm número díz-se -perfetto- se for a soma das suas partes alíquotas (por exemplo 6
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2 + 3), -submúltlplo- se a divide (em geral com urna relacáo fixada como 2, 3, 5). Dais números dízem-se -amígáveís-, se cada um for a soma das partes alíquotas do outro (por exemplo 220 e 284, já que 220 = 1 + 2 + 4 + 71 + 142 e 284 = 1 + 2 + 4 + + 5 + 10 + 11 + 20 + 44 + 55 + 110).
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Nos Elementos de Euclides, já se encontra urna prova de que qualquer número da forma 2" (2"+ 1 - 1) perfeíto sob a condícáo de o termo 2"+ I - 1 ser um número primo, assím 6 = 2X3 = 2X(4-l). No século XVII e mesmo antes, sabe-se que os números 2"+1(l8X22 ,, - 1) e 2,,+l(3X2 211- l) (6X2 2 " - I) sao amigáveis na condícao de todos os termos entre parénteses serem números primos: para n = 3, encontramos por exemplo o par 18416 = 24(l8X26 -1) e 17 296 = 24X23X47. é
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Se n-cpr, senda p um número primo, os divisores próprios de n sao 1, p, Jfl..., pr-l, portanto a soma das partes allquotas de n é l+p+ ... +pr-l j uma vez que (p-I) O+p+ ... + +pr-l) = pr-l, compreende-se que o estudo das partes alíquoras conduza a dos divisores de números da forma ar-l. Fermat enuncia a sua -proposicáo fundamental das partes allquotas-. se q é primo e a qualquer, q divide forcosamenre um dos números a-l, al-l, a 3-1n etc., para o qual s-divide q-lj qdivide entáo também a N-l para qualquer múltiplo R do maís pequeno r possível. Assim, para a=2 e q=7; 7 divide 23-1, r=3 divide bem q-l=7-1=6j para maís q=7 divide todos os 2 R-l, senda R múltiplo de r=3, como 2 6-1=63,2 9-1=511... Um divisor qde 237-1=137438953471 deve ser tal que 37 divide q-l: o primeiro candidato a experimentar é, pois, 149 (que nao resulta), o segundo 223 (que resultaf): esta proposlcáo permite asslm economizar muíto tempo e cálculos para testar divisores eventuais de número ar-l, portante procurar números perfeltos, amígáveís, .. Fermat rambém se ínreressou pelos divisores de a r+l , conjecrurando por vánas vezes que 21 ' + 1 é sempre primo como 3, 5,17,257. Infelizmente para ele, 225+1 é divísível por 641; podemos demonstrá-lo por urna variante simples do método descrito aclma, mas parece que Fermar fez um erro de cálculo ... Pacto muíto esclarecedor quanto ao estado da disciplina, este erro só foi desvendado por Buler, um século mais tarde.
Os níveis de difieuldades dessas múitiplas questóes pareeem-nos hoje muito diferentes, e nao é para nós menor surpresa encontrá-las assim justa postas. Qualquer classlficacáo apoia-se evidentemente na formula.-;ao retida ou nos utensílios utilizados para resolver os problemas. O da decornposicáo em soma de quadrados pode ser colocado numa perspectiva algébrica: a sua generalízacáo ocupar-se-á, entáo, como no comentário de Fermat, do caso das potencias superiores, cubos, biquadrados (quartas potencias), etc. Mas também pode ser expresso sob urna forma completamente diferente: segundo o teorema díro de Pítágoras, a relacáo a 2 = b 2 + e 2 define um triángulo rectángulo de lados a, b e e (a é a sua hipotenusa); haverá, entáo, interesse pelos triángulos que verifiquem propriedades particulares, cuja área acrescentada a urna perpendicular é um quadrado e o perímetro um cubo, ou cuja área esteja numa dada proporcáo com a de outro triángulo. Na ausencia de urna ínicíacao comum aos novas métodos algébricos, é muitas vezes esta velha montagem que prevalece. Frénide, que redigiu um Tratado dos Triángulos Rectángulos e eujo papel de interlocutor de Fermat está longe de ser negligenciável, conhece mal, ou mesmo nao conhece em absoluto, as técnicas algébricas; elas sedo, portanto, abandonadas na correspondencia dos dois hornens. A discordancia das forrnacóes é aínda mais chocante no caso de outro interlocutor de Fermat, o padre jacques de Billy: os erros estáo disseminados pela sua obra mencionada mais acima e redigída -segundo- as cartas de Fermat: o domínio das técnicas em jogo é incerto e Billy parece muitas vezes empilhar variantes anódinas do mesmo procedimento scm lhe elucidar os princípios. Conforme as tradicóes de onde os problemas emergiram, as solucóes sao propostas quase sempre numa forma puramente numérica: as dernonstracóes sao ainda apanágio da geometria. Para os números, procede-se em geral por inducáo, quer dizer, estudando e calculando exernplo após exemplo, um enunciado mais geral acornpanha-os muítas vezes, mas sem justíficacáo suplementar: a prava da competencia 104
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do autor residirá na sua faculdade de encontrar todas as respostas numéricas que lhe seráo pedidas e, mais especialmente, de lhes encontrar enormes. A propósito do número de composícóes possíveis de um quadrado mágico de urna. dada. dimensáo, Fennat escreve a Mersenne: -Para vos mostrar até onde vai o conhecimento que tenho disso, o quadrado de 8 que é 64 pode ser disposto de tantas maneiras diferentes quantas unidades há neste número: 1004 144995344, o que sem dúvida vos assustará, já que Bachet e os outros que vi apenas lhe dáo urna úníca-. E do mesmo modo, para convencer um interlocutor céptico que possui um resultado geral que ajuda a construir números submúltiplos, ele precisa: -l. .. J Tendo há muito tempo encontrado e enviado as proposícóes dos dois números 17296 e 18416, era preciso por necessidade que eu tivesse passado pela proposícáo-, A específicídade destas questóes numéricas consiste em que, contrariamente aos problemas geométricos, parece ainda suficiente exibir urna sua solucáo particular, ou pelo menos urna receita, para convencer: como diz Descartes, repetindo Fennat: ..Mais nao fíz que ajustar a dernonstracáo disto" (é urna questáo numérica) ..porque poupo tempo, e, em matéria de problemas, basta dar-lhe o facit, urna vez que os que o propuseram podem examinar se está bem resolvido ou nao", ..Poupo ternpo-, lembra-nos essa margem demasiado estreita para acolher urna demonstracáo, o leitmotiv da falta de tempo, de espaco, de disponibilidade atravessa as trocas do século XVII e já evocámos as condícóes materiais de que era o vestigio; ele justifica um modo de expressáo rnais descuidado, menos pormenorizado e preciso do que seria exigido, em principio, pela redaccáo de urna obra; justifica, sobretudo, que nos possamos contentar com exemplos, urna vez que estes bastam para resolver o problema dado, visto os próprios termos em que é posto: ..encontrar números taís que" .». A ernulacáo entre correspondentes, os ..desafios.., reforca esta tendencia que lhes está, aliás, perfeitamente adaptada: escolhcm-se para o adversário potencial os dados numéricos mais extravagantes que o embaracaráo, Em contrapartida, este aspecto específico do domínio repele os que se interessam por estudos aparentemente mais gerais, ..n ao que, escreve Descartes, as questoes ligadas a aritmética sejam mais difíceis que as da geometría, mas porque elas podem por vezes ser melhor encontradas por um homem laborioso que examinará teimosamente a sequéncía dos números do que pela destreza do maior espírito que possa existir.., Círculo vicioso, portanto, onde o tipo de questóes e de respostas esperadas repugna justamente aos que teriam os meios de lhe mudar a natureza. , ,1 Retomemos o caso da nossa anotacáo favorita: -Náo é possível dividir um cubo em dois outros cubos, um biquadrado em dois biquadrados ou, em geral, urna potencia qualquer superior ao quadrado em duas potencias do mesmo grau-
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1 Um dos problemas submendos por Permat aos seus Interlocutores em 1657 consiste em encontrar tnreiros x e y taís que x 2 ~ Ny2 = 1, para um inteiro N fíxado. A Frénide é sugerido em particular o estudo de N = 61 e N = 109, ·para nao (Ihe) criar multas díñculdades-. Sao justamente casos em que as solucces mals pequenas rém mais de nove algarismos...
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]á que é apresentada em forma negativa, está excluído O fornecimento de urna res posta numérica ao problema que levanta. Em parte alguma, alías, na correspondencia de Fennat, aparece mencionado o caso geral e é, poís, razoável lcr nesta anotacáo um exemplo suplementar dessas extrapolacóes prematuras que a ausencia de redaccoes pormenorizadas ou de discussoes serradas autoriza. Mas o caso dos cubos e dos bíquadrados é repetido várias vezes e possuímos pelo menos o principio de urna demonstracáo: Fermat chama-lhe -a descida infinita-o Admitindo que existe urna solucáo para o problema, podemos conseguir, por diferentes manípulacóes algébricas, deduzir dela outra solucáo, mas estritamente mais pequena: ora mio pode existir urna sequéncia infinitamente decrescente de ínteiros. A hipótese de partida é, poís, falsa, e o problema nao rem solucóes, o que se queda provar. Se o princípio é enunciado bastante facilmente, a sua realizacáo nem sempre é imediata: ora é justamente esta que Fermat evita explicitar: "Nao acrescento a razáo que infíro (que haveria urna solucáo mais pequena) porque o discurso seria demasiado langa e porque aí reside todo o segredo do meu método. Picaría muito satisfcito que Pascal e Roberval e tantos outros sábios a procurassem sob minha indita ca o». Mesmo quando a forma da questáo parece prestar-se o menos possível, voltamos a encontrá-Ia submcrida as condicóes normais da prática aritmética do século XVII. E maís ainda, a reaccáo dos correspondentes de Fermat mio é nada encorajadora: procedendo por tabelas de exemplos, sao desorientados por estas proposicóes «negativas", nao se ínteressam nada por das, chegando mesmo, ern alguns casos, a queixar-se delas abertamente. A descida infinita Sao necessárías duas propríedades simples dos ínteíros. em primeíro lugar, o facto de que qualquer ínreíro se decomponha de maneíra única num produto de números lnretros índecomponívets, por exemplo, 28 = 2 X 2 X 7. A consequéncía fundamental que utilizaremos é que, se doís números mio rém divisores comuns e se o seu produto é um quadrado, cada um deles é um quadrado. O outro facto é que nao podem existir a seguir ínrelros estríramente decrescenres. Vamos agora mostrar, por -descída lnñníta-, que m10 exlsrem quadrados soma de dais biquadrados, quer dlzer, inteiros x, y e z com Z2 "" Xi + y4. Isso mostra a fortiori que um biquadrado m10 a soma de dois bíquadrados, o que é um caso do -teorema- de Fermat. Dizer que Xi + y4 = (X2)2 + (y2)2 = Z2, quer dízer exactamente que X2, y2 e z sao tres lados de um triángulo rectángulo (sendo z a hipotenusa) em que os dais lados menores sao números quadrados. Para simplificar as nossas notacóes, só procuraremos as solucóes raís que x, y e z sejam primos entre si. Teremos necessldade da caracrerizacño dos números Ca, b, e), primos entre si e formando urna triángulo rectángulo, quer dizer, tais que a 2 + b 2 = e 2. Bem conhecida antes do século XVJI, esta equacáo enuncia que um dos números b ou a exactamente é par e que é possível escrever a, b e e sob a forma: a = p2 - q2, b = 2pq, e = p2 + q2 (ou entáo a = 2pq, b = p2 - q2, e = p2 + q2), se b (ou entáo a) for par. Os números ínrefros p e q sao chamados números geradores do -trtángulo em números- (a, b, e); sao primos entre si e um dos doís exactamente par. Vamos dar um exemplo: a = 3, b = 4 e e = 5 sao primos entre si e formam um triángulo rectángulo, já que 32 + 42 = 52. Ora, a = 3 = 4 - 1 = 22 - 12, b = 2 X 2 X 1 e e = 4 + 1 = 22 + 12, quer dízer, a forma prescrita coro p = 2 e q = 1. Vamos agora proceder por etapas sucessívas: superemos a partida que Xi + y4 = (X2)2 + é
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+ (y2)2 = Z2 e, a cada passo, construiremos um novo triángulo rectángulo, mais pequeno que o precedente. La etapa: podemos escrever xa, y2 e Z 50b urna das formas características dadas cm cima, por exemplo. a = xz = p2 - q2, b = y2 = 2pq, e = z = pl + q2, com p ímpar e q par, primos entre si (a prava seria análoga nos outros casos, se q fosse ímpar e p par, por exemplo). Ternos, portanto, um novo triángulo rectángulo (x, q, P), já que xr + ql = p2. Por outro lado, urna vez que p e 2q sao primos entre si e que o seu produto 2pq é um quadrado y2, cada um deles e um quadrado, portanto p = Z'l e 2q = u 2 = (Zu')2 (sendo 2q par, nao pode ser senáo o quadrado de um número par). 2.a etapa: aplicamos as fórmulas de caracterizacáo ao nosso própno triángulo rectángulo (x, q, p), seja x = p'2 - q'2, q = 2p'q', P = Z'2 = p'2 + q'2, com P' e q' primos enlre si. Ternos assím um terceíro triángulo rectángulo (P', q', z'). Ora, o produro dos dais números P' e q' é q/2 = U'2, um quadrado, portanto P' e q' sao quadrados. Acabamos, pois, de encontrar um novo triángulo rectángulo em que os lados menores sao quadrados, quer dízer, uma nova solucáo para o nosso problema de partida: esta solucáo é estriramente maís pequena que a de que partimos. Podemos entáo recomecarl Ou, dtto de outra maneira, se existisse uma solucáo, teríamos encontrado um meío de construir outras, lnreíras, mas cada vez maís pequenas, aré ao infinito; é ímpossível, como dlssemos no inicie, portanto nao pode existir solucáo de parnda para iniciar o processo. Isto culmina esta prova, ande vemos como a urilizacáo de propriedades específicas aos Inteíros coordena as manípulacóes algébricas.
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Mistura em ebulicáo, talvez, mas sem harmonía, discordancia de vísóes e de abordagens, que sublinham e afinnam as lacunas das demonstracoes ou os acasos, materíais ou intelectuais, das comunicacóes: como é que tudo isso se transformou dais séculas mais tarde?
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o Horno faber Homens e uma teoria dos números no quotidiano
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O nosso ponto de partida, desta vez, é o famoso artigo de um uníversitário premiado pela Academia das Ciencias: se for preciso procurar nas suas cartas ou nas margens dos seus livros tracas fugídíos dos amadores de números do século XVII, é multo abertamente que se publicam sobre este assunto no journal für die Reine und Angewandte Matbematik na primeira metade do século XIX: perto de cento e cinquenta notas, artígos, textos de problemas ou relatórios apareeem na rubrica -Teoria dos Números- da tabela das matérias recapituladora dos cinquenta primeiros números. Deixámos um -conselheíro no Parlamento de Toulouse-, senhores, diplomatas, eis que urna monótona repetícáo alinha aqui os autores ao fio dos números: Prtuatdozentv na Universidade de Berlim, professor na Universidade de Bratislava, professor de Matemáticas em Halle, Brunesvíque, Brandeburgo, Paris, Oxford, professor no Instituto Politécnico de Karlsruhe, etc. É num meio fechado que os autores sao recrutados: os raros que nao tém postos universitários quer como professor, quer como Priuatdozent, tém em geral pelo menos o título de doutor, que
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1 Privatdozent: encarregado de cursos no interior das universidades alemás, remunerado na época pelos estudanres.
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pressupóe urna formacáo universitária, ou ensino nos liceus: consoante as regras entáo em vigor, também seguiram cursos 1'10s estabelecimcntos superiores. O autor do artigo mencionado no início deste capítulo, Ernst Eduard Kummer, tem, deste ponto de vista, um percurso exemplar: tendo entrado na universidade para estudar Teología, orienta-se finalmente para as Matemáticas, que, escreve ele a máe, -asseguram-lhe de que víver-. Primeiro ensina no Liceu de Liegnitz ao mesmo tempo que escreve artigos de matemáticas; membro da Academia das Ciencias de Berlim em 1839, é nomeado professor em Bratislava, em 1842, depois em Berlim: trabalha sobre a teoria dos números durante todo este período, obtendo, entre outros, os resultados já evocados sobre as proposicóes de Fermat, Correspondente de vários académicos das ciencias europeias, toma-se também reítor da sua universidade, anima cursos e um seminário de ínvestígacáo (o primeiro em Matemáticas criado ero Berlim), é primeiro-examinador no júri de tese de trinta e nove estudantes dos quais dezassete obteráo postos univcrsitários: entre eles figuram Immanuel Lazarus Fuchs, Leopold Kronecker, Paul Bachman que, também eles, publicam no journal für die Reine und Angeuandte Matbematik... Sao, portanto, filiacóes de professores que se instauram, ocupando tanto as páginas do jornal como os postos disponíveis nas universidades. Tudo isso exige, se ainda tivéssemos dúvidas, energía, paciencia e trabalho; apenas no número XL do jornal aparecem tres artigos de Kurnmer totalizando mais de quarenta páginas de grande dimensáol Estas qualidades sao, aliás, nitidamente valorizadas. Em 1846, Kummer escreve a Kronecker: uA nossa literatura matemática comp6e-se, como sabeis, de tratados, dos mais pequenos aos maiores. É por ísso que desejaría dar-vos este conselho amigável de mestre: desde o início, prossigai os vossos estudos matemáticos de maneira a produzir tratados, quer dizer que deveis trabalhar algumas matérias até as polir suficientemente, de maneira que mesmo que elas oferecarn, de diversos pontos de vista, matéria para progredir, possam, mesmo assim, constituir tal como estáo um todo acabado-o O matemático Richard Dedekind, quanto a ele, fala da sua própria aurea mediocritas, cuja forca, acrescenta, apenas reside numa perseveranca obstinada. lnvestígacáo e ensino aparecem aqui mais estreitamente ligadas, o segundo fomecendo de passagem novas recrutas para a primeira; tarefas tao diversas quanto assistir a urna reuniáo administrativa, ler um artigo, investigar um novo resultado, dar uro curso, todas elas contribuem para manter ou melhorar o organismo que as gere.. As universidades estáo no coracáo da invesrígacáo matemática; a críacáo, ero 1810, da Universidade de Berlím, testemunha a nova importancia que lhe é dada na Prússia, em lígacáo com outras reformas do sistema educativo. Gustav Dirichlet faz parte da última geracáo a viajar até Paris, porque é impossível aprender na Alemanha as matemáticas de ponta. Depois dele (e, em parte, gracas a elel), os estudantes encontrarilo, se nao em todo o lado, pelo menos ero Berlim ou em Gotinga, os cursos de base, as explícacóes, as figuras modelares que os iniciaráo I I
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nos métodos rnais recentes. Traeos perceptíveis desta actividades de formacáo, os textos dos cursos sao, 30 lado de curtas notas nos jomais especializados, a outra vertente da escrita matemática: os Voriesungen über die Zablentbeorie de Diríchlet e Dedekind aparecem em 1863, e muito antes cursos ínteíros sobre a teoría avancada dos números sao propostos ero Berlim. Este ajuntarnento quotidiano das forcas matemáticas nos mesmos lugares unifica, certamente, os problemas abordados: bebem nas mesmas fontes Euler, Lagrange e os matemáticos da escola francesa (considerada entao como a melhor do mundo), e sobretudo Gauss, que publicou, ero 1801, os seus Disquisitiones Arithmeticae, bíblia da teoria dos números no século XIX. O nome de Gauss paira nos artigos sobre o assunto, que precisam ou generalizam os seus trabalhos, retomam as suas anotacóes e as suas problemáticas. A funcáo unificadora desta formacáo também é urna funcáo normativa; urna cultura comum nasce aí, com a sua linguagem e as suas regras. Os homens que compóem esta comunidade já os conhecemos, mas como interagem eles?
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Do jornal de Crelle a Academia das Ciencias
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O primeiro jornal importante, consagrado exclusivamente as matemáticas, foi publicado pelo matemático ]oseph Gergonne, em Montpellier, lago no início do século XIXj sao os Annales de matbématiques pures et appliqués que desapareceram, aliás, muito rapidamente, mas constítuem a referencia explícita para os jornais matemáticos posteriores, o de ]oseph de Liouville em Franca, o de Crelle na Alemanha, cujos nomes sao, aliás, a traducáo exacta um do outro: fournal de matbéma-
tiques pures et appliqués. August Leopold Crelle, formado em Engenharia, serviu na administracáo prussíana, mais ou menos autodidacta em Matemáticas, fez, por fim, um doutoramento em Heidelberga e trabalhou, desde 1828, no Ministério da Educacáo como especialista das Matemáticas e sobretudo do seu ensino. No prefácio do primeiro número do seu jornal, aparecido em Dezembro de 1825, Crelle explica que as matemáticas sao amadas na Alemanha e que é necessário responder a procura de um público interessado, tornando acessíveis, a todos, os trabalhos recentes no domínio, -independenternente de qualquer moda, autoridade, escola-, chegaráo mesmo a aparecer nele, se for necessário, traducóes em alemáo e comentários de outros artigos. Corrigindo pelo menos a aprescntacáo de alguns textos, recrutando ao mesmo tempo matemáticos para as universidades e colaboradores para o seu jornal, admitindo lado a lado artigos de diferentes autores sobre o mesmo assunto, Crelle oferece assim um lugar ande se podem neutralizar e tornar públicas ao mesmo tempo as eventuaís controvérsias entre matemáticos sobre os métodos e as prioridades, e contribui grandemente para a constituícáo de um domínio mais regulado e melhor unificado. É claro que as trocas de cartas entre especialistas ou próximos continuam; vimos um exemplo disso a propósito de Kurnmer e de Kronecker. Mas o jornal, por mais fraca que seja a sua difusáo, baseia-se
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na existencia de leitores anónimos, capazes contudo, de compreender os artigos publicados: os peremptórios .é bem sabido que- e anotacóes nao definidas testemunham um local implícito, talvez a universidade, onde sao fornecidos os conhecimentos necessários. É verdade que qualquer saber se torna opaco para quem nao possuí as chaves; Fermat, na sua correspondencia, usava também atalhos e alusóes; mas conhecia pessoalmente os seus interlocutores e os limites dos seus conhecimentos. No século XIX urna comunidade, pelo menos potencialmente, existe e distingue-se justamente por aquilo que os seus membros podem ler e/ou publicar neste jornal: este nó de informacáo, como qualquer outro, marca os limites de um mundo onde entrarn ao mesmo tempo urna concepcáo das matemáticas e os meios de a dizer, ou até de a vivero As mudancas na organizacáo científica poderáo ser medidas tanto pela percentagem crescente das universidades como pela das publicacóes nos jornais científicos especializados. Os diversos recrutamentos, os lugares disponíveis ern Berlim ou em Crelle, tecem em conjunto, e uns pelos outros, os lugares-cornuns da actividade matemática. A publicacáo do artigo de Kummer é, pois, um acontecímento simultaneamente banal e significativo da vida quotidiana deste. E a recompensa académica? Ela tern urna históría longa e instrutiva cuja narracáo vamos buscar ao historiador Harold Edwards. Tuda comeca longe da A1emanha, numa sessáo da Academia das Ciencias de Paris: um matemático, Gabriel Lamé, anuncia que possui urna demonstracáo geral da proposicáo de Fermat. Lembremos que se trata de provar a impossibilidade, para mteiros x, y e' z, de verificar urna relacáo do tipo x n + yn = z», salvo se n = 2 ou se um dos ínteíros é nulo. O. método da descida infinita permite resolver os casos n = 3 e n = 4; demonstracóes complicadas e/ou parciais tinham sido obtidas para outras potencias, mas parecía que se estava longe do caso geral. Na sua apresentacáo, Lamé afirma ter-se servido de ideias de Lagrange e de Gauss, e reconhece a contríbuícáo essencial de urna conversa com Líouvílle: notaremos de passagem que as referencias aos outros colegas, longe de esmorecer o mérito de quem as faz, concorrem doravante para a certeza de um acolhírnento favoráveH Infelizmente para Lamé, o próprio Líouville declina a oferta, reenviando para outros ilustres predecessores a origem da sua modesta contribuicáo, ele, por boas razóes, inquieta-se com várias -'generaliza~óes demasiado precoces no trabalho de Lamé. Este, voltaremos com maís pormenor a este ponto, estendia a outras espécies de números as propriedades usuais dos ínteíros, a divisibilidade, a decomposicáo em factores primos, etc. Gauss tínha, efectivamente, seguido um procedimento análogo num caso particular, mas justificando cuidadosamente a validade destas propriedades, em cada etapa. Por imprudencia, Lamé nao se tería envolvido num terreno friável? Na mesma sessáo da Academia, decididamente muito movimentada, outro interveniente toma a palavra, Augustin-Louis Cauchy: ele lembra que já falou deste tema vários meses antes; nao teve tempo de desenvolver completamente as suas ideias, mas isso nao demoraría ... E, de
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facto, OS meses seguines sao, do lado francés, cheios de actividade febril: quem completará a dernonstracáo? É entáo que Liouville recebe da Alemanha urna carta de Kurnmer; este, posto provavelmente ao corrente da sítuacáo por Dirichlet, resolve pela negativa a questáo litigiosa dos trabalhos de Lamé; nao, as propriedades dos inteíros nao se estendem tao facilmente. Mas, na mesma carta, Kummer anuncia tambérn dais artigos, um a aparecer brevemente, onde este problema seria resolvido gracas el introducáo de urna nova espécie de números, chamados por Kurnmer -números ídeaís-, o outro (que será o de 1850) sobre as aplícacoes desta nova teoria iI questáo original levantada por Fermat. A história bem que poderla acabar aquí; todos os ingredientes estáo aí para fazer dela um canto eterno, a vitória do bom, 50b todos os pontos de vista (Kumrner), sobre o bruto (Lamé) e o bistriiio (Cauchy), Tudo isto sob o olhar do sábio (Liouville). Também estilo aí todos os ingredientes para mostrar o valor do funcionamento de um meio profíssionai: problemas bebidos nas mesmas fontes, considerados essencíaís no mesmo momento; sessóes públicas locais para anunciar, confirmar, trocar, regular estas investigacóes lndividuals, contactos com outras escolas e outros paises para estimular e controlar a actividade nacional; jornaís, certamente, lugares de compromisso e de paz, de que a carta que Liouville escreveu para acompanhar no seu jornal um artigo de Kummer é um modelo. Cauchy, mesmo que continue a reclamar o valor do seu próprio trabalho sobre esta questáo, resume muito bem o ideal do matemático: -Se Monsieur Kummer tivesse tratado a questáo mais algum tempo, se tivesse mesmo levantado todos os obstáculos, eu seria o primeiro a aplaudir o sucesso dos seus esforcos, porque o que devemos sobretudo desejar, é que os trabalhos de todos os amigos da ciencia concorram para dar a conhecer e a propagar a verdade-, A história, que nao termina aqui, é aínda mais exemplar. Em 1850, a Academia das Ciencias de Paris decidiu oferecer um prémio para urna demonstracáo completa do -teorema.. de Fermat; Kurnmer, com efeíto, só a conseguira estabelecer para inteiros n que verificassem algumas hipóteses técnicas (em particular para n até 100 salvo 37, 59, 67, 74). Sete anos mais tarde, náo tendo chegado qualquer solucáo satisfatória a Academia, encarou-se a hipótese de dar o prémio a Kummer; a corníssáo formada para estudar o dossier compreendia ... Cauchy e Lamé. O primeiro emíuu reservas sobre alguns pormenores da prova de Kurnmer: depois de algumas flutuacóes e trocas de cartas orquestradas, mais urna vez, por Dirichlet, tudo se salvou com um novo artigo de Kurnmer, sempre no fournal für die Reine und Angeuiandte Matbematik, publicado em 1857, que preenchia todas as lacunas eventuais do prímeíro artigo, mas por um caminho muito diferente. Exemplo característico do tipo de pressóes que se exerceram tantas vezes para precipitar as publicacóes, de controlos que foram estabelecidos desde que um resultado considerado importante estivesse em jogo. Eis no que se tomaram os que estáo ligados aos números: o próprio domínio conservará esses vestigios? ltt
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A leí dos números, Para o saber, é ainda preciso conseguir domesticar-lhe a forma. Evocámos a releitura permanente do passado, que fomeceu o alimento quotidiano do trabalho aritmético: esta isolou-se ao mesmo tempo sob as novas notacóes que traduziam as novas maneiras de a abordar. No século XVIII, procuravam-se os divisores primos de a r - 1: para um dado número primo q, o resto da divisáo de ar por q é, pois, 1. O acento feito sobre os restos das divisóes traduz-se pela notacao, devida a Gauss, ea: diz-se que dois inteiros a e b sao congruentes módulo inteiro q (e escreve-se a " b (mod q)) se a e b tiverem o mesmo resto quando forem divididos por q. A -proposícáo fundamental das partes alíquotas-, quer dizer, o facto de qualquer primo q dividir um dos números a r -1 para um r conveniente (divisor de q -1) escreve-se entáo: a r :: 1 mod q, para um r tal que q" 1 mod r. Os restos (lago as congruencias) adicionam-se e multiplicam-se entre si, facilitando assim a ínvestígacáo do mais pequeno r possível: 25 ,,4 mod 7, lago, 255 ,,45 mod 7, o cálculo de 255 e inútil! Também se enunciam resultados análogos para módulos q que já nao sao necessariamente primos. Numerosas tabelas numéricas sobre estes temas para diferentes valores de q aparecem, particularmente, no jornal de Crelle, algumas das quais sao devidas ao seu próprio fundador: estas tabelas numéricas servem de reservatório de exemplos a extrair na procura de propriedades por demonstrar. Se o discurso é talvez menos imediatamente decífrável, a actividade indutíva, o cálculo de casos particulares, faceta característica do estudo dos números no século XVII, encontram assim um lugar integrado na elaboracáo da obra comum, trata-se agora de urna porcáo preliminar da actividade e de um servíco público, já nao de um jogo individual que fornece enigmas impossíveis para eventuais adversários. A decomposícáo dos números em soma de quadrados (ou, poderíamos dizer ainda, a investigacáo das hipotenusas de triángulos rectángulos) tornou-se simplesmente o estudo da forma x 2 + y2: a classificacáo das formas deste tipo é, aliás, um dos problemas cruciais levantados por Euler, Lagrange e depois Gauss. A álgebra tornou-se, pois, urna linguagem pela qual se podern exprimir questóes, mesmo que sejam aritméticas. Novas instrumentos também foram postas el disposicáo dos problemas numéricos: Dirichlet, por exemplo, utiliza séries infinitas e métodos analíticos elaborados ao langa de todo o século XVIII para provar que, para dois inteiros a e n sem divisores cornuns, existe urna infinidade de primos p, tais que p ea amad n. Estas séries infinitas tomar-se-ola, por sua vez, objectos de estudos fundamentais no domínio. Mas esta complexidade crescente pode ser gerada pela uníflcacáo dos fins visados: se as linguagens, as notacóes, as técnicas sao mais delicadas de utilizar, também organizam com maís seguranca um carpo de temas privilegiados ao servíco de urna disciplina finalmente especificada que tem por missáo o estudo das propriedades dos inteiros. É a esta luz que devemos reler o nosso problema favorito. O novo instrumento necessário para dar conta dele sao os números complexos. Introduzidos vários séculas antes no estudo das equacóes 112
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algébricas, serviram primeiro como auxiliares do cálculo. Foi, assim, que Lagrange e Euler os utilizaram, por exemplo, no estudo de algumas express6es como a 2 + b2 ou a3 + b>. Tal como a 2 - b 2 = = (a - b) X (a + b), pode-se escrevcr: a' + b' = (a - b H) X (a + b H), sendo H um número complexo (ou -imaginário-) cujo quadrado é -1. Gauss foi mais longe ao mostrar que números complexos da forma a + b H 1 COID a e b senda ínteiros ordinários, térn um comportamento muito próximo dos inteiros: é possíve1 multiplicá-Ios, adicioná-Ios e até decompó-los de maneira única em números complexos «primos.., que nao sao decomponíveis. Estes ínteiros novas (baptizados -inteiros de Gauss..) podem ser intennediários úteis no estudo dos verdadeiros ínteiros: se p é urna soma de dais quadrados, escreve-se: p = a' + b' = (a - b H) X (a + b H), quer dízer, decompóe-se em produtos de inteiros de Gauss: o estudo da decomposícáo em produtos substitui, portanto, o estudo da decomposícáo em soma de quadrados, um número primo soma de dois quadrados já nao é primo como inteiro de Gauss: por exemplo, 5 = (2 + + H) X (2 - H) decompóe-se, mas 3 e 7 permanecem -prímoscomo inteiros de Gauss. Como já vimos noutros casos, estes -ínteíroscomplexos podem tornar-se urna fonte de interesse ern si mesmos: os extraidos de outras decomposícóes (a' + 5 bi, por exernplo) ainda mantérn as propriedades usuais dos inteiros? No fundo, o que é que caracteriza um inteiro? Estas quest6es e a ínvestigacáo de leis gerais de decomposícáo destes números exóticos sao justamente privilegiadas na Alemanha do século XIX. Que relacáo existe com o -nosso teorema-? O que Lamé propunha, precisamente, era decompor x» + yn = zn com a ajuda de números complexos sob a forma: xn+~=~+~~~+~~"'~+~n~=r
em que ~ t sao os n números complexos cuja potencia enésima é l. O argumento de Lamé consistia em outorgar aos números (x + ~ tY) as mesmas propriedades de factorizacáo que térn os inteiros usuais: em particular, admitir que o produto referido nao podia ser urna potencia enésima a nao ser que cada termo o fosse - este tipo de raciocínio é utilizado permanentemente numa -descída infinita" clássica. Infelizmente para Lamé, esta propriedade, essencialmente verdadeira para os inteiros naturais e os -íntciros de Gauss-, é incorrecta no caso geral: é o problema específico que Kurnmer ataca e resolve nos artígos evocados mais acima. I
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Como que a críacáo de números ideaís pode permitir a recuperacáo de uma propríedade fundamental dos inreíros, a facrorízacáo única em factores primos? Para tentar compreender isso melhor, imaginemos por um momento que se consideram apenas os números da forma 4k + 1. Podem decompor-se estes números em factores primos da mesma espéde, mas nao necessartamente de maneíra única: por exemplo, 441 = 21 X 21 = 9 X 49, e 21, 9, 49 sao índecomponíveís em números da forma 4k + 1. Se quísermos recuperar a é
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unícldade da decomposlcáo, é preciso -ínvenrar- os números da foram 4k + 3: teremos entáo 9 = 3 X 3, 21 = 3 X 7, 49 = 7 2, e 441 será decomposto cm números primos de maneíra única 441 = 3 2 X 7 2, Sao fenómenos análogos que precisarn da ínrroducáo dos -números ídeals- de Kummer. Para além da prestacáo de servico da reorta dos números e de ferramenras e técnicas novas, este exemplo sublinha como que questoes anteriormente ísoladas encontram o seu lugar no panorama unificado que a disciplina doravante oferece. é
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É neste quadro, mais amplo que o de Lamé, que Kummer trabalha: o artígo respeitante a proposicáo de Fermat só contém oíto páginas das quarenta publicadas no volume XL; a solucáo parcial que Kummer ai foenece provém do desvío feliz de urna problemática mais ambiciosa. É a colocacáo em prática exemplar do conselho que deu a Kronecker; visando urna questáo global, o trabalho quotidiano deve explorar os pormenores, investigar as aplicacóes possíveis: no Allgemeiner Beweis (dernonstracáo geral) do inicio do título do artigo evocado respondem em eco as restrícóes técnicas do flrn que lhe precisam a validade, quer dizer aqui, as potencias efectivamente atingidas pela demonstracáo, A mudanca é, pois, considerável, ao mesmo tempo na vísáo da disciplina e nos meios de a praticar. O dominio, cujo prestígio se apoía, bem entendido, no dos profissionais que nele trabalham, nao se contenta em utilizar os desenvolvimentos das outras disciplinas, ele coordena o seu, ou seja, estimula-os. Os Iacos entre a íntegracáo de funcóes como 1/...ji -x4 e as solucóes de y2 = 1 - x4 abrem novas perspectivas de ínvestígacáo e, nos seus trabalhos sobre as funcóes analíticas, o matemático alernáo Karl Theodor Wilhelm Weierstrass póde inspirar-se nas ínvestígacóes sobre a factorizacáo cuja importancia sublinhámos mais acima. A teoría dos números tornou-se a -rainha das matemáticas», segundo a expressáo de Gauss, Esta rainha determinou simultaneamente a sua corte: ñxaram-se fronteiras, que precisam e díficultam as condícóes de acesso. Já vimos qual a formacáo implícita que permitia a compreensáo dos textos: Fermat talvez tivesse algumas dificuldades em reconhecer os seus problemas mas os teóricos dos números do século XIX designarn-no claramente (nern sempre tendo-o lído directamente) como o seu longínquo antecessor. Como e por que razáo a sua heranca, particularmente, se transmitiu? Como e por que razáo frutificou assim? Devemos regressar as suas fontes para compreender.
Perspectivas Fermat, como se disse, meditou sern dúvida nos trabalhos e na abordagem algébrica de Viere. Ora o seu Déft aux matbématiciens soa como urna profíssáo de fé que é conveniente estudar: -Dificilmente se encontra alguém que proponha questóes puramente aritméticas, dificil mente se encontra alguém que saiba resolver (os problemas sobre os números), Será porque a aritmética foi preferencíalmente tratada até hoje por meio da geometria ao invés de por ela própria? É a tendencia que apa114
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rece na maior parte das obras tanto antigas como modernas, e no próprío Diofanto. Apesar de se ter afastado da geometría um poueo mais que os outros, constrangindo a sua análise a considerar apenas números racionais, nao se livrou dela completamente, como o provam abundantemente os Zététiques! de Víete, nos quaís o método de Diofanto é estendido a quantidade contínua e, na sequéncia, a geometría. No enranto, a aritmética tem um domínio que lhe é próprio, a teoria dos números inteiros, esta teoria só muito ligeiramente foi esbocada por Euclides e nao foi suficientemente cultivada pelos seus sucessores I.. .l: os aritméticos tém, país, de a desenvolver 00 renovar-. Eis, poís, um assunto e urna unidade; eis, pois, urna linha de pensamento, mantida bastante firmemente noutros pontos da correspondencia: ao considerar métodos extensíveis as quantidades contínuas (~geométricas..), as particularidades dos números inteiros desaparecem. É preciso, pois, estabelecer um método mais adaptado. É exactamente o papel que desempenha a famosa -descida infinita- de que falámos: ela indica como fazer entrar a específícidade dos inteiros num raciocínio apoiado sobre um formalismo algébrico. Já mostrámos como este tipo de procedimento, tornado corrente, conduziu a urna ínterrogacáo mais avancada da própria nocáo de inteiro e das suas características: podemos do mesmo modo compreender- como é que urna seleccáo operando segundo os critérios profissionais do século XIX pode distinguir-se por Fermat. Alérn de questionannos outros traeos ainda, este parece-se com aqueles teóricos dos números do século XIX, cujo comportamento dorninámos: a sua restauracáo de tratados gregos nao é a obra típica do devotamento paciente ao progresso da ciencia? Estas tentativas para convencer Pascal e Carcavi, perto do fim da sua vida, a ajudá-lo a publicar, mesmo a escrever e a completar os seus trabalhos numéricos, nao serna expressáo, pelo menos arrependida, de urna preocupacáo de dífusáo comunitária? Nao fornece ele, por alturas do episódio dos Défis aux matbémattctens, informacóes preciosas sobre as suas lnvestígacóes em curso: -Sabe-se que Arquimedes nao desdenhou trabalhar sobre proposícóes de Cónon que eram verdadeiras, mas nao provadas, e as soube munir de dernonstracóes de urna alta subtileza. Porque nao deveria eu esperar urna ajuda semelhante dos vossos eminentes correspondentes, porque, Cánon francés, nao encontraria eu um Arquimedes ingles?- E explicitar conjecturas sobre a primalidade de 2'" + L O que isso, preterencialmente, nos ensina, é que as condicóes de valídacáo de urna tal actividade nao pertencem a um indivíduo isolado. O -tecido.. matemático, aritmético, está demasiado desfíado: a verdade, concretamente, é que, quaisquer que sejam as declaracóes de íntencáo 1 les Zététfques de víete. víere vía a -análíse. como a verdadeíra fonte das descobertas matemáticas (por oposícáo a exposícao sintética da geometría euclidiana). Dlstíngula tres especies de análises, de que a Zétética corresponde a por um problema em equacáo, a Porístíca á vertfícacáo, e a Exegética a detenninacáo propriamente díta das solucces de urna equacáo. Aplicou em particular os seus esforcos a releitura algébrica de obras gregas, entre as quais a Aritmética de Díofanro.
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de Fermat e as múltiplas leituras que delas podemos fazer, ele nao encontrará entre os seus contemporáneos qualquer Arquimedes ingles para completar ou infirmar as suas conjecturas, nem mesmo qualquer Cauchy para emitir dúvidas sobre a sua validade; ninguém o ajudará a redigir nem sequer a publicar os seus trabalhos sobre os números (as tentativas de Carcavi chocaráo com a inércía de Huygens e, depois da morte de Fermat, o próprio Carcavi parecerá pouco disposto a oferecer ao filho de Fermat as cópias das preciosas cartas que recebeu do paí), os seus ardentes defensores neste domínio, o pai de BilIy el cabeca, parecem mais impressionados pelo número de solucóes que ele pode obter que pela maneira como as obtém, sobretudo, muito mais grave, um desdém geral da parte dos mais talentosos matemáticos da época, daqueles que comecam a formar o que se tornará urna comunidade científica, acompanha as suas actividades numéricas. Já mencionámos a redaccao de Wallis e a de Descartes; Frans von Schooten espeta ainda mais o prego: trocando do tom empregue por Frénic1e por altura do anúncio da sua solucáo para as questóes de Fermat, escreve: ·L.. ] Eis que Paris dá esta solucáo de problemas que nem os vossos ingleses nem os belgas puderam provar de modo nenhum: a Gália céltica está orgulhosa de levar a palma el narbonesa, etc. Como se fosse um assunto de Estado conhecer esses números e que todos devessem dar tanta importancia a esta solucáo como se nao soubessem onde empregar mais utilmente o seu tempo-, No Fim do século XVII, como pressentimos com a leitura das correspondencias, forma-se um meio, as academias ganham um A maiúsculo e recebem subvencóes reais; a das Ciencias é fundada ero Franca ero 1666 contando entre os seus membros com Carcavi, Frénicle, Roberval: na Inglaterra, a Royal Society publica os seus Pbilosopbical Transactions a partir de 1665, onde -poderá parecer que numerosas máos e espíritos estáo ero muitos lugares industriosamente ernpregues-, para «o beneficio geral da humanídade-, O bem público está na ordem do dia, os progressos do homem passaráo pelos progressos da ciencia colocada ao servíco do Estado: o acento é pasto sobre a utilidade e as comodidades socíaís, lidas muitas vezes em funcáo das novas classes e das prioridades da revolucáo industrial. Se existe, portanto, constituicáo de urna comunidade matemática, esta nao inclui a aritmética nas suas temáticas de base. Facto altamente simbólico a este respeito é que no primeiro volume das Transactions está contida urna necrologia de Fcrmat, ande sao evocadas as suas principais obras, o seu cargo de conselheiro, mas quase nenhum- dos seus trabalhos sobre os números. Como é que eles puderam, entáo, dais séculos mais tarde, ser objecto de um prémio? Onde estáo, pois, os herdeiros de Fennat? Urna primeira resposta foi-nos fomecida pelos próprios profissionais: foram Euler, depois Lagrange, Adrien-Marie Legendre, Gauss que eles estudaram e sobre os quais meditaram. Euler constitui, aliás, o exemplo de um caso de transícáo ideal: a sua educacáo matemática é feíta junto de Bernoulli, depois obtém e ocupa com brilho vários pastos junto das Academias de Sampetersburgo e Berlim; publica inúmeros artigos ero revistas, por exemplo nas Acta eruditorum criadas por Leibniz coro 116
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base no modelo das Transactions. Mas a sua contribuicáo para a teoria dos números ~SÓ» ocupa quatro dos cerca de setenta volumes das suas obras completas: Frederico II decerto que nao lhe paga para que a ela dedique a maior parte da sua energía: as suas actividades incluem de preferencia conselhos aos engenheiros militares, trabalhos de balística e de artilharia, e o estabelecimento de cartas geográficas prejudicará gravemente a sua vista; foi devido a urna correspondencia coro Christian Goldbach, um desses nós da cornunicacáo científica de que encontrámos vestígios noutros períodos, que ele descobriu a conjectura de Fermat sobre as potencias de 2 e se lancou ao ... jogo: dedicará a reconstítuícáo ou ao complemento das afírmacóes de Fermat a maior parte dos seus trabalhos aritméticos, chegando ao ponto de mandar procurar (ern váo, aliás) restos de cartas ou de indicacóes deixadas eventualmente por Fermat sobre as suas dernonstracóes, A chama, reavivada pelas trocas com Lagrange,. nunea rnaís se apagará. Mas estes nomes famosos apenas permitem balizar as mudancas de métodos. Se Goldbach evoca numa carta a Euler, de maneira insistente, as hipóteses de Fennat, é porque continuam a existir, ao longo dos séculos XVII e XVIII, amantes dos números que transmitern a heranca e impedem que ela se delapide num esquecimento completo. A chegada em massa dos profissionais fará recuar definitivamente os práprios BilIy e Frénicle. Em dois sentidos: urna exclusáo histórica apagá-los-á das filiacóes estabelecidas para identificar os precursores, Fennat na ocorréncia; urna exclusáo sociológica, de que demos' pormenores de alguns aspectos mais acima, empurrá-Ios-á para fora do meio em constituicáo; algures, nas revistas de entretenimento, nas cartas as academias, acolhidas com um suspiro divertido ou aborrecido quando anunciam a quadratura do círculo ou a demonstracáo geral do teorema de Fermat por métodos elementares, dispersar-se-áo os verdadeiros amadores sobreviventes, cujos múltiplos pereursos, origens e motívacóes complexas oferecem poueas referencias a quem os quiser identificar; os seus contornos dissolvem-se, as suas histórias individualizam-se, a «tomada em massa.. de um meio levou-os para o exílio, para as margens, mais urna vez, do nosso propósito. Será, poís, sobre o centro que fixaremos a nossa atencáo. Diga-se o que se disser, urna universidade nao sao apenas professores: também sao estudantes, secretários, responsáveis pela administracáo e pela manutencáo, é o dinheiro para os cursos, os salários, a expedicáo do correio, a acurnulacáo das bibliotecas. Como e em que medida tudo isso pode finalmente ser mobilizado, decifrado, eompreendido, em termos de urna propriedade dos números? Dito de outra maneira, para retomar a expressao de Sehooten, como é que estes se tomaram um -assunto de Estado»? No fim do século XVIII, a teoria dos números nao passa ainda de um caminho no campo cujas auto-estradas matemáticas ignoram soberbamente as margaridas. O primeiro historiador moderno das matemáticas, ]ean-Étienne Montuda, pode escrever ainda: "A geometria é a chave geral e única das matcmáticas.» Urna mulher, Sofie Germain, afastada pelo seu sexo de urna formacáo superior, pode ainda resolver com sucesso, por métodos elementares, alguns casos do problema de Fer117
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mat e manter com Gauss urna traca de pontos de vista real. Este último, aliás, depois da publicacáo das Disquisitiones, cuja importancia já referimos mais acima, procura um pasto mais independente das generosidades do seu protector: precisa de se consagrar, diz, a ocupacóes mais úteis (seria a astronomía). Qualquer que seja a atraccáo sempre ardente de Gauss pelos problemas de números, quaisquer que sejam a sofistícacao e a dificuldade das técnicas empregues, ainda estamos longe da atitude de um Kummer que empreenderá as suas ínvesrígacóes neste domínio depois da sua nomeacáo para a universidade. É numa geracáo, parece, que o ponto de vista bascula: o mundo, durante este período, também bascula nas tempestades revolucionárias ... Ao longo de todo o século XVIII, a Franca ocupa na Europa urna posícáo política e intelectual notável. É um francés, Maupertuis, que preside a Academia de Frederico Il, e nao Euler; sao as ideias francesas das Luzes que fornecem as referencias ideológicas mais difundidas; sao os franceses que sao lidos, admirados, detestados. As derrotas alemas diante de Napoleáo constituem o ponto culminante deste estado de espirito; Gauss, sempre representado, provavelrnente com alguma razáo, na sua torre de marfím, comenta-as com horror e forca. Face a elas, urna resposta dos generais, que é ao mesmo tempo urna explicacáo, urna desculpa e um rernédío: foi devido a formacáo científica dos seus militares que a Pranca venceu; foi por causa das escolas como a Politécnica ou as escolas centráis, estabelecidas durante a Revolucáo, que a Prússia perdeu. O que agora nos choca, é o que este discurso operou; os írrnáos Humboldt - Alexander, principalmente, que conhece as matemáticas francesas e é favorável ao desenvolvimento da disciplina na A1emanha - e Crelle sao levados a dar a sua contribuícáo, Este último foi enviado em míssáo para Franca. O seu relatórío, muito positivo no conjunto, emite urna reserva muito estranha, sobretudo para um especialista de questóes técnicas: parece-lhe que em Franca há demasiada insistencia posta nos problemas ímediatos, concretos e práticos, ero detrimento de urna verdadeira formacáo própria ao desenvolvimento da pessoa. Para melhor compreender esta crítica, é preciso lembrar-nos que as prioridades na Franca e na Prússia no século XIX sao muito diferentes. Relativamente a Franca, e mais geralmente aos países do Oeste europeu, a Prússia tero um atraso tecnológico considerável, mas, na altura do declínio da influencia francesa, ainda nao há nenhuma -classe industrial.. pronta a agarrar o testemunho; as actividades inteleetuais, ainda por cima, e ísto é maís urna diferenca relativamente ao caso da Franca, foram durante muito tempo mantidas em descrédito. Contudo, é preciso dar as novas classes ascendentes os meios para a sua instrucáo e um sentimento de íntegracáo na sociedade que se constróí. O rancor admirativo para com a Franca, exacerbado pela derrotas militares, leva a recusa do racionalismo imposto segundo o modelo das -Luzes.. e é na filosofía «neo-humanista.. que o sentimento nacionalista vai buscar os temas e os modelos da sua expressáo, Postulando a unídade fundamental do ser, do pensamento, do desenvolvimento do índi-
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víduo e do bem social, esta nova maneira de pensar os problemas le-se ern numerosos lugares da vida prussiana do século XIX. Essa mesma carta, em que Kurnmer exortava o seu aluno a trabalhar cuidadosamente e a avancar por pequenos passos, continua com estas palavras significativas: -O que aqui digo é válido na generalidade, diz respeito a tudo o que releva do desenvolvimento, sim, tanto da histófía do mundo, da vida dos estados como dos indívíduos-. Kurnmer, filho de pastor tornado reitor da Universidade de Berlim, é
um exemplo típico de ascensáo social na Alemanha do século
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como, aliás, Fermat o era na Franca, filho de um mercado! abastado acedendo a nobreza de toga, no século XVII em Franca. Face a isto, é instrutivo comparar a composícáo da sociedade matemática francesa com o que sabemos dos matemáticos alernáes: aos filhos de pastores universitários correspondem os engenheiros e os artilheiros ... Compreende-se melhor, entáo, que, em 1810, na Universidade de Berlim, recentemente criada, sejam os departamentos de Filologia que fornecern os modelos científicos considerados universalmente válidos e, paralelamente, os salários mais elevados. Gauss desejaria, aliás, na sua juventude, consagrar-se a esta disciplina, e é ainda ela que é estudada por muitos dos nossos teóricos dos números quando entram na uníversidade. Por várias vezes, Kummer, quanto a ele, afirma que matemáticas e filosofia nao passam de duas formas de urna mesma actividade ... A mesma interpretacáo encontra-se, aliás, para além das origens sociais e das c1ivagens políticas: Carl jacobi, primeiro professor de origem judia a ser nomeado na Alemanha, e tao radical politicamente como Kurruner é conservador, escreve ao matemático francés Legendre: ..É verdade que Monsieur Fourier tinha a opiníáo de que o objectivo principal das matemáticas era a utilidade pública e a explicacáo dos fenómenos naturais; mas um filósofo como ele deveria saber que o fim único da ciencia é a honra do espírito humano e que, sob este título, urna questáo de números vale tanto como urna questáo do sistema do mundo-, As exigencias económicas do momento, a necessidade da forrnacáo profissional, da apendizagem, portanto do desenvolvimento das universidades, juntam-se os constrangimentos impostos por estes mesmos grupos que nela se implantaráo e a vontade de pureza disciplinar. Encarregados de cursos na universidade ou na escola militar, os teóricos poderáo consagrar-se a ínvestígacáo que quiserem, já que, de qualquer modo, urna harmonia obrigatória lhes garante o interesse social. O tema oficioso da liberdade académica vai surgindo como um leitmotivapropriado nos discursos ofícíaís: nada deve travar a livre marcha do espírito, visto, aliás, menos como um progresso racional que como um elemento constitutivo da boa marcha do mundo. A teoria dos números e mais geralmente as matemáticas ditas -puras- implantaram-se, pois, preferencia/mente as disciplinas orientadas para aplícacóes práticas imediatas, nas universidades em que aquilo que hoje em dia chamaríamos ciencias humanas, ou mesmo domínios literários, predominavam: eram os aliados quase naturaís defendendo a sua progressáo e o seu estatuto profissional pelos mesmos argumentos. A mudanca de méto119
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dos tornava, aliás, esta adopcáo mais fácil, urna vez que as técnicas matemáticas mais sofisticadas eram aí doravante empregues e podiam, portanto, ser aprendidas. Este estado de espírito forja até ao cerne o artigo de Kurnmer sobre os números ídeais. tendo a sua hístória permitido que cornpreendéssemos melhor o comportamento de um profissional da teoría dos números, é justo que nos permita detectar também as condícóes particulares pelas quaís esta disciplina se tornou urna profíssáo. Depois de ter explicado porque foi obrigado a introduzir estes números ideáis, Kununer compara-os aos radicais da química, ciencia crescente e em breve poderosa na segunda metade do século xrx, estes radicáis testernunham, díz Kummer, a presenca de um fenómeno físico, sem serem eles próprios isoláveis. Depois acrescenta: «Estas analogias nao devem ser consideradas como jogos do espirito; pelo contrário, encontramos nelas um bom fundamento de como a química tal como a teoria dos números, de que tratamos aquí, térn, mesmo que estejam em duas esferas diferentes do Ser, a mesma concepcáo de base como princípio, a saber: o da composícáo L.,], A química dos materíaís naturais e a matemática, tratada aquí, dos números complexos devem ser vistas como reaiizacóes do conceíto de composicáo e das esferas conceptuais que dele dependem: aquela como urna (realízacáo) física, ligada as condicóes da existencia exterior e por consequéncía mals rica; esta, como urna (realízacáo) matemática, perfeitamente pura na sua própria necessidade, mas por Isso mais pobre que aquela-, Ficaram assim estabelecídos, no próprio cerne da teoria dos números, os princípíos que presidem a sua institucionallzacáo, já indicámos brevemente que condicóes socioeconómicas a tínham acompanhado. Torna-se agora mais fácil de compreender porque é na Alemanha do século XIX e nao em Franca que a aritmética se torna urna disciplina profissional. Decompor urna potencia ern soma de duas potencias seme1hantes ... Demonstrar que este problema só admite solucóes se as potencias respeitantes verificarem algumas condicóes ... A fllíacáo aparente mais nao fez que sublínhar as diferencas de estatuto destes dois enunciados: a ciencia com rendas e a atraccáo sempre viva das adivínhas divertidas propostas a sagacidade dos amadores dos números amarraram-se progressivamente a urna linguagern técnica inacessível aos nao-especialistas, fizeram desaparecer na poeira académica o perfume da aventura, garantiram o jogo intelectual através de distincóes universitárias, em suma, acederam a seriedade e ao reconhecimcnto social das matemáticas profíssíonaís. Identificar traeos característicos do amador e do profissional permítíu mostrar que estas distincóes só ganham sentido, na medida em que urna colectividade referenciada lhes fixa as definicóes, as tracas e as regras, Também vimos que urna disciplina, para se desenvolver profíssionalmente, deve mobilizar um número importante de recursos que nao se exprimem forcosamente, pelo menos, em termos de utilidade restrita. Ou melhor, o facto, concreto se o for, da ínsercáo preferencial, 120
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na Alemanha, das matemáticas puras constrangiu-nos a procurar' formas de utilidade pública inesperadas. A profissíonalízacáo das disciplinas sem aplicacóes ímediatas nao acorre simplesmente «30 abrigo» das que as térn, mesmo se, certamente, o interesse marginal de profissionais estabelecidos contríbua para a ímplantacáo, no momento adequado, de urna disciplina até entáo desdenhada. Tarnbérn nao se trata forcosamente de um risco tomado por urna sociedade suficientemente desenvolvida, risco de que um domínio produza a longa prazo resultados utílizáveís: seria preciso ainda precisar por quem e para que. Nem é o luxo inevitável que acompanha o -progresso- e encoraja com o mesmo impulso toda a actívidade desinteressada, artes, música ou teoría dos números. O movimento de desdobramento disciplinar, o reconhecimento público de actividades sao menos frequentemente acasos felizes que resultados de tensóes, por vezes, contraditórias, por vezes concordantes, que procuram solucáo. O investigador, sobre a sua folha, pode e deve esquecer que .existcm outros mundos, mas a necessidade de permanecer no parlamento de Toulouse, arrisca-se a afastá-Io dela a qualquer momento, Também somos os herdeiros do século XIX, e o discurso dos seus teóricos dos números, aqui decífrado, flutua ainda nas nossas cabecas: matemáticas puras contra matemáticas aplicadas, utilidade pública que é preciso reler a todo o momento o que contém, honra do espírito, sim, até as versóes remodeladas da sua própria história, foi ainda a eles que fomos buscar algumas maneiras de olhar as matemáticas e a sua estranha relacáo com o mundo. Este, contudo, mudou, como mudaram as subtis aliancas que ligam sabiamente entre si a teoria dos números, a economia pública e a promocáo social. Afastámos por várias vezes as explícacócs devidas a simples inércia ou ao acaso: sob que ouropéis deslustrados do século XIX, que fio domina a teoria dos números moderna?
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A afinidade ambígua: o sonho newtoniano da química do século XVIII ISABELLE STENGERS
Onde se perguntará como um conceito se pode tornar "caduco", ainda que ele tenha, durante um século, organizado a linguagem, as operacóes e os raciocinios de urna ciencia. Onde se verá como, por duas vezes, a química se tornou "moderna".
roblema de método: é conveniente falar de história «da» ciencia, ou de hístóría das ciencias? Cada uro dos termos desta alternativa pode revelar-se igualmente simplificador. Hístória da ciencia pode subentender que existe urna vía científica: esta vía distribuir-se-á numa série de campos por simples divisáo do trabalho, mas sempre, para além da particularidade de cada ciencia, se pode reconhecer -a. ciencia, a identidade para lá da diversidade. Mas a história das ciencias pode ser igualmente carregada de julgamentos a Priori: neste caso, cada ciencia cría a sua vía particular, que é preciso identificar na sua pureza, para alérn das aparéncias comuns e especialmente das operacoes de unifícacáo que diremos entáo artifidais ou ideológicas. Neste caso, o historiador segue a díssolucáo dos pressupostos, a aparicáo duma consciencia clara da especifícidade do objecto e dos instrumentos conceptuais e técnicas que lhe correspondem. O caso da química é, deste ponto de vista, extremamente interessante: permite deslocar a questáo e transformar-lhe o sentido. Urna ciencia, ou ciencias, nao é em princípio urna questáo metodológica, colocada pelos historiadores, mas urna questáo colocada pelos próprios químicos ao longo da sua história. Quando é que a química se tornou digna do -título- de ciencia? Como -descobriu- ela a natureza das suas Iigacóes com a física? Como assegurou ela a sua autonomia em relacáo a actividade de producáo artesanal e, a seguir ao século XIX, industrial? E finalmente, é a química urna ciencia específica, ou deve ser concebida como um ramo especializado -da ciencia- em geral? Estas questóes
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parecem-se com aquelas que o historiador deve analisar. Mas de facto, estas sao também as questóes de certos actores da hístória que o historiador tenta cornpreender, e estes actores sao, como o historiador, referidos a história da sua ciencia para sustentar as suas respostas, para defender um certo futuro, urna certa identidade para a química. Se fosse necessário entáo reformular o problema «metodológico» do historiador, diría que ele deve evitar tomar-se actor entre os actores, quer dizer, compreender as questóes que eu acabo de citar - e que, todas, implicarn julgamentos de valor - nao como questóes as quaís ele próprio deve responder, mas como elementos da intriga que ele tenta descobrir. É a química urna ciencia singular, e se sim, de que natureza é a sua singularidade? Escutemos um primeiro actor, Fontenel1e, em 1699: uA química, através de operacóes visíveis, divide os corpos em certos princípios grosseíros e palpáveis, sais, enxofres, etc., mas a física, por especulacóes delicadas, age sobre os princípios como a química fez sobre os carpos; ela divide-os noutros princípios ainda mais simples, em pequenos corpos em movimento e representados duma infinidade de maneiras ... O espirito da química mais confuso, mais embaracado, assemelha-se mais as misturas, onde os princípios esráo mais embruIhados uns nos outros; o espírito da física é mais simples, mais solto, enfím ele vai até as primeiras origens, o outro nao vai até ao fundo». Pequenos corpos em movírnento e figurados: é urna alusáo a química cartesiana, mas se nós formos para Iá desta precísáo que permite datar o texto, se nós substituirmos por exemplo -príncípios grosseiros- por «elementos químicos», e -pequenos carpos» por ..f uncoes de onda quántíca-, muitos físicos contemporáneos, e mesmo certos químicos, aceitaráo o diagnóstico: com efeito, seria impossíve1 distinguir a química da física; esta permltiu compreender o quadro de Mendeleiev cuja constítuicáo é simultaneamente o resultado e o fundamento de toda a prática química (Mendeleiev: história duma descoberta; a verdadeira diferenca, que pode justificar urna distincáo sem razáo, resume-se neste dítado bem conhecido: uA física compreende-se, a química aprende-se». O -espírito do físico» liga-se a elucídacáo das relacóes entre os ..primeiros príncípíos- e suas consequéncias, enquanto que os. químicos se interessam pelas «misturas», pelos casos complicados ande estes prínclpíos estáo efectivamente «enredados», ande os raciocínios nao sao maís que urna mistura entre inteligibilidade teórica e aproxímacócs autorizadas pela experiencia. A especificidade da química vern-Ihe, portanto, do facto de as operacoes que ela comporta e as questóes que ela coloca serem determinadas nao pela teoria mas pela sua utilidade. A química é um híbrido produzido pelo compromisso entre inteligibilidade física e preocupacóes práticas, Criticar este modo de caracterízacáo, insinuar que, talvez, os compromissos aos quais estáo reduzidos os químicos traduzem menos o seu comprometimento com os interesses utilitários que os limites destes famosos -prímcíros princípios- (quánticos), é urna tentacáo a qual nao há nenhuma razáo para nao ceder, mas cujo preco é aceitar tomar-se actor e, como os outros actores, utilizar todos os argumentos disponíveís, teórié
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cos, históricos, epistemológicos, socio políticos, para tentar urna operacáo, neste caso a transformacáo da imagem da química. Resistamos portanto a tentacáo, para permanecermos historiadores, sabendo, no entanto, que a -história das ciencias" faz, ela própria, parte da história das diferentes ciencias. E ísto, tanto a montante, no que respeita as questóes que o historiador será levado a colocar, a seleccáo, sempre efectuada, sempre a refazer o trabalho, entre o que é concebido como -devendo ser elucidado" sobre fundamento daquilo que parece -natural-, como a jusante, no que respeita a utílizacáo dos produtos da narracáo histórica na críacáo das imagens que os cientístas oferecem deles próprios ou nas controvérsias que os dividcm. Colocarei portanto aqui um problema -propríamcnte históríco-, no sentido em que todos os actores científicos actuaís o considerarn como estabelecído, mas que permite reistoriar o diagnóstico contemporáneo da química, isto é, mostrar que nao é uro resultado mas a solucáo real para um problema que acompanha esta ciencia depois de que a cíentifícídade se tomou um jogo de controvérsias. Este problema é o que a história da nocáo de afínídade coloca.
A afinidade caduca? Hoje, quando os químicos utilizam a nocáo de afínidade, sítuam-se no quadro da -termodínámíca quírnica-, formalismo fundado a partir da segunda metade do século XIX, com os trabalhos de físico-químicos como Cato Guldberg e Peter Waage, August Horstmann, Henry Le Chatelier, jacobus Vanit Hoff, josíah Willard Gibbs, Pierre Duhem, etc. Este formalismo constitui urna extensáo a descrícáo das reaccóes químicas da termodinámica.usto é, duma ciencia física. Por outras palavras, a história da nocáo de afinidade a partir dos anos 1860 até aos nossos dias remete para a física, tal como a ínterpretacáo do quadro de Mende1eiev a partir do prímeiro decénio do século xx. Contudo, nao se trata aquí só de interpretacáo. Como iremos ver, a afinidade dos químicos do século XVIII integrou os problemas da -ligacáo química .. e da reaccáo química no decorrer da qual celtas ligacóes se fazem e outras se desfazem. A afinidade termodinámica relacionar-se-á exclusivamente com a direccáo em que as reaccóes químicas se produzem. A razáo por que urna reaccáo se produz nao é tratada pela termodinámica mas é remetida para a análise quántica. A afinidade termodinámica fez da reaccáo química urna funcáo de condicóes gerais (termodinámicas) enquanto que a mecánica quántica é suposto compreendé-la, no que respeita a críacáo e destruicáo de Iigacóes entre átomos. Urna tal disjuncáo entre a questáo da reaccáo e a das suas condícóes é suficiente para assínalar que a afinidade dos químicos de hoje nao é a afínídade dos químicos do século XVIII. Esta, longe de ser urna -primeira aproximacáo- da afinidade moderna, desapareceu sem deixar rasto, e foi a um passado enterrado da sua ciencia que os químicos, UDS cinquenta anos mais tarde, retiraram o termo, A afinidade dos químicos do século XVIII é exactamente o tipo de nocáo que um historiador filósofo como Gaston Bachelard denomi-
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naria de caduca, isto é, urna nocáo puramente parasita, traduzindo um obstáculo epistemológico, eliminável sem prejuízo para a verdadeira história das ciencias, aquela que póe em cena a dinámica da razáo científica. Eis aliás como Bachelard, ero O Materialismo Racional, julga aquele que será um dos nossos principais protagonistas, o químico Berthollet: -Como é que urn grande químico como Berthollet, um experimentador credenciado, se pode satisfazer com urna visáo como esta: "As forcas que produzem os fenómenos químicos sao todas derivadas da atraccáo mútua das moléculas a qual se deu o nome de afinidade, para a distinguir da atraccáo astronómica. É provável que urna e outra nao sejam senáo urna mesma propriedade'v, Bachelard -julga- portanto Berthollet em nome duma evidencia própria do século xx: a ligacáo química nao tem nada a ver com a forca de atraccáo entre as massas. E ele redobra a sua condenacáo recorrendo ao contexto histórico: para amostrar a vaidade de tais pontos de vista, que aproximam a astronomia e a química numa penada.., Bachelard cita uro outro exemplo de -síntese gratuita.., a aproxímacáo entre relacóes humanas e -afinidadcs ou relacóes químicas" que tenta na mesma época o escritor francés Louis de Bonald. -Aproxírnacóes entre temas tao afastados imprimem aos dois temas o valor de cultura". Bonald nao é senáo um exemplo, e Bachelard teria podido citar outros nomes, como Schelling, Hegel ou Nietzsche, pois todos julgaram o problema da relacáo entre aflnidade e atraccáo física digno de ser discutido. Ele tería podido sobretudo pór a ridículo as Afinidades Electivas de Goethe, que, nós voltaremos lá, coloca a -atraccáo química" no cerne duma intriga ande a fatalidade da paíxáo se opóe a calma legalidade do casamento. Em todo o caso, a afinidade é duplamente condenada, pelo progresso da ciencia e pelo facto de a sua sígníñcacáo nao ter ficado estritamente circunscrita a urna disciplina científica, prova de que ela estava carregada de muitos outros ínteresses para além dos da ciencia. Mas o veredicto de Bachelard coloca um problema, que será o deste texto. Na verdade, no fim do século XVIII e no princípio do XIX, a nocáo de afinidade nao era -pura-. Ela representava efectivamente, dentro da cultura científica, a questáo da relacáo entre ligacáo química e forca de ínteraccáo newtoniana, quer dizer, também a da eventual especificidade do objecto da química, e tem por isso interessado todos os que discutiram o alcance e o significado dos -prírneiros principios. da física. Mas neste caso, o carácter -irremediavelmente caduco. desta nocáo de afinidade, mal-grado a sua retoma pelos termodinámicos, cinquenta anos mais tarde, nao pode ser separado do destino da questáo das relacóes entre a física e a química. Daí o problema: quem é que tornou caduca a questáo que colocava a afinidade, de tal modo que, hoje em dia, nós pudéssemos constatar esta estranha ressonáncia entre o diagnóstico de Fontenelle e a opíníáo dominante dos físicos conternporáneos: a química é um ramo da física singularizada pelo carácter aproximativo, ou grosseiro, de operacóes simultaneamente intelectuais e práticas? .A física cornpreende-se, a química aprende-se».
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A química newtoniana em terra cartesiana Qual é a origem da nocáo de afinidade? Faz-se remonta-la a maior parte das vezes a Tabela das Diferentes Relacoes Observadas entre Diferentes Substancias publicada por Geoffroy em 1718. Relacáo e nao afinidade? o facto de, muito rapidamente, um termo substituir o outro é menos significativo do que a ausencia dum terceiro, o da atraccáo, como iremos ver. A -afinidade.. fazia, nessa época, parte do vocabulário tradicional da quírníca, mas tarnbém da alquimia. Como precisa retrospectivamente o artigo -Afínidade- de Louis Bernard Guyton de Morveau publicado no Suplemento de 1776 da Enciclopédia de Diderot: -Este termo sempre teve um sentido vago e indeterminado que indicava uma espécie de simpatía, urna verdadeira propríedade oculta, pela qual diferentes corpos se uniam mais ou menos facilmente-, Seria inútil tentar precisar aqui os antigos significados da afinidade, alquímicos ou químicos: estes significados sao esquecidos, ignorados, e sobretudo desprezados, pelo conjunto daqueles que retornaráo no século XVIII o termo que eles consideram como a pré-história da química. No que lhes diz respeito, o termo -afinidade- tem por primeira propriedade ser -neutro-, pertencer simplesmente a tradicáo própria dos químicos, e portanto nao fazer julgamentos prévios das relacóes entre esta ciencia e a física newtoniana. Trata-se da ímportacáo da química newtoniana para Franca, duma írnportacáo pelo menos problemática, urna vez que a Franca intelectual é oficialmente cartesiana e rejeita as forcas propostas por Newton como um desses poderes ocultos - actuacáo a distancia - dos quais a física cartesiana tinha precisamente despojado os corpos. Geoffroy nao se afirma -newtoníano-, mas ele visitou Londres em 1698, foi nomeado membro da Royal Society, tornou-se em seguida correspondente ofícial da Academia das Ciencias através da Royal Society e, entre 1706 e 1707, apresentou a Academia, em dez sessóes, a Óptica de Newton, E o que é a Tabela das Diferentes Relacoes Observadas entre Diferentes Substancias que ele propóe? As reaccóes químicas que denominamos de -deslocamento-: um carpo substitui-se a outro na sua lígacáo com um terceiro. É este -terceíro corpo- que figura a cabeca de cada coluna, seguido por todos os carpos susceptíveis de se combinar com ele, e este, dentro da ordem determinada pelos seus deslocamentos mútuos: um carpo desloca todos aqueles que o seguem e é deslocado por todos os que o precedem. Vamos agora ler este extracto da Óptica: -Uma solucáo de ferro em água-forte díssolve o cádmio que aí se mergulha e liberta o ferro; urna solucáo de cobre dissolve o ferro e liberta o cobre; urna solucáo de prata díssolve o cobre e liberta a prata; se deitarmos urna solucáo de mercúrio em água-forte sobre ferro, cobre, estanho ou chumbo, este metal dissolve-se e o mercúrio precipita-sc-. Na terceira coluna do quadro de Geoffroy, a que díz respeíto ao ácido nitroso (ou água-forte). As observacoes de Newton figuram aí para o essencial (o ferro desloca o cobre que desloca o chumbo que desloca
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o mercúrio que desloca a prata), mas nao a conclusáo que Newton tirou: -Náo mostram estas experiencias que as partículas ácidas da água-forte sao mais fortemente atraídas pelo cádmio que pelo ferro, mais fortemente pelo ferro que pelo cobre, pelo cobre que pela prata: que elas sofram urna mais farte atraccáo para o ferro, o cobre, o estanho 00 o chumbo que para o mercúrio?.. A atraccáo newtoniana desempenhava, contrariamente el -relacáo- que apresenta prudentemente Geoffroy, um duplo papel: ela explica simultaneamente a ligacáo quimica e a reaccáo onde as ligacóes se transfonnam. A apresentacáo agnóstica de Geoffroy enganou pouca gente. fonteneUe, cartesiano, assinalou ainda no seu Elogio de Geoffroy, em 1731, que estas afinidades -provocaram desgasto a alguns, que acreditaram que elas nao eram mais que atraccóes dísfarcadas, tanto mais perigosas quanto gente habilidosa tinha já sabido dar-Ihes formas sedutoras-, Abramos uro paréntesis, De acorde coro a actual leitura da vida de Newton, o estudo das associacóes e dissociacóes entre carpos químicos terá sido um dos grandes temas de investígacáo deste último que, note-se, passou mais horas em experiencias de laboratório do que em cálculos. De acordo com esta leitura, a ideia duma forca actuando entre os carpos nao seria o puro produto duma metodologia hipotético-dedutiva visando explicar os movimentos dos planetas. Seria, de facto, para tentar matematizar as atraccóes entre carpos que Newton se interessaria primeiro pela astronomia, enguanto caso particular e, esperava ele, mais simples, tendo-Ihe vindo da química esta nocáo, antímccanícista, de atraccáo, Mas a maternatizacáo do céu provocaria esta gigantesca surpresa: urna única forca, universal, é suficiente para dar canta de todos os movimentos. As atraccóes nao sao especificas de cada planeta. Urna forca, universal, directamente proporcional apenas a massa dos corpos que ela une e inversamente proporcional ao quadrado da distancia que os separa, é suficiente para dar conta dos movimentos dos planetas. Esta interpretacáo do caminho de Newton toma mais inteligível o seu abandono do problema kepleriano que admite a nocáo de forca. O problema -kepleriano- clássico, que é também o de Huygens e de Leibniz, implica que os planetas girem, cada um por si, em torno do Sol: trata-se de explicar cada órbita, e é neste sentido que será primeiro lida a proposícáo de Newton: o Sol -atraí- cada planeta. Mas isto, para Newton, nao é mais do que urna descricáo aproximativa. As forcas sao mútuas: de facto, os planetas atraern-se entre si, e atraem o Sol que os atrai. Enquanto que o problema kepleriano era o do movimento dos diferentes planetas em torno do Sol, Newton vai colocar o problema da -sociedade- dos corpos celestes, do seu sistema ... Ora, se esta ideia dum sistema de massas mutuamente atraídas urnas pelas outras constítui urna ínovacáo radical em astronomía, ela espanta menos vinda de um químico, que sabe que, numa reaccáo química, todos os corpos em presenca desernpenham um papel uns em relacáo aos outros. Assim, para Newton, o solvente, que toma possível urna reaccáo entre dois corpos, é um -intermediário-, urna middle nature: as partículas ..ínsociáveis- sao -tornadas sociáveis por meio dum terceiro.., 128
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Contudo, se a hipótese "química» esclarece e situa a novídade de Newton em mecánica celeste, ela traduzir-se-á também por urna transformacáo muito profunda da nocao tradicional de corpo químico, urna vez que a ideia de que as reaccóes químicas se podem compreender a partir duma ..f orca newtoniana- implica que os corpos em si mesmos sao inertes, despidos de propriedade específica. Em 1758, o natural pbilosopber Roger Boscovitch proporá mesmo reduzir a massa inerte a nocáo de um ponto sem extensáo. Todas as propriedades químicas sao re1acionáveis. Nenhuma é atribuível a um corpo enguanto tal, todas remetem para as suas relacóes, A ideia de que as propriedades químicas sao -relacionáveis- vai ao encontro de toda a tradícao química desde Aristóteles, 30 encantro do que se pode chamar a «química das substancias». A substancia química era o sujeito cuja reaccáo exprimia apenas a qualífícacáo. O carpo químico newtoniano nao é rnais um sujeito senáo por aproxírnacáo de Iinguagern. O único verdadeiro sujeito é o conjunto dos carpos ern presenca e com interaccóes recíprocas. Assim que urna nova palavra é criada, o seu destino escapa muitas vezes áqueles que a criaram. O termo -afinldade-, que, a partida, era apenas oficialmente -agnóstico-, será efectivamente adoptado pelo conjunto dos protagonistas, tanto pelos newtoníanos como por aqueles que sustentaráo que a afinidade nao tem nada a ver com a atraccáo newtoníana. Contudo, se o próprio termo nao pode servir de indicador, o seu papel na prática dos químicos traduzirá a ambiguidade profunda de que a afinidade é portadora: ver-se-á que, enquanto nocáo dita puramente «empírica», neutra, dirigindo a prática dos -construtores de tabelas-, a afinidade se afirma newtoniana.
Umprograma de iruiestígacdo para a química? Segundo tuda indica, as tabelas de afinidade química podem revelar a traducáo do problema próprio a química, ciencia das combinacóes. E isto, no duplo sentido do termo: a cornbinacáo como reaccáo permite comparar, entre elas, as combinacóes no sentido de Iigacóes, comparar a forca das lígacóes que uro carpo é susceptível de formar com urna série de outros. As tabelas deviam portanto satisfazer os químicos que aí podiam ver urna colocacáo ern quadro económico das reaccóes conhecidas, e um principio de organízacáo das que víráo a se-lo. Mas a aflnidade póe igualmente para os químicos do século XVIII o problema da sua causa, e neste sentido permite aos newtonianos colocar o progresso da química empírica na perspectiva da sua fundacáo possível como ciencia explicitamente newtoníana: assim que o problema da afinidade, na sua relacáo com a forca de atraccáo newtoniana, tiver sido resolvido, o conjunto dos conhecimentas químicos acumulados segundo o princípio das tabelas poderá ser interpretado e compreendido. A afínidade, portanto, tanto podia ter sido adoptada pelos antinewtoníanos como pelos newtonianos, mas só o químico newtoniano se con129 I
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sagrará a construcáo de tabelas. Apenas ele poderá ter como objectivo experimentar todas as relacóes possíveis entre os carpos. Segundo ele, a propósito de carpos tomados independentemente uns dos outros, nao se pode dizer nada, tal como nao se pode qualificar o comportamento da Terra independentemente do Sol e dos outros planetas. Em compensacáo, para o químico discípulo de Georg Ernst Stahl, que foi o criador da doutrina rival, no século XVIII, da química newtoniana, os carpos químicos térn urna forca intrínseca e a reaccáo química serve de revelador desta forca, que pertence aos próprios carpos. É, pois, inútil efectuar todas as relacóes possíveis, senda suficientes aquelas que ilustram, da maneira maís característica, a torca de um dado carpo. Para aquele que reenvia a responsabilidade de urna reaccáo para a forca de um elemento, as tabelas sao inúteis. É portanto, enquanto instrumento duma investigacáo empírica sistemática, que a afinidade se declara newtoniana. "A física compreende-se, a química aprende-se-: aquí tém um primeiro sentido desta distincáo, A descoberta da universalidade da forca, e da uniformidade da matéria que ísto implica, reaproximou Newton do mecanicismo, pelo menos nas suas possibilidades de expressáo: os diferentes carpos celestes podem ser considerados, independentemente da sua natureza, somente pela -quantídade de materia- que mede a massa. Mas a química newtoniana, privada da possibilidade de qualificar os carpos por urna -natureza-, deve aprender que todas as possibilidades de reaccáo dos carpos uns com os outros devem ser sistematicamente experimentadas. A menos que estas possibilidades possam ser deduzidas matematicamente, o movimento da Terra e dos planetas pode ser deduzido a partir do conhecimento da forca de atraccáo. Para que a química escape ao empirismo, para que ela se torne urna ciencia dedutiva, que se compreende em vez de se aprender, é preciso, sem dúvida, que as afinidades sejam interpretadas e que a sua especificidade, que contrasta com a atraccáo universal, seja elucidada. Como fazer a ligacáo entre a forca de atraccáo, que nao depende senáo das massas e das distancias, e a afinidade, que depende da especifícídade química dos corpos em presenca? É o problema da afinidade newtoniana. Duas respostas -newtoníanas- seráo dadas a este problema, por Boscovitch em Inglaterra e Buffon em Franca, Na sua Teoria de Filosofía Natural, publicada em 1758, Boscovitch interpreta a diversidade das afinidades peia cornplícacáo da forca universal. A fórmula em 1/rZ 1 só é válida para longas distancias, enquanto que os fenómenos químicos actuam a curta distancia, ande a forca pode ser, segundo a distancia, atractiva ou repulsiva. Boscovitch pode assím retomar a tese de Newton: o que nós chamamos um corpo químico é um edificio complicado que as reaccóes decompóem e recompócm. As forcas de atraccao que caracterizam as relacóes entre dais corpos sao entáo específicas porque sao determinadas pelo edificio, porque elas 1
Na fórmula 1/r2, r representa a distancia entre os dais carpos.
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sao a resultante das forcas de que cada ponto participante no edifício é portador: urna parte duma -partícula-edifício- pode, pois, exercer urna atraccáo sobre urna outra partícula, enguanto que urna outra das suas partes a repele. É mesmo possível nesta perspectiva explicar o papel dos corpos que favorecem urna reaccáo química. Uro intermediário podería, por exemplo, anular, pela sua relacáo com urna partícula, a repulsáo que impede esta partícula de atrair urna terceira. Buffon, que Voltaire denomina o -chefe do partido newtoniano em Franca-, adoptará a outra solucáo logicamente possível (hipótese publicada em 1765, no volume XIII da História Natural). A forca newtoniana tem por única fórmula 1/r2 , mas os corpos químicos estáo muito mais próximos uns dos outros do que os planetas, e a aproxímacáo a obra na astronomia newtoniana, que reduz as massas a pontos, nao mais válida nesta escala. A especificidade e a diversidade das aceces químicas explicam-se, portanto, pela diversidade das formas dos corpos. As duas solucóes equivalem-se logicamente: urna, reenvia a diversidade das afínidades a variedade dos efeitos da forca de interaccáo segundo a distancia entre os corpos, a outra, a urna torca de ínteraccáo simples agindo entre os corpos de formas variadas. No entanto, os dois autores retiraram consequéncias bem diferentes. Boscovitch concluiu que a teoria das operacóes químicas nao poderá jamáis permitir prever as assocíacoes: a deterrnínacáo dos efeitos que produzem os diferentes edificios químicos excede de longe os poderes do espírito humano. Pelo contrário, Buffon anuncia que os nossos ..n etos" calcularáo na mesma as reaccóes químicas como Newton calculou o movimento dos planetas. Poder-se-áo deduzir as afínídadcs a partir das formas das partículas constituintes e predizer as possibilidades de reaccáo. Duas proposícóes logicamente equivalentes sao, pois, avaliadas de maneira aposta: enquanto que a Inglaterra newtoniana acolhe urna como especulacáo, sem pertinencia directa para o progresso da química, os franceses leráo na outra o caminho que deve seguir a química parase tornar urna verdadeira ciencia, Porque o -sonho newtoníano- duma química quantificada foi tido como urna quimera ero Inglaterra, e como um programa de desenvolvimento em Franca? O historiador Arnold Thackray admite que a revolucáo industrial em Inglaterra fez nascer um novo tipo de químico, sem grandes preocupacóes matemáticas ou especulativas. O interesse pela química fez igualmente aparecer em Inglaterra professores-divulgadores maís interessados em popularizar as virtudes práticas desta ciencia do que os seus problemas conceptuais (segundo Thackray, Dalton pertencerá a esta nova categoría, o que revelará o carácter -natf-, do ponto de vista newtoniano, da sua concepcáo dos átomos químicos). A especificidade da química, a sua autonomia, o seu interesse váo pois, em Inglaterra, fundar-se sobre a sua utilidade efectiva, e nao, como em Franca, sobre a validade das suas pretensóes ao título de ciencia. Esta leitura reenvia as teses mais gerais do historiador ]oseph Ben-David segundo as quais a Inglaterra do século XVIII mede o valor da ciencia pela sua eventual contribuícáo para o desenvolvimento técnico, económico e social: ciencia ..útil", segundo o modelo de Francis Bacon, ciené
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cía que retira o seu prestígio menos do servíco da verdade, ou do pro-
gresso da razáo, que do da socíedade.
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modelo de Francia Bacon
Francrs Bacon 0561-1626) foi chanceler-mor de Jaime 1, re¡ de Inglaterra, mas também o autor de livros influentes (o maís conhecido é o Novo Organon, 1620) promovendo urna nova concepcáo (antiaristotélica) ao mesmo tempo do conhecimento e do seu papel na hístóría humana. A tradícáo (quer dizer, particularmente os leitores de Bacon no século xvm) releve dele a hostilídade a qualquer sistema, a ínvestígacáo das únicas causas eficientes (com exclusáo das causas finais e formáis), a observacáo minuciosa dos fenómenos individuais, a generallzacáo prudente a partir deles (Bacon é chamado o -paí do método índutivo-), e, enfim, o carácter prático do conhecímento, que permite por a natureza ao servíco do homem.
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Neste sentido, o destino da nocáo de afinidade seria revelar a divergencia entre os significados desta actividade que se chama -cíéncia- em Franca Ce nos países ande os monarcas criam academias segundo o modelo da Academia das Ciencias francesa) e em Inglaterra. Nos dais casos, os -sábios- consagram-se, na verdade, a um grande número de actividades prátícas, mas as academias contínentais marcarn a diferenca entre estas actividades e a prossecucáo de urna ciencia -racíonal-, duma ciencia que encontra a sua dignidade na prornocáo da razáo como tal, enquanto que os rnembros da Royal Society se satisfazern com urna ciencia cujo valor reenvía a sua utílídade, ao seu papel no desenvolvimento das técnicas. Que a química se possa tomar urna ciencia -racíonal-, escapando ao empirismo, urna ciencia que compreende em vez de se limitar a aprender, é urna aposta essencial do ponto de vista do estatuto do químico e do prestígio da ciencia em Franca, mas urna especulacáo indiferente em Inglaterra. A prímeíra -tabela de afinídade- permitiu a Geoffroy importar clandestinamente a química newtoniana para Franca. Mas o sucesso crescente das -tabelas de afinidade- no continente pode ser tomado como medida da fonna específica que aí toma o newtonianismo, verdadeira procura do -sonho newtoníano- face a urna Inglaterra oficialmente newtoniana. Se, entre 1718 e 1750, somente duas novas tabelas foram publicadas, existiráo mais tres nos anos 50, quatro nos anos 60 e cinco nos anos 70. A multiplicacáo das tabelas a partir de 1750 pode estar ligada a publícacáo dos Elementos de Química por Pierre joseph Macquer (1755), que contérn a primeira exposicáo sistemática da doutrina das afinidades. Macquer sublinha aí o carácter empírico das tabelas de aflnidade, livres de teoria, ponto a partir do qual as vias interpretativas se poderáo desenvolver. Ele faz alusáo, de maneira prudente, a interpretacáo newtoniana, mas recorre igualmente as mterpretacóes de estilo stahliano, reenviando a nocáo de elemento como portador de propriedades qualitativas intrínsecas. Em 1766, sern dúvida porque Macquer adoptou a posícáo de Buffon, o seu muito ínfluente Dicionário de Química afirmará a probabilidade de ínterpretacáo newtoniana de afinidade, e concluirá com um apelo áqueles que sabem bastante de quí132
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mica e de matemática para fazerem progredir urna questáo tao vital,
chave dos fenómenos mais escondidos da química ...
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Mas o ponto culminante das investigacoes sobre a afinidade e também de afirmacáo do seu carácter newtoniano é a obra do químico sueco Torbern Bergman, que nao hesitará em denominá-la -atraccáo electiva», Afj tabeJas publicadas de 1775 a 1783 por Bergman coordenam os resultados de vários milhares de reaccoes químicas e comportam 49 colunas (27 ácidos, 8 bases e 14 metáis e outros) e urna dupla colocacáo em quadros: as reaccóes ero solucáo e aquetas que se dáo em "vía seca", isto é, -forcadas pelo fogo », Como diz o historiador Maurice Daumas, Bergman -empreendeu a sua tarefa laboriosamente, artesáo consciencioso que espera desbravar poueo a poueo o ímenso trabalho que ve a sua frente. A sua íntencáo parece ter sido efectuar todas as reaccóes químicas imagináveis, comparar os seus resultados e c1assificar assim os carpos uns em relacáo aos outros ... Nao deve, aliás, ter fícado muito satisfeito com os resultados: ele estimou que seriam ainda necessárias mais de trinta mil experiencias exactas para dar um certo grau de perfeicáo a sua tabela ... », Ao trabaJho de Bergman corresponde o trabalho, contempocineo, de Guyton de Morveau. Uro leva ao seu apogeu a química que «aprende", o outro dá os primeiros passos para a -compreensáo-, particularmente com a tentativa de dar urna medida quantitativa a forca de afinidade: Guyton de Morveau mede, por exemplo, as forcas necessárias para separar placas de diferentes metais do banho de mercúrio onde eles flutuam, e descobre com satisfacáo que estas forcas seguem a mesma ordem que a das afinidades químicas. A química do fim do século XVIII nao aproxima, pois, «duma penada» afinidade química e atraccáo, esta aproxímacáo já suscitou trabalhos de grande fólego e constitui um verdadeiro programa de desenvolvimento. A química definiu-sc menos por um território (como a definíu, ve-lo-emos, o químico Gabriel-Francois Venel) que por urna perspectiva que reclama um trabalho colectivo gigantesco: aprender, para acabar por compreender, acumular -dados- que sao na verdade empíricos mas que, como as observacóes astronómicas anteriores a Newton, constítuem o terreno que virá organizar sob urna forma dedutiva a teoria. E é a este programa gue respondem aqueles que, na época, se interrogam sobre a química. E bem conhecido que Lavoisier tentará para a química um outro tipo de fundacáo, Ele deixa, escreve ele no seu Tratado Elementar de Química, o problema das afinidades ao seu colega Guyton de Morveau; a ciencia das afinidades, pensa ele portanto, está para a química como a -gcometria transcendental» está para a geometria elementar. Mas é bastante claro que, para Lavoisier, a química nao tem de esperar, para se tornar ciencia racional, de ser capaz de seguir o modelo da geometria ou da mecánica celeste. A esperanca é longínqua e o modelo newtoniano nao definiu, neste fim de século, o único camínho para o título de ciencia. Contudo, o problema está longe de se resolver como alternativa entre a estratégia -newtoniana.. de Guyton de Morveau e a que Lavoisier colocou sob a autoridade do filósofo francés Étienne de Condillac. Para 133
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além da ambiguidade da afinidade que Buffon denunciou quando escreveu que demasiados químicos utilizam as tabelas de afinidade sem as compreender, quer dizer, sem compreenderem que as afinidades nao sao senño o efeito da atraccáo universal, coloca-se a questáo de saber se a química das afinidades tem por destino tornar-se, duma maneira ou de outra, urna ciencia dando as suas Ieis a actividade química da matéria. O empirismo traduz, como Guyton e Lavoisier estado de acordo em afirmar, a marca duma ciencia a espera da sua razáo?
Afinidades e circunstancias Podemos agora ler as Afinidades Electivas (1809) de Goethe. Escutemos primeiro «o Capitáo- descrever a activídade química: «É preciso ver agir diante dos seus olhos estes seres que parecem mortos e que contudo estáo sempre ínteriormente prontos para a actívídade: é preciso olhar com simpatia como eles se procuram um ao outro, se atraern, se agarram, se destroern, se absorvem, se devoram, e, depois de estarem intimamente unidos, se manifcstam de novo sob urna forma renovada, nova, inesperada: só entáo se lhes atribuí urna vida eterna, e mesmo sensibilidade e inteligencia, porque nós sabemos que os nossos sentidos mal chegam para os observar, e que a nossa razáo é apenas suficiente para os cornpreender-. Como definir entáo a química como ciencia? Escutemos a este respeito a posícáo de -Mittler-, este intermediario (cujo nome infelizmente foi traduzido para francés por -Courtier..). Mittler rapidamente intervém onde as pessoas nao se entendem: ajudará a aproximacác entre os protagonistas, Charlotte, seu marido Édouard, a jovern Odile e o Capltáo, mas ele recusa-se a prever o resultado dos encontros que ele favorece deste modo: cada um deles é urna aventura. Urna vez que é questáo de contacto entre corpos, é preciso aprender a partir do acontecimento efectivo, quer dizer, renunciar a deduzir e a prever. E Charlotte parece de acordo, quando diz a Édouard, no momento de convidar o Capítáo a partilhar a sua vida: "o nosso Courtler, este original, tem finalmente razáo. Todas estes acontecimentos sao aventuras. O que sairá daqui, ninguém pode prever. Estas novidades podem ser fecundas para o bem e para o mal, sem que nós possamos atribuir-nos especialmente o mérito ou a culpa». Mas, num outro caso, Charlotte vai esquecer a lícáo: ela e Édouard acreditaram poder deduzir dum anterior encontro, noutras circunstancias, com Odile, que Édouard nao podia sentir nenhuma atraccáo por esta jovem. A aventura saiu-lhes mal, sem que a culpa fosse de alguém. Goethe, em química, será entáo -newtoniano-? A ignorancia reenvia ao carácter relacional das afinidades? O essencial parece a maior parte das vezes opor a rainha das leís, de efeitos previsíveis e regulares, e a actividade química. Quando o Capítáo lhe descreve bastante pomposamente a arte de separacáo e de reuniáo dos químicos, a maneira pela qual o ácido sulfúrico diluido se apodera da cal que contém em estado de combínacao urna terra calcária enquanto se liberta o segundo termo 134
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desta combínacáo, um ácido mais fraco, Charlotte replica: ..Eu nao saberia ver aqui urna escolha, mas antes urna necessidade natural, e mesmo difícilmente. porque nao se trata talvez senáo de um acaso. A ocasíáo faz as combínacóes, como faz o ladráo, e, quando for o problema das vossas substancias naturaís, a escolha parece-me encontrar-se unicamente nas máos do químico, que aproxima estas substancias. Urna vez que estejam juntas, Deus lhes perdoel- Charlotte compreendeu que a química nao é ciencia de Ieis, mas arte de circunstancias. Resta-lhe aprender que a uníáo entre dais seres, sancionada simultaneamente pelas leis do casamento e pelo acordo das consciencias, dos interesses e da razao, pode ser destruída, contra a própría razáo, pela íntervencáo acidental dum terceiro. Charlotte, «tao bem unida com Édouard-, sentir-se-á posta de lado pela cumplicidade que unirá este último e o Capítáo, como o ácido fraco da parábola. E Odile, que se decide a vir consolar Charlotte do afastamento de Édouard, como uro quarto corpo que se une ao terceiro abandonado, terá urna accáo totalmente diferente. Tal como as unióes e as separacóes químicas, as paixoes humanas nao sao acessíveis as previsóes racionais. A afinidade electiva segundo Goethe é menos urna espera de compreensáo científica e de lei racional que um problema para a razáo, sinal de que este outro tipo de ciencia deve ser reconhecido. É preciso aceitar a ideia de que o conhecimento por aprendizagem, a partir da experiencia efectiva, nao é inferior ao conhecimento dedutivo a partir de leis, mas responde a uma necessidade irredutível, imposta pela actividade química, pelas afinidades e as paíxóes da matéria. Deve a química tornar-se uma ciencia criadora de leis, segundo o modelo da mecánica celeste, ou deve ela, «arte na máo dos químicos", conservar a lígacáo privilegiada, que a caracteriza, com a actividade artesanal? O -progresso racional" pode ser obra dos matemáticos no menosprezo dos -operáríos-, como foi o caso da mecánica, ou é solidário com um novo tipo de colaboracáo entre o -espírito do sistema" e o «saber artesanal-? Estas questóes, poderíamos derivá-las de Goethe, mas' elas aparecem explicitamente nos escritos de Diderot e da Enci-
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Aprender a química
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A Enciclopédia de Diderot ou Dicionárto Raciocinado das Ciencias, das Aries e dos Oficios 0751-1772) é variada, e os artigos consagrados el química ou implicando a química sao numerosos. No artigo -Atraccao-, d'Alembert declara que a atraccáo newtoniana deverá dar conta das operacóes da química. Mas o artígo «Química". esse, traduz globalmente o papel bem diferente que Diderot decide atribuir a esta ciencia. Ele confiou este artigo ao químico-médico Gabriel-Prancoís Venel, também antigo aluno de Hilaire Rouelle, que introduziu a química de Stahl em Franca. E é neste artigo que nós veremos pela primeira vez a identidade da química tratada como uro problema que une indissoluvelmente o saber, a filosofia e a política. 135
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o artigo -Químíca- surge no terceíro volume da Enciclopédia, em 1753, e no mesmo ano, Diderot, nos Pensamentos sobre a Interpretacáo da Natureza, publica urna análise muito scmelhante: ele dama por urna prática científica aberta, ande aqueles que -reflectem- se dignaram enfim associar-se áqueles que -trabalham-, onde aqueles que térn -muitas ideias e nenhuns instrumentos» aprenderiam a colaborar com aqueles que térn -muítos instrumentos e poucas ídeias-. E é o desprezo daqueles que pensam por aqueles que aprendem a partir da experiencia que ele denuncia, mais que as hipóteses especulativas dos matemáticos. Do mesmo modo, nos Principios Filosó/icos sobre a Matéria e o Mouimento (1770), ele escreve: -Que me importa o que se passa na vossa cabecal Que me importa que considereis a matéria como homogénea ou como heterogénea! Que me importa que, esquecendo as su as qualidades, e pensando apenas na sua existencia, a vejam ero repouso! Que me importa que em consequéncía disso procureis a causa que a move! Fareis da geometria e da metafísica o que vos aprover; mas eu que sou físico e químico, que vejo os corpos na natureza, e nao na minha cabeca, vejo-os existentes, diversos, revestidos de propriedades e de accáo, e agitando-se no universo como no laboratório... Para que a matéria seja muda, díz-se ainda, é preciso urna accáo, urna forca, sim, ou exterior a molécula, ou inerente, essencial, íntima a molécula, e constituindo a sua natureza de molécula ígnea, aquosa, nitrosa, alcalina, sulfurosa ... A forca que actua sobre a molécula enfraquece; mas a forca íntima nao se destrói, Ela é imutável, eterna». Ainda que Goethe, cuja Charlotte parecía defender urna concepcáo relacional da afinidade, nao descrevesse menos dos carpos interiormente prontos para a activídade, Diderot, que admite urna concepcao fundamentalmente stahliana da matéria - propriedades inerentes, essenciais, e nao relacionais - , nao adopta menos o termo -forca-, Nesta segunda metade do século XVIII, relacóes e principios opóern-se menos do que as teses sobre a química como ciencia. E este o registo no qual Venel discutirá em primeiro lugar a singularidade da química e as dificuldades com que ela se debate, Como Diderot, Venel decifra as suas dificuldades sobre o plano politico, no sentido pelo qual o título de ciencia é a partida um título reconhecido ou nao pela sociedade. Na verdade ele invoca os princípios da -revolucáo que colocará a química no lugar que ela merece, que a porá pelo menos ao lado da física calculada»; mas esta revolucáo nao é para ele o -nascimento- duma química finalmente científica. O químico hábil, entusiasta, corajoso, que poderá operar esta revolucáo, será aquele que «encontrando-se numa posícáo favorável e aproveitando habilmente circunstancias felizes souber despertar a atencáo dos sábios, primeiro por urna ostentacáo estrondosa, por um tom decidido e afirmativo, e em seguida por razóes, se as suas primeiras armas tiverem comecado a demolir o julgamento prévío». A química sofre antes de tuda do desprezo dos -sábíos-, e o "novo Paracelso- deverá primeiro ser agente de propaganda. Mas a -revolucáo- eventual nao transformará muito a prática da química. Scmprc, o químico mais iluminado, o mais instruído, terá neces136
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sídade desse ..g enio- que, quando aparece nos trabalhadores, apenas se chama bom senso. Porque só este bom senso permite ultrapassar os obstáculos que param o químico sem experiencia: variedade de meios químicos e de produtos, singularidades, bizarrias aparentes, fenómenos ísolados, poueo reprodutíveis, etc. Nunca o poder duma teoria dedutiva permitirá desernbaracar a química do que a torna solidária duma langa prática, penosa, árdua, paciente. Jamais verdades abstractas a priori poden10 reduzir a química, arte das circunstancias, ao modelo de urna ciencia munida de leis, quer dizer, permitir a economia da ..faculdade de julgar pelo sentimento-, do -golpe de vista- que dá a ler os indícios e estima as circunstancias. A química exige urna aprendizagem que é simultanea e indissociavelmente aprendizagem dos sentidos, do corpo (ter o termómetro na ponta dos dedos, e o relógio na cabeca, diz Venel) e do espírito. Neste sentido, e1a é uma paíxáo. Assim se explica, para Vene1, que se tenha podido dizer da química que ela era urna paixáo louca; do químico, que era excentrico e anorrnal, devorado por um gasto que lhe fazia perder a saúde, a fortuna, o tempo e a vida. (É ainda o drama narrado por Balzac na Procura do Absoluto). Mas -estas dificuldades e estes inconvenientes devem fazer olhar os sábios, que térn suficiente coragem para os desafiar, como cidadáos que merecem todo o nosso reco-
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A química, ciencia do heterogéneo
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A singularidade da química como paixáo traduz, pela sua diferenca em relacáo a simples deducáo, o facto de os químicos se ligarem as propriedades intrínsecas dos corpos, enquanto que os físicos param no superficial, no "que véern os burros e os bois-, Tal como Diderot, Vene1 nao se prende a afinidade enquanto tal, mas vai ligar-se a demonstrar a diferenca de natureza entre o agregado que é o objecto da física, seja ela newtoniana ou cartesiana, e a uniáo de composícáo que a concep~ao da química imp5e. As partes do agregado só térn entre si ligacóes de ..v izinhanca-, qualquer mudanca deve ser atribuída a urna traca de disposicáo espacial, afastamento OU aproxímacáo, sem que as partes sofram traca interior. As propriedades que pennitem compreender tais mudancas sao, portanto, «exteriores» ou ..físicas». Elas podem variar sem que se transforme a natureza dos corpúsculos que comp6em o agregado e nao respondem a esta questáo, que foi a dos testadores face as fraudes alquímicas: ..o que é que faz com que o ouro seja ouro?.. Pelo contrário, as qualidades ..interiores» especificam propríarnente o corpo, constituem-no ero corpo, de tal modo que a água, o ouro, o azoto, etc., sao de facto a água, o ouro, o azoto, etc-. E estas qualidades pertencem intrinsecamente aos corpúsculos, partes integrantes do agregado. As aceces mútuas entre corpúsculos sao portanto o objecto próprio da química. Estas aceces ..dependem das qualidades interiores dos corpúsculos, entre as quaís a homogeneidade e a heterogeneidade merecero a primeira consideracáo, como condicóes essenciais: porque a 137
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agregacáo nao acorre senáo entre substancias homogéneas l., .l a heterogeneidade dos príncípíos, pelo contrário, é essencial a uniáo de cornposícáo». Diferentemente da uniáo agregativa estudada pelo físico, a uníáo de composícáo, -nó.. que une os princípios dos corpúsculos, produz de facto o homogéneo, dotado de propriedades intrínsecas, a partir do heterogéneo. -As massas aderem entre si proporcionalmente a sua vízínhanca, tamanho e forma; os corpúsculos nao conhecem absolutamente nada desta lei: é na proporcáo da sua relacáo ou afinidade que se fazem as suas uníóes: e reciprocamente, as massas nao sao submetíveis as leis das afinidades [... ] e jamais da uniáo de urna massa a urna massa de natureza diferente resultará um novo corpo homogéneo... Venel definiu portanto afinidade e a uníáo de composicáo que se produziu em resultado da afinidade, por contraste com a física. Ele nao sabe o que é o -nó.. da uniáo de composícáo, ele nao pretende ero particular que os -princípios.. de Stahl déem a explicacáo, mas sabe que a uniáo que qualifíca a afinidade nao se pode reduzir a agregacáo, E ele recusa-se a considerar que a ausencia duma explícacáo intuitiva para esta uníáo, a ausencia de um agente mecánico que a provoca, seja um defeito, por ísso, nota ele, aqueles que evocam esta ignorancia para acusar os químicos de obscuridade sao aqueles que tentam tranquilizar-se contra o horror do. ininteligível. Os químicos, quanto a eles, térn a coragem de preferir a obscuridade ao erro. Seguem nisto o exemplo de Newton e de todos aqueles que, antes dele, souberam «que a natureza opera a maior parte dos seus efeitos por meios desconhecidos; que nós nao podemos enumerar os seus recursos; e que seria ridículo, isto é, seria querer limitá-la, reduzi-Ia a um certo número de princípios de accáo e de meios de operacáo: teria sido suficiente observar um certo número de efeitos relativos e da mesma ordem para constituir urna causa. Será que os químicos fazem outra coisa?.. Aqueles que querem «racionalizar.. a química manifestam portanto um enorme horror irracional ao ininteligível, horror que Newton nao partilhava, pois ousou introduzir urna forca de accao a distancia como «causa.. do comportamento dos planetas e dos carpos sujeitos a gravidade. o artigo ..Q uímica.. da Encic/opédia é, poís, um contra-ataque contra todos aqueles que viam como único destino científico para a química urna subrnissáo explícita aos princípios físicos. E este contra-ataque tero de notável que ela se desdobre ero registos distintos, que ela articula fazendo: aprescnracáo da especificidade social e prática do saber dos químicos, da sua aprendizagem necessária e apaixonada, mas também manifestacáo da especificidade dos fenómenos químicos; enfim, afirmacáo duma contrateoria do conhecimento no termo da qual o contraste entre a racionalidade inteligível da mecánica e a obscuridade da química vejam a sua signíficacáo invertida. A distincáo que sublinha Venel entre o que ele denomina uníáo «agregativa.. e uníáo -de composícáo.. estava de facto generalizadamente aceite por todos os químicos do século XVIII, e compreendida por aqueles que, como Bergman e Guyton de Morveau, ambicionavam interpretar a afinidade pelo mesmo tipo de forca que explica o agregado. 138
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A ideia de que urna reaccáo quirmca tero sempre urna díreccáo bem definida, determinada pela mais forte afinidade, embora as circunstancias que reenviam a física, como o estado de agregacáo, possam impedí-la e que autras, o calor, a desagregacáo, o acto de dissolver, possam levantar o obstáculo, nao foi contestada por ninguém, sem dúvida porque e1a reenvía aos procedimentos próprios da química artesanal da época. Este corpo de conhecimento, Venel sublinha-o aliás claramente, permaneceu um bem comum. "o artesáo diz: o ácido nitroso demasiado concentrado nao ataca a prata, mas coro urna certa . quantidade de água e excitado por um certo grau de calor, dissolve-a. A ciencia díz: a uruáo agregativa do ácido concentrado é superior a sua relacáo (a sua afínidade) com a prata, e a água adicionada ao menstruo (ao ácido) relaxa esta agregacáo que o calor relaxa ainda mais, etc. O artesáo nunca generalizará; mas a ciencia dirá sobre ísto com mais generalidade: em qualquer acto de dissolucáo, a tendencia para a uníáo de composícáo ultrapassa a uníáo agregativa". Vamos ver este bem comum, esta dupla linguagem concordante da química «dos sábios- e «dos artesáos-, ser posto em causa no princípio do século XIX. O corpo, tanto artesanal como científico, dos químicos do século XVIII deu sentido, acabamos de o ler, a urna distincáo qualitativa entre uniáo de composicáo e uníáo agregativa, devendo nestas circunstancias ser -dorninada- a segunda para que a primeira se possa produzir. Ora esta distincáo vai ser posta em causa no princípio do século XIX pelos -sábíos- adeptos da afinidade newtoniana. Desde entáo, terá fim ern Franca a harmonia entre o saber dos químicos e a afinidade newtoniana, o programa de duplo progresso complementar: enriquecimento das tabelas de afínídade colocando em quadro os conhecimentos empíricos e a quantifícacáo das afinidades que pennitiráo deduzir os conhecimentos reunidos neste quadro.
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Afinidades electivas ou funcionais? A afinidade relacional leva a necessidade dum estudo exaustivo de todas as reaccóes possíveis, e nao somente das reaccóes -íntercssantcs-, das reaccoes que tinham intercssado os artesáos, Ora sao estas reaccoes -interessantes- que criam a evidencia duma distincáo qualitativa entre uniáo de composicáo (<
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Bergman, explicitando a díferenca qualitativa entre uníáo de composi.-;:10 e uniáo agregativa, aceite na sua época. As tabelas de Bergman, que reúnem um grande número de reaccóes
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estranhas ao conjunto tradicional, multiplicam portanto o caso das ..a nomalias-: sem cessar, Bergman tem de explicar que factores físicos interferem coro a afinidade -verdadeiramente químíca- e impedem a reaccáo de se dar de maneira completa, até levando a dar-se na direccáo ..errada". Regularmente, ele verifica que é abrigado a utilizar várias vezes a quantidade que devia ser suficiente para assegurar urna reaccáo completa. Contrariamente ao que supós Bachelard, aparentemente convencido, víu-se, que todo o ..boro experimentador" sabia que afinidade e atrae~ao nada tém de comum, o enriquecimento do saber experimental nao levará ao abandono da tese que identifica afinidade e atraccáo mas, pelo menos nos primeiros tempos, ao seu reforce. Sós até esse momento, os críticos da química newtoniana, como Venel, tinham sublinhado que a atraccáo nao pode explicar que dois corpos heterogéneos formem um terceiro, homogéneo, nao pode dar conta da diferenca qualitativa entre uniáo agregativa e uniáo de composicáo. Como iremos ver, esta impossibilidade tomar-se-á vírtude, assim que a química newtoniana se servir dela para negar o carácter electivo das afinidades e a díferenca qualitativa que a -eleccáo- explicita. O por em causa experimental da nocáo de reaccáo completa, correspondendo a lei do tuda ou nada, confirmará portanto as implícacóes, até entáo desprezadas pelos seus defensores, da interpretacáo newtonlana das afinidades. Chegamos simultaneamente a obra do quimico Claude Louis Berthollet e el Revolucáo Francesa, mas esta intervindo nao através das ideias nem da morte de Lavoisier, mas dos problemas novos colocados ao químico, e das transformacóes mstitucionais que provocou com a criacáo de cadeiras destinadas ao ensino sistemático da química. Durante a revolucáo, Berthollet consagrou-se a um problema estranho a tradícáo da química artesanal: trabalhou na racionalizáo da producáo de salitre necessário ao fabrico de pólvora de canháo, Em vez de recolher o salitre no local, como era costume, produziu-o em meio industrial controlado. Ora, assim que as rochas nitrosas eram lavadas, Berthollet deu conta que quanto mais salitre havia em solucáo na água, menos a lavagem era eficaz: preferiu lavar várias vezes empregando de cada vez água nova. Contudo, cada lavagem dissolvia urna quantidade menor de salitre. Num curso por ele dado em 1795 na Escola Normal no ano I1I, Berthollet concluiu que a tendencia dum corpo a combinar-se com um outro decrescia proporcionalmente ao grau de combinacáo já obtido. Isto significa que a afinidade, ern vez de caracterizar um corpo na sua relacáo com um outro, tomou-se urna funcáo do estado físico-químico do meio, e, em particular, da concentracáo dos reagentes em presenca. Em 1800, Berthollet retoma a mesma ideia de maneira mais acentuada. Entretanto, ele participou na expedicáo ao Egipto, e a tradicáo narrativa fez remontar as suas convíccóes sobre a afinidade a urna curiosa observacáo de viagem: um -lago de sódío-O sal contido na água do lago, em 140
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contacto com o carbonato de cálcio do fundo, produz carbonato de sódio que se deposita nas margens do lago. Ora esta reaccáo 1 nao se dá nesta direccáo no laboratório. Berthollet vai explicar esta diferenca por urna dupla circunstáncía: a quantidade de sal e de carbonato de cálcio; e o facto de os dais produtos da reaccáo serem continuamente eliminados do rneio reaccional, sendo o cloreto de cálcío drenado através do solo e o carbonato de sódio precipitado na margem do rio. E Berthollet, após valtar a París, empreenderá urna inversáo sistemática das categorías do julgamento experimental químico. Usualmente, o meio reaccional (temperatura, concentracáo dos reagentes) era tido como urna fonte de interferencia que pennitia explicar as anomalías: doravante, a anomalia é a reaccáo ande um corpo é inteiramente deslocado por um outro, a reaccáo completa; é ela que deve ser explicada por factores especificos (elirninacáo dos produtos por volatílízacáo ou precipítacáo, em particular). Berthollet evidencia portanto a singularidade dos procedimentos tradicionais da química artesanal, o facto de eles terem sido seleccionados devido ao carácter completo das reaccóes que póem ern jogo. E ele retoma a tabela de Bergman para mostrar que a famosa ordem irreversível dos deslocamentos nao é outra senáo a ordem de solubilidade dos produtos. As -reaccóes completas- explicam-se quer pela volatilidade quer pelo carácter pouco solúvel de algum dos seus produtos que escapa ao meio reaccíonal. Ora, de regresso a Franca, Bertbollet está particularmente bem colocado para dar as suas ideias urna ressonáncia máxima. Ele é, com Laplace, um dos membros fundadores da Sociedade de Arcueil, sociedade privada que vai reunir os dentistas reconhecidos como os mais brilhantes da época e publicar um jornal com o titulo Memórias de Física e de Química da Sociedade de Arcueil. É senador napoleónico. Ele e Laplace encamam a situacáo privilegiada dos ..g randes homens de cíencía- no Império: papel político, tomada das novas instítuícóes pedagógicas, conquista de meíos financeiros que lhes permitiráo por exemplo montar os laboratórios privados de Arcueil. A doutrina oficial da Sociedade de Arcueil é a física newtoniana, e Berthollet, que é um experimentador conceituado, mostrará ern 1803, na sua Estática Química, que o carácter geralmente incompleto das reaccóes químicas e a sua dependéncía intrínseca em relacáo as ..circunstancias» constituem as consequéncias normais da ínterpretacáo da afinidade como forca de atraccáo newtoniana. Venel tinha razáo, A forca newtoníana de atraccáo nao permite justificar urna distincáo qualitativa entre forcas ..físicas» e ..químicas», distinguir uníóes -de composicáo- e ..a gregativas», É preciso escolher, compreendeu Berthollet, entre a tradicáo química e as ímplicacóes, até aí nao explicitadas, da afinidade newtoniana. A afinidade será portanto, para ele apenas, urn factor entre outros, de tal modo que se pode, jogando com os outros factores, produzir urna reaccao nurn sentido ou noutro. 1
Em termos modernos, a reaccáo escreve-se: 2NaCI + CacO, -e Na2C03 + Cacls
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Mais precisamente, Berthollet empenhar-se-á em suprimir qualquer distíncáo entre a direccáo -natural- duma reaccáo e o que interfere com esta direccáo. Para Berthollet, as reaccóes químicas nao tém -direccáo natural». O químico nao tem mais que -jogar- com as "circunstancias» para permitir que as afinidades químicas se exprimam. O químico manipula uma funcáo. a direccáo de uma reaccáo química é funcao duma afinídade puramente química, ela depende das concentracoes, mas também da temperatura, da coesáo dos produtos postas em presenca, etc. Nesta funcáo, a afinidade -químíca-, que resulta das forcas de atraccáo, nao desempenha um papel privilegiado que lhe pennitiria opor-se as -círcunstáncias-, ela é parte do conjunto das circunstancias que o químico deve apreciar. "A accáo química duma substancia nao depende somente da afinidade que é própria das partes que a compóem e da quantidade; ela depende ainda do estado no qual estas partes se encontram, seja por uma combinacáo efectiva que faz desaparecer uma parte mais ou menos grande da sua afinidade, seja pela sua dilatacáo ou condensacáo, que faz variar a sua distancia recíproca: sao estas condieces que, modificando as propriedades das partes elementares duma substancia, formam o que eu denomino a sua constituicáo: para chegar a análise do acto químico, é preciso apreciar nao só cada uma destas condicóes, mas ainda todas as circunstancias com as quais elas térn alguma relacáo-, afirma Berthollet nas primeiras páginas da Estática Química. Mas Berthollet irá mais longe, confirmando a análise de Venel. a forca de atraccáo nao pode explicar senáo a mistura e as suas proporcóes, nao a cornbínacáo química que produz novas corpos homogéneos a partir de carpos heterogéneos. Berthollet negará portanto a singularidade da uníáo de composicáo, O produto de uma reaccáo química nao é mais do que um estado de equilibrio onde coexístcm, em estado de mistura, os diferentes tipos de compostos. E mesmo estes compostos nao podem ter identidade bem definida. Um carpo nao pode expulsar da vízinhanca de um outro carpo um rerceíro que atraía menos que ele este outro, existirá simplesmente na vizinhanca deste outro, em quantidade mais importante que o seu rival mais fraco. Qualquer carpo é portanto uma mistura, e uma reaccáo química nao pode, regra geral, dar produto puro. E, pior, os produtos duma reaccáo nao sao caracterizados por proposícóes bem definidas dos carpos de que sao combínacáo: a composicao de um carpo depende da sua história, dos diferentes factores que caracterizam o meio reactivo onde ele foi formado.
A controvérsia Quando Bachelard se admira que Berthollet, experimentador conceituado, tenha podido aproximar afinidade e atraccáo, adopta o ponto de vista usual sobre a controvérsia que provocaram as teses deste último. Geralmente, explica-se que o químico ]oseph Louis Proust demonstrou experimentalmente o erro de Berthollet ao estabelecer que os carpos 142
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quirmcos respondem bem as proporcoes definidas, e faz-se desta demonstracáo o triunfo da química experimental, do facto, sobre as velhas especulacóes do século XVIII. Esta descrícáo é duplamente falsa. Prirneiro, a ideia das proporcóes definidas é urna ideia tradicional. No seu primeiro artigo de 1799, antes do início da controvérsia, Proust tirou conclus6es gerais de algumas experiencias: o seu objectivo era mostrar que a composícáo é independente da proveniéncia do produto, Assim, ele trabalhará o óxido de mercúrio produzido ero laboratório, mas também o minério proveniente das minas do Peru. Na época em que Berthollet -descobre- ero viagem a prava do carácter singular do que a química tradicional julgava normal, Proust fez viajar produtos para provar o bom fundamento dos julgamentos tradicionais. No artigo de 1799, Proust cita aliás Stahl falando no pondus naturae: as proporcoes definidas testemunham a máo invisível da natureza que opera do mesmo modo, quer seja nas profundezas do globo ou no laboratório, e fixa de maneira invariável as proporcóes dos constituintes dum produto. O químico nao tem maís poder sobre o pondus naturae do que sobre a lei de eleccáo que preside a todas as combinacóes, Nós tendemos a pensar que é nova a lei enunciada por Proust porque a pensamos verdadeira, mas esta leí enraíza-se na química do século XVIII e, entre 1792 e 1802, já tinha servido de base ao químico alemáo Benjamin Richter para tentar urna avaliacáo numérica das afinidades. A novidade da controvérsia diz respeito portanto, antes de maís, ao facto de afinidade relacional no sentido newtoniano e afinidade reveladora de princípios químicos no sentido dos químicos stahlianos terem encontrado o seu ponto de desacordo, o ponto ande, finalmente, a escolha deveria poder fazer-se. Entre 1799 e 1807, sucederarn-se experiencias e contra-experiencias, mas sem que jamais um dos dais adversários reconhecesse que o outro tinha -estabelecido um facto- que lhe assegurava a. vitória. Na verdade, Proust nao cessa de pretender que os factos lhe dáo razáo; é a sua única arma contra a autoridade da teoria newtoniana e o prestígio de Berthollet. E, retrospectivamente, aqueles que -sabem- que ele tinha razáo sao impressionados pelo seu tom "moderno»: os cientistas, ele nao se cansa de lembrar, nao térn o direito de construir teorias que váo contra os factos. Mas os próprios factos, analisados com os métodos da época, continuavam ambíguos. A química de Proust e de Berthollet é ainda a química do século XVIII, nao a química analítica que vai nascer: dez anos mais tarde; onde Proust empregava centenas de quilas de óxido para fazer urna análise, nao haverá necessidade senao de alguns gramas. Ou, retrospectivamente, sabemos que a precisáo experimental era, na ocasíáo, indispensável: a maior parte dos compostos metálicos que Berthollet e Proust analisaram era urna mistura, compreende-se hoje, de vários tipos de óxido, o que fez com que cada um dos protagonistas pudesse interpretar os -factos- a seu gasto e acusar o outro de os adulterar, de introduzir hipóteses ad hoc. A controvérsia parou cerca de 1807 sem conclusáo definitiva, cada um julgando-se vencedor do outro, Em 1832, Louis jacques Thénard e ]oseph Louis Gay-Lussac propuseram urna ínterpretacáo do equilíbrio 143
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químico de Berthollet que respeita o princípio das proporcóes definidas: encontra-se dissociado o que a química do século XVIII, inc1uindo Berthollet, confundia no problema da -causa- das reaccóes, A forca newtoniana era simultaneamente aderéncia e causa de transformacáo, Gay-Lussac e Thénard distinguem a questáo da aderéncía, quer dizer das proporcóes definidas dos produtos puros que entram num produto composto, e a questáo da reaccao. Qualquer reaccáo produz corpos que respeitam as proporcóes definidas, mas qualquer reaccáo é incompleta e tem por resultado urna mistura de reagentes e de produtos de reaccáo, mistura cuja composícáo é, como tinha mostrado Berthollet, funcáo das condícóes de reaccáo. Eis a conclusáo -racional- da controvérsia e, em seguida, pode dizer-se que a afinidade do século XVIII foi um conceito fecundo que trouxe uma distíncáo ínsuspeita, estranha a física newtoniana, entre Iigacáo e processos de transformacáo das lígacóes, entre a -aderéncía-, que o químico nao pode comandar, e a díreccáo das reaccóes ande estas aderéncias se transfonnam, e que ele pode manipular por intermédio das condícóes de reaccáo. Paralelamente, confirma-se aliás a singularidade da aderéncia química: aqueles que, como os ingleses Humphry Davy e Michael Faraday ou o sueco jons jacob Berzelius, quiseram substituir as forcas newtonianas pela hipótese duma lígacáo ..e léctrica.. seráo vencidos pelo desenvolvimento da nova química orgánica. No fim dos anos 1830, Jean-Baptiste Dumas mostra que o ácido cloroacético resulta da substituicáo, no ácido acético, dum hidrogénio, que se admite electropositivo, por um doro, que é electronegativo. A teoria da substituícáo, nascida da necessidade de compreender a selva dos produtos da química orgánica, venceu a última ínterpretacáo geral dos processos químicos (apesar de Berzelius, que continuará a protestar que esta teorla apenas é válida em química orgánica ...). Mas o que é sem dúvida mais interessante ainda que a conclusáo racional da controvérsia é que, na época, esta conclusáo nao interessa a muita gente, incuindo Gay-Lussac e Thénard. E a indiferenca manter-sc-á até a segunda metade do século XIX, até que o problema dos rendimentos se ponha a urna química que pratica doravante a síntese a escala industrial. Neste momento, os químicos ínteressam-se de novo pela possibilidade de jogar com as concentracóes e as condicóes físicas da reaccáo para modificar a proporcáo dos produtos da reaccáo. É entáo que ressurgirá o termo ..afinidade-, para designar a funcáo (termodinámica) da qual depende a díreccáo de urna reaccáo, quer dizer, para definir como urna funcao das concentracoes, da pressao, da temperatura, etc., o que a antiga afinidade qualítativa designava como a -eleccáo- dum corpo por um outro em detrimento de um terceiro. A controvérsia entre Berthollet e Proust coloca menos a questáo de saber -quern.. tinha razáo do que compreender porque ela terminou na indííerenca geral. Berthollet foi vencido menos por Proust do que pela transformacáo dos interesses dos químicos.
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o século XVIII caduco
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Diderot e Venel tinham, na sua defesa da autonomía da química, associado váríos registos: análise do que nós sabemos da combínacáo química, análise da relacáo entre teoria e prática, filosofia do conhecimento científico. Podía pensar-se a sua estratégia científicamente ilegítima: o valor e o sentido duma nocáo como a da afinidade, enquanto promessa duma -racíonalizacáo- da química, deveria decidir-se a partir apenas de consideracóes internas a esta ciencia. Ora é associando estes registos que se pode compreender o destino da afinidade, o seu carácter efectivamente caduco. A afinidade nao se tomou um conceito caduco por se ter revelado absurda: noutras histórias possíveis, ela teria podido sobreviver transformando-se de tal maneíra que a aproxímacáo entre afínídade e atraccáo tivesse sido tao historicamente respeitável como a hipótese atómica de Dalton, por exemplo. Ela tornou-se um conceito caduco porque a química mudou todos os registos simultaneamente, porque tal como as quesróes que os químicos colocaram a partir dos anos 1810, também as técnicas da química e os próprios químicos, se transformaram. Os historiadores franceses da química viram no desenvolvimento da química analítica a consequéncia normal da obra de Lavoisier, Outros sublinharam, de preferencia, a importancia da dupla descoberta, por Dalton e Gay-Lussac, das -leis- a que obedecem todas as combinacóes químicas. O instrumento ao qual Lavoísier tinha submetido a química, a balanca, tornou-se, depois da confírmacáo da leí de Dalton, um instrumento efectivo de exploracáo das combinacóes químicas. Ela nao permite apenas verificar que nada escapou ao controlo, entrou ou saiu clandestinamente do meio reaccional, permite também fazer tábua rasa da química antiga. A balanca permite caracterizar as cornbinacóes pelo peso dos reagentes combinados, e os reagentes pelas relacóes ponderaís que eles tém uns com os outros nas suas diversas combinacóes possíveis.
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As proporcóes simples
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Cerca de 1803, provavelmenre, john Dalton mostrou que as combínacóes químicas se formam segundo determinadas relacoes de pesos entre os reagenres. No caso ande, a partir dos mesmos reagentes, várias combínacóes se podem produzir, os pesos de um reagenre reportados ao mesmo peso de outro estáo numa relacáo simples como 1, 2, 3.. Em 1805, Louls joseph Gay-Lussac e Alexander van Humboldt mostraram que, medidos a mesma temperatura e a mesma pressáo, é necessário dais volumes de hídrogénío e um volume de oxigénío para produzir um volume de água. Em 1809, Gay-Lussac generalizará a observacáo: existe sempre urna relacño simples entre os volumes de gás que entram em combínacáo química, assím como entre a soma destes volumes e o volume do gás que resulta da sua combínacáo. Dalton publicou os seus resultados em 1808, no System 01 Chemica/ Pbi/osophy onde ele apresentou a sua deí ponderal. como prova da hipótese atómica. Os átomos de Dalton, que se apresentava como -newtonlano-, nada tinham em comum com os edificios complexos que, para Isaac Newton, eram os corpos químicos entrando efectivamente em reaccáo (o que permitía compreender a críacáo do auro a partir de outros metaís por decomposícác e recomposícáo do edificio). Dalron nao se servíu da Jeí de Gay-Lussac
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para desenvolver a sua hipótese, como fez Amadeo Avogadro. A tese de Avogadro só foi reconheclda e aceite por todos depois do Congresso Internacional de Química de Karlsruhe em 1860.
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A nocáo de proporcáo indefinida que implicava a afinidade de Berthoilet é portanto contraditória das -Icís- que, para a química analítica, nao sao simples leis experimentais entre outras, mas leis que pressupóem os novas dispositivos experimentais e a ínterpretacáo dos seus resultados. Após Berthollet, sao aliás as próprias condicóes da prática analítica que se desmoronaráo: nao poderemos jamais ter a certeza, ao analisar um produto que reage com um outro, que a experiéncia é reprodutível. Nenhum produto padráo será fiáve1, cada um poderá, ao ser formado em condicóes diferentes, ter urna composícáo diferente. As proporcóes definidas, e para mais, doravante simples, deram um sentido estranho el química do século XVIlI e a química de Proust: nao sao as regras que se reportam ao mecanismo de reaccáo química, mas os principies de análise dos constituintes duro carpo. A química analítica nao é mais urna ciencia das reaccóes mas urna análise das cornbinacóes, dos produtos: a reaccáo ern si mesma nao tem outro interesse que nao seja instrumental, instrumento de análise que dá acesso el composícáo química dum produto. Química -moderna-, ela faz um percurso de retomo para a sítuacáo que prevalecia antes do desenvolvimento das tabelas de afinidade, antes do que eu denominei o "programa de desenvolvimento da química newtoniana-: é suficiente um número restrito de ..boas» reaccóes, implicando reagentes padronizados e bastante poderosos para conseguir separar os corpos combinados. É somente no decurso da segunda metade do século XIX que os químicos reencontraráo o caminho das questóes e de Berthollet propósito das reaccóes -incompletas-, E, relembra o químico Wilhelm Ostwald, a química de síntese, que foi a origem deste renovado interesse, impós o recurso a toda a gama de reaccóes possíveis. Mas já nao é em referencia el física newtoniana, mas como caso particular da física geral das transformacóes físico-químicas, a termodinámica, que a reaccao incompleta reaparecerá na química. Esta primeira aproximacáo da transformacáo da química no início do século XIX é suficiente para indicar quanto devem ser analisadas com precaucáo as relacóes existentes entre urna ciencia e o que seremos tentados a chamar globalmente o ..desenvolvimento industrial-. Sabemos como a química analítica interessa el indústria e reciprocamente. Contudo, Berthollet, quando tomou "a sério- as consequéncias da ínterpretacáo newtoniana da afinidade, colocou uro problema crucial para a producáo «racionalizada» de salitre, e que veio a tornar-se essencial para a química sintética da segunda metade do século XIX: o das condieces reaccionais que asseguram o melhor rendimento. A química analítica do princípio do século XIX reencontrará, já o vimos, as -reaccóes príviiegíadas- saídas do corpo artesanal cuja especificidade foi evidenciada peio trabaiho de Berthollet. Neste sentido, ve-se que o -desenvolvimento industrial», depois de ter aberto o horizonte de Berthollet,
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pode jogar ero vanos sentidos: concentrar a atencáo sobre os «baos métodos», os que permitem extrair o produto desejado da mistura resultante da reaccáo, ou ainda, como na época de Ostwald, ressuscitar o problema do rendimento, dos processos de influir sobre a composícáo da mistura ero questáo. No entanto, também aquí se tratava de generalidades enunciáveis 80mente a posteriori. Outros factores, outras circunstancias, deviam ser integrados na receita: é necessário nao só deduzir a transformacáo da química do contexto social e industrial ou duma dístincáo a priori entre "química especulativa". a do século XVIII, e «química positiva», a do século XIX, mas seguí-la, um poueo ao modo como o químico de Goethe deve aprender a partir do contacto efectivo entre carpos químicos. Entáo as «circunstancias» múltiplas tomam sentido. Assim, teria podido a química analítica desempenhar o papel que desempenhou sem a abertura, na mesma época, dum novo campo de exploracáo, este verdadeiro «novo continente» de produtos e de reaccócs que é a química orgánica? Mas sobretudo, o golpe mais efectivo, o que fez da química do século XVIII urna ciencia caduca, nao diz respeito a transformacáo da identidade prática da química e do químico? Venel, defendendo o golpe de vista, a faculdade de oler os indicios- que tem o químico experimentado, escreveu que um químico com um termómetro seria tao ridículo como um médico com um termómetro. A geracáo de Gay-Lussac e Liebig verá urna mutacáo radical das práticas - padronizacáo dos instrumentos e dos produtos permitindo a reprodutibilidade das experiencias e portanto o estabelecimento de protocolos experimentais - que, em poucos anos, reenviará o químico -apaixonado-, descrito por Venel, para a pré-história, A química tornou-se solidária de técnicas metrológicas cada vez mais precisas, e ao químico experimentado, formado após anos de trabalho intensivo, sucederáo os químicos formados em quatro anos no laboratório de Liebig em Giessen e nos laboratórios que se construiráo segundo este modelo, químicos que teráo aprendido essencialmente a seguir protocolos e a servir-se de instrumentos cada vez mais sofisticados. A química do século XIX já nao é urna ciencia de experiencia, mas de expcrimentacáo. Ela «aprende-se» sempre, mas nao se aprende mais no sentido de Bergrnan, aprendizagem a partir da deducao, que a tornará inútil, nem no sentido de Venel, aprendizagem apaixonada do corpo e do espírito. Ela aprende-se no sentido inventado por Liebig, treino sistemático, manuseamento dos instrumentos e dos protocolos experimentaís, formacáo acelerada de químicos que partilham os mesmos -factos-, as mesmas vías, os mesmos métodos e as mesmas leituras. Os químicos vém, de todos os cantos do mundo, «aprender» na Alemanha. A química será, simultanea e correlativamente, a primeira ciencia a fazer comunicar de maneira regulada producáo da ínvestígacáo e de investigadores, quer dizer, a treinar os seus estudantes duma maneira que «imita» a investigacáo, e a primeira ciencia efectivamente internacional. Venel e Diderot haviam lutado por urna ciencia aberra, respeitadora da cornplicacáo dos fenómenos, preferindo a obscuridade, as -conjccturas-, segundo a palavra de Diderot, a urna falsa intelegibilidade
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1 A AFINIDAD E AMHíGUA
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redutora, associando de um modo novo teóricos e prátícos, A química de Liebíg nao é maís a ciencia da dupla linguagem, dos sábíos e dos trabalhadores. O -facto químico. definiu-se nos espacos fechados dos laboratorios académicos e, pouco depois, industriaís. Os químicos que ai trabalham nao aprenderam nem a hístória, caduca, da sua ciencia nem as práticas da química artesanal da sua própria época. Eles já nao aprendem a jogar com as circunstancias, múltiplas e singulares, eles térn os meios de as vencer, de «criar», segundo Marcellin Berthelot, objectos novos, relativos aos instrumentos e aos protocolos que eles desenvolvem. A química triunfante do século XlX vangloría-se de ser urna ciencia activa, que nao se submete mais a natureza, múltipla e circunstancial, que domina os acontecímentos, ela vangloría-se também de ser urna ciencia autónoma, desinteressada, ern suma, académica. Liebig é o primeiro a insurgir-se contra a concepcáo «baconiana.. ainda dominante em Inglaterra: a química 0;10 deve estar ao scrvíco da índústria, deve perseguir as suas próprias questóes, e seráo as bases desta ciencia pura que fecundarao o desenvolvimento industrial. A química do século XlX conquístou portanto o seu título de ciencia por urna vía que nao nem a de Venel nem a de Buffon. Ela tomou-se o modelo da ciencia positiva, articulando ciencia pura e aplicada, traducáo por excelencia da accáo racional e criativa do homem sobre a natureza. A química nao é nem deducáo nem paixáo. Ela é accáo, racional porque prática, apaixonante porque produtora de produtos novos que transfonnam a sociedade e a vida dos individuos. Nós partimos da questáo da estranha ressonáncía entre o desprezo pela química de Fontenelle e do físico contemporáneo, A afinidade nao nos permitiu resolver a questáo, mas apenas equacioná-Ia, No decurso do século XIX, a química nao só conquistou o seu estatuto de ciencia autónoma mas tarnbém o de ciencia de ponta, de ciencia dominante, de modelo de ciencia positiva, ilustrando urna concepcáo e urna prática efectivas de ciencia pragmática e experimental. Pertence a história do século xx compreender como esta estratégia bem delineada se acabou por virar contra si própria, como aos olhos do público, mas também de certos cientístas, a química se tornou «apenas prática- e portanto se colocou ao servico de ínteresses sociais e económicos. é
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De Lineu a Darwin: os viajantes naturalistas ]EAN-MARC DROUIN
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Onde veremos que os viajantes naturalistas, sulcando o mundo para inventariar as espécies vivas, trazem dos seus périplos os materiais de urna geografia das plantas e dos animais e, com eles, as bases de urna teoria da evolucáo,
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I Uitas vezes foi notada a coincidencia de datas: urn século exacto separa a fíxacáo da nomenclatura de Lineu, em 1758, na segunda edicáo do Systema naturae, e a primeira exposícáo pública por Darwin da sua leoria da evolucáo no dia 1 de Agosto de 1858, na Linnean Society de Londres. Aos olhos de alguns autores, um
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século parece, aliás, muito curto face ao que separa estes dois tempos .I
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importantes da hístóría da biología. Lineu com efeito nao propóe apenas
um código para designar as especies vegetais ou animais e um sistema para as classifícar. Ele lende a fazer de cada urna delas os dados fundamentais e invariantes da criacao. Pelo contrário, Darwin, ao reconstituir a -orígern das espécíes-, póe em causa a sua fíxídez, de maneira que é tentador ver na passagem de um ao outro urna mutacáo radicaL Fala-se de revolucáo darwiniana. Evita-se assim abafar a novidade do acontecimento sob urna acumulacao de precursores, e sugere-se ao mesmo tempo urna analogia com a revolucáo operada na cosmologia duzentos anos antes e aqual estáo ligados os nomes de Copémico e de Galileu. Tcremos, entáo, de considerar a histórianaturalpré-darwiniana como urnaespécie de pré-hístória, a qual a leoria da evolucáo leria posto fim brutalmente' Convidado pelo capítáo Pítz-Roy a acompanhá-lo a bordo do Beagle na sua volta ao mundo, ° jovem Charles Darwin partíu de Inglaterra em Dezembro de 1831 e só regressou ao seu país em Outubro de 1836. Há já muito tempo que alguns historiadores tém vindo a sublinhar o papel desempenhado pelos naturalistas do inicio do século XIX. A controvérsia, entre Lamarck e Cuvier em particular, suscitou urna literatura abundante. Alguns autores descreveram Lamarck, o naturalista filósofo, como um "precursor francés de Darwin-, exposto aos sarcasmos do muito conservador baráo Cuvier. Qutros autores, pelo contrário, insistíram na modernidade de Cuvier, -fundador da paleontología-, recor149
DE LINElJ A DARW¡N: OS VIAJANTES NATURALISTAS
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dando como, gracas ao seu conhecimento das correlacóes entre órgáos, ele podia reconstituir um esqueleto inteiro a partir de alguns OS80S. Em suma, para lá do seu confronto sobre a transformacáo ou a fixídez das espécies, o que Lamarck lega de rnais seguro aos seus sucessores talvez seja urna nova classíflcacáo dos invertebrados, enquanto o essencial da contríbuícáo de Cuvíer sem dúvida que sao os seus estudos sobre a anatomia comparada dos vertebrados ... É urna dado adquirido, poís, que, se Darwin escreveu a história dos seres vivos, outros já tinham cornecado a decífrar-lhe os arquivos. Contudo, qualquer que seja o seu prestígio, o estudo dos fósseis e a anatomia comparada nao sao as únicas disciplinas que foram rnobílizadas pela teoría da evolucáo. Na leitura da Origem das Espécies, nao podemos deixar de nos surpreender pela frequéncia dos argumentos retirados a biogeografia. o papel desempenhado por esta disciplina que estuda os problemas da repartícáo das floras e das faunas, do isolamento, das barreiras, das migracóes, foi assinalado e analisado por váríos historiadores das ciencias durante estes últimos decénios. Se nos virarrnos para a biografia de Darwin, veremos como os anos de navegacao que passou a bordo do Beagle (1831-1836) estiveram na base da sua formacáo de naturalista. De maneira significativa, Alfred Russel WalIace, que chegou, independentemente de Darwin, a concepcóes próximas sobre o papel da seleccáo natural, tinha passado vários anos a explorar a Amazónía e o arquipélago malaio, Iniciada desde o século XVII, a aventura dos viajantes naturalistas conhece o seu apogeu no fim do século XVIII e inicio do século XIX. Cronológica e logicamente, nao será ela um dos fios condutores que ligam o estabelecimento da classífícacáo por Lineu e a sua transformacáo em genealogía por Darwin?
I Convidado pelo capitáo Fhz-Roy a acompanhá-Io, a bordo do Beagte, na sua volea ao mundo, o jovem Charles Darwin partíu de Inglaterra em Dezembro de 1831 e só regressou ao seu país em Outubro de 1836.
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DE LINEU A DARWIN: OS VIAJANTES NATURALISTAS
Viagens e viajantes Nem todos os viajantes eram naturalistas e nem todos os naturalistas eram viajantes, mesmo dando a estes termos um sentido muito amplo: sempre existiram, em todas as épocas, viajantes indiferentes a fauna e a flora e naturalistas de gabinete ou de jardim que só viajavam em pensamento. Por vezes, era mesmo preferível, para fazer carreira nas ciencias naturais, nao se afastar demasiado da capital! Dito isto, sao numerosos os viajantes conhecidos pela sua contribuicáo para a história natural. Nao se trata de os recensear aquí, mas apenas de evocar alguns dos seus périplos. Encontramos aí tanto empreendimentos colectivos apadrinhados por govemos como aventuras individuais, podendo estas, aliás, inserir-se naquelas. Urna das primeiras viagens, e talvez o arquétipo de todas as outras, foi sem dúvida a de Joseph Pillon Tournefort 0656-1708). Percorrendo durante dois anos 0700-1702) a Anatólia e as ilhas gregas com dois companheiros, o botánico francés revela-se através das suas cartas um escritor cheio de humor. Estas cartas cuja recolha constitui um verdadeiro diário foram republicadas ern 1982 numa edicáo abreviada em livro de bolso sob o título Voyage d'un botaniste. Com efeíto, elas oferecem urna descricáo das paisagens e da vegetacáo, mas também dos habitantes, da sítuacáo política e religiosa dos países atravessados. Esta viagem nao é apenas a aventura de tres homens, também é um empreendimento financiado e protegido pelo poder real, como o mostra sem disfarce urna nota dirigida pelo controlador-geral das Financas, Pontchartrain, ao abade Bignon, secretário da Academia das Ciencias, e datada de 16 de janeíro de 1700. Encontramos nessa carta, condensada e vista sob um ángulo administrativo, todos os elementos políticos da viagem naturalista. Foi previsto um itinerário: neste caso, um circuito a volta da bacia medíterránica. Este itinerário, aliás, só será parcialmente coberto. Os objectivos da míssáo sao claros: trata-se de conhecer melhor os recursos naturais que o Império Otomano pode contero Consrituiu-se urna equipa; ela foi reduzida a tres homens, mas observaremos que um deles deverá ser um desenhador, cujo papel, antes da ínvencáo da fotografia, é essencial em qualquer expedicáo científica. Trata-se, na ocorréncia, do pintor Claude Aubriet; o terceiro membro da equipa é um botánico alemáo, André de Gundelsheimer. Está previsto um financiamento, dentro de certos limites e com a condicáo de serem fornecidos justificativos; entretanto, é pago um adiantamento. Enfim, sao dadas algumas garantias a Tournefort: a sua carreira nao sofrerá, pelo contrário, com esta langa ausencia. Por outro lado, a história natural nao é maís que um dos aspectos da víagern: as ruínas antigas, os modos de vida, a organizacáo política ou religiosa interessam tanto aos nossos viajantes como a vegetacáo e as rochas. A míssáo de Tournefort Nota de Monsieur Phélypeaux, conde de Pontchartrain, ao abade de Bignon, secretário da Academia das Ciencias, a 16 de )aneiro de 1700, citado por Stéphane Yérasimos na íntroducáo da Voyage d'un botaniste.
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-Dei coma ao rei, Monsíeur, da proposta que foi feíta de enviar M. de Tournefort, botanlco da Academia das Ciencias, a Grécla, a Constantinopla, a Arábia, ao Egipto e as costas da Barbada, para aí investigar as plantas e os meraís e mínerals, se instruir nas doen(as desses países e nos remédlos que aí sao usados e tudo o que diz respeíto a medicina e a hlsróría natural; Sua Majesrade aprovou este designio, deseja que seja executado, e nao duvida que seia de grande urllídade para a perfeícáo da medicina e para o avance das ciencias; assím, Sua Majestade ordena-me que vos escreva para lhe dízerdes que se dlsponha a partir sem demora com um homem capaz que a Academia escolherá para trabalhar com ele e um desenhador. Sua Majestade quer pagar-Ihe, quando vohar, todas as despesas que tiver feíto, com base nas mcmórias que ele Ihe dará, com a condícáo de fazer esta despesa com grande economía: no enranto, expedlr-Ihe-eí desde hoje urna dísposícáo de 3000 libras a conta, de que será pago antes da partida; creío que é inútil dízer-vos que as suas pensóes da Academia Jhe seráo continuadas e pagas regularmente durante a sua ausencia, e mesmo que estando afastado ele terá aínda o dlreíto de pretender os aumentos e as gracas que Sua Majestade poderé fazer aos académicos; preciso que venha cá, a fim de eu o poder apresentar ao rei; também mandareí expedir-lhe todos os passaportes e cartas de recomendacáo de que rerá necessídade, de manetra que faca esta vlagem com a seguranca e o consentimento que ternos o dlreíro de lhe dar a partir daquí-. é
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Posterior trinta anos, mas num país, a Suécia, que é muito menos rico na época que a Franca, a viagem de Lineu pela Lapónia é mais modesta que a de Tournefort. É um périplo estival que um dos seus mais recentes biógrafos, Wilfrid Bunt, pode comparar as -expedícóes empreendidas hoje por estudantes inventivos para fugir ao aborrecimento das férias grandes-. No entanto, este périplo estival, para o qual obteve urna modesta subvencáo da Sociedade Real das Ciencias, desempenhará um papel nao negligenciável na carreira do botánico sueco, pennitindo-Ihe dar-se a conhecer. O seu diário de viagem, Viagem pela Laponia, permite segui-Io passo a passo e apreciar o número, a precisáo e a variedade das suas observacóes. Na segunda merade do século XVIII, assistc-se a grandes expedícóes científicas. AqueIa que a imperatriz da Rússia, Catarína 11, envia, sob a díreccáo do zoólogo alernáo Peter Simon Pallas, para explorar a Sibéría, ficou célebre pela descoberta dos restos de mamíferos conservados nos gelos. No entamo, a atencáo dos historiadores foi sobretudo retida pela rivalidade franco-inglesa: as grandes círcum-navegacóes de Bougainvilie, de Cook e de La Pérouse traduzíram-se todas pela descoberta de novas espécies animais e vegetais cujos desenhos, descrícóes e espécimes vivos, secos ou empalhados, se encontram em Londres ou Paris, ao mesmo tempo que as duas potencias viam progredir a seu conhecimento das rotas marítimas que sao as da hegemonia comercial ou militar... A lígacáo máxima entre dernonstracáo política e empreendimento científico é sem dúvida alcancada com a expedícáo do Egipto. Um areópago de sabios acompanha o exército numa aventura que termina bastante mal, mas que marcará profundamente a Franca da época. Estes lacos entre a descoberta geográfica e a empresa imperialista ou os interesses comerciáis facílitam por vezes 0_ trabalho do naturalista, Mesmo um botáníco isolado e com poucos recursos ftnancciros - como alguns discípulos de Lineu, ou como o francés Michel Adanson 152
DE LINEU A DARWIN: OS VIAJANTES NATURALISTAS
beneficia muitas vezes dos navíos mercantes para o seu transporte e feitorias para o scu descanso. No entanto, as rivalidades entre países europeus, e também a desconfíanca ou a hostilidade dos autóctones, aumentam a dificuldade de viagens, já perigosas. Quanto a isto, as grandes expedícoes nern sempre sao as mais seguras. Sabe-se que a de La Pérouse desapareceu no Pacífico em 1788. Em 1791, a Franca envía a sua procura outra expedícáo comandada por Antaine d'Entrecasteaux e na qual participa o botánico La Billardierc. A expedicáo acaba em Java, no meio de dissensóes políticas, sem ter podido encontrar traeos de La Pérouse, mas nao sem urna colheita de novas espécies. Dez anos maís tarde, a expedicáo aos mares do Su1, colocada 80b as ordens do comandante Nicolas Baudio e reunindo muitos jovens dentistas, é marcada por urna sucessao de doencas, de abandonos e de martes e por ásperos conflitos entre cientistas e militares.
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As principais datas e expedícóes das grandes víagens dos séculas XVIII e XIX úteís para os nossos propósitos. 1700-1702: víagem de joseph Pítron de Tournefort ao Levante (Grécía, Turquía). 1732: vlagem de Carl von Líneu pela Lapónía. 1735-1770: estada de joseph de jussieu na América do "Sul: partindo com a expedícáo dirigida por Charles Mane de La Condamine, permanecerá aí trinta e cinco anos. 1749-1754: Michel Adanson reside no Senegal como empregado da Companhia das Índias. 1763-1775: as víagens do capíráo james Cook permírem ao inglés joseph Banks, depois aos aiemáes johann e Georg Forster, estudar a flora austraL 1767-1771: víagem de Luis Antoine de Bougainville a volta do mundo, sendo Philíbert Commerson o botánico da expedicáo. 1768-1774: expedícáo a Síbéria sob a direccáo do zoólogo alemáo Peter Simon Pallas. 1785-1789: expedícáo comandada por jean-Prancols de La Pérouse que acaba com o desaparecimento de dois navíos, o Boussole e o Astrolabe. 1791-1794: expedicáo enviada sob as ordens de Antaine d'Entrecasreaux a procura da precedente. 1799-1804: víagem de Alexander von Humboldt e de Aimé Bonpland a América Latina. 1800-1804: expedícáo do comandante Nícolas Baudin aos mares do Sul. 1832: morte de Victor jacquemont em Bombaím. 1831-1836: vlagem de Charles Darwín no navío Beagte. 1848-1852: víagem dos ingleses Alfred Russel Wallace e H. W. Bates a Amazónía. No próprio momento ern que se desenrolam estes grandes empreendimentas colectivos, muitos naturalistas lancam-se, sós ou quase, em périplos frutuosos. Para apenas citar tres casos entre os mais conhecidos: o físico e geógrafo alernáo Alexander von Humboldt e o botánico francés Aimé Bonpland partem para a América do Sul em 1799 e regressarn em 1804, depois de urna viagem excepcionalmente fecunda: nos primeiros anos do século, jean-jacques Audubon, pintor e ornitólogo americano de origem francesa, percorre os Estados Unidos; em 1832, o francés Victor jacquemonr passa quatro anos a estudar a flora da Índia, antes de morrer em Bombaím, aos trinta e um anos ... 153
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Em suma, se podemos observar urna evolucáo para as expedicóes melhor organizadas e dispondo de mcíos cada vez mais importantes, acontece que, até meados do século XIX pelo menos, urna grande parte dos naturalistas viajantes sao indivíduos isolados, entre os quais se encontra, aliás, um bom número de religiosos ou de missionários. Para lá das imagens muitas vezes trágicas, por vezes idílicas, sempre muito coloridas dessas epopeias, ínteressa medir o alcance do trabalho realizado. Em primeiro lugar existem, para ficarmos O mais próximo possível da própria aventura, as narrativas das viagens que podem ser consideradas como urna contribuícáo importante para a cultura europeia dos séculos XVIII e XIX. Nem todos os viajantes tém a mesma qualidade de escrita de Toumefort, sob cuja pena a maís pequena anedota assume o porte de um canto voltairiano; no entanto, todas estas narrativas com as suas descrícóes de paisagens e de povos longínquos váo marcar profundamente a imagem do mundo tal como ela nos é restituída pela literatura do século dos filósofos, depois pela da época romántica, A partir de 1748, o abade Prévost compóe urna Histoire générale des voyages, que reúne e resume as narrativas de numerosas viagens. Se ele actualmente é mais conhecido por ser o autor de Manon Lescaut, a sua história nao foi menos, como o mostrou Numa Broc, a fonte de urna abundante literatura cuja influencia chega até ao século seguinte. Noutro registo, a viagem de Bougaínville, com a sua escala em Taiti, a nova Citera, dá a Diderot a ídeia e a ocasiáo desse Supplément, onde a amável fíccáo filosófica substitui a descricáo etnográfica. Em suma, os naturalistas viajantes, como os outros viajantes -instruídos-, nao só forneceram elementos narrativos a literatura como também favoreceram o sucesso das ideias filosóficas sobre a diversidade e a relatividade dos modos de pensamento, e alimentaram os debates sobre um hipotético estado de natureza, suscitando argumentos tanto favoráveis como desfavoráveis ao «mito do bom selvagem-, De maneira mais directa, pelas suas descricóes da vegeracáo tropical, eles enriqueceram o imaginário europeu com um tema cujo sucesso nunca foi desmentido até hojeo No entanto, os naturalistas, de regresso dos seus périplos, nao traziam narrativas, regressavam carregados de espécies até entáo desconhecidas: despojos de animais exóticos, e sobretudo folhas de herbários acompanhadas de graos e por vezes de plantas em vasos. Sabe-se que muitas plantas alimentares e ornamentais cultivadas actualmente foram introduzidas na Europa vindas da Ásia ou da América; enquanto outras espécies, como o café, foram transportadas da África para a América. Em tres séculos, a dimensáo do mundo vivo, a ideia que se fazia da sua diversidade mudou de ordem de grandeza. Para nos limitarmos ao reino vegetal, o número de espécies conhecidas no século XIX e descritas pelos botánicos nao ultrapassa alguns milhares. No fím do século XVII, Toumefort pode descrever mais de dez mil plantas. Em 1833, na sua Iicáo inaugural de Botánica em Montpellier, Alire Raffenau-Delile, que tinha participado na expedicáo do Egipto, faJa -das descobertas dos infatigáveis observadores, das viagens as novas terras diariamente exploradas» e acrescenta: -Devemos ao seu zelo o conhecimento de 154
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mais de cinquenta mil espécies de vegetais, no estado actual da CIencia». Hoje em dia, seria preciso provavelmente multiplicar este número pelo menos por cinco. Precisemos, por comparacáo, que o reino animal ultrapassa muito nítidamente o rnílháo de especies conhecidas, senda a maioria delas insectos.
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René Lesson (1794-1849), naturalista francés e farmacéutíco da marinha, que tinha participado na víagem do la Coquille (1822-1825) sob a dlreccáo de Louís-Isídore Duperrey, é o autor do artígo -Taxídermíe- do Dtctionnotre des sciences naturetles (Levrault, 1828). Ele comeca por esta deflnlcáo extensiva: -A taxidermia é a arte de preparar e de conservar, para as coleccóes, os objectos da hístóría natural- e termina com urna lista dos -Objectos necessáríos a conservacáo das coleccóes de hlstórta natural nas vlagens de descobertas-: -(...1 antes de embarcar para urna campanha de descobertas, elija duracáo presumida seja pelo menos de tres anos, devemos rnuntr-nos de todos os objectos índíspensáveís para assegurar o éxíto do ernpreendlmento. Álcoo/ etílico tncotor: trezentos litros [... l. Frascos de vidro forte e branco: trezentos L..I(Os frascos e o álcool permitem o transporte dos anímaís de pequena estatura). Mástique [. .. J: vínte e cinco quilogramas 1. ..J. Sublimado corrosivo, fechado num frasco de vidro, com rolha de esmeril e sempre fechado numa calxa para medicamentos: quínhentos gramas-o (O -sublímado corrosívo-, tal como o -sabáo arsenícal-, servia para tratar as peles, a fim de impedir a sua putrefaccáo). -Os ourros objectos indispensáveis sao: 1. Chumbo laminado coro a espessura de urna folha de cartáo Flno, para fazcr etiquetas: tres pés quadrados. 2. Um saca-bocados, do tamanho de urna moeda, com urna série de dez pequenos números cm relevo. Os números asslm gravados sobre o chumbo servem para designar cada frasco, e este número é repetido numa lista onde se inscrevem todas as notas relativas ao objecto que nele está fechado. 3. Tres espingardas de caca com os respectivos equipamentos L..J. 4. Duas calxas de lata um pouco achatadas para a caca e para a botáníca. 5. Sabáo arsenlcal, vinte e cinco quilogramas, fechado nUID pequeno barril. 6. Doze caíxas almofadadas e encatxando-se urnas nas outras, para insectos. 7. Quínze resmas de papel para plantas e cinquenta quilogramas de papéis velhos para embrulhar os mlneraís-.
Nomear, classificar Taís enumeracóes nao aparecem por si; pressupóern espécimes rccolhidos, preparados, desenhados, descritos, reunidos em lugares, museus, jardins, herbários, gabinetes de história natural, em que cada um os possa ver, observar, comparar... Viagens e coleccóes aparecem, assim como os dais pólos da história natural. Contudo, entre estes dois pólos, nada se passaria se nao tívesse havido o trabalho de nomear e de c1assificar todos os espécimes fornecidos. Entre a aventura das viagens e a poesía dos jardins, a nomenclatura e a classiflcacáo nao dáo descanso ou díversáo, formam a charneira que, ao liga-las urna a outra, condiciona a producáo de um saber sobre o vivo. Isso foi muito bem compreendido por alguns, e em particular por Jean-Iacques Rousseau, de quem se sabe que consagrava os seus lazeres a
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botánica e que decidiu escrever, por volta de 1774, um Dictionnaire
des termes d 'usage en botanique.
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-l...l Pergunto a qualquer leitor sensato como é possível empenharmo-nos no estudo das plantas, rejeitando o da nomenclatura. E como se quiséssemos tornar-nos sábios numa língua sem querer aprender as palavras. L..] Trata-se de saber se trezentos anos de estudos e de observacóes devem ser perdidos para a botánica, se trezentos volumes de figuras e de descricóes devem ser lancados ao fogo, se os conhecímentos adquiridos por todos os sábios que consagraram a sua bolsa, a sua vida e as suas insónias a viagens ímensas, caras, dolorosas e pengosas devem ser inúteis para os seus sucessores, e se cada um, partindo sempre do zero como primeiro ponto, poderá alcancar sozinho os conhecimentos que urna longa sequéncía de ínvestigacóes e de estudos difundiu na massa do género humano. [,. .1 Admitir o estudo da botánica e rejeitar o da nomenclatura, é, pois, cair na mais absurda contradicáo-, Por outras palavras, a botánica, e ísso também vale para a zoologia apesar de Rousseau nao falar dela, só se pode tornar urn saber cumulativo se o conjunto dos que se intercssam por ela, viajantes, amadores, jardineiros, coleccionadores, adoptarem urna nomenclatura cornum. Ora, diz Rousseau, esta existe, proposta por Lineu; ela encontrou algumas resistencias inspiradas pelos -ciúmes nacíonaís- mas acabará por se ímpor por todo o lado "e mesmo em Paris-, onde ..M. de jussieu acaba de a estabelecer no [ardim do rei, preferindo assim a utilidade pública a glória de urna nova refundicáo ... » O que Lineu forneceu a nomenclatura foi feito em dois tempos. Num prímeíro ternpo, prolonga o trabalho dos seus predecessores e em particular de Tournefort: estabelece regras de determínacáo para os géneros, depois para as espécies, e aplica-as para constituir primeiro o catálogo do jardim botánico de um rico amador anglo-holandés, George Clífford, depois o inventário de todas as espécies vegetáis e animais de que tem conhecimento. A cada espécíe, dá um nome de género que ela partilha com as espécies vizínhas, e urna frase que a «especifica» e deve permitir distingui-la. Até ai, como diz Rousseau, -tinha determinado o maior número de plantas conhecidas, mas nao as tinha nomeado: porque nao é mesma coisa nomear urna coísa e defini-la-, A segunda etapa, a críacáo de nomes que scjam nomes, e nao frases, faz-se quase sub-repticiamente e por razóes, antes de maís, pedagógicas. Progressivamente, Lineu fora levado a dissociar o nome propriamente dito da descrícáo, aínda chamada diagnose. Foi para facilitar a memorízacáo e a designacáo no terreno que introduziu progressívamente estes "binómios» ainda hoje usados e que, para cada espécie, atribuem um nome genérico e um adjectivo ou um substantivo específico. Assim o carvalho-roble chama-se Quercus robur, o carvalho-verde Quercus ilex, o sobreiro Quercus suber, etc. Lineu comeca a utilizar esta nomenclatura Exemplo de diagnose caulíbus procumbentibus, joliis lanceotata ooatis, floribus pedunculatts-, quer dtzer. -Pervinca com caules rastejantes, folhas lanceoladas ovats, flores pedunculadas- (trata-se da pervínca-pequena: in C. Lineu, spectes pkmtarum. 3.e ed., 1764). 1
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binominal para algumas espécies a partir de 1745, generaliza-a a todo o reino vegetal no Species plantarum ero 1753, e a todo o reino animal na segunda edicáo do Systema naturae ern 1758. É verdade que nao foi tudo resolvido com um passe de mágica, e os problemas de sinonímia continuam a colocar-se. Por um lado, o principio que atribui a cada espécie o nome que lhe deu o primeiro naturalista que a descreveu e nomeou segundo a nomenclatura de Lineu pressupóe urna ínvestígacáo de prioridade que é fonte de dificuldades. Por outro lado, alguns géneros de Lineu foram divididos em vários géneros, o que modifica automaticamente o nome. Dito ísto, os conflitos e os erros que podem subsistir nada sao em comparacáo com a confusáo que reinaria sem esta nomenclatura. O risco de a mesma espécie animal ou vegetal ser -descoberta- várias vezes pelos viajantes e catalogada ern vários museus sob nomes diferentes nao desapareceu, mas reduziu-se em tais proporcóes que se pode ver nesta nomenclatura urna das etapas decisivas na história das ciencias da natureza. Nos jardins botánicos, nos herbários, nos gabinetes de história natural tal como nos livros, é doravante teoricarnente possível, em presenca de urna planta ou de urn animal, decidir se ele pertence ou nao a urna espécie já conhecida. Mas nao basta etiquetar os espécirnes, falta arrumá-los. Para isso é preciso classifícá-los. A determinacáo do género constitui urn esboce de classifícacáo, urna vez que várias espécies vízinhas pertencem ao mesmo género. Assim o burro e o cavalo arrumam-se no género EquUS; o cuco e a primavera-acaule, no género Primula. Mas este esboce nao basta; a maís pequena coleccáo pressupóe urna classificacáo mais completa. Será preciso reagrupar os animais segundo o elemento em que vivem - terrestre, aéreo, aquático - correndo o risco de por os ouricos-cacheiros com os pássaros e as baleias coro os peixes, consoante uns e outros estejam cobertos e se amamentem como ratos e elefantes? Podemos c1assificar as plantas em ervas, arbustos e árvores ou entáo agrupá-Ias segundo o habitat ou ainda seguir critérios fundados na sua estrutura? A questáo ocupa os naturalistas desde há muito ternpo; adquire toda a sua acuidade no século XVlIl, precisamente porque condiciona a exploracáo, pelos jardins e pelas coleccóes, das recolhas fornecidas pelos viajantes, e na volta, condiciona a redaccáo de catálogos, de guias e de floras que pennitem a cada viajante tirar partido do trabalho dos seus predecessores. As infelicidades de urn naturalista
«Cornmerson era urn hornern de urna actividade ínfatígável e da mais profunda ciencia. Se ele próprio tívesse publicado a recolha das suas observacóes, teria um dos prlmeiros lugares entre os naturalistas. Infelizmente, morreu antes de poder ter pasto a última demáo na redaccáo dos seus escritos: e aqueles a quem os seus manuscritos e o seu herbário foram confiados neglígenclaram-nos de urna maneira culposa. [' .. J. O seu herbário, primeiro caiu nas máos dos seus herdeiros; a seguir chegou ao ]ardin des Plantes ande ainda permanece. Várias plantas novas talvez se enconrrem al, embora nestcs últimos tempos tenha sido explorado por vários botánicos hábeís, como ]ussieu e Lamarck. Os peixes que Cornmerson recolhera pennaneceram na sua caixa até há cerca de vinre anos, época em que M. Duméril os descobriu num celeiro da casa de Buffon.
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Os manuscritos foram entregues a Lacepede, que tirou bom partido deles para a sua Hístoire des poissons, ande nao os publícou materialmente, mas onde os fundíu com o seu trabalho pessoal. [...l As descrícóes sao feítas no estilo de Líneu, com os maíores pormenores e a maíor precísáo 1. . .J. Sao acompanhadas de desenhos feitos, uns por Commerson, outros por Sonnerat, ourros ainda por artistas que tinham partido com Bougalnvílle. Todos estes desenhos, também remetidos a Lacepede, servíram-Ihe para a sua Histotre des poissons, na qual foram gravados L. J. Por ourro lado, como Commerson nao acabou as suas nomenclaturas, aconteceu que urn único ser se multiplícou até tres vczes: a primeíra apoíada na figura, outra na frase característica escrita sobre a figura, e a terceira apoiada na descrtcáo. Lacepede, escrevendo no campo ande o Terror o exílara, e náo tendo os papéis oríglnaís, mas apenas notas, nao podia fazer as ccmparacóes necessárias para evitar estes eITOS. Os viajantes atíngidos pela morte, que nao envíaram em ordem o que recolheram, e cujos trabalhos foram depositados em estabelecimenros públicos para serem usados mais tarde, sao expostos a infeliz sortc que Commerson expcrimentou-. (Georgcs Cuvier e Magdeleíne de Saint-Agy, -vcyages scíentíflques-, Histoire des sciences naturelles. 1841-1845).
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Também aí Lineu trata de fazer obra de legislador. Inspirando-se nos seus predecessores, arruma os animáis ern seis grandes classes: ..Mamíferos», «Aves», -Anfíbios-. ..Peixes-, «Insectos» e -Verrnes-. Estas classes divídern-se em ordens. Na segunda edícáo do Systema naturae, citada por William Stearn, a classe dos -Anñbios-, por exemplo, compreende tres ordens: os -Répteis-, no qual encontramos os actuaís batráquios e répteis excepto as serpentes, as quais formam a segunda ordem, enquanto a terceira ordem, os ..Anfíbios Nadadores", corresponde mais ou menos aos nossos actuais peixes cartilaginosos. Muítos destes grupos foram discutidos e remodelados, em particular para ter em canta o desenvolvimento da anatomia comparada. Buffon, quanto a ele, entende dispensar qualquer classífícacáo na sua Histotre naturel/e: ..Nao será melhor fazer seguir o cavalo que é solípede pelo dio que é fissípede, e que tem o costume de o seguir de facto, que por urna zebra que nos é pouco conhecida, e que talvez nao tenha outra relacáo com o cavalo senao ser solípedeb De facto, o antropocentrismo desta declaracáo nada tem de ingenuo: traduz a importancia que Buffon dá aos factores geográficos, em particular a accáo do clima. Contudo, o autor da Histoire naturelle só se pode dar ao luxo de passar sem nomenclatura e sem classíficacáo, caso se limite a grupos como os mamíferos e as aves, onde as espécies, em número limitado, tém todas nomes comuns. Atrás da querela dos métodos divisa-se urna hierarquia implícita das disciplinas e dos objectos. A<:; divergencias em torno da classificacáo dos animais permanecem, contudo, limitadas a época de Lineu, Em contrapartida, a classifícacáo das plantas vai ser objecto de urna importante controvérsia que todos os historiadores da biologia relataram, Preocupado antes do mals com o rigor lógico e surpreendido ao mesmo tempo com a importáncia da sexualidade vegetal recentemente deseoberta, Lineu propóe o seu «sistema sexual»: divide o conjunto das plantas com flores em vinte e tres c1asses, consoante o número dos órgáos masculinos, os estames, depois volta a dividir cada urna das classes ero ordens segundo o seu tipo de pistilo, quer dizer, de órgáos femininos. Se tomar158
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mos, por exemplo, uro lírio, observam-se seis estames rodeando tres pequenas calunas, ou estiletes, que se elevam acima dos ovários e suportam os estigmas ondeo pólen será depositado. Aa observar a seguir uro acafráo, flor aparentemente poueo diferente, só encontramos uro único estilete no meío de tres estames. No sistema de Lineu, o lírio arruma-se nas Hexandria trigyna, seis maridos para tres esposas, e o acafráo nas Triandria monogyna, tres maridos para uma esposa. Na época, esta metáfora etnográfica vagamente erotizada nao é do gosto de toda a gente: alguns admiram-se, outros trocarn. No entanto, o mais grave nao é isto, é o carácter demasiado arbitrário das divisóes, Como observa Antaine Laurent de Jussieu em 1773 num artígo dos Comptes rendus de l'Académie des sciences: basta uro estame abortado ou supranumerário para ernbaracar «os partidários do sistema sexual», Além disso, o sistema sexual abriga a renunciar a reagrupamentos há muíto tempo estabelecidos e a substituí-los por outros euja base é por vezes demasiado estreita. Aa "sistema sexual» e a autros sistemas que o tinham precedido, outros botánicos como Adanson, os jussieu, depois de Candolle, opoem uro "método», talvez maís empírico, consistindo ero reagrupar os géneros que apresentam mais afinidades nas familias naturais: as umbelíferas, as compostas, as rosáceas ... Estas famílías sao, por sua vez, arrumadas ern classes. já nao há uro só critério como o nome dos órgáos sexuais no sistema de Lineu, mas urna combinacáo de caracteres tomados nas diversas partes da planta: número dos cotiledóneos 1 (um ou dais), modo de ínscrcáo ds estames, número de pétalas, etc. O próprio Lineu parece ter tido consciencia do interesse de urna classífícacáo menos artificial e deu alguns esboces para urna divísáo em familias naturais. A fraqueza do sistema de Lineu, como de todos os outros sistemas, reside sem dúvida em preencher duas funcóes incompatíveis. Por um lado, ele deve permitir encontrar qualquer espécie no termo de urna séríe finita de operacóes simples: múltiplas questóes de escolha e enumeracóes. Por outro lado, apresenta-se como um meio de reagrupar os seres vivos segundo as suas afinidades. A primeira destas funcóes pressupóe caracteres fáceis de reconhecer e fáceis de combinar; a segunda, caracteres que térn urna importancia determinante para a estrutura do organismo; nao sao necessariamente os mesmos. Foi por isso que a publicacáo de Lamarck, em 1778, da Florefrancaise, marcou urna etapa decisiva nesta história. O -Díscours préliminaire- distingue precisamente os dois -obiectos- que podem ser atribuídos a uma classíficacáo, depois coloca a quesillo: -Podcm preencher-se ao mesmo tempo estes dais objectos? Quer dizer, é possível que o meio que deve levar-nos a descobrir os nomes que os botánicos deram a plantas que procuramos conhecer possa ao mesmo tempo oferecer-nos a graduacáo de todas as relacóes particulares que ligarn as plantas entre si?» Aa responder negativamente a esta questáo, Lamarck fica com toda a liberdade para propor urna chave de determinacáo que confessa sem 1 Cotiledóneo: folha ou lobo seminal que nasce sobre o eixo do embríáo (reserva nutritiva da plántula).
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disfarce O seu carácter artificial. Urna planta pode ser determinada aí por urna série de questóes com duas respostas que nao térn outra justificacáo além da sua comodidade. O exemplo será em breve seguido por outros. Libertada do objectivo da deterrninacáo, a classífícacáo já mio terá entáo como papel reagrupar as espécies da maneira mais -natural- possível, e os sistemas, como o de Lineu, seráo abandonados; enquanto o método natural será inscrito nos jardins botánicos. A chave das floras Para explicar o caminho a seguir para encontrar o nome de urna planta, Lamarck, no -Dlscours préliminaire- da Píore francaise (778), comeca por imaginar que exisrem apenas onze espécíes de plantas ~ que figuram no texto sob os nomes latinos que Ihes deu Lineu ~ e que sao para nós: o gavíáo-das-muralhas, a camomila-dos-caes, o feto-macho, o morriáo-dos-pássaros, a salva-das-prados, o agárico-campestre, a pereira, um musgo (Bryum mura/e), o morrtáo-vermelho, o cogumelo-amarelo e o cardo-maria. Depois toma-se um pé de urna destas plantas, consideradas desconhecídas, por exemplo, o morríáo-dos-pássaros, e responde-se a urna série de questóes: - flor cujos estames e pistilos podem facilmente ser distinguidos; - flor cujos estames e pistilos sao nulos ou nao podem ser distinguidos. É preciso escolher a segunda resposta, o que remete para a quesráo seguinte: ~ floretes numerosos reunidos num cálice comum; ~ flores livres e nao reunidas num cálice comum. Escolhe-se a segunda res posta, o que dá. ~ corola monopétala; ~ corola polipétala. Responde-se -corola poltpétala-, e chega-se a esta última quesráo: ~ dez estames ou menos? - onze estames ou mais? A primeira resposta é a correcta e da-nos o nome da espécie: morríáo-dos-pássaros ou morugem, que Lineu chama Aisina media e que os botánicos do século xx chamam Ste/-
tarta media. Na própria flora, que compreende centenas de páginas, esta análise faz-se por urna sequéncía de reenvios de quadro em quadro, no rermo da qual ternos a certeza, se nao cometermos nenhum erro, de encontrar qualquer espécie que descrita e nomeada pelo autor. Para o leitor que achar o caminho demasiado comprido, Lamarck lembra -a natureza das progressóes geométricas. Com efeíto, se dividinnos continuamente por 2 a quantídade 4096, desde a décima primeira dívísáo chegaremos a unidade-. Dito de outra maneira, basta urna dezena de quesróes para cobrir milhares de espécies. é
Distribuicdo e genealogia Ainda maís que o herbário, o jardirn botánico é um local de urna simplicidade enganadora. É um espaco onde a vida sussurra com docura e de onde se desprende um encanto discreto. Ao lado de cada planta, urna etiqueta indica o respectivo nome científico, atribuindo-lhe desse modo a tarefa de representar qualquer espécie que tenha esse nome. A volta dela, no mesmo canteiro, comprimem-se plantas das quais muitas vivem, habitualmente, em locais muíto diferentes, mesmo noutros continentes. A maior parte destas plantas nunca se tería reunido se a classífícacáo nao as tivesse arrumado numa mesma famílía. A sua reu160
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rnao deixa, no entanto, urna questáo ero suspenso: onde podemos encontrar estas plantas na natureza? A classíficacáo é eonstituída deixando de lado este tipo de questáo, já que ela se atém a crítérios morfológicos; contudo, é urna das coisas que mais surpreendem os naturalistas em viagem; nao encontramos urna espécie qualquer num local qualquer. Por trás desta interrogacáo, e desta constatacáo ero forma de evidencia, existem de facto dais problemas diferentes, por uro lado, em que meio vive esta planta (na água, no deserto, na alta montanha, etc.), por outro lado, em que regíáo do globo está presente e de que regíáo está ausente? A prática da aclimatacáo, euja finalidade é antes do maís utilitária, repousa inteiramente nesta distincáo, e ela constltui o equivalente a urna sequéncía de experimentacóes que a póem em evidencia. Quando se traz de um país longínquo urna planta exótica, podern apresentar-se tres casos: ser incapaz de sobreviver nas condicóes normais do seu novo meio; tornar-se urna planta cultivada; enfim, pode -naturalizar-see integrar-se na flora local. O prirneiro caso é o mais simples: urna planta trazida da Amazónia, por exemplo, só pode ser cultivada ern Franca no interior de urna estufa na qual sedo recriados o calor e a humidade de que necesslta. O papel de factores climáticos tao importantes é facilmente percebido. O segundo caso, o das plantas importadas, depois cultivadas - fundamental na história material das nossas sociedades - , tem, além do mais, o interesse de mostrar a influencia de factores físicos bastante próximos: o cultivador, o jardineiro, com os seus cuidados, adaptam o solo e o microclima a planta cultivada e lutam contra as espécies mais vigorosas que poderiam concorrer com ela. O terceiro caso, o da naturalizacáo completa, apresenta um grande interesse teórico. Para tomarmos um exemplo citado pelo próprio Lineu em 1774 no -Díscours sur I'accroisscment de la terre habitable-: o Erigeron canadensis, transportado em meados do século XVII da América do Norte para a Franca, introduzido em alguns jardins botánicos, tornou-se um século mais tarde urna das plantas selvagens mais comuns das nossas regíóes. Podemos mencionar tambérn os cactos americanos que foram introduzidos na flora mediterránica e todas as plantas europeias implantadas nos Estados Unidos. Pelo seu -sucesso- no seu novo país, estas plantas póern em causa a explicacáo exclusiva pela accao do meio: como se pode explicar a sua ausencia inicial na flora local quando a sua naturalizacáo evidencia que o meio Ihe é conveniente? Se a cultura de espécies exóticas revela, devido as dificuldades que encontra, a importancia do determinismo físico na distrlbuicáo das espécies, o sucesso das naturalizacóes de espécies introduzidas marca os limites deste determinismo e exige outra explicacáo. Paralelamente a estas mígracóes vegetaís, provocadas ou acidentais, constituí-se urna ciencia, a geografia botánica, que trata precisamente da questáo: como se distribuem as espécies vegetais na superficie do globo? Augustin Pyrame de Can dalle, botánico suíco narrador e classifícador, interessado pela agronomía, é simultaneamente um dos que participaram na críacáo desta nova disciplina. No artigo -Geografia Botánica- do Dictionnaire des sciences naturelles, publicado em 1820, 161
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expóe a respectiva problemática. Em primeiro lugar trata dos factores
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que agem sobre a distribuicáo das diferentes espécies vegetais, depois das -estacóes-, quer dizer, dos meios em que as encontra, por fim, das -habítacóes-, entendendo com isso as regióes em que crescem naturalmente. Este texto une-se em muitos pontos ao Essai sur la géograpbie des plantes, publicado em 1807, no qual Alexander van Humboldt mostrava a influencia da temperatura sobre a vegetacao, apoiando-se nas observacóes que tinha podido fazer nos Andes com Aimé Bonpland no decurso da sua viagem pela América Latina. De Candolle nao é, propriamente falando, um viajante naturalista, mesmo que tenha circulado muito pela Franca e pela Suíca, mas o seu artigo deve muito aos materiais trazidos pelas viagens de langa curso. Isso aparece em particular na terceira parte, a que trata das -habitacóes- e de que nos previne de imediato que toca em factos que escapam "a todas as teorias actuais.. porque atingem -a própria origem dos seres organizados, quer dizer, no assunto mais obscuro da filosofía natural ». Depois de ter mostrado a influencia da temperatura, de Candolle escreve: -Procureí provar até aqui que as habitacóes consideradas no seu conjunto parecem determinadas pela temperatura. Nao há dúvida que é preciso combinar com ela as consíderacóes deduzidas das estacóes; porque é evidente que, quanto maís um país é arenoso, mais plantas das areias encontraremos aí, etc. Mas, mesmo quando se dá a essas causas toda a latitude que se lhes pode atribuir, conseguiremos explicar completamente os factos melhor conhecidos? Duvido disso, o que exige urna nova discussáo e , Ele nota «o pequeno número de espécies fanerogárnicas 1 comuns a continentes diversos". Assim, 1/80 das espécies vegetais observadas na Nova Holanda - trata-se da Austrália - sao comuns a Europa. Estuda a seguir os meios de transporte das sementes, depoís dedica-se a flora das ilhas. Propóe esta fórmula: ·As plantas das ilhas participam na vegetacáo dos continentes de que sao vizinhas pouco mais ou menos em proporcáo inversa da distancia". Também fala da accáo do homem que modifica as floras insulares e lanca este aviso em forma de programa de ínvestigacáo: -Apressemo-nos, pois, enquanto ainda é ternpo, a obter floras exactas dos países longínquos; recomendemos sobretudo aos viajantes as floras das ilhas pouco frequentadas pelos Europeus: é no seu estudo que se deve encontrar a solucáo para uro conjunto de qucstóes de geografia vegetal ». Todas estas observacóes permitem ao autor dar sentido ao caneeita de regiáo botánica, que define nestes termos: -Do conjunto destes factos pode deduzir-se que existem regíóes botanicas: designo sob este nome quaisquer espacos que, se fizermos 1 Espéciesfanerogámicas. espéctes que tém flor num dado momento do seu desenvolvimento e que se reproduzem por semente. Etimologicamente, as espéctes fanerogámtcas sao especies que mosrram os seus órgáos sexuaís, por oposícáo as criptogámícas cujo modo de reproducáo permaneceu por rnuito tempo escondido.
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excepcáo das especies introduzidas, oferecem um certo número de plantas que lhes sao particulares e que se poderiam chamar verdadeiramente aborígenes». De Candolle assinala o facto de numerosos géneros compreenderem urna espécie norte-americana e urna espécie europeia ou asiática. Depois entra no que é para nós o centro da questáo, e para ele o ponto obscuro: ..T oda a teoría da geografía botánica repousa na ídeia que se faz da origem dos seres organizados e da permanencia das espécíes-, Ele precisa a sua própria posícáo: ..Qualquer artigo que acaba de ser lido é redigido seguindo a opíníáo de que as espécies dos seres organizados sao permanentes e de que qualquer indivíduo vivo provém de outro ser semelhante a ele». Esta aflrmacáo fixista surpreende-nos um pouco retrospectivamente porque sabemos que a geografia das plantas e a dos animais fomeceu muitos argumentos para a teoria da evolucáo, A explicacáo pelos preconceitos religiosos, esta panaceia da história das ciencias, é inoperante aqui: nada no texto ou nas Mémoires el souvenirs d'Augustin Pyrame de Candolle, publicadas devido as diligencias do seu filho em 1862, permite pensar que teria defendido a fixidez das espécles para salvar o sentido literai do Génesis. De Candolle, protestante genebrino liberai, aparece multas vezes mais próximo do livre pensamento que do fundamentalismo religioso. Na realidade, para compreender a sua oposicáo, é preciso olhar ao que é que ele se opóe. Apesar de nao o precisar explicitamente, percebe-se que visa urna concepcáo que associa transformacáo das espécies e geracáo espontánea, quer dízer, urna concepcáo que dá, de certo modo, todo o poder ao meio para produzir os seres vivos e para os moldar. Nesta vísáo mecanicista da evolucáo que é atribuída, mais ou menos justamente, a Lamarck, a singularidade das regi6es botánicas torna-se ínexplicáve1. Algumas dessas regi6es tém com efeito um clima análogo; como se pode explicar que nao tenharn produzido as mesmas espécies? .[. .• J os partidários das formacóes espontáneas parecem-me l. .. l na impossibilidade de explicar o facto geral e incontestável de que um grande número de espécies bem determinadas só se encontra numa regíáo, e nao se encontra no estado selvagem nos países em que todas as circunstancias lhes sao favoráveis e ande vivem muito bem quando aí sao semeadas-. A comparacáo é esciarecedora com os capítulos da Origem das Espécies consagradas a -Distribuicáo Geográfica-. Darwin também constata a insuficiencia de urna explícacáo exclusiva pelos factores físicos - o solo e o clima - e dá como prava -que a distincáo da Terra no Antígo e no Novo Mundo constitui urna das divis6es mais fundamentais da distribuicáo geográfica", enquanto que nao existe "por assim dizer no Antigo Mundo um clima ou urna condícáo que náo tenha o seu equivalente no Novo Mundo". As semelhancas nao sao menos surpreendentes que as diferencas, As espécies da América do Sul equatorial tero maís afinidades com as da América do Sul temperada do que com as de África. Em suma, o que se depreende do exemplo americano e do exemplo australiano é ..a afinidade que existe entre as producóes de um mesmo continente".
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Até ai, pode dizer-se que Darwin mais nao faz que alargar ao conjunto dos seres vivos a problemática da geografia botánica, ao mesmo tempo que afina as análises para melhor apreender o papel da topografía: as barreiras, as passagens, as ilhas, os arquipélagos ... Ele compara a terra que isola duas faunas marinhas e o oceano que isola duas faunas terrestres. Sem dúvída que é por isso que se revela mais, ero Darwin, o viajante naturalista que ele foi em primeiro lugar. a diário da sua viagem a bordo do Beagle está cheio de anotacóes biogeográficas; sabe-se ern particular o interesse que dedica as diferentes espécies de -tentilhóes dos Galápagos», estudando a sua distribuicáo pelo arquipélago. Embora depois nao mais abandone o seu campo ingles, experimenta nas condícóes nas quaís podem viajar as espécies, subrnetendo as sementes a accáo da água do mar ou recenseando as que podem ser transportadas na pata de um pássaro. Mas onde Darwin inova verdadeirarnente, é quando aborda a interpretacáo da dístribuicáo das faunas e das floras: ..E stes factos denotam a existencia de algum laco orgánico íntimo e profundo que prevalece no tempo e no espaco, nas mesmas extensóes de terra e de mar, independentemente das condícóes físicas. Seria preciso que um naturalista fosse muito indiferente para nao ser tentado a procurar este
laco-. Um meío de díspersáo Para compreender a dístribulcáo actual das faunas e das floras, Darwín é levado a estudar os -meíos de díspersáo- das especies anímaís e vegeraís e, para isso, a realizar vérías experiencias simulando as condícóes de um transporte acídental. Por exemplo, ele submete sementes a accáo da água do mar. Em 87 sementes ímersas vlnte e oito dias na água do mar, 64 podem ainda germínar. Por auto lado, seca plantas e observa quanto tempo podem flutuar: 19 em 94 (nem todas pertencíam as mesmas especies das da experiencia precedente) flutuam depois de dlssecaccáo, durante mais de vlnre e oito dias. Ao combinar os dais resultados ele pode pressupor que 14 por cento das plantas de urna regiao qualquer podem ser levadas durante vlnre e oito días pelas correntes marítimas sem perderem a faculdade de germínar•. Tendo em canta a velccldade médía das correntes, estas sementes poderiam portanto ser transportadas maís de um milhar de quilómetros para urna margem propicia ... (e. Darwin, A Origem das Espédes, 1876).
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Para ele, «este lace é muito simplesmente a heredltariedade-. Por outras palavras, a afinidade entre as espécies de urna mesrna regíáo bíogeográfica explica-se por urna comunidadede origem, e as diferencas provérn antes de mais nada da seleccáo natural que, em melos diversos, favoreceu variacóes diferentes. A fauna e a flora das ilhas, ao mesmo tempo próximas e diferentes das do continente, ilustram bem este processo. No entanto, a proximidade na classíftcacao e a proximidade geográfica nem sempre coíncidem; resta que «as diferentes espécies de um mesmo género, mesmo que habitem os pontos do globo rnais afastados, devem ter a mesma orígem-. É preciso entáo procurar os antepassados comuns, encontrar as suas mígracóes, a geógrafo faz-se historiador do vivo. Na experiencia de Darwin viajante, a biogeografia 164
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reúne-se, aliás, a paleontología, como o recordam as primeiras linhas da introducáo: -Por altura da minha viagem, a bordo do navio Beagle, na qualidade de naturalista, fiquei profundamente surpreendido por alguns factos reiativos a distribuicáo dos seres organizados que povoam a América Meridional e pelas relacóes geológicas que existem entre os habitantes actuais e os habitantes extintos desse continente. Estes factos [.. ,1 parecem lancar alguma luz sobre a origem das espécies l. . .l-, O laco entre a classificacáo e a geografia, que até entáo relevavam da estatística - número de espécies ou de famílias próprias de um continente - , está agora assegurado pela -teoría da descendencia com modíficacóes- ou, como dizemos hoje, a teoria da evolucáo, No próprio momento em que a biogeografia é concebida como o termo de urna história, a classificacáo define-se como urna genealogia. No capítulo sobre «As afinidades mútuas dos seres organizados (.. .]», que se segue aos dois capítulos sobre a distribuicáo geográfica, Darwin, depois de urna discussáo dos diferentes princípios sobre os quais repousam os sistemas de classífícacáo, escreve: "Todas as regras, todas as dificuldades, todos os meios de classífícacáo que precedem explicam-se, a menos que me engane de maneira muito estranha, admitindo que o sistema natural tem por base a descendencia com modificacóes, e que os caracteres olhados pelos naturalistas como indicando afinidades reais entre duas ou várias espécies sao os que elas devem, por hereditariedade a um parente comum. Qualquer classificacáo verdadeira é, pois, genealógica; a comunidade de descendencia é o laco escondido que os naturalistas, sem terem consciencia, sempre procuraram, quer sob o pretexto de descobrir um plano desconhecido de críacáo, quer enunciando proposícóes geraís, ou reunindo coisas parecidas e separando coísas diferentes». Ao apresentar a -comunidade de descendencia" como a princípio que se esconde por detrás dos sistemas de classifícacáo e que os seus predecessores procuravam inconscientemente (unconsciously seehtng), Darwin definiu a maneira como entende que ele próprio se deve situar relativamente a tradicáo naturalista. Em suma, como ero multas viagens, o itinerário que vai de Lineu a Darwin acaba num equilíbrio. A partida, urna reforma da nomenclatura e da classificacáo é necessária para nomear e classificar a massa dos espécimes trazidos pelas viagens dos naturalistas, a fim de permitir a história natural ser urna descricáo da natureza ern vez de um inventário heteróclito recomecado sem cessar. Desde a altura em que cada víagem pode contribuir para a constítuicáo de um saber cumulativo sobre os seres vivos, surge um novo programa de investigacáo: como se distribuem as espécies vegetais e animais a superficie do globo. No próprio momento em que os Europeus ernpregam os seus esforcos para modificar esta distribuicáo através da aclimatacáo, tentam explicá-la. As viagens, as mígracóes que o hornern impóe as espécies assinalam os limites do determinismo geográfico. As afinidades das producóes naturais de urna mesma regíáo, como as irregularidades da dístribuicáo geo165
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gráfica, reenviam para um processo de evolucáo onde se misturam os acasos e os constrangimentos. A geografia dos seres vivos deve ser lida como o termo actual de urna história dos seres vivos. Esta mesma história traca as linhas de urna grande árvore genealógica. O quadro da classificacáo é apenas um corte transversal desta árvore nUID dado momento. O caminho que vai de Lineu a Darwin, passando pelas coleccóes e os mapas, é em grande medida o que foi tracado pelos viajantes naturalistas.
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Paris 1800 MICHEL SERRES
A história de Franca cruza-se com a história das ciencias e a ela se asscmelha: em torno da Revolucáo, o conjunto dos sábios toma o poder.
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origem das matemáticas, pelo menos das ocidentais, acorre numa singularidade notável do mapa, ao langa de um eixo ou de urna cratera que passa entre a Grécia e a Turquia e que vai de Constantinopla a Meca. O antigo Egipto, a Babilónia, a Pérsia e a Palestina judia avizinham-se desta linha em torno da qual nascem o profetismo bíblico, o cristianismo e o isláo, ou seja, os grandes monoteísmos, a filosofía grega, bem como as ciencias helénica e árabe, e ainda a escrita, a moeda, a industria do ferro e do bronze. Será que existem no espaco localidades, densas como germes, onde a ínvencáo se intensifica? Como explicar este fenómeno? Pela tripla tangencia entre a África, a Europa e a Ásia, ponto de convergencia único no mundo? Pelo escaldante encontro das culturas semitas coro as indo-europeias, conducentes a choques e a mesticagens?
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Singularidades no esipaco e no tempo Haverá, igualmente, no tempo, momentos singulares tao notáveis quanto poderosamente produtivos? Duas geracóes apenas, no século v a. c., enchem Atenas de obras de arte e de textos exemplares: até os artesáos da cerámica sao nessa época geniais. De igual modo, Paris, na época clássica, ou a Europa Ocidental, no final do século XIX, em vinte cinco ou quarenta anos, exibem tuda, em matéria de criacáo intelectual e artística. Dir-se-ia tratar-se de erupcócs vulvánicas súbitas que transformam a paisagem circundante. Como explicá-Ias, quando se conheceram tantos grupos poderosos e afortunados, chegados ao topo, mas estéreis, miseráveis culturalmente por entre a sua riqueza económica e forca militar? Verifica-se a constancia, nessas épocas, de grandes obras trágicas, e a ausencia delas noutras paragens e noutros momentos, e a presenca, tambérn, de forrnidáveis cómicos, perdidos para sempre antes ou depois, testemunhas da saúde dos contemporáneos, Nao necessariamente individual, será que o génio conhece circunstancias raras de tempos e de lugares, como os meteoros? 167
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Passa-se em Paris, por volta de 1800, entre o fim do Antigo Regime e a Restauracáo (1789-1814), urna tamanha acumulacáo de acontecimentos políticos, sociais, intelectuais, científicos, religiosos e antropológicos, de urna violencia de tal modo aguda e de tao grande alcance que filosofias inteiras, posteriores a sua ocorréncia, se limitam a le-los. o pássaro de Minerva, escreve Hegel, só levanta voo ao cair da noite: a sua narrativa fenomenológica talvez relate apenas o que aí se passou. Sim, durante aqueles anos, Paris realiza o que Hegel e Comte diráo e pensarao: como se apenas restasse as geracoes seguintes compreender e relatar ou produzir lamentos invejosos da ínterprctacáo. Mas que relatam esses filósofos-historiadores? A totalidade do saber a rolar sobre a totalidade da história. Que se passa pois, em Paris, por volta de 1800? Nada menos do que tudo isto: urna singularidade local e temporal trazia em si, conscientemente, a universalidade. Explosáo vulcáníca, tremor de terra, transformacáo total do mundo.
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Esquecemos o Paris do ano de 1800 que apenas vemos no plano de Turgot: urna das maís espantosas acurnulacóes de belezas contruídas, jamais acorrida na história. O século XIX destruiu e construiu tao freneticamente que o nosso Paris de hoje, que dizemos e acreditamos histórico, se apresenta, de facto, como urna cidade muito nova, mais nova do que, por exemplo, Nova Iorque, segundo urna contagem exacta e recentemente calculada, da média da idade do conjunto dos prédios e dos monumentos. Igrejas, adras, residencias, alamedas e jardíns, elegantes e luminosos como a Sainte-ChapeIle, o hotel de Sens ou a place des Vosges, estavam muito próximos uns dos outros ou sucediam-se as dezenas, na margem díreita e sobretudo na margem esquerda, antes que os escombros os engolíssern, durante o Consulado e os dais Impérios. Para se ter urna ideia, o bada Haussmann demoliu mais de quarenta capelas da mesma ordem e do mesmo estilo da que resta na ilha da Cité, quando rasgou o boulevard Saint-Germain, Nao ternos qualquer recordacáo dessa cidade de beleza ou das ciencias que nela se fizeram. Vandalismo? Adaptacáo? Dinamismo e poder de renovacáo? Como habitualmente, todas estas teses foram defendidas. Mas o local transforrnou-se como nenhuma outra cidade.
Retratos Num quarto de século aparecem aí quase todas as Constituicóes possíveis: Monarquia, República e Império, passando pelos diversos tipos de caos e de tiranias, como se París passasse em revista a história universal das ínstituícóes. Convulsóes profundas? Permanencia de estabilidade? Como habitualmente, todas estas teses foram defendidas. No meio desses acontecimentos, Lagrange, ]oseph-Louis, nascido ero Turim ern 1736, sucede a Leonhard Euler, em 1787, na academia de Frederico 11 em Berlim, depois de ter fundado a da sua terra natal, aceitando em seguida o convite de Luís XVI para se fixar em Paris. Este
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europeu ítalo-alemáo. perfeitamente francés, é alojado no Louvre, num aposento próximo do atelier onde desenha Hubert Robert r, que em breve irá conhecer a carroca a caminho do cadafalso e salvar-se milagrosamente da degolacáo, Enguanto o seu vizinho pinta, o algebrista, quinze horas por dia, redige sobre mecánica ou análise e ve passar no pátio casacas e chapéus que mudam quase todos os anos de COf e de forma, consoante a moda, e por vezes tambérn algumas cabecas mais altas do que o habitual. O desenhador, rnaís tarde, representará ruínas nos palácios enguanto os matemáticos concebem a teoria dos invaríáveis através de variacóes. Homenageado pelo reí, pelo Terror e pelo imperador, feíto nobre, condecorado, Lagrange marre dais anos antes dos Cem Días: pensou as ciencias, falou Iínguas, frequentou todas as variedades de potentados.
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Nobre, marques inveterado, Marie lean Nicolas Carítat de Condorcet frequentou ern prímelro lugar os grandes por nascimento, mas, talentoso desde jovem, conheceu os grandes por inteligencia e os contrapoderes, mais poderosos que os poderes, Turgot, Voltaire, d'Alembert, nos diversos salces e academias, antes de ser eleito para as Assembleias, a legislativa e a convencional, entre os grandes da política. Vive corn toda a magnificencia e fala com fervor de igualdade. Analista, mecánico, astrónomo até, autor de escritos sobre a inclinacáo da eclíptica e o problema dos tres carpos, versado em cstatístícas auant la lettre, levando o cálculo das probabilidades para aplicacóes daquilo a que chamaríamos ciencias socíaís, Condorcet cobre todas as áreas ou quase das matemáticas rigorosas do seu tempo. Secretário da Academia antes da dissolucáo desta, detém a ciencia. Amigo íntimo de Turgot, detém em dada altura a Administracáo, quando este é nomeado prímeíro-ministro. Durante a Revolucáo, redige a crónica parlamentar em diversos jornais influentes e detém os media do tempo. Eis o precursor do poder moderno, que passa pela linguagem e os discursos: ninguém se pode opor nem ao saber, sempre verdadeiro, nem a informacáo, circulante e sedutora, presente em toda a parte, nem aos gestores, que organizam a ordem social, sob pena de erro, de silencio ou de ílegalidade. Condorcet fala com fervor da liberdade. Mandado prender, condenado a guilhotina, refugiado numa rua secreta, escreve o Esbaro de Um Quadro Histórico dos Progressos do Espirito Humano, ande a ciencia e a linguagem racional comandam, detém em suma a historia geral. A razáo universal ou espírito, encarnado na ciencia, Ieia-se a de Condorcet, assume o poder enfim ero todo o espaco, para todo o sempre, e domina todas as culturas. Ela fala com fervor da fratcrnídade. Sob a ameaca da morte, Condorcet andará fugido durante dais días, sozinho, errando pelos caminhos, no Sul de París, para os lados de Bourg-I'Égalité, actualmente Bourg-Ia-Reine, dorrnindo ao ar iivre, sob uro nome falso, sujo e mal barbeado, cornendo em estalagens e 1
Hubert Roben (1737-1808} pintor francés cultor de [ardins e de ruinas.
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tabernas: aí, encontra finalmente o povo e a míséria de que tanto havia falado, Quarenta e oito horas de experiencia directa numa vida de discursos: morrerá disso (1794). Ci~ncias exactas Matemáticas
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ARBOGAST, Louis 0759-1803). Cálculo simbólico. ARGAND, jean-Robert (l768~1822). Imagináríos. CARNüT, Lazare 0753-1823). Cálculo infinitesimal. CAUCHY, Augustín-Louís 0789-1857). Análise. CONDORCl:T, Marie-]ean Nícolas Carítat de 0743-1794), Álgebra. FOURIER, joseph 0768-1830). Bquacáo de derivadas parcíaís. FRANCAIS, jacques-Prédérlc 0775-1833). Imagmáríos. GERGONNE, joseph-Díaz 0771-1859). Dualldade. LAcROIX, Sylvestre-Francoís (1765-1843), Geometría analítica. UGRANGE, joseph-Louls de 0736-1813), Análise, mecánica. lAPLACE, Píerre-Slmon de 0749-1827), Matemática, física, astronomía. LEGENDRE, Adríen-Maríe 0752-1833), Álgebra. MONGE, Gaspard (1777-1859). Geometría descritiva. POINSOT, Louís 0777-1859). Estática. P01SSON, Sírnéon-Denís 0781-1840). Probabilidades. PONCFLET, ]ean-Victor 0788-1867). Geometría projecriva. Astronomía BAJLLY, lean Sylvaín (1736-1793). BORDA, lean Charles (1733-1799). DELAMBRE, jean-Baptístc joseph 0749-1822). 1.AJ.ANDE, joseph ]éróme Lefrancoís de 0732-1807). MÉCHAIN, Plerre 0744-1804). MESSlER, Charles 0730-1817). Física, química
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ARAGO, Píerre-Prancoís 0786-1853). Blectrtcldade. BERTHolll.'T, Claude-Louís (1748-1822). Química. CARNOT, Nícolas Leonard Sadi 11796-1832). Termodinámica. COMTE, Auguste 0798-1857). Mecánica, asrronomía. COULOMB, Charles 0736-1806). Blectncídade, magnetismo. DULONG, Pierre Louís 0785-1809), Acústica FOURCROY, Antaine Prancols de 0755-1809), Química dos minerais. FOURlER joseph 0768-1830). Teoría da calor. GAY-IUSSAC, Louis-joseph 0778-1850). Física. GERMAIN, Sophíe 0776-1830. Acústica, matemática. HASSENFRATZ, jean-Henri 0755-1827). Química. HAÜY, René-Iust 0743-1822). Mineralogia. LAVOISIER, Antoíne-Laurent de 0775-1812). Química. MALUS, Éttenne Louís 0775-1812). Óptica. NIEPCE, Nícéphore 0766-1833), Fotografla. PARMENTIER, Antaine Augustin 0737-1813), Agronomía, farmácia. PRONY, Gaspar Marie Riche de 0755-1839). Bngenheíro. PROUST, Louís (1754-1826). Química. ROMÉ DE VISLE, jean-Baprlste 0736-1790). Mineralogia, cristalografía. SAVART, Félix 0751-1857), Acústica. THENARD, Louis-Iacques 0777-1857), Química.
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Biología, medicina BICHAT, Marie-Prancoís-Xavíer 0771-1802), Histología. BLAlNVH.LE, Henrt Decrotay de 0777-1850). Naturalista.
BRAVAIS, Louis Ct 1842). Botánica. BRONGNJART, Alexandre 0770-1847). Mineralogía. BROUSSAIS, Prancoís ]oseph vlcror (1772-1838), Medicina. CABANIS, Pierre Georges 0757-1808). Medicina CANDOLLE, Augustln Pyrame de (1778-1841). Botánica. CORVISART, jean Nicolas (1755-1821). Medicina.
CUVIER, Frédéríc 0773-1838). Geología. Louís 0716-1800). Naturalista.
DAUBENTON,
DUPUITREN, Guillaume (1777-1835). Medicina. DUTROCHH, Henn 0776-1835). Medicina, osmose. EsQUIROL, jean (1772-1840). Neurología.
GAlL, Franz ]oseph (1758-1828), Anatomía. ITARD, Jean Gaspard (1774-1838). Endocrinología. JUSSJEU, Antaine Laurent de (1748-1836). Botáníca. LAcEPEDE. Étienne 0756-1825). Naturalista. LAENNEC, René Théophíle Hyacinthe 0781-1826). Estetoscópio. lAMARCK, jean-Baptiste de Monet de 0744-1829). Biologia. LATREIll.E, Pierre-André 0762-1833). Entomologista. PINEL, Philippe 0745-1826). Psiquiatría. SAUSSURE, Théodore de 0767-1845). Invesrlgacóes químicas sobre a vegcracáo.
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Analista, émulo de Lagrange, autor da Metafistca do Cálculo Infinitesimal ande tenta captar as diferenciais ou quantidades ditas evanescentes, Lazare Carnot acumula os éxitos do matemático e do filósofo. Eleito deputado a Convencáo, mIO só escapa as armadilhas onde cai Condorcet, seu colega em integrais e meditacóes, como governa e reina, passa para a Comíssáo de Salvacáo Pública onde encama o génio da guerra, cría catorze exércitos para a República, estabelece todos os planos de carnpanha, organiza as vitórías, anticipa o destino de Bonaparte. triunfa, pois, em todas as frentes, da análise el razáo, pura e prática, da política el estratégia, e ganha inclusivamente o benefício do mártir ideológico, urna vez que a Restauracáo o irá exilar. Poucas cídades, mesmo pequenas, no país, nao tém urna rua Carnot, poucos apelidos na história acumulam mais glória. Camot a ciencia, Camot o poder, Camot a vítóría, le-se nas placas das paredes. Nada ou praticamente nada pennanece da sua obra científica e sabemos o que, ao entardecer, cobre os campos de batalha. Vírá a ter um neto presidente da República, glorioso e assassínado. Vive setenta anos, de 1753 a 1823. Escassos trinta e seis anos irá sobreviver o seu filho mais velho, Nicolas Léonard Sadi (1796-1832), físico, que morreu louco junto de Esquirol, no asilo de Charenton, gritando de angústía, preso numa camisa-de-forcas, Nada se sabe deste, nem acerca da sua juventude nem do seu talento. Do naufrágio lamentável da sua existencia, salvou-se um manuscrito sobre a potencia das máquinas de fogo onde inventa e funda a termodinámica cujo ciclo descreve, enunciando o segundo princípio. Um tempo novo acaba realmente de nascer, por entre os ultrajes e a miséria, a palha, o lixo, a solidáo, no meio da dar excepcional e vuigar do sobre-humano abandonado.
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A revolucáo política passa, com as suas duas vagas principais e repletas de discursos e de mortos, uns no lugar e em funcáo dos outros, com os seus refluxos de Império, de jornadas populares e de Restauracáo, reversibilidades, onde se evidenciam ódios e ídeaís sublimes e írreversíveis: guerra. A revolucáo industrial decorre noutro lugar: hulha, capitais, recapítulacáo de dinheiro e de minas, máquinas a vapor, dura exploracao dos miseráveís: ainda a guerra. A revolucáo científica autentica ocorre no silencio e no isolamento, fora do poder, da glória, fora da fortuna, numa cela de asilo, no meio de urna desgraca sem perdáo: fora da guerra? O paí triunfava, cortava cabecas e, estéril, criava exércitos: fazia história, como se costuma dizer. O filho, desgracado, organizava o futuro. Ciencia e poder
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A ciencia positiva toma o poder; os matemáticos: Lazare Carnot, Condorcet; os astrónomos: Bailly, primeiro presidente da Cámara de Paris antes de ser decapitado; os mecánicos. Lagrange, Laplace, os físicos: Fourier, Arago; os químicos: Fourcroy, Berthollet; alguns médicos: Cabanis: um geómetra apodera-se do poder militar e civil: Bonaparte, maís a frente citado como o autor do problema dito de Napoleáo, que consiste ern dividir um círculo em quatro partes iguais, apenas com o compasso, segundo o método elegante do italiano Lorenzo Mascheroni. O imperadar nao encama só a primeira luta perdida da Europa do Su! contra a do Norte, triunfante, mas também o segundo combate ganho contra as humanidades, humilhadas. Chateaubriand, emigrado; Beaumarchais, na prísáo: Chamfort, suicidado: Chénier, decapitado; Madame de Staél, exilada. A ciencia positiva toma o poder: as humanidades perdem-no. Guerra dentro da guerra ou revolucáo dentro da revolucáo, grassa o conflito das faculdades que comecou na época das Luzes e perdura até hojeo A ciencia deitou máo a razáo e dela se tornou, nessa época, a deténtora exclusiva: fora dela resta apenas o irracional. Todos os outros conteúdos de saber, de cultura, mesmo aqueles que prepararam o nascimento do racionalismo, como a metafísica ou a teologia, mesmo aqueles que agrupamos agora sob o nome de ciencias humanas, votados ao mito e as trevas, véem-se expulsos da estrita razáo, O movimenro dito romántico irá acentuar e confirmar esta partilha leonina levando a sério o que chamamos apenas trovoada e tumulto. Vivemos desde cntáo naquela evidencia de que o racional e a ciencia formam um único dominio, quando a segunda se apropriou individamente da primeira. Este golpe de pubiicidade, bem construido pelo Aufklarung, dcscnvolve-sc por volta de 1800, em París, através destas tomadas de poder. A sociedade entrega-se a razáo que se submete as ciencias que expulsam as culturas. O universal impóe-se as singularidades.
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o universal Nasdda de urna palavra grega inventada por Rabelais ou de um conceito clássíco longamente meditado por Leibniz, realizada por qualquer filósofo digno desse nome, de Aristóteles a Auguste Comte, inspirada no modelo británico de Chambers 1, escrita durante mais de vinte anos, a partir de 1751, por d'Alembert e Diderot, ajudados por célebres e obscuros colaboradores, entre os quais Voltaire, Montesquieu, Rousseau e Galiani, a Enciclopédia ou -Dicíonário Raciocinado das Ciencias, das Artes e dos Oficios, resume a idade das Luzes. A totalidade do saber é aí apresentada por ordem alfabética. Nascidas do nome de uro heróí mítico da Ática eujos jardins serviram de local para que Platáo se reunisse com os seus discípulos, realizadas 50b a égide dos reis na época clássíca na maioria das capitais europelas, agrupando nao livros mas hornens, especialistas de determinadas disciplinas, nUID dado local central, coro um calendário ñxo, as academias dominam a idade das Luzes. A totalidade do saber reúne-se a volta de urna mesa ou numa sala, ou noutra ordem convencional. Durante a Revolucáo, esta totalidade constituí o equivalente de um conselho dos ministros. Ciencia sem fronteiras
Díriamos hoje em dia facilmente Beccaria e Lagrange italianos, Gauss alernáo, Lineu sueco, Benjamín Franklin americano, d'Alembert frances, Abe! noruegués e Euler, os Bernoulli e os Saussure suícos: século XVIII desconhece estas categorias ou adjectivos, A Europa sábia existe e Lagrange reside no Louvre como Voltaire na Prússia e Diderot na Rússia. Em torno desta dala singular, 1800, escolhida devido aos seus números redondos, Paris náo forma um centro como o faráo Londres, ou, mais tarde, a América, lugares ande se tomaráo as decísóes sobre o mundo, mas antes urna plataforma num espaco sem fronteiras. Disse-se que ao langa dos tempas o centro mudava de lugar: ísso corresponde a crenca num espaco e numa duracáo homogéneos e isótropos, suposícáo contraria a tudo quanto se sabe acerca da história e das suas circunstancias varíáveis. Este centro pode mudar de natureza e, em certos momentos excepcionais, nao coincidir com o lugar do poder. É preciso definir um lugar onde se cruzem os cosmopolitas e urna língua na qual estes comuniquem entre si: Paris nessa época perde o poder para ganhar a universalidade. O mesmo aconteceu, outrora, a Atenas que adquiriu a segunda e nunca a prímeíra. Que significou, profundamente, a batalha gigantesca que íníciam as Luzes no século que chegou ao fim contra os fanatismos e as religibes? Evidentemente, urna luta - contra contra o poderio. Mas também o esquecimento das culturas singulares ero prol da emergencia de um
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1 Epbratm Chambers 0680-1740): Iancou em 1728, através de urna subscrtcáo, a sua Encielopédia ou Dictonarto Universal das Aries el das Ciencias que teve ern Inglaterra um sucesso rápido e foi uma das princípals fonres da Enc/clopédia de Dtderot e d'Alembert.
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universal racional, nova língua comum. A Europa desse fim de século fala menos francés do que esta linguagem. Aquilo a que chamamos hoje ero dia e precisamente desde o inicio do século XIX as identidades culturáis, ditas nas línguas regionais, fundadas nas religióes que a antropologia reconhece, expressas muitas vezes através daquilo a que chamamos humanidades, surge naquela época como o obstáculo maior a universalidade racional que deve, poís, varrer essas particularidades: eis o combate real da razáo quando esta se apodera da história universal, como por exemplo no Esbaro de Um Quadro de Condorcet. Há aqui um desafio doloroso ao qual é preciso por fím, mesmo ainda hoje. Quem portanto impóe um centro coloca no vértice de urna hierarquia insuportável um particular disfarcado de general. Nacional quer dizer nesse tempo contra o centro, anti-régio: que homem singular, que cultura se podem julgar soberanos? Nenbum. Ausencia de umbigo, poís, quer em París, Fcrnay, Turim, Potsdarn, Berlim ou Sampetersburgo. Paris, em 1800, nao está situada em Franca mas no universal, aliás na Europa. Se consegue esta estranha proeza, nao sei, mas de certeza que a tentou. Toda a gente, pelo menos, assim o entendeu. A razáo encama-se num espaco descentrado. A prova: París suicida-se como centro. Traca de dlreito a potencia pela universalidade: o poder pelo saber.
A Raziio ao poder Eudóxio, Aristóteles na Grécia antiga, Sacrobosco, Tomás de Aquino na Idade Média, Descartes e Galileu no princípio do século clássico, Newton e Leibniz no fim dele sobressaem como indivíduos de excepcáo, mas no decurso destes dais mil anos, nunca a ciencia teve a tentacao nem os meios de ocupar o centro nem da filosofía nem do Estado, e ainda menos das sociedades ou da hístória , vivida ou dita. Ela permanece subserviente e periférica, Paris, ern 1800, nao pretende estar no centro de um espaco ou de um império porque dá ou cede o lugar a ciencia, encarada no seu conjunto. A totalidade do saber enquanto tal, outrora realizada na Enciclopédia ou pelas academias, agrupamentos ainda privados de ordem, o universal da razáo agora concebido, a sociedade científica enfim organizada tornam-se doravante conquistadores e tentarn, a partir destas datas, ocupar todos os cargos e todo o lugar e todo o centro do espaco. A Europa assim o concebe. É por isso que Paris 1800 marca mais um tempo e urn lugar decisivos na história da ciencia e da humanidade ocídentais do que constituí o título de um capítulo da história de Franca, É nem mais nem menos do que a penhora do conhecimento, encarnado pelo colectivo dos sábios, sobre o estado das coisas. Senhor e possuidor da natureza no século XVII, o saber procura tornar-se possuidor e senhor dos hornens. Tal tentativa, visível já nesses tempos, saldou-se por um insucesso que julgamos temporário. A direccáo, a oríentacáo, o próprio motor estavam dados, de tal modo que o movimento entáo comecado nao mais cessaria de tender para esse objectivo, até el vitória, hoje próxima. Clara que alguns embrióes de disciplinas, individualizadas, nascem aí e nessa época, mas aquilo que emerge poderosamente 174
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poderia chamar-se totalidade ou colectivo ou ordern OU, melhor ainda, sociologia das ciencias. Antes dessa data, o conjunto da ciencia apresenta rnais coleccóes ínformaís do que sistemas: desordem convencional da ordern alfabética ou reuníáo a volta de urna mesa. Para se tomar o poder, é preciso classificar tuda isso. A Enciclopédia fará círculo para prender e englobar todas as coisas e fazer coincidir o seu centro com aque1e onde tudo se decide. Vai a ciencia tomar o poder, e a razáo a história? Hegel faz-se aqui antes de se escrever e escreve-se mesmo auant la lettre pela pena agonizante de Condorcet. Nunca tantos sábios se aproximaram do poder central: é preciso agora apreender o fenómeno globalmente e nao por ordem dispersa. Jean Sylvain Bailly (1736-1793), astrónomo, historiador da sua ciencia, torna-se, como se sabe, o primeiro presidente da Assembleia Constituinte e também o primeiro presidente da Cámara de París; le-se neste mesmo livro a trajectória intelectual e política de Lavoisier, fermier généra/ (cargo financeiro que lhe pennitia cobrar impostas mediante urna celta taxa paga ao Tesauro) do Antigo Regime que acabou decapitado; Condorcet passa da Legislativa para a Convencáo, ande Lacepéde tem assento: Cabanis, amigo deste, é seu conselheiro; Lazare Carnot preside ao Comité da Salvacáo Pública; Laplace, senador, Monge, ministro da Marinha, Fourier, prefeito, Arago e Chaptal, também ministros, os exemplos abundam; se Bonaparte deixa a história da geometría a solucao de uro problema, repete e simetriza Luís XIV que deixou as humanidades urna traducáo de Júlio César. Nao omitimos coisa alguma: das matemáticas a economía, passando pela física, química, história natural e medicina, a totalidade das ciencias entra de súbito na política, nao através de indivíduos mas em bloco. Ela traz para o seio desta as suas quere1as e os seus hábitos. Na morte de Lavoisier é preciso ter em conta a inveja dos colegas e nos actos de jean-Paul Marat o ressentimento que ele sentiu quando as suas Deseobertas sobre o Fogo, a Eleetricidade e a Luz foram condenadas em 1780 num relatório da Academia das Ciencias assinado entre outros por Condorcet. Muitas contas se ajustaram a custa das proscricóes e do cadafalso. Mas a prudencia cobarde dos homens da especulacáo permitiu-lhes, num balance geral, escaparem melhor a tormenta revolucionária do que muitas outras profíssóes, sobretudo aquelas que tomaram parte nos negócios, A casta está nao só poderosa como sá e salva: na salvaguarda reconhece-se o verdadeiro poder e a concertacáo ou solídariedade, apesar de tuda. Pode pensar-se que este ou aquele, Condorcet, Bailly ou Lavoisier, tenha sido levado pela arnbícáo, o oportunismo ou a ideologia. De acordo. Mas o movimento adquire demasiada arnplídáo para que o apreendamos sem ser na totalidade. A ciencia forma, de repente, um conjunto que caminha sozinho na direccáo do conjunto dos lugares; os sábios pensam, vivem, agem dentro de um colectivo submetido as suas próprias leis. Que este fenómeno de tomada do poder em bloca se preparou lentamente durante dois séculas, em aceleracáo, quem o contestará, mas a Revolucáo Francesa deu-lhe a ocasíáo de
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cristalizar. Como totalidade do saber, a ciencia tende a tornar-se um facto social total.
Recapitulariio Perante isto, é de outro modo que se le o que precede a batalha e as vitórias temporárias. Quase ao mesmo tempo as grandes disciplinas bem delimitadas, Análise, Mecánica, Astronomia, Física, Química e História Natural entram num movimento de recapitulacáo. E a época dos grandes tratados sistemáticos regionais assinados pelos nomes daqueles que, pouco tempo antes, almejavam títulos e lugares. A Enciclopédta, até entáo dispersa, concentra-se. Dir-se-ia que se faz urna revista. Círculos locaís para um grande círculo global. Isto pode ser compreendido a várias vozes: o inventário, em primeiro lugar, precede e condiciona a ínvencáo. Sem dúvida. Mas, de igual modo, a recapitulacáo acumula um capital. Ou ainda: a concentracáo define e reforca um centro. Enfim: a revista ou a recapitulacáo diz-se ou dízcm-se em nome da memória e do conhecimento, tal como na revista as tropas. A ciencia toma interiormente consciencia do seu poder interno e externo: ao concentrar-se, dir-se-ia que ela se prepara. Nao será por acaso que ela tomará o poder. Paris nao aspira ao centro, que quereria disperso por toda a parte, de urna enciclopédia cuja circunferencia irnensa engloba tuda. A totalidade do saber, rnóvel, viaja. Prova disso: Bonaparte coloca-a num navio e leva-a para o Egipto; as academias váo reunir-se nas margens do Nilo onde a Enciclopédia busca os seus antepassados. Mais urna vez, aquilo que, mais tarde, se irá reduzir ao texto ou el escrita faz-se, actualmente, no terreno: a ciencia, no seu conjunto, parte em busca da sua própria história. Outra universalidade: o mundo inteíro, o Universo, o globo, lugar e objecto de saber. Os grandes périplos de exploracáo, iniciados no século XIV, terminam com Bougainville, Cook e Entrecasteaux. Os marinheiros que cruzam os mares váo por vezes ignorar a Revolucáo. A descoberta local das terras termina, percorreram-se-lhe os caminhos. As viagens seguiram todos os círculos: sao entáo retomadas em nome da Enciclopedia. Os novos conquistadores estáo menos interessados em conquistar do que em saber: observar os astros no Cabo, identificar as estrelas, triangular um determinado arco de meridiano. A ciencia visita e faz a prospeccáo de urna Terra experimental e especulativa, física, astronómica enguanto espera que a etnologia faca dos homens objectos seus. O globo altera-se: menos cenário ou apropríacáo do que círculo de círculos objectivados, suporte concreto da Enctclopédia. Dele, os animais e as plantas sao levados para o ]ardim ou para o Museu que os recapitula: reuníáo ou inventário central que pode acorrer em qualquer parte. A época do inventário ou dos grandes tratados corresponde aquela em que se inventam os museus: nao apenas de fauna ou de flora, mas também das obras humanas. É também a época das grandes pilhagens culturais perpetradas pelas nacóes forres sobre as fracas: a recapítulacáo 176
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exige esses roubos de vivos e de belos monumentos. Do Louvre, fundado em 1791, seráo desalojadas as autenticas producóes como Fragonard ou Robert para ai serem instalados gabinetes de conservadores, como Vívant Denon, É preciso gerir a totalidade das Belas-Artes, Quando o próprio Hubert Robert desenha a grande galeria em ruínas, estará ele a chorar a expulsáo dos artistas para beneficio dos professores de Hístória e dos administradores? A beleza reduz-se a urn amontoado de pedras quando se fala dela através de datas, referéncias e dossiers. Esta va ciencia também mata de certeza esta cultura.
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Sucessor reconhecido de Euler e de d'Alernbert, ]oseph-Louis de Lagrange 0736-1813) escreve precisamente dais tratados que váo ser tidos como modelos, A Mecánica Analítica de 1788 deduz rigorosamente a partir de um único principio, o das velocidades virtuais, o conjunto das disciplinas do repouso e do movimento, estática e dinámica, para sólidos, líquidos e gases. O autor gaba-se da ausencia de toda e qualquer figura no seu livro, ou seja, de nunca recorrer a íntuicáo. o geómetra Sylvestre-Francois Lacroix 0766-1843) inventara, se nao a coisa, pelo menos a expressao geometria analítica; Lagrange escreve, em 1797, a sua Teoria das Funcoes Analíticas onde tenta por em ordem o cálculo diferencial e integral, infelizmente em torno da nocáo de derivada, A fortuna do termo analítico data daí: dispar de urna língua ciara e totalmente dominada que possa elucidar sem ambiguidade as questoes que se expóern. O ideal analítico nasce mais ou menos ao mesmo tempo que o positivismo, duas escolas muito modernas mas que datam de há duzentos anos. Qualquer destes dois tratados constrói duas vezes urna enciclopédia local, Sornando em primeiro lugar a disciplína que Lagrange aí expoe, mas resumindo tarnbém ou retomando o conjunto da sua história. Antes de construir o edificio, o arquitecto desenrola todo o tempo que o precede e refere-se, por exemplo, no que respeita a mecánica, aos trabalhos de Arquimedes e dos predecessores clássicos, como Galileu, Stevin e Pascal, A totalízacáo da história acompanha a totalizacáo do saber. Isto caracteriza especificamente esta época, tal como a expedicáo das academias ao território egípcio. Hegel e Auguste Cornte teráo apenas de recopiar esta ideia de dupia integracáo dos grandes tratados científicos que os precedem. A única ciencia é a ciencia da história. Tal caracteriza também esse outro universal chamado universidade. O sábio que toma o poder vai tornar-se professor: funcionário da história ou da ciencia, corn exclusáo de todos os outros exercícios. As tres retolucoes
Em 1800, Paris está ainda mal desperta do mito da Revolucáo antes de se lancar na lenda napoleónica. A Pranca viveu urna verdadeira alteracáo política ou, pelo contrário, conseguiu urna concentracáo mais forte ainda do que a do poder real? É um probiema que continua a ser dis177
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cutido. Na mesma altura, a Inglaterra é o teatro dessa revolucáo industrial depois da qual nada será como dantes. Pode definir-se de igual modo, símultaneamente, urna revolucáo científica? Em que sentido? Antes de ser usada pela política, pela ciencia ou pela indústria, a palavra revolucáo dízia respeito ao céu: Copérnico publica, em 1543, as suas De revolutionibus coelestium libri V7 onde descreve as órbitas planetárias em volta do Sol. Quando um revolucáo é completada, os corpos celestes regressam ao mesmo ponto, ponto onde ninguém poderá distinguir a diferenca no estado das coisas entre o inicio do ciclo e o seu fimo Através da mesma palavra dizernos, sem querermos dizé-lo, que a Franca permanece invariável após as varíacóes perturbantes e espectaculares do Consulado ou do Terror. Mantera a história algo de reversível no seu tempo irreversível? Em 1796, Píerre-Simon de Laplace publica a Expostcáo do Sistema do Mundo, seguido da Mecánica Celeste, entre ·1798 e 1825: outros dais grandes tratados. Repitamos com base nele: o mundo constitui um sistema. Por tres razóes. Pela prirneira, que poderá ser considerada matemática e mesmo euclidiana, todas as figuras e todos os movimentos reais ou aparentes observáveis sao deduzidos sem excepcáo da lei das forcas centrais, dita de Newton. O mundo é um sistema por unicidade, deducáo, coeréncia: ele decorre de um princípio. Laplace esforca-se por demonstrar detalhadamente a validade deste em regi6es locais que pareciam escapar a esse sistema, como os satélites de Júpiter ou os anéís de Saturno: os lugares de excepcáo resumem-se a modelos reduzidos. Sem dívisáo, reina agora essa lei universal de atraccáo, A segunda razáo díz respeito ao determinismo. O cálculo transforma a lei num sistema de equacóes diferenciais (de passagern, faz-se notar urna outra ocorréncia do termo sistema, e provavelmente ainda com o mesmo sentido) que combina variáveis e constantes. Antes de Laplace, o cavaleiro d'Arcy emitira dúvidas sobre a possibilidade de integrar facilmente essas equacóes lago que o sistema planetário póe em jogo tres carpos ou mais. Um deus, rapidamente tornado célebre, íntervém, a fim de definir o determinismo laplaciano: supondo que conhecesse para um dado instante o conjunto dos parámetros, poderia entáo tracar, com a ajuda das equacóes, a totalidade das posícóes futuras e passadas. O mundo é um sistema primeiro por deducáo matemática, e em seguida porque é possível conhecé-lo na íntegra. Mas a terceira razáo diz respeito a revolucáo: basta ler em grego a palavra planeta para se saber que o céu apresenta aberracóes. Poucas coisas nele se apresentam regularmente: certos astros erram: alguns eixos oscilam, a Lua balanca-se, em líbracáo; por toda a parte surgem anomalias. Como deduzi-las de urna lei única? Devolvendo-lhes o equilibrio. As nutacóes resumem-se a víbracóes, e as erráncias aparentes, a oscilacóes cujo período basta calcular: celtas desigualdades necessitam de um ano para se desfazerem ou se resolverem; outras, de dez ou de um século; descobrem-se até variáncias multisseculares, próximas dos mil anos, mas, feítas as cantas, a estabilidade regressa, o termo sistema, conjunto harmonioso e concorrente de píóes e de rodas em equilíbrio individual ou colectivo porque giram sobre si próprios ou em conjunto, 178
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convérn, pois, excelentemente a uro mundo invariante por variacóes, É possível distinguir alguma diferenca no estado das coísas entre o tér-
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mino de uro ciclo e o seu comeco? Nem urna. Pela enésima vez esse estado apresenta-se, tenda já sido apresentado e vindo posteriormente a apresentar-se de igual modo. Assím decorre e retorna o tempo reversível ande a antiguídade absorve uro futuro que apenas se prediz através de recordacoes. As equacóes díferenciais gravam a memória desta máquina cíclica. Nao, nao se trata ainda de eterno retorno mas apenas de revolucáo no prímeíro sentido. O mundo, estável, roda e volta a rodar sobre si próprio, indefinidamente. Ora os objectos celestes nao surgem de modo homogéneo. Vejam a Terra: crosta sólida, manto de mares, écbarpe aérea. A mecánica mais segura é válida para o primeírc destes estados materiais; conhecern-se nessa época equacóes harmónicas, com derivadas parciais, que poderiam aplicar-se a oscílacáo das marés, mas já nao se arrisca no ámbito dos gases. Mas o fogo reúne estes tres estados na sua leí: liquefaz os sólidos, faz evaporar os fluidos. ]oseph Fourier (1768-1830) diz no seu -Prefácio- a Teoria Analítica do Calor (1822), mais um grande tratado, que nada escapa ao calor, dado que todos os carpos o contérn, o recebem, o difundem e, portanto, que este é tao universal como a gravitacáo. Tem razáo: antes de Laplace, toda a ciencia se sítua sob a presidencia de Newton por causa de forcas, depoís de Fouríer, os fenómenos térmicos evidentemente dominam-na, bem como el cívílízacáo. Tuda irá em breve oscilar entre o relógío e a caldeira, se considerarmos estas duas máquinas como modelos culturais. Segundo sentido da palavra revolucao: corte, novas estados de coisas, sem ciclos de retomo. Mas o prlmeíro sentido tem tendencia para abafar o segundo. Eis de que modo. Na nota VII da Exposicáo do Sistema do Mundo, Laplace termina a sua cosmología com urna hipótese cosmogónica. Contrapee inicialmente as suas reducóes precedentes ao equilíbrio algumas circunstancias gerais e residuais que nenhuma simetria compensa. Os astros e os satélites giram e circulam de ocídente para oriente sern rotacáo nem translacáo no sentido aposta; apesar de fraca, a exccntricidade das órbitas existe, as forcas centrais afastarn-se do centro; estas orbes elípticas desenham-se em planos diferentes, um pouco inclinados uns em relacáo aos outros. Eís uns desvios nao recuperados. Para cornpreendé-los, Laplace muda de tempo e abandona a estabilidade fechada do sistema. Sim, o mundo vibra e regressa, mas essa oscílacáo resulta de urna história. De passagern observemos, urna vez maís, o acompanhamento indissociável da hístória e da ciencia. Tínhamo-nos esquecido de que o Sol permanecía no -foyer- (foco), palavra que significa o centro, mas também a chama. Eis de volta o fogo. No principio, tuda arde. No centro reside também a origem. Tudo parte de urna nebulosa quente e volátil que gira em espiral, como se Descartes precedesse Newton, como se a turbulencia víesse antes da atraccáo, Este magma arrefece ao langa de um novo tempo, irreversível, na esteíra do qual nada se poderia sobrepor. Tuda carnínha em direccáo ao fria, nada aquece sem concurso externo. Este arrefecimento lento organiza os planetas, íso lados do bloco, e as suas circunstancias ínflectidas. 179
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tempo reversível organiza as simetrías, em estado de regime, actual, enquanto as discrepancias se compreendem através do tempo orientado. Eis como as excepcóes da cosmologia implicam urna cosmogonia. Eis como os desvios, as pequenas assimetrias nas simetrias globais do espaco, em suma, a sua orícntacáo, remetem para um tempo novo, irreversível, dirigido, exposto, diria eu, no sentido etimológico da palavra. Esta inquietacáo das forcas e do fogo, esta oríentacáo, será urna estrutura comum ao espaco e ao tempo? Dír-se-ia que todas as coisas que se correspondem entre si assentam inicialmente, fundamentalmente, sobre algo inclinado, como disse Lucrécio. A oblíqua e a recta, ala gaucbe- e ala droite-, distorcem O espaco e cornecam atempa. Numa das rnemórias que os Elementos de Estática, encerram, Louis Poinsot (1777-1859) termina a demonstracáo laplaciana da estabilidade do mundo, referindo todo o sistema solar a um plano fixo, que quase se poderia dizer eterno, no meio do qual age o par geral que engendra todos os movimentos do mundo, a roda de todas as rodas. Mas como descrever um par? Duas forcas iguais aplicam-se, em sentidos apostas, nas extremidades de um mesmo segmento rígido. Eis urna vez mais, no fim de cantas ou a cabeca da série, um operador simultaneamente simétrico e assimétrico, isto é, orientado. Quando Aristóteles, na Metafísica, díz o primeiro motor imóvel, quer ele descrever também a orienracáo através de um tal oximoro l? O tempo novo flui sem retorno sobre si mesmo: eis a revolucáo que nao volta atrás. É preciso salientar os dais sentidos: irreversível e reversível. O círculo da lei das forcas gira sobre a recta da lei do calor. O círculo de cosmologia gira sobre a curva de cosmogonia. Isto significa que o mundo, estável, continua contudo a sua história. Eterno mas advindo. Esta tensáo irá desaparecer, um dos sentidos sobrepor-se-á ao outro? Porque as circunstancias de Laplace, inclinadas, lancam ou implicam um tempo, ele próprio inclinado, que pode compensar-se. Os oceanos batem na crosta sólida, o vazio atravessado pelos carpos celestes é semeado por pequenos obstáculos particulares, tuda isso pode produzir um traváo, Pouco a pouco, os movimentos diminuem de velocidade e, de repente, os carpos caem para o centro ainda em chamas e tuda se incendeia de novo. Terminal, a nova nebulosa reproduz a primitiva de modo idéntico, eis de volta o retomo eterno que Auguste Comte, extrapolando Laplace, encontra depois de Kant e muito antes de Nietzsche. Demasiado fácil em cosmologia ande basta lembrar alguns ritmos de eclipses, de cometas ou mesmo de fases da Lua, mas extraordinário em cosmogonía, urna vez que transporta o reversível no irreversível fogo. Ler-se-á como um fóssil a orientacáo da origem? Chateaubriand queria que o mundo nascesse velho: já em ruínas desde a manhá primordiaL O ponto de partida reduz-se a um círculo limite? 1 Oximora: figura de retórica que alia engenhosamente duas palavras contraditórias (de doís adjecrivos gregos que signíflcam agudo-rombo, donde: esperto sob urna aparencia idiota)
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Sistema, euolucüo Duas revolucoes científicas reinam em Paris, por volta de 1800: no segundo e no primeiro sentido recta e círculo. Lagrange, Laplace, Fourier, Lavoisier, Lamarck entregam-se, nas matemáticas, mecánica, astronomia, física, química, biologia, a recapítulacáo, essa passagem universal em revista que vimos fazer-se em política. Cada grande sábio edifica para cada urna das grandes disciplinas um grande sistema, universal no seu género. Chamemos-lhe xislogia: cosmologia, terrnologia ... Mas cada um dos grandes tratados que o constróí comeca depoís de um grande prefácio que relata tudo quanto se passa anteriormente. A ciencia tem urna história: tal como o mundo, ela é um sistema advindo. Lagrange retoma Arquimedes, Stevin, Galileu, Pascal e a oposícáo máxima Estátíca-Dínámíca cuja síntese a sua obra forja. Hegel vai poder traduzir, ou melhor, recopiar. Laplace leva a cabo e Fourier ultrapassa a universalidade de Newton, O círculo do sistema gira sobre a recta da história. O círculo de círculos enciclopédico enrola-se no caminho do tempo, combinando o irreversível com o reversível. Vemos com novos olhos Bonaparte embarcar a totalidade do saber, as academias, num navio: o sistema das ciencias sobe a sua génese, em díreccáo a origem egípcia. A história, de súbito, entrega-se aos mesmos gestos que as próprias ciencias: como se ela adquirisse urna mesma universalidade. Dito ísto, as próprias ciencias e nao apenas a sua história ou prefácio, enveredam pelo caminho do tempo irreversível e sem retorno. Chamemos-Ihes xisgonias, como cosmogonia. já nessa altura geología e biologia sao contraditórias: trata-se evidentemente de biogonia e de geogonia. Como e para onde váo a Terra e os seres vivos? De ande vérn e por ande transitam?
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Lamarcb Um exemplo entre mil. Os vertebrados térn olhos: a toupeira tem-nos pequeninos, quase invisiveis. O aspálax, a toupeira-da-pérsia, nao tem olhos, tal como os nao tem o proteu, pequeno réptil aquático, refugiado nas águas profundas, sob a terra. Os vertebrados térn dentes: mas nao a baleia com as suas barbas flexíveis, nem o papa-fonnigas em torno da língua pegajosa nem os pássaros munidos do seu bico córneo. Certas leis apresentam cxccpcóes. Outras nao tém nenhuma: os vertebrados térn todos ouvidos. O som passa através dos obstáculos ande pára a luz. Lamarck enuncia que a vida avanca por um plano de conjunto: irreversivelmente, o tempo compóe, complica, aperfeícoa, faz admirar um progresso. Mas aqui e além causas estranhas ou aberrantes atravessam, sem o destruir, a execucáo desse plano. Donde algumas lacunas na série, as toupeiras cegas, as galinhas sem dentes. Estas causas residem nas circunstancias: climas, meios, solos e meteoros, em suma o concreto que resiste a maneira de um caos folhudo ao irresistível avance do plano único, ía eu dizer: do espirito ou do impulso vital. É preciso pensar, poís, urna rnudanca colorida: Lamarck encontra aí urna lei 181
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segunda como que transversal ao plano de conjunto ou a primeira lei. Os seres vivos mexem-se, mesmo as plantas, e adaptam-se. As necessidades mudam com o meio ambiente, surgem novas hábitos que, ao fim de um tempo muito langa, alteram os órgáos, Lamarck emite, assim, a hipótese dita transformista que tanto seduz o homem rústico quanto a teoria darwiniana encanta sobretudo os cíentistas, Encontrareis, no entanto, dentes escondidos nas mandíbulas do feto da baleta e o seu encaixe no bico dos pássaros; o aspálax, tal como o proteu, mantém debaixo da pele vestigios de olhos: tuda traeos da lei recta na vertiginosa natureza, tudo traeos do universal no singular, mesmo muito raro. O termo biogonia descreveria urna evolucáo deste género, como a de Darwin, melhor do que o vocábulo biologia, que permanece c1ássico apesar da contradicáo. Oimwe~wd
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A revolucáo que gira sobre si mesma forma sistemas enquanto a outra cria por vezes solucóes de continuidade: os dais sentidos surgem, em Paris, por volta de 1800. Passemos ao segundo. As matemáticas consagradas por Lagrange, Laplace, Lacroix, Monge e até Comte parecem-nos de agora em diante concretas e aplicadas: a geometria descreve formas e figuras, o algoritmo infinitesimal leva a medida as melhores aproxímacoes: teoria para politécnicos. A escola francesa tem horror a abstraccáo, Nao existe lógica, apesar da heranca de Condillac: esta virá mais tarde, e aliás, com Boole; pouca aritmética, ausencia de teoria dos números que a escala alerná no século XIX irá renovar a partir de Euler; muito menos álgebra pura, com excepcao da teoria das equacóes: Abel e Galois, mortos esquecidos, fundam as nossas matemáticas, pouco depois, esquecendo quase os seus antecessores. Um fosso profundo atravessa toda a frente das matemáticas e separa o estilo frances, muito descrltivo e prático, dos formalismos e teorias que íráo constituir o futuro. Os grandes tratados surgem subitamente como túmulos. O mesmo se passa com a astronomia. Urna vez terminado o espectáculo do mundo que nos dáo Laplace e Poinsot, resta lancarmo-nos no Universo, para além do abrigo solar. O amigo de Balzac, Savary, desdobra algumas estrelas. Uma falha forrnidável separa Borda, Lalande e Cassini, todos observadores da era das Luzes, de Messier cujo catálogo enumera as manchas que salpicam aleatoriamente o céu, como excepcóes, mas cuja organízacáo se val tornar a regra da astronomia moderna, a saber: as galaxias. A nossa astrofísica separa-se do mundo do mesmo modo que em Paris, em 1800, a astronomia virava costas ao universo. Aqui, mais urna vez, nítido corte: os hornens da Revolucáo sao sábios conservadores. Antes dessa época, a física reduz-se a geometria e a mecánica: descreve e explica figuras, movimentos e forcas, A óptica que triunfa na época c1ássica até Maupertuis é disso um exemplo eminente. A electricidade nao vai mais longe do que o magnetismo que, justamente, através de Charles Coulomb, se rege pela lei de Newton. Esta triunfa em grande parte por intermédio de Laplace e nas interaccóes próximas através das 182
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massas magnéticas. Sempre a mecanica, mesmo na acústica. Aquilo a que chamamos hoje ern día física nao comeca no fim do Renascimento coro Bacon e Galileu, mas siro coro o estudo de Fourier dos fenómenos do calor, tanto no domínio das experiencias como no da teoría. Ela deixa a poueo e poueo a geometria e a dinárnica para entrar na sua originalidade. Corte tanto mais profundo quanto Sadi Carnot funda a termodinárnica ainda mais revolucionária, na segunda acepcao, relativa-
mente a Fourier, e a sua relacáo com os seus antecessores físicos. Efectivamente, já nao está em causa tratar da propagacáo do calor mas
deste enguanto potencia motora. Eis a ínterscccáo da revolucáo industrial e da revolucáo científica. A física moderna e a contemporánea nascem aí, assim como a nossa civilizacáo quente. Irreversível no seu tempo próprio, o calor induz pela sua teoría urna falha universal no tempo da história, no das técnicas e também no da história das ciencias. Bernard Belidor, engenheiro modelo antes de 1800, ocupa-se exclusivamente de hidráulica e de arquitectura: qualquer técnico, depois de Carnot, só se interessa pelos fluidos nas máquinas de fogo. As ciencias do ser vivo entram multo bem no esquema duplo: xislogia, xisgonia que dir-se-ia mesmo tirado delas. ]á se disse que o século XIX pensa sobretudo a história e o tempo. Medite-se no papel das nomenclaturas, taxinomia e sístematízacáo, na época das Luzes, e ter-se-á urna ideia sobre aquilo a que eu chamei a recapitulacáo: o ]ardim do Rei ou o Museu de História Natural acumulam os seres vivos da Terra, flora e fauna, na época em que os museus se fundam, com Vivant Denon, no regresso do Egipto. Eis que a história descreve agora e tenta explicar o avance, o progresso, a transformacáo dos seres vivos: Buffon, Geoffroy Saint-Hilaire, Cuvíer, Lamarck, principalmente, partíciparn, antes de Darwin, nessa formidável aventura que mudou para sempre a nossa vísáo do mundo. Um outro universal faz a síntese dos seres vivos: nao o sistema nem nenhuma classífícacáo, mas o desenvolvimento. Uro novo tempo irreversivel chega, progressivo, contrário ao tempo reversível dos sistemas anteriores, e, além dísso, contrário ao tempo irreversível da termodinámica, Continuamos a pensar na sua contradicáo, Com um quarto de século de intervalo, Augusto Cornte pinta o panorama singular de Paris 1800 no panorama universal da ciencia e da história uníversaís ande projecta a sua filosofia ero duas componentes e apenas duas: a classificacáo do saber, sistema e recapitulacáo, colégio ou museu, gnosologia, e a lei dos tres estados, história do espírito humano, progressivo ou transformista, gnosogonia. E tuda fica dito com estas duas palavras. A sua revolucáo própria consistirá na ínvencáo dessa ciencia nova: a sociologia. E se escrevésscmos a desse período?
o novo clero o
mestre de Condorcet, Turgot, proferiu em meados do século, na 50rbonne, uro discurso intitulado -Quadro Filosófico dos Progressos Científicos do Espírito Humano». Na Academia das Ciencias, o seu discípulo,
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amigo e sucessor, projecta, vinte anos depois, um -Quadro Histórico do Avance do Espírito Humano nas Ciencias». Abandona-o temporariamente, mas alguns meses antes de morrer, condenado, refugiado em casa de Mme Vernet, redige o seu Esboce de Um Quadro Histórico dos Progressos do Espírito Humano. Por avance ou progressáo irresistíveis, a história e o seu tempo, nestes tres textos, correm irreversivelmente, segundo urna linha recta; e, no último, em dez períodos - acabava de ser imposto o sistema métrico. Por sorte as descricóes históricas estáo aqui reduzidas a esboces, nao se lhes dá grande atencáo. Surge por diversas vezes a palavra espírito, que, de Hegel a Bachelard, terá urna destino inversamente proporcional a clareza do seu sentido. Quer se trate do espírito humano ou do espírito científico, passando da história das ciencias para a história universal, só se pode ler nesta palavra urna traducáo laicizada, apenas velada, do Espirito Santo. Quando se matou o pai e há urna repugnancia em encarnar-se, enquanto filho, resta o pássaro-língua, pomba leve, emblema de Minerva. O seu alto voo permite considerar a históría numa altitude bastante para se negligenciarem as aproxímacóes. O tempo monódromo nasce com o cristianismo. Finalizado com a salvacáo, ele arrasta a história irreversívelmente, desde Santo Agostinho que rccolhe simultaneamente as íntuícóes de Platáo e os ensínamenros dos profetas escribas de Israel. Na Grécia, a dernonstracáo de irracionalidade rompeu o círculo do Eterno Retomo e, em Israel, uro deus único e transcendente revela-se na história imanente do POyO eleito. ]udaico-grego como o próprio nome do fundador, o cristianismo Ianca o tempo linear da históría santa na confluencia agostíniana destas duas fontes. Ora o cristianismo caracteriza, até a data, a única cultura onde se desenvolve totalmente a totalidade das ciencias. A religiáo laiciza aí a reiígiáo, permítíndo a saída do sagrado. No Grande Século, Pascal, filósofo, cristáo e sem dúvida o prímeíro sábío do seu tempo, assegura o passe principal, dado que pensa ern conjunto o tempo da salvacáo e o progresso contínuo nas ciencias. Condorcet edita-o em 1776. Faco notar, de passagem, que eu estabeleco o tempo progressivo através de um esquema de história que o pressupóe. Nas ciencias, a acumulacáo é experimental ou demonstrável enquanto em qualquer outro lugar ela permanece urna crenca, A divisáo nao mudou, até hoje, excepto se alterarmos o sentido da última palavra. Em vez de acredítarmos na história porque acreditamos em Deus, ou antes em lesos Cristo, cremos na história extrapolando do que se faz nas ciencias. Porque nao ternos prava de que haja realmente hístória a nao ser porque existe urna história das ciencias. Para tudo o mais, as dúvídas sao legítimas. Deus, razáo infinita, garante o avance em direccáo a salvacáo, a ciencia, stock e funcáo de razáo, garante sozinha doravante corn os seus resultados, conquistas e triunfos, que haja algum progresso, O esquema nao se alterou. Deus morreu mas ressuscita. A ciencia progride e funda as crencas na avancada geral do cspírito. A ingenuidade de Condorcet nao vai no entanto até a crenca a ponto de nos fazer acreditar que tuda se encaminha sempre para o melhor. Obstáculos associados a reveses atrasam e travam. Tal como Gavroche 184
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sob O fogo das espingardas cantava que a culpa era de Voltaire e de Rousseau, até a agonía e as balas lhe quebrarem o canto na garganta, também Condorcet, com a cabeca quase na guílhotína, repete íncansavelmente como um canto de cisne o pecado dos padres e dos religiosos. O miúdo das ruas e o filósofo de língua francesa vívem o trabalho do negativo, nao na especulacáo espiritual, mas na agonía do carpo. O Esboco contém urna dialéctica, urna vez que o religioso trabalha aí : negativamente e por vezes se ínverte colaborando com o avance globaI: do Egipto e da Índia, por exemplo, os sacerdotes transmitem a Pitágoras o sistema do mundo. Geral todavía, bem como transistórica, revela-se a culpa de júpiter. Repito: de júpiter. Hegel imputa esse mesrno papel a Marte; e Marx, a Quirino, DuméziP, que dá a estes tres deuses o papel de totem das nossas classes ou funcóes sociais, permite-nos compreender estas _repetícóes gerais ou estas grandes manobras verbais que englobam a totalidade dos tempos. Um mesmo esquema gigante, das origens até aos nossos dias, que nos coibiriamos de aconselhar a um estudante principiante consíderando-o atentatório de toda a decencia intelectual, surge menos Ingenuo assim que o mergulhamos no tinír marcial das espadas da Iuta pelo domínio ou no concreto manual das forcas produtivas, mais ingénuo, contudo quando o elevamos ao empíreo das ideias, quando ele se desloca e se traduz tres vezes segundo os emblemas e as funcóes indo-europeias. Júpiter, Marte e Quirino. Os principiantes náo sabem reproduzir urna dernonstracao geométrica a partir do momento em que se mudam as letras no desenho: substituam M por J e Q por J ou M, e inversamente, nas teorias da história, e elas ficam iguais. Pode dizer-se o que se quíser e demonstrar seja o que for a langa prazo ande nada pode ser falsificado. É claro que também se pode demonstrar o que se quiser em história. A culpa é de júpiter, afirma, em Condorcet, o próprio júpiter. Dupio, de facto, se apresenta o deus de todos os deuses, reí e sacerdote, legislador e potentado. Urna meía funcáo entra em guerra contra o seu anti-simétrico. A filosofía Iuta contra a superstlcáo hipócrita alimentada transistoricamente por todos os cleros da Terra, e "esta guerra durará enquanto houver padres e reís-. A funcáo, a classe dos sabios batern-se contra a funcáo legal e ritual encamada pelo mesmo deus ou pela imagem dentro da mesma classe. Como diferenciar, de facto, Voltaire de um monarca ou de um guru e Jean-Jacques Rousseau de um pastor? Condorcet matemático mata o antigo aluno dos jesuitas que Ihe ensinara as matemáticas; Condorcet republicano combate em si o marques; o filósofo ígualitárío assassina o académico; a Convencáo prende o convencional cujos colegas, idénticos, aplaudida o seu texto, alguns meses depois de terem votado a morte do seu autor. Sim, Condorcet suicida-se e o seu texto assemelha-se a sua morte. Tuda se passa numa tal proximidade que é difícil distinguir as díferencas. O outro no mesmo permanece infinitamente vizinho do mesmo, dir-se-ia urna fina 1 Georges Dumézil 0898-1986) congrega cm Júpiter a classe ou funcáo dos sacerdotes e dos juízes, no dcus Marte a dos militares, e no deus Quírino a dos produrores. Ver, a título de exemplo, Mylbes el Épopées 0968-1973),
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dialéctica copiada do cálculo infinitesimal onde por vezes se suspende o princípio do terceiro excluído. Preso na rua, na véspera da sua morte, Condorcet declara no interrogatório chamar-se Pierre Simon (Pedro Simáo), duas vezes ainda o mesmo nome, num contexto religioso, isto é, do lado de Júpiter: apóstolo descalco pelos caminhos da Galileia, com os pescadores, os publicanos e as prostitutas, carne e pedra, desbaptizado e rebaptizado pelo Verbo, renegado, mártir, papa, primeiro chefe e cabeca de toda a história monódroma, quase-parte de si próprio, eis Simáo-Pedro, Júpiter duplo, judeu e latino, como o nosso duplo Condorcet. A Revolucáo e a história, em Paris em 1800, desenrolam-se em primeiro lugar no conflito de Júpiter contra si mesmo: Pierre Simon Laplace substituí, no sistema espácio-temporal do mundo, o Deus criador pelo deus laico do determinismo. Trata-se urna vez mais de laicizar, de tal modo que nao se sabe a quem felicitar pelo beneflcío, se aquele que traduz em saber científico a crenca religiosa ou se a religiáo que permite um tal abandono do religioso ou duma tal traducáo, No século XVII, a mesma simetría permanecía, em Pascal, por exemplo, orientada preferencialmente para o religioso; aqui a orientacáo, diferencial mente, volta-se e passa para a ciencia. Tal como Pascal, analista e teórico das probabilidades, humilha o progresso que acaba de inventar, também Condorcet, probabilista e teórico da análise, humilha aqueles que o humilharam. As identidades grandiosas diferenciam-se delicadamente. Nós próprios, hoje, laicizados definitivamente, pensamos que esta história teórica, no sentido literal, ou seja, que descreve um desfile ou urna procissáo irreversivel, contínua ou descontinua, é apenas um outro nome do Deus único judaicocrístáo, precedido pelo seu Espírito. De modo que tudo se joga sempre na funcáo de Júpiter, o que veremos que só Auguste Comte víu, Eis ali para a história e eís aqui para a sociologia. Antes da Revolucáo Francesa, o clero da Igreja Católica detém praticamente o saber e a educacao das críancas. Durante o século XVIII, fomeceu até a maior parte dos investigadores e dos filósofos que participaram na idade ou na ideologia das Luzes e colaboraram na Enciclopédia de Diderot e d'Alembert. A alíanca ou a partilha do poder temporal, economia, exército, lnstíruicóes, "e do espiritual joga a seu favor, bem como, mais tarde, em benefício do poder científico, seu legítimo sucessor. Nos Estados Gerais reunidos, encontramos sábios nas tres classes, nobreza, clero, terceiro estado, mas sobretudo na segunda. Ora, durante a Revolucáo e o Imperio, urna longa sucessáo de decísóes dissolve em primeiro lugar as academias do Antigo Regime fundando em seguida urna educacáo pública da competencia do Estado. A partir daí, surgem as escolas centrais, futuros liceus, a Escola Normal, a Escola Politécnica, mas também o Gabinete das Longitudes e a Biblioteca Nacional, embribes do ensino secundário e superior, primeiras instituicóes de ínvestígacáo. Quanto ao conteúdo, os projectos passam das letras, consideradas ultrapassadas, para as ciencias, sobretudo experimentais. A Revolucáo desconfia do abstracto, que nunca teve boa reputacáo, em Franca, contrariamente ao que se diz: a decadencia da cien186
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cia oeste país decorre, no século seguinte, da importáncia atribuída a escola e as ideias politécnicas. O antigo poder espiritual corneca a perder urna parte das suas funcóes e da sua dignidade, recolhida por urna nova instancia que continua sem name, no momento em que comeca urna guerra interminável de pelo menos duzentos anos, opondo aprendizes e bacharéis, e tipicamente francesa: nao apreciando os seus filhos, preferem os caes e a guerra civil.
Classes e lugares O clero nao forma urna cIasse no sentido estricto, mas antes urna ordern, dividida ern dois géneros, alto e baixo, dos quais urn se liga classe dominante e o outro el dominada. Flutua entre os dois com urna movimentacao que provém da confusáo que ele estabelece entre espiritual e temporal, empenhamento e desprendimento. Rico, proprietário de terras, palácios, edifícios, gerindo instituicóes importantes, numeroso e bem organizado, socialmente influente, tao antigo como a história em todas as sociedades conhecidas, ele torna-se plausível por meio da língua, cuja verdade garante, do tempo, cuja continuidade assegura, da beleza imortal da cultura que induz. Por sua vez, ele torna plausível a sociedade fechada sobre si mesma conferindo-lhe um fundamento fora dela, como veremos. Os sábios e os professores nao formam urna classe, antes constituem urna espécie de ordern, dividida ern dois géneros, baixo e alto, da infantil ao College de France, flutuando por rneio de urn jogo que o toma relativamente independente da classe dominante mas que o liga a esta. Destrói-se aquilo de que nos apropriamos: ei-lo rapidamente no terreno do clero católico do Antigo Regime, usufruindo da mesma alíanca ou da mesma partilha com os exércitos, a economia, o poder político, conferindo e conferindo-se a mesma plausibilidade, por meio da verdade da linguagem e do contínuo do tempo, por meio do fundamento do social fora de si mesmo. Só a beleza está ausente do prato da balanca, No Génio do Cristtianisrnot, Chateaubriand irá extrair deste último ponto toda a forca da sua argumentacáo. A Revolucáo Francesa estimula a transmíssáo dos poderes. Os mesmos homens, por vezes, sem se mexerem, véem o iceberg virar-se a sua volta. A ideocracia 2 nao muda de lugar nem de funcionamento, por vezes nem muda de máos, apenas transforma o nome. Mas como, para arranjar urna transparencia que a faca ganhar poder, nao se importa de adoptar um novo nome, ninguém reconhece o clero antigo no de agora, corpo residual da mais velha história e das maís antigas religibes. A antropologia das ciencias sabe responder a questáo: que sao, que fazern os sábios, considerados globalmente? E sabe dizé-lo desde a Revolucáo Francesa, durante a qual eles ocuparam todas as posicóes anteriormente desempenhadas pelo clero. á
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1 No Génio do Cristianismo (1802), Chateaubriand demonstra que a relígtáo cristá favorece mais do que qualquer outra a crtacao intelectual e artística. 2 Iaeocracia. poder ou govemo baseado em tdeías ou num dogma.
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Consideremos, por exernplo, os lugares que os próprios homens ocupam e a sua distríbuicáo respectiva. A Igreja híerarquiza cardeais, cónegos e simples vígáríos em tomo de um único pólo: Lazare Carnot, imitando Richelieu ou Mazarino; Laplace, Lagrange, Monge, senadores; Fourier, prefeito, baráo, todos sacerdotes; Arago, jovem académico ambicioso e agitado como Aramis, posteriormente ministro; todos centralizam conjuntamente a Franca e a ciencia, dominando do alto dos seus graus aqueles que reproduzem o baixo clero, o calculador Alexis Bouvard, por cxemplo, e mil repetidores esquecidos, a excepcao do sombrio Auguste Comte, a quem o isolamento e a alienacáo em todos os sentidos fizeram ver perfeitamente a totalidade da ciencia e o golpe de Estado religioso que ela operava talvez sem o saber. A Igreja exclui os heréticos: Augustin Cauchy, exilado, percorre a Europa, banido do seu país; urna brochura recente atribui-Ihe aínda, em 1985, o epíteto insultuoso de matemático legitimista, como se a política se .lesse na análise; e Condorcet condena, na Academia, a falsa ciencia de Marat, que teria podido considerar-se como um Goethe e um Galileu juntos. A religiáo leve a sua Inquísicáo: Fourcroy, Berthollet, Guyton de Morveau, químicos próximos de Lavoisier votado ao cadafalso, fazem buscas em sua casa e apoderam-se dos scus instrumentos. Condorcet, urna vez mais, morre durante a fuga ou suicida-se para escapar a guilhotina. Inversamente, Lakanal, reformador do ensíno, morre miseravelmente nos Estados Unidos, demitido pela Restauracáo, As guerras de Religíáo continuam noutro ou no mesmo terreno. Os trabalhadores da prova nao se organízam em comunidade, como se disse, nem em república, mas em Igreja. Esta esquece os santos, vítimas em vida, mas canoniza-os depois da morte, para sobreviver gracas a eles: Évariste Galois, prisioneiro diversas vezes por actividades revolucionárias, morto em duelo, Sadi Carnot, morto louco no asilo de Charenton, expiram muito jovens antes da sua consagracáo como heróís, ou precursores, da álgebra e da termodínárníca. Viu-se ou ver-se-á o culto de que Lavoisier foi objecto pouco depois da sua execucáo, Quantos messias fundadores passara m a categoria de vítimas desses tempos conturbados? Em balance, se pusermos, ajuizadamente, as grandes palavras que fazem sombra, como Ciencia e Relígíáo, entre parénteses por um instante, vernos claramente que a paisagem intelectual e erudita nao muda nada com a mudanca de poder e que permanece invariante através de subtis variacóes. Outros índivíduos, ou os mesmos, levados por novas ou por antigas motivacóes, ocupam lugares milenannente instalados, de ande falam de verdade, de tempo e de história, exactamente das mesmas coísas, mas com urna nova linguagern recriada da anterior. A mesma radícacáo temporal, por ínstituicóes e edificios, tern inicio. a Escala Normal, a Politécnica, o Hospital de la Salpétriere, o Museu de História Natural e o jardim das Plantas, mais ou menos toda a parte leste da colina Sainte-Genevieve, em volta do Panteáo, jazígo dos grandes espíritos beatificados, passa em breve a pertencer a ciencia - a quern, de facto? - como outrora havia pertencido a urna congregacáo qualquer. Os regulares dedicam-se aí a ínvestígacáo e os seculares é aí que ensinam. E a mesma proximidade do poder político: os sábios 188
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lancam-se na Revolucáo coro entusiasmo, Lazare Carnot organiza a vitória; o marques de Condorcet faz-se eleger deputado para a Cámara Legislativa e para a Convencáo: habitam palacios. Lagrange, o Louvre; Laplace, o Luxemburgo, onde protege a adolescencia do jovem Cauchy: clérigos ou cardeais-ministros. A distancia faz-nos perceber que urna ordem se substituí a outra porque o desgaste do tempo toma ineficazes certas ideías, enguanto outras as substituem como tropas frescas para uro mesmo uso social. A histófía muda de alvo e vai ao descoberto maís do que ao revelado mas COID as mesmas atitudes. De Santo Agostinho ou Bossuet a Condorcet ou Hegel, há a mesma ascensáo profética ero direccáo a um espírito que a decencia impede que seja comparado a urna pomba. Laícízam-se as imagens, retocando-as.
o positivismo no seu fim
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A filosofia de Auguste Comte extraí os ensinamentos da Revolucáo Francesa segundo as duas componentes da ciencia e da história. Em breve nao haverá senáo estes dais saberes e estas duas filosofias: só é possível consagrar-se a ciencia ou a históría, A universidade, detentora do monopólio da defínicáo da inteligencia e dos seus conteúdos, nao conhecerá em breve nenhum outro exercício racional. Os sucessores do positivismo debatem durante muito tempo o sentido desta palavra, que inflectem para a experiencia ou para a linguagem, e separam-se em seitas distintas, todas cienticistas e todas de acordo sobre a enciclopédia construkla pelo mestre, mas juntarn-se aos seus inimigos, a fim de condenarem os delírios que perturbam, na opíniáo deles, os últimos desenvolvimentos da sua teoría da história e da sociologia, o saber da religiáo da humanidade, as suas festas e o seu calendário, o catecismo e a promocáo do afectivo; troca-se do derradeiro Auguste Comte sem sequer oler. Invertendo esta reaccáo superficial, urna determinada verdade faz a sua aparícáo, profunda. Como se classifica o saber, como se irá ele desenvolver? Comte engana-se aqui constantemente, e o futuro de cada urna das disciplinas contradiz o seu prognóstico. Quanto as grandes leis do tempo bem com a dos tres estados, podemos sempre jogar áquele jogo em que se ganha sempre, dado que nada permite urna falsífícacáo: sobre qualquer coisa que se nao compreende nem se domina, pode-se sempre fazer a história sem inconveniente de maior. Por outras palavras, o positivismo revela-se fraco no ponto em que é considerado forte, justamente a ciencia e a história, e profundo nas coisas em que toda a gente o condena, o saber sobre a religíáo. Quem promove e transmite o saber, para que serve este socialmente? A resposta, aqui, considerada fraca ou louca, diz coisas fortes, dado que pede a religiáo que responda a estas perguntas: sociólogo, Auguste Comte descreve o que se passa realmente nas colectividades, e, ao fazer isso, funda a antropologia das ciencias. Ele descobre na religiáo o que transforma as ideias ero torcas sociais. 189
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o tempo do calendário Urna consequéncia do paralelismo aqui descrito interessa a história das ciencias: nao encontramos nenhum modelo desta que nao tenha servido já em matéria de religiáo, Urna tal repetícáo dá vontade de rir se nos lembrarmos da observacáo de Marx que a compara, quando ela aparece em história, a urna caricatura. Ora todos estes modelos se retemperarn a quente na crise e no cadinho da Revolucáo Francesa. Eis a época dos messias para os tempos novos: Lavoisier anuncia a química apagando a anterior, Carnot funda urna termodinámica sem predecessor, Galois, Philippe Pinel, reformando a álgebra e a psiquiatria, arrancam aos quadros antigos as disciplinas novas. Quase todos estes profetas morrem tragicamente, supliciados. As teorias descontínuas da ruptura passam por ai, directamente, da referencia santa, evangélica ou profética, a referencia verdadeira; a imagínacáo libertando-se do erro e da sombra toma o lugar da revelacáo iluminada. Nao se podia imaginar urna revolucáo coperniciana numa data muito anterior a esta, nem, creío, o caso Galileu. O clero, disse mais acima, sustenta o tempo: ao calendário gregoriano substitui-se o revolucionário cheio de flores, de neve e de vindimas - apenas agricultura em plena revolucáo industrial-, mas o calendário positivista vem susbstitui-lo, e os dias, semanas e meses adquirem o nome dos grandes homens: Dante, Newton, Arquimedes e Lagrange ocuparam o lugar e o altar dos santos. O facto de ele nao ter vingado nao quer dizer que nao o tenharnos na cabeca: a história das ciencias canoniza os génios tanto quanto a história santa consagra os mártires e os profetas. Catbolicism witbout Cbristianism dizia Stuart Mili do positivismo. Um calendário tem como objeetivo ou apagar toda a história precedente, quando o ódio irrompe e toma a matar todos os mortos, ou celebrar a continuidade. Tolerante, pluralista e laico, o de Auguste Comte encanta a reconciliacáo intercultural: foi por isso que nao resultou. Demasiado universal para inflamar urna seíta ou urn gang. O primeiro mes, teológico, de' Moisés está conectado com o quarto de Arquímedes, com o sexto de S. Paulo e com o último de Bichat; as religíóes confluem entre si, Salomáo e Confúcio, S. Bernardo e Maomé, indo depois para as ciencias, de Abraáo para Tales ou de Santa Mónica para d'Alembert, sem que as segundas depreciem jamars as primeíras, com igualdade de recordacóes entre elas e com a arte ou a indústria, Bemard Palissy e os trovadores. Urna paz deste calibre no tempo e na história nao podía deixar de passar por louca, e esta largueza de espirito por doenca no mundo académico e político do confronto sangrento obrigatório. Alguma vez contemplámos melhor quadro sobre o melhor dos tempos possíveis? SÓ há a lamentar a ausencia de Cristo. Pergunta: quem foi o primeiro a mencionar o nosso Deus morto? Without Christianism... Há também a lamentar a ausencia total de letras e de artes nos tempos contemporáneos: a ciencia ocupou o espaco todo; passado Mozart, no último domingo do décimo mes, acabou-se a beleza. Sinistro pressentimento ... I
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A hístória contínua alia-se a descontinua, e o interno liga-se ao externo, o tempo lunar dos meses e das semanas desfia os estádios interiores a cada um dos campos ou regióes, enguanto o do Solos associa sem epacta, exteriormente. Esta vinheta reproduz com cores ingénuas e vivas, agradável aos olhos de todos, ignorantes, descrentes, eruditos e píedosos misturados, do pavo em suma, toda a filosofia da história das ciencias construída por Comte sobre o quadro de Paris 1800, pedreira ande os sucessores viráo talhar ou beber sem o dizerem.
Da incompletude Na sua Crítica da Razüo Política, Régis Debray aplica aos grupos sociais ou encontra neles o teorema da incompletude válido para os sistemas forrnais e mostra que as sociedades só se organizam com a condicáo expressa de se basearem noutra coísa que nao nelas, no exterior da sua definicáo ou fronteira. Elas nao podem bastar-se a si mesmas. Debray chama religiosa a essa fundacáo, Através de Godel, ele completa Bergson, cujas Duas Fontes da Moral e da Religiao opunham as sociedades abertas as fechadas. Nao, diz ele, a coeréncia do interno é garantida pelo externo, o grupo só se fecha se se abrir. Os santos, génios, heróis, modelos, toda a casta de campeóes, nao quebram as instltuicóes, mas tornam-nas possívcís. A história das ciencias utiliza as avessas as palavras de Godel, Bergson 1 ou Debray, mas debate as mesmas coisas chamando externo áquilo a que eles chamam interno e reciprocamente. Um história externalista reduz urna verdade ou demonstracáo científica ao conjunto das suas condícóes ou imposicóes sociais, trá-Ias de facto para o interior do grupo, enquanto que a história interna permanece na orla exclusiva de urna disciplina, sem qualquer referencia a outra coisa senáo ela mesma. Trata-se de facto do mesmo debate que opóe o fechado e o aberto, mas invertendo estes dois termos. Ora, desde Bergson que os historiadores mais notáveis recopiam as Duas Fontes que prevéem expressamente o caso da loucura e o do saber: o grande encarceramento de Michel Foucault ou o paradigma de Thomas Kuhn, para citar apenas as obras de maior impacte, procedem das mesmas fontes. Longe de transcrever um modelo, como, e1as, Régis Debray resolve um problema. Onde os historiadores descrevem passagens ou transgressoes de limites sociais ou conceptuaís, sern as compreenderem, porque foram a Bergson buscar um esquema já pronto, que Bergson fabricou a partir de Carnot e da termodinámica, Régis Debray fabrica directamente e por consequéncia compreende um esquema novo, a partir de Gódel e dos sistemas lógicos. O contributo de Godel-Debray, decisivo, liberta-nos dos antigos modelos e da sua repetícáo. Consideremos urna história externa das ciencias mais radical possível, analisando urna ínvencáo qualquer consoante os seus factores sociais: debates de ideias ou de ínteresscs, imposicóes
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1 Henri Bergson (1859-1941): As Duas Fontes da Moral e da Religido (1932) póem em opostcao a sociedade e a moral fechadas e a moral e a socíedade aberras.
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institucionais, estratégicas, financeiras, económicas, acurnulacáo local de informacóes, organízacáo de escalas ou de laboratórios, em suma, o conjunto das torcas em relacáo recíproca e as condicóes concretas mobilizadas por um determinado acontecimento, como é habitual fazer-se. Pergunta: por que razáo ocorreu essa rnobilízacáo? Como é que esses conjuntos cristalizam? Em funcáo da verdade. A de Camot, genial ou ambicioso, a de Arago, ministro? As das diferenciáis ou do arco do meridiano? Sim e nao; ou antes, mIO. De facto, da verdade tout court. Da objectívidade enquanto exterior a todas essas condicóes e -ímposícoes e nao resultando justamente delas. Todo o processo social se extingue a partir do momento em que se nao ergue a verdade objectiva daquilo de que se trata. O interno Caqui o externo) constitui-se em sistema eficaz e dinámico, produtivo, se e só se ele se baseia nessa outra coisa absolutamente esclarecedora e fora dele a que ternos de chamar externa Caqui interna): a verdade ou entáo a objectividade. Tudo está coeso em torno dela e por ela, se mobiliza pela sua presenca e pára na sua ausencia, tudo se funda, pois, na transcendencia do verdadeiro ou dessa condícáo de objectividade. Chamamos transcendencia esta náo-pertenca a um conjunto e aos seus contrangimentos. Mas se se tiver medo das palavras da filosofia ou dos teoremas de lógica, pode tentar-se compreender através de outras imagens. Chama-se, por exemplo, catalisador a um elemento ou corpo sem o qual urna reaccáo química nao pode sequer comecar nem a fortioridesenvolver-se, mas que no entanto lhe nao pertence: exterior a ela e todavía condicáo sua. É o que acontece com os elementos verídicos da ciencia, exteriores el sua história, fundamentam-na e torna m possíveis as condicóes sociaís da sua emergencia. Deste modo, o debate que opóe o externo e o interno nas nossas disciplinas dá mostras de urna análise insuficiente do elo social, e a história que escande o tempo da ciencia em momentos de abertura e eras de fechamento exprime sem dúvida a mesma ignorancia. Tal como os cronistas do saber ou da desrazáo devem os seus modelos a Bergson, também nós devemos as nossas solucóes ao princípio de Godel-Debray.
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Aberto e fechado, sólidos efluidos Ora esta genealogia dos esquemas, ideias e modelos tem a montante
Bergson cujo discurso se opóe ao positivismo. As suas duas fontes provém da termodinámica, tal como Auguste Comte foi buscar o par estática-dinámica ou ordem-progresso a mecánica clássíca, Assim, o sucessor completa o predecessor, do mesmo modo que o saber de referencia se alarga. A questáo do aberto e do fechado colocada em As Duas Fontes tem a mesma origem que o título do livro, e toma-se clara através da passagem de Carnot a Clausius e Gibbs. Por outro lado, Bergson critica a inteligencia dos sólidos e pede que se regresse aos fluxos, da duracáo ou da consciencia, enquanto Auguste Comte desconfiava do nebuloso e do vago, exigindo que se construíssem apenas sistemas consistentes. Mais urna vez, a ciencia de referencia surge, passamos visivelmente da mecánica dos sólidos a dos fluidos ou dos 192
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gases, do cristal, que a geometria corneca a dominar no micro do século XIX, as moléculas em desordem que a física considera no início do século xx. Chamei a esta evolucáo, já há um quarto de século, -lei de transformacáo da matéria metafórica- (Hermés, I1I, 1974). Os fílósofos falam de sistemas sólidos, em seguida de correntes ou de fluxos, falaráo finalmente de linguagem: cristais de inicio, fluidos em seguida, tuda coisas duras mas que se váo suavizando, materiais mas que mudam de estado, finalmente do mole, do logicial, palavra, discurso, escrita. O positivismo refere-se a urna matéria ordenada; o bergsonismo já a desordem ou a mobilidade liquida; o pós-guerra abandona qualquer referencia objectiva e entrega-se inteiramente a língua, tanto na Europa como nos outros sítios ande o positivismo lógico, admiravelmente chamado, assegura a síntese de tudo quanto precede.
Ciencias e religiáo Aplicando, pois, o teorema lógico de Godel as questóes do fechado e do aberto, no que respeita a sociologia, Régis Debray encerra e recapitula num só gesto a hístória e o trabalho dos duzentos anos anteriores. Dito isto e demonstrado, ele próprio apela a Auguste Comte e ao culto positivista. Porque? Porque o grande sacerdote da relígiáo humanitária, por mais ridícula que nos parec;a a aventura com que termina a sua vida, já tinha visto, tentado dizer ou explicar - mal, convenhamos - tuda isso. Como se, na sua loucura mansa, Comte baseasse a sua sociologia numa antropologia geral, sem conseguir dar-lhe um nome. Ele foi o único dos filósofos desde Kant que se deu ao trabalho de adquirir todos os conhecimentos científicos do seu tempo: ele mio faz batota, nem mente, nem inventa nenhum conceito que o dispense desse trabalho. Aa longo dessa filosofia heróica, ele selecciona nas ciencias os modelos mais seguros e adquire de tal modo o gesto heuristico do saber local e global que continua e completa o itinerário enciclopédico inventando urna nova ciencia humana, no fím, condicionada pelo conjunto das precedentes. A descoberta garante sempre a autenticidade do trabalho. Durante este percurso verdadeiramente heróico, ele escreve a história interna de cada disciplina adquirida ao longo e através do tempo. Ninguém antes dele e ninguém depois dele póe tao fortemente em conexáo o externo e o interno, urna vez que que a história das culturas e das sociedades torna possível urna classificacáo enciclopédica das ciencias cuja história própria torna possível a sociologia que retorna a cultura e a história, num imenso círculo que fecha o sistema e pelo qual o exterior alimenta na volta o interior que por seu tumo o alimenta. Creía que com isto ele codifica urna ideia ou um sentimento que se pode ler ou sentir nas obras e nas vidas, nas actividades socíais ou especulativas dos sábios que atravessaram a Revolucáo Francesa, em Paris no ano de 1800. Os seus grandes tratados comecam em geral, por recapitular a história interna de urna determinada disciplina para em seguida exporem o quadro sistemático da mesma: o progresso, em seguida a ordem. Fourier, Laplace, Lavoisier, Haüy, Lamarck, Monge, e 193
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mais uns vinte, sabem ou sentem que estáo a entrar num tempo novo em que a ciencia racional se torna a componente social crucial, que vai dominar o ensíno, o exército, a indústria, a agricultura que, por seu turno, íráo produzir as condicóes de uma razáo: a ordem científica condiciona o progresso social cuja ordem condiciona o progresso científico. O seu saber universal condu-Ios a um lugar sociopolítico singular num momento agudo de crise de ande se íráo produzir ao rnesmo tempo a ciencia, a história e a sociedade. Cornte canoniza esta dupla e única experiencia, ocupando de urna só vez todos os lugares ao mesmo tempo. Efectuado esse gesto, distanciou-se e viu que ísso era religiáo. Nao urna religíáo ligada a urna etnia ou a uma cultura locaís, objecto de urna antropología possível, mas um elo global nascente, próprio a integrar a humanidade toda. Propriamente universal. Por outras palavras, o sistema geral das ciencias positivas e da história, arrastando urna através da outra o conhecimento duro e o mole, exacto e humano, progressivo e ordenado, nao pode manter-se nem compreender-se sozínho, Obscuramente, ele previu Gódel e Debray. Existe um exterior mesmo da totalidade auto-alimentada, e esta bascia-se naquele. Ele chama religiosa a essa fundacáo, E tem razáo, apesar de se ficar pela imanéncia da humanidade ou do Grande Ser em si mesmo.
Que clérigos? Regressemos um momento ao Antigo Regime ou as sociedades a que o positivismo chamou teológicas. Nessas épocas, o clero ocupava um lugar muito preciso na sociedade. Dominante e dominado, nem dominado nern dominante, esse lugar, interior a cada urna das classes, dominante ou dominada, nao pertence a nenhuma das duas, nem a dominada nem a dominante. Os clérigos asseguram, poís, com a posicáo intermédia da sua ordem o fechamento do sistema social pela garantia que lhe dáo de urna verdade transcendente, absolutamente exterior a qualquer producáo social. Internos, sem dúvida, mas designando o externo, podemos chamar-lhe funcionários do verdadeiro. Sobre este verdadeiro, assenta o grupo. Sobre esta pedra se constrói a Igreja. Que pedra? Esse objecto inerte atírado para fora do grupo, ob-jecto, seguidamente interior ao grupo quando este se chama Pedro, jazendo abaixo de todos. Quando se acreditava na natureza humana ou apenas na natureza, chamaya-se a essa verdade sobrenatural, trancendente e chamava-se fundadora. Revelada. Ei-la doravante simplesmente desvendada, mas igualmente transcendente. A oposícao da história interna das ciencias a sua história externa confirma a manutencáo de urna transcendencia e o acto fundador sobre ela da irnanéncia social. A isso chama-se religíáo, tem razáo Auguste Comtc, tal como Régis Debray. Ora os sábios ocupam um lugar muito preciso na sociedade: Dominante e dominada, conselho do príncipe e pobreza, nem dominada nem dominante, liberdade de pensamento, este lugar nao pertence a nenhuma das duas classes. Os clérigos asseguram com a posícáo inter-
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média da sua ordem o fechamento do sistema social através da garantia que lhe dio de urna verdade transcendente, exterior absolutamente a qualquer producáo social. Sempre que um tribunal, em nome de urna outra ideocracía, intervérn nessa transcendencia a fim de lhe impar o seu próprio dogma, cobre-se de opróbrio e de vergonha, de Giordano Bruno a Lavoisier ou a Lissenko: perdendo a sua plausibilidade, estremece nas suas fundacóes. Prava a contrario da importancia capital de urna tal transcendencia, nao se lhe toca sem perigo. Depois de ter decapitado o químico, rapidamente, a Revolucáo santifica-o. Todos definidos por urna interseccáo simples ou complexa de pertencas sociais diversas, os mais politizados investigadores e docentes devem designar juntos com um mesmo gesto esse elemento exterior que os reúne e através do qual, doravante, eles reúnem as sociedades contemporáneas, o mundo assim considerado como um outro mundo, absolutamente independente do grupo social: podemos chamar-lhes funcionários do verdadeiro. Eles detém o seu reino deste outro mundo, saber o mundo tal como ele é, fora do político, Sem esta verdade objectíva, eles nao sao nem fazem nada. Eles sabem-no e toda a gente o sabe.
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Nenhuma díferenca, funcional ou estrutural, separa, poís, a fé num deus transcendente e a crenca de que existe um objecto científico independente de nós e que pode exprimir-se numa e através de urna verdade universal para todos e objectiva em si. A transcendencia, essa, permanece a mesma nos dais casos. E a consequéncía social permanece estávelo Os funcionários mudam ou nem tanto, a funcáo permanece invariante, e as sociedades actuais assernelham-se as arcaicas: o que eu queria mostrar. O universal e o singular encontram-se sempre na mesma encruzilhada, como o fechado e o aberto: houve realmente urna revolucáo? Dito ísto, vivemos actualmente urna crise do verdadeiro. Depois da morte de Deus, para ande se dirige o mundo? Um e outro entraram na mesma agonía,
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Lavoisier: urna revolucáo científica BERNADETIE BENSAUDE-VINCENT
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Onde se veráo duas carreiras, dois destinos. Herói vencedor da revolucáo química, Lavoisier morre vítima da Revolucáo Francesa; abandonado pelo seus colegas, depois venerado como o imortal fundador da química moderna.
ano 1 da química. Aa langa de todo o século XIX, químicos, filósofos e historiadores relacionam o surgimento da química científica com Antoine Laurent de Lavoisier (1743-1794). Os historiadores contemporáneos, por seu lado, descobrem oeste episódio os elementos que compóern a estrutura de urna revolucáo: sintomas de erise, surgimento de uro novo paradigma, querela e divisan da comunidade dos químicos. Fala-se mesmo, hoje, de urna «segunda revolucáo científica- a propósito dos trabalhos realizados pela geracao de Lavoisier. A palavra -revolucáo- já é pronunciada por Lavoisier, depois retomada e propagada pelos seus contemporáneos. Eis uro lugar privilegiado para elucidar a nocáo de revolucáo científica e apreender os mecanismos em accáo nos episódios assim nomeados. O caso Lavoisier apresenta um interesse particular porque permite urna confrontacáo directa com o sentido político da palavra -revolucáo-, A revolucáo química culmina, com a publicacáo do seu Tratado Elementar de Química, em 1789, quando comeca a Revolucáo Francesa. Lavoisíer, que é ao mesmo tempo administrador do Antigo Regime e sábio, está implicado nos dois movimentos. Mas embora saia vencedor da revolucáo química, cai vítima da revolucáo política. Tentarei, pois, esclarecer, urna pela outra, as duas carreiras de Lavaisier. A 19 do Floreal, ano II (8 de Maio de 1794), o Tribunal revolucionário condena a morte Lavoisier, assim como vinte e sete outros inspectores de impostas, julgados culpados de urna -conjura tendendo a favorecer por todos os meios possiveís o sucesso dos inimigos da Franca-. A tarde, sao todos guilhotinados na Praca da Revolucáo, Porque deixaram morrer aquele que acabava de realizar urna formidável revolucáo na ciencia? Silencio incómodo de uns, comentários indignados de outros.
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Desde há quase dois séculos, este episódio pouco glorioso da Revolus;:ao Francesa alimenta controvérsias de historiadores, sempre reiteradas, sempre apaixonadas. Contentar-me-el, pelo meu lado, em sublinhar o contraste entre o abandono de Lavoisier e o culto de que foi objecto logo a seguir a sua morte, Como se forja a imagem de um herói fundador? Será possível depreender, ao evocar várias versees do episódio lavoisieriano, urna evolucáo das representacóes da revolucáo química ao longo de mais de um século?
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encontro do dentista e do político nao é um acontecimento singular na Franca do século XVIII. Lavoisier aparece como um representante dos Jacos estreítos que se criam por volta do fim do Antigo Regime entre sábios e governo, A monarquía, compreendendo a utilidade das ciencias, criou grandes corpos de Estado: Minas e Pontes e Calcadas. Por seu lado, as academias de província e a Academia Real das Ciencias estimulam o interesse dos dentistas pelo bem público por meio de concursos sobre problemas práticos de ordenamento do território. Durante a Revolucáo, a ínteraccáo entre cientistas e políticos toma-se muito forte. Os sábios mobilizam-se em massa. Sao raros os que figuram entre os emigrados, mas muitos assumem responsabilidades políticas e participam na Comissáo 'de Saúde Pública. E verdade que as academias, órgáos essenciais de toda a vida científica, foram dissolvidas por utn decreto da Convencáo em Agosto de 1793. Mas, no conjunto, a populacáo científica tira proveito desta íncursáo no campo político. Encontra aí glória e legítímacáo, aí ganha crédito, honras, riquezas. Poucos sábios perderam no jogo desta alianca, Se o nome de Lavoisier permanece entre esses infelizes, foi porque ganhou no registo científico urna nomeada bem superior a dos colegas vencedores na arena política. Perdido, ganho, o contraste parece tao forte que exige urna comparacáo da atitude de Lavoisier nos dois registos. Observemos em primeiro lugar como Lavoisier chegou concretamente a impar-se nos dais dominios. Ele nao tem duas carreiras diferentes ou sucessivas. Durante toda a vida, levou simultaneamente urna vida de -funcionário.. do reino e urna vida de homem de ciencia. Aos vinte e cinco anos de ídade, ern 1768, compra Utn cargo de colector de ímpostos (Ferme générale) e mantém-se em exercício até a díssolucáo das instituíc;6es fiscais do Antigo Regime, em 1791. Por mais intensas e importantes que possam parecer as ínvestígacóes cícntíficas de Lavoisier, e1as mio deixam de ser urna actividade de entretenimento. A sua principal actividade, a sua razáo social e a fonte dos seus rendimentos a Ferme générale. Lavoisier parece conjugar da me1hor maneira os interesses das suas carreiras na vida quotidiana: quando chega a Rouen ou a Atniens para colectar os ímpostos, faz urna comunícacáo a academia local. Por um lado, recebe dinheiro, por outro, fornece informacóes científicas e torna-se é
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conhecido como sábio. Este arranja harmonioso em breve dá origem a outro, maís eficaz e menos fatigante, a partir de 1775. Lavoisier é nomeado comissário para a Administracáo das Pólvoras e Salitres. Instala-se no Arsenal, onde monta, sempre com a sua fortuna pessoal, um laboratório bem equipado coro instrumentos de precísáo notáveis, encomendados aos melhores fabricantes parisienses, Fortin e Mégnié. De acordo com o testemunho da sua esposa, Maríe-Anne Paulze - filha de um colector de impostas, casada aos catorze anos, inteiramente devotada ao seu sábio esposo que apoia aprendendo ingles e gravura, a fim de traduzir e ilustrar obras de química - , Lavoisier organiza o seu tempo segundo um horário inflexível: ínvestigacáo científica das 6 as 8h; funcóes administrativas e académicas durante odia; depois ínvestígacáo das 19h as 22h; e um dia inteiro de ciencia por semana. As actividades misturam-se mais ainda quando Lavoisier, nobilitado eru 1775, adquíre em 1778 um dominio, em Fréchines perta de Blois. Realiza entáo experiencias de agronornia para aumentar os rendimentos. A ciencia torna-se assim o instrumento de urna experírnentacáo agrícola e social. Lavoisier nao é, pois, por um lado, um sábio progressista, por outro, um administrador do Antigo Regime. Ele desenvolve as duas actividades ao mesmo tempo e rendíbíliza urna coro a outra. Gere o seu tempo como gere a sua fortuna. Na sua carreira científica, Lavoisier também administra. Entra para a Academia Real das Ciencias, em 1768, aos vinte e cinco anos de idade, como «adjunto químico supranumerário-. Sobe a seguir pouco a pouco os escalóes da hierarquia interna até ao posta de tesoureiro perpétuo que o eonduz a gerir e a administrar esta corporacáo sábia. Em 1785, Lavoisier, senda presidente anual, elabora uro projeeto de reforma da Academia. Leva exactamente dez días para o fazer. Indignado porque o ministro do rei projecta, sem consulta dos ínteressados, urna reforma para alargar a Academia, redige um contraprojecto. Aceita a criacáo de duas novas classes, mas opóe-se a abertura de postos suplementares reduzindo o número de académicos em cada classe e suprirnindo os postos de -supranumerários- para nao diminuir a consideracáo atribuída ao título de académico. «Nao é a Academia que faz falta aos sábios mas os sábios a Academia», acrescenta Lavoisier. A Academia Real das Ciencias
A fundacáo da Academia Real das Ciencias em 1666 faz parte de um plano monárquico de desenvolviemnro e de controlo da vida intelectual, que desemboca na críacao de sete academias por Ríchelíeu, Mazarino e depois Colbert. A Academia das Ciencias, ricamente dotada a partida, dá, pela primeira vez, saláríos para fazer ciencia atempa inteiro, e cría o prímelro hebdomadario científico, o fournal des Sauants. A Academia das Ciencias rambém está encarregada de fornecer o -privilegio real sobre as máqulnas-, como um gabinete de patentes hojeo No decurso do século XVlIt, a Academia das Ciencias aproxima-se ainda maís do poder real com a ínauguracño do sistema dos concursos em 1720. Quando Lavoísíer entra para a Academia, em 1768, ela compreende seis classes - Geometría, Astronomía, Mecánica, Anatomía, Química e Botánica. Em cada c!asse, os membros dístríbuem-se híerarquícamenre. Como acontece por vezes que um membro seja nomeado pelo rei contra a escolha dos académicos, o costume admite que seja criado um pasto -supranumerário- para dar lugar a um verdadeiro sáblo. 199
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A reforma de 1785 abre duas classes novas - Física Geral e Mineralogía - mas rcduz de oito para seis o número de académicos em cada classe. Assim, sob a presidencia de Lavoisicr, a Academia das Ciencias conserva os prívílégtos de urna pcquena elite, enquanto afirma um pouco de independencia Cace a vonrade real.
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Mais tarde, quando a Revolucáo abole a Ferme générale, consagra o essencial da sua actividade a Academia. Tenta o impossível para a salvar e para fazer mm que escape ao decreto de 8 de Agosto de 1793 que suprime todas as academias. Lavoisier está muito ligado a vida académica. E, de facto, é irnpossível compreender a sua obra sem a mergulhar nesta instituicáo. Por um lado, a Academia desenha em estilo de investigacáo. Ela favorece o trabalho em equipa: em cada dominio, Lavoisier colabora com um especialista dos métodos ou dos assuntos relevantes; lean Bucquet sobre o ar, Pierre Simon Laplace sobre o calor, jcan-Baptíste Meusnier sobre a água, Armand Seguin sobre a fisiologia da respíracáo, com Louis Bernard Guyton de Morveau, Claude Berthollet e Antoine Francois Fourcroy sobre a nomenclatura, enfim com 6 abade René just Haüy para estabelecer a unidade de massa do sistema métrico. Por vía dos concursos e sobretudo pelas comíssóes encarregadas de urna quesrño precisa, a Academia favorece também urna lnvestígacáo planificada, programada. Poucas improvisacóes, trabalho passo a passo, em Lavoisíer. Ele organiza a sua investigacao, preve langas séries de experiencias ao longo de vários meses. Por outro lado, a Academia orientou a carreira de Lavoísíer. Tornou-se químico um pouco pelo acaso de um posto vago na seccáo de química. Os seus primeiros trabalhos dizem respeito a geologia: sob a orientacáo de Jean Étienne Guettard, pratica estudos de campo em Franca por volta de 1762-1763 e esboca urna teoria da estratíflcacáo. Aborda entáo a química como ciencia auxiliar da geologia e, sob os conselhos de Guettard, frequenta os cursos de Guillaume-Francois Rouelle no ]ardim do Rei, como o fizeram Diderot, Rousseau e Turgot. Mas Lavoisier parece preferir as ciencias experimentais as ciencias de campo. Quando ambiciona um posto na Academia, em 1764, sugere a críacáo de urna cadeira de Física Experimental. Define-se, portanto, em primeiro lugar como físico. Esta tendencia física é visível nos seus primeiros trabalhos: os temas de investígacáo favoritos sao o calor e os estados de agregacao da matéria, Duas questbes que Gabriel-Francoís Venel, no seu artigo "Química" da Enciclopédia de Diderot, designava precisamente como fronteiras entre a física e a química. Em 1774, Lavoisier intitula a primeira recolha das suas memórías, consagradas aos fluidos aeriformes (gases) que se desprendem dos carpos ou se combinam com eles, Opúsculos Físicos e Químicos. A análise da obra na Hístóría da Academia - que se presume ter sido redigida por ele mesmo - apresenta Lavoisier como o introdutor do espirito da física na química. Já se tornou claro que a ciencia promovida por Lavoisier nao será a que Venel esperava. A originalidade da química nao reside numa crítica em regra do espírito da mecánica, abstracto, especulativo e limitado. 200
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Lavoisier joga, pelo contrárío, a cartada da uniíto, da reconcíliacáo. É verdade que nao reabilita a tradícáo mecanicista criticada por Venel e deixa de lado o problema central das afinidades, Aliás, quase que nao se encontra qualquer referencia a Newton na obra impressa de Lavoisier. Mas Lavoísíer quer importar para a química os métodos da física experimental.
Um único método Lavoisier, díz-se em todos os livros, revolucionou a qurrruca corn a balanca, Esta fórmula só em parte é verdadeira. A balanca já existía nos laboratórios de química, entre os fornos, balóes, retortas, alambiques, cucúrbitas e campánulas, Mas a balanca só se torna o instrumento essencial das pravas experimentaís por volta de 1770, quando se cornecam a estudar os gases. Ela impóe-se em associacáo com a -caíxa pneumática-, um aparelho fechado que serve para recolher os gases, e o gasómetro que permite medir o seu volume. joseph Black, Carl Scheele, Henry Cavendish e Lavoisier mobilizam todo o sauoir-faire e engenhosidade dos artesáos dos seus países para obter balancas cada vez mais precisas e aperfeícoadas. Estimulados pelas exigencias de Lavoisier que tem meios para poder mandar construir os aparelhos mais caros, os fabricantes de Paris, como Mégnié e Fortin, ganham renome internacional. A batanea de Lavoisier nao traz apenas um simples ganho de precísáo nas medidas experimentais. Ela é o [uiz supremo nos debates teóricos e adquire toda a sua importancia no quadro de um programa metódico de investigacáo. Em cada assunto abordado, Lavoisier faz um inventário sistemático das publicacóes, tanto francesas como estrangeiras. Expóe as incertezas, as contradícóes e as controvérsias sobre a questáo e concebe urna série de experiencias a efectuar para decidir. Todos os debates sao efectuados no laboratório e a tradicáo julgada pela balanca. Com as suas balancas, Lavoisier transforma o método experimental em prática de contabilista, Em cada etapa, faz o balance das reaccóes efectuadas. Pesa antes da experiencia, pesa depois, Pesa o todo, pesa cada elemento do sistema. Esta prática dos balances pressupoe o famoso princípio «Nada se perde, nada se cria-, cuja paternidade é atribuída a Lavoisier. De facto, nao foi Lavoisier quem o inventou. Já encontrámos nos atomistas da Antiguidade um princípio formulado em termos aproximados, nomeadamente por Lucrécio: «Nada nasce de nada; nada volta ao nada.» Além disso, Lavoisier nunca erígiu o «Nada se perde, nada se cria, tudo se transforma.. em principio fundamental da química. Ele menciona esta fórmula, de passagem, a propósito de um estudo das fermentacóes, num capítulo do seu Tratado Elementar de Química. Mas é verdade que Lavoisier fez da conservacáo da quantidade de matéria a alavanca da sua prática experimental. O principio, mesmo implícito, condiciona toda a química dos balances. Financeiro e químico, a coabitacáo das duas competencias numa mesma pessoa parece, pois, ser das mais frutuosas, Mas, mais do que 201 ; 1
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um encontro feliz, nao seria de preferencia a realízacao, em diversos domínios, com maior ou menor sucesso, de um único projecto? Cronologia dos trabalhos de física e de química de Lavoísíer 1765: Memória -Sobre a Análise do Gípso-. 1772: Experiencias sobre a calcínacáo, carta selada a Academia, 1773: Calcínacáo do chumbo e do estanho nas retortas. 1774; Opúsculos Físicos e Químicos. 1777: Memóría • Sobre a Respíracáo dos Anímaís-, memóría -Sobre a Combustáo em geral-. 1780: Experiencias sobre os ácidos, 1781: Trabalhos sobre o calor (cm colaboracáo com Laplace. 1783: Memória -Sobre a Composicáo da Água-, -Reflexáo sobre o Plogisto. 1785; Grande experiencia de síntese e análise da água. 1787; Memória -Sobre a Necessídade de Reformular e Aperfeícoar a Nomenclatura Qufmica-. 1789; Tratado Elementar de Química; primeiro volume dos Annales de cbimie. 1792: Trabalhos para o sistema métrico.
Um projecto revolucionário Os comentadores de Lavoisier estáo surpreendidos pela sua consciéncía, vontade, firme resolucáo de fazer urna revolucáo em química. Em geral, a formacáo deste projecto revolucionário é datada de 1772. Ano crucial, de acordo com o historiador Henry Guerlac. Ora, esta vontade de revolucionar a química manifesta-se exactamente um ano depois de um ensaio de economia que desencoraja sobretudo os projectos revolucionários. Quando se percorrem desordenadamente as Obras de Lavoisier, ao aproximar-nos dos escritos económicos ou políticos e as memórias científicas de urna mesma época, descobrimos que muitas vezes Lavoisier pensa estas diversas questóes nos mesmos termos. Assim, nas suas notas para um Elogio de Colbert, datadas de 1771, descreve o comércio internacional como uro sistema de trocas e de fluxos em que a quantidade de riquezas se conserva constante. O "Nada se perde, nada se cría- funciona também em economía. Mas, aqui, o sistema tende espontaneamente para o equilíbrio. Este equilíbrio natural que Lavoisier, ernprestando as suas palavras a Colbert, chama "a ordem física.. deixa aos ministros urna margem de manobra muito restrita. Quando muito podem fazer pender a balanca a favor de um país, fazer escoar o excesso para urna regíáo ou para um sector. Mas todos os esforcos políticos só poderáo abalar passageiramente o equilíbrio da balanca do comércio. Urna tal ViSaD da ordem económica nao incita, poís, a revolucáo, A química parece mais favorável. Depois de ter procurado em diversas díreccóes, ao sabor dos concursos da Academia, Lavoisier parece ter encontrado um lugar propicio: a combustáo. No 1.º de Novembro de 1772, envia urna carta selada a Academia sobre o papel do ar na calcinacáo que só será aberta a 5 de Maio de 1773 quando as ínvestigacóes estiverem mais adiantadas. Lavoisier prossegue as suas experiencias e, a 20 de Fevereiro de 1773, comecando um novo cademo de laboratório, expóe um programa de expe202
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ríéncías que, escreve ele, deveria provocar «urna revolucao em física e em química».
Abramos a misteriosa carta para tentar apreender os germes revolucionários que contém: -Há cerca de cito días descobri que o enxofre ao arder, longe de perder peso, adquire-o pelo contrarío, quer dizer que de urna libra de enxofre se podia retirar rnuito mais que urna libra de ácido vitriólico, abstraccáo feíta da humidade do ar; o mesmo se passa com o fósforo: este aumento de peso provém de uma quantidade prodigiosa de ar que se fixa durante a cornbustáo e que se combina com os vapores. Esta descoberta, que constatei por experiencias que considero decisivas, fez-me pensar que o que se observava na combustáo do enxofre e do fósforo podia muito bem acorrer em todos os corpos que adquirem peso pela combustáo e calcinacáo; estou mesmo persuadido que o aumento de peso das -cbaux metaliques- se deve a mesma causa. A experiencia confinnou completamente as minhas conjccturas; fiz a reducáo do litargirio em recipientes fechados, com o aparelho de Hales", e observei que se desprendía, na altura da passagem "da cal a metal-, uma quantidade considerável de ar, e que este ar fonnava um volume mil vezes maior que a quantidade de litargírio empregue. Parecendo-me esta descoberta urna das mais interessantes feitas depois de Stahl, considerei dever assegurar-me da sua propríedade, fazendo o presente depósito na Academia, para continuar em segredo até ao momento em que publicarei as minhas experíéncías-. A partir de duas experiencias, Lavoisier avanca urna explícacáo geral para qualquer combustáo e qualquer calcinacáo. E, além disso, situa a sua descoberta na história, relativamente a Stahl. Entáo que doutrina é essa que Lavoisier se prepara para derrogar?
Herdeiro de urna tradicdo o
flogisto é o principio do fogo responsável pelas combustóes que explicaria pela sua libertacáo os fenómenos de calor e de luz produzidos por ocasíáo de urna combustáo, É invisível, escondido, impossível de isolar porque está sempre combinado. A doutrina de Georg Emst Stahl 0660-1734) é muitas vezes reduzida ¡¡ teoria do flogisto porque somos vítimas de urna espécie de efeito-ecrá produzido pela obra de Lavoisier. Contudo, vários estudos históricos, iniciados em Franca por Pierre Duhem (902), Émile Meyerson (902) e sobretudo desenvolvidos por Héléne Metzger 0930, 1932 e 1935), mostraram que a química de Stahl constitui um sistema poderoso - o
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I A caixa pneumática de Stepben Hales foí construida para recolher os gases extraídos de diversas substáncías, tais como os vegetaís ou o salitre. Quando se aquecem essas substáncías, o ar desprendido enviado por um langa tubo anguloso para um receptáculo cheio de água. Recuperam-se entáo as bolhas que produz na tampa. Poi a parte receptora do aparelho que, depoís de alguns aperfeícoamentos. pcrmníu a Cavendísh, Priestley e Lavoisier o estudo químico dos gases. é
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primeiro sistema de quunica adoptado em toda a Europa - que permite interpretar urna grande número de experiencias: a formacáo dos sais (sais neutros, ácidos, bases) resulta de urna cornbinacáo de terra e água que se unem por afinidade com os seus semelhantes; o flogísto, causa da inflamabilidade, permite assimilar duas operacóes aparentemente muito afastadas, a calcínacáo de um metal e a combustáo de substancias orgánicas. A química de Stahl compreende urna filosofia da matéria, corpuscular, é certo, mas aposta ao mecanismo. Stahl admite a existencia de partículas invisíveis mas combate a ideia de urna matéria única e uniforme. Pressupóe diversas espécies de átomos, fortemente individualizados. Devido a sua qualidade, a sua individualidade e nao as propriedades geométricas, estes átomos determinam as propriedades dos mistos. E nao é isolando-os - como o sugeriam os cartesianos com os seus átomos móveis e figurados, curvos e pontiagudos - , mas estudando-lhes as propriedades que conferem aos mistos, que se conseguem identificar os átomos componentes. Estes corpúsculos últimos sao, com efeito, incógnitos para sempre. Nao podem ser isolados, só podemos adivlnhar-lhes a presenca, Assím, é em váo que se pretendem deduzir as propriedades dos carpos das suas figuras pressupostas. A este vaivém imaginário, Stahl prefere a ideia de urna gradacáo de composícao. Partindo dos "agregados», devemos considerar cada grau de complexidade da matéria: ir dos sobrecompostos para os compostos, para os mistos, depois, enfim para os átomos. Daí que se tenha urna extrema atencao aos graus finos, a todas as etapas da decomposicáo química. Os quatro elementos, terra, ar, água, fogo, sao o nível essencial para interpretar as propriedades e as reaccóes químicas. Gracas ao sucesso de Stahl, a antiga concepcáo dos elementos-principios, constituintes universais da matéria, portadores de qualidades, ainda é actual em pleno século XVIII. Longe de ser um resíduo tardío de urna tradicáo alquimista sufocada, constitui a base de urna ciencia química ambiciosa e preocupada em acentuar a sua originalidade. Mais vigorosa que nunca em Franca, onde foi apresentada como um resultado de práticas experimentais de análise. Testemunha disso é o artigo -Principios- do Dicionário de Química de Pierre ]oseph Macquer, publicado em 1766: Para urna defínícáo da teoria cosmológica dos elementos-principios, o leitor deve reportar-se a p. 115. -Reconheceremos sem dúvida com espanto que admitimos actualmente como princípios de todos os compostos os quatro elementos, o fogo, o ar, a água e a terra, que Aristóteles indicara como taís, muito tempo antes de termos os conhecimentos de química necessários para constatar semelhante verdade. Com efeito, scja qual for a maneira de decompor os corpos, nunca poderemos retirar senáo estas substancias: sao o último termo da análise química.» Ternos de ler bem. Os quatro elementos nao sao principios vagos, suportes de qualidades. Sao definidos como corpos simples, acessíveis a experiencia. E Macquer acrescenta, no artigo «Elemento», urna nocáo de relatividade: ..É muito possível que estas substancias, embora consideradas simples, nao o sejam, que sejam mesmo muito compostas, que resultem da 204
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umao de vanos princípíos, outras substancias simples, ou que sejam transmutáveis urna na outra, como pensa o conde de Buffan. Mas como a experiencia nada ensina sobre isso, podem considerar-se sem qualquer inconveniente, devendo mesmo considerar-se em química, o fogo, o ar, a água e a terra como corpos simples; porque cam efeito agem como tais nas operacóes da arte». Assim, a doutrina dos quatro elementos triunfa em pleno século XVIII, nao contra ou apesar do desenvolvimento da química analítica experimental, mas por ele e gracas a ele. Melhor ainda, as conquistas experimentais desta jovem ciencia váo, paradoxalmente, reforcar o triunfo dos velhos elementos-princípios com o desenvolvimento da química pneumática. Até meados do século XVIII, nao se atribuía qualquer papel ao ar nas reaccóes químicas. Com excepcáo de Robert Boyle que emitira a hipótese do seu papel na combustáo, era em geral considerado como um agente mecánico, 50b o impulso dos estudos de fisiología vegetal, gracas ao aparelho construído por Stephen Hales - a primeira caixa penumática - , os «fluidos aeriformes- cornecam a interpelar os químicos. Nos anos 1770, sao submetidos a analise. Em primeiro lugar, o -ar fixo- (actual CO,) é estudado pelo químico escocés ]oseph Black, depois, em 1772, ]oseph Priestley publica um memorando intitulado Obseruations on Dijferent Kinds 01 Air. Em 1774, isola e caracteriza o futuro oxigénio ao mesmo tempo que Scheele na Suécia. Finalmente, Cavendish isola o futuro hidrogénio em 1776. Mas, longe de arruinarem a teoria dos quatro elementos, os sucessos da química pneumática, ou química dos gases, contribuem num primeiro momento para o seu reforce. O ar decerto que é experimentalmente decomponível, mas Priestley interpreta esta experiencia como urna combinacáo de ar com o flogisto. Chama ao azoto -ar flogistícado-, ao oxigénio, -ar desflogisticado", e o hidrogénio é assimilado mais ou menos ao flogisto. A teoria do flogisto parecía tirar alguns benefícios disso, já que o princípio até aqui invisível podía, eventualmente, ser identificado com esta realidade experimental. No prefácio a segunda edicáo da Critica da Razilo Pura (1787), Irnrnanuel Kant cita Stahl como herói do método experimental ao lado de Galileu e de Evangelista Torricelli. Quanto a antiga teoria dos quatro elementos, ela nao foi abalada pela decomposicáo efectiva dos dais elementos aristotélicos, a terra e o ar. Mas, pelo fogo, será destruída. Como é que Lavoisier acabou por duvidar dessa doutrina? Com urna experiencia, gracas a balanca, é verdade. Mas ainda é necessário precisar que a ideia desta experiencia nao surge de urna iluminacáo repentina. Ela é precedida de um estudo aprofundado, durante cerca de dez anos, da química dos elementos-princípios. A revolucáo lavoisieriana é tao bem sucedida que durante muito tempo escondeu os lacos entre Lavoisier e a química do século XVIII, que, contudo, dáo todo o seu sentido ao empreendimento de Lavoisier. Considerando a sucessáo das primeiras memórias de lavoisier, muitas vezes inspiradas em problemas submetidos a Academia, apercebemo-nos que ele varre todo o campo da química dos princípios ou elementos. Estes 205
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estudos realizados por encomenda, ao sabor das diversas questóes de ordem prática, parecem contudo seguir um programa. A sua primeira experiencia de química, na época dos estudos de geologia, é urna análise do gipso. Depois da terra, o fogo. Em 1764, Lavoisier submete a Academia a sua primeira memória, por altura de um concurso sobre «Como melhorar a iluminacáo nas ruas de Paris-, Aborda aí todos os aspectos, combustível, forma e material do lampadárío, escolha da mecha, modo de suspensáo ... Um belo estudo de optimizacáo mas que nao foi impresso. Em 1767, Lavoísier apresenta um estudo sobre a composícáo da água dos Vosges. Alira-se depois as relacoes entre a água e a terra: o problema, relacionado com o equipamento da água em Paris, consiste em determinar se o resíduo sólido encontrado na água resulta, como o sugeriam Boyle e Van Helmont, de uma transmutacáo da água em terra. Lavoisier conclui, no termo de uma sequéncia de experiencias repetidas durante centoe um días, que o depósito de silício observado na água é devido, nao a urna transmutacáo, mas a urna díssolucáo muito fraca do vidro da retorta que contém a água. Ao mesmo tempo, segundo notas manuscritas de 1766 e 1768, Lavoisier trabalha sobre as relacóes entre o ar e o fogo e adopta, depois de várias leituras, a ideia de que todas as substancias podem existir nos tres estados - sólido, líquido ou aeriforme - consoante a quantidade de matéria do fogo que está combinada. Um por um, Lavoisier passou em revista os quatro elementos. No início do ano de 1772, aborda o flogisto, por ocasiáo de urna memória de Guyton de Morveau que explica o aumento de peso do chumbo ou do estanho caicinado, colocando a hipótese de o flogisto ter um peso negativo. O aumento de peso na calcinacáo é, com efeíto, difícil de interpretar se a calcínacáo for urna libertacáo de flogisto. Mas este fenómeno era conhecido há muito tempo sem perturbar o sucesso da teoria do flogisto. Fora mesmo explicado desde o século XVII: em 1630, um médico perigourdino, jean Rey, atribuía o aumento a urna fíxacáo de ar nos seus Ensaios sobre a Inoesttgacáo da Causa segundo a Qual o Estanbo e o Chumbo Calcinado Aumentam de Peso; o inglés john Mayow (1641-1679) dava a mesma ínterpretacáo ao esbocar urna teoria geral da respiracáo e da combustáo. Mas aparentemente Lavoisíer igmora estes trabalhos quando envia a sua carta selada a Academia em 1772. Apesar de já ter formado um projecto revolucionário, Lavoisier nao defende imediatamente projectos revolucionários. Durante os dez anos que se seguem, mostra-se de urna extrema prudencia nas suas publicacóes contra o flogisto. Em 1777, na memória «Sobre a Combustáo em Geral-, multiplica as precaucóes. Para comecar, sublinha a necessidade de ultrapassar os factos para formar hipóteses e apresenta a sua própria hipótese no termo de urna diligencia indutiva, generalizante, fundada sobre urna série de experiencias metodicamente conduzidas com medidas precisas, repetícóes, varíacóes, verificacóes, Lavoisier ainda nao rompeu com a tradicáo que o alimentou. De facto, a sua teoría da combustáo nao é verdadeiramente urna -revolucáo em física e em química-. Nao elimina os elementos-principios, 206
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suportes de propriedades. Lavoisier tem necessidade deles para explicar o desprendimento de calor e de luz na cornbustáo: arribui-o a um desprendimento do calórico contido no aro A explicacáo de Lavoisier é inversa da precedente: a combustáo libertava o flogisto contido no corpo combustível, para Lavoisier, ela é urna combinacáo com o ar; a fonte de calor já nao está no combustível (flogisto), mas no ar (calórico). Segue-se urna inversáo do papel do calor: para Stahl, o calor, ao fíxar-se, provocava urna combinacao ou urna condensacáo, Para Lavoisier, provoca urna expansáo, até urna desagregacáo. Esta simetria nao escapou ao contemporáneo de Lavoisier, Macquer, que se apressa a minimizar o choque da -revolucáo-. E mais, o calórico nao é uro simples resíduo da antiga química de que o sistema de Lavoisier se poderia desembaracar, É a peca mestra da sua concepcáo dos estados da matéria, já que o estado gasoso se explica pela proporcáo de calórico num corpo. A teoria lavoisieriana da combustáo situa-se, pois, na linha da química dos princípios. Ela introduz mais urna inversáo das ideias dominantes que urna verdadeira revolucáo da química. Os trabalhos de Lavoisier sobre os ácidos 0772-1776) tambérn nao sao francamente revolucionários. Lavoisier faz do oxigénio o princípio ácido como o exprime o nome que lhe dá (gerador de ácido). Feito isto, Lavoisier reforca, para lá da teoria newtoniana dos ácidos concebidos como substancias extremamente reactivas, a ideia stahliana de um ácido universal, chamado acidum pingue por Viktor Meyer. Esta concepcáo dos ácidos ilustra de maneira muito nítida o apego de Lavoisier a química dos princípios que triunfa no século XVIII.
o lempo da fundacáo (J 783-1789) Contudo a teoria lavoisieriana é entendida como urna revolucáo pela maior parte dos contemporáneos, Ela desencadeia urna viva controvérsía entre os químicos franceses depois entre -a escala francesa» e os químicos alemáes e ingleses, que continuam partidários do flogisto. A dureza e a duracáo deste confronto nao se podem explicar sem a dimensáo fundadora que Lavoisier quis dar a sua obra. Depois de ter dado um golpe no flogisto, Lavoisíer empreende a críacáo de um novo sistema de química. Este trabalho construtor, comecado em 1783, está praticamente concluído em 1789 com a publicacáo do Tratado Elementar de Química. Em seis anos, Lavoisier consegue, nao só fazer esquecer toda a química que o precedeu, mas ainda impar-se como o fundador único da química moderna. Tentemos recompor as grandes etapas desta operacáo, A campanha inicia-se em 1783, quando Lavoisier arruína o último dos elementos antigos ao provar a cornposicáo da água. A memória -Sobre a Composicáo da Água- de 1783 nao é, a bem dizer, senáo um primeiro passo pelo qual ele estabelece a composicáo da água pela síntese e nao pela análise. Mas já Lavoisier se anima e faz o assalto. Desde as 207
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primeiras linhas da memona intitulada -Reflexóes sobre o Flogisto-, nota-se urna mudanca de tom, assim como de atitude. ..P eco aos meus leitores, ao comecar esta memória, que se desembaracem tanto quanto possível de qualquer peconceito: de verem nos factos apenas aquilo que apresentam, de banir deles tudo o que o raciocínio neles pressupós, de se transporem para os tempos anteriores a Stahl, e de esquecer, de momento, se for possível, que a sua teoria alguma vez existíu-, Lavoisier nao anuncia maís urna deseoberta comparável el de Stahl. Quer apagar qualquer vestígio desta obra, riscá-la do património da química. Ele convida entáo os seus leitores a fazerem-se ignorantes para se tornarem verdadeiros sábios. É o momento crucial, porque Lavoisier muda totalmente a natureza do acontecimento. Até aquí, era urna revolucáo por inversáo dos esquemas dominantes. Agora ele assume-se como fundador que constróí numa terra virgem num diálogo íntimo com os factos. As experiencias de análise destinadas a verificar a cornposícáo da água desenrolam-se no quadro e com o apoio da Comissáo de Estudos para o Aperfeícoamento dos Aeróstatos, criada sob ordem do reí. Entre os balóes de ar quente dos irmáos Montgolfier e o baláo de hidrogénio do físico Jacques Alexandre César Charles, os académicos parecem preferir o segundo. Urna das prioridades é: como fabricar hidrogénio em quantidade? No inicio de 1784, Lavoisier, assistido por um [ovem e dinámico -ofícial do mesmo ofício-, Meusnier, apronta uro primeiro procedimento de producáo de hidrogénio por decomposícáo do vapor de água passando sobre um metal ou um carváo incandescente. A seguir, Lavoisier e Meusnier aperfeicoam os seus aparelhos e, no fim de Fevereiro de 1785, convocam a grande mundo da ciencia e da casa do reí para urna solene experiencia de análise e de síntese da água, que dura urna semana. Diante desta nobre assisténcía, fez-se a prava de que a água nao é um elemento. O facto é daravante estabelecido e as convers6es desencadeiam-se em série, Primeiro Berthollet, depois Fourcroy, Jean Antaine Chaptal e, depois de um ano ínteíro de resistencia, Guyton de Morveau,
Tendo reunido aliados, Lavoisier empenha-se numa accáo em profundidade: a reforma da linguagem. já desde há várias dezenas de anos que os químicos se queixavam da imperfeicáo da sua nomenclatura. Os nomes das substancias químicas, forjadas ao langa dos séculas, sancionadas pelo uso, perpetuavam a memória de urna tradicáo mas transrnitiam por vezes ideías falsas. Além dísso, as descobertas de substancias novas no decurso do século XVIII impunham a críacáo de novas palavras. Levados pela preocupacáo de racionalizar a química, Torbern Bergman e Guyton de Morveau tinham avancado, mas sem sucesso, com projectos de reforma para tentar introduzir denominacóes sistemáticas, um pouco com base no modelo da nomenclatura concebido por Lineu na botánica. Lavoisier, convencido da importancia das palavras na forrnacáo das ídeias, pelas suas leituras do abade Étienne de Condillac, agarrou a ocasíáo para realizar o seu desígnio ero química. Banir os nomes em uso e construir uma língua artificial, unicamente forjada 208
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com base na teoría Iavoisieriana, é acabar com o passado. Melhor: é renascer pelo baptismo. Foi esse o forrnidável empreendimento realizado em apenas alguns meses por Guyton de Morveau, Lavoisier, Berthollet e Fourcroy. O resultado deste trabal ha colectivo, publicado sob o titulo Método de Nomenclatura Química (1787), revela como Lavoísier se apropriou da reforma. Primeiro levou Guyton de Morveau a renunciar ao seu projecto de urna nomenclatura concordista, que seria aceitável por todas as escolas de química, em beneficio de urna nomenclatura exclusivamente fundada na teoría antiflogística. O que pressupóe um primeíro trabalho de conversáo no seío da equipa. A seguir, na reparticáo interna das tarefas, Lavoisier outorga-se um papel director. É ele quem le a Academia a primeira memória, quem define a filosofía do projecto e coloca os grandes princípios. A Guyton de Morveau, deixa o cuidado de expor os pormenores da sua aplícacao e a Fourcroy a tarefa fastidiosa de estabelecer urna tábua de novas denominacóes, A obra é completada por um dicionário estabelecendo as concordancias entre nomes antigos e novoso Inclui, ern anexo, um novo sistema de símbolos, imaginado por Pierre-Auguste Adet e ]ean-Henri Hassenfratz, para substituir os velhos símbolos alquímicos. Mas este nunca será utilizado. A nomenclatura, em contrapartida, consegue ímpor-se em apenas alguns anos. É preciso dizer que ela responde verdadeiramente a urna necessidade urgente de escapar ao caos das denominacóes múltiplas. Além disso, os seus promotores sabem assegurar urna boa dífusáo: Lavoisier tinha o hábito, para atenuar os atrasos de publicacáo da Academia das ciencias, de fazer aparecer as suas memórias nas Obseruations de physique de Rozier. Mas, como em 1787 este mensário passou para as máos de um partidário da teoria flogística, J.-e. de La Métherie, Lavoisier, Guyton de Morveau, Gaspard Monge, Berthollet, Fourcroy, Hassenfratz e Adet decidem criar juntos urna nova revista, os Annales de cbimie, imediatamente distríbuída em Franca e na Inglaterra. Mesmo se os autores se mostram cuidadosos em assegurar urna continuidade ao conscrvarem os nomes do passado que nao veicularn ideias falsas, a reforma é urna verdadeira revolucáo porque introduz um novo espírito. É mais -um método para nomear- que urna nomenclatura. O princípio de base é urna lógica da composícáo: constituir um alfabeto de palavras simples para designar as substancias simples; depois designar as substancias compostas por palavras compostas, formadas por justaposícáo de palavras simples. A cornposicáo é sempre binária e indica-se a proporcáo dos constituintes corn a ajuda de um sufixo. O método mostrou o seu valor: dois séculos mais tarde, com alguns arranjos de penneio, continua em vigor. A nomenclatura é o elemento essencíal que metamorfoseia a revolucáo química em fundacáo, Nao é apenas o manifesto de urna escola, de urna nova teoria química. Ela esvazia a tradícáo por um duplo efeito de ruptura. Ruptura irreversível com o passado: numa geracáo, os químicos esquecem a sua língua natural forjada por séculas de uso. Os textos pré-lavoisierianos, tomados ilegíveís, sao mergulhados numa obscura pré-história. Ruptura também no espa\=o social entre a química académica que se desenvolve no
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quadro da nova nomenclatura e a química artesanal dos droguistas e perfumistas que continuam a falar de espírito de sal, de vitríolo ... Acabou-se o tempo da Enciclopédia onde um químico como Venel podia dizer com orgulho que «a química tem no seu próprio corpo a dupla língua, a popular e a científica ». Extractos do Método de Nomenclatura Química (1787) Nomes novas
-Nomcs amigos Ácido do enxofre Ácido vitriólico Óleo de vitríolo Espirito de vítríolo Alcali vegetal cáustico Alcalí volátil cáustico Diana
Ácido sulfúrico Potassa Amoníaco
Lua
Prata
Prata Espírito de sal Espírito de vinho Quermes mineral Ouro-pígmento
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Ácido muriático oxigenado (futuro ácido clorídríco) Álcool Óxido de antimónio sulfurado vennelho Óxido de arsénico sulfurado amarelo
Oxígíne Base de ar vital Principio acídíflcantc Plogísto Acafráo de Marte
Oxígénío
Princípio hipotético de Stahl óxido de ferro [...[,
Depois de Lavoisier, a química orgulha-se de urna outra universalidade, a que é conferida por urna língua racional. Terceira e gloriosa etapa da fundacáo lavoísieriana: o Tratado Elementar de Química, publicado em 1789. Lavoisier apresenta-o como urna sequéncia lógica e necessária da nomenclatura. Com efeito, depois do trabalho de erradícacáo do passado, Lavoisier volta-se para o futuro e vela por transmitir a sua teoria. Daí a preocupacáo em escrever um Tratado verdadeíramente elementar, destinado aos -iníciantes.. mais que aos sábios. Nao só a química deve ser compreendida e nao aprendida mas, por outro lado, ela é mais inteligível ao que nada aprendeu, que nao sofreu a influencia dos preconceitos. Urna brincadeira de enancas. Lavoisier deseja, pois, um público inteiramente novo. Urna nova classe é chamada ao saber, enquanto a antiga é afastada. A revolucáo química implica portanto urna subversáo dos poderes conferidos pelo saber. O ..D iscurso Preliminar.. é urna verdadeira provocacáo a este respeito. Lavoisier enumera audaciosamente tudo o que figura nos manuais tradicionais e que nao se encontrará neste Tratado: nada sobre as afinidades, nada sobre as partes constituintes dos corpos, nada sobre a hístória da disciplina. Tratado insólito, se o compararmos com os grandes tratados científicos da época que comecarn por urna recapitulacáo do saber antes de exporem segundo urna ordem lógica o sistema do autor. 210
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Lavoísier recusa o confronto com os sábios estabelecidos, a crítica dos doutos. Nega-lhes qualquer competencia: -Assím as obras ande as ciencias seriam tratadas com grande nitidez, grande precisáo, grande ordem, nao estariam ao alcance de toda a gente. Os que nao tivessem estudado nada entcndé-las-iam melhor que os que fizeram grandes estudos.. e sobretudo mais que os que escreveram muito sobre as ciencias». Estes propósitos sao retirados do abade de Condillac. Lavoisier coloca com efeito o seu Tratado sob o alto patrocínio deste filósofo contemporáneo, O "Discurso Preliminar" abre-se com um elogio a Condillac, salteado de grandes cítacóes retiradas da Logica, e culmina com urna página com novas cítacóes. Urna revolucáo científica que se reclama de um filosofia! O caso é suficientemente excepcional para que nos detenhamos nele. Por que razáo, enquanto se obstina ern romper com a tradícáo, Lavoisier aceita sujeitar-se a um filósofo? Mas existirá de facto sujeícáo a um sistema filosófico? A diligencia de Lavoisier é mais subtil. Ele nao diz ter-se inspirado em Condillac. Ele pretende que, ao seguir o seu próprio caminho, foi ao encontro dos princípíos expostos na Lógica. Um feliz encontro entre duas obras, urna filosófica; a outra, química. O Tratado de Lavoisier aparece entáo como uma experiencia científica que verifica as teses de Condillac; e este último legitima a audacia de Lavoisier em por urna caucáo filosófica. Podem assínalar-se na Lógica de Condillac tres aspectos pelo menos que servem muito bem os projectos de Lavoísíer: - Lavoisícr em primeiro lugar bebe nele urna inrerpretacáo da situacáo, um diagnóstico das dificuldades da química: o mal é de origem linguística. A5 ideias falsas sao veiculadas pelas palavras; os erros científicos sao erros linguísticos. Condillac justifica portanto o empreendimento de nomenclatura. - Lavoisier também encontra em Condillac justificacáo para o desprezo pela tradícáo, que é necessário as su as ambícóes fundadoras: urna concepcáo negativa da história como um tecido de erros e de preconceitos que é preciso varrer para reencontrar a natureza, A cítacáo de Condillac, no fim do "Discurso», di-lo expressamente: -Em vez de observar as coisas que queríamos conhecer, quisemos imaginá-las, De falsa suposícáo em falsa suposícáo, perdemo-nos numa multiplicidade de erras; e tendo-se estes erras tornado preconceitos, tomámo-los, por isso, como princípios; portanto fama-nos enganando cada vez mais ... Quando as coisas chegam a esse ponto, quando os erras se acumulam dessa maneíra, só há um meio para por ordem na faculdade de pensar; consiste em esquecer o que aprendemos, retomar as nossas ideias na origem, seguir-lhes a geracáo e refazer, como diz Bacon, o entendimento humano." Gracas a Condillac, o grande afastamento das doutrinas químicas ganha a dimensáo de um renascimento, de retorno as fontes. - Finalmente, e sobretudo, Lavoisier vai buscar a Condillac a teoria exposta no Tratado das Sensacoes da geracao das ideias a partir de sensacóes elementares por associacóes sucessivas. A evolucáo natural da formacáo das ideias, tal como é descrita por Condillac, parece-se com 211
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a formacáo de um carpo composto a partir de carpos simples na química lavoisieriana. Este parentesco revela-se tanto mais quanto Condillac exalta as virtudes da análise que chama a -alavanca do espírito-. Lavoisier encontra nele, poís, urna metodología. pode tomar como seu o preceito banal: -Só podemos proceder, para nos instruírmos, do conhecido para o desconhecído-, dando-lhe um novo sentido. Nao se trata de partir de conhecimentos adquiridos mas apenas dos únicos dados fiáveis: as sensacóes elernentares, os factos. Lavoísíer encontra assim na teoría de Condillac a certeza de que a lógica posta em accáo na nomenclatura é "a da natureza-, que -é a de todas as ciéncias-. Vamos maís longe. Por via de Condillac, a palavra -natureza- ganha um significado novo em química. já nao é esse material selvagem deseoberto ao ar Iivre, mas urna ordem pacientemente construída num espaco fechado, onde reina o domínio da medida. Constituir nomes ou ideias compostas a partir de elementos simples é exactamente a operacáo inversa da que é efectuada pelo químico quando analisa um corpo. Os elementos da química nao sao retirados da natureza. Sao o resultado de urna operacáo de laboratório. A célebre definícáo que Lavoisier dá no "Discurso Preliminar.. afirma-o muito claramente: -Tudo o que se pode dizer sobre o número e sobre a natureza dos elementos limita-se, na minha opiniáo, a discussóes puramente metafísicas; sao problemas indeterminados susceptíveis de urna infínídade de solucóes, mas que é provável que nenhuma del as em particular esteja de acordo com a natureza. Eu contcntar-me-ía, portanto, em dízcr que, se pelo nome de elementos entendemos designar as moléculas simples e índivisiveis que compóem os corpos, é provável que nao os venhamos a conhecer: Se, pelo contrárío, atribuímos ao nome de elementos, ou de principios dos carpos, a ideia do último termo a que chega a análise, todas as substancias que ainda nao pudemos decompor por nenhum meio sao para nós elementos; nao que possamos assegurar que estes corpos que olhamos como simples nao sejam eles mesmos compostos de dais ou mesmo de um maior número de principios, mas visto que estes princípios nunca se separarn, ou de preferencia, visto que nao ternos nenhum meio de os separar, eles agern perante nós a maneira dos corpos simples, e só os devemos supor compostos na altura em que a experiencia e a observacáo nos fomecerem prova disso-, Quis-se ver nestas linhas a primeira definicáo moderna do elemento químico. Encontra-se aí, com efeito, a exigencia essencial de simplícidade, concebida de maneira relativa e provisória, já que está subordinada ao poder das técnicas de análise. Infelizmente, poderíamos citar urna boa dezena de definícóes análogas em químicos contemporáneos de Lavoisier como Guyton de Morveau ou Macquer sem recuarmos aos químicos do século XVII. Contudo, com esta definicáo, Lavoisier funda urna química ínteiramcnte nova. A novidade nao está nos termos da definicáo, Reside no lugar que ocupa esta definicáo. Lavoisier confere-lhe um lugar central, porque o corpo simples é o termo da operacáo da análise conduzida no laboratório, e o ponto de partida, o alfabeto da nomenclatura. É entáo 212
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que esta nocáo ganha todo o seu valor. É o cíxo em volta do qual se ergue a química, o ponto de artículacáo entre teoría e experiencia. Sím, o nome de urna substancia é de facto, como escreve Lavoisíer, -o espelho fiel da sua composicáo- porque o nome é a imagem invertida da análise conduzida no laboratório. A nomenclatura é mais que um simples léxico, um reflexo das práticas de urna química de laboratório. Sim, Lavoisier é de facto um fundador, no sentido em que reproduz o gesto das fundacóes antigas, ao delimitar um espaco fechado. Ele define um novo mundo compreendido entre a análise operada por um experimentador e o catálogo de nomes estabelecido pelo nomenclador. A orígem dos corpos, a sua assiduidade na terra ou no ar nao interessam directamente ao químico. Pouco importa que o cobre venha de Chipre ou de qualquer outro lado. O universo do químico nao está na natureza. Depois de ter rompido com a história da química, Lavoisier rompe com a história natural. ~A química cria o seu objecto-, poderfamas adiantar, ela fabrica o seu universo, transparente a razáo. Foi esse o feito de Lavoisier. Ele funda urna química elementar, no duplo sentido do termo: ela edifica-se com base em elementos e é notavelmente simples, acessível aos iniciados.
Limites e ambiguidades Tal simplicidade paga-se de urna maneira ou outra. Ela custa alguns sacrificios. Em primeiro lugar, entre todas as reaccóes que o químico opera, Lavoisier privilegia a análise, a operacáo inversa da síntese. A análise torna-se para ele o único objecto da química, o seu fim exclusivo: ~A química, ao submeter a experiencias os diferentes corpos da natureza, tern por objecto decompó-los ... A química caminha para a sua finalidade e para a sua perfeicáo ao dividir, subdividir, e ressubdividir ainda, e nós ignoramos qual será o termo dos seus resultados». Lavoísíer retém, além disso, apenas urna única leitura das experiencias de análise: a comparacáo do estado inicial e do estado final. Em vez de prestar atencáo a todos os graus de decomposicáo, de assinalar patamares, de multiplicar as distincóes como o fazia Sathl, Lavoisier só mantém dois termos. o composto e o simples. Instala na química urna lógica binária, de dois valores, O ou 1. A seguir, Lavoísier nao derruba e nao ultrapassa toda a química do século XVIII. Deixa deliberadamente de lado o estudo das afinidades e justifica o seu silencio ao invocar o trabalho de Guyton de Morveau. Esta razáo circunstancial esconde contudo urna dificuldade mais profunda: a definícáo do elemento com o seu critério negativo e completamente provisório de indecornposicáo nao permite dar canta dos comportamentos químicos fortemente individualizados. Falta-Ihe um carácter positivo para individualizar os corpos simples. Lembremos enfim algumas ambiguidades do sistema lavoisieriano. Apesar de no «Discurso" Lavoisier pretender acabar com a química dos princípios, nao elimina todos os elementos-principios: nao desempenham o 213
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calórico e o oxigeruo o papel de verdadeiro princípío. mediador universal em todas as reaccóes> Lavoisier condena os velhos princípios mas póe-nos em cena de maneira grandiosa, nos primeiros lugares da sua tabela das substancias simples. Proclama urna revolucáo que está longe se estar acabada. Por outro lado, Lavoisier pretende renunciar a velha procura dos elementos, mas conserva contudo a palavra. Curioso esquecimento para alguém que é tao atento aos erras veiculados pela linguagem! Nao elimina nem o uso da palavra princípio nem o da palavra elemento, que utiliza como sinónimo de carpo simples. Mas acontece-Ihe por vezes introduzir urna distincáo dissimulada entre elemento e carpo simples. Assim, o primeíro grupo do -Quadro de Substancias Simples» intitula-se: «Substancias Simples Que Pcrtenccm aos Tres Reinos e Que Podem Ser Consideradas como os Elementos dos Carpos». A assíduidade no mundo natural continua, portanto, a ser uro critério pertinente. Urna nota de uro manuscrito inédito intitulado «Curso da Química Experimental Ordenado segundo a Ordem Natural das Ideiasconfirma-o: «Nao basta que urna matéria seja simples, indivisível, ou pelo menos indecomponível para que tenha o título de elemento; é preciso ainda que esteja abundantemente difundida na natureza e que entre como princípio essencial e constituinte na composícáo de um grande número de carpos". Vemos, portanto, que permanecem alguns dos bons velhos princípios na química lavoisieriana. A ruptura com a tradícáo nao é nem total nem multo nítida. Mas, face a maíoría dos químicos, a íntencáo revolucionária de Lavoisier leva a melhor sobre os seus actos. A sua obra age na história como urna revolucáo. Revolucáo atribuída a uro único hornero, apesar de ser obra de urna geracáo inteira. Seria justo, com efeito, mencionar todos os que desenvolveram a química pneumática - Hales, Black, Scheele, Priestley, Cavendish, etc. - assim como os químicos franceses que colaboraram com Lavoisier. Este último confessa aliás as suas dívidas quando procura o reconhecimento dos seus pares: testernunha-o a dedicatória de um exemplar do seu Tratado, dirigido a Black em Setembro de 1789. Mas, poueo tempo antes da sua morte, ele reivindica ciosamente a propriedade da nova química e foi compreendido: "Esta teoria nao é, contudo, como ouco dizer, a teoria dos químicos franceses, é a minha, e é urna propriedade que reclamo junto dos meus contemporáneos e da posteridade-.
Reformador na tormenta revolucionária Lavoisier tem menos sucesso na gestáo das coisas públicas. No entanto, tem urna estratégia mais suave oeste dominio. Ele aspira também a controlar e a racionalizar mas só propóe reformas. Como economista liberal, quer aligeirar a íntervencáo do Estado no comércio dos animais para reduzir a escassez; criar oficinas de fíacao de canhamo para evitar a exportacáo de produtos brutos e criar empregos. Quando participa na Comissáo da Agricultura, fundada em 1785 para remediar a falta de for214
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ragens, Lavoisier indigna-se com o arcaísmo e a fraca rendibilídade da agricultura francesa. Insiste junto do ministro para introduzir Pierre Samuel Dupont de Nemours na Comissáo, porque, diz, a agricultura exige tanto competencias administrativas como científicas. Ilustra esta tese ao esclarecer as causas do marasmo: pobreza dos agricultores que nao dispóern do capital necessário para investir e modernizar as suas exploracóes, impostos pesados que travam qualquer veleidade de progresso. Lavoisier denuncia também a incúria do governo face a classe mais pobre da sociedade como prejudicial a organizacáo racional da economía francesa. A sua política social é sobretudo motivada por razóes económicas. Próximo dos fisiocratas, entre os quais tem amigos: Dupont de Nemours, o abade Emmanuel ]osepb Sieyés, Malesherbes, Turgot e Condorcet, Lavoisier pensa que a agricultura é a principal fonte de riquezas, mas nao a única. Em 1787, por altura da convocacao dos Estados Gerais, Lavoisier, chamado a representar o terceiro estado a assembleia provincial de Orleáes, redige um memorando que divulga as suas opínióes políticas na véspera da Revolucáo: prega urna ordem política fundada na razáo preferencialmente que na autoridade. Pronuncia-se por urna monarquía parlamentar onde concorrem a vontade do povo e a do reí. Propóe urna represcntacáo equitativa das tres ordens da sociedade nos Estados Gerais, insiste na liberdade de imprensa e na publicidade dos debates. Enfim, renova a sua ligacáo a Luís XVI, «restaurador das Ieis-, -paí do pavo e benfeitor da humanidade ». Quando a Revolucáo eelode, Lavoisier embarca rapidamente na tormenta, porque o Arsenal é um ponto estratégico. Desde 6 de Agosto de 1789, deve enfrentar motins populares, por causa de um "barco de pólvora". O pavo suspeita que a pólvora se destina a traidores, aos emigrados. Lavoisier, conduzido Cámara com outro responsável do Arsenal, é arneacado de ser executado imediatamente, mas toma a palavra, escutam-no e sai desculpado. Em ]aneiro de 1791, é o alvo de violentos ataques de Marat em L'Ami du Peuple. Tuda lhe dá um perfil de suspeito. Contudo o cidadáo Lavoisier integra-se no movimenro revolucionário: membro da guarda nacional, seccáo Arsenal, contribui para a demolicáo da Bastilha. É eleito para a Comuna de Paris depois, em Setembro de 1789, junta-se a um grupo de moderados, a -Sociedade Patriótica de 1789". Ern 1791, Lavoisier figura entre os seis comissários da nova Tesouraria Nacional e redige urn relatório sobre o estado das financas francesas: Da Riqueza Territorial do Reino de Franca. Finalmente, e sobretudo, participa no grande projecto de reforma dos pesos e medidas, exigido por numerosos cadernos de reclamacóes e confiado a Academia em 1791. Nesta última obra, Lavoisier reúne dois rostos: o sábio cioso em promover medidas universais, e o economista administrador que Iuta contra as alfándegas e as disparidades dos sistemas de pesos e medidas para facilitar o comércio. . Mas todas as ínstituicóes em que Lavoisier fez a sua carreira desmoronam-se, Depois da abolicáo da Ferme générale a 20 de Marco de 1791, Lavoisier identifica-se cada vez mais com a Academia. Eleito tesoureiro á
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em Dezembro de 1791, negoceia habilmente a manutencáo do salário dos académicos e, para enfrentar a desorganízacáo completa das financas públicas, avanca dinheiro, a fim de cncher os cofres da Academia. O decreto de díssolucáo, pronunciado pela Convencáo a 8 de Agosto de 1793, é para ele o sinal do fimo Num úitimo sobressalto, tenta obter a transforrnacao da Academia em -Sociedade Livre e Fraternal para o Avaneo das Ciéncias-, Está quase a salvar a Cornissáo dos Pesos e Medidas, já que, a 11 de Seternbro, Fourcroy cría urna -Comissáo Temporária dos Pesos e Medidas» corn o mesmo pessoal que antes - Lavoisier como tesoureiro, lean-Charles de Borda como presidente, Haüy como secretário - e uro salário para cada um dos onze membros. Mas a 24 de Novembra de 1793, Lavoisier é detido com todos os colectores de impostas, depois encarcerado na prisáo de Port-Libre (Pon-Royal). A 18 de Dezembro, em nome da Comíssáo dos Pesos e Medidas, Haüy protesta contra a prisáo de Lavoisier. A Comissáo de Salvacáo Pública responde com urna purga da Comissáo de Pesos e Medidas: Lavoisier, Haüy, Borda, Maturin-Iacqucs Brisson e Delambre sao excluídos. A ínstrucáo do processo dos colectores de ímpostos arrasta-se, depois, subitarnente, na Primavera, é liquidado ern alguns dias. Lavoisier é um hornem acabado. Urna lenda conta que Lavoisier, tendo pedido urna prorrogacáo da execucáo para acabar os seus trabalhos científicos, teria tido como resposta: ~A República nao precisa de sábios-, Este -dito histórico" parece apócrifo, já que Fouquier-Tinville, a quem é atribuído, nao presidia o Tribunal nesse dia e que o pedido de prorrogacáo nao é mencionado nos processos verbais. Mas esta lenda traduz bem a impressáo de escandalo e de mal-estar causada por esta condenacáo, As instancias revolucionárias eram formadas por políticos incapazes de apreciar a obra de Lavoisier? Era preciso esquecer que Fourcroy e Guyton de Morveau, ambos químicos e colaboradores de Lavoisier, eram membros da Cornissáo de Instrucáo Pública da Convencao Nacional. Lavoisier teria podido encontrar apoios, proteccóes junto de numerosos sábios que tinham responsabilidades políticas: Carnot, Monge, Hassenfratz, Guyton de Morveau, Fourcroy. Ora foram precisamente estes que abandonaram Lavoisier, O último encontro de Lavoisier com os seus colaboradores de outrora, em janeiro de 1794, parece-se com urna comparéncía de inculpado diante dos representantes da leí. Fourcroy, Berthollet, Guyton de Morveau, mandatados pela Comissáo de Seguranca, vém a casa de Lavoisier apreender todos os aparelhos e documentos necessários a Comissáo dos Pesos e Medidas. É verdade que houve algumas íntervencóes para tentar arrancar Lavoisier ao Tribunal revolucionário: do Gabinete de Consulta das Artes e Misteres, presidido por Lavoisier, de alguns agentes das pólvoras e salitres, e de um convencional chamado Pierre Loysel. Luis Claude de Bessicourt, Cadet e Antoíne Baumé - dois químicos hostis a doutrina de Lavoisier - certificaram que Lavoisier nunca cedera a fraude corrente nos colectores de impostos de molhagem do tabaco. Urna delegacáo do Liceu das Artes dirígíu-se a Conciergerie e foi autorizada a
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comunicar com Lavoisier quarenta e oito horas antes da sua execucáo, Mas nenhum dos colaboradores mais próximos fez um gesto. Foi por medo, cobardía, ou probidade revolucionária? As explicacóes apaixonadas abundam. Alguns atacam Fourcroy; outros desculpam-no. Há uma explicacáo plausível, para lá da disputa dos historiadores partidários: a dissolucáo da Academia desfizera os lacos profissionais, já enfraquecidos ao longo dos anos, diz Roger Hahn, no seu livro sobre a Academia; as paixóes políticas ganharam a primazia, apagando qualquer traco de solidariedade. Mas, como observa por outro lado Hahn, os lacos entre especialistas de urna disciplina tinham-se, pelo contrário, reforcado, Na química, mais que em qualquer outro lado, ande os promotores da nova nomenclatura tinham de formar um bloca perante os seus adversários. Ora foram precisamente estes lacos que cederam. Que relacóes mantinha Lavoísier com os seus colaboradores? Muito corteses, se os julgarmos pela parte publicada da Correspondencia. Mas diante da conduta dos seus colegas, podemos perguntar-nos se Lavoisier nao inspirava sentimentos ambivalentes. É preciso reconhecer que a fundacáo lavoisieriana fez-se perante a posteridade, mas sem deferencias para com os predecessores e contemporáneos, No termo de uro empreendimento que o conduziu a apropriacáo da química, Lavoisier devia suscitar de preferencia estima e respeito, culto e veneracáo ero vez de simpatia ou solidariedade. De qualquer modo, Lavoisier, abandonado no momento fatídico, é venerado logo depois da sua morte. Elogio em 1795. A 12 de Agosto de 1796, grande pompa fúnebre no Liceu das Artes; Lavoisier é glorificado na decoracáo e no aparato das [estas do Ser supremo. -Ao imortal Lavoisíer-, a ínscrícáo precede urna pirámide de vinte e cinco pés de altura, com urna porta sepulcral ornamentada de cariátides de mánnore branco; na imensa sala coberta com tapecarias negras semeadas de arminho, cada coluna contém um painel evocando urna das descobertas de Lavoisier. Elogio vibrante de Fourcroy, poema e música cantada por cem coristas reunidos diante do monumento. Finalmente aparece um busto cuja cabeca está cingida por urna coroa. Abandonado, depois entregue ao patíbulo, Lavoisier foi imortalizado numa estátua.
A emergencia de um mito Quem primeiro deu urna dimensáo mitológica a personagem foi uro dos que teria toda a razáo em se queixar de ter sido eclipsado por Lavoisier: Guyton de Morveau. Ero 1786, aparece o tomo 1 do Dicionáno de Química da Enciclopédia Melódica destinada a completar e melhorar a Enciclopédia de Diderot. O artigo .Ar., redigido por Guyton de Morveau alguns anos antes, era concebido em termos de flogisto. Entretanto, o seu autor converteu-se aos pontos de vista de Lavoisier. De modo que os defende com o ardor de um neófito, num «Segunda Advertencia». Lavoisier é apresentado como um salvador, campeáo da verdade, inimigo do dogmatismo; em breve comparado ao «grande Descartes». Guyton descreve a fundacáo lavoisieriana como urna obra 217
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definitiva, inalterável. A ordem que Lavoisier pos na química é a ordem da natureza, uma ordem imutável: "A posteridade verá erguer-se o edificio de que eles (os primeiros químicos) só puderam estabelecer os fundamentos; mas ela só pensará em destruir o que eles tiverem feito quando, com as mesmas matérias, nas mesmas circunstancias, a natureza tiver deixado de operar os mesmo fenómenos». Ainda em vida de Lavoísíer, a sua obra inscreve-se na eternidade. Mal entra na história e é logo retirada dela. No entanto, a realidade dos trabalhos efectuados na -escola francesa-, depois da morte de Lavoisíer, antes desmentirá esta ideia de fundacáo, Enquanto difunde a nova nomenclatura, Guyton de Morveau trabalha nas margens do sistema edificado por Lavoisier sobre a afinidade. Berthollet estuda as condicóes das reaccóes químicas, um problema que Lavoisier deixara de lado. Da obra de Lavoisier, retém precisamente o que se opóe ao mito do fundador solitário: a ínvestígacáo colectiva que desenvolve criando, com Laplace, e outros habituais do Arsenal, a Sociedade de Arcueil. Quanto a Fourcroy, mantém-se distanciado. No artigo «Química» da mesma Bnciclopédia Metódica, apresenta a revolucáo como a obra colectiva de uma geracáo inteira. Acrescentemos que, pouco depois da morte de Lavoisier, um elemento essencial do scu sistema foi contestado, o que deveria, com toda a lógica, provocar o abandono da palavra -oxígénío-, Em 1810, um químico ingles que permaneceu, até ao fim da vida, convencido que Lavoisier nao suplantara a teoria do flogisto, Humphry Davís, mostra que o ácido muriático náo contém oxigénio e isola o cloro. Descoberta capital porque destrona o oxigénio como princípio universal de acidez. Mas os golpes dados na realidade ideia de fundacáo para a eternídade nao sao suficientes para empalidecer a auréola de Lavoisier na memória francesa. Pelo contrárío, por volta de 1830, Lavoisier é glorificado com o título de -Herói das Ciencias Positivas». Auguste Comte dá o tom na trigésima oitava Iicáo do seu Curso de Filosofia Positiva: Lavoisier é -o admirável génio- que fez passar a química do estado metafísico, cheio de quimeras e de especulacóes sem fundamentos, para o estado positivo de urna ciencia racional, experimental, quantitatíva. Comte admite que os estudos ulteriores certamente conduziram a revísáo de algumas generalizacóes apressadas do fundador, mas as «eminentes verdades químicas descobertas pelo génio de Lavoisier conservaram necessariamente todo o seu valor directo". Um ano rnais tarde, em 1836, jean-Baptíste Dumas consagra urna das suas licóes a Lavoisier, no dia do aniversário da sua morte (LifOes sobre a Filosofia Química). Dumas retoma o tema do génio fundador e descreve Lavoisier como um ser inspirado. Urna intuícáo primitiva ter-lhe-ía exigido a reformulacáo da química, e ele realizou este destino com método e tenacidade, sem nada ter ido buscar aos outros. Assim Dumas dramatiza a história por um duplo movimento de concentracáo: nao apenas a revoiucáo química é obra de um só homem, como está condensada num instante, numa ínruícáo fundadora. A licáo termina com urna narracáo patética da morte de Lavoisier e com a promessa de urna á
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reparacáo. Dumas empenha-se ern publicar as obras de Lavoisier nesses termos: -Sim, doareí aos químicos o seu Evangelho-, Herói investido de urna míssáo, vítima sacrífícial, Lavoisier está pronto para a apoteose: «Urna palavra sobre Lavoisier que vos apresento na altura em que, pronunciando o seu fiat lux, afasta com um gesto audacioso 05 véus que a antiga química em váo se esforcou por erguer, na altura em que, dócil perante a sua voz poderosa, a aurora comeca a penetrar as trevas que se devem desvanecer diante do foga do seu génio-. Urn deus de verbo criador e redentor, armado de capacete, couracado de aco, inatacável: -Dísseram-vos muitas vezes: a teoria de Lavoisier está modificada; está arruinada! Erro, senhores, erro! Nao, isso nao é verdade! Lavoisier está intacto, impenetrável, a sua armadura de aco nao está rasgada". É assim que Dumas fustiga todos os que ousam profanar a memória do criador. Lavoisier encarna tao bem a revolucáo que depois dele mais nenhuma revolucáo é possível, Dai que apareca o efeito paradoxal que produz este culto do fundador: ao lancar toda a química pré-lavoisieriana nas trevas do caos e da pré-história, admite-se que a história da química corneca com Lavoisier. Mas nao existe história depois desta revolucáo, visto que tudo já está inscrito definitivamente na fundacáo. E, considerando bem, a própria revolucao escapa a história, urna vez que está inteiramente contida numa intuicáo primitiva. A mitologia positivista anula a história: passado, presente e futuro, tudo é reunido, condensado numa fórmula-milagre: revolucáo. De facto, se considerannos ° conjunto da química francesa no século XIX, desvendamos um segundo paradoxo na heranca lavoisieriana. Longe de ter sido banida por Lavoisier, a busca do elementar foi encorajada pela definícáo lavoisieriana, negativa e provisória, do corpo simples.]á que Lavoisier convida a ínvcstígacáo de corpos cada vez mais simples, nada impede pressupor que os corpos simples actuais poderáo, com meios mais poderosos, ser decompostos por sua vez e reconduzidos a um único elemento primordial. A ambiguidade mantida entre elemento e corpo simples deixa urna grande latitude de pensamento. Ao mesmo tempo que celebram o herói fundador da química positiva, os químicos franceses, como Dumas, entregam-se a especulacóes muito pouco positivas sobre os elementos. Em nome da prudencia, Dumas nao quer pronunciar-se sobre a existencia dos átomos porque ultrapassam a experiencia: -Se fosse o seu mestre, apagaria a palavra "átomo" da ciencia", declara ao College de France. Mas dá livre curso as hipóteses sobre a unidade primordial da materia. Vemos, pois, que o culto de Lavoisier conserva na química francesa urna mistura de censura e liberdade, de prudencia positivista e de especulacóes desenfreadas. Ele favorece o equivalentismo contra o atomismo. Esta querela, que dividiu o mundo dos químicos durante meio século, dura em Franca até ao fim do século. O último bastiáo equivalentista é defendido com valentia por outro cavaleiro de Lavoisier: Marcellin Berthelot, que comemora o centenário de duas revolucóes com urna obra intitulada A Reoolucáo Química, Lauoisier. No entanto, a ascensáo das tensóes nacionalistas na Europa, conjuntamente com a predominancia cada vez mais acentuada, no flrn do 219 1
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século XIX, da indústria quirmca alemá, reactiva o mito do fundador e enriquece-o com um motivo suplementar. O Lavoisier de Dumas era a encarnacáo de urna metodologia. O destino político do sábio apenas realcava a imagem do fundador por evocacáo de um mártir. Mas, em 1869, na véspera da guerra franco-alerná, a figura positivista cede o lugar ao herói nacional. ..A química é urna ciencia francesa: ela foi constituida por Lavoisier, de irnortal memóría-. Esta declaracáo abre um Dicionário de Quimica. O autor, Adolphe Wurtz, é um químico alsaciano, formado na química francesa mas experimentado nos métodos alernáes devido a urna permanencia junto de JUstus van Liebig, um dos raros defensores em Franca das teorias atomistas. O impulso patriótico do seu ..Avant-propos.. é entendido como urna verdadeia provocacáo aiém-Reno, Os químicos alernáes rípostam: Lavoisier nao passa de um amador, um diletante, pretende jacob Volhard, profcssor em Muníque. E os académicos franceses indignam-se. O assunto recomeca, ainda mais acesso, em 1914 quando aparece a traducáo francesa de urna célebre obra de Wilhelm Ostwald, A Etolucáo de Urna Ciencia: a Química. O autor consagra a Lavoisier urna página que apresenta a sua teoria como urna inversáo da de Stahl. No entanto, termina dizendo que Lavoisier merece a sua glória devido a . Iiberdade de espirito- que manifestou no confronto com as ideias correntes. Mas esta última frase é astuciosamente omissa na traducáo francesa. Além disso, Ostwald é um dos noventa e tres signatarios do ..Apelo ao Mundo Civilizado.., lancado por íntelectuaís alcmáes para defender a honra dos soldados alernáes. O patriotismo francés torna-se fogoso. Píerre Duhem empenha-se numa contra-ofensiva e escolhe Lavoisier para defender as cores do seu país. É a Química Urna Ciencia Francesa? aparece em 1916. Duhem argumenta com urna habilidade suprema. Concede ao adversário que os Franceses exageram a importancia de Lavoísier quando confundem numa mesma nuvem de obscurantismo a alquimia e a doutrina de Stahl. Mas Duhem só reabilíta a química pré-lavoisicríana para melhor humilhar as pretensóes alernás. Ele afirma, com efeíto, que, se Stahl é de facto o autor da teoría do floglsto, é a um químico francés, Rouelle, que ela deve o scu sucesso: ..A ídcia alerná, larva de recria, ele deu asas francesas-, A química sernpre teve apenas urna pátria, a Franca, Lavoisier renova e confirma a sua identidade. Tres fases sucedem-se assim na literatura química francesa do século XIX. A primeira nao tern qualquer tonalidade política; Lavoisíer é o criador de urna ordem ímutável, celebrado como um salvador. A seguir, nos anos 1830, é o herói da ciencia positiva, vítima da política, apelando com o seu sacrificio para um culto redentor. Enfim, sob a Ill República, Lavoisier é um herói da pátria, honra de urna Franca multas vezes humilhada. Assim, ao fazer desaparecer um colector de impostas, a Convencáo fez nascer um ídolo. Objecto de um culto, sujeito a diversas ínterpretacóes, suporte de múltiplos valores, Lavoisrcr é um "lugar de mernóría.., um monumento a glóría da ciencia e da Franca. 220
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A figura de Lavoisier retira, em parte, o seu poder simbólico da interferencia entre a sua obra na química e o seu trágico destino. Mas os elementos essenciais do mito foram compostos pelo próprio Lavoisier, num vasto empreendimento, magistralmente conduzido. Entre todos nos sectores nos quais participa - administracáo, financas, agricultura, ciencias académicas - , Lavoisier delimita primeiro um campo de operacáo. a química parece-lhe um terreno favorável, particularmente a recente química pneumática e a arcaica química dos príncípios que lhe serve de quadro teórico. Pouco a pouco, ele toma posse do território gracas a um método experimental quantitativo, organizado, planificado, antes de proclamar vencida a tradicáo secular e sempre viva dos elementos-princípios. Termina e completa a revolucáo com urna tarefa de fundacáo que muda radicalmente a sígnificacáo histórica do acontecimento. Nao se trata da substituícáo de um corpo de doutrinas ou de práticas por outro, mas da críacáo da química como disciplina científica. 50b muitos aspectos, o empreendimento lavoisieriano ilustra os temas favoritos do século das Luzes: derrube da tradicáo, apelo ao natural, racionalizacáo da linguagem, até el ideia de revolucáo introduzida na literatura científica por Fontenelle depois banalizada a partir da Enciclopédta de Diderot. Mas a originalidade da revolucáo realizada por Lavoisier deve-se, segundo me parece, el importancia dada a urna tarefa, especificamente administrativa na origem, o controlo. O sucesso de Lavoisier repousa sobre controlos desmultiplicados: controlo de um espaco, com o laboratório substituindo a natureza; controlo dos objectívos: a química nao tem outro fim além da análise; controlo da prática pela balanca: da teoria, por conceitos forjados no espelho da experiéncía: da linguagem, pela reforma da nomenclatura; do futuro, pelo Tratado Elementar, que permite formar, ero pouco ternpo, exércitos de químicos competentes; controlo do passado, por fim, gracas a urna filosofia que justifica a arrmésia. Assim, Lavoisier nao só renovou a realidade do trabalho dos químicos, mas também transformou a sua imagem ao remodelar a sua história. Apagar os vestigios, varrer os predecessores, sao estes os gestos que modelam a estátua do fundador e permitem o controlo do imaginário de urna ciencia.
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Os Autores •
MICHEL SERRES. Professor na Universidade de Paris-I (Panrhéon-Sorbonne) e na Universidade de Stanford (Estados Unidos), Publícou numerosos trabalhos de história das ciencias, entre as quais: Le Systéme de Leibniz el ses Modeles Matbémcuiques (968), La Naissanee de la Pbysique dans le texte de Lucréce (977), Henni!sCuma série de estudos em cinco volumes, 1969-1980) e As Origens da Geometria Ca publicar também pela Terramar). Dirige a edícáo do corpus das obras de filosofia em língua francesa. PAUL DENOIT. Professor agregado de História e professor de Hisrória Me-
dieval na Uníversídade de Paris-I. Historiador e arqueólogo das técnicas. Em colaooracáo com Philippe Braunstein, publicou Mines, Carnéres et Métallurgie dans la Prance Médtéuale (983); e, com Odette Chapelot, Pierre et Métal dans le Bátímenr au Moyen Age 098S). IsABEUE Sl'ENGERS. Química e filósofa das ciencias. Professora da Universidade Livre de Bruxelas. De colaboracác com lIya Prigogine, pubJicou A NovaA/ian¡:a 0979-ed. port. Gradiva) e Entre le Temps et I'Éternité (988). Ourros l ivros: D'une Scíence ¿¡ l'Autre (1988), Les Concepts Scierutfiques. Iruenuon et Pouvoir (1988). CATHElUNE GoLD8TEIN. Matemática. Investigadora do Centro Nacional da Invcsngacáo Científica (CNRS), de París. Trabalha no Iaboratórto de Geometria Algébrica e de Teorta dos Números (URA D 0752), da Universidade de Paris-X. MICHEL Al1I'HIER. Professor Agregado de História e protessor-conferencísta de História Medieval da Universidade de Paris-I. Historiador e arqueólogo das técnicas. }EAN-MARc DROUIN. Filósofo de formacáo, é especialista de história da ecologia e da botánica. Trabalha no Centro de Invesügacáo de História das Ciencias e das Técnicas, cm Franca. BERNADElTE BENSAUDE-VINCENT. Filósofa. Doutoramento de Estado sobre história da química no século XIX. Autora do livro Langeuin: 1872-1946, Seienee et Vigitanee (987). Investigadora do CNRS e do Centro de Invcsngacáo de História das Ciencias e das Técnicas.
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Indice
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Cálculo, álgebra e comércio PAI;L BENOIT
Os casos Galileu ISABELLE STENGERS
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A refrao;ao e o ~esquecimento» cartesiano ... MICIIEI. Aunnee
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XVIII. . . . • • . . . . . . . . . . . . • • . . . . . . • • . . . . . . . . . . . . . . . ..
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mister dos números nos séculas
XVII
e
XIX .,
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CATIIERINE GOLDSTEIN
A afinidade ambígua: o sonho newtoniano da química
do século
ISABELlE STANGERS
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De Lineau a Darwin: os viajantes naturalistas jEAN-MA1tC DROUIN
Paris 1800
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MICHEL SERRES
Lavoisier: urna revolucáo científica
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BERNADE1TE BENSAllDE-VINCEl\'T
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